1_a psi do trabalho na fran- ¦ça

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DEBATE

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Conferência na UFF

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  • DEBATE

  • A PSICOLOGIA DO TRABALHO NA FRANA E A PERSPECTIVA DA CLNICA DA ATIVIDADE

    Yves Clot+

    APRESENTAO

    Apresentamos, a seguir, a conferncia proferida pelo professor Yves Clot, no dia 18 de setembro de 2007, durante evento realizado na Universidade Federal Fluminense, no Instituto de Cincias Humanas e Filosofi a. O conferencista tratou da emergncia da clnica da atividade, considerando a histria da psicologia do trabalho na Frana. A traduo foi feita por Neide Ruffeil1 e Claudia Osrio2. Agradecemos a Dcio Rocha3 a reviso do texto fi nal.

    Palavras-chave: Psicologia do Trabalho; clnica da atividade; atividade; subjetividade.

    WORK PSYCHOLOGY IN FRANCE AND THE ACTIVITY CLINIC POINT OF VIEW

    PRESENTATION

    The text below is the conference given by Prof. Yves Clot on September 18, 2007. This conference was presented at the Fluminense Federal University, at the Human Sciences and Philosophy Institute. It focused on the appearance of activity clinic, in the fi eld of work psychology in France. Neide Ruffeil and Claudia Osorio translated the conference from French to Portuguese. We thank Dcio Rocha for the fi nal revision.

    Keywords: work psychology; activity clinic; activity; subjectivity.

    + Titular de psicologia do trabalho no CNAM (Conservatoire National des Arts et Mtiers), diretor do CRTD (Centre de Recherche Travail et Dveloppement).E-mail: [email protected]

    1 Psicloga. Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atualmente professora titular adjunta na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro no Departamento de Educao e Sociedade.

    2 Psicloga. Doutora em Sade Pblica pela Fundao Oswaldo Cruz. Atualmente professor adjunto da Universidade Federal Fluminense.

    3 Doutor em Lingstica Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Atualmente professor adjunto de Lingustica e Francs da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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    Yves Clot

    A CONFERNCIA

    A conferncia que eu previ fazer hoje uma conferncia cujo ttulo A psicologia do trabalho a tradio francfona em psicologia do trabalho e o que pode trazer a esse quadro aquilo que busco fazer hoje, a clnica da atividade.

    Eu gostaria de dizer que ampliei um pouco a questo. Eu trato, evidentemen-te, da psicologia do trabalho e, mais largamente, abordo a questo da ergonomia, pois considero que a ergonomia faz parte da anlise do trabalho, e mesmo da anli-se psicolgica do trabalho. Em todo o caso, na Frana assim. Portanto, tentarei dar um lugar, um lugar que para mim importante, ergonomia, nesta conferncia.

    Esta conferncia tem como objetivo, se eu posso dizer assim, tentar expor as iniciativas e os problemas que encontraram trs geraes de analistas do tra-balho na Frana e no mundo francofnico. Tentarei traar brevemente a histria de trs geraes de psiclogos do trabalho francofnicos, e demonstrar, do meu ponto de vista, modesto, o lugar que eu tento ocupar nessa histria, o que fao do trabalho que foi feito por trs geraes. Minha maneira de l-la, compreend-la, prolong-la. Minha prpria maneira de respeitar essa herana.

    Evidentemente, todos os homens e mulheres dos quais vou falar so para mim objeto de um grande respeito, porque so eles que me permitiram introdu-zir-me no ofcio que exero atualmente; no fundo, quando eu fao a clnica da atividade sempre pensando nos antigos, que nos deixaram uma herana que no podemos comprometer. Portanto, com grande respeito que eu vou tentar traar esse caminho da histria dessas trs geraes.

    A primeira gerao que inventou a anlise do trabalho a gerao que viveu no comeo do sculo passado, incio do sculo XX, nos anos de 1900, 1910, antes da Grande Guerra de 1914 - 1918. toda uma gerao que, de certa maneira, precedeu, na Frana pelo menos, a chegada da Organizao Cientfi ca do Trabalho, que mais conhecida com o nome de OCT ou de taylorismo. A anlise do trabalho francofnica, e mesmo o que j se chamava de Psicologia do Trabalho, precedeu a chegada do taylorismo nas fbricas, desde o comeo do sculo XX, na Frana.

    Esses primeiros psiclogos do trabalho tm diversos nomes, destacarei dois em especial, j que no poderei tratar de toda a histria aqui, no tenho tempo para isso. O que me d, particularmente, prazer que entre eles h uma mulher, o que muito raro em nossa disciplina. Essa mulher contribuiu muito, foi muito mais importante do que aparece na histria ofi cial, eu gostaria de lhe render homenagem, essa mulher se chama Suzanne Pacaud.

    O segundo grande psiclogo do trabalho, precursor, se podemos dizer as-sim, foi o chefe de Suzanne Pacaud. Evidentemente o chefe do laboratrio era um homem, com quem ela trabalhou muito. Ele se chama Jean Maurice Lahy.

    Esses dois psiclogos do trabalho, que comearam a trabalhar nos anos 1910, do sculo XX, inventaram o que podemos chamar de psicotcnica do tra-balho. Tentarei dizer, em poucas palavras, em que essa psicotcnica era revolu-

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    A psicologia do trabalho na Frana e a perspectiva da clnica da atividade

    cionria para a poca. Ela era revolucionria porque, vejam, eles eram psiclogos de laboratrio, eram psiclogos normais, fechados em laboratrios, mas, ao mesmo tempo, tinham preocupaes sociais muito fortes, eram humanistas, pes-soas que estavam preocupadas em posicionar o homem no centro do mecanismo de desenvolvimento econmico. Ento eles eram humanistas. E esses psiclogos, que estavam fechados em laboratrios, decidiram que o melhor laboratrio para compreender o homem, e em particular o comportamento humano, o melhor la-boratrio era, ainda, a indstria. A indstria em plena transformao, no incio do sculo XX, com a Revoluo Industrial, no momento em que milhes de cam-poneses chegavam s indstrias e se confrontavam com as condies de trabalho difceis, multiplicando-se os acidentes, os problemas de sade e, certamente, os problemas de qualifi cao. Portanto, foram psiclogos que decidiram sair do la-boratrio, para se situarem no interior das fbricas e a compreender o comporta-mento do homem em situao.

    Como diramos hoje, a psicologia do trabalho , de incio, uma psicologia situada, uma psicologia da ao situada. O que de alguma forma um paradoxo. A ao situada no foi inventada nos anos 1970 nos Estados Unidos. De certa manei-ra, ela existia no incio do sculo XX, na Frana, com os psiclogos do trabalho.

    E o que fi zeram esses psiclogos, sados do laboratrio, nas fbricas?Isso muito interessante, eu no tenho tempo para desenvolver muito, mas

    eu gostaria de dizer duas coisas. A primeira que eles foram, de incio, sensveis ao fato de que a atividade humana no , jamais, conforme aquilo que foi pre-visto para ela, e o que, de uma certa forma, vamos reencontrar depois, o traba-lho real, no , jamais completamente, a projeo do trabalho prescrito. Eu diria mesmo que eles foram um pouco alm disso... Eu tive a felicidade de encontrar recentemente, sob a pena de Suzanne Pacaud, a bela frase que cito: O homem no se manifesta somente naquilo que ele faz, mas, frequentemente e, sobretudo, naquilo que ele no faz. Vejam que esses primeiros psiclogos do trabalho j ha-viam compreendido que toda a atividade humana no diretamente observvel. Eles haviam compreendido que, no fundo, o homem ultrapassa sempre a tarefa que lhe confi ada. Ento, esses psiclogos do trabalho, humanistas, tomaram em toda a sua importncia o fato que como dir Friedman mais tarde O homem sempre maior do que a sua tarefa. E essa primeira experincia, que verdadeiramente fundadora da psicotcnica do trabalho de lngua francesa, se o podemos dizer, devemos associ-la a um segundo dado, sobre o qual eu vou in-sistir: que temos a pessoas que empregaram mtodos de observao do trabalho totalmente originais, um pouco particulares, e, literalmente, abandonados hoje. Pensavam que para compreender o trabalho de outrem seria necessrio faz-lo. Portanto, Suzanne Pacaud e Jean Maurice Lahy foram pessoas que trabalharam com condutores de trem, e tambm com telefonistas, assim como tambm com trabalhadores de diversos outros ofcios.

    Cada vez eles usaram um mtodo um tanto particular, que consistia em assumir o posto de trabalho e fazer um estgio de seis meses, no qual eles prati-cavam o ofcio dos assalariados que eles observavam. Eles inventaram, tambm,

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    Yves Clot

    mtodos que foram em seguida, abandonados, mas que, pessoalmente, eu reen-contrei fazendo a histria. Infelizmente, preciso fazer arqueologia para encon-trar tudo isso eles utilizaram mtodos interessantes, chamados por Suzanne Pacaud de auto-observao confrontada observao de outros.

    Os senhores compreendero, ao fi nal de minha exposio, o quanto isso pra mim muito caro porque, de certa maneira, reencontrei preocupaes que eu achava ter descoberto nos anos 1980. Ao fi nal das contas temos de ser modes-tos e reconhecer que o que s vezes acreditamos ter inventado, foi muitas vezes precedido por iniciativas de outrem, ainda que tais iniciativas no tenham sido sustentadas em seguida.

    Isso quer dizer o qu? Que Suzanne Pacaud ocupava, primeiramente, o posto de trabalho a ela ensinado e, em seguida, ela pedia s operadoras, em par-ticular s telefonistas, que criticassem a sua prpria atividade durante o trabalho. Dessa maneira, ela de certa maneira, tornou o trabalho visvel. Evidentemente, ela no era muito boa telefonista, pois que no era seu ofcio, portanto cometia erros. Como havia muitas coisas que ela no conseguia fazer, ela pedia a outra telefonista, ou profi ssional, para dizer o que no estava bem na sua atividade. Era o meio que ela havia encontrado, a janela de acesso que lhe permitia chegar a atividade pela crtica de sua prpria atividade.

    Isso ela refl etia por volta de 1915-1920, na poca da Primeira Guerra Mundial. No comeo do sculo XX, eles faziam isso. A ideia era tentar apreender o que se denominava aptides dos trabalhadores, o que hoje chamaramos de competncias. Eles tentaram, de certo modo, descrever o trabalho por uma for-ma de observao centrada no prprio trabalho. Estamos longe de fazer anlise do trabalho assim, eu no quero dizer que deva ser feito dessa forma, mas ns esquecemos que muitos o fi zeram.

    Infelizmente, infelizmente! essa psicotcnica do trabalho pegou um caminho errado, comeou bem e terminou mal. Para aqueles que conhecem um pouco a histria da anlise do trabalho, mas no forosamente, pode ser da psico-tcnica, imagino que jamais tenham ouvido falar da psicotcnica da forma como acabo de descrever, o que normal, porque a psicotcnica no isso. A psicotc-nica do trabalho se desviou, pode-se dizer que ela foi subvertida psicotcnica da aptido, ou seja, do teste. Tornou-se algo diverso, virou a adequao da pessoa em funo do posto de trabalho.

    Temos, ento, uma trajetria da psicotcnica que comea pela anlise do trabalho, que inventa a tcnica da anlise do trabalho, vem a ser, pouco a pouco, aquilo que ela ser aps a Segunda Guerra Mundial, um instrumento da gesto da mo-de-obra. Aps uma crtica do taylorismo porque isso comeou assim, por uma crtica do taylorismo a psicotcnica tornou-se, na Frana, aps a Segunda Guerra Mundial, um dos instrumentos maiores de generalizao do taylorismo. Portanto, essa uma lio para jamais esquecer, comea-se pela inovao e pode-se terminar a servio do sistema econmico no qual ns vivemos.

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    A psicologia do trabalho na Frana e a perspectiva da clnica da atividade

    Quero dizer que essa uma refl exo que frequentemente fao sobre a minha prpria atividade. H muitos riscos na histria quando se pretende inovar. A clnica do trabalho que ns tentamos fazer no est a salvo desse processo de desvio de seu curso.

    Essa psicotcnica se perdeu de seu curso inicial. Por que ela se perdeu? Porque fi nalmente ela pensou que havia uma adequao, um cruzamento entre as aptides passveis de serem encontradas nos trabalhadores e a defi nio das ne-cessidades do posto de trabalho; Pensar essa coincidncia fez dela um instrumen-to de seleo, com um argumento democrtico, pois, segundo esse argumento, era melhor selecionar as pessoas por suas aptides do que pelas diferenas de origem social. Encontramos, assim, a noo de aptido, a pedra fi losofal da seleo feita de maneira justa. Portanto, a psicotcnica tornou-se um instrumento de seleo e ela acabou, como dizia Suzanne Pacaud, na testomania.

    Esta psicotcnica, que escolhi como exemplo da primeira gerao, que termina mal, nos leva a fazer um diagnstico fundamental. necessrio fazer um diagnstico do porqu de no ter dado certo. Esse desvio ocorreu porque essa psicotcnica do trabalho fundamentalmente positivista. Quer dizer, ela parte do princpio de que segundo a frmula de Auguste Comte, o pai do po-sitivismo a srie que devemos seguir a seguinte: saber para prever a fi m de agir. A ao est no fi nal, primeiro preciso saber. A anlise desses psicotcni-cos pretendia, inicialmente, descrever e categorizar a atividade, para, em segui-da, favorecer o processo de seleo. Portanto, primeiro saber, para em seguida poder prever, para, depois de prever, agir. Aqueles que agem so sempre os conceptores, organizadores, recrutadores. Os selecionados no so sujeitos da ao, so objeto da seleo. E, paradoxalmente, esta psicotcnica que colocou o saber em posio dominante uma psicologia do trabalho que se perdeu porque ela se voltou contra os trabalhadores, ainda que tenha partido no comeo de uma psicologia do trabalhador. Essa foi a primeira gerao.

    A segunda gerao, evidentemente, se volta contra esta deriva da psicotc-nica. Ela quis retomar o problema do zero, ela criticou a psicotcnica, e penso que fez bem. A psicotcnica que ela criticou a psicotcnica do teste, a psicotc-nica da seleo, a psicotcnica tayloriana. E a crtica a Taylor verdadeiramente necessria. Infelizmente, como freqente na histria das cincias, ao criticar, esquecemos o incio e, de certa maneira, talvez respeitemos de modo insufi ciente o trabalho inicial dos psicotcnicos.

    Eu vou tentar, inicialmente, descrever essa crtica da psicotcnica pela gerao seguinte. Na gerao seguinte h trs grandes correntes de crtica psicotcnica. Correntes que a gente conhece muito bem, correntes que a gente no conhece bem.

    Abordarei trs frentes cientfi cas de combate que se opem psicotcnica. A primeira, depois da Segunda Guerra Mundial, no apogeu da taylorizao na Frana, no momento mesmo em que a psicotcnica se tornou um grande perigo para quem quer fazer psicologia, quando vemos a pessoa sujeita aos resultados de

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    Yves Clot

    exames, e o desaparecimento da anlise do trabalho. A psicotcnica fez desapa-recer a anlise do trabalho, a situao de trabalho desapareceu, normal que haja uma crtica da primeira gerao.

    H trs crticas fundamentais, trs correntes fundamentais. Eu chamaria a psicologia cognitiva do trabalho em primeiro lugar, na qual apareceram grandes nomes da psicologia do trabalho francesa, um dos quais est aindo vivo, eu vou escrever esses nomes: Faverge e, em seguida, Leplat, que tem hoje 88 anos, e quem eu ainda vejo regularmente, no prdio da Gay de Lussac4 onde eu trabalho. A psicologia cognitiva do trabalho uma psicologia extremamente importante. Eu mesmo j a critiquei, mas ela extremamente importante. Ela , antes de tudo, uma crtica psicotcnica. Faverge faz duras crticas contra a psicotcnica, por volta de 1955, que o ponto de partida da anlise do trabalho francfona; tem um livro intitulado A anlise do trabalho no qual h muitas coisas. Faverge enfrenta os psicotcnicos do trabalho dizendo que o mundo no funciona assim, que as aptides no esto na cabea do sujeito, onde se tem a pretenso de busc-las com testes. As aptides esto na situao mesma do trabalho. necessrio voltar situao do trabalho necessrio romper a coincidncia entre as aptides e a situao, necessrio voltar situao, porque na situao que vamos encontrar a raiz dos recursos do desenvolvimento das aptides. As aptides no esto de incio no sujeito, mas esto nos problemas postos pela situao. o que faz com que, quando se emprega algum, diz Faverge, quando se emprega algum em um posto de trabalho, no se pode absolutamente prever como ele vai trabalhar, porque esse sujeito na situao vai ser obrigado a reinventar as aptides que ele no tem, ele vai encontrar nas situaes razes para criar uma nova competncia, novas aptides, como se dizia poca.

    Portanto, diz Faverge, a anlise do trabalho entra com as aptides, mas ela deve retornar situao, pois na situao que se encontram as razes da compe-tncia. D-se, neste momento, a inveno da famosa distino, no plano concei-tual, entre a tarefa e atividade. A tarefa e a atividade. H uma defi nio que eu vou criticar, mas que uma defi nio fundadora.

    A tarefa o que est por se fazer; como esses psiclogos, Faverge e Le-plat, so gente de campo (emprico) eles entenderam que entre o que h a ser feito e aquilo que se faz realmente para chegar aquilo que se quer fazer, h um mundo. necessrio pensar a atividade. Ns estamos aqui em 1955, a primeira vez que se faz essa distino.

    Mas vamos mais longe nessa psicologia cognitiva do trabalho. Vamos mes-mo um pouco alm, porque vamos dizer que necessrio nos colocarmos no ponto de vista do sujeito, e o sujeito no estoque de aptides, o sujeito um sistema de tratamento das informaes, portanto vemos bem a inspirao cognitiva das coi-sas. uma das primeiras vezes em que se usa a metfora do computador para pen-sar o sujeito humano, o sujeito humano como um sistema de captar informaes.

    4 Refere-se ao prdio onde se localiza o Conservatoire National des Arts et Mtiers (CNAM), em Paris.

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    A psicologia do trabalho na Frana e a perspectiva da clnica da atividade

    Isso muito interessante porque, de certa maneira, como diria, isso iden-tifi ca o sujeito como sendo a fonte de uma espcie de criao. um sistema de tratamento da informao, no h somente aptido, h sujeito. Isso muito im-portante e, ao mesmo tempo, limitado. Esta ideia de considerar o ser humano como um sistema de tratamento da informao, com a metfora da informtica que est por trs disso, traz um efeito, um inconveniente maior: o de reduzir o sujeito a um instrumento de conhecimento. Esse um sujeito epistmico, in-telectual. trazer o sujeito a um sujeito intelectual, um sujeito desencarnado, poderia mesmo dizer que essa psicologia cognitiva do trabalho desenvolve uma concepo desencarnada do sujeito. um sujeito sem corpo. Um sujeito que no se coloca problemas de sade, por exemplo, um sujeito que no afetado pelas situaes, mas um sujeito que trata as situaes.

    Bom, nessa crtica psicotcnica, esse sujeito um sujeito sobretudo de-sencarnado, um sujeito que quase um conjunto de programas. um problema maior. E, nessa mesma poca, se desenvolve a segunda grande corrente de crtica psicotcnica, essa certamente os senhores conhecem, alguns talvez at muito melhor que eu, a ergonomia.

    Em 1955, quando Faverge publica Anlise do Trabalho, o momento em que Alan Wisner est organizando, por suas iniciativas sistemticas, a ergono-mia francfona. De passagem, eu indico que isso acontecia no mesmo imvel do incio do sculo o Gay de Lussac onde me encontro ainda hoje, que se pode chamar a Meca da anlise do trabalho francofnica.

    Alan Wisner no parte da psicologia cognitiva. Alan Wisner um mdi-co. O problema de Wisner , de incio, a sade. isso que o fez ir adiante, pode-se dizer. Sua preocupao ver os trabalhadores mal tratados em sua situao de trabalho e, sobretudo, pensar como fazer de outra forma, j que no h razo para suportar o insuportvel.

    Seu compromisso, de posio social extremamente clara, o engaja no pon-to de vista do sujeito, mas o sujeito que Wisner tem em mente um trabalhador, no simplesmente um sujeito epistmico. um sujeito social, em situao de trabalho real, que sofre tambm sua condio social.

    Wisner tem um engajamento militante, social, do ponto de vista do sujeito que um trabalhador. Ele coloca o que? Ele coloca o problema da sade. Em Alan Wisner h um corpo, diferena da psicologia cognitiva do trabalho, que a primeira corrente. Evidentemente, Wisner foi um inimigo jurado da psico-tcnica e no suporta que se reduza o sujeito a um estoque de aptides, mas pensa que as aptides do trabalhador dependem da condio que se lhe oferece e da situao de trabalho que ele tem. Portanto, sua ideia que, se queremos modifi car as aptides dos trabalhadores, necessrio transformar a situao. a transformao da situao que coloca em curso o desenvolvimento das aptides. Quando queremos nos ocupar da aptido, no devemos julgar o sujeito, devemos observar a situao que produz as aptides.

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    Yves Clot

    Para Wisner, o trabalho no se faz consumindo as aptides. No traba-lho se mobilizam as aptides. O trabalho fabrica aptides, no faz somente utilizar aptides.

    Wisner vai retomar essa dupla conceitual que nos muito cara a todos. E enquanto a psicologia cognitiva do trabalho distingue tarefa e ativi-dade, Wisner vai dar preferncia a utilizar trabalho prescrito e trabalho real. Porque entre trabalho prescrito e tarefa h uma diferena. A tarefa, de certa maneira, uma coisa relativamente independente da condio social do trabalhador. O trabalho prescrito a contrainte5 social que pesa sobre o trabalho humano. O trabalho prescrito o peso da prescrio, o peso da contrainte, o peso da astrainte. tambm a diferena social entre aqueles que trabalham embaixo e aqueles que concebem o trabalho dos outros. Por que Wisner vai ento falar de trabalho prescrito e real? Ele vai falar de trabalho real porque, para Wisner, o trabalho real no simplesmente a atividade cog-nitiva. O trabalho real para Wisner a vida. Isso quer dizer, como fazer em situao de forte contrainte para continuar vivendo, mas no somente conti-nuar vivendo, mas para encontrar na situao novos meios de vida e ter prazer no trabalho? Como se pode fi nalmente agir na situao?

    Wisner se preocupa com a sade no trabalho e poderia se dizer que, para Wisner isso discutvel, mas eu sou obrigado a ir rpido para Wisner h uma coincidncia entre atividade e sade. Sade e atividade so sinnimos, porque atividade para Wisner se sentir ativo. No simplesmente fazer algu-ma coisa, se sentir ativo e isso no a mesma coisa. Sentir-se ativo sentir-se sujeito em um meio, sujeito de uma organizao, e no somente objeto de uma organizao. Portanto, sentir-se ativo precisamente diminuir o distanciamento entre isso que necessrio fazer, isso que est previsto, que te exigido pela pres-crio, e aquilo que mais que a realidade, na qual necessrio inventar meios de fazer as coisas, apesar de tudo.

    Em Wisner, um pouco da fora desse paradigma da Ergonomia francfona ao fundo, de incio, a separao entre prescrito e real e, em seguida, fazer do real a fonte da criao, da engenhosidade, da atividade e da curiosidade mesma dos trabalhadores. H uma admirao, portanto, em Wisner, pela capacidade dos trabalhadores de transformar a situao mal vivida, em situao que ele domina.

    H uma admirao da engenhosidade dos trabalhadores em situao real. Isso no a mesma coisa que a psicologia cognitiva do trabalho. Isso se passa na mesma poca, eles discutem juntos, eles brigam, e assim que a cincia avana. Mesmo se eles brigam nos corredores, e trata-se do mesmo prdio, eles trabalham juntos, eles se confrontam. Isso no a mesma coisa. De um lado tarefa-ativida-de; e de outro, trabalho real - trabalho prescrito. De um lado h o social, o cor-po; e de outro, sobretudo, o intelecto e a cognio. Para Wisner, nunca o sujeito

    5 Para o vocbulo contrainte, categoria analtica utilizada pela ergonomia francofnica, no se encontrou qualquer traduo satisfatria em portugus; pode-se traduzir por coero. A forma mais frequentemente utilizada exigncia, o que limitado, tal a riqueza do que aponta a expresso francesa. Aqui foi mantida a expresso na lngua original.

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    A psicologia do trabalho na Frana e a perspectiva da clnica da atividade

    humano pode ser comparado a um sistema de computador. Ele no um sistema de tratamento da informao. Ele um sujeito social, vivo, ativo, que trata de resolver situaes impossveis nas quais ele colocado.

    Portanto, v-se que essa segunda corrente, essa segunda gerao, nos deixa uma espcie de viso positiva do trabalho humano. O trabalho positivo, um lugar de engenhosidade, de inveno, de criao. , certamente, tambm um lu-gar de sofrimento, e isso Wisner nunca ignorou, mas um lugar onde no se fi ca passivo, um lugar de atividade, de sade, de criao de um meio, no somente de ausncia de doena.

    No temos tempo, mas poderamos comparar a concepo de atividade de Wisner com a concepo de sade de Canguilhem que penso estarem prximas, embora o prprio Wisner no tenha apontado essa proximidade.

    Bom, enfi m, fi nalizo essa segunda corrente, essa segunda gerao. Essa se-gunda corrente nos deixa uma espcie de viso positiva do trabalho humano, po-deria mesmo dizer esse encantamento com o trabalho. Alan Wisner obteve sucesso em transmitir essa herana. H necessidade, quando se vai aos lugares de trabalho, de poder se maravilhar com o que as pessoas so capazes de fazer, apesar de tudo. H alguma coisa de maravilhoso nisso. Wisner era apaixonado por essa atividade operria, mas no somente operria, era apaixonado por essa atividade.

    Ento, sabemos muito bem, e isso vai me permitir passar terceira cor-rente, sabemos muito bem que, com Wisner, h uma inteligncia da situao, h uma sensibilidade, h a inveno de uma prtica de transformao, h uma certa relao com o mundo do trabalho. H, portanto, uma criatividade prtica na inter-veno, que sua herana principal. H, mesmo, uma tomada de partido, uma to-mada de partido pelo trabalho, no pelos trabalhadores, porque ele estava atento em no misturar tudo, o sindicalismo e a anlise do trabalho. Mas uma tomada de partido pelo trabalho, porque o trabalho qualquer coisa que faz transpor o fosso entre o que exigido e a realidade da vida, a inteligncia do trabalho.

    Wisner era, sobretudo, um grande prtico da anlise do trabalho. um artista da anlise do trabalho. Ele defi niu muitas vezes a ergonomia como uma arte, um pensamento forte, e ele defi niu tambm o trabalho do engenheiro como uma arte. Eu no tenho tempo de me estender sobre isso, mas era a ergo-nomia como uma arte.

    Eu creio que o limite da herana de Allan Wisner e eu digo isso com mui-ta humildade, e tambm porque falei muito sobre isso com ele o limite que a conceitualizao da atividade, e mesmo da interveno, no estavam no centro das suas preocupaes. Eu penso que isso extremamente legtimo porque era necessrio criar a ruptura na anlise do trabalho, e, portanto, ele era sobretudo um prtico que rompeu com o modelo dominante de anlise do trabalho, mesmo em relao psicologia cognitiva.

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    Yves Clot

    Vejam bem que a psicologia cognitiva que faziam Faverge e Leplat era muito menos custosa, havia muito menos trabalho de campo e muito mais labo-ratrio, o que depois se tornou, o que chamamos hoje de psicologia ergonmica. A psicologia ergonmica de hoje a psicologia cognitiva que vem de Faverge e Leplat. E que nos deu a engenharia cognitiva de hoje.

    Wisner nos deixa, isso talvez fi nalmente sua honra, ele nos deixa um gosto de ao, ele nos deixa uma vacina contra o dogmatismo, por dizer que agir justamente partir do campo e no buscar no campo aquilo que a cincia busca, no fazer do campo um meio de fazer cincia. Para Wisner, o campo central, e vamos ao campo para resolver os problemas e utilizamos a cincia para resolver os problemas.

    A psicologia cognitiva, vejam, o inverso, ela se serve do campo como meio, enquanto a ergonomia se serve da cincia como meio para resolver os problemas do campo.

    Em essncia, essa ruptura que uma ruptura do positivismo dominante que matou a psicotcnica, por isso Wisner to importante nos deixa como herana, posso dizer que uma herana a discutir, pois se os senhores olharem as conceitualizaes da atividade por Wisner elas so, a uma s vez, magnfi cas e complexas. Por trs disso h muito trabalho para compreender isso que ele fez e como ele utilizou as conceituaes da atividade e, pode-se dizer, da vida, sem contudo ter tempo ou talvez mesmo o gosto pelo desenvolvimento dos concei-tos, ele um homem de ao. Ele era um mdico preocupado em desenvolver a sade em situao real.

    A herana terica, em termos de corpo conceitual da ergonomia francfo-na, que Wisner nos deixou uma herana que nos faz ainda trabalhar at hoje, porque no parou, aberta. Ele complicado e nos faz pensar. Portanto, devemos agradecer a Alan Wisner por no ter dito tudo. Sua herana precisamente que a ltima palavra jamais foi dita. Ns sabemos o que Wisner nos deixou como herana, o fato de que ns temos a responsabilidade de prolongar essa obra e de a reinventar porque ns a respeitamos.

    Assim, chego terceira corrente. Na mesma poca, durante os anos 1950, se passam coisas fora do Gay Lussac, o que bom, as coisas se diversifi cam um pouco. H psiquiatras que se colocam nesse trabalho. H trabalhadores, em particular condutores de trem, mas tambm trabalhadores dos correios, num mo-mento em que o taylorismo fi ca extremamente duro de suportar. H coletivos de trabalhadores que vo se dirigir a um certo tipo de psiquiatras um pouco bizarros. Psiquiatras que esto nos hospitais psiquitricos, mas que participaram durante a guerra da resistncia, fi zeram grandes experincias muito importantes na resis-tncia durante a resistncia e durante a Guerra e que saram da guerra, nos anos 1950, na Frana, com um desejo de fazer uma psiquiatria social. E h traba-lhadores que se dirigem a esse psiquiatra. Esse psiquiatra se chama, em particular, Louis Le Guillant. Louis Le Guillant o inventor da psicopatologia do trabalho que uma contribuio muito importante para a anlise do trabalho francfona, e mesmo para a psicologia do trabalho propriamente dita. um psiquiatra social,

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    A psicologia do trabalho na Frana e a perspectiva da clnica da atividade

    pode-se dizer, que fez junto com outros psiquiatras, Tosquelles em particular durante a Guerra, uma experincia interessante. Eles dirigiam hospitais psiqui-tricos, hospitais psiquitricos muito grandes e durante a guerra se encontraram confrontados a uma situao muito particular.

    Os senhores podem imaginar, durante a guerra quando mesmo aqueles que no eram loucos, pessoas como ns, tinham difi culdades para viver, mes-mo para se alimentar a situao dos hospitais psiquitricos. Acreditava-se que aqueles que estavam dentro dos hospitais psiquitricos no recebiam muita aten-o. Eram os grandes esquecidos da guerra.

    Em particular, esses psiquiatras se encontraram em uma situao de ur-gncia quando os bombardeios da Alemanha sobre a Frana se desenvolveram. Eles decidiram, para salvar os loucos dos hospitais psiquitricos em quatro ou cinco grandes hospitais franceses abrir as portas do hospital. Em lugar de ver os doentes sofrerem com as bombas, eles deram uma chance a esses doentes. Eles liberaram os loucos, como se dizia na poca, durante o bombardeio. , sem dvi-da, uma experincia extremamente importante, porque esses loucos, como se diz correntemente, se viraram bem. Eles viveram os mesmos dramas que os outros, e, de certa forma, se encontraram reintroduzidos na vida normal. Eles viveram as difi culdades coletivas da Guerra e da resistncia francesa, com os outros, no cam-po. Vejam, portanto, uma situao diferente, os loucos esto nas ruas, no campo.

    A experincia que eles fi zeram foi a liberao aps a Guerra. Muitos desses internos considerados como defi nitivamente condenados, que se acreditavam acabados no era til reintern-los. Haviam encontrado a sade nas lutas co-letivas, dividindo com os outros os dramas da histria coletiva e tinham refeito a sade, pode-se dizer, ainda que no completamente j que eles estavam muito degradados, mas em todo caso, podiam viver fora dos hospitais psiquitricos fe-chados. Para os psiquiatras isso j era uma experincia considervel.

    Como, quando a vida social era um pouco extraordinria, nessa poca no era uma vida normal, era uma vida muito diferente, era uma vida sui generis, era uma vida de resistncia coletiva como faziam esses sujeitos, tidos como in-curveis, que se encontravam em situao de reinventar sua prpria existncia, de reencontrar sua vitalidade psquica, em uma situao em que no havia cuidados psiquitricos? Eles s podiam se benefi ciar da atividade dos outros.

    Portanto, esses psiquiatras refl etiram muito, eles refl etiram muito, no que foi chamado em seguida de movimento da psiquiatria institucional, e mesmo no movimento da antipsiquiatria.

    Le Guillant, tendo conhecido experincias similares, estava muito atento funo do trabalho, pode-se dizer funo psicolgica do trabalho, a funo psquica do trabalho. Portanto, quando os trabalhadores nos anos 1950, verdadei-ramente sobrecarregados pela taylorizao, vinham solicitar-lhe um suporte na crtica condio de existncia no trabalho, Le Guillant estava muito atento aos trabalhadores e por isso que ele foi o iniciador da psicopatologia do trabalho.

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    Yves Clot

    Essa psicopatologia do trabalho, eu vou caracteriz-la muito rapidamente, por duas caractersticas. A primeira que, num sentido quase contrrio ao tra-balho de Wisner, esses psiquiatras acham que o trabalho no positivo, no um lugar de criao, no um lugar de desenvolvimento do sujeito, um lugar dramtico para o sujeito, o lugar onde o sujeito se perde.

    Dito de outra forma, esses primeiros psicopatologistas do trabalho in-troduzem o que podemos chamar a dimenso negativa do trabalho, o trabalho no apenas positivo, negativo, o trabalho faz mal, torna as pessoas doentes e loucas. E quando esses psiquiatras, que fi zeram a experincia da guerra, en-tram em contato com as situaes de trabalho poca das grandes fbricas que se desenvolvem, nas quais so contratados milhares de operrios em situaes de grande submetimento profi ssional, esses psiquiatras vo inventar essa a primeira inovao de Le Guillant a ideia, segundo a qual, h uma sndrome subjetiva da fadiga nervosa, eles so especialistas da fadiga nervosa, que mos-tra que esses sujeitos esto sobrecarregados, eles esto profundamente feridos pelas condies de trabalho.

    Isso se faz em paralelo com a Ergonomia, ao mesmo tempo, se faz tam-bm em paralelo com a psicologia cognitiva do trabalho. a mesma poca, mas no a mesma coisa. Esses psiquiatras Le Guillant, em particular vo co-mear a se interessar pela maneira pela qual os trabalhadores chegam a suportar essas situaes insuportveis.

    Le Guillant foi o primeiro, eu penso, a inventar, mesmo se ele no a concei-tuou, a ideia de sistema de defesa profi ssional. Foi ele que escreveu um dia, essa frase emprestada de Simone Weil, a fi lsofa, os trabalhadores so muitas vezes obrigados a no pensar para no sofrer, agir sem pensar para no sofrer. Isso muito interessante, porque Le Guillant identifi ca j nessa situao o que chama-remos depois sistemas de defesa. As vezes necessrio fechar os olhos, esquecer, no refl etir ao que se passa conosco para poder suportar essa situao. De certa forma se anestesiar, a anestesia psquica como meio de suportar sua condio.

    Vejam em torno do que Guillant trabalha, vejam que isso est muito longe da ergonomia, mas muito importante porque Le Guillant sublinha que o traba-lho no simplesmente uma atividade, enquanto que em Wisner h essa espcie de inveno da atividade, Le Guillant diz no, o trabalho no simplesmente uma atividade, o trabalho uma condio, trata-se de uma condio social. Quando se operrio de usina ou telefonista, no estamos somente agindo para realizar uma tarefa. Estamos submetidos a uma condio social na qual estamos colocados e na qual h alienao. Podemos dizer a psicopatologia do trabalho descobre a clnica da alienao.

    Com Le Guillant h uma segunda ideia muito forte, mais do que uma ideia, verdadeiramente uma noo, a noo de ressentimento. Ele fez um tra-balho cuja leitura aconselho, que muito fcil porque est traduzido em por-tugus, graas aos esforos de Beth Lima que um estudo de referncia, um grande clssico da anlise do trabalho, um texto que se chama As empregadas

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    A psicologia do trabalho na Frana e a perspectiva da clnica da atividade

    domsticas6. Evidentemente, os senhores me diriam, a estamos longe da fbrica, claro, estamos longe da fbrica, mas quando vemos os textos que Le Guillant es-creveu sobre a relao entre as empregadas e suas patroas, no trabalho domstico sobretudo que essas empregadas eram mulheres encontramos muitas razes, muitos instrumentos para compreender o trabalho de servio, que ns encontra-mos hoje. Le Guillant trabalhando sobre a questo das domsticas, trabalha sobre um servio, trabalha sobre a atividade profi ssional em que o objeto do trabalho algum, um sujeito, o outro.

    O estudo de Le Guillant antecipa os estudos de psicopatologia do traba-lho contemporneos que so centrados sobre o servio. Ele vai trabalhar sobre a servido. O problema da servido no trabalho das empregadas domsticas. Ele mostra como um trabalho impossvel ser empregada domstica. Como ser em-pregada domstica s pode levar a adoecer, salvo se tiver uma sade excepcional, o que no para todo mundo.

    Isso leva a adoecer por qu? Porque, de certa maneira, entra-se no espao domstico privado desse patro, ela se identifi ca com esse patro, gostaria de ser como ele e, ao mesmo tempo, ela no mais que uma coisa, ela mesmo transpa-rente para esse patro. Como diz Le Guillant, a empregada para o patro no um sujeito, no uma pessoa, um instrumento. E portanto, ele analisa com muita fi neza a relao de alienao entre a empregada domstica e seus empregadores. Ele mostra como as domsticas ruminam sua alienao, o ressentimento da raiva e do cime em relao ao patro.

    E dois, h uma identifi cao, mas uma identifi cao impossvel, j que so-cialmente impossvel; em geral ela tem raiva do outro e raiva de si. Ento h um crime passional, em particular das irms Papin, que no pode ser explicado seno por a. Le Guillant fez um grande texto sobre isso, que assinala o ressentimento, quer dizer, o re-sentimento - o sentimento sobre sentimentos. esse ressentimen-to que no fundo est na origem da doena mental.

    Vejamos aqui uma psicopatologia do trabalho que se ocupa do corpo, que se ocupa das perturbaes do esprito, que avana nas questes da sade mental e que introduz na anlise do trabalho o drama humano da anlise do trabalho.

    Eu chego ento a uma terceira gerao, eis o problema. complicado por-que temos de lidar com tudo isso. No podemos, em minha opinio, fazer triagem na herana. necessrio fazer um tratamento de conjunto dessa herana, infeliz-mente. Ento eu vou tentar insistir sobre as diferenas, eu vou tentar comparar a ergonomia e a psicopatologia do trabalho.

    A ergonomia a atividade, com toda certeza. A psicopatologia do trabalho a subjetividade, a subjetividade alienada, a subjetividade impossvel. a impossibilidade de produzir a sua subjetividade no trabalho. Vejam, atividade e subjetividade, em primeiro lugar.6 O estudo clssico sobre as empregadas domsticas, realizado por Louis Le Guillant, publicado em 1963, foi traduzido para o portugus sob o ttulo O caso das irms Papin e publicado no livro Escritos de Louis Le Guillant: da ergoterapia psicopatologia do trabalho. Petrpolis, RJ: Vozes, 2006.

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    Yves Clot

    Em segundo lugar, a ergonomia a observao, a observao em situao de trabalho. A grande inveno da ergonomia esse trabalho minucioso, meti-culoso, obsessivo. Frequentemente os ergonomistas dizem ns somos mopes porque eles no conseguem olhar de longe, eles passam seu tempo olhando de perto. A ergonomia a inveno da observao do trabalho como mtodo cardi-nal da anlise do trabalho.

    A psicopatologia do trabalho no pratica nenhuma observao. A psicopa-tologia do trabalho a escuta, a palavra, o dilogo, a troca. Portanto, poderia dizer, sendo esquemtico, a ergonomia a operao do trabalho em situao real e a ergonomia no se interessa inicialmente pela palavra. Os psicopatologistas do trabalho, ao contrrio, se interessam somente pela palavra. Eles dizem mes-mo que no necessrio fazer observao. Quando olhamos o trabalho de Le Guillant no lhe vem a ideia de entrar em uma indstria e nas situaes de traba-lho. O que ele faz falar com seus pacientes e encontrar nas palavras contorcidas que lhe chegam a signifi cao que vai poder interpretar.

    Temos a duas diferenas. De um lado, a atividade e, de outro, a palavra. Portanto, em resumo, atividade de um lado e subjetividade, de outro. Observao em situao e escuta, do outro lado.

    nesse ponto que pretendo defi nir, atendendo ao convite que me foi feito, defi nir minha prpria contribuio ao trabalho da terceira gerao. Mas pretendo faz-lo com muita modstia porque a terceira gerao numerosa, eu no sou a terceira gerao, eu fao parte dela. Eu ocupo uma cadeira de psicologia do tra-balho, eu j falei, mas no estou s, na terceira gerao. H os ergonomistas que so extremamente numerosos, to numerosos que eu no posso cit-los. H um que faz uma espcie de transio que eu no falei, que Naville, que importante. Hoje h Falzon que no a mesma coisa que Wisner. Mas eu no posso list-los.

    Na tradio da psicopatologia do trabalho, que inventou a psicodinmica do trabalho, h Cristophe Dejours, que tambm trabalha no mesmo prdio, e h mais pessoas na terceira gerao, que so vrios colegas de trabalho com quem eu penso que deveramos debater, preferencialmente. Penso em Yves Schwartz que inventou a ergologia que os senhores conhecem tambm, a quem eu devo muito pois foi l que eu me formei. H um mundo de gente na terceira gerao.

    Bem, os senhores certamente sabem que eu no falo me elegendo um re-presentante dessa terceira gerao. Eu vou fazer apenas uma coisa: falar de como eu trato de produzir um caminho nesta herana, como eu tento me apropriar dela, procurando respeit-la, o que quer dizer faz-la viver. Evidentemente, a anlise do trabalho continuar viva depois de ns, a ltima palavra no ser jamais dita, depois que eu falar, o que eu espero. Poderemos ainda dizer outras coisas e, sobretudo, eventualmente criticar o que vou dizer, assim eu posso aprender alguma coisa. E ainda uma outra coisa, para deixar tudo bem claro: a terceira gerao no est aqui representada na minha pessoa. Eu fao parte dela e trato de ocupar a minha parte.

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    A psicologia do trabalho na Frana e a perspectiva da clnica da atividade

    Ento a clnica da atividade uma espcie de ruminao, como as doms-ticas de Le Guillant, eu rumino, eu repito. Eu digo que temos de compreender essa histria e fazer alguma coisa dessa histria que nos comum, com todos os fantasmas que esto l atrs.

    Essa histria se constitui em dois problemas. A concepo da ao em situao, em particular, o problema do mtodo da ao, como agir para trans-formar o trabalho, porque o que faz a fora dessa tradio francfona do tra-balho que ela quer mudar alguma coisa no trabalho, ela quer transformar, o que nos une nessa terceira gerao. Portanto, h um problema de concepo de ao, primeiro problema.

    Em seguida, h um segundo problema que a conceituao: a atividade e a subjetividade o qu?

    Lgico, essa herana considervel, ela s vezes intimida. No meu traba-lho simplesmente quis pr a minha pedra, a minha contribuio conceituao da atividade e da subjetividade. Fazer minha parte neste trabalho comum que todos devemos fazer e tratar de ser fi el a essa herana.

    Ento eu vou tratar dessas duas questes muito rapidamente. A primeira a questo dos mtodos da ao. Na questo dos mtodos eu gostaria logo de me refe-rir a algum que conta muito para mim e eu ainda no evoquei at agora, que est muito longe da anlise do trabalho, mas por outro lado, est muito prximo. Que participou com Le Guillant dessas experincias dos hospitais psiquitricos da guer-ra, que , em seguida, o fundador do que chamamos de psicoterapia institucional, da corrente da psicoterapia institucional. Eu vou falar de Franois Tosquelles.

    Tosquelles um psiquiatra da mesma gerao que Le Guillant, que co-nheceu a mesma situao que ele, que tambm foi um dos libertadores dos hospitais psiquitricos e que tambm constatou at que ponto os doentes me-lhoravam quando confrontados com as situaes normais da vida, e como os dramas compartilhados podiam propiciar a sade mental. Ele o inventor da ergoterapia. A ergoterapia, como sem dvida os senhores sabem, a tentativa, difcil, que no conheceu somente sucesso, a tentativa difcil de fazer traba-lhar os doentes nos hospitais psiquitricos. Faz-los trabalhar para ajud-los a encontrar de novo a sua sade. A ergoterapia , portanto tentar usar, em psiquia-tria, o trabalho como terapia, a tentativa de olhar o trabalho como uma terapia. E Tosquelles aquele que foi mais longe nessa matria, mas ele o fez de uma maneira que extremamente interessante.

    Gostaria de fazer uma pequena citao de Tosquelles. Vou ler a citao. Em Tosquelles h uma defi nio de ergoterapia que realmente genial, na minha opinio, porque ela nos ensina muito sobre a estratgia de ao em meio profi s-sional. H uma defi nio de ergoterapia como um fazer as pessoas trabalharem para trat-los e Tosquelles nos diz que no isso, no isso a ergoterapia. O que a ergoterapia para Tosquelles?

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    Yves Clot

    No se trata de fazer os doentes trabalharem, para diminuir tal ou qual sin-toma. Trata-se de fazer trabalhar os doentes e o pessoal que os cuida, para cuidar (soigner) da instituio.

    Observem a inverso. Trata-se de fazer trabalhar o doente e o pessoal que os trata, para cuidar de quem? Para cuidar da instituio. Para que a instituio e o pessoal de sade captem no vivo notem a expresso aqui captem no vivo que os doentes so seres humanos sempre responsveis por aquilo que fazem, o que s pode ser colocado em evidncia na condio de fazer alguma coisa.

    Vejam, se eu retomar essa frase e transplant-la para a anlise do traba-lho, isso vai nos dar coisas muito interessantes do ponto de vista da ao. Isso signifi ca que no se trata, em matria de anlise do trabalho, de cuidar7 do tra-balhador, trata-se de, no mtodo de ao, fazer trabalhar os trabalhadores para cuidarem do trabalho.

    No cuidar das pessoas, mas cuidar do trabalho. Quando digo cuidar do trabalho, em francs, tem um duplo sentido: transformar o trabalho, mas tambm, em francs, fazer um bom trabalho, a qualidade do trabalho bem feito que uma fonte de sade. E, poderamos dizer, para que a organizao do trabalho apre-enda no vivo8 que os trabalhadores so seres humanos responsveis por aquilo que fazem, o que no fcil de ser colocado em evidncia e essa a ideia, fazer com que a organizao leve em conta que os trabalhadores so seres humanos responsveis por aquilo que fazem. Para que eles apreendam isso em toda sua im-portncia necessrio fabricar mtodos que mostrem isso, fabricar mtodos que mostrem que os trabalhadores so capazes de transformar a situao de trabalho.

    De modo que cuidar do trabalho transformar a organizao do tra-balho. Essa uma forma de abordagem de ao. Criar situaes e encontrar tcnicas nas quais se transformem os trabalhadores em sujeitos da situao, fazendo-os protagonistas da transformao. Eles que so os autores da trans-formao e no os especialistas.

    Em certo sentido, no tenho tempo de desenvolver, mas vocs podem ver o quanto essa concepo de ao retoma o que fez Ivar Oddone Itlia, nos anos 1960. Aps o Outono Quente, ele se apoiou nas iniciativas dos Conselhos de Usina, para transformar a psicologia do trabalho e transformar a questo da sade no trabalho. O que Ivar Oddone fez no foi uma nova psicologia do trabalho, mas sim uma nova maneira de fazer psicologia do trabalho, colocando os trabalhado-res como protagonistas desta psicologia dos trabalhadores, pode se dizer.

    Tosquelles e Oddone, perdoem-me pela expresso esto no mesmo combate. So dois inspiradores da clnica da atividade, do ponto de vista da ao. Como podemos fazer na organizao do trabalho, no para dizer o que seria necessrio dizer para os trabalhadores, produzindo conhecimento sobre sua atividade, mas como fazer para que os trabalhadores com quem ns traba-lhamos, faam a demonstrao no vivo, como diz Tosquelles, que so capazes

    7 Soigner le travailleur e, a seguir, soigner le travail8 Sur Le vif

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    A psicologia do trabalho na Frana e a perspectiva da clnica da atividade

    de transformar a situao. Eles so capazes. Fazem a demonstrao de que so capazes. Isso um ato transformador profundo na histria da anlise do traba-lho. Evidentemente o contrrio do positivismo.

    Signifi ca dizer que primeiro agimos, junto com os trabalhadores, e que, se no, agimos muito mal no se pode tudo prever temos a chance de apreender alguma coisa, mas apreender ao fi nal. No se busca, junto aos trabalhadores, confi rmar a cincia. Isso no quer dizer que no se faa cincia, afi nal o nosso trabalho, mas voltaremos a isso adiante.

    Nessa ao h um problema tcnico particular que eu gostaria de tratar que muito caro aos ergonomistas, que muito caro para mim tambm, que fao parte dessa famlia que a questo da observao. Como discutir o problema da ob-servao se colocamos o problema da ao como acabei de colocar? A observao psicolgica na clnica da atividade no a mesma observao que a observao ergonmica. Para me fazer compreender eu vou fazer outra citao. Essa citao vem de um grande psiclogo francs que talvez vocs conheam tambm, que uma referncia muito forte, que Henry Wallon. Henry Wallon no fez psicologia do trabalho e no um precursor da psicologia do trabalho, mas um clnico que soube se ocupar com grande produtividade da atividade das crianas. Eu ia dizer do trabalho das crianas, mas no isso, no devemos confundir tudo.

    Ele chamou ateno para a questo da observao, porque ele praticava observao sobre as crianas, e ele se interrogou bastante acerca da observao. Ele se perguntava, o que a observao? Vejamos o que ele disse. E, para mim, foi muito importante. Quando eu encontrei essa formulao de Wallon, eu com-preendi um pouco melhor e talvez um pouco menos mal o que eu fazia.

    A citao de Wallon a seguinte, ele fala da observao que o clnico faz sobre a criana. Ele escreve: A ateno que o sujeito a criana sente fi xada sobre ele vejam, ele vai estudar a observao do ponto de vista do observado a ateno que o sujeito sente fi xada sobre si parece, por uma espcie de cont-gio, muito elementar, obrig-lo a se observar todos j fi zeram essa experincia, quando nos sentimos observados, pouco a pouco, a gente se observa.

    Vamos prosseguir com a afi rmativa de Wallon: Portanto, a observao de outrem parece obrigar o sujeito a se observar. Se ele est agindo, esse sujeito, essa criana o objeto de sua ao, e a ao ela mesma, so bruscamente su-plantados pela intuio subjetiva que ele toma do seu personagem. como uma inquietao, uma obsesso da atitude a adotar. uma necessidade de se adaptar presena de outrem, que se superpe ao ato da execuo. E Wallon diz que isso um problema, porque quando a gente se sente observado, a gente perde o acesso aos nossos prprios meios para agir. Isso abre um problema imenso.

    Isso quer dizer que quando fazemos observao em situao de trabalho, o resultado que se obtm duplo.

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    Yves Clot

    O primeiro resultado que muito importante, ao qual os ergonomistas aportaram uma grande quantidade de elementos que isso produz conheci-mento sobre a atividade. Logicamente, quando se observa, se pode descrever a atividade de outrem.

    Mas h um segundo resultado. A observao no produz conhecimento somente para o observador, produz tambm uma atividade no observado e pro-duz, sobretudo, no observado um dilogo interior. Como disse Wallon, h um pouco de inquietao. Ento o observado procura se apresentar da melhor forma possvel, e representar aquilo que o outro quer ver. E isso provoca alguma coisa que no se v, que o dilogo interior do trabalhador, se observando no momento mesmo em que os outros o observam.

    A clnica da atividade sistematizou essa observao, essa refl exo de Wallon. Todo o problema no se reduz simplesmente a utilizar os conhecimentos, sobre a atividade, que tiramos da observao. O problema fundamental : o que fazemos da atividade do observado de observao de si mesmo. O que fazemos com isso? O que fazemos com esse dilogo interior que se expressa dessa for-ma: Talvez eu no devesse fazer assim. Ou ento Quando ele observou meu colega, talvez meu colega tenha feito assim, tenha feito diferente essas so as discusses interiores que temos quando somos observados pelo Ergonomista, pelo psiclogo do trabalho. A gente se coloca perguntas Talvez quando eu volte amanh eu faa de outra forma. Isso quer dizer que o observador e os tra-balhadores observados se pem a pensar, a refl etir sobre sua prpria atividade e, ento, tornam-se sujeitos da observao, no so mais simplesmente objetos da observao. O problema, em seguida, : o que fazer desse dilogo interior?

    Eu diria que, quando se inventaram os mtodos dialgicos da anlise do trabalho de confrontao cruzada, instrues ao ssia e outros pensamos mui-to nisso: dar um destino dialgico ao dilogo interior que se abre durante a obser-vao. isso que nos permite religar, a concepo de observao, que acabo de apresentar, concepo da ao, que eu utilizei ao citar Tosquelles.

    A primeira contribuio da clnica da atividade pode-se dizer que uma reconceituao da questo da observao. No o contrrio da ergonomia. Est em companheirismo com a ergonomia. Simplesmente uma concepo psicol-gica da observao, que mostra que quando se observa, isso deixa traos junto ao observado. E o analista do trabalho vai se servir desses traos deixados junto ao observado para fazer a anlise.

    Ento, um segundo ponto. Esta observao, vocs podem notar, lembro que eu dizia de um lado a

    ergonomia, a observao; de outro, a psicopatologia do trabalho, a palavra. Na nossa herana h essa dupla fi liao a observao e a palavra, a palavra a psi-copatologia do trabalho. Simplesmente eu fao notar que, quando desenvolvemos a abordagem da observao, tal como acabo de fazer, a questo da palavra se coloca de outra forma, pois a observao que ns fazemos na clnica da ativida-de, de que eu acabo de falar, provoca a palavra interior. Portanto, em clnica da

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    A psicologia do trabalho na Frana e a perspectiva da clnica da atividade

    atividade a observao no o contrrio da palavra, a fonte da palavra interior. Em seguida, dessa palavra interior, ns vamos fazer dilogos profi ssionais. Vocs podem ver que a observao se torna dialgica. Na clnica da atividade, diz-se naturalmente que a concepo da observao dialgica. Portanto, a observao um dilogo, portanto a palavra est dentro da observao.

    Mas inversamente, quando realizamos autoconfrontaes cruzadas, ou seja, quando confrontamos dois profi ssionais, ou melhor, quando coagimos dois profi s-sionais a se comparar um ao outro, face a imagens objetivas da sua prpria ati-vidade, eles dialogam. Aqui estamos no domnio da palavra. Diramos mesmo que estamos na intersubjetividade, a estamos do lado da psicopatologia do trabalho.

    Mas o que que acontece? Quando os dilogos so difceis, face atividade que temos na tela, os profi ssionais entre eles se calam, porque eles no tm mais nada a dizer, eles se viram os dois em direo tela e observam a situao de trabalho. Portanto, o dilogo em clnica da atividade tambm um observatrio. Portanto, vocs veem, a ideia que a herana que a nossa, psicopatologia do tra-balho de um lado, ergonomia de outro, a tentativa que no uma tentativa arti-fi cial, porque ela repousa sobre o problema da ao de transformar a observao em dilogo de modo a tornar a palavra numa ferramenta de observao. Isso no renunciar observao, no fazer menos observao, fazer mais observao.

    Da mesma maneira, do lado da palavra, do lado da escuta, muito im-portante, e no h psicologia sem a funo criadora da palavra do sujeito e dos sujeitos, impossvel imaginar a psicologia sem isso. Mas a palavra, na clnica da atividade, no para escutar o vivido. A palavra feita para agir, um dilogo profi ssional para transformar a situao, e, portanto, um dilogo para manter o vivido vivo. No um dilogo para apreender o vivido ou para conhec-lo. um dilogo para que o vivido se transforme, se desenvolva, na ao dialgica e na observao em curso do dilogo.

    Portanto, assim que, na clnica da atividade, fazemos a relao entre ativi-dade e subjetividade. A atividade no o contrrio da subjetividade. A subjetivi-dade eu a defi no claramente claramente para mim pelo menos, isso abre muitas questes j que difcil de fato como uma relao entre atividades. A subjeti-vidade uma atividade sobre a atividade. a minha atividade ou a atividade de meu colega de trabalho como objeto de pensamento. assim que se desenvolve a produo subjetiva de minha experincia. Portanto, no somos obrigados a es-colher entre atividade e subjetividade. E, para terminar, eu diria que isso depende da conceituao que se faz da atividade. Essa seria minha concluso.

    Para concluir eu vou ainda me servir de Tosquelles. Tosquelles nos hospi-tais psiquitricos, onde ele fazia a ergoterapia, evidentemente ele se interessava muito pela atividade real, ele olhava como faziam os loucos para trabalhar, quan-do eles trabalhavam. Ele produziu uma crtica, que fao minha, uma crtica da noo da atividade. Eu vou ler essa crtica: H um risco escreve Tosquelles de ver-se introduzir observem a linguagem usada atrs da linda palavra atividade uma distoro e um contrassenso muito grave. No se pode confundir o conceito de atividade com a simples prestao de movimentos, com a presta-

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    Yves Clot

    o de esforos concordantes, com a simples aplicao e a simples resistncia, submetidos aos desejos do mestre de escola ou do chefe de obras. Atividade quer dizer atividade prpria. Poderia dizer se sentir ativo. Atividade que se enraza nos sujeitos ativos que se desenvolve eventualmente no contexto social. A simples ocupao, no sinnimo de atividade. Por exemplo, poderia se dizer que algum que se agita, no necessariamente ativo. Pode-se mexer muito, aparentemente h uma ao, mas ser absolutamente passivo. Pode-se estar agitado justamente porque no podemos nos sentir ativos na situao. A nos mexemos para nos defender da passividade.

    Para Tosquelles, atividade no simplesmente o que move. Podemos ter pessoas imveis, como eu tenho aqui na minha frente, mesmo se comeo a me alongar, pessoas imveis, mas muito ativas ao menos essa a hiptese que es-tou fazendo sobre a atividade dos senhores. No h uma atividade observvel, h uma intensa atividade.

    O que Tosquelles est dizendo que devemos nos defender de uma con-cepo fetichista da atividade. A atividade no simplesmente aquilo que se v, no o que se pode descrever, aquilo que se pode observar diretamente. Portanto, a atividade no simplesmente a atividade realizada.

    Em clnica da atividade estabelecemos, a partir da, uma defi nio e uma distino entre a atividade realizada e o real da atividade. A atividade realizada o que se pode ver, se pode observar e se pode descrever.

    Acontece que, como dizia Suzanne Pacaud, o homem se manifesta fre-quentemente pelo que ele faz, mas muitas vezes e sobretudo, diz ela, se manifesta por aquilo que ele no faz. A atividade aquilo tambm que no se pode fazer, aquilo que no se faz, que gostaramos de ter feito, aquilo que guardamos no estmago, a atividade (re)engolida, impossvel, as atividades suspensas, as ati-vidades impedidas. No foi realizado, mas faz parte da atividade. por isso que podemos dizer que a atividade realizada no tem o monoplio do real da ativida-de, o real da atividade muito mais vasto que a atividade realizada. E, maneira de Vigotsky, essa quase a minha concluso, o homem pleno a cada minuto de possibilidades no realizadas. E so essas possibilidades no realizadas que esto na fonte do desenvolvimento possvel da atividade. E tambm, como diz Vigotsky, a atividade realizada a atividade que venceu entre muitas outras ativi-dades possveis, a atividade que venceu uma das possibilidades.

    Resta buscar tudo que no foi realizado, mas que resta presente no que o sujeito continua a querer fazer, que ento a fonte do desenvolvimento.

    Portanto, em clnica da atividade, colocando o problema dessa forma, ten-tamos trazer uma soluo, entre outras. Ela precria essa soluo, ela frgil, mas a disjuno que corre o risco de se instalar a de nos fecharmos em, de um lado, uma anlise do trabalho da atividade realizada e, de outro lado, em uma con-cepo de subjetividade, como negativa, como tudo que no foi realizado, como a atividade impedida, alienada, mas que, de certa forma, est separada, como o caso em Le Guillant, da atividade realizada. De um lado, o risco de uma ativida-

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    A psicologia do trabalho na Frana e a perspectiva da clnica da atividade

    de sem subjetividade e, de outro, de uma subjetividade sem atividade. Podemos dizer que a clnica da atividade busca ultrapassar essa difi culdade. Eu no acho, pessoalmente, que ela tenha conseguido ultrapassar completamente essa difi cul-dade, mas nesse caminho que ela avana, no sem alguma difi culdade.

    Muito obrigado.

    O DEBATEHelder Muniz:9

    A psicologia do trabalho tem uma tradio de interveno em empresas em situaes de trabalho, seja no setor privado , seja no setor pblico, no , mas com as transformaes do trabalho ns temos hoje tambm, com o problema do de-semprego e um aumento do mercado informal de trabalho, situaes de trabalho novas, fora das empresas, fora dessas situaes de trabalho assalariado. Eu queria perguntar se j h experincias de estudos, desse ponto de vista da atividade, com pessoas que esto atuando fora desse mercado formal, com iniciativas econmi-cas novas; e se podemos pensar uma contribuio da psicologia do trabalho para essas situaes fora do assalariamento tradicional.

    Y. C.:

    Eu estou verdadeiramente de acordo em considerar que o trabalho assalaria-do clssico v a sua parte muito diminuda. Ns temos na Frana, particularmente na Frana, mas eu acho tambm no Brasil, uma situao em que a precariedade se desenvolveu consideravelmente, em que o desemprego tornou-se no somen-te uma situao transitria, mas uma condio social, durvel, e a precariedade tambm. Ns sabemos muito bem que podemos levar a vida inteira passando de um trabalho a outro sem nunca poder antecipar o que vai acontecer de fato. Esses processos de desagregao social so extremamente importantes, h alguns estu-dos que foram conduzidos e, pessoalmente, eu trabalhei sobre essa questo uma vez, h alguns anos. Eu quero dizer um pouco de como, na poca, abordamos a questo. Um primeiro ponto que trabalhamos com pessoas que estavam fora do ambiente de trabalho desde muito tempo, em desemprego de longa durao, que talvez j tivessem perdido a esperana de reencontrar um posto de trabalho. Pudemos identifi car a (com um mtodo que depois falaremos) uma psicopato-logia do trabalho muito especfi ca, o que chamamos de uma psicopatologia do trabalho do homem suprfl uo, quer dizer, dos que, naquela situao, perderam o sentimento de serem teis no mundo. O que extremamente interessante que o que tornava doentes esses desempregados no era somente no ter salrio, no ter emprego, no ter dinheiro. Lgico que tudo isso era terrvel, mas o que os tornava doentes era no poder trazer uma contribuio histria social, estarem sobran-do, serem suprfl uos. Havia o que podemos chamar uma psicopatologia do no trabalho (desouevrement), no sentido forte, de colocados fora da obra comum,

    9 Doutor em Engenharia de Produo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000) e ps-doutorado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2009). Atualmente Professor Associado I da Universidade Federal Fluminense.

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    Yves Clot

    interditados de contribuir histria humana. Eu penso que essa psicopatologia do desemprego extremamente grave porque ela toca o ser, fundamentalmente. E me lembro tambm de um trabalho que fazamos justamente com esse grupo de desempregados, no qual um deles falou um dia passamos nosso tempo a ruminar e a pensar em tudo aquilo que no podemos mais fazer. Eu no vou desenvolver as ligaes com a clnica da atividade, mas vocs vejam bem que a atividade do desempregado muito intensa, a ruminao permanente, sentindo-se a mais, como algum que no pode mais servir para nada, e no ter outra soluo seno pensar aquilo que j fez e que no faz mais. O real da atividade nessa situao muito cansativo, perfeitamente compreensvel que a sade desses desempre-gados se degrade, porque sua fadiga intensa. No fazer nada, quando se est desempregado, extremamente cansativo. Constatamos a deteriorao da sade mental e fsica dos desempregados que se deve atividade impedida, atividade contrariada, interdita, vejam o paradoxo. E, para mim, do ponto de vista clnico, uma confi rmao das hipteses que ns fazemos em matria de concepo da atividade. Ns trabalhamos, eu vou falar um pouco sobre o mtodo, em vez de trabalhar primeiramente com os desempregados em geral, ns decidimos traba-lhar com associaes de desempregados. Na Frana se criaram essas associaes durante certo tempo, agora elas so muito fracas, o que tornou difcil a minha cooperao com eles. Criou-se um movimento de luta nas associaes de desem-pregados contra a precariedade, com sindicatos, associaes, reagrupamentos de desempregados, que agiam nas ruas contra a precariedade, para encontrar um em-prego, para acessar o trabalho, e no simplesmente ao trabalho como salrio, mas como contribuio histria coletiva. E, ento, ns trabalhamos um pouco na perspectiva da clnica da atividade, escolhemos trabalhar com pessoas em ao. Lgico, nem todos os desempregados fazem isso, mas na Frana nessa poca havia um movimento social real de desempregados, que, de certa forma, tinha decidido tomar a sua sorte em suas prprias mos. Ns estudamos justamente, junto com esses desempregados e as associaes de desempregados, como desen-volver a sua ao. E eu penso que precisamente porque tnhamos pessoas que transformavam a sua situao em ao que pudemos compreender alguma coisa sobre psicopatologia do desemprego, e sobre a atividade diminuda que evoquei ainda pouco, porque para chegar a dizer coisas assim, a se dizer coisas assim e compartilh-las, necessrio j ter levantado a cabea, necessrio desde j ter uma situao em que se renunciou passividade e se tenta transformar essa passividade em ao. Dizer essas coisas, de uma intimidade incrvel, Eu estou cansado de nada fazer, como isso difcil de dizer; se vocs dizem isso assim, a primeira vez nos faz rir, mas isso profundamente verdadeiro. profundamente perigoso no fazer nada, no poder participar do trabalho coletivo e da histria comum. Acho que conseguimos traar um caminho at essa intimidade subjetiva e mental dos desempregados, porque trabalhamos com desempregados que agiam contra o desemprego, que no fundo no faziam do desemprego um drama pesso-al, mas que lutavam contra o desemprego, o qual era percebido como injustia. na ao contra a injustia que chegamos a nos autorizar a dizer as coisas mais

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    ntimas. Portanto, tnhamos tentado na poca hoje mais difcil porque essas associaes perderam terreno tentamos na poca compreender o desemprego com aqueles que j o haviam transformado em ao.

    Pierre Trinquet:10

    Antes de fazer a pergunta, quero fazer uma declarao preliminar, do quan-to a ergologia tem uma forte dvida com relao aos trabalhos de Yves Clot. Por-que a ergologia tem como pretenso ser pluridisciplinar e os trabalhos que so feitos nas disciplinas, em particular nas disciplinas que dirige Yves Clot, nos ser-vem enormemente, e aproveito esta ocasio para agradecer publicamente.

    A minha pergunta: como voc bem sabe nesse momento na Frana temos um problema que me preocupa muito no campo do trabalho: so os suicdios nos locais de trabalho. algo novo, que se desenvolve de uma forma bem dramtica e preocupante. A questo : Qual a reao de Yves Clot, em particular, e da escola que ele dirige, em relao a esse novo e preocupante fenmeno, ou seja, os fen-menos do suicdio nos locais de trabalho?

    Y. C.:

    No minha especialidade, como voc bem sabe. Cristophe Dejours um tanto especializado nessa questo, seria interessante ter o ponto de vista dele. Mas, de toda forma, eu vou dar o meu ponto de vista. Primeiramente, h uma primeira observao. Penso que insistimos num tipo de contgio do suicdio no trabalho, quer dizer paradoxalmente, a midiatizao de que os suicdios so ob-jeto, algo que faz desaparecer as barreiras daqueles que se preservavam ainda de se suicidarem. Penso que aqueles que pensam atualmente em se suicidar em situao profi ssional so muito mais numerosos que aqueles que o cometem de fato, muito mais numerosos. Acho que o problema extremamente grave. A ten-tao ao suicdio, poderamos dizer, est muito disseminada no meio profi ssional, ao menos na Frana. A tentao ao suicdio muito maior do que a tentativa de suicdio. Ento acho que necessrio tomar mais a srio esse processo, o crculo dos potenciais suicidas muito maior do que aqueles que passam ao ato de certa maneira. E a midiatizao, legtima, que se constri em torno dessas questes contagiosa no sentido de que certo nmero de mulheres e sobretudo de homens eu chamo ateno que, entre os suicdios no trabalho, a proporo de homens considervel, 90% so de homens, as mulheres se suicidam menos. Podemos considerar que a midiatizao que se desenvolve sobre essas questes , parado-xalmente, um acelerador do suicdio no trabalho. Por qu? Porque os que tinham a tentao de faz-lo, avaliam a medida do impacto social do seu ato, e, assim, podem ser levados a considerar que vale a pena faz-lo, porque vai tornar mais pesada a balana para que enfi m as pessoas abram os olhos. Portanto, esse o primeiro paradoxo ao qual eu me refi ro: isso dramtico, o barulho que se faz hoje em torno dos suicdios, em minha opinio, um acelerador dos suicdios. No digo que devamos nos calar a respeito disso, mas eu penso que a responsa-10 Professor e doutor em Sociologia da Universit de la Mditerrane e da Universit de Provence.

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    Yves Clot

    bilidade das mdias na manipulao desse problema extremamente importante. No somente das mdias, mas dos responsveis polticos e sindicais. O problema muito importante, eu considero que isso deva ser dito publicamente, que se deve dizer publicamente que necessrio tomar cuidado. No porque h muitos sui-cdios que devamos nos suicidar, necessrio dizer a verdade, o problema deve ser colocado dessa forma. Isso em primeiro lugar. Em segundo lugar, o conheci-mento que temos hoje dos percursos dos que se suicidam, das histrias pessoais daqueles que chegam a esse ato dramtico, so percursos que so bem tristemente interessantes, signifi cativos. Signifi cativos daquilo que compreendemos ao curso desses vrios anos. Essas pessoas no so qualquer um. Em 80% dos casos, so pessoas que se suicidam porque so apaixonadas pelo trabalho, so pessoas que no aceitam que maltratem a sua atividade profi ssional, no so pessoas que esto afastadas do trabalho, so pessoas que esto muito prximas do trabalho, que no aceitam mais que seu trabalho seja maltratado. Portanto, no fundo, os suicidas do trabalho, de certa forma, so pessoas que no transigem mais com a atividade profi ssional, no suportam mais que sua atividade profi ssional seja tratada como ela tratada em muitas situaes. Dito de outra forma, no so sujeitos desinves-tidos, so pessoas sobreinvestidas, poderamos talvez dizer investidas demais, que, no fundo, no chegam a instalar entre eles e sua atividade profi ssional a dis-tncia que permitiria encontrar outros meios de resistir situao que est posta. Terceira observao, essa distncia e seus recursos entre eles e a sua situao concreta o buraco do coletivo do trabalho, o drama da falncia do coletivo como instrumento de resistncia descompensao individual, solido simplesmente. Sabemos muito bem que o suicdio no trabalho se produz na conjuno de dois fenmenos. Primeiramente, as paixes destrudas no trabalho, a intolerncia e a impossibilidade de continuar a suportar o insuportvel, de suportar no se reco-nhecer naquilo que faz, principalmente isso: sair do trabalho no fi m do dia dizen-do a si mesmo a gente no se pode olhar no espelho tendo feito aquilo que foi feito, que no aquilo que se deveria fazer, aquilo que fomos obrigados a fazer no aquilo que deveramos fazer, nosso trabalho no esse. Primeiramente, a conjuno disso, poderamos dizer, da atividade contrariada e da falncia do coletivo que faz com que , nessa situao, no se tenha recursos para trabalhar com os colegas. No h ao menos uma situao em que se possa constituir pelo coletivo um distanciamento para proteger um assalariado da descompensao, de sua prpria vontade de desaparecer. Eu penso que, se juntamos o trabalho no qual cada um no pode mais se reconhecer com a falncia dos coletivos, temos todos os ingredientes para que muitos assalariados cheguem a essa situao. Quando no podemos mais mobilizar, na nossa existncia pessoal, outros recursos para in-troduzir essa distncia, no h mais coletivo (de trabalho) e tambm no h mais nada. H uma vida familiar desestruturada, uma conjuntura na qual nada mais nos sustenta. E, nesse momento, a solido do trabalho vem ecoar com a solido da vida pessoal, e nessa espcie de choque entre solides pessoais e profi ssionais, a passagem ao ato se produz. Muitos assalariados suportam hoje situaes profi ssio-nais de maltrato graas quilo que eles so ainda como pessoas fora do ambiente de trabalho, no mbito da famlia, com seus fi lhos, l que ele encontra os meios de resistir, ou eventualmente com colegas, nos crculos de amizade. , muitas

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    vezes, o que os impede de ir at o fi nal. Para alguns sujeitos, a conjuno das duas situaes, profi ssional e pessoal, os precipita em um tnel onde no se v outra soluo, para continuar a viver. Eu penso que temos a responsabilidade, ns como psiclogos, que estudamos a psicopatologia do trabalho, de mostrar at que ponto podemos nos matar no trabalho. E em algumas situaes de anlise de desempre-gados, que j so reconhecidas como doena profi ssional, como no trabalho de Le Guillant, muito importante reconhecer essa situao como doena profi ssional, para certos sujeitos que jogaram todas as suas fi chas no trabalho, porque as coisas j no iam bem na famlia, se o trabalho se desarranja ele no suporta.

    Marcelo Figueiredo:11

    Vou trazer uma discusso que j tivemos na sexta-feira com Pierre Trinquet, sobre essa questo dos suicdios. Eu no queria fi car nos suicdios, mas pensar a postura que a empresa adotou inicialmente... Eu no conheo os desdobramentos mais recentes. As notcias que chegaram ao Brasil, em se tratando dos suicdios na Renault foram 3 suicdios em 5 meses que eles investiriam na formao dos gerentes em gesto do estresse, mas no aceitavam, isso dito pelo gerente maior da empresa chamado Carlos Gosnik, que at conhecido de algumas empresas aqui no Brasil, que no aceitavam de modo algum rever as metas de produo. Considerando toda a tradio que o professor apresentou aqui, eu pergunto: Esse tipo de postura infl exvel, em que as metas tm quase que um carter sacrossanto, denota apenas uma miopia gerencial uma explicao mais direta, mais simples ou por trs desse tipo de postura tem algo que deliberado e que, na verdade, no se explicaria apenas como uma mera miopia, um desconhecimento das po-tencialidades de determinadas intervenes que podem se mostrar efi cazes nos marcos de uma concorrncia acirrada como essa que a gente vivencia, melhor, presencia, hoje, no cenrio capitalista da dita ps-modernidade?

    Y. C.:

    uma questo difcil. No tenho certeza de ter a resposta, francamente no tenho certeza de ter a resposta. Seria necessrio fazer a clnica da atividade do Carlos. Mas, de toda forma, no um problema pessoal, porque no h somente suicdios na Renault, mas tambm na Peugeot, em que no o Carlos que dirige, em outras empresas tambm... Meu ponto de vista, que , com certeza, um ponto de vista a discutir, que no simplesmente uma miopia; eu penso que os diri-gentes de empresa sabem muito bem o que se passa, eles so muito lcidos sobre essa situao. Eu acredito que, portanto, eles escolheram prosseguir nessa via porque no h alternativa, para eles, do ponto de vista dos objetivos, que so os deles, isso quer dizer do ponto de vista do desenvolvimento da rentabilidade des-sas grandes empresas. No fundo, eles fazem certo tipo de clculo. J aconteceu de eu falar diretamente com Carlos e outros gestores. H uma posio um pouco c-nica. Eles dizem: verdade que a corrida louca na qual ns nos engajamos um problema, ela provoca at suicdios, mas se ns abandonamos essa corrida malu-11 Doutor em Engenharia de Produo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente

    professor adjunto IV da Universidade Federal Fluminense.

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    ca, a empresa inteira que est condenada e as consequncias sociais so ainda mais graves do que aquelas que ns conhecemos. Dito de outra forma, vocs podem ver que essa argumentao consiste em dizer que no se faz omelete sem quebrar ovos, e em seguida pode-se fechar os olhos sobre essas situaes. Mas no consiste apenas em fechar os olhos, porque essas empresas esto quase... , sobretudo se elas comeam a ser condenadas, se os suicdios comeam a ser reco-nhecidos como acidentes profi ssionais, penso que elas vo construir uma reao, uma resposta a esse gnero de situao. Elas esto comeando a construir essa re-ao, interessante ver como elas tratam essa questo. Em particular, na Renault o que se implementou foi algo em torno da gesto dos recursos humanos, foi um dispositivo de gesto do estresse, como voc acaba de dizer. Isso quer dizer que a ideia central que preciso acrescentar, sobrepor gesto da empresa, tal qual ela est, uma nova gesto, que a gesto do estresse. necessrio considerar que o estresse um objeto de gesto como outro, portanto, necessrio implementar servios mediante os quais vamos ajudar cada um dos sujeitos a suportar o que insuportvel. Portanto, dito de outra forma, vamos operar o que podemos chamar uma transfuso psicolgica. Quer dizer Voc est em difi culdade, voc que frgil. verdade que a situao difcil, mas voc que frgil, porque no todo mundo que se suicida. Se voc est tentado pelo suicdio, que h uma fragilidade pessoal em voc. A h duas solues Ou houve um engano ao lhe contratar, um erro de recrutamento, necessrio verifi car quando se recruta, tem que se tomar cuidado com isso; e j que voc est aqui e a gente no pode te de-sempregar, a empresa pode te ajudar, ela vai colocar sua disposio um servio de escuta no qual voc pode liberar todas as suas inquietaes, sua depresso e com psiclogos formados para isso, vamos lhe ajudar a ultrapassar a difi culdade em que voc est, favorecendo em voc a construo de novos recursos pesso-ais. Vocs veem, h um problema. O problema que, nesse momento, h um novo sistema produtivo, e penso que h um modelo que est em forte desenvolvi-mento que devem fazer refl etir ao mesmo tempo os gestores e os psiclogos. Por um lado, h uma loucura produtiva, uma busca pela produtividade desenfreada, um tipo de neofordismo que se desenvolve, com o desenvolvimento muito forte das prescries, mesmo na matria de segurana, mesmo de higiene do trabalho. De um lado, aumenta-se a presso, porque se pensa que no h outra soluo. De outro lado, v-se muito bem, e eu penso que h muita lucidez do ponto de vista das grandes empresas, v-se bem que h alguma coisa de insuportvel nesse sis-tema, os gerentes de alto nvel no so cegos para essa situao. Eles concluem que necessrio desenvolver o que eu chamaria de um travesseiro de compaixo, dispositivos de gesto do sofrimento. Eu diria que o sistema produtivo que se confi gura um neofordismo montado sobre travesseiros de compaixo, como amortecedores psicolgicos do sofrimento que acreditamos inelutveis nesse sis-tema. Vemos que h um problema maior para a psicologia do trabalho, porque muitos clnicos do trabalho, e por isso que eu falava que tinha medo do futuro da clnica do trabalho, porque muitos clnicos do trabalho consideram que normal, faz parte do seu trabalho ajudar as pessoas a aceitar essas situaes insuportveis. H empregos, em particular na Frana, para psiclogos clnicos encarregados de ajudar os sujeitos a usar cada vez mais seus recursos pessoais, sem tocar na situa-

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    A psicologia do trabalho na Frana e a perspectiva da clnica da atividade

    o que deteriora a sade. H, ento, o verdadeiro problema de uma psicologia do trabalho compassional, uma psicologia que escuta o sofrimento, que recupera o vivido, para reciclar o vivido pelo sujeito; no para manter viva essa experincia para transformar a situao profi ssional. Ento eu diria que a clnica do trabalho que ns tentamos fazer, em particular no CNAM, ela est confrontada com esse problema. E nossos estudantes, acontece com eles de encontrarem emprego, e no fcil encontrar trabalho, em novas ofi cinas, em sociedades de servios que esto se desenvolvendo, por exemplo, a Agncia para Emprego, ANPE (Agence Nationale pour lEmploi) que a grande agncia para o emprego na Frana ela acaba de criar um servio interno na empresa que se chama Minha Linha de Escuta, 24 horas por dia. H psiclogos clnicos, formados em psicanlise, que esto atrs dos telefones, dia e noite, e os assalariados da empresa podem cham-los dia e noite para tratar de problemas pessoais ou profi ssionais, sem distino. E a empresa indica na sua gesto de recursos humanos que ela criou esse novo servio gratuito para ajudar os assalariados a resolverem seu problema pessoal, o que uma providncia com caractersticas de fi lantropia social. Vejam, a empresa moderna e cuidadosa, no somente se ocupa da questo, mas ainda por cima, gratuitamente, ela cria servios para ajudar os empregados a resolver seus problemas psicolgicos, pessoais e profi ssionais. Vejam bem a perversidade social desse sistema que faz com que, de um lado, a empresa alimente a descom-pensao psquica no trabalho e, de outro lado, ela faa dessa situao objeto de gesto, pedindo aos psiclogos clnicos que dem suporte a essa iniciativa. A minha concluso muito simples, eu penso que logo teremos estudos e pesquisas de psicopatologia do trabalho a fazer junto a esses psiclogos clnicos, porque o que eles fazem ao telefone, 24 horas por dia, nesses quadros clnicos tortos, isso no trabalho de psiclogo, isso vai deix-los doentes.

    Recebido em: fevereiro de 2010Aceito em: abril de 2010