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2 Aspectos Teóricos: Ideias, Instituições e Lideranças na Formulação de Políticas Públicas A proposta contida neste capítulo é a de apresentar os pressupostos teóricos que informaram a pesquisa. Pretendemos esclarecer quais são as principais abordagens, categorias e conceitos tomados da Análise de Política Externa (geral e brasileira), do pensamento econômico brasileiro e dos estudos de Economia Política Comparada que nos permitirão demonstrar, mais adiante, a importância da “ideia do desenvolvimento” na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual no Brasil – particularmente a política externa e a política industrial - durante os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva (1995-2010). As discussões teóricas aqui apresentadas nos auxiliam a verificar que embora ideias exerçam impacto decisivo na formulação de políticas, não podem ser compreendidas fora do ambiente institucional em que operam. É preciso examinar de que modo instituições podem interferir na forma como novas ideias são assimiladas ou não. Novas ideias podem se encerrar definitivamente no ambiente institucional e estimular mudanças de longo prazo e duradouras, como podem muito bem ser refratadas e não exercer grande influência. Estas discussões foram desenvolvidas em dois níveis de formulação de políticas públicas – o da política externa e o da política industrial. O referencial examinado permitirá avaliar, posteriormente, como instituições estatais reagiram a diferentes ideias sobre o desenvolvimento, durante os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, e como tais diferenças repercutiram na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual. O ambiente institucional não deve ser entendido exclusivamente em termos materiais. Ideias são também instituições, isto é, são “hábitos de pensamento difundidos e não perceptíveis” (CRUZ, 2008b, p. 188). 10 É por esta razão que, ao tratarmos de instituições, nos referimos também a esta acepção mais 10 A frase de Murillo Cruz, Professor do Instituto de Economia da UFRJ, alude ao pensamento do teórico social e economista político Thorstein Veblen, um dos expoentes da Escola Institucionalista na Economia Política.

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2 Aspectos Teóricos: Ideias, Instituições e Lideranças na Formulação de Políticas Públicas

A proposta contida neste capítulo é a de apresentar os pressupostos

teóricos que informaram a pesquisa. Pretendemos esclarecer quais são as

principais abordagens, categorias e conceitos tomados da Análise de Política

Externa (geral e brasileira), do pensamento econômico brasileiro e dos estudos de

Economia Política Comparada que nos permitirão demonstrar, mais adiante, a

importância da “ideia do desenvolvimento” na formulação de políticas públicas de

propriedade intelectual no Brasil – particularmente a política externa e a política

industrial - durante os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula

da Silva (1995-2010).

As discussões teóricas aqui apresentadas nos auxiliam a verificar que

embora ideias exerçam impacto decisivo na formulação de políticas, não podem

ser compreendidas fora do ambiente institucional em que operam. É preciso

examinar de que modo instituições podem interferir na forma como novas ideias

são assimiladas ou não. Novas ideias podem se encerrar definitivamente no

ambiente institucional e estimular mudanças de longo prazo e duradouras, como

podem muito bem ser refratadas e não exercer grande influência. Estas discussões

foram desenvolvidas em dois níveis de formulação de políticas públicas – o da

política externa e o da política industrial. O referencial examinado permitirá

avaliar, posteriormente, como instituições estatais reagiram a diferentes ideias

sobre o desenvolvimento, durante os Governos Fernando Henrique Cardoso e

Luiz Inácio Lula da Silva, e como tais diferenças repercutiram na formulação de

políticas públicas de propriedade intelectual.

O ambiente institucional não deve ser entendido exclusivamente em

termos materiais. Ideias são também instituições, isto é, são “hábitos de

pensamento difundidos e não perceptíveis” (CRUZ, 2008b, p. 188).10 É por esta

razão que, ao tratarmos de instituições, nos referimos também a esta acepção mais

10 A frase de Murillo Cruz, Professor do Instituto de Economia da UFRJ, alude ao pensamento do teórico social e economista político Thorstein Veblen, um dos expoentes da Escola Institucionalista na Economia Política.

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ampla, ideacional. Assim, não basta examinar as instituições do Estado no sentido

material. É necessário compreender quem são alguns dos tomadores de decisão

que ocupam postos-chaves no Governo, suas histórias de vida e o que pensam e

quem são os possíveis acadêmicos, conselheiros ou formuladores de políticas que

os influenciam.11

Instituições refletem pensamentos e valores de indivíduos. Embora as

ideias e as instituições sejam vitais para analisar o processo de formulação de

políticas públicas, há igualmente uma dimensão cognitiva, relacionada aos

atributos da personalidade de alguns dos principais tomadores de decisão ou

líderes, que não pode ser desconsiderada. Assim, entendemos que, além das

instituições, determinadas lideranças individuais também atuaram como variáveis

intervenientes entre as ideias e a formulação de políticas públicas de propriedade

intelectual durante os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula

da Silva.

A proposta então é a de empreender um exame das políticas públicas de

propriedade intelectual no Brasil em duas frentes: no campo da política externa e

no da política industrial. Em termos teóricos, examinamos inicialmente o

“institucionalismo racional” de GOLDSTEIN & KEOHANE (1993) para verificar

como as ideias, entendidas como crenças sustentadas por indivíduos, podem afetar

o processo de formulação da política externa. Já o “institucionalismo histórico” de

autores como HALL (1989) e McNAMARA (1999) e a abordagem cognitivo-

institucionalista de FINNEMORE (1997) e SIKKINK (1991; 1997) constituem o

instrumental preferencial para compreender como instituições e lideranças

influenciaram o processo de formulação de políticas públicas de propriedade

intelectual no Brasil, entre 1995 e 2010. Auxilia-nos a desvelar porque

determinadas ideias sobre o desenvolvimento (e sua relação com a propriedade

intelectual) encontraram ambiente mais adequado para a sua adoção no Governo

11 É preciso, igualmente, admitir que qualquer ideia nova, antes de exercer influência na formulação de políticas, encontra um ambiente ideacional anterior, intersubjetivo, que condiciona também a receptividade que aquela ideia vai receber. Neste ponto, os conceitos de “natureza do discurso político” e de “persuasão” em HALL (1989) foram fundamentais. No que se refere especificamente à política externa, terminologicamente optamos por trabalhar com o conceito de “vetor ideacional”, ao invés de “paradigmas”, por razões explicitadas adiante.

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Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), em contraste com o Governo Fernando

Henrique Cardoso (1995-2002), quando encontraram notável resistência12.

Este capítulo está dividido em mais seis partes. Na próxima, dedicamo-nos

a apresentar alguns conceitos e esclarecimentos preliminares. Em seguida,

dispomo-nos a refletir sobre o lócus ocupado pela Análise de Política Externa no

campo mais amplo da disciplina de Relações Internacionais, com destaque para as

limitações das abordagens teóricas mais tradicionais – o (neo)realismo e o

institucionalismo neoliberal – na interpretação do comportamento estatal, dada a

pouca ou inexistente relevância conferida aos fatores ideacionais.

Ainda neste tópico, discutimos como GOLDSTEIN & KEOHANE (1993)

nos permitem compreender o impacto que ideias podem exercer na formulação da

política externa, não obstante as críticas que invariavelmente apontam para a

aceitação, pelos autores, da premissa de que indivíduos (os tomadores de decisão)

sempre atuam racionalmente. Procuramos conceituar as ideias, não obstante as

dificuldades de ordem epistemológica de separá-las da categoria dos “interesses”.

Examinamos também o “institucionalismo histórico” em suas

características mais amplas e a contribuição de HALL (1989) para dimensionar a

influência das ideias na formulação de políticas públicas de propriedade

intelectual no Brasil entre 1995 e 2010 e no sentido de averiguar como se dá o

processo de incorporação dessas ideais nas instituições estatais.

Tratamos, após, de caracterizar o “desenvolvimento” como ideia

econômica e vetor ideacional da política externa brasileira, bem como de resgatar

a trajetória intelectual de sua apropriação pelas mais diferentes correntes teóricas

do pensamento econômico brasileiro. Assim, o neoliberalismo e o

desenvolvimentismo (com suas diferentes correntes) tendem a conferir

tratamentos bastante distintos à ideia do desenvolvimento, o que repercute de

forma significativa na formulação de políticas.

Na parte seguinte, apresentamos algumas reflexões sobre o lugar conferido

às instituições e às lideranças individuais no processo de formulação de políticas

públicas. Defendemos que não é possível discutir as ideias sem compreender o 12 A todo esse aparato somamos análises desenvolvidas por estudiosos de política externa brasileira e do pensamento econômico brasileiro. Embora o trabalho de GOLDSTEIN & KEOHANE (1993) pertença originalmente ao campo de Análise de Política Externa e os dos demais autores ao de Economia Política, optamos pela comunicabilidade entre estas literaturas para a construção de nosso referencial teórico. Entende-se que o diálogo entre estas duas literaturas é pródigo em possibilidades analíticas.

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papel interveniente desempenhado por algumas instituições e lideranças

individuais que afetam diretamente a forma como aquelas são transmitidas. O

poder de persuasão das ideias é passível de interferências de algumas lideranças

individuais e de alguns de seus atributos pessoais como a “história de vida”, a

desenvoltura, a eloquência, a capacidade argumentativa, o carisma e a

credibilidade. Destes atributos depende muito o alcance que as ideias podem ter

na formulação de políticas públicas, quando se infiltram nas instituições.

O conceito de persuasão, desenvolvido por HALL (1989), revela como

lideranças individuais podem muitas vezes contribuir para o fracasso ou a

aceitação de ideias. No caso em exame, tanto no que tange à política externa de

propriedade intelectual, quanto à política industrial, entendemos que lideranças

individuais exerceram papel proeminente.

O capítulo se encerra com uma síntese do aparato teórico apresentado, de

natureza essencialmente ideacional. Frise-se que não se trata de negar às

abordagens materiais sua validade explicativa, mas apenas de sublinhar como

aspectos ideacionais também podem contribuir para o entendimento de

formulação de políticas públicas de propriedade intelectual no Brasil, como a

política externa e a política industrial.

2.1 Considerações e Esclarecimentos Preliminares

Apresentam-se aqui duas considerações ou esclarecimentos preliminares,

ambos de natureza analítico-conceitual. O objetivo é caracterizar a política externa

e a política industrial como políticas públicas. Após, justifica-se o porquê da

investigação lidar apenas com a fase de “formulação” ou “adoção” de políticas

públicas de propriedade intelectual, e não com a fase de “execução” ou

“implementação”.

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2.1.1 A Política Externa e a Política Industrial como Políticas Públicas

A caracterização da política externa e da política industrial como espécies

do gênero “políticas públicas” demanda, obviamente, certos esclarecimentos de

ordem conceitual. Enfim, o que são políticas públicas? E, mais precisamente, o

que entendemos por política externa e política industrial? Por que ambas podem

ser caracterizadas como políticas públicas?

De acordo com MARTINS (2003, p. 13) políticas públicas são:

[...] um conjunto articulado e estruturado de ações e incentivos que buscam alterar uma realidade em resposta a demandas e interesses dos atores envolvidos. Uma política pública é fruto de um processo de decisão política, usualmente consubstanciado em uma disposição normativa (lei, decreto, documento de governo ou outra forma de policy outcome) que demanda competência autorizativa no âmbito governamental (executivo ou, na maior parte das vezes, executivo e legislativo). As políticas públicas dispõem usualmente sobre “o que fazer” (ações), “onde chegar” (objetivos relacionados ao estados de coisas que se pretende alterar) e “como fazer” (princípios e macro-estratégias de ação). LIMA (2010) também discute o conceito de políticas públicas e reflete

sobre a possibilidade da política externa poder ou não ser caracterizada como tal.

Segundo LIMA (ibid.), a definição clássica de política pública é a do “Estado em

ação”. Ressalta também o traço autorizativo que demarca as políticas públicas, ou

seja, a necessidade de que haja a chancela ou a sanção do Estado para que aquelas

sejam formuladas e implementadas (ibid.). LIMA enfatiza que, mesmo as ações

do Estado que resultam em acordos internacionais, para que sejam legitimadas no

plano doméstico, devem ser autorizadas pelas autoridades competentes, neste

caso, o Congresso Nacional (ibid).13

LIMA aponta, ainda, para uma tendência que estaria contribuindo para

aproximar cada vez mais a política externa da dimensão das políticas públicas: o

da “politização da política externa” (ibid.). Trata-se de fenômeno recente e

gradual do cenário político brasileiro, a partir da redemocratização e da inserção

13 A abordagem de PUTNAM (1988) sobre o jogo de dois níveis é um exemplo da necessidade da formação de “coalizões vencedoras” no plano doméstico para a aprovação de acordos internacionais. A proposta do autor decompõe o processo decisório de política externa em dois níveis: o nível I, o da barganha entre negociadores no plano internacional; e o nível II, das discussões na esfera doméstica, acerca do consentimento para as propostas do Executivo.

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do Brasil no processo de globalização da economia via políticas liberalizantes,

que estimulou o processo de gradual incorporação das questões externas à agenda

de políticas domésticas por meio da mobilização de diferentes grupos de interesse

nacionais que, antes, não se sentiam incentivados a tentar participar de forma

proeminente do processo de formulação da política externa, tradicionalmente

insulado no Itamaraty.14 Enfim, a partir da redemocratização nos anos 80 e da

abertura econômica nos anos 90, a tarefa da diplomacia brasileira deixou de ser a

de representar interesses antes presumidos como unânimes no plano internacional.

A missão tornou-se mais complexa e passou a ter que considerar a defesa de

interesses setoriais, por vezes concorrentes, com maior ou menos acesso aos

canais de decisão na formulação da política externa, inserindo a atividade

diplomática no conflito distributivo (LIMA, 2000). Os assuntos externos

brasileiros, portanto, tornaram-se objeto de debate e controvérsia na política

doméstica de uma forma que não era no passado e divergências intra-burocráticas

sobre quais devem ser as prioridades da política externa também se tornaram mais

frequentes (LIMA & HIRST, 2006, p. 37).

Mesmo assim, LIMA (2005, op. cit, p. 16) admite que uma diferença entre

a política externa e as demais políticas públicas é que as iniciativas da primeira

ainda são menos dependentes de condicionamentos orçamentários e metas

macroeconômicas como, por exemplo, o superávit fiscal. Há maior grau de

liberdade para mudar o rumo da política externa porque ela é menos dependente 14 Há que se ressaltar que estudos recentes como o de NOGUEIRA (2007) demonstram que, embora o processo de liberalização política e econômica tenha contribuído para a criação de condições mais favoráveis à pluralização do processo decisório da política externa brasileira, a incorporação a este das preferências de novos atores depende, em grande medida, do acesso destes aos canais decisórios, ou seja, de arranjos institucionais que são capazes de potencializar ou frear os estímulos à descentralização na tomada de decisões. Enfim, apesar da tendência em países democráticos ser a de uma maior pluralização do processo decisório da política externa e de incorporação das preferências dos atores domésticos, pode-se configurar um cenário em que as instituições mais dificultam aquele processo do que estimulam. No Brasil, apesar da ampliação do processo decisório para outras elites burocráticas e agências do Estado, reafirma-se a tendência de concentração do Poder Executivo no processo decisório, sendo reservado ainda ao Itamaraty protagonismo. Em interessante análise dobre a Diplomacia do Gás no Governo Fernando Henrique Cardoso, NOGUEIRA (ibid, p. 59-60) conclui que a liberalização política não significou uma automática ampliação do número de atores participantes do processo decisório de política externa. Apesar da politização das questões internacionais, o acesso de grupos de interesse, enfim, de novos atores, às arenas de decisão obedecem a um padrão seletivo no qual a incorporação das preferências se verifica apenas quando há convergência e aproximação de propósitos como Executivo. Sobre esta conclusão, sugerimos ainda a leitura de interessante paper de PINHEIRO, NOGUEIRA e MACEDO (2007). Ver também HOLM (1990), KAHLER (1997) que demonstram como a democratização do processo decisório de política externa é ainda uma questão a ser discutida em todos os países democráticos, inclusive os dos países do Ocidente.

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da capacidade de coordenação política e de gestão administrativa do que outras

políticas públicas, já que é conduzida por burocracias especializadas e com

capacidade administrativa instalada (ibid, p. 16).

DA SILVA, ESPÉCIE e VITALE (2010, p. 8) demonstram que, se por um

lado, o conceito de política externa é fortemente influenciado pelas correntes

teóricas de análise das relações internacionais, por outro, emergiu outro enfoque

capaz de impactá-lo, o de uma nova linha de pesquisa surgida nos Estados Unidos

da América, baseada na análise de políticas públicas. Isso ocorre em um momento

histórico em que os Estados deixam de deter o monopólio das comunicações com

os atores externos (ibid, p. 9):

Com efeito, com a globalização, resultante da transnacionalização produtiva, financeira e cultural, acompanhada da revolução tecnocientífica, a discussão evoluiu, de forma que, uma vez desmistificada,a política externa é considerada apenas mais uma entre as políticas de governo, resultado do embate entre as coalizões de forças domésticas. De modo complementar, entende-se que as políticas interna, externa e internacional compõem um continuum do processo decisório poliárquico.15 Por esta razão, uma política pública integral deve ser pensada não apenas em seus imperativos nacionais, mas em termos de utilização dos espaços internacionais relacionados.16 (grifamos) Assim, em um contexto em que as políticas internas se tornam cada vez

mais internacionalizadas e a política internacional é progressivamente

internalizada, passa-se a compreender a política externa não mais apenas como as

relações mantidas pelo Estado com Estados estrangeiros, para ampliar o conceito,

de forma a reconhecê-la como o “conjunto de programas mantidos por um ator

com atores estrangeiros; ampliando-se, assim, os atores que poderão ser

interlocutores (não apenas Estados, mas também uniões aduaneiras, organizações

internacionais, etc.) e os temas envolvidos” (ibid, p. 9).17

15 As autoras afirmam que tal termo passou a ser amplamente utilizado a partir do trabalho de MILNER (1997). 16 Entendemos que a diplomacia do Governo Lula visou, no campo das negociações internacionais em matéria de propriedade intelectual, seguir esta tendência de sinergia entre imperativos nacionais e a utilização de espaços internacionais relacionados ao valer-se da política industrial como forma de fortalecer a posição da diplomacia brasileira nos principais organismos multilaterais. 17 Assim como os autores mencionados na nota 14, as autoras também ressaltam (ibid, p. 10-11) como a diluição entre o interno e o internacional contribuiu para que o processo decisório de política externa passasse também a compreender outros órgãos do Executivo Federal. Esta emergência de novos atores que passam, de certa forma, a rivalizar com o MRE na condução da política externa, levaria à possibilidade de mais incoerências na formulação de políticas, favorecidas ainda por problemas estruturais enfrentados pelas chancelarias como a formação

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No mesmo sentido, HILL (2003) salienta a necessidade de romper com a

associação da política externa a interesses nacionais auto-evidentes. Num mundo

onde importantes disputas internacionais se dão em torno dos temas mais diversos

e específicos como o preço das bananas ou a imigração ilegal, seria absurdo

concentrar a análise da política externa apenas nas relações entre os serviços

diplomáticos nacionais. Embora estes tentem alcançar o status de gatekkepers, na

prática tem que se render às evidências cada vez mais presentes do exercício de

uma ‘diplomacia paralela’ por parte de colegas de outros ministérios e agências

estatais (ibid, p. 4).

Desta forma, a política externa é apresentada por HILL, em uma breve

definição, como “a soma das relações externas oficiais conduzidas por um ator

independente (habitualmente o Estado)” (ibid, p. 3). A definição alude a “ator

independente” para permitir a inclusão de fenômenos como a União Européia

(UE); reporta-se às relações externas “oficiais” porque permite a inclusão de

resultados obtidos por todas as partes dos mecanismos governamentais do Estado

ou de empresas, enquanto ainda mantém parcimônia em relação ao amplo número

de transações internacionais que agora são conduzidas; e ainda, a política é

considerada a “soma” dessas relações oficiais porque, se fosse de outra forma,

qualquer ação particular poderia ser vista como uma política externa em separado.

Finalmente, a política é “externa” porque o mundo ainda é mais dividido em

distintas comunidades do que uma entidade singular e homogênea. Tais

comunidades necessitam de estratégias para lidar com estrangeiros (ou estranhos)

em seus variados aspectos (ibid, p. 3).

Traçando o objetivo de estimular discussão sobre a extensão por meio da

qual a política externa formulada e conduzida pelos governos nacionais lida com o

que denominam de “mundo em transformação”, WEBBER e SMITH (2002, p. 2)

apresentam a seguinte definição:

A Política Externa é composta de objetivos perseguidos, conjuntos de valores, decisões tomadas e ações cometidas pelos Estados e governos nacionais agindo a seu favor, no contexto das relações externas das sociedades nacionais. Ela constitui uma tentativa de planejar, lidar com e controlar as relações externas das sociedades nacionais.18

generalista do corpo diplomático (em contraposição à necessidade de formações técnicas cada vez mais específicas, encontradas nos ministérios temáticos). 18 Tradução livre do original: Foreign Policy is composed of the goals sought, values set, decisions made and actions taken by states and national governments acting on their behalf, in the context of

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Entre os fundamentos apresentados na abordagem que apresentam para o

estudo da política externa, WEBBER e SMITH enfatizam que ela implica na

capacidade de distinguir a política doméstica das relações externas das sociedades

nacionais, e de formar políticas direcionadas a ‘alvos’ externos (ibid, p. 3). Este

postulado levanta questionamentos sobre como o ‘externo’ é definido e

perseguido num mundo crescentemente interconectado (ibid, p. 3). Daí que, ao se

estudar política externa, inevitavelmente há uma confrontação com a relação entre

“política nacional” e “política internacional” e entre a política pública em nível

nacional e as formas pelas quais ela é projetada para além (ibid, p. 4). Desta

forma, a política externa é reconhecida como capaz de projetar outras políticas

públicas, a princípio vistas como exclusivamente “nacionais”.

Além da política externa poder ser caracterizada como uma política

pública como todas as demais19, para ser considerada como bem sucedida, ou seja,

com real influência nas negociações internacionais, deve conseguir trazer

resultados positivos em termos de políticas públicas domésticas. Da mesma

forma, políticas públicas bem sucedidas podem reforçar a posição negociadora

brasileira (OLIVEIRA, ONUKI & VEIGA, 2006, p. 2). 20 É necessária, portanto,

the external relations of national societies. It constitutes an attempt to design, manage and control the foreign relations of national societies. 19 Destaque-se declaração do ex-Chanceler Celso Amorim que, em entrevista a jornalistas da Revista “Desafios do Desenvolvimento”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), declarou que “[...] a política externa é uma política pública como todas as demais. Está sujeita à expressão das urnas” (PORTARI & GARCIA, 2010). Em seu discurso de despedida do cargo de Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim registrou com um dos maiores legados do período em que esteve à frente do MRE a condução de uma política externa “altiva e ativa na qual o povo brasileiro se reconhece”. Declarou então o Ministro: “Tenho tido a oportunidade de constatar este fato nas ruas, onde ando sem segurança e assessores, nas manifestações positivas de nossa elite intelectual e da parte de gente simples, que antes talvez sequer ouvisse falar em Relações Internacionais” (O GLOBO, 2011). Apesar de concordar que a política externa é um assunto cada vez mais discutido por outras parcelas da população, e não mais somente pelo meio diplomático e pela academia, LIMA (2010, op. cit.) discorda que esta “politização da política externa” esteja sendo caracterizada pelo interesse maior pelo tema por parte da população brasileira de forma ampla, mesmo em períodos eleitorais. 20 Compartilhamos da visão defendida por ALMEIDA (2002, p. 169-171) de que o processo de globalização não se traduz num padrão uniforme de políticas públicas por parte dos Estados. Para os que creêm nesta uniformização, as medidas de livre mercado e de estímulo à competição são impulsionadas e impostas pelos organismos econômicos e financeiros multilaterais (como o FMI, o Banco Mundial e a OMC) que “supostamente enquadram as políticas nacionais e condicionam o acesso a mercados e aos créditos e financiamentos, públicos e privados, ao atendimento de uma série de prescrições uniformes emanadas do Consenso de Washington ou da receita neoliberal do mainstream econômico” (ibid, p. 169). Entre essas imposições se encontrariam a discriminação comercial por salvaguardas abusivas, o protecionismo setorial – principalmente na área agrícola – e, de forma geral, as recomendações por orientações liberalizantes nas áreas industrial, comercial e financeira. Apesar de reconhecermos os constrangimentos sistêmicos impostos pelos organismos multilaterais como a OMC - como o Acordo TRIPS, que modificou substancialmente o regime internacional de propriedade intelectual - cuja concepção esteve relacionada ao maior poder de

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uma relação cada vez mais estreita e íntima, em termos sinérgicos, entre a política

externa e outras políticas públicas para o aperfeiçoamento do padrão de inserção

internacional do Brasil.21

Entre estas políticas públicas capazes de reforçar a posição negociadora

brasileira, destaca-se, sem dúvida, a política industrial. Conceituá-la não é tarefa

fácil, e o tema gera profundas divisões entre os economistas (ERBER, 2002a, p.

637). Aqui, se trata da “ação do Estado que visa, explicitamente, alterar o

comportamento das empresas industriais” (ibid, p. 638), sendo duas características

enfatizadas nesta definição. Em primeiro lugar, o objeto da política que são

apenas as empresas industriais. Em segundo, a intencionalidade da política. Ficam

excluídas as medidas de política que são dirigidas a diversos setores, mesmo que

entre estes se inclua a indústria. Desta forma, políticas macroeconômicas ou de

constituição de infra-estrutura não fazem parte da política industrial. Apesar de

tais políticas afetarem o desenvolvimento industrial, entende-se que elas são

concebidas com propósitos diversos. Nesse sentido, constituem uma política

industrial implícita (ibid, p. 638).22

negociação e barganha dos países mais desenvolvidos durante a Rodada Uruguai do GATT, entendemos que há ainda uma razoável “margem de manobra” para que os gestores de políticas públicas em países com desenvolvimento relativo como o Brasil definam seu padrão de inserção na economia internacional: ou mais passivo ou mais engajado. Modificar o regime de propriedade intelectual não é uma questão da agenda da política externa brasileira, mas é possível sim decidir qual a posição a tomar em relação ao mesmo: se de mera aceitação e participação acrítica ou de questionamento e aproveitamento de algumas de suas flexibilidades. 21 Em crítica direta às políticas econômicas e administrativas de corte liberalizante que teriam marcado a política nacional desde o Governo Collor (1990-1992), FIORI (2001, p. 285) aponta para a necessidade de remontagem da capacidade estatal de coordenação de políticas públicas e pela democratização dos principais núcleos decisórios do poder público. Estas seriam formas de “resgatar a autonomia interna e resgatar a soberania do próprio Estado” (ibid, p. 285). Nesta entrevista concedida à Folha de São Paulo e reproduzida em livro publicado em 2001, FIORI afirma que, após 10 anos de políticas liberalizantes, a nova realidade se caracterizava pela desnacionalização da economia e pela desestruturação do Estado. Com efeito, na abordagem comparativa das ideias que informaram as políticas públicas de propriedade intelectual durante os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, críticas como essa são levadas em consideração, a fim de avaliar sua procedência. Analisar a estrutura do Estado no que tange a sua capacidade de coordenação e articulação de políticas públicas durante os dois governos é um dos aspectos mais importantes a salientar na comparação realizada. Para tanto, utilizamo-nos da tradição de pensamento econômico institucionalista. 22 ERBER observa que políticas industriais explícitas e implícitas podem entrar em conflito na medida em que, por exemplo, a Política Industrial possa desejar ampliar investimentos em projetos de longo prazo de maturação e uma forte incerteza na política monetária direciona os investimentos para aplicações financeiras. Nesses casos, as políticas implícitas tendem a ser dominantes. O cenário brasileiro das duas últimas décadas do século XX seria profícuo nestes exemplos. Para o autor, a eficácia da política industrial depende da sua convergência com as políticas industriais implícitas nas demais políticas, notadamente as de natureza macroeconômica (ibid, p. 638-639).

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Outros autores apresentam definições de política industrial. REICH (1982)

define-a como o “conjunto de ações governamentais planejadas para dar apoio a

indústrias que possuem maior potencial exportador e capacidade de criação de

empregos, assim como potencial para auxiliar diretamente a produção de infra-

estrutura”. Já CHANG (1994), frisando o componente seletivo que a política

industrial pode adquirir, descreve-a como as ações governamentais que estimulam

a geração de produção e de capacidade tecnológica em indústrias consideradas

estratégicas para o desenvolvimento nacional. Na mesma linha, PERES & PRIMI

(2009, p. 14) identificam a política industrial como o:

[...] conjunto de instrumentos (essencialmente incentivos, regulações e formas de participação direta na atividade econômica) através do qual o Estado promove o desenvolvimento de atividades econômicas específicas ou de agentes econômicos (ou de um grupo) baseado em prioridades nacionais de desenvolvimento.

Portanto, não há dúvidas de que a política industrial pode ser

compreendida como uma política pública na medida em que exige que o Estado

desempenhe alguma espécie de papel ativo na sua condução. O Estado pode

desempenhar quatro tipos de intervenção no apoio ao desenvolvimento industrial:

a) como regulador, ao estipular níveis de produção e de tarifas para certas

atividades, ou por meio da criação de incentivos fiscais ou subsídios para apoiar

setores industriais; b) como produtor, participando diretamente da atividade

econômica como no caso de empresas estatais; c) como consumidor, assegurando

um mercado para indústrias estratégicas e atividades econômicas por intermédio

de programas públicos de compras governamentais; e, d) como agente financeiro

ou investidor, influenciando o mercado de créditos e promovendo a alocação de

recursos financeiros públicos e privados para projetos industriais considerados

estratégicos por causa do seu impacto na produtividade, ou por sua capacidade de

absorver mão-de-obra (ibid, p. 14).

Considerando que a política industrial é uma política pública, muitos

países, no entanto, não possuem uma política industrial na forma de um plano

consolidado de desenvolvimento industrial (com objetivos, instrumentos e

responsabilidades institucionais explicitadas), mas possuem sim política industrial

de facto que demanda ações governamentais para desenvolver ou fortalecer

atividades específicas. Exemplo destas políticas pode ser encontrado nos Estados

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Unidos, onde a postura do livre mercado exige, pelo menos na retórica, que o

Estado desempenhe papel mínimo na economia. Embora a referência a ações do

governo como “política industrial” seja evitada, fato é que o governo as adota sim,

com o objetivo de dar suporte ao desenvolvimento industrial nacional. É o caso da

legislação Bayh-Dole de 1980 que regula os direitos de propriedade intelectual

associados com inovações surgidas de pesquisas tecnológicas e do

desenvolvimento de atividades em universidades e laboratórios que recebem

fundos federais. A legislação possui cláusula que dá preferência às indústrias da

América do Norte, permitindo licenças exclusivas para inovações patenteadas

somente se a inovação foi produzida nos Estados Unidos. A seleção de empresas

norte-americanas como beneficiárias destas licenças exclusivas – uma ação

alinhada com a estratégia nacional de proteção da competitividade da indústria

nacional – é claramente uma política industrial de facto, mesmo que oficialmente

seja apresentada como uma medida de gestão dos direitos de propriedade

intelectual (ibid, p. 14-15).

Uma vez esclarecidos os aspectos que permitem caracterizar a “política

externa” e a “política industrial” como “políticas públicas”, vale frisar as

diferenças entre as dimensões da “formulação” e da “execução” de políticas.

Procura-se justificar a opção da análise por se concentrar, fundamentalmente, na

“formulação”.

Com efeito, a formulação de políticas é uma preocupação central para

muitos campos de estudo, o que se constata pelo esforço intelectual considerável

empreendido por psicólogos, economistas e cientistas políticos (entre

investigadores de outras disciplinas) que, de diferentes formas, tentam

compreender como e porque determinadas políticas são adotadas (WEBBER &

SMITH, op. cit, p. 49). A formulação de políticas – ou “processo decisório” –

envolve decisões que, algumas vezes, são rotineiras, mas que, por outras, são

imprevistas e inovadoras. No campo da política externa este é um traço presente:

“a monotonia da diplomacia protocolar coexiste com questões que podem ajudar a

determinar o bem estar e mesmo a sobrevivência nacionais” (ibid, p. 49).

Como distinguir então, em termos analíticos, o estudo da formulação da

política externa do estudo de sua execução? O estudo da formulação procura

focar a natureza do processo decisório e dos tomadores de decisão, dentro de um

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contexto em transformação.23 Para WEBBER & SMITH não se pode presumir

que, uma vez que uma decisão foi formulada ela será automaticamente traduzida

em ação, e os resultados destas ações serão fáceis de reconhecer (ibid, p. 79).

Assim é preciso considerar também as ações, os comportamentos e os obstáculos

que se podem se colocar em face dos objetivos preestabelecidos durante a fase de

formulação. São essas ações e comportamentos - e as reações que eles despertam -

que constituem “o fluxo e a substância da política em si” (ibid, p. 80). É essa a

matéria-prima dos estudos que privilegiam a fase de execução da política externa.

Estudos de política industrial também apontam diferentes etapas para a sua

consecução, entre elas as de formulação e de execução. De acordo com PERES &

PRIMI (op. cit, p. 16), o processo da política industrial possui três fases,

vinculadas por um mecanismo de retroalimentação: de concepção e criação (ou de

formulação), de execução e de avaliação (ou de estimação). A primeira fase

consiste no trabalho prévio que é realizado no sentido de criar consenso em torno

de prioridades, essencial se o que se pretende é que a política produza ações e

resultados.24

É exatamente sobre a fase de formulação, comum à política externa e à

política industrial, que a investigação se concentra. O foco recai sobre o processo

decisório de políticas públicas de propriedade intelectual porque o que se

pretende, prioritariamente, é entender as razões de natureza ideacional que

estimularam tomadores de decisão no Governo Luiz Inácio Lula da Silva a

planejar um novo padrão de inserção do Brasil no regime internacional de

propriedade intelectual, em comparação àquele que havia predominado durante o

Governo Fernando Henrique Cardoso. Sem entender como as ideias dos

tomadores de decisão influenciaram no processo de formulação de políticas 23 WEBBER & SMITH esclarecem que a formulação de política externa exige contínua adaptação e refinamento em face da experiência acumulada e das circunstâncias domésticas e internacionais diferenciadas. Assim, o analista de política externa precisa se confrontar com o problema dos níveis de análise e decidir em qual deve se concentrar: se o do sistema internacional, o estatal ou o individual. Além disso, deve enfrentar questões fundamentais como as seguintes: em qual medida a formulação de política externa é predeterminada pelos constrangimentos do sistema internacional? Qual o espaço que existe para a escolha e o livre arbítrio entre os tomadores de decisão? (ibid, p. 50) A premissa que assumimos aqui, reiteramos, é a de que o regime internacional de propriedade intelectual do Acordo TRIPS apresenta constrangimentos estruturais de natureza material e ideacional à formulação da política externa brasileira, mas que há espaços relevantes que o Governo Luiz Inácio Lula da Silva soube explorar de maneira mais propositiva e ousada em comparação com o seu antecessor. 24 PERES & PRIMI argumentam que, embora cada fase tenha importância em si, é o todo interligado das três que assegura que os projetos sejam traduzidos em ações e induzam mudanças na produção e nas estruturas sociais. (op.cit, p. 16).

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públicas de propriedade intelectual, não há como avaliar a forma como elas foram

executadas e, mais ainda, como estimá-las em termos da consecução ou não de

seus objetivos.

Mesmo assim, não obstante o foco da pesquisa esteja concentrado na etapa

de formulação das políticas públicas, optamos por discutir também o início da

etapa de execução, particularmente o processo de reestruturação institucional

empreendido pelo Governo Luiz Inácio Lula da Silva durante a Gestão Roberto

Jaguaribe, no INPI, entre 2004 e 2006. Procura-se caracterizar tal processo de

reestruturação como um dos reflexos iniciais das mudanças observadas na

dimensão ideacional da formulação de políticas públicas de propriedade

intelectual do Governo Luiz Inácio Lula da Silva para o Governo Fernando

Henrique Cardoso, mudanças estas que foram francamente estimuladas por

alterações no perfil ideacional de tomadores de decisão e também por um

processo de aprendizado institucional. Feitas essas considerações preliminares,

passemos agora à apresentação do arcabouço teórico, a começar pela Análise de

Política Externa.

2.2 A Análise de Política Externa e as Relações Internacionais

Ao começar seu artigo com a sugestiva pergunta “Uma teoria sem lar?”,

HOUGHTON (2007) traz à tona uma das principais questões envolvendo a

análise de política externa. Com efeito, o autor demonstra que durante muito

tempo a análise de política externa tem sido uma espécie de “nau à deriva”,

desconexa das principais teorias das relações internacionais (2007, p. 24). Por

vezes, a análise de política externa é identificada nos principais manuais como

uma subárea do liberalismo, ao passo que, por outras, não sem dificuldades,

estudada no campo do realismo (ibid, p. 24.). Apesar disso, CARLSNAES (2005,

p. 331) enfatiza que se há algo sobre o qual os analistas de política externa podem

hoje estar de acordo é que o seu campo de estudo tem estreita relação com o

domínio disciplinar das Relações Internacionais.

Contudo, identificar imediatamente a análise de política externa como

pertencente a qualquer uma das duas mais tradicionais matrizes teóricas das

relações internacionais equivale a ignorar que os analistas de política externa

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visam justamente, em grande parte, preencher algumas lacunas presentes nos

estudos realistas e liberais. Por essa razão, antes de adentrarmos na análise

propriamente dita de elementos ideacionais na formulação da política externa,

precisamos frisar as limitações das abordagens que privilegiam fatores materiais

como fonte explanatória para a compreensão do comportamento estatal. A

emergência de elementos ideacionais no campo da análise de política externa só

foi possível devido ao amadurecimento de abordagens que se dedicaram a expor

as debilidades da presunção do Estado como ator unitário, racional e com

preferências dadas no que se refere ao seu comportamento no ambiente

internacional (DE MELLO E SILVA, 1998, p. 142).

De acordo com o modelo da escolha racional, os decision makers ordenam

as alternativas de que dispõem, tomam decisões e agem de forma a alcançar os

resultados mais eficientes em termos dos fins perseguidos. Contudo, este processo

não é isento de valores (VIOTTI & KAUPPI, 1998, p. 404). Em primeiro lugar, a

determinação dos objetivos e fins a alcançar envolve, obviamente, escolhas

demarcadas por um processo de significação (ou seja, valores). Segundo, a ideia

de que os meios escolhidos para se alcançar determinados resultados devem ser os

melhores e mais eficientes ou apenas “bons o suficiente” já é, em si, um valor

subjacente ao cálculo de tomada de decisões. Por último, mesmo que os homens

de Estado (principalmente os diplomatas) possam alcançar consenso sobre quais

os valores gerais devem ser perseguidos internacionalmente, pode haver

desacordos genuínos sobre como estes valores serão definidos e implementados

(ibid, pp. 404-405). Em suma, ao contrário do que se poderia presumir, o modelo

racional de tomada de decisões em política externa não é isento de significação,

particularmente se considerarmos o amplo leque de valores perseguidos pelos

negociadores estatais e as diferentes visões acerca de como eles devem ser

definidos e implementados (ibid, p. 405).25

As abordagens de crítica ao modelo racional concentraram-se,

inicialmente, nos estudos sobre processo decisórios, dedicando-se em seguida a 25 Segundo VIOTTI & KAUPPI um bom exemplo se encontra na área temática de direitos humanos (ibid, p. 405). A despeito da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e das convenções que se seguiram, os autores afirmam que tem sido difícil e complexo forjar um consenso entre os governos nacionais em torno dos critérios que devem ser utilizados ao se abordar questões envolvendo direitos humanos como, por exemplo, quais os direitos que devem ser protegidos, a importância ou o peso relativo dos diferentes valores quando entram em conflito e quais os direitos – individuais, de grupos sociais, de classes ou dos Estados – que devem ter prioridade.

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tentar compreender os mecanismos de cognição e percepção que determinam a

forma como os tomadores de decisão processam informações.26 Em outras

palavras, passou-se a reconhecer que o processamento das informações acerca do

mundo “objetivo” podia ser imperfeito e que se impunha uma mediação entre o

“real” e a mente do indivíduo (DE MELLO E SILVA, op.cit., p. 142). Portanto,

demarcar as diferenças entre as abordagens “materiais e racionalistas” e as

“ideacionais” é tarefa recomendável para justificar nossa opção por uma análise

ideacional de política externa.

2.2.1 Limitações das Principais Abordagens Centradas em Fatores Materiais e no Modelo Racional

Parte dos estudos dedicados à Análise de Política Externa esteve

empenhada em criticar o modelo do ator racional. Em um dos trabalhos

fundadores do campo de estudo, escrito no final dos anos 50, SNYDER, BRUCK

e SAPIN (2002)27 defendem que é preciso desvendar as variáveis que, dentro e

fora do Estado, atuam na formulação das diferentes políticas externas nacionais

(DE MELLO E SILVA, op.cit., p. 142). De acordo com HUDSON (2002, p. 3), a

mais importante contribuição dos autores para as Relações Internacionais foi a de,

já naquele momento, identificar o ponto teórico de interseção entre os

determinantes mais importantes do comportamento estatal: os fatores materiais e

ideacionais. Este ponto de interseção não é, para os autores, o Estado, e sim o

indivíduo ou tomador de decisão. Criticam os autores o que entendem por

“falácia” da sutil transformação do Estado de uma abstração política pertinente em

um símbolo que representa, supostamente, uma entidade concreta – ou seja, um

objeto ou pessoa com existência própria, de forma apartada das pessoas reais e

dos seus comportamentos (ibid, p. 3).

26 Destacam-se, neste cenário, respectivamente, os estudos de Allison (1971) e Jervis (1976). 27 Trata-se da versão do trabalho clássico dos três autores, Foreign Policy Decision-Making, publicado pela primeira vez em 1954, e revisada por Valerie Hudson para esta edição de 2002, a que tivemos acesso. De acordo com HOUGHTON (2007, p. 31), este trabalho representa o primeiro reconhecimento da produção acadêmica de Relações Internacionais, após a Segunda Guerra Mundial, de que os interesses dos atores não podem ser presumidos ou considerados como “predeterminados” ou “dados”.

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Assim, desde o seu nascedouro, a Análise de Política Externa representa

um desafio ao realismo e a sua presunção do Estado como ator unitário e racional

(HOUGHTON, op. cit, p. 25). Trata-se do que LIMA denomina de “modelo

clássico” (1994, p. 63), segundo o qual “a política externa resulta da operação de

um duplo filtro: as preferências dos Estados e os incentivos e constrangimentos

presentes no ambiente externo” (ibid, p. 63). O que caracteriza este modelo é a

premissa “de que os interesses são relativamente permanentes no tempo” (ibid, p.

63) já que derivam quer de atributos e capacidades que tipificam um Estado –

como território, população, geografia, recursos naturais, materiais e humanos -,

quer da posição ocupada, em reação aos demais, em um ordenamento qualquer de

poder econômico, político ou militar (ibid, p. 63).28

LIMA afirma que é justamente por tratar essas preferências como

resultado de atributos próprios ao Estado e/ou de sua posição em relação aos

demais que, no modelo clássico, o Estado aparece como ator unitário que interage

com outros atores da mesma natureza, ainda que com atributos e posições

diferentes (ibid, p. 63). No que tange à versão estrutural do modelo clássico

(realismo estrutural ou neorrealismo)29, os interesses/preferências do Estado são

deduzidos da distribuição de poder e este busca políticas consistentes com a

configuração particular do sistema internacional (ibid, p. 63).30

28 Além do “modelo clássico”, LIMA (ibid, pp. 63-64) aponta para a existência de mais dois modelos que constituem enfoques básicos para a abordagem da política externa: o “modelo político-social” e o “modelo interativo”. O modelo “político-social”, espécie de antítese do “modelo clássico”, é aquele segundo o qual as preferências externas são sempre endogenamente determinadas. Defende que, tal como ocorre com as demais políticas públicas, a política externa é resultado da dinâmica de alianças e conflitos entre atores governamentais e societais diversos. A referência deste modelo é o já mencionado trabalho de ALLISON (1971) sobre o modelo de política burocrática, formulado em contraposição do modelo do ator unitário. Já o “modelo interativo” é aquele que visa combinar as possibilidades analíticas do modelo “clássico” e do “político-social” e, ao mesmo tempo, superar suas deficiências. Apesar de reservar o âmbito da política externa à ação dos representantes do Estado, inclui, na análise da política externa, os determinantes domésticos como partidos, grupos de interesses, legisladores e forças sociais. Enfatiza as interconexões da política internacional com a política doméstica. A maior referência deste modelo é o também já mencionado modelo do jogo de dois níveis de PUTNAM (1988). O pressuposto do ator racional, contudo, não é desafiado também nestes dois modelos. 29 Como forma de caracterizar este “modelo clássico”, LIMA afirma que o fato de essas preferências serem endógena ou exogenamente derivadas é menos importante do que o tratamento do Estado como unidade indivisível de decisão, que busca maximizar seus interesses em um contexto restringido quer pela ação dos outros Estados, quer pela interação dos mesmos. Assim, o modelo clássico de LIMA inclui autores como Hans Morgenthau, Kenneth Waltz e Stephen Krasner, não obstante as diferenças entre as suas respectivas abordagens (ibid, p. 63). 30 Há um evidente contraste entre as presunções dos adeptos do realismo estrutural (neorrealistas) e os da análise de política externa. Os neorrealistas defendem que os Estados (atores fundamentais) agem sempre com base num cálculo racional de auto-interesse, ao passo que para os analistas de política externa as elites (estas sim, os atores fundamentais) atuam com base na sua “definição de

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Segundo a tradição realista, os Estados calculam seus interesses sempre

em termos de poder – entendido como a habilidade que um deles possui de

influenciar outros e os recursos aplicados no exercício desta influência. A noção

de imutabilidade da natureza humana proposta pelo realismo clássico derivaria de

uma visão conservadora da filosofia política e teria dificuldades de se ajustar a

aproximações mais críveis e convincentes sobre os seres humanos trazidas para o

campo da análise de política externa por cognitivistas (HOUGHTON, op. cit, p.

25) que privilegiam a construção de significados e fatores ideacionais e enfatizam

a subjetividade e a dificuldade de previsibilidade, inerentes ao comportamento dos

atores envolvidos no processo de tomada de decisões (fundamentalmente os

indivíduos e as elites envolvidas no processo decisório).31

A associação que pode se buscar estabelecer entre Análise de Política

Externa e o institucionalismo liberal, também é problemática. Da mesma forma

que o neorrealismo, o institucionalismo liberal privilegia o sistema internacional

como gerador de comportamento entre os Estados, ao passo que a Análise de

Política Externa persiste na importância de fatores e atores que atuam no nível das

unidades, para a compreensão e explicação do comportamento estatal. A diferença

básica entre o institucionalismo liberal e o neorrealismo é que os adeptos da

primeira corrente questionam a máxima de que os Estados só agem com o

objetivo de maximizar poder. O sistema internacional pode facilitar ou inibir o

fluxo de informações, desta forma afetando o comportamento dos atores e sua

habilidade para cooperar uns com os outros (KEOHANE, 1986). Adicionalmente,

o institucionalismo liberal compartilha com o realismo (clássico e estrutural) da

presunção do ator racional como ponto de partida: os atores agem sempre de

forma autointeressada e procurando maximizar sua utilidade, sujeitos a

constrangimentos.

É na crítica ao pressuposto racionalista, comum ao (neo) realismo e ao

institucionalismo liberal, que reside o ponto-chave para a compreensão da

proeminência recente que o estudo do impacto das ideias sobre a formação das situação”. Para o neorrealista, a política externa é compreendida como a busca derradeira por segurança no mundo anárquico, enquanto que para o estudioso de política externa é considerada um conjunto de tarefas para a solução de problemas. Enquanto para o neorrealista o poder é a “moeda de troca”, para o analista de política externa o que mais conta é a informação. Finalmente, enquanto que para o neorrealista a estrutura do sistema internacional determina o comportamento do Estado, para o analista de política externa ela é uma mera arena para a ação (HOUGHTON, op. cit, p. 25). 31 Ressalve-se, novamente, o caráter precursor do trabalho de JERVIS (1976).

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políticas adquiriu nas Relações Internacionais, sobretudo na Análise de Política

Externa. HILL (2003, p. 97) assinala que o conceito de racionalidade é um dos

problemas mais centrais e difíceis em todas as ciências sociais e que qualquer

tentativa de compreender ou prescrever ações não podem fazer mais do que

cálculos com base naquele, já que representa apenas um tipo-ideal tanto para a

tomada de decisões individual, como para a coletiva (2003, p. 97). Abordagens

que privilegiam a escolha racional enfrentaram críticas por parte daqueles

resistentes à concepção de que a política é bem explicada em termos das

interações entre atores que agem egoisticamente e que continuadamente fazem

cálculos sobre o quanto suas preferências serão atendidas por determinado evento.

GOLDSTEIN e KEOHANE (1993, op. cit, p. 5) frisam que mesmo os analistas

racionalistas de política internacional reconhecem que a presunção de

racionalidade é mais uma simplificação teórica útil da realidade do que um

verdadeiro reflexo dela.

Por conta disso, a literatura desenvolveu e sofisticou cada vez mais

abordagens para tratar dos elementos cognitivos que incidem sobre a formulação

de políticas. Conceitos diversos foram formulados – como os de “imagens”,

“mapas cognitivos”, “sistema de crenças”, “códigos operacionais” e “lições do

passado” – todos com a preocupação central de compreender a “brecha” existente

entre a realidade, supostamente “objetiva”, do ambiente operacional e a

representação “subjetiva” na mente do tomador de decisão. A esse conjunto de

abordagens, a literatura costuma se referir como abordagem cognitiva ou

psicológica das Relações Internacionais (DE MELLO E SILVA, op. cit, p. 143).

Vejamos, pois, como, a partir da crítica cognitiva ao modelo do ator racional, o

conceito de “ideia” impregnou-se na Análise de Política Externa.

2.2 As Ideias na Formulação da Política Externa

É no contexto de questionamento das limitações dos modelos racionalistas

que se deve compreender como as ideias alcançaram importância na agenda de

pesquisa das Relações Internacionais. Estudiosos da área se sentiram cada vez

mais motivados a examinar o efeito das ideias na política externa, especialmente

através do esforço para conectá-las causalmente às políticas que elas parecem

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justificar e, em troca, examinar qual o seu impacto sobre a política externa e,

assim, sobre a ação estatal. A argumentação dessas abordagens é a de que a

explicação da ação política em termos de atores racionais maximizando uma

função utilitária baseada em interesses materiais não dá conta dos

comportamentos observáveis dos atores estatais. Tanto quanto os interesses, as

ideias são importantes para a explicação da política externa (LAFFEY e

WELDES, 1997, p. 193-194).

Discorremos agora sobre as duas correntes teóricas que informam a

pesquisa, no que tange ao estudo das ideias: o “institucionalismo racional” de

GOLDSTEIN e KEOHANE (1993) e o “institucionalismo histórico” de HALL

(1989), SIKKINK (1991; 1997) e FINNMORE (1997)32. Com ambas, apesar de

uma ligeira inclinação pela segunda, pretendemos analisar a influência das ideias

sobre o processo decisório de políticas públicas.

Da abordagem de GOLDSTEIN e KEOHANE, compartilhamos do

objetivo de não querer sugerir uma teoria para a criação das ideias ou um modelo

explicativo para justificar o processo por intermédio do qual determinadas ideias

são selecionadas, mas sim de querer entender as diferentes formas por meio das

quais as ideias possuem potencial de afetar os eventos políticos (1993, op. cit, p.

12).

Já a opção pelo institucionalismo histórico, com o aproveitamento de

insights tomados do institucionalismo racional, aproxima a pesquisa do campo de

estudos que HASECLEVER ET AL (1997) denominam de “cognitivismo

brando”.33 Cognitivistas brandos partilham de algumas presunções. A primeira

delas é a de que entre as estruturas internacionais e a volição humana repousa a

interpretação. Antes que as escolhas sejam feitas, as circunstâncias devem ser

conhecidas e os interesses identificados. Por seu turno, a interpretação depende do

conhecimento que os atores detêm num determinado momento e lugar (ou como

preferem se referir alguns dos cognitivistas brandos, de suas ideias). É este corpo

de conhecimento (ou de ideias) que molda a percepção da realidade e informa os 32 Apesar de conferirmos mais destaque aos autores mencionados, outros, como MC NAMARA (1998), também são comentados. 33 Ver também FINNEMORE e SIKKINK (2001, p. 45). Vale frisar que embora o institucionalismo racional de KEOHANE e GOLDSTEIN seja colocado por estas autoras na mesma categoria de cognitivismo brando em que incluem o institucionalismo histórico de HALL, há diferenças substanciais na forma como cada uma dessas abordagens lida com o papel que as ideias desempenham na formulação de políticas. São justamente estas diferenças que justificam nossa maior inclinação pelo institucionalismo histórico.

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tomadores de decisão a respeito dos vínculos entre causas e efeitos e, desta forma,

entre meios e fins. Para os cognitivistas brandos, interesses não podem ser

tratados como dados; ao contrário, as preferências dos atores devem ser vistas e

tratadas analiticamente como contingenciais em relação à forma como os atores

compreendem o mundo social e natural. (ibid, p. 140)

Outra presunção é a de que os tomadores de decisão demandam de forma

crescente de informações científicas e de conhecimento confiável. Em virtude da

natureza cada vez mais técnica das questões internacionais, eles experimentam

incertezas duradouras sobre os seus interesses e como atendê-los. As inovações

tecnológicas desvalorizaram estratégias tradicionais de ação e as mudanças sociais

redefinem os parâmetros das relações internacionais. Nesta concepção, os atores

estatais não são apenas perseguidores de poder e riqueza, mas também redutores

de incerteza.34 De forma a fazer escolhas inteligentes diante de situações não

muito familiares, os tomadores de decisão necessitam de informação de alta

qualidade e de conselhos especializados, de expertise. Assim, aqueles que estão

em posição de fornecer o conhecimento desejável em termos ideacionais podem

exercer influência considerável no processo decisório.35

34 Ao tratarmos nos capítulo 5 e 6 da política externa brasileira de propriedade intelectual, sublinhamos a possibilidade de caracterizar o regime internacional como uma arena social para a ação que propicia oportunidade de aprendizado social para os tomadores de decisão brasileiros desde a celebração do Acordo TRIPS. Mas este aspecto é insuficiente de nosso ponto de vista por ignorar outra faceta do regime: o do papel reservado ao poder, aqui enfatizado de um prisma cognitivo, sem ignorar a existência de sua face material. Entendemos que, apesar das ideias terem papel proeminente para auxiliar a explicar mudanças na formulação da política externa brasileira de propriedade intelectual do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, não se pode menosprezar a existência de estruturas materiais e ideacionais de dominação presentes no regime e relativamente estáveis desde 1995. Assim, a forma como o Brasil formula sua política externa em relação ao regime internacional de propriedade intelectual (como define seu padrão de inserção internacional neste caso) esbarra em alguns constrangimentos estruturais. A diferença do Governo Lula em relação ao seu antecessor é uma posição mais crítica e menos passiva em relação a estas limitações, mudança esta que deriva em grande parte de variações ideacionais. Não há pretensão por parte dos formuladores da política externa brasileira de modificar o regime, mas sim de buscar uma inserção mais ativa que permita ao Brasil interferir mais na elaboração de suas regras e normas. 35 Trabalhamos neste ponto de uma perspectiva institucional, sem ignorar as muitas possibilidades oferecidas pelo estudo das comunidades epistêmicas (HAAS, 1995). As instituições podem exercer papel importante ao fornecer este conhecimento especializado e técnico aos tomadores de decisão, sendo em alguns casos impregnadas de ideias que estimulam mudanças organizacionais profundas com o objetivo de empowerment. É o que ocorre de forma cada vez mais habitual na participação do INPI na formulação da política externa brasileira de propriedade intelectual. Vale dizer que reconhecemos que o aprendizado social desde o fim da Rodada Uruguai e celebração do Acordo TRIPS nas negociações dos temas de propriedade intelectual é fator relevante para entender a trajetória da formulação da política externa brasileira de propriedade intelectual desde então. Isto não invalida, no entanto, o argumento de que, no campo das ideias, mudanças importantes se processaram do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Lula. Enquanto a noção de aprendizado social nas negociações internacionais nos estimula a pensar em termos de

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44

A caracterização da literatura das ideias no campo da análise de política

externa (institucionalismo racional) e da economia política comparada

(institucionalismo histórico) como “cognitivismo brando” torna necessário

esclarecer qual a fronteira teórica da pesquisa. Com efeito, a literatura enfatizada

aqui não se identifica com a do “cognitivismo forte”, “virada sociológica”,

“construtivismo social” ou simplesmente “construtivismo”. Não são consideradas

algumas proposições centrais do construtivismo como, por exemplo, a noção de

agência – a de que os seres humanos, os agentes, não existem de forma isolada

das estruturas que eles criam e que, portanto, para entender as mudanças na

realidade social é necessário aceitar que agentes e estruturas são mutuamente

constituídos (co-constituição). A variável explicativa central é ideacional (o papel

das ideias), com todas as repercussões analíticas e teóricas que ela implica. O

trabalho de HOUGHTON (2007) é bastante ilustrativo no sentido de demonstrar

as diferenças entre as abordagens cognitivas e o construtivismo.36 Mais do que

isto, o autor demonstra as possibilidades de colaboração entre as duas tradições de

pesquisa e indica as formas pelas quais o construtivismo pode auxiliar na

revitalização da análise de política externa (ibid, p. 33-43).37 Sem ignorar os

aportes deste e de outros trabalhos38, mantém-se a matriz exclusivamente

ideacional.

2.2.1 Ideias e o “Institucionalismo Racional” de GOLDSTEIN e KEOHANE

Entre os estudos dedicados a compreender o impacto das ideias na

formulação de políticas, destaca-se, sem dúvida, o trabalho de GOLDSTEIN E

KEOHANE (1993). BLYTH (1997, p. 239) o qualifica como “a tentativa mais

bem elaborada de incorporar as ideias dentro de um programa de pesquisa

continuidade e evolução, a perspectiva das ideias econômicas nos leva inevitavelmente a pensar em mudança. É este último aspecto que desejamos frisar. 36 Neste artigo, a distinção que é feita entre cognitivismo e construtivismo assemelha-se a que HASENCLEVER ET AL (2001) demarcam respectivamente entre “cognitivismo brando” e “cognitivismo forte”. 37 Algumas das sugestões do autor inspiraram indicações para pesquisas futuras, que apresentamos em nossas considerações finais. 38 Sobre as possibilidades de diálogo entre o construtivismo e a economia política internacional, ver BRAND (2007). No que se refere ao diálogo entre o construtivismo e a Análise de Política Externa, recomendamos a leitura de KUBÁLKOVA (2001).

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racionalista e institucional”. Os autores sugerem que as ideias, compreendidas

somo “crenças sustentadas pelos indivíduos” (ibid, p. 3) exercem um efeito causal

independente sobre a política, mesmo quando os seres humanos se comportam

racionalmente para atingir seus objetivos (ibid, p. 5). Ancorados nesta premissa

racional, admitem que as ações levadas adiante pelos diferentes seres humanos

dependem da qualidade substantiva das ideias disponíveis, uma vez que estas

ideias ajudam a esclarecer princípios e concepções sobre relações causais, e a

coordenar o comportamento individual (ibid, p. 5). As ideias podem influenciar a

política ao oferecer mapas que ampliam a clareza dos atores sobre os seus

objetivos, ao afetar resultados de situações estratégicas em que não há um único

equilíbrio e ao se encerrarem nestas instituições, situação em que são capazes de

generalizar padrões de comportamento (ibid, p. 8).

Além de discorrer sobre as três formas por intermédio das quais as ideias

podem influenciar a política, GOLDSTEIN & KEOHANE (ibid, p. 8-11) afirmam

que elas podem ser de três tipos: a) “visões de mundo”, que são aquelas que

definem o universo de possibilidades de ação no seu nível mais fundamental e

afetam a vida social de múltiplas formas ao longo do tempo, como ocorre, por

exemplo, com as maiores religiões do mundo e a concepção westfaliana de

soberania39; b) “crenças sobre princípios” que remetem a ideias normativas que

especificam critérios para a distinção entre o certo e o errado e atuam como

mediadoras entre as visões de mundo e conclusões políticas particulares,

traduzindo doutrinas fundamentais em guias para a ação humana

contemporânea40; c) “crenças causais”, que se referem a relações de causa e efeito

que derivam da autoridade do consenso compartilhado de elites reconhecidas

(como cientistas ou líderes espirituais)41.

39 GOLDSTEIN & KEOHANE esclarecem que as visões de mundo são concepções de possibilidades que se encerram no simbolismo de uma cultura e que afetam profundamente modos de pensar e o discurso. Elas se entrelaçam às concepções das pessoas acerca de suas identidades, evocando emoções profundas e lealdades (ibid, p. 8). 40 Visões como a de que “a escravidão é errada” e em favor da “liberdade de discurso” são exemplos que os autores fornecem de crenças sobre princípios. Apesar dos que lutaram pelo fim da escravidão terem, muitas vezes, justificado seus argumentos com base no cristianismo, o fato é que a cristandade tolerou a escravidão durante quase dois milênios. Enfim, foi necessário que crenças sobre princípios, entendidos como ideias normativas, se cristalizassem para que a mediação entre a visão de mundo cristã e a ação humana se modificasse em prol do combate à escravidão (ibid, p. 9). 41 GOLDSTEIN & KEOHANE afirmam que as crenças causais fornecem guias para os indivíduos sobre como atingir seus objetivos. A queda do regime da Hungria em 1989 demonstrou aos povos da Alemanha Oriental e da Tchecoslováquia que protestos de massa pacíficos poderiam derrubar

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A partir dessa perspectiva, as ideias podem funcionar como “mapas de

estrada” (road maps) quando vemos a política como uma arena em que os atores

enfrentam incertezas sobre os seus interesses e como maximizá-los. As ideias

servem então ao propósito de guiar o comportamento sobre condições de incerteza

ao estipular padrões causais ou fornecendo convincentes motivações éticas ou

morais para a ação. As novas ideias podem levar – se não imediatamente – a uma

mudança significativa na própria constituição dos interesses: isto pode acontecer

quando um conjunto existente de ideias é desacreditado pelos eventos ou quando

uma nova ideia é simplesmente tão convincente que cativa a atenção de um amplo

raio de atores. (ibid, p. 16)

As ideias podem atuar também, para GOLDSTEIN & KEOHANE, como

pontos focais. Do ponto de vista da teoria dos jogos, as ideias podem ser

importantes porque não é possível fazer predições sobre os diferentes resultados

somente por meio do exame de interesses e das interações estratégicas. As ideias

sustentadas pelos diferentes players são a “chave” para o resultado de um jogo.

Não são somente constrangimentos e oportunidades que guiam a ação: os

indivíduos confiam nas suas crenças e expectativas quando fazem escolhas dentro

de um escopo de diferentes resultados potenciais. Neste contexto, o papel que as

ideias desempenham é o de atenuar problemas de coordenação que brotam da

ausência de uma solução única de equilíbrio (ibid. p. 17-18).

As ideias importam ainda de uma terceira forma. Independentemente de

como um conjunto particular de crenças pode vir a influenciar a política, a

utilização dessas ideias ao longo do tempo implica em mudanças nas regras e

normas existentes. As ideias podem ter uma influência duradoura na política

quando elas logram se incorporar no debate político. Contudo, o impacto do

mesmo conjunto de ideais pode ser mediado pela atuação das instituições nas

quais as ideais se impregnam. Quando as ideias conseguem afetar o desenho

organizacional das instituições, sua influência será refletida nos incentivos àqueles

na organização cujos interesses são atendidos por elas.42 Em geral, quando as

governos repressivos de longa duração. Sob tais condições, a eficácia da ação individual depende do apoio de muitos outros, e assim, da existência de crenças sobre princípios compartilhadas. Enfim, “crenças causais implicam em estratégias para alcançar certos objetivos, valorados em função de crenças sobre princípios, e compreendidos somente dentro do contexto de visões de mundo amplas” (ibid, p. 10). 42 Interessante notar que os autores fazem questão de afirmar que as ideias podem afetar as instituições políticas, o que, obviamente, implica na possibilidade de não afetarem de nenhuma

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instituições intervêm, o impacto das ideias pode ser prolongado por décadas e até

gerações. Instituições políticas exercem uma função mediadora entre as ideias e os

acontecimentos políticos. Embora a institucionalização possa refletir o poder de

alguma ideia, sua existência também pode refletir os interesses dos que detém

mais poder. Mas mesmo neste caso, os interesses que promoveram algum estatuto

podem desaparecer ao longo do tempo, ao passo que as ideias encapsuladas nas

instituições podem continuar influenciando a política. Significa dizer que as ideias

institucionalizadas podem continuar a exercer efeito apesar de não mais presentes

circunstâncias materiais de poder que determinaram sua impregnação

institucional. Não é possível explicar sua resistência e aceitação somente com

base nas configurações contemporâneas de interesses e poder.43 (ibid, p. 20-21).

Apesar do trabalho de GOLDSTEIN & KEOHANE ter o mérito de

reivindicar que tanto as ideias como os interesses têm importância para a

explicação da política externa, é importante salientar que não desafia a premissa

de que os indivíduos atuam racionalmente. Os autores dão mais importância às

ideias do que as abordagens estritamente materialistas, mas se limitam a mostrar

que a existência de anomalias empíricas pode ser resolvida quando ideias são

consideradas. WENDT demonstra que a perspectiva dos autores trata as ideias

apenas como variáveis intervenientes entre o binômio poder/interesse e os

forma. Vai ser em outra obra, Internationalization and Domestic Politics, escrita em parceria com Helen Milner, que Robert Keohane vai detalhar melhor possíveis comportamentos refratários ou resistentes das instituições políticas domésticas. Neste caso, a preocupação, contudo, é com os efeitos, sobre as instituições, da internacionalização da economia, compreendida como “processos gerados por mudanças subjacentes nos custos de transação que produzem fluxos observáveis de bens, serviços e capitais” (MILNER & KEOHANE, 1996, p. 4). Embora nesta obra a proposta dos autores seja bem diferente da de GOLDSTEIN & KEOHANE - a de medir impactos da economia mundial (de uma perspectiva material) sobre as instituições domésticas -, isto não invalida a propriedade de observar que a tipologia de possíveis “reações institucionais” naquela é mais completa, já que os autores admitem três diferentes efeitos que a internacionalização pode exercer sobre as instituições: bloquear os sinais de preço internacionais (ibid, p. 251-253), congelar as coalizões e as políticas (ibid, p. 253-254) e canalizar respostas às mudanças (ibid, p. 254-255). Como se pretende demonstrar mais adiante, por intermédio da caracterização do regime internacional de propriedade intelectual como uma variável de natureza estrutural – material e ideacional –, nossa abordagem, embora exclusivamente concentrada em demonstrar a influência das ideias na formulação das políticas, não ignora por completo as forças estruturais que podem igualmente afetá-las. Assim, a tipologia mais detalhada de MILNER & KEOHANE oferece sim insights interessantes para examinar porque o INPI não passou por mudanças organizacionais relevantes durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, apesar delas se mostrarem urgentes e necessárias para que o Instituto pudesse desempenhar melhor sua função institucional. 43 Este efeito particular das ideias, presente na análise de GOLDSTEIN & KEOHANE, de gerar padrões de comportamento quando elas se impregnam nas instituições, será importante para efeito da análise que realizamos do INPI como exemplo ilustrativo de instituição que, desde 2004, assimila e encerra as ideias (neo)desenvolvimentistas do Governo Luiz Inácio Lula da Silva, no âmbito da política externa de propriedade intelectual e da política industrial.

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resultados políticos. Poder e interesse representam os fatores explicativos mais

relevantes, e a abordagem concentra-se em examinar os efeitos das ideias, mas

não o seu processo de constituição (1999, p. 19).

Os próprios GOLDSTEIN & KEOHANE se encarregam de deixar seus

propósitos bem claros ao distinguir sua abordagem de outras abordagens

cognitivas. Admitem explicitamente que estas demonstraram de modo

convincente que as pessoas processam informações de forma que se distanciam

significantemente do tipo-ideal de racionalidade e reconhecem que cientistas

políticos utilizaram-se fartamente de insights psicológicos para construir uma

literatura substancial que enfatiza como o processo cognitivo afeta as escolhas em

política externa. Contudo, embora as abordagens cognitivas certamente se

preocupem com ideias, uma vez que investigam crenças de indivíduos sobre a

realidade social que identificam possibilidades para a ação e refletem princípios

morais e relações causais específicas, os autores fazem questão de esclarecer que

estão preocupados não com as implicações da interpretação que os cognitivistas

conferem à realidade social, mas com outra faceta do papel das ideias: o impacto

de crenças específicas, compartilhadas por um amplo número de pessoas, sobre a

natureza dos seus mundos com implicações para a ação humana. O foco então é

no impacto de crenças específicas, não na relação entre as crenças e a realidade

objetiva. Os autores pretendem explicar não as raízes das ideias; restringem-se

apenas aos seus efeitos. (GOLDSTEIN e KEOHANE, op. cit, p. 6-7).

A perspectiva do “institucionalismo racional” de GOLDSTEIN &

KEOHANE é exemplo contundente de como o estudo das ideias afetou o campo

da análise de política externa. Mesmo assim, a proposta de “virada ideacional”

não esteve imune a algumas críticas. Partindo da concepção das ideias como

“crenças compartilhadas por indivíduos”, LAFFEY & WELDES criticam a

confusão conceitual existente na literatura em relação às ideias e a tendência de

igualá-las a categorias como “percepções” “ideologias” e outras semelhantes que

são empregadas de forma intercambiável (1997, op. cit, p. 197). Os autores

destacam dois aspectos em particular que enxergam como deficientes na análise

da influência das ideias na política externa. O primeiro deles é o de que a

literatura ideacional, embora se apresente como uma alternativa ao domínio das

perspectivas racionais nas relações internacionais e na política externa reproduz

muitos aspectos centrais deste modelo que pretende criticar. Em segundo lugar (e,

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para os autores, mais importante), a retenção da estrutura racional teve

consequências significativas e problemáticas para a forma como a ideias são

conceituadas (ibid p. 194). Tais problemas derivam da concepção implícita nesta

literatura de tratar as ideias como “objetos”. Esta concepção e suas consequências

para a compreensão do que as ideias são se manifesta em ao menos três

características das análises racionais – em primeiro lugar, as ideias e os interesses

são tratados, mesmo pelos maiores expoentes desta literatura, como variáveis

explanatórias rivais e separadas; em segundo lugar, presume-se que as ideias

possuem efeitos causais no sentido “neo-positivista” da palavra; e terceiro, as

ideias são definidas, ao menos explicitamente, como posses individuais, e

habitualmente como “crenças” ou “crenças compartilhadas”44 (ibid, p. 193-194).

No que tange à separação de ideias e interesses como categorias rivais e

separadas, SIKKINK, em seu estudo sobre a influência das ideais

desenvolvimentistas na Argentina e no Brasil (1991, op. cit, p. 5), reconhece que:

[...] a separação entre ideias e interesses é fundamentalmente falha. Fatores políticos e ideológicos influenciam o verdadeiro significado e a interpretação das ideias e recomendações econômicas. À exceção de sua forma mais crua, a compreensão e a formulação de fatos e interesses implicam na existência de um aparato conceitual. Conceber as ideias como justificativas intelectuais de ações que as pessoas querem tomar de qualquer forma é obscurecer o papel da ideias ao auxiliar as pessoas a compreender, formular e comunicar realidades sociais.45

Em seguida, SIKKINK argumenta que, para efeitos analíticos, pode ser

útil tentar separar inicialmente ideias e interesses e discutir se a política pode ser

entendida primeiramente com base em interesses plausivelmente inferidos dos

atores centrais, ou se é necessário conhecer mais sobre a existência e o conteúdo

das ideias para compreender os acontecimentos políticos (ibid, p. 6). Já

JACOBSEN (1995) aponta para o imbróglio de natureza teórica e metodológica

que deriva do argumento-base de que o poder das ideias explica a sua aceitação. 44 JACOBSEN (1995, p. 2) ao estudar a importância dos fatores cognitivos na economia política, ressalta a importância de excluir idiossincrasias ou crenças particulares de lideranças individuais como explicações aceitáveis. Não obstante, defende-se aqui que atributos pessoais de tomadores de decisão podem sim conferir maior persuasão às ideias. A liderança figura, pois, como uma variável interveniente relevante, de natureza cognitiva. 45 Tradução livre do original: [...] the separation of ideas and interests is fundamentally flawed. Political and ideological factors influence the very meaning and interpretation of economic ideas and recommendations. Except in its crudest form, the comprehension and formulation of facts and interests implies the existence of a conceptual apparatus. To conceive of ideas as intellectual justifications of actions that people wanted to take anyway is to obscure the role of ideas in helping people grasp, formulate, and communicate social realities.

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Este argumento necessita demonstrar “que interesses são interpenetrados por

ideias, para então demonstrar que essas mesmas ideias exercem uma influência

‘não contaminada’ pelos interesses que, como demonstrado previamente, elas

interpenetram” (DE MELLO E SILVA, op. cit, p. 145). Ideias e interesses só

podem ser concebidas como entidades separadas de um ponto de vista analítico, e

não empírico (JACOBSEN, op. cit, p. 10). As ideias representam suplemento

valioso para as análises racionais, mas não as substituem. Significa dizer que,

embora se deva reconhecer o papel proeminente das ideias na formulação de

políticas, esta teoria é mais uma forma de complementar do que de superar ou

substituir teorias baseadas no interesse (ibid, p. 5).46

Para LAFFEY & WELDES (1997, op. cit, p. 200) a tentativa de distinção

conceitual entre ‘ideias’ e ‘interesses’ tem duas importantes consequências. A

primeira diz respeito a não considerar a forma como os interesses são socialmente

construídos. Em resposta à pergunta “de onde os interesses vêm”, análises

ideacionais tendem a responder implicitamente que eles são determinados

independentemente de, e previamente, à aplicação das ideias (ibid, p. 200).

Pressupõe-se, por mero arbítrio analítico, que os interesses são dados e podem ser

tratados de forma não-ideacional.

A outra consequência é a tendência de compreender as ideias como meras

ferramentas que são utilizadas pelos tomadores de decisão para lidar com

diferentes audiências como as elites internacionais e as burocracias públicas. Se,

de fato, os interesses dos tomadores de decisão são definidos como analiticamente

distintos das ideias, então as ideias são consideradas meras justificativas ou

racionalizações a posteriori das políticas formuladas com base em interesses

materiais que já estão dados (ibid, p. 201). Assim, autores como JACOBSEN (op.

cit, p. 10) e SIKKINK (1993, p. 162) propõem pensar em “ideias” e “interesses”

não como categorias separadas, mas como um cluster em que ambas são

indissociáveis.

Como afirma SIKKINK (1991, op. cit, p. 243):

As ideais são as lentes, sem as quais nenhum entendimento dos interesses é possível. As ideias transformam as percepções dos interesses. As ideias sobre a

46 JACOBSEN alerta para o risco de se perder a noção quanto à dimensão dos fatores materiais que podem auxiliar para o sucesso de uma ideia, quando ela é tratada como um fetiche. Esta tendência seria endêmica às abordagens ideacionais (ibid, p. 5).

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economia e a política estão presentes desde o início no verdadeiro processo de formulação de interesse, moldando não só as percepções dos atores sobre as possibilidades, mas também seus entendimentos sobre os seus próprios interesses.47

Quanto à concepção neo-positiva de causalidade que informa a literatura

ideacional, LAFFEY & WELDES (1997, op. cit, p. 204) criticam o fato de que,

nesta concepção, a causalidade só pode ser inferida quando há uma mudança

observável na variável dependente (a política) que seja plausivelmente vinculada à

co-variação entre a mudança política e as ‘ideias’ dos tomadores de decisão.

‘Política’ e ‘ideias’ são tratadas como entidades individualizadas. De forma a

reivindicar que existe uma relação causal entre estas entidades, é necessário

demonstrar que as duas variáveis co-variaram, vale dizer, que quando a variável

independente (ideias) adquire um novo valor, a variável dependente (a política)

também muda. Os autores criticam a concepção da causalidade como lógica e

defendem uma concepção de causalidade generativa e relacional: “reivindicações

causais referem-se aos ‘poderes causais’ dos agentes sociais, que são conferidos

àqueles agentes pelas estruturas sociais e relações que os constitui”48 (apud

WELDES, 1989).

No que se refere à caracterização das ideias como “posses individuais”,

“crenças” ou “crenças compartilhadas”, LAFFEY & WELDES (1997, op. cit, p.

205) constroem sua crítica a partir da observação inicial de que há uma notável

incongruência entre as ideias como “crenças compartilhadas” (ou eventos

mentais) e como ferramentas ou implementos (externas aos indivíduos). Não fica

claro como os dois significados podem ser conciliados. Na concepção das ideias

como “crenças compartilhadas”, encontra-se embutido o entendimento de que elas

são, de certa forma, públicas, externas e separáveis dos indivíduos e, portanto,

podem ser utilizadas como “armas” (ibid, p. 206). Mas o que significaria “portar

uma crença compartilhada”? A implicação é pouco plausível para as “crenças”

comumente compreendidas como internas aos indivíduos. LAFFEY & WELDES

crêem que as ambiguidades terminológicas envolvendo as ideias são sintomáticas

47 Tradução livre: Ideas are the lens, without which no understanding of interests is possible. Ideas transform perceptions of interests. Ideas about economics and about politics are present from the beginning in the very process of formulating interests, shaping not only actors´ perceptions of possibilities but also their understandings of their own interests. 48 Tradução livre do original: Causal claims refer to the ‘causal powers’ of social agents, which are conferred on those agents by the social structures and relations that constitute them.

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da dificuldade em tratar de um fenômeno social em termos individualistas (ibid, p.

206). Ressaltam que tais incoerências derivam de uma concepção implícita na

maior parte das análises ideacionais: a das ideias como commodities. Significa

dizer que elas são tratadas como se fossem mercadorias fornecidas pelos

empreendedores políticos no ‘mercado político’ em resposta às ‘demandas’, e

então ‘circulam’ no meio deste ‘mercado’ para serem ‘vendidas’ e ‘consumidas’

(ibid, p. 207). As ideias são tratadas como “objetos concretos” que podem

influenciar causalmente outros objetos, no caso, a formulação de políticas. Enfim,

entendidas como commodities, as ideias apenas “causam”, elas não constituem ou

definem os interesses.

LAFFEY & WELDES frisam que a plausibilidade do entendimento das

ideias como ‘objetos’ ou ‘commmodities’ deriva do conjunto mais difundido de

entendimentos e analogias presentes na “metáfora do conduite” (conduit

metaphor) que seria dominante na cultura anglo-saxã de estudo da teoria das

comunicações (ibid, p. 208). A “metáfora do conduite” vislumbra as ideias como

objetos capazes de serem traduzidos em palavras, de forma que a linguagem é um

mero “contêiner” para as ideias. Estas são transmitidas por meio de palavras por

intermédio de um ‘conduite’, um canal de comunicação com outra pessoa, que

extrai as ideias das palavras. Dois aspectos dessa metáfora são relevantes para a

“metáfora das ideias como commodities”: as ideias construídas como objetos; e as

ideias como que existindo de forma separável das pessoas (ibid, p. 208).

A proposta de LAFFEY & WELDES é a de conceber as ideias como

“tecnologias simbólicas”, definidas como “sistemas intersubjetivos de

representações e práticas produtivas de representações” (ibid, p. 209). Os autores

sugerem que as ideias são parte de um conjunto mais amplo de práticas

linguísticas e simbólicas e que esta visão permite repensá-las como formas de

ação social, intersubjetivamente constituídas. A noção de “tecnologias

simbólicas” enfatiza os sistemas de representação – metaforicamente,

‘maquinários’, ‘aparatos’ ou ‘implementos’ simbólicos – que se desenvolveram

em circunstâncias espaço-temporais e culturais específicas e tornam possível a

articulação e a circulação de conjuntos de significado mais ou menos coerentes

sobre um objeto em particular. Conceituar as ideais como “tecnologias

simbólicas” permitiria escapar dos problemas associados a definir as ideias como

‘objetos físicos’ (sejam commodities ou outra coisa) ou como ‘coleções de

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crenças individuais’ (ibid, p. 210). As ideias são apresentadas então como “formas

compartilhadas de práticas, conjuntos de capacidades com os quais as pessoas

podem construir significados sobre si, seu mundo e suas atividades” (ibid, p. 210).

A metáfora das “tecnologias simbólicas” demonstraria o caráter social das ideias

ao propor o abandono do conceito das ideais como ‘crenças’ e sugerir o foco em

‘práticas’, e também ao demonstrar que as ideias não podem ser consideradas

separadas de interesses, mas, ao contrário, constitutivas dos mesmos (ibid, p.

211).

Atentando-se para este conjunto de críticas de LAFFEY & WELDES, é

preciso reconhecer seus méritos ao demonstrar algumas das principais limitações

explicativas das abordagens ideacionais. No que tange ao marco teórico de

referência que pretendemos adotar para a análise das políticas públicas brasileiras

de propriedade intelectual nos Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz

Inácio Lula da Silva, são necessários alguns esclarecimentos.

Em primeiro lugar, pretendemos trabalhar com a linguagem como mera

transmissora de ideias que, por sua vez, consideram-se como passíveis de

apreensão das mentes de tomadores de decisão. Não atribuímos à linguagem

nenhum caráter constitutivo nas relações sociais.49 Segundo, as ideias são

propositadamente tratadas a partir de uma perspectiva preponderantemente causal,

como que exercendo influência sobre o processo decisório de formulação de

políticas públicas de propriedade intelectual. Afinal, não se trata de exaurir

explicações com base nas ideias, apenas de demonstrar como a perspectiva

ideacional contribui para a compreensão de mudanças recentes na formulação de

políticas públicas brasileiras de propriedade intelectual.

Não obstante, um aspecto da abordagem de LAFFEY & WELDES merece

ser explorado, ainda que mais na forma de insights que a pesquisa pretende

aproveitar do que na de opção teórica propriamente dita: o da implicação da

concepção das ideais como “tecnologias simbólicas” para as relações sociais de

poder (ibid, p. 210). De acordo com LAFFEY & WELDES, não basta admitir que

as ideias podem ser “sustentadas” ou “utilizadas” pelos mais poderosos ou que

elas são habitualmente adotadas em razão de sua utilidade para interesses

poderosos. As tecnologias simbólicas “são em si formas de poder em função da

49 Como restará demonstrado no capítulo metodológico, a linguagem recebe tratamento como mera transmissora de ideias.

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54

capacidade de produzir representações”. Dependendo das circunstâncias do seu

emprego, práticas representacionais podem ter efeitos ideológicos diversos e

aparentemente contraditórios (ibid, p. 210).

Essa concepção das ideias como formas de poder capazes de produzir

representações permite conclusões interessantes para a caracterização do regime

internacional de propriedade intelectual como um ambiente ideacional de natureza

estrutural de constante embate e tensão entre duas “ideias-força”: a do

neoliberalismo/rentismo e a do desenvolvimento.50 Permite ainda caracterizar o

“neoliberalismo/rentismo” e o “desenvolvimento” (e o “novo desenvolvimento”)

não somente como ideias econômicas que influenciaram e influenciam a

formulação de políticas públicas de propriedade intelectual no Brasil, mas

também como representações com efeitos ideológicos diversos. Entre eles,

podemos mencionar o da disseminação do argumento, por força das ideias

neoliberais/rentistas, de que a elevação dos patamares nacionais de proteção dos

direitos de propriedade intelectual constitui caminho necessário para se atingir o

“Eldorado” do clube seleto dos países mais desenvolvidos.51

A “virada ideacional” não esteve restrita, contudo, à Análise de Política

Externa. Repercutiu também em áreas co-relacionadas como a das Políticas

Comparadas, resultando no que se convencionou chamar de “institucionalismo

histórico”. Como veremos, não somente na crítica do institucionalismo racional,

mas também no institucionalismo histórico, há um “lugar reservado para o poder”

do ponto de vista teórico e analítico. Voltamo-nos agora para as características

mais amplas desta escola de pensamento econômico.

2.3 O “Institucionalismo Histórico”: características gerais

Ao discorrer sobre o trabalho de GOLDSTEIN e KEOHANE (1993),

FINNEMORE e SIKKINK (2001, p. 402) afirmam que ele deve ser

compreendido como uma tentativa de compatibilizar os efeitos das ideias com

abordagens utilitaristas – as ideias como “mapas de estrada” e “pontos focais” que

50 Com a assinatura do Acordo TRIPS, entende-se que a segunda foi amplamente sobrepujada pela primeira. Esta discussão é realizada no capítulo 4. 51 Tais efeitos são mencionados no mesmo capítulo 4.

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auxiliam atores que maximizam utilidades a atingir seus objetivos de forma mais

efetiva. As autoras enxergam semelhanças entre este trabalho e as pesquisas no

campo das políticas comparadas em economia política (ibid, p. 402), em especial

o institucionalismo histórico de HALL (1989), SIKKINK (1991; 1997) e

FINNEMORE (1997).

Por seu turno, BLYTH (1997) critica o institucionalismo histórico ao

afirmar que ele não representa um exame sério acerca do papel das ideias no

campo da economia política: assim como o institucionalismo racional, o

institucionalismo histórico trataria das ideias de forma instrumental e funcional,

como meras extensões progressivas dos seus programas de pesquisa. A crítica do

autor se concentra na tendência das duas abordagens institucionalistas em

caracterizar ideias como meros “excedentes” ou “enchimentos” que sustentam os

programas de pesquisa já existentes, ao invés de tratá-las como objeto de

investigação em seus próprios termos (ibid, p. 229).

Discordamos aqui da crítica de BLYTH, por entendermos que o

institucionalismo histórico logra escapar da armadilha conceitual e analítica

apontada e que GOLDSTEIN & KEOHANE (1993) fazem questão de não

enfrentar. A partir deste momento, vemos como, discorrendo sobre as suas

características gerais.

De acordo com HALL & TAYLOR (1996, p. 6), os institucionalistas

históricos enxergam a organização institucional da política e da economia política

como o fator principal que estrutura o comportamento coletivo e gera distintos

acontecimentos. As instituições são definidas como “os procedimentos, rotinas,

normas e convenções formais e informais encerradas na estrutura organizacional

da política e da economia política” (ibid, p. 6).

Os autores discorrem sobre aquelas que seriam as quatro principais

características distintivas do institucionalismo histórico em relação a outras

abordagens institucionalistas, como o institucionalismo da escolha racional e o

sociológico.52 Tratam-se das seguintes: 1) compreende a relação entre instituições

e comportamento dos atores em termos amplos; 2) enfatiza as assimetrias de

poder relacionadas com a operacionalização e o desenvolvimento das instituições;

3) tende a ter uma visão do desenvolvimento institucional que enfatiza as noções

52 Ver também MISI (2003).

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de path dependence e das consequências não intencionais; e, 4) procura incorporar

à análise institucional outros fatores, tais como as ideias, e compreender como

elas afetam os eventos políticos (ibid, p. 7). HALL & TAYLOR refletem sobre

cada uma dessas características.

A questão colocada inicialmente é: como as instituições afetam o

comportamento dos indivíduos? Afinal de contas, é por intermédio das ações dos

indivíduos que as instituições exercem efeito sobre os acontecimentos políticos.

De acordo com a literatura institucionalista, haveria duas formas de se responder a

essa pergunta: por intermédio da “abordagem do cálculo” e da “abordagem

cultural”. Cada uma delas oferece respostas bem diferentes às seguintes perguntas:

como os atores se comportam? O que as instituições fazem? Por que as

instituições persistem ao longo do tempo? (ibid, p. 7).

Em relação à primeira questão, os adeptos da “abordagem do cálculo”

destacam aqueles aspectos do comportamento humano que seriam instrumentais e

baseados em cálculos estratégicos. Indivíduos procuram maximizar o alcance de

um conjunto de objetivos e comportam-se estrategicamente, o que significa que

podem avaliar todas as opções possíveis e selecionar aquelas que estão de acordo

com o seu máximo benefício. As preferências e os objetivos dos atores são dados

de forma exógena à análise institucional (ibid, p. 7).

Quanto à pergunta seguinte, acerca do que as instituições fazem, os

partidários da “abordagem do cálculo” entendem que as instituições afetam o

comportamento ao abastecer os atores com maior ou menor grau de certeza sobre

o comportamento presente e futuro de outros atores. Enfim, as instituições afetam

a ação individual ao alterar as expectativas que um ator tem sobre as ações que os

outros estão propensos a tomar em resposta ou simultaneamente à sua própria

ação. A interação estratégica desempenha, portanto, papel central (ibid, p. 7).

As duas questões mencionadas merecem outro tratamento por parte da

“abordagem cultural”. Em relação à primeira, defendemos que o comportamento

dos indivíduos não é completamente estratégico, mas também demarcado por suas

“visões de mundo”. Significa dizer que, sem procurar negar que o comportamento

humano é racional, a “abordagem cultural” enfatiza a extensão por meio da qual

os indivíduos se voltam para rotinas estabelecidas ou padrões familiares de

comportamento para atingir os seus objetivos. A escolha de um curso de ação por

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um indivíduo depende da sua interpretação mais do que de um cálculo puramente

instrumental (ibid, p. 7-8).

Quanto ao que as instituições fazem, a “abordagem cultural” sustenta que

as instituições fornecem modelos cognitivos para a interpretação e a ação. O

indivíduo é visto como alguém mergulhado em um mundo de instituições,

compostas de símbolos, scripts e rotinas, que oferecem os filtros tanto sobre si

quanto sobre a situação, fora dos quais um curso de ação é construído.

Entendemos que as instituições não somente fornecem informações

estrategicamente úteis, como também afetam as identidades, autoimagens e as

preferências dos atores (ibid, p. 8).

No que se refere às razões dos padrões regulares de comportamento

associados com as instituições terem continuidade ao longo do tempo, a

“abordagem do cálculo” defende que os indivíduos aderem a tais padrões porque

se desviar dos mesmos pode representar algo mais prejudicial do que a adesão.

Em outras palavras, quanto mais uma instituição contribui para a resolução dos

problemas de ação coletiva ou quanto mais ganhos resultantes desta troca ela traz,

mais robusta (sólida) ela será (ibid, p.8). Por outro lado, a “abordagem cultural”

explica a persistência das instituições frisando que muitas das convenções

associadas com as instituições sociais não podem ser consideradas, de plano,

objetos explícitos da escolha individual. Algumas instituições, ao contrário, são

construções coletivas bastante difíceis de serem transformadas por qualquer único

indivíduo. As instituições resistem a serem redesenhadas porque elas estruturam

as verdadeiras escolhas sobre reforma que o indivíduo está propenso a fazer (ibid,

p. 8).

Um traço característico do institucionalismo histórico é o seu ecletismo:

seus adeptos se utilizam de ambas as abordagens – “do cálculo” e “cultural” –

para refletir sobre as relações entre as instituições e a ação. Ao mesmo tempo em

que procuram considerar como os indivíduos maximizam os seus interesses, com

base na estratégia do cálculo racional, sugerem que as estratégias induzidas por

um determinado ambiente institucional podem se solidificar ao longo do tempo

em visões de mundo (ou ideias) que são difundidas por organizações formais e

que, em última instância, também moldam as autoimagens e as preferências dos

atores envolvidos (ibid, p. 9).

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58

A segunda característica distintiva do institucionalismo histórico é a do

papel proeminente conferido ao poder e às relações assimétricas de poder em suas

análises:

[...] institucionalistas históricos tem atentado especialmente para a forma pela qual as instituições distribuem poder desigualmente entre grupos sociais. Ao invés de postar cenários de indivíduos “livre-contratantes”, estão mais propensos a aceitar um mundo em que as instituições conferem a alguns grupos de interesse acessos desproporcionais aos canais de tomada de decisões[...]. (ibid, p. 9)

Em interessante estudo sobre mudanças no campo das ideias econômicas,

observadas na CEPAL durante a década de 80, SIKKINK afirma que qualquer

análise sobre transformação ideacional não pode deixar de reconhecer que o poder

claramente desempenha um importante papel (1997, op. cit, p. 236-237). De

acordo com a autora, mudanças de política econômica nos países em

desenvolvimento normalmente implicam em mais coerção externa do que nos

países mais desenvolvidos, porque as decisões dos atores econômicos externos

(notadamente as organizações financeiras internacionais como o FMI e o Banco

Mundial) exercem efeitos mais poderosos em economias mais vulneráveis (ibid,

p. 237). Contudo, mesmo que reconheçamos que a atuação das organizações

financeiras internacionais é vital para a compreensão da adoção de políticas

econômicas neoliberais na América Latina a partir da década de 80, não podemos

atribuir tais mudanças apenas a variáveis externas, correndo-se o risco de omitir

uma parte importante da história (ibid, p. 237).53

No que se refere à preocupação em discutir a relação entre poder e ideias,

é interessante notar como os institucionalistas históricos guardam, neste ponto em

particular, presunções próximas às dos autores que FINNEMORE & SIKKINK

denominam de “construtivistas críticos” (2001, op. cit, p. 398). Os construtivistas

críticos, embora compartilhem das características centrais atribuídas a todos os

construtivistas, são mais céticos quanto à possibilidade de estabelecer uma relação

de autonomia entre as ideias e o poder. Inspirados nos estudos da teoria crítica

social de Anthony Giddens, Jurgen Habermas e Michel Foucault, os

construtivistas críticos acreditam que as construções sociais podem refletir,

53 Da mesma forma, pode-se afirmar que, embora o regime internacional de propriedade intelectual represente uma variável externa estrutural relevante, isto não obstou que se operassem mudanças ideacionais importantes no campo da política externa brasileira de propriedade intelectual.

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decretar e reificar relações de poder, considerando que certos grupos poderosos

desempenham um papel privilegiado no processo de construção social. Assim, é

necessário desmascarar estas estruturas ideacionais de dominação para facilitar a

imaginação de mundos alternativos. Desse modo, os construtivistas críticos

atribuem às ideias um papel autônomo mais fraco porque elas são vistas como

estreitamente vinculadas às relações materiais de poder.54

Atentamos para estas aproximações entre os institucionalistas históricos e

construtivistas críticos porque compartilhamos aqui da presunção de que ideias e

poder não são entidades conceituais facilmente separáveis. Enfim, o poder

material certamente existe e possui relevância, mas o poder institucional e

normativo não pode ser considerado menos fundamental. Na realidade, o poder

material só adquire eficácia quando ele opera com o suporte de instituições e

valores.55 Este entendimento é fundamental, por exemplo, para compreender o

regime internacional de propriedade intelectual do Acordo TRIPS. Instituições

como a OMC foram criadas e valores rentistas (caros à ortodoxia neoliberal)

54 Entre os construtivistas críticos, podemos destacar o estudo de WELDES (1996) sobre a crise dos mísseis em Cuba. A autora argumenta que a crise foi uma construção social forjada por oficiais do Governo dos Estados Unidos de forma a reafirmar sua identidade como líder do “mundo livre”. 55 As limitações da tradição realista, na sua forma estrutural, no que tange à compreensão do poder como restrito exclusivamente a uma dimensão material são expostas no diagnóstico elaborado por Cox: “o neorealismo confere destaque aos Estados reduzidos a sua dimensão de força material e similarmente reduz a estrutura da ordem mundial à balança de poder como uma configuração de forças materiais. O neorealismo tende a atribuir pouco valor aos aspectos normativos e institucionais da ordem mundial” (Cox, 1986, p. 1551). É em razão deste diagnóstico que Cox considera como uma das três forças inter-relacionadas presentes em seu modelo dialético de estruturas históricas, as ideias (as outras duas são as instituições e as capabilities materiais), entendidas como “significados intersubjetivos ou aquelas noções compartilhadas sobre a natureza das relações sociais que tendem a perpetuar hábitos e expectativas de comportamento”. (ibid, p. 1548) As ideias podem ser também “diferentes imagens coletivas da ordem social sustentadas por diferentes grupos de pessoas”. (ibid, p. 1548). Já as instituições são definidas como “amálgamas particulares das idéias e do poder material que por outro lado influenciam o desenvolvimento das idéias e das capabilities materiais”. (ibid, p. 1549) Estas são descritas por Cox como “possibilidades produtivas e destrutivas” (ibid, p. 1548) que “em sua forma dinâmica existem como capabilities organizacionais e tecnológicas e, na sua forma acumulada, como recursos naturais que a tecnologia pode transformar, estoques de equipamentos (indústrias e armamentos) e a riqueza que pode comandar tudo isso” (ibid, p. 1548). Obviamente, sem riqueza, não se pode comandar a produção, mas, para Cox, a capacidade de investir não decorre da mera detenção de dinheiro, mas também de conhecimento (Cox, 1986, p. 1560). Daí a importância da relação dialética das ideias com as demais forças porque também é a partir delas que o desenvolvimento de novas tecnologias, por exemplo, se torna possível (Cox, 1986, p. 1560). Enfim, o poder material não é ignorado por Cox. Contudo, não é a única força social presente para explicar as mudanças na ordem mundial. As instituições são amálgamas do poder material e das ideias e interagem de forma recíproca com estas e as capabilities materiais. Seria reducionismo procurar explicar as mudanças na história somente a partir de uma dimensão meramente material do poder.

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acerca da propriedade intelectual afirmados de forma a conferir suporte ao poder

material dos países mais desenvolvidos, detentores de tecnologia e conhecimento

avançados.

De volta às características centrais do institucionalismo histórico, a terceira

delas refere-se à perspectiva de “desenvolvimento histórico” de seus adeptos,

convictos proponentes de uma noção de causalidade social path dependence, no

sentido de que rejeitam o postulado tradicional de que as mesmas forças

operativas irão sempre gerar os mesmos resultados em todo lugar, em favor da

visão de que os efeitos dessas forças são filtrados pelas características contextuais

de uma determinada situação, habitualmente herdadas do passado. Entre tais

características, reputamos as mais significativas como sendo institucionais em sua

natureza. As instituições são vistas como características persistentes do cenário

histórico e um dos fatores centrais responsáveis por impulsionar o

desenvolvimento histórico ao longo de um conjunto de diferentes vias ou rotas –

paths (HALL & TAYLOR, 1996, op. cit, p. 9).

A existência de path-dependence, aceita pelos institucionalistas históricos,

expressa, portanto, o caráter irreversível e histórico de qualquer sistema social que

é estudado (MOREIRA & HERSCOVICI, 2006, p. 551). O passado é irrevogável,

o que significa que ele não pode ser reproduzido com exatidão, uma vez que as

condições iniciais não são mais as mesmas; o futuro, por sua vez, atém-se ao

imaginário dos agentes: ele não existe ex ante (ibid, p. 551).

Finalmente, a quarta e última das características gerais do

institucionalismo histórico é a de que, apesar de conferirem atenção ao papel das

instituições na vida política, seus adeptos raramente defendem que elas sejam a

única força causal na política. Eles procuram situar as instituições numa cadeia

causal capaz de contemplar papéis relevantes para outros fatores, notadamente o

desenvolvimento socioeconômico e a difusão de ideias (HALL & TAYLOR, op.

cit, p. 10).

É este último aspecto central na abordagem do institucionalismo histórico

que enfatizamos agora. Com efeito, FINNEMORE & SIKKINK (op. cit, p. 405)

destacam que, provavelmente, a mais desenvolvida abordagem da literatura

cognitiva seja justamente a literatura ideacional, especificamente a que se

desenvolveu no campo da Economia Política Comparada para explicar a

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influência das ideias econômicas no processo decisório econômico.56 Segundo as

autoras (ibid, p. 405), as questões centrais objetos de reflexão desta corrente

seriam as seguintes: a) Como novas ideias emergem e ganham proeminência? b)

Como as ideias se institucionalizam e adquirem uma vida própria? c) Como,

porque e quando novas ideias importam, em qualquer circunstância em particular?

Na mesma linha de raciocínio, AKERLOF & SHILLER defendem que não

é possível compreender como a economia funciona sem prestar a devida atenção

aos padrões de pensamento que movem as ideias e os sentimentos das pessoas – o

que os autores chamam de animal spirits (2009, p. 1). O livro dos autores

apresenta um exercício complexo de psicologia aplicada aos estudos econômicos

que visa demonstrar que a crise financeira global de 2008 deve e só pode ser

explicada a partir da aceitação da premissa de que as pessoas não se comportam

apenas racionalmente na perseguição dos seus interesses. Os animal spirits devem

ser levados também em consideração (ibid, p. 3).

A unidade de análise dos trabalhos ideacionais pode ser tanto o indivíduo,

quanto comunidades de indivíduos que compartilham ideias comuns, ou ainda

instituições nas quais as ideias se encerram. Tal literatura se interessa pelos

processos por meio dos quais ideias inicialmente sustentadas por um pequeno

grupo de pessoas (em geral, uma escola de economistas) tornam-se amplamente

defendidas (intersubjetivas). (ibid, p. 406) 57

Um traço em comum dos mesmos trabalhos ideacionais é o de tentar

demonstrar que novas ideias habitualmente emergem em resposta a crises, falhas

ou choques políticos dramáticos, quando políticas passadas comprovadamente

falharam na resolução de problemas, levando à busca de novas concepções que

sirvam de anteparo para as novas políticas (ibid, p. 406). Esta relação entre

crise/falha e a adoção de novas ideias pode ser observada em diferentes países e

períodos históricos. Entre os tipos de crise ou falha mais substanciais estão as

grandes depressões e as guerras. Contudo, embora crises e falhas possam explicar

porque determinadas ideias perdem influência, são insuficientes para explicar

56 Entre os que podem ser mencionados como pertencentes a esta escola, estão os já mencionados trabalhos de HALL (1989), SIKKINK (1991; 1997), FINNEMORE (1997), JACOBSEN (1995), BLYTH (1997) e McNAMARA (1998). 57 Neste aspecto em particular, a literatura ideacional do campo da Economia Política Comparada se aproxima do pensamento construtivista, uma vez que parte dela sustenta que os interesses dos atores são mais construídos por ideias compartilhadas do que presumidos por natureza (ibid, p. 406).

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porque novos modelos econômicos são aceitos (ibid, p. 406). O que explicaria

então que novas ideias sejam aceitas e adotadas na formulação de políticas?

Ao tentar explicar a cooperação monetária europeia verificada a partir de

metade dos anos 70 e início dos anos 80, McNAMARA (1998) frisa que o

consenso político neoliberal que elevou a perseguição de inflação em detrimento

do crescimento e do emprego instalou-se entre as elites políticas, resultando

eventualmente na convergência descendente das taxas de inflação. Este consenso

político, por sua vez, resultou na redefinição dos interesses estatais em prol da

cooperação, induzindo líderes políticos a aceitar os ajustes políticos domésticos

necessários a permanecer no sistema monetário europeu (ibid, p. 3).

Mas o que explicaria o consenso político neoliberal ter sido tão importante

para o sistema monetário europeu? De onde surgiu este consenso e quais foram

suas fundações políticas? A autora propõe responder a estas perguntas explorando

a interação entre a economia internacional em transformação, em que os fluxos de

capitais cresceram de forma exponencial e os processos domésticos de tomada de

decisões, especificamente as crenças de líderes políticos. Assim, tanto as

transformações na estrutura da economia política internacional quanto os fatores

ideacionais que moldaram as respostas dos tomadores de decisão às mudanças

estruturais são cruciais para conhecer a trajetória da integração monetária europeia

(ibid, p. 3-4).

Assim, para compreender a evolução do sistema monetário europeu não

basta olhar para o nível de análise internacional. É preciso se concentrar também

no processo de tomada de decisões, particularmente em como as elites políticas

medem os custos e benefícios da cooperação monetária dentro do contexto

econômico internacional em transformação (ibid, p. 4). As ideias58 sustentadas

pelos líderes políticos sobre a política macroeconômica são consideradas

fundamentais para explicar o caminho escolhido pelos Estados europeus e para

onde devem se direcionar no futuro. Os atores políticos se utilizam das ideias para

valorar os custos e benefícios da cooperação monetária e escolher uma estratégia

política. Enfim, eles se valem das ideias para apresentar respostas às perguntas

sobre valores e estratégias, como, por exemplo: Quais devem ser os objetivos da

58 McNAMARA adota o conceito de GOLDSTEIN & KEOHANE (1993), das ideias como “crenças causais compartilhadas” (ibid, p. 4).

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política monetária europeia? Quais os instrumentos que podem ser utilizados na

busca destes objetivos? (ibid, p. 5).

De forma, então, a explicar porque as ideias econômicas neoliberais

triunfaram na arena política europeia, tornando a cooperação monetária mais

provável, McNAMARA apresenta três fatores que entende como essenciais para

responder não só a esta problemática enunciada, como também para compreender

de que forma determinadas ideias se tornam dominantes em certos momentos

históricos, enquanto outras são deixadas de lado: o processo de falha política, a

inovação do paradigma político e a emulação política (ibid, p. 5). Em primeiro

lugar, a sensação de crise política que acompanhou os governos europeus após a

primeira crise do petróleo teria estimulado a busca de alternativas às políticas

keynesianas e criado espaço para novas concepções do papel do governo na

macroeconomia. Segundo, as teorias monetaristas teriam funcionado como

estruturas legitimadoras de uma nova estratégia econômica que tornou a política

anti-inflacionária prioridade, em detrimento dos objetivos de crescimento e

emprego. Finalmente, o sucesso da então Alemanha Ocidental na adoção de uma

política monetária que enfatizava uma moeda forte e estável forneceu aos

tomadores de decisão um poderoso exemplo para emular (ibid, p. 5-6). Ou seja, a

“vontade de outros governos europeus de seguir o exemplo alemão aumentou as

chances de coesão do sistema monetário europeu, porque o marco alemão serviria

de âncora” (ibid, p. 6).

Nota-se que McNAMARA procura preencher a lacuna deixada pela

explicação das “falhas” ou “crises” políticas – satisfatória para entender por que

algumas ideais caem no ostracismo, mas insuficiente para compreender por que

novas ideias emergem, oferecendo um modelo explicativo suplementar que

introduz as noções de “inovação do paradigma político” e “emulação política”.

Embora a abordagem da autora seja interessante e válida, interessou-nos aqui

analisar mais a fundo como outro autor lida com a mesma questão teórica. Com

efeito, o suplemento oferecido por HALL (1989) às noções simples e opostas de

“falha” e “sucesso” é a noção de “persuasão”. Para HALL, o que tornaria uma

ideia persuasiva seria a forma como ela se relaciona aos problemas políticos e

econômicos do momento. Tanto o “sucesso” quanto a “falha” são interpretados

em termos do que é percebido como os problemas mais prementes que um país

enfrenta em um determinado momento (FINNEMORE & SIKKINK, op. cit, p.

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406). O argumento de HALL alinha-se a uma premissa central desta pesquisa: que

a aceitação de qualquer ideia econômica depende de um bem sucedido e elegante

exercício de retórica e de uma boa capacidade de convencimento.

2.3.1 Peter Hall e o Poder de Persuasão das Ideias Econômicas

Para HALL (1989), no mundo da economia, em que os interesses materiais

e os fluxos monetários tendem a predominar, propor um livro sobre o papel das

ideias pode parecer pouco ortodoxo. Negligenciar o papel das ideias na economia

política, contudo, significa perder de vista um importante componente dos

mundos político e econômico. São as ideias, na forma de teorias econômicas e das

políticas desenvolvidas a partir delas, que permitem aos líderes59 escolher um

curso em momentos de turbulência econômica e formar convencimento sobre o

que é eficiente, expediente e justo de forma a motivar o movimento de uma linha

política para outra. (ibid., p. 361).

HALL reconhece que através dos tempos a política tem sido

tradicionalmente vista como uma luta pelo poder, uma contenda em torno de

recursos escassos que recorrentemente leva a conflitos em razão do desejo de

domínio desses mesmos recursos. Mas, sem querer contestar este postulado,

afirma que a política é muito mais do que isso; ela é também um processo através

do qual os ideais básicos e a identidade de uma nação são definidos, de forma a

tentar controlar os problemas coletivos que assolam as sociedades. Por isso as

ideias são importantes (ibid, p. 389)

Como esclarece o autor, os ensaios que compõem a obra The Political

Power of Economic Ideas: keynesianism across nations, se destinam a fornecer

um relato detalhado da recepção conferida pelas nações mais industrializadas do

mundo às ideias de Keynes e revêem o processo pelo qual estas ideias se tornaram

um componente importante da política. Embora a noção de um “Estado

keynesiano” ou de uma “Era keynesiana” seja comumente empregada para se

referir às práticas econômicas associadas com a administração da economia 59 É uma tônica na análise de HALL o destaque conferido às lideranças no processo de tomada de decisões. É por esta e outras razões que restarão explicadas que a variável “liderança” também figura como importante no nosso marco teórico de referência. Veremos que esta é uma tônica de boa parte das abordagens do institucionalismo histórico.

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capitalista no período que se seguiu após a Segunda Guerra Mundial, os ensaios

presentes no livro descrevem o processo através do qual uma teoria econômica em

particular adquiriu múltiplos significados em arenas econômicas de diferentes

nações (ibid., p. 3-4).

HALL demarca os três principais objetivos do trabalho.60 Entre eles,

interessa-nos aqui, particularmente, o terceiro: o de “explorar a forma pela qual o

keynesianismo, como um conjunto geral de ideias simbólicas, tornou-se um

componente dos compromissos políticos que estruturaram a economia política do

mundo após a Segunda Guerra” (ibid., p. 7). De fato, muitas das conclusões do

estudo de Hall, no que se refere ao keynesianismo como um conjunto geral de

ideias simbólicas, pode ser transporto para outros conjuntos de ideias econômicas,

como, no nosso caso, o da ortodoxia neoliberal e o do “novo

desenvolvimentismo”.61

Para poder atingir os objetivos propostos, HALL afirma que é necessário

um esforço no sentido de desenvolver um aparato teórico adequado. Desta forma,

constrói uma tipologia de variáveis explicativas sobre a influência do

keynesianismo na adoção de políticas econômicas nacionais. As abordagens que o

autor sugere, com base na revisão da literatura presente nos ensaios, são de três

tipos: 1) “centrada na economia”; 2) “centrada no Estado”; e, 3) “centrada em

coalizões”. É possível que duas ou três delas coexistam, da mesma forma que

cada uma pode incorporar elementos da outra. No entanto, para efeito analítico,

HALL se dedica a explicar cada uma, na forma de “tipos ideais” (ibid, p. 7-8).

No caso da abordagem centrada na economia, ela lida com o problema da

aceitação de políticas fundamentalmente como uma questão de explicar a

influência que determinadas ideias econômicas alcançam entre membros da

profissão de economistas. Esta abordagem contém um modelo implícito de

processo decisório que privilegia o papel dos economistas profissionais e enfatiza

o impacto na política dos conselheiros especializados. Um conjunto de fatores

especialmente significativo na abordagem centrada na economia é o que se refere

60 O primeiro objetivo é o de explicar a vontade dos governos de se engajar em gastos com déficits durante os anos 30 ou lidar com demandas anticíclicas durante o pós-Segunda Guerra. O segundo é o de traçar e dar conta da influência relativa das ideias keynesianas nas políticas de cada nação (ibid, p. 7). Estados Unidos, Grã-Bretanha, Japão, Itália e a antiga República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental) são algumas das nações estudadas. 61 O conceito de ideias econômicas é explicado mais à frente, quando tratarmos da abordagem de SIKKINK (1992).

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aos parâmetros institucionais que estruturam a comunicação entre os economistas

e a comunicação destes com os tomadores de decisão. Em qualquer nação, isto

deve incluir, entre outros fatores, a abertura das autoridades públicas ao

aconselhamento e ao pessoal oriundos de centros acadêmicos da economia e a

influência relativa de economistas profissionais no processo de tomada de

decisões do governo (ibid, p. 8-9). Este aspecto, da influência de economistas

profissionais no processo decisório de políticas públicas é fundamental para

compreender mudanças ideacionais na formulação da política externa de

propriedade intelectual e da política industrial, do Governo Fernando Henrique

Cardoso para o Governo Luiz Inácio Lula da Silva. Em cada um deles, o grau de

influência da academia, de conselheiros e da tecnocracia econômicas (com seus

diferentes perfis) na concepção da política externa de propriedade intelectual e da

política industrial, foi bem distinto.

HALL afirma que a abordagem centrada na economia possui uma grande

virtude e uma grande debilidade. Sua virtude é chamar nossa atenção para as

qualidades das ideias em si, pois sugere que elas podem ter persuasão62 e, assim,

dinamismo político próprio. Deve-se frisar, contudo, que a persuasão de um novo

conjunto de ideias econômicas é sempre relacional, significa dizer, depende não

somente das ideias em si, mas da forma com que se encaixam com outras ideias,

incluídas as teorias econômicas existentes e as observações da economia mundial

contemporânea (ibid, p. 9-10). Deduzimos daí que não há como esperar que a

tentativa de revitalização de uma ideia econômica, como a do desenvolvimento,

faça com que ela possa voltar a se manifestar e influenciar na formulação de

políticas públicas da mesma forma que no passado.63 As novas circunstâncias da

economia internacional e os embates e diálogos com as demais correntes - como,

principalmente, o pensamento econômico neoliberal, predominante durante toda a

década de 90 – levaram a inevitáveis readequações e readaptações.64

62 No caso da formulação da política externa de propriedade intelectual, e da política industrial – com atenção para a reestruturação do INPI -, cremos que fator importante que contribuiu para mudanças no campo das ideias do Governo Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva foi não somente o caráter persuasório das ideias em si, mas também (decisivamente) os perfis de determinadas lideranças individuais. Daí a liderança ingressar como variável interveniente na análise. O argumento desenvolvido é o de que lideranças, com seus atributos pessoais, auxiliam a conferir maior persuasão às ideias. 63 Referimo-nos aqui especificamente ao estruturalismo cepalino, dominante na América Latina entre os anos 50 e 70. 64 Nota-se neste ponto a noção de path dependence. Por isto nos referirmos a um “novo desenvolvimentismo”. Outros motivos para esta terminologia são explicitados mais adiante.

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A abordagem centrada na economia pode ser considerada problemática,

por atribuir demasiada influência dos profissionais da economia sobre a política.65

HALL admite que mesmo em nações em que os economistas estiveram

fortemente envolvidos no processo político, teorias econômicas foram com

frequência apenas mais uma entre as tantas considerações determinantes para a

política (ibid, p. 10). Não obstante, não há como não se atentar a este aspecto, por

ser uma característica marcante do processo decisório de políticas públicas no

Brasil, de Fernando Collor de Mello a Fernando Henrique Cardoso, o

protagonismo alcançado por tecnocracias econômicas de perfil neoliberal na

formulação de políticas públicas, com repercussões tanto sobre a política externa

quanto sobre a política industrial.

A abordagem centrada no Estado é a segunda das sugeridas por HALL.

Ela sugere que a recepção em relação a novas ideias econômicas será influenciada

pela configuração institucional do Estado e a existência anterior de políticas

relacionadas. Na esfera de formulação de políticas, espera-se que a abertura

relativa das instituições do processo decisório aos conselhos de economistas que

não integram o aparato estatal afete a velocidade com que as considerações da

teoria econômica podem ser incorporadas à política e que as distorções

administrativas implícitas nas divisões institucionais de responsabilidades dentro

do Estado irão condicionar a receptividade das agências centrais às novas ideias.

Alguns Estados irão deter a capacidade burocrática para empreender um novo

programa bem rapidamente, enquanto outros que não a detém poderão hesitar a

aceitá-lo (ibid, p. 11).

HALL entende que a abordagem centrada no Estado tem o mérito de

fornecer um conjunto de ferramentas para explicar variações na receptividade

conferida às ideias econômicas (no caso, keynesianas) em cada um das nações

estudadas. O autor sugere que tais variações podem ser explicadas em referência à

configuração institucional dos instrumentos de formulação de políticas de um

Estado e aos precedentes relevantes acumulados de políticas econômicas

anteriores66 (ibid, p. 12).

65 Para um breve histórico do papel crescente que os economistas assumiram no âmbito da Administração Pública, a partir da Segunda Guerra Mundial, ver BACKHOUSE (2007, p. 339-341). 66 Nota-se aqui uma semelhança com o fator da emulação, presente em McNAMARA (1998).

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Contudo, a abordagem centrada no Estado guarda também algumas

ressalvas. Para o autor, a visão Estado-cêntrica privilegia o papel dos oficiais, das

burocracias e desvaloriza o dos políticos. Subestima-se a contribuição que os

líderes políticos podem prestar para um determinado resultado político e se

superestima a imutabilidade das instituições e a capacidade de domesticação das

políticas predominantes (ibid, p. 12). Filiamo-nos a esta crítica, por entendermos

que lideranças políticas individuais tiveram marcada influência sobre o processo

decisório de políticas públicas de propriedade intelectual no Brasil no Governo

Luiz Inácio Lula da Silva, particularmente no processo de formulação da política

industrial e na proposta de reestruturação do INPI levada a cabo a partir de 2004.

Conhecer e compreender os atributos de personalidade de algumas dessas

lideranças é fundamental, pois é com base nestes atributos e em suas experiências

pessoais e profissionais que elas procuram conferir maior persuasão às ideias e

fazer com que as mesmas se impregnem de forma bem sucedida nas instituições

que comandam.

A terceira e última das abordagens apresentadas por HALL é a abordagem

centrada em coalizões, cujo foco é no sistema político mais amplo para a

explicação da política econômica. Esta abordagem enfatiza que as políticas devem

angariar apoio de amplas coalizões de grupos econômicos de cujos votos e boa-

vontade os políticos em última instância dependem. Assim, o quanto uma nação

se encontra disposta a implantar determinadas políticas pode depender da

habilidade de seus políticos para forjar uma coalizão de grupos sociais que seja

ampla o bastante para mantê-los em seus cargos e que esteja inclinada a

considerar as políticas propostas como de seu interesse. A viabilidade de tal

coalizão depende da engenhosidade de seus políticos e da constelação de

preferências expressas pelos grupos econômicos relevantes (ibid, p. 12).

Para HALL, a abordagem centrada em coalizões é importante por nos

fazer recordar que a política trata, em última instância, de conflitos entre grupos

com interesses divergentes. A economia política traz consequências importantes

para os interesses materiais dos grupos sociais. Contudo, apesar de ter o mérito de

trazer os políticos e os grupos sociais mais diretamente para a explicação da

política, deixa um tanto em aberto a questão sobre como esses grupos acabam por

definir seus interesses de uma forma em particular. Para o autor, isto depende de

algumas variáveis adicionais como o legado das políticas existentes e o impacto

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que a teoria econômica pode ter sobre as formas convencionais de se enxergar o

mundo (ibid, p. 13).

Do exposto até aqui, depreendemos que a tipologia de HALL apóia-se na

identificação de determinados mecanismos causais através do quais as ideias

podem produzir impacto significativo sobre a formulação de políticas. Dois deles

constituem mecanismos institucionais: o centrado na economia, cujo foco

explicativo recai sobre o impacto teórico e acadêmico de uma determinada

corrente de pensamento sobre os economistas e a posição ocupada por estes

últimos na formulação de políticas; e o centrado no Estado, cuja explicação é

buscada nos diferentes arranjos e ethos burocrático-administrativos de cada

Estado e sua maior ou menor permeabilidade à absorção de novas ideias (DE

MELLO E SILVA, op. cit, p. 145). A estes dois mecanismos acrescenta-se outro,

de natureza não institucional – o centrado em coalizões – que confere importância

à ressonância encontrada pelas prescrições ideacionais junto a grupos sociais

relevantes e à sua eficácia em forjar e/ou consolidar novas coalizões políticas

(ibid, p. 145-146).

O objetivo da análise de HALL, por intermédio de sua tipologia de

mecanismos causais, é o de demonstrar que as ideias econômicas não podem ser

tratadas, como muitas vezes ocorre, como uma simples variável exógena no

processo de tomada de decisões, sem muita atenção ao por que destas ideias

específicas importarem. Não é simplesmente fazendo menção às ideias que se

ganha poder explicativo para compreender por que determinado conjunto delas

tem mais força do que outras em alguns casos. Se o que se pretende é conferir às

ideias papel explicativo na análise de formulação de políticas, HALL entende que

é necessário conhecer mais as condições que conferiram força a um conjunto de

ideias em detrimento de outro, num cenário histórico particular (1989, op. cit, p.

362). Portanto, HALL pretende que sua tipologia de mecanismos causais

contribua para uma compreensão do processo de caráter histórico através do qual

as novas ideias adquirem influência sobre a formulação de políticas. As respostas

dos tomadores de decisão às ideias são condicionadas não só pela viabilidade

econômica das mesmas, mas também por suas viabilidades política e

administrativa (ibid, p. 363). Em outras palavras, é preciso examinar como estes

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três fatores centrais condicionam o julgamento que os tomadores de decisão

fazem das ideias. 67

A viabilidade econômica das ideias “se refere a sua capacidade aparente de

resolver um conjunto relevante de problemas econômicos” (ibid, p. 370). Outro

fator que pode afetar a viabilidade econômica é o da qualidade da nova doutrina

(das novas ideias) como uma teoria econômica. Qualquer doutrina é mais

propensa de ser aceita pelos economistas profissionais se tiver apelo teórico, o que

irá favorecer sua relação ou diálogo com a teoria predominante.68 Finalmente,

outro fator importante para compreender a viabilidade econômica das ideias em

cada nação são a estrutura da economia nacional e os tipos de constrangimentos

internacionais enfrentados. HALL reconhece que a posição relativa dentro dos

regimes econômicos internacionais pode limitar a viabilidade de determinadas

políticas econômicas (ibid, p. 372). Este reconhecimento por parte do autor da

possibilidade de constrangimentos estruturais poderem limitar o alcance e a

viabilidade das ideias é fundamental para compreender como o regime

internacional de propriedade intelectual representou e ainda representa um fator

estrutural de constrangimento, de ordem material e normativa, para o processo de

formulação da política externa brasileira de propriedade intelectual, responsável

por definir o padrão de inserção do Brasil naquele regime. Igualmente, não só o

regime internacional de propriedade intelectual, como as condições mais amplas

da economia internacional têm que ser levadas em consideração numa abordagem

comparativa entre os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da

Silva, no campo da formulação de políticas públicas de propriedade intelectual.

HALL afirma que as ideias também são afetadas por sua viabilidade

administrativa, o que significa dizer que elas são mais propensas a ser aceitas se

estiverem de acordo com as inclinações das autoridades responsáveis por aprová-

las e se parecerem viáveis à luz das capacidades estruturais reais de

implementação por parte do Estado. Ou seja, a receptividade das autoridades a

uma nova teoria econômica pode ser condicionada à forma através da qual o poder

sobre o processo econômico de tomada de decisões é distribuído entre as 67 A análise de HALL prescreve que as ideias podem transformar e ser transformadas por essas três categorias básicas pelas quais enxergamos a realidade. 68 O neoliberalismo possui sem dúvida estas duas qualidades, como demonstraremos ao tratar das ideias econômicas que moldaram a formulação da política externa de propriedade intelectual e da política industrial no Governo Fernando Henrique Cardoso (especialmente no seu primeiro mandato).

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principais agências do Estado e pelas percepções prevalecentes acerca da

capacidade do Estado para implementar a nova política (ibid, p. 173-174).

De fato, no campo da política industrial, este aspecto mostra-se essencial,

em face das diferentes concepções em termos de poder de decisão conferidos ao

Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) nos Governos

Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, tanto no que tange ao

seu relacionamento e autonomia decisória relativa face aos outros Ministérios ou

agências da área econômica (notadamente o Ministério da Fazenda, o Ministério

do Planejamento e o Banco Central), quanto no que se refere às diferenças quanto

à percepção econômica estratégica acerca da propriedade intelectual, o que

explica, em parte, a canalização de recursos humanos e econômicos destinados a

empreender o processo de reestruturação no INPI, a partir de 2004.

No âmbito da formulação da política externa de propriedade intelectual, as

diferenças que apresentamos decorrem, em parte, da atitude receptiva das

principais agências do Estado envolvidas em políticas públicas de propriedade

intelectual durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva (Itamaraty e MDIC,

notadamente) às ideias econômicas do “novo desenvolvimentismo”, após a

descrença em torno da ortodoxia neoliberal predominante durante o Governo

Fernando Henrique Cardoso, ocasião em que o espectro pessoal do Presidente

também exerceu marcada influência na definição de políticas. Enfim, o descrédito

das ideias neoliberais em parte das instituições estatais, somado à relativa (e

inegável) ingerência do Presidente na formulação da política externa, propiciou ao

Itamaraty, durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, resgatar centralidade,

apesar de longe de poder ser caracterizada como insularidade, no que se refere ao

comportamento diplomático intraestatal.

Finalmente, para que uma nova ideia econômica adquira influência na

formulação de políticas, HALL entende que é preciso que ela tenha viabilidade

política, a saber, algum apelo junto à arena política mais ampla. Significa dizer

que a avaliação que as ideias econômicas recebem depende também de fatores

como os objetivos gerais dos partidos políticos e os interesses dos grupos sociais e

econômicos organizados com acesso aos canais de decisão estatais - que podem

formar com o Governo coalizões mais amplas - e da reputação alcançada pelos

principais expoentes daquelas ideias (ibid, p. 375).

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Resumindo, a análise de HALL sugere que se deve observar se um novo

conjunto de ideias econômicas adquiriu um grau mínimo de viabilidade em todas

essas três dimensões – econômica, administrativa e política – de forma a ser

incorporada na formulação de políticas. Daquelas três dimensões, interessou-nos

aqui avaliar as dimensões da viabilidade econômica e da viabilidade

administrativa, tanto no que concerne à política externa de propriedade intelectual

quanto à política industrial.69 Como antecipação de algumas conclusões,

verificamos que, tanto no que concerne à viabilidade econômica quanto à

viabilidade administrativa, a formulação de políticas públicas de propriedade

intelectual no Brasil recente se caracteriza por um momento de contenda entre

ideias neoliberais, há cerca de uma década e meia predominantes na esfera estatal

e na inteligentsia econômica de dentro e de fora do Governo, e ideias

“neodesenvolvimentistas” que, se não conseguem ainda representar uma ampla

ameaça in concreto ao ideário neoliberal, ao menos na formulação da política

externa e da política industrial adquire contornos de viabilidade e aceitação cada

vez maiores, encerrando-se de forma gradual e discreta, em termos institucionais,

em algumas arenas do aparato estatal.70

Após apresentar os três fatores que podem condicionar a aceitação e a

avaliação das ideias econômicas, HALL enumera aqueles que ajudam a explicar

por que elas podem ser adotadas em certos tempos e lugares e em outros não. O

argumento é o de que qualquer conjunto de ideias econômicas é afetado pela

“orientação econômica do partido governista”, pela “estrutura das relações

Estado-sociedade” e pela “natureza do discurso político” (ibid, p. 389).

No que tange às “orientações do Partido Governista”, os estudos presentes

no livro organizado por HALL denotam que as ideias keynesianas foram mais

facilmente introduzidas nos países governados por partidos sócio-democratas,

sendo depois mantidas por partidos mais conservadores que os sucederam. Assim,

a orientação do partido governante afeta a possibilidade de que determinadas

políticas com base em certas ideias econômicas sejam perseguidas (ibid, p. 376-

377). Constatamos, no entanto, que, a concepção do Partido dos Trabalhadores 69 Não tratamos aqui da questão da viabilidade política, nos termos definidos pelo autor, embora consideremos que examinar como a aceitação das ideias econômicas pelos grupos de interesses organizados represente um ângulo essencial de análise que poderá ser desenvolvido por outras pesquisas. 70 A noção de “dança de paradigmas” proposta por CERVO (2003) é importante neste sentido porque demonstra que ideias concorrentes podem coexistir no processo de formulação de políticas.

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sobre a política internacional, por intermédio de sua assessoria internacional e de

seus principais assessores, como Marco Aurélio Garcia, teve pouco peso na

formulação de políticas públicas de propriedade intelectual, durante o Governo

Luiz Inácio Lula da Silva. Contou mais o aprendizado nas negociações

diplomáticas e o resgate da ala crítica de diplomatas vinculados intelectualmente à

tradição desenvolvimentista, que passaram a ocupar postos-chave no MRE.

Quanto à orientação ideacional neoliberal do PSDB durante o Governo Fernando

Henrique Cardoso, esta se explica, em parte, pelos constrangimentos ideacionais

internacionais do receituário do Consenso de Washington predominante em toda a

América Latina durante os anos 90, e também (e este é o aspecto que mais nos

interessou) pela influência da visão pessoal do Presidente e de sua equipe

econômica na formulação de políticas públicas. No campo da política externa,

importou a posição presidencial em relação à qual deveria ser o padrão de

inserção internacional do Brasil nos diferentes regimes internacionais. Na política

econômica, contou a influência presidencial, mas também a percepção, por parte

dos mais importantes técnicos da área econômica, de que a estabilidade

macroeconômica era a prioridade fundamental a se alcançar, mesmo que isto

representasse descartar outras prioridades, como a política industrial.

Para HALL, as ideias são afetadas também pela “estrutura das relações do

Estado com a sociedade”. É preciso considerar que os políticos operam dentro de

um aparato institucional de determinado Estado, responsável por estruturar o

fluxo de aconselhamentos que ele recebe, por conferir a algumas autoridades mais

poder decisório em matéria econômica do que a outras, e por fornecer um

conjunto específico de competências institucionais para a implementação da

política. No que tange ao estudo específico das ideias keynesianas, o autor aponta

algumas características das estruturas estatais que afetaram sua aceitação, entre

elas a permeabilidade do serviço público (no que tange à possibilidade de

formação de novos staffs e equipes) e o grau de concentração de poder nos

responsáveis pela gestão macroeconômica (ibid, p. 278). Para fazer julgamentos

econômicos complexos, os políticos confiam nos conselhos de especialistas. Em

alguns Estados, estes aconselhamentos vêm em primeiro lugar do corpo

permanente de servidores que detém o monopólio no acesso à informação

econômica oficial e aos tomadores de decisão. Em outros, uma nova

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administração pode trazer seus próprios conselheiros e consultar-se amplamente

com economistas de fora do aparato estatal (ibid, p. 378).

A estrutura das relações entre o Estado e a sociedade também auxilia a

compreender como mudanças no campo das ideias econômicas favoreceram

transformações no processo de formulação de políticas públicas de propriedade

intelectual, do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luiz Inácio

Lula da Silva. Com efeito, a despeito da opção por manter um receituário

ortodoxo de estabilização macroeconômica – levando especialistas como Carlos

Lessa a criticarem a continuidade da política econômica71 – no Governo Lula,

outras agências estatais, como o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e

Comércio (MDIC), tiveram ampliada sua capacidade de definir mais

autonomamente suas políticas públicas (como a política industrial), não obstante a

política austera de cumprimento de metas de inflação e de elevação de superávits

primários por parte de outras agências da área econômica como os Ministérios da

Fazenda e do Planejamento, além, é claro, do Banco Central.

Foi importante neste sentido o perfil gerencial/empresarial do Ministro do

Desenvolvimento, Indústria e Comércio durante o primeiro mandato do Governo

Lula (2003-2006), e também a receptividade à ideia de necessidade de fomento às

políticas industriais e tecnológicas por parte de outros economistas situados em

áreas estratégicas da Administração Pública.72 De fato, a figura de Luiz Fernando

Furlan73 é central para compreender a formulação de uma nova política industrial

engendrada com base num ideário econômico que procurou privilegiar a conquista

71 Ver entrevista do economista concedida ao Correio da Cidadania em NADER (2006). Lessa critica as limitações que teve para conduzir as reformas que considerava necessárias para transformar o BNDES novamente num banco de desenvolvimento, enquanto Presidente da instituição entre 2003 e 2004, já que na sua acepção, durante os Governos Collor e Fernando Henrique Cardoso, aquele teria assumido um perfil de banco de investimentos. 72 O BNDES foi uma importante instituição no processo de formulação e consecução da nova política industrial, especialmente durante as administrações de Carlos Lessa, Guido Mantega e Luciano Coutinho. Não obstante as críticas a que nos referimos, apresentadas por Lessa, entendemos que parte das razões para não ter conseguido empreender todas as reformas que julgava necessárias e que dependiam da aquiescência e medidas de outras agências do Estado, como a redução dos juros, deve-se ao fato do período em que esteve na Presidência do BNDES coincidir com o início do Governo Lula, quando foi forte o desejo de passar a ideia de credibilidade internacional vinculada à manutenção da política econômica do governo anterior. 73 O perfil dinâmico do ex-Ministro levou analistas a qualificá-lo, positivamente, de “mascate” de nossos bens primários e secundários nos mercados internacionais. Ver SCANTIMBURGO (2007). Sugerimos também a leitura da entrevista de 2003 com Juan Quirós, presidente da APEX então (ATTUCH, 2003). O ex-Ministro é uma das lideranças individuais que destacamos para compreender as ideias econômicas que informaram a formulação de políticas públicas de propriedade intelectual no Governo Luiz Inácio Lula da Silva.

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de mercados por intermédio de uma maior inserção internacional das empresas

brasileiras.74 Daí o inédito lugar estratégico conferido ao tema da propriedade

intelectual no âmbito da política industrial, tida como instrumento primordial para

a proteção à inovação e ao patrimônio imaterial daquelas empresas.75 Não há

como compreender o processo de reestruturação do INPI, a partir de 2004, fora

desse contexto.

No que refere à formulação da política externa de propriedade intelectual,

as relações entre o Estado e a Sociedade destacadas por HALL guardam algumas

linhas de continuidade entre os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz

Inácio Lula da Silva, com um legado institucional significativo daquele para este,

mas também com a ocorrência de mudanças. A articulação entre o Estado e a

sociedade civil (nacional e internacional) lograda pela diplomacia brasileira

durante o Governo Fernando Henrique Cardoso no episódio do conflito com

corporações transacionais farmacêuticas (com apoio do Governo dos Estados

Unidos da América) em torno da discussão de acesso universal e gratuito a

medicamentos genéricos contra o vírus HIV/AIDS propiciou resultados

internacionais positivos e um “efeito demonstração”: fortaleceu-se a ideia de que a

transversalidade do tema propriedade intelectual exigia uma articulação complexa

na formulação de políticas, sendo necessário ampliar a participações de outros

atores, além do Itamaraty, no processo decisório, ainda que restritos à arena

estatal. Assim, criou-se ainda durante o Governo Fernando Henrique Cardoso o

Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI)76 com a atribuição de

subsidiar a diplomacia brasileira em negociações internacionais na matéria.77 Foi

um momento de inflexão relevante no padrão de formulação da política externa de

propriedade intelectual no Brasil, antes insulado no Itamaraty.

Vai ser somente no Governo Luiz Inácio Lula da Silva, contudo, que o

GIPI vai se articular com força e contribuir para o desenho de uma posição

internacional mais assertiva do Brasil em matéria de propriedade intelectual, em

74 O Ministro Miguel Jorge, que sucedeu Luiz Fernando Furlan no MDIC, manteve o estilo de seu sucessor. Ver OLIVEIRA (2009). 75 Obviamente, a política industrial do Governo Lula, em suas duas versões, o PITCE e o PDP, não esteve imune a críticas, como se demonstrará no capítulo 6. 76 Maiores detalhes sobre o contexto de criação do GIPI, suas atribuições, composição e atuação fazem parte do capítulo 5. 77 Não se pode deixar de reconhecer também a experiência diplomática brasileira nas negociações da Rodada Uruguai do GATT como importante para a criação do GIPI. Entrevistas com SUGUIEDA (2009) e JAGUARIBE (2010) corroboram esta afirmação.

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um esforço concertado com o Itamaraty e outras agências estatais, como o INPI.

Tais circunstâncias vão contribuir para a estruturação de uma agenda ampla e

propositiva, em termos de estratégias de contestação mais articuladas, nos

diferentes fóruns internacionais como a OMC e a OMPI, a contornos do regime

internacional de propriedade intelectual, apontados como excludentes para os

países em desenvolvimento.

O terceiro fator, e mais importante em termos ideacionais78, capaz de

condicionar a aceitação e a avaliação das ideias econômicas é a “estrutura do

discurso político”. HALL atenta para o fato de que a tomada de decisões tem

lugar não somente em um determinado ambiente institucional, mas também

dentro de um conjunto de ideias políticas (ibid, p. 383):

O processo decisório tem lugar dentro de uma estrutura institucional, cuja configuração varia de nação para nação, mas ele também ocorre dentro do contexto de um conjunto prevalecente de ideias. Estas incluem concepções compartilhadas sobre o papel apropriado do governo, a quantidade de ideias políticas comuns e memórias coletivas de experiências políticas passadas. Juntas, estas ideias constituem o discurso político de uma nação. Elas fornecem uma linguagem na qual a política pode ser descrita dentro da arena política e os termos por meio dos quais as políticas são nela julgadas.79

Assim, da mesma forma que a estrutura do Estado ou a orientação do

partido do Governo, a natureza do discurso político pode ter impacto na

probabilidade de um conjunto de ideias econômicas ser aceito.80 HALL vai além e

afirma ainda que as ideias econômicas podem contribuir para mudanças nos

próprios termos do discurso político (ibid, p. 366). É importante este último

aspecto porque denota que as ideias não são concebidas por HALL como um fator

que, ao entrar na arena política, simplesmente se coloca “por cima” de outros

fatores já presentes. Ideias econômicas podem contribuir para alterar os próprios

termos do discurso político tanto no plano doméstico como no internacional. Elas

introduzem novas categorias de representação e interpretação do mundo, fazendo 78 Para nossa análise, obviamente. 79 Tradução livre do autor: Policy making takes place within an institutional framework, whose configuration varies from nation to nation, but it also occurs within the context of a prevailing set of political ideas. These include shared conceptions about the appropriate role of government, a number of common political ideas, and collective memories of past policy experiences. Together, such ideas constitute the political discourse of a nation. They provide a language in which policy can be described within the political arena and the terms in which policies are judged there. 80 HALL reconhece que a natureza do discurso político pode trabalhar a favor ou contra novas propostas políticas (ibid, p. 383), o que ajuda a explicar os diferentes graus de aceitação de uma ideia, de nação para nação.

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com que os atores (economistas, políticos, agências do Estado e grupos sociais)

passem a interpretar e definir seus próprios interesses por meio daquelas

categorias (DE MELLO E SILVA, op. cit, p. 146).

Dessa forma, é preciso reconhecer que a abordagem de HALL não logra

escapar do impasse teórico-metodológico da inviabilidade de se separar ideias e

interesses como categorias isoladas, a não ser para fins analíticos. Com efeito, o

que HALL sustenta é que diferentes atores que participam do processo de

formulação de políticas podem passar a interpretar seus interesses de forma

diferente, devido ao advento de novas categorias de representação introduzidas

pelas ideias. Mas há que se reconhecer a contribuição do autor por abordar as

ideias não apenas a partir de uma perspectiva passiva, como mero suplemento

causal para os atores. As ideias são analisadas também sob uma ótica ativa, já que

elas penetram na arena política introduzindo novas categorias cognitivas que

estimulam os atores a redefinir seus interesses por intermédio delas.

Repassamos agora, de forma resumida, o argumento desenvolvido por

HALL: as ideias econômicas são julgadas em termos de sua viabilidade

econômica (explicação centrada na economia), administrativa (explicação

centrada no Estado) e política (explicação centrada em coalizões). A

probabilidade de uma nação implantar novas propostas de um ideário econômico

depende da orientação do partido governista, da estrutura do Estado e das relações

Estado-sociedade e da natureza do discurso político existente (ibid, p. 390).

Podemos afirmar que a abordagem de HALL se sustenta em um conjunto

de diferentes mecanismos causais ao procurar explicar como ideias econômicas

podem influenciar o processo de formulação de políticas públicas. Do modelo

teórico proposto, nos ativemos a dois destes mecanismos: o que enfatiza o papel

dos economistas no processo decisório de formulação de políticas (centrado na

economia) e o que busca explicações nos diferentes arranjos burocrático-

administrativos estatais e a sua maior ou menor permeabilidade à absorção de

novas ideias (centrado no Estado). No que se refere aos fatores capazes de

condicionar a aceitação e avaliação de novas ideias econômicas, a natureza do

discurso político existente foi o elemento que mais pesou nas análises que

empreendemos.

Análises ideacionais que enfatizam a noção de aprendizado social e o

papel de lideranças individuais também contribuem para a compreensão de como

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se dá o processo político de aceitação de novas ideias econômicas como, por

exemplo, a do desenvolvimento, em diferentes âmbitos institucionais. Propomos

aqui que a formulação de políticas públicas de propriedade intelectual deve ser

analisada levando-se em consideração também esse aparato teórico que pretende

demonstrar: 1) como as ideias econômicas podem se infiltrar e se encerrar nas

instituições; 2) como o trabalho organizacional destas pode, por meio de um

processo de aprendizado social, optar pela promoção de determinadas ideias; e, 3)

como lideranças individuais podem contribuir para a sua aceitação e

disseminação.

Antes, contudo, de analisarmos como as instituições e lideranças podem

exercer papel interveniente relevante na forma como as ideias influenciam a

formulação de políticas públicas81, é necessário precisar a ideia que representa

nossa variável explicativa central: a do “desenvolvimento”. O “desenvolvimento”

é tratado como ideia econômica passível de diferentes abordagens e apropriações,

especialmente no que se refere ao seu lugar no pensamento econômico nacional e

ao seu papel como estratégia de ação da política externa brasileira. Vale dizer que

não pretendemos apresentar uma ampla revisão de toda literatura econômica

voltada para o tema, mas apenas demarcar a natureza do desenvolvimento como

um fenômeno ideacional contingente e variável.

Tratamos, ainda, de enfatizar como uma acepção particular de

desenvolvimento – marcada pela influência do pensamento desenvolvimentista e

estruturalista latino-americano dos anos 50 - se tornou, durante praticamente

quatro décadas, o principal vetor ideacional da política externa brasileira. A

importância deste vetor é tamanha, que mesmo a prevalência das ideias

neoliberais na década de 90 não representou um sepultamento definitivo do

pensamento desenvolvimentista predominante nas quatro décadas anteriores. Ao

contrário, estimulou readequações teóricas por parte de alguns economistas

brasileiros capazes de trazer novamente, para a agenda da política econômica do

Governo Federal (especialmente a partir da ascensão à presidência de Luiz Inácio 81 No dimensionamento das mudanças de atuação institucional, a abordagem comparativa entre as políticas públicas de propriedade intelectual dos Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva recaiu, do ponto de vista da política industrial, sobre os arranjos burocrático-administrativos estatais, a saber, na relação do MDIC com os principais ministérios da área econômica, e no papel conferido ao INPI nesse contexto, com seu reposicionamento no âmbito da Administração Pública, a partir de 2004. No que tange à política externa, importou a forma como a atuação do GIPI ampliou e sofisticou o processo decisório dentro da arena estatal. Trata-se da abordagem “centrada no Estado”.

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Lula da Silva), o desenvolvimentismo “repaginado”, buscando gradualmente

reencontrar aceitação em espaços institucionais de tomada de decisões no meio

estatal.

2.4 O “Desenvolvimento” como Ideia e Variável Independente

De acordo com COOPER & PACKARD (1997, p. 1), nos últimos

cinqüenta anos presenciamos transformações profundas na geografia política

global, na medida em que áreas antes conhecidas como “colônias” passaram a ser

denominadas de “países menos desenvolvidos” ou “Terceiro Mundo”. Os povos

dos impérios em declínio, das superpotências mundiais da Guerra Fria que

dominaram os assuntos internacionais (Estados Unidos e União Soviética), dos

novos países surgidos das primeiras descolonizações, e das novas nações da

África e da Ásia tiveram que pensar em como o mundo estava constituído. Dessa

forma (ibid, p. 1):

A ideia de desenvolvimento – e a relação que ela implica entre nações ricas e industrializadas e nações pobres, emergentes – tornou-se a chave para uma nova estrutura conceitual. Ao contrário das reivindicações anteriores da Europa de uma superioridade inerente ou de uma “missão civilizadora”, a noção de desenvolvimento teve apelo tanto junto aos líderes das sociedades “subdesenvolvidas”, assim como junto aos povos dos países desenvolvidos, e ela conferiu aos cidadãos de ambas as categorias o compartilhamento de um universo intelectual e de uma comunidade moral que cresceu em torno da iniciativa de desenvolvimento mundial da era Pós-Segunda Guerra Mundial. Esta comunidade compartilhou a convicção de que o alívio da pobreza não ocorreria simplesmente por processos autorregulados de crescimento econômico ou de mudança social. Ela requereria uma intervenção concertada por governos nacionais tanto dos países ricos quanto pobres em cooperação com um conjunto emergente de organizações de ajuda internacional e de desenvolvimento. 82

82 Tradução livre: The idea of development – and the relationship it implied between industrialized, affluent nations and poor, emerging nations – became the key to a new conceptual framework. Unlike the earlier claims of Europe to inherent superiority or a “civilizing mission”, the notion of development appealed as much to leaders of “underdeveloped” societies as to the people of developed countries, an it gave citizens in both categories a share in the intellectual universe and in the moral community that grew up around the world-wide development initiative of the post-World War II era. This community shared a conviction that the alleviation of poverty would not occur simply by self-regulating process of economic growth or social change. It required a concerted intervention by the national governments of both poor and wealthy countries in cooperation with an emerging body of international aid and development organizations.

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O problema do desenvolvimento, assim, propiciou o surgimento de um

esforço genuíno nas ciências sociais, com uma relação complexa e ambígua com

agências governamentais, internacionais e privadas ativamente empenhadas em

promover o crescimento econômico, aliviar a pobreza e expandir mudanças

sociais benéficas em regiões “em desenvolvimento” (ibid, p. 1). Segundo

ESCOBAR (1995, p. 4), a específica conjuntura histórica do final da Segunda

Guerra Mundial é fundamental para compreender como o objetivo do

desenvolvimento ganhou amplitude e aceitação entre os países de economia

avançada, particularmente os Estados Unidos, que passaram a advogar que as

características de suas sociedades como os altos níveis de industrialização e

urbanização, o aprimoramento técnico na agricultura, o rápido crescimento da

produção material e dos padrões de vida e a difusão de uma educação moderna e

de valores culturais poderiam ser expandidas para todos os povos do planeta (ibid,

p. 4).

A “ortodoxia do desenvolvimento” é então caracterizada por um conjunto

de presunções surgidas a partir da década de 40: que a ajuda externa e os

investimentos em termos favoráveis, a transferência do conhecimento em técnicas

de produção, as medidas para promover a riqueza e a educação e o planejamento

econômico habilitariam países mais pobres a se tornarem economias de mercado

“normais” (COOPER & PACKARD, op. cit, p. 2).83 As novas condições mundiais

pesaram decisivamente na formação e na consolidação da hegemonia do

pensamento desenvolvimentista. Contribuíam para tanto o fracasso econômico

liberal dos anos 20/30, a necessidade de reconstrução do pós-guerra, o novo

cenário de disputa geopolítica e ideológica da Guerra Fria e a disputa dos

territórios que foram se tornando independentes dos impérios europeus, na medida

em que avançava o processo de descolonização asiático e africano (FIORI, 2000,

p. 22-23). As Nações Unidas e várias outras instituições multilaterais criadas

depois da Segunda Guerra Mundial colaboraram decisivamente na difusão de

novas ideias que acompanharam, por exemplo, os programas de ajuda

83 Utilizando-se das categorias de GOLDSTEIN & KEOHANE (1993), SIKKINK (1997, op. cit., p. 229) defende que a maior parte das ideias econômicas, como a do desenvolvimento, são ideias causais, uma vez que tratam de relações de causa e efeito que fornecem estratégias para o atingimento de objetivos. Apesar da maior parte das ideias econômicas serem ideias causais, SIKKINK reconhece que elas não ingressam em um vácuo ideológico, mas, ao contrário, em um espaço político altamente controverso de crenças e valores pré-existentes sobre a economia. É o que Hall prefere chamar de “natureza do discurso político”.

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internacional e os financiamentos do Banco Mundial. Enfim, cimentou-se a

convicção de que criar infraestruturas, modernizar instituições e incentivar as

industrializações nacionais deveriam ser as palavras de ordem do mundo político

e os temas-objeto das preocupações acadêmicas do Terceiro Mundo (ibid, p. 23).

O desenvolvimento surge, portanto, como uma resposta específica para a

problemática da pobreza.84 ESCOBAR defende que o desenvolvimento deve ser

visto como um constructo histórico que fornece um espaço no qual os países

pobres são conhecidos, particularizados e situados (op. cit, p. 45). Entre os

mecanismos que contribuem para que o desenvolvimento, como constructo

histórico, se torne uma força real e ativa estão os processos de profissionalização e

institucionalização. O de profissionalização se refere principalmente ao conjunto

de técnicas, estratégias e práticas disciplinares que organizam a geração, validação

e a difusão do conhecimento sobre o desenvolvimento, incluindo as disciplinas

acadêmicas, métodos de ensino e pesquisa, critérios de expertise e diversas

práticas profissionais, enfim, todos os mecanismos que conferem a certas formas

de conhecimento o status de verdade (ibid, p. 45).85 Contudo, não só a

profissionalização contribuiu para o que ESCOBAR denomina de “invenção do

desenvolvimento”; concorreu igualmente a criação de um campo institucional no

qual os discursos são produzidos, memorizados, estabilizados, modificados e

postos em circulação. A institucionalização do desenvolvimento teve lugar em

todos os níveis, desde organizações internacionais, passando por agências

públicas nacionais até organizações não-governamentais. Iniciado no meio dos

anos 40, com a criação das grandes organizações internacionais, este processo não

cessou de crescer, resultando na consolidação de uma efetiva rede de poder (ibid,

p. 46).86

84 De fato, durante o apogeu do desenvolvimentismo, entre as décadas de 50 e 70, particularmente a de 70, assistiu-se a uma diminuição global da distância entre os países industrializados e os países em desenvolvimento. Segundo FIORI (2000, p. 23), deve-se, claro, considerar que as estatísticas que apontam nesta direção foram fortemente influenciadas pela crise generalizada dos países mais ricos e pelo crescimento excepcional dos países do Leste Asiático, e do Brasil e do México, na América Latina. Ver também ARRIGUI (1997). 85 ESCOBAR afirma que a profissionalização do desenvolvimento também tornou possível remover os problemas dos campos da política e da cultura para remodelá-los em termos do campo aparentemente mais neutro da ciência. 86 Para compreender a noção de poder em ESCOBAR, é preciso analisar primeiramente a discussão que o autor desenvolve sobre Economia (ibid, p. 59-61). ESCOBAR afirma que os economistas tendem a considerar seu campo de estudo (ou ciência) como uma representação neutra do mundo e uma verdade sobre o mesmo. O autor sustenta que a economia não apresenta este caráter neutral e que, na realidade, ela é uma estrutura marcada por um código cultural

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82

Para ESCOBAR, portanto, o desenvolvimento não é exatamente uma

ideia, mas um regime de discurso ou representação, em que identidades são

construídas e também em que a violência é originada, simbolizada e administrada

(ibid, p. 10).87 ESCOBAR argumenta que o desenvolvimento funcionou desde o

final da Segunda Guerra Mundial como um discurso que adquiriu o status de

certeza no imaginário social de tal forma que tornou impossível conceituar a

realidade, a partir de então, em outros termos (ibid, p. 5). Sua premissa

organizacional seria a da crença no papel da modernização como a única força

específico, resultante do desenvolvimento e da consolidação de uma visão dominante da prática da economia na história europeia. Ancorado ao que se refere como “antropologia da modernidade”, ESCOBAR sugere questionar o que denomina de “contos do mercado, produção e trabalho” que estariam na raiz do que hoje se conhece como economia Ocidental. Estes “contos” são raramente questionados como formas naturais de enxergar a vida. ESCOBAR entende que as noções de economia, mercado e produção são contingenciais do ponto de vista histórico, sendo possível demarcar suas genealogias. A economia Ocidental é feita de um conjunto peculiar de discursos e práticas. Assim, ESCOBAR propõe que, ao invés de pensarmos na economia Ocidental como um sistema de produção, ela deve ser vista como uma instituição composta de sistemas de produção, poder e significação. Estes três sistemas, por sua vez, são formas culturais por meio das quais os seres humanos são transformados em sujeitos produtivos. Dessa forma, a economia não é somente, ou principalmente, uma entidade material. É acima de tudo uma produção cultural, “um modo de produzir seres humanos e ordens sociais de certo tipo” (ibid, p. 59). Embora, no que se refere à produção, a história da economia Ocidental seja bem conhecida – por exemplo, pelo surgimento do mercado e mudanças nas forças produtivas e nas relações sociais de produção - o poder e a significação foram menos incorporados na história cultural da economia Ocidental. Quanto ao poder, ESCOBAR recorre ao pensamento de FOUCAULT (1991) para afirmar que a institucionalização da economia de mercado nos séculos XVIII e XIX necessitou de uma profunda transformação no campo individual - a saber, na produção de ‘corpos dóceis’ - e também na regulação de populações de forma consistente com os movimentos do capital. Ou seja, “as pessoas não foram para as fábricas alegremente e de forma espontânea: todo um regime de disciplina e normalização foi necessário” (ibid, p. 60). Além da expulsão dos camponeses e servos da terra e da criação da classe proletária, a economia moderna necessitou de uma profunda reestruturação de corpos, indivíduos e formas sociais. No que diz respeito à significação, ESCOBAR argumenta que o primeiro aspecto histórico importante a considerar é o da invenção da economia como um campo autônomo. Como um domínio em separado, à economia teve que ser conferida uma expressão própria; uma ciência que surgiu ao final do século XVIII e à qual foi dado o nome de Economia Política. Na sua formulação clássica, presente em Smith, Ricardo e Marx, ela se estruturou em torno das noções de produção e trabalho. Além de racionalizar a produção capitalista, a Economia Política foi bem sucedida em impor a produção e o trabalho como um código de significação da vida social como um todo. A linguagem do dia-a-dia foi impregnada pelos discursos da produção e do mercado. O conceito de poder apresentando por ESCOBAR se aproxima daquele discutido quando nos reportamos às semelhanças entre a abordagem institucionalista e a dos construtivistas críticos (p. 36). Na discussão sobre o atual regime internacional de propriedade intelectual, defendemos que ideias e poder não são entidades facilmente separáveis. Ambas conformam o regime. 87 O intento do autor é utilizar esta noção de regime de representação como princípio teórico e metodológico para o exame dos mecanismos e das consequências do que denomina de “construção do Terceiro Mundo” (ibid, p. 10). Enfim, o que pretende é “fornecer um mapa geral que oriente qualquer pessoa nos discursos e práticas que contribuem para as atuais formas dominantes de produção sociocultural e econômica do Terceiro Mundo” (ibid, p. 10-11). Segundo o autor, as noções de subdesenvolvimento e de Terceiro Mundo foram os produtos discursivos do ambiente do pós-Segunda Guerra Mundial. Tais conceitos não existiam antes de 1945 e surgiram como princípios organizacionais dentro do processo por meio do qual o Ocidente – e, de diferentes formas, o Oeste – redefiniu a si mesmo e ao resto do mundo (ibid, p. 31).

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capaz de destruir relações supersticiosas arcaicas, a qualquer custo social, cultural

e político. A industrialização e a urbanização são vistas como as rotas inevitáveis

e necessárias rumo ao progresso. Assim, apenas por intermédio do avanço

material poder-se-ia alcançar o progresso social, cultural e político (ibid, p. 39).

Entre os fatores que contribuíram para a elaboração e a justificativa do “discurso

do desenvolvimento”, ESCOBAR aponta a fé na ciência e na tecnologia como um

dos mais relevantes (ibid, p. 34):

Acreditava-se que a tecnologia não somente ampliaria o progresso material, ela também conferiria ao mesmo um senso de direção e significado. Na vasta literatura da sociologia da modernização, a tecnologia foi teorizada como um tipo de força moral que operaria por meio da criação de uma ética da inovação, produção e resultado. [...] O conceito de transferência de tecnologia tornar-se-ia no tempo um componente importante dos projetos de desenvolvimento. Nunca se levou em conta que tal transferência dependeria não meramente de elementos técnicos, mas também de fatores sociais e culturais. A tecnologia foi vista como neutra e inevitavelmente benéfica [...] (ibid, p. 36).88 Não obstante o mérito de ESCOBAR na caracterização do

desenvolvimento como um regime de representação discursiva e constructo

histórico que promove um “encontro cultural” entre os povos e as pessoas e que

cria situações por meio das quais estes passam a ver uns aos outros

necessariamente de determinadas formas – ou como desenvolvidos ou como

subdesenvolvidos (ibid, p. 49), COOPER & PACKARD apresentam críticas a sua

abordagem e de outros autores que seguem linha semelhante (op. cit, p. 3).89 Estes

autores, tidos como “pós-modernos”, pecariam por enxergar no desenvolvimento

88 Tradução livre do original: Technology, it was believed, would not only amplify material progress, it would also confer upon it a sense of direction and significance. In the vast literature of sociology of modernization, technology was theorized as a sort of moral force that would operate by creating an ethics of innovation, yield and result […]. The concept of the transfer of technology in time would become an important component of development projects. It was never realized that such a transfer would depend not merely on technical elements but on social and cultural factors as well. Technology was seen as neutral and inevitably beneficial […]. Embora a análise não privilegie a via discursiva proposta por ESCOBAR, cremos que este trecho em muito reflete um dos aspectos principais de nossa análise do atual regime internacional de propriedade intelectual: o de uma variável estrutural cuja face ideacional é fortemente marcada pela ideia-força de que a propriedade intelectual, principal instrumento de proteção da inovação tecnológica, também é algo necessariamente benéfico em si mesmo. Invariavelmente, entre os entrevistados, este aspecto, chamado por alguns de “naturalização” ou de “mistificação” da propriedade intelectual foi criticado. Outro aspecto, o do automatismo, ou seja, o de que a elevação dos patamares de proteção aos direitos de propriedade intelectual asseguraria o caminho ao progresso econômico e social, igualmente criticado por alguns entrevistados, também se encontra presente na configuração ideacional do regime. 89 Podemos mencionar, por exemplo, Ashis Nandy, autor, entre outras obras, de Science, Hegemony and Violence: a Requieum for Modernity.

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apenas um discurso que impõe um aparato de controle e subserviência. O

desenvolvimento seria então nada mais do que uma série de discursos e práticas

de controle – um “regime de poder e conhecimento” – localizado numa vaga

noção de ‘Ocidente’ ou em pretensas reivindicações da Ciência Social Europeia

de ter encontrado categorias universais para compreender e manipular a vida

social em toda parte (op.cit, p. 3).90 A debilidade maior dos pós-modernos

residiria na atitude de abstração em relação às instituições e estruturas em que a

ação econômica tem lugar e que moldam aqueles discursos e práticas (ibid, p. 3).91

90 Sobre a “noção de Ocidente”, recomendamos a leitura de interessante artigo de JAGUARIBE (2002). Para o autor, a pergunta pela “essência” de uma cultura ou civilização é uma pergunta que se dirige ao que, nessa cultura, no seu processo histórico, constitui seu âmago: aquilo que, ao longo do tempo, permanece estavelmente como sua característica, relativamente a outras culturas. Consiste também em questionar quais são suas raízes e legado fundamental. JAGUARIBE enxerga no cristianismo um elemento central da cultura ocidental. Outra característica fundamental seriam suas raízes greco-romanas. Mas é somente a partir do processo divisivo que separou o cristianismo romano do bizantino – a partir do Concílio de Nicéia e no curso da Alta Idade Média até a coroação de Carlos Magno em 800DC – que se pode distinguir a evolução de uma sociedade romano-cristã ocidental de sua congênere oriental. Desde então, a sociedade cristã ocidental passará por alguns momentos históricos cruciais como o Império Carolíngio, o Feudalismo, o Renascimento, a Reforma, o Iluminismo, o século XIX e a Primeira Guerra Mundial. A partir deste último evento, JAGUARIBE entende que, no plano cultural, a sociedade ocidental procedente do Iluminismo, do Romantismo e do Positivismo embarcou num crescente desenvolvimento científico-tecnológico que conduziu a uma crescente laicização do mundo e à substituição da crença básica do Ocidente, fundada em Deus e Jesus Cristo, por uma crença na ciência e na tecnologia, independentemente de terem persistido, no Ocidente, as convicções religiosas (a mesma fé na ciência e tecnologia da qual trata ESCOBAR). Durante a Segunda Guerra Mundial, o nazismo colocou de forma nítida, pela primeira vez no mundo, a tensão entre dois ingredientes fundamentais da cultura ocidental: o da “technê” e o do “telos”, o dos processos relacionados com a eficiência operacional e dos processos relacionados com valores superiores, tal como incorporados na noção de humanismo. A cultura greco-latina permitiu, mais durante alguns períodos e menos em outros, uma combinação harmônica e exitosa entre um sentido de eficácia dado pela “technê” helênica e pela organização político-militar-romana, e uma orientação a valores superiores, dada pelo humanismo, com Sócrates, Platão, Aristóteles e com os epicuristas e estóicos romanos como Lucrécio, por um lado, e Cícero e Sêneca, por outro. O nazismo rompeu, na civilização ocidental, o equilíbrio entre o sentido da eficácia e o sentido humanista, optando contra este e por aquele, em favor de um racismo germânico. JAGUARIBE afirma que “sua derrota salvou a humanidade de um barbarismo tecnológico que poderia ter longa duração” (ibid, p. 110). O autor enxerga, no início do século XXI, em termos obviamente mais suaves e menos radicais do que o nazismo (mas não por isto menos difundidos), um novo conflito entre o sentido da eficácia e os valores do humanismo. Sua ideologia é, aponta, o neoliberalismo, que tem nos Estados Unidos seu centro propagatório e na atual cultura anglo-saxônica seu transfundo legitimador, por intermédio de seu positivismo lógico e eficientismo operacional (ibid, p. 110). JAGUARIBE alerta para os efeitos predatórios das sociedades supereficientistas atuais “que operam no sistema internacional como uma espécie de tiranossauros” (ibid, p. 111) e clama pela necessidade de dosagem e compatibilização entre o eficientismo e o humanismo. O diagnóstico de JAGUARIBE atinge o âmago do embate ideacional que se dá atualmente, no regime internacional de propriedade intelectual. Sua análise é exemplo de que não é assim tão vaga a “noção de Ocidente”, tal qual apregoam os críticos dos pós-modernos. 91 Vale mencionar que esta mesma crítica é dirigida por COOPER & PACKARD a outro conjunto de críticos da ortodoxia do desenvolvimento, denominado de “ultramodernos” (ibid, p. 2-3). Por ultramodernos, os autores entendem o conjunto de economistas teóricos que insistem que as leis da economia tem se provado válidas e que defendem que a mão invisível do mercado aloca os recursos otimamente. Para estes teóricos, o que existe é só a economia e não uma “economia do

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Compartilhamos dessa crítica dirigida aos pós-modernos, por entendermos

que o fenômeno do desenvolvimento - seja ele tomado conceitualmente como

“ideia” ou “discurso”92 - não pode ser compreendido adequadamente sem estar

localizado no conjunto específico de aparatos institucionais internacionais e

nacionais que ajudaram e ajudam a moldá-lo. Em sua análise sobre o

desenvolvimento, FERGUSON (1990) demonstra que o Estado nos países “menos

desenvolvidos” e as organizações internacionais como o Banco Mundial

encontraram, cada um, seus respectivos papéis a desempenhar: os governos

nacionais alocando recursos e representando a si mesmos como agentes da

modernidade, enquanto as agências internacionais intervêm legitimamente nos

Estados soberanos apresentando seus serviços como benevolentes, técnicos e

neutros politicamente. A conclusão a que se chega é a de que aumentam as

possibilidades de determinadas ideias serem perseguidas e aceitas se elas

contarem com o suporte de instituições poderosas seja no âmbito nacional, ou no

internacional (COOPER & PACKARD, op. cit, p. 4).

desenvolvimento”. Sempre que os governos nacionais ou organizações internacionais tentam fazer o mercado funcionar melhor, eles introduzem distorções que fazem com que piore. Embora os autores não mencionem os autores ou escolas que integram o grupo dos ultramodernos, entendemos que estão se referindo aos economistas graduados em universidades norte-americanas (especialmente a de Chicago) que, durante aos anos 70 e 80, apresentaram críticas ao discurso do desenvolvimento e ao Welfare State europeu (inspirado no pensamento keynesiano), em prol das ideias neoliberais, tendo em Friedrich Hayek e Milton Friedman dois de seus mais importantes artífices. O neoliberalismo ingressará, pois, aqui, como o conjunto de ideias econômicas que influenciou de forma decisiva a formulação de políticas públicas de propriedade intelectual durante o Governo Fernando Henrique Cardoso (especialmente em seu primeiro mandato), ancorado numa concepção preponderantemente negativa da ideia de desenvolvimento. Esta concepção não decorreu exclusivamente de influências estruturais, mas também (decisivamente) de escolhas internas, com atores bem definidos. 92 Apesar de nossa análise privilegiar as ideias enquanto variável explicativa, a abordagem de representações discursivas de ESCOBAR não é descabida como forma de auxiliar a caracterização, no próximo capítulo, do regime internacional de propriedade intelectual como um constructo histórico. Em nota explicativa (nota 11 do cap. 1), ESCOBAR argumenta que os métodos da história das ideias e o do estudo das formações discursivas não são incompatíveis. Enquanto o primeiro confere atenção às dinâmicas internas da geração social de ideias de uma forma que o segundo por vezes subestima (dando a impressão de que os modelos de desenvolvimento foram meramente impostos “de fora” aos países do Terceiro Mundo e não também resultantes de escolhas internas), a história das ideias tende a ignorar os efeitos sistêmicos da produção discursiva que, de forma importante, moldam o que conta como ideia em primeiro lugar (ESCOBAR, op. cit, p. 228). Com efeito, em nossa análise, o regime internacional de propriedade intelectual ingressa como uma variável sistêmica que impõe constrangimentos à dimensão doméstica de formulação de políticas públicas de propriedade intelectual. Esta variável é conformada por aspectos materiais e ideacionais, sendo possível caracterizá-la não só a partir desta perspectiva, mas também como uma formação discursiva ou um discurso de dominação resultante de um contexto histórico determinado: o da finalização da Rodada Uruguai do GATT, fim da Guerra Fria e aprofundamento do processo de globalização comercial e financeira.

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Enfim, a força e continuidade das ideias dependem do grau por meio do

qual elas se encerram nas instituições. As ideias que conseguem ser

implementadas e consolidadas de forma bem sucedida são aquelas instiladas para

dentro de um ambiente institucional, onde uma equipe de pessoas e lideranças

comprometidas com uma mesma visão é capaz de transformar ideias individuais

em um propósito institucional (SIKKINK, 1991, 1997; FINNEMORE, 1997).

Significa dizer, sem negar que as instituições respondem a interesses econômicos

e políticos específicos, que é preciso examinar com mais exatidão por que e como

determinadas instituições “aprendem” e adotam um novo conjunto de políticas em

determinados momentos.93 Antes, no entanto, é necessário compreender como o

desenvolvimento, tratado aqui como ideia, adquiriu o status de vetor conceitual e

ideacional da política externa brasileira, e também do pensamento econômico

nacional.

2.4.1 O “Desenvolvimento” como vetor ideacional da Política Externa e seu lugar no pensamento econômico brasileiro

É fato que as Relações Internacionais desenvolveram suas reflexões mais

consistentes, como disciplina acadêmica, nos Estados Unidos, ao longo de todo o

século XX. Em função disto, ao iniciar sua discussão sobre os diferentes enfoques

paradigmáticos que apresenta como capazes de analisar a política externa

brasileira, CERVO afirma que é preciso estar atento para o risco pedagógico de

uma teoria alheia ser epistemologicamente inadequada para explicar as relações

internacionais de outros países, como o Brasil (2003, op.cit, p. 5). Cada país deve

ser capaz de partir para construções teóricas que sejam epistemologicamente

adequadas e socialmente úteis, no que concerne à compreensão de sua respectiva

realidade. Com base nesta constatação, CERVO propõe-se a refletir acerca da

política exterior e das relações internacionais do Brasil, de forma a elaborar

conceitos que lhes confiram inteligibilidade orgânica e forneçam, ao mesmo

tempo, critérios de avaliação de resultados (ibid, p. 6).

93 Esta noção de “aprendizado institucional”, presente nos trabalhos de SIKKINK (1991; 1997) e FINNEMORE (1997) completa nosso aparato teórico, composto ainda pela análise ideacional de política externa e pelo institucionalismo histórico.

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A proposta de CERVO, especificamente, é o de analisar a política exterior

do Brasil com base em um conceito paradigmático. O paradigma, assevera,

equivale a uma explanação compreensiva do real que, nas ciências sociais,

procura “dar inteligibilidade ao objeto, iluminá-lo através de conceitos e dar

compreensão orgânica ao complexo mundo da vida humana” (ibid, p. 7). CERVO

esclarece que a análise paradigmática corresponde, antes de tudo, a um método.

Ele permite a construção de conceitos, pela via da observação empírica, com a

história constituindo o campo de observação e o laboratório de experiências sobre

as quais o autor se inclina (ibid, p. 7).

Entre os pressupostos evocados pela análise paradigmática, CERVO

afirma que, por trás de um paradigma, “verificamos a ideia de nação que um povo

– ao menos seus dirigentes – faz de si mesmo, a visão que projeta do mundo e o

modo como percebe a relação entre esses dois elementos” (ibid, p. 7). Portanto, o

“paradigma comporta uma cosmovisão, a imagem que uma determinada

formulação conceitual projeta dos outros povos, nações ou do mundo todo” (ibid,

p. 7).94 Da análise paradigmática, é possível esperar dois resultados. De um lado,

podemos esperar um efeito cognitivo, “uma vez que o paradigma organiza a

matéria, sempre complexa, difusa e disparatada quando se trata do comportamento

humano, conferindo-lhe o grau possível de inteligibilidade orgânica” (ibid, p. 7).

Por outro lado, existe o efeito operacional. Equivale a dizer que “um paradigma

inclui um modo de proceder, no caso, de fazer política exterior ou de controlar as

relações internacionais (ibid, p. 7). 95

Uma importante observação realizada por CERVO é a de que todos “os

países abrigam sempre suas políticas exteriores e seu modelo de inserção

internacional dentro de paradigmas” (ibid, p. 8). Significa dizer, em outras

palavras, que os paradigmas informam a política externa brasileira, seja na fase de

formulação ou na de execução.

Por seu turno, LIMA afirma que os paradigmas de política externa

representam “verdadeiras teorias de ação diplomática, constituídas por um

94 Não há como deixar de registrar aproximações com o conceito de “estrutura do discurso político” em HALL (1989). Ver p. 56. 95 Com base nesta categorização apresentada por CERVO acerca da possibilidade de dois tipos de resultados da análise paradigmática, vale frisar que nossa pesquisa ocupou-se em privilegiar mais os efeitos cognitivos do que os operacionais. De fato, os efeitos cognitivos estão mais relacionados à fase de formulação de políticas, ao passo que os operacionais referem-se preponderantemente à de implementação ou execução.

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conjunto mais ou menos articulado de ideias-força, que pode ou não estar

respaldado em visões e teorias existentes” (1994, op. cit., p. 66, grifamos).

Considerada a “natureza interpretativa desses mapas cognitivos, que ajudam o

diplomata a dar sentido à complexidade do mundo que o circunda, deles se

derivando alternativas distintas de ação, esses paradigmas são relativamente

excludentes entre si”. (ibid, p. 66).96

É possível notar, tanto na descrição de CERVO dos paradigmas de política

externa como “cosmovisões”, quanto no de LIMA como “mapas cognitivos” ou

“conjunto mais ou menos articulado de ideias-força”, que os elementos

ideacionais são vitais para a sua compreensão. Não à toa CERVO distingue dois

conjuntos de componentes do paradigma, o “bloco mental”, composto de

ideologia e política, e o “bloco duro”, composto de percepção de interesses

nacionais, relações econômicas internacionais e os impactos sobre a formação

nacional (2003, op. cit., p. 8).

Assim, elementos ideacionais e materiais conformam os paradigmas de

política externa. Como demonstrado na discussão conceitual acerca das ideias,

separá-las dos interesses resulta muito mais de uma necessidade analítica e

metodológica do que uma possibilidade teórica. Desta forma, tendo em vista a

nossa prioridade analítica conferida aos elementos ideacionais (particularmente as

ideias) – ou “bloco mental” como prefere CERVO –, optamos

terminologicamente pelo emprego da expressão “vetor ideacional” em detrimento

de “paradigma”.97 O vetor ideacional, portanto, nada mais é do que o conjunto de

elementos não-materiais que ajuda a conformar um paradigma de política externa.

96 Para LIMA (ibid, pp. 66-67), a capacidade de articulação de paradigmas de política externa se encontra entre os recursos organizacionais detidos pelo MRE que viabilizam seu peso institucional na formulação da política externa brasileira. Os dois demais seriam: 1) as características institucionais próprias do Itamaraty, que o aproximam do modelo clássico de civil service, com padrões regulares de carreira, controle sobre o recrutamento, o sistema de treinamento de avaliação profissional; 2) o alto grau de insulamento dessa burocracia em relação aos influxos provenientes do seu ambiente político e social. Sobre este último aspecto, referente ao insulamento, a discussão que apresentamos na p. 29 (nota 17) demonstra que houve um relativo enfraquecimento da tradição insular do Itamaraty, sendo hoje o processo decisório razoavelmente compartilhado com outros ministérios e agências do Estado, apesar de ainda se reservar ao MRE protagonismo. Quanto ao primeiro aspecto, de institucionalização da carreira diplomática, recomendamos a leitura de CHEIBUB (1985). 97 Outra motivação, de ordem analítica e terminológica, nos estimulou a adotar a expressão “vetor ideacional”, em vez de “paradigma”. Com efeito, a discussão apresentada em seguida por SIKKINK (1997) e FINNEMORE (1997) dedica-se a explorar como e por que, em determinados momentos, consensos em torno do “receituário desenvolvimentista” em determinadas instituições foram rompidos, motivando “mudanças de paradigmas institucionais”. As autoras examinam como e por que determinadas instituições (nos casos mencionados, a CEPAL e o Banco Mundial)

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Passamos assim a explorar desde quando e como o “desenvolvimento”

impregnou-se de forma permanente e duradoura, como ideia (ou vetor ideacional),

no processo de formulação da política externa brasileira, gozando, por

praticamente seis décadas, de ampla legitimação e aceitação política e social,

sendo relegado da agenda de prioridades do comportamento estatal a partir da

última década do século XX.98 Essa explanação não prescinde de referências a

elementos materiais, especialmente no que se refere à “estrutura das relações do

Estado com a Sociedade”, fator assinalado por HALL (1989), como capaz de

afetar o fluxo das ideias. Afinal, conferir prioridade aos elementos ideacionais não

implica em exclusividade.

Outro esclarecimento se faz necessário. Uma vez que a opção analítica e

metodológica foi a de colocar a “ideia do desenvolvimento” como eixo-central

(variável explicativa) na análise que apresentamos da política externa brasileira,

priorizamos aquelas que, justamente, optaram por escolha igual ou semelhante.99

Procuramos, contudo, não negligenciar abordagens como as de LIMA (1994) e

PINHEIRO (2000). Estas duas autoras, em suas análises paradigmáticas sobre a

política externa brasileira, recorrem a outros eixos para a definição de seus

paradigmas, mas não por isto deixam de lidar com a “ideia do desenvolvimento”,

seja ela discutida como um dos objetivos centrais da política externa dentro de sua

tipologia de paradigmas (como em LIMA), ou como outro eixo estruturante da

abandonaram determinadas ideias em torno do desenvolvimento em prol de outras (CEPAL) ou passaram a adotar ideias antes não cogitadas (Banco Mundial). Assim, o emprego da expressão “vetor ideacional de política externa” ajuda-nos a não confundir as “mudanças paradigmáticas institucionais”, às quais as autoras se referem, com a noção de “paradigmas de política externa”. Além disso, como a abordagem institucionalista de SIKKINK e FINNEMORE auxilia-nos a explicar mudanças de paradigmas institucionais na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, esta foi mais uma razão para termos e expressões como “paradigma”, “mudanças de paradigmas” e “mudanças paradigmáticas” serem utilizados exclusivamente ao lidarmos com a abordagem institucionalista das autoras. 98 Para CERVO (2008, p. 13), o Brasil é um país que acumulou sólido pensamento, que não evoluiu, contudo, para a teorização das relações internacionais. Apesar de existir este consistente pensamento ainda a ser mais profundamente investigado, o autor afirma que é possível detectar dois traços em sua trajetória recente: a vinculação com teorias latino-americanas de relações internacionais e o problema epistemológico central, o desenvolvimento. CERVO sublinha, ainda, que “conquanto os pensadores brasileiros tenham centrado sua reflexão sobre o desenvolvimento da nação, não coincidiram no modo de conceituá-lo e, logicamente, nos mecanismos de como alcançá-lo” (ibid, p. 13). Sobre a necessidade de o Brasil desenvolver teorização própria em Relações Internacionais, recomendamos a leitura de artigo de FIORI (2010). 99 A mais óbvia é a do paradigma do Estado desenvolvimentista (1930-1989) em CERVO (2003), cujo “bloco mental” é caracterizado, segundo o autor, pela ideologia econômica desenvolvimentista.

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política externa brasileira, além dos próprios paradigmas propostos (como em

PINHEIRO).

Com efeito, de acordo com LIMA (1994), ao longo da história

republicana, a corporação diplomática brasileira articulou dois paradigmas de

política externa brasileira: o americanista (ou da aliança especial com os Estados

Unidos) e o globalista. De acordo com o primeiro, a aproximação com

Washington é vista como um instrumento de ampliação da capacidade de

negociação do Brasil no sistema internacional, ao passo que, no segundo, o maior

poder de barganha do Brasil decorreria da estratégia inversa, a saber, de busca da

independência em relação aos Estados Unidos, obtida a partir da diversificação

das relações exteriores (ibid, pp. 66-67). Tanto um como outro visam ao alcance

do duplo objetivo que norteou a diplomacia brasileira desde os seus primórdios: a

conquista da autonomia no plano internacional e a promoção e o alcance do

desenvolvimento econômico interno (NOGUEIRA, op. cit., p. 25). Quanto ao

segundo objetivo, sua permanência ao longo do tempo está relacionada não só à

capacidade institucional que o MRE teve para articulá-lo e promovê-lo, mas

também na legitimação da política externa como instrumento de desenvolvimento

nacional, junto às elites domésticas (LIMA, 2005, op. cit., p. 16).100 Assim,

podemos dizer que, em LIMA (1994), independentemente da estratégia de ação

escolhida pela diplomacia brasileira, o desenvolvimento manteve-se como

objetivo central de nossa política exterior ao longo da maior parte da trajetória

republicana. A diferença básica entre as duas para alcançá-lo, em termos

ideacionais, reside nas suas influências intelectuais e nas suas respectivas

prescrições de políticas econômicas e sociais, tanto no âmbito doméstico quanto

no internacional.

PINHEIRO (2000), por sua vez, propõe-se não só a aprimorar as

categorizações dos tradicionais paradigmas de política externa brasileira – o

100 Para LIMA (ibid, p. 16), a crença na política externa como instrumento importante de um projeto de desenvolvimento nacional se consolidou não só como resultado de uma construção intencional dos agentes diplomáticos, mas também como um legado do processo de formação do Estado brasileiro. Significa dizer que o fato do país ter ingressado no início do século XX com praticamente todos os conflitos territoriais com os seus vizinhos resolvidos de forma pacífica contribuiu para fomentar entre as elites a percepção de que as principais ameaças externas ao Brasil não decorriam de questões clássicas de guerra e segurança militar, mas sim das questões relacionadas à vulnerabilidade econômica e ao desenvolvimento.

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americanista e o globalista101 -, como também refletir sobre o novo tempo da

economia e política nacionais a partir do Governo Fernando Collor de Mello

(1990), que teria contribuído para a crise final de ambos.102

O que mais vale sublinhar, contudo, na análise da autora, é o

reconhecimento do desenvolvimento econômico como um segundo eixo de

estruturação da política externa, somado aos paradigmas que apresenta. Este

segundo eixo, afirma, contribuiu para que diplomatas e analistas percebessem uma

forte linha de continuidade na diplomacia, apesar dos momentos de ruptura (ibid,

p. 311). O objetivo do desenvolvimento, pautado no modelo de industrialização

por substituição de importações (MSI), esteve presente, pelo menos entre 1930 e

1990, e o que teria mudado ao longo da história teriam sido apenas as visões sobre

o melhor meio para alcançá-lo (ibid, p. 311).

Disposto a mostrar como a evolução histórica da formulação política do

conceito de desenvolvimento influiu na atuação diplomática brasileira, COSTA E

SILVA NETO (1989) afirma que foi na década de 30, quando os interesses

urbano-industriais nacionais se tornaram mais visíveis e conquistaram um espaço

político autônomo, que a industrialização se cristaliza, identificada como

modernização e desenvolvimento (ibid, p. 131). Vários fatores concorreram para

esta transformação. No âmbito externo, os mais importantes foram a crise

econômica internacional, a disputa pelo mercado e pelo sistema produtivo por

parte das potências capitalistas, a divisão do mundo em blocos e a política de boa-

101 De acordo com a autora, a política externa brasileira pode ser dividida, historicamente, em quatro períodos, cada um deles correspondendo à hegemonia de um dos paradigmas propostos por LIMA (1994). Do início do século até o final da década de 50, e entre 1964 e 1974, o americanismo foi o paradigma hegemônico. Entre 1961 e 1964, anos da Política Externa Independente, surge o globalismo que, após interrompido por cerca de dez anos por uma nova onda americanista , vai ressurgir no Governo Geisel (1974), só vindo a ceder lugar para novas articulações no anos 90, quando atinge o seu limite (ibid, pp. 308-309). PINHEIRO afirma ainda que a rigidez com que os dois paradigmas foram acima apresentados não é impedimento, contudo, para identificar nuances na dinâmica política em cada um deles. Assim, à divisão da política externa por fases, acrescenta uma nova subdivisão: a do americanismo pragmático (1902/1945, 1951/1961 e 1967/1974), a do americanismo ideológico (1946/1951, 1964/1967), a do globalismo grotiano (1961/1964) e, finalmente a do globalismo hobbesiano (1974/1990). A autora discorre sobre as razões teóricas para tais categorizações (ibid, pp. 308-310). 102 Valendo-se das explicações presentes em LIMA (1994, op. cit, p 70) a autora afirma que, no Governo Collor, testemunha-se uma dissociação entre os valores e as razões pragmáticas do Executivo que justificavam a retomada do americanismo e os valores e os interesses das forças políticas e sociais mais relevantes que não endossavam mais esta alternativa (PINHEIRO, op. cit., p. 311). Quanto ao globalismo, seu esgotamento se explicaria pela fragmentação da coalizão diplomática em razão das transformações na ordem mundial com o fim da Guerra Fria que minou o poder dos países do Sul e o discurso terceiro-mundista (PINHEIRO, 2000, p. 311 apud LIMA, op. cit., p. 70; FONSECA JÚNIOR, 1998, p. 347).

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vizinhança de Franklin D. Roosevelt (CERVO, op. cit, p. 11). Novas forças

políticas internas, em especial a nascente burguesia-industrial e massas urbanas

em busca de emprego e renda, responderam à atitude dos países capitalistas mais

avançados de regresso ao protecionismo e a soluções nacionalistas com demandas

por modernização. Tais forças “criticavam a dependência e o atraso histórico e das

demandas de uma sociedade que se havia transformado” (ibid, p. 11). O resultado

vai ser a redefinição das metas econômicas brasileiras em direção à

industrialização com a formação gradual de uma ideologia que passa a identificar

o interesse do setor industrial com o interesse da nação como um todo (COSTA E

SILVA NETO, op. cit., p. 132).

Assim, dois fatores exerceram grande influência a partir dos anos 30 na

caracterização dessa ideologia e na identificação da industrialização com o

desenvolvimento: 1) o surgimento de uma burguesia industrial que passou a tomar

consciência da sua importância política e do seu papel como classe; e, 2) a

formação de um Estado centralizador, de cunho intervencionista, aliado a uma

burocracia-técnica (especialmente economistas) com certas concepções

modernizantes (ibid, p. 131). No que tange ao primeiro aspecto, a burguesia

industrial passou a se mobilizar em torno da defesa de seus interesses dentro da

política econômica do Governo, de forma a exercer pressão sobre o aparelho

estatal, com a formulação de uma plataforma industrialista. Quanto ao segundo, o

aspecto burocrático marcante da “Era Vargas” foi a multiplicação de agências

governamentais. A proposta do Estado era a de racionalizar (burocraticamente)

sua ação centralizadora e dar resposta política para a coexistência do setor então

tradicional (agro-exportador) e do setor moderno (ibid, p. 132). Esta estratégia de

transpor o conflito entre um setor nascente e pujante e um setor tradicional para a

multiplicidade dos órgãos governamentais, mediante a representação de classes

dentro deles, acabou por possibilitar a penetração do pensamento industrialista no

seio da burocracia (ibid, p. 132).

Portanto, desde a Era Vargas (1930-1945), o Estado tendeu a acompanhar

de perto o processo de desenvolvimento da indústria nacional.103 Emergiu a partir

103 O texto de COSTA E SILVA NETO (1989) é bastante elucidativo da trajetória histórica do conceito de desenvolvimento e da forma como se firmou como uma das bases da ação externa do Brasil, desde a Era Vargas até o fim do regime militar de 1964-1985. Aqui, não resgatamos todas estas passagens porque fogem ao escopo das pretensões deste tópico. Apenas frisamos o momento em que o desenvolvimento ingressa definitivamente como eixo estruturante da política externa.

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dos anos 30 uma modalidade de Estado autocrático e desenvolvimentista que, por

ter adquirido tais características básicas sob a presidência de Getúlio Vargas, pode

ser denominada de “varguista” (SALLUM JR, 2003, p. 35). Podemos afirmar,

portanto, que, dos anos 30 até os anos 90, prevaleceu no Brasil esta modalidade de

Estado que cumpriu o papel de núcleo organizador da sociedade e funcionou

como alavanca para a construção de um capitalismo industrial, nacionalmente

integrado, mas dependente do capital externo, por meio de uma estratégia de

substituição de importações (ibid, p. 35).104

O MRE seguiu a tendência geral do Estado a partir dos anos 30 e

transformou o desenvolvimento em ponto central da agenda diplomática. O

desenvolvimento tornou-se um aspecto duradouro e consistente da política externa

brasileira, afirmando-se como seu vetor conceitual.105 Conferiu nova

funcionalidade ao setor externo, inventando o modelo de inserção internacional do

Brasil que visa realizar os interesses de uma sociedade cada vez mais complexa,

com o auxílio de uma política exterior que privilegie a autonomia decisória, a

cooperação externa, uma política de comércio exterior flexível e não doutrinária e

a subordinação das questões de segurança aos fins econômicos (CERVO, op. cit.,

p. 12).

No mesmo sentido, LIMA & HIRST afirmam que a política externa

brasileira possui um forte componente desenvolvimentista (2006, op. cit, p. 22).

Este traço característico se revelou no fato da trajetória da política externa estar 104 Sobre a denominação “varguista”, SALLUM JR reconhece que ela é apenas mais uma entre outras modalidades autocráticas e desenvolvimentistas de Estado ocorridas na periferia capitalista no mesmo período. Com a mesma ressalva, adotamos esta denominação para nos referimos ao modelo de Estado prevalecente no Brasil entre 1930 e 1990. O autor reputa os processos de democratização política e liberalização econômica dos anos 80/90 como “dimensões-chave” para compreender a transformação daquela forma de Estado. Apesar de demonstrar que a partir do Governo da “Nova República” de José Sarney (1985-1990) o Estado brasileiro vai gradualmente abandonando o modelo varguista, SALLUM JR afirma que foi somente no primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso que o Estado ganhou definitivamente outra feição, segundo um novo padrão hegemônico de organização, inclinado ao liberalismo em assuntos econômicos, e identificado com a democracia representativa (ibid, p. 36). Enfim, podemos afirmar que, durante o primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso se cimentou definitivamente um novo pilar informador das relações entre o Estado e a sociedade. 105 Apesar de reconhecer que o Brasil soube reagir ao estrangulamento econômico provocado pela crise econômica mundial de 1930 e posterior início da Segunda Guerra Mundial, por meio da implementação de políticas públicas que fortaleceram a o Estado Central e sua economia nacional, FIORI (2007, pp. 237-238) afirma que o país só se tornou uma experiência original de desenvolvimento acelerado e industrialização pesada depois de 1955, durante o Governo Juscelino Kubistchek, sob a liderança dos investidores estatais e do capital privado estrangeiro, provenientes de quase todos os países do núcleo central do sistema capitalista. Neste momento é que o Brasil teria começado a exercitar uma política externa mais autônoma, combativa e global, ao lado de suas políticas econômicas desenvolvimentistas.

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estreitamente vinculada às conjunturas críticas que atingiram o modelo econômico

desenvolvimentista. Conjunturas críticas são trazidas por uma combinação de

mudanças sistêmicas e domésticas; enfim, são aqueles momentos em que “o

padrão dominante tanto do desenvolvimento econômico quanto internacional

chegam à exaustão e uma nova coalizão vencedora é constituída, levando a

mudanças tanto na política externa econômica, como na política externa” (ibid,

pp. 22-23). De acordo com LIMA & HIRST, duas destas conjunturas críticas

podem ser identificadas no século passado: a primeira, justamente nos anos 30

com a já comentada crise no modelo agroexportador e sua substituição pelo MSI,

e a segunda, nos anos 90, quando se exaure o regime de “industrialização

protegida”, que é substituído por um modelo de integração competitiva na

economia global (ibid, p. 23).

LIMA & HIRST (ibid, p. 23) descrevem, de forma sintética, o modelo de

desenvolvimento econômico dominante no Brasil entre os anos 30 e 90 e como a

política externa tornou-se um instrumento fundamental para a sua afirmação:

O Brasil se industrializou rapidamente durante a segunda metade do século XX e o país foi um dos exemplos mais exitosos da industrialização por substituição de importações. As principais características desde modelo de desenvolvimento foram o papel central na regulação, provisão dos incentivos e na produção; a discriminação relativa em relação às importações; e a participação em larga escala do investimento estrangeiro direto num amplo escopo de setores industriais. Nos anos 60 e 70 um componente exportador foi adicionado a esta estratégia de desenvolvimento. A política externa se tornou um importante instrumento do modelo de substituição de importações (MSI), e este, por seu turno, auxiliou a abastecer as demandas brasileiras por um tratamento diferenciado aos países em desenvolvimento no regime de comércio, pela criação de um Sistema Geral de Preferências (SGP) para as exportações dos países em desenvolvimento, e também pela abertura de novos mercados e pela expansão da cooperação econômica com os países do Sul.106 As autoras afirmam que os development paths (vias ou rotas do

desenvolvimento) criam novas ideias, interesses e instituições (ibid, p. 23). Uma

106 Tradução livre do original: Brazil industrialized rapidly during the second half of the twentieth century and the country was one of the most successful examples of import substitution industrialization. The major characteristics of this development model were a central role for the state in regulation, in the provision of incentives, an in production; relative discrimination against imports; and large-scale participation of foreign direct investment in a wide range of industrial sectors. In the 1960s and 1970s an export component was added to this development strategy. Foreign policy became an important instrument of the ISI model, and this in turn helped to fuel Brazilian demands for the creation of a Generalized System of Preferences (GSP) for developing countries’ exports, and also for the opening of new markets and the expansion of economic cooperation with southern countries.

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vez que um país move-se em direção a um caminho (path) em particular, este se

torna muito difícil de desalojar. As condições internacionais que contribuíram

para a emergência de um determinado development path podem até modificar ou

mesmo desaparecer, sem que isto implique em mudanças nas ideias, interesses e

instituições relacionadas àquela trajetória (ibid, p. 23). LIMA & HIRST afirmam,

então, que as trajetórias do desenvolvimento no Brasil são path dependent (ibid, p.

23).107 Daí a estabilidade e a continuidade da política externa do país ao longo do

período do MSI.

A afirmação das autoras de que “development paths criam novas ideias,

interesses e instituições” ajuda a explicar como e por que a “ideia do

desenvolvimento” adquiriu predominância enquanto categoria conceitual e

ideacional e se constituiu em um dos principais eixos estruturantes da política

externa brasileira.108 Analiticamente, as autoras atribuem sua estabilidade e

continuidade a vários fatores, entre eles o relativo insulamento burocrático do

Itamaraty e sua promoção de um conjunto particular de ideias, à forma pela qual

ideias passadas continuaram a influenciar a visão de mundo dos tomadores de

decisão brasileiros e ao estreito vínculo entre a identidade internacional do Brasil

e sua orientação de política externa (ibid, p. 23).

Resta averiguar, assim, as influências políticas e intelectuais decisivas que

contribuíram para a consolidação do desenvolvimento como vetor conceitual e

ideacional da política externa brasileira. De acordo com CERVO, o “bloco

mental” do paradigma desenvolvimentista penetrou com força a opinião pública e

a vida política no Brasil a partir dos anos 50. Entre os homens de Estado mais

receptivos a esse ideário figuraram Getúlio Vargas, Juscelino Kubistchek e

Ernesto Geisel. Entre os intelectuais brasileiros e estrangeiros responsáveis pela

construção do pensamento desenvolvimentista, destacaram-se Raúl Prebish, Celso

107 Sobre a discussão conceitual de path dependence, ver a p. 40. Portanto, a abordagem das autoras revela este liame com o institucionalismo histórico, que possui justamente na noção de path dependence uma de suas premissas teóricas centrais. 108 A abordagem das autoras se aproxima também da discussão sobre a interferência das instituições como canais capazes de filtrar e modificar o fluxo das ideias, objeto do próximo tópico. Por um processo de “aprendizado social”, defendemos que as instituições são capazes não só de encerrar ideias, mas também de, a partir das mesmas, modificar seu padrão de atuação intelectual e política e sua configuração material. Para tanto, principalmente na fase de adoção das novas ideias, são fundamentais também as lideranças individuais e os atributos de suas personalidades.

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Furtado, Ruy Mauro Marini, Robero Lavgana, Theotonio dos Santos e outros

(ibid, p. 23) .

A afirmação do ideário desenvolvimentista no Brasil sofreu influência de

um movimento continental (latino-americano) com um centro difusor intelectual

bem determinado: a CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina, órgão

especializado das Nações Unidas criado no final dos anos 40 e sediado em

Santiago do Chile, que abrigou um relevante grupo de economistas e outros

cientistas sociais, liderados por Raúl Prebish, que chegou à organização em 1949.

O conjunto de proposições teóricas e de políticas econômicas elaboradas por esse

grupo desde então deu substância ao que passou a ser chamado de

desenvolvimento cepalino, “referindo-se o termo às teses dos autores da CEPAL

que propunham que a industrialização apoiada pela ação do Estado seria a forma

básica de superação do subdesenvolvimentismo latino-americano”

(COLISTETTE, 2001, p. 21). Mais do que isto, o pensamento de Raúl Prebish e

do grupo que ele compôs, com destaque para Celso Furtado, “constitui o ponto de

partida de uma teoria latino-americana e brasileira das relações internacionais

(CERVO, 2008, op. cit., p. 14). Em outras palavras, “o pensamento denominado

como ‘Prebish-Cepal’ constituiu o ponto de início de desenvolvimento do

pensamento próprio, latino-americano, em Relações Internacionais” (BERNAL-

MEZA, 2004, p. 209).

Prebish e seus companheiros construíram uma abordagem estruturalista

das relações econômicas internacionais que foi crucial para o apelo que o

desenvolvimento, como ideia, teve para os principais líderes latino-americanos.

Os cepalinos sustentavam que as relações internacionais, particularmente o

comércio, “comportavam mecanismos que reproduziam as condições de

subdesenvolvimento, perpetuando-as no tempo, ou seja, convertendo-as em

estruturas permanentes” (ibid, p. 14). A noção de “deterioração dos termos de

troca” ancora-se na visão de um “centro” da economia mundial que produz bens

manufaturados e uma “periferia” produtora de produtos primários. O argumento

cepalino é o de que as transações do mercado mundial tenderiam a desfavorecer

os últimos perpetuando a sua situação de subdesenvolvimento (COOPER &

PACKARD, op. cit., p. 10).109 A vertente desenvolvimentista da CEPAL sofreu

109 Autor de interessante artigo em que questiona os principais componentes da formulação teórica da CEPAL e procura identificar em que aspectos gerais ela pode ter influenciado o pensamento

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transformações (CERVO, op. cit., p. 13), desde os conceitos originais de Prebish

até a teoria do desenvolvimento de Celso Furtado que insiste sobre o componente

da desigualdade tecnológica110, chegando também aos enfoques da teoria da

dependência dos anos 60/70.

Segundo LIMA (1994, op. cit., p. 67), um dos principais méritos das

formulações cepalinas foi o seu sentido universalizante e sua capacidade de

“fornecer uma identidade econômica própria aos países em desenvolvimento, a

despeito de suas diferenças nacionais específicas, em termos de localização

geográfica, sistema econômico e regime político”.111 No caso do Brasil, no início

dos anos 60, as teorias cepalinas contribuíram para que a política externa buscasse

no eixo Norte-Sul o espaço para exercício de um papel protagônico pelo Brasil

(ibid, p. 67). Foi este eixo que propiciou ao MRE, no papel de agência

responsável pela condução da política externa, “encontrar na diplomacia

econômica no âmbito multilateral uma missão organizacional específica,

econômico brasileiro subsequente, COLISTETE (op. cit, p. 23) sintetiza o seu núcleo básico em duas proposições: a) as economias latino-americanas teriam desenvolvido estruturas pouco diversificadas e pouco integradas com um setor primário-exportador dinâmico, mas incapaz de difundir o progresso técnico para o resto da economia, de empregar produtivamente o conjunto da mão-de-obra e de permitir o crescimento sustentado dos salários reais. Ao contrário do que pregava a doutrina do livre-comércio, esses efeitos negativos se reproduziriam ao longo do tempo na ausência de uma indústria dinâmica, entendida como a principal responsável pela absorção de mão-de-obra e pela geração e difusão do progresso técnico, pelo menos desde a Revolução Industrial britânica; e, b) o ritmo de incorporação do progresso técnico e o aumento de produtividade seriam significativamente maiores nas economias industriais (centro) do que nas economias especializadas em produtos primários (periferia), o que levaria a uma diferenciação secular de renda favorável às primeiras. Os preços de exportação dos produtos primários tenderiam a apresentar uma evolução desfavorável frente à dos bens manufaturados produzidos pelos países industrializados. Como resultado, haveria uma tendência à deterioração dos termos de troca que afetaria negativamente os países latino-americanos através da transferência dos ganhos de produtividade no setor primário-exportador para os países industrializados. 110 Aprofundamo-nos um pouco mais à frente sobre o pensamento de Celso Furtado. 111 LIMA (ibid, p. 67) afirma que as formulações cepalinas tiveram este mérito em comparação aos princípios neutralistas e não-alinhados que, por estarem muito vinculados ao eixo “Leste-Oeste”, dificultavam a adesão dos países latino-americanos. No Brasil, a posição neutralista e não-alinhada resultava, em grande parte, da crítica nacionalista à matriz americanista da política exterior, crítica esta que foi gerada no âmbito do ISEB – Instituto de Estudos Superiores Brasileiros, especialmente pelos estudos de Hélio Jaguaribe. O nacionalismo político de Hélio Jaguaribe reivindica para o Brasil, no plano das relações internacionais (1958, p. 32), “uma posição de maior autonomia, em face dos Estados Unidos e das grandes potências europeias e se inclina para uma linha neutralista em relação ao conflito norte-americano-soviético”. O que LIMA argumenta é que a política externa brasileira logra, por intermédio da articulação do paradigma globalista, ultrapassar a mera posição de descontentamento com a clivagem Leste-Oeste para formular uma nova teoria de ação diplomática em que as relações estreitas com os Estados Unidos deixam de ser meios para aumentar o poder de barganha do Brasil e em que o desenvolvimento da capacidade industrial é uma condição indispensável para a atuação mais autônoma do país no sistema internacional (op.cit., p. 67). Para mais informações sobre o pensamento de Hélio Jaguaribe, engendrado no âmbito do ISEB, sugerimos a leitura de WEFFORT (2006, pp. 297-321).

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complementar às políticas governamentais de desenvolvimento industrial” (ibid,

p. 67).

Mas se, por um lado, o pensamento cepalino contribuiu decisivamente para

que o desenvolvimento se incorporasse definitivamente como vetor conceitual e

ideacional da política externa, por outro, não houve consenso interno sobre a

melhor forma de atingi-lo. Economistas, dirigentes da esfera pública, Chefes de

Governo (democráticos ou do regime militar) e a opinião pública divergiram

sobre qual o modelo de desenvolvimento a adotar, desde que a ideologia

desenvolvimentista ganhou força no Brasil, a partir do final dos anos 40 e,

principalmente, início dos anos 50.112 De um lado, observou-se a defesa de uma

estratégia de desenvolvimento associado às forças externas do capitalismo, de

estreitos vínculos políticos, geopolíticos e econômicos com a matriz deste sistema,

os Estados Unidos (CERVO, op. cit., p. 13). De outro, uma proposta mais

autônoma de desenvolvimento, a ser tocado essencialmente pelas forças da nação

(ibid, p. 13). Não obstante a falta de consenso, as duas estratégias coexistiram de

forma razoavelmente pacífica no país, ora pendendo o governo para uma delas,

ora para outra, dialogando com ambas, contribuindo para que, no Brasil, se

afirmasse um modelo de desenvolvimento “misto”, fechado e aberto em doses

medidas e equilibradas (ibid, p. 13).113 Entres os associados às forças externas

estariam os Governos de Eurico Gaspar Dutra (1946-1950), Castelo Branco

(1964-1967), Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Fernando Henrique

Cardoso (1995-2002). Já entre os adeptos da estratégia de desenvolvimento

autônomo estariam os Governos de Getúlio Vargas (1950-1954), João Goulart

(1961-1964) e Ernesto Geisel (1974-1979).114

112 Ver comentários a FIORI, na nota 105, p. 93. 113 Este cenário não se repetiu, contudo, em muitos dos países vizinhos, onde as diferentes estratégias de desenvolvimento foram vistas como excludentes e foram objeto de acirrados embates políticos na esfera estatal e também na opinião pública. A Argentina é um claro exemplo disso. Com efeito, SIKKINK (1991, pp. 4-5) demonstra que o Brasil teve mais sucesso na sua estratégia de inserção internacional no sistema capitalista do que a Argentina, porque teve mais continuidade na formulação de políticas econômicas e também porque as elites mostraram-se mais unidas em torno do ideário desenvolvimentista como um projeto nacional. Sobre este trabalho da autora, nos aprofundamos um pouco mais logo em seguida. 114 CERVO não menciona, nesta passagem, o Governo Juscelino Kubistchek (1955-1960), pelo que deduzimos que provavelmente represente, para o autor, o governo que mais simbolizou o modelo “misto” de desenvolvimento. Como já vimos na explicação de FIORI (2007, p. 238), as lideranças dos investimentos estatais e do capital privado estrangeiro foi fundamental para que o Brasil alcançasse um processo de desenvolvimento acelerado e industrialização pesada durante o Governo JK.

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Entre os autores que se dispõem a compreender o debate econômico

brasileiro em torno de desenvolvimento, BIELSCHOWSKY (2007) é um dos que

mais avança na sua compreensão, motivo pelo qual resolvemos nos alinhar a sua

categorização. Disposto a compreender o período 1945-1964, quando, afirma, o

desenvolvimentismo tornou-se a ideologia econômica dominante115, o autor

apresenta um quadro conceitual composto por cinco correntes de pensamento

econômico, dentro das quais identifica a grande maioria dos economistas e

intelectuais que participaram do debate econômico brasileiro: os neoliberais, os

desenvolvimentistas do setor privado, os desenvolvimentistas não-nacionalistas do

setor público, os desenvolvimentistas nacionalistas do setor público e os

socialistas.116

A corrente neoliberal “compreende os economistas que defendiam a

prioridade da livre movimentação das forças de mercado como meio para atingir a

eficiência econômica” (ibid, p. 33). De acordo com BIELSCHOWSKY, “não

necessariamente se opunham à industrialização”, mas guardam como traço

característico a oposição, ou pelo menos omissão, quanto a propostas

desenvolvimentistas (ibid, p.33).117 A participação dos neoliberais no debate

econômico está fundamentalmente vinculada à proposta de estabelecer as

condições do equilíbrio monetário e financeiro, que, segundo dizem, é

115 BIELSCHOWSKY define o desenvolvimento como o “projeto de superação do subdesenvolvimento através da industrialização integral, por meio de planejamento e decidido apoio estatal” (ibid, p. 33). 116 Aqui, preocupamo-nos em descrever apenas as quatro primeiras, por entendermos que o debate ideacional que demarca as diferenças entre os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva no campo da formulação de políticas públicas de propriedade intelectual permaneceu adstrito à fricção “neoliberalismo x desenvolvimentismo”, sendo o socialismo uma opção descartada por ambos. Assim, o legado ideacional das correntes neoliberais e desenvolvimentistas do período investigado por BIELSCHOWSKY foi o que nos interessou. Do mesmo modo, entre as três correntes desenvolvimentistas, interessou-nos mais as duas do setor público (nacionalista e não-nacionalista) porque entendemos, igualmente, que são as que mais reverberaram nas diferenças ideacionais econômicas entre os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, com suas consequências na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual. No entanto, apresentamos alguns comentários sobre os desenvolvimentistas do setor privado. Sobre a corrente socialista, ver BIELSCHOWSKY (ibid, pp. 181-207). 117 Lembramos que o autor se refere ao período 1945-1964. No momento em que voltarmos a nos reportar ao pensamento neoliberal no Brasil, predominante durante todos os anos 90, a defesa da desnecessidade de uma política industrial sob a tutela estatal torna-se um elemento totalmente desinibido do discurso. Vale esclarecer que o prefixo “neo” desta corrente reporta-se, de acordo com BIELSCHOWSKY, ao fato de que os liberais brasileiros passaram a admitir, em sua maioria, após 1930, a necessidade de alguma intervenção estatal, saneadora de imperfeições de mercado que, reconheciam, poderiam afetar economias subdesenvolvidas como a brasileira. Contudo, eram ardorosos defensores do princípio de redução da intervenção do Estado na economia e não propunham medidas de suporte ao projeto de industrialização, sendo frequentemente contrários a essas medidas (ibid, pp. 37-38).

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indispensável para a maximização da eficiência dos mecanismos de mercado

(ibid, p. 33). Entre os economistas mais destacados, adeptos dessa corrente,

encontravam-se Eugênio Gudin e Octávio Gouveia de Bulhões, que tiveram na

Fundação Getúlio Vargas (FGV) seu principal núcleo de militância intelectual

(ibid, p. 38).

Como visto, entre os desenvolvimentistas, BIELSCHOWSKY distingue

três correntes. Como elo entre elas, destaca “o projeto comum de formar um

capitalismo industrial moderno no país e a perspectiva de que, para isso, era

necessário planejar a economia e proceder a distintas formas de intervenção

governamental” (ibid, p. 77). Entre os desenvolvimentistas do setor privado,

encontrava-se uma corrente de economistas que assumiam uma posição

antiliberal, com posições variadas sobre o grau de participação estatal e do capital

estrangeiro que convinha ao processo (ibid, p. 34). Contribuiu para a afirmação do

ideário desenvolvimentista no setor privado a atuação de entidades representativas

do setor industrial (CNI, FIESP, etc) que ampliaram seu horizonte de

reivindicações. Roberto Simonsen surge como o pensador individual mais

proeminente desta corrente e liderança incontestável, sendo o maior responsável

por garantir a legitimidade do projeto desenvolvimentista junto ao empresariado

industrial (ibid, pp. 78-79). 118

No setor público, a primeira das duas correntes destacadas por

BIELSCHOWSKY é a dos desenvolvimentistas “não-nacionalistas”, favoráveis

ao apoio estatal à industrialização, mas com acentuada preferência por soluções

privadas nos casos de disputas de inversões estatais (2007, op. cit., p. 34). Outra

de suas características marcantes, em contraste com os “desenvolvimentistas

nacionalistas” e próximos dos neoliberais, é o da prioridade conferida às políticas

de estabilização monetária, apesar de frisarem a ideia de não prejudicar os

investimentos fundamentais, por conta dessas políticas (ibid, p. 34). Entre as duas

correntes desenvolvimentistas, a constituída pelos nacionalistas foi, sem dúvida,

majoritária no Brasil (ibid, p. 103). Contudo, apesar de pouco numerosa, a 118 BIELSCHOWSKY aponta Simonsen como o maior líder industrial brasileiro e ideólogo do desenvolvimentismo. Sua militância política e intelectual deu-se preponderantemente entre os anos 30/40, vindo a falecer em 1948. Empresário, engenheiro e economista, Simonsen participou da vida política nacional através dos postos de comando que assumiu nas entidades representativas do empresariado industrial. Apesar de representar e liderar os interesses do setor privado, Simonsen não somente influenciou como apoiou os desenvolvimentistas do setor público. O autor apresenta um resgate de sua rica trajetória política e intelectual (ibid, pp. 81-89). Sobre a importância de Simonsen para a afirmação do desenvolvimentismo no Brasil, ver SIKKINK (1991, op. cit., p. 9).

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corrente “não-nacionalista” mostrou-se bastante ativa e influente na esfera

governamental (ibid, p. 103).

Assim, embora a tendência predominante no setor público, desde as

origens da aceitação do desenvolvimentismo como ideia econômica nas décadas

de 30/40 até seu apogeu nas décadas de 50/70, tenha sido a de ceticismo quanto à

possibilidade de os capitais estrangeiros virem a ter grande participação na

produção industrial brasileira ou interesses de longo prazo no processo de

industrialização nacional, os “não-nacionalistas” não só vislumbravam como

admitiam e defendiam tal possibilidade (ibid, p. 103).

BIELSCHOWSKY afirma que as divergências entre os nacionalistas e os

“não-nacionalistas” se davam essencialmente em dois pontos: a) embora não

fossem essencialmente contrários a investimentos estatais, os “não-nacionalistas”

combatiam sua proliferação, com o argumento de que o Estado não deveria

desempenhar função e ocupar espaço que a iniciativa privada poderia

desempenhar e ocupar com maior eficiência. Especialmente no que tange a

grandes projetos de infraestrutura e mineração, os “não-nacionalistas” defendiam

a opção pelo capital estrangeiro, por entenderem que o capital nacional não tinha

suficiente suporte financeiro para tal (ibid, p. 104), e ; b) davam grande ênfase à

necessidade de controle da inflação e ao apoio de medidas de estabilização

monetária.119 Outras terminologias igualmente utilizadas para se referir,

respectivamente, aos desenvolvimentistas não-nacionalistas e aos

desenvolvimentistas nacionalistas são as de “liberais desenvolvimentistas” e

“nacional-desenvolvimentistas”.120

Os desenvolvimentistas “não-nacionalistas” não se valeram de instituições

nucleares para a difusão de seu pensamento econômico, como os neoliberais, com

a FGV. Sua atuação mais relevante se deu como parte da cúpula dirigente do

então BNDE, entre 1952 e 1959. O economista de maior destaque desta corrente

foi, sem dúvida, Roberto Campos, cujas ideias tiveram bastante repercussão e

119 BIELSCHOWSKY enfatiza que estes dois pontos representam os pontos de contato básicos entre os “desenvolvimentistas não-nacionalistas” e os neoliberais, pontos estes que reduzem a distância ideológica entre as duas correntes. Tal distância refere-se no alinhamento dos desenvolvimentistas “não-nacionalistas” ao projeto de industrialização e em sua inequívoca inclinação pelo planejamento econômico (ibid, 104). 120 Em interessante artigo em que apresenta uma abordagem comparativa entre as ideias de Roberto Campos e Celso Furtado, SANTORO (2008) afirma que elas são ilustrativas das controvérsias entre os desenvolvimentistas próximos dos liberais (não-nacionalistas) e aqueles que se vinculavam ao nacionalismo.

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representatividade. BIELSCHOWSKY reputa-o um “pensador certeiro” (ibid, p.

105) e “o economista da nova ordem do Brasil, que passava da velha estrutura

agrário-exportadora à nova estrutura de economia industrial internacionalizada”

(ibid, p. 105). Para o autor, “Campos apostou na industrialização pela via da

internacionalização de capitais e apoio do Estado e ganhou”.121 E complementa:

“de todos os economistas brasileiros mais ativos, foi aquele cujo projeto

desenvolvimentista esteve mais próximo da política de investimentos

efetivamente realizada” (ibid, p. 105). Chega o autor a afirmar que “os traços

básicos da formação da estrutura industrial brasileira nos anos 50 passavam da

cabeça de Campos aos pronunciamentos e à política desenvolvimentista de

Juscelino Kubistchek”, Chefe de Estado entre 1950 e 1955 (ibid, p. 105).122

A última das três correntes desenvolvimentistas apontadas por

BIELSCHOWSKY é, como já mencionado, a dos “desenvolvimentistas

nacionalistas”. Como os demais desenvolvimentistas, defendiam a constituição de

um capitalismo industrial moderno no país, mas guardavam três traços distintivos

que os diferenciavam. O primeiro deles é o de uma decidida inclinação pela

ampliação da intervenção do Estado na economia, por meio de políticas de apoio à

industrialização, integradas em um minucioso e abrangente sistema de

planejamento, e incluindo investimentos estatais em setores tidos como

estratégicos, como petróleo, mineração e siderurgia (ibid, pp. 127-128). Outro

121 BIELSCHOWSKY observa que, apesar de suas preocupações com a estabilidade monetária, o fato de Roberto Campos ter sido um dos criadores do BNDE e protagonista na execução do Plano de Metas do Governo JK, entre outras atividades, caracteriza-o, sem dúvida, como um desenvolvimentista (ibid, p. 38). Diplomata de carreira, graduado em Economia pela Universidade de Columbia, Roberto Campos é descrito pelo autor como possuidor de “um espírito tipicamente cosmopolita e uma verve crítica ímpar entre os economistas brasileiros”, além de “argumentador incisivo e envolvente, capaz de confundir o mais inteligente dos adversários” (ibid, pp. 104-105). A opção de BIELSCHOWSKY de, ao abordar cada uma das correntes do pensamento econômico brasileiro, enfatizar a influência intelectual e política de seus principais representantes individuais (como Roberto Campos, entre os desenvolvimentistas “não-nacionalistas” e Celso Furtado, entre os desenvolvimentistas nacionalistas), alinha-se com nossa visão de que economistas são capazes de exercer forte influência na formulação de políticas públicas, por intermédio de estratégias intelectuais de persuasão. A persuasão, conceito central da abordagem “centrada na economia” do institucionalismo histórico de Peter Hall, é importante na análise que apresentamos da formulação de políticas públicas de propriedade intelectual durante os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. 122 Apesar do desempenho de Roberto Campos no cenário político brasileiro posterior a 1964, que o identifica como um “homem de direita (ibid, p. 105), BIELSCHOWSKY enfatiza que não se deve extrair disto conclusões preconceituosas sobre as características teóricas do pensamento econômico que expressava nos anos 50. No início dos anos 50, sua defesa da industrialização com apoio do Estado e de planejamento colocou-o em franca confrontação teórica com a essência da ortodoxia liberal (ibid, p. 105). Ainda assim, o autor identifica diferentes fases em sua trajetória intelectual e política durante a década de 50 (ibid, p. 106).

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traço distintivo é a sistemática defesa da subordinação da política monetária à

política de desenvolvimento econômico (ibid, p. 130).123 Finalmente, o terceiro e

último traço era a inclinação política por medidas de caráter social (ibid, p.

130).124 Os perfis dos economistas nacionalistas eram os de pessoas preocupadas

com questões como desemprego, pobreza e atrasos culturais e regionais da

população brasileira, e também com o lado arcaico das instituições do país, seja

no campo ou no interior da administração estatal (ibid, p. 130). 125

Os conceitos cepalinos, que sugeriam aos dirigentes latino-americanos

uma estratégia política de superação da desigualdade entre as nações, tiveram

grande influência sobre a geração dos desenvolvimentistas nacionalistas

brasileiros, especialmente por causa de Celso Furtado, que trabalhou com a equipe

de Raúl Prebish na CEPAL, entre 1949 e 1953. Foi ele o grande representante da

corrente desenvolvimentista do país. De acordo com BIELSCHOWSKY, seu

“fôlego inesgotável e sua admirável capacidade de combinar criação intelectual e

esforço executivo, assim como sua habilidade e senso de oportunidade para abrir

espaço às tarefas desenvolvimentistas que propagava” (ibid, p. 132) é que

explicam a liderança que conseguiu exercer entre os economistas, especialmente

durante os anos 50 quando ajudou a fundar o Clube dos Economistas, órgão que

reuniu alguns dezenas de técnicos nacionalistas do governo federal e alguns

desenvolvimentistas do setor privado (ibid, p. 129).

A condição de Celso Furtado de economista mais emblemático da corrente

nacionalista do desenvolvimentismo deu-se muito em função de ter conseguido

consolidar, entre os desenvolvimentistas nacionalistas brasileiros, um

entendimento homogêneo da problemática do subdesenvolvimento do país, 123 Neste ponto, os desenvolvimentistas nacionalistas eram aliados dos desenvolvimentistas do setor privado, mas não coincidiam quanto à interpretação do processo inflacionário e à forma de combatê-lo. Os desenvolvimentistas nacionalistas introduziram e difundiram no Brasil o estruturalismo cepalino e, salvo algumas exceções, desconsideraram as medidas de curto prazo para o controle inflacionário – que, para os desenvolvimentistas do setor privado, deveriam incluir redução salarial e tributária (ibid, p. 130). 124 Leciona JAGUARIBE (1972, p. 13) que “o processo do desenvolvimento econômico é um processo de crescimento da renda real caracterizado pelo melhor emprego dos fatores de produção, nas condições reais da comunidade e ideais do tempo”. Assim, a ideia de desenvolvimento econômico deve ser diferenciada da ideia de crescimento. O crescimento “se refere ao simples aumento quantitativo da riqueza ou do produto per capita, enquanto a ideia de desenvolvimento abrange o sentido de um aperfeiçoamento qualitativo da economia, através de melhor divisão social do trabalho, do emprego de melhor tecnologia e da melhor utilização dos recursos naturais e do capital” (ibid, p. 13). Como vimos na discussão sobre o desenvolvimento como ideia, a preocupação com a erradicação da pobreza dos países do Terceiro Mundo após a Segunda Guerra Mundial, foi fundamental para sua aceitação e afirmação. 125 Ver também SANTORO (op. cit., p. 9).

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munindo-os de uma arma teórica para combater as propostas e análises das

correntes adversas (ibid, p. 133).

Celso Furtado defendia a liderança do Estado na promoção do

desenvolvimento, através de investimentos em setores estratégicos e,

principalmente, do planejamento econômico. Não era irremediavelmente contrário

aos investimentos estrangeiros, desde que estes ficassem limitados a setores não-

estratégicos e fossem submetidos a controles.126 Acreditava que só através de uma

decidida ação estatal seria possível “internalizar os centros de decisão sobre a

economia brasileira e romper com as relações de submissão ao comando

tradicional dos países desenvolvidos” (ibid, p. 134).

O argumento de Celso Furtado da “inadequação da tecnologia” repercutiu

em determinados gestores públicos e outros atores com poder decisório,

vinculados à tradição do desenvolvimentismo nacionalista (ou nacional-

desenvolvimentismo), no início do Governo Luiz Inácio Lula da Silva. Contudo,

sua utilização nas políticas públicas se deu, em alguns casos, de forma distorcida

por parte de alguns agentes estatais com poder decisório.127 Isso ocorreu devido a

mudanças nos perfis de alguns agentes com poder decisório, escolhidos com base

em critérios exclusivamente políticos e não de méritos, resultando em algumas

experiências não muito bem sucedidas em relação à propriedade intelectual e

inovação, logo superadas.

Furtado defende que o papel das diferenças no domínio tecnológico é um

elemento constitutivo da configuração dual do mundo – o centro/desenvolvido e a

periferia/subdesenvolvida. Significa dizer que “o subdesenvolvimento teria se

constituído como processo histórico e como outra face do desenvolvimento

capitalista, desde que alguns centros de inovação tecnológica, situados na Europa,

irradiaram sua dominação sobre países ou regiões atrasadas” (CERVO, 1998, op.

cit, p. 15). Ou seja: “o subdesenvolvimento é um processo histórico autônomo e

não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já

alcançaram grau superior de desenvolvimento” (FURTADO, 1979, p. 189).128 Ele

126 Segundo SANTORO (op. cit, p. 9), o maior símbolo da corrente nacionalista foi a campanha do “petróleo é nosso”, que culminou na criação da Petrobrás. 127 Para maiores detalhes do conceito de “inadequação da tecnologia” no pensamento de Celso Furtado, recomendamos a leitura de ALBUQUERQUE (2007b). No capítulo 6, comentamos o caso da EMBRAPA que revela a utilização política e distorcida do pensamento de FURTADO. 128 FURTADO afirma que o advento de um núcleo industrial, na Europa do século XVIII, implicou em uma modificação qualitativa na economia mundial que a partir de então passou a

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possui raízes próprias e distintas, relacionadas à emergência do desenvolvimento

capitalista e à forma pela qual o progresso tecnológico molda a divisão

internacional do trabalho, criando um centro dinâmico e uma periferia na qual o

desenvolvimento é fundamentalmente um processo responsivo

(ALBUQUERQUE, op. cit., p. 672).

Enfim, FURTADO rejeita a visão simplificada de um processo homogêneo

de difusão geográfica da civilização industrial capitalista e denuncia as

malformações sociais engendradas desse processo de difusão (1998, p. 47). É na

evolução das estruturas sociais internas que entende que é possível enxergar com

clareza a especificidade da “industrialização dependente” (1978, p. 49). Neste

quadro da “industrialização dependente”:

[...] o fator determinante da tecnologia utilizada é o grau de diversificação da demanda (a natureza dos produtos finais) gerada pelos grupos sociais que tiveram acesso indireto à civilização industrial. As implicações deste fato são consideráveis, pois o que chamamos de tecnologia não é outra coisa senão o conjunto de transformações no sistema produtivo e nas relações sociais que têm na acumulação o seu vetor. Como o acesso indireto à civilização industrial significou a introdução dessas transformações no nível da demanda final (sob a forma de modernização), o processo de industrialização assumirá a forma de um esforço de adaptação do aparelho produtivo a essa demanda sofisticada, o que o desvincula do sistema de forças produtivas pré-existentes. Surge assim um subsistema produtivo de alta densidade de capital, que não corresponde ao nível de acumulação alcançado no conjunto da sociedade [...]. Como o referido subsistema permanece estruturalmente ligado a economias não somente mais

condicionar o desenvolvimento econômico subsequente em todas as regiões do mundo. De acordo com o autor, a ação desse núcleo exerceu-se em três direções distintas. A primeira marca a linha de desenvolvimento dentro da própria Europa Ocidental. Neste caso, o desenvolvimento assumiu a forma de desorganização da economia artesanal pré-capitalista e de progressiva absorção dos fatores liberados, a um nível mais alto de produtividade, com o auxílio da flexibilidade conferida pelo progresso técnico. A segunda linha de desenvolvimento da economia industrial europeia consistiu no deslocamento para além de suas fronteiras de mão-de-obra, capital e técnica, onde houvesse terras desocupadas e com características similares à própria Europa. Esse processo de desenvolvimento, portanto, não se diferenciava basicamente do processo de desenvolvimento europeu. Dele fizeram parte economias como a australiana, canadense e a estadunidense, simples prolongamentos da economia europeia. Nestes casos, as populações que emigraram para os seus territórios levavam as técnicas e os hábitos de consumo da Europa e, ao encontrarem uma base favorável onde houvesse recursos naturais, alcançavam, rapidamente, níveis de produtividade e de renda altos, comparando-se, inclusive, aos europeus. A terceira linha de expansão da economia industrial europeia foi em direção às regiões já ocupadas, muitas com sistemas econômicos seculares e densamente povoadas, mas todas de natureza pré-capitalista. O efeito do impacto da expansão capitalista sobre essas estruturas variou de região para região, de acordo com as circunstâncias locais, do tipo de penetração capitalista e da intensidade desta. O resultado, no entanto, foi quase sempre a criação de estruturas dualistas, uma parte tendente a se organizar à base de maximização do lucro e da adoção de modernas formas de consumo, conservando-se a outra dentro de formas pré-capitalistas de produção. (ibid., pp. 187-188). FURTADO afirma, por fim, que “esse tipo de estrutura socioeconômica dualista está na origem do subdesenvolvimento contemporâneo” (ibid, pp. 188-189).

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avançadas na acumulação, mas também em permanente expansão, os vínculos de dependência tendem a reproduzir-se (ibid, p. 50, grifamos).

Uma das principais propostas de Furtado, pois, é a de que a superação do

subdesenvolvimento passa pela eliminação da disparidade tecnológica, que é

medida pela estrutura ocupacional (BIELSCHOWSKY, op. cit., p. 140).

FURTADO denuncia o que chama de “falso neutralismo das técnicas” (1998, op.

cit., p. 47).129 Percebe que o progresso técnico é um fator dinâmico da economia

capitalista, mas afirma que o “espírito de empresa” não pode ser visto como uma

categoria abstrata.130 Defende que os principais obstáculos à passagem “da

simples modernização mimética ao desenvolvimento propriamente dito

cimentam-se na esfera social” (1998, op. cit., p. 48). Enfim, “o avanço na

acumulação nem sempre produziu transformações nas estruturas sociais capazes

de modificar significativamente a distribuição da renda e a destinação do novo

excedente” (ibid, p. 48). Se, por um lado, a acumulação nas economias centrais

levou à escassez de mão-de-obra e criou as condições para que emergissem

pressões sociais que conduziram à homogeneização social, por outro, nas regiões

periféricas, produziu efeitos totalmente distintos: engendrou a marginalização

social e reforçou estruturas sociais de dominação ou as substituiu por similares. O

processo de acumulação periférica esteve preferencialmente a serviço da

internacionalização dos mercados que acompanhou a difusão da civilização

industrial (ibid, p. 48). 129 As analogias que podem ser estabelecidas com a discussão de ESCOBAR (p. 83, nota 88) são evidentes. ESCOBAR denuncia também a “fé na ciência e na tecnologia”, ou seja, a ideia de que a tecnologia é algo necessariamente benéfico, por sua própria natureza. Este automatismo que demarca a visão mais aceita sobre a tecnologia é também característico da forma predominante de se enxergar a propriedade intelectual: apenas como mero instrumento per se de proteção das inovações que, de forma automática, é capaz de induzir o desenvolvimento econômico, sem interferência estatal. Podemos afirmar que o advento do Acordo TRIPS consagrou do ponto de vista internacional esta visão. BROAD & CAVANAGH (2006, pp. 23-25) criticam também o “mito do desenvolvimento” como um processo linear de indivíduos todas as condições sociais que se utilizam de novas tecnologias para subir a “escada da modernização”. Para os autores, há que se refutar o foco ahistórico sobre a tecnologia e entender que aceitar que o acesso à tecnologia não implica em garantir o fim da pobreza. 130 Sugerimos a leitura dos interessantes comentários de FURTADO à figura do “empresário schumpeteriano” (1979, op. cit., pp. 46-51). Apesar de reconhecer a importância da teoria das inovações de Schumpter, FURTADO critica que o empresário seja nela visto como uma categoria abstrata, independentemente do tempo e da ordem institucional. O autor afirma que a teoria das inovações de Schumpeter tem na mudança de enfoque seu maior mérito em relação aos neoclássicos, justamente por realçar o papel dinâmico do progresso técnico. Mas o mesmo mérito não se verifica em relação a sua capacidade explicativa do processo de desenvolvimento econômico. FURTADO entende que uma teoria do desenvolvimento deve ter por base uma explicação do processo de acumulação de capital. Não se pode, portanto, pretender formular uma teoria das inovações independentemente de uma teoria da acumulação de capital.

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A conclusão disso, para Furtado, é a de que o desenvolvimento

tecnológico se deu, em boa parte das regiões do mundo (ditas periféricas), de

forma dependente. Significa dizer que não se limitou à introdução de novas

técnicas, mas impôs a adoção de padrões de consumo sob a forma de novos

produtos finais que correspondem a um grau de sofisticação e de acumulação

técnica que só existem na forma de enclaves naquelas sociedades (ibid, p. 48).131

Com base nessa observação, FURTADO levanta algumas questões: Existe

a possibilidade de acesso à tecnologia de vanguarda da civilização industrial e de

escapar à lógica do atual sistema de divisão internacional do trabalho? Até que

ponto a tecnologia pode ser posta a serviço da consecução de objetivos definidos

de forma autônoma por uma sociedade de nível de acumulação relativamente

baixo e que pretende a homogeneização social? Seria a dependência tecnológica

simples decorrência do processo de aculturação das elites dominantes nas culturas

periféricas?132 É possível ter acesso à tecnologia moderna sem submeter-se ao

processo de mundialização de valores impostos pela dinâmica dos mercados?

(ibid, pp. 49-50).133

As questões expostas por FURTADO apontam na direção de muitas das

inquietudes que nos levaram a refletir sobre o padrão de inserção do Brasil no

regime internacional de propriedade intelectual. Se, de fato, após o Acordo

TRIPS, tornou-se praticamente impossível para países como o Brasil conduzir

suas políticas públicas de propriedade intelectual com a autonomia, o

desembaraço e a flexibilidade com que muitos dos países mais desenvolvidos

fizeram no passado (especialmente durante o século XIX e primeira metade do

século XX) para alcançar seus atuais patamares de desenvolvimento (por meio de 131 Pedimos ao leitor que atente para o pitoresco episódio relatado por Roberto Jaguaribe, em entrevista que nos foi concedida, em um encontro entre representantes do mercado da moda italiano com funcionários de escritórios africanos de propriedade intelectual, na sede da OMPI, em Genebra, que ilustra bastante, entre outras coisas, o que pode ser entendido como “imposição de padrões de consumo”. A referência a este episódio consta do cap. 6. 132 FURTADO afirma estar convicto de que “a permanência do subdesenvolvimento se deve à ação de fatores de natureza cultural. A adoção pelas classes dominantes dos padrões de consumo dos países de níveis de acumulação muito superiores aos nossos explica a elevada concentração de renda, a persistência da heterogeneidade social e a forma de inserção no comércio internacional” (ibid, p. 60). A variável independente do subdesenvolvimento para FURTADO é, pois, “o fluxo de inovações nos padrões de consumo que irradia dos países de alto nível de renda” (ibid, p. 60). 133 O desafio que se coloca, para FURTADO, é alcançar mudanças estruturais (como nos padrões de consumo, no quadro de uma ampla política social), sem comprometer o espírito de iniciativa e inovação que assegura a economia de mercado. A experiência de industrialização tardia dos países asiáticos teria a ensinar sobre como conjugar planejamento com iniciativa privada, pois estes países conseguiram se antecipar na difícil tarefa de reconstrução de estruturas sociais anacrônicas (ibid, p. 60).

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políticas industriais com traços marcantes de planejamento e intervenção estatais),

quais são as alternativas que permitiriam àqueles, em tempos atuais, alavancar

suas economias e sociedades e ter acesso à tecnologia moderna, sem deslizar nas

formas de dependência apontadas por FURTADO? Como veremos, os

constrangimentos impostos pelo TRIPS são fortíssimos, o que, todavia, não

sugere que uma mera postura de passividade e aceitação inerte seja a via mais

indicada como forma de inserção.

Antes, contudo, como forma de encerrar a discussão teórica deste capítulo,

resta refletir sobre como as instituições são capazes de interferir no fluxo das

ideias. Por um processo de “aprendizado social”, defendemos que as instituições

são capazes de encerrar ideias (apesar de, por vezes, poder resistir a assimilá-las),

e também de, com base nas mesmas, modificar seu padrão de atuação política e

sua configuração material. Instituições podem passar por “mudanças

paradigmáticas” em razão do advento de novas ideias e se tornar algumas de suas

principais defensoras e porta-vozes.

Principalmente na fase de adoção de novas ideias, por muitas ocasiões são

fundamentais, para a sua aceitação, o desempenho político e intelectual de

lideranças individuais e os atributos de suas personalidades. As instituições e as

lideranças podem atuar, portanto, como importantes variáveis intervenientes no

que se refere à forma como as ideias impactam a formulação de políticas públicas.

2.5 Instituições e Lideranças na Formulação de Políticas: as perspectivas de Kathryn Sikkink e Martha Finnemore

A discussão conceitual que apresentamos sobre o desenvolvimento

auxiliou-nos a caracterizá-lo como uma ideia que, principalmente a partir dos anos

50, surgiu como um objetivo atraente para diversas regiões do mundo, em especial

as recém descolonizadas da África e da Ásia. Vimos, igualmente, que a ideia do

desenvolvimento esteve relacionada inicialmente à crença de que, por intermédio

de ajuda externa, da transferência de conhecimento e de tecnologia, de medidas

para promover a riqueza e a educação e do planejamento econômico, seria

possível converter os países mais pobres do mundo em economias de mercado

“normais”. Esta crença não impediu, contudo, que surgissem propostas

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alternativas, como as da CEPAL de Raúl Prebish, que questionaram a “interação

Norte-Sul” como algo naturalmente benéfico para ambas as partes ou o

desenvolvimento como um mero “ato de generosidade” dos ricos em relação aos

pobres (COOPER & PACKARD, op. cit., p. 10).

Portanto, a ideia do desenvolvimento esteve sempre sujeita a diferentes

apropriações. Em certos momentos e em certos lugares, houve uma maior

convergência em torno de modelos e teorias acerca do desenvolvimento.134

Algumas destas convergências tiveram maior tempo de duração, enquanto outras

se mostraram mais efêmeras, emergindo em certos momentos, de forma bastante

dominante, para, em seguida, perderem apoio para a emergência de um novo

paradigma (ibid, p. 19).135

Como compreender as “mudanças paradigmáticas”, no âmbito

institucional?136 SIKKINK (1997) e FINNEMORE (1997) analisam dois

momentos em que mudanças desta natureza ocorreram: no Banco Mundial, 134 Foi o que ocorreu, como vimos, no Brasil entre as décadas de 30 e 90, principalmente a partir dos anos 50, quando o modelo de industrialização por substituição de importações vigorou de forma hegemônica, a despeito de algumas discordâncias entre as diferentes correntes de desenvolvimentistas que repassamos. 135 Relembramos os comentários sobre LIMA & HIRST (2006, op. cit., p. 23) na p. 74. Segundo as autoras, duas destas mudanças de paradigmas ou “conjunturas críticas” ocorreram no século passado: a primeira, nos anos 30, com a crise do modelo agroexportador e sua substituição pelo modelo de substituição de importações (MSI), e a segunda, nos anos 90, quando se exaure o regime de “industrialização protegida”, substituído por um modelo de integração competitiva na economia global (ibid, p. 23). 136 A palavra “paradigma” é aqui empregada em sentido diverso do anterior, de “estratégia de ação da política externa”. Referimo-nos ao conceito de paradigma elaborado por Thomas Kuhn, em “A Estrutura das Revoluções Científicas”. Como explica GONÇALVES (2001, p. 94), no sentido kuhniano, o paradigma “deve ser entendido como a forma cientificamente dominante de observação de um determinado objeto, o que é o mesmo que dizer a abordagem por meio da qual uma comunidade científica encaminha seu pensamento sobre uma área de pesquisa, apontando suas características mais importantes, os enigmas que precisam ser decifrados e os critérios que orientam a pesquisa”. Para KUHN, a evolução do pensamento científico se dá à base da crise da “ciência normal” que, por não conseguir mais explicar satisfatoriamente as interrogantes lançadas pelos cientistas, passa a receber críticas até ser substituída por outro paradigma científico que, após um período de incerteza, adquire o status de “ciência normal” (ibid, p. 94). Para compreender como o conceito de paradigma de Thomas Kuhn se tornou proeminente na disciplina de Relações Internacionais, recomendamos a leitura de GUZZINI (1998, pp. 3-5). De acordo com o autor, o conceito kuhniano de paradigma possui duas facetas. A primeira delas - a do conteúdo do paradigma - reflete a ideia de uma lógica interna, uma visão de mundo que guia a pesquisa, define os problemas a serem resolvidos e sugere os métodos que devem ser utilizados. A segunda faceta é a do grupo de praticantes (cientistas) para os quais o paradigma funciona como uma ferramenta legitimadora e definidora de uma disciplina (ibid, p. 4). Significa dizer que, de acordo com a concepção kuhniana, um paradigma não pode ser compreendido fora do seu contexto histórico e do entendimento de sua funcionalidade para a comunidade científica. A análise de um paradigma, pois, deve começar pela identificação sociológica do seu grupo responsável (ibid, p. 4). Na análise que empreendemos das políticas públicas de propriedade intelectual, o objetivo foi traçar este caminho, identificando os indivíduos responsáveis pela difusão e aceitação das ideias. Mudanças ideacionais na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual podem ser caracterizadas como “mudanças paradigmáticas”.

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durante os anos 70 (na gestão de Robert McNamara), quando o planejamento de

políticas de combate à pobreza se afirmou na organização (FINNEMORE); e na

CEPAL, durante os anos 80, quando o estruturalismo, até então predominante,

deu passagem às propostas de políticas de cunho neoliberal (SIKKINK) - apesar

da resistência demonstrada pelas ideias desenvolvimentistas das décadas

anteriores. Nas duas situações, foram observadas mudanças em relação ao melhor

receituário para se atingir o desenvolvimento.

As análises das autoras exploram esses dois momentos de mudanças

paradigmáticas dentro de organizações internacionais e procuram atribuir estas

mudanças preferentemente a novas ideias e ao processo social de aprendizado ao

qual elas são submetidas do que às pressões dos Estados ou da estrutura do

sistema internacional. Igualmente, ambas destacam o papel das estruturas dessas

organizações e de seus líderes centrais como partes indispensáveis para as

explicações sobre as mudanças observadas nas instituições em foco (SIKKINK,

op. cit, p. 229). Enfim, o que as autoras pretendem demonstrar é que, muito

embora não se possa negar que instituições podem reagir a interesses econômicos

e políticos bem identificáveis ou a constrangimentos de ordem estrutural, é

preciso um exame mais acurado sobre como e por que as instituições “aprendem”

e por que adotam um novo conjunto de políticas em determinados momentos

(COOPER & PACKARD, op. cit., p. 20).

Em trabalho comparativo sobre a trajetória do desenvolvimentismo na

Argentina e no Brasil, SIKKINK (1991) também realça o papel interveniente que

instituições e lideranças individuais podem exercer na afluência e aceitação de

ideias e na sua tradução em políticas. A preocupação da autora, neste caso, não é

trabalhar com momentos de “mudanças paradigmáticas” em determinadas

instituições, mas compreender por que as ideias desenvolvimentistas tiveram uma

maior e mais prolongada influência no processo de tomada de decisões no Brasil,

ao longo do século XX, em comparação com o país vizinho. Segundo a autora, a

resposta está na base institucional de sustentação das políticas

desenvolvimentistas no Brasil (ibid, p. 25). Lideranças ingressam também como

variáveis importantes na análise, especialmente na fase de adoção de políticas, que

antecede as de implantação e de consolidação (ibid, pp. 26-27).137

137 Esta distinção que SIKKINK (1991) estabelece entre as fases de adoção, implantação e de consolidação é explicada um pouco mais adiante. Enquanto a fase de adoção se aproxima

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Passemos então à análise dos três trabalhos das autoras, começando por

FINNEMORE (1997, pp. 203-227).

A proposta da autora é examinar como o desenvolvimento foi “redefinido”

a partir do final dos anos 60, momento em que o alívio da pobreza tornou-se uma

das principais (se não a principal) prioridades da agenda internacional. Antes

disso, FINNEMORE afirma que o desenvolvimento era identificado

internacionalmente como uma mera estratégia de crescimento econômico, sem

muitas preocupações sociais e que a pobreza recebera pouca atenção nas

principais organizações internacionais, nos estudos acadêmicos e nos

planejamentos estatais de desenvolvimento (ibid, p. 203).138 O que teria

contribuído, então, para tal mudança?

FINNEMORE entende que o Banco Mundial é fundamental para

compreender por que a pobreza tornou-se um elemento essencial da “missão

desenvolvimentista transnacional” (ibid, p. 204). O Banco foi instrumental para

esta mudança de duas formas. Em primeiro lugar, foi decisiva a chegada de um

novo Presidente, Robert McNamara, em 1968, que trouxe com ele preocupações

com a pobreza e contribuiu para institucionalizá-las no Banco.139 Entre os fatores

que teriam contribuído para McNamara conseguir institucionalizar a preocupação

com a pobreza na organização estão os seus atributos pessoais: foi o primeiro

presidente do Banco Mundial que não era um banqueiro, mas um empresário e

gestor. McNamara atuou como Secretário de Defesa dos Estados Unidos durante

os Governos Kennedy e Lyndon Johnson (1961-1968). Era, segundo

FINNEMORE, um “clássico ativista kennedyano” que acreditava no ‘exercício do

poder’ e trouxe para o Banco um claro conjunto de objetivos para os quais o poder

deveria ser direcionado (FINNEMORE, op. cit., p. 211). Tais objetivos giravam

em torno de uma firmada e profunda crença nas virtudes e na eficácia da ajuda conceitualmente do que entendemos por “formulação”, as fases de “implantação” e “consolidação” relacionam-se mais à fase de execução. Ver pp. 14-16. 138 A preocupação do ideário desenvolvimentista durante os anos 50 e maior parte dos 60 teria sido apenas com o aumento do produto interno bruto dos países por meio de projetos de industrialização, sem a pobreza figurar como uma preocupação visível. Mesmo Prebish não teria se preocupado com o tema da pobreza. Ver FINNEMORE (ibid, pp. 206-209). 139 Para mais detalhes sobre a Gestão McNamara no Banco Mundial, ver PEREIRA (2010, pp. 175-238). McNamara estudou e lecionou na Harvard Business School, presidiu a Ford Motor Company e integrou o conselho consultivo da Fundação Ford. Foi Secretário de Defesa dos Estados Unidos durante o Governo Kennedy em 1961 e mantido no cargo por Lyndon Johnson (ibid, p. 177). Sua atuação à frente do Banco Mundial teria contribuído para dinamizar, inovar e expandir as operações do Banco em escala até então inédita, e para consolidar a organização como uma agência protagonista no âmbito das políticas de desenvolvimento (ibid, p. 177).

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externa. A marca mais forte de sua gestão era a conexão estreita entre segurança e

desenvolvimento (PEREIRA, op. cit., p. 178):

McNamara acreditava tanto que a ajuda era uma obrigação moral das nações ricas quanto que tal ajuda poderia funcionar e funcionaria. Ele era um internacionalista guiado por uma moralidade e um otimismo internacionalistas. Por meio da ajuda aos pobres, as nações ricas poderiam responder ao imperativo moral de servir aos seus próprios interesses ao mesmo tempo. A pobreza gerou a violência, tanto internacionalmente quanto domesticamente. Aliviando a pobreza dos demais, as nações ricas poderiam criar um mundo mais seguro e estável para si próprias (FINNEMORE, op. cit., p. 211).140 Assim, sob a influência do binômio “segurança-desenvolvimento”, desde

que assumiu a Presidência do Banco Mundial McNamara entendeu que sua

missão principal era a de fazer algo a respeito da pobreza mundial.141 Com este

objetivo, tratou então de dar início a uma ampla e profunda reforma do Banco em

sua estrutura e estilo organizacionais. FINNEMORE demonstra como, entre 1968

e 1973, McNAMARA conseguiu dobrar o número de recursos aportados pelos

países desenvolvidos ao Banco, de modo a poder conceder mais empréstimos

(ibid, p. 211).142 Além disso, empreendeu esforços no sentido de mudar o estilo do

staff da organização e ampliá-lo. O Banco passou a contemplar mais economistas

e administradores comprometidos com suas ideias e menos advogados e

banqueiros, pertencentes ao antigo quadro funcional e a uma estrutura

caracterizada por maior detalhamento no acompanhamento de projetos e

dificuldade e lentidão na concessão de empréstimos (ibid, pp. 213-214). O “novo

estilo” adotado incluía empréstimos orientados para projetos menores, que

exigiam menos informação e que eram difíceis ou impossíveis de quantificar

utilizando-se as ferramentas-padrão de análise econômica (ibid, p. 213). Diante

das resistências do antigo staff em trabalhar de acordo com o novo método,

140 Tradução livre do original: McNamara believed both that aid was a moral obligation of rich nations and that such aid could and did work. He was an internationalist driven by internationalist morality and optimism. By helping the poor, rich nations could answer the moral imperative and serve their own interests at the same time. Poverty caused violence, internationally as well as domestically. By alleviating the poverty of others, rich nations could create a more stable and secure world for themselves. 141 De acordo com PEREIRA (2010, p. 178), a marca mais forte da gestão McNamara foi a conexão estreita e explícita entre segurança e desenvolvimento. Esta relação, formulada ainda quando era Secretário de Defesa, remetia, de forma direta, à irrupção de guerrilhas urbanas e, sobretudo, rurais, na periferia do capitalismo. 142 Entre 1969 e 1973, o Banco Mundial obteve mais empréstimos do que nos seus 20 anos anteriores (ibid, p. 212).

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McNamara optou por aprofundar o grau de burocratização da organização,

utilizando-se dos poderes presidenciais que lhes foram conferidos, tornando o

Banco Mundial um espaço mais hierarquizado. De acordo com FINNEMORE,

McNamara foi responsável por “transformar o que era um clube numa burocracia”

(ibid, p. 213).143

Além de McNamara, um segundo fator é importante para compreender a

contribuição do Banco Mundial para que o combate à pobreza se afirmasse como

um elemento essencial no esforço internacional para o desenvolvimento.144 Com

efeito, se a liderança individual de McNamara foi vital para que a preocupação

com a pobreza se instalasse no banco, logo após, passou a importar tanto ou mais

como este interpretou e traduziu o alívio à pobreza em termos programáticos, por

intermédio de suas próprias estruturas burocráticas (ibid, p. 204). FINNEMORE

demonstra que as preferências entre o conjunto particular de políticas propostas

para combater a pobreza entre 1970 e 1971 – projetos de controle populacional, de

nutrição, de saúde, educacionais, de industrialização intensiva em mão-de-obra,

etc – resultaram menos do mérito intrínseco de cada política sobre a outra e mais

de qual delas melhor respondia às exigências e competências organizacionais do

Banco (ibid, p. 215). A falta de expertise e de credibilidade em políticas como a

de controle populacional, nutrição e saúde levaram o Banco a concentrar seus

projetos na área de desenvolvimento rural e na ajuda financeira a pequenos

produtores, em que os atrativos organizacionais para tal abordagem eram maiores

(ibid, pp. 215-216).

A análise de FINNEMORE sobre a “redefinição do desenvolvimento” no

Banco Mundial ajuda-nos a compreender como lideranças individuais podem ser

decisivas para que instituições aceitem e assimilem novas ideias. Demonstra 143 FINNEMORE detalha com riqueza o amplo leque de estratégias de McNamara para conseguir institucionalizar a preocupação com a pobreza no Banco Mundial, a partir de 1968. Aqui, preocupamo-nos somente em realçar sua liderança fundamental neste processo. 144 FINNEMORE afirma que a “redefinição do desenvolvimento” que o Banco Mundial ajudou a promover, de forma a incluir o “alívio da pobreza”, mudou o entendimento coletivo internacional do que é o desenvolvimento e os tipos de atividades desenvolvimentistas que devem ser promovidas. Antes, a pobreza era entendida como uma condição dos países e não de seres humanos individuais. O desenvolvimento era planejado apenas como uma forma de criar economias modernas, industrializadas e em crescimento nos países pobres. Enfim, o “alívio da pobreza” tornou-se parte do esforço internacional pelo desenvolvimento e a responsabilidade pela pobreza foi internacionalizada. Tal internacionalização, levada a cabo também por outras instituições internacionais, é controversa até hoje porque parece se chocar com os princípios da autodeterminação e da soberania estatal. A autora afirma que só é possível compreender este tipo de atividade intervencionista entendendo-se os esforços organizacionais das instituições que promovem essas ideias (ibid, pp. 220-221).

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também que, embora lideranças individuais (com seus atributos pessoais) possam

exercer um efeito catalisador inicial relevante para que novas ideias se encerrem

nas instituições, sua permanência depende da forma como tais ideias serão

assimiladas e moldadas pelas mesmas, em termos de suas necessidades e

expectativas organizacionais (que incluem aspectos materiais, como os recursos

financeiros e humanos disponíveis, e ideacionais, como a formação profissional e

intelectual do seu corpo funcional). Líderes podem ser importantes a fim de

canalizar mais recursos para uma instituição de forma a aparelhá-la melhor e

revitalizá-la e também no processo inicial de convencimento dos que trabalham

numa instituição em que novas ideias devem ser adotadas, mas é inevitável que,

após este estímulo inicial do líder, em determinado momento, a instituição, por

moto próprio, tenda a, preponderantemente, querer moldar como as ideias são

traduzidas em políticas.145

SIKKINK (1991; 1997) também apresenta exemplos de como instituições

e lideranças podem afetar a forma como as ideias influenciam a formulação de

políticas. No primeiro caso (1991), a prioridade da autora é explicar a

continuidade e o sucesso mais prolongado das políticas desenvolvimentistas no

Brasil em comparação à Argentina. No segundo (1997), o objetivo é o de

compreender um momento de “mudança paradigmática” em uma organização

internacional – a opção pelo neoliberalismo durante os anos 80, em detrimento do

estruturalismo na CEPAL, até então predominante. Em ambos, podemos enxergar

conclusões comuns com o trabalho de FINNEMORE (1997), tanto no que refere à

importância das ideias serem assimiladas pelas instituições para garantir sua

longevidade, quanto no que se refere ao papel exercido pelos líderes para a

mobilização em torno das mesmas ideias e para a sua aceitação. Também

enxergamos pontos de contato com HALL (1989), devido ao papel de destaque

conferido à força política (persuasão) das ideias econômicas e à forma como

economistas e outros tomadores de decisão com percepções específicas sobre a

economia internacional e doméstica podem influenciar a formulação de políticas

públicas.

145 Como afirmam GOLDSTEIN & KEOHANE (1993, op. cit., p. 20), “instituições políticas exercem uma função mediadora entre as ideias e os acontecimentos políticos”. Ver discussão sobre esta função mediadora nas pp. 26-27.

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Em Ideas and Institutions: Developmentalism in Brazil and Argentina

(1991), o argumento de SIKINK é o de que as ideias desenvolvimentistas foram

adotadas no Brasil e na Argentina, a partir dos anos 50, em resposta às novas

ideias sustentadas pelos tomadores de decisão e a mudanças na economia

doméstica e internacional (ibid, p. 2). SIKKINK reconhece que as ideias não

operam livres de constrangimentos materiais. No caso da opção pelas ideias

desenvolvimentistas, os dois países foram constrangidos pela sua posição

subordinada na ordem econômica internacional, pelo tamanho limitado de seus

mercados domésticos e por grupos domésticos poderosos que vetaram

alternativas. Contudo, mesmo reconhecendo que o desenvolvimentismo foi um

programa construído dentro de uma matriz de constrangimentos e oportunidades

internacionais e domésticos, SIKKINK afirma que estes de constrangimentos e

oportunidades não existem fora da cognição individual; “pelo contrário, eles são

percebidos pelos tomadores de decisão de acordo com suas estruturas conceituais”

(ibid, p. 19).146

Três fases ou etapas da trajetória das ideias desenvolvimentistas no Brasil

e na Argentina são identificadas pela autora. A estas três etapas chamamos

sucessivamente de “adoção”, “implantação” e “consolidação”. Na primeira, as

ideias dos principais tomadores de decisão influenciam a adoção de novos

modelos econômicos. Em sistemas presidenciais fortalecidos como os dos dois

países, as ideias sustentadas pelos presidentes e por seus principais ministros e

agentes da área econômica são essenciais para uma compreensão de quais

políticas foram adotadas (ibid, p. 2). Para que sejam implantadas com sucesso,

todavia, estas ideias dependem de uma segunda etapa que envolve a forma como

elas são encerradas nas instituições. Quando as novas ideias surgem, elas podem

sobreviver e florescer na medida em que encontrem quem lhes forneça um

adequado abrigo institucional. As ideias se incorporam às instituições nos seus

regimentos, planejamentos estratégicos e programas de pesquisa e treinamento,

que, por seu turno, tendem a perpetuar e propagar as ideias (ibid, p. 2).

Finalmente, para que um novo modelo econômico inspirado em determinadas

146 Tal como explicamos em outras passagens, assumimos também esta premissa, por entendermos que o regime internacional de propriedade intelectual do Acordo TRIPS representa um relevante constrangimento de ordem estrutural (não só material, como ideacional) que, apesar de impor limites, não impede por completo, contudo, diferentes escolhas na formulação de políticas públicas.

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ideias se consolidar, é necessário considerar que novas ideias não emergem dentro

de um vácuo ideológico: elas se inserem em um espaço político já ocupado por

ideologias historicamente construídas. Assim, para que as novas ideias se

consolidem é necessário que elas se ajustem com as ideologias existentes e com

os grupos sociais e econômicos relevantes (ibid, p. 2).

Entre essas três etapas, nos interessa prioritariamente como SIKKINK

analisa as influências das ideias na fase de adoção das políticas

desenvolvimentistas no Brasil e na Argentina, devido às analogias ou paralelos

que traçamos mais adiante com o processo de adoção de novas ideias econômicas

pelo Governo Luiz Inácio Lula da Silva na formulação de políticas públicas de

propriedade intelectual. Subsidiariamente, interessa-nos a de implantação.147 Em

ambas, SIKKINK defende que os indivíduos e as instituições responsáveis por

introduzir novas ideias “moldam a forma pela qual essas ideias são recebidas e

desempenham um papel crucial intermediário na interpretação delas” (ibid, p.

253).

No que se refere à fase de adoção, a mudança para novos modelos

econômicos é considerada “resultado da mudança das ideias dos principais

tomadores de decisão que respondem ao que eles percebem como

constrangimentos no cenário doméstico e no internacional” (ibid, p. 244). Assim

como HALL (1989), SIKKINK confere bastante ênfase às ideias sustentadas por

indivíduos. No caso de Argentina e Brasil na década de 50, o foco recai sobre as

ideias sustentadas pelos principais tomadores de decisão, como os presidentes

Arturo Frondizi, da Argentina (1958-1962) e Juscelino Kubistchek (1956-1961),

do Brasil, seus principais assessores e conselheiros e também em lideranças

147 De fato, o foco da pesquisa está na “formulação” de políticas (ver pp. 14-16) que coincide com o que SIKKINK denomina de “adoção”. Argumentamos que o Governo Luiz Inácio Lula da Silva adotou novas ideias econômicas na concepção de políticas públicas de propriedade intelectual, em oposição à matriz predominantemente neoliberal do Governo Fernando Henrique Cardoso (que terminou de implantar e de consolidar ideias adotadas a partir do Governo de Fernando Collor de Mello, em 1990). Quanto à fase de implantação de novas políticas públicas de propriedade intelectual, a despeito da tomada de posse de um novo governo (Governo Dilma Rousseff), entendemos que ainda se encontra em curso e que, portanto, deve ser observado em termos de possíveis recuos e avanços. A continuidade das políticas públicas de propriedade intelectual do Governo Luiz Inácio Lula da Silva dependerá fundamentalmente do perfil intelectual dos tomadores de decisão do novo governo em agências-chave como o MRE, o MDIC, o INPI, do poder decisório e autonomia destas instituições face às principais agências da área econômica (Ministério da Fazenda e Banco Central) e da forma como as novas ideias adotadas durante o Governo Luiz Inácio da Silva continuarão a ser nelas encerradas. No que tange à consolidação, entendemos que se trata de processo mais complexo e, obviamente, de longo prazo, para o qual apresentamos algumas reflexões breves nas considerações finais do trabalho.

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intelectuais como Raúl Prebish (ibid, p. 244). Enquanto Frondizi e seus assessores

falharam em conseguir manter uma coalizão minimamente unida e capaz de dar

sustentação às políticas desenvolvimentistas, Kubitscheck foi bem sucedido ao

conseguir formar e manter unida esta coalizão, durante a maior parte de seu

governo (ibid, p. 244). SIKKINK afirma que as ideias são habitualmente

simbolizadas pelos indivíduos ou grupo de indivíduos que as sustentam e que

Kubistchek, Frondizi e Prebish “são todos eles exemplos centrais de indivíduos

que simbolizaram o desenvolvimentismo e cujas histórias pessoais tornaram-se

interconectadas às histórias das ideias que defendiam” (ibid, p 245).148

Mas por que indivíduos com poder decisório são levados a sustentar novas

ideias? Depois de examinar os conceitos de “falha” e “sucesso” 149, SIKKINK vai

buscar resposta no conceito de “persuasão”, elaborado por HALL (1989), para

explicar porque as ideias desenvolvimentistas foram adotadas não só no Brasil e

na Argentina, como em praticamente toda América Latina:

Talvez mais útil tanto em relação à falha quanto ao sucesso como formas de pensar o que leva as pessoas a adotar novas ideias seja a noção de Peter Hall de persuasão. O que torna uma ideia persuasiva é a maneira pela qual a ideia se relaciona aos problemas econômicos e políticos do momento. [...] O que foi que tornou as ideias desenvolvimentistas persuasivas? Elas diagnosticaram diretamente e vigorosamente a questão que era vista por muitos como o problema econômico central daqueles tempos na América Latina: a necessidade de rápida industrialização. Mas o desenvolvimentismo foi atrativo para os tomadores de decisão porque ele ofereceu um programa de ajuste entre as demandas da economia internacional e de grupos domésticos. Para novos modelos serem adotados, eles precisavam apenas ser persuasivos para um grupo razoavelmente pequeno de tomadores de decisão e intelectuais; para um modelo se consolidar, contudo, ele deve ser persuasivo para um conjunto mais amplo de grupos sociais. Os líderes podem utilizar incentivos materiais e apelos simbólicos para tornar novos modelos mais persuasivos aos olhos do povo em geral. Se o novo modelo se ajusta bem às ideologias existentes, será menos difícil persuadir a sociedade a aceitá-lo. Se o novo modelo está em duro contraste com as ideologias existentes, as pessoas podem ser persuadidas somente se elas perceberem que os modelos antigos sofreram falhas dramáticas, ou que os novos oferecem um sucesso formidável (1991, op. cit., p. 247).150

148 No pensamento econômico brasileiro, vimos que cada uma das correntes revisadas (a do neoliberalismo e as três desenvolvimentistas) valeu-se também de seus líderes intelectuais para efeito de propagação e aceitação de suas ideias. No que se refere às ideias que influenciaram a formulação de políticas públicas de propriedade intelectual entre 1995 e 2010, ocorreu o mesmo. 149 SIKKINK apresenta dúvidas quanto à utilidade dos conceitos de “falha” e “sucesso” para entender por que tomadores de decisão são estimulados a sustentar novas ideias. A autora defende que nem sempre a “falha” implica em rejeição, e o “sucesso” em ampla aceitação. Sobre os conceitos de “falha” e “sucesso” ver também McNamara (1998). Refletimos sobre os conceitos de “sucesso” e “falha” em McNamara, na p. 43. 150 Tradução livre do autor: Perhaps more useful than either failure or success as a way of thinking about what causes people to adopt new ideas is Peter Hall´s notion of persuasiveness. What makes

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Enfim, SIKKINK confere destaque aos líderes políticos individuais e a sua

capacidade de utilizar incentivos materiais e simbólicos para cativar, a princípio,

pequenos grupos de tomadores de decisão na fase de adoção de novas ideias. É

por intermédio da persuasão151 que elas se tornam atraentes para estes líderes que

se dedicam a institucionalizá-las, comumente com a ajuda de um staff (assessores

e conselheiros técnicos e políticos), em sua fase de implantação. Os recursos

materiais e simbólicos aos quais os líderes recorrem também são fartamente

utilizados na tentativa de convencer os agrupamentos mais amplos da sociedade

sobre a correção e eficácia das novas ideias, com vistas a sua consolidação.152

Além das lideranças políticas, lideranças intelectuais podem ser também

an idea persuasive is the way the idea relates to the economic and political problems of the day. Success and failure are interpreted in terms of what are perceived as the most pressing problems facing a country at a particular time. What was it that made developmentalist ideas persuasive? They addressed directly and forcefully the issue that was seen by many as the central economic problem of that time in Latin America: the need for rapid industrialization. But developmentalism was appealing to policy makers because it offered a compromise program between the demands of the international economy and the demands of domestic groups. For new models to be adopted, they need only be persuasive to a fairly small group of policy makers and intellectuals; for a model to be consolidated, however, it must be persuasive for a broad range of societal groups. Leaders can use material incentives and symbolic appeals to try to make mew models more persuasive to the public. If the new model fits well with existing ideologies, it will be less difficult to persuade society to accept it. If the new model is in stark contrast to existing ideologies, the people may be persuaded only if they perceive that old models have suffered dramatic failure, or if the new offers stunning success. 151 Ver também KELMAN (1990, p. 40) que, ao analisar os aumentos dos gastos do Governo Norte-Americano nos anos 60 e a contenção de gastos nos anos 80, atribui ao poder de persuasão das ideias a explicação para a mudança nas políticas. Para KELMAN, poder de persuasão das ideias é um recurso político subestimado. 152 Para SIKKINK, os gestos materiais e simbólicos de Juscelino Kubistchek foram fundamentais para a adoção, a implantação e a consolidação das ideias desenvolvimentistas no Brasil. Ao comparar Kubistchek e Frondizi, afirma que “Kubistchek foi um político talentoso e um manipulador magistral de símbolos políticos” (ibid, p. 251). Já FRONDIZI “falhou em atingir níveis similares de legitimidade” na Argentina (ibid, p. 251). SIKKINK alega que Kubistchek foi um intérprete poderoso e persuasivo das ideias desenvolvimentistas. Interpretou-as de forma ampla, tentando incluir cada vez mais grupos sob o guarda-chuva desenvolvimentista (ibid, p. 254). Mas Kubistchek não só foi um grande intérprete das ideias desenvolvimentistas, como também soube levá-las adiante por meio de gestos simbólicos de grande envergadura. Destaca-se, entre estes gestos, a construção de Brasília. Kubistchek apresentou o desenvolvimentismo ao brasileiro comum “como algo moderno, novo e dramático. [...] A construção da nova capital simbolizou a integração territorial nacional do Brasil e seu movimento em direção ao futuro. A construção de Brasília e a pompa organizada que marcou sua inauguração também pode ser vista como um esforço de Kubistchek em interpretar o desenvolvimentismo em substância e forma” (ibid, p. 254). Veremos como Fernando Henrique Cardoso e Lula, com diferentes estilos, também se utilizaram fartamente de uma diversidade de gestos com vistas a angariar apoio mais amplo para suas ideias sobre qual deveria ser o padrão de inserção do Brasil na economia internacional e, logicamente também, no regime de propriedade intelectual do Acordo TRIPS. Diferentes matrizes ideacionais econômicas influenciaram os gestos dos dois Chefes de Estado, com repercussões na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual.

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fundamentais no processo de afirmação de novas ideias.153 Líderes políticos

muitas vezes se unem a líderes intelectuais, ou apenas se valem de suas ideias, em

busca de uma base ideacional de justificativa para as suas políticas.

Enfim, líderes desempenham importante papel político na mobilização de

recursos materiais e simbólicos para a adoção de novas ideias na fase de

formulação (adoção) de políticas públicas.154 Os esforços posteriores dos líderes e

de seus principais assessores e conselheiros no sentido de institucionalizá-las

(implantação) e de angariar apoio de grupos sociais representativos e mais amplos

(consolidação) depende, essencialmente, do sucesso dos líderes naquele primeiro

momento em que é preciso mostrar, de forma persuasiva, que as novas ideias se

amoldam melhor aos problemas existentes na sociedade, do que as até então

predominantes.155

De forma a convencer as pessoas de suas ideias, o que se espera é que os

líderes políticos e intelectuais se aproximem delas e encontrem formas e

instrumentos para explicar a sua posição, solicitar apoio e ganhar aceitação

(HEIFETZ & SINDER, 1990, p. 180). Já quando se pretende implantar novas

ideias e institucionalizá-las, os líderes políticos ganham um pouco mais de

proeminência do que os intelectuais. Os líderes políticos devem ser capazes de

transmitir visões e posições firmes e interagir de modo efetivo ao exercer seu

poder e sua autoridade156 de forma a gerar um alinhamento organizacional e

político capaz de realizar as suas intenções (ibid, p. 181).

153 Em relação à política externa do Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o Presidente logrou desempenhar os dois papéis, utilizando-se fartamente do exercício da diplomacia presidencial. Já no Governo Luiz Inácio Lula da Silva, há um maior compartilhamento de tarefas, sem significar, contudo, que não tenha sido reservado ao Presidente um papel bastante proeminente, especialmente no que tange à sua “história de vida”, a alguns atributos de sua personalidade e ao carisma. 154 Em interessante estudo de natureza normativa sobre as organizações internacionais, FINNEMORE E SIKKINK (2000, pp. 256-257) igualmente reconhecem que as normas (a princípio, definidas como regras comportamentais) dependem de seus líderes (entrepreneurs) na sua fase de emergência. Líderes são decisivos segundo as autoras porque chamam atenção para determinadas questões ou mesmo “criam” questões por meio de uma linguagem que as nomeiam, dramatizam e interpretam. Líderes criam molduras cognitivas (cognitive frames) que são essenciais para suas estratégias políticas. Uma vez bem sucedidas, elas ressoam junto aos entendimentos públicos mais amplos e são adotadas como novas formas de falar sobre diferentes temas e de compreendê-los. 155 Entendemos que, de forma abrupta e confusa, o Governo Fernando Collor de Mello (1990-1992) deu início a um processo de adoção pouco consistente de ideias neoliberais no âmbito das políticas públicas. Foi somente no Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que tais ideias de fato se afirmaram de forma sistemática e organizada. 156 O que diferencia a liderança da mera autoridade é que aquela é exigida em determinadas situações em que não se sabe o que se deve fazer. A liderança envolve a capacidade de mobilizar

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No entanto, como vimos, por mais relevantes que sejam os esforços dos

líderes para a adoção de novas ideias, sua sustentabilidade ao longo do tempo

depende de que encontrem abrigos institucionais adequados (SIKKINK, op. cit.,

p. 248). Por mais que líderes possam ser importantes para que, no começo, as

ideias se infiltrem nas instituições, uma vez que aquelas se encerram nestas157,

seus “indivíduos fundadores” tendem a não ser mais importantes para que as

ideias mantenham vigor (ibid, p. 250).

Como explicar o processo por meio do qual as instituições são capazes de

assimilar e encerar novas ideias, em detrimento das até então predominantes? Em

estudo sobre “mudanças paradigmáticas” ocorridas na CEPAL durante os anos 80

e 90, SIKKINK afirma que a organização passou por transformações profundas

“em suas ideias sobre o desenvolvimento, transformações que, se por um lado

paralelizaram, por outro não foram meras reproduções do movimento mais amplo

em toda a América Latina em direção das políticas econômicas neoliberais”

(1997, op. cit., p. 228). A proposta da autora é apresentar uma abordagem que

enfatiza o processo de aprendizado experimentado pela CEPAL dentro de

constrangimentos institucionais e materiais; abordagem que entende como mais

útil para compreender as mudanças ocorridas nas ideias desenvolvimentistas da

organização (ibid, p. 228).

SIKKINK afirma que, desde a divulgação do famoso manifesto de Raúl

Prebish, em 1950, que lançou as bases do pensamento estruturalista latino-

americano, até a publicação de seus primeiros documentos e estudos no início dos

anos 90158, a CEPAL passou por mudanças claras em termos da proposta de

modelo econômico e de prescrições políticas (ibid, p. 232). Os documentos e

estudos dos anos 90 revelariam um vocabulário completamente diferente do

recursos de um grupo para realizar um trabalho. Quando uma situação requer solução, mas é rotineira, e é necessária apenas expertise para resolvê-la, somente a autoridade é suficiente. A liderança é uma função distinta da autoridade e prescinde de posicionamentos. Ela pode ser exercida por várias pessoas com variados graus de autoridade (ibid, p. 194). A liderança não é, pois, uma posição, mas uma atividade (ibid, p. 194) e pode ser exercida de diversas posições, entre as mais elevadas e as mais subalternas, dentro de uma escala hierárquica (ibid, p. 193). 157 Lembramos os comentários à MILNER & KEOHANE (1996) na nota 42, que demonstram que, por vezes, instituições podem ser resistentes a mudanças. 158 Vale lembrar que o artigo da autora é de 1997, momento em que a adoção de políticas neoliberais era aplicada pela maioria dos governos latino-americanos. Interessante notar que o método empregado por SIKKINK para contrastar o manifesto de Prebish, de 1950, com os documentos divulgados pela CEPAL no início dos anos 90, é o da “análise conteúdo”, mesmo que empregamos neste trabalho, como será explicado no capítulo metodológico (cap. 3). A autora explicita seu método de pesquisa na nota explicativa 7 (ibid, p. 251).

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empregado pelo clássico trabalho de Prebish. Apesar de se observar uma notável

continuidade no que tange à importância conferida à industrialização e ao

progresso técnico, outros termos e temas, dominantes no jargão tradicional da

organização, como “centro”, “periferia”, “deterioração dos termos de troca” e

“modelo de substituição de importações”, não mais aparecem, para dar lugar a

outros, em destaque, como “promoção das exportações”, “competitividade

internacional” e “abertura internacional” (ibid, p. 232).

De forma a promover uma estratégia capaz de conciliar crescimento

econômico com equidade social159, a CEPAL passa a recomendar um movimento

geral em direção à liberalização comercial, às taxas de câmbio competitivas e à

promoção das exportações, enquanto ainda defende um papel central para o

Estado na direção da nova política econômica (ibid, p. 233). Os relatórios dos

anos 90 sublinham que o principal objetivo das economias latino americanas não

deve ser a abertura econômica per se, mas a competitividade, o que exige uma

incorporação sistemática e deliberada de progresso técnico (ibid, p. 233).

Procurando se diferenciar das ideias neoliberais, a CEPAL postula um Estado que

adote uma política industrial, tecnológica e educacional que o permita lidar com o

processo de desenvolvimento e liberalização. Defende que o Estado auxilie a

indústria na assimilação de novas tecnologias e estimule vínculos saudáveis entre

empresas privadas e instituições públicas como, por exemplo, universidades (ibid,

p. 233). 160

SIKKINK considera que, pelo menos à primeira vista, é surpreendente

identificar esta “mudança paradigmática”, por ser a CEPAL uma organização que

durante muito tempo foi intimamente associada ao modelo de substituição de

importações e sinônimo virtual do mesmo (ibid, p. 233). Quando exatamente esta

mudança teria ocorrido?

A resposta mais comum para esta pergunta é a de que todo e qualquer tipo

de mudança paradigmática como a que se verificou na CEPAL e em outras

159 A crítica comum da CEPAL aos resultados das políticas do modelo de substituições de importações e das políticas neoliberais reside na continuidade e agravamento da situação de pobreza no continente latino-americano. 160 Apesar de SIKKINK afirmar que tal receituário está mais próximo do modelo neoliberal do que do modelo de substituição de importações (ibid, p. 233), entendemos que a proposta da CEPAL diferencia-se da ortodoxia neoliberal, que repudia qualquer hipótese de política industrial com dirigismo estatal. Esta concepção cepalina de Estado dos anos 90 nos ajudará a compreender mudanças nas ideias sobre o desenvolvimento, durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, com suas repercussões na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual.

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instituições resulta do fato de que as ideias são impostas pelo poder,

especialmente o poder econômico e militar (ibid, p. 234). Nesta abordagem, as

ideias pouco importam, eis que são vistas como “meros disfarces para o jogo dos

interesses e do poder” (ibid, p. 234). SIKKINK refuta esta forma dominante de

entender a economia política da América Latina161 e também critica a visão pós-

moderna que enxerga o “discurso desenvolvimentista como um aparato de

controle e submissão” imposto pelo Ocidente ao mundo em desenvolvimento

(ibid, p. 234).162

A alternativa apresentada por SIKKINK é a das explicações centradas nas

noções de “aprendizado” e nas instituições. Assim como FINNEMORE (1997), a

autora destaca também a noção de persuasão elaborada por HALL (1989), ao

afirmar que o que define o sucesso ou não de uma determinada ideia é a forma

como ela é interpretada em relação ao que é percebido como os problemas mais

urgentes enfrentados por um país num momento em particular (SIKKINK, 1997,

op. cit., pp. 235-236).

Quanto ao aprendizado, SIKKINK realça que o que caracteriza tais

abordagens é a percepção dos seres humanos como engajados em “raciocinar e

processar novas informações sobre o ambiente numa tentativa de conferir sentido

ao mundo que os cerca” (ibid, p. 235). Dentro da tradição das abordagens

cognitivas, as propostas com base no aprendizado entendem que o comportamento

dos indivíduos não é previsível ex ante, pois depende, entre outras coisas, das suas

crenças subjacentes, da forma como processam informações, assim como de

traços das suas personalidades (CARLSNAES, op. cit., p. 238).

161 Egressa, de acordo com a autora, do estruturalismo cepalino e dos seus desdobramentos, como a teoria da dependência. 162 Sugerimos a re-leitura da nota 92. ESCOBAR (um pós-moderno, estudioso de antropologia econômica) demonstra que é possível conciliar o método da história das ideias de SIKKINK com o seu método das formações discursivas. Concordamos, no entanto, com o que SIKKINK quer dizer por entendermos que, não obstante insights interessantes que a abordagem pós-moderna pode oferecer, limitar-se a mesma superficializa a análise, por recair numa ‘lógica de vitimização’ que não leva a lugar algum e que menospreza os aportes que o estudo das ideias, com noções como “aprendizado” e “mudanças de percepções” podem oferecer. Assim como nós, COOPER & PACKARD concordam com SIKKINK: “Somos também céticos sobre o argumento de que o desenvolvimento representa um exemplo de tirania da modernidade, o colonialismo por outros meios, uma vez que a mesma história que demonstra as origens das iniciativas desenvolvimentistas e do constructo do desenvolvimento é também a história sobre como tal conceito foi mobilizado e desviado para outros fins. [...] Denúncias da modernidade [...] não farão com que corporações multinacionais e representantes da Organização Mundial de Saúde (OMS) saiam de cena” (1997, op. cit., p. 30).

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O que SIKKINK e outros autores como HAAS (1990) oferecem de

interessante é o argumento de que, assim como os indivíduos, instituições também

podem passar por processos de aprendizado.163 A possibilidade de que instituições

aprendam surge nos momentos em que “redefinem seus problemas” 164, como o

Banco Mundial que, na década de 70, abandonou a agenda do crescimento

industrial nos países em desenvolvimento para se concentrar no combate à

pobreza (ibid, p. 3). O aprendizado consiste em que os indivíduos de uma

instituição se sintam induzidos a questionar crenças antigas sobre a propriedade

dos objetivos da ação e a refletir sobre novos, de forma a reavaliar si mesmos

(ibid, p. 24). Na medida em que estes indivíduos mergulham num processo de

aprendizado, é provável que cheguem a um entendimento comum de quais são as

causas dos problemas que enfrentam (ibid, p. 24). Em síntese, “o aprendizado

implica no compartilhamento de significados amplos entre aqueles que aprendem”

(ibid, p. 24).165

SIKKINK (1997, op. cit., pp. 236-250) analisa como este processo de

aprendizado se deu na CEPAL, a partir da segunda metade dos anos 80 e ao longo

da década de 90, para que as ideias de inspiração estruturalista dessem lugar a

novas propostas de políticas econômicas. A forma como a instituição reagiu ao

advento das ideias neoliberais nos anos 80, por intermédio da atuação de suas

lideranças e de uma nova geração funcional de economistas, é o aspecto destacado

163 HAAS reconhece a importância dos indivíduos para a ocorrência de “mudanças paradigmáticas” nas instituições ao afirmar: “meu argumento de que as instituições podem ser arenas para mudanças, ao invés de serem coagidas a modificar, depende claramente da capacidade presumida dos atores de utilizar-se das instituições para lidar com problemas não antes experimentados” (ibid, p. 127). Notamos que HAAS se refere à “capacidade presumida” o que remete a uma concepção dos atores ancorada na presunção do ator racional, diferente de uma abordagem cognitiva. Entendemos que isto não invalida, contudo, seu conceito de aprendizado, pelas instituições. HAAS, inclusive, esclarece não acreditar em uma relação de oposição entre “ideias” e “interesses” (ibid, p. 2). 164 Vale esclarecer que a análise de HAAS focaliza as organizações internacionais, ao passo que as instituições que destacamos como intervenientes na formulação de políticas públicas são exclusivamente instituições estatais (Ministérios e Agências estatais). Nestas, a “redefinição do problema” depende mais da forma como as lideranças, especialmente as do Poder Executivo, recepcionam novas ideias, por acreditarem que respondem melhor aos problemas enfrentados pelo país naquele momento (mecanismo da persuasão). Naquelas, HAAS afirma que os Estados, agindo de acordo com os seus interesses, são os principais arquitetos responsáveis pelas mesmas. Mas admite que interesses “são informados pelos valores que os líderes políticos procuram defender” (ibid, p. 6). E conclui: “os atores levam em suas mentes os valores que moldam as questões contidas em seus briefing papers” (ibid, p. 6). 165 Sobre a noção de “aprendizado”, ver ainda LEVY (1994). De acordo com HUDSON (2002, op. cit., p. 13) e CARLSNAES (2001, op. cit., p. 338), o artigo de LEVY apresenta um panorama amplo e excelente do que consiste o processo de aprendizado social na Teoria das Relações Internacionais.

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pela autora para explicar a mudança. Apesar de reconhecer que a dimensão do

poder é importante para entender por que a CEPAL passou por um processo de

transformação na proposta de políticas, SIKKINK não se contenta com a

mesma.166 Atribui mais a “mudança paradigmática” pela qual passou a

organização à forma como suas lideranças (economistas, como Fernando

Fajnzylber e autoridades administrativas, como os Secretários Executivos Enrique

Iglesias e Norberto González) perceberam a crise econômica latino-americana dos

anos 80 (com hiperinflação e agravamento da desigualdade social), inspirados

também pelo sucesso inicial de algumas políticas neoliberais (sendo o Chile o

caso mais destacado de baixa inflação e crescimento sustentado entre 1985 e

1991).167 No que tange ao crescimento econômico, o contraste entre o “fracasso

latino-americano” e o sucesso dos países do Sudeste Asiático (com média de

crescimento de 6% ao longo da década de 80), levou os economistas da CEPAL a

uma atitude de autocrítica em relação às propostas anteriores da organização,

convencendo-se de que as explicações principais para tais diferenças se

encontravam mais na política doméstica do que na situação internacional (ibid, p.

245).

Todos esses fatores contribuíram, segundo SIKKINK, para a afirmação de

um “novo pensamento” na CEPAL que priorizou a relação entre crescimento 166 SIKKINK reconhece que mudanças nas políticas econômicas dos países em desenvolvimento envolvem mais coerção externa do que nos países mais desenvolvidos porque as decisões do atores econômicos externos podem ter um efeito mais poderoso em suas economias mais vulneráveis. Instituições como o FMI e o Banco Mundial e outras de natureza financeira utilizaram-se fartamente de requisitos e exigências, como a adoção de políticas neoliberais, para condicionar os seus empréstimos (ibid, p. 237). Mas SIKKINK acredita que atribuir a mudança ideacional numa organização como a CEPAL só a estes fatores equivale a perder uma parte importante da história. Ao contrário de alguns governos da América Latina, a CEPAL não foi “forçada” durante os anos 90 a nenhuma mudança ideacional. Não se encontra endividada, não precisava da aprovação do FMI e também não era dominada pelos bancos americanos ou por lobbies domésticos (ibid, p. 237). Assim, SIKKINK conclui que “olhar para as mudanças ideacionais da CEPAL separa-nos de alguma forma da política da força bruta e dos interesses, e nos leva a inquirir sobre como intelectuais e servidores civis mais insulados mudaram seus pensamentos” (ibid, p. 237). No nosso caso, cremos que os constrangimentos estruturais impostos pelo Regime Internacional de Propriedade Intelectual do Acordo TRIPS aos tomadores de decisão no Brasil são maiores que os constrangimentos internacionais impostos aos funcionários da CEPAL, mas não elimina, em absoluto, a importância da dimensão cognitiva das lideranças individuais para compreender como mudanças ideacionais influem na formulação de políticas. 167 SIKKINK explica que, apesar das ideias econômicas neoliberais terem encontrado resistência inicial, por irem contra o estatismo e o nacionalismo enraizados no discurso político e econômico latino-americano, foram se mostrando persuasivas porque diagnosticavam alguns dos problemas mais urgentes daquele momento: o controle da inflação e a retomada do crescimento (ibid, p. 246). Além disso, o fracasso de alguns “choques heterodoxos”, como o do Plano Cruzado, no Brasil, entre 1986 e 1987, também contribuiu para tornar as ideias ortodoxas neoliberais mais atraentes e persuasivas (ibid, p. 247).

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econômico e equidade social e se concentrou mais na dimensão das políticas

domésticas do que nos condicionantes externos (ibid, p. 245). A preocupação com

a pobreza e a equidade é o que ainda permitiria identificar na organização um

pensamento distinto da ortodoxia neoliberal, apesar da inegável proximidade com

esta (ibid, p. 248).

Discutidos os aspectos centrais das abordagens de FINNEMORE (1997) e

SIKKINK (1991; 1997) que nos permitiram identificar como instituições e

lideranças podem intervir na forma como ideias sobre o desenvolvimento

influenciam a formulação de políticas, apresentamos em seguida uma breve

síntese do referencial teórico.

2.6 Síntese do Referencial Teórico

A “ideia do desenvolvimento”, as instituições e as lideranças são

categorias essenciais para compreender o processo de formulação de políticas

públicas de propriedade intelectual durante os Governos Fernando Henrique

Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva (1995-2010). Na pesquisa, interessou-nos

averiguar como tais categorias repercutiram em duas políticas públicas em

particular: a política externa e a política industrial.

Vimos que ideias iguais sobre o desenvolvimento (que tinham no

estruturalismo cepalino dos anos 50 sua fonte de inspiração) repercutiram de

forma diferenciada na Argentina e no Brasil (apesar dos mesmos

constrangimentos estruturais), em razão do ambiente institucional em que foram

recepcionadas e do perfil dos líderes comprometidos com as mesmas. No caso da

CEPAL e do Banco Mundial, “mudanças paradigmáticas ideacionais” em torno

do desenvolvimento se deram não só por conta de constrangimentos materiais

estruturais (relacionados ao poder e aos interesses), mas também (e

principalmente) em razão da atuação de lideranças políticas e intelectuais

persuadidas por novas ideias (essenciais no momento de adoção de novas

políticas), e também de um processo de aprendizado (importante no momento da

implantação).

O mecanismo de persuasão elaborado por HALL (1989) ajuda-nos a

compreender por que, em determinados momentos da história, algumas ideias

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sobre o desenvolvimento mostram-se mais atraentes do que outras para tomadores

de decisão. O que importa, para líderes e tomadores de decisão, é se convencerem

de que novas ideias podem representar soluções para os principais problemas

econômicos e políticos do momento.168 No caso da trajetória recente das políticas

públicas de propriedade intelectual no Brasil, a ascensão das ideias neoliberais em

toda a América Latina durante os anos 80 e início dos 90 teve notável influência

sobre a forma como tomadores de decisão do Brasil definiram a inserção do país

no regime internacional de propriedade intelectual do Acordo TRIPS e como

foram formuladas nossas políticas públicas nesta área temática durante o Governo

Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

A abordagem de HALL (1989) também é útil ao apresentar uma tipologia

de diferentes mecanismos causais que explicam como ideias econômicas podem

afetar o processo de formulação de políticas públicas. Ativemo-nos a dois destes

mecanismos. O primeiro enfatiza o papel dos economistas no processo decisório

de formulação de políticas (centrado na economia) e é importante para entender

tanto o papel propositivo que os economistas exercem ao oferecer diferentes

“cardápios de receitas econômicas” aos principais tomadores de decisão

(especialmente Chefes de Estado), quanto o seu papel político quando atuam

também como decision makers. O segundo busca explicações nos diferentes

arranjos burocrático-administrativos estatais e a sua maior ou menor

permeabilidade à absorção de novas ideias (centrado no Estado) para explicar

como elas conseguem se encerrar nas instituições ou não. Os dois mecanismos são

válidos para compreender porque no Governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-

2010) as políticas públicas de propriedade intelectual foram mais influenciadas

por ideias desenvolvimentistas do que no Governo Fernando Henrique Cardoso,

apesar de tais ideias estarem longe de poder ser caracterizadas como um corpo

homogêneo.169

No que se refere aos fatores apresentados por HALL (1989) como capazes

de condicionar a aceitação e avaliação de novas ideias econômicas, a natureza do 168 Independentemente das ideias só justificarem as convicções que os tomadores de decisões ou líderes já detêm, ou deles serem convencidos por argumentos econômicos a mudar de posição e defender determinadas medidas. O líder querer se valer de novas ideias , como justificativa para suas posições pessoais, não invalida a caracterização do mecanismo como de persuasão. 169 Com efeito, entre as correntes desenvolvimentistas com influência na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual, às duas já examinadas – nacionalistas e não-nacionalistas – podemos agregar a dos “novos desenvolvimentistas”. Avaliamos até que ponto é possível concordar com a existência de um “novo desenvolvimento”.

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discurso político existente foi o elemento que pesou para compreendermos o

mecanismo de persuasão.170 De fato, a tradição do vetor ideacional

desenvolvimentista na política externa brasileira e no pensamento econômico

nacional (com suas diferentes correntes), ajuda a explicar por que a hegemonia da

matriz neoliberal na concepção de políticas públicas de propriedade intelectual

durante a década de 90 (e em todo o Governo Fernando Henrique Cardoso) pôde

ser gradualmente minada, apesar de não se poder dizer que ainda não exerce

notável influência, devido aos resultados que deixou no que se refere ao

desmanche em definitivo do “Estado Varguista” e ao estabelecimento de um novo

padrão de relações do Estado com a sociedade.

Apesar das dificuldades de se conceber as ideias como entidades

separáveis dos interesses, como “posses individuais” ou “crenças compartilhadas

por indivíduos”, e de possíveis questionamentos quanto a sua relação causal com

os eventos políticos, entendemos que uma abordagem centrada nas ideias tem

validade por ser capaz de aportar conclusões diferentes daquelas análises

centradas em interesses. Abordagens ideacionais podem não dissuadir partidários

da premissa do ator racional e de visões mais estruturalistas de que seus

postulados essenciais não são válidos, mas certamente lançam provocações que

demonstram sua utilidade enquanto ciência.

Recordemos, por fim, que não negamos à estrutura (o regime internacional

de propriedade intelectual) sua presença enquanto uma variável que limita as

escolhas dos tomadores de decisão brasileiros. Com efeito, após o advento do

Acordo TRIPS, os constrangimentos impostos aos países em desenvolvimento em

termos de autonomia para levar adiante suas políticas industriais aumentaram

enormemente, em comparação ao regime anterior, que vigorou durante mais de

um século (desde a segunda metade do século XIX) e que conferiu aos países de

industrialização tardia, como a Alemanha, um cenário mais favorável de

flexibilidades (hoje negadas), aproveitadas para desenvolver sua indústria

nacional.

170 Quanto às orientações do partido governista, o PT, no Governo Luiz Inácio Lula da Silva, é apresentado como exemplo de instituição que interferiu limitadamente na formulação da política externa. A presença de Marco Aurélio Garcia no Governo contribuiu para que a América Latina fosse o campo de aplicação mais claro de uma política internacional próxima à desejada pelo PT, apesar de desentendimentos entre a cúpula do partido e o assessor presidencial (LEO, 2010a). No Governo Fernando Henrique Cardoso, sua influência pessoal (diplomacia presidencial) ofuscou a participação do PSDB.

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Aceitar a existência destes constrangimentos pode implicar em uma atitude

de total passividade diante desta realidade ou, a partir de uma postura pragmática,

mas descontente, questionar-lhe o conteúdo, aproveitar-se de eventuais (ainda que

poucas) flexibilidades e engajar-se na proposta de transformações dentro do

regime internacional em vigor que sejam favoráveis aos países em

desenvolvimento. Esta é a mudança que acreditamos que aconteceu do Governo

Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, embora

devamos reconhecer que algumas transformações ideacionais relevantes

aconteceram já durante o segundo mandato daquele.

Vjamos agora um fluxograma que resume o referencial teórico descrito.

Vale esclarecer que o referencial apresentado tem caráter puramente instrumental,

ou seja, sua aplicação se atém ao objeto de estudo escolhido e ao recorte empírico

realizado. Não se pretende que seu potencial explicativo seja estendido a outros

objetos, tal como uma estrutura abstrata e universal:

Fonte: elaboração do autor

Dedicamo-nos agora a discutir os aspectos metodológicos da pesquisa.

REFERENCIAL TEÓRICO – FLUXOGRAMA(Regime de Propriedade Intelectual: Poder/Ideias)

IDEIAS(Desenvolvimento)

Persuasão

INSTITUIÇÕES(mais peso na implantação)

(Partido Governista, M inistérios,

Agências Estatais etc.)

LIDERANÇA(mais peso na adoção)

(Chefes de Estado, Assessores, Conselheiros,

Ministros, Economistas, Intelectuais etc.)

FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROPRIEDADE

INTELECTUAL(Política Externa e Política Industrial)

REFERENCIAL TEÓRICO – FLUXOGRAMA(Regime de Propriedade Intelectual: Poder/Ideias)

IDEIAS(Desenvolvimento)

Persuasão

INSTITUIÇÕES(mais peso na implantação)

(Partido Governista, M inistérios,

Agências Estatais etc.)

LIDERANÇA(mais peso na adoção)

(Chefes de Estado, Assessores, Conselheiros,

Ministros, Economistas, Intelectuais etc.)

FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROPRIEDADE

INTELECTUAL(Política Externa e Política Industrial)

REFERENCIAL TEÓRICO – FLUXOGRAMA(Regime de Propriedade Intelectual: Poder/Ideias)

IDEIAS(Desenvolvimento)

Persuasão

INSTITUIÇÕES(mais peso na implantação)

(Partido Governista, M inistérios,

Agências Estatais etc.)

LIDERANÇA(mais peso na adoção)

(Chefes de Estado, Assessores, Conselheiros,

Ministros, Economistas, Intelectuais etc.)

FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROPRIEDADE

INTELECTUAL(Política Externa e Política Industrial)

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