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Novembro/Dezembro de 2005 • Número 303-B Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

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Novembro/Dezembro de 2005 • Número 303-BÓrgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

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Jornal da ABI

2 Novembro/Dezembro de 2005

A ABI realizou em dezembro uma sé-rie de atos e eventos em homenagemao jornalista Vladimir Herzog, assassi-nato em 25 de outubro de 1975 nosporões do Destacamento deOperações Internas/Centrode Operações de Defesa In-terna-Doi-Codi do II Exérci-to, sediado em São Paulo.

Os atos deram seqüênciaà intensa programação emhomenagem a Herzog pro-movida em outubro pelo Sindicato dosJornalistas Profissionais no Estado deSão Paulo e outras entidades e se se-guiram a uma sessão especial de teatrona ABI, onde um grupo composto projovens atores, o Sarça de Horeb, apre-sentou no dia 8 de novembro a peçaBrasil Nunca Mais, de autoria de AlmirTeles, professor de teatro do Centro deArtes das Laranjeiras-Cal e, do ColégioSanto Inácio, que dirigiu a encenação:

Ao fazer a apresentação da peça, emtexto sob o título Nunca Mais Mesmo,o jornalista Ivan Cavalvanti Proença,professor das Faculdades Hélio Alonso,cujo alunado ocupou todo o espaço doAuditório Oscar Guanabarino da ABI,informou que o espetáculo percorre oBrasil há alguns anos, “visando às clas-ses docentes e discentes de diferentesníveis, basicamente ao público univer-

justo, verossímil. E honesto. E bem so-lucionado na arte de fazer Teatro.”

Realizada com a colaboração da Co-missão de Direitos Humanos da Or-dem dos Advogados do Brasil / Seçãodo Estado do Rio de Janeiro e da As-sociação Scholem Aleichem, a progra-mação foi iniciada no dia 5 de dezem-bro, às 18h, com a apresentação do fil-me Vlado, 30 anos, de João Batista deAndrade, e prosseguiu às 20 h com umato cívico e afetivo em memória deHerzog, com a participação do Rabi-no Henry Sobel, Presidente da Con-gregação Israelita Paulista que, veio deSão Paulo, convidado pela ABI, espe-cialmente para o ato. Foram oradoresda cerimônia, que transcorreu sob in-tensa emoção dos presentes, o Vice-Presidente da ABI, Audálio Dantas,que presidia o Sindicato dos Jornalis-tas Profissionais no Estado de São Pau-lo na época da morte de Herzog, o Pre-sidente da Asa, Horácio Schechter, eo Rabino Henry Sobel. Além de IvoHerzog, filho de Vlado, que não pôdecomparecer à sessão, enviaram mensa-gens de exaltação da memória deVlado o Presidente Luiz Inácio Lula daSilva e o Governador de São Paulo Ge-raldo Alckmin.

Três dias depois, em 8 de dezem-bro, a ABI inaugurou no Salão João

Antônio Mesplé, saguão do AuditórioOscar Guanabarino, a exposição deartes plásticas Caderno de Anotações,montada originalmente em São Pau-lo, nas comemorações organizadas pe-lo Sindicato dos Jornalistas no Esta-do, e que teve como curadora a críticade arte Radha Abramo. A mostra foienriquecida pelas criações agregadas àmontagem inicial por criações de ar-tistas plásticos do Rio, sob a curadoriade José Maria Dias da Cruz, que, ape-sar da escassez de tempo, mobilizouexpressivo número de artistas para seintegrar à exposição. Além do Cader-no de Anotações, que ficou aberta ao pú-blico até 20 de dezembro, a exposiçãoincluiu a exibição de telas de AntônioHenrique Amaral, Elifas Andreato,ambos de São Paulo, e Kate VanScherpenberg, do Rio. No mesmo diao jornalista e escritor Paulo Markunautografou seu livro Meu queridoVlado, iniciativa infelizmente prejudi-cada pela deficiente promoção feitapela editora da obra.

Nesta página e nas seguintes o Jor-nal da ABI mostra os eventos que aCasa promoveu e reproduz depoimen-tos e reportagens sobre aqueles terrí-veis dias de outubro de 1975 em quefoi levado ao sacrifício nosso irmãoVladimir Herzog.

Civismo, arte e emoção

exaltam a memória do

jornalista assassinado

pela ditadura há

30 anos numa prisão

militar de São Paulo

sitário”, mas “indispensável, ainda, aopúblico comum de teatro em geral” ––“aos brasileiros, enfim”. Após destacara direção experiente e elenco jovem

(“nem tudo está perdido”),Proença chamou a atençãopara diferentes aspectos doespetáculo:

“Trilha musical funcional,sem caracterizar gênero Re-vista, o espetáculo transitapelos contextos sociopolíti-

co e cultural do Brasil, a partir da déca-da de 30 até, e inclusivíssi-mo, os 20anos obscurantistas da ditadura apóso golpe militar de 64.

Estrutura ora orgânica (em trama,rede, enredo), ora episódica (uma cenaindependente de outra, que a antecedeuou que a sucederá), o espetáculo passeiapor situações rigorosamente cômicas,jocosas, mas –– em momentos gravesde nossa História política e de lutas li-bertárias –– aborda, através de cenasdramáticas, pungentes, fatos exaustiva-mente pesquisados e transformados emdramaturgia. Uma aula, no caso, atésem aspas, retomando o (bom) TeatroDidático, aquele que não se conclui atra-vés de tom efabulativo, “moral da estó-ria”, ensinamento dogmático e decla-rado. Nem precisa. Basta ser um espe-táculo plano de sensibilidade artística,

VLADIMIR HERZOGAS HOMENAGENS DA ABI AAS HOMENAGENS DA ABI A

ARQU

IVO SJSP

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Jornal da ABI

Novembro/Dezembro de 2005

A exibição do documentário Vlado, 30anos, de João Batista de Andrade, Se-cretário de Cultura do Estado de SãoPaulo, abriu o conjunto de atos em me-mória de Vladimir Herzog.

O Presidente da ABI, Maurício Azê-do, justificou a ausência de João Batis-ta de Andrade, que fora convocado pa-ra uma reunião de Secretariado peloGovernador Geraldo Alckmin e nãopôde vir, como combinado, para apre-sentar o filme. Em seguida, Mauríciopassou a palavra a Audálio Dantas, Vi-ce-Presidente da ABI, que fez breveapresentação do documentário, recor-dando que João Batista de Andrade éautor de filmes brasileiros importan-tes como O homem que virou suco, Opaís dos tenentes e Doramundo, nesteúltimo, dividiu aautoria com Vlado.Audálio lembroutambém que a in-tenção de Andradeera produzir umaficção logo após amorte do jornalis-ta, contando suahistória e os mo-mentos que prece-deram sua prisãoem 25 de outubrode 1975.

Disse Audálio,que Andrade pro-duziu Vlado, 30anos com a inten-ção de lembrar emanter viva a his-tória do jornalista não como um már-tir, mas como um marco que deflagrouum movimento em busca das liberda-des fundamentais. Ele lembrou aindaque, há 30 anos, enquanto ocorria oato ecumênico em homenagem a Vla-dimir Herzog em São Paulo, BarbosaLima Sobrinho e Prudente de Moraes,neto, dirigiam uma sessão simultâneano auditório da ABI.

No começo do documentário, JoãoBatista de Andrade diz que percebiauma falha em sua biografia por nãoter produzido até então o filme sobrea história de Vlado e conta que os de-poimentos relatam cenas das testemu-nhas daquele período que conheciamo jornalista.

O atoÀ exibição do filme seguiu-se um

ato cívico e afetivo em memória deVladimir Herzog. Audálio Dantas sau-

dou a ABI pela iniciativa das homena-gens a Vlado, “símbolo de uma reaçãodefinitiva da sociedade contra o queacontecia na ditadura”. Recordou ain-da as palavras marcantes do RabinoHenry Sobel, Presidente da Congrega-ção Israelita Paulista, durante o atoecumênico de São Paulo, em outubrode 1975:

— Henry Sobel estava ali não por-que havia morrido um jornalista, umjudeu, mas um homem. Aquilo erauma violência e por isso protestava.

Horácio Schechter, Presidente daAssociação Scholem Aleichem, falousobre sua instituição, criada por emi-grantes judeus que vieram para o Bra-sil recomeçar suas vidas, e que hoje setornou um centro de debates:

— Acreditamos que é possível umundo melhor, baseado nos princípiosde paz, democracia e liberdade. Vladoera militante das causas sociais e acre-

ditava na verdade e na força da infor-mação livre. Calaram a sua voz, masnão a sua mensagem.

Mediador da mesa, Maurício Azêdodestacou a presença entre os assisten-tes de Frederico Pessoa, jornalista pre-so e torturado pela ditadura na sériede violências que culminaram com amorte de Vlado. Em seguida, o Rabi-no Henry Sobel ressaltou que o nomede Vladimir Herzog sempre será lem-brado como o ícone de um períodosombrio da História brasileira:

— Ele não foi a única vítima. Cen-tenas de opositores do regime foramespancados e torturados. De acordocom a Constituição brasileira, a tor-tura é crime inafiançável, mas aindahoje continua sendo praticada por al-guns agentes do Estado. A tortura po-de ser abolida, desde que a sociedadedê um basta.

Sobel afirmou que as palavras deDom Paulo Evaristo Arns durante oato ecumênico de 1975 ainda hoje eco-am em sua mente:

LUTA PELA LIBERDADEA virada começou com o sacrifício de Vlado, diz Audálio Dantas.

UM MARCO DA

— Ele foi bastante incisivo ao citartrechos da Bíblia, como o mandamen-to “não matarás”. Costumo dizer naCongregação que o silêncio é o maisgrave dos pecados. A tragédia de Her-zog nos aproximou uns dos outros,todos os credos e raças. Sejamos cris-tãos, judeus, muçulmanos, budistasou mesmo ateus, digamos não à vio-lência; sim à paz.

Ao final do ato, o Presidente da ABIconvidou a platéia a se levantar paraum minuto de silêncio em homena-gem a Vlado. Em seguida, a cantoraWatusi subiu ao palco para cantar Obêbado e a equilibrista, de Aldir Blance João Bosco, considerado, segundo oPresidente da ABI, um hino da resis-tência naqueles anos difíceis.

A programaçãocontinuou, tambémno Auditório OscarGuanabarino, com aabertura da mostrade artes plásticasCaderno de Anotações,reunindo criações decerca de 50 artistasplásticos paulistasque, a pedido do Sin-dicato dos Jornalis-tas no Estado de SãoPaulo, produziramum material visualem homenagem aojornalista, exposto

como se estivesse numa caderneta usa-da por repórteres. Também integrarama mostra criações de artistas plásticosradicados no Rio, convidados pelo pin-tor e professor José Maria Dias da Cruz.Para a exposição veio especialmente deSão Paulo a jornalista e crítica de artesRadha Abramo, que liderou o movimen-to de produção e captação de obras noEstado. Com ela vieram os subcuradoresCildo Oliveira e Lúcia Py.

O jornalista Paulo Markun, compa-nheiro de Vladimir Herzog na prisão,fez noite de autógrafos para o lança-mento no Rio de seu livro mais recen-te, Meu querido Vlado. — Foi uma ex-celente oportunidade de encontrarmeus amigos cariocas, além de conti-nuarmos as homenagens ao Vlado, nãosó com meu livro, mas com a exposi-ção. A ABI participou ativamente des-se episódio e o seu então Presidente,Prudente de Moraes, neto, viajou es-pecialmente para São Paulo para pres-tar solidariedade à família, ao sindica-to e aos jornalistas.

Silêncio por Vlado: Horácio Schechter, Presidente da Associação Scholem Aleichem,Rabino Henry Sobel, Maurício Azêdo e Audálio Dantas. O conjunto tocou antes da peça

Brasil Nunca Mais. Watusi interpretou a capela O bêbado e a equilibrista.

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Jornal da ABI

4 Novembro/Dezembro de 2005

Em Caderno de Anotações —Vlado, 30 anos, exposiçãoque ficou aberta ao públicona ABI até o dia 20 de de-zembro, Katie Van Scher-penberg estava entre os pou-cos artistas que não parti-ciparam da mostra com umbloco de anotações, idéiacentral da exposição. Elaexibe uma tela em que apa-rece a figura de um dos ge-nerais do regime militar. —A minha inspiração partiudas várias aparições de ge-nerais naquele período ter-rível da ditadura. Eles apa-reciam muitas vezes paradefender o indefensável.

Revelou Katie que jamais foram dadosnomes aos personagens de suas obras, poissua intenção era apenas manifestar seusentimento de revolta: — Quando che-guei ao Rio, em 1973, fiquei revoltada comtudo o que acontecia. Os quadros eramuma forma de tentar achar uma razão quejustificasse as atitudes dos militares.

Lisonjeada por participar da exposi-ção, Katie diz que muitos artistas pro-duziram trabalhos inspirados nos acon-tecimentos da época da ditadura. — Oque nos motivava era o sentimento deestar censurados, de não podermos ma-nifestar nossos pensamentos. Brigáva-mos por melhores condições de traba-lho e liberdade de expressão.

De 1973 a 78, Katie produziu trêsséries cujo tema era a ditadura: Pátriaamada, Palanques e Os executivos. Naépoca ela era uma pessoa politicamenteativa, tendo participado da fundação daAssociação Brasileira de Artistas Plásti-cas Profissionais (Abapp), que no iníciofuncionou em sua casa: — A Associa-ção ajudou muita gente a ter informa-

KATIE: A REVOLTA NA ARTE

ções sobre seu trabalho como artista, aaprender até como montar uma expo-sição ou encontrar alternativas paraganhar dinheiro com a arte.

Posteriormente, Katie fez um estu-do para saber como melhorar o mate-rial usado pelos artistas plásticos e pu-blicou um livreto sobre a precariedadeinstrumental no Brasil: — Em seguida,comecei a dar aulas para artistas, ensi-nando como produzir o próprio mate-rial. A tinta em casa, por exemplo, temcusto baixíssimo.

Para janeiro, Katie programou umaoficina intensiva de materiais e téc-nicas em pintura. Quem quiser co-nhecer seus trabalhos pode acessarwww.katievanscherpenberg.art.br econferir seu acervo.

Katie Van Scherpenberg nasceu emSão Paulo, em 1940. Passou a infância naInglaterra e retornou ao Brasil em 1946.Morou na Ilha de Santana, no Rio Ama-zonas, e em 1973 mudou-se definitiva-mente para o Rio de Janeiro, onde moraaté hoje, e estudou pintura com Caterina

“Senhoras e senhores,Embora não possa comparecer a este atoem memória do inesquecível VladimirHerzog, quero, mesmo à distância, jun-tar-me a todos os presentes para home-nagear aquelejornalista dinâ-mico e corajoso.

A morte deVlado tornou-omártir e revigo-rou a luta contrao arbítrio e aopressão. De-sencadeou pro-cesso irrefreá-vel que condu-ziu aos memo-ráveis movimentos populares que, porsua vez, forçaram o retomo ao EstadoDemocrático de Direito.

O clima criado por seu sacrifício re-cuperou a capacidade de mobilização domovimento sindical e tornou possível arealização, poucos anos depois, das his-tóricas greves ocorridas no ABC paulis-ta, que tanto contribuíram para a rede-mocratização do País.

O longo e difícil período que produziuo desaparecimento do nosso Vlado e deoutros bravos companheiros que oferece-ram sua luta e suas vidas pela recupera-ção das liberdades democráticas amadu-receu a sociedade brasileira. Fez com quese desenvolvesse no coração dos verda-deiros patriotas forte sentimento de re-sistência a todo tipo de aventuras golpis-tas, ostensivas ou dissimuladas em açõescamufladas por falso pudor moralista.

Os documentos oficiais federais queregistram episódios relacionados com arepressão daqueles anos, mantidos ina-cessíveis até o advento de nosso Gover-no, estão sendo transferidos para o Ar-quivo Nacional para, finalmente, estarà disposição da pesquisa e resgatar nos-sa História.

Ao integrar-me a esta platéia, quero es-tender a justa homenagem que ela hojepresta a Vladimir Herzog, à valente Clari-ce e a seus filhos, aos heróicos combaten-tes que tombaram na luta pela liberdadee aos que ainda felizmente estão entrenós, vários dos quais aqui presentes.

Recebam todos meu fraternal abra-ço. (a) Luiz Inácio Lula da Silva, Presi-dente da República”

A palavra doPresidente Lula

– O sacrifício de Vlado viabilizoua realização das greves do ABC

“Prezados Senhores,O Governador Geraldo Alckmin (foto)expressa votos de que os atos em me-mória de Vladimir Herzog mantenhamviva a consciência da importância dademocracia, daliberdade de ex-pressão e respei-to aos direitoshumanos e danecessidade demantermos a in-dignação às açõesde truculência,prisão, tortura emorte de qual-quer governo di-tatorial.

Sem poder comparecer aos eventosprogramados pela ABI, o Governadortransmite-Ihes seus cumprimentos pelainiciativa, extensivos aos membros daComissão de Direitos Humanos daOAB-RJ e da Associação Scholem Alei-chem, e deseja sucesso ao livro Meu que-rido Vlado, de Paulo Markun.”

“Caro Presidente Maurício Azêdo,Gostaria, em nome da nossa família, deagradecer a homenagem prestada aomeu pai, Vladimir Herzog.

Nestes 30 anos muitas coisas sepassaram no nosso País. Enquanto asinstituições democráticas se fortale-ciam, outros problemas sociais de des-respeito aos direitos humanos foramsurgindo.

Várias batalhas foram vencidas na-quela luta iniciada sob a liderança doSindicato dos Jornalistas. A luta aindacontinua. Mas precisamos continuartendo o apoio da imprensa para as no-vas questões que afligem os brasileiros.

Vivemos guerras urbanas que têmsua origem em comum com o que meupai lutava: o desrespeito aos direitoshumanos. Desrespeito na forma de de-sigualdade social, na forma de um sis-

A mensagemde Alckmin O AGRADECIMENTO DE

IVO HERZOGtema de educação medíocre que dificul-ta a conquista de um lugar no mercadode trabalho formal àquelas pessoas quedependem deste sistema público. Des-respeito na forma de um sistema judi-ciário que não pune aqueles que come-tem crimes contra nós. E, finalmente,desrespeito na forma de um sistema po-lítico corrupto, que suga o dinheiro deum povo sofrido, em prol de uma castasocial (de políticos) que não tem limi-tes em sua ambição por dinheiro.

Porém, graças ao trabalho de compa-nheiros que estão esta noite com você emuitas outras pessoas que se indignamao verem atrocidades sendo cometidascontra outras pessoas, podemos conti-nuar tendo uma esperança por justiça,ética e igualdade de direitos.

A imprensa tem sido nossa guardiã.Obrigado. (a) Ivo Herzog.

Katie Van Scherpenberg exibe uma tela dastrês séries que fez sobre a ditadura.

Jornal da ABIEditores: Francisco Ucha, Joseti Marquese Maurício Azêdo.Textos (especiais ou transcrições):Audálio Dantas, Henry Sobel, Ivan CavalcantiProença, José Mindlin, José ReinaldoMarques, Maurício Azêdo, Paulo Markun,Ricardo Kotscho, Rodolfo Konder, RodrigoCaixeta, Sérgio Gomes, Zuenir Ventura.Apoio à produção editorial: Ana PaulaAguiar, Fernando Luiz Baptista Martins,Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo,Solange Noronha.

Documento EspecialVLADO, 30 ANOS

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De São PauloAprígio Fonseca • Ana Alice Francisquetti •Anamárcia Veisencher • Antônio Henriquedo Amaral • Astrid Salles • BárbaraSchubert Spanoudis • Braz Dias • CildoOliveira • Cirton Genaro • Cláudio Tozzi •Dworeki • Eduardo Iglesias • ElifasAndreato • Ermelindo Nardin • FernandaAmalfi • Fernando Durão • FernandoLemos • Gershon Knispel • GilbertoSalvador • Gregório Gruber • Guersoni •Guilherme de Farias • Guto Lacaz • JoanaBaraúna • José Roberto Leonel Barreto •Kamori • Lily Simon • Lorena Hollanda •Lúcia Porto • Lúcia Py • Luciana Mendonça• Lúcio Tamino • Lucy Salles • LuizCastañon • Maria Bonomi • MarilzesPetroni • Nelson Screnci • Norberto Stori •Norha Beltran • Paulino Lazur • RivaRapoport • Sara Goldman Belz • SolangeGusmão • Sonia Von Brusky • Thais Gomes• Vera Salamanca • Walter Miranda

Do Rio de JaneiroBob N • Bruno Lopes Lima • CarlosContente • Carolina Ponte • José MariaDias da Cruz • Júlio Csekö • Latoe V.Scherpenberg • Nara Varela • OrlandoMolica • Pedro Varela

Do CearáKlévisson Viana

OS EXPOSITORES

Baratelli. Depois, estudou escultura comGeorge Brenninger na Academia de Be-las-Artes da Universidade Federal de Mu-nique, na Alemanha, e aquarela comOscar Kokoschka, na Schule der Sehensem Salzburgo, na Áustria. Em 1976, deuinício à carreira de professora de artesplásticas, lecionando em faculdades, ins-tituições artísticas e escolas de todo oBrasil. Atualmente, leciona em seu ate-liê ou dá cursos especiais.

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Jornal da ABI

Novembro/Dezembro de 2005

“Estamos aqui reunidos para homenagear o jorna-lista Vladimir Herzog. Trago o abraço fraterno e so-lidário da Associação Scholem Aleichem–Asa, cen-tro do judaísmo progressista do Rio de Janeiro, aosamigos de Herzog.

Existe entre os judeus e suas entidades muita coi-sa em comum. Em agosto deste ano, a Asa come-morou 41 anos e, na qualidade de sucessora da Biblio-teca Scholem Aleichem, representa uma trajetóriade cerca de 81 anos.

A Biblioteca e a Asa em várias épocas sofreramintervenção e vigilância por parte dos órgãos de se-gurança.

A Asa é um Centro de Cultura. Seus fundadoressão emigrantes, vindos principalmente da EuropaOriental. Judeus. Chegaram ao Brasil para recome-çar suas vidas. Além de sua bagagem, traziam suastradições e costumes, e um sólido conjunto de valo-res éticos e morais. A vida familiar tinha sua seqüên-cia natural nas atividades sociais onde preservavamsua cultura, traduzidas em grupos corais, gruposteatrais, bibliotecas, círculos de leitura e publicaçõesimpressas. Essas atividades são desenvolvidas até osdias de hoje.

A Asa é um Centro de Debates. Seus fundadoresparticipavam ativamente da mobilização em tornode idéias políticas da época que trouxeram de seuspaíses de origem. Sentiam a necessidade e o impera-tivo de transformações para a construção de ummundo melhor.

Deles herdamos seus sonhos a que não renuncia-mos. Acreditamos que um mundo melhor é possí-vel. Um mundo com menos violência e sem exclu-sões. Um mundo de Justiça Social, mais igualitárioe de respeito ao próximo e aos seus direitos. Ummundo baseado em princípios de paz, democracia eliberdade.

Acreditamos no Homem. Acreditamos no seu sen-timento de fraternidade, solidariedade e tolerância.Acreditamos no seu senso de justiça.

Assumimos um compromisso. Somos daquelesque não aceitam o fim da História. Continuaremosa buscar novos caminhos e novos horizontes para aconstrução de um mundo melhor. Existem muitasalternativas para atingir esse objetivo e a Asa sem-pre será um espaço livre para a sua análise, avalia-ção e reflexão.

Minha família também sofreu com a ditadura.Permitam-me lembrar meu falecido pai HerschSchechter. Filho de emigrantes. Jovem emigrante.Judeu. Também acreditava que um mundo melhorera possível. Militante das causas sociais desde cedo.

A saudação do judaísmoao grande morto, na vozde Horácio Schechter,Presidente da Asa.

“AMIGO VLADIMIR,AQUI ESTAMOS”

Jornalista. Em abril de 47, fundou o jornal NossaVoz (Undzer Schtime), voltado para o setor pro-gressista da coletividade judaica. Era seu dirigentee também redator. Na véspera da edição do seu 17°aniversário, a repressão fecha o jornal e empastelaa gráfica Isbra onde era impresso. Busca refúgio emMontevidéu - Uruguai, terra sempre generosa.Quando houve condições, volta ao Brasil e traba-lha na revista Veja até se aposentar por estar comuma doença grave.

Vladimir Herzog. Filho de emigrantes. Jovememigrante. Judeu. Também acreditava que um mun-do melhor era possível. Militante das causas sociais.Jornalista. Deixa a revista Visão onde era editor decultura, e passa a dirigir o Departamento de Jorna-lismo da TV Cultura. Acreditava na verdade e naforça da informação livre. Combatia a censura, queconsiderava uma forma de violência.

O General Ednardo D´Ávila, Comandante do IIExército, quer atingir as vozes de oposição. Os jor-nalistas são o alvo principal. Passam a ser persegui-dos, sofrem prisões arbitrárias e tortura.

25 de outubro de 75. Herzog vai ao Doi-Codipaulista. Cerca das 15 horas. Jornalistas presos ou-vem os gritos de Herzog. A princípio, fortes; a se-guir, sufocados; e finalmente, o silêncio. Calaram avoz de Vladimir Herzog.

Nossa homenagem a Vladimir Herzog. Homemdo seu tempo. A dignidade foi o traço de sua vida ede sua morte. Honrou sua vida, sensível aos proble-mas sociais. Honrou seu trabalho, sempre à procurada verdade. Honrou sua morte, rasgando a falsa con-fissão que queriam obrigá-lo a assinar. Torna-se omártir da abertura segundo Zuenir Ventura.

Rompe-se o equilíbrio. A linha dura do golpe mi-litar começa a perder espaço.

Nesta ocasião, devemos lembrar ainda das pessoasque não se calaram, pessoas que dão uma maior di-mensão ao ser humano. A indignação vencera o me-do em tempos duros e difíceis. Mil perdões se nãocito outros por esquecimento ou por ignorância.

Nossa homenagem a Clarice Herzog, mulher e es-posa que se transforma em leoa para provar queHerzog havia sido assassinado. Seu grito lancinante“mataram o Vlado” percorre e sacode todo o Brasil.

Nossa homenagem aos advogados Heleno Fra-goso, defensor de tantos presos políticos, e a SérgioBermudes, que abraçaram a causa de Vladimir Her-zog, sem temer possíveis represálias.

Nossa homenagem ao Juiz Márcio José de Moraesque deu a sentença, em 25 de outubro de 1978, con-siderando a União responsável pela prisão, tortura emorte de Vladimir Herzog.

Nossa homenagem ao Rabino Henry Sobel, parti-cipante ativo nas grandes causas da coletividade ju-daica e do diálogo ecumênico O Rabino Sobel recusa-se a enterrar Herzog no lugar destinado aos suicidasconforme manda a tradição judaica. A farsa não seriaaceita. Acompanha a família em toda sua a luta e so-frimento. No Cemitério Israelita, no enterro, cercade 1.000 pessoas e muitos agentes da repressão.

Nossa homenagem ao Cardeal Dom PauloEvaristo Arns, que usou seu espaço para denunciara tortura e falava sobre liberdade e dignidade huma-nas, para desgosto dos militares. Aceitou a propostae foi um dos incentivadores da missa ecumênica rea-lizada na Catedral da Sé. 8.000 pessoas comparece-ram, vencendo as barreiras policiais. A missa foi ce-lebrada pelo próprio D.Paulo, por Dom Helder Câ-mara, Arcebispo de Olinda e Recife, pelo RabinoSobel e pelo Reverendo James Wright. Citando pa-lavras bíblicas, Dom Paulo, com sua voz tão carac-terística, inicia sua oração “ Maldito aquele que temas mãos manchadas pelo sangue de seu irmão “.

Nossa homenagem a Audálio Dantas, Presiden-te do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Es-tado de São Paulo na época. Liderando os jornalis-tas, fez aprovar a proposta de missa ecumênica,sugestão de David de Moraes, em assembléia de 300jornalistas.

No enterro de Herzog, lembra Castro Alves:Senhor Deus dos Desgraçados,Dizei-me Vós, Senhor Deus,se é loucura... se é Verdadetanto horror perante os céus.Na convocação para o enterro, já denunciava as

prisões arbitrárias e o prolongamento da incomuni-cabilidade acima dos dez dias legais. Na missa, noseu pronunciamento, preocupou-se com a seguran-ça dos presentes – pediu que todos saíssem em pe-quenos grupos e em silêncio.

Inicia-se uma abertura lenta. Recuos e avanços.Sai a anistia recíproca aceita pela ditadura. O movi-mento das diretas atravessa e mobiliza o País. Final-mente, os militares recolhem-se à caserna e o poderé entregue aos civis. As sementes da Liberdade e dademocracia germinaram e hoje são tenras plantinhasque precisamos fazer crescer cada vez mais.

Recordo desde a infância que nas solenidades emhomenagem aos 6 milhões de judeus mortos, víti-mas do nazismo, havia sempre uma faixa com osdizeres – Não perdoar e não esquecer ... Hoje, en-tendo. Não é uma questão de vingança. É uma ques-tão de Justiça. Os governos civis após o término daditadura – Sarney, Collor, Fernando Henrique e agoraLula – nada fizeram para punir os torturadores eassassinos. É preciso dar um basta a essa impunida-de ou aceitaremos passivamente a barbárie. Torturae assassinato são crimes contra a Humanidade, nãodevem prescrever e têm que ser punidos.

Amigo Herzog, calaram a tua voz, mas não cala-ram a tua mensagem. Descansa em paz. Tua esposae teus filhos sempre sentirão orgulho de você. Nóstambém.

A letra do hino dos partisans na 2ª Guerra Mun-dial diz em sua primeira estrofe:

Não digas nunca que este é o último caminho;sob negras nuvens claro dia se desvenda.Ainda há de vir o dia que sonhamos,nosso passo ressoará – Aqui estamos.Amigo Vladimir Herzog, aqui estamos e conti-

nuaremos a caminhada.”

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Jornal da ABI

6 Novembro/Dezembro de 2005

“Mas que vejo eu aí? (...) Que quadrod’amarguras! Que canto funeral! (...) quetétricas figuras! (...) que cena infame evil (...) Meu Deus! Meu Deus! Que hor-ror!” Citando estes versos do poemaNavio negreiro, de Castro Alves, o jorna-lista Audálio Dantas, hoje Vice-Presiden-te da ABI e na época Presidente do Sin-dicato dos Jornalistas Profissionais noEstado de São Paulo, prestou a última ho-menagem ao jornalista Vladimir Herzog,cujo corpo foi enterrado no dia 27 de ou-tubro de 1975, no Cemitério Israelita doButantã, na capital paulista.

A morte de Vladimir Herzog aconte-ceu há 30 anos, no dia 25 de outubro, demaneira violenta e misteriosa nas depen-dências do Doi-Codi do II Exército, emSão Paulo, para onde se dirigiu para aten-der a uma intimação de agentes de segu-rança da ditadura militar que o procura-ram, na noite anterior, na redação da TVCultura, onde era diretor do Departa-mento de Jornalismo, com ordens de le-vá-lo para prestar depoimento.

Herzog foi procurado na emissora porvolta das nove e meia da noite de sexta-feira, 24 de outubro. Diante da reaçãoda Direção da emissora e dos colegas deredação ao procedimento dos agentes desegurança, estes, depois de consultar seussuperiores, comunicaram a VladimirHerzog que ele deveria comparecer às de-pendências do II Exército na manhã dodia seguinte, o que ele fez no horáriocombinado, oito horas da manhã.

A reação da imprensaA morte de Vladimir Herzog mos-

trou como a chamada linha dura do regi-me militar agia com quem eles conside-ravam uma ameaça aos seus planos po-líticos. A ação vinha sempre rechea-da de truculência, prisão, tortura e mor-te. Mas a imprensa reagiu, enfrentou aintolerância e a censura e mobilizou asociedade. No dia seguinte à morte deVladimir Herzog, o Sindicato dos Jorna-listas no Estado de São Paulo, sob a li-derança do jornalista Audálio Dantas,distribuiu um comunicado, responsabi-lizando os militares pelo fato, indepen-dentemente das circunstâncias em queocorrera: “Não obstante as informaçõesfornecidas pelo II Exército, o Sindicatodos Jornalistas deseja notar que, peran-te a lei, a autoridade é sempre respon-sável pela integridade física das pessoasque coloca sob sua guarda”.

Quando receberam a notícia da mor-te de Vladimir Herzog os membros dadiretoria do Sindicato estavam em Pre-sidente Prudente, no interior do Esta-do, participando de uma palestra sobreliberdade de imprensa. Segundo AudálioDantas, o grande número de denúnciassobre o desaparecimento de pessoas

consideradas subversivas pelo governomilitar levou o Sindicato a avaliar, na-quele momento, que a pressão poderialevar a um recuo das forças da repres-são; no entanto, a morte do Vlado pro-vou que estavam enganados.

No Rio de Janeiro, ao tomar conhe-cimento da morte de Herzog, a ABI sesolidarizou imediatamente com o Sin-dicato paulista: — A ABI foi a primeirae única instituição a prestar solidarie-dade ao Sindicato imediatamente apósa notícia da morte do Vlado, e as posi-ções assumidas pelo então Presidente daentidade, Prudente de Moraes, neto, pe-dindo a instauração de um InquéritoPolicial Militar (IPM) para apurar as cau-sas da morte, foram de fundamentalajuda no caso — diz Audálio Dantas.

No ofício que enviou ao Comandan-te do II Exército, General EdnardoD‘Avila Melo, no dia 27 de outubro de1975, “expressando a inquietação de todaa imprensa” diante das circunstânciasque levaram à morte de Herzog, a ABIdizia lamentar “os recentes acontecimen-tos em São Paulo, onde um número dejornalistas vem sendo preso e submeti-do a longos interrogatórios sem assistên-cia jurídica, em regime de incomunicabi-lidade. Estes acontecimentos tornaram-se mais preocupantes com a morte dojornalista Vladimir Herzog”.

A mensagem citava ainda a necessi-dade da instauração de um IPM, “queserá indispensável para o total esclare-cimento dos fatos e da opinião públicado País, mas não produzirá, a nosso ver,o efeito que todos desejam se não foracompanhado pelo Ministério Públicoda Justiça Militar e com acesso da im-prensa às diligências e depoimentos re-ferentes às investigações”.

No editorial Nos limites da intolerân-cia, publicado em 28 de outubro, O Es-tado de S. Paulo chamava a atenção parasua indignação “face a tudo o que desa-gregue o tecido social expresso na lei”.

Seguia dizendo: “É imperativo alimen-tar na opinião a consciência aguda doDireito e respeito à pessoa humana (...)e o que nos faz reprisar o assunto dasprisões efetuadas pelos diversos organis-mos de segurança é a condição de cida-dão de que até sábado à tarde estava re-vestido o sr. Vladimir Herzog, com di-reito à tutela do Estado.”

Hoje, Audálio Dantas acha que o pa-pel desempenhado pelo Sindicato dosJornalistas no episódio ainda precisa sermais bem avaliado:

— Se o sacrifício de Herzog foi o pon-to de partida para o desmonte do apa-relho de repressão armado pela ultradi-reita, que lutava pela hegemonia da di-tadura militar, a atuação do Sindicatono episódio marcou o momento em quese abriu espaço para o crescimento daresistência da sociedade civil ao regimeinstalado no País com o golpe de 64. Na-queles dias de outubro, o Sindicato dosJornalistas de São Paulo era a principaltrincheira, uma referência para a socie-dade civil na luta contra a repressão.

Duas versõesA versão oficial para a morte de

Wladimir Herzog, apresentada pelo IIExército através de nota, comunicavaque “Vladimir Herzog foi encontradomorto enforcado dentro da cela e tendopara isso se utilizado de uma tira de pa-no, na sala onde fora deixado”.

O jornalista Rodolfo Konder contaque viu Vladimir Herzog dentro do Doi-Codi sendo acareado com outros doispresos. Eles usavam capuzes pretos enão podiam ver uns aos outros, masKonder diz que levantou ligeiramenteo capuz e viu que era o colega pelo an-dar e pelos sapatos: “Reconheci os mo-cassins pretos que o Vlado usava”.

Konder revela que durante o interro-gatório, Herzog negava que pertencesseao Partido Comunista, o que irritava ostorturadores. Konder e o outro preso fo-ram então retirados para outra sala, deonde puderam ouvir a ordem para quetrouxessem a máquina de eletrochoquee, depois, os primeiros gritos de Herzog:

— Os choques eram muito violen-tos e faziam o Vlado urrar de dor. Osagentes chegaram a ligar um rádio a to-do volume para tentar abafar os sons.Cerca de uma hora depois me levarama outra sala, onde eu pude ver o Vlado.O interrogador pediu que eu dissesse aele que não adiantava resistir e fui obri-gado a ajudá-lo a redigir uma confissão,dizendo que ele havia sido aliciado pormim para ingressar no PCB e apontan-do outras pessoas que também deviamser integrantes do partido.

Em seguida, Konder foi retirado dasala de interrogatório — “os gritos re-começaram”, lembra — e essa deve tersido a última vez que Vladimir Herzogfoi visto com vida.

A família de Herzog foi informada

da sua morte através da direção da TVCultura. O comunicado do Comandodo II Exército informando que o jorna-lista havia “se suicidado” na prisão foifeito na noite de sábado e o laudo doIML atestava como causa da morte “as-fixia mecânica por enforcamento, nasede do Doi-Codi, em hora ignorada”.

CampanhaCompanheiro de Herzog na TV Cul-

tura, o jornalista Paulo Markun achaque Vlado foi vítima também de cam-panha deflagrada na imprensa, “atravésde notinhas plantadas” por simpatizan-tes do regime militar. A campanha mi-rava diretamente o Secretário Estadualde Cultura de São Paulo, José Mindlin,e o Governador Paulo Egídio, acusadosde permitirem a ação de comunistas naemissora. Esse movimento expunhatambém a luta que vinha sendo trava-da dentro do Governo pelo grupo da li-nha dura do regime, alinhada com o Mi-nistro do Exército, General Sílvio Fro-ta, e o pessoal do Presidente ErnestoGeisel, que havia assumido, em 1974,prometendo dar início ao processo deabertura política:

— O objetivo dessa campanha, na rea-lidade, era derrubar o Geisel. Como oVlado era o Diretor de Jornalismo da emis-sora e havia sido contratado por indica-ção do José Mindlin, passou a ser o alvodos agentes de segurança da ditadura.

Vladimir Herzog foi chamado por JoséMindlin para assumir o Departamentode Jornalismo da TV Cultura por causado seu currículo. Ele começou a carreirajornalística no Estadão, em 1959, logodepois de concluir o curso de Filosofiana Universidade de São Paulo. Foi reda-tor do programa Show de notícias, do Ca-nal 9 de São Paulo, e trabalhou na revis-ta Visão, no escritório da BBC em Lon-dres. Na opinião dos amigos, era um ho-mem retraído, apaixonado por cinema etelejornalismo e muito preocupado comas questões culturais. Tinha simpatiapelo Partido Comunista, porque acredi-tava que a organização era a única quedefendia a tese de que os rumos do Paísmereciam uma discussão aberta. “Masera terminantemente contra a luta arma-da, porque não acreditava que essa fossea solução para derrubar a ditadura noPaís”, diz Audálio Dantas.

Paulo Markun diz que por duas ve-zes alertou Vlado para a possibilidadede ele ser preso. Na primeira vez, escre-veu um bilhete da prisão e pediu à suairmã Rosa Lia Markun que o levasse aele. Dois dias depois, autorizado a dei-xar a cadeia para participar do batizadoda filha que completava seis meses, ex-pôs a Vladimir Herzog, pessoalmente,os riscos que ele estava correndo:

— Não tenho nada a ver com isso,ele me disse. Na minha opinião, o Vladoachava que conseguiria suportar qual-quer tipo de pressão. O fato de dirigir a

O ALVORECERDA RESISTÊNCIA

Documentário

REPROD

ÃO

Vlado numa de suas fotos maisconhecidas: ele era um homem que

tinha a alegria de criar e de viver.

José Reinaldo Marques

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7

Jornal da ABI

Novembro/Dezembro de 2005

TV que estava sofrendo uma forte cam-panha e sendo acusada de ser simpati-zante do comunismo, no meu entender,provocou nele um sentimento de quese saísse do cargo, naquele momento,estaria assumindo que era culpado. Te-nho a impressão de que ele acreditavaque fosse capaz de resistir.

Símbolo da resistênciaEntre 1969, depois da publicação do

AI-5, e 1975, dos milhares de pessoaspresas, centenas foram torturadas oumortas nas mãos dos agentes de segu-rança do regime militar. Os militares,porém, não contavam que a morte deVladimir Herzog fosse despertar tãoforte reação da sociedade:

— Pela primeira vez a sociedade bra-sileira acordou. A morte do Vlado pro-vocou uma reação significativa, em quedestaco os seguintes pontos: o fato de oSindicato dos Jornalistas de São Paulo àépoca estar sob o controle de uma cha-pa combativa e lutar pela liberdade deimprensa; o fato de o Vlado ser umapessoa que dirigia uma emissora comoa TV Cultura; a greve dos alunos daUsp; e a ação de Dom Paulo EvaristoArns para se fazer o ato ecumênico naCatedral da Sé — diz Markun.

O ato ecumênico mobilizou em tor-no de 8 mil pessoas em 31 de outubro de1975, foi marcado a pedido do Sindicatoe da família Herzog e celebrado por DomPaulo Evaristo Arns e pelo Rabino HenrySobel, com mais de duas dezenas de sa-cerdotes de outras Igrejas. Os militarestentaram impedir sua realização, bemcomo sua divulgação pela imprensa. Paraimpedir que as pessoas chegassem aoevento, o então Secretário de Segurançado Estado de São Paulo, Coronel ErasmoDias, montou uma operação com cercade 800 policiais armados, bloqueandovários acessos à Catedral da Sé. A barrei-ra provocou um engarrafamento de maisde cinco horas na capital paulista.

No Rio, a Cúria Metropolitana can-celou a missa que seria celebrada aomeio-dia, na Igreja de Santa Luzia, comoalternativa os jornalistas se reuniram noAuditório Oscar Guanabarino, localiza-do no nono andar da sede da ABI, paraum culto simbólico ao qual comparece-ram cerca de 500 pessoas. A Mesa quepresidiu o ato foi liderada pelo Presiden-te da instituição, Prudente de Moraes,neto, acompanhado por Barbosa LimaSobrinho; pelo Presidente do Sindicatodos Jornalistas do Rio, José Machado; oPresidente do Sindicato dos JornalistasLiberais, Ari Nepomuceno; e o Deputa-do Lysâneas Maciel.

Em São Paulo, os jornalistas e milha-res de cidadãos também não se intimi-daram com a repressão policial e foramprestar homenagem a Vladimir Herzog,cuja morte encorajou a sociedade brasi-leira a exercer sua oposição ao regimeditatorial. Os que conseguiram entrarna Catedral da Sé ouviram Dom PauloEvaristo Arns dizer que “ninguém tocaimpunemente no homem, que nasceudo coração de Deus para ser fonte deamor em favor dos demais homens”.

Vladimir Herzog era esse homem que,para Audálio Dantas, se transformou nosímbolo do despertar da consciência dasociedade brasileira: — O Herzog setransformou no símbolo da luta de re-sistência e seu sacrifício foi o ponto departida da derrubada da ditadura no País.

Paulo Markun

Alguns vão parar no olho do furacão porvontade própria. Outros chegam lá porforça das circunstâncias. Foi que acon-teceu com Vladimir Herzog e comigo.Desde seu primeiro dia de trabalho naTV Cultura — onde assumira a Dire-ção de Jornalismo, me entregando aChefia de Reportagem — Vlado tornou-se o alvo preferencial de uma campa-nha que procurava apresentar a emis-sora como estando sob o perigoso con-trole dos comunistas, a serviço da sub-versão internacional.

Vlado e eu éramos, realmente, mili-tantes do então clandestino Partido Co-munista Brasileiro, mas o projeto delepara o Jornalismo da Cultura era claro,cristalino e fora previamente aprovadopelo Governo do Estado.

O anticomunismo babão de algunsjornalistas, deputados e delegados esta-va a serviço da operação secreta que bus-cava liqüidar o chamado Partidão e en-quadrar os tímidos intuitos de aberturapolítica do General Geisel, insuportáveispara os militares da chamada linha dura.

Nos restava pouco a fazer diante da-quela singular conjugação de fatores. Eacabamos indo parar naquilo que os pró-prios agentes do Doi-Codi, o todo-pode-roso organismo de repressão política,definiam, orgulhosamente, como “a su-cursal do inferno”. Junto com dezenasde companheiros, fui preso dia 17 deoutubro de 1975. Uma semana mais tar-de, uma equipe do Doi-Codi foi à Cultu-ra prender o Diretor de Jornalismo.

Sob a promessa de se apresentar namanhã seguinte, Vlado dormiu em casa.Na manhã seguinte, cumpriu o combi-nado. Horas mais tarde, estava morto.Para encobrir o assassinato, forjaram seusuicídio por enforcamento — mais umana longa série de mentiras com que osmilitares tentavam ocultar o que ocor-ria no porão do regime. Mas, pela pri-meira vez depois de muito tempo, a so-ciedade reagiu a uma morte sob tortura.

É o que o livro relembra, 30 anos maistarde, na esperança de registrar, a partirde um ponto de vista pessoal, um pou-co da história de meu querido Vlado edo sonho da nossa geração.

MEUQUERIDOVLADO

Imagens dostormentosos dias

de outubro de1975: sob as

vistas do RabinoSobel, o Cardeal

Dom PauloEvaristo lê sua

contundentehomilia. No

centro, ante oesquife de

Herzog, DomPaulo, os

DeputadosFranco Montoro e

Horácio Ortiz(MDB) e o

radialista WalterSilva, o Pica-pau,

Diretor doSindicato. Abaixo,

de frente, oteatrólogo Plínio

Marcos e MinoCarta; de barba,

o jornalista JorgeEscosteguy.

Jornalista eapresentadordo programaRoda viva, daTV Cultura. Tex-to de apresen-tação do livroMeu queridoVlado

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Jornal da ABI

8 Novembro/Dezembro de 2005

O papel desempenhado pelo Sindicatodos Jornalistas de São Paulo na denún-cia do assassinato de Vladimir Herzogainda não foi devidamente avaliado. Seo sacrifício de Vlado foi, sem sombra dedúvida, o ponto de partida para o des-monte do aparelho de repressão arma-do pela ultradireita, que lutava pela he-gemonia na ditadura militar, a atuaçãodo Sindicato no episódio marcou o mo-mento em que se abriu espaço para ocrescimento da resistência da socieda-de civil ao regime instalado no País como golpe de 64.

A realização do culto ecumênico emmemória de Vlado, com a participaçãode mais de 8 mil pessoas, no dia 31 deoutubro de 1975, na Catedral de SãoPaulo, foi a maior manifestação públicadesde a decretação do Ato Institucionalnº 5, em dezembro de 1968. Isso apesardo clima de ameaças, do verdadeiro cer-co estabelecido com a chamada Opera-ção Gutemberg, comandada pelo entãoSecretário de Segurança, Coronel Eras-mo Dias, que mandou instalar mais de380 barreiras nos principais pontos deacesso ao centro da cidade.

Naqueles dias de outubro, o Sindica-to dos Jornalistas de São Paulo era a prin-cipal trincheira, uma referência para asociedade civil na luta contra a repres-são. O processo que levaria à denúnciado assassinato de Vlado, contudo, come-çara meses antes, com a vitória da opo-sição nas eleições para a Diretoria do Sin-dicato, em abril. Os sindicatos erammantidos sob estrito controle pela dita-dura, mas o dos jornalistas começou afalar, a levantar questões proibidas, comoa censura, a política salarial e outras. Emjulho, dois meses depois de sua posse, aDiretoria já era convocada ao Comandodo II Exército para explicar uma notadistribuída à imprensa em que contesta-va acusações de que as redações estavam“dominadas” pelos comunistas.

A ação repressiva dos militares que seopunham ao projeto de abertura políti-ca ensaiado pelo General Ernesto Geisel,que ocupava a Presidência da República,vinha num crescendo desde o final desetembro, quando se iniciou a série deprisões e seqüestros que culminaria coma morte de Herzog, no Doi-Codi do IIExército, no dia 25 de outubro. Era a Ope-ração Jacarta, inspirada num massacreocorrido dez anos antes na Indonésia.Quando a Operação Jacarta, comanda-da pelos militares da ultradireita, alcan-çou o primeiro jornalista (Sérgio Gomesda Silva, no dia 5 de outubro), sua prisãofoi denunciada em nota distribuída peloSindicato, tornando público um assun-to que, na maioria das vezes, ficava res-trito às famílias e aos amigos das víti-mas da repressão.

Daí em diante, a cada prisão (antesde Vlado foram presos dez jornalistas)

um novo comunicado era distribuído.Várias vezes convocada à presença dosmilitares, a Diretoria do Sindicato eraadvertida de que as denúncias que fa-zia poderiam levar ao enquadramentona Lei de Segurança Nacional. Não éexagero dizer que a reação dos jornalis-tas, conduzida pelo Sindicato, frustrouum golpe que vinha sendo preparadohavia tempo pelos militares da chama-da linha dura.

No Caso Herzog, a versão de suicí-dio apresentada pelo Comando do IIExército não foi aceita em momentoalgum pelos jornalistas. Tratava-se demais um caso de assassinato praticadocontra opositores do regime, mas nãoseria, como muitos outros, recebido emsilêncio. O corpo de Vlado não seria ape-nas mais um entregue em caixão lacra-do e sepultado sob o peso do silêncio edo medo. O comunicado que o Sindica-to distribuiu no dia seguinte à morte docompanheiro foi um grito e uma denún-

cia. Foi um basta, a expressão da cons-ciência nacional, que não mais supor-tava a opressão. O documento respon-sabilizava os militares pela morte, in-dependentemente da circunstância emque ela ocorrera.

“Não obstante as informações forne-cidas pelo II Exército” — dizia o docu-mento — “o Sindicato dos Jornalistasdeseja notar que, perante a lei, a autori-dade é sempre responsável pela integri-dade física das pessoas que coloca sobsua guarda.” E prosseguia: “O Sindica-to dos Jornalistas, que ainda aguarda es-clarecimentos necessários e completos,denuncia e reclama das autoridades umfim a essa situação em que jornalistasprofissionais, no pleno, claro e públicoexercício de sua profissão, cidadãos comtrabalho regular e residência conhecida,permanecem sujeitos ao arbítrio de ór-gãos de segurança, que os levam de suascasas e de seus locais de trabalho, sem-pre a pretexto de que apenas irão pres-

Na manhã do dia 25, eu vi que Vladochegou. Eu olhava assim por baixo docapuz e o identifiquei pelos sapatos, queeu conhecia bem. Comprávamos sapa-tos juntos, ele era muito meu amigo,então eu sabia que era ele que estavaali. Logo depois ele foi levado. Ele ficouna sala ao lado da nossa, por isso depoiseu pude ouvir os gritos.

Nós ficamos ali algum tempo e oMarechal foi nos chamar, eu e o DuqueEstrada. O sujeito que o estava interro-gando, o torturador, era o Pedro MiraGrancieri, um sargento da Marinha quedepois morreu de maneira estranha,deve ter sido queima de arquivo. E eledisse: “Olha, o Vladimir tá aí com em-bromação, então é melhor vocês dize-rem para ele abrir o jogo. Se não, ele vaientrar na porrada.”

E nós: “Olha, Vlado, eles já sabemque nós tínhamos uma base, quem eramos membros da base, já estão sabendo.”Até acrescentei, achando que eu era es-perto: “Olha, Vlado, eles sabem, inclu-sive, que o responsável pela nossa baseera o Miguel Urbano Rodrigues, que oMiguel já tinha ido embora para Portu-gal.” E o Vlado disse assim: “Eu não seido que vocês estão falando, eu nuncafui comunista, não sou comunista.”

Aí o sujeito mandou o Marechal noslevar de volta para a sala de espera. Pas-sou-se mais algum tempo e ele começoua gritar. A gritar primeiro, levando porra-das, socos e aquela coisa, e depois levan-do choques elétricos. Os gritos são bem

Vice-Presidente da ABI. Em 1975 era Pre-sidente do Sindicato dos Jornalistas deSão Paulo.

Audálio Dantas

O SINDICATO,UMA TRINCHEIRA

Documentário

Jornalista e professor universitário.

tar depoimento, e os mantêm presos,incomunicáveis, sem a assistência da fa-mília e sem assistência jurídica, por vá-rios dias e até por várias semanas, emflagrante desrespeito à lei.”

A discussão desse documento, inici-almente no âmbito da Diretoria, foi o co-meço de um formidável movimento queuniria, primeiro, os jornalistas e depoisoutros setores da sociedade civil. Na con-dução do processo, o Sindicato se abriuà ampla participação da categoria, que,da perplexidade, passou à organizaçãoque levaria à mais contundente denún-cia até então feita de um crime da dita-dura militar. Esse processo prosseguiriacom a discussão ampliada que levaria àelaboração de um documento que des-montaria, ponto por ponto, a farsa doInquérito policial-militar montado peloII Exército para “apurar as circunstân-cias em que ocorreu o suicídio do jorna-lista Vladimir Herzog”. Resumido nomanifesto Em nome da verdade, o docu-mento foi assinado por 1.004 jornalistasde todo o Brasil e distribuído à imprensaem janeiro de 1976. Apenas um jornal,O Estado de S. Paulo, o publicaria na ínte-gra, mas como matéria paga. Isso dava amedida do quanto os jornalistas tinhamavançado na denúncia dos crimes da di-tadura.

diferentes. Eu tinha passado na vésperapela experiência, sabia exatamente o queestava acontecendo. Inclusive um sujeitoligou um rádio no corredor, supostamen-te para abafar o barulho, e o rádio estavadando a notícia de que o General Francotinha recebido a extrema-unção. Aí, tudocessou: os barulhos, os gritos.

Algum tempo depois, veio o Mare-chal e me pegou de novo, o Duque Es-trada dessa vez não foi. O Vlado já es-tava assinando uma confissão do pró-prio punho, estava muito nervoso, trê-mulo, mas já estava fazendo a sua con-fissão, que aliás começava assim “Fuialiciado pelo Partido Comunista peloRodolfo Konder.” Quer dizer, uma con-fissão que a Polícia ditou ali para ele,porque nenhum de nós usaria essa ex-pressão, “fui aliciado”. Aí o Marechal melevou de volta para a sala de espera e,

aparentemente, estava tudo resolvido.Só que, é claro, na hora de assinar a

confissão, ele teve um momento de in-dignação. Ele era uma pessoa muito éti-ca. E é um momento difícil você entre-gar o papel em que você dá o nome deamigos. É muito chato, é um trauma, éum negócio difícil. E ele teve um mo-mento de indignação e pegou o papel— ele já tinha escrito, já tinha assina-do; inclusive o exame da letra confirma-va, era a letra dele. Ele pegou o papel erasgou e jogou fora. Aí os caras forampara cima dele, não mais com técnica,mas com raiva, porque era voltar tudoà estaca zero. E aí ele foi empurrado ebateu com a base da cabeça no parapei-to de uma janela baixa que tinha lá demármore e morreu do trauma.

O jornalista Vasco Oscar Nunes, Diretor do Sindicato, e Clarice Herzog lêem o jornal:a Folha da Tarde, do Grupo Folha, noticiou em manchete o “suicídio” de Vlado.

Rodolfo Konder

O MOMENTODA MORTE

ELVIRA ALEG

RE

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9

Jornal da ABI

Novembro/Dezembro de 2005

Naquele dia 25 de outubro de 1975, aequipe de torturadores era dirigida peloCapitão Ramiro. Eram três equipes noDoi-Codi, cada uma em plantão de 24horas, com 48 de folga. O CapitãoRamiro tinha um estilo diferente dasduas outras equipes. Andava sempre mu-nido de um sarrafo e sabia exatamenteonde bater, nos cotovelos, nos joelhos,nos tornozelos — nas articulações. Eleconhecia muito bem a anatomia huma-na e desmontava uma pessoa com pou-cos golpes e sem barulho. Tinha prazerespecial em amarrar as pessoas na cha-mada cadeira do dragão, que é uma es-pécie de troninho, de metal, molhado,onde os braços e as pernas são imobili-zados; amarra-se um fio elétrico no pê-nis, outro na orelha e aí, em seguida, comuma maquininha, um dínamo, chama-da de “pimentinha”, iam dando choques.Não é um choque que queima, não seidizer se é amperagem ou voltagem.

Depois de encapuzar a pessoa, o Ca-pitão Ramiro jogava amoníaco sobre aparte frontal do capuz e apertava aquina parte abaixo do queixo, de tal ma-neira que a pessoa ficava com aquelecapuz bem colado no rosto. Ao mesmotempo, Ramiro dava porradas, gritos,choques elétricos e jogava amoníaco nocapuz — a pessoa ia respirando esseamoníaco. À medida que o choque elé-trico se dá, se você estiver expirando,você não consegue inspirar, e se vocêestiver inspirando, não consegue expi-rar. Então, como os choques são dados

aos trancos, você vai ficando com a res-piração completamente descontroladae esse amoníaco entra pelas suas nari-nas, invade o cérebro como se fosse umabatalha de espadas, uma coisa maluca,cortando seu cérebro de todo jeito — evocê ali imobilizado, levando choques,porrada, gritos. Tudo isso arma uma si-tuação que é como se fosse surreal, vocêjá não tem mais noção de se é com vocêmesmo que está acontecendo, começaa ficar confuso, não há saída para aqui-lo, você está amarrado.

Fui submetido a isso muitas vezes epercebi em mim que a qualquer momen-to morreria, a qualquer momento podiater um derrame, um colapso, a coisa iase desagregar. Sentia essa proximidade.Você vai ficando completamente fora desi. É uma coisa que até precisaria ser vis-ta por médicos neurologistas para sabero que acontece, porque eu soube depoisque, frente a situações-limite, como esta,de dores muito agudas e aflições muitointensas, o cérebro dá um tipo de descar-ga e mata o indivíduo para salvá-lo doenlouquecimento. Se a pessoa sofre umacidente de automóvel e tem, por exem-plo, esmagamento da coluna, que dizemser a mais terrível das dores, o sujeitomorre de dor, morre para fugir dessa dor,que é tão lancinante que a pessoa vai en-louquecer. Então, antes de enlouquecer,a pessoa se salva morrendo.

Eu senti isso. Tanto é que, numa des-sas ocasiões, depois de passar por umadessas sessões do Capitão Ramiro, medesamarraram, me tiraram o capuz, medeixaram lá, eu vomitei bílis, vomiteiuma coisa como se fosse placenta, euestava todo erodido, me lembro queabriram a porta do lugar onde estava,trouxeram uma pessoa, que não seiquem é, que tinha sido recentementepresa, e lhe disseram:

“Olha, é melhor colaborar senão vaiacontecer com você a mesma coisa queestá acontecendo com esse cara aí, quejá está no fim.” Isto me deixou com umamistura de cagaço e humilhação, por-que eu estava sendo usado a essa alturajá como exemplo do estrago que se podefazer com um ser humano.

Depois de vários dias eu tinha ema-grecido bem, estava todo arrebentado,minha condição era usada para produ-zir pavor nos outros.

Estou ali e vejo sobre um banquinhoum vidro de amoníaco, o vidro que oCapitão Ramiro usava. Então fico olhan-do para aquele vidro e resolvo me suici-dar, porque a coisa tinha passado do queparecia suportável, eu ia enlouquecer.Pego o vidro e tento tirar a tampa deplástico, dessas que têm como se fosseum biquinho de peito para dentro, cujaborda de plástico praticamente adere aogargalo. Você tem de ter uma unha mui-to boa para conseguir separar esse plás-

a gente percebe que tem algu-ma coisa estranha acontecen-do. Eles tinham acabado dematar o Vlado.

Sobre a hipótese de suicídio,inclusive a foto que eles divul-garam, tenho a dizer que eu es-tive preso numa daquelas celas.Por esse tempo todo fiquei pre-so em praticamente todas as ce-las ali, não há nenhuma possi-bilidade de suicídio. Ninguémficava com cinto, ninguém po-dia ficar com cinto. Depois damorte do Vlado, eles fazem jus-tamente o remanejamento daspessoas dentro do Doi-Codi,para deslocar o corpo, montar afarsa, bater as fotografias. A celaonde eles tiraram a foto do Vladoera uma das celas que estava to-da ocupada por pessoas presas.Quer dizer, o Vlado jamais este-ve preso numa dessas salas que

correspondiam às celas da delegacia. Elefoi torturado lá dentro, na sala especialonde ficava a cadeira do dragão. As pes-soas não eram torturadas nas celas, eramtorturadas lá dentro. Então o Vlado nun-ca esteve no lugar onde dizem que ele sesuicidou. Ele estava sendo torturado da-quela maneira que eu descrevi de formasimples e eu tenho para mim que elemorreu disso, de derrame, de colapso,pois foi uma longa sessão de terrível tor-tura. Não sei se é possível, se a religiãojudaica admite que se faça a exumaçãodo corpo, porque, se fizerem, certamen-te encontrarão traços de amoníaco.

Quanto a esse depoimento do japo-nês chamado Paulo, que se suicidou ago-ra, que disse ter sido o Vlado morto demadrugada não pelo Capitão Ramiro,mas por outro, e que foi afogado numalata com água e enxofre, isso é alucina-ção. O Vlado não foi assassinado de ma-drugada e eu não vi ninguém ser tortu-rado ou afogado em água com enxofre.Isso não era o que se fazia ali.

Então, eu afirmo: o Vlado não se sui-cidou. O Vlado foi assassinado, sob ocomando da equipe dirigida pelo Capi-tão Ramiro. Na manhã do dia 25 deoutubro ele foi submetido a tortura,amarrado à cadeira do dragão, sob cho-ques elétricos, possivelmente um fioamarrado ao sexo e outro à orelha, le-vando porrada de ripa nas articulaçõese sendo asfixiado com amoníaco que eraderramado sobre o capuz de lonita quese usava para impedir que os presos vis-sem os torturadores.

tico, que tem uma certa pressão que re-siste, ou então você tem de tirar com odente. Eu estava com a boca toda fodida,então estava tentando tirar com o dentee com a mão, torcendo para que engoliro amoníaco daquele vidro fosse sufici-ente para me matar logo. Estou nessatentativa desesperada para me matarquando entram o Capitão Ramiro de no-vo e o seu grupo, me arrancam aquelevidro, me reamarram na cadeira do dra-gão e, aí começa outra sessão indescrití-vel, coisa maluca.

Então, eu tinha passado por isso vá-rias vezes. E lá naquela cela solitária, como ouvido na janelinha, eu podia ouvir osgritos: ‘Quem são os jornalistas? Quemsão os jornalistas?’ Pô, o que é que podiaser? Não tinha idéia de que fosse o Vlado,não tinha a menor idéia. Pelo tipo de luta,pelo tipo de grito, pelo tipo de porrada,sabia que estava sendo feito com alguémexatamente aquilo pelo que eu tinha pas-sado e sabia o que podia acontecer.

Algum tempo depois, um grande si-lêncio. Mais um pouco de tempo e háum remanejamento, deslocam-se pes-soas de um lado para outro dentro da-quelas instalações lá na delegacia, desseambiente onde eles tinham gente presa.Mais tarde sou informado por um médi-co chamado David Rumell que tinhamapagado um cara, não sabia ainda quemera. Só venho a saber de quem se tratano dia seguinte, quando o Paulo SérgioMarkun, que foi um dos dois jornalistasque teve direito de ir ver o corpo, se en-contra comigo numa das salas e me dizque tinham matado o Vlado.

Foi de manhã, lá pela hora do almo-ço há uma azáfama, uma correria. Elefoi torturado durante toda a manhã elá pela hora do almoço se dá o tal silên-cio. A pessoa pára de ser torturada e emseguida há uma azáfama, uma correria,

Jornalista e Diretor da ong Oboré. Erarepórter e estudante há 30 anos. Repro-dução autorizada de depoimento pu-blicado no jornal Unidade do Sindicatodos Jornalistas Profissionais de São Pau-lo em outubro de 1992.

“A VLADO NINGUÉMPÔDE SALVAR”

Sérgio Gomes

Preso no princípio de outubro, Sérgio Gomes pensouem se matar e tentou, para se livrar da tortura.

Clarice Herzog e os filhos duranteo sepultamento de Vlado.

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Jornal da ABI

10 Novembro/Dezembro de 2005

Está fazendo 30 anos, nem acredito. Co-mo correu o tempo, como as coisas mu-daram depressa e, no entanto, como àsvezes parece que não saímos do lugar,deixando tudo como está para ver comoé que fica. Mais grave ainda é constatarque, apesar de tantos avanços democrá-ticos, em certas coisas regredimos. Nojornalismo, por exemplo.

Quando Vladimir Herzog, o nossoVlado, foi assassinado há um quarto deséculo, muitos jornalistas continuavamtrabalhando como se a censura não exis-tisse. Hoje, a censura prévia não existemais, ao menos formalmente, mas mui-tos jornalistas, talvez a maioria, agemcomo se houvesse um censor invisívelcontrolando suas almas, mentes e ma-térias. Nos tempos de Vlado, levar o jor-nalismo às últimas conseqüências — ouseja, contar tudo que está acontecendoe é de interesse da maioria da popula-ção — constituía atitude temerária, sig-nificava correr risco de vida. Por isso,Vlado, torturado, morreu. Hoje, o úni-co risco que existe é o de perder o empre-go — e este parece ser mais amedronta-dor do que perder a própria vida ou per-der a vergonha na cara. Pior: no jorna-lismo de resultados que domina tantasRedações, mais do que o medo de per-der o emprego impera o vale-tudo daambição para a rápida conquista de car-gos e salários. O compromisso social epolítico, que era o principal mote da ati-vidade jornalística nos tempos da dita-dura, agora virou coisa de dinossaurosromânticos.

Com essa história de fim da Histó-ria, morte de ideologias e todo o poder

Vladimir Herzog foi uma das pessoasmais íntegras que conheci. Foi pena nãoter tido com ele tanto contato quantodesejaria, mas foi o suficiente para queo ficasse respeitando e admirando. Tudose deu naquele tumultuado ambiente de1975, com o desfecho que todos nós la-mentamos. Mas em que lhe coube ser opersonagem marcante que abriu, como sacrifício de sua vida, o caminho paraa abertura política.

Nosso primeiro encontro se deuquando eu era Secretário de Cultura,Ciência e Tecnologia do Estado de SãoPaulo e, na ausência de meu saudosoamigo Rui Nogueira Martins, Presiden-te da Fundação Padre Anchieta, o nomedo Vlado foi indicado para a Diretoriade Jornalismo da Fundação. Houve vá-rios candidatos, mas o currículo do Vla-do era de tal forma superior que não ha-via hesitação possível. Não o conhecen-do pessoalmente, convidei-o para umaconversa na Secretaria, e a boa impres-são se confirmou plenamente. Assim,apressei-me a indicar seu nome ao Go-vernador Paulo Egídio Martins, para nãoretardar o preenchimento do cargo. No-te-se que, em nossa conversa, o Vladonão introduziu qualquer elemento pes-soal que pudesse de alguma forma in-fluenciar a minha decisão. Não mencio-nou, por exemplo, grandes amigos co-muns como Antônio Cândido, nem fi-quei sabendo que ele era, como eu, deorigem judaica. Queria, evidentemente,que minha escolha fosse, como realmen-te foi, inteiramente objetiva.

Feita a indicação, estranhei que o as-sunto não fosse rapidamente resolvido.Comecei a saber de pressões injustifica-das contra o Vlado e em favor de outrocandidato, a meu ver, menos qualifica-do. Isso me fez insistir na indicação, afi-nal aceita pelo Governador depois demais ou menos um mês. Retrospectiva-mente, perguntei-me várias vezes se nãoteria sido preferível não ter insistido,mas, na ocasião, não havia como. Devoacrescentar que, antes de indicar o Vla-do, e como era constrangedoramente depraxe naquele momento para esse tipode nomeação, consultei pelo telefone oCoronel Chefe do SNI (Serviço Nacio-nal de Informações) em São Paulo, que,depois de pedir que aguardasse um pou-co, retornou a ligação declarando nãoter nenhuma objeção. As únicas obser-vações negativas sobre o Vlado, disse-meele, “eram imprudências de mocidade,sem maior importância”.

Vlado nomeado e empossado, viajeipara um seminário nos Estados Uni-dos, e, na volta, informou-me o Gover-nador que aparentemente estavam sur-gindo problemas na TV Cultura. Suge-riu-me que entrasse em contato com o“Chefe do SNI, pois não queria proble-mas nessa área”.

Tive esse encontro no dia seguinte,no próprio gabinete do Governador (eradia de despacho), e aí defendi a posiçãodo Vlado, que estava sendo criticado, re-

cusando-me a demiti-lo sem ra-zões válidas para tanto, even-tualmente surgidas após aaprovação de seu nome peloSNI. “Não estou pedindo queo demita”, disse-me o Coronel.“O senhor resolve, dependendodo risco que esteja disposto aassumir.” Foi uma conversameio tempestuosa, mas quenão me parece necessário trans-crever aqui. O importante foique chegamos a um acordo,que levamos ao conhecimentodo Governador, no sentido deque o Vlado continuaria no car-go, e que, se surgissem fatosgraves, o Coronel se comunica-ria conosco, não tomando qual-quer medida, sem prévio enten-dimento com o Governador oucomigo.

Instalaram uma televisão nogabinete do Coronel (provavel-mente já existia) e outra no meu, a fimde podermos acompanhar os programasde jornalismo do Vlado, e ver o queacontecia. Nada aconteceu durante ummês, até o dia em que viajei novamentepara os Estados Unidos (viagens parti-culares sem ônus para o Governo) numasexta-feira, dia 24 de outubro. O Gover-nador, por sua vez, viajou no mesmo diapara o interior do Estado. Pois nessa noi-te começou a precipitar-se o drama: Vla-do foi preso na TV Cultura, e, relaxadaa prisão por intervenção de amigos emeus colaboradores na Secretaria, com-prometeu-se a comparecer no dia se-guinte ao Doi-Codi, onde a tragédiaaconteceu. Eu só soube no domingo,mas não consegui passagem de volta an-tes da terça. Aqui chegando, procureiimediatamente o Governador para apre-sentar meu pedido de demissão da Se-cretaria. A resposta do Governador ex-plica minha permanência no cargo na-quele momento:

“Você está liberado, dentro do enten-dimento que tivemos quando você as-sumiu (de que eu deixaria o cargo se nãohouvesse abertura). Mas devo dizer que,saindo agora, você enfraquece a resis-tência que temos de opor à ala radical.Porque eles pegaram o Vlado para pe-gar você. Pegariam você para me pegare me pegariam para derrubar o Presiden-te. Você resolve, mas, se ficar, não pos-so garantir nada: amanhã podemos es-tar todos na rua, ou presos”.

Diante disso, senti que não poderiadeixar a Secretaria naquela hora, massaí decidido a deixá-la na primeira opor-tunidade, como de fato deixei.

Isso, no entanto, é outra história. Oque eu quero dizer neste depoimento éque lamentei profundamente o queaconteceu e o apreço que de início tivepelo Vlado transformou-se numa admi-ração pelo resto da vida.

Documentário

Jornalista. Membro do Conselho Delibe-rativo da ABI.

Bibliófilo e Presidente da Comissão Edi-torial da Editora da Universidade de SãoPaulo. Na época, era Secretário de Cul-tura do Estado de São Paulo.

AS DUAS MORTESDE VLADO

Ricardo Kotscho

ADMIRAÇÃO PELA VIDA AFORAJosé Mindlin

ao mercado neoliberal globalizado, oque se quer é decretar a morte de prin-cípios, valores, aquelas coisas antigas re-sumidas na palavra idealismo. Mudouo caráter da profissão. O jornalismoexercido por Vlado era um instrumen-to de lutas, mudanças, avanços sociais,conquistas populares, compromissoséticos. O que é o jornalismo hoje? Sevoltasse a freqüentar uma Redação poralguns segundos, desconfio que Vladonão reconheceria o cenário, não lhe agra-daria a paisagem, estranharia os perso-nagens. Relembrar a morte de Vlado éum bom motivo para refletirmos o quefizemos do nosso ofício, uma forma deevitar que morram também os ideaispelos quais ele lutou.

Na madrugada da vigília por Vlado, solitário, Audálio chora de dor pela morte do companheiro.

Ricardo Kotscho: Como as coisas mudaramdepressa, sem sair do lugar.

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Jornal da ABI

Novembro/Dezembro de 2005

Faz 30 anos que o Brasil per-deu Vladimir Herzog. Vladoera jornalista de destaque,professor da Universidadede São Paulo e Diretor doDepartamento de Jornalis-mo da TV Cultura. Era tam-bém um judeu. Não prati-cante, mas um judeu — umjudeu dotado de grande ca-pacidade intelectual, univer-sal em sua visão e profunda-mente comprometido comas causas humanitárias noBrasil e no exterior. Eu o co-nhecia superficialmente.

Na segunda-feira, dia 27de outubro de 1975, os jor-nais noticiaram a morte deHerzog, aos 38 anos de ida-de, depois de ter sido subme-tido a intensos interrogató-rios nas dependências do De-partamento de OperaçõesInternas do II Exército, emSão Paulo. Estávamos entãono auge da repressão neste País. Herzogfoi encontrado morto em sua cela noDoi-Codi. A explicação oficial divulgadapelas Forças Armadas foi que ele haviase suicidado.

O enterro de Herzog, que se realizounessa mesma segunda-feira no Cemité-rio Israelita do Butantã, teve ampla re-percussão na imprensa local e interna-cional, não somente devido às circuns-tâncias trágicas em que ocorrera suamorte, mas também porque muitas daspessoas presentes ao sepultamento ti-veram a impressão de que a cerimônianão havia sido celebrada de acordo comos rituais tradicionais judaicos. Entre osfatos destacados pela imprensa, noti-ciou-se com ênfase a ausência de um ra-bino no cemitério e a suposta rapidezcom que se realizou o enterro. Como re-presentantes da fé judaica estavam pre-sentes apenas um cantor litúrgico e osmembros da ChevraKadisha, o comitê fune-rário da CongregaçãoIsraelita Paulista.

Em entrevista queconcedi à imprensa nodia seguinte, esclarecique os rituais de sepul-tamento haviam sidocumpridos rigorosamen-te de acordo com a leijudaica. E expliquei queo único motivo da mi-nha ausência tinha sidoum compromisso profis-sional inadiável, no Riode Janeiro, no dia do en-terro. Ressaltei que a co-munidade judaica estavachocada diante da viola-ção dos direitos fundamentais deHerzog e que ele havia sido vítima daditadura. Declarei categoricamente àimprensa que Herzog tinha sido sepul-tado com todas as honras que lhe eramdevidas como judeu, como brasileiro,como ser humano. De acordo com a leijudaica, um suicida é enterrado na peri-feria do cemitério, como forma de con-denar visivelmente o pecado cometido

por aquele que destrói a própria vida.Não foi esse o caso de Vlado; ele foi se-pultado no centro do campo-santo.

Preocupou-me imensamente não sóa barbaridade do crime que havia sidocometido, mas também a imagem depassividade que foi atribuída à comu-nidade judaica. Fiz questão de declararà imprensa que a Sinagoga defendia osdireitos humanos com o mesmo fervor

que a Igreja e que os ju-deus estavam tão revol-tados com a morte deHerzog quanto todos osoutros brasileiros. Quan-do me perguntaram so-bre “um certo apressa-mento da cerimônia doenterro”, expliquei —depois de consultar onosso pessoal da ChevraKadisha — que, de fato,houve um apressamen-to, motivado pelo res-peito ao falecido. Dadoo grande número de pes-soas presentes, a inten-ção tinha sido evitar queo funeral se transfor-masse num ato público

de caráter político. Quando voltei doRio a São Paulo, assegurei à família, tan-to pessoalmente como publicamente,que todas as orações haviam sido devi-damente recitadas.

Alguns dias depois da morte deHerzog, a pedido da família e do Sindi-cato dos Jornalistas no Estado de SãoPaulo, foi realizado um culto ecumênicona Catedral da Sé, co-celebrado pelo

Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, peloReverendo Jaime Wright e por mim.Cerca de 8 mil pessoas compareceram àcatedral para render tributo a Vlado, en-tre os quais inúmeros parlamentares,professores, estudantes e representan-tes dos centros acadêmicos de quasetodas as faculdades paulistas. O cultofoi conduzido com a maior solenidadee dignidade. O Cardeal Arns foi magní-fico! Ele se referiu ao Governo como “as-sassinos” e citou o mandamento do De-cálogo: “Não matarás! Ninguém mataum homem e fica impune”, disse o Car-deal. Os presentes ouviram as palavrasdos oradores e o canto do El maléRachamim, a tradicional oração judaicaem tributo aos falecidos. Foi recitadoentão o Kadish, a prece dos enlutados.Audálio Dantas, Presidente do Sindica-to dos Jornalistas, concluiu o serviçoreligioso dizendo: “Em nome dos jorna-listas, em nome de Deus e em nome doshomens, pedimos a paz e nos compro-metemos a lutar pela paz”.

Imediatamente após a morte deHerzog, milhares e milhares de univer-sitários, jornalistas, intelectuais e líde-res religiosos de todos os credos organi-zaram passeatas, greves e atos públicos,em conseqüência dos quais o Coman-dante ultra-radical do II Exército foisubstituído por outro mais moderado.

A morte de Vladimir Herzog mudouo rumo do País. Foi o catalisador da aber-tura política e do processo de redemo-cratização do Brasil. Seu nome será sem-pre uma recordação dolorosa de umsombrio período de repressão na histó-ria brasileira. Será também o eco eter-

UMA LIÇÃONÃO CAPTADA

Henry Sobel no da voz da liberdade, quenão cala jamais. Vlado nãofoi a única vítima do esta-blishment naquela época.Nos anos da ditadura mili-tar no Brasil, centenas deopositores do regime foramespancados em repartiçõespúblicas. Muitos forammortos. A tortura era omeio preferencial utilizadopela polícia para buscar in-formações sobre outros mi-litantes. Com a redemocra-tização do País, teve-se aimpressão de que a torturaacabara. Infelizmente, erauma impressão falsa. A tor-tura, um crime inafiançávelde acordo com a Constitui-ção Brasileira, continua aser praticada pelos agentesdo Estado, aviltando todaa Polícia. O espancamento,o choque elétrico, o pau-de-arara são técnicas usadasrotineiramente. Nesta nos-sa civilização que se julgatão avançada, ainda é cor-

riqueira a tortura de presos, a pretextode puni-los pelos crimes que cometeramou para extrair confissões de crimes quenão cometeram. A tortura precisa serabolida. O que falta é a determinaçãoda sociedade de não admitir que a tor-tura seja praticada no País. Não bastaalguns defensores dos direitos humanostentarem pressionar o Governo para queproíba efetivamente a tortura. Tal pres-são tem que vir da sociedade como umtodo. Em última análise, os cidadãos danação têm que responder pelos atos —e pela falta de atos — do seu Governo.

Foi a pressão da sociedade que levouo Governo a refrear a tortura nos anosda ditadura. O protesto maciço da popu-lação contra o assassinato de VladimirHerzog surtiu efeitos positivos inco-mensuráveis. Infelizmente, a maioriadas pessoas só se revolta com a torturaquando ela é de caráter estritamentepolítico. Quando um criminoso comumé torturado, a sociedade se cala ou — piorainda — aplaude. A triste verdade é quea violência da Polícia conta hoje com orespaldo de uma parcela considerável dapopulação. Na verdade, a lição do brutalassassinato de Herzog ainda não foi cap-tada 30 anos mais tarde.

Se queremos render tributo à memó-ria de Vlado, temos que preservar den-tro de nós o sentimento de indignaçãoe inconformismo, jamais nos acomo-dando à violação dos direitos alheios. Osilêncio é o mais grave dos pecados. Aindiferença em face do mal é um incen-tivo ao recrudescimento do mal. Se fe-chamos os olhos, se viramos a cabeça,se fingimos não saber, tornamo-noscúmplices. Digamos “não” à tortura. Al-to e bom som, digamos “não” à violên-cia institucionalizada. E, inspirados pelolegado de Vladimir Herzog, digamos“sim” à dignidade humana.

Presidente do Rabinato da CongregaçãoIsraelita Paulista e Coordenador da Co-missão Nacional de Diálogo ReligiosoCatólico-Judaico, órgão da ConferênciaNacional dos Bispos do Brasil-CNBB.

Clarice, de óculos escuros, ao centro, resiste à tentativa dos religiosos de apressar o sepultamento de Vlado.

Sobel: Por Vlado, digamos “sim”à dignidade humana.

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Jornal da ABI

12 Novembro/Dezembro de 2005

Vlado na verdade escrevia pouco — doque ele gostava mesmo era de fazer es-crever. E como fazia isso bem! Não melembro de um editor mais rigoroso,mais exigente com a qualidade do queele. Vlado ria primeiro com os olhos.Quando fazia isso e sobretudo quandocomeçava a coçar a careca — uma ca-reca que todo mundo achava parecidacom a minha — já se sabia que vinhareclamação. Irritado quando ele meobrigava a mexer e remexer muitas ve-zes uma matéria, eu o xingava de “ocobrador”. Ele chegou a mandar OttoMaria Carpeaux reescrever duas vezesum artigo. Carpeaux, grande intelec-tual e ensaísta que trabalhava conoscona Visão, não tinha propriamente o do-mínio técnico da reportagem, nem odomínio da paciência, e como Vladonão abria mão de suas cobranças, pode-se imaginar a tempestade que houve.Contado assim à distância, pode pare-cer que Vlado fizesse isso por imperti-nência ou arrogância, como afirmaçãode poder — uma prática tão comumem quem exerce esse tipo de função.Sinceramente, não. Nunca cheguei adiscutir o que vou dizer com FernandoJordão, grande profissional e seu mai-or amigo, mas acho que Vlado era ca-paz de mandar reescreveruma matéria duas, três ve-zes, sem qualquer constran-gimento, na maior cara-de-pau, porque era um perfec-cionista quase doente. Paraele, não transigir com o erro,não fazer concessão à pre-guiça, não conciliar com aimperfeição, era a coisa mais naturaldo mundo. Não lhe passava pela cabe-ça que alguém não pudesse comparti-lhar essa tranqüila convicção.

Trabalhei sob suas ordens duranteuns dois anos na revista Visão. Ele eraeditor de Cultura em São Paulo e euchefiava a Redação da Sucursal Rio,cujo diretor Jorge Leão Teixeira eraquem mais fazia piadas com a obses-são perfeccionista do Vlado. Como en-tão a produção carioca comandava omovimento cultural do País, eu eraquase “exclusivo” da editoria de Cul-tura, o seu principal fornecedor de ma-terial. Eu brincava dizendo: “Sou fulltime do Vlado.” Durante o tempo emque trabalhamos juntos, produzimosalgumas matérias de que me orgulhoaté hoje e uma bela amizade — que in-cluía e inclui a doce e serena Clarice.Pelo menos de 15 em 15 dias, eu ia aSão Paulo e em geral dormia na sala dacasa deles na Oscar Freire, lá nos fun-dos, com aquele portão com desenhosinfantis que anunciava o astral do lardos Herzog. Dormia lá para a gente fi-car até de madrugada conversando so-

bre pautas, matéria, cultura. Raramen-te falávamos de política. Não é que oassunto não nos interessasse, mas achoque tudo nas nossas vidas passava an-tes pela cultura. Por isso a morte de

Vlado me pareceu mais es-túpida. Ele foi morto peloque não fazia. Vlado não eraum político, um militante,não usava a profissão parafazer contrabando ideológi-co, uma tentação daquelestempos em que, por não serespirar, procurava-se em

qualquer fresta o ar da liberdade. Aocontrário — e essa era a mais admirá-vel de suas virtudes profissionais —Vlado não instrumentalizava o jorna-lismo, não fazia dele um pretexto polí-tico; ele acreditava na informaçãocomo força transformadora. A gente vi-via repetindo aquela frase que é atri-buída a Lênin, se não me engano: “Averdade é revolucionária”.

Acho que o projeto mais importan-te do Vlado — só estou me referindoao jornalismo escrito — foi a parte cul-tural da edição especial de Visão sobreos dez anos do golpe militar, em mar-ço de 1974, uma edição que por váriasrazões se tornou histórica. Quem ban-cou o número com uma coragem raranaqueles tempos foi o dono da revista,Saïd Farhat. Quem o idealizou, plane-jou e editou com igual competência foiLuiz Garcia, que chefiava a Redação.Muita gente mais esteve envolvida noprojeto e eu mesmo escrevi boa partedas matérias. Mas se credito a Vlado aresponsabilidade maior pela importân-cia do número, é porque o projeto fi-cou famoso pela parte cultural, e o

grande animador desta, seu entusiastacomandante foi de fato Vlado. E comoele me fez trabalhar! O conteúdo daedição trazia como revelação um pou-co de luz no fim do túnel. Depois deanos de funda depressão, em que a clas-se artística estivera mergulhada no de-sespero ou no desencanto, aqueles ar-tigos e entrevistas carregavam algumasvezes as marcas do lamento, o som deum “grito parado no ar”, para usar otítulo de uma peça de Guarnieri da épo-ca. Mas o que havia de novo não eraisso, não era o tom de reclamação; erajustamente algo que jáanunciava o fim do quese poderia chamar deretórica do queixume— era o que mais tardeviria a se chamar “aber-tura” e que naquelemomento ainda rece-bia o tímido nome de“distensão”, dado peloGeneral Geisel.

Na área cultural, opersonagem principaldo fenômeno e do nú-mero de Visão foi Glau-ber Rocha, com suas de-clarações sobre Geisel,sobre o General Golberye sobre Darci Ribeiro— “gênios da raça” — e, de passagem ede leve, sobre Fernando Henrique, opríncipe dos sociólogos. Quando sou-be que, em vez das respostas ao longoquestionário que eu lhe enviara peloCorreio, Glauber me mandara uma car-ta curta, pessoal, cheia de idéias lou-cas, Vlado quase teve um ataque. Al-gumas coisas o incomodavam naquela

UM MÁRTIR DA ABERTURAZuenir Ventura

“entrevista”. A primeira delas era justa-mente a forma heterodoxa e herméticadaquele depoimento pouco jornalístico,cujas alegorias e hipérboles chegavam achocar a vontade de clareza e a ofendera obsessão perfeccionista do meu edi-tor. Mas essa não era a única objeção.Havia também o temor de que aqueledepoimento viesse a ser interpretado porGolbery ou por qualquer outro militarcomo uma provocação. Foi preciso mui-to argumento para convencer Vlado. Oque o convenceu mesmo foi a garantiaque me deu Cacá Diegues (que estivera

um pouco antes na Itá-lia com Glauber, sumi-do depois da carta) deque o que estava escri-to era sincero, fidedignoe para valer, ou seja,para publicar.

Naqueles tempos di-fíceis de viver e traba-lhar, Vlado soube viver,trabalhar e morrer comdignidade. Ele é paramim o símbolo da aber-tura cultural que esta-va contida naquela edi-ção de Visão, assimcomo quase 20 mesesdepois iria se transfor-mar no mártir da aber-

tura jornalística. Não há dúvida de quefoi a partir do choque causado por suamorte — com toda a indignação e re-volta que espalhou — que a imprensabrasileira tomou coragem de avançaraté o horizonte do possível.

DocumentárioARQ

UIVO

SJSP

Uma das paixões de Vlado era o cinema, que o levara a buscar a gente simples para poder retratá-la com fidelidade.

Jornalista e escritor. Membro do Conse-lho Consultivo da ABI.

Zuenir: Vlado era incapaz deconciliar com a imperfeição.