2º ciclo de estudos...1 porto alegre – novembro de 2007 2º ciclo de estudos lei de tÓxicos lei...

177

Upload: others

Post on 28-Jul-2020

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO
Page 2: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

1

Porto Alegre – novembro de 2007

2º CICLO DE ESTUDOS

LEI DE TÓXICOS

LEI Nº 11.343/06

LEI MARIA DA PENHA

LEI Nº 11.340/06

TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS

CENTRODE ESTUDOS

ESTADO DO RIO GRANDE DO SULPODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Page 3: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2Coordenação Geral: Des. Luiz Felipe Brasil SantosCoordenação Adjunta: Des. Ivan Leomar Bruxel

Palestrantes:

Cel. Paulo Laureano BrasilDr. Rogério G. SaldanhaDesª Elba Aparecida Nicolli BastosDr. Alberto Delgado NetoDr. Felipe Keunecke de OliveiraDr. Sidinei José BrzuskaDr. Gilberto Thums

Colaboradoras:

Angela Maria Braga Knorr – Secretária Administrativa

Cristina Lederhos Marcolino – Oficiala Superiora Judiciária

Diagramação, Revisão e Impressão: Departamento de Artes Gráficas

Capa: Marcelo Oliveira Ames e Paulo Guilherme de Vargas Marques

Tiragem: 1.500 exemplares

Catalogação na fonte elaborada pela Biblioteca do TJRS

Dra. Ela Wiecko Volkmer de CastilhoDra. Juliana BelloqueDesª Maria Berenice DiasDra. Jane Maria Köhler VidalDes. Mário José Gomes PereiraDes. Odone Sanguiné

Lei Maria da Penha – lei nº 11.340/06 [e] Lei de Tóxicos – lei nº 11.343/06 :2º ciclo de estudos / coordenação-geral : Luiz Felipe Brasil Santos ;coordenação-adjunta : Ivan Leomar Bruxel. – Porto Alegre : Tribunalde Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Departamento de ArtesGráficas, 2007.176 p. – (Cadernos do Centro de Estudos ; v.2)

Responsabilidade editorial : Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grandedo Sul. Centro de Estudos.

1. Lei Maria da Penha 2. Tóxicos – Lei – 2006 3. Violência contra a mulher– Lei – 2006 4. Violência doméstica I. Série

CDU 343.2(81)(094.5)

Page 4: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

3

SUMÁR IO

Usuários e Dependentes – Caminhos para a RecuperaçãoCel. Paulo Laureano Brasil ......................................................................... 5

Drogas – Espécies, Variedades e EfeitosDr. Rogério G. Saldanha ............................................................................. 29

Os Crimes na Nova Lei de TóxicosDesª Elba Aparecida Nicolli Bastos ......................................................... 45

Juizado Especial Criminal e a Nova Lei de TóxicosDr. Alberto Delgado Neto ............................................................................ 63

A Nova Lei de Tóxicos e as Execuções PenaisDr. Felipe Keunecke de Oliveira, Dr. Sidinei José Brzuska e

Dr. Gilberto Thums ....................................................................................... 81

A Lei nº 11.340/06 e as Novas Perspectivas da Intervenção doEstado para Superar a Violência de Gênero no Âmbito Doméstico eFamiliarDra. Ela Wiecko Volkmer de Castilho ...................................................... 101

Aspectos Penais e Processuais Penais da Lei nº 11.340/06Dra. Juliana Belloque ................................................................................... 119

Aspectos Civis e Processuais Civis da Lei nº 11.340/06Desª Maria Berenice Dias ........................................................................... 141

Questões Controvertidas da Lei nº 11.340/06Dra. Jane Maria Köhler Vidal, Des. Mário José Gomes Pereira e

Des. Odone Sanguiné .................................................................................. 149

Page 5: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO
Page 6: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Dando início aeste nosso encontro, no qual pretendemos oportunizarestudos e reflexões a respeito da Nova Lei de Drogas,cumprimento a todos – Colegas Juízes, Colegas detrabalho, Assessores e Secretários de Desembargado-res, estagiários e alunos da Escola da Magistratura,estes últimos convidados pelo Diretor do Centro doEstudos, Des. Luiz Felipe Brasil Santos.

Desde logo agradeço a presença de todos, na me-dida em que é o comparecimento maior que estimulao Centro de Estudos a desenvolver este tipo de ativi-dade. Não posso deixar de registrar o empenho e adedicação daqueles que trabalham no Centro de Estu-dos, especialmente a Cristina e a Ângela, que cuida-ram da parte operacional deste encontro.

A Nova Lei de Drogas – Lei n° 11.343/06 – trouxeimportantes alterações para o trato do assunto, a co-meçar pela aparente descriminalização do uso de dro-gas e substâncias geradoras de dependência, e pelotambém aparente aumento no rigorismo ao tráfico.

Assim, o tema será abordado em cinco módulos.Dois, abordados na parte da manhã, que ousei

chamar de temas técnicos. Os demais, na parte datarde, que penso possam merecer o tratamento deassuntos jurídicos, ainda que as palestras da manhãevidentemente tenham ligação com as questões jurí-dicas, na medida em que falaremos de dependentes,de usuários, de recuperação e tratamento dos depen-dentes e usuários. Este será o primeiro bloco. Logoem seguida, no segundo bloco, quando o palestranteabordará algumas drogas especificamente, quais asespécies, variedades e efeitos.

Com isto pretendemos contribuir para aperfeiçoaro entendimento desta questão, fornecendo subsídiosaos operadores, como destinatários da Lei, que tem apretensão de prevenir o uso, oferecer tratamento ade-quado para a recuperação e, em último caso, punir.

Page 7: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

6 – 2º Ciclo de Estudos

Para o primeiro bloco, “Usuários e Dependentes –Caminhos da Recuperação“ – a Lei busca a prevençãoe a recuperação –, convidamos o Cel. Paulo LaureanoBrasil, que fez a Escola Preparatória de Cadetes, aAcademia Militar de Agulhas Negras – a conhecidaAMAN –, a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais e aEscola de Comando do Estado Maior do Exército, de1972 a 1974.

É Engenheiro Construtor de Estradas de Ferro, En-genheiro do Estado Maior do Comando Militar do Cen-tro-Oeste, foi Professor da ECEME, de 1976 a 1982;Comandante do 6º Batalhão de Engenharia de SãoGabriel, no Rio Grande do Sul, de 1983 a 1984, e, em1987, passou à reserva.

Desde 1989, então, passou a dedicar-se à PACTO-POA(Pastoral de Auxílio Comunitário ao Toxicômano), daqual ainda é Diretor; é Delegado também daFEBRACTE-RS (Federação Brasileira de ComunidadesTerapêuticas) desde 2002.

Dedica-se o Coronel, então, desde longa data, aeste tipo de atividade: coordenar, estudar, dedicar oseu tempo à recuperação dos dependentes, e eviden-temente que isso passa por um apoio também aousuário de drogas.

Assim, agradecemos desde logo a presença do Co-ronel.

Certamente, vamos ter subsídios importantes paraa nossa atividade jurisdicional, na medida em que oDelegado desta Federação Brasileira de ComunidadesTerapêuticas vai nos trazer elementos que possamindicar para quem os Juízes encaminharão aquelesque necessitam do tratamento que a Lei nº 11.343/06 pretende, assim como a Lei nº 6.368/76 preten-dia, para recuperar esses dependentes.

Coronel Paulo Laureano Brasil, é um prazer tê-loaqui e, a partir deste momento, a Casa é sua.

Page 8: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 7

USUÁRIOS E DEPENDENTES – CAMINHOSPARA A RECUPERAÇÃO

CEL. PAULO LAUREANO BRASIL (DELEGADO DA FEBRACTE) –Des. Bruxel, obrigado pelo acolhimento, um bom-dia a todos os senho-res.

Gostaria, antes de mais nada, de expressar a minha alegria e a mi-nha honra de encontrar-me aqui, neste momento e local, diante deuma platéia bastante seleta. Isso me traz uma alegria e também umapreocupação muito grande, na medida em que os senhores ouviram omeu curriculum e na verdade não encontraram nada que dissesse quetenho qualquer tipo de especialização, profissionalização ou formaçãona área de dependência química. Isso até deveria, de uma certa forma,deixar-me preocupado por estar diante dos senhores tratando de umassunto do qual não tenho essa formação específica.

Mas, por outro lado, sinto-me bastante à vontade também, há 18anos lido com isso, e o que me traz uma certa tranqüilidade é quesempre lidei com essa questão com muita dedicação e especialmentecom muito amor. Sempre lidei com isso de uma maneira totalmentevoluntária, sendo, hoje em dia, motivo de muita realização em minhavida.

Estou aqui como Delegado da FEBRACTE, como já foi anunciado, Fe-deração Brasileira de Comunidades Terapêuticas, que tem a sua sedeem Campinas.

Fomos convidados para tratar desta Lei nº 11.343 que foi sanciona-da em agosto deste ano, que trata especificamente do problema dadrogadição. É uma Lei que merece ser analisada, ela tem aproximada-mente 20 e poucas folhas. Tocarei em meia dúzia de tópicos que sãomais interessantes, e, depois, trataremos de alguma coisa fora dela,mas que diz respeito diretamente à recuperação do dependente quími-co.

Essa Lei cria, nas suas Disposições Preliminares, o Sisnad, que é oSistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, o que, na verda-de, estava fazendo muita falta para nós. E diz nas suas DisposiçõesPreliminares: “Esta lei institui o Sistema Nacional de Políticas Públicassobre Drogas – Sisnad: prescreve medidas para prevenção do uso in-devido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de dro-gas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e aotráfico ilícito de drogas e define crimes”.

Os assuntos que me foram solicitados estão aqui apresentados:usuário e dependente químico, formas de recuperação e entidades de

Page 9: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

8 – 2º Ciclo de Estudos

recuperação. Vamos tratar sobre eles. Ficaremos a maior parte do nos-so tempo de apresentação neste primeiro item que trata do usuário edependentes químicos.

Essa Lei é bem clara nesse sentido, ela inicia definindo essa criaçãoe a finalidade do Sisnad, muito oportunamente. Diz, no Título I, art.1º, parágrafo único: “Para fins desta lei, consideram-se como drogasas substâncias ou os produtos capazes de causar dependência”.

Essa definição não é bem enquadrada para nós que lidamos direta-mente nessa área. Na verdade, para nós que lidamos diretamente coma droga – e isso acredito que interessa aos senhores –, consideramosdroga os produtos e substâncias capazes de modificar o comportamen-to e que possam até causar ou não dependência. Nós temos muitasdrogas que transformam o comportamento da pessoa, o humor, o pen-samento e podem ou não causar dependência. E aqui nessa Lei é defi-nida como substância que pode causar dependência. Ela já enquadrounaturalmente aí, por exemplo, o cigarro.

O cigarro, não temos dúvida, é uma droga, porém o uso do cigarronão modifica, no usuário, o seu comportamento, o seu humor e a suapostura; gera seus males orgânicos, físicos, mas não modifica, e nósconsideramos droga. Normalmente, não lidamos com o tabagismo devi-do a essa consideração. Mas essa Lei inclui o tabagismo também, por-que é uma substância capaz de causar dependência. Acredito que a de-pendência mais forte, a droga que causa dependência mais forte é o ci-garro, é a mais difícil de ser abandonada.

No Título II, falando do Sistema Nacional de Políticas Públicas, oSisnad, a Lei diz: “O Sisnad tem a finalidade de articular, integrar, or-ganizar e coordenar as atividades relacionadas com: I – a prevençãodo uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e depen-dentes de drogas; II – a repressão da produção não autorizada e dotráfico ilícito de drogas”.

Então, ela trata do usuário, do dependente químico e do fabricante.Essa Lei realmente enquadra todo esse flagelo mundial que hoje é adroga. Ela enquadra realmente todos aqueles que se envolvem nessaproblemática, mas não fala inicialmente de familiares. Mas, depois,quando desce a maiores detalhes, ela sempre chama os familiares.

Ela fala, no Capítulo I, ainda, da prevenção e depois entra nas ativi-dades de atenção e reinserção social de usuários ou dependentes quí-micos. Daí que a coisa começa a nos interessar um pouco mais.

Acredito que temos algumas considerações – talvez possam interes-sar aos senhores que lidam diretamente com essa problemática a todoo momento – que transmito apenas como vivência, como experiênciaque temos.

Page 10: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 9

Então, quando ela fala em atividades de atenção e reinserção socialde usuários e dependentes de drogas, gostaria, antes de mais nada, dechamar a atenção – acredito que é do conhecimento de todos –, deixarisso bem claro, de que usuário e dependente químico são duas situa-ções bem diferentes, são duas pessoas bem diferentes.

Usuário é aquele que usa droga eventualmente, festivamente,usa quando quer, pára quando quer, não cria qualquer dependên-cia.

O dependente químico é aquele que normalmente inicia o uso pormeio de festa, de brincadeira para descontrair, depois, a droga passaa ser, na vida dele, uma espécie de um alívio, ele começa a sentir ne-cessidade de usar a droga para realizar algumas atividades, principal-mente na área social, como namorar, dançar, etc. A coisa chega aoponto em que a droga entra na vida dele como uma necessidade, daí,ele não pode mais libertar-se dessa escravidão se não se tratar seria-mente.

Então, creio que essa diferença, para os senhores que lidam comesse problema, é muito importante: é o usuário de droga e o depen-dente químico. Acredito que eles tenham que ser tratados de uma ma-neira diferenciada, um é apenas usuário, não tem nenhum compromis-so, e o dependente químico é um doente.

A Organização Mundial de Saúde classifica a dependência químicacomo uma doença, inclusive no Código Internacional de Doenças, oCID 10, classifica essa doença em função de cada tipo de droga. Elacria uma classificação de F10 a F19, em que classifica a dependênciaquímica em função de cada tipo de droga.

Por exemplo, F10: transtornos mentais e comportamentais devidosao uso do álcool; transtornos mentais e comportamentais devidos aouso de opiácios, todas as drogas oriundas do ópio; transtornos mentaise comportamentais devidos ao uso de canabinóides, etc. Não vamostratar de todas elas, vai até o F19.

Então, é uma doença catalogada, o dependente químico é um doentee como tal deve ser tratado.

Isso com certeza nos causa uma certa dificuldade, a primeira grandedificuldade é na própria família. A família do dependente químico nor-malmente tem uma grande dificuldade em admitir dentro de casa umdoente; embora ele esteja roubando, esteja fazendo todo tipo de lou-cura fora e dentro de casa, é um doente.

A dependência química, graças a Deus, é uma doença que tem umaproporção muito pequena, não chegam a 10% as pessoas que têm essapredisposição para o uso da droga; quando eu falar em droga, inclui-seo álcool.

Page 11: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

10 – 2º Ciclo de Estudos

Então, são poucas as pessoas que têm essa predisposição, agora,essas pessoas que têm só vão descobrir isso quando começam a utili-zar a droga e chegam à conclusão de que têm de deixar de usar e nãoconseguem mais. É o único sintoma, o único exame feito no dependen-te químico é quando ele deseja abandonar o uso da droga, quando elesente que a droga lhe está causando prejuízos de toda a sorte e nãoconsegue deixá-la.

Eu dizia que a dependência química é uma doença muito traidoraexatamente por isso, porque não existe nenhum exame clínico que digase a pessoa tem ou não uma predisposição, ela só vai descobrir issoquando ela está escrava da sua dependência.

Então, é uma doença. Portanto, acredito que os senhores que lidam,especialmente os Juízes, com esse problema têm que se dar nitidamen-te conta disso.

Nós, que lidamos com eles há 18 anos, vemos verdadeiros absurdosa que leva a dependência química. Vou contar dois ou três fatos, comocuriosidade.

Estive há aproximadamente 10 anos numa festa de 25 anos de casa-mento, Bodas de Prata, em São Paulo, na Igreja da Sé, era uma famíliariquíssima. Na hora em que o padre foi dar a bênção naquelas aliançasbonitas de 25 anos, a senhora passou a caixinha para ele, que a abriu,e ela estava vazia.

Essa senhora virou para a platéia – foi uma coisa que me chamou aatenção –, para todas as pessoas que estavam na Igreja, e disse: “Ossenhores me desculpem, a festa vai continuar, vou receber a bênçãodos meus 25 anos de matrimônio, porém as minhas alianças foram fu-madas pelo Alexandre, meu filho”.

Quer dizer, o garoto, na véspera, transformou as alianças em algu-ma droga. Ela expôs isso abertamente; tal seria o limite do seu esforçopara lidar com esse problema, o seu cansaço, que ela não teve cons-trangimento de expor um fato tão doloroso para toda a Igreja, que es-tava lá para comemorar as suas Bodas de Prata.

Há alguns anos, recebemos aqui na nossa sede um rapaz que tinhaos braços completamente infeccionados, apodrecidos, desculpem o ter-mo. Conversando com ele, perguntei o que era, e ele respondeu: “Naverdade, tenho tido dificuldade de conseguir a seringa. Em momentosde ‘fissura’, que tenho de usar de qualquer maneira, tenho feito o se-guinte: pego essas canetas Bic, assopro, tiro a tinta, corto a ponta delaem forma de bisel, encho de droga e me injeto com a caneta Bic”.

Então, é um desespero. Nós tivemos há 04 anos um rapaz que veiodo Uruguai. Conversando comigo, ele disse: “Vim, os meus pais meobrigaram a vir, tenho uma dependência, é mortal isso para mim. Eles

Page 12: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 11

me internam nessas clínicas, onde amarram, prendem e não deixam agente se mexer. Fico preso, desesperado, eles me enchem de remédio,daí, faço o seguinte: pago os enfermeiros para trazerem para mim nósde arame farpado. Daí, engulo aquilo, e isso me causa uma hemorragiaincrível. Então, eles são obrigados a me tirar da clínica, a me levarpara o hospital para me tratar. Aproveito que estou no hospital e fujo”.

Então, vemos coisa desse tipo, quando se trata de dependente quí-mico. Isso mostra nitidamente que estamos diante de uma doença.

Continuando aqui nas atividades de atenção e de reinserção socialde usuários e dependentes. Diz o art. 20: “Constituem atividades deatenção ao usuário e dependente de drogas e respectivos familiares[...]”. Aqui, eles já começam a falar nos seus familiares. Isso para nósé importantíssimo, porque, ao tratar de um dependente químico semtratar do familiar, costumamos usar este termo bem gauchesco: “Esta-mos gastando chumbo em chimango”. Não há como tratar do depen-dente químico sem também trabalhar a família.

A PACTO, Pastoral de Auxílio Comunitário ao Toxicômano, foi criadahá 18 anos – tive a graça de ser um dos fundadores –, foi criada comoPastoral, a primeira Pastoral da Igreja Católica criada com essa desti-nação para apoiar os dependentes químicos e familiares. Hoje, tiramosesse nome Pastoral, porque é um tanto discriminativo, passamos achamar de Programa, Programa de Auxílio Comunitário ao Toxicômano.

Nós, da PACTO, temos a consciência de que precisamos trabalhar afamília. Então, temos hoje em torno de 60 internos na nossa comuni-dade terapêutica e obrigamos os familiares a comparecer às nossasreuniões, aos nossos trabalhos. Se o familiar se negar a isso, nós dis-pensamos o dependente químico do tratamento, não permanecemoscom ele. Obrigamos e tratamos com o mesmo compromisso, com amesma seriedade, o dependente químico e a família.

Essa Lei, graças a Deus, sempre fala na família. Aqui, no art. 21,diz: “Constituem atividades de reinserção social do usuário ou do de-pendente de drogas e respectivos familiares [...]”. Então, quando elafala em prevenção, quando ela fala em reinserção, quando ela fala emrecuperação, que eles chamam de atenção, eles sempre tratam dos fa-miliares. Isso é uma coisa muito importante que essa Lei colocou aqui.

No art. 22: “As atividades de atenção e as de reinserção social dousuário e do dependente de drogas e respectivos familiares devem ob-servar os seguintes princípios e diretrizes: [...]”. Então, eles dão aquialguns princípios e diretrizes que devem ser seguidos na atenção. Sãovários itens. Como exemplo, cito a adoção de estratégias diferenciadasde atenção e reinserção social do usuário e do dependente de drogas erespectivos familiares. Então, a adoção de estratégias diferenciadas,

Page 13: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

12 – 2º Ciclo de Estudos

ela chama a atenção que cada caso é um caso e cada caso tem que seranalisado diferentemente.

Outro item é a definição de projeto terapêutico individualizado. Tam-bém isso para nós é muito importante. Essa experiência nós vivemos,embora os drogaditos, os dependentes químicos pareçam que sejampessoas iguais, porque têm as mesmas doenças, etc., na verdade, cadaum deles tem uma problemática. Não nos vamos iludir. O dependentequímico, normalmente, antes de ser um dependente químico, ele é umdoente psíquico. A nossa experiência mostrou que 90% da dependênciaquímica não começa como dependência química. Ela começa como umdistúrbio qualquer psíquico, mental, espiritual, social, coisa assim, queleva o indivíduo à busca da droga.

A droga normalmente não é uma causa. A droga normalmente é umaconseqüência, tornando-se, depois, quando ele tem essa dependênciaquímica, um desastre na sua própria vida. Ele começa buscando comose fosse quase um remédio para os seus males, mas acaba tornando-seum escravo. A droga leva, com certeza – dizemos os três Cs –, para acadeia, ou leva para a clínica ou leva para o cemitério. Todos estão cien-tes disso, porque ela mata.

A doença química é uma doença primária, pois nasce com a pessoa,não é conseqüência de outra doença. É uma doença progressiva, quesó aumenta. Não sou eu que digo isso, é a Organização Mundial deSaúde que define isso. Sendo uma doença progressiva, cada vez preci-sa de mais droga. O elemento tem a sua tolerância. É uma doença in-curável, é fatal. Ela mata se não for tratada, especialmente quando adrogadição se dá por meio de drogas mais pesadas. O alcoolismo per-mite que a pessoa se aposente, vista o pijama e vá cuidar dos netos,enquanto que a droga mais pesada não dá esse espaço. A droga tam-bém contamina, se propaga, socialmente falando, isso é contaminávelsocialmente falando.

Com relação ainda aos princípios e diretrizes que essa Lei diz no tra-to do problema do usuário, do dependente químico e familiares: “aten-ção ao usuário ou dependente de drogas e aos respectivos familiares,sempre que possível, de forma multidisciplinar e por equipesmultiprofissionais”.

No art. 23, há coisas muito interessantes. Diz que as redes dos ser-viços de saúde da União – aqui, ela caracteriza bem isso –, dos Esta-dos, do Distrito Federal, dos Municípios devem ter necessariamente arede de saúde voltada para isso, até para permitir que os elementosque passam pela Justiça possam ser encaminhados ao tratamento.

Então, diz que as redes dos serviços das Unidades deverão desen-volver programas de atenção, mantendo programas específicos de

Page 14: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 13

atenção. Atenção aqui é de recuperação ao usuário e ao dependente dedrogas, respeitadas as diretrizes.

O art. 24 refere que: “A União, os Estados, o Distrito Federal e osMunicípios poderão conceder benefícios às instituições privadas quedesenvolverem programas de reinserção no mercado de trabalho, dousuário e do dependente de drogas encaminhados por órgão oficial”.Não sei se usaria esse termo “poderão” ou “deverão”. No artigo seguin-te, eu trocaria, com certeza, esse verbo “poderão” por “deverão”.

O art. 25 diz: “As instituições da sociedade civil, sem fins lucrati-vos,” – é exatamente o caso da PACTO, Pastoral de Auxílio Comunitárioao Toxicômano, a maioria das instituições privadas, hoje em dia, exis-tentes, aqui no Rio Grande do Sul, como comunidades terapêuticas, emtorno de 360, praticamente todas são sem fins lucrativos – “com atua-ção nas áreas da atenção à saúde e da assistência social, que atendamusuários ou dependentes de drogas, poderão receber recursos doFunad, condicionados à sua disponibilidade orçamentária e financeira”.Funad quer dizer Fundo Nacional Antidrogas.

Diria diferente, sem criticar a Lei, muito menos modificá-la, mas di-ria que as instituições, sem fins lucrativos, que se destinam à recupe-ração de dependentes químicos, deveriam receber recursos do Funad,desde que solicitassem esses recursos e fossem estabelecidas legal-mente. Dessas 300 e tantas comunidades terapêuticas que temos noRio Grande do Sul – no Brasil, devemos ter umas 4.500, 5.000 –, mui-to poucas conseguem viver de uma maneira legal, ajustadas às leis.Elas precisam dar um jeito de qualquer maneira.

Pouquíssimas conseguem viver legalmente, têm que fazer algumacoisa para poder sobreviver, infelizmente. Elas são ilegais, mas nãosão imorais, na maioria das vezes. Há aquelas que são ilegais e imo-rais, que agem diferentemente da lei e aportam medidas imorais, quesão totalmente desrespeitadas. Há aquelas que procuram ser legais eagir dentro das normas legais de ética, moral, etc.

Acredito que o Funad – ele recebe todos os recursos desses trafican-tes, da venda de móveis, imóveis de traficantes, todos esses recursossão encaminhados para o Fundo Nacional Antidrogas – deveria distri-buir esses recursos para essas instituições, principalmente para aque-las que não têm fins lucrativos para poderem sobreviver.

O Desembargador estava perguntando como vivemos, e digo que “oHomem lá em cima” cuida de nós. Estamos permanentemente no ver-melho há 18 anos, mas sempre conseguimos dar conta do nosso tra-balho: pedimos aqui, pedimos ali, de chapéu na mão, fazemos rifa,coisa do tipo de igreja, fazemos galeto, almoço, jantar, fazemoscarnezinho, pedindo sempre socorro. Vivemos assim. A contribuição

Page 15: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

14 – 2º Ciclo de Estudos

que os familiares dão para essas comunidades terapêuticas, de ummodo geral – nós chamamos de contribuição, que não é nem paga-mento –, apenas cobre a despesa que o interno realiza. Nós, porexemplo, pedimos quase R$ 500,00 por mês. É o que as clínicas nor-malmente pedem por dia. Esses R$ 500,00 são para pagar o (...), omaterial necessário e a despesa do homem que fica interno durante09 meses. No nosso caso, são 09 meses.

Então, esse é o apoio que as comunidades terapêuticas e outras ins-tituições que são sem fins lucrativos têm; normalmente, essas institui-ções, sem fins lucrativos, que funcionam na recuperação de dependen-te químico, são comunidades terapêuticas.

Finalizando os comentários, essa Lei entra na parte dos crimes e daspenas. Uma das características marcantes dessa Lei é a diferença quefaz entre o usuário e o dependente químico do traficante e do produtor,o traficante do fabricante. Ela não considera crime o uso. Ela diz: “Quemadquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo,para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo comdeterminação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços àcomunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa oucurso educativo”.

É neste momento que sinto que a Justiça tem um poder muito gran-de nesta área, pode colaborar demais nesta área, porque ela se vê dian-te do dependente químico, ou do usuário, ou do traficante. Aí, o nossoJuiz tem que estar muito bem assessorado. Acredito que um Juiz, umadvogado não tenham qualquer formação nessa área. Penso que tenhaque haver junto a ele uma assessoria profissional forense, o Psiquiatra,o Psicólogo, que encaminhe o homem já com uma definição: é umusuário, é um dependente químico, é um traficante. Nem sempre o Juiztem conhecimento – até penso que não precisa ter o conhecimento tãoaprofundado – para pegar um indivíduo, um usuário de droga e saberse ele é um usuário ou ele é um dependente químico.

Penso que isso é importante, porque, no momento em que o Juizvai julgar um homem desses, vai dar uma destinação para um ho-mem desses, se ele é apenas um usuário de droga, ele tem que sertratado de uma forma; se ele é um dependente químico, ele tem queser tratado de uma forma diferente. Ele deverá chegar às mãos deum Juiz com uma definição da sua situação. Penso que isso é muitoimportante.

O § 1º do art. 28 diz que: “Às mesmas medidas submete-se quem,para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadasà preparação de pequena quantidade”. Há uma parte muito importante

Page 16: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 15

da Lei, sobre o que acabei de comentar, no § 2º do art. 28: “Para de-terminar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o Juiz atenderá ànatureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condi-ções em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais,bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. O Juiz tem quereceber muita informação nessa área para poder tratar desse assunto,para poder julgar isso.

Essa Lei foi muito discutida pela sociedade, porque normalmenteas pessoas que têm algum dependente químico na sua família – pa-rece mentira isso, pais, parentes de dependentes químicos – não ad-mitem, não aceitam que o dependente químico não seja um crimino-so, seja um doente. Eles até se revoltaram com essa Lei. Fomos pro-curados, e disseram: “Como essa lei não considera crime o uso dadroga? Tem que ser criminoso, tem que ir para a cadeia”. Os pró-prios familiares cobram isso. Essa Lei foi muito criticada por causadisso.

Particularmente, penso que ela é muito sábia, quando separou niti-damente o usuário do dependente químico e o traficante. O traficante,sim. É crime tanto a produção, a fabricação do produto químico, comoo tráfico. Esse é crime, e existe uma penalização bem definida, que alei dá para esses casos.

Uma última observação sobre a Lei. O art. 28, § 7º, diz: “O Juiz de-terminará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gra-tuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial,para tratamento especializado”. Aí, o Juiz tem que saber, nesse mo-mento, se ele está encaminhando ao Poder Público um dependente quí-mico ou um usuário, porque o usuário, com certeza, será encaminhadopara um tipo de tratamento, o dependente químico, para outro tipo detratamento.

Chamou-me a atenção, lendo um jornal, a manchete: “A Prefeiturade São Leopoldo acumula dívida de R$ 1.000,00-dia, desde 2002, pornão oferecer tratamento adequado a 16 meninos de rua”. Omissão adrogaditos dá multa diária, imposta pela Justiça. Então, a Justiça temtoda essa força a que me refiro junto ao Poder Público: exigir que sejagratuitamente.

Aqui fica a pergunta: Quem paga o custo quando o Juiz encaminhapara uma comunidade terapêutica que vive sempre no vermelho? Ébastante complicado. A comunidade terapêutica até poderá ou não aco-lher. Ela terá condições ou não de acolher o elemento encaminhado.Para a comunidade terapêutica, só vai o dependente químico, não vai ousuário. O usuário vai para programas, para várias outras formas detratamento.

Page 17: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

16 – 2º Ciclo de Estudos

Dando continuação à nossa apresentação, foi-nos solicitado falar so-bre formas de recuperação. Existem várias formas para tratar do pro-blema da droga. Vamos da mais simples para a mais complexa.

A primeira é a própria família, quando a família se prepara paratratar do assunto. Infelizmente, ainda somos surpreendidos pelo pro-blema da droga no nosso meio, ainda é um problema difícil de tratar.Costumamos dizer que a mãe, às vezes, não sabe se dá um beijo ouum tapa no filho que entrou drogado dentro de casa, não sabe se dáuma surra ou se dá um tiro; a surra, às vezes, é pouco, um tiro é de-mais. É a coisa mais comum. A família pode-se preparar. Temos umametodologia de 30 anos, veio dos Estados Unidos, e hoje está difundi-da pelo mundo todo que se chama amor exigente, a qual prepara a fa-mília para tratar desses casos, não só do problema da drogadiçãodentro de casa, mas problemas de rebeldia, dificuldade na educaçãodos filhos.

Aqui, em Porto Alegre, existem no mínimo quinze ou vinte grupos –essas informações podem ser obtidas todas conosco depois – de amorexigente, inclusive os Juízes costumam, especialmente no interior, en-caminhar a família. O Juiz ouve o usuário, o dependente químico, emanda chamar a família. O Juiz chega à conclusão de que a famíliaestá precisando muito mais de um programa de tratamento, de apoio,do que o próprio usuário. Então, ele encaminha a família a freqüentarum grupo, por 02, 03, 06 meses, de amor exigente, porque sente queela está precisando mais. Isso é a coisa mais comum, ou porque a fa-mília é doente e gerou uma doença no dependente químico, colaborou,ou o contrário, o dependente químico tornou a família co-dependente,quer dizer, deixou a família adoecida. É muito comum que a família es-teja adoecida, precise muito mais de tratamento do que o próprio de-pendente químico. Então, esse amor exigente é muito comum no inte-rior. O Juiz, às vezes, libera o usuário e exige que a família freqüentegrupos de amor exigente.

De outra forma, existem grupos anônimos: alcoólicos anônimos, nar-cóticos anônimos. Vi, esses dias, uma relação de 137 tipos de gruposanônimos de dependentes nos Estados Unidos. Aqui, em Porto Alegre,temos uns treze ou quatorze, são os alcoólicos anônimos, narcóticosanônimos, os dependentes de comida, de sexo, de cigarro, de neuro-ses, mulheres e homens que amam demais; grupos de auto-ajuda ouinterajuda, muitas vezes, atendem às necessidades. O Juiz, muitas ve-zes, encaminha e obriga a pessoa a freqüentar por um determinado pe-ríodo, mas aí é um tratamento em que o indivíduo tem que estar muitodisposto a se tratar, é o tipo de tratamento que só depende dele, de-pende muito da vontade e da disposição do indivíduo.

Page 18: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 17

Uma outra forma é o tratamento ambulatorial. Normalmente, existeem hospitais, em clínicas. O indivíduo vai de manhã para lá ou à tarde,faz o tratamento, não fica internado, mas tem um acompanhamento,assiste a palestras, realiza trabalhos, artesanato, tem acompanhamen-to psíquico.

O Estado tem estes CAPS, ou seja, Centros de Apoio Psicossociais,especificamente antidrogas. Temos vários Centros no Rio Grande doSul, em média 60 a 70 Centros de Apoio Psicossociais antidroga. Exis-tem muitas clínicas que fazem esse tratamento ambulatorial. Para odependente químico, isso é muito difícil. Na verdade, o dependentequímico tem que partir para a internação clínica hospitalar ou em co-munidade terapêutica. O dependente químico, na verdade, precisa deum tratamento, nós dizemos que ele precisa de um programa. O trata-mento em clínica hospitalar normalmente é curto, mais ou menos 20 a30 dias, no máximo 02 meses. A internação em comunidade terapêuti-ca normalmente é de 09 meses. As internações européias do PrimeiroMundo normalmente são de 01, 02, 03 anos. Conheço, na Itália, umacomunidade terapêutica de 03 anos de internação. Por aí, podemosavaliar o problema dessa doença que exige uma internação em quepraticamente a pessoa fica isolada completamente durante 03 anos.

As nossas aqui, no Brasil – já disse, são em número de 4.500 a5.000 –, normalmente são de 09 meses. Aqui, no Rio Grande do Sul,são todas praticamente de 09 meses.

Gostaria de apresentar aos senhores a proposta do nosso programano trato da dependência química em comunidades terapêuticas. Existeuma diferença profunda entre o programa realizado em comunidade te-rapêutica e o tratamento em internação clínica ou hospitalar. Na clíni-ca, no hospital, o tratamento é mais físico, é mais voltado para a partepsíquica. É dado um acompanhamento psíquico muito cerrado. É dadomuito remédio para deixar de usar aquela droga, até para substituí-la,como se usa muito nos Estados Unidos. Lá, usa-se a metadona para osusuários de ópio. Esta metadona é uma droga que não tem efeitos ne-gativos e substitui perfeitamente o ópio. Uma das drogas mais perigo-sas e violentas que causam a maior dependência hoje em dia ainda sãoas drogas opiácias, que são da linha do ópio. Provavelmente, na próxi-ma palestra, vão tocar nisso com mais detalhamento.

A clínica trata desse aspecto, a comunidade terapêutica não quer sa-ber de nada disso aí. A comunidade terapêutica tem 09 meses, porqueesses 09 meses sugerem uma geração. A proposta da comunidade te-rapêutica é trabalhar o homem interiormente, é transformar o homem.A proposta é transformar radicalmente o homem, mudar completamen-te os seus princípios, os seus critérios, de maneira que ele chegue à

Page 19: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

18 – 2º Ciclo de Estudos

conclusão de que a droga não tem espaço na sua vida, no seu corpo.Essa é a proposta da comunidade terapêutica.

Gostaria, até em nível de curiosidade, de apresentar aos senhorescomo funciona um programa de comunidade terapêutica e repito: ascomunidades terapêuticas normalmente – acredito que 95% delas hojeem dia – são sem fins lucrativos. Normalmente, são dependentes quí-micos que fizeram o programa, que estão bem e que decidiram traba-lhar nesta área voluntariamente. Infelizmente, muitas não têm nenhu-ma estrutura, são bastante deficitárias, mas temos muitas que são bemestabelecidas. Modéstia à parte, a nossa comunidade terapêutica, anossa instituição, PACTO, foi a primeira no Brasil criada como Pastoral.Tivemos sempre a luz de procurar tocar da melhor maneira possível,está muito bem organizada.

Em 2001, recebemos do nosso Presidente Fernando Henrique Cardosoum prêmio como a melhor comunidade terapêutica do Brasil. Tivemos essaalegria. Trabalhamos com muita responsabilidade, temos uma diretoriagrande, muito bem organizada, todos voluntários, é claro. Levamos muitoa sério. Infelizmente, isso não acontece com todas. Estou deixando aquiuma relação de cento e tantas instituições de comunidades terapêuticaspara onde poderão ser encaminhados aqueles que precisam de apoio.Deixo aqui no Tribunal essa relação, que poderá ser aumentada depois,se me procurarem.

Vou apresentar, mais em nível de curiosidade, como funciona a co-munidade terapêutica.

O programa de comunidade terapêutica é a coisa mais elementarpossível. Fundamentamos no estabelecimento de um tripé, cujas trêspernas chamamos: trabalho, disciplina e oração. Tanto o trabalhoquanto a disciplina é dobrada, a perna seria dupla. É no sentido de queas comunidades terapêuticas normalmente são rurais e funcionamcomo se fossem uma fazenda. Existe um trabalho muito grande, traba-lho de fazenda, cuidar de aves, de horta, de gado, manutenção, cozi-nha. Elas não têm empregada, funcionam com os seus próprios depen-dentes químicos. O trabalho começa às 6h da manhã e vai até às 22h.É um trabalho intenso e, por vários motivos, é terapêutico.

Há também o trabalho na sua correção, na sua transformação, noseu conhecimento, é um trabalho interior. Esse é o trabalho mais difí-cil. Existe uma disciplina muito rígida em comunidade terapêutica,muito pior que disciplina de quartel, e eu conheço a de quartel, por-que, por 40 anos, estive dentro dele. É necessária essa disciplina, por-que, afinal de contas, nós, por exemplo, com sessenta dependentesquímicos reunidos, se não tivermos um disciplina rígida, vira uma casade louco. A disciplina principal é aquela que cada um tem que desen-

Page 20: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 19

volver em si mesmo, disciplina da sua vontade, de seus costumes, doseu comportamento. É uma disciplina interior.

E a oração é aquela ligação que cada um vai buscar por meio do seupoder superior. Nós somos da Pastoral da Igreja Católica, mas não te-mos qualquer discriminação em relação à religião. Nós recebemos, gra-duamos os 09 meses qualquer tipo de religião. Não temos qualquerpreconceito em relação a isso. Agora, em princípio, levamos a que cadaum busque o seu Deus. Cada um tem o seu Deus, conforme ele conce-be. Ele vai buscar o seu Deus, vai conhecer esse Deus, vai confiar nes-se Deus, vai rezar, louvar, agradecer e seguir esse Deus.

Se essas três pernas estiverem perfeitamente equilibradas, funcio-nando, estiverem rígidas, acontece sobre esse tripé o desenvolvimentoda espiritualidade, e aqui desenvolvimento da espiritualidade não temnada a ver com religião. Não é apenas a oração, o louvor, o templo, osritos religiosos, para nós, o desenvolvimento da espiritualidade é umtrabalho muito maior do que isso.

Em cima do desenvolvimento da espiritualidade, quando o homemconsegue desenvolver a sua espiritualidade, consegue trabalhar a suaespiritualidade – e isso não é uma coisa que ele faz de hoje para ama-nhã –, ele consegue ter a sua sobriedade, e a família consegue o amorexigente, viver o amor exigente. E é bom lembrar que sobriedade nãoé não ser dependente químico ou não usar a droga, isso aí apenas abs-teria; sobriedade é muito mais do que não usar, que fechar a garrafapara o alcoólico ou não usar a droga para o dependente químico. Sobrie-dade é o sujeito ter a sua responsabilidade, o seu compromisso com avida, ter a sua moral trabalhada, os seus princípios éticos, é muitomais que simplesmente não usar. É muito comum ouvir: “O Fulano estásóbrio. Ele bebia e parou de beber”. “O meu filho está sóbrio, usavadroga e parou de usar”. De maneira nenhuma isso é verdade. Ser só-brio é muito mais do que isso.

Dentro da terapêutica para desenvolver a espiritualidade, trabalha-mos: correção em defeitos de caráter, de atitudes, da capacidade decada um ver, julgar e agir, não ver, julgar e agir o outro, mas as coi-sas, os comportamentos. Conduzimo-los a realizar mudanças de critéri-os na vida, mudanças de valores, valores materiais, morais, intelectu-ais, éticos, espirituais, por meio de trabalho, de muita reunião. A vi-vência em comunidade é o que mais contribui para a recuperação de-les. Eles dormem juntos, trabalham juntos, fazem refeições juntos,praticam esportes juntos durante 09 meses. O aspecto maisterapêutico é essa vivência em comunidade.

A busca do sentido da vida. A comunidade terapêutica não tem paci-entes, tem internos. Ela não realiza nada em ninguém. O programa de

Page 21: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

20 – 2º Ciclo de Estudos

cada um, o tratamento de cada um, é ele que se impõe. O pessoal quetrabalha em comunidade terapêutica apenas auxilia, apóia, ajuda. Ocultivo dos frutos do espírito para aqueles que acreditam em Deus – elá se procura fazer com que eles acreditem em Deus, não interessaqual Deus –, para aqueles que acreditam que foram criados por Deus,especialmente à imagem e semelhança de Deus, esses, com certeza,vêm acreditar que há coisas divinas na sua criação, dentro de si, que éo que chamamos de frutos do espírito. Ele tem lá dentro de si, em for-ma de semente, forma de gérmen, talvez nem se dê conta disso, mastodos aqueles que foram criados por Deus à imagem e semelhança,que acreditem nisso, têm, lá no seu interior, sementes de caridade, debondade, de alegria, de fidelidade, de paz, de brandura, de afabilidade,de temperança. Isso é bíblico.

Imagina pegar um guri do meio da rua e levar para dentro da comu-nidade terapêutica e fazer com que ele se dê conta de que ele tem es-sas coisas no seu interior e de que ele tem que trabalhar isso. Tem quebuscar uma resposta da origem dele, da finalidade de cada um de nós,homens, procurar conhecer esse poder superior, seja ele quem for,amar, louvar e seguir este poder, principalmente.

Apresentei o resumo do que seria o desenvolvimento daespiritualidade. Agora, fica aquela pergunta: “Mas como vamos fazercom que cada homem consiga trabalhar tudo isso para realizar o seuprograma? É muita coisa. Analfabetos, guris de rua, gente que não tema menor estrutura, estrutura de formação, inclusive física-mental, usuá-rios de drogas que estão completamente prejudicados mentalmente”. Anossa base de trabalho são os doze passos de alcoólicos anônimos.Acredito que poucos ouviram falar nisso. Isso é a estrutura deles. Fa-zemos com que eles estudem e procurem viver nesses 09 meses, te-mos reuniões diárias sobre os doze passos. Esses doze passos não têmnada a ver com religião, mas definem uma postura perante a vida, umdesenvolvimento incrível da espiritualidade de qualquer um. Há muitosanos trabalho na Igreja, procurei viver a minha religião com seriedade.Fiz cursos, encontros e nunca vi nada que fosse tão espiritualizante,que transformasse tanto o homem, que encaminhasse tanto o homem,que desse uma direção mais objetiva, mais direta, mais clara do que osdoze passos dos alcoólicos anônimos. Foram criados não faz muitotempo, há mais ou menos 70 e poucos anos. Esse é o nosso princípiode trabalho, são os doze passos de alcoólicos anônimos.

Eu gostaria de encerrar essa conversa lembrando João Paulo II. Em1998, ele, muito preocupado também com o problema da droga nomundo todo, realizou, no Vaticano, uma espécie de um ciclo de estu-dos, mas foi bem mais internacional. Reuniu duas ou três mil pessoas

Page 22: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 21

voltadas para esse problema da drogadição, da recuperação, e fez umcongresso de 08 ou 09 dias. Tenho muito respeito por ele, acreditomuito nas palavras dele, sempre achei que ele foi um homem muitoiluminado. Ele abriu esse congresso com as seguintes palavras: “Nãose combatem, queridos irmãos, os fenômenos da droga e do alcoolis-mo, nem se pode conduzir uma eficaz ação para recuperação de suasvítimas se não se recuperarem preventivamente os valores humanos doamor e da vida, os únicos capazes, sobretudo se iluminados pela fé re-ligiosa, de dar significado pleno a nossa existência”.

Nós, que trabalhamos em comunidade terapêutica há 18 anos, temoscerteza de que isso é verdade, uma experiência muito grande nos 18anos dedicados unicamente a isso. Saí do quartel, passei para a reser-va e praticamente, no outro dia, participei da fundação dessa comuni-dade terapêutica, a qual, como disse no início, me dedico com amormuito grande. O melhor do meu tempo eu dedico a ela, e isso me deuum certo conhecimento. Se não transformarmos o homem interiormen-te, ele não consegue sair dessa dependência química. Eles próprios sãoos primeiros a dizer: “Eu fiz um programa, estava bem e recaí, porqueesqueci do tripé: trabalho, disciplina e oração. Esqueci do desenvolvi-mento da minha espiritualidade”. Todos eles que recaem dizem isso.

As clínicas e os hospitais que realizam esses programas de recu-peração dão índice de 07 a 09% de recuperação. As comunidades te-rapêuticas dão até 60%. As nossas aqui do Rio Grande do Sul, doBrasil, não passam de 35%. Na nossa comunidade de Viamão, essanossa da PACTO, tivemos um índice maior, ou seja, 35%. Não baixade 30%, mas não chega aos 40%, que é um índice excelente de re-cuperação.

Deixei uma relação das entidades que poderão acolher os dependen-tes químicos, e lembro bem que os dependentes químicos deverão serencaminhados para tratamento, os usuários não precisam, esses po-dem ser tratados por meio de informação, de cursos, etc.

Quero agradecer a atenção de todos e espero ter dado ao menosuma mínima resposta ao convite que me foi feito. Repito a satisfaçãoque tive de ter sido convidado para participar deste segundo ciclo deestudos no nosso Tribunal do Estado.

Estou à disposição dos senhores para alguma pergunta.Muito obrigado.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Coronel, faço, para começar, umaindagação. Em uma passagem da sua exposição, o senhor falou de to-lerância, da necessidade de aumento de doses, e quando isso significapassagem para uma outra droga chamada pesada?

Page 23: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

22 – 2º Ciclo de Estudos

CEL. PAULO LAUREANO BRASIL (DELEGADO DA FEBRACTE) – Atolerância leva o indivíduo a buscar. Na prática, é o seguinte: na pri-meira dose da cocaína, o sujeito tem uma reação, uma reação ótima.Droga é uma coisa maravilhosa, tem que ser, senão ninguém se vicia-ria. Nunca vi ninguém viciado em pó de giz, em querosene, em cocô deurubu. Agora, droga é bom. Aquele pai que diz para o filho: “Meu filho,não vai usar droga, porque droga é ruim”. Não é. Ele está mentindo,ele está começando errado, droga é ótimo. Tendo em vista a tolerânciaorgânica que normalmente temos, especialmente em relação a essetipo de produto, aquele mesmo efeito que o homem teve com a primei-ra dose de cocaína – falo em cocaína, porque lidamos muito com ela –,na segunda dose, ele não sente mais o mesmo efeito. Então, ele éobrigado a aumentar, vai aumentando, porque o organismo vai-seacostumando.

A maconha é uma droga em que o sujeito se vai aprofundando, che-gando ao ponto de não encontrar mais na maconha aquilo que ele gosta-ria de encontrar. Aí, ele pula para uma droga mais pesada. Normalmente,o elemento que usa maconha vai para a cocaína, agora está indo parao crack, que é uma droga mais barata, de efeito mais rápido, mas mui-to mais destrutiva. Do crack vai para o LSD. A tendência é buscar umadroga cada vez mais forte para poder ter aquela mesma resposta, masnunca mais tem. É aí que a droga se torna um martírio para o usuário.Aquele alívio, aquela coisa gostosa, aquela alegria do início acaba.

Quem viu aquela novela “O Clone”? Aquela mocinha, a Mel, ganhoutambém o diploma do Fernando Henrique Cardoso por ter feito aquelepapel. Ela mostrou levemente o desespero da pessoa que é dependentequímico, quando ficava trancada dentro de um quarto, não podendousar droga, querendo-se matar, quebrando tudo, desesperada. Issoacontece normalmente, o sujeito vai buscando drogas cada vez maisfortes. Ele vai em busca daquela sensação inicial que ele nunca maisvai ter.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Outra questão que também entendoimportante. E insisto apenas para que fique bem registrada. Já foi res-pondida. A internação é voluntária? Ele, paciente, permanece lá volun-tariamente, fica lá enquanto ele quiser?

CEL. PAULO LAUREANO BRASIL (DELEGADO DA FEBRACTE) –Nós costumamos dizer que é de livre espontânea forçada vontade. Eletem que ir realmente interno, tanto é que as comunidades terapêuticassão abertas. Em comunidade terapêutica, uma coisa que não existe sãochaves. Tudo é aberto. Os armários não têm portas, inclusive o portão

Page 24: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 23

de entrada. Ele entra de livre espontânea vontade. É forçado porquenormalmente a família força, a escola, a sociedade, o padre, o pastorencaminham. Ele vai no empurrão, mas ele tem que ter a vontade dese recuperar. Não se usa camisa de força. A primeira pergunta que fa-zemos àqueles que nos procuram: “Você quer-se recuperar?” Se não ti-ver vontade, ele não consegue.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Da minha parte, eu encerro as per-guntas, principalmente para permitir a intervenção dos demais. Dra.Vera.

DRA. VERA – Gostaria de saber o custo financeiro mensal por interno.

CEL. PAULO LAUREANO BRASIL (DELEGADO DA FEBRACTE) –Na nossa comunidade, a PACTO, hoje, eu sou da parte espiritual, nãolido muito com isso, mas acredito que seja da ordem de R$ 500,00 pormês.

Nós temos um serviço de assistência social, que acolhe as famílias,normalmente somos procurados por famílias bastante pobres, bastantesimples, e a assistente social faz uma análise da situação. Acredito quedos 60, hoje, talvez 10% estejam pagando os R$ 500,00, os demaisestão pagando bem menos em função dessa análise que a assistênciasocial faz, e muitos não pagam nada.

Acolhemos muitos carentes totais que não têm condições nenhumae até ajudamos materialmente a família desse dependente químico.

PLATÉIA – O senhor comentou, no caso dos dependentes químicos,que os familiares não aceitam auxiliá-los, dar um apoio moral nessacaminhada, mas os familiares são a mola mestra para tudo, acredito,até, que ele chegou à droga por falta de amor.

Vemos, nas nossas audiências, que os familiares estão tão cansadosque já não têm mais amor, como o senhor mesmo mencionou, eles sãomais vítimas do que o próprio dependente. Então, nós não podemos vi-rar as costas.

O senhor disse uma coisa que me assusta muito, dou-me conta deque não existem políticas públicas para tratar desse tipo de coisa, epergunto como o senhor poderia ajudar-nos, até em busca de medidaslegislativas, onde poderíamos pressionar a sociedade para que se con-siga dar uma solução.

O Poder Judiciário tem uma força, e nós utilizamos, mas, muitas ve-zes, nos sentimos impotentes, porque não existem mais caminhos parabuscar.

Page 25: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

24 – 2º Ciclo de Estudos

CEL. PAULO LAUREANO BRASIL (DELEGADO DA FEBRACTE) –Essa é uma situação muito angustiante, porque, na verdade, o PoderPúblico não tem condições de realizar esse trabalho de comunidade te-rapêutica, ele não pode nomear elementos para fazer isso, só faz issoquem tem uma inspiração muito especial. Esse tipo de trabalho é muitovoltado para o voluntariado. Então, não acredito que o Poder Públicofaça funcionar uma comunidade terapêutica, jamais.

Agora, não faz, mas ele teria que dar todo o apoio àquelas comuni-dades terapêuticas para elas se estabelecerem.

Essa Lei, de uma certa forma, cria compromisso do Poder Público. Asredes de serviços de saúde da União, do Estado, do Distrito Federal edos Municípios desenvolverão programas de atenção. Elas estão exigin-do que os hospitais, as clínicas tenham os seus programas de atençãopara onde poderão ser encaminhados gratuitamente aqueles elementos.

E, ainda, que essas entidades, sem fins lucrativos, que normalmenteestão sempre trabalhando no vermelho, como nós, recebam apoio.

Realmente, a senhora tem toda a razão. Esse é um problema muitocomplicado. Agora, tenho esperança de que o Poder Público comece ase dar conta da importância ... Uma coisa que me está deixando muitofeliz é ver como o Poder Judiciário está-se integrando nessa problemá-tica, como está levando isso cada vez mais a sério. Temos sido procu-rados pelo Poder Judiciário, estou sensibilizado como há elementos queestão querendo ajudar, pois já se deram conta de que a situação émuito grave, e que o apoio é muito pequeno, mas é uma coisa que va-mos ter de conquistar aos poucos.

A dificuldade que a senhora colocou é real, é verdadeira, preocupa-nos também, mas, na verdade, as instituições de todos os níveis, fede-ral, estadual, municipal, etc., têm obrigação de ter instituições paraacolherem gratuitamente aqueles que são encaminhados, ou para pro-gramas de internação, ou simplesmente para formação, instrução ouorientação.

Não lhe posso dar nenhuma palavra de conforto, porque também te-nho esta dor no meu coração de sentir que somos muito pouco apoia-dos.

A PACTO tem 18 anos, nós já atendemos cerca de 1.800 dependen-tes químicos e nunca recebemos nenhum tostão do Poder Público.

O Poder Judiciário nos ajudou em alguma coisa, encaminhando gen-te, recebemos muitos do Poder Judiciário para fazer trabalhos comuni-tários que vão cumprir suas penas lá dentro da comunidade terapêuti-ca. Nós temos três que foram indicados pelo Poder Judiciário para cum-prir pena comunitária lá dentro da comunidade terapêutica, foram paralá e não saíram mais, ficaram trabalhando lá.

Page 26: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 25

Eles disseram: “A minha pena terminou, eu não tenho mais com-promisso nenhum com a Justiça, mas quero continuar trabalhandoaqui”.

Então, nós temos, aqui, na nossa sede, que fica bem perto, na RuaWashington Luís, várias pessoas que foram encaminhadas pelo PoderJudiciário. O Poder Judiciário, aqui do Estado, inclusive, já nos apoioucom recursos, é a única instituição nacional que nos tem apoiado, foraisso, ninguém.

Nós temos uma casa que é da Secretaria de Saúde, aqui na Wa-shington Luís, mas nós pagamos aluguel para a Secretaria de Saúde,não em forma de dinheiro, mas em forma de 12 vagas, pois a Secreta-ria encaminha gratuitamente para nós, e nós temos que acolher esses12 internos sem custo nenhum. Quer dizer, pagamos R$ 6.000,00 pelacasa que ocupamos.

PLATÉIA – Eu gostaria de acrescentar algo. Eu participei do progra-ma e o freqüentei durante um bom tempo, um ano e pouco, e, diantedaquilo que conheci e daquilo que ouvi hoje, gostaria de colocar – achoque até em resposta à preocupação do colega – que o melhor que setem com esta Lei – não a conheço, estou conhecendo agora – é justa-mente esse poder que ela dá ao Juiz de buscar a família, porque, real-mente, sem a família, não há possibilidade de recuperação.

Então, penso que temos que avaliar isso melhor e dar mais ênfase aesta questão. Entendo que há um avanço bem grande, bem significati-vo com esse poder de a Magistratura poder envolver a família. Pensoaté que, se a família não comparecer, deveria haver uma punição aofamiliar que não comparece.

CEL. PAULO LAUREANO BRASIL (DELEGADO DA FEBRACTE) –Nós sabemos que a Associação Porto-Alegrense de Amor Exigente, queé uma filial da Federação Brasileira de Amor Exigente, tem aqui, emPorto Alegre, uma sede, e essas pessoas especializadas em Amor Exi-gente vêm-se reunir, acredito que aqui neste mesmo prédio, em dia ehora marcados, com todas as famílias que os Juízes encaminham.

Não sei exatamente o dia, mas eles estão dispostos a vir aqui. É sóo Juiz obrigar as famílias a se reunirem, num dia, local e hora certa,que esse pessoal do Amor Exigente vem e apresenta a eles um trata-mento. Está acontecendo.

DR. LUCIANO LOSEKANN – Eu sou Juiz de Direito aqui em PortoAlegre e gostaria de dizer uma coisa, pelo menos é uma sensação quetenho: acho que a Lei será ineficaz, mais uma vez.

Page 27: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

26 – 2º Ciclo de Estudos

Essas medidas aqui criadas pela Lei, quando prevêem participaçãoou obrigações do Poder Público, reproduzem outras legislações já exis-tentes que impõem deveres ao Poder Público, e, infelizmente, não sãocumpridas.

Penso que a Lei, na verdade, ela judicializa um problema de saúdepública, que é um problema especialmente do usuário, e traz medidas,a meu ver, ineficazes, na medida em que impõe ao Poder Judiciário otrato desse usuário sem que haja a correspondente estrutura por parteda sociedade, especialmente do Poder Público, no tratamento desse su-jeito.

Lembro, aqui, na qualidade de Juiz plantonista em Porto Alegre, dealgumas famílias que percorriam os postos de saúde pública do Municí-pio, durante uma semana, tentando atendimento e não conseguiam, edaí acabavam onde? No plantão judiciário, onde se obrigava a interna-ção.

Então, isso vai continuar existindo. Penso que não é a solução parao problema de saúde pública a judicialização. A sociedade vai cobrar dequem? Do Poder Judiciário o não-funcionamento da Lei, ou seja, nósvamos ser responsabilizados pela ineficácia das medidas previstas nes-ta Lei.

Agora, uma pergunta: Essas medidas do art. 28, que são medidasdespenalizadoras em relação ao usuário, não abrem uma porta muitogrande para o aumento do tráfico de drogas, na medida em que benefi-ciam grandemente o usuário?

Por exemplo: medidas de advertência sobre os efeitos das drogas,prestação de serviços à comunidade, medida educativa de compareci-mento a programa ou curso educativo. Na maior parte dos casos, aocontrário do que o senhor postula, e acho que é correto, o Juiz não temmuita noção de quando o sujeito é efetivamente um usuário ou um tra-ficante, especialmente quando o usuário é tratado hoje pela Lei nº9.099, vindo só um termo circunstanciado com meia dúzia de informa-ções, não nos dando a perfeita noção do que ocorreu naquele momen-to.

CEL. PAULO LAUREANO BRASIL (DELEGADO DA FEBRACTE) –Essa preocupação, acho que até externei, acredito que hoje, nestaárea, o Juiz tem que ser assessorado por técnicos forenses, Psiquia-tras, Psicólogos. Confesso que não conheço a estrutura judiciária, masacredito que não cabe ao Juiz julgar isso, o elemento quando cheganele já deve chegar bastante definido.

Esses dias, foi presa uma pessoa, em Minas Gerais, com 10kg de co-caína, e o advogado conseguiu provar para o Juiz que aqueles 10kg

Page 28: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 27

eram para uso próprio. Pelo amor de Deus, são dez mil doses de cocaí-na. Ele provou, disse que a pessoa era muito importante, muito rica,não poderia estar indo à boca da droga para pegá-la toda hora, então,ele pegava já de 10 em 10kg.

Então, realmente é um problema muito sério. A Justiça está-se en-volvendo cada vez mais nisso, mas ela tem que ser assessorada, a pró-pria Justiça tem que se assessorar, pois separar um traficante de umusuário não é muito simples.

Às vezes, o advogado do traficante traz o processo, provando queele não era traficante, era usuário, e o Juiz, valendo-se daquela infor-mação do advogado, acaba julgando por intermédio disso.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Agradecemos, em nome do Centrode Estudos, a presença do Coronel Paulo Laureano Brasil, que nos trou-xe esta experiência muito importante no trato com dependentes dedrogas.

Faremos um breve intervalo para troca de equipamento e voltamoslogo em seguida com o segundo bloco.

Page 29: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO
Page 30: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Damos início aosegundo bloco.

A Lei, como já referido e do conhecimento de qua-se todos, trata da prevenção, da recuperação e da re-pressão.

Então, nós temos um destinatário final desta drogaque, em um primeiro momento, é o usuário, e talvezele venha a se tornar um dependente. O transferidordesta droga é o outro agente neste nosso cenário,conhecido pelo tráfico, como sendo o traficante eaqueles que gravitam em volta.

Temos os personagens da nossa cena judiciária en-volvendo drogas, mas a Lei fala em materialidade –tratamento que, desde longo tempo, prefiro chamarde demonstração da existência do fato –, e outros fa-lam em vestígios de uma conduta eventualmente cri-minosa.

Nesta segunda parte do nosso encontro, vamos fa-lar sobre drogas. O tema é: Drogas, Espécies, Varie-dades e Efeitos. Não há test drive na seqüência, maso nosso convidado trouxe amostras – não grátis, to-das deverão ser devolvidas – de várias espécies dedrogas e equipamentos utilizados para o consumodas drogas.

Então, para o desenvolvimento deste assunto, con-vidamos o Bacharel Rogério Saldanha, que é licencia-do em Química e Bacharel em Direito pela Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul, atua como peritocriminalístico no Instituto-Geral de Perícias, há seteanos, atualmente lotado no Laboratório de Períciasdeste Instituto.

Para desenvolver o assunto e ficar totalmente àvontade, apresento o palestrante deste bloco, Dr. Ro-gério Saldanha, que está com a palavra.

Page 31: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

30 – 2º Ciclo de Estudos

DROGAS – ESPÉCIES, VARIEDADES E EFEITOS

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – Bom-dia a todos. Inicialmente, emnome do Instituto-Geral de Perícias, gostaria de agradecer o convitepara participar deste evento, isso nos deixa muito honrados, e saberque reflete, de uma certa forma, o respeito e a consideração que anossa instituição tem pelos demais órgãos públicos, particularmentecom o Poder Judiciário.

Quando cheguei aqui, a Cristina gentilmente me ofereceu uma drogaestimulante do sistema nervoso central, que é a cafeína, que me dei-xou um pouco agitado. Conteve um pouco a minha síndrome de absti-nência por cafeína, que vocês também se satisfizeram agora no inter-valo.

O Instituto-Geral de Perícias – não sei se estão todos bem localiza-dos onde fica na estrutura do Estado, porque muitos nos confundemcom policiais civis – a perícia, no Rio Grande do Sul, já não faz maisparte da Polícia Civil desde o advento da Constituição de 1989.

O Instituto-Geral de Perícias, na forma como é conhecido hoje, foicriado em 1997, é constituído de vários órgãos: pelo Departamento deCriminalística, pelo Departamento de Identificação, pelo DepartamentoMédico-Legal e pelo Laboratório de Perícias, no qual estou lotado.

Drogas, Variedades, Tipos e Efeitos. Na verdade, nós, do Laboratóriode Perícias, somos Químico-Analíticos ou Farmacêutico-Analíticos. Onosso trabalho lá é simplesmente detectar, constatar a presença dadroga, constituir a prova. Os efeitos das drogas não são objeto do nos-so trabalho, não nos preocupamos com isso, não faz parte da materia-lidade que buscamos. Vou abordar esse assunto com base em estudosfeitos, mas não é o foco do nosso trabalho.

Droga. Parece-me que a origem do nome vem do antigo drums, sig-nifica uma folha seca, porque inicialmente as drogas eram constituídasde ervas e hoje muitas ainda são. Droga, do ponto de vista daToxicologia, é uma matéria-prima que contém [...] fármaco, que é umasubstância de estrutura química bem definida e conhecida, que provocaalterações no sistema biológico. Quando essas alterações afetam opsiquismo, temos uma droga psicotrópica.

Dentro desse conceito, todos nós podemos perceber que somos usuá-rios de drogas, começa pelo café da manhã, não dispensamos a drogaestimulante que é a cafeína, depois passamos pela nicotina, no final datarde, faz o happy hour com álcool. Enfim, drogas fazem parte do nos-so dia-a-dia, então somos drogaditos de certa forma, sob esse pontode vista.

Page 32: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 31

Tipos de drogas. Temos aquelas que são depressoras do sistemanervoso central, como álcool; temos as drogas estimulantes do sistemanervoso central, como a cafeína, as anfetaminas, a cocaína, o crack, anicotina e temos as drogas perturbadoras do sistema nervoso central, amaconha seria uma delas, as drogas alucinógenas também.

Começamos com a mais popular, mais polêmica e mais simpática, decerta forma, pelo menos para alguns.

A cannabis é uma planta das mais conhecidas, foi referida em 2.723a.C. pelos chineses, de uso farmacêutico. Em 1.753, foi então identifi-cada como cannabis sativa. No Brasil, ela chegou com as CapitaniasHereditárias, no séc. XVIII. Em 1964 – data bem significativa para nós,embora não tenha nenhuma relação com o assunto –, foi isolado oTHC, que é o tetrahidrocanabinol, princípio ativo, principal fármaco psi-cotrópico da cocaína.

A maconha é uma espécie vegetal que contém 61 canabinóides, quesão compostos característicos da cannabis, tem 21 átomos de carbono,tipicamente encontrados na cannabis sativa. As drogas feitas dacannabis são: maconha, haxixe e o skank.

A maconha nada mais é do que as folhas da cannabis seca e tritura-da, basicamente folha e um pouco de caule; no caule, há pouca quanti-dade de THC, a semente praticamente não tem. Quando apresenta bas-tante semente, apenas lesa o consumidor, do ponto de vista do Códigode Defesa do Consumidor; ao fumar, acontecem pequenas explosões.

O haxixe também é feito da maconha e nada mais é do que a resinaobtida da cannabis. Há muito mais THC. Enquanto na maconha há1,4%, 3% de THC, no haxixe pode chegar a 18%.

O skank nada mais é do que a cannabis criada em condições espe-ciais para aumentar o nível de THC. Controlando-se a umidade, atemperatura, consegue-se criar uma planta com um nível maior deTHC.

A cannabis não é uma planta geneticamente modificada, é simples-mente uma seleção como se faz com plantas na agricultura.

Nós, no Laboratório de Perícias, não diferenciamos a maconha doskank, porque simplesmente pesquisamos o THC. Havendo THC e tendoas características biológicas, maconha é maconha. Não tem sentido fa-zer a diferença, porque a lei não vai tipificar de maneira diversa em re-lação ao skank ou ao haxixe. No Laboratório, também não dizemos aquantidade do psicotrópico presente na droga, porque a lei não estabe-lece um limite, ao contrário do álcool, em que se estabeleceu 06dg porlitro. Então, temos que quantificar. Se a pessoa está usando cocaínacom 10% de coca ou com 90%, a conseqüência penal [...]: ou ele vaiser usuário ou vai ser traficante.

Page 33: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

32 – 2º Ciclo de Estudos

Gostaria de passar a vocês algumas amostras, que não são para expe-rimentar, como o Desembargador lembrou, mas podemos olhar e tocar.

O haxixe geralmente se apresenta de forma arredondada, ele é es-magado, triturado e é fumado. Temos algumas sementes de maconha,e como já falei, com um índice muito baixo de THC, parece com o tem-pero coentro. Temos a maconha na forma prensada, que é chamada detijolinho, e a maconha na forma solta. Na verdade, é nessa forma soltaque ela vai ser fumada. Ela é vendida em trouxas de papel. Temos aquium baseado também.

A forma mais comum de se utilizar a cannabis é ser fumada, o efeitose dá em alguns minutos; o efeito máximo, em torno de 08 a 15 minu-tos; a duração, em torno de 02 a 03 horas, depende do tipo decannabis utilizada, da maneira como fumou.

A cannabis também pode ser ingerida, é bastante incomum, mas jáouvi falar em festa de aniversário com negrinhos e bolo de cannabis. Oinício dos efeitos, quando ingerida, é de 30 a 60 minutos, o efeito má-ximo é de 02 horas e meia a 03 horas e meia, e a duração é de 04 a 06horas. Essas características fazem com que a ingestão da cannabis nãoseja uma maneira muito usual, porque demora a fazer efeito e duramuito o efeito, a pessoa meio que perde o controle. Abiodisponibilidade ingerida é três vezes menor do que a pulmonar, ouseja, se alguém fumasse um baseado com um grama ou dois gramasde cannabis, ele teria que comer um negrinho de três ou de seis gra-mas – três vezes mais para conseguir o mesmo efeito, e o controle se-ria ruim. Então, ela pode-se apresentar em forma de ervas soltas, emforma prensada, que é o tijolinho, como cigarro artesanal, que é o ba-seado [...] ou fino e como massa resinosa, como haxixe.

Os utensílios utilizados para a cannabis. A cannabis é fumada numbaseado, que é esse cigarro artesanal, ou em pequenos cachimbos cha-mados maricas, das mais diversas formas. Temos maricas com cara defantoche, uma outra feita de Durepoxi, a qual não recomendo muito,porque, com a temperatura, deve liberar substâncias mais tóxicas, eoutras.

No Laboratório, não recebemos a erva, recebemos alguns desses ob-jetos; essas maricas que vocês estão vendo foram objeto de perícia,porque na marica é que vai ficar o THC. Será colocado o solvente ade-quado, no caso, éter de petróleo, e será extraído e pesquisado o THC.A Polícia, às vezes, apreende os objetos para análise, e nesses objetosé que identificamos a droga. Como já falei, o nosso trabalho é analíti-co.

A respeito do papel colomi, não vejo outra finalidade a não ser parafazer cigarro artesanal.

Page 34: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 33

Os efeitos da cannabis e de outras drogas dependem muito do indi-víduo. Vou relacionar alguns, não significa que ocorreram todos: pri-meiro, uma certa euforia que é chamado o auto, quando a pessoa co-meça a fumar, que dá a sensação de bem-estar, de felicidade, e come-çam risos imotivados, é chamada conversa de maconheiro; depois, dáum relaxamento ou uma sonolência.

A cannabis também provoca a perda de discriminação de tempo e deespaço, o limite de tempo parece mais longo, e a distância parecemaior. A coordenação motora é diminuída, existe prejuízo da memóriarecente, provoca falhas nas conexões intelectuais e cognitivas, a pes-soa tem muitas idéias, por isso que a imagem está muito vinculada àspessoas que trabalham com produção artística, parece que tem um tur-bilhão de idéias. Esse fluxo de idéias, às vezes, dá umadescoordenação, porque a pessoa está pensando e não consegue refle-tir os seus pensamentos, dá esse problema na comunicação. Dá um re-tardo na capacidade de percepção sensorial, intensifica as sensações eo sentido [...], exagera na intensidade, um som parece mais alto doque o normal, as vozes dos outros parecem mais altas, o som se desta-ca entre o resto. Pode provocar taquicardia, hiperemia das conjuntivas,que é típico, olhos avermelhados e inchados, mas com cara de paz, nãoé um olhar agressivo. Há aumento do apetite com secura na boca e nagarganta, chamada larica. Há uma pastelaria em Porto Alegre, em queum dos pastéis se chama larica, não tem nada a ver com drogas.

A maconha é também usada para fins medicinais, para aumentar oapetite. Aliás, o THC tem muitas finalidades medicinais, mas normal-mente é sintetizado. Por isso, há aquela questão polêmica: “a maconhafaz bem, é natural”. Essa questão das drogas, na verdade, é um temamuito apaixonante, existe muita divergência. Pensamos que existe umaposição científica, como se a Ciência fosse algo absolutamente neutro,mas, na verdade, no conhecimento científico, também existemdiscordâncias. Além disso, o conhecimento científico também é usadode acordo com o valor moral de quem defende. “Tenho uma posição apriori a favor da maconha, vou ler sobre a maconha e vou realçaraquele conhecimento científico mais positivo”. A posição, na verdade, émais moral do que de base científica, penso eu. O conhecimento cientí-fico é usado meio de acordo com essa postura das pessoas.

Em verdade, a cocaína e o crack são obtidos da mesma substância, dacocaína, que é um alcalóide produzido por estas duas espécies do gêne-ro erythroxyllum, mais do erythroxyllum coca, que tem maior quantida-de de cocaína. A história da cocaína é que ela é um estimulante do sis-tema nervoso central, ela já teve uso lícito, já fez parte da fórmula dacoca-cola, e, inclusive, usa-se hoje licitamente como anestésico local.

Page 35: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

34 – 2º Ciclo de Estudos

A cocaína, nos países andinos, é usada na forma de chá, só que, evi-dentemente, quando se está tomando um chá de cocaína, temos umaquantidade muito pequena; quando se faz o chá, a extração doalcalóide da planta é muito baixa, está-se preparando com água. Quan-do ingerida, entra no processo digestivo, havendo destruição de partedeste alcalóide, ou seja, o que chega no cérebro de cocaína como chá émuito pouco.

Cocaína e crack, então, são feitos da mesma substância. A única di-ferença é que a cocaína é um sal deste alcalóide, é o cloridrato de co-caína, enquanto que o crack é a base livre.

Quando fazemos perícia no Laboratório de Perícias, não se difere co-caína de crack, porque a pesquisa do alcalóide é igual para os dois; en-tão, diz-se que tem cocaína, pode ser crack ou a cocaína propriamentedita, na forma de pó.

Mais ou menos 100kg de folhas produzem 01kg de coca pura, quedepois poderá ser batizada, isto é, receber talco, bicarbonato de sódio,sulfato de magnésio, pó de giz, tudo o que for branco em forma de fa-rinha poderá ser colocado ali para render. Do ponto de vista do consu-midor, se fosse uma droga lícita, seria terrível isso.

Uma coisa que não mostrei e que já vi até em camisetas é a folha damaconha.

Outra curiosidade sobre a questão do uso do fumo da maconha éque normalmente a parte final do cigarro de maconha tem mais THC doque a parte inicial pelo processo de [...] THC, as modificações químicasocorridas. Assim, quem fuma o fim do baseado, fuma melhor do quequem fuma o início. Isso é fato cientificamente comprovado, quantomais para o fim, mais THC, tanto que, às vezes, recebemos para períci-as umas pontinhas, aquelas que queimaram o dedo, e se percebe THCtranqüilamente ali.

Cocaína. Agora, vamos falar do cloridrato de cocaína. É um pó bran-co, cristalino, solúvel em água, o ponto de fusão dele é 197ºC, étermolábil, ou seja, com o aquecimento se destrói em grande parte,por isto a cocaína na forma de sal. Como o ponto de efusão dela é mui-to alto, é difícil de ser fumada e é termolábil. As formas de uso: aspi-ração nasal, que é a mais comum, ela é cheirada como umacarreirinha. Pega-se um cartãozinho de crédito ou uma nota de R$ 1,00nova, faz a carreirinha, canudinho e cheira; também usam a parte damão que faz uma conchinha, colocam o pó e aspiram. Outra forma é ouso intravenoso, solúvel em água, solubilizada e injetada. Há tambéma via oral, que é pouco comum, cito apenas como referência. São algu-mas formas de uso, existem outras.

Page 36: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 35

A cocaína pura, na verdade, é um pó branco cristalino, só que a co-caína de rua não é assim, é meio amarelada, mas isso não significanada. Por exemplo, se um traficante oferece uma cocaína em um póbranco e outro meio amarelado, não quer dizer que o branco seja me-lhor, pode ser que seja puro bicarbonato, porque se recebem casos ne-gativos para cocaína, vai-se fazer o teste, e não há cocaína. Elas vêmem buchinhas ou petequinhas.

Utensílios para se utilizar a cocaína: um prato, uma gilete, umatesourinha (para cortar as buchinhas). O prato pode ser usado comouma superfície lisa para fazer a carreira ou para secar a cocaína, que,às vezes, vem com muita umidade – o usuário coloca a cocaína, secano bico do fogão, depois côa, faz a carreirinha e cheira. Outros objetosmuito comuns são balanças de cozinha – essas são usadas pelos trafi-cantes – e outras eletrônicas, que se assemelham a calculadoras. Re-cebemos muitas dessas. Às vezes, é apreendida somente a balança, vaipara nós, pegam-se os vestígios, remove-se o material e constata-se apresença de cocaína.

Crack. O nome crack, em inglês, significa estalo. Por que isto? Ele éfumado, é aquela pedrinha que é colocada no cachimbo, põe fogo efuma, aí faz uns estalinhos. É uma pedra geralmente amarelada, embo-ra existam algumas mais brancas, ainda outro dia peguei uma paraanalisar esverdeada.

Objetos que se encontram para uso do crack: cachimbos feitos comcano de pvc, colocam papel alumínio na ponta, fazem uns furinhos, co-locam a pedra do crack e pronto, fumam. Também utilizam latas de re-frigerante, fazem furinhos, colocam o crack. Esse é muito comum.

A origem. Embora a matéria-prima seja a mesma, os efeitos sãobem diferentes, em relação ao tempo especificamente, intensidade. Acocaína aspirada, para provocar algum efeito, demora de 10 a 15 mi-nutos o início e dura de 20 a 45 minutos; já a cocaína injetada, de 03 a05 minutos para começarem os efeitos, que duram de 20 a 45 minutos.A duração é a mesma da aspirada.

O crack. Como é fumado, os efeitos começam de 10 a 15s, e a dura-ção é de 05 minutos, muito rápido e muito intenso. Embora seja umadroga barata, é preciso consumir muito.

Lembrando: a cocaína e o crack são estimulantes do sistema nervo-so central. Efeitos: sensação de bem-estar, diminuição da fadiga, vita-lidade, impressão de que os pensamentos e o raciocínio são mais rápi-dos, dá aquele up. Essa é a sensação inicial. Com a maconha, o sujeitofica com um aspecto mais sonolento, na cocaína e no crack, a pessoafica ligada. Doses maiores produzem desconforto psicológico e físico,

Page 37: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

36 – 2º Ciclo de Estudos

geram ansiedade, como os estimulantes de uma maneira geral, e dosesainda maiores dão a sensação de desconfiança e mania de perseguição,tais como: “Estão-me vigiando, estão-me seguindo, vão-me pegar”.

Outros efeitos: ressecamento da mucosa nasal, isquemia, necrose,ulcerações, perfuração do septo (quem usa demais, pode, inclusive,perfurar o septo e necessitar de próteses), inibição do apetite, taqui-cardia, hipertensão, palpitações, pode provocar enfarto do miocárdio,parada cardíaca e, no caso de overdose, pode levar à morte.

A pasta de cocaína é quando se pegam as folhas e maceram comsolventes. É a primeira fase da produção da coca, depois, é purificadaaté chegar à cocaína. A pasta-base seria um produto mais grosseiro.

Chegamos no ecstasy, a droga do amor, que é 3,4 metileno dióxidode metanfetamina. A sigla dele é MDMA. Foi desenvolvido em 1914como droga supressora do apetite, normalmente essas drogassupressoras do apetite são anfetaminas.

Na década de 60, alguns psiquiatras o utilizavam como medicaçãopara romper defesas e trazer maior empatia, que é um de seus efeitos.Aliás, a cocaína também foi utilizada para esses fins. Freud usou-apara o bem. Em 1985, laboratórios ilegais(?) começaram a produzi-lopara fins recreativos.

Existem vários tipos de ecstasy, com várias figurinhas como a daPlayboy, Hang Loose, Calvin Klein, enfim são comprimidinhos simpáti-cos na aparência. Só que nesses comprimidos, além do ecstasy, sãocolocadas outras substâncias, que podem ser talco, para render, cafeí-na, como estimulante, e outras anfetaminas, que também são mistura-das. Então, o MDMA é o principal, mas pode haver outras coisas nocomprimido. Aliás, a cafeína também é muito utilizada para batizar acocaína, porque ela é estimulante, e a pessoa, quando for usar cocaí-na, vai ter a sensação de estímulo, pois, se ela usar só talco, nada vaiacontecer, é só uma questão psicológica. Entretanto, a cafeína, que éum pozinho branco, é estimulante.

O ecstasy é utilizado na forma oral ou na forma de comprimidos, uti-liza-se de 01 a 02 comprimidos por rave ou por festa. Como ele é umestimulante, impulsiona para a sociabilidade, ele não é uma droga paraficar em casa que nem a maconha, em que a pessoa pode ficar em casaouvindo música, tranqüilamente, pode ficar na frente do mar, no riopescando. Agora, com o ecstasy e a cocaína, que são estimulantes, apessoa tem que estar no convívio social, ela é para isso, para aumen-tar a sociabilidade. Então, é diferente a ação.

O palestrante que me antecedeu estava dizendo que uma droga levaà outra, mas essas são questões muito polêmicas, não necessariamen-te isso acontece. Pelo menos, não há um mecanismo bioquímico com-

Page 38: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 37

provado que o uso de uma droga leve ao uso de outra, ainda maisquando são drogas muito distintas, como uma perturbadora e uma es-timulante do sistema nervoso central. Enfim, o efeito é muito diferente.

Os efeitos do ecstasy são:• Início de 30 a 60 minutos e duração até 08 horas;• Primeiro, uma euforia (porque é uma anfetamina), com um senso

profundo de bem-estar. Então, realmente é, dá uma sensação de muitobem-estar. Isso é muito forte.

• Realce dos sentidos, principalmente o tato. Dá outro sentido aotato, então a pessoa que está utilizando o ecstasy, às vezes, vai numasuperfície e fica sentindo aquela superfície, pois o tato é muito bom.Tocar em outra pessoa e sentir-se tocado também é muito bom, porisso é que falam em droga do amor, da sociabilidade;

• Sensação de que a conversa flui facilmente; sociabilidade, aquelasensação de bem-estar e de harmonia. Realmente é uma droga social,que merece este codinome de droga do amor, pois tem esse aspecto desocializar, de se tocar, de se integrar. Ela não necessariamente combi-na com a relação sexual, porque o prazer do toque é suficientementebom.

Esse é o lado bom do ecstasy. Evidentemente que as pessoas usama droga pelo lado bom, ninguém vai usar droga para ter taquicardia,para ter câncer. É que as pessoas normalmente esquecem de falar des-se lado bom da droga quando vão falar de drogas, e acabam só falandodo que elas provocam, e os que ouvem acabam-se perguntando porque as pessoas usam drogas se elas causam tudo isso.

Outros efeitos são secura na boca, diminuição do apetite (asanfetaminas provocam diminuição no apetite), rigidez dos maxilares esudorese. Então, uma festa, em que as pessoas usam muito ecstasy,tem a aparência de uma festa do bem, porque elas estão tomando águamineral, não estão enchendo a cara de bebida, não estão brigando, es-tão, de uma maneira geral, interagindo de maneira bem harmoniosa eestão chupando pirulito. Se vocês notarem, o pirulito voltou à moda,justamente porque há uma rigidez nos maxilares, o bruxismo, e o mor-der o pirulito alivia essa rigidez. É praticamente uma festa infantil.

O índice de mortes é muito pequeno, mas ela pode acontecer, poisprovoca uma hipertermia, aumenta a temperatura do corpo, e isso vaiprovocar uma desidratação, porque o ecstasy inibe o inibidor de libera-ção da urina, ou seja, a pessoa vai urinar mais. Vai provocar uma ta-quicardia, com o excesso de consumo de água, sensação de [...] física,mental e depressão. Então, a pessoa pode morrer em função da desi-dratação. E, se não toma água, ela vai ter a temperatura do corpo mui-to alta; desidratada, vai dar convulsão.

Page 39: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

38 – 2º Ciclo de Estudos

Agora, também pode acontecer o oposto. A pessoa pode tomar águademais e saturar o desempenho dos rins. Pode acontecer isso também,pode morrer por excesso de água. Eu li um relato de um rapaz que dis-se ter tomado 14 litros de água de uma só vez. Isso pode provocar amorte também. Entretanto, o índice de mortes é pequeno, o número demortes por ecstasy é baixo, mas não a quantidade de atendimentoshospitalares.

Agora vou falar do LSD, que é a dietanolamina do ácido lisérgico. Éuma droga que foi muito utilizada pelos hippies na década de 60. Não éuma anfetamina, é um alucinógeno. Foi sintetizado em 1938. Ele atéteve um uso psicoterápico, pois dizia-se que facilitava a psicoterapia,já que liberava os bloqueios individuais.

O LSD puro é um sólido, mas é utilizado fazendo-se uma soluçãodesse sólido, na qual são embebidas figurinhas de papel ou entãotorrõezinhos de açúcar. O mais comum são as figuras pequenas, quecabem no dedo, que são colocadas em baixo da língua como se fossemuma hóstia. Então, aquele papelzinho que está impregnado com asubstância é dissolvido na boca.

Os desenhos das figuras são de motivos infantis, como Simpsons,Disney, florzinhas. Os efeitos aparecem de 35 a 45 minutos e têm aduração de 06 horas. Depois disso, existe um estágio de recuperaçãode 07 a 09 horas, em que se intercalam situações de normalidade comainda o efeito da droga.

Sendo um alucinógeno, ele provoca uma modificação no tempo (aimpressão que se tem é de que o tempo parou), modificação da sensa-ção de espaço, modificação da percepção do próprio corpo e entrelaça-mento dos sentidos (a pessoa chega a falar em um som azul, ou entãono cheiro amarelo). Pode, ainda, provocar euforia, alucinações, princi-palmente visuais, mais do que auditivas.

Existem as chamadas bad trip, a viagem ruim, que também podeacontecer com a maconha, ou seja, aquela pessoa entra em pânico,pois, como é um alucinógeno, ela tem medo de perder o controle de sie dos seus atos e não voltar mais à normalidade. Além disso, há oflashback que ocorre depois do uso da droga; semanas ou um mês de-pois, surge o flashback da alucinação. Então, a pessoa está conversan-do, e, de repente, a coluna se mexe, por alguns segundos, que é oflashback da alucinação. Isso é bem comum.

Para se ter uma idéia da quantidade de perícias, de janeiro a junhode 2006, o índice de perícias em maconha foi de 4.266 (média aproxi-mada de 700 por mês), de cocaína, 1.581 (263 por mês, o que equi-vale a 1/3 da maconha) e de ecstasy somente 3 perícias. Evidente-mente que se usa menos ecstasy, mas também não é tão pouco, esse

Page 40: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 39

número é estranho. Temos que refletir sobre essa questão da apreen-são: quem usa ecstasy, quanto custa? Acho que são questões para sepensar.

Aproveitando o momento, gostaria de ressaltar que temos um gran-de problema no Laboratório de Perícias, que é o armazenamento dasamostras. Embora recebamos até 01g de cocaína, maconha até 05g ecomprimidos até 05, temos uma grande quantidade de amostras dasquais não conseguimos livrar-nos. Não somos policiais, não temos umaestrutura de segurança para isso, não temos um espaço físico apropria-do. Encaminhamos aqui para a Corregedoria um pedido para que nosautorizasse a incineração das amostras até 05 anos.

Conservamos as amostras, porque, às vezes, é pedido o reexame, sóque esses reexames acontecem no máximo até 01 ano depois de feito oexame. Então, temos um grande problema, e gostaria de pedir a cola-boração dos Juízes, pois já existe um procedimento em andamentopara que sejamos autorizados a incinerar as amostras após o períodode 05 anos, que é mais do que suficiente.

Normalmente, fazemos a perícia, emitimos um laudo, ocorre oprocesso, depois o Juiz manda uma autorização para ser destruída aamostra. Entretanto, recebemos, mais ou menos, 1% de autoriza-ções, fazendo com que surja esse grande problema dearmazenamento.

Aproveito, então, a oportunidade para pedir a colaboração dos Juízespara que nos auxiliem no sentido de autorizar a incineração automáticadas drogas após 05 anos, porque, realmente, elas não sãoreexaminadas após esse período.

Muito obrigado pela atenção.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Depois dessa bela exposição a res-peito das drogas, o Colega Losekann (Juiz-Corregedor) já levou umasugestão. O art. 40 da Lei nº 6.368 mandava que o Juiz comunicasseà autoridade policial, depois do trânsito em julgado, para dardestinação àquela droga. De repente, não está chegando a devida co-municação para a destinação – diga-se, incineração – também daamostra. Não quer dizer que todos os Juízes façam aquilo que o art.40 da Lei antiga já dizia, mas essa é uma questão a ser resolvida pos-teriormente.

Agora, as indagações ao nosso palestrante a respeito de todas essasdrogas.

PLATÉIA – [...] o quanto poderia ser isso, a gente perde essa noçãode quantidade.

Page 41: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

40 – 2º Ciclo de Estudos

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – Conforme falei no início, a nossaatuação é analítica, provavelmente não temos esta informação de uso,e não me lembro de ter a bibliografia, não saberia dizer, se dissesseum número, não estaria sendo verdadeiro. Mas o uso varia muito dousuário, há aquele usuário compulsivo, que usa muito mais. O crack,eu imagino que se utiliza muito mais por causa do efeito muito imedia-to, muito rápido. Por isso que é uma questão de mercado do traficante,o crack, o problema dele é que ele acaba com o consumidor muito rápi-do, é muito intenso o uso.

PLATÉIA – A perícia disse que era maconha, era cannabis, mas nãohavia THC. O que pode ter acontecido com essa planta?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – Isso não foi recentemente?

PLATÉIA – Foi, meses.

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – A questão é a seguinte: a substân-cia psicoativa da maconha é o THC, os outros canabinóides quase nãotêm esse princípio psicoativo. Ocorre que a maconha, quando ela é ar-mazenada, o THC vai-se degradando no canabidiol, que é um outrocanabinóide. Então, de fato, aquilo era maconha, mas provavelmenteuma maconha que foi guardada muito tempo. Não foi isso?

PLATÉIA – Eu acredito que imediatamente ela tenha sido encami-nhada para a perícia.

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – O fenômeno acontece quando a ma-conha foi armazenada por muito tempo, e daí dá essa transformação.

Mas, de qualquer forma, como a cannabis sativa é prescrita, ela foiidentificada como cannabis sativa do ponto de vista da tipificação pe-nal, porque a ANVISA, quando faz estas listas de produtos prescritos,eles tem o THC, é o fármaco, e a planta é a cannabis sativa.

Então, acho que se o laudo identificou como cannabis sativa, estácaracterizado isso aí, a utilização da droga; se não foi constatado oTHC, de fato pode acontecer por degradação pelo tempo, ou talvez umaplanta que foi criada em condições muito ruins, tendo um índice muitobaixo, mas [...] maconha velha, normalmente, o índice de THC é muitobaixo.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – A qualidade da maconha, então, omaior ou menor índice de THC pode depender das condições em queé plantada, de cuidados no manejo, de como ela é cultivada, se foi

Page 42: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 41

bem adubada, da qualidade do solo, se foi plantada na pedra, coisasassim?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – Há condições melhores.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Então a substância pode ser maco-nha, mas não tem efeito, não será geradora de dependência, pode nãoter o THC?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – O índice varia de 01 a 03% deTHC. Então, as condições do solo, as condições de plantação são im-portantes.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Qual é o prazo de validade destamaconha?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – Não podemos estabelecer prazo devalidade, mas, enfim, nós temos a experiência, embora não estipuladoo tempo, de que, nas maconhas antigas – há referência bibliográfica –,o índice de THC cai com o tempo, inclusive devem existir estudos espe-cíficos sobre isso, mas não sei dizer-lhe agora.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Um pacotinho de chá normalmentetem 0,15g, depende do chá também. Qual seria a quantidade de maco-nha necessária para fazer um “baseadinho”?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – Não sei dizer, acho que meia gra-ma, os baseados variam muito de tamanho, há uns baseados que sãoenormes, meio que uma coisa coletiva. É uma questão de pesagem.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – E uma carreirinha de cocaína?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – As carreiras também variam, nor-malmente umas 20mg.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – É que freqüentemente vem um ar-gumento de que o sujeito foi encontrado levando apenas 10g ou 20g decocaína. Afinal, objetivamente, isso é uma pequena quantidade. Então,esses 10g ou 20g, divididos nas carreirinhas,...

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – Acho que são 200mg, não 20, sãounidades de 10.

Page 43: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

42 – 2º Ciclo de Estudos

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Com um grama seria possível elabo-rar umas cinco ou seis carreirinhas?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – É, para mais.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – E uma pedrinha de crack dessasnão pesa nada?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – Não sei dizer o peso, mas acho quechega talvez a 100mg. Na verdade, não tenho bem certo, mas é maisou menos isso. Nós recebemos a amostra trazida pela Polícia, que podeser só uma amostra.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Droga apreendida também.

PLATÉIA – Um questionamento. Um cidadão que tenha lá na suafração de terra uns 10 pés de maconha plantados, no enfrentamento deuma eventual tese de plantação de maconha para consumo próprio,qual seria o rendimento destes pés de maconha?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – A maconha, ao contrário da cocaína– a cocaína tem que ser feita uma extração do alcalóide –, é simples-mente macerar a erva. Então, a pessoa pode ter uma idéia da quanti-dade física. Um arbusto dá para um bom consumo, dá para vários dias,dependendo da intensidade.

PLATÉIA – Então, basta uma análise praticamente visual do que setem ali, seria aquilo seco, macerado.

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – É isso. Pega este arbusto, imaginaele seco e macerado, o que vai dar? Vai dar isso aqui, por exemplo.Imagina, assim, fisicamente, a folha seca, como se fosse uma ervaqualquer, e vai ter uma idéia de quanto vai dar de maconha. Eu sei quepara fazer um baseado é uma coisinha pequena, e é um monte de ba-seado, o processo é assim.

PLATÉIA – O palestrante anterior referiu que uma pessoa chegou aconvencer o Juiz de que 10kg era para uso próprio, porque ele compravapara usar durante meses. Existe um prazo de validade para esta droga?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – Evidente que 10kg é um absurdo, eledeve ter exagerado; evidentemente que um Juiz não se ia convencer

Page 44: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 43

que 10kg são para uso. Ele não conseguiria consumir isso, usa a comu-nidade toda. Mas, enfim, os produtos se degradam com o tempo, mas adegradação dele depende das condições em que é guardado, de umida-de, mas há um longo período.

PLATÉIA – Meses?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – Meses. Eu deixei o meu e-mail. Sealguém quiser uma resposta mais específica com relação à data e àquantidade, é só passar um e-mail que eu posso dizer exatamente, aminha memória não é muito boa. Eu tenho acesso a vários estudos, éque não me ative a isso quando preparei o material, não há nenhumproblema. O e-mail é [email protected].

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Acho que é a última indagação, mi-nha, ao menos. A folha de coca vai ser macerada e vai se transformarna pasta de coca?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – A folha, com o uso de ácido sulfúri-co e solventes, vai formar uma pasta de coca. Dali daquela pasta,pode-se produzir um subproduto ainda, que seria a merla, mas não seusa aqui, enfim. Dali, pode-se produzir o cloridrato de cocaína, que é osal da cocaína, que é o pó que é cheirado, é o cloridrato de cocaína, oupode-se modificar aquele pH, colocar num pH alcalino, e produzir ocrack, que é na sua base livre. É um pouquinho diferente: o cloridratoé dissolvido em água. Já o crack, em que a base é solúvel emsolventes orgânicos, é absorvido mais pelo tecido gorduroso, ele pene-tra mais nesse tecido gorduroso. Então, é mais fácil a absorção dele.

Então, a diferença de solubilidade influencia na absorção da subs-tância. Assim, a cocaína é o sal, que é o cloridrato de cocaína, e ocrack é a base livre do alcalóide.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Mais alguma indagação, curiosidadea respeito das drogas?

PLATÉIA – A droga cruzada, como se fala, o uso do álcool com ou-tro tipo de droga, realmente aumenta os efeitos?

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – Potencializa muitos efeitos das dro-gas, agora, o mecanismo da farmacodinâmica, não saberia dizer espe-cificamente como, até porque sou Químico, não sou Farmacêutico. Mas,sim, ele potencializa os efeitos.

Page 45: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

44 – 2º Ciclo de Estudos

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Muito bem, estamos encerrando estenosso bloco matinal. Voltamos à tarde com as indagações ditas de natu-reza jurídica, começando com a Desª Elba, depois, o Colega DelgadoNeto, e mais ao fim da tarde, Execuções Criminais, para ver os reflexosdo que nós vamos fazer com esta nova legislação.

Fiz um registro lá no início, referindo a ausência do Colega LuizFelipe, e não disse por quê. Agora, estou justificando a ausência dele.Ele também é o Presidente do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direitode Família, e, nesta condição, hoje está em Brasília participando de umevento nacional. De maneira que a ausência dele está totalmente justifi-cada.

Agradecendo, então, os conteúdos muito interessantes que trouxe oDr. Rogério Saldanha.

Estamos encerrando este bloco.Voltaremos às 14h.

DR. ROGÉRIO G. SALDANHA – Obrigado.

Page 46: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Boa-tarde a to-dos. Retomamos as nossas palestras. Agora à tarde,com dedicação à atividade jurisdicional, já que pelamanhã, como disse, aparentemente, a questão era deordem técnica.

Começamos, então, convidando e apresentando,como se tanto fosse necessário, a DesembargadoraElba Aparecida Nicolli Bastos, que integra hoje a 3ªCâmara Criminal deste Tribunal e que vai nos falarsobre a Nova Lei de Tóxicos, basicamente, penso eu(que não combinei nada com ela), sobre aquilo queenvolve o juízo comum e, eventualmente, os recursosao Tribunal.

Por que juízo comum? Porque, na seqüência, tere-mos um outro Colega enfocando o assunto "A Lei deTóxicos e os Juizados Especiais Criminais".

Então, convido a Desembargadora Elba para queinicie a sua exposição e depois responda às perguntas.

OS CRIMES NA NOVA LEI DE TÓXICOS

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Boa-tarde a todos.Estou aqui não para palestrar, mas trocar experiências com os Cole-

gas da jurisdição de 1º Grau, que, sem dúvida, têm informações impor-tantes ante a vivência direta com o processo.

O tema que foi pedido tratasse é sobre a Nova Lei de Tóxicos e algu-mas novidades que vieram inseridas no texto e, embora os tipos penaispermaneçam praticamente os mesmos da antiga Lei (nº 6.368/76),nota-se que traz no seu bojo um novo enfoque sobre o uso, consumode drogas, instituindo políticas públicas de prevenção e reinserção dosusuários e dependentes no mercado de trabalho, além da recuperaçãoda saúde, separada da política de repressão ao tráfico de drogas.

O consumidor, usuário, permaneceu com as condutas descritas numazona intermediária (arts. 28 a 30), entre as políticas de saúde e o sistema

Page 47: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

46 – 2º Ciclo de Estudos

repressivo propriamente dito, que a partir do art. 31 estabelece estratégiase, no art. 33, inicia a definição das condutas típicas mais graves.

A novidade maior da Lei é que embora não tenha descriminalizado ouso, o consumo, retirou a penalização. Houve uma descarceirizaçãodas condutas, antes do art. 16 da Lei nº 6.368/76, hoje art. 28 e § 1ºda Lei nº 11.343/06. Entendo que não houve descriminalização, embo-ra, se tomarmos por baliza a doutrina tradicional de que ao crimecorresponde uma sanção à pena privativa de liberdade, poder-se-ia ad-mitir que as condutas do art. 28 foram descriminalizadas por não com-portarem pena privativa de liberdade, nem mesmo por conversão emcaso de não cumprimento das medidas punitivas preventivas previstasnos incisos do art. 28.

A Constituição Federal alterou o conceito tradicional de que ao cri-me corresponde uma pena privativa de liberdade ao introduzir noinc. XLIII do art. 5º, entre as penas, as prestações sociais alternati-vas, as suspensões e interdições de direitos e as restrições à liber-dade. As prestações sociais alternativas possibilitaram aos JuizadosEspeciais Criminais a aplicação imediata da medida, revertendo à co-munidade o trabalho ou as prestações pecuniárias fixadas na audiên-cia prévia.

A Lei, no art. 28 e depois na definição dos tipos sujeitos à repressãomaior, arts. 33 a 37, inovou ao não mais referir como objeto materialdas condutas proibidas a “substância entorpecente” substituída agorapor “drogas”, salvo no art. 28, § 1º. Esta conduta penaliza com medi-das preventivas, quem semeia, colhe ou cultiva plantas destinadas àpreparação de pequenas quantidades de substância que cause depen-dência, para uso próprio.

Todos os demais tipos o termo usado é: drogas; salvo naqueles emque se trata de matéria-prima, insumos, maquinários destinados à pro-dução de drogas (art. 33, § 1º, incs. I e II, e art. 34).

O tipo é normativo e o objeto material depende de listagem do PoderPúblico. O art. 1º define que “drogas são substâncias e produtos capa-zes de causar dependência, especificados em lei ou nas listas atualiza-das periodicamente pelo Poder Executivo da União”. Subsiste a PortariaNormativa nº 344/98 da ANVISA – Ministério da Saúde, onde estãoelencadas as substâncias (princípio ativo) causadoras de dependência ede uso restrito, controlado ou proibido.

A Lei deixa entrever no art. 31 a possibilidade de produção, extra-ção, fabricação, importação, etc., desde que exista licença prévia.Deve-se o dispositivo a que inúmeras substâncias são utilizadas na fa-bricação de medicamentos, mas sua venda, uso, depende de controle,licença, regulamentação do Poder Público.

Page 48: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 47

Os tipos são normativos. É prevista uma conduta, tipo nuclear, su-jeito à norma e, se em desacordo com a norma, é proibida e configurao ilícito.

As condutas típicas são as nucleares.É ilícito fumar maconha (tipo do art. 28)? Não, por não estar previs-

ta, embora a droga esteja elencada entre as proibidas. O que é ilícito,típico, é transportar, trazer consigo, guardar, adquirir essa droga semautorização legal e regulamentar.

As infrações do art. 28 e § 1º, assim como o art. 38, são da compe-tência dos Juizados Especiais Criminais, salvo se conexos com outrosmais graves. O delito do art. 39 – conduzir embarcação, aeronave –pode, em tese, beneficiar-se da suspensão do processo, art. 89 da Leinº 9.099/95.

O art. 28 que descreve as condutas ilícitas atribuídas ao usuário pre-vê como medidas punitivas: I – a admoestação; II – prestação de ser-viços comunitários; e III – medidas educativas, freqüência a cursos eprogramas especiais.

A prestação de serviço à comunidade ao ser aplicada pelo Juiz deveser cumprida, preferencialmente, em estabelecimentos como clínicas,hospitais e outras sem fins lucrativos que trabalhem prevenção e recu-peração de dependentes ou usuários de drogas.

As medidas educativas destinam-se à freqüência a cursos e progra-mas de recuperação e prevenção.

Os princípios, as intenções da Lei são envolver o Poder Público,União, Estados e Municípios, através de seus órgãos de saúde e assis-tência social, no trabalho preventivo, implantando, obrigatoriamente,políticas adequadas. Poderão as ONGs, entidades particulares, civis,sem fins lucrativos, inserir-se no trabalho preventivo, recebendo fun-dos públicos para tanto. A Lei faz uma referência especial às institui-ções que cuidam da recuperação e da reinserção do drogado no merca-do de trabalho para receberem verbas para este fim.

Retornando às medidas punitivas, preventivas do art. 28, convémregistrar que, salvo os casos de reincidência específica, quando podeaplicar as medidas por um prazo de até 10 meses, o Juiz não dispõe demecanismos para obrigar o usuário ou dependente a freqüentar cursos,programas ou prestar serviços comunitários. Quem não cumprir ficasujeito à admoestação verbal ou a uma multa de 40 a 100 dias, o queconvenhamos não tem grande poder de coerção, mormente pelas con-dições econômicas dos infratores. Mesmo que se transforme em dívidade valor sujeita à execução, em um País onde a massa de pobreza émuito grande, sem tradição de respeito à lei, pouco significado coerci-tivo tem a medida.

Page 49: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

48 – 2º Ciclo de Estudos

A Lei, para o usuário, aposta na prevenção, embora, resistindo àsmedidas impostas pelo Juiz, não exista mecanismo para obrigá-lo a in-ternar-se. É certo que o § 7º do art. 28 permite ao Juiz requisitar doPoder Público vagas para internamento. Prevê-se que tal medida, senão forem criadas e implantadas clínicas, hospitais, em número sufici-ente, vai se tornar uma medida antipática e irreal, pela qual o magis-trado exige vaga para internamento, mas o estabelecimento não temcondições de atender por falta de condições materiais. O que vai ocor-rer é como freqüentemente vê-se no atendimento à saúde, na requisi-ção de medicação, direitos garantidos constitucionalmente e que o Es-tado – Poder Público – não oferece em quantidade e qualidade paraatender a todos.

O que possivelmente ocorrerá com a nova Lei, facilitando o uso sema contrapartida de políticas obrigatórias e rígidas de recuperação eprevenção e até classificação e controle, é a disseminação em locaispúblicos, parques, festas, e o conseqüente aumento do uso por pes-soas que jamais seriam usuários e, com isso, o financiamento, o au-mento do tráfico de drogas e armas, roubos, assaltos e outros ilícitosprovenientes da falta de controle e disseminação.

É importante e urgente o trabalho curricular, o atendimento especializa-do, também às famílias que sofrem com o mal, face ao transtorno emocio-nal, o drama de quem, após drogas menos perniciosas ou de depen-dência não tão rápida, passam a outras que destroem a vida, a moral,o senso ético com repercussão na qualidade de vida do usuário e da fa-mília. Ninguém entre os Colegas que tratam diuturnamente com o pro-blema desconhece o poder destrutivo da droga. Não é só a droga ilíci-ta. As lícitas também. Porém, o cigarro é uma droga individual, o pre-juízo é para a saúde pessoal e para os cofres públicos, onde multipli-cam-se as enfermidades de seu uso decorrente. O álcool, embora lícito,tem sua repercussão nos delitos contra a vida, seja nos delitos de trân-sito como nas lesões e homicídios. Seus efeitos sobre a prática de ou-tros crimes, além dos referidos, é diminuta. Mas as drogas ilícitas esti-mulam uma cadeia de outros crimes que cada vez tornam mais insegu-ra a vida dos cidadãos.

Retornando ao art. 28, é importante observar a exigüidade do prazode prescrição estabelecido no art. 30 da Lei nº 11.343/06. Nointerregno de fatos iniciados pela Lei antiga e a vigência da nova, po-derá ocorrer que quando chegarem ao Juiz estarão prescritos. Registra-se que a Lei respeita os marcos interruptivos da prescrição, art. 117,as suspensões, mas mesmo assim, se menor de 18 anos, incide o art.115, razão por que grande parte dos processos em andamento, se nãofor imediatamente examinada, será alcançada pela prescrição.

Page 50: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 49

Estes os principais aspectos referentes aos usuários e dependentes eà infração descrita no art. 28 e § 1º da nova Lei.

No Capítulo II do Título IV, a Lei trata das condutas típicas que me-recem repressão mais severa, do procedimento penal, dos critériospara aplicação da pena, das causas de aumento e outras medidas im-portantes na repressão ao tráfico de drogas.

Ao ler os tipos definidos na Lei entre os arts. 33 a 37 e os arts. 38 e39, causa surpresa que o legislador tenha criado tamanho tumulto ju-risprudencial e doutrinário com a Lei nº 10.409/02 (na qual foi vetadoo capítulo dos crimes) para praticamente repetir as condutas típicas daLei nº 6.368/76 com pequenas inovações.

O art. 33 repete a definição do art. 12 da antiga Lei, apenas substi-tuindo a palavra “substância entorpecente” causadora de dependênciafísica e psíquica por “drogas”. A lei não fala em nenhum momento emdependência física ou psíquica. O art. 1º, parágrafo único, que diz coma finalidade da Lei (nº 11.343) das políticas repressivas define comodrogas as substâncias ou produtos capazes de causar dependência.

A pena, no caso do art. 33, está cominada no mínimo de 05 a 15 anos.Permite, contudo, a redução de 1/6 a 2/3, se o réu for primário, tiverbons antecedentes, e as circunstâncias fáticas indicarem que não partici-pe de organização criminosa ou se dedique a atividades criminosas.

Há um componente subjetivo. Importante o Juiz, no curso da instru-ção, recolher as informações necessárias, a fim de verificar quando dasentença condenatória a incidência do benefício. A Lei pretende punirde acordo com a culpabilidade, beneficiando o pequeno traficante, pre-so, detido, ou que responde processo uma primeira vez.

Também na fixação da pena, adiantando para não deixar de regis-trar, o art. 42 dispõe que tem precedência sobre as circunstâncias doart. 59 do CP, a natureza e a quantidade da droga apreendida, a con-duta social e a personalidade. A jurisprudência na Lei antiga já haviase firmado no sentido de que a quantidade e a espécie de droga eramimportantes na avaliação das circunstâncias judiciais, valoradas na cul-pabilidade ou conseqüências, agora há dispositivo expresso. Este é umnovo critério. Balizador da pena.

No art. 33 e § 1º estão definidos os tipos de tráfico propriamentedito. O § 1º repete o art. 12, § 1º, inc. I, introduzindo, além do objetomaterial: matéria-prima, insumo, produto destinado à preparação dedroga.

O art. 33 mantém no inc. II do § 1º a conduta de quem semeia, cul-tiva, colhe plantas que se destinam à produção e preparação de dro-gas. No § 1º do art. 28 o legislador dispôs sobre tais condutas, masdestinadas a consumo.

Page 51: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

50 – 2º Ciclo de Estudos

O inc. III do art. 33 manteve entre as condutas mais graves quemutiliza local de que tem a posse, propriedade e vigilância para o tráficode drogas.

Os antigos incs. I e III do § 2º do art. 12 foram considerados tiposmenos graves, e tem definição no § 2º quem induz, auxilia ou instiga,pena de detenção de 01 a 03 anos, e no § 3º quem oferece, eventual-mente, à pessoa de seu relacionamento para juntos consumirem, penade 06 meses a 01 ano, admissível penas privativas de liberdade menosgraves, pois apenados com detenção, até mesmo substituição, nos ter-mos do art. 44 do CP ou sursis.

Os tipos do art. 33, § 1º, 34 a 37, não comportam qualquer benefí-cio e o regime de cumprimento de pena é sempre o inicial fechado,conforme art. 44, pois equiparados aos hediondos.

No caso do § 3º: “Oferecer droga, [...] sem objetivo de lucro, [...]”,é tipo novo que, não raras vezes, na Lei antiga, o Juiz terminava porabsolver, da classificação no art. 12, ou desclassificar, ante a despro-porcionalidade da pena, agora não se deixa impune, mas a pena é deacordo com a danosidade da conduta.

No preceito secundário do tipo do § 3º, o legislador criou uma penade multa absurdamente desproporcional. Não se vislumbra nem na jus-tificativa, exposição de motivos da Lei, a razão para a multa de 700dias, cominação mínima, igualando-se à da associação, art. 35, e amáxima, 1.500 dias-multa ser igual a do traficante, art. 33, caput, e §1º.

Até pode-se dizer que fere o princípio da proporcionalidade e incons-titucional, sem dúvida vai gerar uma situação de perplexidade e poderáaté não ser aplicada dentro deste parâmetro, usando-se por analogia o§ 2º: de 100 a 300 dias multa. De qualquer sorte fica o alerta aos Co-legas sobre o tema. A multa, no caso, é cumulativa, se fosse alternati-va, ainda, com esforço, poderia encontrar-se justificativa. O dispositivodo art. 33, § 3º, não dispensa, se o agente for usuário, de aplicar-setambém as medidas do art. 28 e incs. II e III.

O art. 34 repete o antigo art. 13 da Lei nº 6.368/76, substitui o vo-cábulo substância entorpecente por drogas e exclui a referência à de-pendência física ou psíquica. Este crime é hediondo, pois trata do for-necimento, aquisição, etc., de maquinário, equipamento para a produ-ção, fabricação, transformação de drogas. Este crime está mais afetoaos laboratórios de preparação de drogas vedadas. A pena é de 03 a 10anos, e a multa é de 1.200 a 2.000 dias.

O art. 35 define a associação, repete o antigo art. 14. Aqui, contudo,sobressai uma questão interessante. A Lei excluiu do art. 40 que tratadas causas de aumento, a associação eventual, o concurso de agentes

Page 52: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 51

do art. 18, III (manteve no inc. VI a majorante quando visar a crian-ças, adolescente ou quem tenha capacidade reduzida).

A associação do art. 35 prevê a reiteração ou não nas práticas crimi-nosas definidas nos arts. 33, § 1º, e 34. O tipo do art. 35 repetiu o art.14, mas embora a exclusão do concurso de agentes, não significa quea associação necessite de uma organização formal e que seja contínuaou permanente.

Com a exclusão do inc. III do art. 18, pode configurar associação areunião para a prática de crimes, mas com uma conotação que não exi-ge permanência, mas também não se satisfaz no mero concurso. Quan-do ocorre uma só vez.

Tem-se entendido que se condenado pelo art. 18, III, pode ser ex-cluído no juízo de execução o quantum de aumento, por retroagir anova Lei em benefício do réu, nos termos do art. 5º, inc. XL, e pará-grafo único do art. 2º do CP.

O parágrafo único do art. 35 estende a associação para o crime definanciamento do tráfico, art. 36. Observa-se que é a pena cominadamais alta dos tipos descritos, de 08 anos a 20 anos, correspondendouma multa proporcional de 1.500 a 4.000 dias-multa.

Também é novo o tipo do art. 37: que pune o colaborador, o infor-mante do grupo, da associação (bando) com o tráfico, art. 33 e § 1º ouart. 34. Talvez fosse necessária a punição de quem colabora, informa ofinanciador, mas talvez por ser um tipo individual tal figura não foicriminalizada.

O tipo do art. 38 corresponde ao antigo art. 15, delito culposo própriode médicos, dentistas, farmacêuticos, enfermeiros, etc. A nova descriçãoretirou a referência aos profissionais, tipificando “Quem prescrever, mi-nistrar, culposamente, drogas sem que a pessoa dela necessite ou o fazem doses excessivas ou em desacordo com determinação legal ou regu-lamentar”. A Lei no parágrafo, determina, no caso de profissional, sejainformada a condenação ao Conselho Federal da categoria.

Há um tipo novo no art. 39: “Conduzir embarcação ou aeronave apóso consumo de drogas, expondo a dano potencial a incolumidade de ou-trem”.

A descrição é similar ao art. 306 do CTB, mas como este Código nãoalcança veículos que circulam por água ou por mar, a Lei nº 11.343houve por bem descrever a conduta de quem conduz “embarcação ouaeronave”, após ingerir drogas, expondo a dano potencial terceiros.Antes desta Lei, o piloto de qualquer destes veículos, se causasse peri-go de dano, real e efetivo, era punido como contravenção ou exposiçãode perigo, conforme as circunstâncias concretas. O perigo não pode serabstrato, mas concreto ou potencial risco à segurança de terceiros.

Page 53: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

52 – 2º Ciclo de Estudos

Entre as sanções, cumulativamente, foi estabelecida a cassação dahabilitação ou proibição de obtenção da licença. A cassação permite seconclua que somente após o cumprimento da pena e da reabilitaçãopoderá novamente habilitar-se. Aqui, diferentemente do Código deTrânsito, o legislador estabeleceu que a cassação é pelo tempo da penaprivativa imposta. Há uma causa de aumento se o condutor estiver aserviço de transporte público ou coletivo.

A Lei nº 11.343/06 ampliou as antigas causas de aumento do art. 18da Lei nº 6.368/76. São sete incisos, alguns bastante ampliados, in-cluem diversas circunstâncias. No inc. VII estabelece como majorante acircunstância de ser financiador. Significa que, se o agente além do trá-fico, financiar, custear, tem a pena acrescida, porém, se for somente ofinanciador, sua conduta é autônoma e enquadrada no art. 36 da Lei.

Observa-se que foi retirado do antigo art. 18, inc. III – o menor de 21anos e maior de 60 anos, estabelecido no inc. VI do art. 40: Se envolvercriança ou adolescente ou quem tenha sua capacidade diminuída.

O inc. IV do art. 18 indicava os locais onde era comercializada a dro-ga e podiam levar a incidir a majorante, no inc. III do art. 40 ampliou-se tais locais, incluindo-se, também, unidades militares, policiais, esta-belecimentos de tratamento de dependentes, transportes públicos.

Outras foram incluídas como o tráfico entre Estados da Federação eo inc. I quando se trata de trafico transnacional. A causa de aumentotem a ver com a realidade de que o Brasil passou um corredor de pas-sagem para droga vinda da Bolívia, Colômbia e remetida a outros paí-ses.

A modificação significativa para a vivência prática do dia-a-dia dosprocessos é a exclusão do concurso de agentes – antigo art. 18, III, daLei nº 6.368/76, não contemplada na nova Lei. Também não se podedeixar de registrar que a causa de aumento agora fica entre a fraçãode 1/6 a 2/3, antes era 1/3 a 2/3.

A nova legislação manteve a redução para quem, voluntariamente,colaborar, denunciar, contida na Lei nº 10.409 e art. 8º, parágrafo úni-co, da Lei nº 8.072, a redução aqui especificada no art. 41 pode, a cri-tério do Juiz, beneficiar quem colaborar com a investigação policial eprocesso criminal. A redução será entre 1/3 e 2/3. Não fica mais sujei-to ao pedido do Ministério Público. A colaboração deve ser significativapara o desbaratamento da quadrilha, com indicação de outros co-réus,permitindo a apreensão parcial ou total dos produtos.

Essa causa de diminuição de pena é mais ou menos o que já constada Lei das Organizações Criminosas, a Lei nº 9.034/95.

Explicitados os tipos e causas de aumento e diminuição, verifi-ca-se que a Lei trouxe alguma modificação quanto à fixação dapena.

Page 54: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 53

O art. 42 dispõe expressamente que o Juiz, ao avaliar o art. 59,deve considerar como preponderante a natureza e a quantidade dasubstância ou produto e as condições sociais e personalidade do agen-te. Mantêm-se nos arts. 45 e 46 a inimputabilidade e imputabilidaderestrita.

Significativa a inclusão, no art. 47 da Lei, da possibilidade de o Juizdeterminar na sentença condenatória o encaminhamento para trata-mento por profissional específico se for dependente de drogas (art. 26da Lei).

O art. 44, repetindo outras leis e, em parte, a Constituição Federal,dispõe que os crimes previstos nos arts. 33, § 1º, 34 a 37 sãoinafiançáveis, insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdadeprovisória, vedada a conversão das penas em restritivas de direitos.Reitera o parágrafo único, o que já dispunha o Código Penal, art. 83,que o livramento condicional dar-se-á cumpridos 2/3, e se reincidentenão tem direito ao benefício. A corrente jurisprudencial majoritária en-tende que a vedação do livramento condicional se aplica quando a rein-cidência é específica.

Leis esparsas ou a interpretação dos incs. XLIII e XLVIII da CF per-mitiam que o Juiz justificasse a vedação das substituições, regimesmais brandos, liberdade provisória, indulto, mas agora existe um crité-rio legal para a aplicação. Certamente, surgirão questionamentos, masisto é próprio do Direito, principalmente da aplicação da lei penal, masa inaplicação exige pelo menos fundamentação do Juiz na sentença.

O art. 48 dispõe sobre a competência dos Juizados Especiais Crimi-nais para os delitos do art. 28, salvo se houver concurso com outromais grave. Significativo que expresso no art. 48 que para as infraçõesdo art. 28 não se imporá prisão em flagrante, mas o procedimento é deacordo com a Lei nº 9.099/95.

É interessante registrar que houve modificação nos laudos prelimi-nares: elaborados por perito oficial ou pessoa idônea. Eliminou-sequalquer discussão sobre a disposição da Lei nº 10.409/02 que implici-tamente previa dois interrogatórios. O prazo do inquérito ampliou-sede 30 dias se o réu estiver preso, e 90 dias se estiver solto. O Ministé-rio Público tem prazo de 10 dias para denunciar, pedir arquivamentoou requerer as diligências. Antes de receber a denúncia.

O Juiz recebe e determina a notificação para a defesa preliminar e,só depois de recebida a denúncia, manda citar o réu.

Recebida a denúncia, a audiência de instrução e julgamento deverárealizar-se no prazo de 30 dias. Não o fazendo dentro deste prazo, re-comendável a justificativa pelo Juiz que preside o inquérito, pois sem-pre por motivo de força maior poderá extrapolar os prazos (art. 798, §4º, do CPP).

Page 55: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

54 – 2º Ciclo de Estudos

Na sentença deverá ser observado o provimento determinando a in-cineração das drogas, em regra, em 30 dias, feita pela Secretaria deSaúde, ou órgãos de saúde juntamente com os de segurança, lavradoum laudo, o art. 32, § 1º, que fala na incineração das drogas.

Em linhas gerais, estas são as modificações da Lei.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Particularmente, penso que aLei, para os traficantes, melhorou. Isto na medida em que, tirandoa pena mínima do antigo art. 12, que passou de 03 para 05 anos, edesconsiderando a pena do art. 36, destinada ao financiador do trá-fico, de 08 a 20 anos, no mais, temos praticamente coisas benéfi-cas.

Para encaminhar o pequeno debate, nós podemos pensar o seguinte:os Juízes estão com os processos em andamento. É aquilo que apren-demos na faculdade: Lei Penal no Tempo ou Direito Intertemporal, por-que temos alguns réus condenados definitivamente, e isso, em princí-pio, levará o assunto a ser examinado na Execução Penal, matéria queiremos tratar no último bloco. A retroatividade da lei, quando benéfica,terá efeito nos processos em andamento, e também naqueles com sen-tença transitada em julgado.

Então, vamos procurar enfocar agora a questão Situações Novas eSituações em Andamento, em 1º ou em 2º Grau.

E, usando da prerrogativa de estar nessa Mesa, proponho uma pri-meira questão: o art. 36 da lei antiga – ela foi expressamenterevogada – dizia: “Para os fins desta lei serão consideradas substânci-as entorpecentes ou capazes de determinar dependência física ou psí-quica aquelas que estiverem relacionadas”.

A nova Lei fala em drogas. Então, às vezes ouvimos dizer que não émais entorpecente, é droga, mas o art. 1º, parágrafo único, da Leinova diz: “Para os fins desta lei consideram-se como drogas as subs-tâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especifi-cados [...]”.

E os entorpecentes onde ficaram? Os entorpecentes que não geramdependência? Como, por exemplo, o nosso palestrante da manhã falou,o LSD é entorpecente, mas não gera dependência.

É o primeiro problema, ou será que é tudo a mesma coisa, ColegaElba?

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Essa é uma decisãotécnica, mas a meu ver drogas têm um significado mais amplo. Inclusi-ve, há muito se questionava a propriedade da nomenclatura: substân-cias entorpecentes causadoras de dependência física ou psíquica.

Page 56: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 55

É droga ou produto, se estiver relacionado na lista da ANVISA eas condutas nucleares descritas forem proibidas, sempre que emdesacordo com determinação legal ou regulamentar. É normativo otipo.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Ou será que precisa uma nova lis-ta? Será que automaticamente vamos começar a examinar? Isso aquinão é gerador de dependência, e é entorpecente.

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Por ora não. A Lei noart. 66 dispôs que, até a atualização da terminologia, denominam-sedrogas, substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outrade controle especial listadas na Portaria Normativa nº 344/98-SVS(ANVISA)-MS. Certamente a lista será atualizada.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Evidente que o propósito dessadiscussão é levantar opções, discutir. Ninguém aqui tem a pretensãode colocar alguém [...] e dizer que isso é assim, de maneira definitiva.Expor, ouvir, criticar, discutir, debater.

Lembro sempre de uma reunião, promovida também pelo Centro deEstudos, a respeito do Estatuto do Desarmamento. Alguns temas entãodiscutidos, em um primeiro momento, pareciam “fantasmas”. Mas, aolongo do tempo, demonstrou-se que aquele fantasma não era uma ilu-são, era uma realidade.

Quase tudo o que, naquela primeira reunião, foi discutido, e pareciauma loucura, ao longo do tempo foi sendo demonstrado que estávamoscertos.

Então, agora, temos esse emaranhado aqui, a execução penal de-pois, mas parece que os processos em andamento já vão oportunizar aincidência, evidentemente, da Lei nova.

Então, a minha indagação era essa, começando pelo art. 1º, pará-grafo único, que em princípio está ao menos levantada.

Quem tem outras indagações?

PLATÉIA – Com relação ao § 4º do art. 33 [...]. Ele só remete aocaput e ao § 1º.

Então, só diminui a pena dos delitos mais graves e não diminui ados delitos menos graves, apesar de estarem todos no mesmo artigo,por bons antecedentes, bons antecedentes não, tudo bem, por primá-rio, bons antecedentes e por não se dedicar a atividades criminosas.

Parece-me que isso é uma impropriedade, ou diminui-se de todos oude nenhum.

Page 57: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

56 – 2º Ciclo de Estudos

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Pode não ser muitoprópria em alguns aspectos, mas veja que as penas do § 2º e do § 3º sãopequenas e podem ser substituídas, se houvesse redução poderia ocorrerimpunidade ou ser mais benéfica a redução que as medidas do art. 28.

E, com relação ao financiador me parece que é o tipo mais grave eincompatível com o § 4º. O informante do bando, art. 37, também temuma pena menor. A associação, art. 35, é uma organização, portanto,repele a causa de diminuição do § 4º do art. 33.

E o art. 34, “fabricar, adquirir, utilizar”, enfim, a pena mínima é de03 anos. Não houve alteração deste tipo que repete a Lei antiga, salvoa multa.

PLATÉIA – Ainda acho que, mesmo a pena sendo pequena, se aosdelitos mais graves, do mesmo artigo, cabe uma diminuição especial,para os delitos menos graves também deveria caber. Eu pessoalmentepretendo aplicar esse parágrafo para todos os crimes do mesmo artigo.

A segunda questão é que no art. 33 fala em “oferecer, ainda quegratuitamente”. Só que “oferecer eventualmente, sem objetivo de lu-cro”, também é o § 3º; e oferecer também pode ser considerado, jáque o § 3º é para uso comum, juntos a consumirem, como “induzir,instigar ou auxiliar”.

De maneira que a mesma conduta, no mesmo artigo, serve para 03tipos diferentes.

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – O § 3º é eventual, sóeventual; já o caput não, refere-se àquele “ainda que gratuitamenteoferece”. A distinção está na eventualidade e o acréscimo “para juntosconsumirem”. Certamente o caso concreto determinará a desclassifica-ção ou não, mas realmente é uma sutileza.

PLATÉIA – Exato, mas o § 2º não diz que tem que induzir, instigarou auxiliar de forma eventual, e oferecer pode ser isso aí também.

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Essa é uma repetiçãoda Lei anterior, mas no caso, não é necessária a eventualidade, embo-ra presuma-se, porque o agente não tem a droga consigo, mas induz,instiga ou auxilia.

PLATÉIA – Exato. A Lei, pelo mesmo verbo, tem 03 condutas, com03 penas completamente diferentes.

É só uma impropriedade que percebi, lendo a Lei, e certamente tere-mos dores de cabeça com relação a...

Page 58: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 57

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Além de “induzir, ins-tigar e auxiliar”, qual é?

PLATÉIA – Oferecer. Quando tu ofereces, além de induzir, tu insti-gas e auxilias.

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Mas oferecer é outrotipo ou mais grave se dentro do art. 33 ou o mais leve, do § 3º.

PLATÉIA – Já existia, só que a pena era a mesma para todos osverbos. Agora a pena muda e muito, muda de reclusão, de 05 a 15anos, para detenção, de 01 a 03 anos.

Então, vejo que vamos ter um problema grave de prova, vai serquestão de instrução.

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Realmente, o induzir,instigar e auxiliar são as circunstâncias fáticas concretas que determi-narão, mas o § 2º é benéfico em relação à Lei anterior.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – No § 2º ou no § 3º.

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Exatamente, em am-bos, no caput e no inciso. Existem verbos nucleares que se adequam;no § 2º ou no § 3º é possível a classificação no mais grave: oferecer,instigar, auxiliar, não deixam de estar na mesma definição se o agentetiver consigo a droga e auxilie, instigue ao uso.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Dá-me o fato que lhe dou o Direito.

DR. LUCIANO LOSEKANN – Des. Ivan, sou um civilista metido emseara alheia. O art. 55 prevê a necessidade da notificação para ofereci-mento da defesa prévia, e, logo depois, o art. 56 prevê que, “recebidaa denúncia, o Juiz designará dia e hora para a audiência de instrução ejulgamento”.

Não falha a Lei aqui ao não prever a intimação do advogado, do de-fensor do sujeito?

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Ela falha, sim, e mui-to, eu já tinha observado este aspecto. Penso que deveria constar aintimação do advogado, mas a Lei não especifica. Acrescenta-se quepermaneceu tanto tempo aguardando aprovação e não houve muito deba-te. Com o perdão da adjetivação, a Lei nº 10.409 já foi uma “porcaria”,

Page 59: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

58 – 2º Ciclo de Estudos

copiaram a Lei nº 6.368, retiraram alguns dispositivos, acrescentaramoutras exigências. Realmente, ela não é nenhum primor técnico.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Vou aproveitar, já que o Dr.Losekann falou no defensor, e comentar algumas coisas que observa-mos nos processos. É, certamente, apenas um cacoete. Muitos Juízesgostam de dizer assim, quando mandam citar, agora é intimar o réupara apresentar resposta preliminar: “Para que apresente a defesa emtantos dias ou constitua novo defensor em tantos dias, sob pena de lheser nomeado defensor dativo”.

O pior é que o defensor depois aceita e ainda agradece, ele deveriaresponder ao Juiz primeiro que, embora tenha sido dito que é umapena para o réu, ele faz tudo para defender o réu.

Dr. Irion.

DR. IRION – [...] da disponibilidade da Desª Elba Nicolli Bastos, doDes. Bruxel, de oportunizar essa troca de idéias entre o pessoal do 1ºGrau, nós Juízes do 1º Grau, os assessores, alunos de nossa escola,para que troquemos idéias acerca de uma nova legislação, que sem dú-vida vai suscitar muitas e incontáveis dúvidas.

Uma coisa em que eu queria trocar idéia com a Desª Elba diz respei-to ao art. 35, o crime de associação para o tráfico. A senhora disse queagora a Lei colocou a expressão reiteradamente, ou não. Há um equí-voco aqui, porque o antigo art. 14 já falava em reiteradamente, ounão.

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Realmente, falava,mas em razão da causa de aumento, quando não havia prova da reite-ração, a tendência era aplicar a causa de aumento e não o delito autô-nomo de associação. Mas como permanece no tipo, apenas quero regis-trar e retificar, não é uma novidade na lei “a reiteração ou não”.

DR. IRION – É nisso que vou ousar discordar pois acho que nãoperde o caráter, para caracterização do crime de associação, que tenhaque ser uma associação estável e permanente. O eventual concurso deagentes, no meu modo de ver, como não serve mais para majorar, vaiser usado para...

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Em regra não vai ser-vir para majorar absolutamente nada, mas para tipificar.

DR. IRION – Mas acho que essa co-autoria eventual, esporádica,não vai ter a força de caracterizar o crime de associação.

Page 60: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 59

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Depende das circuns-tâncias, mas acredito que não.

DR. IRION – Toda aquela jurisprudência sedimentada que já haviapara tipificação de associação no antigo art. 14, que exigia reuniõesprévias, uma associação permanente e estável...

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Isto é necessário ain-da.

DR. IRION – Isso, mas o reiteradamente, ou não, estaria somentevinculado ao fato de que não há necessidade de efetiva prática de umdos crimes do ilícito, do tráfico. O reiteradamente eu sei, ou seja, com-provado...

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Há necessidade deprática, essas condutas podem não ser reiteradas, mas se provada aassociação configura o crime.

DR. IRION – Existir, independentemente da efetiva prática de umdos crimes. O que entendi, posso estar equivocado, é que a senhorateria colocado que, como não há mais a majorante na circunstância deco-autoria, ficaria tudo abarcado na situação da associação.

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Não fica necessaria-mente abarcado. A circunstância concreta vai determinar, tanto queestá excluindo o art. 18. Em regra, ocorria que a associação terminavapesando demais na pena ao serem condenados em concurso de crimes,sendo afastada, condenavam pelo art. 18, inc. III. Alguns casos quetem surgido, não havendo uma associação, denunciados por ela, apli-cado o art. 18, inc. III, obviamente, não se pode condenar ou manter ocrime autônomo. Exclui-se o art. 18, III, concurso eventual, por exem-plo, dois réus presos pela venda de drogas, não associaçãoestruturada, mas um concurso eventual, este não mais é causa de au-mento.

DR. IRION – Como é que as Câmaras Criminais estão abordando otema, eventualmente em sede de apelação, em que no 1º Grau houve acondenação pelo art. 12 com a majorante do concurso eventual?

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Está-se excluindo. Oentendimento é no sentido de que a Lei é mais benéfica agora,retroagindo em favor do réu pelo inc. XL do art. 5º da CF.

Page 61: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

60 – 2º Ciclo de Estudos

DR. IRION – Para aqueles que foram condenados pelo art. 12 e sãoprimários, sem antecedentes, não se dedicam à atividade criminosa enão participam da associação criminosa, será que aquela minorantenão tem que também retroagir por ser lei mais benéfica?

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Já discutimos na reu-nião do Centro de Estudos, se seria possível em revisão criminal; em-bora efetivamente não caiba dentro do art. 621, acho que caberia tal-vez no inc. III. Alguém entende que poderia no juízo da execução, mastrata-se de avaliação subjetiva para efeitos de fixação de pena, portan-to, a meu ver, cabível a discussão em revisão, mas não em execução,quando a sentença transitou em julgado.

DR. IRION – Des. Bruxel, eu gostaria de saber a sua opinião tam-bém.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Na 1ª Câmara Criminal tenho ficadovencido com relação à aplicação dessa que eu chamo de redutora do §4°. Os Colegas dizem que, como a pena nova mínima é de 05 anos, en-tão essa redutora deveria ser aplicada apenas sobre esse número. Te-nho utilizado um argumento para permitir que por enquanto já fiqueabaixo dos 03 anos. Tenho um cálculo numérico: 05 anos são 60 me-ses, a redução do § 4° pode ir até 2/3; portanto, a pena mínima paraalguém condenado por tráfico hoje é de 01 ano e 08 meses. Então,penso que posso, nos processos em que houve condenação, e cujos re-cursos estamos apreciando, também é possível levar a pena no mínimoaté isto. Claro que não vamos aplicar 2/3 sobre os 03 anos, mas possolevar essa pena até 01 ano e 08 meses, porque, se o fato aconteceu jáao tempo da Lei nova, permitindo pena menor que os anteriores 03anos, este efeito deve retroagir para os fatos anteriores.

A outra questão é a do art. 18, inc. III, da Lei n° 6.368/76, no qualtambém estou sozinho, mas em sentido contrário. Se o art. 18, inc. III– na parte relativa ao concurso eventual de agentes –, era uma majo-rante, o Juiz não podia considerar o concurso de agentes como circuns-tância judicial. No momento em que não é majorante, eu devo – nofurto qualificado, por exemplo, é uma agravante, imposta ao líder doconcurso de agentes. Então, se os crimes cometidos em concurso emprincípio são mais graves do que os cometidos isoladamente, possoutilizar esse concurso na circunstância judicial do art. 59.

Então, não estou simplesmente excluindo a fração de aumento doart. 18, inc. III. O recurso quase sempre é defensivo, diminuo um pou-co menos, colocando esse concurso na circunstância do art. 59, defi-nindo isto na pena-base.

Page 62: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 61

Se ninguém perguntar, vou colocar a questão do regime, embora re-gime seja já uma coisa um pouco distante. Mas o dispositivo que a Co-lega Elba leu, de que não pode várias coisas, não fala em regime. En-tão, em nossa Câmara já está prevalecendo a idéia de que, se é umalei especial que regulou tudo a respeito de drogas e não falou em regi-me, vale o Código. Não precisa nem discutir se é hediondo ou não.

DR. IRION – A questão da tipificação benéfica também nos proces-sos em andamento, por exemplo, o cultivo da maconha para uso pró-prio, eu já desclassificava. Agora a gente aplica a nova Lei? É um tiponovo. Na época do fato, ele não praticou esse tipo, praticou outro.

Outra questão é a de oferecer para familiar, eventual, sem fins lu-crativos, antes ficava no art. 12, se a gente hoje aplica a Lei, nos pro-cessos que estou lá para julgar agora.

E uma segunda questão, a da defesa preliminar. Havendo defensorconstituído nos autos, intimado, e não apresentar, há necessidade deconstituir defensor para fazê-lo? E, se for intimado para fazer e não fi-zer, nomear outro defensor?

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – A Lei manda nomeardefensor para apresentar a defesa. Isto porque se for expedido manda-do para que constitua outro, ficará muito tempo preso. Mas, se não es-tiver preso, não há problema. O defensor deve ser intimado, acho quea Lei neste ponto pode ser falha, mas adota-se o Código de ProcessoPenal.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Acho que a pergunta dele é se temum defensor constituído, e este defensor não apresenta a resposta pre-liminar.

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Se não apresentar,imprescindível a nomeação.

DR. IRION – No flagrante, por exemplo, tem. O defensor fez o pedi-do de liberdade, enfim, foi analisado o flagrante, e daí no prazo inti-mou o constituído e não ofereceu.

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – A Lei manda nomear.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – E a plantação para uso próprio.

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Plantação para uso pró-prio, no entender da Câmara, descaracteriza o tráfico. O Des. Giacomuzzi

Page 63: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

62 – 2º Ciclo de Estudos

inclusive entende que deve-se advertir, mas isto num primeiro momen-to, posteriormente, surgindo os casos, poderá haver entendimento deque excluída a prisão, mantêm-se a PSC de preferência atendendo o §5º do art. 28. Serviços em fazendas de recuperação já têm sido aplica-dos pelos Juízes.

DR. IRION – Mas desclassificação, então reconheço...

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – É uma reclassifica-ção, redefinição da conduta por revogado o art. 16, agora subsiste oart. 28, onde não há previsão de privativa de liberdade.

Casos de plantação, também, cabe redefinir a conduta, porque a Leiem vigor é benéfica – inc. XL do art. 5º da Constituição. Se retroage afavor do réu, no caso de dois ou três pés de maconha no quintal, de-monstrado que para uso próprio – ao invés de absolver-se, desclassifi-ca-se dentro de um critério legal. Na Lei antiga ocorria uma interminá-vel polêmica por não conter no art. 16 o plantar, semear, colher.

DR. IRION – De repente isso pode até ser mais benéfico...

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Penso que a Lei novaresolveu dois impasses: a do semear, colher e cultivar, em pequenasquantidades, plantas capazes de produzir drogas, e a de oferecer parajuntos consumirem. Imprescindível, contudo, examine-se a circunstân-cia concreta.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Eu não aumento. Só não diminuotanto.

DESª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS – Tudo bem. Está certo.Acho que sim, tem que excluir. Não há mais o concurso.

Page 64: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – O Dr. Alberto Del-gado Neto, também nosso conhecido, o que até dis-pensaria apresentações, irá desenvolver o assunto OJuizado Especial Criminal e a Nova Lei de Tóxicos.

O Colega ingressou na Magistratura em 1990. An-tes, foi Promotor de Justiça. Passou pelas Comarcasde Cerro Largo, Vacaria, Porto Alegre e, na Capital,pela 8ª Vara Cível, 3ª Vara de Feitos da Fazenda Pú-blica. Depois, foi Juiz-Corregedor e, por último, noperíodo de 2004 a 2006, Assessor da Presidência.Atualmente, está classificado na Turma Recursal Cri-minal do Sistema dos Juizados Especiais Criminaisem Porto Alegre. É graduado pela PUC e Mestre emDireito pela UNISINOS.

Para desenvolver o assunto e depois responder àsindagações, passo a palavra ao Colega Delgado Neto.

JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL EA NOVA LEI DE TÓXICOS

DR. ALBERTO DELGADO NETO – Boa-tarde a todos, aos nossosColegas, aos alunos da Escola, que estão aqui.

Cumprimento inicialmente o Des. Ivan Leomar Bruxel. Pelas conver-sas que vimos mantendo nos corredores dos Foros, notamos que esta-mos todos orgulhosos com o que vem sendo desenvolvido pelo Centrode Estudos do Tribunal, um espaço de aperfeiçoamento teórico, cultu-ral, de qualificação jurisdicional e vem sendo levado, especialmente naAdministração atual, com muito êxito e com muita dedicação pelos Co-legas que a integram. Sabemos que todos mantêm seus afazeres, suasatividades jurisdicionais, mas isso não os impede de exercer esse tra-balho com dedicação. Eu gostaria de fazer esse registro.

A nossa conversa abordará uma legislação nova, que gera natural-mente debates acalorados, especialmente porque trata de temas que

Page 65: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

64 – 2º Ciclo de Estudos

estão próximos muitas vezes e fazem com que, de alguma forma, fujamosum pouco do padrão técnico de interpretação do sistema e das regras,embora isso seja natural para nós, magistrados, que temos de dar asolução final, temos que tentar nos manter dentro da busca de umaideologia da lei.

Temos de reconhecer que não existe isenção; existe a imparcialida-de. Não existe a isenção, porque todos nós temos a nossa bagagemcultural e ideológica, que vem com a nossa formação histórica. De al-guma forma, temos que identificar isso e tentar fazer com que essa in-terpretação não sofra muita influência da nossa visão de mundo espe-cialmente em assuntos em que exista um interesse público que estápreponderando. Esse interesse público, dentro de um princípio demo-crático, deve ser defendido com todo o esforço por nós, agentes do Es-tado.

A Lei nº 11.343, de 2006, dá conta, nos seus princípios informativosdos arts. 1º, 2º, 3º e 4º, que o objetivo da Lei é, primeiro, a repressãoao tráfico de drogas e entorpecentes. Com isso, já identificamos que,no âmbito da lei onde se quer atacar produção e comércio de entorpe-centes, houve realmente um acirramento, houve uma intenção delibe-rada tanto de especificar melhor as condutas, que antes eramaglutinadas mais no art. 12, quanto também de aplicar, de uma formamais objetiva e especificada, as penas em relação a essas condutas.

Esses artigos também mostram que houve uma intenção – isso éevidente numa regra dessa natureza – de tentar prevenir o uso indevi-do de entorpecentes por parte dos cidadãos e daquelas pessoas quenós chamamos normalmente de usuários de droga, que não é quempratica o crime mais grave (a venda), mas é alguém que está contribu-indo para que o sistema permaneça com algum desequilíbrio em ter-mos de regulação. Tendo havido uma opção política do sistema de queentorpecente é negativo para o tecido social, é negativo para o equilí-brio das relações sociais, é negativo ao interesse público, por óbvio, ti-nha que abranger também a parte do usuário, senão ficaria um ciclonão fechado de atuação estatal.

O art. 18 estabelece as atividades do Estado para efeitos de preven-ção, onde repete o inc. III, traz lá várias vezes, em vários pontos daLei, o fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individualdos agentes.

Mais adiante, nos arts. 20 a 26, no Capítulo II, a Lei trata de políti-cas de reinserção social e atendimento aos familiares dos usuários.Isso significa que o usuário não estaria inserido naturalmente na socie-dade; se precisa reinseri-lo, é porque ele saiu do seio normal da socie-dade, portanto é uma conduta – o uso do entorpecente – que continuasendo marginalizada pelo sistema.

Page 66: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 65

O Capítulo III, no mesmo Título II, trata, a partir do art. 27, dos cri-mes e das penas. Vejam que, numa seqüência lógica, a legislação trazum tipo específico na parte do uso do entorpecente, titulando queaquelas condutas dos artigos inseridos são consideradas criminosas etêm a pena prevista no artigo.

Assim, penso que a primeira identificação a ser feita é se a preten-são da Lei foi de descriminalizar o uso, como vem sendo dito por al-guns doutrinadores e estudiosos do assunto; ou despenalizar o uso,como dizem outros, embora continue sendo crime sem pena; ou aideologia da Lei não traz nenhuma dessas iniciativas radicais de descri-minalizar ou despenalizar.

Penso que devem ser usadas, então, ferramentas técnicas de herme-nêutica e interpretação para essa identificação, onde inicialmente sebusca o interesse que prepondera no art. 28, que traz as condutas típi-cas do usuário do entorpecente, isto é, ou o interesse maior é o usuá-rio da droga e a sua recuperação, ou o interesse maior é o interessepúblico da sociedade, de prevenção por meio da reinserção social e daredução de uma massa de condutas que são de consumo e, sendo con-dutas de consumo, estimulam o crime maior, que é o crime de produ-ção e tráfico de entorpecente.

Não se discute aqui que esses dois lados de interesses estão atendi-dos pela regra, porque, se há uma principiologia de prevenção e rein-serção social, obviamente há uma preocupação estatal com o usuário,mas também existe uma preocupação natural do Estado com a manu-tenção de uma certa assepsia, de uma certa higidez do tecido social.Talvez seja isso que esteja preponderando, embora com algumas alte-rações fortes – por essa razão, causa uma certa celeuma no âmbitoacadêmico e no âmbito sociológico –, que mostram, na minha visão,que houve ainda uma preponderância de preocupação com o interessepúblico da sociedade na extirpação ou na redução ao máximo da per-manência das substâncias entorpecentes no seu seio.

Na busca de contextualização dessas condutas do art. 28, verifica-mos que houve uma ampliação, através da utilização dessas ferramen-tas de hermenêutica, na análise de casos, do rol de condutas, inserindoatualmente no § 1º do art. 28 condutas como semeadura, cultivo, co-lheita para uso próprio de entorpecentes, algo que não havia no art. 16da Lei anterior.

Com essa postura do legislador, caracterizando essas infrações comodelitos de menor potencial ofensivo, conforme está no art. 48, § 1º, in-cluindo esse tipo de conduta nos ritos da Lei nº 9.099, de 1995, Juiza-dos Especiais Criminais, verifica-se que se busca atingir o interessepúblico de prevenção do uso de tóxicos. Isso começa a ficar evidentequando se mantém no Judiciário a missão de verificar essas condutas e

Page 67: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

66 – 2º Ciclo de Estudos

atuar dentro da previsão legal de aplicação de pena, que está dito noart. 28.

O instrumento mais efetivo que o Estado tem para prevenir determi-nadas condutas individuais identificadas como negativas à saúde do te-cido social ainda é a criminalização. Penso que o intuito de descrimina-lizar, como alguns dizem, não houve. Há autores de renome dizendoisso. O próprio Dr. Luís Flávio Gomes defende essa idéia, que pelo me-nos nós da composição da Turma Recursal Criminal não conseguimosainda digerir com facilidade.

A Lei fez, no seu conjunto, uma opção evidente de acirrar punição decondutas associadas ao tráfico de drogas e amenizar punição de condu-tas relacionadas ao uso. Resulta essa conclusão de que o uso não secombate com penas severas. Penso que essa conclusão podemos extra-ir. Isso não significa que o uso, as condutas do art. 28 tenham deixadode ser condutas criminosas.

Existem alguns fundamentos de ordem formal que podem justificarmelhor esta conclusão de que as condutas do art. 28 se mantêm aindacomo condutas criminosas. No plano formal, porque o art. 28 diz lá noinício Dos crimes e Das penas. Então, formalmente, não houve umamanifestação expressa na legislação de que efetivamente esse tipo deconduta no âmbito penal tenha deixado de ser crime ou tenha deixadode sofrer pena.

O segundo argumento de ordem punitiva é que o art. 27 abre o Ca-pítulo III dizendo que essas penas do art. 28 podem ser aplicadas iso-lada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo,ouvidos o Ministério Público e o defensor. Logo, trata-se de penas, cujamodificação depende da participação do titular da ação penal, isto é,do representante da sociedade que tem a prerrogativa de ir atrás de al-guém para aplicar a Lei Penal e exercer a pretensão de pena, e tam-bém do defensor do réu. Obviamente que não está preponderando aí ointeresse do autor do fato, mas, sim, um atendimento preventivo natu-ral de crime e um atendimento repressivo de satisfação à sociedade.

Ora, se observarmos quem tem a pretensão de exercer o juspuniendi e participa da substituição da pena, porque o Juiz não podefazer isso sem a participação do Ministério Público, conforme está nalei, não há como não identificar aí essa preponderância do interessepúblico.

Estruturalmente, o art. 28 ora usa o termo medidas educativas ousimplesmente medidas, ora usa o termo penas. O caput do art. 28 falaem penas; o § 1º fala em medidas; o § 3º fala em penas; o § 4º falaem penas; o § 6º fala em medidas educativas. Na realidade, houve aopção por essas medidas e penas, já que o inc. II traz expressamentea sanção de prestação de serviços à comunidade, que está em conso-

Page 68: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 67

nância com o Direito Penal moderno, de distanciamento histórico douso de medidas aflitivas de sofrimento corporal. Na História da Civiliza-ção, verificamos o afastamento desse tipo de atuação para outros tiposde circunstâncias alternativas que punem, restringem liberdades sociais,sim, mas são medidas mais leves, dentro de uma evolução histórica na-tural. Elas já estão contempladas no Código, no art. 32, como as penasrestritivas de direitos.

Então, não há dúvidas de que são penas. O inc. II traz lá prestaçãode serviço à comunidade. Parece que, sem qualquer ressalva legal paraaplicação das outras, penso que o art. 28 é tipo penal, sim, com previ-são de pena.

O outro argumento de ordem constitucional é o art. 5º da Constitui-ção. O seu inc. XLVI, quando trata da individualização da pena, traz aprivação ou restrição de liberdade, perda de bens, multa, prestação so-cial alternativa, suspensão ou restrição de direitos. A própria Constitui-ção trata isso como pena na individualização das penas no âmbito pe-nal. Ainda diz dentre outras, autorizando o legislador ordinário a criaroutras formas de pena. A partir do momento em que a Constituição dizque são essas as penas que elenca dentre outras, está dando umaabertura normativa para que o legislador ordinário traga outras penastambém para dentro do sistema.

Então, também constitucionalmente, não vejo nenhum impedimentode que tenha esse art. 28 como crime o uso de droga e substância en-torpecente. Além de permitir ao legislador criar novas penas – claroque sempre menos graves do que aquele teto permitido na Constitui-ção, pena de morte, prisão perpétua, etc. –, foi essa opção que fez oinc. II ao prever a prestação de serviços à comunidade, não mais per-mitindo apenas que se aplique àquelas condutas ali a privação de liber-dade, como havia ainda no art. 16 da Lei anterior.

Teoricamente, a posse e o uso continuam sendo um ato ilícito – dis-so ninguém tem dúvida –, com sanção estabelecida na Lei para a suaprática, mantendo o conceito de tipicidade daqueles fatos, ficando claraa antijuridicidade daquelas condutas pela reprovação social que vemexpressada nessa Lei, não só no art. 28, mas em toda a sua estruturaprincipiológica. A sociedade reprova o uso de drogas. Apenas houveuma amenização no âmbito da culpabilidade. O reconhecimento legalde que o usuário necessita de medidas educativas e impositivas parainduzi-lo a uma reinserção social mostra que, de certa forma, olhou umpouco mais para o usuário, sim, sem deixar de se preocupar com o in-teresse público de conter ou eliminar o uso.

Com isso, não se descuida de uma das pontas do sistema, que émuito relevante, a ponta do usuário, porque é ele que sustenta a práti-ca dos crimes maiores: a produção e o tráfico de drogas e substâncias

Page 69: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

68 – 2º Ciclo de Estudos

entorpecentes. O usuário é o consumidor do traficante. A aplicação demedidas ou penas que contribuam para a sua reinserção social é umavanço do sistema, é algo que deve ser reconhecido, mas é um avançoque ainda tem no seu bojo o caráter impositivo, isto é, não são medi-das que o usuário sofre se quiser e têm o caráter de pena, porque elasse aplicam quando verificada a prática de determinada condutaantijurídica por parte do usuário. Então, é uma pena, não é algo que sepossa dizer de saúde pública, de autoridade sanitária, etc. e tal. Pro-cessualmente, o instrumento utilizado pelo Estado para cumprir a lei eaplicar a pena foi o acionamento da máquina judiciária por meio da Po-lícia, primeiro, do Ministério Público e do Juiz, como está lá no art. 48.

Logo, se o interesse preponderante fosse o da saúde pública unica-mente, através apenas de tratamento de usuários, penso que o enca-minhamento dos usuários seria para as unidades sanitárias, seriammedidas de segurança; não haveria necessidade também da participa-ção do Estado por meio da jurisdição, com seu jus imperium, com asua força soberana de impor a alguém uma pena ou uma medida, aindaque essa medida possa aparentemente indicar que está vindo em seubenefício pessoal. Qual a razão da participação do Delegado? Qual arazão da participação do Ministério Público? Qual a razão de encami-nhar compulsoriamente ao Juiz? Qual a razão de exame de corpo dedelito no autor do fato, inclusive compulsoriamente, se o Delegadoachar necessário? Depois, segue o rito da Lei nº 9.099, com a possibili-dade de o Ministério Público fazer oferta da transação penal, aplicandocertamente aquelas penas antecipadas previstas, para esse tipo deconduta, no art. 28.

Sendo utilizada a Lei nº 9.099, que trata de delitos de menor poten-cial ofensivo no âmbito criminal, isso reforça também a tese de quecontinua sendo crime de menor potencial ofensivo, mas crime sim.

Também a autorização de acumular penas e modificá-las pelo art. 27exterioriza a intenção de que o descumprimento das medidas não ficaao alvedrio pessoal do usuário. Tem, sim, o interesse público em sub-meter inclusive à famosa – o que está dando muita crítica – admoesta-ção verbal. São evoluções de civilização que de início causam algumimpacto. Espera-se que, com o passar do tempo, num Estado democrá-tico, com instituições cada vez mais sólidas e respeitadas, isso passetambém a sofrer algum efeito prático no mundo dos fatos. A opção foifeita por quem tinha a competência para fazê-lo. Pode-se até aplicarmulta em caso de descumprimento da admoestação verbal. Então,existe até uma sanção no caso de não funcionar a chamada admoesta-ção verbal.

A evolução do sistema no que tange a esses delitos de menor poten-cial ofensivo mostra que houve uma mitigação daquele princípio da

Page 70: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 69

obrigatoriedade que conhecemos do Direito Penal: o Ministério Públiconão pode desistir da ação, não pode fazer nenhum tipo de transação.Isso, com a Lei nº 9.099, foi amenizado e está aqui no art. 28, onde sepermite a participação do usuário na construção de sua reprimenda,com a possibilidade da transação. Isso tem contribuído para o interes-se público já na Lei nº 9.099, que é uma redução de custo do sistema,evita que se estabeleçam persecuções desnecessárias em função dagravidade do delito, embora se considerem por ora ainda delitos.

Isso, a meu ver, não significa descriminalização, como não significoupara os delitos quando veio a Lei nº 9.099. Aliás, a Lei traz, no art. 99,a figura da suspensão condicional, que mitiga o princípio da obrigatorie-dade, dando disponibilidade ao Ministério Público de suspensão condi-cional para crimes com pena mínima de 01 ano. Vejam que não só paradelitos de menor potencial ofensivo já existe uma abertura, uma inten-ção do sistema de permitir uma participação maior do acusado naconstrução da solução quando eventualmente praticou algum delito.

A figura da reincidência, que tem dado algumas discussões também,que está prevista no art. 28 como causa inclusive de aumento na apli-cação das medidas e das penas, veio expressamente prevista para ousuário como forma de aumentar esse prazo das penas do art. 28. Essapreocupação evidencia que, além de tentar ajudar o usuário a evitar ouso de drogas e o fomento do tráfico de drogas, o Estado quer dar umconstrangimento maior àquelas pessoas que incidam novamente emcondutas criminosas.

Então, alguns estão defendendo que a reincidência do art. 28 é es-pecífica, isto é, ela só vai ser aplicada para as hipóteses de reincidên-cia no tipo do art. 28, quando não houve uma expressa previsão legal,um parágrafo ou algo nesse sentido. Se nós concluirmos que continuasendo crime o uso de drogas no art. 28, temos que aceitar que a rein-cidência do art. 28 é genérica, normal, prevista no Código e que vaigerar, se no momento da prática da conduta o usuário já estiver con-denado com trânsito em julgado, a aplicação de penas do art. 28 com aincidência do parágrafo que autoriza esse aumento de pena.

Essa discussão também não está pacificada. Inclusive, em nível de2º Grau, no Tribunal de Justiça, estão alguns entendendo que a reinci-dência seria só para as hipóteses do art. 28. Não é o que nós ainda es-tamos pensando ali na Turma Recursal Criminal, porque entendemosque é uma reincidência de caráter penal natural, uma reação natural doEstado à reiteração de condutas delitivas, e o Estado faz isso agravan-do a pena para esse tipo de participação.

Também há alguns argumentos no sentido de que a Lei de Introduçãoao Código Penal conceitua como crime as condutas punidas com reclu-são e detenção. A Lei de Introdução ao Código Penal é o Decreto-Lei nº

Page 71: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

70 – 2º Ciclo de Estudos

3.914/41, da época do Estado Novo, que foi de 1937 a 1945, e utilizou,como critério para definir contravenção, a forma de pena. Com a evolu-ção da ciência penal, com a evolução da sociedade, com o dinamismodas relações, soa para mim muito simplório, muito frágil, dizer que,porque a Lei de Introdução ao Código Penal diz que são crimes aquelascondutas puníveis com reclusão e detenção, logo, tudo que não for pu-nível com reclusão e detenção deixa de ser crime.

Acho que o estudo do Direito Penal, os avanços, os livros feitos so-bre ciência e conceituação de crime, etc. nos dão informação e nospermitem ir além disso, uma, porque não pode ser única [existem ou-tros crimes já em legislações mais atuais, como a de remoção de ór-gãos (Lei nº 9.434), que têm pena exclusiva de multa]; duas, porque aadoção de outras penas no Código Penal, na reforma de 1984, como asrestritivas de direito, que ingressaram posteriormente no sistema,pode muito bem ser interpretada como tendo derrogado a Lei de Intro-dução ao Código Penal. E o fato de serem substitutivas – porque algunsdizem que não é pena, que apenas substitui a privativa –, em si, nãoelimina o caráter de pena e o caráter finalístico de reprimir a conduta eatingir aquela pessoa que a praticou com uma resposta do Estado noâmbito da restrição de seus direitos.

Por fim, as sanções previstas no sistema para as condutas, por sisós, não são fontes mais técnicas e melhores de definição de crime.Isso, talvez na época da Lei de Introdução ao Código Penal, fosse algomais fácil, mas nós, que sabemos como são feitas as leis, que somosoperadores do Direito, não podemos adotar condutas tão simplistas as-sim. Para efeito de dar uma solução ao sistema, para efeito de atendera um desiderato da Lei, que é prevenir o uso de drogas, que utilizou,como forma de prevenção e repressão, medidas mais brandas em com-paração às anteriores medidas estatais impositivas, sim, medidas desoberania que não dependem da vontade do agente, sim, medidas quedevem ser aplicadas pelos Juízes, verificando a prática, sim, isto é,com a força da espada da justiça, ficar só no critério da Lei de Introdu-ção ao Código Penal é um argumento que não me convence.

Penso que a preocupação de nós todos, que operamos no dia-a-dianessa atuação permanente hermenêutica de contextualizar uma regrageral com o caso concreto e extrair daí um sentido do que se quer dis-so, o que a sociedade espera disso, o que o sistema pretende com isso,é uma função que passa pela busca, primeiro, de tentar eliminar a in-terferência de valores culturais, de proximidade eventual com o fato,de fazer esse difícil esforço de identificação prévia subjetiva, dos nos-sos prejuízos, dos nossos preconceitos em relação a determinados as-suntos.

Page 72: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 71

Acho que o fato de eu ser a favor da liberação do uso de drogas ouser a favor da criminalização do uso não é o relevante. O relevante éatingir a finalidade que o sistema busca atingir e, despindo-se dessapreponderância da ideologia pessoal, com base num processo técnico,intelectual, científico, identificar a ideologia do legislador e da socieda-de com relação a esses fatos em que estamos inseridos e, a partir daí eda Constituição Federal, fazer essa forma de expressão democrática. OJuiz, como agente estatal político, que expressa a força do Estado,conjugado com as demais expressões de soberania do Estado, o Legis-lativo e o Executivo, na busca do auxílio ao usuário, na busca da apli-cação de medidas compulsórias ao usuário, previstas no art. 28, nabusca, sim, de aplicação de medidas mais graves ao usuário reinciden-te, precisa atuar de forma a que o Estado demonstre à sociedade forçae uma certa unidade no combate aos entorpecentes.

O interesse público não tem rosto. Então, fica difícil ver o rosto dointeresse público chorando, sofrendo as conseqüências pela não-aplica-ção da lei criminal. E o réu tem rosto, o réu está ali na nossa frente;mal ou bem, nós nos identificamos, algumas vezes, de uma forma oude outra, seja com ele, seja com as circunstâncias do fato em que elese inseriu, seja pela forma como ele foi abordado e sofreu uma inter-venção estatal. Isso passa inconscientemente a nos movimentar emtermos ideológicos de interpretação e muitas vezes pode nos conduzira um resultado que não é o resultado democrático posto no sistema.

Então, penso que essa busca incessante de sintonia com a vontadepopular só se identifica no sistema democrático a partir da produçãolegislativa, que sabemos que é de baixo nível, que não é representati-va, que muitas vezes está longe de ser legítima pelos interesses quetem, mas, de uma forma ou de outra, é o instrumento que temos emmãos para fazer a operação. Não adianta nos rebelarmos contra o sis-tema simplesmente porque não concordamos com as conclusões porele adotadas, pelas diversas esferas legítimas de manifestação popularadotadas, porque senão não há como se dar uma coerência lógica aofuncionamento e não há como se atacar o crime maior, que é a produ-ção e o tráfico de drogas.

O assunto é novo, mas essas são as reflexões que trago.

PLATÉIA – A minha questão é sobre a reincidência. Acho um poucocomplicado tratarmos esta reincidência como a do Código Penal. Pare-ce-me que, em termos de interpretação, a Lei quis considerar que, emreincidindo especificamente no uso de drogas, deveria ser punido emmaior gravidade. Acima de tudo, o Código Penal trata a reincidênciacomo uma agravante genérica. E aqui a lei está tratando a reincidência

Page 73: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

72 – 2º Ciclo de Estudos

como uma qualificadora, está dobrando a pena. O tratamento é bem di-verso nas duas legislações. Se for aplicar da mesma maneira, não con-sigo compatibilizar os dois institutos: a reincidência de forma genéricado Código Penal, como uma circunstância meramente agravante, queserve para qualquer delito, menos as contravenções penais; e a reinci-dência desta Lei, que claramente quis punir aquele que continua usan-do a droga e que é encarada como uma qualificadora para dobrar apena. É uma dificuldade que tenho em compatibilizar os dois institutos,porque me parecem que são diferentes.

DR. ALBERTO DELGADO NETO – Esse assunto, na Turma Recursal,ainda não está resolvido, mas o que se pensa é o seguinte: um fato doart. 28 geraria uma reincidência normal, se cometesse um outro fato.Alguém que cometesse um furto após ter sido condenado pelo art. 28,com trânsito em julgado, seria reincidente pela regra geral do Código.

Do contrário, alguém que praticou um fato genérico, um furto ou ou-tro fato, e venha a praticar uma conduta do art. 28 vai ter aplicada apena mínima do art. 28 ou vai ter aplicada a pena mínima com a agra-vante da reincidência, que é o que tu estás colocando. Não seria o casode se aplicar o dobro das medidas, porque o fato “uso de drogas” seriao primeiro. Isso pode ser refletido desde que não se coloque em xequea natureza criminosa do fato e da pena das condutas do art. 28.

Agora, penso ser um pouco difícil alguém praticar um furto, depoispraticar uma conduta do art. 28, e não podermos considerá-lo reinci-dente nem aplicar outra pena que não a do art. 28. Quer dizer, o fatodo furto não vai existir para efeitos de consumo de drogas. Sabemosque, na sociedade, muitas vezes o uso de drogas é o elemento-meiopara a prática de determinadas condutas delituosas.

Na Turma, ainda não digerimos aplicar para os outros delitos de me-nor potencial ofensivo que lá estão a figura normal da reincidência doCódigo e para o delito do art. 28 não aplicar a reincidência. Ele vai so-frer no benefício, porque não está expresso na Lei, não tem nada di-zendo isso. De alguma forma ele tem que ser considerado reincidente,e a reincidência só se exterioriza e se expressa na aplicação de pena.Nos crimes normais, ela agrava a pena; no crime do art. 28, como es-tou jungido àquelas penas, a única forma de agravá-la é por esta causade aumento, que tu disseste, do parágrafo, em até o dobro.

Então, existe uma margem de aplicação por parte do Juiz. Claro que,numa reincidência específica, coloco o dobro; numa reincidência umpouco menor, coloco um pouco menos. Abandonar isso e tratar a con-duta do art. 28 como se a vida anterior, criminosa ou não, não tivessenenhuma influência na aplicação das medidas do art. 28, para alguém

Page 74: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 73

que já está demonstrando, perante o Estado, que o sofrimento de penaem si não representa grande coisa, se não tivermos uma ferramentaem mãos – e a temos, é a hermenêutica, é a interpretação – para daruma margem maior de condução como Juízes, é um desperdício de algoque permite essa interpretação.

Agora, concordo contigo que não é fácil interpretar dessa forma, nãoé algo que esteja bem tranqüilo ainda e é algo que ainda vai se definirna jurisprudência com o tempo nos Tribunais.

PLATÉIA – Eu gostaria de fazer duas colocações. O art. 28, no § 6º,prevê que “para garantia do cumprimento das medidas educativas aque se refere o caput, nos incs. I, II e III, a que injustificadamente serecuse o agente, poderá o Juiz submetê-lo sucessivamente à admoes-tação verbal e multa”.

Não seria essa admoestação uma repetição da advertência sobre osefeitos das drogas? E como impor uma admoestação verbal a uma ne-gativa de cumprir uma PSC? Parece algo meio frágil, inconseqüente,sem efetividade.

DR. ALBERTO DELGADO NETO – Dentro daquilo que eu vinha di-zendo, a advertência é sobre os efeitos do uso da droga, quer dizer, émais uma medida educativa, que se imagina que, vindo de parte de umJuiz para um usuário, talvez, inicialmente, possa surtir algum efeitopara aquelas hipóteses de primeiro fato, etc. Claro que, com o grau deinformação hoje, é um pouco ingênuo da Lei. Todo usuário sabe osefeitos que a droga traz, mas talvez uma autoridade, advertindo-o des-ses efeitos e aonde ele pode chegar em termos de crimes e condutastípicas, tenha algum resultado. Está na Lei, é uma forma.

Na admoestação verbal do § 6º, o Juiz argumentará não mais sobreos efeitos da droga, mas sobre o descumprimento de uma sentença ju-dicial e as conseqüências que ele poderá sofrer em função disso, inclu-sive a multa. Enfim, não há mais o que se efetivar nesse ponto.

Vejam bem, embora, por um lado, isso possa gerar o descrédito ins-titucional pela ausência da efetividade, por outro, já planta no sistemauma evolução na intenção da participação do Estado num delito de me-nor potencial ofensivo praticado por alguém. O Estado, nas suas viasde intervenção, irá até aonde compensa para um delito de menor po-tencial ofensivo. Eu penso por outro lado, penso que é melhor ter issodo que não ter nada, porque mais do que isso não quiseram avançar.Então, se não irão mais do que isso, qual é o menos? Se o menos é aadmoestação, vou colocá-la, porque senão não vou colocar nada, sómulta. Logo, se podemos nos utilizar do Juiz para dar uma admoestação,

Page 75: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

74 – 2º Ciclo de Estudos

se, num cenário de 100% de casos, tivermos algum êxito em 10% ou15%, já é alguma coisa, porque o custo é praticamente zero para o Es-tado. Penso que a visão é esta, é de sistema e de dar uma progressivi-dade civilizatória em termos de intervenção estatal nas condutas crimi-nosas, começando nas mais leves. É natural da sociedade.

Algum estado americano, por exemplo, não irá acabar com a penade morte começando pelo seqüestro e morte de crianças, mas por cri-mes mais leves. Esta é a natureza do sistema: começar a amenizar apunibilidade pelos delitos considerados mais leves. Penso que é isso.

Agora, pega na efetividade, ainda mais nós, que andamos todos re-voltados, primeiro, com a falta de credibilidade e, segundo, com o des-respeito institucional em termos gerais. Quer dizer, aquela figura domagistrado de antigamente está se esvaindo. Aí, vem uma legislaçãoque pega na efetividade, é tudo o que não queremos ver pela frente.

PLATÉIA – A outra colocação não é uma crítica, é uma reflexão. Te-nho visto, em precatórias, Colegas aplicando a proposta do MinistérioPúblico da medida educativa de comparecimento a programaseducativos, não importando esta medida em transação penal e consig-nando na ata que, caso seja cumprida essa medida, foi atingida a fina-lidade terapêutica. Colocam ainda que “não importará em prossegui-mento do feito e será oportunizada nova transação”. Isso levará direta-mente à prescrição. Será aplicada a medida, ele descumprirá, haveráuma nova transação penal e logo prescreverá, principalmente se forcaso de menoridade.

DR. ALBERTO DELGADO NETO – Com relação à aplicação imediatade pena, a Turma tem entendido atualmente que é causa extintiva depunibilidade, conforme a Lei nº 9.099. Se disser que não extinguiu ouse disser que não homologou, não interessa; a Lei diz que, aplicada apena, se aceita pelo autor do fato, é extinta a punibilidade.

Então, se o Ministério Público propõe a medida do inc. III, medidaeducativa de comparecimento a curso educativo...

PLATÉIA – Mas isso ocorre não como transação, estão fazendocomo proposta preliminar. Fica consignado em ata que aquilo não secaracteriza como transação. Em caso de descumprimento, aí sim é quevai ser oportunizada. Consignou como proposta do Ministério Público.

DR. ALBERTO DELGADO NETO – Se a Lei remete à Lei nº 9.099,esta apresenta o autor do fato a juízo; o Ministério Público, em seu pri-meiro ato, propõe como transação penal a aplicação imediata de pena,

Page 76: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 75

e aí ele vem e diz que não é transação penal? Antes disso, está dandouma chance de curar o indivíduo, e uma das penas previstas é subme-ter a tratamento curativo. Não é o amigo do indivíduo que está lá, oPromotor de Justiça; é o Estado. O indivíduo foi levado ali pela Leinova compulsoriamente. Quer dizer, o Delegado o apresentou ao Minis-tério Público, não foi ele que simplesmente bateu na porta e pediu al-guma ajuda para curá-lo. Ele vai fazer isso extra-autos, telefonandopara o hospital! Agora, se coloca isso num expediente jurisdicional, napresença de um Juiz, e diz que vai aplicar uma medida que se equiparaao inc. III do art. 28, participação em curso educativo, etc., essa medi-da, pela exposição que fiz, é pena. E, se ela é pena, é uma aplicaçãoimediata de pena; se é uma aplicação imediata de pena, extingue a pu-nibilidade. Não adianta dizer que não, não adianta dizer que vai conti-nuar o processo.

No 1º Grau, já andamos sob a égide da Lei nº 9.099 e sabemos oquanto é difícil para o Juiz e o Ministério Público, porque não é o fatode aplicar uma pena antecipada, o indivíduo descumprir e ficar desmo-ralizado, pois não se tem como executar essa pena. Isso é uma coisa;outra coisa é, em função dessa deficiência legal e do sistema, dar con-tinuidade ao procedimento, cujo objetivo da Lei foi justamente abreviarcom a transação penal. Quer dizer, se a Lei diz que eu posso abreviar orito com a transação penal e a aplicação imediata de pena, como éque, não cumprindo, eu vou dar seguimento ao rito? Então, é suspen-são, não é transação. E a Lei traz a figura da suspensão.

A Turma Recursal não consegue entender juridicamente o fato deisso não extinguir a punibilidade, mas, se estou aplicando essa medi-da, e ele a descumpriu, tenho as hipóteses da admoestação, multa,etc.

PLATÉIA – O que é mais grave é que, se ele cumprir essa medida,não importa em transação, implicando a extinção do feito por falta dejusta causa para o prosseguimento, pois atingido o fim terapêutico. En-tão, não fica registrado, ele vai ter direito antes de 05 anos.

DR. ALBERTO DELGADO NETO – Quem fez isso provavelmenteparte de pressuposto diferente do meu, ou seja, de entender que hou-ve a descriminalização e, por conta disso, todas as medidas aí aplica-das são de saúde pública. Então, a partir disso, utiliza-se da estruturado Judiciário e do Ministério Público para aplicar medidas de saúde pú-blica ao usuário de drogas. Com isso, previne-se o uso de drogas. Pen-so diferente, acho que essa intenção não está na Lei. Pode ser intençãopessoal, mas não está na Lei.

Page 77: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

76 – 2º Ciclo de Estudos

A partir disso, não posso dizer que está na Lei o que não está. Se eufizer isso, estou assumindo que não é crime; se estou assumindo quenão é crime, estou assumindo que o Estado não tem força coercitivapara fazer isso. E, se o Estado não tem força coercitiva, não precisa doJuiz, não precisa do Promotor nem do Delegado, manda o indivíduopara o posto de saúde, o Estado vai encaminhá-lo para o psiquiatra, opsicólogo, como faz com os alcoólatras. Ninguém leva um bêbado aoMinistério Público para colocá-lo no hospital só pelo álcool. É a mesmacoisa. Não é crime, mas é caso de saúde pública. Só que o uso de dro-gas não é caso de saúde pública somente, foi colocado na Lei como cri-me na minha visão, respeitando os entendimentos dos Colegas.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Li um artigo em que alguém disseque era melhor que tivesse ficado como na Lei anterior, em que eratudo mais claro. Não precisava esta Lei nova.

Hoje pela manhã, ouvimos o Coronel da Comunidade Terapêutica di-zer que a mensalidade para quem consegue pagar é em torno de R$500,00. Disse ele que isso corresponde a uma diária em uma clínica.Pois bem, o inc. III do art. 28 diz: “medida educativa de compareci-mento a programa” (que aparentemente é para o dependente) “ou cur-so educativo” (que aparentemente é para o usuário).

Então, foi elaborado um TC – estou me colocando no lugar do Juiz edo Juizado –, e foi apresentado o sujeito ao Juiz na audiência prelimi-nar. Daí, o § 7º do art. 28 diz: “O Juiz determinará ao Poder Públicoque coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimentode saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializa-do”. Como o Juiz vai saber se aquele sujeito que está lá é dependentee precisa de um programa gratuito ou se ele é um usuário que devecomparecer a um curso educativo, que aparentemente é mais fácil?Novamente voltamos à efetividade. Como se vai resolver isso nessaaudiência?

DR. ALBERTO DELGADO NETO – O art. 48, que trata do procedi-mento penal, diz no seu § 4º: “Concluídos os procedimentos de quetrata o § 2º deste artigo,” (que é o que trata das condutas do art. 28)“o agente será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer ouse a autoridade de polícia judiciária entender conveniente, e em segui-da liberado”.

Penso que esse exame também serve para verificar pelo menos umindício de viciado, quer dizer, vejam bem, não é se o agente, se o au-tor do fato aceitar. O agente pode requerer esse exame pessoalmente

Page 78: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 77

ou se a autoridade de polícia judiciária entender conveniente. Mesmoque o agente não queira, e o Delegado ache que é caso de fazer o exa-me, pode-se fazer.

Então, penso que não é o exame que irá dizer a condição de vicia-do, mas pode ser um exame com psiquiatras, psicólogos ou talvezuma verificação de um indício pelo menos de vício para orientar oJuiz e o Ministério Público subseqüentemente, na fase de aplicaçãoimediata ou de sentença, sobre quais as hipóteses do art. 28 serãoaplicadas.

Acho que o Juiz pode pedir isso ao olhar para o réu e desconfiar deque se trata de um viciado. No interior, isso fica até mais fácil, pois jásabe quem é, já ouviu alguém dizer.

PLATÉIA – A briga é entre eles, Polícia Civil e Brigada Militar. Aquifala em polícia judiciária. Será que a Brigada Militar vai ter essa com-petência?

DR. ALBERTO DELGADO NETO – Nesse aspecto, fala-se em au-toridade de polícia judiciária. Não tenho dúvida de que tem que serum Delegado, não pode um policial militar obrigar ou levar a pes-soa para o exame de corpo de delito se ela não requereu. Se reque-reu, tudo bem, mas acho que tem que ter a participação do Delega-do nisso.

PLATÉIA – E a lavratura dos TCs?

DR. ALBERTO DELGADO NETO – Não, isso temos aceito, acho quea Brigada Militar pode, quanto à lavratura do TC, tudo bem.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Nosso perito, hoje pela manhã, dis-se que a Brigada Militar já está encaminhando as substâncias apreendi-das para fazer o exame no TC.

DR. ALBERTO DELGADO NETO – Quanto a esse aspecto, acho que,se tudo estiver sendo feito com a finalidade de melhorar o sistema, nãoprecisamos ficar criando obstáculos. A partir do momento em que iden-tificamos que isso está sendo usado com outra finalidade ou com al-gum abuso, aí temos que intervir.

PLATÉIA – Não há como negar que haverá um aumento de consu-mo. Acho um pouco complexo isso e me pergunto: como despenalizar –e isso levará a um maior consumo – e, ao mesmo tempo, repreender o

Page 79: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

78 – 2º Ciclo de Estudos

tráfico? Uma das leis da economia é, havendo procura, há oferta. Oque o senhor pensa a esse respeito? O que o legislador pensa a esserespeito?

DR. ALBERTO DELGADO NETO – A História mostra que a pena dousuário não contribuiu para diminuir o tráfico, ele só aumentou. Achoque viram que não é apenas através disso, mas oportunizar ao usuárioparticipar da construção da pena que irá sofrer. Continuo achando queé pena, embora eles tenham amenizado os tipos de penas, deram pe-nas mais leves. Surgiram penas novas, que não existiam no sistema,mas, na minha visão, são penas.

Então, deram penas mais leves, oportunizaram, com a remessa ex-pressa ao delito de menor potencial ofensivo, que o usuário participeda construção da pena que irá sofrer e localizaram nessas penas umapreponderância de recuperação e de ressocialização, seja através deprestação de serviço, que é uma reinserção social, seja através de cur-sos, de tratamentos, que é uma recuperação. O inc. I dá a advertênciapara a pessoa que não é viciada, que usou pela primeira vez. Acho quehouve um escalonamento bem claro de intenção na Lei.

PLATÉIA – (inaudível)

DR. ALBERTO DELGADO NETO – A lei é abstrata, está no planometafísico, só passa a existir no caso concreto, e nós é que damos aela o sentido no caso concreto. Se os Juízes começarem a dizer quedespenalizou, descriminalizou, aí sim, o Estado dirá com todas as le-tras que o consumo está liberado.

Agora, a partir do momento em que a interpretação foi de que conti-nua sendo condenada a conduta, continua sendo crime, que aquilo sãopenas e que agora a preocupação é mais com a pessoa do usuário,para que ele não volte a consumir para não atender ao aumento daprodução e do tráfico, se nós deixarmos claro que esse é o intuito e,como Estado, agir nesse sentido, aplicando penas mais modernas,civilizatoriamente mais avançadas, mas penas, acho que estaremosdando uma certa freada nessa sua preocupação, que é muito fundada.A responsabilidade nossa é grande nesse sentido.

PLATÉIA – No meu parco entendimento, a Lei banalizou o consumo.O problema é que a droga atinge muito os adolescentes, já que os tra-ficantes procuram viciar as crianças e os adolescentes justamente parater os distribuidores, naquela idéia de que, sendo menor, o delito vaidar em nada. Isso ocasiona uma evasão escolar. Saindo da escola, já

Page 80: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 79

serão pessoas sem estrutura, sem trabalho. É uma conseqüência quese joga lá para frente.

DR. ALBERTO DELGADO NETO – Não sei se o legislador banalizouo uso da droga ou se o uso da droga já estava banalizado, e aí o legis-lador refletiu uma realidade social, que é uma de suas funções. Identi-ficando essa banalização no seio social, o legislador reafirmou a mani-festação do Estado de que não concorda, embora tenha compreendidoque, por força da banalização, irão ser colocadas à disposição do Esta-do algumas outras ferramentas para a prevenção, talvez com foco namoderna visão européia de que a participação das pessoas no resulta-do contribui mais do que o resultado imposto pela força. A cultura temque se fazer aos poucos.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – No terceiro bloco, iremos ver comoocorrerá a eventual aplicação retroativa da lei benigna, tarefa à qual sededicarão os Juízes das Execuções Criminais, a não ser que alguém en-tenda que essa aplicação deva ser buscada em revisão criminal.

Agradecendo ao Colega Delgado Neto, encerramos este bloco e vol-tamos em seguida.

Page 81: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO
Page 82: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Retomando ostrabalhos, quero apresentar os três Colegas que exa-minarão o tema "A Nova Lei no Juízo da Execução Pe-nal":

Como mediador, o Dr. Felipe Keunecke de Oliveira,que hoje é titular da Vara Criminal do Foro Regionaldo Sarandi, onde jurisdicionei desde 1992 até 1996,sendo que antes fui titular da 1ª Vara Cível. O Dr.Keunecke foi Juiz em Porto Xavier, depois emUruguaiana e em Santa Maria. Leciona Processo Penalna Faculdade São Judas Tadeu.

Como debatedores, o Colega Sidinei José Brzuska,Juiz de Direito da Vara das Execuções Criminais deSanta Maria, com 08 anos de atuação na ExecuçãoPenal, e o Procurador de Justiça Gilberto Thums, pro-fessor universitário, da Escola da AJURIS, da Escolado Ministério Público, da Escola da Magistratura Fe-deral e também do IDC, especialista e mestre em Ciên-cias Criminais pela PUC. Já escreveu livros sobre tó-xicos, sobre o Estatuto do Desarmamento e sobresistemas processuais penais.

Feita esta breve apresentação, passo a palavra aoColega Felipe Keunecke de Oliveira, para que dê an-damento a este painel.

A NOVA LEI DE TÓXICOS EAS EXECUÇÕES PENAIS

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Primeiramente, quero saudaros Colegas de Mesa, o Colega Sidinei Brzuska, o Dr. Gilberto Thums,Procurador de Justiça na 6ª Câmara Criminal, o Des. Bruxel e os pre-sentes em geral.

Este tema sobre a nova Lei de Tóxicos tem suscitado muitos debatesacalorados. Tive o prazer de acompanhar o processo legislativo, e, no

Page 83: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

82 – 2º Ciclo de Estudos

final da manifestação do Dr. Delgado, foi referido o problema em rela-ção ao art. 28, descriminalização, despenalização, se o fato é atípicoou não.

A grande verdade é que, acompanhando esse processo legislativo,se percebeu que o legislador não teve coragem suficiente paradescriminalizar. Não havendo essa coragem, tentaram despenalizar.Não conseguindo despenalizar, mascararam, criaram penas inexistentese, nas hipóteses do art. 28, criaram um monstro jurídico. Então, digoque a Lei obviamente tem enormes defeitos, mas cabe a nós, operado-res do Direito, aplicá-la da melhor forma.

Entre os problemas suscitados pela nova Lei, existem os de nível deexecução criminal. Há determinadas hipóteses na Lei que são mais be-néficas ao acusado, mesmo havendo trânsito em julgado da sentençapenal condenatória.

Então, esse é o enfoque que vamos dar ao debate, ou seja, em funçãodas figuras jurídicas criadas e em função da execução criminal, as hipó-teses deverão ser aplicadas ou não, porque aqui foi suscitada tambéma competência em relação à aplicação dessas hipóteses mais benéficasda Lei. Entendo, desde já, que cabe obviamente ao Juiz da ExecuçãoCriminal, com base no art. 66, inc. I, da LEP, que diz que o competenteà aplicação é o Juiz da Execução Criminal, assim como o art. 2º, pará-grafo único, do CP, que fala a respeito de que qualquer situação maisbenéfica deverá de ser aplicada ao réu. Haverá controvérsia, principal-mente no tocante à revisão criminal.

Em função do tempo, já parto para o debate, dando como exemplo ahipótese do art. 28, § 1º – “Aquele que, para seu consumo pessoal, se-meia, cultiva...” –, em comparação com o art. 12 da antiga Lei de Tóxicos.Temos também que suscitar as situações que, em função da Lei antigae da nova Lei, se tornaram mais benéficas. Então, o réu teria direito àaplicação dessa legislação mais benéfica.

A hipótese do art. 33, c/c o § 2º, por exemplo, “Induzir, instigar ouauxiliar alguém ao uso...”, aquela comparação que já tínhamos feitocom o Estatuto da Criança e do Adolescente, Dr. Sidinei, e a reduçãodo § 4º do art. 33.

Assim, eu gostaria de passar a palavra ao Dr. Sidinei para se mani-festar a respeito desses pontos da Lei.

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – Inicialmente, minha saudação aosColegas de Mesa, ao Desembargador, aos Colegas e presentes.

Aparentemente, o dissenso já começa até pela competência. A Lei deExecução Penal tem 22 anos, e, nas matérias da própria Lei de Execu-ção Penal, até hoje, temos profundas divergências, inclusive aqui no

Page 84: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 83

Tribunal de Justiça, sobre a aplicação da Lei de Execução Penal. Natu-ralmente que, agora, nesta Lei de Tóxicos, fatalmente teremos tambémvárias divergências.

Quanto à competência, como disse o Dr. Keunecke, o art. 66, I, da LEPdiz que compete ao Juiz da Execução aplicar aos casos já julgados leiposterior que, de qualquer modo, favorecer o condenado.

O legislador falou “de qualquer modo”. Então, parto do princípio deque a competência, inicialmente, está com o Juiz da Execução Penal.Haveria casos mais lá na frente, que, depois, ao examinarmos artigopor artigo, veremos talvez ensejem a revisão criminal. Mas, de regra,inicialmente, a competência é do Juiz da Execução Criminal.

Pela ordem, a primeira situação é a do consumo. A Lei anterior prevêde 06 meses a 02 anos, pena de detenção. Agora, advertência, PSC ecomparecimento a programa; se não cumprir, multa ou admoestaçãoverbal.

O que estamos fazendo nas Varas de Execuções Criminais em SantaMaria com aquele sujeito que está com uma pena de detenção ativa doantigo 16? O nosso programa das guias é completamentedesatualizado. E esse programa mistura nas penas as penas de reclu-são e as penas de detenção.

Pessoalmente, sempre faço separada a conta. Executo primeiro a re-clusão e depois a detenção. Então, nunca contei a detenção para a fraçãodo 6º, para a progressão, para a fração do 4º, se é reincidente para sertemporária ou (?) condicional. Eu sempre contei separado a detenção.

O art. 116 do CP diz que, enquanto o sujeito estiver preso por umarazão, não corre a prescrição para a outra. Ou seja, não está ocorrendoa prescrição da detenção.

O que estou fazendo nesses casos? Nada. Tocando normal. Quandoele cumprir a pena de reclusão, vou chamar o sujeito e dizer: “Olha,droga faz mal. Tchau.”. Não vou fazer agora, modificar GR, um trabalholouco. Estou adotando isso para aqueles que estão presos.

Para os Senhores terem uma idéia, em Santa Maria, hoje há 158pessoas cumprindo pena por tráfico. Isso corresponde a 23,65% dopresídio. É claro que 50% são 155 e 157, e se abastecem desses 23%.Então, deve haver no presídio, mais ou menos, 80% das pessoas en-volvidas com drogas.

Para os que estão cumprindo a PSC, antes a substituição era de 06meses a 02 anos. Normalmente, ficava de 06 a 08 meses, substituídapor PSC. Estou reduzindo para 05 meses, porque a nova Lei, nesse par-ticular, e estou fazendo um comparativo... Não estou dizendo que, seele não cumprir, não haverá conseqüências, e, quando ele cumprir os05 meses, estará liberado. Se não cumprir, vou ter que chamar o sujeito,

Page 85: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

84 – 2º Ciclo de Estudos

fazer-lhe uma admoestação verbal e mandá-lo para casa, não há maiscomo prendê-lo. Eu não posso mais fazer a inversão da substituição ecolocá-lo na prisão pelo não-cumprimento daquilo.

Ainda sobre o art. 16, e esta é a situação que mais me aflige como Juizda Execução, há o problema do consumo de drogas dentro do presídio.Isso se modificou profundamente de uns 05 anos para cá, aproximada-mente, e hoje as drogas que dominam dentro do presídio são a cocaínae o crack, não é mais a maconha, sobre a qual todo o mundo fazia vistagrossa, pois o preso ficava mais tranqüilo. Hoje é o crack.

Só para os Senhores terem uma idéia, neste mês eu tive três inter-nações em Santa Maria por overdose de cocaína. Os presos vão mortospara o PA por overdose. E como é que vou combater o sujeito que usadroga dentro do presídio? Vou dizer: “Vem cá, vou te aplicar uma admoes-tação, uma advertência, e, se tu não cumprires, vou te dar uma (?)”?Isso é ridículo.

Nessa situação, eu tenho agido como já fazia na Lei antiga. A práticade crime na Execução Penal é falta grave, mas há divergência aqui noTribunal em como se caracteriza essa falta grave. Algumas Câmarasentendem que só o registro já é falta grave; outras dizem que se deveesperar julgar o processo. É bem complexa a situação.

De um modo geral, venho suspendendo os benefícios do preso fa-zendo uma comparação com a Lei. Antes eram 06 meses, eu suspendiao benefício por 06 meses. Agora baixou para 05 meses, e estou sus-pendendo por 05 meses os benefícios do preso. Se ele reincidir no usoda maconha, da cocaína, do crack, vou suspender por 10 meses. Basi-camente é isso que tenho feito dentro do presídio, porque eu não possosimplesmente chamar o preso e dar uma admoestação, uma advertên-cia, pois isso não vai surtir efeito algum.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Pergunto ao Dr. Gilbertose essa questão da competência, em regra, de todos esses fatos em re-lação às hipóteses da Lei nova, benéfica, e a aplicação competem real-mente ao Juiz das Execuções Criminais?

DR. GILBERTO THUMS – Boa-tarde a todos. Eu tenho algumas obje-ções quanto a essa regra. Concordo em casos nos quais a Lei é especi-ficamente clara no sentido de que se trata apenas de uma situação deminorar a pena e dou o exemplo do art. 40, que trata das majorantespara tráfico. Temos casos de usuários viciados que foram condenadosantigamente por causa da majorante do art. 18, mas hoje não majoramais. Mas não é só esse o problema, o parâmetro de majoração dimi-nuiu: antes a majorante aumentava em 1/3, hoje ela aumenta em 1/6somente.

Page 86: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 85

Então, todos aqueles que foram condenados por tráfico majorado,por exemplo, independente de ser em presídios, escolas, etc., todoréu que foi condenado por tráfico majorado pelo art. 18 tem direito,pelo juízo da execução, a uma redução da pena. Se a pena foimajorada em 1/3, ele entra com um pedido ao Juiz a fim de reduzirpara 1/6 a majorante, diminuindo a pena. Isso é tranqüilo, não hámaiores discussões.

Entretanto, o art. 33, § 4º, do tráfico minorado, que é aquele emque, se o sujeito é primário e não existir prova no processo de queele está envolvido com organização criminosa, é matéria de mérito. Éuma questão de fundo em que o Juiz deveria examinar o processo, eeu tenho a impressão de que o Juiz da Vara das Execuções Criminaisnão tem acesso a esses dados.

Então, no caso do tráfico privilegiado, parece-me que muitos trafi-cantes vão lançar mão deste benefício do art. 33, § 4º, e, salvo melhorjuízo, quando o pedido for com base nisso, defendo a necessidade darevisão criminal. Entretanto, isso ocasionará o problema de sobrecargado Tribunal de Justiça com revisões, e, de repente, vai-se fixar uma ju-risprudência dizendo que a competência é do Juiz da Execução.

Particularmente, neste caso, do art. 33, § 4º, sustento que caberiarevisão criminal. Em outros casos, no entanto, como vários aqui cita-dos – já que se falou sobre o art. 28 –, houve condenações aberrantes,com todo o respeito às decisões judiciais, mas isso não as livra da crí-tica. Cito o exemplo da Min. Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justi-ça, e de vários acórdãos aqui do Tribunal de Justiça. Para mim, nuncafoi crime cultivar droga para uso próprio, porque não havia esse tipo pe-nal, e quem foi condenado o foi injustamente. Sempre sustentei isso evou continuar sustentando. Porém agora o legislador veio com a nor-ma, e aí vamos digladiar-nos e perguntar o seguinte: é uma novatio le-gis incriminadora, ou é uma novatio legis in melius?

Se for uma novatio legis incriminadora, só virou crime a partir do dia 08,e todos os que foram condenados por cultivar drogas, plantas para usopróprio têm direito, sim, a simplesmente ser absolvidos, pois é umadeclaração de que isso nunca foi crime. Agora, posso entender diferente.Posso dizer que o legislador quis beneficiar. Então, é uma lei nova maisbenigna. Aí vai depender da interpretação.

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – Essa situação aqui é a que vemmais recorrente, porque havia os julgamentos em que o Juiz dizia quenaquela situação era só para consumo próprio. Chegava aqui no Tribu-nal, e afirmavam que não interessava, que era tráfico. Ou seja, ficavaafirmado na sentença que a droga era para uso pessoal, e o Tribunaldizia que não interessava.

Page 87: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

86 – 2º Ciclo de Estudos

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – E a competência em relaçãoe esse fato?

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – Mas esse fato ficou escrito na sen-tença.

O caso do Chita, por exemplo, que tinha, junto com os pés de tomate,um pezinho de maconha. O Chita é um viciado que foi levado por umagricultor para um lugar que ficava a 40km, para ele não ter acesso acoisa alguma. Ele o trazia pelo braço à VEC para ele assinar o compa-recimento. Quando houve a condenação, ele teve que voltar para opresídio. E agora o que eu fiz? Soltei o Chita, não há mais por que dei-xar esse sujeito preso. Se na sentença ficou escrito que era para con-sumo pessoal, não há por que sujeitar o pobre do Chita, que é um mi-serável, a uma revisão criminal.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Mesmo que o fundamentoseja pelo art. 12, por exemplo?

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – Mas nesse caso era parágrafo doart. 12. Seguindo, outro caso de aplicação mais benéfica é a indução,instigação ou auxílio. Isso antes estava no art. 12, com uma pena de03 a 15 anos. E a Lei nova agora estabelece de 01 a 03 anos. Esse aquitalvez, dependendo da situação, possa eventualmente comportar algumarevisão, porque pode ser que, na sentença ou no acórdão, não estejabem claro quais realmente eram os tipos.

DR. GILBERTO THUMS – É importante observar o verbo nuclearpelo qual ele foi acusado. Se ele ofereceu, se ele forneceu de qualquermodo, aí seria o art. 33.

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – E o outro verbo é o fornecer, que éo tráfico privilegiado. Oferecer, fornecer, ainda que gratuitamente,entre amigos, aquela coisa toda, era de 03 a 15 anos, hipótese do art. 12,estava no verbo do art. 12. Agora, ficou de 06 meses a 01 ano. Essa éa divisão do baseado, a divisão das carreirinhas do pó.

Essa situação é bem complicada, porque a pena ficou de 06 meses a01 ano (JEC). O Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 243, previauma pena de 06 meses a 02 anos, se não fosse crime mais grave. Naépoca, era crime mais grave, porque entrava no art. 12. Porém agoravai entrar aqui, ou seja, ainda que se dê o aumento de pena de 1/6 a2/3, fornecer droga para um conhecido, uma criança, um adolescenteficou com uma pena menor do que fornecer um gole de cerveja.

Page 88: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 87

DR. GILBERTO THUMS – Só se deve cuidar de um detalhe: oferecer,para se enquadrar neste dispositivo, necessariamente tem que ser paracompartilhar, porque oferecer, pelo simples fato de oferecer para apessoa sozinha, fica no art. 33, caput. No meu ponto de vista, esseverbo restringe demasiadamente a hipótese, porque eu imagino queuma situação destas será excepcionalíssima: a Polícia entrar em umacasa em que há pessoas se chapando, e um sujeito ofereceu a droga eestá junto com eles se chapando. Quer dizer, é uma situação rara. Oque eu acho que faltou aqui foi ampliar o número de verbos.

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – Se não estiver claro na sentença,talvez seja o caso de revisão. Se não estiver provado que era para di-vidir, vai ter que chamar o outro para dizer na revisão criminal que erapara dividir mesmo.

Uma situação que não comentamos ainda foi quanto à questão daspenas de multa, na nova Lei são muito mais pesadas do que as da Leianterior, são praticamente inexeqüíveis. Quanto a essas penas de multa,algumas Câmaras aqui do Tribunal de Justiça vêm modificando as sen-tenças de 1º grau, na Lei velha, dizendo que não é 1/30 do salário mí-nimo, e sim os Cr$ 25,00 (vinte e cinco cruzeiros) da Lei velha. Naépoca em que foi editada a antiga Lei de Tóxicos, de 1976, o saláriomínimo era de R$ 768,00, que, divididos por 30, resultava nos 25. Ouseja, o padrão mínimo da pena de multa sempre foi o mesmo tanto naLei velha como na Lei atual, que é o mesmo padrão do Código Penal. Ésempre o mesmo padrão. Eu nunca entendi muito porque trocavam os25, porque dá na mesma. A forma de correção é que pode ter algumadivergência em relação a isso.

Mas a pena de multa, na Lei nova, é uma pena muito mais severaquanto aos dias-multa. Pelo que li, a idéia que está vigorando é retroagirsomente a pena privativa de liberdade, que é mais benéfica, e não apena de multa.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Na hipótese, Dr. Gilberto,do art. 33, § 4º, ou seja, aquela redução de 1/6 a 2/3, vedada a con-versão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja pri-mário, de bons antecedentes, não se dedique a atividades criminosasnem integre organização criminosa, é caso de revisão criminal ou com-petência do Juízo da Execução Criminal?

DR. GILBERTO THUMS – Eu tenho impressão de que isto é matériade mérito, é uma questão de fundo, porque teremos que trabalhar aprova.

Page 89: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

88 – 2º Ciclo de Estudos

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Mas qual é a prova?

DR. GILBERTO THUMS – A prova é o envolvimento em organizaçãocriminosa. Vamos ter que ver os depoimentos de testemunhas, verificarse há algum vínculo com organização criminosa. Numa primeira leitura,tenho impressão de que vai complicar.

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – Imaginemos que o sujeito não te-nha nenhum envolvimento. Primário total. Mesmo assim, o Senhoracha que é revisão?

DR. GILBERTO THUMS – O fato de ser primário é um requisito.

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – Ele não tem nada, não tem antece-dentes.

DR. GILBERTO THUMS – O Juiz das Execuções terá que examinaros autos em que ele foi condenado, para examinar se ali há indicaçãode que se ele está, ou não, envolvido.

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – Lerei o 59, que é onde o Juiz diráque o sujeito não tem nada, vida abonada, nunca se envolveu comnada.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Mas, Dr. Sidinei, e a partein fine “não se dedique a atividades criminosas nem integre organiza-ção criminosa”? Dependendo de uma análise mais aprofundada da par-ticipação dele, da prova, como diz o Dr. Gilberto...

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – Mas veja que, se ele tiver se dedi-cado à área criminosa, a integre, ele terá pelo menos um antecedentede quadrilha. Eu sinceramente desconheço um sujeito que nunca en-trou em um fórum que se dedique a atividade criminosa e que não te-nha nenhum antecedente.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – É interessante. Esta matériacomporta divergência, sem dúvida.

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – Este artigo pede a diminuição de 1/6a 2/3. Primeiro, acho que esta retroação da lei mais benéfica visa a sa-tisfazer o direito constitucional da igualdade. Portanto, adotarei a tesede que a pena não poderá ser inferior a 01 ano e 08 meses, porque a

Page 90: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 89

nova Lei, menos 2/3, 01 ano e 08 meses. Ou seja, vou pegar a Lei velha,03 anos, mas vou reduzir até o limite de 01 ano e 08 meses para satis-fazer o princípio da igualdade.

A segunda situação é o seguinte: 1/6 a 2/3. Na tentativa se fazaquela construção de que o sujeito quase consumou, então diminuimenos, e aqui, como vamos sair dos 2/3 para 1/6? Ou, daqui a pouco osujeito tem um inquérito e uma ação penal, então vamos diminuir menos.É muito complicado.

A questão dos bons antecedentes é extremamente complexa. Vou citarapenas um caso, Dr. Gilberto, que exemplifica como, às vezes, temosque desprezar estes antecedentes. Tive um caso recente, em Santa Maria,em que um sujeito se separou da mulher para ficar com a amante, con-viveu com a amante e voltou para a legítima; elas, mulheres, começarama disputá-lo, uma fez um registro contra a outra, a outra contra a uma,mais um registro, e outro, e, lá pelas tantas, uma disse: “Ou tu páracom isto, tu tira”. Coação no curso do processo e não sei mais o quê.As duas estão com um calhamaço de antecedentes porque estão bri-gando pelo sujeito. Imaginemos, então, que uma delas se envolva comalguma coisa... há que ter cuidado com isso. O sujeito que lê nos ante-cedentes ameaça, ameaça, coação, pensa tratar-se de uma bandida.Acho complicada esta questão. Se o sujeito não tiver nada, sou da tesede que tem que se aplicar.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – A questão, aqui, havíamosconversado, fala na tipificação do insumo.

DR. GILBERTO THUMS – Acho este tema instigante porque há muitotempo se discutiu o crime de tráfico de drogas quando o sujeito nãoestá com a droga, mas está envolvido com a matéria-prima. O que ématéria-prima para fabricar droga? A matéria-prima é um produto danatureza. Então, um exemplo clássico utilizado sempre é a folha dacoca. Sem ela, eu não consigo produzir cocaína, eu posso ter tudo oque é tipo de insumo e juntar, que jamais conseguirei produzir cocaína.Então, a matéria-prima para produzir entorpecente teria que ser maisou menos algo que a natureza oferece, mas aí temos um problema: olegislador, na Lei nº 6.368, só falava em matéria-prima, e a própriaANVISA começou a classificar algumas substâncias químicas em precur-soras para produzir entorpecentes, outras em insumos para produzirentorpecentes, e agora vem a nova Lei e fala em produto químico des-tinado à preparação de entorpecentes.

Existe a Lei nº 10.357, que atribui à Polícia Federal a competênciapara autorizar o transporte e comercialização desses produtos químicos

Page 91: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

90 – 2º Ciclo de Estudos

que os laboratórios utilizam para produzir entorpecentes legais. Aquestão que surge é em relação a muitas pessoas condenadas porquese envolveram com produtos químicos como se isso matéria-prima fosse.E agora o legislador veio e disse que realmente matéria-prima não seconfunde com insumo químico nem com produto químico. É o caso da-quela pessoa que foi condenada porque tinha éter etílico em quantidadeexcessiva. E ele foi condenado como se o éter etílico fossematéria-prima, e todos sabem que não é. Temos inclusive acórdãos noSuperior Tribunal de Justiça, por exemplo, um da Minª Laurita Vaz, quediz que matéria-prima e insumo químico são a mesma coisa, assimcomo subir e descer é a mesma coisa, dependendo de onde está o obser-vador. Insumo químico e produto químico são uma coisa, matéria-primaé outra coisa.

Parece-me que agora está claro na Lei, pela primeira vez temos cla-reza, mas falta à ANVISA fazer a listagem destas substâncias. Por en-quanto temos uma lista de substâncias precursoras, e a Lei não tratade substância precursora, a Lei trata de produto químico e de insumo.Então, neste ponto, estamos aguardando ansiosamente que a ANVISAregulamente e faça as novas listas, porque a última Portaria que estávalendo da ANVISA é a de 30-12-06, a RDC nº 12.

Parece-me, então, que devemos cuidar até da linguagem. Eu não diriaque é proibido, mas não se deve mais usar tóxico nem substância en-torpecente. A linguagem hoje, técnica, é droga, tanto que a própria leié Lei de Drogas. O que é droga? A própria Lei define, no art. 1º, pará-grafo único, e no art. 66. Tecnicamente, fica melhor falarmos em droga,não se fala mais em tóxico. Mas droga é um termo que pode ter umsentido equivocado, porque se vai em uma drogaria comprar droga.Droga é um termo muito aberto hoje que a Lei define como tal segundoos padrões classificados pela ANVISA.

Neste aspecto, se tem alguém que foi condenado porque tinhainsumo químico – e não vai faltar quem entre com revisão criminal –será absolvido. Isso era matéria-prima, e agora vem o legislador dizerque não é. Parece-me que aqui há problema de tipificação também.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Dr. Sidinei, com relaçãoao apenamento para o informante, também é caso de a Lei nova sermais benéfica?

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – Na Lei velha, o informante, o avião-zinho, o vaporzinho, o falcão, sei lá, entrava como partícipe, comoco-autor, naqueles verbos do 12, e sujeito a uma pena de 03 a 15. PelaLei nova, quem colabora como informante pega uma pena de 02 a 06

Page 92: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 91

anos. Esta questão eu acho de difícil aplicação pelo Juiz da ExecuçãoCriminal, porque não é fácil identificar quem era só traficante, quem sóobservava, quem só avisava. Normalmente não temos esta técnica, as-sim, nas sentenças, de fazer bem distinto isso, se faz meio junto. Nesteartigo imagino que terei dificuldades, como Juiz da Execução Criminal,de aplicar esta retroação, que é a mais benéfica, apenas saiu de 03 a15 e foi para de 02 a 06.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Na questão, Dr. Gilberto,da associação, também podemos em Lei nova mais benéfica.

DR. GILBERTO THUMS – Quanto à associação, o legislador continuoucometendo o mesmo equívoco que já havia na Lei anterior. O art. 14contemplava, na Lei nº 6.368, associação para traficar, e ali dizia: rei-teradamente, ou não. A jurisprudência consagrou, de forma pacífica,que o art. 14 somente se caracterizava se houvesse ânimo e perma-nência ou vínculo de estabilidade entre os agentes no sentido de traficar.Então exigia o societas sceleris, affectio societates, tinha que haver.Agora, vem o legislador e, novamente, incorre no erro ao dizer “reite-radamente ou não”.

Eu queria chamar atenção para o fato de que isso foi intencional,porque retiraram das majorantes o concurso de pessoas. Pela lei ante-rior, o mero concurso de pessoas majorava a pena no art. 18, III. Agoranão há mais a majorante do mero concurso. Parece-me estar muito clarona Lei que o legislador, logo a seguir, quando fala da associação paratraficar, só fala reiteradamente. Hoje surge algo assim: o concursoeventual de pessoas no tráfico de drogas vai gerar automaticamente acondenação por dois crimes, pelo tráfico (art. 33) e pela associaçãopara traficar (art. 35), o que é uma aberração.

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – A primeira situação é a do aumentode pena na execução penal do terço. Acho que a proposta é tirar esteterço fora, ele caiu. Quanto à questão do concurso, eu tenho uma tese,Dr. Gilberto, na qual não sou nem vencido, sou ignorado, o que é pior.A vigorar esta tese, a pena mínima vai para 08 – 05 no tráfico mais 03na associação, total 08. Dobra em relação ao anterior, que eram 03mais 1/3, total 04. No furto, acontece isso. O sujeito pratica um furto so-zinho, 01 ano; em concurso de agentes, 02. Pena máxima do furto sim-ples: 04. Em 02, dobra: 08. No crime de furto, sempre tentei ajustarisso, ora um furto privilegiado, uma tentativa, um arrependimento pos-terior, sempre tentava ajustar este furto qualificado com uma pena deum furto simples.

Page 93: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

92 – 2º Ciclo de Estudos

Quando eu não conseguia esta manobra, eu lançava mão da minhatese ignorada, que sustenta que a qualificadora do furto só tem estesentido quando for necessário, concretamente, mais de uma pessoa paraexecutar a conduta. Exemplo: uma pessoa sozinha não consegue furtaruma TV de 50 polegadas, precisa de um outro para ajudar a carregar;mas uma pessoa sozinha consegue furtar este Código. Estamos aqui, oKeunecke e eu; ele é contra, sei que ele é linha dura, pegamos o Códigoe saímos. Eu poderia fazer isto sozinho, mas só porque ele está junto,vou tomar o dobro de pena? Não vejo razoabilidade nisso. A vigoraresta tese de que agora acabou, a mínima é de 08 anos, talvez seja ocaso de repensar. Ou seja, precisava-se ali das duas pessoas? Se não,vamos admitir o tráfico simples praticado por duas pessoas, como achoviável e sustentável juridicamente o furto simples praticado por duaspessoas.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Quanto à questão das ma-jorantes?

DR. GILBERTO THUMS – Quanto às majorantes, é bem interessantedar-se uma examinada porque houve um redimensionamento não sóquanto ao parâmetro de pena mínima e máxima, mas principalmentena própria conceituação das majorantes. A primeira delas não fala maisem tráfico internacional, fala em transnacionalidade do tráfico.Parece-me que o legislador quis dar uma elasticidade maior à interpre-tação do que seria o tráfico internacional. O Supremo Tribunal Federaltinha uma posição, e eu também defendia isto sempre: de que, na Leianterior, teria que haver uma prova de que houve o vínculo, pelo menosentre dois agentes, um de um país e outro de outro país. Agora a Leifala apenas em provas ou evidências de que se trata de transnacionali-dade. Temos que cuidar porque a cocaína no Brasil toda vem do Exterior.Então, se pegarmos um sujeito com cocaína aqui, seria competênciafederal. Não me parece ser assim. A transnacionalidade se caracterizapela exportação ou importação da droga, mas tem que flagrar o sujeitonesta conduta de superar a fronteira. É muito comum que este crimese caracterize em portos, aeroportos ou em zonas de fronteira. Depoisque a droga foi distribuída para revendedores, deixa de existir estacompetência federal. Uma coisa que se deve chamar atenção é quehoje não existe mais a delegação de competência para Juiz Estadual. Acompetência federal ficará com o Juiz Federal. Assim, na transnaciona-lidade, os Juízes Federais é que resolvem o problema, e o tráfico entreEstados, que agora também virou majorante, normalmente são estescorredores. Se não conseguimos ligar o tráfico à internacionalidade, e

Page 94: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 93

sim só a um corredor nacional, então a competência é da Justiça Esta-dual, embora a Polícia Federal investigue porque aí é que está: a Cons-tituição atribui à Polícia Federal a incumbência de investigar o crime,mas a fixação da competência do Juiz Federal advém do art. 109, V, da CF.

Eu estive na semana passada em Florianópolis, com os Juízes Federaise tentei sustentar que isto era competência federal, e não tive chance:tráfico entre Estados é competência estadual. A Polícia Federal investiga,é certo, está na Constituição, mas a competência da Justiça Federaladvém do art. 109, V, e realmente do tráfico entre Estados é da com-petência estadual.

Eu queria chamar a atenção de que, com a edição do Estatuto doIdoso, a Lei nº 10.741, se ampliou a majorante do inc. III, quando otráfico visava a menor de 21 ou a maior de 60. Então quem traficavapara velho, tinha a pena majorada. Agora a Lei tirou isso, quem trafi-ca droga para velho não tem a pena aumentada. A pena é aumentadase o destinatário da droga for pessoa que tenha capacidade mental,ou de compreensão, ou de autodeterminação reduzida. Mudou. Quemfoi condenado por esta majorante, porque o destinatário da droga eraum idoso, tem direito à revisão porque ela deixou de existir.

Há mais uma questão que me chama muito a atenção – e eu achoque vai gerar muito problema: eles acrescentaram, no dispositivo sobreo local da traficância, se for dependência de unidade militar. E todossabemos que, se existe um crime militar de tráfico de drogas dentro dequartel, é crime militar. Aí vem a pergunta: será que o legislador, comesta majorante, tirou a competência da Justiça Militar para julgar estecrime de tráfico?

Tenho um exemplo bem interessante, que quero até citar aqui.Aconteceu em Uruguaiana. Dentro de um quartel, rolava maconha,e o Comandante encarregou uma equipe para investigar como a drogachegava no quartel. Um dia descobriram que o caminhão do lixo en-trava, pegava o contêiner do lixo, fazia uma manobra perto domuro, mas ninguém entendia por quê. O muro havia sido preparado,ou seja, eles haviam tirado um tijolo, cavaram um buraco, o cara ialá, tirava o tijolo, enfiava uma trouxa de maconha, tapava nova-mente com o tijolo e ia embora, depois ia um soldado lá e pegava adroga.

Se analisarmos esta conduta, a droga vinha de fora para uma unidademilitar, é tráfico. Até aí tudo bem, mas foi cometido nas dependênciasde uma unidade militar. É um crime militar? Confesso que estou confuso,fiquei lendo bastante o Código Penal Militar, que define o que é crimemilitar – e a pena é muito mais branda naquele Código –, e ficou esteproblema: será que esta majorante, uma vez caracterizada, afastaria

Page 95: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

94 – 2º Ciclo de Estudos

a competência da Justiça Militar para julgar um crime militar, porque étráfico o que ocorreu em unidade militar? Fica esta questão para reflexão.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Falando em estabeleci-mento, como fica essa questão?

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – É que a Lei anterior, no art. 12, § 2º,II, dizia que era tráfico a utilização de local para uso indevido ou tráfi-co, ou seja, um sujeito dono de um local que permitisse que se usassedroga dentro do estabelecimento respondia por tráfico. Agora ele nãoresponde mais, só vai responder se ele consentir que o estabelecimentoseja usado para o tráfico.

Então, essa situação pode conduzir ao seguinte fato: o sujeito podeter uma boate, uma casa noturna e botar uma placa lá: “Sexta-feira,aqui liberada a cocaína para consumo”. Não pode vender, mas consumirestá liberado. Essa conduta é atípica, não vai dar nada por ele ser donodesse estabelecimento noturno. Como para o consumidor também nãovai dar nada, aqui vejo um estímulo real ao consumo de substância en-torpecente.

Tentei discutir essa situação, Dr. Gilberto, e alguém me sustentou:“Não, isso aqui é o seguinte. Isso é para ajudar o pai ou a mãe, aquelaque desesperada ajudava o filho, deixando que ele consumisse dentrode casa, etc.” Alguém me sustentou nesse sentido. Penso que não épor aí, porque poderia sair-se lá pelo Código Penal, pela isenção depena dessa mãe, desse pai. Não se precisaria tornar atípica essa con-duta. O consumo ficou liberado nos barzinhos.

DR. GILBERTO THUMS – Tem de botar uma placa: “É proibido venderdroga neste local, mas o consumo está liberado”. Se colocar isso aí,está resolvido. Isso foi intencional, e há mais uma coisa que eu gosta-ria de mencionar aqui, que é a apologia ao uso de droga.

Quando eu dava aula sobre tóxico, sempre tinha medo de que algumaluno fosse achar que, nessas brincadeiras, eu estaria incentivando al-guém a fazer uso de droga. A Lei anterior, lá no inc. III do § 2º, diziaassim: “quem de qualquer forma incentivar o uso ou o tráfico de entor-pecente está cometendo crime de tráfico do art. 12”.

Tivemos vários casos, a Luana Piovani foi a última pessoa que a Polí-cia Federal indiciou por apologia ao uso de droga, porque, naquele pro-grama Saia Justa, uma colega dela perguntou: “Que é que tu fazesquando estás muito down, deprimida e tal?” Ela disse: “Eu fumo umbaseado e fico bem legal”. Depois dessa declaração, a Polícia Federalcomeçou a incomodá-la porque ela estaria fazendo apologia ao uso de

Page 96: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 95

droga, e parece que é mesmo, porque ela é uma pessoa pública e servede referencial para muitos jovens. Os caras vão pensar assim: “Se elafuma, por que não posso usar?” Então, era possível compreender issocomo uma apologia ao uso de droga.

O caso mais recente no Rio Grande do Sul foi aquela parada pela libe-ração da maconha, que foi abortada pela Polícia Civil. Estive conversandocom o Delegado da Narcóticos, que disse que chamou o cidadão e ameaçou-ode prisão: “Vou prender todo mundo. Se saírem para a rua com cartazi-nhos pela liberação da maconha, não sei o quê, está todo mundo preso,porque isso seria uma apologia ao uso de droga”. Realmente, era até odia 08, hoje está liberado fazer apologia ao uso de droga.

E eu não posso aplicar subsidiariamente o Código Penal lá no art. 287,apologia à prática de crime, incitação ao crime. O legislador delibera-damente resolver descriminalizar quem fizer apologia ao uso de droga,não ao tráfico; aliás, ao tráfico também, porque ela não fala apologia,não há mais tipificação nenhuma.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Aproveitando aqui a per-gunta derradeira, antes de passarmos à manifestação dos presentes.

Fiz a introdução, aquela crítica em relação à Lei, à falta de coragemdo legislador: sob o aspecto conceitual, houve descriminalização, houvedespenalização? O que os senhores acham?

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – Escutei o Colega que nos antece-deu. Ele sustentava que continua como crime, mas não conseguiconvencer-me disso. Penso que foi, apenas não se teve coragem, comodisse o Keunecke no início, de colocar no Jornal Nacional o WilliamBonner dizendo: “Os Deputados aprovam a liberação, etc.” “O Presi-dente Lula sanciona lei que libera o consumo de droga no País.” Achoque faltou essa coragem, e aí se deu essa roupagem de Juiz e Promotor,etc. e tal, para fazer uma meia-boca.

DR. GILBERTO THUMS – Acho particularmente que foi uma tremendamaldade que fizeram com o Poder Judiciário. Eu, se fosse Juiz, não re-ceberia nenhuma denúncia pelo usuário e nem aceitaria a apresentaçãode usuário de droga: simplesmente mandaria tudo para o lixo, porqueestá na cara que as medidas que passaram para o Judiciário são medidasde políticas públicas de prevenção e controle do usuário de droga, equem tem de fazer isso é o Poder Executivo.

É muito cômodo passar esse abacaxi para o Judiciário e lavar asmãos. Isso é muito parecido com a Lei Maria da Penha: “Acabamos coma violência,” – disse o Lula – “e o Judiciário resolve”. Não tenho local

Page 97: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

96 – 2º Ciclo de Estudos

para freqüentar curso, não tenho local para prestar serviço à comuni-dade, não é atribuição do Judiciário criar esses locais, por que estouadministrando. Então, as normas que estão aqui e que constam comonormas penais, com roupagem penal, são nitidamente medidas socioe-ducativas. E, se elas são socioeducativas, o problema é do Executivo.

Penso assim: vai gerar um frisson se os Juízes se radicalizarem. Sin-ceramente não sei que desdobramento isso pode dar, mas aconselho.Estou fazendo a reedição dos Comentários sobre essa Lei de Drogas eestou sugerindo: eu, se fosse julgador, mandava tudo para o lixo, nãoaceitaria nada, porque acho humilhante, e até faço uma brincadeira.Imaginem o seguinte: a Polícia prende um viciado na rua, apresenta aoJuiz de plantão, e o Juiz pergunta para ele: “Você é viciado?” “Sim, usocrack.” “Olha quero dizer o seguinte: o crack faz mal à saúde.” “Ah, é?Qual é o mal? Me diz aí.” Aí, se o Juiz não souber explicar qual é o malque o crack faz para a saúde, ainda vai ficar numa banana ali.

Vamos supor o seguinte, o Juiz diz: “Fumar crack faz mal, estábem?” “Sim, senhor, estou ciente. Posso ir embora?” “Pode.” Aí ele vaiembora, dobrou a esquina, ele compra outra pedra, porque crackeirochega a fumar 40, 60 pedras por dia quando ele está num estágio muitoavançado de dependência. Tivemos um caso aqui de 60 pedras num dia.Então, a Polícia pega, ele faz uma segunda vez no mesmo dia, apresentaao Juiz de novo: “Mas o senhor está de volta aqui?” “Mas sou viciado, oque é que vou fazer?” “Então, advertência não adianta.” “Não, paramim, advertência não adianta.” “Então, o senhor vai freqüentar curso.”“Que legal! Não fiz 2º grau nem 1º, posso freqüentar curso, vai ser ótimo.”“Não, é curso para o senhor se educar para deixar a droga.” “Mas háaqui em Porto Alegre?” “Não, ainda não existe, mas daqui a pouco vaihaver, o senhor vai ser avisado.” “Ah, então eu aceito.” Aí libera o su-jeito. Ele vai para a rua, no mesmo dia, algumas horas depois, ele vempela terceira vez apresentado ao Juiz. Qual é o Juiz que vai aceitar?“Tenha a paciência, estou fora, para mim, tu podes fumar quanto tuquiseres.” Isso aí é um deboche. Sinceramente, é a leitura que fiz.

Da primeira vez, li e achei razoável, depois comecei a verificar. Issoaqui foi um deboche, foi um desprestígio, uma sacanagem para o PoderJudiciário. Alguns Juízes já conseguiram com os Promotores chegar aalgum consenso e vai tudo para o lixo. Onde há um Promotor radical,que vai recorrer, temos de ver o que as Turmas vão fazer quanto àidentificação se isso é crime ou não é crime.

Fábio Luiz Gomes foi o primeiro a se manifestar sobre isso. Elediz que houve descriminalização. É claro que quem quiser sustentarque isso aí é um crime pode sustentar porque o legislador diz:“constitui crime”. Qual é a pena? As penas são alternativas, só que

Page 98: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 97

as penas alternativas sempre são alternativas à pena privativa de li-berdade.

Então, esse é um tipo penal que não tem poder de coerção, esse é oproblema dele, não tem capacidade coercitiva. Intimidas o sujeito e diz:“Se eu não cumprir nada, o que é que acontece?” “O senhor vai ser ad-moestado.” “O que é isso?” “Admoestado, o senhor vai tomar um xixide mim aqui, eu vou-lhe passar o pito, advertência séria, commegafone no ouvido.” “Muito bem, estou advertido. E se eu não aceitarisso aí?” “O senhor vai tomar uma multa.” “Ah é, uma multa? E quem éque vai executar a multa?” O Ministério Público não tem legitimidadede executar a multa. A Fazenda Pública Estadual não vai executar porqueessa multa vai para a União. Aí vai para a Fazenda Pública Federal, elesnão vão executar, porque abaixo de R$ 10.000,00 eles não executam.Aí o Juiz vai pagar o mico para o viciado, que vai dizer: “É, doutor, osenhor me multou, mas ninguém está conseguindo cobrar-me a multa”.

O limite extremo do Juiz de ameaça ao viciado é a multa, e a multaé o que todos sabem, que é uma medida inócua, porque o viciadochinelão é pobre, mora embaixo da ponte, não tem onde cair morto,penhorar panela velha, coisa do gênero, não vai adiantar nada. O viciadoque tem dinheiro não é flagrado, porque ele fuma dentro de residência,protegido com grades e tudo, e a Polícia não vai botar a mão nele.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Dr. Gilberto, Dr. Sidinei,vamos passar aqui às perguntas. Eu gostaria de saber dos presentes sealguém tem alguma pergunta aos debatedores aqui.

PLATÉIA - (pergunta inaudível)

DR. GILBERTO THUMS – É que a diferença é assim: a instigaçãoprecisa de uma pessoa determinada. Instigar uma pessoa tem de seruma pessoa determinada, e a apologia é genérica. Chego no rádio,num programa de televisão e digo: “Olha, pessoal, em vez de trabalharhonestamente e ganhar um salário mínimo, vamos vender pó, poxa! Dámais dinheiro”. Isso é uma apologia ao tráfico. Isso não há como en-quadrar mais. Fico questionando: o que passou pela cabeça do legisladorem descriminalizar essa conduta? Há uma diferença entre instigar umapessoa determinada e fazer uma apologia genérica.

PLATÉIA - (pergunta inaudível)

DR. GILBERTO THUMS – Poderia, se são determinados, sim. Aí euconcordo, numa sala de aula, por exemplo, há um grupo determinado.

Page 99: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

98 – 2º Ciclo de Estudos

PLATÉIA – Isso, numa sala de aula, está lá uma pessoa fazendouma palestra, ou qualquer coisa: “Não, maconha não dá nada”.

DR. GILBERTO THUMS – Ele pode dizer assim: “Olha, pessoal, paraestudar para concurso é bom fumar maconha que abre a cabeça”. Issoseria uma instigação ao uso, porque tenho um grupo determinado.Quando tenho essa apologia, que é genérica, é indeterminada, aí nãoseria crime, só que aí cairíamos numa incoerência. Se tenho um grupopequeno, é menos grave do que um grupo indeterminado. Aí caímos noprincípio da proporcionalidade, uma pena para punir a instigação demeia dúzia e isenção de pena para instigar o mundo inteiro. É compli-cado, só veio para atrapalhar essa Lei. Alguns efeitos da Lei anteriorforam corrigidos, só que criaram uma celeuma sem fim, e vamos sofrercom isso.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Alguma pergunta dos pre-sentes, por gentileza? Alguém gostaria de se manifestar?

PLATÉIA - (pergunta inaudível)

DR. SIDINEI JOSÉ BRZUSKA – A pergunta é o que [...] de ofício.Assim, Fernanda, eu não vou sair derrubando PECs da prateleira. À me-dida que esses PECs forem passando por mim, vou dar uma analisada.

Há algumas coisas que são bem gritantes, por exemplo, essa da di-minuição de 1/3 para 1/6, essa é óbvia. O tráfico era dentro do presídio,de 1/3 passou para 1/6. Essa estou aplicando de cara.

Estou aplicando também aquela situação que é mais rara, que éaquela que referi antes, do sujeito que tinha um pezinho de maconhapara consumo próprio e em que ficou comprovado que era consumopróprio. Está tácito na sentença isso, está cumprindo pena por tráfico,e agora não há pena nenhuma. Então, a esse estou aplicando de ofício,ou seja, as diminuições. Ainda não enfrentei a questão do sujeito pri-mário sem nada, o mula, que tomou pena mínima, que não tem envol-vimento, alguns até confessam que receberam R$ 200,00, R$ 500,00para buscar essa droga. Às vezes, a própria autoridade policial confir-ma que ele era o mula, aquela diminuição do tráfico privilegiado tam-bém vou dar de ofício, mas naquele limite de 01 ano e 08 meses, nãovou baixar disso aí.

Vou começar por esses mais objetivos, depois há aqueles que consi-dero um pouco mais complicados.

DR. FELIPE KEUNECKE DE OLIVEIRA – Alguma pergunta a maisdos presentes?

Page 100: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 99

Como há ausência de perguntas, agradeço aos presentes aqui, ao Dr.Gilberto e ao Dr. Sidinei. O tema é extremamente complexo, às vezes, oque parece aqui uma coisa estéril, que não haveria sentido em discutir-mos, lá adiante se torna uma coisa extremamente complexa, e o enca-minhamento que se dá aqui mais ou menos transparece lá nas decisõesda instância superior. Então, é sempre salutar essa discussão, em quepese não concordarmos em relação a um ou outro ponto.

Passo a palavra ao Des. Bruxel, agradecendo também a minha escolhacomo mediador.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Faço um registro especial, porque oColega Sidinei se dispôs desde o primeiro momento, e não apenas isso,ele veio de Santa Maria. O Colega Keunecke, tão logo foi convidado,também se dispôs a vir, ainda que esteja em férias, e o Dr. GilbertoThums, igualmente, tão logo chegamos a ele, reorganizou a agendapara vir aqui. E mais, o Dr. Keunecke mostrou que as passagens delelá no Conversas Cruzadas não são por acaso, encaminhou bem o deba-te aqui. Estamos todos de parabéns. Debates interessantes, que pren-deram a atenção de muitos.

Penso que o nosso objetivo tenha sido atingido.Obrigado a todos que prestigiaram este evento.Até uma próxima oportunidade.

Page 101: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO
Page 102: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Vamos darinício ao nosso segundo ciclo de estudos deste ano,hoje abordando a tão controvertida e polêmica LeiMaria da Penha.

Teremos, agora pela manhã, duas palestras e, pelatarde, a palestra da Desª Maria Berenice e, ao final,um painel com magistrados que debaterão aspectoscontrovertidos. Convido para compor a mesa a nossaprimeira palestrante da manhã, a Dra. Ela WieckoVolkmer de Castilho, a Desª Maria Berenice Dias, quetambém é palestrante à tarde, e a Dra. Maria AracyMenezes da Costa, que é Vice-Diretora da Escola daMagistratura, nossa parceira na promoção desteevento.

Dentro do espírito da informalidade que marca osnossos eventos, quero agradecer a presença de todosos Colegas, agradecer especialmente a gentileza daDra. Ela Wiecko e da Dra. Juliana Belloque, que sepropuseram a se deslocar dos seus respectivos Esta-dos para estarem aqui hoje conosco, conversando so-bre tema tão relevante para a realidade brasileira.Agradeço também à Desª Maria Berenice Dias, quenão poderia seguramente se furtar a este convite emfunção da sua dedicação de corpo e alma a estetema, e aos demais Colegas que também se prontifi-caram a debater conosco.

Quero transmitir o convite que a Profª Maria Aracyestá formulando para um evento que ocorrerá dia 11de dezembro, às 18h, na Escola da Magistratura, cujotítulo é A Autonomia Privada em Relações Familiares– Papel e Função da Mediação. Trata-se de uma con-ferência da Profª italiana Virgínia Zambrano, deSalerno, Itália, com tradução simultânea. O evento éinteiramente aberto e gratuito, com inscrições pelotelefone 3284-9000 ou pelo e-mail da Escola:[email protected].

Page 103: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

102 – 2º Ciclo de Estudos

Passaremos agora à palestra da Dra. Ela WieckoVolkmer de Castilho sob o título: A Lei nº 11.340 e asNovas Perspectivas da Intervenção do Estado paraSuperar a Violência de Gênero no Âmbito Domésticoe Familiar.

A Dra. Ela tem especialização em Direito Públicopelo Instituto dos Advogados do Paraná; é Mestre emDireito Público pela Universidade Federal do Paraná eDoutora em Direito pela Universidade Federal de San-ta Catarina; atualmente, é Doutora Professora Adjun-ta da Universidade de Brasília e Subprocuradora-Ge-ral da República; tem experiência na área de Direito,com ênfase em Direito Público.

Com a palavra, a Dra. Ela.

A LEI Nº 11.340/06 E AS NOVAS PERSPECTIVAS DAINTERVENÇÃO DO ESTADO PARA SUPERAR A VIOLÊNCIA DE

GÊNERO NO ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR

DRA. ELA WIECKO VOLKMER DE CASTILHO – Des. Luiz FelipeBrasil Santos, minhas Colegas aqui de mesa, Senhoras e Senhores.

Para mim, antes de tudo, é um prazer estar aqui. Não é nenhuma di-ficuldade ou um peso vir a Porto Alegre, lugar onde me criei e estudei.Estou há muito tempo fora, mas não perdemos as raízes, a identidade.A minha alegria é maior por estar ao lado da Berenice. Fomos colegas,já partilhamos momentos muito importantes, um deles, lembro bem,foi a Conferência de Beijing.

Enfim, convido todos vocês a pensarmos um pouco a respeito dessaLei. A minha perspectiva de fala já está expressa no título. Pretendodiscutir as leituras que estão sendo feitas acerca da Lei Maria da Penhadesde uma perspectiva do controle punitivo, chamando a atenção paraa grande responsabilidade e, sobretudo, a grande oportunidade quetêm os profissionais do Direito – não apenas do Direito, mas das Ciên-cias Sociais – de repensar a intervenção do Estado, especificamente aintervenção penal nos conflitos pessoais e interpessoais que envolvema afetividade.

Sem dúvida, a leitura prevalecente do significado dessa Lei é a deque se trata de uma lei de caráter penal. Vou dar a vocês um exemplo

Page 104: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 103

de uma notícia veiculada recentemente, no dia 24 de novembro, repro-duzindo uma série de outras. Esta notícia do jornal O Dia, do Rio de Ja-neiro, diz o seguinte: “As punições para agressores endureceram. Ago-ra, a pena de detenção para crimes de violência doméstica triplicou. Erade no máximo um ano e agora pode chegar a três. A Justiça tem 48 ho-ras, a partir da queixa, para afastar o agressor da vítima”.

Essa visão de que é uma lei penal, de que é uma lei criminalizadoraé praticamente uma unanimidade nos noticiários dos veículos da mídia.Esse enfoque, digamos, do senso comum é também compartilhado pe-los profissionais do Direito.

Nessa área, identificamos uma forte rejeição por parte de Juízes e demembros do Ministério Público que atuam nos Juizados Especiais Crimi-nais, um segmento que chegou a articular um movimento ainda durantea fase de discussão, fazendo realmente um lobby. Foram ao Ministérioda Justiça e em outros espaços políticos para obstar a aprovação da Leiou, pelo menos, não retirar do Juizado Especial a competência.

A rejeição por parte dos Juízes fundamenta-se, de modo geral, emrazões de ordem prática: “Vai ser difícil, não há recursos”. De um lado,revela uma tendência burocrática do aparato judiciário; de outro, reve-la também uma ideologia. Que ideologia é essa? É a idéia de que,quando se fala em violência doméstica, se está falando de lesões cor-porais leves, atos de intimidação, ofensas à honra, controles na vidadiária. A violência doméstica abrange uma série de atos, dos menosaos mais graves em termos de lesão a um bem jurídico.

Nessa ideologia, esses acontecimentos domésticos são assuntos ine-rentes à vida familiar e, para a conservação dessa vida familiar, devemser relevados. Sobre a importância dessa idéia de preservação da famí-lia, temos trabalhos de vários autores e autoras – especificamente lem-bro da antropóloga Lia Zanotta e também da Carmen Campos, conheci-da no Rio Grande do Sul –, que, nas suas pesquisas, analisando o dia--a-dia das audiências judiciais, mostram como na prática há uma insis-tência dos Juízes para que a vítima renuncie à representação e aceite ocompromisso feito pelo agressor de não mais praticar a conduta violen-ta, compromisso este que sequer consta do termo de renúncia. Lembrodisso do tempo em que essas questões eram procedimentos comunsdas Varas Criminais.

Quando cheguei ao Superior Tribunal de Justiça, em 1992, era muitocomum eu receber recursos especiais relativamente a esses casos, to-dos acabando em prescrição. Dentro do procedimento, percebia-se cla-ramente essa insistência ou uma demora para levar à prescrição. Naépoca, fazia-se de tudo para postergar a conclusão e acabar com aque-le problema. Depois que passou para os Juizados Especiais, em que a

Page 105: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

104 – 2º Ciclo de Estudos

característica é a celeridade, já não dava mais para usar o instrumentoda prescrição e se passou a usar a persuasão para que a vítima desis-tisse da representação no caso de lesões corporais leves.

Agora, há um setor mais restrito dos profissionais de Direito que re-jeita a nova Lei, desenvolvendo argumentos mais sólidos, como é ocaso da Maria Lúcia Karan, que, em recente artigo publicado no Bole-tim do IBCCrim – a Berenice, no mesmo boletim, tem o seu posiciona-mento –, afirma: “O enfrentamento da violência de gênero, a supera-ção desses resquícios patriarcais, o fim dessa ou de qualquer outra for-ma de discriminação não se darão através da sempre enganosa, dolo-rosa e danosa intervenção penal”. A posição de Karan é de total nega-ção do sistema penal. Para ela, a repressão penal em nada pode contri-buir para o reconhecimento e garantia de direitos fundamentais, tam-pouco podendo trazer qualquer contribuição para a superação de pre-conceitos ou discriminações, até porque preconceitos e discriminaçõesestão na base da própria idéia de punição exemplificativa que informae sustenta o sistema penal.

Apesar de eu dizer que são sólidos os argumentos, nesse artigo, aMaria Lúcia usou alguns argumentos totalmente equivocados. JulianaBelloque, numa troca de mensagens pela rede, mencionou que, na suaprática como Defensora Pública no Tribunal do Júri, tem em média cin-co casos por mês de homicídios passionais praticados por homens con-tra mulheres. Maria Lúcia Karan diz que eles estão diminuindo, que nãohá quase registros de crimes passionais. Entretanto, este ano, em Bra-sília, no primeiro semestre, houve uma sucessão de casos que tiveramgrande notoriedade. Pesquisas em Pernambuco também, do Observató-rio SOS, alertam-nos para uma escalada de violência contra a mulher.Então, dizer que essa Lei era desnecessária, porque isso é um proble-ma que está diminuindo, não é verdadeiro.

Um outro argumento que ela utilizou foi de que a Lei fere o direitodas crianças à convivência familiar, que aquela restrição do pai ao con-vívio familiar seria uma violação de direito. Pergunto: qual é a violaçãode direito maior, o da criança de ser exposta a uma situação de ver ouaté mesmo sofrer a violência ou o direito de ficar com o pai? Enfim, eladiz que o sistema penal não é um instrumento de estabelecer igualda-de. Isso é verdade. O sistema penal é estruturalmente seletivo e acabareproduzindo as diferenças estruturais da sociedade. É um pouco difícilsair dessa lógica. A posição da Maria Lúcia Karan inclusive rejeita aproposta do Alessandro Barata, que é um outro criminólogo crítico, queaceita a possibilidade e até promove uma política criminal alternativapara as classes subalternas e admite a ampliação e o reforço da tutelapenal em áreas de interesse essencial para a vida dos indivíduos.

Page 106: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 105

Então, temos esses juristas, que são bem radicais, chamados aboli-cionistas, mas, mesmo aqueles que não são os abolicionistas radicais,os chamados minimalistas, fazem restrições à Lei, considerando-acomo uma legislação de emergência com forte apelo à função simbóli-ca. Nesse sentido se manifestam Flávio Gomes e Alice Bianchini.

Também nesse mesmo Boletim do IBCCrim, há dois autores que es-creveram a esse respeito, referindo-se a essa Lei como sendo uma nor-ma inserida no movimento de lei e ordem e de mera função simbólica.Portanto, a questão que a Lei Maria da Penha coloca é muito importan-te, é a legitimação do Direito Penal, legitimação que foi desconstruídapelos aportes da criminologia da reação social e pela criminologia críti-ca. Nesse conceito não há como deixar de admitir que a Lei nº 11.340aposta, em certo grau, na funcionalidade do Direito Penal para contri-buir com a superação da desigualdade de gênero e se insere na linhado eficientismo de que fala Vera Regina Pereira de Andrade e do queoutras pessoas chamam de movimento de lei e ordem.

Essa constatação é muito frustrante para quem, como eu, participoudesde o início da discussão da Lei e colaborou na redação da propostaenviada ao Poder Executivo – proposta feita por um consórcio de enti-dades, algumas pessoas a título individual – que serviu de base ao pro-jeto de lei encaminhado ao Congresso Nacional.

A idéia que norteou o grupo de mulheres, individualmente ou repre-sentando as organizações feministas mais importantes hoje no Brasil,que se comprometeu a lutar por uma lei que regulasse o enfrentamen-to à violência doméstica era a de produzir uma lei que a reconhecessecomo uma violação aos direitos humanos e que instrumentalizasse oEstado em prol das vítimas da violência de gênero. Daí a idéia de umjuizado para a violência doméstica numa perspectiva englobante deatuação nos Direitos Civil e Penal.

Com o correr do tempo e com os debates, principalmente no âmbitodo Executivo, abriu-se um espaço para a sociedade e foram ouvidos re-presentantes de vários segmentos – Polícia, Perícia, Juizados Especiais,Organizações dos Movimentos de Mulheres –, enfim, houve uma preo-cupação em abrir para a discussão. Mesmo assim, uma das críticas quetenho ouvido é que a Lei não foi muito debatida. Pode ser que muitagente não tenha sequer sabido, no âmbito do Judiciário, dessa Lei, masposso assegurar que foi feita a consulta pública. As pessoas que esta-vam interessadas no assunto, em algum momento, teriam a oportuni-dade de saber o que estava acontecendo.

Com essa abertura da discussão, passou a predominar essa perspec-tiva setorizada do Direito Penal, tanto que o art. 33 da Lei diz: “En-quanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar

Page 107: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

106 – 2º Ciclo de Estudos

contra a Mulher, as Varas Criminais acumularão as competências cívele criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática deviolência doméstica e familiar contra a mulher”. Para se chegar a essaconfiguração, foi desenvolvida uma discussão sobre a inoperância dosJuizados Especiais Criminais e, mais do que isso, como sendo uma es-trutura de banalização da violência doméstica.

Acredito que vocês devem conhecer, porque está na Revista daAJURIS, um trabalho muito importante da Carmen Campos em que elaapresenta, nesse artigo que foi publicado em 2001, o resultado de umapesquisa realizada entre agosto de 1998 e março de 1999. Nessa pes-quisa ela mostra que a Lei nº 9.099 foi criada para beneficiar o réu,evitando-lhe todos os males de um processo penal. Esse favorecimentoestá presente em todos os institutos da Lei. Quanto à vítima, ela nãoexiste. Há apenas o momento processual em que a vítima é ouvidapara dizer se aceita a composição civil por danos. São palavras da Car-men: “Por isso, entendo” – lembro aquilo que falei no início, da insis-tência do Juiz em promover a conciliação – “que a conciliação induzidareprivatiza o conflito, devolvendo-o à vítima, e redistribui o poder darelação em favor do réu”.

Nesse trabalho, a Carmen faz uma avaliação de caráter qualitativodesses Juizados Especiais Criminais. Não só a sua, mas outras pesqui-sas foram feitas, e, no desenvolvimento dessa discussão do projeto delei, principalmente nas audiências públicas que foram realizadas em al-gumas Capitais brasileiras pela Relatora, Deputada Jandira Feghali, asmulheres falavam contra essa banalização da violência doméstica queficou muito marcada pelas famosas listas de lesões praticadas e o nú-mero de cestas de alimentos correspondentes. Então, há umasobreutilização da pena de prestação pecuniária. Agora, essas avalia-ções de caráter qualitativo não impressionavam os Juízes dos JuizadosEspeciais.

Acho que acabei esquecendo de trazer para vocês, mas vou me refe-rir a uma notícia que também foi veiculada logo após a edição da Lei,sobre uma reunião realizada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.Ela transcrevia algumas palavras do Des. Sérgio Cavalieri Filho, emque ele dava o número das causas julgadas pelos Juizados EspeciaisCriminais daquele Estado. Ele mencionava muito a produtividade, fa-zendo um comparativo de como era antes com as Varas Criminais ecomo é agora, com milhares de causas julgadas.

Voltando àquilo que mencionei no início sobre a visão burocrática doJudiciário, vejam como ele avalia a sua efetividade e a sua eficiênciapelos números – “são tantas sentenças, tantas audiências realizadas” –,mas não se preocupa com o conteúdo delas e como aquilo repercutirárealmente na vida das pessoas.

Page 108: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 107

Agora, é bem verdade – e isso foi muito valioso para todos que par-ticiparam do grupo de trabalho – que, ao lado dessa visão de represen-tantes dos Juizados Especiais, que consideravam muito positiva a cele-ridade e esse número, outras autoridades mostravam a sua frustração.Lembro bem de uma Juíza que falava dos tantos casos em que ela atu-ava uma, duas vezes e, no final, saíam de suas mãos, saíam do JuizadoEspecial, e acabavam na Vara do Tribunal do Júri. Então, ela aceitavadiscutir a saída da violência doméstica do âmbito dos Juizados.

Por isso, dentro do grupo de trabalho e no próprio Congresso Nacio-nal, houve o consenso de que a violência doméstica que se apresentas-se nas figuras criminais abrangidas pela Lei nº 9.099, ou seja, atéaquelas lesões leves, ameaças, crimes contra a honra, teria que ser ex-cluída do seu âmbito não tanto porque as penas fossem pequenas, masprincipalmente porque elas incidiam na qualificação de infração de me-nor potencial ofensivo.

Esse conceito acabou criando uma armadilha, e, para que as condu-tas fossem excluídas dela, foi preciso aumentar as penas. Inclusiveessa modificação em relação ao art. 129, do crime de violência domés-tica, esse aumento já foi decidido no final para evitar determinado ar-gumento, que era o de que nós não poderíamos retirar da Lei nº 9.099uma infração que é de menor potencial ofensivo. E, afinal, a Constitui-ção fala que infrações de menor potencial ofensivo são julgadas pelosJuizados Especiais.

Então, diante do exposto, parece-me evidente que, para salvar a Leido destino de se constituir em mais uma norma de efeito simbólico, épreciso resgatar, dentro das possibilidades que enseja, a concepçãooriginária de que o Estado deve oferecer, no âmbito do Judiciário, dalide penal ou civil, serviços de assistência psicossocial, que dêem àsvítimas e aos agressores e agressoras caminhos para a solução dosconflitos. Afora isso, é preciso criar, ainda, mecanismos de soluçãopré-judicial, em nível administrativo ou comunitário.

Uma outra possibilidade que está dentro da Lei são as medidas pro-tetivas e o atendimento – todas aquelas regras relativas ao atendimen-to policial –, que têm uma possibilidade muito grande de atender àsexpectativas da mulher. Aquele trabalho da Carmen a que me referimostra também a forte expectativa das mulheres com a capacidade doJudiciário em dar segurança imediata. As mulheres, como diz a Car-men, mais do que procurar a punição do agressor, querem uma segu-rança imediata e, claro, que se prolongue no tempo, que lhe permitamir ao trabalho e voltar para casa e não serem mais agredidas.

Nesse sentido, a experiência das Delegacias de Mulheres pode serútil. Há um outro trabalho muito interessante da Wania IzuminoPazinato, de 2002, em que ela analisa a experiência das Delegacias de

Page 109: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

108 – 2º Ciclo de Estudos

Mulheres em todo o Brasil e percebe a existência de três modelos: pri-meiro, o modelo que prioriza o atendimento burocrático-policial de re-gistro das queixas, como o de São Paulo; segundo, o modelo que mes-cla a atividade policial com as funções de mediação, citando comoexemplo as Delegacias do Rio de Janeiro; terceiro, o modelo que com-bina o atendimento policial com o atendimento psicológico e social,buscando um atendimento mais integral à mulher.

Nós estamos numa situação de início da implementação da Lei. Pare-ce-me que há uma possibilidade de assumirmos um desses três mode-los. Essa análise que ela fez em relação às Delegacias pode ser, a meuver, transposta para esses Juizados que estão sendo criados. Então,nós podemos assumir esse modelo simplesmente burocrático – e issonós não queremos – ou algum dos outros dois.

Parece-me mais apropriado que o Juizado siga esse terceiro modelo,em que haja esse atendimento mais integral. Com isso, realmente, éimprescindível que a estrutura do Juizado tenha uma equipe de atendi-mento psicossocial. E, nessa questão de atendimento psicossocial, aidéia que se tem sempre é a de que é necessário ter um assistente so-cial, um psicólogo. Penso que é mais do que isso. Nós temos que ter omaior número de profissionais, como, por exemplo, da Antropologia, daPedagogia, da História, de todas as Ciências Humanas, que tragampara o Juiz subsídios para que ele possa compreender a situação indivi-dual daquela mulher do ponto de vista também macrossociológico.

Diante disso, e já concluindo, não considero apropriado, mesmo ten-do um forte comprometimento com a criminologia crítica, com a pro-posta abolicionista penal, nem conforme com as premissas do estadodemocrático de direito configurado pela Constituição de 88, ficar discu-tindo ou pugnando pela inconstitucionalidade da Lei, inconstitucionali-dade, por exemplo, fundada numa violação ao princípio da isonomiapelo fato de a Lei colocar basicamente a mulher como vítima e o ho-mem como agente.

Nesse último trabalho de Souza e Fonseca, eles aprofundam essaquestão da desproporcionalidade que a Lei trouxe em relação a outrassituações do Código Penal. Isso está acontecendo todo dia. A cada leinova que está sendo editada e que cria um tipo penal, nós vamos veri-ficar que realmente aquele sistema de penas existente à época da edi-ção do Código Penal foi todo desmontado e que nós, na verdade, preci-saríamos de uma reforma conjunta do Código Penal e da legislação es-pecial depois editada para retomar essa proporcionalidade.

Quanto aos argumentos que dizem respeito à inconstitucionalidadeporque o Juiz não pode acumular jurisdição penal e civil ou de que a leiavançou na área de competência dos Tribunais de Justiça no que se re-

Page 110: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 109

fere à organização judiciária, penso que esse tipo de discussão real-mente é estéril. Há um problema de violência doméstica, há um proble-ma de violência de gênero. A violência de gênero é uma violência dohomem contra a mulher. Nós não podemos fugir dessa realidade. En-tão, é mais útil nós investirmos numa discussão sobre os aspectos daLei que proporcionem condições às partes de construírem soluções po-sitivas para os conflitos.

Assim, o que eu trago aqui é esta idéia: a Lei, sim, tem um caráterpenal, mas não devemos insistir nessa visão criminalizadora, como seela é que fosse a solução para o conflito. Se formos por esse caminho,nós corremos o risco de não conseguirmos absolutamente nada, sequeratingir esse efeito simbólico que esperamos da Lei.

Penso que nós temos que aproveitar tudo o que a Lei nos oferecede possibilidade de intervenção nesses conflitos interpessoais. Pare-ce-me que eles têm um momento que podem ficar no privado, mas,quando as partes envolvidas não conseguem resolver, o Estado preci-sa, sim, intervir. Agora, como intervir realmente é algo a ser pensa-do, porque essa intervenção do Estado nunca pode ser autoritária,tem de ser uma intervenção que privilegie a autonomia de vontadedas partes. Se for autoritária, ela pode resolver o problema naquelemomento, mas não vai instaurar uma relação das pessoas pautada norespeito e na vontade própria de continuar na relação em novo pata-mar.

Para isso, vou dizer uma coisa que todo mundo diz, mas realmente éa solução: nós temos que trabalhar na sensibilização dos profissionaisdo Direito. E aqui falo mais do Direito, porque realmente a nossa for-mação na faculdade, apesar de todos os esforços que têm sido feitos,continua sendo baseada na interpretação das normas do ponto de vistalógico, e não do ponto de vista de como a aplicação dessa norma se in-sere no contexto social. Essa sensibilização passa por dar ao profissio-nal de Direito, tanto na faculdade como fora dela, já dentro da sua ati-vidade profissional, experiências outras que o façam compreender acomplexidade da vida humana. Ver essa complexidade e tentar pensarsob um paradigma da complexidade.

Toda a nossa tendência é de setorizar, de pensar as coisas de formaestanque, porque é difícil pensarmos no conjunto. A nossa capacidadenão atinge o todo. Nós temos que, para atingir o todo, pelo menos,passar pelas partes, e há todo um paradigma filosófico muito antigo,que domina a sociedade ocidental, que nos leva a isso.

Essa é a razão pela qual eu, no começo, disse que o que acabou pre-dominando foi a visão do Direito Penal. Sempre acabamos pendendopara um lado. No caso da Lei Maria da Penha, temos que reverter essa

Page 111: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

110 – 2º Ciclo de Estudos

situação. Não podemos deixar que a visão da punição, a visão do Direi-to Penal, se sobreponha à outra visão da Lei, que é a de oferecer essesserviços de assistência e proteção às mulheres e instrumentos aos ho-mens violentos para eles encontrarem um novo rumo para as suas vi-das.

Basicamente era isso que eu queria dizer para vocês. A minha preo-cupação com a implementação da Lei é a de que haja esse esforço mui-to grande em direção à lei penal e que todo o outro espectro de solu-ções que estão embutidas nessa Lei fique perdido, que a solução maisfácil seja a penal, que é aquela de dar uma sentença que não vai sermais de prestação pecuniária, vai ser uma prestação de serviços à co-munidade talvez, mas, enfim, que resulte em mais papel, e não é issoque as pessoas que lutaram pela Lei Maria da Penha desejam. O quecertamente todos e todas que estão aqui nesta sala desejam é que hajamaior eqüidade nas relações entre homens e mulheres.

Obrigada.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Dentro do espírito de debatedo Centro de Estudos, coloco a palavra à disposição de todos para aformulação de perguntas.

PLATÉIA – Bom-dia. Concordo plenamente com a palestrante quan-do ela diz que, se a parte penal prevalecer sobre os outros instrumen-tos que a Lei fornece, será uma tragédia, mas tenho tido umainterlocução meio aproximada com ONGs e outras instituições que par-ticiparam e vejo que elas têm uma visão equivocada, porque, quandoeu tenho sustentado – não sei se estou certa ou errada – que os delitoscontinuam condicionados à representação, as ONGs e as pessoas comquem tenho conversado dizem que não, que o processo penal é obriga-tório.

Tenho a impressão de que elas têm esta visão e que é equivocada,de que a solução está no processo penal. Todos nós, operadores do Di-reito, sabemos que não é. Concordo com a Senhora plenamente nessaquestão de que não é a solução e que os outros instrumentos devemprevalecer, mas muitas das instituições que se envolveram na ediçãoda Lei têm essa visão, de que a solução está no processo penal.

DRA. ELA WIECKO VOLKMER DE CASTILHO – Eu agradeço a inter-venção, porque esse é um ponto sobre o qual eu queria mesmo falar. Aquestão sobre se a ação penal nos crimes de lesões corporais levesdeve ser condicionada à representação ou não foi muito discutida noseio desse grupo anterior de ONGs que formulou o anteprojeto e depois

Page 112: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 111

no grupo de trabalho. Realmente, acabou prevalecendo esta posição deque tem que retornar à feição original, do que existia no nosso sistemapenal, de que em crime de lesão corporal sempre é ação pública incon-dicionada.

Tenho visto já que, apesar de a Lei afastar explicitamente a aplica-ção da Lei nº 9.099 – a Lei nº 9.099 não se aplica a nenhum dos arti-gos, inclusive aquele que possibilitava a ação pública condicionada –,há uma interpretação crescente no sentido de que deve ter, sim, a re-presentação.

Pessoalmente, entendo que tornar a ação pública incondicionada emtodos os casos não favorece a esse princípio de autonomia da vontadede “empoderamento” das mulheres. Estava-se construindo uma soluçãono sentido de que, sim, podia renunciar, podia desistir, mas devia serfeito isso não da forma como na prática era feita, devia ter um momen-to em que a mulher, para tomar essa decisão, teria de estar amparada,afastada de uma situação de vulnerabilildade, em que se vê quase queobrigada a renunciar.

Não sei como a prática vai acabar resolvendo isso. Arrisco que vaipredominar o entendimento de que ação pública é condicionada. É oque eu imagino que vai acontecer.

PLATÉIA – A Senhora ressalvou a sua preocupação com a banaliza-ção da violência doméstica e também, de uma certa forma, demonstrouuma preocupação com a aplicação dessa Lei pelo Juiz.

Discordo da Senhora, porque penso que, na verdade, o Juiz sempretenta aplicar a lei da melhor forma possível, há um bom senso.

No caso do Juizado Especial Criminal (não da violência doméstica,mas Criminal, que não abrangeria essa nova Lei), já há esse perfil doJuiz em se preocupar em conciliar os conflitos, com atuação nãodirigida diretamente à punição do agressor.

Então, parece-me que vão querer responsabilizar o Judiciário pelafalta de estrutura que o Poder Executivo terá que atingir. Na realidade,quem vai ser responsabilizado é o Judiciário, e a senhora demonstrouessa preocupação. Da parte do Judiciário vai haver um esmero em ten-tar resolver esse conflito. O que eu noto, às vezes, é que o MinistérioPúblico – e isso não é uma crítica – até empurra, meio que força paraque seja solucionado o conflito de uma forma pressionada, mas o Juizsempre tenta se preocupar mais adiante, priorizando os interesses dosmenores inclusive.

Então, em relação ao que a Senhora falou, acho que a responsabiliza-ção não cabe ao Judiciário, mas, sim, ao Poder Público, que não vai criarpolíticas para a aplicação dessa Lei. Ao Judiciário vão faltar instrumentos,

Page 113: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

112 – 2º Ciclo de Estudos

nós vamos nos sentir impotentes, como naquela história de encaminharas vítimas para programas assistenciais. Contamos com o que já te-mos, mas acho que, apesar da criação dessa Lei, o Poder Público nãovai criar instrumentos para o Judiciário poder efetivamente atingir oobjetivo da Lei. Quanto ao que compete ao Judiciário, penso que faze-mos o impossível.

DRA. ELA WIECKO VOLKMER DE CASTILHO – Não estou querendodizer que há um menor ou maior culpado, mas também discordo de al-guma forma de você no sentido de que, nesse afã de conciliar, tanto oMinistério Público como o Judiciário, enfim todos os Órgãos, acabamreproduzindo uma ideologia de dominação do homem sobre a mulher.Não dá para dizer que o Judiciário faz tudo direitinho. Não faz. Eu soudo Ministério Público, acabei de fazer uma pesquisa relativa a racismoinstitucional e posso dizer que o Ministério Público é uma instituiçãoracista. Tenho certeza de que as nossas instituições são racistas, elassão sexistas.

Então, não é que eu discorde de você. Às vezes, achamos que esta-mos fazendo alguma coisa direitinho e não estamos, porque não conse-guimos perceber essa estrutura na qual estamos inseridos e que aca-bamos reproduzindo. No mais, estou de acordo com você. É todo umconjunto de instituições que precisa trabalhar junto.

PLATÉIA – Quero apenas fazer um adendo em relação ao que a pa-lestrante falou. Conheço o trabalho da Maria da Graça em Gravataí, éum trabalho elogiável, mas ela fala por ela. Realmente, eu diria que aMaria da Graça faz tudo direitinho. Mas venho estudando há algunsanos essa questão da violência familiar e trabalho nessa área, em Juiza-do Especial Criminal, há 09 anos. Também acho que fazia relativamen-te direitinho, acho que ela fazia mais direitinho do que eu, mas, enfim,não é a maioria dos Juizados. Por quê? A Lei colocou a solução da cestabásica, e o Juiz – não estou nem fazendo uma crítica, só reconhecendouma realidade – e o Promotor, premidos pelo volume de trabalho, namaioria da vezes – temos que reconhecer isso –, acabam optando pelasolução mais rápida e mais fácil, que não resolve o problema.

Então, acho que a situação chegou ao ponto que chegou em partepor nossa responsabilidade. Temos que ser honestos e reconhecer isso.E está na hora de mudar, porque, se nós quisermos acabar com essaLei também, nós conseguiremos fazer isso. Todos têm que se imbuir doespírito de tentar, com todas as dificuldades de implementação que elatem, que são muitas, vencer as dificuldades, sempre preservando o es-pírito e os objetivos que ela tem.

Page 114: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 113

Nós temos, sim, responsabilidade. A cesta básica disseminou-se,tanto é que ela virou pena. Todo mundo diz por aí: “Ah, eu ganhei umapena de cesta básica”. Realmente, isso se popularizou e foi muito utili-zado pelos Juízes. E, na questão da violência familiar e da dependênciaquímica, utilizada com muita impropriedade.

PLATÉIA – A colocação que eu faço é a seguinte: não teria sido umquestionamento válido, em vez de retirar essa questão da violência do-méstica do âmbito do Juizado, tentar se tratar o agressor e a agredidadentro do âmbito do Juizado? Porque, sempre que alguém é agredido,também existe uma relação de ambivalência. Às vezes, a mulher ficanuma situação de repetição: ela apanha, sai de casa, volta, é agredidade novo. Então, recrudescer o tratamento através do Direito Penal,muitas vezes, não vai resolver. Quem sabe, deixar dentro do JuizadoEspecial, melhorar a rede de atendimento, através de assistentes sociais,etc., e ampliar esse tratamento, envolvendo toda a situação, não teriasido uma solução melhor do que simplesmente tirar do Juizado?

Em segundo lugar, no momento em que o Juiz expede as medidasprotetivas de proibição de determinadas condutas – aproximação daofendida, contato com a ofendida, proibição de freqüentar determina-dos lugares –, como vamos controlar isso? O Juiz não está também ba-nalizando as decisões judiciais? De certa forma, a Lei vai ficar fadadaao insucesso, porque é quase impossível fiscalizar. Como a Senhora vêisso?

DRA. ELA WIECKO VOLKMER DE CASTILHO – Com relação à pri-meira pergunta, isso foi muito discutido nos debates, mas o problema éque no Juizado Especial Criminal só podem ficar aquelas condutas atédeterminado patamar de pena. Então, não abrangeria todas as situa-ções de violência doméstica.

A outra questão, de não poder ficar no Juizado, é porque o Juizadodiz que são as infrações de pequeno potencial ofensivo. É essa questãode considerar a violência doméstica como de pequeno potencial ofensi-vo e a impossibilidade de trazer para o mesmo âmbito outras infraçõesque já passaram desse pequeno potencial ofensivo e que, na prática,sabemos, decorrem de todo um histórico de condutas que foram consi-deradas de pequeno potencial ofensivo, quer dizer, do ponto de vistalegal, dentro da nossa ordem jurídica, tinha que sair fora desse Juiza-do.

Agora, com relação a esse segundo ponto, você tem toda a razão. Esseé também um desafio que temos de não banalizar essas medidas. Antesdesta sessão, fiquei sabendo de uma reunião que houve em Brasília, da

Page 115: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

114 – 2º Ciclo de Estudos

criação dos observatórios regionais para a sociedade civil monitoraressa implementação. Então, é muito importante essa organização decontrole externo por parte da sociedade civil para que não haja essabanalização.

PLATÉIA – Em relação à questão de não se manter no Juizado Espe-cial Criminal, recentemente, a Themis realizou uma pesquisa junto aoJuizado Especial Criminal e o Projeto Conciliação Família. Foi uma pes-quisa já pensada politicamente no sentido da implementação da Lei,porque a Themis foi uma das ONGs que participou do consórcio, e nóspensávamos que realmente teria todo este debate que está ocorrendoaqui no sentido de minimizar a importância da legislação. Essa questãoda conciliação, da celeridade, foi vista como uma política do Judiciáriopara ser eficiente, não resolutivo em relação ao conflito da violênciadoméstica.

Essa foi a idéia da pesquisa. Consegui verificar até que ponto haviauma eficácia nas decisões do Juizado Especial Criminal ou no ProjetoConciliação Família e até que ponto se verificava a violência, se ela eravisível ou não.

A competência também é uma das questões que o consórcio semprecolocou como importante, quer dizer, a importância de essa Vara de Vio-lência Doméstica e Familiar contra a Mulher ou Juizado de ViolênciaDoméstica e Familiar contra a Mulher poder contemplar o procedimentocível e criminal. Essa era a expectativa de muitas mulheres que chega-vam ao Projeto Conciliação Família, que achavam que iam resolver oproblema do crime, que poderiam falar sobre a violência, e não erapossível falar sobre violência nesse contexto. E, onde deveria ser fala-do, no Juizado Especial Criminal, ouviam: “Não, vamos resolver, vamosfazer um acordo, já voltaram”, quer dizer, direcionavam. A pesquisasegue ainda aquela linha de pesquisas anteriores em relação ao Juiza-do Especial Criminal, e, por isso, então, a importância. Por ser umaONG, digamos assim, implicada, em relação ao que foi dito, à constru-ção da legislação, inclusive, não havia nenhum aumento de pena.Quando o consórcio entregou à Secretaria Especial de Política para Mu-lheres, não havia nenhuma mudança penal, aumento da pena, haviasimplesmente a retirada do procedimento da Lei nº 9.099.

Então, retirando os procedimentos da Lei nº 9.099, passa a viger oCódigo Penal no sentido de a representação ser condicionada ouincondicionada nesse contexto. Agora, a idéia não foi retirar a autono-mia de poder ou não desistir. Não é que se compreenda que tem quehaver o processo penal. Pela interpretação da legislação, já que cai apossibilidade de utilização da Lei nº 9.099, em crimes de lesão corpo-

Page 116: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 115

ral, deveria ser essa a regra, de a mulher não poder mais desistir, di-gamos assim, de continuar com o procedimento. Mas, enfim, acho quetodo o contexto pode ser observado e, como é uma lei nova, haveressa possibilidade pela questão da reincidência também.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Percebi, na palestra da Dra.Ela, esta preocupação de retirar a ênfase excessiva ou exclusiva no ca-ráter penal desta Lei, de conferir a ela um caráter englobante, permi-tindo – inclusive, essa minha impressão resultou da conversa que tive-mos pouco antes do início dos trabalhos – a um mesmo Juiz a possibili-dade de decidir todas as matérias que envolvam aquele conflito familiar,tanto no seu aspecto penal, como no seu aspecto cível. Aliás, isso re-sulta mais ou menos claro do art. 33 da Lei.

Agora, o que realmente tem transmitido a nós essa sensação de queessa Lei é preponderantemente penal é o fato de que ela atribuiu àsVaras Criminais, enquanto não instalados os Juizados, a competênciapara apreciar essas matérias. Aqui, no Rio Grande do Sul, pelo que sesabe, num primeiro momento e dentro de um horizonte divisível, sóserá instalado um Juizado especializado na Comarca da Capital. Nasdemais Comarcas, a competência será realmente exercida pelas VarasCriminais.

Indago-lhe o seguinte: no seu entendimento, o Juiz dessas VarasCriminais terá competência não apenas para deferir as medidasprotetivas de urgência de caráter cível, mas também processar e julgarmatérias relativas à guarda, separação de corpos, fixação de pensãoalimentícia? E isso se dará nos mesmos autos em que se apreciará aquestão criminal ou não? Essa é a grande questão, porque, no RioGrande do Sul, já estão começando a pipocar conflitos de competência.Aqui, no Tribunal mesmo, já temos inclusive conflito de competênciaentre Juízes de Varas Criminais e Juízes de Vara de Família. Curiosa-mente, alguns conflitos são distribuídos para Câmaras Criminais e ou-tros para Câmaras de Família.

Esta semana mesmo, suscitei para o 1º Vice-Presidente uma dúvidade competência. No meu entendimento, esses conflitos têm que serapreciados e dirimidos pelo Órgão Especial, e não por uma Câmara Cri-minal ou por uma Câmara de Família. Mas isso é apenas, digamos as-sim, uma face do problema. O que me preocupa – sei do entendimentocontrário da Colega Maria Berenice, que terá oportunidade de se mani-festar na sua palestra hoje à tarde – é que, pelo que entendi, e gosta-ria que a Senhora se estendesse mais sobre esse tema, na sua opinião,o Juiz da Vara Criminal ou, futuramente, do Juizado deve processar,julgar e proferir sentença inclusive sobre fixação de alimentos, com o

Page 117: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

116 – 2º Ciclo de Estudos

estabelecimento de contraditório e provas no âmbito cível. É issomesmo?

DRA. ELA WIECKO VOLKMER DE CASTILHO – Sim, essa é a idéia.Agora, com relação aos procedimentos, eles são diferentes. Há a causacivil e a causa penal. Não seriam nos mesmos autos, mas o Juizado, oJuiz tem que ser o mesmo. É o mesmo Juiz que vai decidir a causa pe-nal e a causa civil.

Essa idéia de fazer nos mesmos autos, embora não ache desarrazoa-da, é difícil de implementar, seria uma coisa muito revolucionária. Arevolução vai até esse ponto: é o Juiz da Família, conhecendo do pontode vista penal e do ponto de vista civil.

PLATÉIA – E a execução?

DRA. ELA WIECKO VOLKMER DE CASTILHO – A execução penal ecivil?

PLATÉIA - Execução de alimentos.

DRA. ELA WIECKO VOLKMER DE CASTILHO – Acho que sim.Quanto à execução civil, nunca tive dúvidas, mas, em relação à execu-ção penal, tenho que pensar melhor.

PLATÉIA – O mesmo Juiz?

DRA. ELA WIECKO VOLKMER DE CASTILHO – O mesmo Juiz queconhece. Vocês têm aqui separadamente?

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – A execução de alimentos sefaz na Vara de Família que fixou os alimentos.

DRA. ELA WIECKO VOLKMER DE CASTILHO – Os casos de violên-cia doméstica podem abranger não só penas restritivas de direito, mastambém penas privativas de liberdade. Por isso que, na execução penalde pena privativa de liberdade, parece-me que tem que ser o Juiz daExecução Penal.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Sem dúvida, mas parece-meque a pergunta da Colega se refere à execução de alimentos especial-mente.

Page 118: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 117

PLATÉIA – O princípio do Código de Processo Civil é que o Juiz dasentença é o Juiz da execução, falando linearmente, com base no textoda Lei, sem procurar soluções para contornar as dificuldades a queessa interpretação levaria. As execuções de matérias cíveis se fariam,pelo texto da Lei, no juízo da sentença; as da execução penal seguema regra das leis de execução penal; se for uma sentença penal conde-natória, há um título executivo penal e regras processuais penais queregulam a execução penal; se se tratar de prestação de serviços à co-munidade, vai para a VEPMA; se se tratar de pena privativa de liberda-de, vai para a Vara de Execuções Criminais.

Acho que não há muita diferença aí. A maior dificuldade, na verdade,é na execução dos alimentos, da partilha e até de ações indenizatóriasque podem estar correlatas, ações possessórias, com sentenças cíveis,dentro deste juízo misto, cujas execuções, pelo Código de Processo Ci-vil, são dentro desse juízo misto. Aliás, é isso que está escrito na Lei.

Realmente, para a nossa cultura jurídica, parece um absurdo execu-tar uma sentença de alimentos dentro da Vara Criminal. É uma coisaque nos deixa estarrecidos. Como nós vamos vencer isso? Vamos even-tualmente achar uma solução alternativa e deixar a execução para umaVara especializada? Temos que pensar nisso. Até tenho dito naCorregedoria e tentado ver se podemos fazer um evento posterior con-junto para os Juízes que, ao final, ficarem com essa competência. A re-solução deve ser publicada agora no mês de dezembro, fixando ascompetências no Interior e o projeto da Capital, porque eu acho quetem que se procurar uma uniformidade – isso é uma coisa muito im-portante –, para que cada um não fique fazendo uma coisa diferente.

Se, nessa uniformidade, nós vamos resolver quebrar o princípio doCódigo de Processo Civil e delegar a execução, por exemplo, dos ali-mentos e da separação para a Vara da Família e delegar a execuçãodas indenizatórias para as Varas Cíveis, pode ser que até cheguemos aessa conclusão e consigamos encontrar um atalho para chegar lá. Emprincípio, pelas regras processuais, o Juiz da sentença cível e da sen-tença de Família vai executá-la e a execução criminal segue as regrasde execução criminal que estão no Código de Processo Penal e na LEP.

É esse o meu ponto de vista.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Aqui no Tribunal, poder-se-ia,quem sabe, cogitar de uma disposição no Regimento Interno estabe-lecendo competência para as Varas de Família apreciarem os recursoscíveis e as Varas Criminais apreciarem os recursos criminais nessaárea.

Page 119: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

118 – 2º Ciclo de Estudos

DRA. JULIANA BELLOQUE – Eu gostaria de aproveitar a discussãopara dizer que essa questão de um único Juizado estar julgando ascausas cíveis e criminais é a questão da Lei Maria da Penha. É uma dasmudanças mais essenciais que esta Lei pretende. Sei que é difícil ven-cermos alguns obstáculos com os quais estamos acostumados na nossaprática. O Juiz é cível ou criminal, da mesma forma que eu, que atuona Defensoria na área penal desde que ingressei, não consigo me en-xergar atuando na área cível, mas acho que esta será uma distinçãoque teremos que vencer, teremos que nos acostumar. Esse Juiz nãoserá cível nem criminal, será o Juiz que vai tratar a questão da violên-cia doméstica e familiar contra a mulher. Quem sabe, não possamos,no futuro, criar Câmaras específicas nos Tribunais, que não serão cí-veis nem criminais, mas tratarão de todos os recursos que tenham re-ferência a essas causas decorrentes de violência doméstica. Ele seráum Juiz que terá essa visão ampla, porque o problema exige umenfrentamento de várias dessas áreas do Direito. O Direito é um só.Estamos tão acostumados a essa visão estanque, mas ela é uma divi-são na prática, não é uma divisão essencial, de natureza. O Direito éum só. Temos que saber lidar com ele em todas as suas facetas. Se oproblema social se põe para o Judiciário e para todos os operadores doDireito como um problema multifacetário, temos que estar preparadospara encarar e dar soluções múltiplas para esse problema. Acho quevamos tentar enxergar com uma visão um pouco mais aberta e abraçara idéia, que é a idéia principal da Lei.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – O grande problema é quenós estamos, até agora, com as nossas gavetinhas todas arrumadas, eesta Lei as bagunçou, temos que recolocar os objetos novamente emseus lugares.

Este debate foi bastante profícuo, além, evidentemente, da palestrada Dra. Ela. Passaremos de imediato à palestra seguinte, justamenteporque intervalo dispersa muito.

Convido a Dra. Juliana para comparecer à mesa e dar início à segun-da parte dos nossos trabalhos.

Page 120: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – A Dra.Juliana Belloque, que falará sobre os Aspectos Penaise Processuais Penais da Lei nº 11.340, é DefensoraPública, Professora de Processo Penal e membro doComitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesados Direitos da Mulher.

Renovando agradecimentos à Dra. Juliana por teraceitado o nosso convite, passo-lhe de imediato a pa-lavra.

ASPECTOS PENAIS E PROCESSUAIS PENAISDA LEI Nº 11.340/06

DRA. JULIANA BELLOQUE – Bom-dia a todos. Eu quero agradecero convite e cumprimentar inicialmente o Des. Luiz Felipe Brasil Santos,meus companheiros de mesa, a Dra. Ela Wiecko, que já é companheirado Movimento Feminista, a Dra. Maria Berenice Dias, que eu não co-nhecia pessoalmente, mas cujo trabalho, artigos e livros já admiravamuito.

Eu gostaria também de parabenizar, antes de mais nada, a Magistra-tura do Rio Grande do Sul por estar realizando este tipo de evento. OJudiciário aqui do Rio Grande do Sul – não é novidade para ninguém, éfato notório – é o exemplo maior que temos em todo o País. Os Juízese Juízas daqui e o Tribunal do Rio Grande do Sul fazem jurisprudênciapara todo o País. Muitas das questões jurídicas inovadoras nasceramaqui, seja no âmbito criminal, seja no âmbito do Direito de Família.

Não vejo com surpresa, então, que este tipo de evento esteja sendorealizado aqui no Tribunal do Rio Grande do Sul, que se promova aabertura do Judiciário não apenas para ouvir o entendimento de outrascarreiras jurídicas, mas principalmente para compreender as demandase concepções de um movimento social importante como o movimentofeminista. Trata-se de uma marca e um exemplo muito importante paratodo o País.

Page 121: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

120 – 2º Ciclo de Estudos

Aproveito para dizer que a capacitação e a interdisciplinaridade sãoa chave central dessa Lei, por isso a importância também deste tipo deevento. É importante frisar que essa capacitação deve ser vista hojenão só no aspecto do conhecimento das normas e do sistema jurídico,mas como uma capacitação que caminha junto com a interdisciplinari-dade. Daí ser imprescindível a abertura para o conhecimento de ou-tras ciências e de outras visões que não a jurídica.

Então, penso que o Judiciário tem que se abrir cada vez mais paraouvir os antropólogos, os sociólogos, os psicólogos, os assistentes so-ciais e todas as pessoas que têm algo a contribuir nos problemas sociaisque Juízes e Juízas enfrentam. Nós vivemos hoje no País uma crisemuito profunda dos Três Poderes estatais. É evidente que, em relaçãoao Judiciário, essa crise é imensamente menor do que a perda de legi-timidade do Executivo e do Legislativo. Mas não podemos fechar osolhos para uma crise de legitimidade que acaba impregnando os TrêsPoderes.

Acredito sinceramente que uma conquista de maior legitimidade doPoder Judiciário passa por um diálogo, por uma abertura com a socie-dade em geral, com os movimentos sociais e com as outras áreas dasCiências Humanas. Esse é o caminho para que o Judiciário conquisteainda maior legitimidade e credibilidade na sua atuação, e essa Leivem nesse sentido, de abertura do Judiciário para uma capacitaçãomais ampla que envolva uma interdisciplinaridade.

Eu, como a Dra. Ela, venho de uma linha do Direito Penal mínimo edo Processo Penal garantista, por isso tenho críticas pontuais a algu-mas normas dessa Lei. Vou fazer essas críticas, logo em seguida,quando tratar das alterações na área penal e processual penal, mas en-xergo essa Lei, no conjunto, positivamente.

A Lei Maria da Penha tem sofrido críticas muito ácidas, muito duras,mas percebemos, pela generalidade dessas críticas, que elas vêm car-regadas de uma visão equivocada do problema que a Lei pretende en-frentar. Essas críticas vêm muitas vezes carregadas de conteúdosdiscriminatórios. É natural que os operadores do Direito reproduzamessa cultura social, esse caldo cultural discriminatório.

Então, é muito importante para uma leitura correta dessa Lei que ooperador do Direito compreenda o seu plano de fundo, enxergue o por-quê da Lei estar posta no nosso ordenamento, o que se passou na nos-sa realidade social e cultural, quais as demandas se desenvolveramatravés do movimento feminista até que se alcançasse esse produto le-gislativo.

Precisamos, operadores do Direito e sociedade como um todo, deuma vez por todas, afastar esse entendimento de que a violência fami-

Page 122: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 121

liar e doméstica contra a mulher é um problema superado no nossoPaís. Não é um problema superado, e dizer isso é o mesmo que dizerque no Brasil não existe racismo.

São dois problemas que parecem superados pela sua invisibilidade.E tanto o racismo quanto a violência contra a mulher são problemas in-visíveis não pela sua natureza, mas pela postura que adota quem deveenfrentar esse problema. Ou seja, ele é invisível em razão da nossaatitude, não pelas características do problema em si, não pela naturezado problema, que seja difícil de ser enxergado, difícil de ser percebido.

A postura de negar enxergar essa realidade é um traço da culturabrasileira. Não há o costume de lidar com esse tipo de violência, de en-frentar essa questão social grave. Desde as músicas, da música popu-lar brasileira ao funk, aos provérbios como “em briga de marido e mu-lher, ninguém mete a colher”, trata-se de situação social aceitável e,quando vista como um problema, é posto na esfera privada, sem mere-cer um enfrentamento do setor público e no espaço público. A Lei Mariada Penha, então, traz principalmente essa conquista de retirar o mantoque inseria a questão da violência doméstica num plano invisível, detrazê-la à luz como uma violação de direitos humanos e de enxergá-lacomo um problema do Estado e de todos os agentes públicos que de-vem atuar no seu enfrentamento.

Nesse contexto, há uma mensagem na Lei direcionada especifica-mente aos Juízes, Promotores, Delegados e advogados para que vis-lumbrem a perversidade da aceitação, sem maiores questionamentos,da tendência da mulher de buscar soluções consensuais ou de tentarminimizar a resposta estatal em relação ao seu agressor. De fato, ébastante comum que a mulher, nos seus depoimentos na Justiça Crimi-nal ou no âmbito do juízo da família, tente minimizar a violência sofri-da ou a resposta estatal que o agressor receberá em decorrência dessaviolência; enfim, normalmente a mulher vítima de violência buscar al-gum consenso ou simplesmente cede. Essa é a palavra correta: ceder.Ela foi vítima de violência, mas acaba cedendo, colocando-se numa po-sição inferior quando essa relação interpessoal tem que ser decididapelo Judiciário.

Os operadores tendem a aceitar essa postura da vítima como o pon-to de partida para a solução do conflito sem efetuar um questionamen-to de qual é o contexto econômico, social e cultural que levou a mulhera ceder, ou seja, legitimam uma conciliação mesmo quando há a per-cepção de que a mulher não concilia de fato numa posição livre ounuma posição de igualdade.

Temos que entender, definitivamente, que não há real conciliaçãonuma relação em que as partes não estão em posição de igualdade.

Page 123: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

122 – 2º Ciclo de Estudos

Trata-se de pressuposto indispensável de qualquer conciliação, dequalquer transação. Apenas haverá capacidade de conciliar se a mulhernão estiver inferiorizada na relação, se não houver relação de poder.

E o Judiciário não pode virar as costas para esse contexto, não podefingir que isso não acontece, não pode olhar para aquela mulher quecede além da conta, além daquilo que a nossa sensação humana indicaque ela deveria ceder como se estivesse conciliando em pé de igualda-de com o seu agressor.

A insensibilidade para o contexto social que gera essa situação pro-duz um resultado muito cruel, muito perverso, que aprofunda o proble-ma da violência contra a mulher. Assim, a idéia da Lei é chamar aatenção dos Juízes para o que está por trás da conciliação, para queenxerguem a relação de poder como pano de fundo da conciliação eexerçam um papel mais ativo na proteção da mulher que se mostrarinferiorizada.

É evidente que a relação interpessoal desigual pode se igualar namesa de audiências através de um advogado ativo, de um Promotor eum Juiz ativos na conciliação. Mas, se os papéis desses operadores sãomais passivos, de modo a se afastarem da real situação que vivem avítima e o agressor, apenas será reproduzida a relação de poder doâmbito privado no âmbito público e, nessa circunstância, o Judiciáriosimplesmente assina embaixo de uma relação de poder, de violência ede desigualdade que acontece no âmbito privado.

Esse tipo de conciliação não ocorre apenas no âmbito dos JuizadosEspeciais Criminais ou quando há necessidade de representação daofendida. Mesmo nas hipóteses de ação penal de iniciativa públicaincondicionada, quando as agressões configuram tentativa de homicí-dio, por exemplo, a postura conciliadora da vítima em audiência influ-encia significativamente o resultado do processo no sentido de isentaro agressor de pena ou diminuir sensivelmente a reprimenda, o que nãoocorre, ao menos não na mesma proporção, quando o crime não envol-ve relações domésticas.

Parece reproduzida na prática forense a cultura de que o crime prati-cado contra a mulher no âmbito doméstico é mais leve do que aquelepraticado fora do lar, entre estranhos. Eu pretendo demonstrar que éjustamente o contrário: o crime praticado no âmbito doméstico e fami-liar é mais grave porque tem características específicas que formamuma circunstancialidade mais gravosa para a vítima. Normalmente, aviolência contra a mulher não se apresenta como um crime isolado,único, mas tem uma tendência de reiteração. Aliás, nenhuma mulhernoticia o fato à Polícia na primeira agressão, mas tão-somente apósuma reiteração de atos violentos. Na reiteração, há uma clara tendên-

Page 124: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 123

cia ao agravamento da violência, a agressão inicia mais leve e vai seagravando até chegar a um homicídio ou num crime mais grave. Alémdisso, trata-se de uma violência multifacetária, não é só violência físi-ca, ela vem acompanhada com violência moral, sexual e patrimonial.As vítimas são humilhadas e moralmente agredidas. Ademais, existeum último fator muito importante: o crime praticado no lar, no localonde deveríamos nos sentir mais seguros, o lugar de repouso, de pro-teção. É muito pior ser ofendida numa relação de afeto, no seu pró-prio lar, do que por um indivíduo desconhecido que nunca mais severá, nesse caso não se enfrenta a realidade de violência constante-mente.

Então, não vejo uma desproporcionalidade no âmbito punitivo da LeiMaria da Penha. Pelo contrário, o tratamento era desproporcional an-tes, porque nós tratávamos uma espécie de violência mais grave demaneira muito mais leve do que as outras formas de violência.

Talvez esta severidade maior da Lei Maria da Penha venha para con-sertar uma desproporção existente. Depende do ponto de vista com oqual enxergamos o problema: se estamos enxergando o problema noseu todo ou de modo parcial, num determinado aspecto, sem enxergartudo que está por trás dele.

Antes de ingressar nas mudanças específicas, sei que isso já foi tra-tado, mas eu quero também abordar a crítica muito recorrente de quea Lei é inconstitucional, porque trata de maneira diferente homens emulheres. Entendo não ser pertinente essa crítica, essa observação deinconstitucionalidade, porque o Brasil firmou compromissos internacio-nais de criar esta legislação específica para o tratamento da violênciacontra a mulher. Essa legislação no nosso País vem com atraso. NaAmérica Latina e na América Central, o Brasil é um dos últimos paísesa criar sua Lei interna. Também na Europa existem leis específicas deproteção às mulheres em situação de violência.

Então, só estamos dando cumprimento a compromissos que o Brasilestabeleceu, seja no âmbito das Nações Unidas, na Convenção sobre aeliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, sejano âmbito interamericano da Convenção de Belém do Pará, para preve-nir, punir e erradicar todas as formas de violência contra a mulher.Existe, nesses tratados internacionais, uma obrigação expressa de cria-ção de uma legislação própria para tratar do problema. Então, não vejocomo esse tratamento desigual seja inconstitucional.

Na verdade, estamos tratando de um problema que tem umacircunstancialidade própria e, portanto, merece uma resposta legislati-va específica, da mesma forma como existe o Estatuto da Criança e doAdolescente e o mais recente Estatuto do Idoso.

Page 125: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

124 – 2º Ciclo de Estudos

A Lei Maria da Penha foi editada para enfrentar o problema da violên-cia contra a mulher, está construída sob o ponto de vista mulher-vítima,mas não impede que existam outras normas que tratem de outros pro-blemas específicos insurgentes no seio da relação familiar.

Finalmente, encerrada essa abordagem mais genérica da Lei, volto-me às alterações efetuadas pela Lei no âmbito do Direito Penal e Pro-cessual Penal.

A primeira e mais óbvia delas é o afastamento da incidência da Leinº 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais. O art. 41 daLei Maria da Penha impede, numa primeira leitura, a aplicação da inte-gralidade da Lei nº 9.099, o que dá a entender que nenhuma normacontida nesta Lei possa ser aplicável às causas de violência domésticae familiar contra a mulher. Penso, contudo, que esse dispositivo podesofrer um temperamento, de acordo com uma interpretação sistêmica,no que tange à representação e à suspensão condicional do processo.Quero tratar especificamente de cada um desses temas, porque é umaquestão de enxergar a Lei também no contexto do ordenamento jurídi-co, principalmente com a base constitucional do processo penal que te-mos hoje. Não concordo com a interpretação rigorosa de que a Lei Ma-ria da Penha impede a incidência de toda a Lei nº 9.099, mesmo por-que a própria Lei em outros artigos, no que tange à representação, trazmensagens contraditórias.

Essas normas que se contradizem no próprio seio da Lei em comen-to, no que se refere à representação da ofendida, refletem a polêmicaque cercou o tema nas discussões travadas no curso do processo legis-lativo. É impressionante como a polêmica fica visível no texto final daLei.

A Lei Maria da Penha, em seu art. 16, faz referência à representa-ção, dizendo que a sua renúncia apenas será aceita perante o Juiz, emaudiência específica designada para esse fim. Ou seja, a mensagemcontida na norma é de que a representação permanece, sendo que amudança seria uma maior proteção do Judiciário à vítima, um maiorcuidado, uma maior cautela no momento de validar a renúncia à repre-sentação, fornecendo-se um manto protetivo para a mulher ofendidapara que se tenha garantia de que a renúncia à representação é um atolivre, que não está condicionado por pressões externas de qualquertipo.

Então, apesar de o art. 41 determinar a não-aplicação da Lei nº9.099/95, o que incluiria o seu art. 88, que exige a representação davítima nos crimes de lesões corporais leves e culposas, em outra pas-sagem o legislador passa a mensagem de que não intentou extinguir arepresentação, mas sim colocar o Juiz na posição de fiscalizador de que

Page 126: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 125

a renúncia ocorre em situação de real liberdade, além de oferecer ga-rantias à mulher para que represente com segurança, através das me-didas protetivas de urgência. São mensagens um tanto quanto contra-ditórias que refletem mesmo essa polêmica instalada quando da elabo-ração legislativa.

Tendo a aceitar a renúncia à representação, a aceitar que o crime delesão corporal leve seria um crime perseguido por meio de ação públicapenal condicionada à representação, desde que se incorpore toda essamentalidade que estou tentado passar a vocês, ou seja, de uma grandecautela quando se trata de qualquer tipo de cessão que a mulher estejafazendo no procedimento criminal.

Na verdade, não enxergo a exigência de representação da vítimacomo o ponto de maior debilidade da proteção à mulher vítima de vio-lência. Isso porque a cultura judiciária que mencionei já há poucosupervaloriza o perdão da vítima ou o seu relato que minimiza a agres-são sofrida mesmo nos crimes de ação penal pública incondicionada.Então, tendo a valorizar menos o fato de existir ou não representação.A chave está em se conferir o valor adequado à fala da mulher-vítima.Nenhuma prova ter valor absoluto no processo penal, sequer a confis-são do réu, não há razão para que seja assim em relação às palavrasda vítima.

Outra conseqüência da aplicação literal do art. 41 que julgo ser ex-tremamente grave, um claro excesso, é a proibição da suspensão con-dicional do processo para todos os crimes, mesmo os mais leves, queenvolvam um contexto de violência doméstica e familiar contra a mu-lher. Nesse aspecto da Lei há tratamento desproporcional, aplica-se umrigor punitivo que fere a Constituição da República.

Penso que é importante dar uma resposta estatal a esse tipo de con-flito. O termo circunstanciado e a transação penal não ofereciam a res-posta adequada. A experiência mostrou que as conseqüências sociaiseram muito ruins, que isso estava aprofundando o problema social aoinvés de auxiliar na sua superação. Recentemente, li em um jornal emSão Paulo: “Agora a violência contra a mulher é crime”. Antes não era.Parte da mídia está divulgando a Lei Maria da Penha dessa forma. Asensação anterior que a sociedade tinha era de que não era crime, aviolência contra a mulher era um “nada” para o Estado.

Contudo, na suspensão condicional do processo, o quadro é diferen-te. O suposto agressor sofre um processo, vê-se na posição de réunum processo criminal, tem a obrigação de se apresentar no Fórum, aresposta estatal é mais presente.

É rigor demasiado não permitir a suspensão condicional do processo,principalmente se vislumbrarmos que, ao final do processo, a pena restritiva

Page 127: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

126 – 2º Ciclo de Estudos

de direitos, quando houver violência física, também não poderá seraplicada. Com isso, restaria apenas o direito à suspensão condicionalda pena como alternativa à privação de liberdade mesmo no crime delesão corporal leve.

É importante ressaltar que o movimento feminista não busca o en-carceramento como solução do problema social da violência contra amulher, a intenção é de que haja uma resposta do Estado por meio doprocesso e de outros instrumentos. Aliás, o movimento feminista temuma preocupação muito grande de fazer um trabalho na mídia, de mos-trar a essas mulheres que não é necessariamente obrigatória a prisãoem todos os crimes de violência doméstica, porque isso pode ter umefeito contrário àquilo que queremos, que é encorajar as mulheres anoticiar a violência. Pode ter o efeito de as mulheres terem mais receioem procurarem proteção do aparato público porque, em qualquer tipode violência, por mais leve que seja, o marido ou convivente será pre-so. Não é essa cultura que queremos passar por meio desta Lei. A mí-dia está passando essa idéia, uma idéia equivocada que pode ter umresultado social ruim, de desencorajar as mulheres a procurarem a res-posta estatal.

Creio que o fato de existir inquérito policial é um elemento impor-tante. A exigência do inquérito policial já possibilita à Polícia a adoçãode uma série de medidas que visam a proteger a mulher não em rela-ção à violência passada, mas em relação a futuras agressões que nor-malmente virão. Temos que usar essa realidade social para saber qualé a resposta legislativa mais adequada. Se é uma violência que temtendência de reiteração, porque ela acontece entre pessoas próximasque vivem em uma mesma unidade familiar, a resposta estatal deveestar voltada à grande probabilidade de reiteração, oferecendo à mu-lher proteção contra agressões futuras. As medidas protetivas de ur-gência, adotadas pelo Juiz já no início da persecução penal também ca-minham nesse sentido. E, mesmo num processo em que elas não sejamaplicadas, o art. 11 da Lei Maria da Penha indica ao Delegado, que,logo no primeiro atendimento, quando instaura o inquérito policial,deve garantir proteção policial à mulher; deve encaminhar a ofendidaao hospital ou posto de saúde; deve fornecer transporte, para ela eseus dependentes, a um abrigo ou a um local seguro; deve acompa-nhar a mulher até a residência do casal, para que ela possa de lá ex-trair seus pertences pessoais. Esse último serviço é de grade relevân-cia, porque a mulher se vê numa situação dramática se abandona o larpara se proteger sem nada no bolso, sem nenhum de seus bens, semnenhum de seus pertences, nem seus, nem de seus filhos, pois é umgrande risco voltar para casa a fim de buscar esses bens que lhe ga-rantam a subsistência.

Page 128: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 127

Então, tudo isso já é muito significativo quando se compara a lavrarum termo circunstanciado e aguardar alguns meses para pagar umacesta básica num Juizado Especial Criminal. Apenas as providências doart. 11, juntamente com a instauração do inquérito, em que será ouvi-do o agressor pela autoridade policial, já configuram uma resposta es-tatal mais adequada. O inquérito e o processo penal são sancionatóriosem si mesmos, é inerente a esses procedimentos uma sanção, que é ofato de ser indiciado, o fato de ser réu, situação gravosa para qualquerpessoa, que transmite a mensagem para o agressor de que praticou umcrime, uma conduta altamente reprovável e que não pode repetir-se.

Os questionamentos jurídicos atinentes à Lei Maria da Penha, aindano âmbito penal e processual, não envolvem somente a aplicação daLei nº 9.099. Os discursos, os debates, tudo isso está muito detido aesta análise, mas há também uma outra questão complicada de se re-solver, que é essa nova hipótese de decretação da prisão preventivaprevista pelo art. 42 da Lei. O dispositivo insere um novo inciso no art.313 do CPP, determinando que a prisão preventiva também pode serdecretada se o crime envolver violência doméstica e familiar contra amulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das me-didas protetivas de urgência.

Traz uma diferença substancial a norma ter sido inserida no art. 313,e não no art. 312, do diploma processual penal, porque a prisão pre-ventiva tem pressupostos e requisitos. No primeiro artigo estão ospressupostos, e no segundo, os requisitos.

O art. 313, só para contextualizar este debate, vai dizer, basica-mente, que a prisão preventiva só pode ser decretada nos crimesdolosos, apenados com reclusão. Há ali algumas exceções, no caso deréu vadio ou no caso de reincidência com crime de detenção, mas aregra básica, essencial e geral, é a de que a prisão preventiva é umamedida cautelar que só pode ser aplicada nos crimes apenados comreclusão, porque são crimes cuja resposta final do Estado pode seruma pena privativa de liberdade nas penitenciárias de segurança má-xima ou média.

Nos crimes com detenção, nos quais o regime mais gravoso será osemi-aberto, haveria uma desproporção entre a cautela e o resultadodo processo, por isso esse pressuposto do art. 313 do CPP. Não deveser possível a aplicação de medida cautelar, no curso do processo,mais gravosa do que o resultado eventual do processo criminal.

Então, a conclusão é de que se criou um novo pressuposto de decre-tação da prisão preventiva, ou seja, de que, mesmo nos crimes apenadoscom detenção, a medida cautelar pessoal pode ser aplicada, desde quetenha sido determinada uma medida protetiva de urgência e haja um ris-co concreto de que esta medida será descumprida pelo acusado.

Page 129: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

128 – 2º Ciclo de Estudos

Se for essa a conclusão, não há como fugir do problema da falta deproporcionalidade, pois será aplicada privação de liberdade mais gravedo que a pena a ser eventualmente imposta na sentença penal condena-tória. Talvez teria sido mais adequada a inserção dessa norma no art.312 do CPP, criando-se novo requisito para a decretação da prisão, hipó-tese em que a medida cautelar continuaria sendo exclusiva dos crimesapenados com reclusão, ressalvado o princípio da proporcionalidade.

Não obstante, não é obrigatória a decretação da prisão preventivaquando o acusado descumpre a medida protetiva de urgência, não setrata de medida automática. O Juiz deve analisar esse inciso do art.313 juntamente com os requisitos do art. 312, ou seja, além de o acu-sado ter descumprido ou estar em situação de um risco grave de des-cumprimento das medidas protetivas de urgência, será necessária averificação concreta do risco à ordem pública ou econômica, à aplica-ção da lei penal, ou ao bom desenvolvimento da instrução criminal.

Isso não vai acontecer em todos os casos de descumprimento. O Juizdeverá aprofundar a análise das razões do descumprimento da medidaprotetiva de urgência em cada caso concreto. A prisão preventiva nãopode ser automática ou obrigatória, mas deve ser necessária, no casoconcreto, e sempre de acordo com os requisitos de cautelaridade. Todaprisão adotada no curso do processo não pode ter caráter punitivo,mas natureza cautelar.

Isso me parece bem claro na própria Lei Maria da Penha, quando elainvoca, na parte das medidas protetivas de urgência, o art. 461 do Có-digo de Processo Civil, que dispõe sobre as medidas pelas quais o Juizbuscará impor a obediência a uma obrigação de fazer ou não fazer. As-sim, muitas vezes, antes de lançar mão da prisão preventiva, poderá edeverá o Juiz se valer dos instrumentos criados pelo processo civilcomo reforço das obrigações impostas ao agressor.

Na verdade, a Lei Maria da Penha está dando um recado bem claro:usem todas as ferramentas, usem todo o instrumental. E isso não querdizer que devam ser utilizadas as medidas processuais penais em de-trimento das medidas processuais civis.

Quanto à questão da competência dos Juizados Especiais de Violên-cia Doméstica e Familiar contra a Mulher, no meu entender, apesar denão ter sido essa a interpretação que prevaleceu, não há dúvida de queo art. 14 da Lei Maria da Penha confere competência aos Juizados paraprocessar e julgar, inclusive na fase de execução, tanto as causas cí-veis como as criminais que surjam no contexto de violência contra amulher. O comando do dispositivo é muito claro, não deixa margempara dúvidas. Entretanto, foram instituídos Juizados com competênciarestrita às causas criminais, com o único diferencial de a Lei ter confe-

Page 130: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 129

rido um poder de cautela na área cível para o Juiz criminal, nada mais.Foi estabelecido um rol de medidas protetivas de urgência que têm na-tureza mais aproximada ao Direito de Família. No meu entender, sãomedidas preparatórias para ações de separação, de guarda de filhos,de regulamentação de visitas, de alimentos, etc., Mas, apesar de o Jui-zado aplicar essas medidas cautelares, será outro órgão do Poder Judi-ciário que decidirá em definitivo sobre as questões cíveis.

Creio que se perde muito com isso, perde-se notadamente na com-preensão global do problema, e no que eu estava tratando no início daminha participação, de como é importante enxergar esse problema emtodos os seus aspectos, para que a ele seja dada uma resposta ade-quada por meio do Judiciário. Fracionar essas respostas dificulta o al-cance do melhor resultado. Seria mais adequado analisar esse proble-ma em seu conjunto de fatores e conseqüências jurídicas respectivas,oferecendo-se a resposta estatal com base nessa análise global. A res-posta seria única, a mensagem única, evitando-se contradições. Muitasvezes, a família que está vivenciando o conflito recebe respostas dis-tintas do juízo criminal e de família que atordoam, restando confusaqual a valoração que o Poder Judiciário está conferindo àquele compor-tamento, porque muitas vezes as respostas não são totalmente conver-gentes num âmbito e no outro.

Teríamos que vencer a barreira da especialização, que é algo porque passamos desde o início da carreira, exceto os Juízes do Interior,que tratam de todas as matérias, mas, quando os operadores chegamaos centros de maior população, há uma especialização muito grande.Vale a pena vencer essa barreira, vale a pena ultrapassar essa culturada especialização, pois isso facilita a capacitação, o contato com aequipe interdisciplinar, com a equipe de psicólogos, de sociólogos, quedevem estar presentes no dia-a-dia do Juizado, tratando o problemanum único órgão.

É muito importante o funcionamento dessas equipes multidisciplina-res, e isso é algo que se deve buscar não só no Judiciário, mas tam-bém nas Defensorias Públicas.

Finalmente, devo mencionar algumas novidades pontuais da Lei.Uma delas é a exigência do acompanhamento do advogado em todos osatos processuais em que participe a mulher vítima de violência. Trata--se de determinação legal que a deficitária estrutura das DefensoriasPúblicas no País não estão preparadas para enfrentar, mas é muito im-portante que a Lei traga essa exigência (arts. 26 e 28), e cabe ao Juizcobrar esse acompanhamento por profissionais.

Algo que parece até tolo de ser inserido na Lei, mas é impressionantecomo isso era feito, é a vedação de que as notificações e as intimações

Page 131: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

130 – 2º Ciclo de Estudos

do agressor sejam feitas por intermédio da vítima. Trata-se de uma ve-dação expressa que teve de ser posta na Lei, no art. 21, diante da in-sensibilidade dessa prática que de fato acontecia: a vítima recebia aintimação para entregar ao agressor, porque, afinal, residia no mesmolugar que o agressor. Essa situação não pode acontecer justamente di-ante da nova compreensão que se deve ter a partir de agora, de que avítima de violência no seio familiar está numa relação de desequilíbrio.

Da mesma forma, a vítima deve ser informada em relação à situaçãoprocessual do acusado, principalmente quanto à entrada e saída doacusado da prisão. A Lei determina que atos como a decretação ou arevogação da prisão preventiva sejam informados à vítima para que elapossa se preparar, proteger-se, no caso principalmente da saída doacusado da prisão pela revogação de uma medida. Mas a Lei é genéri-ca: todos os atos processuais relativos ao suposto agressor devem sercomunicados.

Por fim, há um artigo da Lei que penso vai trazer muita polêmicatambém, que consiste numa alteração da Lei de Execução Penal. O art.45 da Lei Maria da Penha prevê, como uma medida da Lei da ExecuçãoPenal, o comparecimento obrigatório do agressor em programas de re-cuperação e reeducação. Essas expressões “recuperação” e “reeduca-ção” são muito inadequadas, mas vamos deixá-las um pouco de lado epensar na idéia de que esses condenados compareçam a programasvoltados à compreensão da violência, à compreensão do seu papel narelação familiar, à compreensão dos preconceitos, de como a sua atitu-de reproduz um preconceito, de por que ele está tendo aquela atitudeagressiva, enfim, programas que levem à auto-reflexão.

Isso gera uma polêmica muito grande, porque normalmente essesprogramas funcionam quando existe uma voluntariedade por parte dequem freqüenta as atividades. É o mesmo que ocorre com os AlcoólicosAnônimos ou com qualquer tipo de tratamento para a superação do ví-cio de entorpecentes. Tendem a funcionar mais quando a pessoa sevoluntaria a participar. É complicado pensar nessas atividades comopena.

Eu não sou dessa área e não vou ficar aqui me arriscando a dar mui-ta opinião. Creio que, mais uma vez, temos que nos abrir aos psicólo-gos e psiquiatras para saber o que eles pensam sobre isso, qual é aefetividade que se pode alcançar. Entendo que o Juiz deve buscar co-nhecer essa problemática valendo-se dos psicólogos, dos psiquiatras,das assistentes sociais, para saber se essa medida que ele estará de-terminando terá efetividade, ou não.

Porém, é uma tentativa da Lei. É mais um recado que a Lei está pas-sando no sentido de que não está voltada apenas às mulheres vítimasde violência, mas, também, aos homens agressores, porque o principal

Page 132: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 131

objetivo da Lei é superar uma cultura, e, para superar essa cultura,tem-se que trabalhar nos dois lados dessa moeda; tem-se que traba-lhar com os dois participantes desse conflito: não só com a mulher,mas também com o homem. E não apenas na vertente punitiva, de res-trição de liberdade. A palavra “tratamento” eu penso que é muito ruim.Nenhum acusado, nenhum agressor, está aqui para ser tratado, maspara realizar essa auto-reflexão e, de repente, conseguir superar essaposição e tomar outra atitude em relação à mulher.

É importante lembrar que não adianta resolver o problema tão--somente sob a perspectiva de um núcleo familiar, porque essafamília rompe com seus vínculos, o homem estabelece outros vínculosfamiliares e, nesse novo núcleo, reproduzirá a mesma atitude violentaque teve no primeiro. Faz-se necessário, então, buscar a superação,em relação aos homens, dessa cultura que educa o homem ao de-sempenho do papel de posse sobre a mulher, do qual decorre a vio-lência.

É muito complicado dizer que uma lei vem para educar uma socieda-de, principalmente uma lei que tem um caráter penal – não só penal,mas também penal. Mas não há como negar que a Lei Maria da Penhapretende ser também educativa. Isso é inevitável, diante de todos osprimeiros artigos conceituais da Lei.

Penitencio-me, agora, de só fazer essa referência no final da minhafala. Eu, que deveria estar aqui mostrando para os Senhores e para asSenhoras a importância desses conceitos, fiz primeiro as referênciastécnicas e depois passo para os conceitos. Mas esse é um vício nosso,de qualquer operador do Direito, de menosprezar, de passar um poucopor cima dos conceitos, das premissas, dos princípios, e enfrentar logoos problemas técnicos.

Sugiro que todos leiam a parte inicial da Lei com uma visão muitoaberta, porque, se cada Juiz e cada Juíza conseguir captar a integrali-dade dessa parte inicial e conseguir compreender o problema da vio-lência doméstica da maneira global como a Lei Maria da Penha tratanos primeiros artigos, isso já vai ser um avanço, uma sensibilizaçãomuito grande em relação às decisões que os Senhores terão que tomar.

Então, ela pretende ser, sim, educativa, ela pretende vencer umacultura, e fico cá com minhas dúvidas se as leis são eficazes nessesentido hoje, na nossa cultura jurídica, mas é uma tentativa. Vou fazero máximo de minha parte para que ela saia vencedora nesse aspectoeducativo.

Muito obrigada.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Novamente coloco a palavraà disposição para perguntas.

Page 133: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

132 – 2º Ciclo de Estudos

PLATÉIA – Com relação ao art. 33, parece-me que houve um exa-gero do legislador, um deslize, mas acho que a intenção inicial ao re-passar, ao ampliar a competência dos Juízes Criminais para tambémapreciar questões de natureza cível, acredito, foi voltada para aquelescasos... porque quem chega na posição de vítima ao Judiciário são pes-soas carentes, as pessoas mais abastadas já contratam de imediato umbom advogado que já entra direto na Vara de Família, e um dos moti-vos da separação é a violência doméstica. Mas quem chega pelos fun-dos, por meio das Delegacias, normalmente são pessoas carentes, eessas pessoas o que têm? Uma carrocinha, um fogãozinho todo quebra-do, uma geladeirinha, meia dúzia de pratos, uma casinha na área verdede 2m por 2m. Então, parece que a intenção do legislador foi esta: quenos voltássemos para resolver esses conflitos não só na área criminal,mas também na cível.

Já fazíamos isso quando era no Juizado Especial Criminal: a mulherchegava lá, vítima de espancamento, e dizia: “Eu quero me separardele, mas eu tenho minha casinha, quero minha casinha”. “Então, tá.Vamos fazer um acordo. O que o senhor deixa para ela?” “Ah, eu deixotudo.” Então, fazia-se e homologava-se aquele acordo ali. Depois, nahora de executar, ela teria que executar até como obrigação de fazer,que a Senhora muito bem referiu aí no 461 do CPC. Isso já fazíamosantes.

Então, a intenção inicial do legislador foi esta: que não vá aportar lánuma Vara de Família que está assoberbada de processos uma ques-tiúncula dessas, que aquele próprio Juiz resolvesse aquela questão. Po-rém, ele deslizou e deixou esse buraco negro. Como você vai apreciaruma partilha de bens de um patrimônio considerável, o direito à regu-lamentação de visitas em que há um litígio efetivo, mas lá naquelecaso em que eles têm meia dúzia de filhos, dez filhos: “Não, não. Ficacom todos, eu não quero ver”. Aquela coisa que se resolvia lá no Juiza-do Especial Criminal. A intenção foi boa, mas houve um descuido daparte técnica, e caímos nisso aqui.

É um exagero, um absurdo, acredito que isso não pode passar: queo Juiz do Crime, que tem horrores de processos, preocupado com estu-pro, com crimes gravíssimos, vá tentar resolver questões que deveriamser da área de Família. Eu já estou fazendo assim: tem patrimônio con-siderável, aconselho que vão resolver na Vara de Família. É um absur-do jurídico tentar resolver na Vara Criminal, aquilo não tem nem docu-mentação nem instrumento, nem elementos, nem condições mínimasde se fazer uma instrução, até porque há necessidade de se instruíremelementos probatórios dentro do processo criminal. Mas a intenção foiessa, e os Juízes já estavam fazendo, resolvendo aquela divisão de

Page 134: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 133

bens ali, é união estável, nunca se casaram. Eles não vão discutir,quem é que vai discutir esse acordo aí? A mulher quer ver-se livredele, não quer apanhar mais, como a Senhora muito bem falou, a in-tenção dela não é punir, não é aplicar uma sentença condenatória aomarido, ao agressor, e sim resolver o problema dela. E ele quer li-vrar-se de uma sentença condenatória, nunca mais ele vai fazer aquilo.Nesse ponto, parece-me que foi essa a intenção.

DRA. JULIANA BELLOQUE – Acho que, nessa interpretação que aSenhora está oferecendo, essa Vara Criminal vai funcionar como umpronto-socorro: aplica as medidas de urgência, mas, ao final, a soluçãotem que ser dada pelo Juiz de Família, pelo Juiz Cível. Pode ser, é umainterpretação plausível. Talvez não seja o que se queria alcançar com acriação dessa Lei, queria-se alcançar um pouco mais. Mas é evidenteque isso exige recursos e toda uma organização em cada Estado.

Eu tenho uma preocupação muito grande, porque, quanto às leis bra-sileiras – é a sensação que tenho –, ou elas vingam no começo ou entãoelas não vingam nunca mais. Então, esse primeiro ano é fundamental.Sou muito avessa a medidas de cunho provisório. Não há nada mais per-manente neste País do que as medidas provisórias. Então, se não bus-carmos uma estrutura adequada desde o início, um orçamento, se nãobatalharmos por isso nos primeiros anos, depois vai ficar muito difícil.

PLATÉIA – Sou Juíza em Bento Gonçalves e gostaria de fazer algu-mas considerações, agradecendo a oportunidade deste evento, porqueacredito que nós, Juízes, estamos bastante perdidos com essa Lei. Essaé a primeira oportunidade que temos de debater e de trazer os proble-mas que já estamos enfrentando.

Em primeiro lugar, trago um caso em que fiquei em dúvida, masestou considerando violência doméstica, que é de uma mãe que foiagredida pela filha. Na verdade, sempre se pensa em o marido agre-dir a mulher, é a regra nessa Lei. Mas estou tendo casos de mãesagredidas por filha ou filho, normalmente drogado, tudo mais. Então,isso aí também está vindo para análise como violência doméstica.Acredito que seja o caso, mas, de qualquer forma trago, essequestionamento.

Também, quando já há processo cível em andamento, tenho tido ca-sos assim: vem o expediente para mim – é sempre certificado pela dis-tribuição –, em que já há ação de Família tramitando, inclusive comaudiência marcada, ou com audiência já realizada, e eu tenho uma pre-ocupação muito grande com decisões conflitantes. Ou seja, eu decidirde uma maneira e o Juiz do Cível decidir de outra maneira, até porque

Page 135: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

134 – 2º Ciclo de Estudos

normalmente os Juízes Cíveis, lá nós temos três Varas Cíveis e umaCriminal, nem sabem da existência deste processo no Crime.

Quando nós recebemos esse expediente, é determinado que se certi-fique se há alguma ação cível tramitando, mas não é feito o contrário,ou seja, quando entra uma ação de Família, não é certificado se existealguma ação da Lei Maria da Penha tramitando no Crime. Eu tenhomuita preocupação com decisões conflitantes que possam acontecer.Quando há processo cível já instaurado, já em andamento, eu simples-mente não estou decidindo essas questões, para não haver conflito,porque já há uma decisão sobre pensão, já há uma decisão sobre visi-tas, ou vai ser decidido na audiência já designada. Então, o pior quepode acontecer é o Juiz decidir de uma maneira, e outro de outra. En-tão, nesses casos não estou tratando da questão criminal.

A minha preocupação maior é a seguinte: acho que ficou muito fácilpara as mulheres requerem essas medidas protetivas. A minha experiên-cia em Bento Gonçalves qual é? A mulher vai à Delegacia, faz um re-gistro de ocorrência, existe um formulário lá em que ela marca um xnas medidas em que ela quer, marca um x sim, um x não.

Esses dias eu conversei com o Delegado, e ele disse que, naquelemomento em que houve o problema, se houver a opção “matar oagressor”, ela vai marcar sim. Se tiver a opção “cortar em pedacinhos”,ela vai marcar sim, porque ela quer tudo naquele momento ali. Então,ficou fácil requerer, porque antes ela tinha que procurar um advogado,o Defensor Público para entrar com pedido de separação de corpos. Eali o próprio profissional que a atendia já fazia uma análise do cabi-mento daquilo ali. Agora não tem mais nada disso, há policiais civisque estão despreparados e que não sabem nem orientá-las, que sim-plesmente dão aquele formulário ali, e elas saem marcando o sim semnem saber direito o que estão marcando. É só um registro de ocorrên-cia que chega para nós, um registro de ocorrência em que ela alegaque têm filhos, mas não vem certidão de nascimento de ninguém, nemcertidão de casamento, nada, e é aquele formulário em que ela marcao x onde ela quiser.

Essa é uma preocupação muito grande minha, e acho que vai banali-zar as nossas decisões. Há dias em que eu determino cinco afastamen-tos, por exemplo, numa cidade pequena. Essa é uma preocupação mui-to grande porque ficou muito fácil pedir sem nenhum outro elementoalém de um registro de ocorrência.

Muitas vezes, quando é cumprida essa medida, os Oficiais de Justiçavêm-me dizer: “Olha, Doutora, já estão de abraços e beijos lá”. Atéque venha da Delegacia, até que eu consiga apreciar, passa-se algumtempo. É impossível apreciar no dia do registro, e normalmente é isso

Page 136: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 135

o que acontece. Eu fiz, por esses dias, umas 20 audiências numa tardesó de Maria da Penha, e três representaram. O normal é isso aí, e euestou pensando na prática, não mudou muita coisa do que era no JEC,porque dessas, mais ou menos 20 audiências que fiz, umas três repre-sentaram, e outras já estavam de bem. Enfim, também não posso obri-gar a mulher a levar o processo adiante, sabemos muito que normal-mente elas não querem levar.

Vou fazer um desabafo: acho que essa Lei foi jogada para nós, Juí-zes, e nós que resolvamos o problema. Não temos estrutura adequada,as Delegacias não têm estruturas adequadas também. A Delegada medisse que está tendo de fechar a Delegacia para poder retirar os per-tences das vítimas de casa, porque a Lei é muito linda, o problema é oque está acontecendo na prática. As Delegacias estão fechando lá emBento, isso está acontecendo, as Delegacias estão fechando as portaspara se buscarem os pertences da mulher, que uns dias depois já estávoltando para casa – o que depois normalmente acontece.

Temos que pensar também que ocorrências graves estão deixandode ser atendidas, os policiais estão deixando de atuar em outros cri-mes, estão fechando a porta da Delegacia por falta de policiais que têmque buscar os pertences da mulher. Inclusive até urso de pelúcia a De-legada me disse que eles estão tendo que carregar.

No meu caso específico – e eu acredito que muitos Colegas estejamtambém enfrentando a mesma situação –, apenas para que se saibaque uma coisa é a Lei, outra coisa é o que é possível fazer, e, se nãonos derem a adequada estrutura, essa Lei não vai funcionar. A sua preo-cupação é muito justa, mas a Lei não tem como funcionar agora, por-que não nos foi dada qualquer estrutura. Sou Juíza da VEC, única JuízaCriminal da Comarca, Juíza da Infância e Juventude, e agora virei Juízade Família da Comarca. Então, não tem como funcionar. Às vezes rece-bo 10 expedientes no dia, como é que vou largar processos de réu pre-so, processos de adolescentes internados, processos de pessoas queestão pleiteando benefícios de progressão de regime e tudo o maispara apreciar isso aí em 48 horas? É impossível.

Acredito que essa seja a realidade da maioria dos Colegas, porquenão recebemos nenhuma estrutura. Além disso, na primeira palestra,foi dito que, além de psicólogos, assistente social, seria bom haver ou-tros profissionais. Excelente a idéia, mas a maioria das nossascomarcas não têm nem assistente social e psicólogo do Judiciário, nemisso. Bento Gonçalves tem, mas é uma exceção. Então, não temoscomo fazer todo esse trabalho que se almeja seja feito, que é umaquestão de política pública, e agora veio para o Judiciário resolver maisuma vez, sem nenhuma estrutura.

Page 137: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

136 – 2º Ciclo de Estudos

Desculpe por ter-me estendido, mas é um desabafo e acredito quemuitos Colegas estejam sentindo da mesma maneira.

DRA. JULIANA BELLOQUE – Gostei muito das suas ponderações,porque, enquanto você falava, é impressionante como isso ilustra oque está passando pela minha cabeça. Vou tentar explicar para vocêum pouco isso. É totalmente legítima essa sua preocupação, válida, sa-bemos das responsabilidades que Juízes e Juízas enfrentam, que émuito grande. Eu não sei se eu conseguiria dar conta dessa função,acho que é uma das funções mais árduas que se tem, julgar e ser res-ponsável por essas questões.

Essa sua fala de como a realidade acaba empurrando o Juiz para tal-vez não buscar outras soluções ilustra bem como temos que vencer umatendência de que as dificuldades não podem ser superadas e de que nãopodemos mudar, porque a realidade prática não permite, e de comosempre tendemos a fazer, já que não podemos atender tudo, uma filadaquilo que é mais grave, daquilo que é menos grave, e vamos tratandocom prioridade alguns problemas em detrimento de outros.

A idéia da Lei é tirar a violência doméstica do final dessa fila. Então,se a Delegacia precisa fechar porque os pertences da mulher têm queser buscados, é porque a violência doméstica não está mais no finaldessa fila de importância, e vamos ter que nos acostumar com essaidéia.

É impressionante, quero estabelecer um diálogo aqui com você,como sua fala reproduz essa fila, isso é natural, mas agora se inverteuum pouco essa fila e isso pode gerar um certo espanto no início, mas éa mensagem que o legislador está passando. Se ocorrências graves nãovão ser atendidas de maneira adequada é porque a violência domésticatambém é grave.

Sei que é difícil, porque estamos acostumados com esse padrão, eagora precisamos rompê-lo. Mas acredito tanto na força dos Juízes, emtodos os setores, no papel que vocês exercem para vencer as violaçõescontra os direitos humanos. É o mesmo que ocorre, por exemplo, naárea da Saúde: os Juízes estão fazendo uma revolução na área da Saú-de, determinando que o Estado garanta tratamentos gratuitos, concedagratuitamente remédios, e é uma luta imensa. O Poder Público está di-zendo que não dá conta, mas os Juízes estão fazendo o Poder Públicodar conta. Sempre haverá a escusa de insuficiência orçamentária, masessa escusa não prevalece em muitos casos porque existem decisõesjudiciais em mandado de segurança determinando que o indivíduo re-ceba um tratamento gratuito.

Page 138: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 137

Então, esse é o papel dos Senhores, fazer com que o Poder Públicodê conta disso, das responsabilidades que tem, e os Senhores desem-penham bem esse papel. Tem que haver um pouco mais de coragem,de ousadia, para desempenhar esse papel, de uma maneira mais criati-va e rigorosa quando for preciso. Não tenham medo de desempenharesse papel e de exigir do Poder Público que haja mais funcionários naDelegacia e que uma equipe multidisciplinar seja instalada, enfim, quetodas as exigências da Lei se transformem em realidade, saiam do pa-pel. Mas, de fato, agora no início, vai ser muito problemático, e acredi-to que deva estar sendo muito difícil para os Juízes em todo o País. ALei não se transforma em realidade do dia para a noite, o início é sem-pre mais traumático e exige um trabalho político, e os Senhores sãoagentes políticos também.

Quanto ao processo de Família já em andamento, só quero chamaratenção para uma hipótese que pode acontecer, uma cautela que osSenhores devem ter. Às vezes o processo de Família está em andamen-to, mas, do início do processo até a data em que será analisada algumamedida protetiva de urgência, passou um tempo em que essa violênciase agravou. Pode ser também que, lá na área de Família, a respostanão tenha sido adequada ou porque ela não veio – o procedimento temprazo –, não houve aplicação de nenhuma cautela, nenhuma medidacautelar, ou essa medida cautelar foi inadequada, porque o Juiz lá nãopode perceber a gravidade da situação de violência, e essa violência seagrava e vem parar no seu gabinete. Então, é importante a sensibiliza-ção para o fato de que talvez o Juiz da Família não tenha tido condi-ções, pela duração do procedimento e pela forma com que ele está en-xergando o conflito, de perceber o potencial daquela violência, sendo,em algumas situações concretas, necessária uma medida protetiva deurgência no Juízo Criminal, apesar de o procedimento na Vara de Famí-lia estar em andamento. Não vai acontecer sempre, mas deve-se teratenção para essa possibilidade.

A sua preocupação quanto a decisões discrepantes é muito válida, eacho que só mostra a importância dos Juizados para ter essa visão glo-bal.

PLATÉIA – Só fazendo um contraponto. Quando a Senhora diz que aLei teve como um dos objetivos o de tirar a violência doméstica do fi-nal da fila, que vai ter que se fechar a Delegacia para cumprir estas or-dens judiciais, então a vítima também tem que se conscientizar do seupapel. Por que o que se vê é que a vítima é a primeira que bate no ga-binete do Juiz e pede para retirar a queixa, entre aspas. E isso aconte-ce inúmeras vezes.

Page 139: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

138 – 2º Ciclo de Estudos

Endosso cada palavra da Colega, cada uma, mesmo que isso possaser visto como a perpetuação de um discurso continuísta, que eu diriaque não é, porque a gente tem a visão da prática, a Lei é naconcreção, como ela está se operacionalizando. O que vemos é que, narealidade, as pessoas, no calor dos acontecimentos, registram umaocorrência e realmente colocam o x no formulário da Polícia sem pen-sar nas conseqüências e sem o assessoramento de um profissional. De-pois, quando esfriam os ânimos, já estão de volta com o companheiroou com o marido, etc.

Então, é todo um aparato lutando para mudar um comportamento –realmente existe uma violência com a qual eu não concordo – mas oprincipal prejudicado ou prejudicada é a primeiro ou primeira a baterna porta do gabinete do Juiz e dizer que não quer aquelas mudançastodas que nós também queremos implementar. E isso realmente causatoda uma reviravolta neste processo.

E devemos questionar-nos: até que ponto, nós, como sociedade,queremos ir, se aquele principal personagem, que é o maior interessa-do, é o primeiro a dar um passo para trás? É uma coisa que me causamuita preocupação.

DRA. JULIANA BELLOQUE – Então, volto para o início da minhafala. Às vezes as mulheres podem ser levianas também ou inconse-qüentes. Mas devemos indagar as razões pelas quais a vítima está ten-do essa atitude para poder perceber quando é uma atitude de fato livreou uma atitude condicionada a uma realidade econômica, social e cul-tural que a impele a agir desta forma.

PLATÉIA – Eu concordo.

DRA. JULIANA BELLOQUE – E quero deixar bem claro, não estoudefendendo que os Juízes agora devem que afastar todos os homensdos lares sem ter nada de palpável, de concreto, sobre o risco efetivoque isso gera à mulher.

É muito importante que estes pedidos venham minimamente instruí-dos da Delegacia. A capacitação que a Lei exige passa também pelasDelegacias de Polícia.

PLATÉIA – Mas não vêm.

DRA. JULIANA BELLOQUE – Mas, se não vierem, e se o Juiz não sesentir apto a decidir, deve designar uma audiência.

Page 140: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 139

PLATÉIA – Mas não existe pauta para isso.

DRA. JULIANA BELLOQUE – Mas alguma solução tem que serdada. Também não é possível aceitarmos decisões judiciais sem funda-mentação concreta.

PLATÉIA – Se a Senhora me permitir que eu complemente: os ele-mentos de convicção que têm vindo, pelo menos na minha experiência,são muito tênues, praticamente nenhum, que a mim não me permiteter a segurança de eu poder decidir de forma convicta, e tem sido mui-to leviano decidir desta forma.

No entanto, eu fico na insegurança também de não dar aquela deci-são e correr um risco de acontecer um mal maior, o que, da minha ex-periência, já vi acontecer, já vi homicídio de um casal separado, de elalevar 19 facadas, já fiz este Júri anos atrás. Então, ficamos realmentenuma situação bastante difícil.

E pauta para fazer uma audiência que seria, na minha visão, o ideal,não existe, porque, na minha Comarca têm aportado praticamente doispedidos por dia, e eu tenho 8.700 processos, e Vara Judicial única. Oideal, na minha visão, seria fazer uma audiência conciliatória numadata próxima.

DESª MARIA BERENICE DIAS – Eu acho que aí entra o técnico, anecessidade de que seja a pessoa encaminhada ao menos para umatendimento pelo assistente social, pelo psicólogo de plantão.

PLATÉIA – Pois é, mas também neste caso não dispomos de técni-cos, e até seria a pergunta que eu iria fazer, não sei se existe tempodisponível: a Lei, em diversos momentos, fala no art. 9º, de programasassistenciais.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – A Desª Berenice vai falar àtarde sobre isso, podemos estabelecer o diálogo à tarde.

Agora, a Colega, por último, havia pedido a palavra, e pediria quefosse breve, pois são 12h20min.

PLATÉIA – Sim, serei breve. Também sou Juíza Criminal em NovoHamburgo, e só para endossar o que a Fernanda falou, com o que con-cordo também. Fiz também, numa tarde, cerca de 15 audiências, umarepresentou. E acho que um ponto em comum entre nós todas, inclusivea Senhora falou, é que não deveria ser da Vara Criminal a competência.

Page 141: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

140 – 2º Ciclo de Estudos

Tirou-se do Juizado Especial Criminal o de menor potencial ofensivo ecolocou-se em Varas Criminais, que tratam de crimes graves.

Então, acho que a Vara de Família, além de ser mais especializada,mais acostumada, mais sensível, como a Senhora disse, ficaria nomeio-termo: colocaria, realmente, no local adequado. Quem sabe, en-tão, uma alteração legislativa neste ponto na Lei? Porque todos os Tri-bunais estão-se organizando, fazendo esta estruturação toda visandoàs Varas Criminais, e nós todos concordamos que não é o melhor asVaras Criminais.

Então, embora também difícil isso, mas por que não se fazer um le-vante em todo o Brasil? Acredito que isso esteja acontecendo em todoo País.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Alguma consideração amais?

PLATÉIA – Uma sugestão aos Colegas: ao invés de deferir liminar-mente as medidas protetivas que vêm com o x da Delegacia, que tornaa decisão precária, precoce, então, antes de deferi-las, marcar uma au-diência imediata, tipo uma justificação prévia, e fazer uma apreciaçãocom a vítima, para discutir com ela sobre a efetiva necessidade daque-las medidas, se ele vai ser afastado.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Perfeito. Encerramos, então,agora pela manhã e às 14h retomaremos.

Muito obrigado.

Page 142: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Retoman-do os nossos trabalhos, temos a palestra da ColegaMaria Berenice Dias, que é demasiado conhecida detodos e evidentemente dispensa qualquer apresenta-ção, mas, de qualquer modo, apenas para cumprirformalidade.

Desembargadora deste Tribunal, fato notório, Pre-sidente da 7ª Câmara Cível deste Tribunal, professo-ra da Escola Superior da Magistratura, Vice-Presiden-te Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Famí-lia, integrante do Conselho Editorial da RevistaThemis, Gênero e Direito e vários outros títulos. AColega Berenice é uma colecionadora de troféus. Pas-so-lhe, então, diretamente a palavra para abordar osaspectos civis e processuais civis da Lei Maria da Pe-nha.

ASPECTOS CIVIS E PROCESSUAIS CIVIS DA

LEI Nº 11.340/06

DESª MARIA BERENICE DIAS – Primeiro gostaria de louvar essainiciativa, que não é do Grupo de Estudos do Tribunal de Justiça, nemda AJURIS e nem da Escola da Magistratura, mas, sim, é fruto do in-teresse pessoal do meu Colega e amigo Des. Luiz Felipe Brasil San-tos. Ele que, desde a vigência da Lei Maria da Penha, está buscandoum foro de discussão, sempre ressaltando que se trata de uma Leique muda paradigmas, e nós precisamos afeiçoar-nos a esta novarealidade.

Claro que a Lei Maria da Penha está sendo tratada como o são aspessoas a quem a Lei visa a proteger. Como as mulheres, a Lei vemsendo malfalada, destratada, difamada e já começou a ser violada e vio-

Page 143: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

142 – 2º Ciclo de Estudos

lentada. Até de inconstitucional já está sendo rotulada pela singela ra-zão de tutelar a mulher e não prever a tutela do homem.

Porém, parece que todos olvidam que há o Estatuto da Criança e doAdolescente, o Estatuto do Idoso, e ninguém questionou a constitucio-nalidade desses estatutos, que também se destinam a segmentos deter-minados. Agora, em se tratando da mulher, invoca-se a igualdade entrehomem e mulher que está na Constituição, para questionar a constituci-onalidade da Lei Maria da Penha. No entanto, ela veio exatamente paraatender ao desígnio constitucional. Não há nada mais desigual do quetratar igual os desiguais. A única forma de implementar a igualdade éenxergando a diferença, diferença até hoje invisível com relação à vio-lência doméstica.

Há outro fato. Esta é uma Lei afirmativa e, como tal, dispõe de pú-blico alvo determinado. Trata-se de um microssistema construído pelogênero da vítima: ser mulher. Assim, confesso que não consigo visuali-zar qualquer mácula de inconstitucionalidade neste diploma legal.

A Lei é fruto do movimento de mulheres e foi elaborada a muitasmãos. Dizer que veio de afogadilho ou teve caráter eleitoreiro é detodo descabido, ainda que tenha sido promulgada poucos dias antes daeleição presidencial. A Lei surgiu por determinação de organismos in-ternacionais, que condenaram o Brasil a cumprir os tratados ratificadoshá 27 anos. Assim, a Lei já veio até muito atrasada.

Talvez o traço mais significativo da Lei Maria da Penha é que ela dei-xa evidente o repúdio pela forma como a violência doméstica era trata-da pela Justiça. Se a violência doméstica chegou nos índices a que che-gou –, é o maior crime que se comete neste País, apesar de vivermosnum país violento – esta responsabilidade é nossa e temos que assumi-la. Quando falo em Justiça, falo em todos, desde a Polícia, DefensoriaPública, Ministério Público, chegando no Judiciário. Nunca ninguémquis ver a violência doméstica, nunca ninguém a encarou com serieda-de e nem se preocupou em quantificá-la. Os números sempre forammuito subdimencionados. É invisível a violência contra a mulher, poisse trata de delito que parece não afrontar a segurança social, porqueacontece dentro do lar.

Agora, veio uma nova Lei, e cabe a nós reverter este quadro tãoperverso.

Eu até entendo a reação de alguns magistrados que aplicavam bem aLei dos Juizados Especiais, que não é má, pois atende ao propósitovanguardista do Direito Penal. Sob uma ótica diferenciada, conciliató-ria, permite a interlocução de vítima e agressor. Só que isto funcionabem para outros tipos de delito, não nos delitos marcados por uma re-lação verticalizada entre agressor e vítima.

Page 144: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 143

A nossa sociedade tem um viés nitidamente patriarcal, o que marcaas relações familiares. Esta é a nossa realidade: o homem ainda consi-dera-se o chefe da sociedade conjugal, o cabeça do casal, proprietárioda mulher e dos filhos. Esta é a realidade do Brasil. Daí a dificuldadede a mulher denunciar a violência de que é vítima.

A Lei Maria da Penha é enfática e até repetitiva ao rejeitar a aplica-ção da Lei dos Juizados Especiais. É o que diz o seu art. 41. O próprioart. 17, ao vedar, de forma expressa, a possibilidade de que seja apli-cada, como pena restritiva de direito o fornecimento de cesta básica ea aplicação de multa, também afasta a legislação dos Juizados Especiais.A mesma intenção se vislumbra por ter sido delegada competência àsVaras Criminais até a instalação dos Juizados de Violência Doméstica eFamiliar contra a Mulher (JVDFM), ainda que não tenha sido determina-da a implantação e nem fixado prazo para a criação dos Juizados espe-cializados.

Em face da expressa referência legal, a tendência é achar que, emsede de violência doméstica, não se aplica nenhum dispositivo da Leidos Juizados Especiais, tal como a exigência de representação no delitode lesões corporais. Isto porque, a necessidade de representação nalesão corporal leve, transformando-a em delito de pequeno potencialofensivo, foi feita pela Lei dos Juizados Especiais, que, no entanto, nãodeu nova redação ao Código Penal. Ora, se houve o afastamento da Leique condicionou a ação à representação, vigoraria o Código Penal nasua integralidade. Ou seja, a lesão corporal voltaria a ser pública in-condicionada.

Mas até por uma questão terminológica, não dá para dizer que lesãocorporal – ainda que seja leve – é um crime de pequeno potencialofensivo. Dói no ouvido dizer que a lesão corporal contra uma mulher écrime de pequeno potencial ofensivo.

Este talvez seja o tema que mais tem gerado controvérsias. Em re-cente encontro promovido pelo Conselho de Nacional de Justiça – ondese encontravam representantes de todos Estados –, foi feito um levan-tamento, e o resultado ficou meio a meio. Assim, em metade do País odesencadeamento da ação depende de representação, e na outra meta-de não. Mas as divergências não terminam aí. Alguns Juízes aceitam arepresentação feita perante a autoridade policial quando do registro daocorrência. Outros exigem representação judicial e estão intimando asvítimas para ratificarem a manifestação de vontade em juízo. Juro quenunca vi nada tão dividido e em uma questão fundamental.

Apesar do que está afirmado no art. 41, o fato é que, em três opor-tunidades, a Lei fala em representação, o que mostra que persiste suaexigência e, via de conseqüência, a possibilidade de retratação.

Page 145: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

144 – 2º Ciclo de Estudos

Está escrito no inc. I do art. 12: “Em todos os casos de violência do-méstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deveráa autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos:I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a repre-sentação a termo, se apresentada”. Está aqui a representação. A repre-sentação não é mais feita em juízo, mas perante a autoridade policial,na oportunidade em que a vítima faz o registro da ocorrência. Houvefoi o deslocamento do momento da representação. Pelo regime da Leidos Juizados Especiais, feito o registro da ocorrência, o boletim era en-viado para a Justiça, e, perante o Juiz, a vítima manifestava a repre-sentação, ou seja, cerca de 3 meses depois do fato, período em quevoltou a “dormir com o inimigo”, pois teve que voltar para casa.

Agora não, a representação é feita na Delegacia de Polícia, oportuni-dade em que a vítima requer a aplicação de medidas protetivas. Tudofica muito mais facilitado, porque a vítima deve estar acompanhada deDefensor. Assim a representação está formalizada e, quando a vítimafor ouvida em juízo, não vai mais ser questionada sobre a representa-ção. O que a Lei permite é que a vítima renuncie à representação. Elanão precisa ratificar e nem referendar a representação feita na Polícia.Em juízo, a vítima pode, no máximo, renunciar à representação peran-te o Juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, eouvido o Ministério Público (LMP, art. 16). Claro que a renúncia só éválida se feita antes do recebimento da denúncia.

Então, depois de cessada a agressão, de curada a ferida, de secadaa lágrima, mesmo voltando a conviver com o ofensor, a vítima não pre-cisa ratificar a representação. Não mais será, como ocorria muitas ve-zes, pressionada – quase coagida – pelo Juiz para desistir. Agora, paraabrir mão da representação é preciso ir voluntariamente à presença doJuiz, quando será ouvida em uma audiência designada para esta finali-dade.

Não aceitar a possibilidade de renúncia vai gerar um efeito perverso:o receio das vítimas em denunciar. Terão medo de que a denúncia feitana Polícia vá levar necessariamente ao aprisionamento do ofensor. As-sim continuarão caladas e sofrendo em silêncio.

A Lei tem mais um grande mérito. Ela quis acabar com o calvário im-posto à vítima, que ia na Polícia, registrava a ocorrência, e depois pre-cisava ir para a fila da Defensoria Pública para conseguir uma ficha edepois esperar ser atendida para intentar a medida cautelar de separa-ção de corpos.

Por isso é que o art. 14 diz que os Juizados de Violência Doméstica eFamiliar contra a Mulher têm competência cível e criminal. Os Juizadosforam criados para dar uma resposta não só no âmbito criminal. A re-

Page 146: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 145

presentação da vítima feita perante a autoridade policial desencadeiadois procedimentos: um de natureza cível, a ser enviado imediatamen-te a juízo, e o inquérito policial, a ser instaurado pela autoridade poli-cial.

Feita a representação na Polícia, deve a Delegacia remeter, em 48h,o expediente a juízo – que, ao fim e ao cabo, nada mais é do que umamedida cautelar – para o Juiz adotar as medidas necessárias, quer pro-tetivas com relação à vítima, quer punitivas com relação ao agressor(LMP, arts. 22, 23 e 24).

Como a maioria delas são do âmbito do Direito de Família, claroque há dificuldade de as providências serem tomadas de imediatopelo Juiz. O expediente chega sem um documento, sem a certidão decasamento, sem a certidão de nascimento dos filhos, sem nada. Há sóa palavra da vítima. Ao depois, nem toda a violência deixa vestígiosfísicos, e o expediente cai nas mãos do Juiz desacompanhado de qual-quer prova.

A ofendida é convidada a declinar as medidas que deseja, eis queexiste a obrigação da autoridade policial de informá-la de seus direitos(LMP, art. 11, V). Quando esse expediente vai para o Juiz, não estáadstrito às medidas requeridas. Ele pode tomar providências que en-tender cabíveis, tanto que há remissão ao art. 461 do CPC, que expres-samente admite que as medidas sejam tomadas de ofício (LMP, art. 22,§ 4º).

Recebido o expediente e não se sentindo o Juiz em condições de to-mar uma decisão, há a possibilidade de designar audiência de justifica-ção, pois as medidas não precisam ser apreciadas de forma liminar.Claro que há dificuldades de pauta, por isso, a vítima deve serconduzida ao Defensor que atende à Vara. Também deve ser encami-nhada a atendimento pela equipe interdisciplinar, da área da Assistên-cia Social e da Psicologia, porque é disso que ela precisa.

A vítima quando consegue chegar à delegacia fazer a denúncia, apartir daquele momento, deve receber algum tipo de acompanhamento.Ela chega muito fragilizada com o nível de auto-estima. Quando nãorecebe qualquer tipo de apoio é que desiste da representação. Para avítima denunciar o agressor é uma decisão terrível, pois significa aban-donar todos os seus sonhos do amor eterno que todos nós embalamosdesde que nascemos. Por isso é difícil sair de um relacionamento. A ví-tima não quer colocar o agressor na cadeia, ela só quer que a violênciacesse. Então, vai atrás de um apoio, e não pode encontrar nem as por-tas fechadas e nem um Juiz com uma extrema má vontade, achandoque tem coisas mais importantes para fazer, pois está sobrecarrego eatrapalhado de tanto serviço.

Page 147: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

146 – 2º Ciclo de Estudos

Recebido o expediente da autoridade policial, o Juiz aprecia o pedidoliminar: defere, não defere ou designa audiência de justificação paraouvir a vítima. Proferida decisão em sede liminar, tal não impede queseja marcada audiência, para a qual será intimado o agressor. Esta au-diência, que em princípio serve para o Juiz apreciar os pedidosliminares, eventualmente pode levar à conciliação, ficando acertadasquestões outras como a separação de corpos, a guarda dos filhos, a fi-xação de alimentos, regulamentação de visitas. Feito acordo, resta sol-vido o conflito, pois possível é homologar a separação do casal e a par-tilha de bens.

Por isso, é indispensável que se admita a possibilidade de que, nestaoportunidade, a vítima desista da representação, o que deve fazer deforma reservada com a presença do Defensor e do Ministério Público.Não vejo como se possa sustentar que, acertada a vida daquelas pes-soas, vá seguir na Delegacia o inquérito policial. A vítima fica numa si-tuação privilegiada, de empoderamento se ela tiver nas suas mãos apossibilidade de continuar ou não o processo. Terá poder de barganhajunto ao ofensor. Esta é a grande vantagem de se admitir a possibilida-de da retratação da representação que foi feita na Delegacia de Polícia.

Solvidas todas as questões no expediente incidental, desistindo a ví-tima da representação, o Juiz comunica para a Polícia para arquivar oinquérito.

O fato de haver a renúncia à representação, em face do acordo feitoem juízo, isso não vai fazer a violência desaparecer, eis que o próprioMinistério Público tem obrigação de manter um cadastro de agressores(LMP, art. 26, III).

Se neste primeiro momento o Juiz defere algum pedido de naturezacível, do âmbito do Direito de Família, deve determinar o seu o adim-plemento, podendo até decretar a prisão preventiva do ofensor por de-sobediência a uma ordem judicial (LMP, art. 20). A prisão serve basica-mente para esta finalidade. É preso porque não cumpriu a ordem judi-cial: não saiu de casa; aproximou-se da vítima quando não deveriafazê-lo, não pagou os alimentos, o que também é uma desobediência àdeterminação do Juiz que os fixou.

Estas decisões não estão submetidas ao prazo de 30 dias das medi-das cautelares, que perdem a eficácia depois desse período. A vítimanão precisa procurar a Defensoria Pública para entrar com a ação prin-cipal. O procedimento vindo da Polícia é a própria ação.

Deferido ou não o pedido liminar, o recurso – do agressor ou da víti-ma – vai para o 2º grau, surgindo o problema da competência. Quemvai apreciar o recurso? Como identificar o órgão julgador? Pela nature-

Page 148: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 147

za do conflito solvido, se a matéria é de família, vai para as Câmarasde Família, se é de natureza criminal, para as Câmaras Criminais.

Deferida a medida protetiva ou não, depois de cumprida a liminar, oprocedimento deve ser remetido para a Vara de Família. Caso a vítimanão esteja representada por procurador, será encaminhada à Defenso-ria, e o expediente deve ser enviado para o Ministério Público. Ou seja,o pedido de providências feito perante a autoridade policial vira petiçãoinicial. Não entender assim vai ensejar a volta à velha burocracia, poisa parte teria que entrar com uma ação. O fato é que já está tudo lá. Aprova veio aos pouquinhos. Começou sem nada, só com a palavra davítima. De repente veio a certidão do nascimento dos filhos, a informa-ção onde o agressor trabalha, já foi ofício para o empregador descontaros alimentos. Assim o expediente está bem instruído. Sendo necessáriasmais provas, o Juiz deve determinar sua produção. Temos que ser umpouco mais pragmáticos.

Enquanto não criados os Juizados especializados, expediente solici-tando as medidas protetivas de urgência vai para a Vara Criminal. De-pois de apreciado o pedido liminar, é enviado para a Vara de Família. OJuiz do Crime espera o inquérito policial, e até o momento do recebi-mento da denúncia há possibilidade de retratação. Esta pode ser leva-da a efeito diretamente perante o Juiz do Crime ou do Cível, que rece-beu o expediente. Em qualquer das hipóteses a vítima precisa ser ouvidade forma reservada, em audiência e na presença do Ministério Público.

O recurso referente à ação penal vai para as Câmaras Criminais.Para evitar a duplicidade de juízos mister que sejam criados os

JVDFM em todas as Comarcas. É necessário que todos os que atuamnesses Juizados estejam capacitados para que tentem solver as ques-tões de Direito de Família que a denúncia de violência doméstica traz.A proposta da Lei Maria da Penha é solver o conflito familiar, e não ex-clusivamente processar, condenar ou punir o agressor. A maioria dosJuízes que atendem à Vara de Família já aprenderam a fazer convêniocom Universidades, com as Prefeituras, para arranjar um AssistenteSocial ou uma Psicóloga. Os Juízes que atendem a violência domésticatêm que tomar as mesmas providências.

Aliás, tenho que o Conselho Nacional de Justiça deveria determinarum prazo para que todos os Tribunais criassem no mínimo um Juizadoem cada comarca. Aí, sim, teríamos um único Juiz apreciando o pedidode medidas protetivas, solvendo as questões de Direito de Família e jul-gando a ação penal. Caso contrário, vai continuar essa dissintonia de avítima ter que ir à Vara de Família, em face do expediente das medidasprotetivas, e depois na Vara Criminal, por causa da ação penal.

Page 149: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

148 – 2º Ciclo de Estudos

É preciso encontrar uma forma de atender ao que a vítima quer: quea violência cesse. Esse deve ser o nosso maior empenho. Isso não sealcança induzindo desistências, ou equivocadamente exigindo repre-sentação. Quando a mulher quiser desistir, cabe a nós mostrar-lhe quenão é o melhor caminho, até porque existe a possibilidade de que sejaimposto ao réu, como pena, o acompanhamento compulsório de progra-mas de reeducação. Essa responsabilidade é nossa, e nós falhamos umavez, porque não fomos capacitados para atender à violência domésticaquando da criação dos Juizados Criminais, para os Juizados Especiais.Não podemos falhar de novo agora, achando que a Lei não funciona, quenão nos dão estrutura, que as Varas Criminais estão abarrotadas deprocessos mais significativos, com réus presos.

A sociedade está dando à Justiça mais uma chance de reverter estedesastre que fizemos. Não podemos decepcionar novamente todos,principalmente essas mulheres violadas e violentadas do Brasil, que aúnica coisa que estão esperando de nós é uma atitude positiva com re-lação à Lei, que é o que espero de todos vocês.

Muito obrigada.

Page 150: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – No nossomomento final do evento, teremos o painel integradopela Dra. Jane Vidal, pelo Des. Odone Sanguiné epelo Des. Mário Gomes Pereira. É um painel bastanteinformal, cada um vai fazer uma breve apresentaçãopara o seu enfoque, e o importante é que em seguidase continue também com o pinga-fogo, que se temmostrado tão produtivo aqui neste evento.

Então, já que estamos aqui prestigiando a mulher,vamos começar com a Dra. Jane, como não poderiaser diferente, que vai ser, aliás, diga-se de passa-gem, a primeira Juíza do Juizado Especial de Violên-cia contra a Mulher aqui de Porto Alegre. Daí, portan-to, a razão maior até da presença da Dra. Jane aquineste evento, neste painel. Ninguém melhor do queela para dizer como será a aplicação dessa Lei, aomenos aqui no Estado, em Porto Alegre.

QUESTÕES CONTROVERTIDASDA LEI Nº 11.340/06

DRA. JANE MARIA KÖHLER VIDAL – Boa-tarde. Essa é uma gran-de responsabilidade que tu me atribuis, Luiz Felipe, e assim te chamo,desde já te cumprimentando e aos demais Colegas de mesa, Desem-bargadores Mário e Odone. Faço uma especial referência também àDesª Maria Berenice, aqui presente, a quem homenageiam todas asmulheres aqui presentes.

Temos aí esse debate da Lei, uma Lei nova, uma mudança de para-digma, numa cultura machista que nós temos no Brasil. É uma Leicomplexa, em um quadro complexo, e ela deve ser visualizada comoum instrumento da cidadania da mulher.

Eu estava agora escutando os debates e verifiquei que a discussão égrande. Então, eu sou apenas mais uma a tentar efetivar uma políticapública de proteção às mulheres nesse viés da igualdade trazido pelaConstituição Federal.

Page 151: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

150 – 2º Ciclo de Estudos

O assunto que me coube no painel foi a abordagem de temas contro-vertidos da legislação. Como os temas controvertidos são vários, pas-sam desde a implantação da equipe multidisciplinar, desde as verbaspúblicas a serem destinadas para a implantação daquilo que a Lei deter-mina, passando pelas questões mais jurídicas, abordarei apenas algunsaspectos que reputei importantes, até para manifestar a minha posiçãoa respeito da legislação.

Há quem sustente que a Lei nº 11.340 é inconstitucional, e pensoque todos já têm uma noção sobre esse assunto. Desde já afirmo, en-tão, por óbvio, a minha posição de constitucionalidade desse diplomalegal, porque sabemos que atualmente a parte mais fragilizada, ainda,via de regra, na relação familiar, é a mulher. Evidentemente que nãovou falar das crianças.

Em prol disso, então, sobrevém a Lei nº 11.340/06 para promoveressa igualdade entre homens e mulheres, buscando proteger a popula-ção feminina e alcançar a ela os meios para evitar essa fragilização,essa vitimização decorrente da violência doméstica e familiar.

Na esteira, já, de uma posição adotada pelo legislador brasileiroquando protegeu o consumidor mediante o Código de Defesa do Consu-midor e quando protegeu as crianças e os adolescentes mediante o Es-tatuto da Criança e do Adolescente, nós temos, então, a edição da LeiMaria da Penha, a Lei nº 11.340/06.

Temos dados que comprovam que os números de processos envol-vendo violência doméstica familiar são assustadores, e isso faz comque reconheçamos, então, a gravidade que esse fenômeno representapara a saúde pública e proclamemos a necessidade e efetivação de po-líticas públicas para a minimização e erradicação desse problema social.É necessário que se corte o vínculo vicioso da violência doméstica, poisos resultados obtidos com isso irão além do lar dos envolvidos.

É sabido que as crianças são o que eu chamo de uma espécie decarboninho, elas internalizam e repetem aquilo que elas vivenciam. Seas crianças vivenciam violência, elas reproduzirão violência.

Então, nós temos que nos preocupar com o bem-estar da família, deonde resultarão personalidades bem formadas, e essa Lei visa à erradi-cação da violência familiar.

Conseqüentemente, se nós conseguirmos em médio ou longo prazoproduzir uma família mais equilibrada, com menos violência, as crian-ças que viverão em um ambiente mais saudável e sem violência tam-bém reproduzirão isso, constituirão famílias nesse sentido, e nós tere-mos uma sociedade mais fraterna, mais solidária, mais igualitária.

Essa edição da Lei, com a proteção das mulheres, não significa nadacontra os homens; pelo contrário, nós mulheres gostamos muito dos

Page 152: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 151

homens, são nossos parceiros de vida. Essa Lei veio para protegermosuma parte fragilizada e enfrentarmos o problema da violência domésti-ca, que é maciço na população feminina, porque sabemos que um nú-mero muito grande de mulheres, e em todas as classes sociais, sofredessa violência, dessa fragilização. Baseados em dados estatísticoscoletados em vários Estados do Brasil, verificamos que a violência pra-ticada contra a mulher, via de regra, quase 80%, é praticada dentro dolar. Essa estatística se inverte quando tratamos dos homens, pois a vio-lência praticada contra os homens, via de regra, é praticada fora doambiente doméstico familiar. Daí a necessidade dessa proteção legalda população feminina, do gênero feminino.

Sabemos, então, que o ordenamento jurídico, até por ser tambémuma espécie de política pública, não tem se mostrado suficiente paraassegurar a eqüidade desejada entre homens e mulheres, e o problemaestá na desigualdade social e econômica, cujas conseqüências levam àprática da violência doméstica e outras violações dos direitos funda-mentais.

A desigualdade ganha, inclusive, contornos ainda maiores quando setrata de, por exemplo, mulheres negras e mulheres indígenas.

As estatísticas sobre o perfil dos vitimados por violência são revela-doras de um maior grau de insegurança doméstica para a população fe-minina, e, nesse cenário, então, para que ocorra a efetivação da eqüi-dade social e de gênero, torna-se necessário reconhecer o princípiouniversal da igualdade e da necessidade de proteção diferenciada paraos grupos historicamente excluídos e culturalmente discriminados. Ereconhecer as necessidades de proteção é dever do Estado.

Aplica-se aqui o princípio da devida proporcionalidade, e, como ensi-nam Ingo Sarlet e Lenio Streck, quando abordam essa temática, esseprincípio da proporcionalidade vem pontuado mediante dois aspectos:a proibição de arbítrio do Estado e a proibição de proteção insuficiente.Diante dessa realidade, que revela a descriminação e a vitimização dapopulação feminina, não podemos olhar o conflito doméstico e familiarpelo mesmo prisma de uma lesão comum ou pelo prisma do princípioda insignificância, sob pena de não estarmos protegendo suficiente-mente uma das partes do conflito – como disse, a parte mais fraca.

Uma sentença que absolva o réu pelo princípio da insignificância,porque a lesão foi leve, enfim, pequena, será uma sentença que padecede inconstitucionalidade, de ilegalidade, porque fere justamente o prin-cípio da proporcionalidade mediante o viés da proibição de proteção in-suficiente.

O Brasil é signatário de tratados e convenções internacionais queprotegem os direitos fundamentais. Há uma convenção de erradicação

Page 153: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

152 – 2º Ciclo de Estudos

da violência contra a mulher. Um dos comentários, inclusive a Reco-mendação Geral nº 19, de 1992, intitulada “Violência contra a Mulher”,aprovada pela CEDAW – Convenção para Eliminação de Todas as For-mas de Discriminação –, estabelece, no seu art. 1º, que há violênciaperpetrada por autoridades públicas e por quaisquer pessoas, organiza-ções; que os Estados também são responsáveis por atos privados senão adotarem medidas necessárias para impedir a violação dos direi-tos, investigar e castigar os atos de violência e indenizar as vítimas.

Então, o ordenamento jurídico brasileiro vem num crescendo para aproteção dos direitos femininos, ou seja, da proteção do gênero femini-no enquanto mais fragilizado. Posteriormente, num futuro, talvez aigualdade permita que uma legislação protetiva como esta, a Lei Mariada Penha, possa ser relativizada, mas por enquanto nós trabalhamosem uma sociedade que ainda não tem esse viés igualitário de formaampla, não tem esse princípio da igualdade consubstanciado e efetiva-do de forma material. A igualdade formal encontra-se assegurada pelalegislação, mas a igualdade material efetiva ainda carece de medidascomo esta, que é a Lei nº 11. 340.

A Desª Berenice abordou uma das questões que reputo polêmica me-diante a Lei nº 11.340, que é a exigência ou não da representação parao processo, para as ações penais decorrentes da violência domésticaou familiar.

Eu tive a oportunidade, juntamente com a Desembargadora, de par-ticipar de um seminário nacional sobre a Lei Maria da Penha em Brasí-lia, onde participaram Juízes, Desembargadores, Promotores, Defenso-res, Delegados, Assistentes Sociais, e um dos pontos polêmicos, muitodiscutido no seminário, foi justamente a necessidade de representação,e foi possível verificar que no Brasil não há uma tendência majoritáriaainda. Nós tivemos, por exemplo, em Santa Catarina, dois Juízes quese contra-argumentaram, um sustentando que a ação penal é públicaincondicionada, e o outro sustentando que a ação penal é pública con-dicionada à representação. No Rio de Janeiro também a discussão foi amesma, nos Estados do Nordeste, da mesma forma, e tive a oportuni-dade de manifestar, então, o meu pensamento, que, pelo que verifi-quei, comunga com a maioria também do pensamento dos Juízes aquino Rio Grande do Sul.

Desde já afirmo, então, que a minha posição é pela necessidade derepresentação como condição de procedibilidade da ação penal. Enten-do que as ações de lesão corporal, ameaças, são ações penais públicascondicionadas. E por que digo isso? Porque justamente a Lei nº 11.340menciona que a autoridade policial deverá tomar a representação davítima e que a vítima poderá renunciar a essa representação perante aautoridade judiciária.

Page 154: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 153

E aí nós temos uma novidade, porque a Lei nº 9.099 exigia a repre-sentação e permitia que a renúncia da representação fosse, inclusive,formulada perante a autoridade policial. Aqui não, aqui nós temos a exi-gência expressa de que a renúncia a essa representação, a retificaçãoda representação, deverá ser feita perante a autoridade judicial, emaudiência especialmente designada para esse fim.

Então, seguindo mais ou menos a manifestação da Dra. Juliana, quefez a ponderação de como foi o pensamento do legislador quando daconfecção da Lei, no sentido de que não fosse dispensada a representa-ção e se permitisse, sim, a autonomia da vítima para renunciar ao pros-seguimento do processo-crime, eu acredito que a representação é ne-cessária, deverá ser efetivada perante a autoridade policial, ratificadaem juízo, e, se retificada perante o Juiz, este deverá ter todo o cuidadopara perceber se há ou não uma coação na retirada da representação.Se houver, o Juiz deverá tomar medidas cabíveis para que esta mulhertenha a oportunidade de uma conversa com a equipe multidisciplinar,que deverá acompanhar o Juizado, de forma a viabilizar o seu direito efazer com que cesse a coação, e ela possa fazer valer a sua dignidadee erradicar aquela violência praticada contra ela. Da mesma forma quea mulher tem capacidade de representar, também tem capacidade deretirar a representação, querendo.

Então, para mim, a Lei nº 11.340 ainda exige a representação.Se a vítima foi capaz de fazer a representação, se nós demos a ela

oportunidade para efetivar a representação, também podemos dar a elaa autonomia dos direitos e da capacidade de retirar a representação.

A representação prevista ainda no art. 88 da Lei nº 9.099 faz partedas disposições gerais transitórias da Lei. Na verdade, assim como obenefício da suspensão condicional do processo pode-se aplicar a ou-tros delitos que não aqueles previstos na Lei que regulamenta oJECrim, entendo que a representação, embora também exigida pela Leinº 9.099, passou a fazer parte do rol de exigências para determinadosdelitos de violência doméstica e familiar contra a mulher, como tam-bém sustentou a Dra. Vera Feijó, defensora árdua também da igualda-de feminina – não contra os homens, mas da igualdade. Então, comun-go dessa posição.

Quanto à competência, eu também queria trazer um outro dado. Nóstemos aí a competência do Juizado da Violência Doméstica, que a Leiestabelece como sendo o Juizado competente para decidir aquelasquestões referentes à natureza protetiva e as questões de natureza cri-minal decorrentes dos delitos praticados.

E aí trago para discussão uma decisão que um Colega nosso proferiu noForo da Restinga, na Vara Criminal, o Dr. Leandro Martins. Ele disse queteve um caso de uma ação de reintegração de posse, que foi distribuída

Page 155: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

154 – 2º Ciclo de Estudos

para uma Vara Cível. A Juíza da Vara Cível declinou da competênciapara a Vara Criminal, considerando que os fatos ali narrados, que fun-damentavam o pedido, tinham natureza de atos agressivos de violênciadoméstica e familiar. Então, a Juíza declinou da competência para aVara Criminal, e o Juiz, recebendo o pedido, devolveu-o à Colega. Naverdade, poderia ter suscitado conflito, mas resolveu antecipar e, pos-teriormente, conversando com ela, a Juíza acolheu e recebeu de volta ademanda. Então, ele novamente remeteu para a Vara Cível, sustentan-do que existe uma legitimidade, uma competência concorrente entre asVaras Judiciais.

Ocorre que a parte tem a possibilidade de escolher o juízo cívelquando quiser direcionar a demanda exclusivamente para o aspecto cí-vel. Assim sendo, esse pedido deverá ser analisado pelo Juiz da VaraCível e não pelo Juiz Criminal. Caso contrário, como sustentou o Dr.Leandro, estaríamos obrigando a litigante a demandar perante o JuízoCriminal. No Juízo Criminal já se tem a necessidade de dar uma prefe-rência a demandas envolvendo delitos com réus presos cautelarmente,sem contar com outras relacionadas igualmente a fatos graves. Tornaro Juizado da Violência Doméstica e Familiar competente para esse tipode demanda representa objetivamente diminuir a liberdade da mulherse ela for obrigada a litigar perante o Juízo Crime, não tendo a oportu-nidade de levar a questão só para o Juízo Cível – sem que isso tenhaque passar necessariamente para o Juízo Criminal.

Concluindo, então, até para que nós possamos, depois, efetuar al-gum debate, eu trago aqui a novidade da implantação do Juizado da Vi-olência Doméstica, que será efetivado no dia 12 de dezembro próximo,às 17h30min, aqui no Foro Central, já estendendo o convite a todos, oqual será endereçado oportunamente pelo Diretor do Foro.

Este projeto é um projeto da Justiça contra a violência domésticanos mesmos termos e moldes do Projeto Conciliação-Família. Este pro-jeto foi uma elaboração decorrente da solicitação dos Juízes Criminaisdo Foro de Porto Alegre, juntamente com a Corregedoria e com a parti-cipação de alguns Juízes de Família.

Como será desenhado este Juizado? Este Juizado terá à frente umJuiz Substituto designado para atender essas demandas, que serão de-correntes das ações que ingressarem em todas as Varas Criminais doForo Central e dos foros regionais. O Juiz será competente para pro-cessar e julgar todos os expedientes, medidas protetivas, que serãodistribuídos a todas as Varas Criminais, com jurisdição compartilhadadesse Juiz designado com as Varas Criminais do foro central e dos fo-ros regionais. Os feitos serão encaminhados para o Foro Central, nesseprojeto.

Page 156: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 155

Para concluir, eu tenho a dizer que penso que a Lei nº 11.340 veioem um bom momento. É uma Lei que, como se diz, colou e veio co-brando do Poder Público, Executivo, Legislativo, da sociedade, do Judi-ciário, uma nova postura, um novo paradigma. Creio que temos que vi-sualizar a Lei justamente neste contexto, de instrumento de cidadaniada mulher brasileira.

Espero que consigamos efetivar essa nova política pública propostapela Lei Maria da Penha.

Obrigada.

DES. MÁRIO JOSÉ GOMES PEREIRA – Quero inicialmente agrade-cer o convite do Colega, Des. Luiz Felipe Brasil Santos, parabenizar anossa Colega, Desª Maria Berenice Dias, e os Colegas de mesa.

Sobre as questões de fundo e de natureza constitucional, muito sedisse a respeito do princípio da isonomia, sobre o tema do sistemaacusatório, sobre a proporcionalidade na quantificação das penas; dis-se-se e se escreve que a Lei faz parte de um Direito Penal da Lei e daOrdem, que seria um Direito Penal meramente simbólico, contrariandoessas tendências minimalistas que hoje são da tradição da legislação,de um modo geral.

O que se percebe é que essa Lei está abandonando o paradigmada justiça do consenso para adotar aqui o paradigma do processopenal clássico e retributivo. Daí por que alguns dizem que essa Leipode traduzir um processo penal não de garantias, mas de emergên-cia.

Como vimos aqui hoje, a Lei tem imprecisões, parece ter proble-mas de vigência e de eficácia, talvez traduza uma noção de um Bra-sil legal em descompasso com a noção de um Brasil real, então, se-gundo alguns, retrata bem a distinção entre o que se diz e o que sefaz.

Existiria um descompasso entre o que a Lei prevê e a sua efetiva im-plementação, diante da realidade que temos em nosso País.

Mas, de todo modo, a Lei tem uma inspiração legítima, torna o pro-blema mais visível e é um estatuto que tem que ter uma interpretaçãomais compreensiva e que vise a salvá-la.

O que se percebe é que essa Lei faz parte da tradição legislativa, emque se cria uma espécie de microssistema penal, talvez um Direito Pe-nal de gênero ou talvez um Direito Penal da vítima.

Como dito, essa Lei tem repercussões em várias áreas do Direito.Repercute na esfera do Direito Processual Penal, na área do Direito Pe-nal, na área da Execução Penal, na área administrativa e até mesmo naárea trabalhista.

Page 157: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

156 – 2º Ciclo de Estudos

Penso que a Lei parte da premissa de que a Lei nº 9.099/95 não se-ria uma instância adequada para solver esse tipo de litígio; tratando-sede uma Lei de mediação penal, que estaria sendo inoperante, estariabanalizando esse tipo de conduta e estaria beneficiando o autor dofato, em prejuízo da vítima.

Tenho sinceras dúvidas sobre isso porque, numa primeira perspecti-va, penso que a Lei nº 9.099 talvez padeça é de uma má aplicação.Mas a ideologia que informa essa Lei, enfim, o consenso, a mediação, oprocesso dialógico, em que se pode resolver não apenas a questão jurí-dica, mas a questão sociológica, parece uma instância que, se for bemaplicada, poderia resolver os conflitos dessa natureza.

Penso que lá no Juizado Especial Criminal se poderia, com uma apli-cação adequada, quem sabe, resolver as infrações que caibam no âm-bito da Lei nº 9.099, através desse aporte multidisciplinar que a aplica-ção da Lei reclama.

Em decorrência disso, a Lei parece dizer, no art. 41, com todas asletras, que aos crimes praticados com violência doméstica e familiarcontra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica aLei nº 9.099/95.

Concluo, pela dicção legal, que as contravenções que traduzem umaviolência doméstica e familiar ainda estariam albergadas pela Lei nº9.099, porque a Lei nova se refere apenas a crimes.

O que parece dizer a Lei é que se quer impedir benefícios da mesmaao agente, mas talvez não se queira vedar os benefícios que a Lei tragaà vítima.

Então, penso que a reintrodução do inquérito policial pode, paraquem conhece a nossa realidade, trazer uma absoluta inefetividade aesse tipo de persecução penal.

Quando do advento da Lei nº 9.099/95, o que aconteceu é que deli-tos tidos como menores começaram a bater à porta do Judiciário.Quando nós tínhamos, antes disso, o Direito Penal clássico, enfim, ainstauração do inquérito, víamos que essas questões ficavam atingidasnormalmente pela prescrição.

Estimo assim, que a adoção do inquérito policial possa trazer prejuí-zos efetivos à persecução penal nesse tipo de procedimento, agora al-bergado por essa Lei.

Penso, também, que se não for adotada na fase do inquérito policiala preferência que se prevê no art. 33, parágrafo único, pode haver pre-juízos à persecução penal, no que tange ao tempo do inquérito e daação penal.

Sobre o tema da representação, estou convencido que perdura talexigência, porque a Lei é expressa sobre o tema em seus arts. 12 e 16,

Page 158: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 157

e porque a Dra. Vera bem disse que essa Lei não altera o Código Penal.De modo que a representação, como condição de procedibilidade, con-tinua sendo exigida nas hipóteses preconizadas pela Lei. Não vejo difi-culdades em admitir a permanência da representação.

A propósito, a serviço de quem está a representação? A serviço davítima ou a serviço do ofensor? Hoje se falou aqui, do chamado“empoderamento da mulher”. Penso que a representação está no cam-po da autonomia privada e que a mulher pode ou não exercê-la deacordo com a sua vontade.

Sobre a questão do marco temporal da representação, não vejo ino-vação. Sempre se admitiu, no âmbito do JECrim, que a vítima, homemou mulher, poderia fazer a representação, que não exige formalidadesmaiores, já na esfera policial, e depois, na audiência preliminar, pre-vista no art. 76 da Lei 9.099, sempre se exigiu que a vítima fosse à au-diência e lá avigorasse ou desistisse da persecução penal.

De modo que continua tudo como antes. Em relação ao marco tem-poral sobre a representação, não vejo inovação alguma; pode ser feitana Polícia, como pode ser feita diante do juízo.

A propósito do art. 16, parece-me uma exigência demasiada uma au-diência específica para que a vítima desista – talvez a expressão corre-ta fosse essa – da representação.

Eu perguntaria: a representação feita diante do Ministério Públicopela vítima não seria o bastante? A vítima pode renunciar à repre-sentação, a meu juízo, mesmo diante da intimação do Oficial de Jus-tiça.

Agora, o Juiz pode e talvez deva – ao menos no âmbito da Lei nº9.099 é assim –, na audiência preliminar, inquirir a vítima se persiste aintenção de perseguir penalmente o acusado ou o autor do fato ou,como a Lei chama agora, o agressor.

Outras categorias da Lei nº 9.099/95, como a representação, e tam-bém o procedimento sumaríssimo, não caberia a adoção, quando cabí-vel, deste procedimento na aplicação dessa Lei? Creio que sim, porqueo procedimento sumaríssimo da Lei nº 9.099 parece que empresta maisceleridade e nessa medida seria mais benéfico à vítima.

Foi mencionado também o problema da suspensão condicional doprocesso, quando cabível, e nessas hipóteses, em linhas gerais, sem-pre caberia, até porque a Lei tem uma contradição: ela aumentou apena máxima e diminuiu a pena mínima do art. 129 do CP.

Então, isso é matéria que pode ser objeto não digo da transaçãopenal, porque não cabe mais, mas da suspensão condicional do pro-cesso, até porque esta categoria não se restringe ao âmbito da Leinº 9.099/95.

Page 159: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

158 – 2º Ciclo de Estudos

A suspensão condicional parece uma medida despenalizadora e peda-gógica muitas vezes suficiente, proporcional e adequada para qualquerespécie de infração penal, independentemente de quem seja a vítima.

Daí porque não consigo ler o art. 41 da Lei literalmente, isto é, “aoscrimes praticados com violência contra a mulher, independentementeda pena prevista, não se aplica a Lei”. Penso que o legislador dissemais do que podia, não vejo como legitimamente se interpretar dessaforma.

Outro tema que eu queria aludir, porque as questões controversassão muitas, é a hipótese do art. 20 da Lei Maria da Penha. Sei que omeu Colega Odone irá tangenciar esse tema, o das medidas cautelarespenais.

O art. 20 da Lei é absolutamente dispensável, porque reproduz comtodas as letras o art. 311 do CPP, quando diz que, em qualquer fase doinquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventivado agressor, decretada pelo Juiz de ofício a requerimento do MinistérioPúblico ou mediante representação da autoridade policial. Isso é ipsislitteris o que diz o art. 311 do CPP.

Bem, se essa Lei quer dar uma reposta pronta, efetiva, no campodas medidas cautelares penais, que incidem sobre as pessoas, e aquime refiro ao tema da prisão, ela não autoriza, por exemplo, a chamadaprisão temporária, pois esta só cabe em crimes graves e durante a fasedo inquérito policial.

De modo que a prisão temporária definitivamente não tem incidên-cia, porque é uma prisão excepcional que cabe apenas na fase do inqué-rito policial.

E a prisão em flagrante cabe? Sim, a prisão em flagrante cabe emqualquer espécie de crime. Agora, se a infração penal for perseguidapor uma ação penal privada, para que haja lavratura do auto de prisãoem flagrante é preciso que haja a manifestação da vítima. Se entender-mos, como estamos entendendo, que em ações penais condicionadas àrepresentação é preciso tal providência, a autoridade policial não pode-rá prender em flagrante delito sem que haja a manifestação expressada vítima, porque isso se encontra no campo da autonomia da vontadedo ofendido.

De todo modo, hoje, para que alguém fique preso em flagrante deli-to se fazem necessários os requisitos do art. 312 do CPP.

Quanto à questão da preventiva, a Lei fala pontualmente sobre estahipótese. Falou-se, pela manhã, acerca dos pressupostos e requisitosda preventiva. Dizia a Professora, e parece que com razão, que essacláusula que admite a prisão preventiva deveria estar no art. 312, enão no art. 313 do CPP, como refere o art. 42 da Lei em exame. Como

Page 160: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 159

se sabe, não é em qualquer delito que cabe a prisão preventiva. Auma, porque a prisão preventiva é uma prisão excepcional; à outra, éque para que caiba a prisão preventiva o crime deve ser doloso, ape-nado com reclusão, em regra. As hipóteses que examinamos aqui, quea Lei preconiza, em regra, não têm pena de reclusão, e sim de deten-ção.

Dessa forma, há limites para uma prisão processual no âmbito destaLei, e, como disse, seu art. 20 não traz inovação alguma; ao contrário,é a reedição do art. 311 do CPP.

A minha manifestação inicial seria esta, objetivamente. Agradeço eme coloco à disposição, oportunamente, após a fala do Colega, Des.Odone Sanguiné.

DES. ODONE SANGUINÉ – Gostaria de agradecer o convite do Co-lega Luiz Felipe Brasil Santos, Coordenador do Centro de Estudos, pelaoportunidade de antes ouvir os Colegas do que propriamente contribuirpara o debate. As duas intervenções que me precederam já foram sufi-cientemente exitosas ao ponto de praticamente dispensar a minha par-ticipação.

Também quero saudar os demais componentes da Mesa, o ColegaMário José Gomes Pereira, a Colega Jane Vidal, a quem saúdo em nomede todos os demais presentes, e os Desembargadores Maria Berenice eBruxel. É uma satisfação vê-los aqui, em nome de quem saúdo todosos demais assistentes.

A questão desta Lei que visa a coibir a violência doméstica e familiarcomporta, como vimos nesta pequena parcela dos debates e também,de alguma maneira, pelo relatório do eminente Colega Mário Gomes,uma pluralidade de enfoques e uma multiplicidade de questões, desdea inicial da constitucionalidade até problemas interdisciplinares de vio-lência, sociológicas, de infra-estrutura, processuais, penais, procedi-mentais e outras.

Desde logo posiciono-me, também, em favor, em parte – porque al-guns pontos desta Lei devem ser corrigidos pelo sistema jurídico – nosentido de que não considero essa Lei inconstitucional porquanto creio,tal como ocorreu em outros países, tratar-se de uma Lei em que seprocura uma ação afirmativa, também chamada discriminação positiva,justamente para restabelecer o desequilíbrio que historicamente tem-se observado em relação à desproteção das mulheres. Esse desequilí-brio, também vem-se observando no processo penal.

Historicamente, o Estado disse que a vítima não podia falar, não podiase manifestar no processo penal, e na Europa percebe-se atualmente ummovimento doutrinário, legislativo, diretrizes do Conselho da Europa, no

Page 161: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

160 – 2º Ciclo de Estudos

sentido de que a vítima volte a ter um protagonismo, uma participaçãono processo penal.

No entanto, desde logo devemos fazer um contrapeso, uma compen-sação, uma ponderação no sentido de que sempre esse resgate da víti-ma, dos seus legítimos interesses, entre os quais o da mulher, nãopode, de nenhuma maneira, produzir o enfraquecimento nos direitosfundamentais constitucionais consagrados nas cartas internacionais enos tribunais constitucionais comparados.

Sem dúvida alguma, se assistirmos a um reaparecimento, a umrenascimento da vítima no processo penal, de modo que ela possa par-ticipar – vemos, por exemplo, que no Direito Penal há uma discussão,hoje, sobre a necessidade de introduzir a reparação como uma terceiravia, um terceiro mecanismo de reação estatal, ao lado da pena e damedida de segurança.

Vimos também antes, na Lei nº 9.099, mecanismos na própria LeiAmbiental, na própria Lei do Código de Transito, casos em que o legis-lador plasmou uma forma de reparação pecuniária, ou através de umasanção penal, na própria suspensão condicional do processo como umaforma de dar implementação ao sursis processual, que é justamentepermitir que a vítima, independentemente da indenização que vá al-cançar na esfera civil posteriormente, desde logo comece a receber amerecida atenção.

Um dos campos para debate – vou me ater somente a esse aspecto,posso até fazer algumas observações no debate, depois –, um aspectoque eu gostaria de abordar e creio ser mais do que suficiente para, di-gamos, gastar nossos neurônios, seria a questão da relação que existeou deve existir entre as medidas protetivas de urgência e a prisão pre-ventiva.

Podemos, por exemplo, verificar que a legislação brasileira, há pou-co mais de uma década, começou a prever, em leis esparsas, medidasprotetivas para coibir a violência contra a vítima. Por exemplo, o Esta-tuto da Criança e do Adolescente, no art. 130, dispõe que, verificada ahipótese de maus tratos, opressão ou abuso sexual imposto pelos paisou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medi-da cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.

Por sua vez, a Lei nº 9.099/95, que regula os Juizados Especiais Cri-minais, destinados às infrações de menor potencial ofensivo, dispôs noart. 69, parágrafo único, que, no caso de violência doméstica, o Juizpoderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar,domicílio ou local de convivência com a vítima.

Por fim, a recente Lei de Violência Doméstica, de antonomásia Mariada Penha, estabeleceu as denominadas medidas protetivas de urgênciapara coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Page 162: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 161

Deste modo, constatada a prática de violência doméstica e familiarcontra a mulher em suas diversas formas, psicológica, física, sexual,patrimonial ou moral, nos termos do art. 7º, recebido o expedientecom o pedido da ofendida, caberá ao Juiz Criminal, ou quando foremcriados Juizados de Violência Doméstica, no prazo de 24 horas, aplicarde imediato ao agressor medidas protetivas de urgência, a requerimen-to do Ministério Público ou a pedido da ofendida.

Essas medidas protetivas nos levam a questionar as condições deaplicabilidade, os pressupostos para incidência dessas medidas proteti-vas de urgência.

A primeira questão é que entendo que essas medidas não podem serdissociadas do sistema constitucional, o que caberia examinar aqui,mas ela perde um pouco do sentido, inicialmente, com a nova Lei, por-que a Lei elaborou um rol de medidas protetivas. Esta questão, e mepermito estender um pouquinho mais, pode ser pensada, por exemplo,perante a deficiência de medidas alternativas, também protetivas, paraos outros setores de criminalidade que não estão restritos à violênciadoméstica, para os crimes em geral.

Temos no anteprojeto do Código de Processo Penal, um leque, umamplo rol de medidas que ainda carecem de entrada em vigor, o querealmente viria suprir uma lacuna no ordenamento jurídico. No art. 22,a Lei contra a violência doméstica prevê um rol de medidas protetivasde urgência, cuja configuração recorda as denominadas restraintorders do Direito Norte-Americano, ou seja, procedimentos simples quese iniciam por uma petição da vítima ao Tribunal. A vítima deve infor-mar a este Tribunal os danos ou ameaças sofridos, assim como o âmbi-to em que ela necessita de proteção. Essa ordem de proteção judicialconterá medidas restritivas, como a proibição de entrar em contatocom a vítima, exatamente a mesma similitude dessas que foram intro-duzidas. Também pode decidir sobre custódia provisória de filhos, com-pensação econômica, dever de alimentos e outras. A violação dessasordens judiciais de proteção, nos Estados Unidos, sujeita o desobedien-te à multa e também à pena de prisão.

No caso da Lei de Violência Doméstica, no art. 22, nesta mesma li-nha e também na linha da recente Lei de Proteção Integral, Violênciado Gênero, espanhola, de 2003 – há algumas medidas anteriores, masbasicamente em 2003, houve essa modificação, lá há um grande pro-blema social de violência doméstica e familiar contra a mulher, umproblema social muito grave, tanto que o legislador, os Poderes Públi-cos se viram obrigados a baixar essa Lei protetiva, chamada de Prote-ção Integral, muito similar à nossa –, então, de acordo com o art. 22,o Juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou sepa-radamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras

Page 163: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

162 – 2º Ciclo de Estudos

– aqui o problema que abordaremos a seguir –, a suspensão da posseou restrição do porte de armas, afastamento do lar, domicílio ou localde convivência com a ofendida, proibição de determinadas condutas,como por exemplo a aproximação da ofendida e seus familiares e dastestemunhas, por meio de qualquer meio de comunicação – telefone,e-mail, pager, ou qualquer outro –, freqüentação de lugares, a fim depreservar a integridade física e psicológica da ofendida, restrição oususpensão de visitas aos dependentes menores, consultada a equipemultidisciplinar.

Agora vejam que o problema é que no Direito Comparado se discuteessa questão das medidas cautelares, ou medidas restritivas, ou medi-das interditivas ou protetivas, no aspecto do princípio da legalidade.Aqui no Brasil, o único autor que vi mencionar rapidamente o tema foio Rogério E. Machado, em um livro sobre prisão preventiva lançado hápouco tempo, em que ele acena para a possibilidade de o Juiz lançarmão de medidas alternativas não previstas em lei. A argumentação se-ria in maius, minus, ou seja, quem pode o mais, pode o menos, ouseja, se existe na legislação uma medida mais radical, que é a prisãoprovisória ou preventiva e que consiste na privação de liberdade, exis-tiria, então, uma cobertura legal suficiente para intervir de uma manei-ra menos intensa na mesma liberdade pessoal ou individual.

De maneira que, utilizando-se do princípio da proporcionalidade nostrês aspectos de idoneidade, adequação, necessidade ou proporcionali-dade em sentido estrito, que é o aspecto, digamos, negativo do princí-pio da proporcionalidade, aquele que visa a proteger o indivíduo contraas medidas de ingerência ou interventivas do Estado, atendidos estespressupostos, haveria uma possibilidade de aplicação de uma medida,uma espécie de poder cautelar geral do Juiz, tal como existe valida-mente no processo civil.

Entretanto, parece que é melhor a opinião contrária, no sentido deque, somente para evitar um problema grave que pode ocorrer para asegurança jurídica, poderia se cogitar de medidas – e aqui também asprotetivas – cautelares alternativas à prisão preventiva em geral, porexemplo, ainda agora tivemos um caso em que se determinou a retira-da do passaporte dos pilotos do avião Legacy. Esta é uma medida al-ternativa à prisão preventiva e que pode ser eficaz ou idônea o suficien-te. De modo que a preventiva fica como ultima ratio do sistema proces-sual penal.

Digo mais: o Superior Tribunal de Justiça tem um caso em que jáadmitiu a conversão da prisão provisória em prisão domiciliar, porémnão tocou uma linha sobre esse tema.

Page 164: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 163

Na Espanha, por exemplo, o Tribunal Constitucional, em um casobastante famoso, se não me equivoco, de um indivíduo argentino – ofamoso caso Alfredo Silingo –, acusado de cometer crimes de tortura,desaparecimento de pessoas e genocídio, estava homiziado naEspanha. Quando foi dada uma medida cautelar de liberdade provisóriacom a proibição de se afastar do País e foi retirado o passaporte, eleinterpôs recurso de amparo no Tribunal Constitucional, o qual disse,entre outras coisas, que, para que haja uma restrição da liberdade pes-soal, que é uma garantia constitucional das mais importantes, isto sópode ocorrer quando tiver uma habilitação legal específica. Portanto,não basta recorrer a uma outra norma de cobertura, que poderia ser,por exemplo, a prisão preventiva ou a liberdade provisória, apesar deuma certa similitude. Aí, justamente o Tribunal Constitucional rechaçouesse argumento de que quem pode o mais, pode o menos, porque con-siderou que esta forma de argumentação é contrária ao princípio da se-gurança jurídica, da certeza do direito e da legalidade constitucional.De modo que somente poderia haver a aplicação de medidas alternati-vas, entre as quais as medidas protetivas de urgência, com a préviahabilitação legal.

No caso da Lei Maria da Penha, temos perfeitamente cumprido estepressuposto, ou seja, está na Lei descrito um rol de medidas proteti-vas, como mencionei, com suficiente determinação para que o Juizpossa trabalhar com os princípios jurídicos e, portanto, cumprir comeste requisito da legalidade ou certeza do direito mínima.

Acontece que a Lei para coibir a violência doméstica, no caput doart. 22, diz que o Juiz poderá aplicar as seguintes medidas protetivas,entre outras. Logo depois, no § 1º do art. 22, o legislador diz que asmedidas protetivas referidas neste artigo não impedem a aplicação deoutras previstas na legislação em vigor.

Então, me afasto, de uma interpretação que poderia levar a entenderque haveria uma interpretação analógica ou uma cláusula que permiti-ria ao Juiz a criação de uma espécie de poder cautelar, de modo quepoderia criar outras medidas não previstas, pelas seguintes razões:primeiro, porque entendo que do ponto de vista constitucional deve ha-ver habilitação específica e, segundo, porque creio que, entre outras,significa, em conjunto com este § 1º, aplicação de outras previstas nalegislação em vigor. Ali fica claro que há de estar prevista a medida emalgum outro lugar, ou da Lei de Violência Doméstica ou até em outralei.

Portanto, já vi gente sustentando que haveria aí uma possibilidadede aplicação de analogia, porque esta enumeração da Lei seria pura e

Page 165: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

164 – 2º Ciclo de Estudos

simplesmente exemplificativa ou enunciativa, e eu, pelo menos emuma reflexão inicial – e daí a importância dos painéis para ouvir o queos Colegas apreciariam sobre isto, talvez com melhor propriedade –,creio que só poderíamos aplicar tais medidas quando encontrássemosuma base legal ou na Lei de Violência Doméstica ou em outra lei.

Por exemplo, eu creio que, como regra geral, este artigo quer dizerque a aplicação de uma medida cautelar não impede, por exemplo, recor-rer a medidas protetivas civis, que são as que estão no art. 23. Pareceóbvio, mas creio que este é um dos sentidos que podemos interpretarna Lei.

A outra alternativa, esta bastante mais discutível, mas creio que nãoprecisaríamos forçar tanto o sistema jurídico, poderíamos admitir, háuma alteração na LEP, no art. 152. Foi acrescentada outra obrigaçãoespecífica para a violência doméstica, que é a de o condenado à penarestritiva estar obrigado ao comparecimento, o agressor, a programade recuperação e reeducação.

De maneira que esta obrigação que está embutida em uma pena dealguém já condenado creio que se poderia antecipar como medida cau-telar, porque aí temos uma base legal, tanto no âmbito legislativoquanto do ponto de vista de suficiente determinação – algo como acon-tece com a suspensão da habilitação no Código de Trânsito, previstacomo pena restritiva e pode ser uma medida suspensiva. Acho que édiscutível, mas creio que seja possível, e aí não estaríamos criando judi-cialmente uma medida restritiva, o que entendo não pode ser feito, sobpena de violar os princípios constitucionais da segurança jurídica e dalegalidade.

Outro aspecto que também é interessante, apesar de óbvio, mascreio que pode ser feita uma referência, outra condição para a aplicabi-lidade das medidas protetivas de urgência, além da legalidade, seria oprincípio da jurisdicionalidade, ou seja, as medidas protetivas de ur-gência, diferentemente das medidas de caráter administrativo do art.11, que podem ser adotadas pela autoridade policial, as medidas doart. 22 e 23 somente podem ser aplicadas pelo Juiz ou pelo Tribunal –princípio da jurisdicionalidade ou princípio da reserva de jurisdição,que é um princípio constitucional.

Quanto aos pressupostos da aplicação das medidas protetivas de ur-gência, creio que, pela interpretação, em uma hermenêutica sistemáti-ca entre os dispositivos do Código de Processo Penal e também danova Lei, somente caberia a aplicação dessas medidas nos casos emque o boletim de ocorrência esteja apurando um crime doloso. Não ha-veria possibilidade de aplicação de medidas em crime culposo, primeiroporque refoge ao conceito de violência doméstica e também porque, tal

Page 166: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 165

como as medidas mais radicais, como prisão preventiva, somente ca-beria no crime doloso.

Outra questão também, penso em um primeiro momento, não sei oque foi discutido aqui no painel anterior, talvez até seja interessanteos Colegas me fazerem saber, segundo ouvi, o Colega Mário fez men-ção de discutir o problema do princípio acusatório, creio que essas me-didas não podem ser decretadas de ofício, embora possam ser revisa-das ou substituídas. Creio que decretadas, não; apesar de que o Juizpode decretar a medida de prisão preventiva, aquela mais radical, por-que está prevista em lei e que também considero discutível. Creio queno princípio acusatório puro deveria ser banida essa possibilidade –por exemplo, na Espanha a prisão preventiva só pode ser decretadaapós uma audiência prévia, na França também. Creio que aqui é sóuma questão de tempo para termos este sistema. Creio que, então,elas só podem ser concedidas pelo Juiz a requerimento da ofendida oudo Ministério Público.

Também já ouvi opinião no sentido de que se deveria diferenciar sea ação é pública ou privada. Creio que isto é absolutamente contra osistema, porque realmente a vítima tem que, em primeiro lugar, mani-festar se necessita de alguma ordem de proteção, não deixar o Ministé-rio Público fazer uma avaliação ou criar mais um obstáculo formal,procedimental, quando pode ser tarde. Parece-me que é claro. O juízoquer sempre saber se a vítima vai manifestar um desejo de medidasprotetivas.

Quanto aos pressupostos como medida cautelar, quanto à naturezajurídica de medidas protetivas, esse tema é muito difícil, porque envol-veria toda uma discussão que até posso ampliar depois. Hoje se discu-te em relação, por exemplo, à prisão preventiva, se ela realmente seriauma medida cautelar, ou se seria uma pena antecipada.

O certo é que, em alguns aspectos, podemos tentar salvar a prisãocautelar como uma genuína medida cautelar e, em outros, vemos queela é realmente aplicada, de uma maneira inconstitucional, sem dúvi-da, como uma pena antecipada.

O certo é que a prisão preventiva não pode ter finalidades punitivasde prevenção geral, retribuição, vingança, prevenção especial, ou mes-mo prevenção geral positiva, como a teoria funcionalista sistêmica pro-põe, para obter ou recuperar a confiança dos cidadãos no ordenamentojurídico.

Esta é uma função claramente de pena, e os tribunais constitucio-nais comparados e agora recentemente o Supremo Tribunal Federalclaramente têm dito isto: que a prisão punitiva não pode, em nenhumahipótese, ser uma pena antecipada, o que não quer dizer que muitas

Page 167: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

166 – 2º Ciclo de Estudos

vezes ela não seja aplicada dessa maneira, mas, quando se vai ao Su-premo, essa medida vai ser sempre derrubada, porque realmente issoé inconstitucional.

Uma das discussões que há é sobre como vamos entender a medidaprotetiva de urgência do ponto de vista jurídico: seria uma medidacautelar?

Para alguns, é uma medida que, nos seus fins, nos seus pressupos-tos, tem uma similitude com as verdadeiras medidas cautelares pes-soais, e, portanto, ela poderia ser enquadrada entre as medidascautelares.

Já outros autores acreditam que na verdade é uma espécie de medi-da de segurança, uma medida de prevenção em favor da vítima, o quena verdade está sempre com a função não tanto de assegurar o livredesenvolvimento do processo, mas de antecipar as medidas definitivas,no caso, as medidas punitivas.

De qualquer sorte, no caso, tanto para a prisão preventiva, como nocaso das medidas protetivas de urgência, devemos sempre exigir o fu-mus commissi delicti, ou seja, a prova da existência de um crime e indí-cios suficientes da autoria de um fato delitivo enquadrado como violênciadoméstica e familiar. Tem que ser no âmbito da violência doméstica.

Inclusive o § 3º do art. 2º admite como prova um mero boletim deatendimento, ou prontuários de postos de saúde, etc.

Então, a Lei flexibiliza bastante, a meu ver, com razão, esse requisi-to do fumus commissi delicti.

No segundo requisito, tradicionalmente das medidas cautelares, hásempre uma exigência do que chamamos de periculum libertatis, ouseja, a decretação de uma medida cautelar tem sempre que evitar umperigo de deixar a pessoa em liberdade.

Portanto, não é exatamente como acontece no sistema processual ci-vil, em que se fala no fumus boni juris, porque aqui estamos vendo operigo, o risco para a sociedade que pode existir de alguém que pode,no caso, ser deixado sem uma medida restritiva.

Então, alguns autores falam que aqui na verdade não seria um peri-culum libertatis em tema de medidas protetivas, seria o periculum indamnum, ou seja, a existência de um risco objetivo e concreto de danopara a vítima.

Inclusive o Tribunal Constitucional espanhol tem uma decisão bemrecente, em que ele examinou essa questão das medidas de violênciadoméstica. Ele diz que, em um primeiro nível, sem aprofundar muito,salvaguardou a constitucionalidade dessas medidas, mas revogou amedida, porque não havia nos autos uma prova de um risco objetivopara a vítima, e que, portanto, simplesmente com uma medida menos

Page 168: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 167

lesiva que a prisão preventiva, ela não deixa de ser uma medida quevai restringir a liberdade, e, para que isso ocorra, tem que haver umrisco realmente objetivo, o chamado periculum in damnum, para umbem jurídico da vítima.

Aqui também faço uma ressalva. Tenho uma posição um pouco, di-gamos, creio que, mais ou menos, nova, sobre essa questão da prote-ção dos bens jurídicos da vítima, porque, tradicionalmente, quando setrata na prisão preventiva isso é jogado na cláusula indeterminada,que considero que é inconstitucional, da ordem pública.

Creio que somente podemos salvar a constitucionalidade das medi-das de proteção do risco de reiteração – e isso se aplica bastante tantono caso da violência doméstica como de qualquer crime – se trasladar-mos esse requisito da ordem pública para a conveniência da instruçãocriminal.

Por quê? A ordem pública sempre traduz um fim punitivo, ao passoque os dois fins unicamente cautelares são o risco de fuga e a proteçãode fontes de prova.

Então, quando o sujeito ameaça, por exemplo, matar o Juiz, o Pro-motor, a vítima, ou a testemunha, ele está, entre outras coisas, pondoem perigo o próprio processo e muitas vezes, quando se trata da teste-munha ou da vítima, a preservação das fontes de prova. Com isso, nãovamos poder chegar ao final e alcançar a verdade processual, porqueou a pessoa vai ficar com medo ou vai ser morta. Então, nesse caso,teríamos rigorosamente uma medida cautelar voltada para as necessi-dades do processo penal, ao passo que, se colocarmos isso, como mui-tos têm dito, que vamos decretar a prisão, ou qualquer medida restriti-va, para evitar a reiteração delitiva, ou seja, um combate genérico àcriminalidade, vamos utilizar a prisão preventiva como um meio decontrole geral da criminalidade.

Além de ser uma tarefa que incumbe, em primeiro lugar, ao Executi-vo, e não ao Judiciário, isso pode até causar uma certa adesão social,mas realmente é uma distorção da prisão preventiva, que se transfor-ma de prisão cautelar em pena antecipada.

Portanto, entendo que só poderíamos utilizar isso direcionando a pro-teção da vítima aos interesses do processo penal, e, claro, essas medi-das restritivas virão para proteger o interesse da vítima relacionado aodesenvolvimento do processo penal.

Quanto ao prazo máximo, a Lei não menciona qual o prazo que teriade vigência, ou de duração dessas medidas protetivas de urgência. Porseu caráter cautelar, penso que elas teriam a duração máxima vincula-da à subsistência dos requisitos cautelares, notadamente a suaprovisoriedade, que é a cláusula rebus sic stantibus.

Page 169: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

168 – 2º Ciclo de Estudos

Ante a omissão legal, creio que cabe ao Juiz determinar o prazo deduração dessas medidas, tal como fez com a medida mais grave, oumais lesiva, que é a prisão preventiva. De modo que elas terão que du-rar o tempo necessário para alcançar a finalidade instrumental cautelare serão revogadas se desaparecerem as circunstâncias iniciais que alegitimaram.

Em todo caso, penso, em uma reflexão inicial, que haveria dois limi-tes máximos: ou ao término do processo penal, ou até o trânsito emjulgado da sentença definitiva, desde que o Juiz, na sentença, tal comoexiste na sentença condenatória recorrível do art. 594 do CPP, umamotivação cautelar, como de resto é a última jurisprudência do Supre-mo Tribunal Federal. E em qualquer caso, independente dessa vincula-ção propriamente ao processo, já agora tendo como parâmetro umavinculação ao máximo da pena, a sua duração não poderia exceder omáximo da prisão provisória, ou seja, ou 81 dias, ou ainda o prazo má-ximo da pena prevista ou cominada em abstrato.

Um outro aspecto que deve ser também, a meu ver, necessariamen-te esgrimido, utilizado, tal como se faz com a prisão cautelar ou a pri-são provisória, seria o princípio da proporcionalidade.

O princípio da proporcionalidade, como sabemos, é um princípio quenão está escrito na Constituição Federal, mas todos os autores, todosos tribunais constitucionais dizem que ele deriva dos próprios direitosfundamentais.

Aliás, neste aspecto eu discordo da Colega que mencionou a questãoda proteção de insuficiência. Esse é um tema que estamos começandoa discutir, mas penso que a proteção da insuficiência só tem uma legí-tima aplicação nos direitos fundamentais sociais, no art. 6º da Consti-tuição Federal: a mínima existência, o direito à saúde, etc.

Entendo que não podemos recorrer, em matéria de privação de liber-dade, ao princípio da insuficiência, porque ele é incompatível com o Di-reito Penal liberal.

Penso que a legitimidade dessa Lei, para que ela não se transformerealmente em uma Lei simbólica e contrária ao sistema constitucional,tem que ter uma aplicação equilibrada. Precisa ter uma base legal, umafinalidade constitucionalmente legítima, ter limites, ela tem que seraplicada de maneira motivada pelo Juiz, tudo dentro dos cânones cons-titucionais. Do contrário, ela poderá, como diz o Professor WinfriedHassemer, Vice-Presidente do Tribunal Constitucional Alemão, ter umaadesão imediata, mas, a longo prazo, ela vai perder a sua credibilidade.

Então, essa Lei, que considero que é uma Lei legítima, justa e ne-cessária para o controle da violência, tem que ter o seu diapasão pelosdireitos fundamentais.

Page 170: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 169

Aliás, penso, qualquer sistema jurídico, tanto o penal, como o pro-cessual penal, qualquer área – é como os grandes mestres ensinam, eos tribunais constitucionais têm dado lições diariamente – só pode sub-sistir de acordo com os direitos fundamentais, porque isso é a base dosistema jurídico, é a base da Constituição.

Se lermos Jürgen Habermas, por exemplo, e o Claus Roxin também,que é o maior penalista alemão, veremos que o sistema jurídico estábaseado na faticidade e na validez, ou seja, o prisma da legalidade e oprisma da argumentação racional.

Quer dizer, não há como fugirmos disso aí, e o Roxin diz que está noequilíbrio entre o interesse coletivo e o interesse individual, somenteassim pode subsistir o Direito, como é a regra no fim da proporcionali-dade.

Esse princípio da proporcionalidade, que se deriva do estado demo-crático de direito, tem essa cláusula da idoneidade, ou seja, a medidatem que ser idônea, para atingir o fim visado pelo legislador. O Juizsempre tem que examinar o sistema legislativo e ver se não há umamedida menos lesiva à qual ele possa recorrer ou utilizar com a mes-ma eficácia. Se isso for possível, ele não pode usar a medida mais le-siva.

Portanto, aqui já podemos perceber que, apesar dessa nova, diga-mos, aparente, novidade de que a prisão preventiva também cabe noâmbito da violência doméstica, creio que houve uma chuva no molha-do, porque creio que, em 99,9% dos casos, essas medidas protetivasde urgência são absolutamente idôneas, adequadas e proporcionadasem sentido estrito.

A ponderação de valores, como diz o Alexy, vai ser feita aqui de ma-neira que essas medidas sempre terão a preferência. Claro que, em al-guns casos mais graves, por exemplo, o sujeito está tentando váriasvezes matar a mulher, várias tentativas de homicídio, é claro que ca-berá a prisão preventiva, mas não precisava uma regra aqui na Lei deViolência Doméstica, porque as regras do Código de Processo Penal jásuficientemente dispõem sobre o assunto.

Em todo caso, penso que o legislador, nesse ponto, apesar de serrepetitivo, foi prudente, porque estabeleceu que cabe a prisão preven-tiva para garantir a execução das medidas protetivas de urgência e sónesse caso.

Ou seja, no âmbito da violência doméstica, a prisão preventiva vemcomo soldado de reserva, um último recurso, só quando essas medidasfracassarem, porque, na maioria dos casos, creio, essas medidas serãosuficientes: retirar a arma, proibir que se aproxime, proibir contato,etc.

Page 171: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

170 – 2º Ciclo de Estudos

Penso que aí vem a legitimidade dessa Lei, entre outros aspectos,justamente proteger a mulher, enfim, as vítimas de violência doméstica,que estavam realmente em uma lacuna jurídica. Não se podia nemaplicar a preventiva, e simplesmente tinham que ser vítimas inocentesde uma violência cada vez mais crescente.

De maneira que creio que há de se interpretar – e já estou prestesa finalizar – essas medidas, e, portanto, a prisão preventiva, da se-guinte maneira: se olharmos, por exemplo, a lesão corporal leve eameaças, são crimes que não chegam a superar 03 anos como penamáxima.

Se virmos esse tipo de regulação, sob a ótica do princípio da propor-cionalidade, perceberemos tal como já estava previsto em 98, quandohouve a reforma das penas restritivas, que não cabe pena restritivaquando houver violência ou grave ameaça contra a pessoa, e agoratambém, como isso se encaixa no conceito de violência, todas essasformas de agressão doméstica, ficaria afastada a possibilidade de umapena restritiva.

Entretanto, paradoxalmente, o sursis, a suspensão condicional dapena, voltou a ter agora um lugar quase, digamos, de destaque, demaneira que, se o Juiz antevê, porque dificilmente a pena vai chegarao máximo, que, nesses crimes mais cotidianos, mais banais – claro,não homicídio ou um outro caso mais grave –, essa pena final seriauma pena que não ensejaria no caso, por exemplo, uma privação de li-berdade, por exemplo, o sujeito seria beneficiado com o regime aberto,uma pena até 04 anos, se não for reincidente, ou então se couber aprópria suspensão condicional da pena, não teria, a meu ver, nenhumapossibilidade, à luz do princípio da proporcionalidade, de se aplicaruma medida radical como é a prisão preventiva.

Só caberiam obviamente essas medidas protetivas de urgência, asquais também vão se submeter ao critério da proporcionalidade.

De maneira que temos, no sistema jurídico, alguns limites ou algu-mas regras: crime doloso tem que ser uma pena realmente que justifi-que uma medida mais lesiva, e ainda que essas medidas protetivas se-jam insuficientes, e somente aí caberá a prisão preventiva.

De modo que finalizo dizendo que, se, de um lado, a prisão, ou me-lhor, esse retorno da vítima ao processo penal deve ser saudado comouma medida altamente justa, correta e que, digamos, atende à moder-na política criminal européia nesta matéria, por outro lado, devemoster o cuidado – pelo menos neste aspecto aqui, não digo em todos daLei, estou examinando mais a questão das medidas cautelares – de nãocair nessa tentação talvez inconsciente do legislador de incitar ao usosimbólico de medidas como a prisão preventiva para controle, uma re-ceita contra a violência doméstica.

Page 172: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 171

Essas medidas inserem-se em uma tendência de política criminal deproteger, desde o início, as vítimas da violência doméstica, mas elaspodem, se não tivermos um cuidado bastante preciso, descaracterizar aessência das medidas cautelares, deixando transluzir um aspecto, umcaráter repressivo, incompatível com as exigências constitucionais,uma vez que a solução mais adequada e eficaz é o julgamento rápidodesses fatos.

Muito obrigado.

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Muito bem. Perguntas, pon-derações, divergências?

PLATÉIA – O que percebemos é que há três aspectos bem expres-sos pela Lei. Ela é bastante clara, fala na lesão corporal, nas contra-venções, no crime de ameaça e nos delitos contra a honra e, no art.44, menciona expressamente a lesão corporal.

No art. 41, diz todos os crimes praticados com violência, e lá no art.7º fala, de uma maneira geral, em toda espécie de perturbação. Entãoestaria incluída também a perturbação à tranqüilidade.

Fala também no delito de ameaça e fala nos delitos contra a honra,no inc. V. O quinto e o sétimo é delito contra a honra. O inc. II do art.7º é ameaça.

Então, como ficaria, o que o Senhor vê, a Mesa, no caso, como seriaesse procedimento?

Se não se aplica mais a Lei nº 9.099, que vínhamos aplicando nosdelitos contra a honra – o delito contra a honra seguia esse procedi-mento –, como o Senhor entende?

Eu, pessoalmente, entendo que tudo é violência doméstica.Fiquei espantada, preocupada, porque, em uma reunião com os De-

legados, um Delegado disse assim: “Não, não vou instaurar um inqué-rito policial, porque entendo que isso é uma contravenção, ele estáperturbando a tranqüilidade dessa mulher”.

Eu disse: “Mas, Doutor, isto aqui está inserido no art. 7º”. Como oSenhor bem mencionou, Des. Odone Sanguiné, são todos esses delitos.Mas há delegados que estão entendendo que isso seria uma contraven-ção, até uma simples vias de fato. Eu digo: “Mas isso não é mais, ago-ra tudo é violência doméstica”.

Os Senhores não são da mesma opinião? A Lei é expressa, fala emlesão corporal, injúria, calúnia e difamação, ameaça e perturbação, en-tão, estariam incluídas as contravenções.

Ele diz que o art. 41 só fala em crimes, então ele só vai instaurar oinquérito quando for crime, e o resto ele entende como contravenção.Interessante isso.

Page 173: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

172 – 2º Ciclo de Estudos

DES. ODONE SANGUINÉ – Eu realmente não tive tempo paraabordar e nem para estudar este aspecto, porque estou no Cível comuma carga de trabalho, fizemos sessão de 500 processos agora quar-ta-feira, para vocês terem uma idéia. Quer dizer, é uma coisa assimde enlouquecer, mas aceitei o convite do Colega mais para não serindelicado.

Então, fixei-me só nesse ponto, que penso que já oferece bastanteproblema.

Em todo caso, arrisco-me a dizer (gostaria de ouvir os Colegas, etalvez de manhã ou no início da tarde tenham feito já essas aborda-gens), parece-me que, com a modificação da Lei nº 9.099, houve umamodificação, há poucos meses, que eliminou a exigência de procedi-mento especial. É que agora realmente é até 02 anos, e isto veio tam-bém dar razão a que no fundo a lei federal não tinha ampliado o con-ceito de infração de menor potencial ofensivo, por isso é que uma leifederal nova veio dizer que era até 02 anos; aquela Lei do Juizado Es-pecial Federal, na verdade, foi interpretação por isonomia, mas não foio objetivo dela alterar a Lei nº 9.099.

Porém, quando foi feita essa alteração – expressamente diz até 02anos, ou seja, o mesmo patamar do Juizado Especial Federal –, limpou--se aquele texto também para regular a conexão de crimes, no sentidode que independente se tem procedimento especial, se não estou enga-nado, e creio que ficaram indubitavelmente incluídas as contravenções.

Se as contravenções fazem parte do Juizado Especial e se a Lei dizque não se aplica a violência doméstica ao Juizado Especial, creio quea única interpretação é essa.

Inclusive, creio que o Colega Mário mencionou que tem um posicio-namento diferente, que pensa que a contravenção não entraria. Não seise entendi mal, mas acredito que a interpretação da Lei não pode seroutra, porque a violência doméstica tem formas sutis, uma pessoapode ser cruel psicologicamente sem encostar um dedo, pode massa-crar uma pessoa, durante muito tempo, psiquicamente, das mais varia-das formas de opressão, e não se pode deixar imune isso.

Então, creio que estaria incluído, em uma reflexão inicial, porque,volto a dizer, não me ocupei disso aqui. Gostaria de ouvir os Colegas,inclusive, talvez mais propriamente poderiam esclarecer.

DES. MÁRIO JOSÉ GOMES PEREIRA – Quanto ao art. 41, não medetive muito em aprofundar a investigação, mas os princípios interpre-tativos em matéria penal recomendam que não se interpreteampliativamente o que está dito na Lei.

Page 174: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

2º Ciclo de Estudos – 173

Se o art. 41 diz que aos crimes praticados não se aplica a Lei nº9.099, ao menos sob o ponto de vista da literalidade, só posso concluirque as contravenções estão excluídas. De modo que não vejo como,em matéria penal, se ampliar essa interpretação, talvez in malam par-tem ou coisa do gênero.

DES. ODONE SANGUINÉ – Dr. Mário, me permite? Penso que peloart. 41 literalmente nós chegaríamos, sem dúvida. Sua conclusão éperfeita. Só que penso que temos que fazer na Lei uma interpretaçãomais teleológica. Então, nós teríamos que conjugar o 4º com o 7º, e eunão estou seguro se nós poderíamos chegar a essa interpretação. Pare-ce-me que sim, mas deixaríamos uma lacuna que, por todas as normasda legislação, não parece querer ter excluído. Pode ser uma improprie-dade, como essa da própria representação.

DES. MÁRIO JOSÉ GOMES PEREIRA – Sim, tem o art. 16 em con-tradição ao art. 41. O art. 41 está no capítulo das disposições finais, ea minha primeira leitura é a de que o legislador quis expressamenteexcluir as contravenções; agora, não se nega que numa interpretaçãosistemática, tendo em vista os valores que se pretende tutelar, poderiamabarcar as contravenções.

DESª MARIA BERENICE DIAS – Eminente Colega, não fizeste refe-rência a respeito da lesão corporal do § 9º do art. 129, se há necessi-dade ou não da representação para o desencadeamento da possibilida-de da renúncia ou da desistência.

DES. ODONE SANGUINÉ – Não tive tempo de me deter muito nesteaspecto, mas inicialmente também acho que não houve essa modifica-ção de tornar incondicionada pelo sistema. Compartilho com o que oColega Mário expôs e a Colega Jane também expôs.

DES. IVAN LEOMAR BRUXEL – Nessa questão das contravenções,penso que o art. 5º coloca as contravenções dentro do sistema aquitambém.

Estou pensando e gostaria de ouvir se os Colegas concordam comi-go. Quando se fala em violência, se pensa em agressão física, masaqui, no art. 7º, quando fala na violência psicológica, seguramente, ameu ver, por enquanto inclui calúnia, difamação e injúria. De maneiraque estes fatos, desta natureza, ocorridos no âmbito doméstico irãosair do Juizado Especial Criminal também.

Page 175: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO

174 – 2º Ciclo de Estudos

Por exemplo, se o sujeito briga com a namorada e a chama de vaga-bunda, com todo o respeito, e ela, em contrapartida, o chama de cor-no, o processo irá todo para o mesmo lugar pela conexão. Claro, emprincípio um só será condenado.

A calúnia, a difamação e a injúria, em grande parte das situações,aparentemente, irão sair do Juizado Especial Criminal também.

DRA. JANE MARIA KÖHLER VIDAL – Parece-me que o entendi-mento entre os Colegas é justamente esse. No âmbito da violência do-méstica a demanda irá para o Juizado.

DES. ODONE SANGUINÉ – Aliás, alguns criticam a palavra Juizado,acham que deveria ter sido Vara de Violência Doméstica Familiar, e nãoJuizado.

Alguns acham que é complicado, porque um dos problemas que po-deria ser atacado é se precisa uma Lei estadual ou se poderia ser poruma resolução do Tribunal. É um outro aspecto, e certamente haveráalguma impugnação. A Lei tem muitas impropriedades, fala até em ter-ritórios, não é?

DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS – Damos, então, por encerra-do e convidamos todos para, no dia 12, às 17h30min, no térreo doForo Central, a instalação do nosso Juizado de Violência Doméstica.

Agradecemos a presença de todos e encerramos mais este evento.

Page 176: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO
Page 177: 2º CICLO DE ESTUDOS...1 Porto Alegre – novembro de 2007 2º CICLO DE ESTUDOS LEI DE TÓXICOS LEI Nº 11.343/06 LEI MARIA DA PENHA LEI Nº 11.340/06 TRIBUNAL DE JUSTIÇA-RS CENTRO