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2 A resolução de conflitos internacionais 2.1 Introdução Este capítulo traz as principais perspectivas sobre a resolução de conflitos internacionais, presentes na disciplina de Relações Internacionais e no campo de estudos sobre resolução de conflitos 16 . Não obstante as diferenças teóricas e analíticas entre as duas áreas, cabe observar que não há uma preocupação em abordar o tema de modo a estabelecer comparações entre os dois campos. Mesmo quando o texto explicitar em qual dessas áreas se insere uma determinada abordagem, o interesse básico é mostrar conceitos, perspectivas analíticas e paradigmas que permitam compreender essa temática de modo o mais abrangente possível. A forma como se organizou o capítulo reflete essa intenção. Assim sendo, primeiramente, serão mostradas duas perspectivas abordando conflitos internacionais a partir de diferentes níveis de análise. Em uma seção subseqüente, os estudos sobre esse tema serão categorizados de acordo com duas configurações que a resolução de conflitos pode assumir, ou seja, uma que 16 Deve-se notar que, além dos dois campos acima citados, outras áreas - pesquisas sobre a paz e estudos sobre conflitos - têm contribuído para o debate acadêmico sobre a dinâmica dos conflitos internacionais, em particular, com suas pesquisas empíricas e suas proposições sobre como esse fenômeno pode ser transformado. Serão feitas algumas referências às pesquisas desses campos neste capítulo, sem um maior aprofundamento para não distanciar de seu tema central, além de os mesmos não comporem o quadro analítico desta tese (ver adiante, nas páginas 30 e 31, as contribuições de Johan Galtung e de centros europeus no estudo sobre a paz). Cabe salientar que cada um desses campos recebe contribuições teóricas e metodológicas de estudiosos de diferentes disciplinas das Ciências Sociais, da Psicologia, da Economia e da Matemática. Dentre os autores demonstrando as conexões entre esses campos estão Quincy Wright (1957), John Burton (1964), David J. Dunn (1978), Christopher Mitchell (1981; 1985; 2002), Louis Kriesberg (1991b; 1999; 2001b) e Peter Wallensteen (2002). Quanto aos estudos sobre conflitos, refiro-me àqueles fundamentados em teorias sociológicas. Portanto, por entender que o campo sobre conflitos constitui uma subárea da Sociologia, não serão apresentadas aqui suas principais abordagens. James A. Schellenberger (1996), no entanto, considera as pesquisas sobre resolução de conflitos e sobre a paz como subáreas do campo de estudos sobre conflitos. Discordo desse seu posicionamento. Com base nos autores antes citados, pode-se dizer que cada uma dessas áreas de estudo representa um campo próprio sobre a temática dos conflitos internacionais.

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2 A resolução de conflitos internacionais

2.1 Introdução

Este capítulo traz as principais perspectivas sobre a resolução de conflitos

internacionais, presentes na disciplina de Relações Internacionais e no campo de

estudos sobre resolução de conflitos16. Não obstante as diferenças teóricas e

analíticas entre as duas áreas, cabe observar que não há uma preocupação em

abordar o tema de modo a estabelecer comparações entre os dois campos. Mesmo

quando o texto explicitar em qual dessas áreas se insere uma determinada

abordagem, o interesse básico é mostrar conceitos, perspectivas analíticas e

paradigmas que permitam compreender essa temática de modo o mais abrangente

possível. A forma como se organizou o capítulo reflete essa intenção.

Assim sendo, primeiramente, serão mostradas duas perspectivas

abordando conflitos internacionais a partir de diferentes níveis de análise. Em uma

seção subseqüente, os estudos sobre esse tema serão categorizados de acordo com

duas configurações que a resolução de conflitos pode assumir, ou seja, uma que

16 Deve-se notar que, além dos dois campos acima citados, outras áreas - pesquisas sobre a paz e estudos sobre conflitos - têm contribuído para o debate acadêmico sobre a dinâmica dos conflitos internacionais, em particular, com suas pesquisas empíricas e suas proposições sobre como esse fenômeno pode ser transformado. Serão feitas algumas referências às pesquisas desses campos neste capítulo, sem um maior aprofundamento para não distanciar de seu tema central, além de os mesmos não comporem o quadro analítico desta tese (ver adiante, nas páginas 30 e 31, as contribuições de Johan Galtung e de centros europeus no estudo sobre a paz). Cabe salientar que cada um desses campos recebe contribuições teóricas e metodológicas de estudiosos de diferentes disciplinas das Ciências Sociais, da Psicologia, da Economia e da Matemática. Dentre os autores demonstrando as conexões entre esses campos estão Quincy Wright (1957), John Burton (1964), David J. Dunn (1978), Christopher Mitchell (1981; 1985; 2002), Louis Kriesberg (1991b; 1999; 2001b) e Peter Wallensteen (2002). Quanto aos estudos sobre conflitos, refiro-me àqueles fundamentados em teorias sociológicas. Portanto, por entender que o campo sobre conflitos constitui uma subárea da Sociologia, não serão apresentadas aqui suas principais abordagens. James A. Schellenberger (1996), no entanto, considera as pesquisas sobre resolução de conflitos e sobre a paz como subáreas do campo de estudos sobre conflitos. Discordo desse seu posicionamento. Com base nos autores antes citados, pode-se dizer que cada uma dessas áreas de estudo representa um campo próprio sobre a temática dos conflitos internacionais.

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interpreta esse processo de forma competitiva e uma outra que denota uma visão

cooperativa sobre o mesmo. Em seguida, o capítulo versará sobre as etapas da

resolução de conflitos. Em conjunto, essas seções permitirão delinear o quadro

analítico que norteará esta tese, conforme será mostrado ao final deste capítulo.

Diferentemente da disciplina de Relações Internacionais, o campo sobre a

resolução de conflitos inclui pesquisas sobre a ocorrência desse fenômeno não

somente no âmbito internacional, mas também no plano doméstico, no que diz

respeito às interações entre atores de uma mesma comunidade. Nessa direção, são

examinados, por exemplo, conflitos familiares, em organizações e entre empresas

ou, ainda, entre grupos de uma dada sociedade. Há, portanto, abordagens, nesse

campo de estudos, propondo modelos analíticos voltados exclusivamente para a

resolução dessas categorias de conflito que se passam na arena interna. Por outro

lado, alguns autores desenvolvem modelos de análise para que sejam igualmente

aplicáveis nos níveis doméstico e internacional.

Antes de prosseguir com uma discussão sobre as análises dos conflitos

conforme a esfera em que ocorrem, é pertinente apresentar um retrospecto

histórico sobre a incorporação dessa problemática na disciplina de Relações

Internacionais e as origens do campo de resolução de conflitos. Nesse sentido,

cabe observar que a institucionalização desses dois campos, em centros de

pesquisa e em universidades, ocorreu em momentos históricos distintos. No

entanto, seus primeiros estudos mostram preocupações analíticas similares em

torno do fenômeno da guerra.

Sendo assim, quanto à disciplina de Relações Internacionais, sua origem

está relacionada ao contexto da Primeira Guerra Mundial. Até à ocorrência desse

evento, questões sobre a paz, a guerra e outros temas das relações entre Estados

eram examinados por especialistas de História, Filosofia Política e Direito

Internacional. A proporção que aquele conflito tomou e as enormes perdas

materiais e humanas motivaram alguns estudiosos a investigar suas causas e a

ponderar sobre a validade das premissas sobre o uso da força na manutenção da

balança de poder no sistema internacional e sobre as práticas diplomáticas

baseadas em negociações e tratados secretos. Diante desses questionamentos,

perceberam a necessidade de se fundar uma disciplina acadêmica avaliando as

causas de um confronto armado e os meios de se prevenir conflitos similares

àquele de 1914-1918. O surgimento dessa nova disciplina se deu em 1919, quando

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do estabelecimento da Cadeira de Relações Internacionais na Universidade de

Gales (Aberystwyth). Essa iniciativa foi logo seguida por outras instituições na

Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, compartilhando as mesmas indagações17.

Nas décadas de 20 e 30, idéias liberais predominavam nos debates e nos

estudos acadêmicos da área de relações internacionais, com discussões sobre

desarmamento e Estado de Direito, além de enfatizarem as organizações e

políticas externas fundamentadas em reconciliação e cooperação (Banks, 1984).

Os pensadores da corrente liberal argumentavam que a Primeira Guerra resultava,

em parte, da natureza e da prática da política de poder e, por conseguinte, uma

nova ordem mundial, mais pacífica, poderia ser criada na medida em que as elites

se tornassem mais responsivas à opinião pública e mediante a democratização das

relações internacionais (Burchill et al., 2005, p. 8). Ademais, acreditavam na

possibilidade de se alcançar uma harmonia entre os países, promovendo-se o

desenvolvimento econômico, o comércio, valores democráticos e reformas no

sistema internacional.

Além da resposta acadêmica aos efeitos da guerra, no nível institucional

criou-se a Liga das Nações, determinando que os países notificassem sua intenção

de entrar em um confronto armado. No entanto, a crença nesses ideais, como

garantidores de uma paz duradoura, foi posta em xeque com a Grande Depressão

em fins dos anos 20, o fascismo e a devastadora Segunda Grande Guerra. Esses

acontecimentos estimularam alguns estudiosos a defenderem a premissa de que a

guerra decorria, em parte, de cálculos equivocados das lideranças políticas e, em

parte, da natureza anárquica do sistema internacional, vale dizer, da ausência de

um governo mundial acima das soberanias nacionais.

Essa visão de um sistema de Estados competidores entre si está no cerne

da crítica da vertente realista às concepções liberais, iniciada com Edward Hallett

Carr18 antes da Segunda Guerra, prosseguindo nas décadas seguintes por outros

estudiosos, como Hans Morgenthau19. Segundo essa linha de argumentação, a paz

identifica-se com a ausência da guerra, sendo que o uso da força e a balança de

poder entre os Estados correspondem aos elementos-chave na resolução de

17 Sobre as origens da disciplina de Relações Internacionais, ver BANKS (1984) e BURCHILL et

al., 2005. 18 CARR. The twenty years’ crisis: 1919-1939: an introduction to the study of international

relations, 1939. 19 MORGENTHAU. Politics among nations: the struggle for power and peace, 1948.

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conflitos. Embora o realismo não negue o papel da moral, do direito e da

diplomacia, sua ênfase recai nos recursos militares e no equilíbrio de poder entre

os Estados como importantes mecanismos para a manutenção da paz.

As preocupações analíticas em torno de confrontos armados

permaneceram nas décadas seguintes nos estudos de internacionalistas, em

particular com relação à dinâmica da Guerra Fria. Mas o campo não se limitou a

esta temática, expandindo-se rapidamente ao longo das décadas de 60 e 70 com

novas abordagens, pesquisas sobre novos tópicos e a formação de subáreas, como

a de análise de política externa.

Assim como os estudiosos da disciplina de Relações Internacionais

preocupavam-se com questões ligadas à Guerra Fria e às armas nucleares, um

grupo de pesquisadores da Universidade de Michigan passou a estudar

sistematicamente esses temas e a resolução de conflitos dos mais diversos tipos.

Seus primeiros esforços para a institucionalização do campo de estudos sobre essa

temática ocorreram em 1956. Contudo, os objetivos iniciais desses pesquisadores,

naquela universidade norte-americana, dariam distintos contornos a essa nova área

de estudos, uma vez que enfatizavam que a mesma deveria ter um caráter

interdisciplinar, além de ressaltarem a necessidade de se buscar uma teoria geral

sobre as causas e a prevenção de todos os tipos de conflitos humanos.

No ano seguinte, fundaram o periódico Journal of Conflict Resolution

(JCR) e, em 1959, um centro interdisciplinar para a realização de pesquisas dessa

área (Center for Research on Conflict Resolution - CRCR), ambos voltados para a

análise de conflitos variados. Os comentários do corpo editorial do JCR

sinalizavam, no primeiro volume publicado, os temas que seriam alvo dos

trabalhos do emergente campo de resolução de conflitos, além de evidenciarem

sua interação com a área de relações internacionais.

If intellectual progress is to be made in (...) the study of international

relations [it] must be made an interdisciplinary enterprise, drawing its discourse

from all the social sciences, and even further. (…). Our belief in the fruitfulness

of an interdisciplinary approach in this area is based on the conviction that the

behavior and interactions of nations are not an isolated and self-contained area

of empirical material, but part of a much wider field of behavior and interaction.

(…). Conflict, which is perhaps the key concept in international relations (…) is a

phenomenon studied in many different fields (…). The isolation of these various

fields, however, has prevented the building of these contributions into an

integrated whole. (…). We welcome insights, theoretical models, and

confirmatory tests from all spheres of conflict resolution; for we believe that only

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as all such areas are drawn on, can we devise an intellectual engine of sufficient

power to move the greatest problem of our time – the prevention of war. This

same engine will move us toward greater knowledge and greater power in all

areas of conflict – in the personality, in the home, in industrial relations, and so

on. [Editorial, JCR, March 1957, p. 1-2]20.

No entender de um dos fundadores do JCR, o economista Kenneth

Boulding, a prevenção da guerra deveria se fundamentar em pesquisas e em

informações obtidas por meio de sistemática coleta de dados e de investigações

sobre conflitos, em vez de se basear em diagnósticos diplomáticos. Propunha,

portanto, que se concebesse o campo de resolução de conflitos como uma área de

conhecimento apoiada em dados sobre a possibilidade de ocorrência de confrontos

armados. Passava-se, a partir de então, a dar uma ênfase maior à metodologia

quantitativa e a modelos estatísticos21. Portanto, esse perfil analítico e

metodológico revelava que as pesquisas no campo sobre resolução de conflitos

identificavam-se com os pressupostos da chamada “revolução behaviorista”

iniciada nos anos 50 e que prosseguiu ao longo dos anos 70 22.

A agenda de pesquisas sobre conflitos desenvolvida nos Estados Unidos,

na década de 50, mostrava-se limitada na medida em que se concentrava tão

somente no fenômeno da guerra e no seu controle. Nesse mesmo período, surgia

na Escandinávia um pólo de pesquisas direcionado para estudos sobre a paz. Um

dos expoentes desse campo é Johan Galtung, que em 1959 inicia seus trabalhos no

Institute for Social Research23

, na Universidade de Oslo, contribuindo, ainda, para

a publicação do periódico Journal of Peace Research, em 1964. Galtung trouxe

uma nova visão sobre o conflito, identificando-o como um processo dinâmico, no

qual sua estrutura, as atitudes e o comportamento dos atores estão em permanente

mudança. Por conseguinte, conclui, a resolução de conflitos requer a

20 FINK, 1968, p. 412-413. 21 MIALL, RAMSBOTHAM e WOODHOUSE, 2000, p. 42-43. 22 Alguns estudiosos de relações internacionais também demonstravam, nesse período, preocupações sobre a necessidade de um tratamento mais científico e objetivo em pesquisas sobre política internacional, inserindo-se no contexto da “revolução behaviorista”. Esse questionamento metodológico feito pelos behavioristas à produção de conhecimento no campo das relações internacionais marcaria o segundo grande debate nessa disciplina. Sobre esse ponto, ver BANKS, Michael (Ed.), 1984, p. 3-21. 23 Esse instituto denomina-se atualmente International Peace Research Institute of Oslo – PRIO.

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transformação das relações entre as partes envolvidas na disputa ou no fim do

choque de interesses que residem no centro da estrutura do conflito24.

A institucionalização do campo sobre resolução de conflitos e as pesquisas

sobre a paz, em universidades e por meio de periódicos, prosseguiu ao longo dos

anos 60, intensificando-se nas décadas seguintes. Nos Estados Unidos, cabe

destacar: The Hoover Institute’s Project on International Conflict and Integration

(Universidade de Standford); e na Universidade de Harvard, The Program on

International Conflict Analysis and Resolution e The Program on Negotiation. E

na Europa, dentre os centros criados, vale mencionar: The Polemological Institute

(Holanda); Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI); Center for

the Analysis of Conflict (CAC – University College London).

Pode-se dizer que o trabalho desenvolvido neste último centro de

pesquisas resume a essência dos estudos do campo sobre resolução de conflitos.

Formado por um grupo de discussão composto por acadêmicos de diferentes

disciplinas, desde sua origem vem buscando uma avaliação que integre distintas

perspectivas teóricas e as práticas de resolução de conflitos. Ademais, partindo do

pressuposto de que o conflito deva ser analisado como um fenômeno com

características comuns, seja no plano internacional, seja na arena doméstica ou,

ainda, no nível das relações familiares e individuais, passa a incorporar em seus

trabalhos determinadas abordagens originalmente aplicadas a outros contextos,

como, por exemplo, nas relações industriais e na mediação entre grupos sociais25.

Cabe observar que a diversidade de análises sobre conflitos e sua

resolução por distintos campos de conhecimento têm levado a variações

terminológicas que geram, por um lado, imprecisões conceituais; por outro,

revelam a dificuldade de se examinar esse fenômeno de modo uniforme. Nessa

direção, é comum ver na literatura sobre essa temática termos sendo usados

indistintamente como sinônimos, tais como disputas, controvérsias, confrontos e

conflitos. Seguindo essa ordem de idéias, para Johan Galtung (1996), por

exemplo, um conflito pode configurar-se como um dilema ou uma disputa. Sendo

assim, diz Galtung, um dilema pode ser identificado quando um ator persegue

24MIALL, RAMSBOTHAM e WOODHOUSE, 2000, p. 43-44; HARTY e MODELL, 1991, p. 722. 25 BANKS e MITCHELL, 1996.

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objetivos inconciliáveis, enquanto que uma disputa ocorre quando dois atores

buscam o mesmo objetivo.

De modo similar, há distinções quanto ao significado de resolução de

conflitos e, por conseguinte, as proposições quanto aos mecanismos a serem

empregados, nesse processo, também podem variar. Isso se deve não somente à

natureza do conflito em questão, mas os significados ditinguem-se também

conforme as linhas investigativas dos autores. Contudo, em geral, os conceitos

atribuídos à resolução de conflitos são muito amplos, referindo-se à total

eliminação de suas causas ou, ainda, das incompatibilidades entre as partes e a um

processo em que não mais se recorre à violência (Wallensteen, 2002, p. 8;

Zartman e Rasmussen, 1999, p. 11). É comum também na literatura sobre

resolução de conflitos uma visão prescritiva sobre tal processo. Ou seja, nesses

estudos, nota-se uma ênfase na idéia de que a resolução de conflitos deve levar a

uma alteração no comportamento das partes envolvidas, cujas ações deixarão de

ser violentas e hostis26.

Diante do que foi exposto, tendo em vista as diferentes concepções de

conflito e de sua resolução, é importante apontar quais as definições a serem

adotadas neste estudo. No que diz respeito a conflito, será concebido como um

fenômeno social resultante da incompatibilidade de objetivos entre dois ou mais

atores e/ou quando as partes disputam, simultaneamente, os mesmos recursos27.

Essa mesma definição pode ser aplicada para um conflito internacional. Embora

esse tema seja retomado na próxima seção, cabe adiantar que será assumido que a

unidade de análise para definir um conflito como internacional não se limita à

visão de um confronto entre Estados, mas pode igualmente envolver atores

estatais e não-estatais.

No que concerne à resolução de conflitos, seu significado deve ir além da

idéia de restringir-se a um processo em que as causas do conflito e/ou as

incompatibilidades entre as partes sejam eliminadas. São dignos de nota conflitos

cuja natureza prolongada lhes dá contornos distintos de outras situações

conflitivas e, por conseguinte, sua resolução pode assumir formas diferentes de

outros casos. Em outras palavras, casos de antagonismos violentos e prolongados

26 Como exemplo, seguindo esse posicionamento, cabe apontar uma das principais referências sobre essa temática: MIALL, RAMSBOTHAM, WOODHOUSE, 2000. 27 Ver AZAR, 1990, p. 5 e WALLENSTEEN, 2002, p. 7.

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costumam ser resistentes aos métodos pacíficos de controle e às técnicas de

negociação e de mediação, podendo, ainda, surgir novos ciclos de violência entre

as partes, mesmo depois de iniciado um processo de paz28.

Por conseguinte, para se compreender o fim de conflitos sob as

características acima, não devem ser tomadas como parâmetro as concepções

sobre resolução envolvendo processos unilaterais, em que propostas para a

supressão de uma situação conflitiva sejam impostas por terceiros às partes em

confronto. Esse posicionamento fundamenta-se na constatação de Jacob

Bercovitch, Paul F. Diehl e Gary Goertz (1997) de que métodos unilaterais

(ameaças e sanções), mediação e outros tipos de intervenção externa exercem um

pequeno impacto sobre as partes em conflito. Sendo assim, o processo de

resolução deve caracterizar-se pela decisão das partes de estabelecerem um

acordo, por meio do qual serão definidos mecanismos institucionais, lidando com

as causas que motivaram o conflito, buscando, ainda, evitar novas manifestações

de violência. Essa ordem de idéias aproxima-se do conceito de Andrew Buchanan:

“(...) conflict resolution shall be understood to be a state in which conflicting

parties agree to cease all politically motivated and national-goal oriented hostile

acts toward one another, and contract to coexist benignly, with mutual respect,

refrain from malevolent acts aimed at the disruption of internal affairs to the

detriment of the other party in pursuit of national goals, and allow for the free

movement of peoples, goods, services and ideas within an agreed institutional

framework based on justice and respect for human rights.” (Buchanan, 2001, p. 61).

Esta parte introdutória indicou a existência de duas áreas que vêm se

dedicando a estudos sobre a resolução de conflitos internacionais, delineando suas

diferenças básicas, apresentando, ainda, os primórdios da institucionalização

desses dois campos. Para o desenvolvimento da discussão sobre o alcance

analítico de suas perspectivas, é preciso, antes, voltar a atenção para alguns temas

28 Louis Kriesberg (1993) denomina esses conflitos como “intractable conflicts” e Charles Gochman e Zeev Maoz (1984) os classificam como “enduring rivals”. Entre os trabalhos voltados para esse tema, destacam-se: War and power transitions during enduring rivalries (1982), de F. Wayman; um artigo de Paul Diehl, Contiguity and military escalation in major power rivalries (Journal of Politics, vol. 47, n. 4, 1985); The empirical importance of enduring rivalries (1992), de Gary Goertz e Paul F. Diehl; e um artigo de Daniel Geller: Power Differentials and war in rival

dyads (International Studies Quarterly, vol. 37, n. 2, 1993). Essas referências estão em BERCOVITCH e REGAN (1999). Sobre o assunto, vale ver, também, BERCOVITCH, DIEHL e GOERTZ (1997).

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e categorias da literatura que aborda a resolução de conflitos internacionais. Para

isso, conforme foi explicado no início, as três próximas seções dedicam-se às

principais abordagens em torno das seguintes dimensões: os níveis de análise; as

configurações de um processo de resolução de conflitos; e as etapas desse

processo.

2.2 A análise de conflitos internacionais

Em sentido lato, conflito é uma das formas de interação social entre os

mais diversos tipos de atores, vale dizer, indivíduos, classes, comunidades e

Estados (Azar, 1990; Kriesberg, 1992). Entretanto, uma simples definição como

esta tem levado a consideráveis diferenciações analíticas entre aqueles que se

dedicam à investigação desse fenômeno29.

Claro está que as avaliações dos pesquisadores variam conforme as

dimensões do conflito analisado, a saber: que unidades estão em situação

conflituosa e como as mesmas se classificam quanto à sua natureza, tamanho e

recursos disponíveis30; o número de atores envolvidos; em que arenas os conflitos

se manifestam; e a intensidade quanto ao grau de violência empregada, por

exemplo. E, nesta direção, um conflito pode ter a forma tanto de uma crise

internacional, em que as partes não recorrem a métodos violentos, como assumir

um formato mais destrutivo, sob a forma de uma guerra entre Estados. Assim

sendo, conflitos podem apresentar configurações distintas não apenas quando se

passam no plano doméstico (como as revoluções e guerras civis) ou na esfera

internacional (como os confrontos armados entre países), mas distinguem-se,

29 Essa interpretação sobre a natureza do conflito baseia-se em uma vasta literatura sociológica contendo uma gama de hipóteses e modelos teóricos explicando esse fenômeno, mas que não cabe aqui ser discutida. Sobre as perspectivas dessa literatura, vale conferir: FINK, 1968; COSER 1972; MACK e SNYDER; 1972; DEUTSCH, 1972; BIRNBAUM, 1992. 30 FINK, 1968.

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ainda, em sua complexidade, dependendo das questões e dos objetivos

envolvidos31.

Um dos elementos mais evidentes para se classificar um conflito como

nacional/doméstico, regional ou internacional é o seu alcance geopolítico32. Nesse

sentido, diz respeito ao local em que ele se manifesta e à natureza dos atores

envolvidos. Isto posto, um conflito pode configurar-se como internacional (entre

Estados ou se envolver atores e comunidades de diferentes Estados) ou nacional

(quando participam apenas atores de um único país e se ocorrer dentro de um

mesmo território nacional).

Um conflito pode, ainda, passar por um processo de internacionalização,

como observam Frank Pfetsch e Christoph Rohloff (2000, p. 28). Em outras

palavras, essa situação ocorre quando um conflito interno toma proporções

internacionais se: a) receber apoio político, diplomático e recursos externos; b) as

questões do conflito tornarem-se a causa de um confronto em outro país; c)

houver a intervenção militar de forças externas (um país vizinho, uma potência

regional ou internacional).

Contudo, a despeito da multiplicidade de conceitos e dimensões do

conflito, há estudiosos aplicando os mesmos instrumentais analíticos no exame de

casos distintos. John Burton (1986; 1987; 1990) é um dos autores a seguir essa

perspectiva, no intuito de formular uma teoria para a resolução de conflitos para

todos os níveis em que esse fenômeno possa se manifestar (entre indivíduos, na

arena nacional e no âmbito internacional). Antes porém de discutir a validade de

modelos equiparando diferenciados conflitos como se seguissem a mesma lógica,

será verificado como alguns dos mais relevantes estudos da disciplina de Relações

Internacionais e do campo sobre resolução de conflitos examinam um conflito

internacional a partir da análise de suas causas. Nessa apresentação serão

privilegiadas as perspectivas que representem uma contribuição em termos

analíticos e explicativos sobre conflitos e que se tornaram referências para outros

trabalhos sobre esse tema.

Nesse sentido, uma referência obrigatória é Kenneth Waltz. Sua

caracterização dos níveis analíticos, elaborada inicialmente para compreender a

31 DE REUCK, 1984, p. 97. 32 PFETSCH e ROHLOFF, 2000, p. 27.

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guerra, acabou se tornando um recurso metodológico recorrentemente empregado

também em estudos sobre outros fenômenos das relações internacionais.

No clássico Man, the State and War, originalmente publicado em 1959,

Waltz identifica três níveis de análise (“imagens”) em que podem ser encontradas

as causas da guerra: o individual, o doméstico e o internacional. Quanto ao

primeiro, refere-se à natureza humana, destacando, portanto, as características

pessoais e psicológicas dos estadistas como elementos capazes de afetar as

decisões na arena externa. Para o segundo nível, o autor relaciona conflitos

internacionais com a estrutura interna dos Estados, apontando, por conseguinte, a

sociedade, a cultura e instituições domésticas como as variáveis a influenciar as

ações estatais. No que diz respeito ao terceiro nível, concernente à natureza do

sistema internacional, Waltz atribui à posição de cada Estado nesse sistema como

o fator a determinar o modo como agirá no plano externo.

A partir dessa organização de diferentes perspectivas quanto à origem das

guerras, Waltz formula uma diferenciação quanto ao status das causas daquele

fenômeno. Assim, para ele, o nível internacional constitui a “causa permissiva”

ou explicativa da guerra, sendo outras variáveis, presentes nos outros dois níveis,

suas “causas eficientes” ou imediatas (Waltz, 1959, p. 232). Segundo o autor:

“(…). It is true that the immediate causes of many wars are trivial. (…). But it is

not often true that the immediate causes provide sufficient explanation for the

wars that have occurred”33. Seguindo essa ordem de idéias, argumenta que

explicações voltadas apenas para o primeiro ou para o segundo nível são

equivocadas, uma vez que as causas que se manifestam nessas esferas interagem

com fatores do plano sistêmico. Ainda sobre este último, ressalta que a

competição e o conflito derivam da busca dos Estados por poder e segurança, em

um sistema internacional sem uma autoridade central que se coloque acima das

soberanias nacionais.

Em um trabalho posterior - Theory of International Politics (1979) -,

Waltz retoma uma discussão iniciada por David Singer (1961) sobre a

necessidade de se especificar os níveis de análise macro (sistêmico) e micro

(estatal) para uma distinção clara entre as causas e os efeitos dos fenômenos no

plano internacional. Conclui, naquela obra, que abordagens fundamentadas em

33 WALTZ, 1959, p. 235.

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determinantes da arena nacional ou nas percepções dos decisores políticos têm um

alcance analítico limitado. Em contrapartida, sugere que estudos sobre a política

mundial não se restrinjam à análise interna dos Estados, uma vez que tal método

não possui suficiente poder explicativo para se compreender a continuidade e a

recorrência de certos fenômenos no sistema internacional. Isto posto, Waltz

defende a premissa de que a estrutura do sistema internacional constitui o

principal fator explicativo para a ação externa dos Estados (Waltz, 1979, p. 87).

O ponto a caracterizar essa obra é a absoluta importância que Waltz atribui

à explicação estrutural para o comportamento dos Estados no sistema

internacional. Ou seja, para o autor, a anarquia (como princípio organizador do

sistema internacional) e a distribuição de capacidades entre os Estados constituem

os parâmetros a delinearem as ações estatais naquele sistema e limitarem a

cooperação internacional. Acrescenta o autor que a multipolaridade tende a ser

mais instável e propensa a gerar conflitos armados do que a bipolaridade. E a

partir dessa sua perspectiva, elimina em sua abordagem o papel dos atores

domésticos. Para Waltz, portanto, o Estado constitui o ator central e unitário na

política mundial, agindo de acordo com um conjunto de valores e interesses,

realizando suas escolhas estratégicas em termos de custos e benefícios.

Os postulados de Edward Azar (1986; 1990) sobre conflitos prolongados e

de difícil resolução34 tornaram-se uma importante referência no campo de estudos

sobre a resolução de conflitos e podem ser considerados uma alternativa à

perspectiva sistêmica de Waltz. Segundo Azar, um conflito prolongado

caracteriza-se como um fenômeno social. E esta propriedade está presente tanto

em uma guerra civil como em um conflito entre Estados, diz o autor. Por

conseguinte, conclui, o foco analítico deve ser a identidade dos grupos envolvidos

no conflito, que pode ser definida em termos étnicos, raciais e religiosos. Sobre

esse ponto, afirma que:

“The most useful unit of analysis in protracted social conflict situations is

the identity group (…). It is a more powerful as a unit of analysis than the nation-

state. The reason is that ‘power’ finally rests with the identity group. (…).

The professional debate over the question of the appropriate unit of

analysis has dwelt on the differences between focusing on the individual, state

34 O termo cunhado por Azar para esses casos duradouros e aparentemente incapazes de serem solucionados é “protracted social conflicts”.

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or system and their implications (Waltz, 1959; Singer, 1961). It has ignored the

group totally. Our protracted social conflict research has impressed upon us the

need to re-examine this issue of the unit of analysis and to correct this deficiency

in the international politics literature. (…).

Many internal and external relations between states and nations are

induced by the desire to satisfy such basic needs (…). The unity of analysis is the

identity group that makes this possible, be it the state, the nation or some more

intimate group. The origins of international conflict are, therefore, in domestic

movements for the satisfaction of needs and in the drives of nations and states to

satisfy the same needs. Thus, distinctions made between domestic and

international conflicts are misleading”35.

Prossegue o autor, argumentando que conflitos não resultam apenas de

disputas em torno de interesses materiais, mas também do impedimento da

satisfação de necessidades humanas básicas e universais, em especial, a garantia

de segurança, o reconhecimento social, justiça distributiva e participação

política36. Portanto, conclui, situações conflituosas emergem quando o acesso às

necessidades humanas é limitado e quando identidades étnicas estão ameaçadas. E

porque essas necessidades são sociais, Azar alega que:

“To separate domestic and international is artificial – there is really only

one social environment and its domestic face is the more compelling: thus, there

are international and national interests which actors manipulate and exchange in

return for the opportunity of satisfying domestic needs, but not the other way

around” (Azar, 1986, p. 33).

Sendo assim, afirma Azar, os atores buscam satisfazer as necessidades

sociais que se caracterizam como domésticas, e não como internacionais. Dito

isso, declara “(...) we have been mistaken in taking the state as the unit of analysis

in international relations and thus failed to perceive the continuity between

domestic and international (...)” (Azar, 1986, p. 35). Portanto, mesmo em caso de

conflitos internacionais, estes resultam da tentativa dos beligerantes em assegurar

35 A primeira frase foi grifada para chamar a atenção para o fato de que Azar acaba equiparando o termo unidade de análise à noção de nível de análise no sentido empregado por Waltz. O segundo trecho foi grifado para destacar que o plano doméstico é que deveria ter sido explicitado pelo autor como o nível de análise (nível em que se encontram as causas do conflito). A citação acima está presente em AZAR, 1986, p.31-33. 36 Em outro trabalho, Azar faz uma categorização das necessidades humanas: 1) aceitação (reconhecimento da identidade definido em termos de valores culturais compartilhados); 2) acesso (participação efetiva em instituições políticas, do mercado e decisórias); 3) segurança (segurança física, alimentação e habitação). Ver AZAR, 1990.

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suas necessidades, como a segurança ou a identidade do grupo. No caso do

confronto entre a Grã-Bretanha e Argentina pela soberania das Ilhas

Malvinas/Falklands, em 1982, a raiz do conflito não se referia a hostilidades

étnicas ou a manifestações nacionalistas, mas a origem fundamentou-se em uma

disputa por soberania territorial37. Segundo ele, esta última é um elemento da

identidade de um grupo (Azar, 1990, p. 102).

Também John Burton aponta a identidade de grupos como a unidade de

análise em estudos sobre conflitos entre nações e entre comunidades (Burton,

1987, p. 9 e 23; 1993, p. 55). Seguindo uma linha argumentativa próxima à de

Azar, Burton busca explicar por que determinados conflitos persistem por longos

períodos e quais os motivos que levam a constantes fracassos em sua resolução.

Nesse sentido, aponta a não-satisfação de necessidades humanas básicas como a

causa primária. Esses conflitos relacionados a valores e necessidades humanas –

identificadas por Burton como identidade, segurança, reconhecimento social,

justiça distributiva, alimentação e desenvolvimento - foram por ele denominados

“deep-rooted”. Ou seja, as raízes desse fenômeno estão nas complexas relações

que se passam no interior de uma nação e nas interações entre nações, envolvendo

necessidades ontológicas dos indivíduos e de grupos. Nas palavras do autor:

“Deep-rooted conflicts of the kind that is our concern occur, however, at

all social levels. They occur in the social relationships of the work place.

Furthermore, most modern societies are multi-cultural or multi-ethnic. Most have

problems of poverty and plenty. Most have problems of inequality of opportunity.

Most have problems of frustration and lack of participation and identity. Most, as

a consequence, have high levels of alienation, leading to conflict situations of

many kinds that affect the whole of a society and, indirectly, the world society.” (Burton, 1987, p. 3).

A aplicação de métodos inadequados para a resolução de conflitos, conclui

Burton, leva à continuidade ou à intensificação de conflitos “profundos”. Sobre

esse ponto, o autor identifica os tradicionais processos de negociação

fundamentados na lógica do poder ou, ainda, a imposição de um processo de paz

37 Para o autor, embora esse caso se assemelhe a uma disputa entre “potências” (apesar de a Argentina ser um país em desenvolvimento), possui também características que permitem classificá-lo como “protracted social conflict”. Nessa direção, destaca que a disputa pela soberania da região estava associada a questões identitárias. Por esse motivo, conclui o autor, o processo de resolução do conflito, baseado em métodos tradicionais de diplomacia, foi ineficaz para evitar as crises e o progressivo deterioramento das relações entre a Argentina e a Grã-Bretanha (Azar, 1990, p. 82-105).

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por meio do uso da força como possíveis razões adicionais para o prosseguimento

de um conflito (Burton, 1987, p.18). Esse posicionamento reflete sua crítica ao

paradigma realista, como será visto na seção que se segue.

Herbert C. Kelman é outro autor a apresentar uma análise das relações

internacionais e dos conflitos diferenciada das perspectivas realista, neo-realista e

daquelas voltadas para fatores estruturais. Essa distinção pode ser percebida na

forma como o autor descreve a natureza de um conflito internacional:

“(...) a process driven by collective needs and fears, rather than entirely a product

of rational calculation of objective national interests on the part of political

decision makers. Second, international conflict is an intersocietal process, not only

an interstate or intergovernmental phenomenon. Third, international conflict is a

multifaceted process of mutual influence, not only a contest in the exercise of

coercive power. And fourth, international conflict is an interactive process with an

escalatory, self-perpetuating dynamic, not merely a sequence of action and

reaction by stable actors. (Kelman, 1999, p. 194).

Portanto, para o autor, a análise sobre conflitos internacionais deve

concentrar-se no nível da sociedade. Sua linha argumentativa aproxima-se da

perspectiva de Azar e Burton ao apontar a falha no atendimento de determinadas

necessidades humanas como causa do surgimento de conflito e de sua escalada e

perpetuação (Kelman, 1990; 1999). No entanto, diferencia-se desses autores ao

dizer que o não-atendimento das necessidades básicas constitui o único fator a

causar esse fenômeno.

Nesse sentido, para Kelman, os conflitos geralmente resultam de uma

combinação de fatores objetivos e subjetivos, que se correlacionam de modo

circular (Kelman, 1999, p. 195). Deixa claro, pois, reconhecer a importância do

Estado no sistema internacional, o papel do poder nas relações internacionais e o

impacto de fatores estruturais sobre um conflito internacional, mas ressalta que

fatores subjetivos são igualmente relevantes em uma análise sobre esse fenômeno.

Nessa direção, aponta a segurança, autonomia e o senso de justiça como algumas

das necessidades básicas de natureza subjetiva.

Kelman destaca que a análise de um conflito não deve se restringir às

questões militares e diplomáticas, mas deve contemplar também as dimensões

econômica, psicológica, cultural e social de cada uma das partes em confronto.

Sobre essa sua observação, o autor explica que essas dimensões delineiam o

contexto político com o qual os governos, de cada sociedade em conflito, terão de

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lidar. Nesse sentido, é importante notar a existência de restrições políticas a serem

enfrentadas pelos governos, além das divisões em sua respectiva sociedade, diz o

autor. Nessa direção, sugere que:

“A view of conflict as a process that occurs between two societies

immediately prompts us to examine what happens within each society. In

particular, this view alert us to the role of internal divisions within each society.

Although theories of international relations often treat states as unitary actors,

the societies that states or other political organizations represent are never

monolithic entities. Every political community is divided in various ways, and

these internal divisions often play a major role in exacerbating or even creating

conflicts between such political communities. The course of an intergroup

conflict typically reflects the intragroup conflicts within both conflicting groups,

which impose constraints on the political leaders. Leaders pursuing a policy of

accommodation have to consider the reactions of opposition elements, who may

accuse them of betraying the national cause or jeopardizing the nation’s

existence. They also have to be responsive to the anxieties and doubts within the

general population, which opposition elements foster and from which they draw

support. In all these ways, internal divisions introduce severe constraints on

efforts at conflict resolution”. (Kelman, 1999, p. 200).

No entanto, embora a escalada do conflito esteja associada ao não-

atendimento das necessidades básicas e à percepção das partes em conflito de

ameaça à sua própria existência, Kelman observa que esses mesmos fatores

podem, em contrapartida, favorecer a sua resolução. Assim, o autor salienta que,

se por um lado, as divisões no interior de cada sociedade em conflito possam

impor limites às decisões de seus respectivos líderes, por outro, pode se constituir

uma coalizão entre grupos de cada uma das partes, buscando uma proposta

alternativa de paz (Kelman, 1999, p. 199-200).

A exposição dessas diferentes linhas argumentativas mostrou que a

identificação das principais causas dos conflitos internacionais revelam

substanciais diferenciações teóricas e metodológicas entre os estudiosos desse

fenômeno. Contudo, não é o objetivo aqui avaliar a validade dos modelos

mencionados. Também não se pretendeu esgotar o tema incorporando outras

perspectivas. A indicação das abordagens dos autores teve a intenção de ser

ilustrativa sobre as possibilidades que permitem caracterizar um conflito como

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internacional, seja por fatores localizados nos níveis sistêmico, doméstico,

individual ou, mesmo, uma combinação destes38.

Cabe explicar, no entanto, que essa seleção não foi aleatória, mas se buscou

exemplificar as distintas perspectivas com modelos que se tornaram importantes

referências para os estudos sobre conflitos internacionais. Vale notar, ainda, que a

diferenciação em termos da natureza das causas dos conflitos leva à proposição e

à aplicação de distintos métodos para sua resolução. Este é o ponto que será visto

a seguir.

2.3 Paradigmas sobre a resolução de conflitos internacionais

Segundo Morton Deutsch (1994), as interações sociais podem se

caracterizar como cooperativas ou competitivas. Nas palavras dele:

“As a result of much research by my students and myself (...), I have

developed a hypothesis about what gives rise to cooperation and competition. I

have termed it, ‘Deutsch’s crude law of social relations’: the characteristic

processes and effects elicited by a given type of social relationship39. Thus,

cooperation induces and is induced by a perceived similarity in beliefs and

attitudes, sensitivity to common interests and deemphasis of opposed interests, an

orientation toward enhancing mutual power rather than power difference, and so

on. Similarly, competition induces and is induced by the use of tactics of

coercion, threat, or deception; attempts to enhance the power differences

between oneself and the other; poor communication; minimization of the

awareness of similarities in values and increased sensitivity to opposed interests;

suspicious and hostile attitudes; the importance, rigidity, and size of the issues in

conflict; and so on. (Deutsch, 1994, p. 15).

Baseando-se nessas premissas, o processo de resolução de conflitos, no

entender de Deutsch, também pode seguir um direcionamento cooperativo ou não.

Para o autor, há uma correspondência entre a natureza das causas de um conflito e

o modo como se configura seu respectivo processo de resolução. Portanto, de

38 Sobre essa discussão, vale ver LEVY, Jack S. Theories of interstate and intrastate war; a level-

of-analysis approach, 2001. 39 Ênfase do próprio autor.

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acordo com as estratégias e mecanismos adotados na resolução de conflitos, esse

processo pode se manifestar de forma destrutiva ou construtiva. Sobre essa

questão, vale citar o autor:

“Understanding the conditions which give rise to cooperative or

competitive social processes, as well as their characteristics, is central to

understanding the circumstances that give rise to constructive or destructive

processes of conflict resolution. A constructive process of conflict resolution is, in

its essence, similar to an effective cooperative process, while a destructive

process is similar to a process of competitive interaction.(…)”. (Deutsch, 1994, p. 15).

O autor limita-se a fazer essa distinção, não buscando exemplificar as duas

vertentes de resolução de conflitos com modelos teóricos da literatura sobre

conflitos internacionais. No entanto, sua categorização é útil como referência para

se enquadrar as abordagens sobre a resolução de conflitos internacionais, ora na

configuração destrutiva, ora na configuração construtiva.

Deve-se deixar claro que não se pretende forçar uma comparação entre

premissas pertencendo a áreas de conhecimento distintos, mas é possível traçar

algumas convergências que permitem agrupar perspectivas da disciplina de

Relações Internacionais e do campo de estudos sobre resolução de conflitos em

um mesmo paradigma. Vale dizer, ainda, que o fato de serem incluídos em uma

determinada categoria não implica assumir que pertençam a uma mesma “escola

de pensamento”.

Quanto às perspectivas interpretando os conflitos e sua resolução como

processos de interação competitiva, a primeira referência será o paradigma

realista40. Esta vertente caracteriza o sistema internacional como anárquico, no

qual prevalece a desconfiança entre os Estados quanto às intenções e

comportamentos mútuos. Diante disso, o principal objetivo de cada Estado é

assegurar sua sobrevivência, sendo a guerra um dos meios pelos quais defenderá

seus interesses vitais. A paz, por conseguinte, recebe um sentido restrito e

negativo, uma vez que é entendida como “ausência de guerra” e baseada na força

militar. Para Hans Morgenthau, por exemplo, a redução do conflito pode ocorrer

devido à formação de uma balança de poder ou quando uma das partes sobrepõe- 40 Registre-se que o realismo não constitui uma teoria unificada, contudo, os pressupostos aqui apresentados são compartilhados pelas diferentes perspectivas dessa vertente teórica da disciplina de Relações Internacionais. Vale conferir BURCHILL et al., 2005.

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se à outra em virtude de sua superioridade em termos de recursos e poder.

Contudo, observa o autor, as guerras podem resultar dos efeitos não-intencionais

dos Estados que buscam preservar sua segurança e a paz.

Essas abordagens centradas no Estado como unitário e o principal ator nas

relações internacionais fazem uma leitura dos conflitos baseada no contexto da

construção de uma ordem centralizada e racionalizada no Estado moderno,

territorialmente delimitado. Dessa forma, associam a legitimidade do monopólio

do uso da força ao Estado, assumindo que a guerra constitui uma ação legítima

para se assegurar os interesses nacionais e a soberania.

Seguindo a argumentação realista, os instrumentos utilizados pelos

Estados em um conflito, ou seja, os recursos da política de poder, seriam os

principais mecanismos a serem empregados em sua resolução. No entanto, não

obstante esse cenário potencialmente conflituoso entre os Estados, processos de

negociação tornam-se mecanismos alternativos ao emprego da força pelos Estados

e levam a um controle racional das decisões políticas referentes às crises

internacionais41. A restauração da ordem também pode ser realizada por meio da

mediação. Neste caso, a eficiência da atuação do mediador é avaliada em termos

de sua capacidade de iniciar a resolução de um conflito por meio da persuasão ou

coerção para que as partes aceitem um determinado acordo.

O processo direcionado para o fim do conflito, seguindo os argumentos

dessa corrente de pensamento, seria marcado pelo confronto, centrado na lógica

do poder e por resultados de soma zero (o ganho de uma parte representa uma

perda diretamente proporcional para a outra parte). Esse modelo analítico encaixa-

se, portanto, no processo competitivo a que se referiu Morton Deutsch.

Os estudiosos do campo de resolução de conflitos costumam definir esse

modelo apresentado pelos realistas como “settlement”, em contraposição ao termo

“resolution”42. Dito de outro modo, para aqueles estudiosos, as proposições do

realismo para o término de um conflito constituem apenas uma resposta imediata

a uma determinada situação de violência, ou seja, seria uma estratégia de controle

do conflito. Por conseguinte, não são eliminadas as causas que, de fato, geraram o

41 Dentre os trabalhos sobre processos de barganha, vale conferir: How Nations Negotiate (1964) de Fred Charles Iklé; e sobre a racionalidade dos atores em negociações, ver The Art and Science

of Negotiation (1982), de Howard Raiffa. 42 John Burton foi o primeiro autor a fazer essa distinção. Sobre esse ponto, ver BURTON, 1987.

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conflito, sem haver, ainda, alterações no âmbito das atitudes das partes envolvidas

e de suas percepções mútuas.

Uma outra linha argumentativa, que também fundamenta seus

pressupostos no comportamento racional dos atores (maximizadores de seus

ganhos com os menores custos possíveis), pode ser enquadrada no paradigma

sobre a resolução construtiva dos conflitos. De acordo com esse segundo modelo,

o cálculo racional explicaria tanto a origem de um conflito, a intensificação do uso

da violência e mesmo o fim de uma guerra. Essa perspectiva pode ser ilustrada

com o modelo teórico proposto por Anatol Rapoport, introduzindo o método de

“solução de problemas” (problem-solving) como uma prática pacífica para

resolução de conflitos43.

Para esse autor, eventualmente, os conflitos entre Estados podem resultar

de falsas percepções e de entendimentos equivocados quanto às questões da

agenda de negociações. E, por conseguinte, conclui Rapoport, dá-se início a um

círculo de hostilidades que passa a se configurar como uma ameaça à segurança

dos Estados. A solução proposta reside, pois, em esforços dos negociadores para

se constituir uma base comum de entendimento, de modo que haja ganhos mútuos

para as partes envolvidas em uma disputa. Portanto, por meio da participação de

mediadores, os representantes das partes em conflito discutem seus interesses e

propõem soluções. Nota-se a influência dessa segunda perspectiva em trabalhos

de William Zartman e Maureen Berman; de Roger Fisher e William Ury; John

Burton, Edward Azar e Herbert Kelman44.

43 Costuma-se referir a essa estratégia como “barganha integrativa”. Ver: RAPOPORT, Lutas,

Jogos e Debates. Brasília, DF, Ed. Universidade de Brasília, 1980 (originalmente publicado em 1960). Assim como outros autores, Rapoport utiliza-se da teoria dos jogos para compreender as situações de conflitos e sua resolução. Essa teoria, introduzida em 1944 por John von Neumann e Oskar Morgenstern (Theory of Games and Economic Behavior), busca mostrar, por meio de modelos matemáticos e hipotéticos, o modo pelo qual atores se comportam em situações de tomada decisória e de confrontação de estratégias racionalmente formuladas. Tanto a disciplina de Relações Internacionais como o campo de resolução de conflitos possuem trabalhos baseados nessa teoria, analisando como conflitos de interesses podem ser resolvidos em situações diversas. Embora o desenvolvimento desse modelo teórico seja normalmente associado aos jogos de soma zero – interações competitivas -, a teoria dos jogos também reconhece que conflitos envolvem interesses cooperativos, podendo gerar resultados de soma-variada. Sobre a utilização da teoria dos jogos e escolhas estratégicas sob esse segundo enfoque, vale conferir: Robert Axelrod, The

Evolution of Cooperation, 1980; e Cooperation under Anarchy, editado por Kenneth A. Oye (1986). 44 William Zartman e Maureen Berman (The practical negotiator, 1982) enfatizam a importância de as partes terem o devido entendimento sobre o problema. Posteriormente, devem chegar a uma fórmula conceitual que sirva de guia para a negociação no que se refere aos seus detalhes (diagnosis-formula-detail). Fisher e Ury (1991) enfatizam que as negociações fundamentam-se

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Uma outra linha de pesquisa a argumentar que os conflitos podem ser

resolvidos de forma cooperativa fundamenta-se em preceitos liberais. Sob pena de

reducionismo, dada a variação de perspectivas com base na tradição liberal, no

que concerne ao tema desta seção, importa fazer referência apenas a uma de suas

principais premissas: a constituição de uma ordem mundial pacífica fundada em

valores democráticos, no livre mercado e na idéia de progresso45. Nesse sentido,

as possíveis respostas para se dirimir os conflitos incluiriam meios não-violentos e

mecanismos como a arbitragem e a negociação. Essas estratégias devem ser,

ainda, capazes de produzir mudanças políticas, sociais e econômicas relacionadas

às origens daquele fenômeno. O mediador teria a função de facilitar as

negociações e os acordos, sem adotar um posicionamento coercitivo ou de

ameaças. Esses pressupostos se inserem, pois, na descrição de Morton Deutsch

sobre processos construtivos para a resolução de conflitos.

Há que se registrar, contudo, que a liberalização não necessariamente leva

à paz. Roland Paris (2001) é um dos autores a notar que operações voltadas para

uma rápida democratização e liberalização do mercado, em países que passaram

por guerras civis, podem favorecer o reinício de conflitos sociais. Como observa

Paris, esses dois processos podem gerar uma competição entre os grupos de uma

dada sociedade que passa por reformas após um contexto de conflito. De fato,

essa foi a situação em alguns países, como Angola, quando uma iniciativa

internacional para a paz mostrou-se ineficaz, na medida em que após a realização

de eleições, em 1991, divergências entre os principais partidos políticos

resultaram em uma retomada do conflito civil dois anos depois.

Em contrapartida, Paris sugere que, em uma fase em que se está

construindo a paz, é preciso, antes, estabelecer instituições governamentais,

econômicas e políticas estáveis e que o processo de liberalização do mercado seja

gradual para se evitar efeitos desestabilizadores que as reformas possam causar.

Nessa direção, é importante, afirma o autor, que a estabilidade política local seja

sobre os interesses, e não sobre as posições de barganha. Sobre as referências dos demais autores citados, ver ao final da tese: BURTON (1987); AZAR (1990) e ROUHANA e KELMAN (1994). 45 Dentre os autores inseridos nessa tradição liberal estão os pensadores clássicos Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant, Hugo Grotius, Adam Smith. Registre-se que há diferenciações substantivas em suas perspectivas, mas não cabe aqui serem exploradas, pois não são essenciais para o propósito desta tese. O que importa assinalar não são os distintos posicionamentos entre os autores dessa corrente, mas sim seus pressupostos que indicam uma leitura cooperativa acerca da resolução de conflitos internacionais. Sobre o legado desses autores para os estudos sobre as relações internacionais, vale conferir BURCHILL et. al., 2005.

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assegurada por uma efetiva administração internacional dirigida à formação de

instituições capazes de solucionar possíveis tensões sociais no interior da

comunidade. Como denomina o próprio autor, trata-se de um “modelo de ajuste”

orientado para a paz (Paris, 2001, p. 779).

Há que se ponderar, contudo, que sua ênfase no papel das instituições na

construção da paz diz respeito a mecanismos que promovam a estabilização

político-econômica no plano interno, mas que não são relacionados diretamente

ao processo negociador ou a acordos firmados entre as partes em confronto. Dessa

forma, a proposta do autor deve ser vista como uma indicação de metas que julga

ideais a serem cumpridas pela comunidade internacional na fase de resolução de

um conflito, deixando de lado, em sua argumentação, uma análise da

operacionalização desse processo pelos atores nele envolvidos.

A abordagem sobre necessidades humanas (seção 2.2, p.34-42) é outra

perspectiva que interpreta a resolução de conflitos como um processo cooperativo.

Este, por sua vez, deve distinguir-se de processos tradicionais que se

fundamentam na lógica da política de poder e da coerção. Sendo assim, essa

perspectiva sugere que esse processo ocorra por meio de discussões informais,

explorando as possibilidades de se atender às necessidades de todas as partes

envolvidas em um conflito.

O papel de uma terceira parte também deve ser distinto daquele assumido

por um intermediário que se limita a dialogar com cada uma das partes em

separado ou, ainda, que imponha uma solução. Por seu turno, os autores inseridos

nessa perspectiva sugerem que o mediador ajude as partes a definirem seus

respectivos objetivos. Um dos métodos sugeridos é a realização de workshops,

favorecendo a mudança de percepções negativas entre as partes, o estabelecimento

de confiança mútua e uma proposta conjunta para a resolução do conflito de modo

a atender as necessidades fundamentais46. Cabe observar, todavia, que a realização

de seminários e fóruns de debates, assim como a participação de mediadores,

representam importantes passos para a resolução de um conflito, mas, ainda que

essenciais, são apenas etapas desse processo. Ou seja, permitem um controle do

46 Esse método é uma das formas sugeridas por John Burton (1986; 1987) seguindo a lógica da “solução de problemas”. Apesar de o significado ser o mesmo, há diferentes termos na literatura. Hebert Kelman, 1999, e Ronald Fisher, 1997, por exemplo, referem-se a essa prática como parte da “resolução interativa de conflitos”.

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conflito, por exemplo, quando um mediador é bem sucedido no estabelecimento

de um acordo de cessar-fogo.

Mas, de acordo com essa perspectiva, o processo de resolução do conflito

deve ser mais abrangente, permitindo que sejam identificadas as necessidades

básicas de cada uma das partes, além de apontar caminhos para sua reconciliação

(Azar, 1990, p. 127; Kelman, 1999, p. 197). Para Herbert Kelman (1999, p. 198),

uma vez que se alcance uma resolução para o atendimento dessas necessidades

básicas das partes, outras questões como as disputas territoriais, por exemplo,

podem ser discutidas em um processo de negociação. Segundo esse autor, a

resolução de um conflito deve ser realizada de forma gradual e voltada para

mudanças nas atitudes das partes, nas palavras dele:

“(...) the development of a new relationship that recognizes the interdependence

of the conflicting societies and is open to cooperative, functional arrangements

between them. The real test of conflict resolution in deep-rooted conflicts is how

much the process by which agreements are constructed and the nature of those

agreements contributes to transforming the relationship between the parties.” (Kelman, 1999, p. 201).

As propostas dessa última perspectiva, quanto às estratégias e técnicas a

serem empregadas para a resolução de conflitos, aproximam-se das abordagens

analisando a transformação positiva das relações entre os atores envolvidos em

disputas47. Assim, por meio de processos interativos entre as partes, a resolução

de conflitos consistiria na busca por uma acomodação de seus interesses e uma

redefinição de seus objetivos. Sendo assim, suas proposições são prescritivas e

estão direcionadas a uma conduta construtiva do processo de resolução de

conflitos.

Dentre os autores adotando a lógica que os conflitos podem ser

transformados, uma referência obrigatória é Adam Curle. Em Making Peace

(1971), o autor salienta a importância de as partes modificarem a natureza

beligerante de suas relações, uma vez que tal comportamento representa um fator

a impedir o desenvolvimento humano. Esse processo, no entanto, depende da

distribuição de poder entre os adversários, conclui Curle. E, dessa forma, acredita

47 Duas referências que se destacam nessa literatura são: FISHER, Ronald. Interactive conflict

resolution, 1997; e KRIESBERG; NORTHRUP; THORSON. (Eds.). Intractable conflicts and

their transformation, 1989.

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que quando há um equilíbrio entre as partes, em termos de recursos e capacidades,

há maior probabilidade de se chegar ao fim de um conflito. Entretanto, em uma

situação inversa, é necessário haver primeiramente uma conscientização quanto ao

desequilíbrio de poder e à injustiça existentes no relacionamento entre os

adversários. Tal processo pode até gerar uma intensificação do conflito em um

segundo momento. Nesta etapa de confrontos, explica o autor, as partes se

organizam de modo a compatibilizar suas divergências, chegando, em seguida, a

um terceiro estágio, a fase das negociações. Estas, por sua vez, representam a

passagem para a reestruturação de seus relacionamentos até que se alcancem

maior eqüidade e justiça entre as partes.

Outro autor a avaliar o potencial de transformação de conflitos é John Paul

Lederach (2001). Destacando a relevância de se considerar as diferenças culturais

entre comunidades, o autor sugere que os esforços para a resolução de conflitos

levem em conta as particularidades e os recursos de cada comunidade. Seguindo

essa ordem de idéias, acredita que transformações deveriam ocorrer não apenas na

estrutura do conflito, mas também nas relações entre as partes e no nível pessoal,

isto é, nas percepções e atitudes relativas ao conflito e nas condições, refletindo o

bem-estar individual, psicológico e espiritual dos indivíduos. Para o autor, a

construção da paz e a transformação de conflitos permitem reconfigurar processos

e estruturas de modo que as relações violentas se tornem construtivas e

cooperativas. Diante disso, Lederach declara três postulados.

Em primeiro lugar, diz que a construção da paz deve ser realizada

simultaneamente em todos os níveis da sociedade. Sobre este ponto sugere que as

negociações não sigam um processo “top-down”, sob orientação de alguns líderes

e representantes. Mas antes, argumenta o autor, deve-se estabelecer uma interação

entre as lideranças de todos os níveis sociais. A segunda premissa formulada por

Lederach refere-se ao momento apropriado para o processo de construção da paz.

Neste ponto o autor trata das ações de curto prazo direcionadas para a resolução

de crises e para o atendimento de necessidades mais imediatas. Essas ações a

serem implementadas, prossegue Lederach, devem ser capazes de responder às

crises a qualquer momento em que ocorrerem48. Ressalta, portanto, que as

48 Os termos empregados por Lederach são, originalmente, “crisis responsive” quando se refere às ações de longo prazo, em contrapartida às ações de curto prazo, por ele denominadas de “crisis

driven” (Lederach, 2001, p. 846).

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estratégias de paz a serem desenvolvidas sejam de longo prazo. Sua terceira

premissa diz respeito às questões mais contenciosas de um conflito, como as

disputas territoriais ou defesa de direitos de cidadania, explica o autor. E aqui

Lederach retoma sua argumentação em torno da prática da reconciliação e no

fortalecimento da sociedade civil. Prossegue dizendo que esse processo requer

mudanças nos padrões históricos e nas estruturas, que delinearam as relações entre

as partes em conflito, como precondições para se resolver as questões que

deflagraram os confrontos.

De um ponto de vista próximo a essa visão de transformar os conflitos, os

chamados “Teóricos da Paz” vislumbram a possibilidade de se reduzir a violência

por meio de práticas cooperativas49. A título de exemplo, vale citar Francis Beer

(1990) propondo o equilíbrio (“balancing”) e nova estruturação do sistema

internacional em termos de maior igualdade de poder, riqueza e conhecimento. A

paz, avalia o autor, seria alcançada por meio de projetos cooperativos entre nações

e grupos direcionados para essa reformulação sistêmica. E esse processo deve

ocorrer por meio de gradativas ações objetivando a paz, ou seja, através de “ações

construtivas” realizadas em etapas (Beer, 1990, p.18). Ademais, privilegia-se a

defesa de direitos do ser humano, sua proteção e seu desenvolvimento. Trata-se,

portanto, não apenas de se promover a desmilitarização e de se dar uma ênfase

menor à dimensão militar (alianças e regimes domésticos), mas, como sugere

Galtung (1990c), deve-se buscar a igualdade no sistema internacional.

Mas, para isso, é fundamental que sejam alteradas as práticas dos

indivíduos, como propõem os estudos baseados nos princípios de Gandhi sobre a

não-violência. Esse processo implicaria envolver-se no conflito de forma ativa,

porém, sem infligir qualquer ato violento sobre o(s) outro(s). Por conseguinte,

propõem esses estudos que se busque a resolução de conflitos não por meio de

interesses individuais, mas que o indivíduo pense e atinja seus objetivos de acordo

com um senso de justiça universal; ver-se a si mesmo como parte de um todo

orgânico, com objetivos e propósitos maiores do que aqueles referenciados no

indivíduo isoladamente. Portanto, diferentemente das abordagens que

“antropomorfizam” o Estado e o concebem como sujeito a lidar com o controle da

49 Sobre as perspectivas que se enquadram nessa argumentação, vale conferir: A Reader in Peace

Studies, de Paul Smoker, Ruth Davies e Barbara Munske (Orgs.), 1990.

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violência, essa perspectiva permite incluir o indivíduo como o objeto e agente da

paz.

Esta seção mostrou como a literatura de resolução de conflitos pode ser

classificada conforme dois direcionamentos na condução desse processo. A partir

da indicação das linhas de pesquisa mais relevantes sobre essa temática, viu-se

que as duas configurações aqui apresentadas refletem os posicionamentos dessas

abordagens em torno de dois eixos analíticos, quais sejam, as causas dos conflitos

e as estratégias a serem seguidas para sua resolução.

Nesse sentido, uma perspectiva realista, por exemplo, poderia partir da

premissa que o dilema de segurança tenha sido o contexto que deu origem a um

conflito internacional. Como estratégias para o fim do conflito, poderiam indicar a

ameaça do uso da força ou a aplicação de sanções econômicas. Seriam seguidas,

assim, medidas associadas à lógica da política de poder e, caso houvesse a

participação de uma terceira parte, esta seria conduzida por uma potência. Dito

isso, cabe observar que, seguindo essa ordem de idéias, as estratégias empregadas

refletiriam o perfil competitivo do processo de resolução de conflitos, para usar

uma das categorias vistas nesta seção.

Assim sendo, a identificação das distintas linhas argumentativas presentes

na literatura sobre essa temática permitiram compreender uma das dimensões do

processo de resolução de conflitos, ou seja, se este último caracteriza-se de forma

destrutiva ou não. Dessa forma, foi possível ter uma noção desse processo com

base nas duas categorias apresentadas, faltando, pois, examiná-lo conforme suas

etapas, como será visto a seguir.

2.4 As etapas da resolução de um conflito

Estudar a resolução de conflitos internacionais por meio de um exame de

suas sucessivas etapas constitui um instrumental analítico útil para se identificar

fatores que favoreçam ou dificultem seu progresso ou, ainda, para se delinear as

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expectativas quanto ao comportamento dos atores envolvidos nesse processo.

Nesse sentido, a literatura sobre esse tema concentra-se nas técnicas empregadas

para se promover a evolução de um processo de paz, como, por exemplo, a

mediação e a negociação.

Segundo Peter Wallensteen (2002), o processo de resolução de um conflito

ocorre em três estágios, a saber, um período que antecede as negociações para um

acordo, seguido da fase das negociações em si, e uma etapa em que se implementa

o acordo firmado. De um modo semelhante, Christopher Mitchell (2003)

identifica três estágios sequenciais para a resolução de conflitos, mas atém-se ao

papel do mediador ao longo de todo o processo e de forma meramente descritiva

quanto às suas funções. No caso específico da fase pós-acordo, Mitchell propõe

que, na atribuição de verificador, o mediador deve assegurar que os termos dos

acordos sejam cumpridos; na função de implementador, deverá impor sanções

pelo não-cumprimento dos acordos; e como conciliador deverá favorecer a

construção de um novo relacionamento entre as partes (e no interior delas).

As análises desses dois autores são ilustrativas sobre o tipo de enfoque

geralmente adotado por essa literatura. Sendo assim, a exemplo de Wallensteen, é

comum ver trabalhos que se limitam a uma identificação e a uma descrição de

etapas compondo o processo de resolução de conflitos internacionais. Outros

estudos, como o de Mitchell, priorizam a análise de uma etapa específica,

enfatizando ora as estratégias propostas pelos mediadores, ora as decisões e

concessões dos negociadores ou, ainda, suas percepções e expectativas quanto ao

comportamento dos atores em um processo de barganha. Esse segundo conjunto

de pesquisas também restringe a compreensão acerca da resolução de conflitos, na

medida em que se atém a avaliar parcialmente uma única etapa, sem considerar as

implicações dos resultados nela obtidos sobre os estágios seguintes desse

processo.

Em contrapartida, alguns estudiosos sobre processos de paz têm avançado

em relação a essas perspectivas ao tecerem uma análise mais fina sobre as etapas

da resolução de um conflito. Nessa direção, uma referência que se destaca é

Barbara Walter (2002), que identifica elementos capazes de favorecer ou dificultar

a passagem de um estágio a outro. Assim sendo, consoante a autora, cada uma das

fases receberá os impactos de distintos fatores que, por sua vez, podem alterar o

comportamento das partes envolvidas na resolução do conflito.

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Nesse sentido, três são as etapas no processo de resolução de um conflito

indicadas por Walter: uma em que há uma decisão de se iniciar as negociações;

posteriormente, um período de negociações, culminando com a assinatura de um

acordo; e uma terceira, correspondendo à fase em que o acordo será

implementado. No primeiro estágio, período em que as partes tomam a decisão

de iniciar as negociações para um acordo, três fatores podem incentivar os

beligerantes a chegarem a uma proposição para a paz: os altos custos do conflito,

um impasse militar entre as partes e a presença de instituições democráticas50.

Quanto ao segundo estágio, referente à assinatura do acordo, Walter destaca dois

fatores com impactos sobre esse processo: a compatibilização dos interesses

mútuos e a presença de um mediador externo. A terceira etapa, correspondendo à

fase de implementação de acordos, pode ser afetada por restrições ocorridas nos

estágios precedentes e, por conseguinte, algumas questões que já deveriam ter

sido resolvidas se mantêm. Portanto, os resultados desse terceiro estágio podem

estar relacionados a condicionantes estabelecidos nos dois estágios anteriores.

Além disso, outros fatores podem se manifestar nessa terceira fase, em

particular quando não se definem instrumentos assegurando que as partes

cumprirão as determinações delineadas nos acordos. Nesse caso, observa a autora,

o receio de uma das partes de que o processo de paz possa lhe trazer desvantagens

pode fazer com que a implementação do acordo seja interrompida. Walter

exemplifica essa situação com a recusa de Angola em implementar o acordo de

paz, caso não houvesse a presença de representantes da ONU para fazer com que

os termos negociados fossem cumpridos51. Isto posto, constata que uma bem-

sucedida implementação de acordos depende da capacidade de as partes obterem a

assistência necessária de um mediador ou, ainda, que sejam capazes de elaborar

um acordo delineando os mecanismos que garantam o cumprimento do mesmo.

50 A autora, ao elencar esses elementos, baseia-se no conceito “ripe for resolution” desenvolvido por Willian Zartman. Correspondem, pois, a um conjunto de fatores favorecendo o início de um processo de resolução de um conflito. Sobre esse conceito, vale conferir ZARTMAN, 1985. Quanto à conclusão da autora sobre a relevância de instituições democráticas, refere-se a um contexto de guerra civil, no qual já existem instituições domésticas fundamentadas em valores democráticos capazes de influenciar a obtenção de um acordo. 51 A autora não diz a que acordo ela se refere, mas, tendo em vista que ela examina diferentes casos de processos de paz entre 1940 e 1992, provavelmente este sobre Angola deve corresponder aos “Acordos de Bicesse”, de 31 de maio de 1991, que buscavam o fim da guerra civil iniciada em 1975. No entanto, cabe dizer que novos confrontos internos, seguidos de novas iniciativas de paz, ocorreram até 1998 naquele país.

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Isto posto, diz Walter, ao contrário da linha investigativa de boa parte dos

trabalhos sobre resolução de conflitos, não se deve estudar o resultado final desse

processo como conseqüência de um único fator (Walter, 2002, p. 305). Ainda

segundo sua avaliação, a literatura sobre o processo de negociação internacional é

rica em trabalhos associando a resolução de um conflito à assinatura de um acordo

de paz. Contudo, não necessariamente a assinatura de um documento dessa

natureza implica o fim do conflito e, por conseguinte, o fato de as partes terem

firmado um tratado não constitui o melhor indicador de sucesso de todo o

processo de negociação. Como observa a autora, há uma fase subseqüente à

formalização da paz em que um novo contexto nas relações entre as partes pode se

configurar, como por exemplo, a recusa de um dos atores em cumprir os termos

dos acordos.

Barbara Walter (2002) chama a atenção para o fato de o estágio de

implementação dos acordos ser o mais marginalizado na literatura sobre resolução

de conflitos. Ainda segundo a autora, falta nesses trabalhos uma discussão mais

intensa sobre a fase pós-acordo, mais precisamente no que se refere aos arranjos

institucionais necessários para a sustentabilidade dos termos dos tratados de

cooperação e de paz.

Stephen Stedman (2002) é outro autor a ressaltar a escassez de trabalhos

de analistas de resolução de conflitos sobre a implementação de acordos. Constata

que boa parte dos estudos sobre resolução de conflitos concentra-se nas fases de

mediação e de construção da paz, não atentando, devidamente, ao período

subseqüente às negociações que geraram os acordos.

Segundo o autor, os estudos sobre guerras civis durante a Guerra Fria

centravam-se nas condições e nos instrumentos necessários para que as partes

conflitantes assinassem acordos. Observa Stedman que as análises naquele

período tinham a tendência a considerar linearmente a resolução dos conflitos

(2001, p. 2). Isto é, pressupunham que os casos de negociações bem-sucedidas

levariam, irreversivelmente, a uma redução do conflito. Lembra o autor que as

guerras civis em Angola, Ruanda e Libéria desafiam essa visão linear. Exemplos

como esses, conclui, revelam as dificuldades para se estabelecer e implementar

acordos de paz, uma vez que houve o reinício da violência nesses países, a

despeito da participação de mediadores internacionais. A literatura desconsidera,

portanto, fatores capazes de levar, em um momento futuro, a uma retomada dos

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confrontos, diz o autor. Ademais, ressalta Stedman, após a assinatura de acordos,

condições tais como a reconciliação, a justiça e a ordem democrática não são

facilmente obtidas no curto prazo.

Por conseguinte, conclui Stedman, o período após os acordos de paz serem

firmados pode-se configurar como incerto e instável, uma vez que existem

variáveis capazes de dificultar a solução de um conflito. Nessa ordem de idéias,

para o autor, os principais determinantes da implementação de acordos de paz são:

1) o número das partes (quanto maior for este número, maior o grau de

dificuldade de implementação); 2) a existência de um acordo firmado pelas

principais partes envolvidas em um confronto, antes de uma intervenção pela paz;

3) a presença de partes recalcitrantes (líderes ou grupos) com relação a um

processo de paz, chegando em determinados casos a recorrerem à violência para

impedir a efetivação de acordos (a quem o autor denomina “spoilers”); 4) em

situações de falência do Estado, vale dizer, o sucesso de um acordo depende das

instituições estatais e de sua capacidade de manter os compromissos; 5) o elevado

número de soldados exigirá maiores esforços para o monitoramento em relação ao

cumprimento do acordo; 6) o acesso a recursos naturais que permitam às partes

adquirir armamentos; 7) a existência de grupos hostis e de Estados vizinhos

contrários aos acordos; 8) nas situações em que há conflitos separatistas ou

étnicos.

Para Stedman, quanto maior o número desses fatores manifestando em um

ambiente conflituoso, maiores serão as dificuldades para se resolver um conflito

(2000; 2001; 2002). Dois são os fatores, no entanto, que constituem as principais

causas do fracasso de um acordo, quais sejam, a presença de grupos ou líderes

contrários ao processo de paz (“spoilers”) e quando países vizinhos se opõem aos

acordos, chegando até mesmo a financiar grupos, do país em guerra, que são

igualmente opositores ao processo de paz. Nesse sentido, não se pode assumir que

determinadas estratégias utilizadas para solucionar um determinado conflito

produza resultados semelhantes quando aplicadas em outro caso. Um importante

aspecto a ser considerado, pois, argumenta Stedman, é o modo como o ambiente

do conflito está configurado, isto é, “mais benigno” ou “mais difícil” (Stedman,

2002, p. 664). A complexidade de um conflito também deve ser levada em conta

ao se examinar as estratégias mais adequadas. Em outras palavras, em certas

situações a busca pelo estabelecimento da confiança mútua pode ser um meio

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adequado para que a fase de implementação dos acordos seja efetiva. Em

contrapartida, há casos em que são necessários mecanismos que forcem o

cumprimento dos acordos, por exemplo (Stedman, 2002, p. 664).

Em contrapartida, diz Stedman (2001; 2002), os seguintes fatores externos

podem favorecer a implementação de um processo de paz: apoio de outros países,

inclusive fornecendo recursos financeiros; a motivação de determinadas potências

(conforme seu interesse nos acordos); a atuação de agentes da comunidade

internacional como o Conselho de Segurança das Nações Unidas.

A exposição dos argumentos de Barbara Walter e de Stephen Stedman

ajuda a compreender um importante aspecto da resolução de conflitos, qual seja:

um exame de suas etapas, nos moldes em que fundamentam os argumentos desses

autores, revela que tal processo não pode ser concebido linearmente. Em outras

palavras, a análise deve ir além de uma constatação se o emprego de uma

determinada estratégia negociadora ou de mediação leva a um resultado bem-

sucedido ou não. Como bem observam Walter e Stedman, diferentes fatores

podem ter impactos sobre cada uma das distintas fases da resolução de um

conflito. E, dessa forma, podem afetar um processo de paz em seus objetivos

centrais, ou seja, a eliminação de suas causas e das manifestações de violência e

de confronto entre as partes (Rasmussen, 1999, p. 40).

A apresentação dos estudos desses dois autores pretendeu chamar a

atenção para a relevância de se examinar a fase de implementação dos acordos

firmados, que, segundo eles, constitui uma temática ainda pouco explorada por

analistas de resolução de conflitos. Como observou Barbara Walter, há que se

considerar, ainda, que cada etapa de um processo de resolução de um conflito

pode ser afetada por distintas variáveis. Portanto, a avaliação da efetividade desse

processo não pode se limitar à assinatura de um acordo, já que, ao longo de sua

implementação, novos fatores podem surgir e gerar impactos sobre a resolução do

conflito. Seus trabalhos devem ser vistos como complementares às perspectivas

dos autores inseridos nos paradigmas descritos na seção precedente que, por sua

vez, não demonstram ter uma preocupação com uma análise das sucessivas etapas

do processo de resolução de conflitos.

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2.5 Considerações a respeito da literatura sobre resolução de conflitos internacionais

Toda a exposição anterior, ancorada em diferentes abordagens analisando

as causas dos conflitos internacionais e sua resolução, teve um objetivo, qual seja,

delinear um quadro analítico para este estudo. Cabe notar que a seleção dos

autores apresentados reflete, também, o interesse em apresentar um panorama

sobre o que há de mais relevante nessa literatura, a partir de seus critérios

metodológicos (níveis de análise) e paradigmas (cooperativo e competitivo). A

discussão feita a seguir retoma os temas das seções anteriores, na mesma ordem

em que elas foram organizadas.

Assim sendo, no que diz respeito à questão da análise dos conflitos

internacionais (seção 2.2, p. 34-42), a revisão da literatura permite identificar duas

linhas principais acerca das causas desse fenômeno. Uma baseada no modelo de

Kenneth Waltz (1979), que aponta fatores sistêmicos para explicar o surgimento

de conflitos, e outra enfocando o não-atendimento de necessidades humanas como

a variável independente. Cabe dizer que aquela apresentação enfocou, ainda, a

unidade de análise de cada uma dessas perspectivas, um ponto importante para

este estudo. Nessa direção, a linha argumentativa a ser adotada nesta tese

aproxima-se dos pressupostos de Herbert Kelman (1999).

Portanto, em vez de centralizar a análise no nível sistêmico, pode-se

concordar com Kelman quando diz que o fenômeno do conflito internacional deve

ser investigado levando-se em conta os processos que se passam no interior das

respectivas sociedades em confronto. Essa dinâmica relaciona-se às dimensões

econômica e social, por exemplo, podendo corresponder, ainda, às restrições

políticas que os governos e os líderes negociadores terão de enfrentar na sua arena

doméstica. Essa perspectiva, ao tomar a sociedade como a unidade de análise,

permite, pois, que sejam identificados atores domésticos com importante papel na

evolução do conflito assim como na sua resolução.

Portanto, essa opção analítica contrasta com os pressupostos

metodológicos e teóricos de Kenneth Waltz (1979). Ao atribuir maior poder

explicativo às condições sistêmicas, a argumentação desse autor obscurece o

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entendimento sobre certos casos. Nesse sentido, vale lembrar que Waltz

concentra-se nas causas das guerras entre Estados, ignorando conflitos,

manifestando-se exclusivamente no interior de um país por fatores domésticos,

mas com repercussões internacionais, não contemplando, ainda, casos de conflitos

entre sociedades e culturas distintas. Além dos limites analíticos dessa

perspectiva, por apresentar uma visão uniforme sobre o comportamento dos atores

domésticos e por partir da premissa que os Estados possuem preferências

domésticas similares e estáveis, duas questões são negligenciadas sob esse

enfoque.

Em primeiro lugar, reduz a unidade de análise a um só tipo de ator. Dito de

outro modo, ao assumir a centralidade do Estado, não abrange casos de conflitos

internacionais entre unidades de natureza diferenciada (entre um Estado e um ator

não estatal, por exemplo)52, capazes, por seu turno, de terem impactos em âmbito

regional e internacional. Em segundo lugar, essa linha de argumentação, ao

assumir o Estado como ator unitário e central nas relações internacionais,

desconsidera fenômenos domésticos com impactos relevantes na esfera

internacional. Nessa direção, cumpre lembrar que a emergência de novos Estados

- engajados em um processo de formação e consolidação de instituições e voltados

para a centralização de poder em relação a outros atores domésticos -, pode levar a

conflitos não apenas no plano interno, mas pode também ter desdobramentos na

arena externa.

Essas questões evidenciam-se mais claramente no pós-Guerra Fria, quando

a atenção volta-se não apenas para os conflitos interestatais, mas igualmente para

os conflitos no interior dos Estados, as rivalidades étnicas, a militarização de

grupos religiosos, a escassez de recursos, as violações a direitos humanos

universais e as formas de combate ao terrorismo. Além disso, não apenas a

configuração dos conflitos vem mudando a partir desse período, mas também

fatores como inovações tecnológicas e a crescente integração de mercados têm

intensificado a competição entre Estados, classes e grupos. Portanto, a avaliação

sobre a manifestação de conflitos e os critérios para classificá-los como

internacionais devem ir além das explicações fundamentadas apenas em causas

sistêmicas e daquelas que tomam o Estado como um ator unitário.

52 Como é o caso do conflito aqui analisado, em que uma das partes, o povo palestino constitui uma nação sem Estado, representada por um ator não-estatal, a OLP.

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Embora a perspectiva de Kelman siga uma linha analítica próxima à de

Edward Azar (1986; 1990) e de John Burton (1986; 1987; 1990), há uma

diferença significativa que permite dizer que seu modelo tenha uma capacidade

explicativa maior do que a análise empreendida pelos outros dois autores. Trata-se

da importância a ele atribuída à combinação de fatores objetivos e subjetivos para

se compreender a origem e a dinâmica de um conflito internacional, sendo que,

para cada caso, um determinado fator terá uma relevância relativamente maior do

que os demais, salienta Kelman. Dito isso, embora o autor dê uma atenção

especial a fatores subjetivos, como a percepção de uma sociedade quanto aos

riscos à sua existência em uma situação de conflito, reconhece, por outro lado, que

esse fenômeno possa resultar da busca de interesses nacionais, por exemplo.

Azar e Burton, por sua vez, não revelam uma preocupação em distinguir

claramente as necessidades básicas, vale dizer, se são objetivas ou subjetivas.

Assim sendo, são apresentadas de forma genérica, como necessidades ontológicas

dos indivíduos e de grupos sociais, sem definirem critérios estabelecendo quais as

necessidades não-atendidas ou ameaçadas têm maior potencial para causar

conflitos. De uma forma muito simplista, Azar (1990) alega que mesmo a defesa

da soberania territorial está associada a essa idéia de necessidades humanas não-

atendidas ou ameaçadas. Sendo assim, ao buscarem explicar todos os tipos de

conflitos (que se passam entre indivíduos, grupos, comunidades e Estados) como

se seguissem a mesma lógica, ou seja, como se todos eles derivassem de

necessidades humanas não-atendidas, acabam criando um modelo que dificulta

uma análise comparativa de casos cujas causas sejam diferentes. No entanto, cabe

salientar que essas necessidades humanas são substancialmente distintas, como a

segurança física e a identidade étnica de um grupo, por exemplo. Por conseguinte,

os conflitos gerados por esses fatores teriam especificidades na sua dinâmica que

poderiam dificultar um estudo comparativo entre casos diferentes.

Cada uma dessas abordagens, portanto, apresenta distintos fatores como

causas dos conflitos, o que, por sua vez, implica a indicação de diferenciados

métodos para sua resolução (seção 2.3, p. 42-51). Apesar das especificidades das

abordagens e seus pressupostos, em comum, concentram-se em avaliar como

determinadas estratégias podem levar ao fim de um conflito. Mostrou-se, no

entanto, que as estratégias propostas podem conduzir a dois tipos de resultados:

um em que o processo de resolução de conflitos configura-se de forma

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competitiva, outro em que esse processo se constitui de modo cooperativo. Há que

se observar, no entanto, que, mesmo que se chegue a um acordo, a resolução do

conflito não é certa, caso o documento firmado tenha sido obtido por meio de um

processo sob o perfil competitivo. Por outras palavras, pode-se concordar com os

estudiosos do campo de resolução de conflitos, em particular John Burton (1987),

ao afirmarem que o emprego de métodos coercitivos e a imposição de um acordo

não produzem resultados estáveis, podendo, ainda, haver uma retomada da

violência. Portanto, é preciso que se busque, por meio de métodos cooperativos,

um consenso em torno das soluções propostas e que os mesmos sejam capazes de

alterar o relacionamento das partes.

No entanto, em geral, a literatura sobre resolução de conflitos não atenta

devidamente para as diversas etapas de todo esse processo. Dessa forma, a

atenção volta-se para o processo negociador, o papel do mediador, ou a

possibilidade de se transformar as relações entre as partes para que se tornem

cooperativas. Herbert Kelman (1999) chega a destacar que o conteúdo dos

acordos e a natureza das negociações podem comprometer o sucesso da resolução

de um conflito. No entanto, não aprofunda nessa sua ponderação, limitando-se a

sugerir que o processo negociador ocorra gradualmente, incorporando novas

questões no momento apropriado. Nessa direção, propõe que temas ligados às

necessidades básicas das partes envolvidas no conflito sejam negociados antes de

se buscar um acordo sobre a distribuição de recursos e de territórios, por exemplo.

John Paul Lederach também alega que as questões mais contenciosas

devam ser discutidas somente depois que houver mudanças nas relações entre os

beligerantes, de modo a assegurar resultados positivos na resolução do conflito.

Outro autor a dirigir sua atenção para a fase das negociações é Adam Curle,

julgando necessária uma reestruturação do relacionamento das partes em conflito

e que exista maior eqüidade entre elas, antes de se iniciar as negociações. Ainda

que pertinentes suas proposições, explicando como é possível mudar o

comportamento dos atores antes de se prosseguir na negociação de determinadas

questões mais contenciosas, não avaliam como o processo de resolução do

conflito, em suas etapas seguintes, pode afetar o comportamento e a constituição

dos atores.

Cabe ressaltar que a despeito de serem adotadas estratégias voltadas para a

reconciliação e a cooperação entre as partes, há fatores que podem afetar

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negativamente a resolução de um conflito internacional. Esse ponto foi abordado

na seção anterior, quando se chamou a atenção para variáveis que podem alterar

os objetivos inicialmente propostos para o fim de um conflito. Nessa direção, a

título de exemplo, os resultados de uma eleição e a composição de coalizões

partidárias podem alterar a base de sustentação do líder de uma determinada

comunidade que iniciou negociações internacionais. Por conseguinte, essas

mudanças no cenário doméstico de um dos negociadores podem ter reflexos sobre

a continuidade de um processo de paz.

Dito isso, os capítulos seguintes apresentarão cada uma dessas três fases

do conflito aqui estudado, a saber: aquela que antecede as negociações, seguida

pelo período em que as negociações resultam em um acordo formal, e, por fim, o

estágio de implementação do acordo. Atenção especial será dada à etapa

subseqüente à assinatura dos acordos e, em particular, a dois relevantes fatores

domésticos que podem ter impactos sobre a implementação dos mesmos: a

capacidade de as partes negociadoras implementarem os acordos por meio de suas

instituições; e uma avaliação de grupos domésticos, colocando restrições à sua

liderança no âmbito de negociações para a paz. Conforme a seção precedente

mostrou, esses dois fatores foram destacados por Stephan Stedman (2000; 2001;

2002) como elementos capazes de afetar, significativamente, a evolução de

acordos internacionais.

Entretanto, a literatura de resolução de conflitos internacionais é

analiticamente deficiente quanto a essas questões. A revisão bibliográfica revelou

que, por um lado, os estudos dessa área avaliam a efetividade das práticas de

resolução de conflitos, mas se limitam a uma apresentação de evidências

empíricas e de proposições gerais (Reimann, 2000). Dentro dessa ordem de idéias,

vale citar, como exemplos, os livros de Roger Fisher e William Ury (1981)53 e

John Burton (1987)54, que constituem meros manuais e receituários, instruindo o

modo pelo qual as técnicas de resolução de conflitos podem ser bem-sucedidas.

Há, ainda, trabalhos acentuando a necessidade de a resolução de conflitos

fundamentar-se em projetos normativos e emancipatórios (Richmond, 2001). Por

outro lado, é comum, nessa literatura, ver trabalhos concentrando-se nas decisões

estratégicas e no comportamento racional dos atores, buscando, assim,

53 Getting to yes: how to negotiate without giving in. 54 Resolving deep-rooted conflicts: a handbook.

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compreender quando e por que mecanismos pode-se reduzir a violência ou como a

polarização entre as partes pode se tornar uma interação positiva (Wallensteen,

2002).

Isto posto, buscando cobrir algumas lacunas dessa literatura, os seguintes

eixos analíticos nortearão as discussões presentes nos próximos capítulos. O

primeiro diz respeito a fatores estruturais definidos pelo processo de paz, vale

dizer, os condicionantes delineados pelas negociações e acordos. Quanto aos

demais eixos analíticos, um se refere ao exame das características dos atores

envolvidos e sua capacidade para implementar os acordos; o outro dirige-se a

aspectos da arena doméstica, tais como as preferências e os posicionamentos de

grupos locais quanto à agenda do processo de paz, bem como em relação aos

desdobramentos desse último sobre a sociedade palestina. Essas dimensões serão

fundamentadas nos referenciais teórico-conceituais que se seguem.

O histórico que antecede o “Processo de Oslo”, o retrospecto das

negociações israelense-palestinas entre (1993 e 2004) e a avaliação do conteúdo

dos acordos, apresentados no terceiro e quarto capítulos, indicam alguns dos

condicionantes à evolução do processo de paz. Essa parte do estudo contemplando

uma descrição dos fatos mais importantes relacionados à resolução do conflito,

trata-se de uma contextualização necessária para a análise feita nos capítulos cinco

e seis. A discussão ali empreendida é importante para mostrar em que medida a

estrutura criada para a resolução de um conflito é capaz de afetar a

institucionalização de um dos atores envolvidos e sua capacidade para

implementar os acordos de paz.

Nesse sentido, para nortear a discussão em torno do primeiro eixo de

análise, a linha argumentativa a fundamentar essa ordem de idéias segue uma

abordagem institucionalista sobre a noção de trajetória dependente (Krasner,

1988; North, 1990). Em outras palavras, as opções disponíveis aos decisores

políticos, no presente, variam em função das capacidades institucionais

disponíveis e que foram constituídas em um momento anterior. E, nessa direção,

arranjos institucionais podem ser mantidos, ao longo do tempo, mesmo quando se

apresentam ineficientes.

Parte-se, assim, do pressuposto de que decisões pretéritas, no âmbito do

processo de paz, restringem as escolhas futuras dos atores participando da

resolução de um conflito. Ademais, adota-se a premissa de que as preferências e

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capacidades dos atores passam a ser condicionadas pelas estruturas institucionais

estabelecidas. Essa perspectiva permite cobrir uma lacuna da literatura sobre

resolução de conflitos que não apresenta uma análise mais fina sobre a fase em

que se operacionaliza esse processo.

O segundo eixo analítico também vincula a implementação de acordos ao

contexto institucional em que se inserem as partes em conflito. Contudo, o foco da

análise reside na institucionalização de um dos atores envolvidos no processo de

paz aqui examinado. O desenvolvimento dessa argumentação estará baseado em

duas categorias analíticas de Samuel Huntington (1965; 1971). Para esse autor, o

grau de institucionalização de uma entidade política pode ser medido em termos

de adaptabilidade, complexidade, autonomia e coesão das organizações e

procedimentos de um sistema político. Essa sua discussão concentra-se não no

tipo de regime político, mas na efetividade de um governo e na capacidade de suas

instituições atenderem as demandas sociais. Em síntese, Huntington identifica a

institucionalização como uma precondição para a estabilidade política e o

desenvolvimento.

Para os objetivos deste estudo, serão utilizadas as duas últimas categorias:

autonomia e coesão. Adaptabilidade e complexidade não serão aqui empregadas

porque envolvem uma dimensão temporal – o desenvolvimento histórico e a

evolução cronológica das instituições que integram o governo - que não se aplica

neste estudo dado o curto período de existência do ator avaliado. Cabe notar que

essas medidas de institucionalização foram aplicadas pelo autor em sua avaliação

sobre a estabilidade política em países em desenvolvimento. O interesse nesta

tese, no entanto, limita-se a examinar o grau de institucionalização da Autoridade

Palestina por meio dessas dimensões, deixando, para um outro estudo, uma

apreciação sobre a estabilidade política do sistema político que vem se

desenvolvendo na Faixa de Gaza e na Cisjordânia desde 1994.

Para Huntington (1971, p. 20), a autonomia refere-se à capacidade de uma

organização existir independentemente de outras, o que implica, pois, a sua

capacidade de sobrepor-se aos interesses de grupos sociais. Dessa forma, o grau

de institucionalização será alto quanto maior for o nível de independência entre as

organizações, e que estas não sejam meras expressões dos interesses de

determinados agrupamentos sociais. No que concerne ao fator coesão, também é

muito significativo: quanto mais coesa e unida uma organização, mais

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institucionalizada ela se apresenta e menos vulnerável encontra-se diante de

influências não-políticas dentro de sua comunidade (Huntington, 1971, p. 22). As

duas dimensões relacionam-se, pois, às influências externas e à vulnerabilidade.

Com base nesses princípios, Huntington conclui que uma sociedade com

instituições débeis tem dificuldades para impedir que interesses pessoais e de

grupos se sobreponham aos interesses coletivos (1965, p. 411).

Como postula Huntington, a institucionalização de uma entidade política

associa-se à sua capacidade de governar. Esta deve ser entendida como a

capacidade de um governo formular e implementar estratégias que proporcionem

alcançar os objetivos econômicos e sociais de sua sociedade. Trata-se, portanto,

de suas capacidades em termos institucionais, técnicos, administrativos e políticos

(Kjær et al., 2002, p. 7; Grindel, 1996, p. 8-9). Essa dimensão pode ser observada

por meio de uma avaliação de índices sobre o desenvolvimento econômico e da

capacidade de um governo para gerar receitas (Kjær et al., 2002).

Ainda sobre o contexto institucional, vale citar Huntington: “(...) without

strong political institutions, society lacks the means to define and to realize its

common interests. The capacity to create political institutions is the capacity to

create public interests”55. Em sociedades com essas características, diz o autor, a

autoridade geralmente recai em líderes carismáticos que buscam promover o

desenvolvimento institucional, desempenhando o papel de “Founding Father”

(1965, p. 423). Prosseguindo sobre esse ponto, observa o autor que:

“The existence of political institutions (…) capable of giving substance to

public interests distinguishes politically developed societies from undeveloped

ones. A government with a low level of institutionalization is not just a weak

government; it is also a bad government. The function of government is to

govern. (…)”. (Huntington, 1971, p. 28).

Embora Huntington destaque o papel da autoridade política no

desenvolvimento das instituições, não avalia um aspecto relevante sobre essa

questão. Trata-se de examinar como a autoridade instituída adquire legitimidade

para governar. Segundo Leslie Lipson, há uma estreita ligação entre autoridade e

poder:

55 HUNTINGTON, 1971, p. 24.

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“(...) o que estabelece a distinção entre autoridade e poder é o fato de a primeira consistir no poder reconhecido como válido. Por conseguinte, seu exercício é sancionado pelos que aprovam determinados atos e seus agentes, sendo tolerado por aqueles que o desaprovam. Em face do poder, pode o cidadão escolher entre dar-lhe apoio ou a ele se opor. Ante a autoridade, a obediência é um dever. Se é legítima a resistência ao poder, a resistência à autoridade é ilegal. A autoridade é o poder revestido das roupagens da legitimidade.” (Lipson, 1967, p.104).

No que diz respeito à legitimidade da autoridade, Lipson destaca que:

“A fonte da autoridade é a massa de que se compõe a comunidade, a qual deve ser considerada como formada de concidadãos e nunca de súditos. Eles é que conferem o poder, fiscalizam-lhe o emprego e podem retirá-lo. A autoridade não consiste em algo imposto por alguns sobre o grande número dos demais. É o que muitos delegam, temporariamente, a uns poucos.” (Lipson, 1967, p. 259).

Portanto, essa noção acima distingue-se da premissa de Max Weber (1979;

1994) de que a relação entre comando e obediência fundamenta-se na crença na

legitimidade das ordens dos governantes de acordo com as posições sociais

reconhecidas intersubjetivamente.

Pode-se dizer que a argumentação de Niklas Luhmann (1980) aproxima-se

dos pressupostos de Lipson, ao propor que sejam observados os mecanismos

sociais que legitimam as decisões da autoridade política. Para o autor, a

legitimidade da autoridade resulta, sobretudo, de procedimentos legislativos,

judiciários e de eleições. Nas palavras de Luhmann:

“A legitimidade depende, assim, não do reconhecimento ‘voluntário’, da convicção de responsabilidade pessoal, mas sim, pelo contrário, dum clima social que institucionaliza como evidência o reconhecimento das opções obrigatórias e que as encara, não como conseqüências duma decisão pessoal, mas sim como resultados do crédito da decisão oficial.” (Luhmann, 1980, p. 34).

Fundamentando-se em Luhmann e Lipson, pode-se concluir que a

legitimidade vincula-se aos processos sociais que institucionalizam a validade das

ações da autoridade política. Ainda sobre esse ponto, vale fazer referência a G.

Hossein Razi, para quem legitimidade diz respeito, por um lado, a um conjunto de

normas e valores políticos compartilhados capazes de tornar um sistema político

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possível (Razi, 1990, p. 70)56. Por outro lado, o termo diz respeito à percepção,

por parte de uma relevante parcela de uma dada sociedade, de que o regime

comporta-se, ou não, conforme ditas normas e valores (Razi, 1987, p. 461-62).

Ainda segundo sua argumentação, a satisfação quanto às ações governamentais

nas áreas de identidade, participação, igualdade e soberania é fundamental para a

legitimidade do regime e, por conseguinte, a estabilidade da ordem pública.

Ainda consoante Razi (1987), elementos motivadores de instabilidade e

revolução tornam-se significativos quando colocados no contexto de privação

relativa, participação política limitada e desigualdade. Fundamentando-se em Karl

W. Deutsch57, para quem o termo legitimidade aproxima-se de justiça, Razi

salienta que uma população percebe seu governo como justo ou não, legítimo ou

ilegítimo, não somente pelo modo como alcançou o poder, mas sobretudo por suas

ações. Ou seja, o autor chama a atenção para a compatibilização de ações políticas

com a configuração de valores prevalecentes em uma dada comunidade. E ainda,

fazendo referência a Dankwart A. Rustow58, que destaca a importância da

legitimidade para a estabilidade política, lembra Razi, que a manutenção do

regime relaciona-se ao somatório: legitimidade das instituições e legitimidade dos

governantes. Legitimidade, pois, deve ser considerada em termos da avaliação que

uma dada população faz a respeito do regime político ao qual se submete, assim

como ao seu relacionamento com sua respectiva liderança.

Quanto à terceira dimensão analítica a nortear o exame do caso aqui

proposto, diz respeito às preferências de atores domésticos no âmbito de acordos

de paz. Conforme foi apresentado na revisão da bibliografia sobre resolução de

conflitos, há autores destacando a relevância de se considerar a sociedade como o

nível de análise, além de associarem variáveis domésticas à evolução de um

processo de paz. Há que se observar, contudo, a existência de lacunas nessa

literatura no que tange a aspectos da arena doméstica.

56 No entanto, vale sublinhar que embora legitimidade derive de crenças compartilhadas, o consenso em torno delas desenvolve-se gradualmente, além de que nem todos os membros de uma dada comunidade se identificarão com as normas e valores sobre governança. Alguns deles sequer se esforçarão ou se interessarão pela defesa de seu regime. Ver DIAMOND, Larry e LIPSET, Seymor Martim (1995), The Encyclopedia of democracy. Routledge, London. Verbete “Legitimidade”, vol. III, p.747-751. 57 DEUTSCH, Karl W., Politics and Government, 3rd ed., Boston: Hooghton Mifflin, 1980, p. 15, In: RAZI (1987, p. 461; 1990, p. 70-71). 58 RUSTOW, Dankwart A. A world of nations: problems of political modernization. Washington, D.C., Brookings Institutions, 1967, p. 35-71. In: RAZI (1987, p. 460-461).

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Assim sendo, embora essas abordagens tenham o mérito de destacar a

importância de fatores domésticos para uma bem-sucedida proposta de resolução

para um conflito, limitam-se a fazer prescrições a respeito do comportamento dos

atores para que as situações de barganha sejam consideradas efetivas, sem

examinarem, contudo, os mecanismos institucionais relevantes na fase seguinte

aos acordos. Os trabalhos de Edward Azar e John Burton ilustram essa

perspectiva analítica ao sugerirem que a resolução de conflitos depende da

superação do problema de necessidades básicas não atendidas, mas suas análises

não indicam por que meios esse processo pode ser operacionalizado.

Cabe notar, por conseguinte, que apesar de alguns estudos reconhecerem

que a preferência dos atores e as instituições políticas domésticas tenham

impactos sobre o progresso da resolução de um conflito, não indicam como essas

correlações se procedem. Poucos são os trabalhos comprovando empiricamente

seus modelos ou que evidenciam uma conexão entre uma negociação

internacional e elementos da arena doméstica do negociador. Nessa direção,

dentre os autores que se destacam por sua contribuição para essa área de estudos

estão Barbara Walter (2002), Stephan Stedman, Donald Rothchild e Elizabeth

Cousens (2002), além de Hebert Kelman (1999), cujos pressupostos centrais

foram apresentados nas seções precedentes.

Outra perspectiva analítica, nesse sentido, vem sendo desenvolvida na

disciplina de Relações Internacionais desde fins dos anos 80. Diz respeito a

estudos relacionando o resultado de uma negociação internacional com fatores

domésticos. Embora essa abordagem concentre-se em casos de cooperação

econômica e na área da segurança, constitui uma referência obrigatória para se

compreender os efeitos de divisões domésticas sobre uma negociação

internacional. Nesse sentido, a literatura sobre conflitos internacionais, mesmo

para casos prolongados e aparentemente insolúveis, poderia avançar em sua

capacidade explicativa se incorporasse categorias análiticas dessa perspectiva

sobre negociação internacional, que leva em consideração a estrutura de

preferências dos atores e instituições domésticas como fatores com impactos sobre

a cooperação no plano internacional.

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Essas questões foram objeto de uma nova linha argumentativa inaugurada

por Robert Putnam59 em fins dos anos 80. Sua proposta baseia-se na metáfora do

“jogo de dois níveis”, em que se explica o insucesso da realização de acordos

internacionais devido a restrições domésticas sobre as decisões de seu respectivo

governo. Em outras palavras, no nível nacional, atores pressionarão seu governo

para que sejam adotadas medidas que lhes sejam favoráveis. Dessa forma, o

governo estará restringido por um lado pela necessidade de atender demandas

domésticas e obter suficiente apoio às suas decisões; simultaneamente, por outro

lado, buscará minimizar a possibilidade de fatores na arena externa causarem

resultados adversos. Sugere, portanto, o autor que a cooperação internacional

pode avançar ou se limitar conforme o poder de veto ou o apoio de atores

domésticos às decisões sobre acordos internacionais. Assim sendo, a ratificação

de um acordo internacional pode ocorrer formalmente como, por exemplo, por

meio de uma aprovação do Parlamento, ou informalmente, por meio do apoio da

opinião pública, sindicatos e outros grupos sociais. Essas questões apontadas pelo

autor são fundamentais, portanto, para se compreender a interação entre uma

autoridade política e grupos de sua arena doméstica após a assinatura de acordos

internacionais. Ademais, cabe ressaltar que essa temática tem sido pouco

explorada pela literatura de resolução de conflitos internacionais.

Assim sendo, é importante notar que, na fase posterior a um acordo

firmado, os líderes negociadores terão de enfrentar os dilemas na arena interna,

tais como as insatisfações e frustrações de grupos sociais, ou, ainda, a

possibilidade de perderem o apoio político de membros de sua própria

comunidade. Seguindo uma linha analítica voltada para o plano doméstico de uma

das partes participando da resolução de um conflito, o estudo pretende mostrar

que a interação da autoridade política com sua sociedade tem impactos sobre a

evolução desse processo. Cabe sublinhar que, por um lado, recursos materiais e

financeiros limitados comprometem a capacidade governativa das partes

59 PUTNAM, R. Diplomacy and Domestic Politics: The Logic of Two-Level Games, International Organization 42, 1988, p. 427-60. Esse estudo afigura-se como fonte de inspiração para outros trabalhos voltados para a integração das arenas interna e externa em processos de negociação internacional. Alguns analistas contribuíram de forma bastante relevante para o tratamento dessa temática com a publicação do livro Double-Edged Diplomacy: International

Bargaining and Domestic Politics (1993), em que se aplica o modelo dos “jogos de dois níveis” ao estudo de casos de cooperação internacional. Helen Milner (1997) também se dedica a uma abordagem semelhante (Interests, Institutions and Information).

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envolvidas em um acordo internacional, no suprimento das necessidades básicas e

de bens públicos para suas respectivas comunidades. Pode-se dizer, ainda, que

essas limitações de uma das partes negociadoras constituem fatores capazes de

condicionar sua participação no cumprimento dos acordos.

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