2 o estado nacional como Âmbito dos conflitos polÍticos e a trajetÓria da … · 2018-01-31 ·...
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O ESTADO NACIONAL COMO ÂMBITO DOS CONFLITOS
POLÍTICOS E A TRAJETÓRIA DA TEORIA DO RISCO RUMO
À ANALISE CRÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO
O presente capítulo pretende discorrer sobre como o Estado nacional
moderno se constituiu como um espaço de conflituosas disputas políticas a partir
das revoluções do século XVIII. Conforme poderá ser constatado, a partir dos
movimentos revolucionários que tiveram início no século XVIII, emerge o
conflito entre as forças da burguesia e os setores que pleiteavam uma
radicalização da idéia de igualdade. Tal radicalização consistia no estabelecimento
de uma igualdade material e não apenas formal.
Conforme veremos essas disputas ocorrem tendo como arena o âmbito de
poder de cada Estado nacional, que correspondia a um determinado espaço
territorial.
Tal constatação mostra-se fundamental para compreender a profundidade
das transformações trazidas pela ascensão da globalização, sobre o equilíbrio das
disputas entre capital e trabalho.
Em seguida será explicitado como Ulrich Beck, teórico que desenvolveu a
idéia de sociedade de risco, chega até o debate sobre globalização e a crise do
modelo de Estado nacional territorial que se formou durante a modernidade.
2.1
A conflituosidade política no âmbito do estado nacional moderno.
A formação dos Estados nacionais se desenvolve na transição da Idade
Média para a Idade Moderna, onde ocorrem processos peculiares de concentração
de poder em várias regiões da Europa.1 Ulrich Beck aponta como marco da
1 Charles Tilly descreve a formação dos Estados nacionais como um processo que pode ser percebido a partir da década de 1490. Afirma no entanto que nesse período ainda prevaleciam formas alternativas de organização política. (TILLY, Charles. Coerção, capital e Estados
Europeus 1990-1992. São Paulo: Editora USP. 1996. p. 94-95)
15
ascensão dos Estados nacionais os tratados da Paz de Westfalia onde ocorre a
separação entre Estado e Igreja.2
A diferenciação entre a esfera de atuação do poder temporal e do poder
eclesiástico é característica dos modernos Estados nacionais. Soma-se a tal
característica a ocorrência da centralização da administração estatal e do poder
militar em um mesmo ator. Esse ente político exerce um poder soberano sobre
determinado território onde habita um povo. Esses seriam os pontos mais
relevantes apontados pela Teoria do Estado para a caracterização dos Estados
nacionais.3
A idéia de soberania mostra-se central para compreender as dimensões da
concentração de poder que se consolida nos primeiros séculos da modernidade.
Bodin e Hobbes foram autores que se tornaram expoentes na construção desse
conceito.
Bodin é tido como o teórico que deu início ao caminho percorrido pelo
conceito de soberania que integra a idéia de um Estado nacional.4
Bodin define a república como um conjunto de famílias que é governado
por um poder soberano.5 A soberania é caracterizada por Bodin como um poder
absoluto e perpétuo. O autor discorre a respeito de vários atributos da soberania,
no entanto afirma que o poder de fazer leis resume bem o conceito de soberania.
Hobbes por sua vez caracteriza o poder concedido ao soberano como um
poder capaz de inspirar um terror tal, que permite gerar a conformação das
2 BECK, Ulrich. The Cosmopolitan State. Toward a realistic Utopia.Eurozine, 05 de maio de 2001. Disponível em<http://www.eurozine.com/articles/2001-12-05-beck-en.html> 3 Os processos citados são desenvolvidos por Norberto Bobbio na obra Estado, governo e sociedade. Para uma teoria geral da política. São paulo: Editora paz e terra, 2005. Com alguma variação os manuais de teoria do Estado acatam as características citadas no texto como essenciais para a configuração de um Estado nacional, nesse sentido Dalmo Dallari (Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2003), Paulo Bonavides (Bonavides, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros, 2007) e Sahid Maluf (Maluf, Sahid. Teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2007). Charles Tilly, por sua vez caracteriza os Estados nacionais como “organizações relativamente centralizadas, diferenciadas e autônomas que reclamavam prioridade no uso da força dentro de territórios amplos, contíguos e claramente circunscritos.”( Tilly, Charles. Coerção, capital e Estados Europeus 990-1992. São Paulo: Editora USP. 1996. p. 94) 4 NEGRI, Antonio & Hardt, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. p. 115-116. Antônio Negri chega a afirmar que Jean Bodin antecipa em sua obra a crítica a leitura contratualista da soberania. Na leitura negriana de Jean Bodin a definição de soberania consiste “na vitória de um lado sobre o outro – vitória que faz de um o soberano e de outro o súdito”(Negri, Antonio & Hardt, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. p. 115) 5 Bodin, Jean. Los seis libros de la republica. Madrid: Tecnos, 2006.
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vontades de todos os indivíduos de determinado país. Esse poder representa nas
palavras de Hobbes “a essência do Estado” 6.
O Estado assim é constituído pela atuação desse poder sobre determinado
território, com a finalidade de garantir a paz interna e a defesa comum. Este poder
absoluto deve na concepção de Hobbes ser concedido ao soberano. Todos os
demais indivíduos que compõe essa sociedade são os súditos.7
A construção do conceito de soberania nas obras dos referidos teóricos
vincula-se irremediavelmente ao princípio territorial. Assegurar a ordem interna, e
a segurança das fronteiras frente aos demais Estados fez com que a soberania do
Estado nacional se estabelecesse através da dicotômica idéia de soberania interna
e soberania externa.
O princípio da territorialidade mostra-se fundamental para o Estado
nacional. Teóricos como Zygmunt Bauman chegam a afirmar que é impossível
realizar uma leitura do conceito de Estado através da teoria política moderna, que
se dissocie da idéia de territorialidade. Segundo o autor, “ordenar um setor do
mundo passou a significar: estabelecer um Estado dotado de soberania para
fazer exatamente isso.” 8
A partir das revoluções do século XVIII, a idéia de súdito que havia sido
desenvolvida por teóricos como Hobbes é substituída pela idéia de cidadão. Esse
era caracterizado não apenas como detentor de obrigações, mas caracterizado
também como um sujeito de direitos.
Com a obra O contrato social de Rousseau, o exercício da soberania é
deslocado de um rei com poderes absolutos para o povo, que exerce o poder
soberano através da realização da vontade geral.9
6 HOBBES, Thomas. Leviatã. Ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2006. p.131. 7 Ibid. 8 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 68 “O significado de “Estado” foi precisamente o de um agente que reivindicava o direito legítimo de e se gabava dos recursos suficientes para estabelecer e impor as regras e normas que ditavam o rumo dos negócios num certo território”( Bauman, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 68) A partir da construção dessa idéia de soberania foi possível estabelecer a identificação do Estado, da sociedade e consequentemente da política com base nos conceitos de nacional e internacional. (Beck, Ulrich. Toward a New Critical Theory With a Cosmopolitan Intent. Constallations, Volume, 10, Number 2. Blackwell Publishing, 2003. p. 454-455) 9 O conceito de vontade geral é alvo de intensos questionamentos por diversos autores. A vinculação do exercício da liberdade individual à obediência da vontade geral acabou por gerar um conceito que na prática possibilitou usurpações autoritárias. Nesse sentido a abordagem de
17
Esse deslocamento dá origem a um novo conceito, qual seja o de cidadão
nacional, idéia que implementa uma igualdade de status entre todos os indivíduos
vinculados ao respectivo Estado nacional.
Jean-Jacques Rousseau elevou o povo à categoria de detentor único da
soberania no Estado de Direito. Dessa forma, a liberdade se dava na teoria de
Rousseau, na medida em que as leis que incidiam sobre o corpo social haviam
sido produzidas pelos próprios cidadãos que deveriam respeito às mesmas.10
Rousseau nos deixa como herança o modelo democrático no qual o povo é o
detentor da soberania. Com Rousseau a elevação do povo ao status de detentor da
soberania tornou-se algo praticamente incontestável.11
A construção da idéia de cidadão como sujeito de direitos trouxe uma
igualdade de status entre todos os nacionais de determinado Estado. Tal alteração
afeta o sustentáculo da organização social anterior as revoluções burguesas, na
medida em que destrói com as diferenciações de status jurídico baseadas em
critérios de classe. Ocorre assim a superação da organização social baseada em
estamentos. A partir de então são abertos os caminhos para fortes disputas
políticas, que se desenvolvem dentro dos Estados nacionais, a fim de serem
estabelecidos os parâmetros de igualdade da nova ordem.
Ocorre durante as revoluções burguesas, uma lógica comum que é apontada
pelo historiador Marco Mondaine. Segundo o autor, em um primeiro momento,
todas as classes que não eram componentes dos estamentos privilegiados eram
vistas como aliadas. Após a conquista revolucionária da igualdade formal, a luta
Antonio Negri ao descrever a Revolução Francesa na obra O Poder Constituinte – ensaio sobre as alternativas da modernidade. Editora: DP&A, 2002. 10 Feroz defensor da democracia direta, Rousseau tem sido objeto de diversas interpretações. Desde aqueles que enxergam no modelo Rousseauniano a defesa fática do exercício direto da soberania popular, até aqueles que vêem nesse exercício um modelo contra-fático, que indica um caminho a ser percorrido, mas nunca alcançado o seu final. Essa segunda interpretação é encontrada na dissertação de mestrado de Hector R. Leis.( Leis, Hector R.. Sobre o conceito de democracia em Rousseau. Dissertação de mestrado do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade católica do Rio de Janeiro. Ano: 1982.) 11 Interessante notar que a obra de Rousseau constrói ambigüidades que foram utilizadas por grupos completamente conflitantes durante a revolução francesa. Para a burguesia revolucionária, a vontade geral deveria ser ditada pela classe burguesa, que representava a nação como uma todo (SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte Burguesa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1986). Já para os demais integrantes do terceiro Estado, a vontade geral simbolizava a manifestação direta do povo exercendo sua soberania. A citada ambigüidade é trabalhada de por Antonio Negri em O Poder Constituinte – ensaio sobre as alternatives da modernidade. Editora: DP&A, 2002.
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pela justiça social já passa a ser vista como uma inimiga da liberdade.12 O
desenvolvimento histórico do direito de cidadania na Inglaterra, que é narrado por
Marshall é um bom exemplo do que se afirma.13
No primeiro momento, a cidadania é vista como uma aliada do sistema
capitalista. Este alinhamento se dá em virtude do caráter igualitário presente no
conceito de cidadania, que se contrapõe ao caráter de desigualdade presente no
sistema de classes.
Essa afirmativa se comprova pelo fato do status de cidadania ter posto um
fim no status social que prevalecia na Idade Medieval. Neste período a sociedade
feudal era dividida em plebeus, servos, senhores, dentre outras classes. Com o
advento da cidadania, por menor que fosse a igualdade implícita em seu conceito,
acaba por ocorrer a destruição daquele sistema de classes, através da instituição de
uma lei nacional que é imposta ao menos formalmente a todos.
Em uma sociedade onde não havia uma liberdade que fosse compartilhada
por todos, a instituição da cidadania acabou por minar este sistema de
desigualdade, que se constituía como uma desigualdade total.14
Ao nos referirmos ao status social que surge juntamente com o sistema
capitalista segundo Marshall:
“estamos estendendo o sentido do termo além de seu significado rigorosamente técnico. Não se estabelecem nem se definem as diferenças de classe pelas leis e costumes da sociedade (no sentido medieval da expressão), mas elas emergem da combinação de uma variedade de fatores relacionados com as instituições da propriedade e educação e a estrutura da economia nacional. As culturas de classe se reduzem a um mínimo, de modo que se torna possível, embora como se admite, não inteiramente satisfatório, medir os diferentes níveis de bem-estar econômico por referência a um padrão de vida comum. As classes trabalhadoras, ao invés de herdarem uma cultura distinta conquanto simples, são agraciadas com uma imitação barata de uma civilização que se tornou nacional.”15 Dessa forma as distinções de classe no capitalismo, ao contrário do que
ocorria no feudalismo, passam a não operar pela lei, mas preponderantemente por
fatores econômicos e a cultura de classe é substituída pela cultura da nação. A
12 MONDAINE, Marco. O respeito aos direitos dos indivíduos. In: História da cidadania. Org. Pinsky, Jaime & Pinsky, Carla B. São Paulo: Contexto, 2005. p. 127. 13 T. H. Marshall foi o primeiro pesquisador a realizar a sistematização do conceito de cidadania nacional. Pinsk, Jaime. História da cidadania. Org. Pinsky, Jaime & Pinsky, Carla B. São Paulo: Contexto, 2005. p. 12. 14 MARSHALL, T. H.. Cidadania, classe social e status. Rio de janeiro: Zahar, 1967. p. 77. 15 Loc. Cit.
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desigualdade feudal, na qual é associado um valor a cada nível social, é
substituída por uma desigualdade social que o sistema capitalista necessita que
exista.
Dessa forma no que diz respeito ao viés das liberdades civis, a cidadania
não se caracterizou pelo conflito com a sociedade capitalista. Com o predomínio
das liberdades civis a indigência era vista como resultado do fracasso, uma vez
que todos gozavam de princípios de igualdade civil. O entendimento vigente
postulava que todos os homens possuíam condições concedidas pelo status
individual, de poder adentrar na concorrência do mercado e garantir sua condição
de sobrevivência e de proteção social.
O direito de cidadania de certa forma acabou por funcionar como uma
estrutura que igualou juridicamente as diferentes classes sociais, substituindo o
“status diferencial” pelo status da cidadania.
Toda essa conjuntura, porém, não gerou um impacto significativo sobre a
desigualdade social, mas abriu caminho para conflitos dentro do Estado nacional
entre as idéias de igualdade formal e material.
Ao crescerem as garantias conferidas pelos direitos sociais, ocorre uma
cisão dentro da própria idéia de cidadania. Isso porque os direitos sociais de
assistência se fundamentavam em uma ordem de planejamento, enquanto os
direitos civis eram próprios de uma ordem econômica livre e competitiva.16
O avanço do tempo acabou por demonstrar que as políticas de assistência
não poderiam conter as forças partidárias do livre mercado. Essa tensão reflete o
conflito existente entre os princípios de justiça social e do sistema de preços do
mercado. A luta pela concretização de direitos sociais é a manifestação da disputa
e das pressões em torno do direcionamento do poder político do Estado nacional.
Pode-se extrair da narrativa histórica realizada por Marshall, que o status de
cidadão sem dúvida trouxe significativas mudanças para o padrão de
desigualdade. Uma vez que embora não efetive os direitos positivados, torna
possível a luta política para sua efetivação, que é o passo a ser dado após o
reconhecimento.
Não obstante esta falta de efetivação, o reconhecimento como afirmado,
abre caminho para que a desigualdade possa ser enxergada e combatida
16 MARSHALL, T. H.. Cidadania, classe social e status. Rio de janeiro: Zahar, 1967. pág. 77
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politicamente.17 O reconhecimento dos direitos sociais proporciona um fator de
limitação da exploração capitalista, esta limitação foi enxergada como uma
restrição dos direitos individuais de liberdade.
Todo esse processo advindo do estabelecimento da democracia de massas
que foi construída a partir das Revoluções do século XVIII, se desenvolveu em
bases nacionais e territoriais delimitadas.18 Dentro desse desenho institucional foi
possível estabelecer um espaço para a ocorrência dos conflitos políticos.19
Conforme acentua José Maria Gomes “a política democrática expressa em última
instância, a interação de forças operando no plano do Estado-nação” 20
O fato é que após as revoluções do século XVIII se consolida a idéia de
legitimação democrática do poder político. Desenvolvem-se então, acirradas
disputas políticas em busca do controle sobre as instituições componentes do
aparato estatal de administração.21 A partir desse momento tornou-se fundamental
a conquista do controle do Estado para efetivar determinado projeto político.22
17 Os Estados nacionais durante muito tempo serviram como campo onde essas disputas políticas se desenvolveram. Atualmente esse campo apesar de ainda ser muito relevante se vê enfraquecido diante dos fatores advindos dos processos de transnacionalização. Essa questão será desenvolvida no capítulo 2. 18 Benjamin Constant em seu texto “Da liberdade dos antigos comparada a dos modernos” estabelece sua visão de democracia indireta comparando a democracia dos modernos com a democracia direta dos antigos. Essa era possibilitada pelo ócio dos senhores de escravos, afirmando que apesar de direta, era uma democracia excludente. Com esse argumento ele afirma que uma democracia que pretenda se adequar as liberdades modernas deve ser uma democracia indireta. Além dessa caracterização, Constant conservadoramente defende a restrição do voto aos proprietários de terras, pois estes estariam comprometidos com a estabilidade social. CONSTANT, Benjamin. A liberdade dos antigos comparada com a dos modernos. Revista de Filosofia Política n° 2. Porto Alegre: Editora L&PM, 1985. 19 Nesse sentido pode-se observar que os direitos sociais desde a revolução francesa são objeto de reivindicação, estando inclusive muitos deles na declaração de 1793, que não prevaleceu em razão do avanço da contra-revolução.(NEGRI, Antônio. O Poder Constituinte – ensaio sobre as
alternativas da modernidade. Editora: DP&A, 2002.)
20GÓMEZ, José Maria. Globalização da Política: mitos, realidades e dilemas. In: Globalização
Excludente. Org.: Gentili, Pablo. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. p. 145. 21 A evolução descrita aqui é sintetizada por Habermas da seguinte forma: “Até o século XVII, formaram-se Estados na Europa que se caracterizavam pelo domínio soberano sobre um território e que eram superiores em capacidade de controle às formações políticas mais antigas, tais como os antigos reinados ou cidades - Estados. Como Estado Administrativo com uma função específica, o Estado moderno diferenciou-se da economia de mercado institucionalizada legalmente; ao mesmo tempo como Estado fiscal, ele se tornou dependente também da economia capitalista. Ao longo do século XIX ele se abriu como Estado nacional, para formas democráticas de legitimação. Em algumas regiões privilegiadas e sob as condições propícias do pós-guerra, o Estado nacional, que entrementes se tornara um modelo para o mundo, pôde se transformar em Estado social – graças à regulação de uma economia política, no entanto intocável no seu mecanismo de auto-controle.” (HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional – Ensaios políticos. São Paulo: Littra Mundi. 2001. p. 69) 22 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 69.
21
Todas essas disputas se desenvolvem para impor avanços e revezes aos grupos no
poder e se dão em âmbito nacional.
Esses conflitos que eclodem nas revoluções do século XVIII, atravessam o
século XIX e chegam até o século XX, sendo estabilizados na Europa pela
construção do Estado de bem-estar social. Tal estabilização é considerada
satisfatória por Ulrich Beck e outros autores23.
Conforme bem discorre Habermas, nesse período, devido ao
desenvolvimento tecnológico alcançado pela economia capitalista foi possível a
implementação de garantias sociais razoavelmente satisfatórias em âmbito
europeu. O incremento tecnológico possibilitou a implementação de um aumento
da produção, e ao mesmo tempo, uma redução das jornadas de trabalho e a
garantia de outros direitos sociais.24 Esse modelo de democracia social acaba por
se tornar parâmetro de luta para muitos setores da sociedade.25
Pode-se constatar que essa idéia de auto-regulação da sociedade, bem como
os conflitos que eclodem desde as revoluções do século XVIII, e a estabilização
alcançada na Europa no pós-guerra se efetivaram através de lutas nacionais, ou
seja, vinculadas territorialmente aos respectivos Estados nacionais.26
Esse Estado nacional se sustentou através do tripé composto pelas
soberanias militar, econômica e cultural que permitiram a manutenção da ordem
interna, e, ao mesmo tempo, a proteção desta ordem interna em relação aos
demais Estados.27 Os recursos advindos do recolhimento coercitivo de impostos
garantiam a manutenção do aparato administrativo do Estado e ao mesmo tempo
sustentavam as forças militares desse mesmo Estado.
No que diz respeito à soberania cultural, o estabelecimento de um vínculo
de cidadania que ligava todos os membros da nação acabou por gerar uma
identidade coletiva fazendo ascender o nacionalismo patriótico.
23 É o caso de Jürgen Habermas e Anthony Giddens. 24 HABERMAS, J. Ciência e técnica enquanto ideologia. In: Os pensadores, São Paulo: Editora Abril, 1980. 25 As idéias de Ferdinand Lassale contribuíram significativamente para esse ideal de reformas em prol da conquista de direitos. Lassale, Ferdinand. Que é uma constituição? São Paulo: Edições e publicações Brasil, 1933. 26 Nesse sentido Karl Marx e Friedrich Engels chegam a afirmar no manifesto comunista que os proletários tinham que lidar com suas burguesias nacionalmente. Marx, Karl & Engels, Friedrich. O manifesto comunista. São Paulo: editora paz e terra. p.27. 27 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 69.
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Como pôde ser percebido, a cidadania nasce sobre um base nacionalista.
Esta base nacionalista se colocou como a ideologia que igualou os indivíduos
componentes da nação, destruindo o sistema de classes. Não obstante este caráter
igualitário, a cidadania nacional também nasce com um caráter excludente. Na
medida em que apenas confere proteção, àqueles detentores da nacionalidade
vinculada ao respectivo Estado-Nacional.
A identidade cultural garantiu a formação de fronteiras que permitiram a
criação de uma relação de inclusão entre os nacionais, e exclusão em relação aos
não nacionais, caracterizados como estrangeiros. Tais divisões possibilitaram
amenizar os conflitos de classe, ao mesmo tempo em que funcionavam como um
importante fator de mobilização da sociedade.28
Devido à relevância da relação entre coesão social e nacionalidade para o
funcionamento do Estado nacional faremos uma pequena abordagem a respeito,
para posteriormente, evidenciarmos no capítulo 2 e 3 que essa relação encontra-se
abalada.
2.1.1
Coesão social e nacionalidade
Todo conflito entre as forças sociais que se desenvolve principalmente a
partir do século XVIII teve como pano de fundo a relação existente entre Estado e
nação. Essa relação serviu com grande eficiência à ascensão da burguesia na
transição da sociedade estamental para a sociedade burguesa.
28 Na interpretação habermasiana o nacionalismo levado ao extremo nas teorias de Schmitt serviu não apenas para mobilizar a nação alemã, mas também para defender um conceito homogêneo de povo que fechou espaços para as demais nacionalidades e teve seu ponto culminante no holocausto judeu. A idéia de democracia como representação homogênea da vontade de um povo permeia a obra de Schmitt, e foi também o fundamento de intensos conflitos étnicos no século XX.(HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. 2002.p.159) A idéia de auto-derminação nacional apesar de ter auxiliado na defesa dos países colonizados em face dos países colonizadores como bem lembram Antônio Negri e Michael Hardt (NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.p.123-124) também serviu para garantir a independência necessária para a efetivação de massacres, limpezas étnicas e migrações forçadas. Esses atos de sobreposição de uma cultura homogênea sobre minorias, na maioria das vezes contaram com a proteção conferida pela idéia de soberania baseada na paz e na ordem interna. HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. 2002.p.174.
23
Data do final do século XVIII o estabelecimento dessa fusão entre Estado e
nação.29 A coesão social, que era proporcionada pelo fundamento religioso do
poder, decai e a idéia de governo em prol do bem comum ascende de forma
definitiva através da revolução francesa, apoiada nas obras de Rousseau.
A idéia de bem comum consistia na manifestação do que Rousseau nomeou
como vontade geral do povo organizado em assembléia.30 As idéias de povo e
nação trazem assim, um substrato transcendente que vem substituir o anterior
fundamento transcendente do poder baseado da religião.31
Essa idéia de nação se apoiou em fundamentos materiais como uma
identidade comum advinda de vínculos de sangue território e língua.32
Através da idéia de vontade nacional foi possível realizar um apelo, que
possibilitou uma relativa suavização dos conflitos de classe que eclodiram
juntamente com a superação da ordem estamental.33 A homogeneidade presente
na idéia de vontade nacional possibilitou que um interesse de determinada classe,
se escondesse por traz, do que foi apresentado como vontade nacional.34 Essa
29 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. 2002.p. 132. 30 A vontade geral é um elemento fundamental do que Rousseau denomina como sendo o contrato social. No contrato social cada pessoa estaria unida a todos os demais membros do corpo social. Este corpo social teria o dever de proteger os bens e a pessoa de cada associado. Ao mesmo tempo cada associado obedeceria somente a si mesmo, mantendo sua liberdade. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Porto Alegre: L&PM, 2007.) Essa liberdade seria manifesta através da vontade geral, pois vivendo em uma coletividade cada indivíduo se comportaria visando o bem comum. Através da busca do bem comum cada um manteria sua liberdade. O cidadão rousseauniano goza de liberdade na medida que participa como igual na formação da vontade geral. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Porto Alegre: L&PM, 2007.) Tal construção traz em si um grande potencial totalitário, na medida que lida com uma vontade geral que tem por fundamento um bem comum construído de forma homogênea e abstrata. A vinculação do exercício da liberdade a obediência da vontade geral acabou por gerar um conceito que aprisiona a soberania popular, e os projetos individuais a uma abstração que pode ser capturada por determinados grupos presentes na sociedade. 31 Anteriormente a religião católica e a dissidência protestante forneciam o substrato teórico transcendente para fundamentar o poder soberano. A vontade do soberano subordinava de forma absoluta todas as questões relativas ao Estado inclusive a religião.( NEGRI, Antonio & Hardt, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.p. 112-113) 32 NEGRI, Antonio & Hardt, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.p.113. 33 O conteúdo da afirmação é de autoria de Michael Hardt e Antônio Negri. Os autores citados no entanto, ao afirmarem que os conflitos são estabilizados ou destruídos pela idéia de nação abrem caminho para conclusões diferentes das que são trabalhadas aqui. Os autores citados entendem os conflitos sociais da modernidade como formas de escapar da autoridade estatal e não como disputas pelo direcionamento do aparato do Estado nacional moderno.Negri, Antonio & Hardt, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.p. 113. 34 Tal fato foi percebido posteriormente por setores do movimento comunista. Na leitura de Antônio Negri e Michael Hardt, Rosa Luxemburgo foi uma grande crítica do nacionalismo o acusando de dividir a classe operária na luta contra o capitalismo. NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.p.114
24
manobra pôde ser extraída através de interpretações do conceito de vontade geral,
presente na obra “O contrato social” de Rousseau.35
Dessa forma a soberania da nação acabou se transformando em uma
apropriação da soberania estatal, em prol de interesses setoriais. O arcabouço
teórico dessa estratégia é construído por Sieyès em seu panfleto “Qu`est-ce que lê
tiers état ?”,36 onde afirma que a burguesia era a classe apta para deter o poder
constituinte, representar e expressar a vontade nacional.37
Apesar de ideológica, a construção da idéia de nacionalidade proporcionou
uma coesão através da solidariedade que advém dessa identidade comum. Ocorre
a identificação do nacional como um dos nossos, ao mesmo tempo o não nacional
é classificado como alguém de fora.38
Essa identidade comum produzida por uma série de fatores como língua,
sangue e território construiu uma relação de tensão com a compreensão da gestão
democrática como um processo heterogêneo. A democracia vista como um
processo plural se oxigena constantemente através dos conflitos existentes entre as
diversas forças políticas. Tal processo não se compatibiliza com a existência de
uma vontade homogênea da nação, que se impõe sobre as demais particularidades
existentes dentro do território do Estado nacional.
Segundo Habermas “essa ambivalência só não oferece perigo, enquanto um
entendimento cosmopolita da nação de cidadãos vinculados ao Estado puder
prevalecer sobre a interpretação etnocêntrica de uma nação que se encontra em
um estado de guerra latente e duradouro.” 39
O êxito da auto-regulação democrática de cidadãos que se encontram
compartilhando os mesmos direitos e deveres, no entender de Habermas, rivaliza
com a idéia de uma comunidade constituída antes do ente político. Esse
naturalismo existente na idéia de nação pode fazer com que ascendam
35 Conforme foi visto na nota 38 a vontade geral se caracterizou como um conceito abstrato, essa abstração viabilizou interpretações que serviram de fundamento teórico para as mais diferentes correntes políticas em conflito durante a revolução francesa. 36 A obra Qu`est-ce que lê tiers état ? (O que é o terceiro Estado) foi traduzida para o português e publicada sob o título A Constituinte burguesa pela editora Lúmen Júris. (Sieyès, Emmanuel Joseph. A constituinte Burguesa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1986.) 37 SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte Burguesa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1986. 38 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional – Ensaios políticos. São Paulo: Littra Mundi. 2001.p. 82-83. 39 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. 2002.p.138
25
fechamentos étnicos, que geram violência e inviabilizam a solidariedade cívica
por outras identidades presentes no Estado Nacional.40
O filósofo alemão relembra em seus escritos a utilização do nacionalismo na
empreitada imperialista e durante as duas grandes guerras, como exemplos de que
o apelo à nação não ocorreu com o intuito de fortalecer os princípios republicanos
do Estado Constitucional.41
Durante o processo de modernização, o nacionalismo possibilitou a
justificação das formações político-institucionais. Ao mesmo tempo a coesão
desses cidadãos em torno da idéia da nação justificou o auto-governo pelo povo.
Esse processo se deu em substituição as bases religiosas de justificação do
poder.42
Pode-se constatar dessa forma que a exclusão daqueles que não pertencem à
cultura dominante é uma forma de garantir a unidade em torno da instituição
estatal, que inevitavelmente é ligada ao apelo nacionalista.
A cidadania não permitiria assim, um meio termo entre exclusão e
assimilação.43
Esclarecedora é a explanação de Peter Demant das análises do filósofo
Ernest Gellner, e do historiador John Breuilly a respeito do assunto:
“O filósofo britânico Ernest Gellner analisa como na sociedade anônima industrial a emergência de uma cultura estabelecendo novas fronteiras entre “dentro” e “fora” é quase inevitável, e como esta nova cultura nacional – longe de ser herança de um passado primordial – se torna fatalmente o núcleo da identidade coletiva da etnia predominante no Estado. Para o historiador inglês John Breuilly, é exatamente a incapacidade do conceito do cidadão abstrato, portador de direitos políticos independentemente de sua identidade cultural, de integrar a coletividade da massa de novos cidadãos, que despertou o nacionalismo que propõe um critério mais restritivo, mas também mais concreto e funcional.”44
40 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. 2002.p.138 41 O autor discorre da seguinte forma a respeito: “A história do imperialismo europeu entre 1871 e 1914, tal como o nacionalismo integral do século XX (isso sem falar no racismo dos nazistas), ilustra o triste fato de que a idéia de nação serviu muito menos para fortalecer as populações em sua lealdade ao Estado constitucional do que para mobilizar as massas em favor de objetivos que dificilmente se podem harmonizar com princípios republicanos.” HABERMAS, Jürgen. A
inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. 2002.p.139 42 HABERMAS, Jürgen. Op.cit. .p.140. Hoje com a ascensão do multiculturalismo, percebe-se cada vez mais a necessidade do republicanismo se apresentar como uma base de sustentação mais independente do apelo nacional. 43 DEMANT, Peter. Direitos para os excluídos. In: História da cidadania. Org. Pinsky, Jaime & Pinsky, Carla B. São Paulo: Contexto, 2005. p. 373 44 Ibid.
26
Assim o nacionalismo ascende como uma liga que viabiliza a coesão em
torno dos interesses do Estado, muito embora, esse entusiasmo nacionalista tenha
sido utilizado em favor de um interesse de classe.
2.1.2
Conclusão parcial
Conforme afirma Habermas, esse tipo de Estado que se originou das
revoluções do século XVIII tornou-se um modelo que se estabeleceu
globalmente.45 Territorialidade, nacionalismo e disputas entre capital e trabalho
que visavam influenciar e mesmo subordinar a atuação do Estado foram
acontecimentos presentes durante o desenvolvimento histórico dos Estados
nacionais.
A soberania dos Estados nacionais, no entanto, sempre necessitou que esses
Estados travassem relações no plano externo. Durante um primeiro momento, o
estabelecimento das soberanias estatais dependeu da realização de acordos e
negociações internacionais.46 Posteriormente durante a corrida imperialista do
século XIX, tais Estados soberanos foram em busca do que Bauman nomeia de
“espaços vazios”, também realizando negociações no plano global, mas zelando
pela não sobreposição de soberanias sobre determinado território.47
A ascensão dos EUA e da URSS como duas únicas superpotências dividiu o
mundo entre dois blocos de poder e originou o enquadramento dos demais nesses
dois blocos. Bauman afirma que tal estado de coisas gerou a produção de uma
“meta-soberania (...) baseada na suposição da insuficiência militar, econômica e
cultural de cada Estado” 48
Esse período de divisão do mundo em dois blocos de influência não
permitiu que fosse evidenciada que a estrutura de poder surgida na modernidade
tinha sido intensamente abalada. A auto-suficiência militar econômica e cultural,
45 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional – Ensaios políticos. São Paulo: Littra Mundi. 2001.p. 80. 46 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 70 47 Ibid 48 Ibid. p. 71.
27
que os Estados nacionais gozaram durante um longo período, sofreu fortes
transformações.49
A partir dos indícios de superação da divisão bipolar do poder mundial foi
possível perceber que a soberania militar, econômica e cultural dos Estados
nacionais se via cada vez mais necessitada de densos acordos e negociações
supranacionais para que possam se efetivar. Segundo Bauman “os três pés do
tripé da soberania foram quebrados sem esperança de conserto”.50
Conforme visto na rápida descrição, o Estado nacional nunca se caracterizou
como completamente independente, tendo que realizar acordos internacionais,
desde sua origem, para garantir o seu espaço territorial frente às demais forças
existentes.
No entanto evidencia-se a partir da intensificação dos processos
transnacionais de interação social, ocorridos sobretudo a partir da segunda metade
do século XX, uma alteração na relação entre a soberania estatal e os agentes
sociais com potencial de atuação transnacional.
Ocorrem com grande intensidade movimentações de agentes econômicos
que afetam fortemente os cidadãos dos Estados nacionais, e esses se encontram
sem perspectivas de reação. O jogo democrático que se estabelece através da
conflituosidade da política nacional fica comprometido em certas temáticas. A
economia, por exemplo, assume a capacidade de escapar do conflito político
nacional e impor suas regras utilizando-se de chantagens relativas à migração de
postos de trabalho e da arrecadação de tributos.
Para buscar realizar a descrição desse fenômeno de aparente despolitização
do embate entre capital e trabalho será utilizado um recorte do pensamento de
Ulrich Beck. Tal recorte consiste em sua explanação sobre o que realmente seria a
globalização, como ela impacta o modelo do Estado nacional moderno e
consequentemente o modelo de democracia originado nas revoluções do século
XVIII.
Em função das obras de Ulrich Beck abordarem uma grande quantidade de
temas, que se desenvolvem tendo como ponto culminante a idéia de sociedade de
49 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 71 50 Ibid
28
risco, faz-se necessário realizar uma descrição a respeito de como Beck, dentro de
seu quadro teórico, chega até o debate sobre a globalização e o Estado nacional.
2.2
A crítica à globalização na teoria do risco
Ulrich Beck é um sociólogo alemão que se tornou celebre pelo
desenvolvimento de sua teoria da sociedade do risco. Pode parecer estranho, em
um primeiro olhar, a utilização das obras desse autor para sustentar uma releitura
da globalização e dos efeitos desse fenômeno sobre a soberania dos Estados
nacionais e o governo democrático.
Ocorre que o desenvolvimento da teoria da sociedade de risco leva a
profundos questionamentos sobre uma série de conceitos cunhados durante o
desenvolvimento da modernidade. Beck inclusive se propõe a desenvolver novas
formas pensar os avanços e crises que marcaram e marcam o paradigma moderno.
Diante de um quadro teórico tão denso e complexo não se pretende, e nem
seria possível, aprofundar todas as questões que serão mencionadas. O objetivo
deste tópico é tão somente demonstrar como é possível extrair da teoria do risco,
uma consistente releitura da relação entre a globalização e Estados nacionais.
A partir dessa releitura são fundamentadas fortes críticas ao funcionamento
dos Estados nacionais. São buscadas então saídas institucionais para a crise
democrática que se intensifica juntamente com o esvaziamento das soberanias
estatais.
2.2.1
A ascensão da sociedade de risco
Para chegar à idéia de sociedade de risco, faz-se necessário dar um passo
atrás e contextualizar a teoria do risco dentro da leitura do desenvolvimento da
modernidade que é realizada por Ulrich Beck. O autor compreende que o
29
paradigma moderno se desenvolve dividindo-se em dois grandes momentos, que
ele nomeia como primeira e segunda modernidade.51
O primeiro deles teria se originado com o desenvolvimento inicial do
sistema capitalista, e se estendido até a primeira metade do século XX. A partir da
segunda metade do referido século, fenômenos como a globalização, e a ascensão
de riscos com perfil diverso dos que a sociedade moderna até então convivia
operam uma ruptura definitiva nas formas de organização social.
A partir dessa ruptura se inicia o momento que Ulrich Beck nomeou como
segunda modernidade. A segunda modernidade traz consigo o advento de uma
“sociedade de risco” que substitui a idéia de sociedade industrial que caracterizou
o momento chamado por Beck de primeira modernidade.
2.2.2
Da primeira à segunda modernidade
Anthony Giddens na introdução de seu livro “As Consequências da
Modernidade”, realiza uma breve definição afirmando que a “modernidade
refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na
Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos
mundiais em sua influência” 52·.
Logicamente esta definição acrescenta pouco para a análise de um
fenômeno tão complexo quanto à ascensão da modernidade. No entanto, esta
conceituação nos serve para situar em um ponto fixo no tempo e no espaço, a
emergência deste paradigma, como justifica o próprio Giddens.53
Os estudiosos divergem a respeito da conceituação do atual momento.
Muitos autores questionam se estaríamos diante de uma transição, ou de uma
revisão desse paradigma, que emerge em torno do século XVII.
Autores como Bauman, Lyotard, Harvey e Haraway optam pela ocorrência
de uma ruptura com a modernidade defendendo o advento de uma pós-
modernidade. Autores como Giddens e Jürgen Habermas afirmam a ocorrência de
51 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p. 13 52 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. p. 8. 53 Ibid.
30
alterações em instituições chaves da modernidade. No entanto diante das
continuidades enxergadas por eles, defendem a ascensão não de uma pós-
modernidade, mas de uma modernidade tardia. Os termos modernidade reflexiva e
constelação pós-nacional, também são utilizados, respectivamente, pelo primeiro
e pelo segundo autor.54 Além desses autores encontramos a proposta de Michael
Hardt e Antonio Negri que buscam saídas alternativas ao que eles nomeiam como
modernidade hegemônica.55
Há dentro dessa controvérsia uma espécie de consenso sobre o fato de
estarmos diante de novas formas de organização política e social. Apesar do
projeto de cada corrente ser completamente diverso, assim como suas leituras
sobre o desenvolvimento da modernidade, praticamente todos concordam que no
atual momento vivemos profundas transformações nas instituições e formas de
vida social que emergiram na Europa no século XVII.
Beck dentro dessa discussão paradigmática opta por dividir a modernidade
em primeira e segunda modernidade. O autor enxerga a segunda modernidade não
como uma ruptura completa, mas como um momento que mescla rupturas e
continuidades. A segunda modernidade seria na verdade, a radicalização do
desenvolvimento da primeira modernidade.
O movimento de transição da primeira para a segunda modernidade se
caracteriza como um fenômeno que carrega continuidades e rupturas. O avanço do
discurso sobre os direitos humanos e quase universalização dos valores
democráticos56 são exemplos de continuidades. Por outro lado assiste-se a
ascensão de um multiculturalismo, de riscos imprevisíveis, incontroláveis e não
delimitados territorialmente, além da ascensão de uma sociedade mundial que
trava densas relações transnacionais.57
54 O citado panorama é desenvolvido por Ulrich Beck em: BECK, Ulrich. World Risk Society. Polity Press. 1999, p.1 55 Os referidos autores afirmam a existência de dois modelos de modernidade que travam um contínuo embate que se dá entre as forças da imanência e da transcendência, tal embate é descrito na obra Império. (NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.) 56 Aqui não está se falando com um sentido de efetivação desses valores mas sim no sentido de que praticamente nenhum governo atualmente se atreve a sustentar que é anti-democrático ou que rejeita a idéia de que os direitos humanos devem ser garantidos. 57 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p. 20
31
Ulrich Beck reúne algumas das características principais da primeira e da
segunda modernidade com a finalidade de realizar a diferenciação entre os dois
momentos.
A primeira modernidade se caracterizou por um período onde as sociedades
se organizaram baseadas no modelo do Estado-Nacional. Podemos afirmar que
nesse período para cada Estado nacional havia uma sociedade correspondente. As
fronteiras territoriais possuíam uma grande força, moldando as relações sociais
das comunidades, e limitando a expansão das redes de trabalho. Segundo Beck
“conquanto por vezes se diagnostiquem processos de individualização e
diferenciação, eles ocorrem no interior dos coletivos predeterminados, de modo
que a sociologia continua podendo desenvolver e utilizar os modelos de
sociologia grupal”.58.
Também caracterizou este período a exploração indiscriminada da natureza
e a hegemonia da idéia de progresso. Tal conjuntura era sustentada pela crença na
clara distinção entre sociedade e natureza.59 Além dos fatores apontados, a
racionalidade iluminista construiu a idéia de controlabilidade, idéia sobre a qual
foram alicerçadas as relações sociais da primeira modernidade, e através da qual
foi possível iniciar a construção do conceito de risco.60
Além dos fatores citados a sociedade da primeira modernidade foi
caracterizada como uma sociedade do trabalho produtivo.61 O indivíduo tem seu
status social determinado pela participação nesse trabalho produtivo. Conforme
afirma Beck, “a pessoa é jovem quando está se preparando para o trabalho
produtivo, é adulta quando o exerce, e é idosa quando se aposenta.” 62
A participação no trabalho produtivo, por sua vez, fundamentou o
financiamento da seguridade social. O financiamento da seguridade possibilitou o
desenvolvimento da estabilidade necessária para a garantia de padrões razoáveis
de legitimação democrática em alguns lugares do globo.
58 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms .São Paulo: UNESP, 2003.p. 21. 59 Ibid. 60 A idéia de risco não pode ser concebida dissociada da idéia de controlabilidade uma vez que a análise do risco pressupõe o intuito de prever e controlar em certa medida os perigos aos quais a sociedade está sujeita. Giddens, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000.p.34-35. 61 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003. p. 22. 62 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.Pág. 22
32
Esse modelo de sociedade da primeira modernidade, com todas as
características rapidamente mencionadas, entra em crise através de vários
processos que se desenvolvem com o aprofundamento da modernização.
Ocorre a globalização das relações sociais, que deixam de ser travadas de
forma restrita ao Estado nacional e passam a ser estabelecidas de forma densa
transnacionalmente. Ascende uma exacerbação da cultura individualista, através
de processos de esfacelamento de identidades coletivas na segunda modernidade.
Segundo Ulrich Beck ocorre
“uma espécie de individualismo institucionalizado característico das sociedades da segunda modernidade. Isso se explica pelo fato de as instituições básicas centrais da sociedade, como a educação, os direitos sociais, políticos e civis, assim como as oportunidades de participação no mercado de trabalho e os processos de mobilidade, estarem voltadas para o indivíduo, não para o grupo ou a família.” 63
A crise ecológica demonstra de forma cabal a impossibilidade de realizar a
separação entre sociedade e natureza. A integração da natureza ao processo de
industrialização evidencia seus limites ao colocar em risco as condições de
existência.64 Diante desta perspectiva o progresso não é visto mais como
ilimitado.
O aprofundamento dos avanços tecnológicos e o advento do capitalismo
digital-virtual65 coloca em xeque também o conceito de sociedade do trabalho,
que foi construído na primeira modernidade, uma vez que cresce o número de
indivíduos que são excluídos do trabalho produtivo. Seja pelo avanço dos
mercados financeiros, seja pela exclusão proporcionada pela tecnologia.66
Além desses fatores vive-se desde a revolução feminina a contestação da
hegemonia patriarcal, que remonta a tempos bem mais remotos que a ascensão da
modernidade. Essa novidade tem trazido consigo novas formas de organização do
63 BECK, Ulrich. Op.cit..p. 23. Beck menciona também o exemplo do quarto individual como símbolo do invidualismo. O autor compara essa forma de organização geográfica da família, com a forma coletivizada com que se organizavam as famílias da primeira modernidade, onde toda vida familiar se desenvolvia em um cômodo. BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck
conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p. 78-79. 64 BECK, Ulrich. Op.cit., p. 24. 65 A expressão é utilizada por Ulrich Beck para designar o avanço da importância do capital financeiro, que pode ser movimentado virtualmente em BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo.
Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p. 24 66 Essa exclusão produzida na atual fase do desenvolvimento capitalista gera uma multidão que já não possui nenhuma utilidade para o funcionamento do sistema. Criam-se assim zonas de exclusão, indivíduos que são completamente descartáveis.(BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a
busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.p.111.
33
trabalho e das relações sociais. A inserção da mulher no mercado de trabalho, por
exemplo, rompe com uma histórica forma de organização familiar onde o pai
assegura o sustento e reside juntamente com a mãe que é uma dona de casa em
tempo integral. 67
Todos esses processos abriram caminho para a contestação de idéias
fundamentais da primeira modernidade. A idéia de que a ciência moderna poderia
proporcionar certeza, controlabilidade e segurança, desmorona diante dos desafios
contemporâneos e abre-se um novo horizonte de incertezas.68
O desenvolvimento da primeira modernidade leva a problemas que acabam
por minar as bases de sua construção. O desenvolvimento tecnológico gera
desemprego, a exploração indiscriminada da natureza compromete as condições
de existência, esses e outros fatores submetem todos os indivíduos a uma série
riscos.
Aos desafios da primeira modernidade são acrescentados novos desafios.
Problemas como a fome e epidemias de doenças, característicos da primeira
modernidade hoje são passíveis de controle diante das novas tecnologias. A
solução desses problemas não é, na maioria dos casos, uma questão em relação ao
qual não possuímos respostas ou recursos para intervir. São questões que
envolvem interesses políticos e econômicos. Juntamente com esse tipo de
problema ascendem novas questões, essas típicas da radicalização da
modernidade, relacionadas à gestão dos riscos.69
O surgem riscos que possuem potencial de provocar danos em nível global.
São exemplos desses riscos a possibilidade de um colapso ambiental, os riscos
nucleares e o problema relacionado a quebra de mercados financeiros.70
No início da presente década foi possível assistir a ascensão do terrorismo
internacional, que apesar de provocar diretamente danos locais, gera
conseqüências globais diante das reações a possibilidade de um ataque terrorista a
determinadas áreas do globo.71
67 GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000.p.67. 68 BECK, Ulrich. Risk Society: Towards a New Modernity. p. 160. 69 Ibid. p.19 70 Ibid. 71 A percepção do risco do terrorismo na concepção de Ulrich Beck é mais danosa que o próprio risco. As medidas de controle cerceiam a liberdade e não atacam as causas do terror, pelo contrário muitas vezes fomentam a xenofobia e o racismo.Beck, Ulrich. The Cosmopolitan State. Toward a
34
Ocorre então a ascensão de um Estado que não faz apenas a intermediação
da distribuição de ganhos, mas também e cada vez com mais intensidade necessita
distribuir os riscos e suas conseqüências.72 Surge assim uma sociedade que se
organiza em função de controlar e distribuir riscos. Na concepção de Ulrich Beck
uma “sociedade de risco”.73
2.2.3
A ascensão da sociedade de risco
A tese da sociedade de risco, desenvolvida por Ulrich Beck, apóia-se em
uma concepção de risco que deve ser bem fundamentada contra afirmações de que
os riscos sempre estiveram presentes na sociedade. Giddens eleva a concepção do
risco a um dos conceitos fundamentais para a compreensão da sociedade de
hoje.74
Cabe pontuar que a idéia de risco parece ser estranha em relação às
sociedades tradicionais. Os acontecimentos que abalavam essas sociedades eram
fundamentados segundo uma tradição cultural que não se baseava no conceito de
risco.
Beck afirma que a história do conceito de risco “indica que ele não existia
em épocas mais remotas, nas quais os homens se viam a mercê de catástrofes
naturais ou da intervenção dos deuses” 75
. Nesse sentido, Giddens também afirma
que essas sociedades “usavam as idéias de destino, sorte ou a vontade dos deuses
e dos espíritos”.76
A idéia de risco começa a tomar forma com a modernização, uma vez que a
partir desse momento a sociedade assume a tarefa de se auto-direcionar. Dessa
forma Giddens define o risco como “a dinâmica mobilizadora de uma sociedade
realistic Utopia.Eurozine, 05 de maio de 2001. Disponível em<http://www.eurozine.com/articles/2001-12-05-beck-en.html> 72 BECK, Ulr ich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott . Modernização Ref lexiva . São paulo: UNESP, 1997, pag. 12 73 BECK, Ulrich. Risk Society: Towards a New Modernity. 74 GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 32. 75 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003. p. 113 76 GIDDENS, Anthony. Op.cit. p. 33.
35
propensa à mudança, que deseja determinar seu próprio futuro em vez de confiá-
lo à religião, à tradição ou aos caprichos da natureza.” 77
O cálculo do risco é algo que permeia a sociedade capitalista.
Constantemente são calculados lucros e perdas em relação a determinadas ações.
O cálculo dos riscos foi algo constante durante as grandes navegações por
exemplo.
O risco e a sociedade industrial são indissociáveis, uma vez que, a partir da
superação das sociedades tradicionais com a modernização, passa-se a enxergar os
perigos através de um cálculo que permite diminuir ou evitar os danos. No
momento em que o homem assume a postura de não se subordinar à natureza e
passa a tomar decisões sobre ela, ascende à idéia de risco.78
A idéia de risco deve ser diferenciada da de perigo. O perigo sempre esteve
presente na civilização. Já o risco surge com a postura assumida pelo homem de
buscar tornar a ameaça previsível e controlável. Tal postura gera o cálculo do
risco a que o homem está sujeito quando realiza suas ações. Seja navegar no
oceano ou permanecer em regiões onde ocorrem contínuas enchentes.79
A postura de realizar cálculos de riscos surge juntamente com a construção
de mecanismos que lidam com os efeitos incontroláveis advindos da
concretização do dano. Por isso na medida em que se iniciam os cálculos de risco,
iniciam-se também a implementação de seguros, que viabilizam a distribuição de
prejuízos. A sociedade pode assim se aventurar diante de riscos maiores.80 O
seguro é a base de sustentação para a assunção de riscos.81
O seguro, no entanto não elimina o risco, mas tão somente permite a
redistribuição dos prejuízos advindos do dano. Ocorre assim não a eliminação do
risco, mas a negociação desse risco em termos financeiros.82
Essa relação entre risco e seguro mostra-se fundamental para compreender a
diferença existente entre o risco da primeira modernidade e o risco da segunda
modernidade.
77 GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 34. 78 Beck, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p. 114. 79 Ibid. p. 115. 80 Ibid. p. 116. 81 GIDDENS, Anthony. Op.cit., p.35. 82 GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 36.
36
O risco da primeira modernidade vinculava-se a acidentes delimitados em
sua extensão espacial, temporal e social. Com riscos que possuíam essas
características foi possível o estabelecimento dos seguros. Com a ascensão da
segunda modernidade tornou-se impossível realizar o cálculo de certos riscos.
Sem a possibilidade de prever a extensão dos danos tornou-se impossível ao
seguro acompanhar riscos que não possuem uma delimitação espacial, temporal e
social. Os exemplos de acidentes nucleares se enquadram bem como exemplos de
riscos que escapam ao seguro. 83
Uma distinção realizada por Anthony Giddens auxilia a compreensão a
respeito de como esse risco da segunda modernidade, que não se sujeita a seguros,
foi construído.
Giddens classifica as espécies de risco como riscos externos ou riscos
fabricados.84
O risco externo consiste nos fenômenos que não foram produzidos a partir
da intervenção humana. Más colheitas, tempestades, furacões, pragas todos esses
fenômenos sempre afetaram a sociedade. Como mencionamos até a ascensão da
modernidade tudo isso foi encarado a partir de justificações transcendentes.
Com a modernidade passa a estar presente a idéia de risco. O risco que se
encontra permeando a sociedade industrial é, no entanto, o risco externo, ou seja,
não provocado pela ação humana.85
A partir do desenvolvimento industrial criamos uma série de riscos que
emergem a partir da nossa intervenção no meio-ambiente e do desenvolvimento
de novas tecnologias. Esse desenvolvimento gera o que Giddens nomeia de risco
fabricado, esse seria “o risco criado pelo próprio impacto de nosso crescente
conhecimento sobre o mundo.” 86
A partir de certo momento do desenvolvimento da modernidade começa-se
a perceber que produzimos riscos que não podemos mais ignorar. Os riscos
83 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003. p. 118. 84 GIDDENS, Anthony. Op.cit. p. 38. 85 GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 36. 86 Ibid.
37
fabricados evidenciam que o progresso não pode se dar de forma ilimitada.
Passamos a nos organizar em torno dos efeitos da radicalização da modernidade.87
A radicalização da industrialização e do desenvolvimento de novas
tecnologias implodem com a base sobre a qual foi possível durante a primeira
modernidade realizar a distribuição dos prejuízos. Essa base conforme apontado
consistiu no estabelecimento do seguro. Os riscos fabricados atualmente fogem
completamente aos cálculos de previsibilidade e dimensão, por isso escapam ao
seguro.88
Talvez o exemplo mais marcante do que se afirma seja o acidente nuclear
ocorrido na usina de Chernobyl.89 Porém nas últimas duas décadas muitas outras
questões têm despertado a atenção da opinião pública mundial como a aparição da
encefalopatia espongiforme bovina, que ficou conhecida como mal da vaca louca,
a polêmica em torno dos alimentos transgênicos e em torno de uma série de
desenvolvimentos tecnológicos, cuja prejudicialidade ao meio ambiente é
intensamente debatida.90
Todos esses exemplos acabam criando uma encruzilhada onde o
desenvolvimento tecnológico, que pode vir a solucionar uma série de problemas
da nossa sociedade, também tem o potencial de gerar riscos imprevisíveis.
Através desse quadro podemos chegar à caracterização final do que seria a
sociedade de risco. Uma sociedade que se desenvolve e se organiza em torno da
administração de riscos.91 A sociedade de riscos se propõe a controlar os efeitos
colaterais dos riscos, é uma típica sociedade de controle. No entanto os riscos
dessa sociedade muitas vezes trazem danos imprevisíveis e impossíveis de serem
87 Por radicalização da modernidade compreende-se o aprofundamento dos avanços da industrialização que acabam por gerar efeitos que limitam o avanço contínuo do desenvolvimento industrial. A crise ambiental talvez seja o melhor exemplo de efeitos da radicalização da modernidade. O assunto é debatido em BECK, Ulr ich; GIDDENS, Anthony; LASH, Sco tt . Modern ização Ref lex iva . São paulo : UNESP, 1997. 88 GIDDENS, Anthony. Op.cit.,. p.38. 89 GIDDENS, Anthony. Op.cit., p.38. Chernobyl demonstra com grande intensidade que a sociedade de risco possui conforme discorre Bauman o potencial de realizar um suicídio coletivo seja por acidente ou vontade própria. (BAUMAN, Zigmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 96) 90 GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000.p.38-39. 91 BECK, Ulrich. Risk Society: Towards a New Modernity.
38
controlados, restando apenas à atuação no que tange a distribuição desses riscos e
possíveis danos.92
Na sociedade de risco problemas típicos da época que Beck nomeia como
primeira modernidade como a fome e a necessidade de controle de epidemias
somam-se a questões próprias da radicalização modernidade. A distribuição das
conseqüências do desenvolvimento industrial como a poluição do ar, resíduos
tóxicos e contaminação de águas são problemas que não podem mais ser
ignorados.93
2.2.4
O impacto da ascensão do risco global sobre o modelo do Estado
nacional
Diante da explanação realizada é possível compreender o pano de fundo
sobre o qual Ulrich Beck desenvolve sua leitura a respeito da globalização. Dentro
da construção de seu quadro teórico, no qual aborda a existência de dois
momentos distintos no desenvolvimento da modernidade, o autor situa na segunda
modernidade a ascensão da sociedade de risco.
Beck defende a tese, de que o risco é o sintoma último que evidência a
impossibilidade das sociedades continuarem a se auto-regular baseadas no modelo
de Estado nacional da primeira modernidade.
A sociedade de risco não respeita os limites das fronteiras nacionais, e ao
contrário de muitos outros fenômenos que também não respeitam essas fronteiras,
o risco não se permite ser ignorado.
92 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p.118 A imposição de responsabilidade aos produtores dos riscos é um dos grandes desafios da atualidade segundo Beck “estamos as voltas com os que geram riscos e os que são obrigados a suportar suas graves conseqüências.” Beck, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p.121 93 Tal fato abre caminho para o debate em torno da forma como se encaminha o desenvolvimento econômico, urbano e tecnológico na sociedade de risco. Os movimentos que são realizados no sentido de implementar avanços nas dimensões citadas são na maioria das vezes indesejadas pelos grupos populacionais que se localizam próximos aos mesmos. Assim usinas de incineração de lixo, usinas nucleares e institutos de pesquisa sofrem resistência por parte das populações locais. O que era visto como progresso na sociedade industrial, sofre resistência das populações diretamente afetadas. Essa conjuntura acaba levando ao uma desigual distribuição global e regional dos riscos, e das suas conseqüências, em função do potencial de mobilização dos diversos grupos. Cr iam-se assim novas des igua ldades. BECK, Ulr ich; GIDDENS, Anthony; LASH, Sco tt . Modernização ref lex iva . São Paulo: Edi tora Usp, 1997.p . 41
39
O Estado contemporâneo não pode mais se preocupar apenas com a
distribuição dos ganhos e com a redução das desigualdades, mas se vê também
diante do desafio de prever e distribuir riscos.
Nesse sentido a atual ordem global, como aponta Ulrich Beck, carece de
mecanismos democráticos que tenham alcance supranacional. Somente assim
seria possível a regulação de riscos produzidos localmente, porém com potencial
de dano global94. A recente crise econômica mundial, que se originou de uma
crise no sistema bancário americano, é um bom exemplo desse tipo de risco.
O risco transnacional ascende assim como uma porta por onde adentra uma
politização forçada da esfera transnacional.95 Os riscos que ascendem com
características como impossibilidade de dimensionamento, no que tange a sua
extensão espacial, temporal e intensidade de danos, são a evidência última da
ruptura existente entre primeira e segunda modernidade.
Através da definição de Beck da segunda modernidade como modernidade
radicalizada o autor fundamenta sua metodologia de pesquisa. A compreensão de
que a radicalização do desenvolvimento da modernidade gera uma segunda
modernidade, onde os fundamentos institucionais da primeira modernidade são
destruídos96, faz com que o teórico do risco realize sua pesquisa através de um
processo de idas e vindas.
Conceitos da primeira modernidade são confrontados com a nova realidade
social da segunda modernidade. Pensar essa nova realidade buscando saídas
democráticas é o seu objetivo.
Dentro dessa grande empreitada o autor examina o esvaziamento político do
Estado nacional, passando pela análise da subordinação desse Estado pelos
agentes econômicos.
O teórico do risco se debruça na realização de uma releitura da globalização
em seus vários aspectos. Diferencia a globalização de discursos tidos por ele
94 BECK, Ulrich e ZOLO, Danilo. A sociedade global do Risco. Disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ulrich.htm 95 Âmbitos transnacionais inicialmente despolitizados se politizam cada vez mais e tornam-se cada vez mais alvo das críticas e do debate público. Beck, Ulrich. O que é a globalização? Equívocos do globalismo respostas à globalização. São Paulo: Paz e terra, 1999.p. 175. Tal fato pode ser percebido nos mais recentes fóruns internacionais como Copenhagem. 96 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p. 25. Esses fundamentos foram mencionados no ítem 1.2.2, quais sejam, sociedade do trabalho, coletivizada, correspondência entre Estado e sociedade, controlabilidade, certeza científica.
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como ideologias neoliberais, e propõe novas formas de regulação democrática da
sociedade.
Tais apontamentos visam permitir que os Estados escapem das imposições
do mercado e possam novamente inserir o conflito entre capital e trabalho, dentro
de uma arena política que possua legitimidade democrática.
Através da distinção entre primeira e segunda modernidade é possível
identificar que o modelo do Estado nacional é visto por Ulrich Beck, como um
modelo de Estado para a sociedade da primeira modernidade. As exigências da
segunda modernidade exigem uma reconfiguração do funcionamento das
soberanias estatais, e uma correspondente reconfiguração, na forma de
funcionamento democrático da sociedade.97
Segundo Beck “a própria democracia para que tenha um futuro necessita
ser transnacionalizada”.98
Conforme será visto no próximo capítulo, Beck acredita que o capital
aproveitou o avanço tecnológico para escapar da conflituosidade política dos
Estados nacionais, subordinando a política nacional aos seus interesses.
97 Tais questões serão trabalhadas no capítulo 3 98Beck, Ulrich e Zolo, Danilo. A sociedade global do Risco. Disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ulrich.htm