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Resenhas Os intelectuais na Idade Média autor Jacques Le Goff cidade Rio de Janeiro editora José Olympio ano 2003 O livro de Jacques Le Goff foi editado pela primeira vez em 1957 e teve sua segunda edição em 1985, sem modificações (ambas por Editions du Seuil). Essa nova edição em língua portuguesa confirma, mais uma vez, sua importância entre os clássicos que nos possibilitam uma leitura da educação inserida nos fenômenos de longa duração, es- pecialmente quando propicia uma releitura de um período histórico que foi preconceituosamente convencionado como a “Idade das Trevas”. O leitor ainda tem acesso ao ensaio bibliográfico cuidadosamente prepa- rado por Le Goff (36 páginas). Entre os problemas colocados pelo au- tor está o da organização corporativa do magistério, presente desde a gênese da sua constituição. Um outro aspecto que se destaca na leitura é a gênese da definição da “função docente” imbricada na negociação do reconhecimento social. Os intelectuais estão situados na evolução escolar, na revolução urbana que vai do século X ao século XIII: a separação entre escola monástica, reservada aos futuros monges, e es- cola urbana, em princípio aberta a todos, sem exclusão dos estudantes que permanecem leigos. Ao lado do nascimento e da riqueza, o sistema universitário permitiu uma real ascensão social a um certo número de filhos de camponeses, por meio do exame, um processo totalmente novo no Ocidente. Foi pela evolução das escolas catedrais, assumindo um caráter mais corporativo, que se alcançou o instituto de universidade: o studium generale. Em Paris, o studium generale nasce ao redor da escola epis- copal onde se destacou o prestígio de Abelardo, por volta de 1150, instituindo um curso referente ao trivium (as três artes liberais ele- mentares: gramática, retórica, lógica), depois à teologia, ao direito, à medicina, que vinham constituir o nível superior de ensino. Os cursos eram de artes e teologia. Para a docência de artes exigia-se pelo me-

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  • Resenhas

    Os intelectuais na Idade Mdia

    autor Jacques Le Goffcidade Rio de Janeiroeditora Jos Olympioano 2003

    O livro de Jacques Le Goff foi editado pela primeira vez em 1957e teve sua segunda edio em 1985, sem modificaes (ambas porEditions du Seuil). Essa nova edio em lngua portuguesa confirma,mais uma vez, sua importncia entre os clssicos que nos possibilitamuma leitura da educao inserida nos fenmenos de longa durao, es-pecialmente quando propicia uma releitura de um perodo histrico quefoi preconceituosamente convencionado como a Idade das Trevas. Oleitor ainda tem acesso ao ensaio bibliogrfico cuidadosamente prepa-rado por Le Goff (36 pginas). Entre os problemas colocados pelo au-tor est o da organizao corporativa do magistrio, presente desde agnese da sua constituio. Um outro aspecto que se destaca na leitura a gnese da definio da funo docente imbricada na negociaodo reconhecimento social. Os intelectuais esto situados na evoluoescolar, na revoluo urbana que vai do sculo X ao sculo XIII: aseparao entre escola monstica, reservada aos futuros monges, e es-cola urbana, em princpio aberta a todos, sem excluso dos estudantesque permanecem leigos. Ao lado do nascimento e da riqueza, o sistemauniversitrio permitiu uma real ascenso social a um certo nmero defilhos de camponeses, por meio do exame, um processo totalmentenovo no Ocidente.

    Foi pela evoluo das escolas catedrais, assumindo um cartermais corporativo, que se alcanou o instituto de universidade: o studiumgenerale. Em Paris, o studium generale nasce ao redor da escola epis-copal onde se destacou o prestgio de Abelardo, por volta de 1150,instituindo um curso referente ao trivium (as trs artes liberais ele-mentares: gramtica, retrica, lgica), depois teologia, ao direito, medicina, que vinham constituir o nvel superior de ensino. Os cursoseram de artes e teologia. Para a docncia de artes exigia-se pelo me-

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    nos seis anos de estudo e a idade mnima de 20 anos. Para o ensinode teologia requeriam-se pelo menos oito anos de estudos (cincoanos de teologia e a idade de 34 anos). Concludo o curso de artes oestudante prestava exame diante de trs ou quatro mestres; em se-guida era admitido Determinatio, ou seja, exposio indepen-dente e pessoal de certas questes, sob a presidncia do respectivoprofessor. Este evento dava-se no perodo quaresmal. Promovido abacharel (baccalaureus), passava a explicar publicamente os livrosoficiais de texto por um espao de dois anos. Esses livros eram asobras de Aristteles e as obras gramaticais de Prisciano. Depois dis-so recebia o ttulo de Magister Artium. Para o magistrio de teologiaa exigncia era maior, exigia-se trs bacharelados: o bacharel bbli-co lecionava durante dois anos a Sagrada Escritura. O bacharelsentencirio lecionava as sentenas de Pedro Lombardo, depois dis-so tinha-se o Magister actu regens. As duas principais formas deensino eram a lio (lectio), que consistia na leitura e na explicaode um determinado texto e a disputao (disputatio), que era condu-zida por um ou mais mestres, numa espcie de torneio intelectual.

    O mundo muulmano precisava das matrias-primas do ocidente(madeiras, espadas, peles, escravos) para suas enormes clientelasurbanas de Damasco, de Feustat, de Tunis, de Bagd, de Crdoba.Os embries das cidades so os portus e se desenvolvem de modoautnomo ou ligado aos flancos das cidades episcopais ou dosburgos militares, desde o sculo X. No sculo XII os produtosmais raros do Ocidente vm do Oriente, com as especiarias e a sedaos manuscritos trazem ao Ocidente cristo a cultura greco-rabe. Asobras de Aristteles, de Euclides, de Ptolomeu e de Galeno acompa-nharam no Oriente os cristos herticos monofisistas e nestorianos e os judeus perseguidos por Bizncio, e por eles foram legadas sbibliotecas e escolas muulmanas que as receberam em grande n-mero. O encontro entre o Ocidente e o Oriente , antes de tudo, umafrente militar de combate com armas, nas Cruzadas. Os tradutoresdo grego para o latim foram espanhis que viveram sob o domniomuulmano, assim como judeus e muulmanos. Le Goff empenha-se em mostrar que mais do que a matria, a contribuio maior tal-vez tenha sido o mtodo: a curiosidade, o raciocnio e toda LgicaNova de Aristteles com as duas Analticas (priora e posteriora), osTpicos, os Elenchi (Sophistici Elenchi) que acrescentaram Lgi-

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    ca Vetus conhecida por meio de Bocio. As contribuies propria-mente rabes podem ser exemplificadas na aritmtica, e particular-mente com a lgebra de Al Karismi espera de que nos primeirosanos do sculo XIII, Leonardo de Pisa d a conhecer os algaris-mos ditos arbicos, na verdade indianos, mas vindo da ndia pelosrabes. Os centros dessa incorporao cultura crist so represen-tados por Chartres, as vizinhanas de Paris, mais tradicionalmenteLan, Reims, Orlans e as feiras de Champagne.

    Em Paris a voz dos goliardos peculiar. De origem urbana, cam-ponesa ou nobre, antes de tudo so errantes, representantes tpicosde uma poca em que o desenvolvimento demogrfico, o despertardo comrcio e a construo das cidades lanam nas estradas e reuni-do em suas encruzilhadas, que so as cidades, os deslocados, auda-ciosos e infelizes, que excludos das estruturas estabelecidasrepresentam o maior escndalo para os espritos tradicionais (p. 48).A Alta Idade Mdia esforava-se para situar cada um no seu lugar,na sua ocupao, na sua ordem, na sua condio. Os goliardos for-mam nas escolas urbanas aqueles grupos de estudantes pobres quevivem de expediente, tornam-se domsticos dos condiscpulos afor-tunados ou vivem de mendicncia. Alguns, para ganhar a vida, tor-nam-se jograis ou bufes. Entre os goliardos encontraremos, talvez,Pedro Abelardo que, ao tornar-se um mestre, se estabeleceu no Montede Sainte Genevive. Abelardo foi antes de tudo um lgico e deixouum mtodo com seu Manual de lgica para principiante e sobretu-do com Sic et non. Afirma que preciso uma cincia da linguagem,j que difcil para as pessoas se entenderem. As palavras so feitaspara significar e constituem o nico lugar da generalidade onominalismo , mas as palavras tambm tm fundamento na reali-dade. Le Goff tambm revisita a relao entre Abelardo e Helosafazendo consideraes sobre a corrente antimatrimonial do sculoXII, destacando o tema da mulher e do casamento nesse perodo (p.64) ao lembrar que a prpria Helosa evoca a imagem do casal inte-lectual pobre que formariam (p. 65) sem poder conciliar as respon-sabilidades de trabalho intelectual e a infra-estrutura que uma talfamlia necessita, quando se um professor.

    Chartres o grande centro cientfico em que no se desenha-vam as artes do trivium, mas o estudo das coisas, que eram objeto doquadrivium aritmtica, geometria, msica e astronomia. Os

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    chartrianos sustentam seu racionalismo na crena sobre a onipotn-cia da natureza. A natureza em primeiro lugar um poder fecundan-te, perpetuamente criador, mater generationis (me da gerao, megeradora). Mas a natureza tambm o cosmos, um conjunto organi-zado e racional. a rede das leis, cuja existncia torna possvel enecessria uma cincia racional do universo. O esprito chartriano humanista no apenas no sentido que invoca a cultura antiga paraedificao de sua doutrina, mas porque pe o homem no corao desua cincia e de sua filosofia. Retoma a metfora estica do mundo-fbrica, mediante obra de Gerhoch de Reichersberg, o Livro sobre oedifcio de Deus. Para Honrio de Autun, o exlio do homem aignorncia e sua ptria a cincia. Chegamos a essa ptria pelasartes liberais, que so igualmente cidades-etapas. A primeira cidade a gramtica, a segunda cidade a retrica, a terceira cidade adialtica, a quarta cidade a aritmtica, a quinta cidade a msica,a sexta cidade a geometria e a stima cidade a astronomia, aoitava cidade a fsica, na qual Hipcrates ensina aos peregrinos asvirtudes e a natureza das ervas, das rvores, dos minerais, dos ani-mais; a nona cidade a mecnica, pela qual os peregrinos aprendem otrabalho com os metais, a madeira, o mrmore, a pintura, a escultura etodas as artes manuais; a dcima cidade a economia que a porta daptria do homem, nela se regulamentam os Estados e as dignidades,nela se distinguem as funes e as ordens.

    O autor enfatiza, sobremaneira, o ofcio de ensinar ao afirmarque o sculo XIII o sculo das universidades porque o sculodas corporaes. A dinmica de todas as corporaes a mesma:Em cada cidade em que existe um ofcio agrupando um nmeroimportante de membros, esses membros se organizam em defesa deseus interesses para instaurar um monoplio que os beneficiem(p. 93). Entretanto a dinmica da universidade pe no centro do de-bate a relao entre o conhecimento e a sustentao, a aliana ou aruptura com os poderes. lutando, ora contra os poderes eclesis-ticos, ora contra os poderes leigos, que as universidades adquiremsua autonomia (p. 94). O caso exemplar de Paris destacado emseus sangrentos acontecimentos, que pem frente a frente os estu-dantes e a polcia real, culminado na conquista da autonomia dauniversidade. Durante dois anos no h cursos em Paris: s em 1231 que So Luis e Branca de Castela reconhecem solenemente a inde-

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    pendncia da universidade. Os universitrios encontraram um alia-do todo-poderoso: o papado. Isso teve um preo, claro. Assim osprofessores se tornaram agentes pontifcios. Assim, nascidos de ummovimento que caminhava para o laicismo, integram-se igreja,mesmo quando buscam, institucionalmente, sair dela (p. 100).

    A questo salarial dos intelectuais apresentada a partir do dile-ma salrio X benefcio, a tendncia preponderante foi a dos mestresem viver do dinheiro pago pelos estudantes. A gratuidade do ensino,proclamada pela Igreja no Conclio de Latro de 1179, tinha comoobjetivo garantir o ensino aos estudantes pobres. Mas a Igreja nopode mant-los. As congregaes seculares opunham-se extensodo espao ocupado nas universidades pelos mestres pertencentes snovas ordens mendicantes. Os mendicantes, graduando-se em teo-logia, lecionam sem ter obtido previamente o mestrado em artes e,vivendo de esmolas, no exigem pagamento.

    No declnio da Idade Mdia, entre as guerras e a evoluo darenda feudal que assume a forma monetria, as classes dos artficesassumem formas proletrias, igualando-se aos camponeses. As ca-madas superiores fundem-se classes dominantes. So designadospara lecionar os obscuros professores das escolas comunais, nomomento em que o ttulo de mestre adquire um outro status. Deincio, no sculo XII, o magister o contra-mestre, o chefe da ofici-na. O mestre-escola mestre como so os outros artesos. Isso mudaquando os intelectuais no aceitam mais o risco de serem confundi-dos com trabalhadores. Assim se cumpre a ciso entre a teoria e aprtica, entre a cincia e a tcnica, modificando o impulso que nosculo XII e XIII aproximava as artes liberais das artes mecnicas.O exemplo principal encontrado na medicina: a separao opera-se entre o mdico-clrigo e o boticrio-comerciante, cirurgio. Nosculo XIV a diviso de cirurgies, distinguindo os cirurgies debeca (bacharel ou licenciado) e os barbeiros (que cortam barba ecabelo e fazem pequenas cirurgias, vendem ungentos, fazem san-grias, curam feridas, contuses e abrem abscessos), feita por meiode diferentes editos.

    A mudana social faz operar uma modificao na prpriaescolstica que passa a renegar suas exigncias fundamentais. Noque se refere ao equilbrio entre a razo e a f (p. 162) as expres-ses dessa mudana podem ser destacadas na corrente crtica e cti-

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    ca que tem sua origem em Duns Scot e Ockham. Por essa correntechegamos distino entre um conhecimento abstrato e um conhe-cimento intuitivo: o conhecimento abstrato no nos permite saberse uma coisa que existe, existe, ou se uma coisa que no existe, noexiste... o conhecimento intuitivo aquele atravs do qual sabemosque uma coisa , quando ela ; e que ela no , quando ela no (p.163), passando-se assim para a valorizao do livre-arbtrio. Outrasexpresses so encontradas no experimentalismo cientfico(Autrecourt, Buridan, Oresme), que enfatiza a experincia no doutudo isso como certeza, mas apenas pediria aos Senhores Telogosque me explicassem como tudo isso se produz (p. 165). Na polticao averrosmo de Marslio de Pdua desempenhar um papel impor-tante junto ao imperador Lus da Baviera na luta contra o papado.Marslio assimilou a tradio gibelina que representou a mais im-portante luta contra as aspiraes pontifcias em relao ao domniodo temporal, o princpio da separao dos poderes espiritual e tem-poral e a reivindicao do poder temporal para o imperador (p. 175),justificando a autonomia do Estado, fundada na separao do direitoe da moral. O antiintelectualismo (Eckhart, Nicolas Cues, PierredAilly) se expressa pelo ataque ao aristotelismo e a apologia quefaz douta ignorncia. O cardeal Nicolas de Cues assim se expres-sa: hoje a seita aristotlica que prevalece, e ela considera umaheresia a coincidncia dos opostos, cuja admisso o nico cami-nho para a teologia mstica (p. 167).

    As universidades seguiram rumo a uma aristocracia universit-ria; em Bolonha reclamado um direito preferencial para filhos dedoutores na sucesso das cadeiras vacantes. Tudo o que cerca osrituais universitrios passa a representar os smbolos de nobreza (anelde ouro, emblema, barrete, tnica, capuz e longas luvas passam aser, na Idade Mdia, smbolos de posio social e de poder). O inte-lectual integrando-se aos grupos privilegiados desaparece para darlugar ao humanista. Esse um aristocrata e ao trat-lo, historica-mente, preciso destacar o movimento que retira os intelectuais dacidade, levando-os para o campo. O meio do humanista a corte,notadamente o Collge des Lecteurs Royaux (Colgio dos LeitoresReais), que se tornar o Collge de France. Erasmo, em seu Ban-quete Religioso, admira que haja pessoas que se deleitem com afumaa das cidades. Um outro aspecto a desvinculao entre a

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    cincia e o ensino. A imagem escolhida por Le Goff para finalizarsua apresentao da passagem dos intelectuais da Idade Mdia paraos humanistas o contraste entre o professor, colhido em sua ativi-dade de ensinar, cercado pelas bancadas em que se espreme o audi-trio e o erudito solitrio, em seu gabinete.

    Gesuna de Ftima Elias LeclercDoutoranda no Programa de Ps-Graduao em Educao

    da Universidade Federal da Paraba (UFPB) e bolsistada Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel

    Superior (CAPES).