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Índice

Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1 Reagan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

2 Andropov . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

3 Reagan Rearma-se . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

4 Operação RYaN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

5 Guerra das Estrelas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

6 Falta de Informações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

7 Agentes Duplos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

8 PSYOPS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

9 Abate . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151

10 Indignação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

11 Alertas Falsos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187

12 Carros-bomba . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199

13 Paranoia no Kremlin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209

14 Able Archer 83 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217

15 Alerta Máximo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229

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16 A Noite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245

17 Acontecimentos «Muito Assustadores» . . . . . . . . . . . . . . 253

18 Guerra de Espiões. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 273

19 Frutos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289

20 Desfechos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303

Epílogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 321

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343

Fontes Principais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 347

Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 349

Índice Remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 371

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Lista de mapas

1: A Cortina de Ferro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

2: O Extremo Oriente Soviético . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140

3: A Rota do Voo KAL 007 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165

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Prólogo

Às 8 horas da manhã da segunda-feira 6 de agosto de 1945, a cidade de Hiroxima fervilhava de pessoas. Muitos habitantes dirigiam-se para os seus empregos no centro da cidade. Elétricos repletos de passageiros atravessavam ruidosamente as ruas lotadas. As pontes sobre os seis afluentes do rio Ota, que cruza a cidade em direção ao Mar Interior de Seto, estavam cheias de pessoas em trânsito. Oito mil raparigas tinham sido recrutadas para ir ao centro da cidade trabalhar nas defesas antiaéreas. Dezenas de milhares de soldados nos quartéis locais, de torsos nus, realizavam os seus exercícios matinais. Era uma belíssima manhã de verão, já quente e um pouco húmida, o que sugeria algum desconforto mais tarde. O céu era de um azul luminoso. Já se fizera ouvir um alarme de ataque aéreo naquele dia, mas fora cancelado havia meia hora. Poucas pessoas repararam nos três aviões, pontinhos minús-culos no céu a nove mil metros de altitude, um à frente dos outros dois. Um médico que se encontrava em casa, três quilómetros a norte do centro da cidade, escreveu no seu diário: «As folhas cintilantes, refletindo a luz vinda de um céu sem nuvens, faziam um agradável contraste com as sombras no meu jardim.»1

Às 8h15, um clarão ofuscante do que parecia ser um raio iluminou o céu e foi seguido quase imediatamente por uma onda de calor. Ninguém nas proximidades do centro da cidade sobreviveu para rela-tar o que aconteceu a seguir. Um estudante universitário que se

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encontrava longe do centro recordou: «Vimos um tremendo clarão. Ficámos instantaneamente ofuscados e tudo se transformou numa loucura.»2 A primeira bomba atómica tinha sido lançada por um bombardeiro B-29 americano e explodira a cerca de 500 metros acima do centro da cidade.

Cálculos posteriores estimaram a temperatura no hipocentro da explosão (o ponto no solo situado diretamente abaixo de onde a bomba explodiu) entre os 3000 e os 4000 graus centígrados. Edifícios inteiros desintegraram-se num instante. A 600 metros do hipocentro, o calor era suficientemente intenso para deixar marcas no granito, e a mil metros as telhas das casas borbulhavam. As pessoas foram incineradas e delas não restou nada além de pequenas formas humanas nos pavi-mentos e nas paredes onde os seus corpos tinham temporariamente constituído um obstáculo ao intenso calor. Até dois quilómetros do hipocentro, pessoas e bens ficaram desfeitos, queimados e enterrados sob as cinzas. A destruição ocorrera em dois ou três segundos. Não havia como fugir.

Houve sobreviventes nos subúrbios afastados do centro. Mas o inferno que os cercou talvez tenha levado muitos a desejar que tivessem morrido instantaneamente como os outros. Espalharam-se incêndios até quatro quilómetros do hipocentro. A onda de choque provocada pela bomba derrubou construções de madeira que se encontravam a essa distância. Em poucos segundos, tudo ficou coberto por uma espessa nuvem de pó, fumo e cinzas. Homens, mulheres, crianças e bebés ficaram terrivelmente queimados, com a pele negra e cheia de bolhas, e o cabelo ardido. Viam-se pessoas a cambalear em sofrimento. Outras, de gatas, rastejavam sobre corpos ou membros perdidos. Mesmo quem se encontrava um pouco afastado do centro ficou tão queimado que a sua pele começou a cair. Quando os habitantes ilesos dos arredores se dirigiram à cidade para ajudar, encontraram uma visão medonha, não só de corpos empilhados, mas de fantasmas vivos, quase irreconhecíveis, que iam tateando o caminho e chamando por familiares perdidos na destruição e no caos. A maioria dos elétricos não passava de destroços enegrecidos, cujos passageiros tinham sido reduzidos a cinzas. Os ven-tos transformaram as chamas num grande incêndio que criou mais

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devastação nos subúrbios. No ar pairava o horrível odor a carne queimada. Centenas, milhares de pessoas arrastavam-se ou saltavam para dentro de tanques com água que tinham sido previamente espalhados pela cidade para evitar o alastramento de incêndios, na eventualidade de um ataque com bombas incendiárias. Outras lançavam-se aos rios tão típicos da cidade para tentar fugir ao fogo. A maioria delas, no entanto, tinha ferimentos tão graves que não sobreviveu por muito tempo, e em poucas horas um vasto número de cadáveres enegrecidos começou a acumular-se nas margens dos rios e nas praias.

Um relatório produzido mais tarde estimou que, dos 76 mil edi-fícios da cidade de Hiroxima, 70 mil foram afetados ou completamente destruídos. Todos os símbolos da vida urbana, como a câmara muni-cipal, as esquadras, os quartéis de bombeiros, as escolas, as estradas, os bancos, as lojas, os fornecedores de eletricidade e gás, os sistemas de esgotos, os hospitais e centros de saúde, foram destruídos. Noventa por cento dos profissionais de saúde foram mortos ou ficaram com alguma deficiência. Julga-se que cerca de 70 mil pessoas morreram logo nas primeiras horas a seguir à explosão da bomba3. Milagrosamente, o médico que estava no seu jardim quando a bomba explodiu sobre-viveu, mas ficou gravemente ferido. Mais tarde haveria de escrever: «Hiroxima já não era uma cidade, mas uma planície queimada… Quão pequena se tinha tornado sem as suas casas.»4

Para os sobreviventes, isto era apenas o princípio do horror. Poucos dias depois, mesmo aqueles que tinham sido poupados a queimaduras terríveis começaram a adoecer. Foram tomados por náuseas, vómitos, diarreia e febre. Surgiram-lhes bolhas e úlceras na pele, na boca e na garganta, bem como nas gengivas. O cabelo caía em tufos. Os médi-cos não sabiam o que estava a acontecer, pelo que lhe chamaram «doença da bomba atómica». Aquilo que estavam a testemunhar era o primeiro caso de envenenamento por radiação em massa. As vítimas tinham quantidades extremamente baixas de glóbulos brancos e pade-ciam de infeções provocadas por raios gama. Poucos conseguiram recuperar. No final daquele ano, estimava-se em 140 mil o número total de mortes provocadas pela bomba, e cinco anos depois esse número chegava às 200 mil.

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Três dias depois de Hiroxima ser atingida, foi lançada uma segunda bomba. Esta era uma bomba de implosão de plutónio que tinha um processo de fissão diferente do da primeira. O alvo era Kokura, mas, quando o B-29 chegou ao destino, a cidade encontrava-se coberta por nuvens espessas. Por isso, o avião deslocou-se até ao alvo secundário, Nagasáqui. Após a explosão da bomba, em terra viveu-se o mesmo horror. Porém, Nagasáqui estava rodeada de colinas íngremes, pelo que o número de mortes foi inferior. É possível que tenham morrido cerca de 40 mil pessoas nas horas posteriores, 70 mil até ao fim daquele ano e 140 mil nos cinco anos seguintes.

Na véspera, a União Soviética tinha declarado guerra ao Japão; o Exército Vermelho marchava para a Manchúria e dali para a Coreia do Norte. Apesar disso, a fação militar do governo em Tóquio recusou considerar a capitulação. Mas, a 10 de agosto, o imperador Hirohito indeferiu a decisão do governo e anunciou a sua intenção de se render. Passaram-se alguns dias até serem acordados os termos finais, e a 14 de agosto a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim. A era atómica, contudo, acabava de nascer.

Mais tarde, um comité oficial japonês constituído por cientistas e médicos compilou informações acerca dos danos causados pelas duas bombas atómicas. Foram entrevistados muitos sobreviventes. Consul-taram-se relatos que tinham sido gravados por militares japoneses e americanos e por autoridades médicas em visita à área nas semanas posteriores à explosão das bombas. Fizeram-se cálculos pormenoriza-dos relativamente ao poder de destruição das bombas em diferentes pontos a partir do hipocentro, e sobre os diferentes tipos de queima-duras sofridos pelas vítimas. O comité definiu a bomba atómica como «uma arma de assassínio em massa» e concluiu: «A experiência destas duas cidades constitui o capítulo inaugural de uma possível aniquila-ção da Humanidade.»5

Quatro anos depois de as bombas atómicas terem sido lançadas sobre o Japão, na madrugada de 29 de agosto de 1949, um grupo de cientistas e oficiais soviéticos reuniu-se num campo de tiro deserto nas remotas estepes do nordeste do Cazaquistão. O cientista-chefe Igor Kurchatov tinha levado a cabo um extraordinário trabalho, de altíssima

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prioridade nacional. Vindo de Moscovo, juntou-se aos cientistas um homem baixo, de óculos, de olhos frios e penetrantes, com entradas no cabelo. Foi recebido com grande pompa e circunstância. Tratava-se nada mais nada menos que Lavrenti Béria, o sinistro e todo-poderoso chefe da polícia secreta (o NKVD), o principal capanga de Estaline. Em 1945, após a explosão das bombas atómicas americanas, Esta-line encarregara Béria de assegurar que os soviéticos rapidamente desenvolveriam as suas próprias bombas. Béria tinha dedicado vastos recursos ao projeto e estava agora no Cazaquistão para verificar os resultados. Interiormente, não estava seguro de que os cientistas fossem bem-sucedidos.

Béria, Kurchatov e outros cientistas importantes reuniram-se num bunker de observação com um punhado de generais de alta patente. Os americanos tinham chamado «Trinity» ao seu primeiro teste nuclear, realizado no Novo México. Os soviéticos deram-lhe o nome de código «Primeiro Relâmpago». Às 7 horas da manhã em ponto, uma enorme bola de fogo branca engoliu a torre gigantesca construída para albergar a bomba. À medida que a bola de fogo subia, passou a ser cor de laranja, depois vermelha, e aspirou milhares de toneladas de terra e entulho para dentro de uma vasta nuvem em forma de cogumelo composta de fumo e destroços. Dentro do bunker houve júbilo. Béria abraçou e beijou Kurchatov. Ambos sabiam que, se o teste falhasse, o castigo, mesmo ao seu nível, teria sido a morte.

Em poucas horas, formou-se na atmosfera uma enorme nuvem radioativa que começou a deslocar-se lentamente para leste, pela Ásia, em direção ao Pacífico. Quatro dias depois, um B-29 americano numa missão meteorológica de rotina sobre o Pacífico Norte registou níveis de radioatividade 300 por cento superiores ao normal. Nos dias que se seguiram foram reunidas mais amostras conforme a nuvem se dirigia para o Canadá. As análises feitas revelaram que se tratava, sem a menor dúvida, da consequência da explosão nuclear de uma bomba de implosão de plutónio como a que fora usada em Nagasáqui. Inicialmente, os peritos dos serviços secretos americanos duvidaram que assim fosse. Ainda um mês antes a CIA concluíra que era impro-vável que os soviéticos fossem capazes de explodir uma bomba

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daquelas antes de meados de 1953. Mas, duas semanas depois, as pro-vas revelaram-se irrefutáveis. O presidente Harry Truman foi informado, e no final de setembro fez uma declaração ao país. A população ame-ricana ficou consternada, mas não histérica. Todos queriam saber: como é que aquilo acontecera tão rapidamente?

É extraordinária a história de como os soviéticos desenvolveram a tecnologia altamente complexa necessária à produção de uma bomba atómica. Construiu-se um gigantesco laboratório secreto 400 quiló-metros a leste de Moscovo, numa área que ficou conhecida como Arzamus-16, completamente vedada ao mundo exterior. Um exército de cientistas foi posto a trabalhar com todas as condições necessárias. Béria alocou grandes números de trabalhadores dos Gulag à mineração de urânio. A economia centralizada de comando soviético adequava-se perfeitamente a semelhante projeto, pois, uma vez definida a prioridade, podia marcializar-se uma grande quantidade de recursos. Além disso, os cientistas beneficiaram de informações que lhes foram fornecidas por espiões que trabalhavam no programa de pesquisa nuclear ameri-cano6. Mas era incontestável: o monopólio nuclear americano chegara ao fim. Os soviéticos tinham a bomba.

Este facto conduziu a uma importante revisão das políticas dos EUA. Os cientistas americanos já discutiam a possibilidade de desen-volver uma superbomba que libertasse tremendas quantidades de energia nuclear por meio da fusão de átomos de hidrogénio. Conhecida como bomba H, teria um poder de destruição muito maior do que as bombas de Hiroxima e Nagasáqui. Por trás deste novo projeto estava o físico nuclear Edward Teller, que defendia que os soviéticos prova-velmente não tardariam a desenvolver uma bomba de hidrogénio, pelo que era crucial que os EUA tomassem a dianteira nesta nova fase da corrida ao armamento nuclear. Teve um enorme apoio dos militares americanos, e o presidente Truman deu luz verde em janeiro de 1950, poucos meses depois de se assimilar a notícia da bomba atómica sovié-tica. Truman anunciou ao mundo que os EUA estavam a começar a construir uma arma que esperavam nunca vir a usar.

Menos de três anos depois, a 1 de novembro de 1952, os EUA testaram a sua primeira bomba H num minúsculo atol chamado

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Eniwetok, no Pacífico Ocidental. A bomba em si era monumental, pesava 82 toneladas, e encontrava-se armazenada num gigantesco sistema de refrigeração que levou seis semanas a ser montado. Todos os cientistas e figuras militares que deviam observar o teste foram colocados a 50 quilómetros de distância do local. A explosão produziu uma bola de fogo branca que tinha cinco quilómetros de diâmetro. As asas de um B-36 a voar a 12 mil metros de altitude, a 25 quilóme-tros da explosão, chegaram aos 93 graus centígrados em segundos. Mesmo a 50 quilómetros de distância, os cientistas relataram que o calor sentido era como estar junto a um forno quente cuja porta tivesse sido aberta. Poucos minutos após a explosão, a maior nuvem de cogu-melo alguma vez vista tinha sugado 80 milhões de toneladas de maté-ria do atol. A potência da bomba de Hiroxima tinha sido estimada num valor equivalente a 14 mil toneladas de TNT altamente explosivo, valor que se expressa em 14 quilotoneladas. A potência desta nova bomba de hidrogénio foi calculada em mais de dez milhões de tone-ladas de TNT, ou 10,4 megatoneladas, praticamente mil vezes maior. O mundo acabava de entrar na era termonuclear.

Nove meses depois, os soviéticos testaram a sua primeira bomba H. Embora fosse de potência inferior, era uma prova de que os cientistas soviéticos tinham mais uma vez alcançado os congéneres americanos. Análises aprofundadas da nuvem radioativa resultante detetaram resquícios de lítio. Isto indicava que a bomba era muito menor e que não precisava do enorme sistema de refrigeração que a bomba H americana exigira. Seria possível lançar esta superbomba a partir de um avião.

A 1 de março de 1954, os EUA testaram a sua primeira bomba termonuclear no atol de Bikini, no Pacífico. Vaporizou corais no atol e em redor dele, transformando-os em cálcio radioativo que se dissipou por uma grande área do oceano. A potência desta explosão assombrosa foi estimada em 15 milhões de toneladas de TNT, ou 15 megatonela-das. Sete meses depois, os soviéticos responderam lançando de uma aeronave uma bomba de potência equivalente a 20 megatoneladas, quase duas mil vezes mais poderosa do que a bomba de Hiroxima. As duas superpotências estavam a tentar superar-se mutuamente na

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derradeira e mais aterradora corrida ao armamento. Os estrategas americanos começaram a falar não só de «megatoneladas» de potência explosiva, mas também de «megamorte», como unidade de medida correspondente a um milhão de mortes humanas resultantes de uma explosão nuclear7.

Como, quando ou se tais armas alguma vez seriam usadas tornou--se o tema de muitos debates e planeamentos estratégicos. Em janeiro de 1954, durante a administração do presidente Eisenhower, o secretá-rio de Estado John Foster Dulles apresentou a doutrina de Retaliação Massiva. No centro do pensamento americano no que dizia respeito à política nuclear estava a ideia de que os EUA nunca levariam a cabo um primeiro ataque-surpresa. Como se costumava dizer, «os EUA não fazem Pearl Harbors». Em vez disso, Dulles defendia que os líderes soviéticos deveriam saber que, se atacassem o Ocidente, seriam con-frontados com uma fortíssima retaliação termonuclear. As bombas seriam transportadas pelos pesados bombardeiros do Comando Aéreo Estratégico, e no início da década de 1950 o seu chefe, o general Curtis LeMay, criou uma lista de seis mil alvos individuais na URSS, incluindo campos de aviação, bases militares, centrais nucleares, campos petrolí-feros e centrais de comunicação. Os estrategas da Defesa calcularam que um ataque nuclear americano poderia em poucas horas matar entre 360 milhões e 450 milhões de pessoas na União Soviética e na China8.

Em 1950, os militares americanos tinham 298 bombas atómicas; no final da década, o número de ogivas nucleares em sua posse subira para mais de 18 mil. Pelo menos 12 bombardeiros B-52 estavam perma-nentemente no ar, 24 horas por dia, 365 dias por ano, a patrulhar o Atlântico e o Ártico, cada um deles com três ou quatro bombas ter-mo-nucleares. Encontravam-se em alerta constante, prontos a atacar alvos predefinidos na União Soviética, na China e nos países do Pacto de Varsóvia, caso recebessem luz verde. Dezenas de outros bombar-deiros mantinham-se a postos em bases americanas espalhadas por todo o mundo, prontos a descolar em menos de 15 minutos.

O rápido desenvolvimento de novas tecnologias começou, contudo, a transformar a situação. Em maio de 1957, os soviéticos lançaram o seu primeiro míssil balístico intercontinental (Intercontinental Ballistic

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Missile — ICBM). Era capaz de atingir o alvo numa questão de minu-tos. Se se conseguisse produzir ogivas nucleares suficientemente peque-nas para serem transportadas por ICBM, isso constituiria toda uma nova forma de ataque nuclear. Em outubro, os soviéticos puseram em órbita em torno do planeta o primeiro de todos os satélites, o Sputnik, nome que significa «Companheiro de Viagem». Era claro que a tecno-logia de mísseis soviética estava a ganhar a dianteira. Um sentimento de profunda humilhação nos EUA conduziu a discussões sobre uma «discrepância de mísseis», uma «discrepância tecnológica» e, por trás disto, uma «discrepância académica». A situação agravou-se cerca de dois meses depois, quando um míssil American Vanguard, num lan-çamento público perante as câmaras de todo o mundo, subiu alguns metros no ar, caiu e explodiu. A imprensa britânica ridicularizou: «Oh, que grande Flopnik!»9

Em outubro de 1961, os soviéticos foram responsáveis pela maior explosão alguma vez provocada no planeta Terra. Poucos dias depois, o líder soviético Nikita Khrushchev gabou-se no Congresso do Partido Comunista realizado em Moscovo que a detonação equivalia a 50 milhões de toneladas de TNT — muitas vezes mais do que todos os explosivos usados por todos os participantes no conjunto da Segunda Guerra Mundial. Isto representava uma nova geração de superbombas sovié-ticas. Khrushchev declarou aos delegados que esperava que «nunca sejamos obrigados a explodir estas bombas sobre um território estran-geiro». Em privado, referiu-se às novas bombas dizendo que pairavam «sobre a cabeça dos imperialistas, como uma espada de Dâmocles». Era esta a sua versão da doutrina de Retaliação Massiva.

Apesar disso, no final da década de 1950, os EUA ainda não tinham um plano estratégico global para o uso de armas nucleares. O Comando do Pacífico e o Comando do Atlântico tinham os seus próprios alvos, além dos do Comando Aéreo Estratégico. Em 1960 consolidou-se tudo num único documento, conhecido como Plano Operacional Integrado Único (Single Integrated Operational Plan — SIOP). Na eventualidade de se considerar uma guerra nuclear, este plano oferecia ao presidente uma série de opções, que podiam ir desde o ataque a alvos primários até ao lançamento de uma retaliação em grande escala.

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No ano seguinte, o jovem e recém-empossado presidente John F. Kennedy promoveu uma revisão da política nuclear americana. Ficou eliminado ao descobrir que Eisenhower tinha dado aos comandantes da Força Aérea dos EUA o poder de autorizar o uso de armas nuclea-res. O raciocínio subjacente era que, se um primeiro ataque tivesse apagado Washington do mapa e o presidente estivesse morto, seria preciso haver alguém que pudesse autorizar uma retaliação10. Kennedy mudou as regras de modo que apenas o presidente pudesse autorizar o uso de armas nucleares. Além disso, para evitar lançamentos aciden-tais, criou-se um complexo sistema de controlos duplos, com cadeados eletrónicos, para os indivíduos que tinham de facto a tarefa de lançar os mísseis. De seguida, Kennedy e a sua equipa começaram a rever o SIOP para gerir o lançamento de armas nucleares. O presidente rejei-tou o conceito de Retaliação Massiva contra o conjunto do bloco soviético, uma vez que já não se adequava àquela nova era, em que algumas das ameaças eram mais locais e fragmentadas. Kennedy, que confrontou Khrushchev a respeito de Berlim e, mais tarde, a respeito de Cuba, queria um sistema no qual pudesse atacar alvos militares ou locais de lançamento específicos. Queria igualmente ser capaz de gerir uma retaliação seletiva que evitasse ataques a cidades ou até a países inteiros que não fossem beligerantes. Por exemplo, se o objetivo desta forma mais limitada de guerra nuclear era conduzir o outro lado à mesa de negociações, seria inútil aniquilar os líderes políticos, os únicos capazes de discutir um armistício. Este conceito de ataque nuclear limitado — digamos, apenas aos locais de lançamento de mísseis do inimigo — chamava-se «Contraforça». Por fim, como os americanos tinham a política de não usar armas nucleares num primeiro ataque, era preciso criar-se um sistema no qual os EUA tives-sem uma capacidade nuclear suficiente para sobreviver a um ataque preventivo e ainda assim poder retaliar. Tudo isto estava contemplado no novo Plano Operacional Integrado Único de Kennedy.

O novo SIOP acabara de ser criado quando ocorreu o mais assus-tador confronto da Guerra Fria até à data, a Crise dos Mísseis de Cuba, em outubro de 1962. Quando os EUA descobriram que Khrushchev estava a depositar mísseis na Cuba de Fidel Castro, a poucos

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quilómetros da costa da Florida, tornou-se claro que grande parte do território dos EUA não tardaria a estar ao alcance das armas nuclea-res soviéticas. Os militares queriam bombardear os locais que alber-gavam os mísseis antes de serem concluídos, mas Kennedy insistiu na moderação e ordenou um bloqueio naval a Cuba. Durante duas semanas houve uma enorme tensão, com cada lado a tentar evitar «piscar os olhos». Khrushchev finalmente «piscou» e acedeu a retirar os mísseis soviéticos de Cuba, depois de obter um acordo secreto segundo o qual os EUA também retirariam os seus mísseis da Turquia, não muito longe da fronteira soviética. A crise desenrolou-se de forma pública no Ocidente. Boletins televisivos constantes e discursos do presidente e de outras autoridades levaram todo o drama para a sala de estar do cidadão comum. Os americanos procuravam nervosamente o caminho que os levaria da sua casa ou local de trabalho até ao abrigo antinuclear mais próximo. Na Grã-Bretanha, as pessoas não sabiam se era seguro deixar os filhos irem à escola. No final, pareceu que Kennedy obtivera uma grande vitória quando Khrushchev retirou os mísseis de Cuba, pois a compensação da retirada americana da Turquia foi mantida secreta. Mas não há dúvidas de que a moderação de Kennedy salvou muita gente. Hoje sabe-se que, quando os EUA os descobriram, muitos dos locais de lançamento de mísseis estavam operacionais e inteiramente armados. Um ataque a estes pontos teria muito provavelmente provocado uma retaliação nuclear contra o território americano, e isto teria quase de certeza conduzido a um armagedão nuclear11.

Robert McNamara, secretário da Defesa de Kennedy, levou para o Pentágono vários estrategas da RAND Corporation, um grupo de reflexão sobre temáticas de defesa. Criou um novo conceito chamado «Destruição Assegurada». Nenhum dos lados atacaria o outro pois sabia que seria um ato suicida: se uma superpotência atacasse, a outra tinha capacidade nuclear suficiente para ripostar, o que causaria uma destruição massiva. Alguém acrescentou a palavra «mútua» ao conceito, e a «Destruição Mútua Assegurada», mais conhecida pelo acrónimo MAD (de «Mutual Assured Destruction»), tornou-se uma das doutri-nas centrais a escorar a Guerra Fria. McNamara insistia que ela nada

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tinha de loucura e que criava uma espécie de estabilidade, desde que nenhum dos lados considerasse ter vantagem sobre o outro12.

A tecnologia, no entanto, continuou a avançar a um ritmo impres-sionante. Em meados da década de 1960, os soviéticos começaram a desenvolver mísseis antibalísticos (anti-ballistic missiles — ABM) desti-nados a intercetar mísseis inimigos. Basicamente, isto poderia perturbar o equilíbrio nuclear, pelo que causou grande alarme em Washington. O problema era que a organização de defesas contra um ataque com mísseis era uma tarefa assustadoramente complexa. No final da década, os americanos desenvolveram mísseis de reentrada múltipla indepen-dentemente direcionados (multiple independently targetable re-entry vehicles — MIRV); tais armas foram criadas para transportar até dez ogivas com alvos distintos, cada uma delas capaz de destruir uma cidade ou uma instalação militar. De súbito, isto dificultava muitíssimo a tarefa dos mísseis antibalísticos e tornava-a, em última análise, inútil. Bastava que uns quantos mísseis conseguissem atingir os seus alvos para provo-car uma extensa devastação nuclear.

Ambos os lados estavam a gastar somas colossais no desenvolvi-mento de armas que, diziam (pelo menos publicamente), nunca viriam a ser usadas. No final da década de 1960, os americanos tinham claramente recuperado a dianteira na criação deste tipo de tecnologia. Os EUA não só eram capazes de enviar homens à Lua e trazê-los de volta, como também passaram a dispor de uma excelente nova gama de mísseis balísticos intercontinentais, conhecidos como Atlas e Titan. Estes encontravam-se armazenados em silos gigantescos no Midwest. Uma nova geração de mísseis balísticos de alcance intermediário, chamados Thor, foi deixada ao cuidado de aliados da NATO na Europa Ocidental. E, com o Polaris, surgiu todo um novo conceito de mísseis balísticos lançados por submarinos. Com todas estas armas capazes de transportar ogivas nucleares, os mísseis agora podiam ser espalhados por vários continentes e em submarinos discretamente estacionados nos leitos oceânicos. Além disso, foram criados novos sistemas de radar capazes de alertar atempadamente para o lançamento de mísseis inimigos. Ao longo dos anos, cada inovação criada pelos Estados Unidos encontrava um desenvolvimento equivalente na União

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Soviética. Criou-se um vasto arsenal de armas nucleares que tinham a capacidade de destruir todas as formas de vida do planeta Terra. Algo tinha de mudar.

No seguimento da Crise dos Mísseis de Cuba, os EUA e a União Soviética tinham assinado um Tratado de Interdição Parcial de Testes Nucleares, para impedir a realização de mais testes na atmosfera. Foi um primeiro passo no longo caminho de abrandamento da corrida ao armamento. Em 1968, o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nuclea-res foi assinado pelos EUA, pela URSS e pela Grã-Bretanha (a qual também tinha algumas armas nucleares), proibindo a exportação de tecnologia nuclear para outros países (por esta altura, a França e a China possuíam igualmente armas nucleares, mas não assinaram o tratado). Agora, ambas as superpotências aceitavam que era essencial alcançar uma forma de limitação de armamento. As negociações entre as duas partes continuaram a passo de caracol, mas acabaram por resultar na assinatura do Tratado para a Redução de Armas Estratégicas (SALT I), pelo presidente Richard Nixon e pelo líder soviético Leonid Brejnev, numa cimeira realizada em Moscovo em maio de 1972. Paralelamente, também foi assinado um tratado para evitar o desenvolvimento de mísseis antibalísticos. Os tratados congelaram eficazmente os arsenais nucleares das duas superpotências, ao mesmo tempo que garantiam que continuava a ser possível a Destruição Mútua Assegurada. Por outras palavras, cada lado tinha armas nucleares mais do que sufi-cientes para destruir o outro.

O SALT conduziu a uma nova era de tréguas entre as superpotên-cias que se estendeu por grande parte da década de 1970. E, na Europa, uma próspera Alemanha Ocidental reconhecia a existência da Alema-nha Oriental, suscitando o que parecia ser uma forma de reconciliação entre Ocidente e Oriente. Em 1975 foram assinados os Acordos de Helsínquia. Primeiramente, reconheciam as fronteiras da Europa do pós-guerra; de seguida, estimulavam o comércio e o intercâmbio cultural, além de uma cooperação científica e industrial. Uma terceira série de acordos referia-se a problemas de direitos humanos, por ini-ciativa dos negociadores americanos, e incluía uma promessa de livre circulação de pessoas e ideias. Os soviéticos hesitaram, mas acabaram

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por assinar, embora nunca pretendessem dar grande atenção a esta terceira área. O presidente Gerald Ford, que substituíra Nixon depois da sua demissão devido ao escândalo Watergate, deslocou-se a Helsín-quia para assinar pessoalmente. Para simbolizar esta nova unidade entre Oriente e Ocidente, a nave espacial soviética Soyuz e a sua con-génere americana Apollo atracaram-se no espaço. Parecia que uma coexistência pacífica entre as duas superpotências iria finalmente pre-valecer.

No final da década de 1970, há 30 anos que o mundo vivia sob a ameaça de um holocausto nuclear. Mesmo assim, a tecnologia continuou a avançar. O pensamento defensivo soviético tinha contado com o facto de que os líderes do país, que tomariam as decisões cruciais quanto à retaliação na eventualidade de um primeiro ataque americano, teriam tempo de serem evacuados para uma gigantesca cidade subter-rânea, que fora construída fora de Moscovo, através de um sistema ferroviário subterrâneo especialmente pensado para esse efeito. Mas e se fossem atacados subitamente, praticamente do nada? Os soviéticos sabiam que os mais recentes mísseis americanos Pershing, que haviam sido instalados na Europa no outono de 1983, poderiam atingir Moscovo seis minutos após o lançamento. Isto criou um novo nível de pânico no Kremlin. E em Washington era consensual que os sub-marinos soviéticos no Atlântico podiam disparar mísseis contra alvos como a capital americana, e também neste caso seria uma questão de minutos entre a deteção e o momento do impacto. Ambos os lados concluíram que poderia ser necessário lançar primeiro os seus mísseis numa antecipação de um ataque da outra parte, ou, pelo menos, depois de um primeiro alerta de que haveria mísseis a caminho, uma opção chamada «Lançamento sob Ataque».

Apresentava-se agora um grande perigo. Se uma das partes pen-sasse que ganharia uma vantagem em alguma forma de guerra nuclear limitada, por meio de um primeiro ataque que neutralizasse o inimigo, isso aumentaria as probabilidades de uma superpotência lançar um primeiro ataque-surpresa para incapacitar a outra. Ao debilitar o conceito de Destruição Mútua Assegurada, criava um mundo menos estável e muito mais perigoso. No início da década de 1980, algumas

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figuras soviéticas proeminentes começavam a recear que a tecnologia mais avançada dos Estados Unidos encorajaria o inimigo a contem-plar a hipótese de um primeiro ataque-surpresa, de modo a decapitar a União Soviética. Este medo haveria de ganhar peso nos anos que se seguiriam.

É evidente a lição do pensamento da Guerra Fria acerca de estra-tégia nuclear e sobre como e quando usar armas nucleares. Por mais sofisticados que fossem os sistemas, por mais bem preparadas que estivessem as estruturas que governavam o uso de armas nucleares e os protocolos tivessem sido ensaiados, no fim de contas era sempre um indivíduo a carregar num botão. Seria sempre uma única pessoa a ter de interpretar a situação e, finalmente, decidir o que fazer. Ronald Reagan foi eleito presidente dos Estados Unidos em 1980. Eis um resumo da situação nas suas palavras: «A decisão de usar as armas [nucleares] era exclusivamente minha. Tínhamos vários planos de contingência para responder a um ataque nuclear. Mas tudo haveria de acontecer tão depressa que me interroguei: quanto planeamento ou quanta razão poderiam ser aplicados em semelhante crise? Os russos por vezes mantinham submarinos ao largo da nossa costa leste, com mísseis capazes de transformar a Casa Branca numa pilha de entulho em seis ou oito minutos. Seis minutos para decidir como responder a um bip num monitor de radar, para decidir se haveria de desencadear o fim do mundo! Como é que alguém poderia usar a razão num momento assim? […] Era um mero botão o que havia entre nós e a destruição total.»13

Este livro sublinha tal lição ao contar a história da ameaça de guerra em 1983, quando os soviéticos se convenceram de que os Esta-dos Unidos se preparavam para lançar um primeiro ataque nuclear contra eles. É a história de como certas declarações agressivas do presidente Reagan e de outros responsáveis americanos de topo foram mal -interpretadas. Conta a forma como os serviços de informações costumam sempre encontrar provas para corroborar o que quer que os seus chefes desejem. Mostra como acontecimentos menores e impre-visíveis podem rapidamente transformar-se em confrontos graves. E culmina numa noite em que o arsenal nuclear soviético foi posto em

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alerta máximo, quando os mísseis foram preparados em submarinos e em lançadores móveis, quando as aeronaves foram colocadas a postos e quando os comandantes dos silos se prepararam para lançar dezenas de mísseis, cada um dos quais com um poder destruidor centenas de vezes maior do que o da bomba de Hiroxima. Se estes mísseis tivessem sido lançados, teriam desencadeado uma troca nuclear que teria destruído grande parte da América do Norte, a maioria da Ásia e provavelmente toda a Europa. O resultado: um inverno nuclear que se teria apoderado da Terra durante anos ou décadas. O número de mortes ter-se-ia cifrado em centenas de milhões, minimizando todos os outros conflitos da história humana. Esta é a história da altura em que houve mesmo dedos a pairar sobre o botão nuclear, quando era mesmo «um mero botão o que havia entre [o mundo] e a destruição total».

Este livro pretende criar uma nova e acessível narrativa acerca dos acontecimentos do ano de 1983 a que o presidente Reagan chamou «verdadeiramente assustadores». Em complemento das memórias e relatos das figuras que desempenharam papéis importantes nos acon-tecimentos desse ano, baseia-se numa variedade de novas informações espantosas, incluindo as que alguns de nós na Flashback Television descobrimos em 2007 durante a realização de um documentário sobre esta crise. De resto, apresentamos a enorme quantidade de provas reveladas graças aos esforços do Arquivo de Segurança Nacional (National Security Archive — NSA) em Washington, que desenterrou inúmeros documentos oficiais altamente confidenciais de vários arqui-vos do governo nos últimos anos14. Agora é finalmente possível esta-belecer uma versão precisa dos acontecimentos em torno da ameaça de guerra de 1983. Nenhum historiador pode continuar a dizer que se desconhece o que se passou naquele ano. E ninguém poderá negar como tudo isto levou ao ano mais aterrador de uma época em que se vivia diariamente com o perigo.

Os acontecimentos descritos neste livro têm vários ecos no mundo de hoje, nomeadamente o de que todos os sistemas são operados por seres humanos, e os seres humanos são falíveis. Este livro mostra que o tom agressivo e conflituoso de um presidente americano pode

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provocar consequências inesperadas. Também demonstra a insensatez de dispensar qualquer diálogo ou intercâmbio com potenciais inimigos. Isto é tão verdade hoje entre os EUA, o Ocidente e, digamos, os líde-res da Coreia do Norte, do Irão ou do autoproclamado Estado Islâmico quanto era com a União Soviética há várias décadas. Mostra como as informações secretas podem ser mal-usadas ou simplesmente mal--interpretadas. E mostra quão perigoso pode ser o uso — ou até a ameaça de uso — de armas nucleares se não tiverem sido implementados sis-temas de gestão de crise adequados. No nosso mundo multipolar do século xxi, há pessoas que sentem uma certa nostalgia quanto à era da Destruição Mútua Assegurada do mundo bipolar do final do século xx. Espero que, depois da leitura deste livro, ninguém queira regressar à loucura de 1983 e a um mundo à beira de uma guerra nuclear.

No verão de 1983, o público acorreu aos cinemas para assistir ao último filme de James Bond, no qual Roger Moore derrota um general sovié-tico que tenta lançar uma arma nuclear contra o Ocidente15. As pessoas adoraram o filme, mas consideravam que o enredo era completamente fictício, se não perfeitamente absurdo. Mal sabiam que, alguns meses depois, os soviéticos iriam efetivamente preparar-se para lançar um ataque nuclear contra o Ocidente. Por vezes, a realidade é mais inacre-ditável do que a ficção.

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Reagan

Ao meio-dia de 20 de janeiro de 1981, depois de ser empossado por Burger, presidente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, e sendo observado em adoração pela mulher, Nancy, Ronald Reagan ofereceu aos americanos um novo começo. Ao contrário de todos os presidentes anteriores, que tinham prestado juramento atrás do Capitólio, com vista para um parque de estacionamento à sombra, o 40.º presidente americano tomou posse na escadaria dianteira do grandioso edifício, voltado para o National Mall, para o imponente Monumento a Washington e para os memoriais de Jefferson e Lincoln. Quando o novo presidente começou a falar, as nuvens cinzentas dispersaram-se e o sol invernal banhou a assembleia reunida no lado ocidental do Capitólio. Reagan prometeu melhorar a economia, cuja inflação chegava aos 18 por cento. Disse que ia reduzir o enorme défice nacional e, por meio de cortes nos impostos, haveria de «aliviar o punitivo fardo fiscal dos americanos». Afirmou ainda que ia reduzir a dimensão do governo central, proclamando uma frase que se tornaria célebre: «O governo não é a solução para o nosso problema; o problema é o governo.» Usando o tom populista que o tinha ajudado a ser eleito, declarou que ia preocupar-se com todos, com «os profissionais, os industriais, os comerciantes, os escriturários, os taxistas e os condutores de camiões», para criar «um país forte e próspero, em paz consigo e com o mundo». Prometeu que os Estados Unidos teriam «mais força em todo o globo» e que voltariam a ser «um raio de esperança

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para aqueles que não vivem em liberdade». Era uma visão simples, como se retirada de um filme de Hollywood no qual o mundo estava dividido entre os bons e os maus. E o presidente concluiu com uma história sobre um soldado que morrera na Frente Ocidental durante a Primeira Guerra Mundial. Contava-se que fora encontrado no seu corpo um compromisso que dizia: «Hei de me esforçar. Hei de salvar. Hei de me sacrificar. Hei de resistir. Hei de lutar com ânimo e fazer o meu melhor, como se o fim do conflito dependesse apenas de mim.»1 Foi um momento clássico de Reagan, num discurso clássico de Reagan, cheio de retórica senti-mental e otimismo, praticamente vazio de substância e pormenores.

Apenas 40 minutos mais tarde, a tomada de posse foi ofuscada por um acontecimento que emocionou ainda mais os americanos. Um avião Boeing 727 da Algerian Airways descolou do aeroporto de Teerão com os 52 reféns que tinham estado cativos durante 444 dias. Fora uma crise longa e humilhante para os EUA. O presidente cessante Jimmy Carter e a sua equipa tinham negociado pacientemente a libertação destes reféns americanos através de intermediários argelinos e prometido devolver ativos iranianos congelados por meio de uma conta especial no Banco de Inglaterra. Porém, como um insulto final, as autoridades iranianas tinham mantido os reféns à espera no aeroporto até a tomada de posse acabar. A primeira declaração feita pelo recém-empossado conselheiro de Segurança Nacional, Richard Allen, teve como objeto esta libertação. E os louros recaíram sobre o novo presidente. Não há dúvidas de que, naquele dia, o sol sorria mesmo a Ronald Reagan.

Reagan nascera em 1911, numa hospitaleira comunidade rural do Midwest, no Illinois. Cresceu no coração do país, na pequena cidade de Dixon (com uma população de 8191 habitantes): algumas centenas de casas à beira do rio Rock, rodeadas por quintas de exploração leiteira que se estendiam até campo aberto. O pai de Reagan, Jack, de origem irlandesa católica, era um vendedor de calçado com o dom da conversa. Também costumava beber bastante, ao ponto de ter ficado várias vezes inconsciente à frente do filho ainda jovem. A mãe, Nelle, tinha ascen-dência escocesa e, um ano antes de o futuro presidente nascer, juntou--se a uma seita cristã evangélica chamada Discípulos de Cristo, à qual se entregou de corpo e alma. A família nunca foi dona das casas em

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que viveu e muitos dos empregos de Jack não conheceram êxito, o que deixava a família com dificuldades em ter dinheiro ao fim do mês, embora nunca tenham chegado ao ponto de recorrer às cantinas sociais. No entanto, Ronald, conhecido como «Dutch», tornou-se um adoles-cente alto, bonito e glamoroso, uma verdadeira estrela em Dixon na década de 1920, um bom desportista e ator em ascensão que fora abençoado com uma memória fotográfica. Apesar das dificuldades da sua juventude, tinha uma perspetiva otimista, uma forte fé cristã, uma predileção por westerns e um gosto por contar histórias dos livros de aventuras que devorava, geralmente encontrando nelas uma moral em que o bem triunfava sempre sobre o mal.

Após quatro anos a estudar Economia no Eureka College, tornou--se jornalista desportivo no florescente mundo da rádio. Tinha uma grande capacidade para descrever vividamente, em direto, eventos desportivos como partidas de basebol — mesmo que não estivesse presente, o que costumava ser o caso. Depois de se mudar para Des Moines, a capital e maior cidade do estado do Iowa, transformou-se numa celebridade da rádio, e esta fama precoce encorajou-o a dar outro grande passo. Em fevereiro de 1937 foi para Hollywood. A sua boa aparência e personalidade descontraída, mas íntegra, impressionaram Jack Warner, que lhe ofereceu um contrato com a Warner Brothers. Reagan encetou esta nova carreira de forma muito séria: apresentava--se sempre a horas nos locais de filmagem e sabia sempre o seu papel. Nos anos que se seguiram apareceu em mais de 20 filmes, alguns dos quais tiveram um grande impacto; na sua grande maioria eram clas-sificados como filmes de série B. Faziam parte da enorme produção dos estúdios de Hollywood, que, com um pequeno exército de artistas e técnicos, faziam filmes como se se tratasse de uma linha de produção fabril. Eram filmados em cerca de três semanas, não costumavam durar mais de uma hora e constituíam uma primeira parte para o grande filme de série A. Também davam aos estúdios a oportunidade de testar jovens talentos e procurar novas estrelas.

Em 1940, Reagan começou a aparecer num conjunto de filmes que o catapultaram para a primeira liga das estrelas de cinema2. Nesse mesmo ano casou-se com a atriz Jane Wyman. Apesar de Reagan ter

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quase 30 anos e Wyman ter tido dois casamentos anteriores, as revis-tas de cinema descreviam-nos como o «casal americano perfeito»: dois jovens comuns que se tinham apaixonado. E, quando a guerra os separou, tudo parecia corroborar a narrativa. Ronnie, porém, não foi enviado para combater na Europa ou no Pacífico. Em vez disso, cum-priu o serviço militar em Culver City, na Primeira Unidade Cinema-tográfica da Força Aérea, onde fazia filmes de treino. Regressava a casa na maior parte dos fins de semana. Durante a guerra também entrou para a direção do Sindicato dos Atores de Cinema e Televisão, onde passou cada vez mais tempo a trabalhar em questões relacionadas com a corporação.

Antes do final da guerra, Reagan tornara-se um democrata convicto e um apoiante entusiasta do presidente Roosevelt. Em 1945, manifes-tou-se contra o uso da bomba atómica e mostrou-se hostil ao Ku Klux Klan. Nos anos do pós-guerra, contudo, Reagan assumiu uma nova orientação política. A primeira Ameaça Vermelha varreu Hollywood em 1946 e Reagan começou a ver simpatizantes comunistas em todo o lado. Mais tarde escreveu: «O Plano Comunista para Hollywood era notavelmente simples. Tratava-se meramente de se apoderar da indústria cinematográfica […] para construir uma base mundial de propaganda. Naqueles dias […] os filmes americanos dominavam 95 por cento das salas de cinema mundiais. O público semanal era cons-tituído por 500 milhões de almas. Apoderar-se desta enorme indústria e transformá-la gradualmente num instrumento comunista era uma ideia grandiosa.»3 Também haveria de escrever: «José Estaline tinha decidido fazer de Hollywood um instrumento de propaganda para o seu programa de expansionismo soviético, com o objetivo de tornar o mundo comunista.»4

A aliança feita na Segunda Guerra Mundial entre os Estados Uni-dos, os seus aliados e a União Soviética desfez-se bastante rapidamente nos anos posteriores ao conflito. Emergiram velhos medos sob uma nova forma, já que parecia que Estaline tentava controlar a Europa Oriental, e, para usar a célebre expressão de Churchill, uma «Cortina de Ferro» desceu sobre a Europa. Nos EUA, o FBI era a agência domi-nante nos serviços de informações domésticos e, sob o seu lendário

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e conservador diretor, J. Edgar Hoover, assumiu o papel principal na perseguição daquilo que era visto como uma ameaça comunista. Hoo-ver declarou ter descoberto planos de infi ltração em várias dimensões da vida americana e do governo. Juntou uma grande quantidade de provas e revelou algumas delas a congressistas simpatizantes, sabendo que não seriam sufi cientes nos tribunais, mas que ajudariam a alimen-tar uma histeria crescente a respeito da Ameaça Vermelha no país. Em abril de 1947, Reagan reuniu-se com agentes do FBI e deu-lhes uma lista de nomes de pessoas que ele acreditava serem comunistas. Mais tarde tornou-se um informador do FBI, com o nome de código «T-10». E, no mesmo ano, foi eleito presidente do Sindicato dos Atores de Cinema e Televisão.

Em outubro de 1947, o Comité de Atividades Antiamericanas (House Un-American Activities Committee — HUAC) começou a reunir provas da ameaça comunista a Hollywood. Em audições

URSSPOLÓNIA

CHECOSLOVÁQUIA

HUNGRIAROMÉNIA

BULGÁRIA

JUGOSLÁVIA

ÁUSTRIASUÍÇAFRANÇA

ITÁLIA

TURQUIA

ESPANHAGRÉCIA

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NORUEGASUÉCIA

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Bloco Oriental

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Cortina de Ferro

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ALEMANHAOCIDENTAL

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públicas, Reagan apresentou um semblante moderado e declarou que Hollywood, em geral, e o Sindicato dos Atores de Cinema e Televisão, em particular, seriam capazes de lidar sozinhos com o problema e fazer a purga de quaisquer agentes comunistas. Discretamente, no entanto, ia transmitindo nomes ao FBI. A maioria dos argumentistas, realiza-dores e atores intimados a comparecer perante o HUAC forneceram informações, mas um pequeno número recusou responder a perguntas respeitantes à sua orientação política e reclamou imunidade à luz da Primeira Emenda. Um grupo de produtores, realizadores e argumen-tistas conhecido como Os Dez de Hollywood foi acusado de desrespeito pelo Congresso e recebeu penas de prisão que iam de seis meses a um ano. Quando foram libertados, os estúdios de Hollywood recusaram dar-lhes trabalho — seriam os primeiros de várias centenas de figuras a constar na lista negra nos anos seguintes. Alguns dos nomes que figuravam nessa lista nunca voltaram a trabalhar. Outros mudaram-se para a Europa em busca de trabalho. Alguns só conseguiam trabalhar sob pseudónimo. Reagan nada fez para reabilitar estes profissionais e em público até negava a existência de uma lista negra5.

Enquanto tudo isto ocorria, o próprio Reagan teve de enfrentar grandes mudanças na sua vida pessoal. Embora aparecesse em vários filmes, tinha dificuldade em encontrar papéis que quisesse interpretar. Uma nova moda de realismo tomava agora Hollywood, cujos filmes começavam a ser mais negros do que tinham sido antes da guerra. Ele não queria trabalhar nos filmes mais sérios e difíceis que se iam fazendo, ao contrário da mulher, Jane Wyman, que abraçou vários papéis com-plexos e ganhou um Óscar pelo seu desempenho no papel de uma surda-muda vítima de violação6. Ronnie desejava ser o herói de ação e aventura dos filmes de puro entretenimento, mas na maior parte das vezes costumava receber o papel do bom rapaz sempre em defesa de boas causas. Nenhum dos seus filmes desta época foi um êxito de bilheteira, e um deles integra uma lista dos 50 piores filmes de todos os tempos7. Em 1948, ele e Wyman divorciaram-se — a mulher pro-cessou-o alegando crueldade psicológica, por não levar a sério as suas ideias e opiniões. Tudo isto o levou a assumir um papel mais político. Tornou-se conhecido na pele de cruzado anticomunista e dedicou mais

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tempo ao Sindicato dos Atores de Cinema e Televisão. Quando, em 1952, se casou com Nancy Davis, isso pareceu estimular tal trajetória. Ela era uma aspirante a atriz quando se conheceram, mas agora devo-tava-se ao marido e incitava-o a ser ainda mais ambicioso. Nancy passara a querer interpretar o papel da mulher zelosa e adoradora, e continuou a fazê-lo até ao fim da sua vida, criando uma relação verdadeiramente próxima e afetuosa com o marido.

Em 1954 Reagan parecia derrotado. Denunciara o contrato com a Warner Brothers, mas não tinha encontrado noutro lado os papéis que queria. Num célebre filme frequentemente recordado, chegou a ser ofuscado por um chimpanzé8. Encontrava-se em dificuldades financeiras e a sua carreira de ator parecia ter acabado. Foi então salvo por um contrato com a General Electric para apresentar um programa no canal CBS. Além disso, quando o programa não era exibido, todos os anos tinha de passar 16 semanas em digressões de relações públicas em fábricas da General Electric espalhadas por todo o país. Era uma altura em que as grandes empresas gastavam somas consideráveis para vender os seus novos produtos e promover o Sonho Americano consumista. O slogan da própria General Electric era: «O progresso é o nosso produto mais importante.»9 De 1954 a 1962, Reagan passou na estrada o equivalente a dois anos, visitando 139 fábricas da General Electric e discursando perante 250 mil funcio-nários. O seu trabalho cinematográfico permitiu-lhe ter um desem-penho confiante no novo meio de comunicação que era a televisão, além de o ter tornado uma das caras mais conhecidas dos EUA. E o seu trabalho como relações públicas ajudou-o a aperfeiçoar a capacidade oratória. Os seus discursos não costumavam variar: incluíam elogios à General Electric e aos seus produtos, intercalados com piadas, histórias e avisos contra a ameaça comunista, e eram concluídos com um gracejo. Também descobriu que as queixas contra a burocracia federal eram uma boa forma de animar o público11. Reagan emergia lentamente como um destacado porta-voz da direita conservadora, profundamente imbuído de uma crença no individua-lismo e no comércio livre, apresentada como uma apaixonada defesa da liberdade, e profundamente hostil ao comunismo, à máquina do

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Estado e àquilo que dizia ser um socialismo insidioso, especialmente sob a forma de impostos pesados e serviços de saúde.

Assim, durante oito anos a General Electric ajudou Reagan a aprimorar as suas competências e a difundir a sua reputação por todo o país. Na eleição presidencial de 1964, apoiou o candidato republicano de extrema-direita Barry Goldwater. Mas este era demasiado extremista para ganhar o voto popular, e no seguimento de um emocionante discurso de campanha escrito por Reagan muitos republicanos vete-ranos começaram a perguntar-se se o ex-ator não teria sido um melhor candidato. O presidente Johnson foi reeleito com uma vitória esma-gadora e deu início às reformas Great Society, quase tão importantes quanto o New Deal de Franklin Delano Roosevelt 30 anos antes, embora tenham perdido ímpeto e financiamento no contexto de uma escalada da guerra no Vietname.

Alguns amigos poderosos convenceram Reagan a candidatar-se ao cargo de governador da Califórnia em 1966. Muitos acreditavam que as suas hipóteses eram reduzidas, num estado onde os democratas registados superavam os republicanos num rácio de três contra dois. Mas, com a ajuda de uma equipa de imagem, Reagan revelou ser um candidato competente e apelativo. Adequava-se bem a anúncios tele-visivos despretensiosos e ao molde populista de «cidadão-político» que traria novos valores à governação. A sua fraqueza, contudo, era a especificação de políticas. Quando um jornalista lhe perguntou que tipo de governador seria, respondeu: «Não sei, nunca interpretei o papel de governador.»12 Depois de o adversário, o governador democrata Pat Brown, fazer pouco da sua falta de experiência, Reagan retorquiu: «A pessoa no cargo tem mais experiência do que qualquer outra. É por isso que me candidatei.»13 Venceu com uma maioria de quase um milhão de votos.

Os oito anos de Reagan como governador da Califórnia deram--lhe uma preciosa experiência executiva. Tinha uma postura de não-interferência e deixou claro que a sua liderança assentaria num modelo de conselho governamental. Acreditava que era possível encontrar boas pessoas para gerir os vários departamentos e que

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deveriam ser elas a elaborar políticas detalhadas. Ele agia como um presidente do conselho e estabelecia a orientação geral. A propósito de qualquer novo assunto, costumava pedir um resumo de uma página dos argumentos a favor e contra. Mais tarde, um dos membros da sua equipa escreveu: «Reagan era um macrogestor e, por vezes, não era gestor de todo.»14 Contudo, também mostrou que não era um ideólogo de direita, mas um líder disponível para encontrar entendi-mentos. Embora tivesse reclamado uma redução de impostos e uma redução da dimensão do governo, uma das suas primeiras ações, em fevereiro de 1967, foi requerer quase mil milhões de dólares em aumen-tos de impostos, a maior subida no âmbito dos impostos estaduais daquela altura. Os democratas julgaram que isso haveria de lhe minar a credibilidade. Reagan respondeu que só estava a resolver problemas que tinha herdado dos seus antecessores. A sua taxa de popularidade continuou a crescer15.

Candidatou-se a um segundo mandato, apresentando-se novamente como um «cidadão-político» de fora do sistema, como se não tivesse estado no poder nos quatro anos anteriores. Ganhou as eleições com uma maioria de votos de cerca metade do que obtivera da primeira vez. Todavia, foi convincente o bastante, e o seu segundo mandato revelou-se mais notável. Defendeu que os subsídios estavam mal geridos, que não havia incentivos para que os pobres trabalhassem, e afirmou que havia adolescentes a engravidar só para obterem pres-tações sociais. Então, negociou uma complexa lei de assistência social que dava mais aos necessitados e, ao mesmo tempo, implementava controlos antifraude e apertava as regras de elegibilidade. O orçamento de assistência social da Califórnia começou a reduzir-se e aquela lei tornou-se um modelo para muitos outros estados nos anos vindouros. E Reagan conseguiu manter os republicanos da Califórnia unidos durante oito anos tumultuosos.

Em 1974 já estava farto do papel de governador, pelo que saiu da corrida, provavelmente já de olho na campanha presidencial de 1978, quando Nixon teria cumprido o seu mandato de oito anos. No entanto, Nixon apresentou a demissão na sequência do escândalo Watergate,

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antecipando-se a uma destituição quase certa, e o vice-presidente Gerald Ford assumiu o cargo. Apesar de enfrentar o presidente em exercício, Reagan apresentou-se contra Ford nas primárias republicanas de 1976, ficando em segundo lugar por muito pouco. Nas eleições presidenciais, contudo, Ford foi derrotado por Jimmy Carter, o candidato democrata da Geórgia. Reagan parecia agora ser o favorito para a nomeação republicana em 1980, mas votariam os eleitores americanos no Grand Old Party que Nixon desacreditara? Talvez os democratas ficassem no poder por oito anos, se não mais.

O curso dos acontecimentos favoreceu Reagan nos anos seguintes. A inflação subiu, enquanto a economia estagnou, com a taxa de desem-prego a chegar aos 7 por cento em 1980 — realidade traduzida no novo conceito «estagflação», que parecia ir contra as ortodoxias económicas do pós-guerra. Pior, os EUA aparentavam estar a perder a Guerra Fria. Depois da humilhação da retirada do Vietname, esse país, em conjunto com os seus vizinhos Camboja e Laos, caiu em mãos comunistas. Em África surgiam cada vez mais guerrilhas estimuladas por Cuba, e Angola e Moçambique sucumbiram a regimes apoiados pelos soviéticos. Mos-covo expandiu ainda mais a sua influência na América Central com a vitória dos sandinistas na Nicarágua. Mais humilhante foi a perda do xá do Irão, um amigo de longa data dos EUA. Durante 25 anos o xá conduzira um processo de ocidentalização do Irão e, em compensação por enormes concessões feitas a empresas petrolíferas inglesas e ameri-canas, recebia dividendos substanciais. Mas os opositores deste regime corrupto conseguiram que o xá abdicasse em janeiro de 1979 e fosse substituído pelo aiatola Khomeini, um clérigo islâmico fundamentalista. A nova e severa república islâmica reverteu o processo de ocidentaliza-ção e os seus líderes denunciaram o «Grande Satanás» que eram os EUA. O maior dos insultos deu-se quando, em novembro de 1979, estudantes militantes invadiram a embaixada americana em Teerão e tomaram os seus funcionários como reféns. Uma malsucedida tentativa de resgate por parte dos militares resultou num acidente, quando um helicóptero americano colidiu com um avião de reabastecimento no deserto. Foi a gota de água. O presidente Carter não só parecia fraco

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como, na qualidade de comandante supremo, foi também responsabi-lizado pelo desastre. Tudo isto ofereceu a Reagan uma excelente opor-tunidade para advogar o renascimento do poderio militar da superpotência que eram os EUA.

O Comité para o Perigo Presente (Committee on the Present Danger — CPD), um grupo de reflexão constituído por conservadores e ex-liberais de renome, tentou alertar o país para o que viam como uma crescente ameaça soviética. Opunha-se à política de tréguas da Guerra Fria que aproximara os EUA e a URSS numa série de eventos culturais e políticos e que culminara na assinatura dos Acordos de Helsínquia em 1975. Mas, no final dessa década, os soviéticos come-çaram a apostar numa nova geração de mísseis de alcance intermediá-rio, os SS-20, e pareceram lançar uma ofensiva no Terceiro Mundo, apoiando uma série de movimentos de libertação de vários países. O CPD defendia que a União Soviética estava a aproveitar-se do facto de os EUA terem baixado a guarda. Nas suas publicações, o Comité avisava quanto a um «ímpeto de domínio» soviético e o desejo de uma «ordem mundial comunista», para a concretização da qual se levara a cabo uma «preparação militar sem precedentes». Previa que «dentro de alguns anos [os soviéticos vão] alcançar uma superioridade estraté-gica sobre os Estados Unidos». Além disso, advertia que os soviéticos tinham uma filosofia diferente quanto aos EUA e que as «forças nuclea-res soviéticas, defensivas e ofensivas, foram concebidas para permitir que a URSS trave, vença e sobreviva a uma guerra nuclear»16. Esta declaração baseava-se em informações pouco consistentes acerca da existência de um programa de proteção civil russo, que previa a eva-cuação de cidades na eventualidade de um conflito nuclear. Mas ajudava a convencer muita gente de que os soviéticos estavam a pre-parar-se belicamente. O CPD exerceu uma grande pressão contra o segundo Tratado para a Redução de Armas Estratégicas (SALT II), alegando que se tratava simplesmente de uma forma de apaziguar os soviéticos. Os representantes do CPD percorreram o país de uma ponta à outra e passaram pelos estúdios de todos os canais de televisão para fazer soar o alarme.

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Em 1979, Reagan integrou o comité executivo do CPD. Admitiu que não estava bem informado relativamente a questões de segurança nacional e o CPD influenciou muitos aspetos do seu pensamento político ainda em desenvolvimento. Nos discursos que fazia, Reagan usava vários temas do CPD e começou a chamar a atenção para os cada vez maiores gastos militares soviéticos. Afirmava que, durante a década de 1970, os americanos tinham gastado em defesa 240 mil milhões de dólares a menos do que os soviéticos. E previa que a década seguinte seria «uma das mais perigosas da civilização ocidental». Dizia que os soviéticos constituíam uma ameaça ao Irão, ao Médio Oriente e à Ásia Oriental. Quando os soviéticos invadiram o Afeganistão, a 25 de dezembro de 1979, acabaram por fazer o jogo dele. Carter anunciou uma série de sanções comerciais, abandonou o SALT II e promoveu um boicote aos Jogos Olímpicos de Moscovo no verão seguinte. Mas, mais uma vez, sugeria fraqueza. A solução de Reagan era gastar o que fosse preciso para igualar a preparação soviética, de modo que os EUA pudessem novamente argumentar a partir de uma posição de força. Em vários comícios, repetiu a observação: «Estamos numa corrida às armas, mas só um dos lados está a correr.»17 As suas palavras soavam de forma muito persuasiva. Reagan passara a apre-sentar-se como um proeminente combatente da Guerra Fria. E parecia oferecer uma forma de devolver a força aos EUA depois de quase uma década de redução de gastos, no seguimento da derrota no Vietname.

O principal oponente de Reagan nas primárias republicanas de 1980 era George H. W. Bush, ex-diretor da CIA e representante diplo-mático na China. Este acusou Reagan de promover uma «economia de vudu» ao seguir o monetarismo de Milton Friedman e ao defender enormes cortes de impostos. Porém, quando Bush foi derrotado na convenção do partido em Detroit, ambos os homens puseram as hos-tilidades de lado e Bush juntou-se a Reagan como seu vice-presidente nas eleições presidenciais. A formidável dupla ajudou a entregar o estado do Texas aos republicanos e a trazer para a mesa alguma experiência em negócios estrangeiros. Unindo grande parte do GOP à direita cristã evangélica, Reagan preferiu disputar as eleições de 1980 com base não

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em ideologia, mas em personalidade e capacidade de liderança. A Casa Branca, por outro lado, escolheu pintar Reagan como um extremista mal-informado e de cabeça vazia. Não reparou, contudo, que ele tinha captado o estado de espírito do país. As sondagens davam a vitória ora a um lado, ora a outro, mas, quando chegou o dia das eleições, Reagan ganhou com 51 por cento dos votos; Carter ficou com 41 por cento; os independentes arrecadaram o resto. Apenas metade do eleitorado votou, mas Reagan tinha vencido de forma convincente, em particu-lar no Sul e no Oeste, onde prosperavam novas indústrias que iam da defesa à eletrónica. Além disso, os republicanos ganharam a maioria do Senado pela primeira vez desde 1954 e aumentaram a sua represen-tação no Congresso.

De forma não muito diferente de Donald Trump quando este chegou à Casa Branca três décadas e meia mais tarde, Reagan apre-sentou-se como um forasteiro que vinha revolucionar Washington. Nos departamentos de Defesa, de Estado, de Segurança Nacional, bem como no Tesouro e em muitos outros departamentos federais, os recém-chegados varreram as velhas ideologias e trouxeram novas ideias políticas. Como disse um íntimo de Washington, «pela primeira vez em décadas, um presidente recém-eleito orquestrou um plano de batalha abrangente para ganhar controlo de uma cidade que há muito se julgava estar em mãos inimigas […] Entre novembro e janeiro, [a equipa de transição] usou as suas forças para concretizar um blitz político»18. Alexander Haig, ex-general de quatro estrelas, líder da NATO e chefe de gabinete de Richard Nixon, foi nomeado secretário de Estado. Caspar Weinberger, que trabalhara com Reagan na Cali-fórnia, foi nomeado secretário da Defesa, embora não tivesse experiên-cia nesse domínio. James Baker, responsável pela campanha de Bush nas primárias e que conhecia bem os corredores da capital, juntou-se à equipa como chefe de gabinete. O seu vice era Michael Deaver, há muito conselheiro e guru de relações públicas de Reagan. O papel adicional que Deaver desempenhara desde os tempos passados no governo da Califórnia era o de ligação a Nancy, que permanecia muito próxima do marido em todos os assuntos e bastante protetora dos seus

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interesses. Se ela não estivesse satisfeita, Deaver falava regularmente ao telefone com a primeira-dama, às vezes até uma dúzia de vezes por dia19. Se Nancy considerasse que Ronnie não estava a ser bem aconse-lhado ou se um assessor estivesse a vacilar, ela dava a conhecer a sua opinião através de Deaver. Um funcionário que, mais tarde, se torna-ria uma figura essencial daquela administração escreveu que, com o passar dos anos, Deaver «se transformou num fiel serviçal de família»20. Edwin Meese, outro assessor que trabalhara com Reagan desde 1967, também se juntou ao núcleo duro da equipa da Casa Branca. Richard Allen, um importante membro do CPD, foi nomeado conselheiro de Segurança Nacional. Foram atribuídos a 50 membros do comité pos-tos de topo na nova administração. A equipa de Reagan no seu conjunto partilhava os mesmos objetivos gerais.

Com tudo devidamente preparado, Reagan dirigiu-se à escadaria ocidental do Capitólio a 20 de janeiro de 1981 para interpretar o maior papel da sua vida. A duas semanas de completar 70 anos, era o mais velho presidente dos EUA a tomar posse21. No entanto, estava em forma e, com 1,85 metros de altura, ainda era bem-parecido, não estava grisalho e o seu rosto brilhante ainda não exibia muitas rugas. Era a personificação da saúde, e os americanos gostam que os seus líderes tenham bom aspeto. Também tinha um otimismo inesgotável, além de um sorriso sedutor e um riso apelativo. Passara décadas a preparar--se para aquele papel, a viajar pelo país para fazer discursos, a aprender a divertir, mas também a emocionar o público, e sobretudo a descobrir como exprimir o estado de espírito coletivo e conduzir as pessoas aonde talvez nem soubessem que queriam ir. Era igualmente capaz de fazê-las sorrir ou rir e tinha sempre uma chalaça pronta no seu repertório. Movimentara-se facilmente pelos grandes meios de comunicação do século xx, primeiro tornando-se conhecido na rádio, depois transfor-mando-se numa estrela de cinema, e por fim aprendendo a servir-se habilmente da televisão. Politicamente, começara como progressista e democrata, mas ao longo de 35 anos tinha vindo a aproximar-se gradualmente da direita. Ajudara o Partido Republicano a renascer como uma força que unira conservadores com muitas perspetivas

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diferentes. Aprendera a estabelecer acordos estando no poder e conhe-cia a arte da negociação. Continuava a ser uma figura pouco consensual, pois muitas pessoas viam-no como um tolo com uma visão simplista do mundo, um mero ator que decorava guiões. Mas encontrava-se agora no maior dos palcos e o seu desempenho haveria de ajudar a mudar o mundo.

No ano seguinte, em circunstâncias complemente diferentes, iria ocorrer outra transição — a oito mil quilómetros de Washington, no outro polo da Guerra Fria.

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