16 o rosto de cristo 59-103

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a formação do imaginário e da arte cristã de Arlindo Trevissan

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  • .-

    Armind Trevisan, 2003

    Capa: VIOLETA GELATII LIMA sobre foro da roscea sul da

    Catedral de Chames

    Diagramao: LAuru HERMGENES CARDoso

    Superviso editoriaL PAULO FlAVIO LEDUR

    Editora-o eletrnica: AGE- AssESSORIA GRAFICA E EorroRIAL LTDA.

    Reservados todos os direitos de publicao EDITORA AGE L TDA.

    [email protected] Rua Dr. Ramiro d'vila, 20, conj. 302

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    www.editoraage.com.br

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    [email protected]:br

    Impresso no Brasil/ Printed in Brazil

    Armindo Trevisan

    O Rosto de Cristo A Formao do Imaginrio

    e da Arte Crist.

    lttf. EDITORA

    PORTO ALEGRE 2003

  • captulo III

    A Segunda Grande Imagem: o Cristo do Juzo Final no Ocidente (scs. V-XII)

    1. AS INVASES BRBARAS

    Os brbaros, isto , as tribos germinicas que povoavam a Escandinvia, comearam a emigrar para o sul, instalando-se ao norte e a leste do Reno e do Danbio, alguns scu-los antes de Cristo. Em meados do sculo I a. C., na poca em que Jlio Csar estendeu o domnio romano at ao vale do Reno, tais tribos, constitudas por criaturas seminma-des, viviam em bandos, caando e pescando para sobreviver. J no final desse sculo, po-rm, o historiador Tcito descreve os ger-manos como uma horda evoluda, que cul-tivava a terra embora sem grande dedicao. Possuam um rei, chefes, e um conselho de guerra. Progressivamente infiltraram-se ao longo da fronteira do imprio, de aproxi-madamente 16.000 km de extenso. No fim do sculo IV estavam organizados em cinco grandes federaes militares: os francos, os saxes, os vindalos, os ostrogodos e os visi-godos. Alguns deles romanizaram-se, e mui-tos, desde o sculo III, se alistaram no exr-cito regular, a ponto de, no final do sculo IV, serem predominantemente brbaras as legies de Roma. Vrios, dentre os brba-ros, assumiram postos de comando, como Estilico, um vindalo que se tornou general por profisso, tendo comandado o exrcito romano ocidental durante uma dcada. Os

    cidados de Roma ergueram-lhe uma est-tua no Frum, celebrando-lhe a bravura e a fidelidade cidade. Tambm semibrbaro era Acio, filho de um germano e de uma lati-na, futuro vencedor de tila.

    Se h uma imagem que se pode aplicar ao Imprio Romano do sculo V, a de um gi-gante de bronze com ps de barro. Resuma-mos os ftos que o conduziram derrocada.

    Em 330 d. C., o imperador Constantino transferiu a capital do imprio para as mar-gens do Bsforo. Quase setenta anos aps, em 395, Teodsio dividiu o imprio em duas regies administrativas, o Ocidente e o Oriente. Foram os ltimos momentos de glria das guias romanas.

    Em dezembro de 406 d. C., uma onda de frio excepcional congelou o rio Reno, trans-formando-o numa superflcie transitvel na ci-dade de Mnster: "Ali, na ltima noite daque-le ano, cerca de 15.000 guerreiros, vindalos, alanos e suevos, acompanhados de suas mu-lheres, crianas e animais domsticos, atraves-saram o gdo iluminado pelo luar e penetra-ram na Glia, provncia do Imprio Romano. No encontrando resistncia, a tribo espalhou-se e rumou para o sul, aproveitando a viagem para saques e destruies feitas a esmo."148

    148 SIMONS, Gerald. Os Brbaros na Europa. Rio de Ja neiro, Jos Olympio, 1973. p. 11.

  • 60 ARMINDO TREVISAN

    Estava rompido o encanto ... Em breve, toda a fronteira romana foi devastada: "Ve-jam com que rapidez a morte cai sobre o mundo", "escreveu o poeta romano Orien-tius, e quantas pessoas foram atingidas pela violncia da guerra( ... ). Alguns jaziam mor-tos pelas chamas que varreram suas casas. Nas aldeias, nos campos e nos distritos, em cada estrada - morte, dor, carnificina, fogo e lamentaes. Toda a Glia fumegava em uma grande pira funerria." 149

    Mal haviam decorrido dois anos quan-do, em 408 d.C., o imperador Honrio fa-voreceu os visigodos dos Blcs, uma confe-derao errante e sem unidade, composta de 100.000 pessoas, ao ordenar a execuo do prprio Estilico, o mais bravo e inteligente dos seus generais que combatera, em 384, na Segunda Batalha de Aquilia, a favor do imperador Teodsio contra o seu rival Ar-bogastes. Ao saber disso, Alarico, rei dos vi-sigodos, que j por duas vezes descera It-lia procura de alimento para o seu povo,

    149 Cit. Ibid. p. 20.

    FIGURA 1 Dlptico do bdrbaro Estilico. Tesouro da Catedral de Monza, Museu C-vico Cristo.

    aproveitou a oportunidade, e marchou sobre Roma. Depois de submet-la a um rigoroso cerco de trs meses, exigiu, para se retirar, um tributo de 2.500 quilos de ouro, 15.000 quilos de prata, 4.000 tnicas de seda, 3.000 peles de animais tingidas de prpura, e 1.500 quilos de pimenta. Fato significativo: a maio-ria dos escravos de Roma juntou-se aos br-baros, engrossando-lhes as tropas, num to-tal de 40.000 homens. Contudo, a faanha maior de Alarico ocorreu dois anos mais tar-de, quando retornou, entregando a capital aos seus guerreiros para trs dias de saques. Embora o saque de Roma tenha sido relati-vamente "pequeno e organizado",150 segun-do historiadores, a repercusso do aconteci-mento ecoou por toda a cristandade: Roma havia permanecido inviolada durante oito sculos! Eis como um clrigo da poca, Sal-viano de Marselha (falecido aps 480 d. C.), interpreta essa calamidade:

    "Os acontecimentos provam o julgamen-to de Deus sobre ns e sobre os godos e vn-dalos. Eles aumentam dia a dia; ns decres-cemos. Eles prospeiam; ns somos humilha-dos. Eles florescem; ns fenecemos. Na ver-dade aquilo que a Palavra Divina disse de Saul e de David aplica-se tambm a ns: 'Porque David era forte e tornava-se cada vez mais robusto; a casa de Saul decrescia dia a dia ... Eu desejaria, se a fraqueza huma-na permitisse, gritar ~m das minhas foras a fim de ser ouvido no mundo inteiro: 6 cidados romanos, tende vergonha; tende ver-gonha de vossas vidas. Poucas cidades esto livres dos antros de perdio, totalmente li-vres de impurezas, exceto as cidades habita-das pelos brbaros .. .' No o vigor natural de seus corpos que os capacita a conquistar-nos, nem foi nossa fraqueza natural a causa da nossa derrota. 9-ue ningum se convena

    150 lbid. p. 37.

    do contrrio. Que ningum pense de outra maneira. Fomos derrotados exclusivamente pelos vcios de nossa vida m.'' 151

    Ser, contudo, razovel atribuir-se a que-da do imprio unicamente ganncia e crueldade dessas tribos, que, para os roma-nos, no passavam de gentalha? 152

    Convm refletir sobre o assunto: "O que os punha em marcha {os brbaros)

    era a agricultura, atividade aprendida com os vizinhos romanos. medida que as socieda-des brbaras, situadas ao norte do imprio, abandonavam a prtica ~made da caa em favor do trabalho agrcola, um estoque sazo-nal e previsvel de gros propiciou uma explo-so populacional. Por razes bvias, os agri-cultores vivem mais, e acompanham o cresci-mento de maior nmero de filhos do que os caadores, cujas vidas precrias - juntamente com sua prole - transcorrem sobre uma cor-da-bamba ecolgica, sem rede de segurana." I 53 A isso junte-se que os romanos haviam mal-tratado, durante anos, os visigodos, povos foe-derati, isto , aliados do imprio. Confiscavam-lhes as armas, exploravam-lhes a mo-de-obra, e at forneciam-lhes cereais deteriorados a pre-os exorbitantes. No admira que Alarico haja ironizado os emissrios da cidade de Roma, ao lhe perguntarem, por ocasio do stio, o que lhes sobraria:

    -Vossas vidas!- respondeu o brbaro.154

    I51!Cit. por SIMONS, Gerald. lbid. p. 15. !52 CAHILL, Thomas. Como os Irlandeses Salvaram a Ci-vilizao. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 1999. p. 27. I 53 Ibid. p. 28. !54 Cit. por CAHill, Thomas. lbid. p. 43. No deve-mos imaginar os brbaros simplesmente como indivduos grotescos ou selvagens. Alarico falava grego e latim, que aprendera quando refm dos romanos. Ao apoderar-se da cidade de Atenas, pediu, como resgate de guerra, o privilgio de passar um dia na cidade, para saudar a est-rua de Fldias no Partenon, ouvir a leitura do dilogo de Plato 1imn., e assistir pea de Esquilo Os Persas. ROPS, Daniel. A Igreja dos Tempos Bdrbaros. Livraria Tavares Martins, 1960. p. 76-77.

    O RoSTo DE CruSTo 61

    2. O SURGIMENTO DOS MONGES

    Desde as primeiras invases, a Igreja procu-rou aproximar-se dos novos conquistadores, beneficiando-se do fato de ser a religio ofi-cial do imprio. Inicialmente fenmeno ur-

    . bano, o Cristianismo soube adaptar-se nova situao, expandindo suas atividades para as zonas rurais. Obteve, com relativa rapidez, xitos retumbantes, entre os quais o de con-quistar as boas graas do rei dos francos, Clvis, em 481 d. C., monarca da linhagem merovngia. Em 496 d. C., Clvis e 1.000 outros guerreiros foram batizados por So Remgio, bispo de Reims. O exemplo de Clvis levou converso os seus sditos.

    O segundo grande xito da Igreja foi a evangelizao da Irlanda. Este fenmeno veio contrabalanar, at certo ponto, o declnio do clero gauls. A evangelizao da ilha foi obra de monges, 155 uma instituio que sur-gira no Egito no sculo Ill, e que ser, na histria da espiritualidade crist, a sua cria-o talvez mais original, em todo caso uma das mais fecundas.

    Os primeiros monges foram So Paulo de Tebas (falecido com mais de 1 00 anos de idade, em 350 d. C.) e Santo Antnio, ou Anto (251-356 d. C.), chamado Pai dos Monges, cujas famosas tentaes forneceram um dos temas iconogrficos mais conheci-dos da Histria da Arte, tendo inspirado obras-primas como as telas de Hieronymus Bosch, Breughel e outros pintores. Campo-ns de origem, quase iletrado, Antnio reti-rou-se para o deserto (da a expresso anaco-reta, que significa "retirada para o deserto", ou eremita, cujo significado afim: "pessoa que vive no ermo"). Viveu uma vida de pe-nitncia com o propsito de atingir o per-

    155 Etimologicarnente: os nicos, os solitdrios. A palavra grega monos conota a idia de solido.

  • 62 A.RMINDO TREVISAN

    feito domnio das paixes. Sua biografia, escrita pelo bispo Santo Atansio por volta de 360 d. C., suscitou discpulos em toda a parte, entre os quais So Pacmio (292-346), compatricio, que aperfeioou a forma de vida criada pelo seu predecessor. Este fundou o cenobitismo, 156 ou seja, a vida monstica em comum, que deu origem aos primeiros con-ventos: um grupo de monges, cada um vi-vendo em suas respectivas celas, reunindo-se, em determinadas horas, para a celebra-o dos ofcios divinos. Um recinto murado impedia aos leigos, sobretudo s mulheres, o acesso ao local. A frmula monstica bsi-ca era "orao e trabalho", donde provm o lema: "Ora et labora", imortalizado pela Regra de So Bento. A par da orao, preza-va-se o trabalho intelectual, que consistia na leitura e interpretao das Sagradas Escritu-ras. Esta obrigao da Regra de So Pac-mio incentivou a leitura entre os monges, rendo, como conseqncia, obrig-los a co-piarem, cada qual, o seu prprio livro de Salmos, a fim de poderem rezar com a co-munidade. Como j existia no Egito, desde o tempo dos faras, uma tradio de escri-bas, a escrita tornou-se uma das tarefas dos monges, e a produo de manuscritos, uma de suas mais nobres tarefas. O prprio So Patrcio, fundador do monaquismo irlands, foi educado por monges egpcios emigrados ao sul' da Frana. J no final do sculo IY, a tradio monstica do Egito se implantara no Ocidente atravs dos escritos de Santo Atansio, que se tornaram conhecidos na Itlia por ocasio de sua estada em Roma. No demorou a surgirem comunidades dis-postas a praticarem a nova experincia de vida, primeiramente em Roma, sob a orien-

    156 Do grego koinos-bios: vida em comum. O monge, que vive como cenobita, partilha com os outroS monges todos os exerccios dirios da orao, o trabalho, o estudo e as refei-es. O monge, nessas comunidades, no tem cela privada.

    tao de So J~rnimo, e depois nas duas extremidades da Pennsula, sob a direo de Santo Eusbio de Vercelli e So Paulino de Nola. Na Glia, So Maninho de Tours, o mensageiro do Evangelho entre as povoaes rurais (entre os pagos: paganus significava campons, termo empregado num decreto oficial, pela primeira vez, em 370 d. 1 C.), estabeleceu o princpio do monge clrigo, ou sacerdote. Foi ele que fundou Ligug, o primeiro mosteiro da Glia, e mandou cons-truir Marmoutier, nas proximidades de Tours. Ao morrer, suas exquias foram acom-panhadas por dois mil monges.

    Outro monge ilustre foi Bento de Nr-sia (480-550 d. C.), chamado, com justia, "o Pai dos Monges do Ocidente". Fundou seu mosteiro em Monte Cassino, no sul da Itlia. A sua Regra, que tinha antecedentes nas Regras de So Baslio de Cesaria, no Oriente, e de Columbano e Cesrio de Ar-les no Ocidente, obteve aceitao universal, terminando por suplantar as demais. So Bento concebia o convento como uma ins-tituio auto-suficiente, dirigida por um abade eleito pelos confrades, e caracterizada pela prtica da obedincia, castidade e po-breza pessoal. A esses votos acrescentou, numa poca de sobressaltos e mobilidade exagerada, o voto de estabilidade, pelo qual os monges se comprometiam a no abando-narem o convento em que tinham ingressa-do. Alm disso, reforou a orao vocal co-munitria (o Ofcio Divino), o trabalho manual e a leitura espiritual, valorizados tam-bm pelos seus antecessores.

    A feliz combinao das intuies dos monges egpcios- a cujos conventos no de-serto se seguiram as Lavras ou Lauras (pala-vra que significa rua, j que as celas se ali-nhavam ao longo de uma rua central) da Palestina, especialmente no Monte Sinai e na Mesopotimia -com a sabedoria de vida e preocupao com os aspectos prticos da

    Regra de So Bento, produziu uma verda-deira revoluo religiosa e cultural na Euro-pa: "Partindo do Monte Cassino, formaram-se centenas de comunidades beneditinas. E foi incalculvel a sua influncia sobre uma Europa fragmentada e exausta. As searas, os pomares e os lagos piscosos dos conventos tornaram-se campos de provas de novas tc-nicas agrcolas. Suas bibliotecas eram os re-positrios de manuscritos que haviam esca-pado ao caos das repetidas invases brba-ras." Nos seus scriptoria, 157 os monges copia-vam, e portanto perpetuavam, as obras de Virglio, Ovdio, Csar e Ccero, e as tradu-es latinas dos gregos. Os monges tambm teciam os panos de que precisavam, elabo-ravam o prprio vinho e praticavam a car-pintaria e a arte de pedreiro. E transmitiam essas utilssimas artes populao que lhes vivia ao redor. Os doentes e os famintos eram atendidos nos hospcios dos mosteiros; os que desejavam aprender recebiam ensino nas escolas do convento; e os que viajavam para longe de casa, era nas hospedarias dos mos-teiros que encontravam abrigo.158

    A Ordem Beneditina forneceu Igreja milhares de bispos e arcebispos, e vinte e quatro papas. O primeiro monge a ser elei-to sumo-pontfice, em 590 d. C., foi Gre-grio Magno, um dos primeiros discpulos de So Bento e, tal como ele, filho de uma rica e nobre famnia italiana. Esse grande papa abriu as portas de um novo mundo ao Evan-gelho, ao incumbir Agostinho, o prior be-neditino de Roma, e outros quarenta con-frades, de converterem as tribos do sul da Inglaterra. Conta-se que Gregrio Magno teria exclamado, ao encontrar alguns rapa-zes louros, trazidos da Britnia e postos

    157 Oficinas onde os monges realizavam os trabalhos de caligrafia e iluminura dos manuscritos. 158 FREMANTI.E, Anne. Idat:k da FI. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1972. p. 33.

    o ROSTO DE CRISTO 63

    venda no mercado de escravos de Roma: "Se tivessem f, seriam anjos, no anglos". Agos-tinho tornou-se o primeiro arcebispo de Canterbury.

    Quem poderia imaginar que seriam es-ses convertidos de Agostinho e seus compa-nheiros, com a colaborao dos monges da Irlanda, os grandes evangelizadores da Eu-ropa continental? O mais famoso dentre eles, Winfrith, cognominado Bonifcio. ("aque-le que faz o bem"), organizou e disciplinou, praticamente sozinho, a Igreja da Alemanha. No sculo X a Europa inteira estava cristia-nizada.

    Tudo isso, porm, no teria sido possvel sem a interveno de outra figura de mon-ge, cuja importncia comparvel de Agos-tinho e seus companheiros: So Patrcio.

    3. A MAGIA DOS LIVROS ILUMINADOS

    A Irlanda , atualmente, "a nica nao cel-ta do mundo, todos os outros povos celtas tendo sido absorvidos por entidades polti-cas maiores". 159

    Os irlandeses descendiam de um grupo tnico, que surgiu como cultura diferencia-da por volta de 700 a. C. No auge da sua expanso, os celtas histricos dominaram do Bltico ao Mediterrneo, e do Mar Negro ao Atlntico. No formavam uma unidade; seu regime era o tribal. Tinham, porm, uma lngua em comum, com variantes dialetais. Chegaram Britnia no ano 400 a. C., e Irlanda em 350.

    O pai de So Patrcio, casado com uma mulher celta, era decurio romano e dico-no da pequena comunidade crist instalada

    159 CAHILL, Thomas. Como os Irlamkm Salvaram a Ci-vilizao. p. 95.

  • 64 ARMINDO TREVISAN

    na Britnia. Aos 16 anos, Patrcio foi feito prisioneiro por piratas, e levado como es-cravo Irlanda, onde o obrigaram a traba-lhar como vaqueiro durante seis anos, a ser-vio de um dos tantos reis (ou chefes de cls) da ilha. Ao fim desse tempo conseguiu fu-gir. Ingressou no Mosteiro de Lrins, nas Ilhas Hieres, no Mar Tirreno, prximas cidade de Cannes. Nesse mosteiro, fundado em 410 a. C. por um monge egpcio, Santo Honorato, Patrcio recebeu uma educao fortemente marcada pela tradio monsti-ca oriental.

    Depois de ser ordenado sacerdote, foi consagrado bispo, um dos primeiros bi~os missionrios da histria da Igreja, com Ulfi-las, I60 o evangelizador dos godos. Patrcio foi para a Irlanda, atendendo a uma viso, du-rante a qual lhe apareceu uma multido de celtas, suplicando-lhe"( ... ) voltai a caminhar entre ns". 161

    Dos 40 aos 70 anos trabalhou na con-verso deles. A converso da Irlanda oferece uma caracterstica indita: foi rpida, e sem mdrtires, o que no ocorreu na Escandin-via e na Germnia. Patrcio foi compreensi-vo no seu trabalho evangelizador, admitin-do, at onde lhe era possvel, os hbitos dos nativos.

    No destruiu as antigas crenas e costu-mes; empenhou-se em enxert-las no tron-co da nova f.

    Foi obrigado a defrontar-se com uma for-ma de pensar e sentir totalmente diversa da greco-romana. Os celtas adoravam foras csmicas, isto , a natureza: rios, montanhas,

    160 lfilas. de origem germnica, foi sagrado bispo por Eus-bio, em Constantinopla. Tendo voltado para o meio do seu povo. os Godos, uaduziu a Bblia na lngua ddes. Criou, talvez, a primeira lirurgia vemcula, ao adapt-la ao tempe-ramento gtico, com missas celebradas mesmo ao ar livre. ROPS, Danid. A lgrrja dos Tempos Brbaros. p. 130. !61 Cit. por CAHILL, Thomas. Ibid. p. 122.

    animais. Mas essa natureza apresentava, tam-bm, uma fac~ hostil, sendo repleta de cila-das imprevisveis. Da o culto a divindades hbridas, como deuses tricfalos, e serpentes com cabeas de carneiro. Os celtas, tambm, acreditavam em duendes e gnomos. Venera-vam deusas que poderamos considerar pre-cursoras das nossas fadas. Patrcio no rejei-tou tal dimenso csmica dos nativos: "A diferena entre a magia de;: Patrcio e a dos druidas que no mundo de Patrcio todos os seres e eventos advm das mos de um Deus bondoso, que ama os seres humanos e deseja a sua felicidade" .162

    Por idntica razo, o santo permitiu que os smbolos da religio celta se transferissem para o culto cristo, entre eles a roda, sm-bolo solar, que ornamenta a parte superior das imponentes cruzes erguidas na ilha, ca-racterstica que no se encontra nas cruzes dos mosteiros da Inglaterra. Conferiu novo significado aos menires da tradio proto- histrica, assoCiando-os ao smbolo da Pai-xo de Cristo.

    Nesse cristianismo aculrurado - ou des-romanizado163 '- ocorreu um fenmeno de-cisivo para a evoluo artstica do Ocidente e, indiretamente, para a formao da primei-ra grande imagem ocidental de Cristo. Henri Focillon esclarece to impressionante aven-tura cultural: nas Ilhas Britnicas, diz ele, juntaram-se "os sonhos dos monges do Egi-to com os devaneios lineares dos Celtas".164

    Nunca ser demais acentuar a influn-cia da arte copta (o adjetivo uma defor-mao de um termo rabe para designar eglpco), que se criou nos mosteiros entre a atual Represa de Assu e o Mediterr-neo, particularmente em Bauit e Saqqa-

    162 CAHILL, Thomas. Como os !rlantkses Salvaram a Ci-vilizao. p. 148. 163 A expresso de Thomas Cahill. lbid. p. 166. 164 Arredo Ocidmte. Lisboa, Editorial Estampa, 1980. p. 18.

    ra. 165 O Egito atraa, particularmente, os monges, que para l peregrinavam em busca dos lugares de alguns acontecimen-tos bblicos ("Jos e seus Irmos"; a "Fuga para o Egito", etc.), e tambm para co-nhecerem os eremitas que povoavam a Tebaida. A Biblioteca Nacional de Paris guarda um Guia, destinado aos monges da Irlanda que desejavam visitar os Padres do Deserto. 166 No mosteiro de Bangor, no Ulster, rezava-se uma ladainha "ex Aegyp-to transducta'', isto , traduzida do idio-ma egpcio. 167 Nos missais irlandeses, apa-recem figuras de monges coptas.168

    A partir do final do sculo li, Alexandria tornara-se um centro cristo de enorme importncia, sede da "Escola de Catequis-tas" de So Clemente {falecido em 215 d. C.). Nessa cidade, a arte helenstica popula-rizara-se, simplificando a representao das figurb. Com isso possibilitou aos monges do deserto, pessoas geralmente incultas, a assimilao de seus modelos. Nasceu uma figurao anticlssica, fruto de uma nova sensibilidade, a da piedade popular.

    Detenhamo-nos num dos primeiros cones que chegaram at ns, o de Cristo e So Menas, uma pintura tmpera sobre madeira, do s-culo VI, no Museu do Louvre, uma das ima-gens no destrudas pela ocupao rabe-isl-mica, sobretudo aps o decreto iconoclasta de Obeid-Allah Ibn al-Khattab de 722 d. C.169

    165 Igreja Copta: designa os cristos do Patriarcado de Ale-xandria, que se separaram depois do Concilio de Calce-dnia ( 451 d. C.) da Igreja Catlica de ento, para for-mar uma Igreja autnoma, no calcedonense". GHARIB, Georges. Os !cones de Cristo. p. 13 I. : l66 DE LACY O'LEARY. "LaAportacin Egpcia ai Cris-tianismo". In: E/ Legado de Egypto. 2. ed. Madrid, Edicio-nes Pgaso, 1950. p. 489. 167 CAHILL, Thomas. Como os Irlantkses Salvaram a Ci-vilizao. p. 200. 168 WESSEL, Elie. L irr Copk. Bruxelles, Meddens, 1964. p. 241. 169 GHARIB, Georges.lbid. p. 133.

    O RosTo DE CRJSTO 65

    Notemos, primeiramente, que os rostos do co-ne so simtricos, esquematizados e alongados, desproporcionais aos corpos. Estes no se en-quadram dentro dos cnones clssicos. A fron-talidade visa a inculcar a presena das duas personagens, que no so meros objetos de comemorao, mas foras vivas sobrenaturais, de intercesso no caso de So Menas, um pas-tor de camelos martirizado no sculo III, e de salvao no caso de Cristo. O que aparece, com ma:is vigor, nessas imagens so os olhos, imen-sos, fixos sobre o espectador. Qual a sua fim-o? Sem dvida, a de recordarem aos fiis que ambas as figuras esto prximas e atuantes.

    Os egpcios sempre haviam acreditado na imortalidade da alma. O Cristianismo su-blinhou essa crena nos seus convertidos. Talvez os monges se tenham inspirado, para as suas primeiras imagens, nos retratos das mmias de Fayum, que datam do fim do sculo I at o IV sculo a. C. Tais retratos, pintados segundo a tcnica da encustica (a mesma dos cones), em que os pigmentos se misturam com cera derretida, possuem quase a aparncia de instantneos Jotogrdficos. Evi-dentemente, os olhos abertos, incrivelmen-te presentes, convinham aos primeiros ar-tistas cristos, cuja inteno primordial era sinalizar a realidade da Vida Eterna prome-tida por Cristo.

    Advirtamos que o figurativismo do co-ne asss primrio, em todo caso distante das sofisticadas representaes religiosas bi-zantinas desse perodo. Existe, ainda, outra diferena marcante: certa simplicidade- e at familiaridade, que se revela, em especial, no gesto de Cristo, cuja mo direita descan-sa sobre um dos ombros de So Menas.

    Foi esse tipo de figurativismo que se trans-mitiu aos celtas, os quais s raramente re-presentavam seus deuses. Evitavam qualquer tipo de representao antropomrfica. A sua arte consistia, basicamente, em armas orna-mentadas: elmos, capacetes, escudos, espa-

  • 66 ARMINDO TREVISAN

    das, broches, gargantilhas, pulseiras. Eram dotados de uma capacidade prodigiosa, em certo sentido musical, de realizar variaes sobre o mesmo tema: crculos, espirais, zi-guezagues, curvas e contracurvas, como se houvesse um leit-motiv subjacente a tais adornos. Podemos identificar nesses devanei-os lineares uma transposio de sua poesia oral, inventiva e encantatria.

    Se comparamos o cone de Cristo e So Menas com um relevo em metal dos incios da evangelizao irlandesa, percebemos que os prottipos egpcios chegaram aos celtas atra-vs de manuscritos, marfins esculpidos ou pla-cas de metal, e que, obviamente, no lhes foi fcil imitarem tais figuraes planiformes. Re-ferimo-nos, especificamente, Crucifixo de Athlone.17 Nosso confronto poderia ser esten-dido a algumas das inmeras cruzes esculpidas na poca, por exemplo, de Clonmacnoise171 ou Cruz (inacabada) de Kells. 172 Reparemos num detalhe: a figura de Cristo retoma nessas obras a forma ovalada do rosto do cone. A curva do bigode semelhante. Um brbaro no poderia reproduzir no bronze a vivacida-de dos olhos de Cristo. Limitou~se, pois, a dar-lhes a forma convexa de duas amndoas. Ru-dolfWittkower adverte que os olhos so a par-te do corpo mais difcil de ser convertida em forma escultrica, pelo fato de o olho apresen-tar uma composio que se expressa em ter-mos de cor, e no de volume: a ris e a pupi-la.l73 O que, porm, nos desperta a ateno so os desajeitados anjos que ladeiam Cristo, um deles segurando a esponja com vinagre. A placa revela a incapacidade do artista brbaro

    170 Talvez capa de um livro. 750 d. C. Placa de bronze; 21 em. Museu de Dublin. l7l Ilusrrao. in: SIMONS, Gerald. Os Brbaros na Eu-ropa. p. 74-75. 172 Ibid. p. 78-79. 173 La &cultura: Procesos y Principias. 2. ed. Madrid, Alian-za Edirorial, 1981. p. 211.

    FIGURA 2 fcon~ d~ Cristo e So Menas. Incio do scu-lo VII. Pinrura sobre madeira; 0,57x0,57 m. Museu do Louvre, Paris.

    de realizar o corpo humano como unidade orgnica. A cabea, os braos e os ps da ima-gem no se articulam num conjunto. Do a impresso de uma montagem de peas. Mas preciso ressaltar outro aspecto: Cristo, os an-jos-pssaros (registremos que todos ds rostos das figuras so estereotipados; parecem sados de um molde nico!), bem como os persona-gens ao p do crucificado, esto cobertos de espirais e outroS signos. A espiral, gravada sobre

    FIGURA 3 Cruci-fixo de Athlone (Wesrhmead). VIII d.C. Bronze. Museu de Dublin, Irlanda.

    o corpo, simbolizava para os brbaros a vida, sendo expresso da energia solar. Provavelmen-te reveste-se aqui de um sentido evanglico, o de smbolo da Ressurreio de Cristo.

    O Cristianismo irlands no ficou cir-cunscrito ilha. O mpeto missionrio dos companheiros de So Patrcio possua um ardor centrfugo irresistvel, que os impelia "peregrinao por Cristo". J em 563, So Columba, aps ter fundado vrios mostei-ros dentro da prpria Irlanda, como os de Derry (546) e Durrow (556), dirigiu-se para o norte, estabelecendo-se, em 563 d. C., na ilha escocesa de lona, no arquiplago das Hbridas, habitada por pictos e colonizado-res irlandeses. Por ocasio de sua morte, flo-resciam 60 comunidades, instaladas em seu nome, ao longo da costa escocesa.

    O segundo grande missionrio irlands foi So Columbano, 20 anos mais jovem do que Columba, nascido por volta de 540 d. C.

    No ano de 590 d. C., acompanhado de outros doze monges, partiu para a Glia, onde ergueu entre os suevos trs mosteiros campestres: Annegray, Fontaines e Luxeuil, este ltimo um dos mais importantes cen-tros de cultura da Alta Idade Mdia. Aps ser expulso da Francnia, por se ter recusa-do a abenoar os filhos ilegtimos do rei Thierry li, foi instalar-se em Bobbio, na It-lia, onde edificou outro mosteiro, que fica-ria clebre por sua biblioteca. No se sabe quantos mosteiros foram fundados em nome do Santo durante a sua vida, ou aps a sua morte: "Esse nmero, contudo, incluindo mosteiros em regies que mais tarde se tor-nariam pases, isto , Frana, Alemanha, Sua e Itlia, no pode ser menor do que 60, e pode at passar de 100. E Columbano esteve no continente durante apenas 25 anos."l74

    174 CAHILL, Thomas. lbid. p. 212.

    O RosTo DE CruSTo 67

    Em sntese, a expanso religiosa dos mon-ges irlandeses e anglo-saxes na Europa foi um fenmeno nico de "exportao de san-tos": 115 para a Alemanha, 45 para a Fran-a, 44 para a Inglaterra, 36 para a Blgica, 25 para a Esccia e 13 para a ltlia.175 Men-cionemos apenas alguns dos mosteiros: Saint-Gall (610), Saint-Bavon em Gand (630), Saint-Emmeran em Ratisbona (650), Echterbach (700), Reichenau (724), Fulda (744), Corvey (nova Corbie; 822)176.

    impossvel evocar-se a Irlanda Cristo-Celta sem nos reportarmos sua contribui-o artstica mais importante, os livros ilu-minados.

    Foram os egpcios que descobriram o melhor dos suportes antigos da escrita, o papiro, junco que cresce nas margens do Nilo e em outros stios pantanosos da Palestina, da Sria, e at da Siclia. O segundo suporte, o pergaminho, de data mais recente. Diz-se que ~umenes II, rei de Prgamo (donde pergamena, termo que aparece, pela primei-ra vez, no comeo do sculo N d. C.), in-disps-se com Ptolomeu V Epifnio, rei do Egito. Por caQSa disso o rei egpcio proibiu a exportao de papiro para a cidade de Pr-gamo (hoje Bergama, na costa oriental da Turquia). falta de papiro, comeou-se a empregar nessa cidade peles preparadas de animais, principalmente carneiros e bezer-ros. Se o pergaminho predominou sobre o papiro, isso se deveu, em grande parte, ao crculo de So Jernimo e ao de seus colegas latinos, o que teve importfutcia histrica para a cultura ocidental. Outras razes so indi-cadas para explicar a difuso do pergami-nho: o fato de ser mais durvel e slido do que o papiro; e, principalmente, o hbito

    175 LE GOFF. La Civiliz4cin tk/ Occidmu M~ditval. Bar-celona, Editorial Juventud, 1969. p. 180. 176 LE GOFF. Ibid. p. 181.

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    de se ler a Bblia nos meios cristos, hbito que se apoiava na tradio, uma ve:z que os rolos (ou volumes) do Antigo Testamento tinham sido preservados em peles.

    No foi esta a nica importncia do per-gaminho: ele foi decisivo para a arte do li-vro. Albert E. Elsen observa que o livro ilu-minado constituiu "o veculo pictrico e li-terrio mais importante do Ocidente duran-te mais de oito sculos, da Queda de Roma (476 d. C.) at o sculo XIV'177

    O papiro possibilitou o aparecimento do rolo ou volume, formado de vrias folhas unidas numa tira contnua. Variavam de ex-tenso: havia volumes de 44 metros por 50 centmetros de largura; normalmente eram menores. Continham, em geral, 20 folhas. A escrita apresentava neles o aspecto de uma folha de jornal moderno, com o texto em colunas e linhas de 30 letras.

    J o cdice (do latim: codex), ou livro, sur-giu no sculo I d. C. Foi uma inveno ro-mana. Constitua um conjunto de folhas de formato retangular, no incio quadrangula-res. As folhas, em ve:z de serem coladas pelas extremidades e enroladas, dobravam-se para formar duas. Os grupos ~essas folhas dobra-das se ligavam entre si pelas marcas das do-bras. Mais tarde apareceu a forma alargada doflio.

    O conhecimento e a imagem, que temos da Idade Mdia pela arquitetura, escultura, vitrais, afrescos e tapearias, ou seja, pela do-aunentao ao ar livre, no representa a cen-tsima parte do que nos poderiam revelar as reprodues das miniaturas. 178 Um nico Museu, o Britnico, tem em exposio 200 manuscritos. Duas jias, a Biblia Historiada e o Brevirio do Duque de Bedford, ambas na

    m Los Propsitos tk/Arte. Madrid, Aguilar, 1971. p. 87. 11s PERNOUD, Rgine. Jdtde Mdia. O qJU no nos en-sinaram. Rio de Janeiro, Agir, 1979. p. 118.

    Biblioteca Nacional de Paris, contm respecti-vamente, 5.152 e 4.346 figuras. Sem os ma-nuscritos iluminados no teramos algumas das obras mais valiosas do tesouro mundial. Os mosaicos da Basaica de So Marcos, em Vene-za, foram provavelmente inspirados por uma cpia de um manuscrito grego do sculo VI; e os vitrais da Catedral de Chartres apresentam afinidades incmitestveis com as imagens da Bblia Moralizada (da Biblioteca Nacional de Paris), e da Vula de Cristo (da Pierpont Mor-gan Library, de New York)-179

    Esclareamos alguns termos: miniatura vem da palavra latina miniator, que se refere ao pintor encarregado de realar as letras iniciais e outras passagens do texto por meio do minium, a tinta vermelha, j utilizada pelos escribas egpcios.

    Iluminura provm de iluminator (ilumi-nador), o pintor que coloria as letras iniciais, e outras passagens do texto. Considerando-se que miniatura pode significar, igualmen-te, sob a influncia do latim minus, uma pin-tura de diminutas dimenses, prefervel reservar-se a expresso iluminura decora-o dos manuscritos e arte de produzi-la.

    O livro ilustrado, pois, foi uma inveno egpcia. Um dos mais clebres, que chegou at ns, O Livro dos Mortos do Museu de Turim, aproximadamente de 1350 a. C.

    Os monges egpcios assimilaram o hbito da escrita, principalmente por ter So Pac-mio introduzido a recitao comunitria dos salmos, obrigando cada monge a reunir-se aos demais para a orao, ao cair da tarde e duran-te a noite. A Regra de So Pacmio chega a mencionar detalhes sobre a distribuio de li-vros, sua classificao, etc., insistindo para que

    179 MALt, ~mile. In: Histoire Glnerak tk I 'Art. Vol. I. Paris, Flammrion, 1950. p. 275; PORCHER, Jean. L 'Enluminuw Franaise. Paris, Art et Mtiets Graphiques, 1959. p. 42-43.

    cada monge possusse o seu livro. Um padre da Igreja, o srio Santo Efrm, elogia os solit-rios por seus pergaminhos iluminados. Bispos e altos funcionrios de Bizncio dedicavam-se

    ~arte de iluminar. Houve, at, um imperador que recebeu o cognome de O Caligrafo (Teo-dsio li, 480-450 d. C.). Nessa mesma poca, wn Conclio prescreveu aos monges o estudo da caligrafia.180

    Em 586 d. C., o monge Rbula, do Mos-teiro de So Joo na Mesopotmia, realizou uma srie de miniaturas sobre os quatro Evangelhos, que tiveram considervel in-fluncia na evoluo desse gnero artstico. No chegou at ns, porm, nenhum livro iluminado anterior ao sculo IV.

    Na Irlanda, e tambm na Nortmbria, onde o maior herdeiro espiritual de So Columba, Santo Aidan (600-651), monge de lona, fun-dou o Convento da Ilha de Undisfarne, pro-duziram-se tesouros de insupervel beleza. Ci-temos trs Evangelidrios;181 O Livro de Durrow (700 d. C.), realizado no centro do cristianis-mo celta, lona; O Livro de Lindisfome, obra de Edfrith, bispo da cidade, obra-prima da escri-ta anglo-saxnica do sculo VIII; e o mundial-mente conhecido Livro de Kells ( enc;ute, fig.6), de 800 d. C., considerado "o manuscrito mais belo do mundo", atualmente na Biblioteca da Universidade Trinity, em Dublin. So 680 p-ginas de textos e 31 pginas ornamentadas in-teiramente. Para sua confeco necessitou-se da pele de 150 bezerros. William O'SullivarJ, ex-guardio dos Manuscritos do Trinity College, calcula que um dos quatro princi-pais desenhistas do Livro de Kells deve ter consumido 30 anos de sua vida para com-pletar o trabalho. 182

    180 DENIS, Ferdinand. Histoiw tk /'Ornamentation tks Manuscrits. Paris, ~ouard Rouveyre, 1880. p. 9-12. 181 Isto : o texto dos Quatro Evangelhos em latim. 182 McMURTRIE, Douglas. O Livro. 2. ed. Usboa, Fun-dao Calouste Gulbenkian, 1982. p. 69.

    0 ROSTO DE CRISTO 69

    As pginas ornamentadas do Livro de Kells "so, talvez, as mais ricas e complicadas pe-as de ornamentao ab~trata j produzidas, .mais refinadas e sofisticadas do que qualquer obra de arte islmica". 1B3

    Fixemo-nos numa dessas pginas, a do monograma XRI, que encabea o Evange-lho de So Mateus, e que representava o encanto mais poderoso contra as foras do mal. Abaixo do monograma, vemos a letra K, uma abreviatura de Auten, seguida do vocbulo Generatio, ao p da pgina, em que principia o texto do evangelista. Vem-se, aqui, as famosas minsculas semi-unciais ir-landesas, bero da escrita minscula, embo-ra tais letras j tivessem aparecido em escri-tas cursivas no sculo anterior. 184 H qual-quer coisa de um talism no monograma de Cristo ou, como diz Nicole Gray, nele as le-tras so "mais uma presena do que apenas letras"_185 Nas extremidades dessa pgina, descobrimos desenhos curiosos, com trs grupos de crculos, cada um dos quais con-tm vrios crculos menores formados por espirais. Tais crculos, com trs grupos de espirais, se chamam trquetros, motivo de-corativo celta associado ao simbolismo da Trindade. Ao redor da srie de nove crculos surgem espirais menores e motivos em for-ma de trombetas, que multiplicam as rodas, possivelmente uma referncia viso deEze-quiel quando descreve o universo. Figuras humanas e de animais, minsculas, em esti-lo at certo ponto realista, aparecem em di-versos lugares da inicial, sendo que uma de-las aparece sobre a cruz, no meio de um tur-bilho de espirais: seria a cabea de Cristo? Abaixo dela, tambm no meio desse aluci-

    183 CLARK, Kenneth. Civilizao. So Paulo, Martins Fontes - UNB, 1980. p. 33. . 184 Cit. por McMURTRIE, Douglas. Ibid. p. 69. IBS Cit. por CAHILL, Thomas. Como os Irlantkses Salva-

    . ram a Civilizao. p. 184.

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    nante redemoinho, surpreendemos anjos que sustentam objetos simblicos. Mesmo assim parece exagerado afirmar-se com Raymond S. Stites: "Os monges de Kells eram conhe-cedores possivelmente da descrio aristot-lica dos diferentes tipos de smbolos neces-srios para evocar os elementos vegetais, ani-mais e imaginativos, que, ordenados conve-nientemente, poderiam conduzir ao ideal cristo". 186 Elie Wessel nota que alguns au-tores identificaram semelhanas entre os ros-tos e as roupagens do Livro de Kells e os rele-vos e pinturas da arte copta. 187

    Em resumo: at ao ano 800 a arte oci-dental no delineou nenhuma nova imagem de Cristo, limitando-se a reelaborar, segun-do uma sensibilidade original, a iconografia bizantina, mais particularmente, a iconogra-fia copta e srio-palestina. Tal reelaborao propiciou as condies bsicas para o surgi-mento da segunda grande imagem do Deus-Homem, que s principiou a adquirir con-tornos definidos a partir dos sculos X-XI. A ttulo de ilustrao, veja-se uma das ima-gens do perodo irlands e anglo-saxo: a Crucifixo, proveniente de um manuscrito do VIII sculo, pertencente Biblioteca Colegial do Mosteiro de Saint-Gall repro-duzida em livro por Henrich Pfeiffer. 188 Nessa imagem, o rosto bizantino de Cristo, emoldurado por uma imensa aurola, setor-na ainda mais linear, como se se tratasse de uma espcie de divertimento caligrfico (a evocar experincias do Art Nouveau, como as de Aubrey Beardsley, em Salom, 189 ou as de Henri Matisse).190 O corpo converte-se

    186 Las Artt'S y ~1 Homlm. Vol. I. Barcdona, Labor, I 95 I. p. 405-406. 187 L 'Art Copu. p. 240-24 I. 188 Christ aux Milk Virag~s. Paris, Nouvelle Cit, I 986. p. 20. 189 Ilustr. em H. W. Janson. Histria da Atte. p. 647. 190 Harmonia nn Vermtlho. Museu de I'Hermitage. Ilustr. em H. W. Janson. Ibid. p. 668.

    FIGURA 4 Crucifixo do Evangtlirio de Saint-Gall. Mea-dos do sculo VIII. Manuscrito; 0,29x0,22. Stiftsbiblio-rhek. Catedral de Saint-Gall, Sua.

    num jogo de entrelaamentos, numa sorte de motO-contnuo curvilneo, do qual emer-gem pernas desproporcionalmente curtas e esquelticas, voltadas para a esquerda. No se tem a Fnpresso de algo sacro ou litrgi-co. O espectador induzido a imaginar um desses jogos-enigmas, nos quais o jogador convidado a descobrir o trmino das linhas. A despeito dos indicadores simblicos da imagem, sempre presentes nela, o ldico sobrepe-se gravidade litrgica.

    4. O SACRO IMPRIO DE CARLOS MAGNO

    No ano de 768 d. C., o neto de Carlos Mar-tel, que derrotara os rabes em Poitiers (732 d. C.), detendo o avano do Isl na Europa,

    herdou o trono dos francos. O novo rei con-tava 26 anos. Trs anos depois, devido morte inesperada do irmo, com quem a herana fora partilhada, unificou os dois rei-nos, tornando-se ~m dos mais poderosos soberanos de todos os tempos. Este homem que, em quarenta anos de reinado, realizou cinqenta e cinco expedies, tendo sido durante toda a sua vida um guerreiro profis-sional, teve o descortino de reunir em sua corte algumas das cabeas mais privilegia-das da Europa. Foram elas que criaram as bases daquilo que se chamaria mais tarde, a Cristandade, ou seja, a Europa Medieval. At ento nada pudera substituir o antigo Im-prio Romano.

    As relaes entre os antecessores do novo imperador e o papado datavam de poca re-cente. Remontavam ao av de Carlos Mag-no, que merecera de Gregrio III reconhe-cimento, em carta a So Bonifcio: "Foi gra-as aos teus esforos e ao apoio de Carlos Martel, prncipe dos Francos, que Deus se dignou trazer para o reino da Igreja cem mil

    - "191 N pagaos . o entanto, quem estreitou es-sas relaes, recebendo, em troca do seu apoio ao papado, a aceitao de sua realeza, foi seu pai, Pepino, o Breve, at ento mor-domo - ou uma espcie de primeiro minis-tro todo-poderoso do ltimo rei merovn-gio, Childerico III. Quando, mediante um golpe de estado, Pepino deps o rei, e o en-cerrou num convento, viu-se obrigado a enfrentar a tradio germnica do Gebluts-recht, isto , o privilgio do sangue, segundo ~ qual s podia exercer o poder rgio quem tivesse laos de sangue com os monarcas do P~ado. Para legitimar sua pretenso s ha-VIa um nico meio: recorrer a uma autori-dade superior da tradio pag, o Cristia-

    191 C' p. 44~: por ROPS, Danid. A Igr~fa dos Tnnpos Bdrbaros.

    O RoSTo DE CruSTo 71

    FIGURA 5 Carlos Magno. Aprox. 1275. Manuscrito das "Crnicas de Saint-Denis". Bibliothque de Sainte-Ge-nevieve, Man. 771, Paris.

    nismo. So Bonifcio encarregou-se de apre-sentar a questo ao Papa: "Deve-se chamar rei quele que tem o ttulo do poder, ou quele que o possui na realidade?" A respos-ta do papa Zacarias, "um grego sutil",m foi conforme aos desejos de Pepino. Nasceu as-sim o Estado Pontifcio -hoje reduzido aos 44 hectares da cidade do Vaticano - uma soluo que, de certo modo, colocou o pa-pado a salvo das contnuas invases dos Iom-bardos. Dessa poca , tambm, a falsa Doa-o de Constantino, documento segundo o qual o mencionado imperador teria doado

    192 ROPS, Daniel. A Igrrja dos Ttmpos Bdrbaros. p. 446.

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    ao sucessor de So Pedro vastos territrios, e at sua clmide e cetro:"( ... ) Pepino acredi-taria na autenticidade do documento, como acreditavam os homens da Idade Mdia e como, mais tarde, acreditar Dante? Em qualquer dos casos, para quebrar o poder lombardo na Itlia e para assegurar a aliana do Papa, era de boa poltica acreditar em tal documento, isto , manter as promessas de Constantino, dando terras ao Papado."193

    Carlos Magno foi sagrado imperador pelo papa Leo III. Este tivera de recorrer ao so-berano em circunstncias constrangedoras: no dia das Ladainhas Maiores de 799 d. C., quando cavalgava frente da procisso, foi assaltado, espancado, jogado abaixo da mon-taria, e at despojado de suas vestes pontif-cias. No lhe arrancaram a lngua e os olhos " moda bizdmtina", por verdadeiro milagre. Alm disso, o pontfice foi acusado de in-meros vcios e delitos, sendo aprisionado num convento. Conseguiu evadir-se, indo at Paderborn, cidade na qual se encontrava o imperador. Consta que este o acolheu cho-rando. Ordenou s suas tropas que repuses-sem o fugitivo no trono papal.

    Foi esse mesmo papa, Leo III, quem, na Missa de Natal do ano 800, se aproxi-mou do imperador que acabara de orar diante do altar de So Pedro, e lhe derra-mou o leo sagrado na testa. Colocou-lhe, a seguir, uma coroa de ouro na cabea, enquanto os assistentes aclamavam por trs vezes: "Vida e vitria a Carlos, o mais de-voto Augusto, o grande Imperador pacifi-cador, coroado por Deus!".

    Aparentemente, Carlos Magno no va-lorizou esse. ritual, pois, de acordo com o seu bigrafo, o monge Eginhard, "no teria

    193 Ibid. p. 448. Cf. KNG, Hans. A Igreja Catlica. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2002. p. 71; 91-92.

    entrado na igreja naquele dia, embora se tra-tasse de uma festa solene, se tivesse adivi-nhado a inteno do pontfice". O aconte-cimento teve conseqncias incalculveis para o Ocidente: "Para ns, diz Daniel Rops, evidente que o ato de Natal de 800 con-tinha em germe, institucionalmente, a Eu-ropa Ocidental que queria nascer" .194

    Devem-se a Carlos Magno realizaes fun-damentais, sobretudo para a evoluo cultural do Ocidente. Foi ele quem convocou sua corte o monge anglo-saxo Alcuno, diretor do mais afamado centro de estudos da poca, ex-celente organizador, que serviu na corte de 782 at 796, sendo co-autor e orientador do pro-grama educacional do imprio. Graas a esse "primeiro ministro intelecrual",195 a educao ultrapassou a escola do palcio, a ponto de um bispo, Teodulfo de Orlans, determinar que os sacerdotes de suas aldeias dessem aulas gra-tuitas s populaes locais. Teodulfo consi-derado um dos primeiros expoentes da educa-o pblica gratuita.196 Compreende-se que, entre 841 e 843, uma mulher nobre, Dhuoda, tenha escrito um tratado sobre educao, ela-borado em "versos latinos, para uso de seus filhos, o primeiro tratado do gnero aparecido no Ocidente".197 possvel que Dhuoda per-tencesse famlia imperial, e tivesse conhecido na sua inffulcia o imperador Carlos Magno. Alm de Alcuno, o imperador atraiu para Aquisgrana, sede do seu palcio e da Escola Palatina, o que havia de melhor na intelecrua-

    194 Ibid. p. 464. 195 Segundo a expresso de F. Guizot. Cit. por ROPS, Daniel. Ibid. p. 484. 196 SIMONS, Gerald. Os Bdrbaros na Europa. p. 109. 197 RJCH, Pierre. Dhuoda. "Manuel pour mon Fils". Paris, Edions du Cerf, 1975. Cit. por PERNOUD, Re-gine: Idat Mtdia. O que no nos ensinaram. Rio de Ja-neiro,.Agir, 1979. p. 88. Sobretudo. PERNOUD, Rgi-ne. La Femme au Temps t:ks Cathldraks. Paris, Stock-Lau-rence Pernoud, 1980. p. 54-64.

    !idade do seu tempo: sbios, letrados e telo-gos, entre os quais Agobardo e Teodulfo, este refugiado godo da Espanha; Paulo Dicono, Pedro de Pisa e Paulino de Aquilia, italianos; Clemente e Dugal, irlandeses; Angilberto e Eginhard, este ltimo um dos raros leigos da corte com instruo, naturais dos pases fran-cos. Tais homens foram responsveis pelo re-nascimento carolngio. Diz-se que o prprio Carlos Magno presidia as sesses da culta as-semblia, onde se debatiam assuntos como li-teratura e teologia, mas tambm questes rela- , tivas economia e vida prtica. Atribui-se a tal pliade de intelectuais o aperfeioamento da escrita, que resultou na famosa minscula carolina, uma caligrafia comp~cta e graciosa, e acima de tudo legvel, que, ao fim de duas d-cadas, substituiu todas as outras escritas em voga. Antes do sculo XII, j estava difundida em toda parte, inclusive na Irlanda e na Ingla-terra.

    A essa elite atribuda a revoluo agr-cola, que implicou a adoo do sistema rotativo dos trs tempos. Consistia em divi-dir a terra arvel em trs partes: uma par-te era semeada no outono com trigo de inverno, centeio, cevada ou aveia; a segun-da parte na primavera seguinte, com le-gumes: ervilhas, lentilhas e feijes; en-quanto isso, a terceira parte, repousava. No ano seguinte, a primeira parte recebia a semeadura da primavera, e a terceira a se-meadura do outono; a outra era deixada em repouso, para permitir que os legumes fixassem o nitrognio no solo. Segundo Lynn White, as protenas (que as favas, lentilhas e legumes garantiam) forneceram a energia necessria para a construo das catedrais.19B

    198 Cf. o ensaio: "Technology and lnvention in the Midle Ages". In: Speculum. Vol. XV, Abril de 1940. Cit. in: IVINS, W. M. Imagm lmpresa y Conocimimto. Barcelo-na, Gustavo Gili, 1975. p. 20-21; LE GOFF,Jacques. La Civilizacin de/ Occit:knte Medieval. p. 92.

    O RosTo DE Crus.To 73 .

    Sobre isso esclarece W M. lvins }r., tornan-do mais ntida a tese de Lyn White: "As ca-tedrais francesas do sculo XII implicavam um conhecimento de engenharia de tenses, e um engenho mecnico que ultrapassa tudo o que foi sonhado pelos tempos clssicos. O Partenon de Atenas, abstraindo-se de suas qualidades estticas, , do ponto de vista tc-nico, um verdadeiro jogo de crianas, com-parado com as catedrais de Reims e Ami-ens."199 Ivins Jr., de resto, menciona uma srie de invenes da poca de Carlos Mag-no, e dos sculos, seguintes, imprescindveis para a compreenso da Idade Mdia, entre as quais: o desenvolvimento dos moinhos hidrulicos (que ocasionaram o desapareci-mento da escravatura), a atrelagem dos ca-valos, o aparecimento da cavalaria (Carlos Magno foi o primeiro monarca a ser re-presentado numa esttua eqestre200); e o aperfeioamento do arado de rodas, cuja primeira representao iconogrfica do sculo X. Jean Gimpel ousa, mesmo, falar numa "revoluo industrial da Idade M-dia", cujas razes remontariam a Carlos Magno, embora a revoluo, em si, tenha ocorrido nos sculos XI-XII-XIII, crian-do uma tecnologia em que a Revoluo Industrial do sculo XVIII se apoiou para ganhar impulso.20 I

    Fato surpreendente que o imperador, ape-sar de ter casado quatro vezes e ter tido dez ou doze amantes, merecendo de um historiador

    199IVINS, JR, W. M. lmagm lmprtsa y Conodmimto. p. 21. 200 A cavalaria ocidental surgiu aps a Batalha de Poiti-ers, quando os cristos viram os rabes combaterem a ca-valo: "A mobilidade maior dos rabes e o emprego de uma nova e estranha inveno, o estribo, que lhes permitia lu-tar montados, proporcionaram uma lio que o rei dos francos, Carlos Magno, aprendeu depressa e bem. FRE-MANTLE, Anne./daM da Fi. Rio de Janeiro, Jos Olym-pio, 1972. p. 18. 201 A Revoluo Industrial da /e/,uk Mdia. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977. p. 11.

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    o curioso rulo de cristo aproximativo,22 se preocupou seriamente com a reforma eclesis-tica. Mandou vir de Monte Cassino, na Itlia, o texto autntico da Regra de So Bento, que lhe pareceu o melhor, contribuindo para o tri-unfo completo da Ordem Beneditina. Favo-receu os mosteiros j fundados e mandou cons-truir outros. Interessou-se, tambm, pela mo-ralizao do clero secular, obrigando-o a pre-gar em lngua vulgar.

    Certas escolas carolngias ganharam fama europia, como as de Corbie, Saint-Wan?ri-lle, Fulda e So Maninho de Tours.

    Os sucessores de Carlos Magno no se mostraram sua altura. Nos prximos 100 anos haver uma espcie de desmoronamento poltico. Os normandos, os hngaros, aparen-tados com os hunos, e outraS foras brbaras, solaparo o magnfico edifcio construdo du-rante meio sculo, preparando o advento do regime feudal, base do mundo medieval. Com isso chegamos a Oto I, o Grande (912- 973), fundador da dinastia homnima, o qual res-suscitou a grandeza de Carlos Magno. Vence-dor dos magiares na batalha de Lechfeld (1 O de agosto de 955 d. C.), Oto sefez ungir em Roma pelo papa Joo XII, em 962. Um ano depois, o mesmo Oto, prncipe sinceramen-te cristo, convocou um Conclio para de-por esse papa, um rapaz de vinte anos que fora eleito por imposio do pai, Alberico, e que era acusado de desmandos como: "man-dar castrar dignitrios que lhe haviam cado em desagrado, ordenar um dicono numa estrebaria, incendiar casas, aparecer em p-blico armado de espada, elmo e couraa, en-tregar-se abertamente a intrigas amorosas, e beber sade do demnio".203

    202 ROPS, Daniel. A lgrtja dos Ttmpos Bdrbaros. p. 453. 203 FREMANTLE, Anne. ldatk ti4 FI. Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1972. p. 38. ROPS, paniel. A lgrtja dos Tm:pos Bdrbaros. p. 618.

    5. O LEGADO DO APOCALIPSE

    Eis-nos s portas do ano mil. Milenarismo? uma palavra mdgica que se presta a in-meras fantasias ...

    Do ponto de vista histrico, os terrores do ano mil foram exagerados. Os medievalistas contemporneos no tm dificuldade em subs-crever o balano de Georges Duby: "Um povo

    aterrorizad~ pela iminncia do fim do mun-do: no esprito de muitos homens de cultura, esta imagem do ano mil ainda permanece viva, apesar do que Marc Bloch, Henri Focillon ou Edmond Pognon escreveram para a destruir, o que prova que os esquemas milenaristas no perderam completamente na nossa poca o seu poder de seduo na conscincia coletiva. Esta miragem histrica toma assim facilmente seu lugar no universo mental, inteiramente dispos-to a acolh-la. "204

    No h dvida de que o ano mil se reves-te de singular importncia. a sua volta, meio sculo antes, meio sculo depois, em todo caso dentro do seu esprito, que prin-cipia a esboar-se a nova imagem de Cristo, a primeira grande imagem que se seguir do Pantocrtor bizantino.

    Talvez seja possvel atribuir-se sua origem remota a um monge espanhol que, por volta do ano 780 d. c., comps, no mosteiro de So Torbio, no norte do pas, o primeiro co-mentrio ocidental sobre o Livro do Apocalip-se. Esta obra feci:mdou a imaginao dos artis-tas da Alta Idade Mdia com inesgotveis est-mulos para a criao visual. At ento os mon-ges irlandeses e carolngios tinham-se limitado a desenvolver a iconografia trazida do Orien-te, ou de Roma, juntando-lhe elementos or-namentais da mais variada espcie, porm sem modificar-lhe a essncia e o significa?o. Mes-

    204 O Ano Mil. Lisboa, Edies 70, 1986. p. 11.

    mo os artistas carolngios, que tinham ressus-citado imagens de inspirao greco-romana, sobretudo nas suas esculturas de marfim, pre-ocupando-se em situ-las no espao, e at mes-mo dot-las de perspectiva (tal como esta po-deria ser imufda na poca), tinham avanado pouco. O sentido da imagem de Cristo conti-nuava o mesmo: uma imagem do Filho de Deus, infinitamente distante da humanidade, visto luz da Trindade, um Cristo primordial-mente teolgico.

    possvel que o monge espanhol, o Beatus de Libana, haja experimentado um frmito

    FIGURA 6Apocalip~ do &atus r Lilbana. XI d.C. Manus-crito de San Isidoro de Len. Biblioteca Nacional, Madrid.

    mistico aproximao do ano mil da Encar-nao de Cristo. Existe, no Apocalipse de So Joo, um texto de impacto (captulo XX, 1-3; 7-8) no qual se l: ''A seguir vi um anjo que descia do cu e na sua mo tinha a chave do abismo e uma grande corrente. Agarrou o dra-go, a antiga serpente, que o Diabo ou Sata-ns, e prendeu-o por mil anos. Lanou-o no abismo, fechou a porta chave e selou-a para que no enganasse mais as naes at que se cumprissem mil anos. Depais deste perodo, deve ser solto durante algum tempo."205

    205 A Boa NotJa (traduo interconfessional do rexro gre-go para o portugues moderno). Lisboa, Difusora Bblica, de 1978. p. 524.

    O RoSTo DE CRISTO 75

    Passados mil anos, Satans ser solto da priso: "Sair para enganar Gog e Magog, todas as naes do mundo, numerosas como as areias do mar". 206

    No estaria justamente nesses mil anos o fundamento do Milenarisrho? As meditaes do visionrio espanhol tiveram o mrito de desengatilhar a fantasia dos monges contem-porneos, originando algumas das imagens mais sensacionais do repertrio religioso de todos os tempos. Tais imagens, que mesclam o terror das profecias do apstolo Joo a uma opulncia decorativa e cromtica absoluta-mente nicas, prepararam o caminho para os portais romnicos do sculo XII.

    Restam-nos 22 Apocalipses iluminados, que seguem estilos diversos, desenvolvendo os mes-mos temas iconogrficos, temas, ao que pare-ce, determinados pelo prprio autor.

    Excetuado um fragmento conservado no Mosteiro de Silos, os exemplares mais anti-gos pertencem ao estilo morabe. So obras realizadas na Espanha sob o domnio rabe, ou por artistas impregnados da civilizao islmica. So produes mistas, que sinteti-zam elementos herdados da tradio visig-tica e andaluza, combinando-os com as exi-gncias do Cristianismo. Trata-se de minia-turas pintadas com cores vivas, chapadas, sem modelado. Tais miniaturas constituem um dos conjuntos mais preciosos da primeira pintura medieval. Os mais belos exemplares so o Beatus de Magius (926 d. C., Pierpont Morgan Library, New York), o Beatus de Gerona (976 d. C. Catedral de Gerona); o Beatus de Valcavado (sc. X. Biblioteca da Universidad de Valladolid); o Beatus d S de Urge/ (sculo X); e o Apocalipse de Saint-Sever (Biblioteca Nacional de Paris), que so-freu a influncia dos anteriores.

    206 A Boa Nova. p. 524-525.

  • 76 .ARMINDO TREVISAN

    A viso apocalptica do Beatus de Liba-na promoveu uma das mais antigas tradi-es monsticas: a do combate espiritual, a psicomaquia. Tal viso dualista mergulha suas razes nos textos bblicos, principalmen-te em dois textos do Novo Testamento. O primeiro de So Paulo: "Eu sei que o bem no habita em mim, quer dizer na minha carne. Embora tenha o desejo de praticar o bem, no sou capaz disso. No fao o bem que eu quero, mas fao o mal que no que-ro. Ora, se eu fao o que no quero, por-que no sou eu quem faz isso, mas o pecado que est em mim. Encontro pois em mim esta regra: quando eu quero fazer o bem, fao mas o mal. C no meu ntimo, eu quero seguir a lei de Deus, mas vejo que no meu corpo h uma outra lei que est contra a lei da minha inteligncia. C no meu ntimo, eu quero seguir a lei de Deus, mas vejo que no meu corpo h uma outra lei que est con-tra a lei da minha inteligncia. isso que me torna prisioneiro da lei do pecado que est no meu corpo. Que homem infeliz eu sou! Quem me libertar deste corpo que me leva morte?"207 O segundo texto de So Pedro: "Seja'tn prudentes e estejam alerta, pois o vosso inimigo, o Diabo, anda em vol-ta de vocs, como um leo a rugir procuran-do a quem devorar" .208 So Paulo, por ou-tro lado, aconselha mortificar sem cessar a carne, para que o esprito possa viver. Essa luta contra o demnio assemelha-se a uma verdadeira peleja: "Defendam-se com as ar-mas que Deus oferece. Assim podero resis-tir aos enganos do Diabo. Pois, no contra seres humanos que temos de combater, mas contra poderes e autoridades, que dominam este mundo de escurido e contra espritos

    207 A Boa Nova. p. 316-317. 208 Primeira Carta de So Pedro 5,8. A Boa Nova. p. 479.

    do mal que no se vem. ( ... ) Usem a verda-de como um cinto bem apertado e a justia como armadura.( ... ) Andem sempre arma-dos com o escudo da f, para poderem de-fender-se das setas incendiadas do inimigo. Que a salvao lhes sirva de capacete, e com-batam com a espada do Esprito que a pa-lavra de Deus!"209

    O combate espiritual, descrito por So Paulo, ganhou adeptos, desde o incio, en-tre os monges do deserto, em especial com Santo Anto, que foi assediado muitas vezes pelo demnio: "Na vida que, poucos meses depois da morte do seu modelo, Santo Ata-nsio escreveu, estas cenas escabrosas ocu-pam bastante espao. No se poupa ao lei-tor qualquer forma animal que o Advers-rio tivesse tomado para atormentar o santo - spide, onagro, gigante, voltil, hipocen-tauro, drago ..;.. nem os cataclismas que de-sencadeou para. o tentar, nem os outros argu-mentos com que procurava torn-lo hertico, nem mesmo perigos mais insidiosos, imagens com que 'lhe acariciava os sentidos'".210

    certo que os monges atribuam ao de-mnio quase todas as suas dificuldades espi-rituais e, sem dvida, havia nisso no pouco eXa.gero. "211 Semelhante cosmoviso se trans-mitiu ao monacato ocidental. Pode-se encon-tr-la na prece de So Patrcio, sugestivamente denominada Armm:iura, onde se l:

    "Levanto-me, neste dia que amanhece, Pela fora de Deus que me sustenta, Pelo poder de Deus que me ampara, Pela sabedoria de Deus que me ilumina, Pela obra de Deus que vigia meu caminho,

    209 Carta aos Efslos, 6,11-17. A Boa Nova. p. 397-398. 21o ROPS, Daniel. A Igreja dos Apstows t dos Mdrtim. p. 605. 211 MAUN, Antonio Royo. Los Grandn Maestros de la Vida Espiritual. 2. ed. Madrid, BAC., 1990. p. 67.

    Pelo ouvido de Deus que me escuta, Pela palavra de Deus que fala dentro de mim, Pela mo de Deus que me guarda, Pelo caminho de Deus que se abre minha frente, Pelo escudo de Deus que me protege, Pelo exrcito de Deus que me salva Das armadilhas do demnio, Das tentaes dos vicios, Das inclinaes da natureza, De todos que me desejam o mal, Longe ou perto de mim, Esteja eu s ou em grupo. "212

    uma verdadeira blindagem espiritual contra o inimigo invisvel.

    A idia de batalha interior se havia po-pularizado desde os sculos VI, graas aos versos do poeta cristo Prudncio, quedes-creveu uma luta entre as virtudes e os v-cios. Tais versos inspiraro os escultores ro-mnicos. O primeiro manuscrito ilustra-do do poema de Prudncio data do sculo X (Biblioteca Nacional de Paris). Ter uma outra verso ilustrada no co~hecido Hor-tus Deliciarum (Jardim das Delicias), que mile Mle qualifica de manuscrito feroz. Neste manuscrito as virtudes aparecem como baronesas gaulesas; com elmos, ma-lhas e couraas.213

    A Idade Mdia, na virada do primeiro mi-lnio, era uma civilizao recm-sada da bar-brie. Os costumes mostravam uma bruta-lidade flor da pele. Eis um exemplo dessa rudeza: Guilherme IX de Aquitnia, mon-tado a cavalo, encontra o bispo de Poitiers diante da Catedral da cidade:

    212 A L/rica de So Patro. In: BURRINJ, Gabrielle e GA-LERANO,Aida. Le Piu GrrmdiPreghinuliTutti i Tmzpi tdi Tutti i Pats. Milano, Bompiani, 1998. p. 387-388. 213 L'Art &ligitux du XIII Sieck m Franct. Paris, Armand Colin, 1990. p. 203. p. 206.

    O RosTo DE CRISTO 77

    - D-me a absolvio, ou te mato! - diz o duque.

    - Podes matar-me - responde-lhe o bis-po.

    -No! Eu no gosto tanto assim de ti para te mandar diretamente para o Para-so ... - conclui o duque.21 4

    Estaramos exagerando? Leiamos uma rpida descrio desse mundo: "Todo o uni-verso combate. Os prprios astros se de-frontam. O monge Adernar de Chabannes v uma noite 'duas estrelas do Signo do Leo lutarem entre si, a pequena corria para a grande ao mesmo tempo furiosa e amedron-tada; a outra repelia-a para o ocidente, com a sua crina de raios'. ( ... ) Os cristos desse tempo comportam-se perante o mistrio como na guerra feudal. A piedade concebe-se como uma sentinela perptua, uma se-

    ".qncia de assaltos ( ... ) Alguns afrescos do romnico mostram Cristos ferozes, seguran-do entre os dentes cerrados o gldio da jus-tia e da vitria."21 5

    Um desses Cristo forozes encontra-se no tm-pano de La Lande-de-Cubzac (Gironde).2I6

    Tal estado de esprito relaciona-se, ao menos em parte, com a sociedade religiosa dominada pelos monges, nem todos equili-brados. Os irlandeses praticavam jejum as-sombrosos, e se dedicavam a exerccios asc-ticos, como o crosfigill, a orao com os bra-os em Cruz. A legenda conta que So Ke-vin de Glendalugh permaneceu sete anos apoiado numa mesa, to imvel que os ps-saros construram ninhos em suas mos ...

    214 Citado por POULET, Charles. Histoirt du Christia-nisml!. Paris, Beauchesne, 1992. p. 455. 21 5 DUBY, Georges. O Tnnpo dm Cati!drais. A Arte I! a Socie-dade. {980 -1420). Lisboa, Editorial Estampa, 1979. p. 55. 21 6 MLE, mile. L'Art &ligi= du XIII Siede m France. Paris, Armand Colin, 1953, 6. ed. p. 13, ilust. 7.

  • 78 ARMINDO TREVISAN

    A tais excessos juntava-se uma sensibilida-de mrbida em relao ao pecado. Ser permi-tido rotul-la de "complexo de culp'? Veja-mos os fatos: nos primeiros tempos a Igreja mostrou-se severa para com as faltas cometi-das pelos seus membros, inclusive leigos. Por ocasio das perseguies, teve de afrontar o problema: absolver ou no absolver os lapsi, isto , os cristos que no se sentiam capazes de enfrentar a tortura e, por isso, preferiam apostatar, ou seja, render-se s exigncias im-periais? Algumas autoridades crists pretendi-am que trs crimes no podiam ser perdoados: a idolatria, o adultrio e o homicdio, mesmo que os culpados se arrependessem. Entre tais personalidades incluam-se Tertuliano e Or-genes. Os papas, apesar disso, principalmente So Calisto, agiram em sentido contrrio, ri).os-trando-se fiis a Cristo, que perdoara a mulher adltera, e prometera o paraso ao ladro arre-pendido. J no final do sculo li, o cristo, que houvesse cometido uma falta grave, era perdoado, embora devesse. dar uma reparao comunidade. O perdo para certos delitos ficava protelado para a hora da morte.217

    Mais tarde, no sculo UI, os casos de apos-tasia cresceram: "A principal razo da aposta-sia foi, sem dvida, o medo. Essa fraqueza to natural que seria bem farisaico atirar-lhes a primeira pedra. O fto de um indivduo des-maiar simples evocao de uma -fera esfo-meada que se lana sobre ele absolutamente normal e humano."218 Com razo, So Ci-priano, bispo de Cartago, desculpou a debili-dade de alguns fiis que se tinham deixado le-var pelo medo. Em 251 d. C., o papa Cam-lia estabeleceu que os 14psi que se arrependes-sem seriam submetidos a rudes penitncias cannicas, porm receberiam a absolvio.219

    217 ROPS, Daniel. A IK"_ja t.Ws Apstolos ulos Mtirti=. p. 270. 21s Ibid. p. 439. 219 Ibid. p. 441-442.

    No sculo VI, os monges da Irlanda in-troduziram na Igreja a confisso individual. Transformaram a confisso em ato ntimo, realizado entre o penitente e o confessor, passvel de repetio, pondo fim execrao pblica do pecador. Teria essa instituciona-lizao e a freqncia da confisso favoreci-do o sentimento de culpabilidade a que nos referimos? A realidade que, a partir do s-culo IX, tal sentimento assumiu propores inexplicveis. As auto-acusaes do sacerdote e dos fiis, durante a celebrao da Eucaris-tia, tornaram-se freqentes. Na poca de Carlos Magno, o Confiteor, que no fazia parte do culto da Igreja primitiva, conver-teu-se na enumerao de 20 vcios. Em vez dos 42 pecados da confisso negativa do Li-vrodos Mortos, declaravam-se mil outros.220 Mencionamos j o rito egpcio da confisso negativa. Provavelmente tal rito, cristianiza-do pelos monges egpcios, incorporou-se prtica dos monges da Irlanda, e com eles penetrou na Europa. A ele liga-se a psicosta-sia, a pesagem das almas, descrita no captu-

    FIGURA7Em-baixo: A Pesagem das Almas (Psi-costasia). XII. Saltrio do sc. Xll. Mary Evans Picrure Library.

    220 DEMPF, Alois. La Exprnin Artlstica de las Culturas. Madrid, Rialp, 1962. p. 268.

    lo do CXX:V do Livro dos Mortos. O egipt-logo Pierre Montet a descreve assim: aps transpor as doze portas da noite, o defunto chega sala das duas verdades, na qual Os-ris aguarda num trono, com suas duas irms fsis e Nftis em p, atrs dele. Catorze asses-sores alinham-se ao fundo. No meio da sala v-se uma grande balana, com o monstro de sentinela perto dela. Toth, Anbis, s ve-zes Hrus, agitam-se na sala. Vestido com uma tnica de linho, o defunto introduzi-do por Anbis. Aps saudar Osris e os deu-ses presentes, profere uma longa declarao de inocncia, uma espcie de confiteors aves-sas, composto de frases negativas: "No pequei contra os homens ... No maltratei meus em-pregados ... No os obriguei a trabalhar alm de sua capacidade ... No caluniei Deus. No tratei com brutalidade o pobre ... No fiz nin-gum passar fome. No enganei nas medidas dos campos. Nada tirei do contrapeso da ba-lana. .. No tirei o leite da boca das crianas ... No interrompi a gua em sua estao~ .. " De-pois de defender-se 36 vezes contra aquilo que julgava ser pecado, o recitante conclua:

    Sou puro, sou puro, sou puro!

    Em seguida, como se receasse no ser acre-ditado, recomeava a declarao de inocncia, dirigindo-se, sucessivamente, aos 42 deuses que cumprimentara ao entrar, todos com nomes aterrorizantes: O Devorador da Escurido, O Q!.tebrador de Ossos, O Bebedor de Sangue, etc. Depois de pronunciar cada nome, o defunto negava um determinado tipo de pecado. S ento se livrava da Devoradora do Reino Sub-terrneo, monstro meio crocodilo, meio hipo-ptamo, e era proclamado justo.221

    221 Sobre este tema: MONTET, Pierre. O Egito no Tempo de RA71Uis. So Paulo, Companhia das Letras, 1989. p. 311-317.

    ROSTO DE CRISTO 79

    At que ponto tais infiltraes pags agu-aram a sensibilidade medieval para a cul-pa, criando condies propcias elabora-o da nova imagem de Cristo baseada no Apocalipse, isto , no juzo de Deus? Que o Apocalipse seno a descrio antecipada do castigo dos rebeldes a Deus, a que cor-responde o triunfo dos fiis seguidores? O juw divino ali apresentado como uma luta entre Deus e Satans, como a oposio en-tre dois reinos: o de Cristo e o do Anticris-to. Graas ao sacrifcio do Cordeiro Qesus, vtima eucarstica), Satans e o mundo do pecado so vencidos. Os prprios cantos, que ecoam no Apocalipse, parece terem sido usa-dos na liturgia da Igreja primitiva. A passa-gem, porm, do Apocalipse que mais sensi-bilizou a imaginao medieval da poca ro-mnica foi a viso grandiosa e aterradora do captulo quarto, onde se l:

    "Vi ento um trono no cu, e nele estava sentado algum que tinha o aspecto de uma pedra preciosa, de jaspe e de sardnica. O tro-no estava rodeado de um arco-ris que brilha-va como uma pedra de esmeralda. A volta do trono havia mais 24 tronos, e nestes tronos estavam sentados 24 ancios vestidos de bran-co e com coroas de ouro na cabea. Do trono saam relmpagos, estrondos e troves. Havia sete archotes ardentes que brilhavam diante do trono: so os sete espritos de Deus. Diante do trono havia como que um mar, lmpido como o cristal. No meio do trono e sua volta havia quatro seres vivos, cheios de olhos por diante e por trs. O primeiro era semelhante a um leo, o segundo parecia-se com um touro novo, o terceiro tinha uma cara como se fosse de um homem, e o quarto era parecido a uma guia quando voa.''222 Esse trecho do Apocalipse, bem como o do captulo VI, 2-7, so as verda-

    222 Apocalipse, 4,2-7. A Boa Nova. p. 502-503.

  • 80 ARMINDO TREVISAN

    deiras fontes do Cristo em majestade, o Cristo dJJ juzo Fina~ tal como foi imaginado, j no pelos artistas bizantinos, preocupados com questes teolgicas, mas pelos artistas romni-cos, preocupados com questes morais, de pro-funda angstia perante os prprios pecados.

    Antes de analisarmos as imagens prototpi-cas dessa nova viso iconogrfica e artstica, insistamos em alguns aspectos. Reiteremos que foi assim, precisamente, que o Bearus de Li-bana, o pioneiro de tal representao, imagi-nou Cristo, uma ve:z que assim que os Apo-calipses, derikdos de seu Comentdrio e repro-duzidos at aos incios do sculo XIII, o figu-ram. Tais imagens deixaro as pginas dos manuscritos aps o ano mil, transferindo-se para as fachadas das baslicas, construdas para favorecerem as peregrinaes aos tmulos dos Sa.ntos, onde eram veneradas suas relquias.

    Digamos: o temor da justia de Deus, o qual se apresentava para os medievais da pri-meira fase, "glorioso como um soberano e ameaador como um juiz'', 223 obsessionava-lhes de tal maneira a imaginao, que, para neutra-lizar-lhe os efeitos, recorreram a intercessores capazes de aplacarem a justa ira de Deus e li-bert-los de outra fora terrvel: o diabo. Dois sculos mais tarde, em 1250, o pregador po-pular Berthold de Regensburg ainda afirmava que, possivelmente, uma s pessoa se salvaria em cada 100.000.224 Em tal contexto, como

    n~ ter medo? o medo do juiz dJJ Apocalipse, que dar ao sacrifcio da Missa um novo senti-do: em vez de ela ser a celebrao do sacrifcio e da ressurreio de Jesus, tornar-se- a epifo-nia do Expiador que se imola para salvar os pecadores. Eis a razo por que, a partir de en-to, haver na Missa a elevao do clice e da

    223 MLE. mile. L'Art Raigieux du XIII Sitck. Paris, Ar-mand Colin, 1990. p. 643. 224 Cit. por LE GOFF, Jacques. La Civilzacin ekl Oci-dmu MedievaL p. 433.

    hstia aps a onsagrao. Ao olharem para a hstia, os pecadores se sentiam purificados.225

    6. O DIABO E SEUS DISFARCES

    J nos referimos ao diabo, uma espcie de nouveau-n da' iconografia crist ... A arte crist primitiva ignora-o. No aparece em nenhuma das catacumbas. Na arte bizanti-na, durante a primeira Idade de Ouro, no se achou, nem nos mosaicos das bsides nem nos sarcfagos, uma nica representao sua. Aparece, porm, nos afrescos do sculo VI da igreja monstica egpcia de Bauit~ Tam-bm no existem representaes do diabo na arte carolngia, ou elas so raras. Historica-mente, o diabo uma elaborao doutrinai e imagtica dos monges do sculo XI - ou como afirma Le Goff, com maior preciso: "uma criao da sociedade feudal". 226

    Com o passar do tempo sua figura repe-lente torna-se ubqua. Invade os conventos, atormenta os 'servos de Deus, que o vem com freqncia. S o monge Raul Glaber o viu trs ve:zes: "Ora, este monge no era um esprito vulgar, nem de uma anormal credu-lidade. Quem, entre os frades de Cluny, no tivera a experincia de tais encontros?".227 Pois bem, o homem ilustrado; que era Gla-ber, considerado o melhor historiador do ano mil, refere assim uma de suas aparies:

    "Na poca em que vivia no mosteiro do bem-aventurado mrtir Leger, que chama-vam Champeaux, uma noite, antes do of-cio das matinas, eleva-se diante de mim, ao p do meu leito, uma espcie de ano horr-

    225 DEMPF, Alois. La Expmin Artfstica ele las Culturas. p. 268-269. 226 La Civilizacin t:kl Occidente Medieval. p. 224. MLE, mile. L'Art Religieux du XII Sieck. p. 370-371. 227 Duby, George.; O Tempo das Catedrais. p. 277. Cf. MLE, mile. Dlrt Religinlx du XII Sitck m France. p. 367.

    FIGURA 8 Diabo devorando um pecador. Capitel da Igreja Romnica de Saint-Pierre de Chauvigny, Vienne, Frana. XII d.C. In situ.

    vel vista. Era, tanto quanto posso julgar, de estatura medocre, com o pescoo fino, um rosto macilento, olhos muito pretos, face rugosa e crispada, as narinas apertadas, o queiJo fugidio e muito direito, barba de bode, orelhas felpudas e afiladas, cabelos eri-ados, dentes de co, crnio pontiagudo, peito inchado, as costas arqueadas, as nde-gas trmulas, vesturio srdido, alterado pelo seu esforo, todo o corpo inclinado para diante. Agarrou a extremidade da cama onde eu repousava, imprimiu a todo o leito terr-veis safanes, e, por fim, disse:

    "Tu, tu no permanecers por muito mais tempo aqui".

    E, eu, aterrado, acordei sobressaltado e vi-o tal como acabo de descrev-lo. Ele, no entan-to, rangendo os dentes, repetia sem parar:

    O RosTo DE CrusTQ 81

    "No permanecers por muito mais tem-po aqui".

    Saltei imediatamente da cama, corri para o oratrio e prostrei-me diante do altar do

    FIGURA 9 Seres diablicos com Um4 criatura hum4na no colo. Portal central da Basilica de Saint-Denis.

  • 82 .ARMINDO TREVISAN

    muito santo padre Bento no auge do terror; permaneci ali muito tempo a lembrar-me febrilmente de todas as falhas e pecados gra-ves que desde jovem tinha cqmetido por in-docilidade ou por descuido; para cmulo, as penitncias aceitas por amor ou por medo do divino reduziam-se a quase nada. E, as-sim, esmagado pela minha misria e confu-so, nada tinha de melhor para dizer seno estas simples palavras:

    "Senhor Jesus, que viestes salvar os peca-dores, na vossa grande misericrdia, tende piedade de mim". 228

    Observemos que, desde suas primeiras re-presentaes, o diabo exibe uma conotao racista. J em Bizncio, em determinadas ce-nas bblicas, como na Queda dos Anjos, na Pardbola do Rico Epulo e do Pobre Ld.zaro, era representado como um anjo de pele ne-gra229 . So Gregrio, na sua narrao dialo-gada sobre a vida de So Bento, refere que certo monge, que no conseguia ficar em orao, foi arrastado "por um negrinho que o puxava pela orla do hbito".230

    Sobre essa conotao racista do diabo diz Bernard Teyssedre: "As anedotas sobre os dia-bretes negros serviram de condicionamento s edificantes vidas de ermites. O grande Santo Agostinho no escapou dessas tolices; ele con-ta que um mdico gcitoso via em sonhos ne-grinhos encarapinhados lhe esmagarem os ps para impedi-lo de correr ao batismo ... "231

    O essencial, contudo, na anlise do pa-pel do diabo no imaginrio medieval, con-

    228 Cit. por DUBY, Georges. O Ano Mil. p. 277. 229 DO RIVAL, Bernard. In: L'Enftr. Paris, ditions de La Revue des Jeunes, 1950. p. 310. 230 Citado por NESMY, Dom Claude J. So Bt!nto ~a V.&t Monstica. Rio de Janeiro, Editora Agir, 1962. p. 40. Cf. 11 LivrtJ do Dilogo de So Gr.grio. Rio de Janeiro, Mosteiro de So Bento - Edies Lumem Christi, 1946. 231 Revista Humanidats. Universidade de Braslia. Vol 7, n" 3, 1991, p. 265.

    siste em ralacion-lo com a mulher. a con-cepo sex~al do sculo XI que o totna com-preensvel, alm das razes j expostas.

    Em certos momentos, o diabo reduz-se a um libi, suntuosamente ptico, da misogi-nia medieval. Tal misoginia influir, sobre-tudo, nas representaes de Cristo-Juiz, con-tribuindo para excluir dessa imagem quais-quer traos de suavidade e ternura.

    Comecemos lembrando que a misoginia crist tem uma longa histria. Dever-se- ras-tre-la no quadro de uma certa tradio exeg-tica da Bblia, por exemplo, em Flon de Ale-xandria, autor judeu, contemporneo de Je-sus, que escreveu: "Para a mulher, a serpente o gow que se torce e se enrola, procurando no corpo a sada, acomodando-se em sinuosida-des e fendas em cada um dos sentidos".232 Em hebraico arum significa astcia, e arum tam-bm pode significar nudez. Como a Bblia atri-bui a seduo de Eva astcia da serpente, a transio da primeira para a segunda se fez com certa fcilidade. Diz o mesmo Teyssedre: "Ori-ginalmente, sat no era nem feio, nem ruim ( ... ) mas ele se tornou. Seu negrume devido, em grande parte, desconfiana da lei patriar-cal contra a mulher, e da lei em geral contra os prazeres do sexo."233

    Historicamente, a fonte da misoginia me-dieval deve ser buscada em So Jernimo (347-419 d. C.). Na nsia de valorizar a virgindade, Jernimo desvaloriza a maternidade e o casa-mento. Lerribre~os que as apologias da vir-gindade eram comuns na sua poca. Entre os sculos II1 e IV foram redigidos no Ocidente doze tratados de louvor virgindade.234 Ape-sar disso, no se encontra nos autores mais

    232 Citado por TEYSSEDRE, Bemard. In: Revista Humani-dades. Universidade de Brasaia. Vol. 7, n" 3, 1991. p. 264. 233 TEYSSEDRE, Bemard. lbid., p. 263. 234 CAMELOT, Thomas. In: WAA. Mystiqu~ a Conti-

    nt!nc~. Paris, Descle do Brouwer, 1952. p. 275.

    antigos "nenhum vestgio dessa depreciao da mulher e do sexo, to desagradvel em certos autores monsticos da Idade Mdia''.235 Jer-nimo, o grande tradutor da Bblia para o la-tim, d um passo &ente, ao pretender que o sbio no deve casar-se: "ou os livros, ou a mulher"- diz ele, retomando uma observao de Teofastro.236 Os textos do grande doutor sobre esse tema so de um amargor inexced-vel, a ponto de um ilustre mdico catlico se sentir na obrigao de advertir os leitores: "( ... ) tenho o ingrato privilgio de pr em dvida o rigor dos seus argumentos ( ... )".237 Jernimo no receia incidir na grosseria; para melhor realar as vantagens da virgindade, deprecia os bebs: "Eis que se pem a gritar no exato mo-mento em que os criados fzem barulho, em que as crianas se atiram ao colo deles para serem acariciadas. Nesse entremeio, os cozi-nheiros preparam a comida, as tecels bisbi-lhotam, e se anuncia a chegada do dono da casa acompanhado de amigos: 'Est arrumada a cama?'( ... ) Em toda essa balbrdia pergun-to: onde fica o pensamento de Deus?"238 Nem assim se satisfz o Santo: para gudio dos mi-sginos, acrescenta, no sem uma pitada de humour no melhor estilo de Bernard Shaw: "Sustentar uma mulher pobre algo dillcil, mas sustentar uma mulher rica um suplcio". Sim, prossegue ainda Jernimo, " preciso cham-la Domina (isto , senhora). preciso festejar o seu aniversrio, preciso jurar por ela; pre-ciso fzer votos para morrer antes dela. ( ... ) Se ela uma mulher bonita, provoca amor; se feia, fica ardendo em desejos. ( ... ) menos diRcil se contentar com uma mulher feia do que viver ao lado de uma mulher bonita. COmo

    235 CAMELOT, Thomas. Jbid. p. 279. 236 Cit. lbid. p. 280. 237 NODET, Charles-Henry: "Position de Saim-Jerme en Face des Problemes Sexuels". In: WAA Mystiqu~ et Continmu. p. 313. 238 Citado por NODET, Charles-Henry. Jbid. p. 316.

    O Rosro DE CRJsro 83

    estaria em segurana o que objeto dos dese-jos de todo o mundo?"239 Por um triz, o Santo Doutor no acaba condenando o casamen-to!240 Corrigindo-se, observa: "O casamento, portanto, permitido, como j dissemos, por causa das crianas. Quanto aos prazeres que a gente encontra nas meretrizes, eles so conde-nados quando se trata da prpria mulher ... 241 Que inferir disso? Charles-Henry Nodet es-creve: "Diante de uma atitude to anormal de So Jernimo em relao sexualidade ( ... ), pode-se inferir que a sua prpria sexualidade no era normal, como tambm que a suaagres-sividade era mal sublimada". 242 Seria So Jer-nimo uma voz nica? Infelizmente no. At Agostinho, o grande Doutor da Igreja, de enor-me influncia nos meios monsticos medie-vais, teve uma viso marcada pela desconfian-a em relao sexualidade, e por uma averso ao corpo que no disfara sua colorao plat-nica. O seu ideal terico da vida humana leva-o a atribuir importncia descomunal ao exer-ccio consciente da razo. Isso explica uma pas-sagem, no s curiosa, mas perturbadora de seus escritos. Aps haver dito que o prazer sub-merge a alma, Agostinho insiste sobre o tor-por que se apodera de uma pessoa que experi-menta o orgasmo: "A prova de que essa vol-pia m est no fto de que no se pode prati-car a geometria nesses momentos".243

    Sua atitude na polmica com Juliano de Eclana, jovem bispo casado, de forma-

    239 Cit. por NODET, Charles-Henry. Ibid. p. 317. 240 Ibid., p. 321. 241 Cit. por NODET, Charles-Henry. Ibid. p 327. 242 Ibid. p 342. Cf. tambm, BLOCH, R Howard. Mi-soginia Mediroa/. So Paulo, Editora 34. 1995. p. 27-28; 44-47; 64-65; 90-91; 110-111; 126-I27; 142-146. 243 Cit. por MESLIN, Michel: "Saintet et Mariage au Cours de la Seconde Querelle Plagienne". In: WAA. Mystiqu~ et Continmce. p. 305. Diz Hans Kng: "Agosti-nho historicizou, psicologizou, na verdade sexualizou 0 peeado primeiro de Ado. ( .. )O prazer sexual por si s (e no para a procriao de filhos) era pecaminoso e devia ser suprimido ( ... )". lgrqa Catlica. p. 78. p. 104.

  • 84 ARMINDO TREVJSAN

    o aristocrtica, porm com tendncias pelagianas, que discordava de!e.sobre c~rtas implicaes do pecado ongmal, de1xa uma impresso melanclica num leitor fa-miliarizado com as lies de Freud. Tho-mas Cahill resume a posio do grande Doutor: "Juliano informa a Agostinho que faz sexo com a esposa sempre e onde dese-ja. Agostinho explode: 'Ora, ora! Ento, essa a tua experincia? Decerto no irias preconizar que casais se abstivessem desse mal, pois se falo de teu bem predileto! Ento, queres que rolem na cama sempre que desejarem, sempre que e~citados pe~a luxria. Que no. adiem, p01s, tal ensa1o at a hora de dormir: vamos permitir a le-gitima unio dos corpos de que falas sem-pre que o bem natural esteja excitado. Se esse o tipo de vida conjugal que tens, no tragas tua experincia para o debate'!" Aqui temos Agostinho na pior veia de Ccero, argumentando sem ateno justia ~ verdade, mas apenas para vencer - o upo de argumento mais grosseiro, o ad homi-nem. No devemos esquecer que o mun-do antigo, tanto o ocidental quanto o orien-tal, geralmente considerava o desejo se-xual, em especial nas mulheres, objeto de chacota, ou mesmo de desprezo. Agosti-nho vai mais longe, e, perto do prprio fim, o libertino reformado considera os afagos de uma mulher algo "srdido, sujo e horrvel".244 Um dos maiores experts ca-

    2 Cir. por CAHIU., Thomas. Como os Irlande!es Safvaram a CiVZJ:lio. p. 81. O rc:xto original de S!"ro Agosn~o, a que se refere o auror, encontra-se na obra: Contra Juhanum haeresis pelagianae defensorem. Libri &x". In: Opera Omnia Sancti Aurdii Augustini Hipponensis Episcopi. Paris, Apud Gaume Frarres, 1838. Tomus X, p. 1011-1112. Convm acrescentar s observaes de Cahill alguns esclarecimenros de outro esrudioso, Michd Meslin, que analisou acurada-mente a polmica de Sanro Agostinho com Juliano de Eda-na: "Sainrer et Mariage au Cours de la Seconde Querelle Plagienne". In: BAUDOUIN, Charles e Ourros. Mystiqur

    tlicos em Teologia Moral, Bernard Haring, afirma numa obra recente: "De-pois de Santo Agostinho, as relae~ co.n, jugais eram em si degradantes, s ;ustifi-cadas em ordem procriao". 245 Friedrich Heer acrescenta: "O processo catastrfico da dessexualizao do amor ganhou forte

    , d Ag . h " 246 N-mpeto atraves e osun o . ao es-queamos que Agostinho chegou a escre-

    et Continmce. p. 293-307. Meslin reconhece que Juliano foi o primeiro autor cristo a estabelecer uma disrino real en-tre o Sexual e o Sensual. Foi Juliano, rambm, quem ousou isentar a vida carnal dos casados de qualquer sombra de pe-cado. Segundo, porm, Meslin, Juliano se excede~, acaban-do, praticamente, por negar a existncia da sensualidade. Isto no impede que lhe atribuamos outro mriro: o de estar tec-nicamente (a expresso de Meslin) em avano .sobre. roda a reologia do seu rempo: "Ele q~ um escolstico, da ~eslin no s por seu mtodo analnco, mas at por suas sutile-za:_. (Ibid. p. 301). Graas s suas a~revidase ~~t~is afir-maes, Juliano inaugura a teologia do mammomo. Tam-bm, em ceno sentido, esse jovem bispo naturalizou o termo concupiscncia, como mais tarde Freud naturalizaria o rermo libido. (Ibid. p. 303). importante sublinhar um aspecto da polmica: Sanro Agostinho csrava mais interessado em do;-barer a problnntica do amor sexual do que suas eventuaiS realizaes amorosas. Por isso, o rigorismo sexual .de Santo Agostinho no deve f.u:er-nos esquecer que de f?1 ':"" dos maiores gnios da humanidade, e que sua. produao mrelec-tual foi decisiva para a evoluo da teolog~a e da filosofia do Ocidente. Um dos estudiosos de sua obra escreve: "( ... ) o doutor de Hipona, como Piaro, to poera como filsofo; pensa raramente apenas com a razo, com toda a sua alma que vai para a verdade, isro , segundo ele, p~ De~ a sua imaginao vivssima e o seu corao quent~1mo esta~ sei?'-pre presentes, colorindo de sentimento e de v1da as m:us fnas abstraes." THONNARD, F. J. CompndW rk Histria da Filosofoz. Vol. I. So Paulo, Editora Herder, 1968. p. 253. A "infelicidade" de certas afirmaes do autor das "Confisses" explica-se, ain"- pd~ sua .adeso durante. nove anos _ seita maniquesra, cujos pnndp1os fundamentais eram: I. Nao h realidade superior ao corpo. II. A alma humana uma parte da divindade. III. O mal uma subsclncia separada que no vem de Deus. Alm disso, Agostinho, quando jovem, se li-gou a uma mulher de condio inferior, da qual reve um filho chamado Adeodato. Tudo isso teria infludo na posio pessimista do grande doutor em relao ao sexo. 24S Minhas Esperanas para a Igreja. Aparecida, Editora Sanrurio-Paulus, 1999. p 149-150. 246 Cit. por HEINEMANN, Uta Ranke. Eunucos pelo &ino dr Dius. 4' tiragem. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Tempo~ 1999. p. 89.

    ver: "Estou convencido de que nada afas-ta mais o esprito do homem das alturas do que os carinhos da mulher e aqueles movimentos do corpo, sem os quais um homem no pode possuir sua esposa". 247

    7. A FIGURA DA MULHER NA ARTE ROMNICA

    evidente que tal misoginia no se explica unicamente pelo celibato monacal. A socie-dade feudal dos sculos XI e XII era uma sociedade sem mulheres, uma sociedade machista. Eis um painel vvido da poca:

    "Todos rapazes. A alta cultura do scu-lo XI ignora a mulher. A sua arte no lhe d um lugar, ou quase. No h figuras de Santas; ou ento so dolos de ouro com olhos de vespa, postados s portas das tre-vas e cujo olhar perdido ningum ousa enfrentar. As raras imagens femininas, que se enfeitam com alguma graa na decora-o dos Santurios, so alegorias coroadas que representam os meses e as estaes. ( ... ~ Hiertica, distante, a Me de Deus mostra-se por vezes no seio das transposi-es da narrativa evanglica. Simples com-parsa, na verdade: o seu rosto est no pla-no de fundo, como, nas assemblias de homens de guerra, o da esposa do se-nhor. "248 .

    Pior do que isso: a mulher era confundi-da, no imaginrio religioso, com as tenta-es demonacas. No foi Eva quem, logo aps a criao do homem, o arrastou ao pe-cado original, induzindo-o a comer a ma oferecida pela serpente? O corpo feminino

    O RoSTo DE CruSTo 85

    surgia como origem primeira da seduo. Flon dizia: "A mulher, formada da carne da costela, permanece presa pelo corpreo".249 No sculo N So Joo Crisstomo realar tal aspecto: "( ... ) Quantas vezes, por con-templar uma mulher, sofremos mil malef-cios, voltando para casa e nutrindo um de-sejo fora do comum, e sentindo angstia por muitos dias. ( ... ). A beleza da mulher a maior das armadilhas. Ou antes, no a bele-za da mulher, mas um olhar sem castida-d "250 A ~ ~ b r e. v1sao cnsta so re o sexo ro1 pro-fundamente marcada pelas influncias esti-cas, neoplatnicas e gnsticas.251 O prprio Pai da Escolstica, o amvel Anselmo de Can-terbury, deixou este depoimento comoven-te: "Existe um mal, um mal acima de todos os males, ( ... ) que est sempre comigo, que dolorosa e penosamente dilacera e aflige minha alma. Esteve comigo desde o bero, cresceu comigo na infncia, na adolescn-cia, na minha juventude e sempre permane-ceu comigo, e no quer me abandonar mes-mo agora que meus membros esto fraque-jando por causa da minha velhice. Este mal o desejo sexual, o deleite carnal, a tempes-tade de luxria que esmagou e demoliu mi-nha alma infeliz, sugando dela toda a sua fora e deixando-a fraca e vazia. "252

    Em razo disso, a sensibilidade medieval oscila entre dois plos: a atrao e a repul-so pelo corpo feminino. A figura do corpo submetida deformao. Ao passo que a

    249 Cirado por Bloch, R. Howard. Misoginia Medieval . 38. 25 Cir. por Bloch, R. Howard. Idem p.