2 o estado nacional como Âmbito dos conflitos polÍticos e a trajetÓria da … · 2018-01-31 ·...

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2 O ESTADO NACIONAL COMO ÂMBITO DOS CONFLITOS POLÍTICOS E A TRAJETÓRIA DA TEORIA DO RISCO RUMO À ANALISE CRÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO O presente capítulo pretende discorrer sobre como o Estado nacional moderno se constituiu como um espaço de conflituosas disputas políticas a partir das revoluções do século XVIII. Conforme poderá ser constatado, a partir dos movimentos revolucionários que tiveram início no século XVIII, emerge o conflito entre as forças da burguesia e os setores que pleiteavam uma radicalização da idéia de igualdade. Tal radicalização consistia no estabelecimento de uma igualdade material e não apenas formal. Conforme veremos essas disputas ocorrem tendo como arena o âmbito de poder de cada Estado nacional, que correspondia a um determinado espaço territorial. Tal constatação mostra-se fundamental para compreender a profundidade das transformações trazidas pela ascensão da globalização, sobre o equilíbrio das disputas entre capital e trabalho. Em seguida será explicitado como Ulrich Beck, teórico que desenvolveu a idéia de sociedade de risco, chega até o debate sobre globalização e a crise do modelo de Estado nacional territorial que se formou durante a modernidade. 2.1 A conflituosidade política no âmbito do estado nacional moderno. A formação dos Estados nacionais se desenvolve na transição da Idade Média para a Idade Moderna, onde ocorrem processos peculiares de concentração de poder em várias regiões da Europa. 1 Ulrich Beck aponta como marco da 1 Charles Tilly descreve a formação dos Estados nacionais como um processo que pode ser percebido a partir da década de 1490. Afirma no entanto que nesse período ainda prevaleciam formas alternativas de organização política. (TILLY, Charles. Coerção, capital e Estados Europeus 1990-1992. São Paulo: Editora USP. 1996. p. 94-95)

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O ESTADO NACIONAL COMO ÂMBITO DOS CONFLITOS

POLÍTICOS E A TRAJETÓRIA DA TEORIA DO RISCO RUMO

À ANALISE CRÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO

O presente capítulo pretende discorrer sobre como o Estado nacional

moderno se constituiu como um espaço de conflituosas disputas políticas a partir

das revoluções do século XVIII. Conforme poderá ser constatado, a partir dos

movimentos revolucionários que tiveram início no século XVIII, emerge o

conflito entre as forças da burguesia e os setores que pleiteavam uma

radicalização da idéia de igualdade. Tal radicalização consistia no estabelecimento

de uma igualdade material e não apenas formal.

Conforme veremos essas disputas ocorrem tendo como arena o âmbito de

poder de cada Estado nacional, que correspondia a um determinado espaço

territorial.

Tal constatação mostra-se fundamental para compreender a profundidade

das transformações trazidas pela ascensão da globalização, sobre o equilíbrio das

disputas entre capital e trabalho.

Em seguida será explicitado como Ulrich Beck, teórico que desenvolveu a

idéia de sociedade de risco, chega até o debate sobre globalização e a crise do

modelo de Estado nacional territorial que se formou durante a modernidade.

2.1

A conflituosidade política no âmbito do estado nacional moderno.

A formação dos Estados nacionais se desenvolve na transição da Idade

Média para a Idade Moderna, onde ocorrem processos peculiares de concentração

de poder em várias regiões da Europa.1 Ulrich Beck aponta como marco da

1 Charles Tilly descreve a formação dos Estados nacionais como um processo que pode ser percebido a partir da década de 1490. Afirma no entanto que nesse período ainda prevaleciam formas alternativas de organização política. (TILLY, Charles. Coerção, capital e Estados

Europeus 1990-1992. São Paulo: Editora USP. 1996. p. 94-95)

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ascensão dos Estados nacionais os tratados da Paz de Westfalia onde ocorre a

separação entre Estado e Igreja.2

A diferenciação entre a esfera de atuação do poder temporal e do poder

eclesiástico é característica dos modernos Estados nacionais. Soma-se a tal

característica a ocorrência da centralização da administração estatal e do poder

militar em um mesmo ator. Esse ente político exerce um poder soberano sobre

determinado território onde habita um povo. Esses seriam os pontos mais

relevantes apontados pela Teoria do Estado para a caracterização dos Estados

nacionais.3

A idéia de soberania mostra-se central para compreender as dimensões da

concentração de poder que se consolida nos primeiros séculos da modernidade.

Bodin e Hobbes foram autores que se tornaram expoentes na construção desse

conceito.

Bodin é tido como o teórico que deu início ao caminho percorrido pelo

conceito de soberania que integra a idéia de um Estado nacional.4

Bodin define a república como um conjunto de famílias que é governado

por um poder soberano.5 A soberania é caracterizada por Bodin como um poder

absoluto e perpétuo. O autor discorre a respeito de vários atributos da soberania,

no entanto afirma que o poder de fazer leis resume bem o conceito de soberania.

Hobbes por sua vez caracteriza o poder concedido ao soberano como um

poder capaz de inspirar um terror tal, que permite gerar a conformação das

2 BECK, Ulrich. The Cosmopolitan State. Toward a realistic Utopia.Eurozine, 05 de maio de 2001. Disponível em<http://www.eurozine.com/articles/2001-12-05-beck-en.html> 3 Os processos citados são desenvolvidos por Norberto Bobbio na obra Estado, governo e sociedade. Para uma teoria geral da política. São paulo: Editora paz e terra, 2005. Com alguma variação os manuais de teoria do Estado acatam as características citadas no texto como essenciais para a configuração de um Estado nacional, nesse sentido Dalmo Dallari (Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2003), Paulo Bonavides (Bonavides, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros, 2007) e Sahid Maluf (Maluf, Sahid. Teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2007). Charles Tilly, por sua vez caracteriza os Estados nacionais como “organizações relativamente centralizadas, diferenciadas e autônomas que reclamavam prioridade no uso da força dentro de territórios amplos, contíguos e claramente circunscritos.”( Tilly, Charles. Coerção, capital e Estados Europeus 990-1992. São Paulo: Editora USP. 1996. p. 94) 4 NEGRI, Antonio & Hardt, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. p. 115-116. Antônio Negri chega a afirmar que Jean Bodin antecipa em sua obra a crítica a leitura contratualista da soberania. Na leitura negriana de Jean Bodin a definição de soberania consiste “na vitória de um lado sobre o outro – vitória que faz de um o soberano e de outro o súdito”(Negri, Antonio & Hardt, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006. p. 115) 5 Bodin, Jean. Los seis libros de la republica. Madrid: Tecnos, 2006.

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vontades de todos os indivíduos de determinado país. Esse poder representa nas

palavras de Hobbes “a essência do Estado” 6.

O Estado assim é constituído pela atuação desse poder sobre determinado

território, com a finalidade de garantir a paz interna e a defesa comum. Este poder

absoluto deve na concepção de Hobbes ser concedido ao soberano. Todos os

demais indivíduos que compõe essa sociedade são os súditos.7

A construção do conceito de soberania nas obras dos referidos teóricos

vincula-se irremediavelmente ao princípio territorial. Assegurar a ordem interna, e

a segurança das fronteiras frente aos demais Estados fez com que a soberania do

Estado nacional se estabelecesse através da dicotômica idéia de soberania interna

e soberania externa.

O princípio da territorialidade mostra-se fundamental para o Estado

nacional. Teóricos como Zygmunt Bauman chegam a afirmar que é impossível

realizar uma leitura do conceito de Estado através da teoria política moderna, que

se dissocie da idéia de territorialidade. Segundo o autor, “ordenar um setor do

mundo passou a significar: estabelecer um Estado dotado de soberania para

fazer exatamente isso.” 8

A partir das revoluções do século XVIII, a idéia de súdito que havia sido

desenvolvida por teóricos como Hobbes é substituída pela idéia de cidadão. Esse

era caracterizado não apenas como detentor de obrigações, mas caracterizado

também como um sujeito de direitos.

Com a obra O contrato social de Rousseau, o exercício da soberania é

deslocado de um rei com poderes absolutos para o povo, que exerce o poder

soberano através da realização da vontade geral.9

6 HOBBES, Thomas. Leviatã. Ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2006. p.131. 7 Ibid. 8 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 68 “O significado de “Estado” foi precisamente o de um agente que reivindicava o direito legítimo de e se gabava dos recursos suficientes para estabelecer e impor as regras e normas que ditavam o rumo dos negócios num certo território”( Bauman, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 68) A partir da construção dessa idéia de soberania foi possível estabelecer a identificação do Estado, da sociedade e consequentemente da política com base nos conceitos de nacional e internacional. (Beck, Ulrich. Toward a New Critical Theory With a Cosmopolitan Intent. Constallations, Volume, 10, Number 2. Blackwell Publishing, 2003. p. 454-455) 9 O conceito de vontade geral é alvo de intensos questionamentos por diversos autores. A vinculação do exercício da liberdade individual à obediência da vontade geral acabou por gerar um conceito que na prática possibilitou usurpações autoritárias. Nesse sentido a abordagem de

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Esse deslocamento dá origem a um novo conceito, qual seja o de cidadão

nacional, idéia que implementa uma igualdade de status entre todos os indivíduos

vinculados ao respectivo Estado nacional.

Jean-Jacques Rousseau elevou o povo à categoria de detentor único da

soberania no Estado de Direito. Dessa forma, a liberdade se dava na teoria de

Rousseau, na medida em que as leis que incidiam sobre o corpo social haviam

sido produzidas pelos próprios cidadãos que deveriam respeito às mesmas.10

Rousseau nos deixa como herança o modelo democrático no qual o povo é o

detentor da soberania. Com Rousseau a elevação do povo ao status de detentor da

soberania tornou-se algo praticamente incontestável.11

A construção da idéia de cidadão como sujeito de direitos trouxe uma

igualdade de status entre todos os nacionais de determinado Estado. Tal alteração

afeta o sustentáculo da organização social anterior as revoluções burguesas, na

medida em que destrói com as diferenciações de status jurídico baseadas em

critérios de classe. Ocorre assim a superação da organização social baseada em

estamentos. A partir de então são abertos os caminhos para fortes disputas

políticas, que se desenvolvem dentro dos Estados nacionais, a fim de serem

estabelecidos os parâmetros de igualdade da nova ordem.

Ocorre durante as revoluções burguesas, uma lógica comum que é apontada

pelo historiador Marco Mondaine. Segundo o autor, em um primeiro momento,

todas as classes que não eram componentes dos estamentos privilegiados eram

vistas como aliadas. Após a conquista revolucionária da igualdade formal, a luta

Antonio Negri ao descrever a Revolução Francesa na obra O Poder Constituinte – ensaio sobre as alternativas da modernidade. Editora: DP&A, 2002. 10 Feroz defensor da democracia direta, Rousseau tem sido objeto de diversas interpretações. Desde aqueles que enxergam no modelo Rousseauniano a defesa fática do exercício direto da soberania popular, até aqueles que vêem nesse exercício um modelo contra-fático, que indica um caminho a ser percorrido, mas nunca alcançado o seu final. Essa segunda interpretação é encontrada na dissertação de mestrado de Hector R. Leis.( Leis, Hector R.. Sobre o conceito de democracia em Rousseau. Dissertação de mestrado do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade católica do Rio de Janeiro. Ano: 1982.) 11 Interessante notar que a obra de Rousseau constrói ambigüidades que foram utilizadas por grupos completamente conflitantes durante a revolução francesa. Para a burguesia revolucionária, a vontade geral deveria ser ditada pela classe burguesa, que representava a nação como uma todo (SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte Burguesa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1986). Já para os demais integrantes do terceiro Estado, a vontade geral simbolizava a manifestação direta do povo exercendo sua soberania. A citada ambigüidade é trabalhada de por Antonio Negri em O Poder Constituinte – ensaio sobre as alternatives da modernidade. Editora: DP&A, 2002.

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pela justiça social já passa a ser vista como uma inimiga da liberdade.12 O

desenvolvimento histórico do direito de cidadania na Inglaterra, que é narrado por

Marshall é um bom exemplo do que se afirma.13

No primeiro momento, a cidadania é vista como uma aliada do sistema

capitalista. Este alinhamento se dá em virtude do caráter igualitário presente no

conceito de cidadania, que se contrapõe ao caráter de desigualdade presente no

sistema de classes.

Essa afirmativa se comprova pelo fato do status de cidadania ter posto um

fim no status social que prevalecia na Idade Medieval. Neste período a sociedade

feudal era dividida em plebeus, servos, senhores, dentre outras classes. Com o

advento da cidadania, por menor que fosse a igualdade implícita em seu conceito,

acaba por ocorrer a destruição daquele sistema de classes, através da instituição de

uma lei nacional que é imposta ao menos formalmente a todos.

Em uma sociedade onde não havia uma liberdade que fosse compartilhada

por todos, a instituição da cidadania acabou por minar este sistema de

desigualdade, que se constituía como uma desigualdade total.14

Ao nos referirmos ao status social que surge juntamente com o sistema

capitalista segundo Marshall:

“estamos estendendo o sentido do termo além de seu significado rigorosamente técnico. Não se estabelecem nem se definem as diferenças de classe pelas leis e costumes da sociedade (no sentido medieval da expressão), mas elas emergem da combinação de uma variedade de fatores relacionados com as instituições da propriedade e educação e a estrutura da economia nacional. As culturas de classe se reduzem a um mínimo, de modo que se torna possível, embora como se admite, não inteiramente satisfatório, medir os diferentes níveis de bem-estar econômico por referência a um padrão de vida comum. As classes trabalhadoras, ao invés de herdarem uma cultura distinta conquanto simples, são agraciadas com uma imitação barata de uma civilização que se tornou nacional.”15 Dessa forma as distinções de classe no capitalismo, ao contrário do que

ocorria no feudalismo, passam a não operar pela lei, mas preponderantemente por

fatores econômicos e a cultura de classe é substituída pela cultura da nação. A

12 MONDAINE, Marco. O respeito aos direitos dos indivíduos. In: História da cidadania. Org. Pinsky, Jaime & Pinsky, Carla B. São Paulo: Contexto, 2005. p. 127. 13 T. H. Marshall foi o primeiro pesquisador a realizar a sistematização do conceito de cidadania nacional. Pinsk, Jaime. História da cidadania. Org. Pinsky, Jaime & Pinsky, Carla B. São Paulo: Contexto, 2005. p. 12. 14 MARSHALL, T. H.. Cidadania, classe social e status. Rio de janeiro: Zahar, 1967. p. 77. 15 Loc. Cit.

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desigualdade feudal, na qual é associado um valor a cada nível social, é

substituída por uma desigualdade social que o sistema capitalista necessita que

exista.

Dessa forma no que diz respeito ao viés das liberdades civis, a cidadania

não se caracterizou pelo conflito com a sociedade capitalista. Com o predomínio

das liberdades civis a indigência era vista como resultado do fracasso, uma vez

que todos gozavam de princípios de igualdade civil. O entendimento vigente

postulava que todos os homens possuíam condições concedidas pelo status

individual, de poder adentrar na concorrência do mercado e garantir sua condição

de sobrevivência e de proteção social.

O direito de cidadania de certa forma acabou por funcionar como uma

estrutura que igualou juridicamente as diferentes classes sociais, substituindo o

“status diferencial” pelo status da cidadania.

Toda essa conjuntura, porém, não gerou um impacto significativo sobre a

desigualdade social, mas abriu caminho para conflitos dentro do Estado nacional

entre as idéias de igualdade formal e material.

Ao crescerem as garantias conferidas pelos direitos sociais, ocorre uma

cisão dentro da própria idéia de cidadania. Isso porque os direitos sociais de

assistência se fundamentavam em uma ordem de planejamento, enquanto os

direitos civis eram próprios de uma ordem econômica livre e competitiva.16

O avanço do tempo acabou por demonstrar que as políticas de assistência

não poderiam conter as forças partidárias do livre mercado. Essa tensão reflete o

conflito existente entre os princípios de justiça social e do sistema de preços do

mercado. A luta pela concretização de direitos sociais é a manifestação da disputa

e das pressões em torno do direcionamento do poder político do Estado nacional.

Pode-se extrair da narrativa histórica realizada por Marshall, que o status de

cidadão sem dúvida trouxe significativas mudanças para o padrão de

desigualdade. Uma vez que embora não efetive os direitos positivados, torna

possível a luta política para sua efetivação, que é o passo a ser dado após o

reconhecimento.

Não obstante esta falta de efetivação, o reconhecimento como afirmado,

abre caminho para que a desigualdade possa ser enxergada e combatida

16 MARSHALL, T. H.. Cidadania, classe social e status. Rio de janeiro: Zahar, 1967. pág. 77

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politicamente.17 O reconhecimento dos direitos sociais proporciona um fator de

limitação da exploração capitalista, esta limitação foi enxergada como uma

restrição dos direitos individuais de liberdade.

Todo esse processo advindo do estabelecimento da democracia de massas

que foi construída a partir das Revoluções do século XVIII, se desenvolveu em

bases nacionais e territoriais delimitadas.18 Dentro desse desenho institucional foi

possível estabelecer um espaço para a ocorrência dos conflitos políticos.19

Conforme acentua José Maria Gomes “a política democrática expressa em última

instância, a interação de forças operando no plano do Estado-nação” 20

O fato é que após as revoluções do século XVIII se consolida a idéia de

legitimação democrática do poder político. Desenvolvem-se então, acirradas

disputas políticas em busca do controle sobre as instituições componentes do

aparato estatal de administração.21 A partir desse momento tornou-se fundamental

a conquista do controle do Estado para efetivar determinado projeto político.22

17 Os Estados nacionais durante muito tempo serviram como campo onde essas disputas políticas se desenvolveram. Atualmente esse campo apesar de ainda ser muito relevante se vê enfraquecido diante dos fatores advindos dos processos de transnacionalização. Essa questão será desenvolvida no capítulo 2. 18 Benjamin Constant em seu texto “Da liberdade dos antigos comparada a dos modernos” estabelece sua visão de democracia indireta comparando a democracia dos modernos com a democracia direta dos antigos. Essa era possibilitada pelo ócio dos senhores de escravos, afirmando que apesar de direta, era uma democracia excludente. Com esse argumento ele afirma que uma democracia que pretenda se adequar as liberdades modernas deve ser uma democracia indireta. Além dessa caracterização, Constant conservadoramente defende a restrição do voto aos proprietários de terras, pois estes estariam comprometidos com a estabilidade social. CONSTANT, Benjamin. A liberdade dos antigos comparada com a dos modernos. Revista de Filosofia Política n° 2. Porto Alegre: Editora L&PM, 1985. 19 Nesse sentido pode-se observar que os direitos sociais desde a revolução francesa são objeto de reivindicação, estando inclusive muitos deles na declaração de 1793, que não prevaleceu em razão do avanço da contra-revolução.(NEGRI, Antônio. O Poder Constituinte – ensaio sobre as

alternativas da modernidade. Editora: DP&A, 2002.)

20GÓMEZ, José Maria. Globalização da Política: mitos, realidades e dilemas. In: Globalização

Excludente. Org.: Gentili, Pablo. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. p. 145. 21 A evolução descrita aqui é sintetizada por Habermas da seguinte forma: “Até o século XVII, formaram-se Estados na Europa que se caracterizavam pelo domínio soberano sobre um território e que eram superiores em capacidade de controle às formações políticas mais antigas, tais como os antigos reinados ou cidades - Estados. Como Estado Administrativo com uma função específica, o Estado moderno diferenciou-se da economia de mercado institucionalizada legalmente; ao mesmo tempo como Estado fiscal, ele se tornou dependente também da economia capitalista. Ao longo do século XIX ele se abriu como Estado nacional, para formas democráticas de legitimação. Em algumas regiões privilegiadas e sob as condições propícias do pós-guerra, o Estado nacional, que entrementes se tornara um modelo para o mundo, pôde se transformar em Estado social – graças à regulação de uma economia política, no entanto intocável no seu mecanismo de auto-controle.” (HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional – Ensaios políticos. São Paulo: Littra Mundi. 2001. p. 69) 22 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 69.

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Todas essas disputas se desenvolvem para impor avanços e revezes aos grupos no

poder e se dão em âmbito nacional.

Esses conflitos que eclodem nas revoluções do século XVIII, atravessam o

século XIX e chegam até o século XX, sendo estabilizados na Europa pela

construção do Estado de bem-estar social. Tal estabilização é considerada

satisfatória por Ulrich Beck e outros autores23.

Conforme bem discorre Habermas, nesse período, devido ao

desenvolvimento tecnológico alcançado pela economia capitalista foi possível a

implementação de garantias sociais razoavelmente satisfatórias em âmbito

europeu. O incremento tecnológico possibilitou a implementação de um aumento

da produção, e ao mesmo tempo, uma redução das jornadas de trabalho e a

garantia de outros direitos sociais.24 Esse modelo de democracia social acaba por

se tornar parâmetro de luta para muitos setores da sociedade.25

Pode-se constatar que essa idéia de auto-regulação da sociedade, bem como

os conflitos que eclodem desde as revoluções do século XVIII, e a estabilização

alcançada na Europa no pós-guerra se efetivaram através de lutas nacionais, ou

seja, vinculadas territorialmente aos respectivos Estados nacionais.26

Esse Estado nacional se sustentou através do tripé composto pelas

soberanias militar, econômica e cultural que permitiram a manutenção da ordem

interna, e, ao mesmo tempo, a proteção desta ordem interna em relação aos

demais Estados.27 Os recursos advindos do recolhimento coercitivo de impostos

garantiam a manutenção do aparato administrativo do Estado e ao mesmo tempo

sustentavam as forças militares desse mesmo Estado.

No que diz respeito à soberania cultural, o estabelecimento de um vínculo

de cidadania que ligava todos os membros da nação acabou por gerar uma

identidade coletiva fazendo ascender o nacionalismo patriótico.

23 É o caso de Jürgen Habermas e Anthony Giddens. 24 HABERMAS, J. Ciência e técnica enquanto ideologia. In: Os pensadores, São Paulo: Editora Abril, 1980. 25 As idéias de Ferdinand Lassale contribuíram significativamente para esse ideal de reformas em prol da conquista de direitos. Lassale, Ferdinand. Que é uma constituição? São Paulo: Edições e publicações Brasil, 1933. 26 Nesse sentido Karl Marx e Friedrich Engels chegam a afirmar no manifesto comunista que os proletários tinham que lidar com suas burguesias nacionalmente. Marx, Karl & Engels, Friedrich. O manifesto comunista. São Paulo: editora paz e terra. p.27. 27 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 69.

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Como pôde ser percebido, a cidadania nasce sobre um base nacionalista.

Esta base nacionalista se colocou como a ideologia que igualou os indivíduos

componentes da nação, destruindo o sistema de classes. Não obstante este caráter

igualitário, a cidadania nacional também nasce com um caráter excludente. Na

medida em que apenas confere proteção, àqueles detentores da nacionalidade

vinculada ao respectivo Estado-Nacional.

A identidade cultural garantiu a formação de fronteiras que permitiram a

criação de uma relação de inclusão entre os nacionais, e exclusão em relação aos

não nacionais, caracterizados como estrangeiros. Tais divisões possibilitaram

amenizar os conflitos de classe, ao mesmo tempo em que funcionavam como um

importante fator de mobilização da sociedade.28

Devido à relevância da relação entre coesão social e nacionalidade para o

funcionamento do Estado nacional faremos uma pequena abordagem a respeito,

para posteriormente, evidenciarmos no capítulo 2 e 3 que essa relação encontra-se

abalada.

2.1.1

Coesão social e nacionalidade

Todo conflito entre as forças sociais que se desenvolve principalmente a

partir do século XVIII teve como pano de fundo a relação existente entre Estado e

nação. Essa relação serviu com grande eficiência à ascensão da burguesia na

transição da sociedade estamental para a sociedade burguesa.

28 Na interpretação habermasiana o nacionalismo levado ao extremo nas teorias de Schmitt serviu não apenas para mobilizar a nação alemã, mas também para defender um conceito homogêneo de povo que fechou espaços para as demais nacionalidades e teve seu ponto culminante no holocausto judeu. A idéia de democracia como representação homogênea da vontade de um povo permeia a obra de Schmitt, e foi também o fundamento de intensos conflitos étnicos no século XX.(HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. 2002.p.159) A idéia de auto-derminação nacional apesar de ter auxiliado na defesa dos países colonizados em face dos países colonizadores como bem lembram Antônio Negri e Michael Hardt (NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.p.123-124) também serviu para garantir a independência necessária para a efetivação de massacres, limpezas étnicas e migrações forçadas. Esses atos de sobreposição de uma cultura homogênea sobre minorias, na maioria das vezes contaram com a proteção conferida pela idéia de soberania baseada na paz e na ordem interna. HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. 2002.p.174.

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Data do final do século XVIII o estabelecimento dessa fusão entre Estado e

nação.29 A coesão social, que era proporcionada pelo fundamento religioso do

poder, decai e a idéia de governo em prol do bem comum ascende de forma

definitiva através da revolução francesa, apoiada nas obras de Rousseau.

A idéia de bem comum consistia na manifestação do que Rousseau nomeou

como vontade geral do povo organizado em assembléia.30 As idéias de povo e

nação trazem assim, um substrato transcendente que vem substituir o anterior

fundamento transcendente do poder baseado da religião.31

Essa idéia de nação se apoiou em fundamentos materiais como uma

identidade comum advinda de vínculos de sangue território e língua.32

Através da idéia de vontade nacional foi possível realizar um apelo, que

possibilitou uma relativa suavização dos conflitos de classe que eclodiram

juntamente com a superação da ordem estamental.33 A homogeneidade presente

na idéia de vontade nacional possibilitou que um interesse de determinada classe,

se escondesse por traz, do que foi apresentado como vontade nacional.34 Essa

29 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. 2002.p. 132. 30 A vontade geral é um elemento fundamental do que Rousseau denomina como sendo o contrato social. No contrato social cada pessoa estaria unida a todos os demais membros do corpo social. Este corpo social teria o dever de proteger os bens e a pessoa de cada associado. Ao mesmo tempo cada associado obedeceria somente a si mesmo, mantendo sua liberdade. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Porto Alegre: L&PM, 2007.) Essa liberdade seria manifesta através da vontade geral, pois vivendo em uma coletividade cada indivíduo se comportaria visando o bem comum. Através da busca do bem comum cada um manteria sua liberdade. O cidadão rousseauniano goza de liberdade na medida que participa como igual na formação da vontade geral. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Porto Alegre: L&PM, 2007.) Tal construção traz em si um grande potencial totalitário, na medida que lida com uma vontade geral que tem por fundamento um bem comum construído de forma homogênea e abstrata. A vinculação do exercício da liberdade a obediência da vontade geral acabou por gerar um conceito que aprisiona a soberania popular, e os projetos individuais a uma abstração que pode ser capturada por determinados grupos presentes na sociedade. 31 Anteriormente a religião católica e a dissidência protestante forneciam o substrato teórico transcendente para fundamentar o poder soberano. A vontade do soberano subordinava de forma absoluta todas as questões relativas ao Estado inclusive a religião.( NEGRI, Antonio & Hardt, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.p. 112-113) 32 NEGRI, Antonio & Hardt, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.p.113. 33 O conteúdo da afirmação é de autoria de Michael Hardt e Antônio Negri. Os autores citados no entanto, ao afirmarem que os conflitos são estabilizados ou destruídos pela idéia de nação abrem caminho para conclusões diferentes das que são trabalhadas aqui. Os autores citados entendem os conflitos sociais da modernidade como formas de escapar da autoridade estatal e não como disputas pelo direcionamento do aparato do Estado nacional moderno.Negri, Antonio & Hardt, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.p. 113. 34 Tal fato foi percebido posteriormente por setores do movimento comunista. Na leitura de Antônio Negri e Michael Hardt, Rosa Luxemburgo foi uma grande crítica do nacionalismo o acusando de dividir a classe operária na luta contra o capitalismo. NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.p.114

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manobra pôde ser extraída através de interpretações do conceito de vontade geral,

presente na obra “O contrato social” de Rousseau.35

Dessa forma a soberania da nação acabou se transformando em uma

apropriação da soberania estatal, em prol de interesses setoriais. O arcabouço

teórico dessa estratégia é construído por Sieyès em seu panfleto “Qu`est-ce que lê

tiers état ?”,36 onde afirma que a burguesia era a classe apta para deter o poder

constituinte, representar e expressar a vontade nacional.37

Apesar de ideológica, a construção da idéia de nacionalidade proporcionou

uma coesão através da solidariedade que advém dessa identidade comum. Ocorre

a identificação do nacional como um dos nossos, ao mesmo tempo o não nacional

é classificado como alguém de fora.38

Essa identidade comum produzida por uma série de fatores como língua,

sangue e território construiu uma relação de tensão com a compreensão da gestão

democrática como um processo heterogêneo. A democracia vista como um

processo plural se oxigena constantemente através dos conflitos existentes entre as

diversas forças políticas. Tal processo não se compatibiliza com a existência de

uma vontade homogênea da nação, que se impõe sobre as demais particularidades

existentes dentro do território do Estado nacional.

Segundo Habermas “essa ambivalência só não oferece perigo, enquanto um

entendimento cosmopolita da nação de cidadãos vinculados ao Estado puder

prevalecer sobre a interpretação etnocêntrica de uma nação que se encontra em

um estado de guerra latente e duradouro.” 39

O êxito da auto-regulação democrática de cidadãos que se encontram

compartilhando os mesmos direitos e deveres, no entender de Habermas, rivaliza

com a idéia de uma comunidade constituída antes do ente político. Esse

naturalismo existente na idéia de nação pode fazer com que ascendam

35 Conforme foi visto na nota 38 a vontade geral se caracterizou como um conceito abstrato, essa abstração viabilizou interpretações que serviram de fundamento teórico para as mais diferentes correntes políticas em conflito durante a revolução francesa. 36 A obra Qu`est-ce que lê tiers état ? (O que é o terceiro Estado) foi traduzida para o português e publicada sob o título A Constituinte burguesa pela editora Lúmen Júris. (Sieyès, Emmanuel Joseph. A constituinte Burguesa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1986.) 37 SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte Burguesa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1986. 38 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional – Ensaios políticos. São Paulo: Littra Mundi. 2001.p. 82-83. 39 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. 2002.p.138

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fechamentos étnicos, que geram violência e inviabilizam a solidariedade cívica

por outras identidades presentes no Estado Nacional.40

O filósofo alemão relembra em seus escritos a utilização do nacionalismo na

empreitada imperialista e durante as duas grandes guerras, como exemplos de que

o apelo à nação não ocorreu com o intuito de fortalecer os princípios republicanos

do Estado Constitucional.41

Durante o processo de modernização, o nacionalismo possibilitou a

justificação das formações político-institucionais. Ao mesmo tempo a coesão

desses cidadãos em torno da idéia da nação justificou o auto-governo pelo povo.

Esse processo se deu em substituição as bases religiosas de justificação do

poder.42

Pode-se constatar dessa forma que a exclusão daqueles que não pertencem à

cultura dominante é uma forma de garantir a unidade em torno da instituição

estatal, que inevitavelmente é ligada ao apelo nacionalista.

A cidadania não permitiria assim, um meio termo entre exclusão e

assimilação.43

Esclarecedora é a explanação de Peter Demant das análises do filósofo

Ernest Gellner, e do historiador John Breuilly a respeito do assunto:

“O filósofo britânico Ernest Gellner analisa como na sociedade anônima industrial a emergência de uma cultura estabelecendo novas fronteiras entre “dentro” e “fora” é quase inevitável, e como esta nova cultura nacional – longe de ser herança de um passado primordial – se torna fatalmente o núcleo da identidade coletiva da etnia predominante no Estado. Para o historiador inglês John Breuilly, é exatamente a incapacidade do conceito do cidadão abstrato, portador de direitos políticos independentemente de sua identidade cultural, de integrar a coletividade da massa de novos cidadãos, que despertou o nacionalismo que propõe um critério mais restritivo, mas também mais concreto e funcional.”44

40 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. 2002.p.138 41 O autor discorre da seguinte forma a respeito: “A história do imperialismo europeu entre 1871 e 1914, tal como o nacionalismo integral do século XX (isso sem falar no racismo dos nazistas), ilustra o triste fato de que a idéia de nação serviu muito menos para fortalecer as populações em sua lealdade ao Estado constitucional do que para mobilizar as massas em favor de objetivos que dificilmente se podem harmonizar com princípios republicanos.” HABERMAS, Jürgen. A

inclusão do outro – estudos de teoria política. São Paulo: Loyola. 2002.p.139 42 HABERMAS, Jürgen. Op.cit. .p.140. Hoje com a ascensão do multiculturalismo, percebe-se cada vez mais a necessidade do republicanismo se apresentar como uma base de sustentação mais independente do apelo nacional. 43 DEMANT, Peter. Direitos para os excluídos. In: História da cidadania. Org. Pinsky, Jaime & Pinsky, Carla B. São Paulo: Contexto, 2005. p. 373 44 Ibid.

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Assim o nacionalismo ascende como uma liga que viabiliza a coesão em

torno dos interesses do Estado, muito embora, esse entusiasmo nacionalista tenha

sido utilizado em favor de um interesse de classe.

2.1.2

Conclusão parcial

Conforme afirma Habermas, esse tipo de Estado que se originou das

revoluções do século XVIII tornou-se um modelo que se estabeleceu

globalmente.45 Territorialidade, nacionalismo e disputas entre capital e trabalho

que visavam influenciar e mesmo subordinar a atuação do Estado foram

acontecimentos presentes durante o desenvolvimento histórico dos Estados

nacionais.

A soberania dos Estados nacionais, no entanto, sempre necessitou que esses

Estados travassem relações no plano externo. Durante um primeiro momento, o

estabelecimento das soberanias estatais dependeu da realização de acordos e

negociações internacionais.46 Posteriormente durante a corrida imperialista do

século XIX, tais Estados soberanos foram em busca do que Bauman nomeia de

“espaços vazios”, também realizando negociações no plano global, mas zelando

pela não sobreposição de soberanias sobre determinado território.47

A ascensão dos EUA e da URSS como duas únicas superpotências dividiu o

mundo entre dois blocos de poder e originou o enquadramento dos demais nesses

dois blocos. Bauman afirma que tal estado de coisas gerou a produção de uma

“meta-soberania (...) baseada na suposição da insuficiência militar, econômica e

cultural de cada Estado” 48

Esse período de divisão do mundo em dois blocos de influência não

permitiu que fosse evidenciada que a estrutura de poder surgida na modernidade

tinha sido intensamente abalada. A auto-suficiência militar econômica e cultural,

45 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional – Ensaios políticos. São Paulo: Littra Mundi. 2001.p. 80. 46 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 70 47 Ibid 48 Ibid. p. 71.

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que os Estados nacionais gozaram durante um longo período, sofreu fortes

transformações.49

A partir dos indícios de superação da divisão bipolar do poder mundial foi

possível perceber que a soberania militar, econômica e cultural dos Estados

nacionais se via cada vez mais necessitada de densos acordos e negociações

supranacionais para que possam se efetivar. Segundo Bauman “os três pés do

tripé da soberania foram quebrados sem esperança de conserto”.50

Conforme visto na rápida descrição, o Estado nacional nunca se caracterizou

como completamente independente, tendo que realizar acordos internacionais,

desde sua origem, para garantir o seu espaço territorial frente às demais forças

existentes.

No entanto evidencia-se a partir da intensificação dos processos

transnacionais de interação social, ocorridos sobretudo a partir da segunda metade

do século XX, uma alteração na relação entre a soberania estatal e os agentes

sociais com potencial de atuação transnacional.

Ocorrem com grande intensidade movimentações de agentes econômicos

que afetam fortemente os cidadãos dos Estados nacionais, e esses se encontram

sem perspectivas de reação. O jogo democrático que se estabelece através da

conflituosidade da política nacional fica comprometido em certas temáticas. A

economia, por exemplo, assume a capacidade de escapar do conflito político

nacional e impor suas regras utilizando-se de chantagens relativas à migração de

postos de trabalho e da arrecadação de tributos.

Para buscar realizar a descrição desse fenômeno de aparente despolitização

do embate entre capital e trabalho será utilizado um recorte do pensamento de

Ulrich Beck. Tal recorte consiste em sua explanação sobre o que realmente seria a

globalização, como ela impacta o modelo do Estado nacional moderno e

consequentemente o modelo de democracia originado nas revoluções do século

XVIII.

Em função das obras de Ulrich Beck abordarem uma grande quantidade de

temas, que se desenvolvem tendo como ponto culminante a idéia de sociedade de

49 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 71 50 Ibid

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28

risco, faz-se necessário realizar uma descrição a respeito de como Beck, dentro de

seu quadro teórico, chega até o debate sobre a globalização e o Estado nacional.

2.2

A crítica à globalização na teoria do risco

Ulrich Beck é um sociólogo alemão que se tornou celebre pelo

desenvolvimento de sua teoria da sociedade do risco. Pode parecer estranho, em

um primeiro olhar, a utilização das obras desse autor para sustentar uma releitura

da globalização e dos efeitos desse fenômeno sobre a soberania dos Estados

nacionais e o governo democrático.

Ocorre que o desenvolvimento da teoria da sociedade de risco leva a

profundos questionamentos sobre uma série de conceitos cunhados durante o

desenvolvimento da modernidade. Beck inclusive se propõe a desenvolver novas

formas pensar os avanços e crises que marcaram e marcam o paradigma moderno.

Diante de um quadro teórico tão denso e complexo não se pretende, e nem

seria possível, aprofundar todas as questões que serão mencionadas. O objetivo

deste tópico é tão somente demonstrar como é possível extrair da teoria do risco,

uma consistente releitura da relação entre a globalização e Estados nacionais.

A partir dessa releitura são fundamentadas fortes críticas ao funcionamento

dos Estados nacionais. São buscadas então saídas institucionais para a crise

democrática que se intensifica juntamente com o esvaziamento das soberanias

estatais.

2.2.1

A ascensão da sociedade de risco

Para chegar à idéia de sociedade de risco, faz-se necessário dar um passo

atrás e contextualizar a teoria do risco dentro da leitura do desenvolvimento da

modernidade que é realizada por Ulrich Beck. O autor compreende que o

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29

paradigma moderno se desenvolve dividindo-se em dois grandes momentos, que

ele nomeia como primeira e segunda modernidade.51

O primeiro deles teria se originado com o desenvolvimento inicial do

sistema capitalista, e se estendido até a primeira metade do século XX. A partir da

segunda metade do referido século, fenômenos como a globalização, e a ascensão

de riscos com perfil diverso dos que a sociedade moderna até então convivia

operam uma ruptura definitiva nas formas de organização social.

A partir dessa ruptura se inicia o momento que Ulrich Beck nomeou como

segunda modernidade. A segunda modernidade traz consigo o advento de uma

“sociedade de risco” que substitui a idéia de sociedade industrial que caracterizou

o momento chamado por Beck de primeira modernidade.

2.2.2

Da primeira à segunda modernidade

Anthony Giddens na introdução de seu livro “As Consequências da

Modernidade”, realiza uma breve definição afirmando que a “modernidade

refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na

Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos

mundiais em sua influência” 52·.

Logicamente esta definição acrescenta pouco para a análise de um

fenômeno tão complexo quanto à ascensão da modernidade. No entanto, esta

conceituação nos serve para situar em um ponto fixo no tempo e no espaço, a

emergência deste paradigma, como justifica o próprio Giddens.53

Os estudiosos divergem a respeito da conceituação do atual momento.

Muitos autores questionam se estaríamos diante de uma transição, ou de uma

revisão desse paradigma, que emerge em torno do século XVII.

Autores como Bauman, Lyotard, Harvey e Haraway optam pela ocorrência

de uma ruptura com a modernidade defendendo o advento de uma pós-

modernidade. Autores como Giddens e Jürgen Habermas afirmam a ocorrência de

51 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p. 13 52 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. p. 8. 53 Ibid.

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alterações em instituições chaves da modernidade. No entanto diante das

continuidades enxergadas por eles, defendem a ascensão não de uma pós-

modernidade, mas de uma modernidade tardia. Os termos modernidade reflexiva e

constelação pós-nacional, também são utilizados, respectivamente, pelo primeiro

e pelo segundo autor.54 Além desses autores encontramos a proposta de Michael

Hardt e Antonio Negri que buscam saídas alternativas ao que eles nomeiam como

modernidade hegemônica.55

Há dentro dessa controvérsia uma espécie de consenso sobre o fato de

estarmos diante de novas formas de organização política e social. Apesar do

projeto de cada corrente ser completamente diverso, assim como suas leituras

sobre o desenvolvimento da modernidade, praticamente todos concordam que no

atual momento vivemos profundas transformações nas instituições e formas de

vida social que emergiram na Europa no século XVII.

Beck dentro dessa discussão paradigmática opta por dividir a modernidade

em primeira e segunda modernidade. O autor enxerga a segunda modernidade não

como uma ruptura completa, mas como um momento que mescla rupturas e

continuidades. A segunda modernidade seria na verdade, a radicalização do

desenvolvimento da primeira modernidade.

O movimento de transição da primeira para a segunda modernidade se

caracteriza como um fenômeno que carrega continuidades e rupturas. O avanço do

discurso sobre os direitos humanos e quase universalização dos valores

democráticos56 são exemplos de continuidades. Por outro lado assiste-se a

ascensão de um multiculturalismo, de riscos imprevisíveis, incontroláveis e não

delimitados territorialmente, além da ascensão de uma sociedade mundial que

trava densas relações transnacionais.57

54 O citado panorama é desenvolvido por Ulrich Beck em: BECK, Ulrich. World Risk Society. Polity Press. 1999, p.1 55 Os referidos autores afirmam a existência de dois modelos de modernidade que travam um contínuo embate que se dá entre as forças da imanência e da transcendência, tal embate é descrito na obra Império. (NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.) 56 Aqui não está se falando com um sentido de efetivação desses valores mas sim no sentido de que praticamente nenhum governo atualmente se atreve a sustentar que é anti-democrático ou que rejeita a idéia de que os direitos humanos devem ser garantidos. 57 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p. 20

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Ulrich Beck reúne algumas das características principais da primeira e da

segunda modernidade com a finalidade de realizar a diferenciação entre os dois

momentos.

A primeira modernidade se caracterizou por um período onde as sociedades

se organizaram baseadas no modelo do Estado-Nacional. Podemos afirmar que

nesse período para cada Estado nacional havia uma sociedade correspondente. As

fronteiras territoriais possuíam uma grande força, moldando as relações sociais

das comunidades, e limitando a expansão das redes de trabalho. Segundo Beck

“conquanto por vezes se diagnostiquem processos de individualização e

diferenciação, eles ocorrem no interior dos coletivos predeterminados, de modo

que a sociologia continua podendo desenvolver e utilizar os modelos de

sociologia grupal”.58.

Também caracterizou este período a exploração indiscriminada da natureza

e a hegemonia da idéia de progresso. Tal conjuntura era sustentada pela crença na

clara distinção entre sociedade e natureza.59 Além dos fatores apontados, a

racionalidade iluminista construiu a idéia de controlabilidade, idéia sobre a qual

foram alicerçadas as relações sociais da primeira modernidade, e através da qual

foi possível iniciar a construção do conceito de risco.60

Além dos fatores citados a sociedade da primeira modernidade foi

caracterizada como uma sociedade do trabalho produtivo.61 O indivíduo tem seu

status social determinado pela participação nesse trabalho produtivo. Conforme

afirma Beck, “a pessoa é jovem quando está se preparando para o trabalho

produtivo, é adulta quando o exerce, e é idosa quando se aposenta.” 62

A participação no trabalho produtivo, por sua vez, fundamentou o

financiamento da seguridade social. O financiamento da seguridade possibilitou o

desenvolvimento da estabilidade necessária para a garantia de padrões razoáveis

de legitimação democrática em alguns lugares do globo.

58 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms .São Paulo: UNESP, 2003.p. 21. 59 Ibid. 60 A idéia de risco não pode ser concebida dissociada da idéia de controlabilidade uma vez que a análise do risco pressupõe o intuito de prever e controlar em certa medida os perigos aos quais a sociedade está sujeita. Giddens, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000.p.34-35. 61 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003. p. 22. 62 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.Pág. 22

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Esse modelo de sociedade da primeira modernidade, com todas as

características rapidamente mencionadas, entra em crise através de vários

processos que se desenvolvem com o aprofundamento da modernização.

Ocorre a globalização das relações sociais, que deixam de ser travadas de

forma restrita ao Estado nacional e passam a ser estabelecidas de forma densa

transnacionalmente. Ascende uma exacerbação da cultura individualista, através

de processos de esfacelamento de identidades coletivas na segunda modernidade.

Segundo Ulrich Beck ocorre

“uma espécie de individualismo institucionalizado característico das sociedades da segunda modernidade. Isso se explica pelo fato de as instituições básicas centrais da sociedade, como a educação, os direitos sociais, políticos e civis, assim como as oportunidades de participação no mercado de trabalho e os processos de mobilidade, estarem voltadas para o indivíduo, não para o grupo ou a família.” 63

A crise ecológica demonstra de forma cabal a impossibilidade de realizar a

separação entre sociedade e natureza. A integração da natureza ao processo de

industrialização evidencia seus limites ao colocar em risco as condições de

existência.64 Diante desta perspectiva o progresso não é visto mais como

ilimitado.

O aprofundamento dos avanços tecnológicos e o advento do capitalismo

digital-virtual65 coloca em xeque também o conceito de sociedade do trabalho,

que foi construído na primeira modernidade, uma vez que cresce o número de

indivíduos que são excluídos do trabalho produtivo. Seja pelo avanço dos

mercados financeiros, seja pela exclusão proporcionada pela tecnologia.66

Além desses fatores vive-se desde a revolução feminina a contestação da

hegemonia patriarcal, que remonta a tempos bem mais remotos que a ascensão da

modernidade. Essa novidade tem trazido consigo novas formas de organização do

63 BECK, Ulrich. Op.cit..p. 23. Beck menciona também o exemplo do quarto individual como símbolo do invidualismo. O autor compara essa forma de organização geográfica da família, com a forma coletivizada com que se organizavam as famílias da primeira modernidade, onde toda vida familiar se desenvolvia em um cômodo. BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck

conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p. 78-79. 64 BECK, Ulrich. Op.cit., p. 24. 65 A expressão é utilizada por Ulrich Beck para designar o avanço da importância do capital financeiro, que pode ser movimentado virtualmente em BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo.

Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p. 24 66 Essa exclusão produzida na atual fase do desenvolvimento capitalista gera uma multidão que já não possui nenhuma utilidade para o funcionamento do sistema. Criam-se assim zonas de exclusão, indivíduos que são completamente descartáveis.(BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a

busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.p.111.

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trabalho e das relações sociais. A inserção da mulher no mercado de trabalho, por

exemplo, rompe com uma histórica forma de organização familiar onde o pai

assegura o sustento e reside juntamente com a mãe que é uma dona de casa em

tempo integral. 67

Todos esses processos abriram caminho para a contestação de idéias

fundamentais da primeira modernidade. A idéia de que a ciência moderna poderia

proporcionar certeza, controlabilidade e segurança, desmorona diante dos desafios

contemporâneos e abre-se um novo horizonte de incertezas.68

O desenvolvimento da primeira modernidade leva a problemas que acabam

por minar as bases de sua construção. O desenvolvimento tecnológico gera

desemprego, a exploração indiscriminada da natureza compromete as condições

de existência, esses e outros fatores submetem todos os indivíduos a uma série

riscos.

Aos desafios da primeira modernidade são acrescentados novos desafios.

Problemas como a fome e epidemias de doenças, característicos da primeira

modernidade hoje são passíveis de controle diante das novas tecnologias. A

solução desses problemas não é, na maioria dos casos, uma questão em relação ao

qual não possuímos respostas ou recursos para intervir. São questões que

envolvem interesses políticos e econômicos. Juntamente com esse tipo de

problema ascendem novas questões, essas típicas da radicalização da

modernidade, relacionadas à gestão dos riscos.69

O surgem riscos que possuem potencial de provocar danos em nível global.

São exemplos desses riscos a possibilidade de um colapso ambiental, os riscos

nucleares e o problema relacionado a quebra de mercados financeiros.70

No início da presente década foi possível assistir a ascensão do terrorismo

internacional, que apesar de provocar diretamente danos locais, gera

conseqüências globais diante das reações a possibilidade de um ataque terrorista a

determinadas áreas do globo.71

67 GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000.p.67. 68 BECK, Ulrich. Risk Society: Towards a New Modernity. p. 160. 69 Ibid. p.19 70 Ibid. 71 A percepção do risco do terrorismo na concepção de Ulrich Beck é mais danosa que o próprio risco. As medidas de controle cerceiam a liberdade e não atacam as causas do terror, pelo contrário muitas vezes fomentam a xenofobia e o racismo.Beck, Ulrich. The Cosmopolitan State. Toward a

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Ocorre então a ascensão de um Estado que não faz apenas a intermediação

da distribuição de ganhos, mas também e cada vez com mais intensidade necessita

distribuir os riscos e suas conseqüências.72 Surge assim uma sociedade que se

organiza em função de controlar e distribuir riscos. Na concepção de Ulrich Beck

uma “sociedade de risco”.73

2.2.3

A ascensão da sociedade de risco

A tese da sociedade de risco, desenvolvida por Ulrich Beck, apóia-se em

uma concepção de risco que deve ser bem fundamentada contra afirmações de que

os riscos sempre estiveram presentes na sociedade. Giddens eleva a concepção do

risco a um dos conceitos fundamentais para a compreensão da sociedade de

hoje.74

Cabe pontuar que a idéia de risco parece ser estranha em relação às

sociedades tradicionais. Os acontecimentos que abalavam essas sociedades eram

fundamentados segundo uma tradição cultural que não se baseava no conceito de

risco.

Beck afirma que a história do conceito de risco “indica que ele não existia

em épocas mais remotas, nas quais os homens se viam a mercê de catástrofes

naturais ou da intervenção dos deuses” 75

. Nesse sentido, Giddens também afirma

que essas sociedades “usavam as idéias de destino, sorte ou a vontade dos deuses

e dos espíritos”.76

A idéia de risco começa a tomar forma com a modernização, uma vez que a

partir desse momento a sociedade assume a tarefa de se auto-direcionar. Dessa

forma Giddens define o risco como “a dinâmica mobilizadora de uma sociedade

realistic Utopia.Eurozine, 05 de maio de 2001. Disponível em<http://www.eurozine.com/articles/2001-12-05-beck-en.html> 72 BECK, Ulr ich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott . Modernização Ref lexiva . São paulo: UNESP, 1997, pag. 12 73 BECK, Ulrich. Risk Society: Towards a New Modernity. 74 GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 32. 75 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003. p. 113 76 GIDDENS, Anthony. Op.cit. p. 33.

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propensa à mudança, que deseja determinar seu próprio futuro em vez de confiá-

lo à religião, à tradição ou aos caprichos da natureza.” 77

O cálculo do risco é algo que permeia a sociedade capitalista.

Constantemente são calculados lucros e perdas em relação a determinadas ações.

O cálculo dos riscos foi algo constante durante as grandes navegações por

exemplo.

O risco e a sociedade industrial são indissociáveis, uma vez que, a partir da

superação das sociedades tradicionais com a modernização, passa-se a enxergar os

perigos através de um cálculo que permite diminuir ou evitar os danos. No

momento em que o homem assume a postura de não se subordinar à natureza e

passa a tomar decisões sobre ela, ascende à idéia de risco.78

A idéia de risco deve ser diferenciada da de perigo. O perigo sempre esteve

presente na civilização. Já o risco surge com a postura assumida pelo homem de

buscar tornar a ameaça previsível e controlável. Tal postura gera o cálculo do

risco a que o homem está sujeito quando realiza suas ações. Seja navegar no

oceano ou permanecer em regiões onde ocorrem contínuas enchentes.79

A postura de realizar cálculos de riscos surge juntamente com a construção

de mecanismos que lidam com os efeitos incontroláveis advindos da

concretização do dano. Por isso na medida em que se iniciam os cálculos de risco,

iniciam-se também a implementação de seguros, que viabilizam a distribuição de

prejuízos. A sociedade pode assim se aventurar diante de riscos maiores.80 O

seguro é a base de sustentação para a assunção de riscos.81

O seguro, no entanto não elimina o risco, mas tão somente permite a

redistribuição dos prejuízos advindos do dano. Ocorre assim não a eliminação do

risco, mas a negociação desse risco em termos financeiros.82

Essa relação entre risco e seguro mostra-se fundamental para compreender a

diferença existente entre o risco da primeira modernidade e o risco da segunda

modernidade.

77 GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 34. 78 Beck, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p. 114. 79 Ibid. p. 115. 80 Ibid. p. 116. 81 GIDDENS, Anthony. Op.cit., p.35. 82 GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 36.

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O risco da primeira modernidade vinculava-se a acidentes delimitados em

sua extensão espacial, temporal e social. Com riscos que possuíam essas

características foi possível o estabelecimento dos seguros. Com a ascensão da

segunda modernidade tornou-se impossível realizar o cálculo de certos riscos.

Sem a possibilidade de prever a extensão dos danos tornou-se impossível ao

seguro acompanhar riscos que não possuem uma delimitação espacial, temporal e

social. Os exemplos de acidentes nucleares se enquadram bem como exemplos de

riscos que escapam ao seguro. 83

Uma distinção realizada por Anthony Giddens auxilia a compreensão a

respeito de como esse risco da segunda modernidade, que não se sujeita a seguros,

foi construído.

Giddens classifica as espécies de risco como riscos externos ou riscos

fabricados.84

O risco externo consiste nos fenômenos que não foram produzidos a partir

da intervenção humana. Más colheitas, tempestades, furacões, pragas todos esses

fenômenos sempre afetaram a sociedade. Como mencionamos até a ascensão da

modernidade tudo isso foi encarado a partir de justificações transcendentes.

Com a modernidade passa a estar presente a idéia de risco. O risco que se

encontra permeando a sociedade industrial é, no entanto, o risco externo, ou seja,

não provocado pela ação humana.85

A partir do desenvolvimento industrial criamos uma série de riscos que

emergem a partir da nossa intervenção no meio-ambiente e do desenvolvimento

de novas tecnologias. Esse desenvolvimento gera o que Giddens nomeia de risco

fabricado, esse seria “o risco criado pelo próprio impacto de nosso crescente

conhecimento sobre o mundo.” 86

A partir de certo momento do desenvolvimento da modernidade começa-se

a perceber que produzimos riscos que não podemos mais ignorar. Os riscos

83 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003. p. 118. 84 GIDDENS, Anthony. Op.cit. p. 38. 85 GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 36. 86 Ibid.

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fabricados evidenciam que o progresso não pode se dar de forma ilimitada.

Passamos a nos organizar em torno dos efeitos da radicalização da modernidade.87

A radicalização da industrialização e do desenvolvimento de novas

tecnologias implodem com a base sobre a qual foi possível durante a primeira

modernidade realizar a distribuição dos prejuízos. Essa base conforme apontado

consistiu no estabelecimento do seguro. Os riscos fabricados atualmente fogem

completamente aos cálculos de previsibilidade e dimensão, por isso escapam ao

seguro.88

Talvez o exemplo mais marcante do que se afirma seja o acidente nuclear

ocorrido na usina de Chernobyl.89 Porém nas últimas duas décadas muitas outras

questões têm despertado a atenção da opinião pública mundial como a aparição da

encefalopatia espongiforme bovina, que ficou conhecida como mal da vaca louca,

a polêmica em torno dos alimentos transgênicos e em torno de uma série de

desenvolvimentos tecnológicos, cuja prejudicialidade ao meio ambiente é

intensamente debatida.90

Todos esses exemplos acabam criando uma encruzilhada onde o

desenvolvimento tecnológico, que pode vir a solucionar uma série de problemas

da nossa sociedade, também tem o potencial de gerar riscos imprevisíveis.

Através desse quadro podemos chegar à caracterização final do que seria a

sociedade de risco. Uma sociedade que se desenvolve e se organiza em torno da

administração de riscos.91 A sociedade de riscos se propõe a controlar os efeitos

colaterais dos riscos, é uma típica sociedade de controle. No entanto os riscos

dessa sociedade muitas vezes trazem danos imprevisíveis e impossíveis de serem

87 Por radicalização da modernidade compreende-se o aprofundamento dos avanços da industrialização que acabam por gerar efeitos que limitam o avanço contínuo do desenvolvimento industrial. A crise ambiental talvez seja o melhor exemplo de efeitos da radicalização da modernidade. O assunto é debatido em BECK, Ulr ich; GIDDENS, Anthony; LASH, Sco tt . Modern ização Ref lex iva . São paulo : UNESP, 1997. 88 GIDDENS, Anthony. Op.cit.,. p.38. 89 GIDDENS, Anthony. Op.cit., p.38. Chernobyl demonstra com grande intensidade que a sociedade de risco possui conforme discorre Bauman o potencial de realizar um suicídio coletivo seja por acidente ou vontade própria. (BAUMAN, Zigmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 96) 90 GIDDENS, Anthony. O mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000.p.38-39. 91 BECK, Ulrich. Risk Society: Towards a New Modernity.

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controlados, restando apenas à atuação no que tange a distribuição desses riscos e

possíveis danos.92

Na sociedade de risco problemas típicos da época que Beck nomeia como

primeira modernidade como a fome e a necessidade de controle de epidemias

somam-se a questões próprias da radicalização modernidade. A distribuição das

conseqüências do desenvolvimento industrial como a poluição do ar, resíduos

tóxicos e contaminação de águas são problemas que não podem mais ser

ignorados.93

2.2.4

O impacto da ascensão do risco global sobre o modelo do Estado

nacional

Diante da explanação realizada é possível compreender o pano de fundo

sobre o qual Ulrich Beck desenvolve sua leitura a respeito da globalização. Dentro

da construção de seu quadro teórico, no qual aborda a existência de dois

momentos distintos no desenvolvimento da modernidade, o autor situa na segunda

modernidade a ascensão da sociedade de risco.

Beck defende a tese, de que o risco é o sintoma último que evidência a

impossibilidade das sociedades continuarem a se auto-regular baseadas no modelo

de Estado nacional da primeira modernidade.

A sociedade de risco não respeita os limites das fronteiras nacionais, e ao

contrário de muitos outros fenômenos que também não respeitam essas fronteiras,

o risco não se permite ser ignorado.

92 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p.118 A imposição de responsabilidade aos produtores dos riscos é um dos grandes desafios da atualidade segundo Beck “estamos as voltas com os que geram riscos e os que são obrigados a suportar suas graves conseqüências.” Beck, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p.121 93 Tal fato abre caminho para o debate em torno da forma como se encaminha o desenvolvimento econômico, urbano e tecnológico na sociedade de risco. Os movimentos que são realizados no sentido de implementar avanços nas dimensões citadas são na maioria das vezes indesejadas pelos grupos populacionais que se localizam próximos aos mesmos. Assim usinas de incineração de lixo, usinas nucleares e institutos de pesquisa sofrem resistência por parte das populações locais. O que era visto como progresso na sociedade industrial, sofre resistência das populações diretamente afetadas. Essa conjuntura acaba levando ao uma desigual distribuição global e regional dos riscos, e das suas conseqüências, em função do potencial de mobilização dos diversos grupos. Cr iam-se assim novas des igua ldades. BECK, Ulr ich; GIDDENS, Anthony; LASH, Sco tt . Modernização ref lex iva . São Paulo: Edi tora Usp, 1997.p . 41

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O Estado contemporâneo não pode mais se preocupar apenas com a

distribuição dos ganhos e com a redução das desigualdades, mas se vê também

diante do desafio de prever e distribuir riscos.

Nesse sentido a atual ordem global, como aponta Ulrich Beck, carece de

mecanismos democráticos que tenham alcance supranacional. Somente assim

seria possível a regulação de riscos produzidos localmente, porém com potencial

de dano global94. A recente crise econômica mundial, que se originou de uma

crise no sistema bancário americano, é um bom exemplo desse tipo de risco.

O risco transnacional ascende assim como uma porta por onde adentra uma

politização forçada da esfera transnacional.95 Os riscos que ascendem com

características como impossibilidade de dimensionamento, no que tange a sua

extensão espacial, temporal e intensidade de danos, são a evidência última da

ruptura existente entre primeira e segunda modernidade.

Através da definição de Beck da segunda modernidade como modernidade

radicalizada o autor fundamenta sua metodologia de pesquisa. A compreensão de

que a radicalização do desenvolvimento da modernidade gera uma segunda

modernidade, onde os fundamentos institucionais da primeira modernidade são

destruídos96, faz com que o teórico do risco realize sua pesquisa através de um

processo de idas e vindas.

Conceitos da primeira modernidade são confrontados com a nova realidade

social da segunda modernidade. Pensar essa nova realidade buscando saídas

democráticas é o seu objetivo.

Dentro dessa grande empreitada o autor examina o esvaziamento político do

Estado nacional, passando pela análise da subordinação desse Estado pelos

agentes econômicos.

O teórico do risco se debruça na realização de uma releitura da globalização

em seus vários aspectos. Diferencia a globalização de discursos tidos por ele

94 BECK, Ulrich e ZOLO, Danilo. A sociedade global do Risco. Disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ulrich.htm 95 Âmbitos transnacionais inicialmente despolitizados se politizam cada vez mais e tornam-se cada vez mais alvo das críticas e do debate público. Beck, Ulrich. O que é a globalização? Equívocos do globalismo respostas à globalização. São Paulo: Paz e terra, 1999.p. 175. Tal fato pode ser percebido nos mais recentes fóruns internacionais como Copenhagem. 96 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo. Ulrich Beck conversa com Johannes Willms.São Paulo: UNESP, 2003.p. 25. Esses fundamentos foram mencionados no ítem 1.2.2, quais sejam, sociedade do trabalho, coletivizada, correspondência entre Estado e sociedade, controlabilidade, certeza científica.

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como ideologias neoliberais, e propõe novas formas de regulação democrática da

sociedade.

Tais apontamentos visam permitir que os Estados escapem das imposições

do mercado e possam novamente inserir o conflito entre capital e trabalho, dentro

de uma arena política que possua legitimidade democrática.

Através da distinção entre primeira e segunda modernidade é possível

identificar que o modelo do Estado nacional é visto por Ulrich Beck, como um

modelo de Estado para a sociedade da primeira modernidade. As exigências da

segunda modernidade exigem uma reconfiguração do funcionamento das

soberanias estatais, e uma correspondente reconfiguração, na forma de

funcionamento democrático da sociedade.97

Segundo Beck “a própria democracia para que tenha um futuro necessita

ser transnacionalizada”.98

Conforme será visto no próximo capítulo, Beck acredita que o capital

aproveitou o avanço tecnológico para escapar da conflituosidade política dos

Estados nacionais, subordinando a política nacional aos seus interesses.

97 Tais questões serão trabalhadas no capítulo 3 98Beck, Ulrich e Zolo, Danilo. A sociedade global do Risco. Disponível em: http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ulrich.htm

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