document1

8

Click here to load reader

Upload: heloisa-sousa

Post on 18-Dec-2015

214 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

artigo

TRANSCRIPT

  • 1. Emoo e cognio: uma abordagem cientifica das emoes Marisa Russo LecointreResumo: A discusso sobre o estudo cientfico das emoes, e da conscincia emgeral, remonta ao incio da cincia moderna com o impasse de Descartes face unioentre alma e corpo. A dificuldade em explicar cientificamente a relao das emoes efaculdades mentais (ou faculdades da alma, como ento eram consideradas), com ocorpo, explicitava, na verdade, dois problemas: o primeiro estava relacionado ao con-ceito de matria, tal como este foi atribudo na fsica cartesiana; o segundo relaciona-va-se a uma dificuldade epistemolgica que tinha por horizonte a explicao causalentre duas substncias distintas (corpo/res extensa e alma/res cogitas). Ao longo dahistria da cincia, a fsica cartesiana e sua concepo dualista da matria foram du-ramente criticadas, refutadas ou modificadas, sustentando um debate sobre a naturezadas emoes e da conscincia que perdura ate os dias atuais.Palavras-chave: emoo; cognio; corpo-alma Emotion and cognition: a scientific approach of emotionsAbstract: The discussion on the scientific study of emotions, and consciousness ingeneral, goes back to the beginning of modern science with Descartes problem of theunion between soul and body. The difficulty of explaining scientifically therelationship of emotions and mental faculties (or powers of the soul, how they wereconsidered), with the body, presented two problems: the first problem was related tothe concept of matter, as it was assigned in Cartesian physics; the second problemwas related with an epistemological difficulty to explain the causal relation betweentwo distinct substances (body / res extensa and soul / res cogitans). Throughout thehistory of science, the cartesian physics and the dualist conception of matter havebeen widely criticized, refuted or modified, holding a debate on the nature ofemotions and consciousness that lasts until today.Keywords: emotion; cognition; body-soulFilosofia e Histria da Biologia, v. 2, p. 337-349, 2007.

    2. Emoo e cognio: uma abordagem cientfica das emoes Marisa Russo Lecointre*1 INTRODUO A discusso filosfica sobre a questo do corpo e das emoes j podeser encontrada desde a poca antiga nos tratados gregos. No entanto, po-demos dizer que a grande discusso sobre o estudo cientfico das emoes,remonta ao sculo XVII, incio da cincia moderna, quando Ren Descar-tes (1596-1650) encontra-se diante do impasse de explicar a relao entreas emoes, produtos da alma, e o corpo. Tal dificuldade refletia na verda-de dois problemas: o primeiro deles estava relacionado ao conceito dematria, tal como este foi concebido na fsica cartesiana; o segundo poderesumir-se na dificuldade epistemolgica que tinha por horizonte a explica-o causal entre duas substncias distintas: o corpo (res extensa) e a alma (rescogitans). Ao longo da histria da cincia, a fsica cartesiana e sua concepo dua-lista da matria foram duramente criticadas, refutadas ou modificadas,sustentando um debate sobre a natureza das emoes e das faculdadesmentais que perdura ate os nossos dias. Mas o que realmente mudou nointerior das discusses sobre as emoes ao longo destes sculos? Depen-dendo de como abordamos esta questo podemos dizer que tudo ou nadamudou. Um breve percurso pela histria pode nos fornecer algumas pistassobre o antigo e o novo no campo atual das discusses sobre as emoes.* Laboratrio REHSEIS (Recherches Epistmologiques et Historiques sur les Sciences Exactes et lesInstitutions Scientifiques), UMR 7596, CNRS, Universit Paris 7, Dalle les Olympiades, TourMontral, 1er tage, bureau 165. 75013 Paris, Frana. E-mail: [email protected] e Histria da Biologia, v. 2, p. 337-349, 2007. 337

    3. 2 EMOO E CINCIA UM DEBATE SOBRE A MATRIA A investigao histrica sobre a disputa materialista e reducionista dasfaculdades mentais e das emoes ao longo dos sculos um tema rico ecomplexo que foge ao alcance desta exposio. Uma boa parte destes estu-dos j foi na verdade realizada e brilhantemente comentada por outroshistoriadores e filsofos. Nossa inteno aqui limita-se apenas a apontarestrategicamente alguns perodos que marcaram o estudo das funesmentais e das emoes, seja pela concepo terica ou pela inovao me-todolgica do estudo emprico. De modo geral, podemos dizer que o

  • grande debate sobre o estudo dasemoes comea j no incio da cincia moderna atravs da obra do filso-fo Descartes. A principal contribuio de Descartes ao estudo das emoesencontra-se em sua obra intitulada As paixes da alma (Descartes, 1649).Nesse tratado o grande problema de Descartes consistia em explicar arelao causal entre corpo e alma que permitiria compreender a relaoentre as emoes e o corpo fsico. A discusso sobre as paixes da alma parece ter estabelecido a grandedesordem no universo matemtico-fisico do sistema cartesiano. Na fsicacartesiana, o corpo era considerado como uma entidade material, submeti-do unicamente s leis da fsica e da matemtica, enquanto a racionalidade eas paixes (ou emoes) seriam conferidas alma. Esta distino ontolgi-ca entre alma e corpo proposta por Descartes no permitia explicar a rela-o entre o corpo (res extensa) e a alma (res cogitans) a partir das mesmas leisda fsica cartesiana, j que estas eram aplicadas unicamente matria (resextensa). A distino entre corpo e alma pela fsica cartesiana parecia expul-sar de vez a alma e suas paixes do campo da cincia; no entanto, as emo-es, ou paixes da alma, davam sinais evidentes de suas manifestaes nocorpo fsico. Como explicar, ento, esta relao entre corpo e alma, duassubstncias ontologicamente distintas, nas quais no se podia aplicar ne-nhum princpio de causalidade fsica? Estava montado assim o palco do grande debate entre dualistas, monis-tas, materialistas e animistas que viria a fomentar todas as demais discus-ses que da se desenvolveram sobre o estudo das emoes e das faculda-des mentais em geral. Ao longo da histria, muitas outras teorias tentaram superar a dificul-dade cartesiana, oferecendo alternativas para explicar a relao entre alma ecorpo, emoo e corpo fsico. Nicolas Malebranche (1638-1715), por e-xemplo, ir valer-se do ocasionalismo para explicar a relao aparente entre338

    4. corpo e as aes comandadas pela alma. Segundo ele, Deus a nica causacapaz de agir sobre o corpo e a alma, e todo movimento do corpo naverdade uma ocasio na qual a vontade de Deus se manifesta (Malebran-che, 1674-1675). Baruch Spinoza (1632-1677) tentar solucionar o proble-ma de Descartes, admitindo a existncia de uma nica substancia, Deus. semelhana de Descartes, ele admite que corpo e alma so separados, po-rm, admite que ambos esto submetidos nica substancia possvel,Deus, capaz de garantir a coordenao entre corpo e alma (Spinoza, 1677).Em suas obras Systme nouveau de la nature (1695) e o Eclaircissement du nouveausistme (1696), Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716), ir oferecercomo soluo o paralelismo psicofsico, ou seja, a idia de que corpo e almaestariam separados e que toda relao aparente entre eles devia-se unica-mente a um paralelismo nos eventos ocorridos, negando assim toda rela-o causal entre corpo e alma. Com Julien Offray de la Mettrie (1709-1751), o materialismo cartesiano ganha uma nova dimenso, ainda maisradical. Em sua obra Lhomme machine, La Metrie ir manter a existncia docorpo e alma como duas entidades separadas, mas afirma que todo estadomental depende do corpo. As idias de La Metrie sero fortemente apoia-das por Pierre Jean Georges Cabanis (1757-1808), fervoroso defensor domaterialismo francs, em sua obra Rapports du physique et du moral de lhomme(1802). No entanto, a grande parte das discusses entre estes autores com oimpasse de Descartes ainda se dava no campo da metafisica. Mesmo assim,no final do sculo XVII e incio do sculo XVIII, j possvel perceber ossinais de um processo gradativo de eliminao da alma no interior do cor-po humano que viria a cristalizar-se nos sculos posteriores, onde o corpoe as funes da alma, ou da mente, sero abordados pela psicologia e bio-logia. Os estudos realizados no campo da fisiologia j no sculo XVIIIfizeram com que muitas das faculdades que outrora pertenciam ao dom-nio da alma comeassem a ser exploradas no interior do prprio corpofsico. Um dos primeiros passos dados neste sentido pode ser visto no traba-lho ainda mal conhecido do mdico suo Albrecth von Haller (1708-1777). Em uma pequena dissertao intitulada Dissertaes sobre as partessensveis e irritveis dos animais, de 1752, Haller

  • procurou demonstrar empiri-camente que a irritabilidade seria uma propriedade fsica das fibras muscu-lares que permitiria a contrao involuntria dos msculos quando estimu-lados por causas externas. Uma tal teoria diminua o imprio da alma sobreo corpo, permitindo compreender em termos fisiolgicos o movimentoFilosofia e Histria da Biologia, v. 2, p. 337-349, 2007. 339

    5. involuntrio dos msculos. O trabalho de Haller foi central para o desen-volvimento das teorias materialistas e reducionistas a partir das quais seconstruiu uma nova discusso sobre a reduo das faculdades a mentais edas emoes matria fsica. Ao contrrio do quase esquecimento da obra de Albrecht von Haller, ahistria reteve o nome de Charles Bell (1774-1842) pela sua descoberta emfisiologia na qual ele distinguia os nervos motores dos nervos relacionados sensao (Bell, 1811, p. 36). No sculo XIX, o problema da relao entre o corpo e as faculdadesmentais, de um modo geral, tornou-se o foco principal das pesquisas cien-tficas da poca. Uma grande parte dos fisiologistas e anatomistas passou adedicar-se localizao das funes cerebrais, abrindo as portas para osgrandes estudos em frenologia. Franz Josef Gall (1758-1828) foi um dos pioneiros a propor a noo deque um processo mental especfico estaria correlacionado a uma regioparticular do crebro e a tentar demonstrar esta afirmao atravs de ob-servaes empricas. Em 1810 Gall publica, juntamente com seu amigoJohann Gaspar Spurzheim (1776-1832), a obra Anatomia e fisiologia do sistemanervoso em geral, na qual eles apresentam suas principais idias a este respeito.A idia central de Gall era a de propor um mtodo de localizao das fun-es cerebrais que pudesse correlacionar as variaes de carter e as dife-rentes aptides intelectuais com as variaes anatmicas do crnio. Apesardo trabalho de Gall ser freqentemente lembrado como uma tentativaradical de localizar e reduzir todas as funes corporais e mentais, incluin-do as emoes, forma e anatomia do crebro, seus estudos inspiraramvrios de seus sucessores na tentativa de encontrar correlaes mensur-veis entre forma e funes cerebrais. Estes poucos exemplos servem apenas para ilustrar o fato de que o es-tudo das emoes comporta dois problemas principais que podem serencontrados desde o incio da cincia moderna e perduram at os diasatuais: trata-se da questo da reduo das emoes ao corpo fsico e aquesto da localizao cerebral das emoes. Nosso objetivo principal mostrar de que modo as atuais pesquisas etecnologias aplicadas em neurocincia e cincia cognitiva herdaram o pro-blema da reduo das emoes e de que modo elas apresentam soluesou novos problemas a este tema. Em outras palavras, trata-se primeira-mente de saber: 1) Os resultados empricos da cincia atual permitem reduzir as emo-es matria fsica? Ou seja, possvel localizar as emoes no espao340

    6. cerebral e limit-las ao substrato orgnico sem referncia s entidades men-tais? 2) Se este projeto possvel, poderamos perguntar qual a proposta re-ducionista que sustentaria um tal projeto? Quais os limites deste reducio-nismo?3 POSSVEL NATURALIZAR AS EMOES? Nos ltimos 30 anos, o tema das emoes vem se tornando o foco deinteresse de muitos estudos cientficos. Se consultarmos as atuais bases deproduo cientifica procura de trabalhos que mencionam no ttulo a pa-lavra emoo (emotion) veremos que entre 1991 e 2001 existiam aproximada-mente 300 trabalhos publicados. Entre 2002 e meados de 2007 este nme-ro pula para 2.000 trabalhos publicados. Se nossa procura for realizadautilizando-se emoo como palavra-chave, o nmero de trabalhos entre 1999e 2001 gira em torno de 10.000 enquanto nos ltimos 5 anos, entre meadosde 2002 e meados de 2007, este nmero passa para 35.000. Se considerar-mos os trabalhos dedicados ao estudo das diferentes emoes, como raiva,alegria, tristeza, medo e suas relaes com a capacidade cognitiva ou comas relaes sociais veremos que este nmero ainda maior. Outro fator aser considerado o nmero crescente de revistas cientficas dedicadasquase que exclusivamente aos estudos das emoes que surgiram nos lti-mos anos. No entanto, se nos concentrarmos nas principais questes colocadaspelos pesquisadores nestes trabalhos recentes sobre as emoes, podere-mos verificar que elas no sofreram

  • grandes alteraes em relao s ques-tes iniciais apresentadas ao longo da histria do estudo das emoes.Uma grande parte dos estudos atuais sobre as emoes depara-se com asseguintes questes: de que modo as diferentes emoes de um indivduopodem ser relacionadas s diferenas no sistema neuronal? Para cada tipode emoo existiria um substrato neuronal especfico ou as diferentes e-moes so o resultado de uma funo mais geral da integrao de certoscircuitos neuronais? Quais os sistemas ou regies cerebrais implicados noreconhecimento ou expresses das emoes? De que modo as emoesinteragem com a capacidade cognitiva, comportamento motor e linguagemdo sujeito? Todas estas questes podem resumir-se em uma nica questo, que ade saber de que modo as emoes interagem com o corpo e em particularFilosofia e Histria da Biologia, v. 2, p. 337-349, 2007. 341

    7. com o crebro? Questes que, como vimos, ecoam ao longo dos sculos,desde o problema apresentado por Descartes. Mas se por um lado, as questes atuais sobre as emoes parecem seras mesmas colocadas ao longo da histria, por outro, o mtodo utilizadopara responder a tais questes mudou radicalmente. A posio dualista sobre a relao corpo e mente encontrada ao longoda histria havia afastado o estudo das emoes do campo cientfico, fa-zendo com que este tema fosse abordado principalmente pela psicologia efilosofia. No entanto, o desenvolvimento atual de novas tcnicas aplicadasao estudo do crebro vem definindo um novo mapa sobre os fundamentosanatmicos e fisiolgicos do crebro, tornando legtima a reflexo da dis-cusso sobre o estudo cientfico das emoes, da conscincia e demaisfaculdades mentais a partir de novos parmetros, conceitos, metodologia eteorias. A neurocincia definiu-se nas ltimas dcadas como uma nova discipli-na de interface capaz de articular com diferentes reas do conhecimento,englobando as cincias biolgicas, exatas e humanas. Os recentes avanostcnicos obtidos no campo da imagem cerebral, da gentica e da neuro-farmacologia vm permitindo a elaborao de diferentes protocolos expe-rimentais aplicados ao estudo do crebro, causando uma total reestrutura-o dos modelos, teorias e conceitos utilizados para o estudo das funescognitivas, da conscincia, das emoes, permitindo, de certo modo, reto-mar as antigas questes sobre as emoes e as chamadas funes mentais,legitimando uma nova reflexo sobre estas questes a partir de novos pa-rmetros conceituais e experimentais. As atuais tcnicas de imagem cerebral como o CAT scam (computer assis-ted tomography), MRI (magnetic resonance imaging), o PET (positron emission tomo-graphy) e o fMRI (functional magnetic resonance imaging) vm sendo apresenta-das como verdadeiros instrumentos capazes de estudar o substrato anat-mico das emoes. Alguns resultados obtidos a partir destas tcnicas sotomados como capazes de avaliar e correlacionar o desempenho mentalcom alteraes funcionais cerebrais, criando a possibilidade de detectar eprever emoes e comportamentos. Por sua vez, os avanos na rea da neuro farmacologia vm apresen-tando uma nova gerao de medicamentos capazes de aumentar e melho-rar nossas funes cerebrais como a memria, a concentrao, a vigilnciae o desempenho intelectual, o afeto. Os efeitos destes medicamentos po-dem ser igualmente acompanhados por uma anlise funcional cerebral,permitindo um mapeamento anatmico e molecular destes fenmenos.342

    8. Recentemente os pesquisadores tm-se voltado com grande ateno pa-ra o estudo dos substratos neurais responsveis pelo reconhecimento dasemoes entre os primatas e em particular entre os homens. Uma grandeparte destes estudos vem dedicando-se ao reconhecimento das expressesfaciais e veiculao da emoo que estas expresses podem transmitir. Com o auxlio das tcnicas de imagem cerebral tem sido possvel detec-tar regies do crebro implicadas no reconhecimento das expresses dedor, alegria, tristeza . Os estudos em imagem cerebral mostraram que existeum aumento da atividade na regio da amgdala quando os sujeitos se de-param com rostos que exprimem medo (Breiter et al., 1996; Hariri et al.,2003; Morris et al., 1996; Phillips et al., 1997; Whalen et al.,

  • 2001), raiva(Whalen et al., 2001), tristeza (Blair et al., 1999) e alegria (Breiter et al., 1996;Dolan et al., 1996). A importncia destes estudos no se limita apenas aos estudos dossubstratos neuronais das emoes mas tambm se estende ao estudo dossubstratos neuronais responsveis pelo estabelecimento do contato socialentre animais e sobretudo entre os homens. O estudo com pacientes portadores de leses cerebrais ou doenas ce-rebrais congnitas tambm tem ajudado a demonstrar a importncia dedeterminadas regies cerebrais para a expresso ou reconhecimento dasemoes. Foi verificado que pacientes autistas, que possuem um dficit na intera-o social, apresentam uma disfuno de certas regies do crebro queestariam ligadas ao reconhecimento de certas emoes e expresses faciais,como por exemplo, a amgdala (Baron-Cohen et al., 1999). Nos ltimos quinze anos tem-se verificado que o estudo das emoesassume um papel importante em uma outra dimenso de nossa percepodo mundo. O interesse atual pelas emoes no se limita mais ao conheci-mento de um mundo subjetivo do ser humano, mas ele passa a assumir umpapel vital na evoluo biolgica e social do ser racional. Em outras pala-vras, se a tradio filosfica ocidental assumia que toda deciso era decor-rente de um processo racional, que envolvia nossa faculdade de pensar eescolher, excluindo toda participao das emoes, os trabalhos recentesem neurologia apontam que as emoes esto na base de todo mecanismode deciso das aes humanas, reatando assim aquilo que Descartes haviaseparado (Dalgleish, 2004; Greene et al. 2001). Nesta nova viso neurolgica, a glndula pineal, outrora morada da al-ma e de suas paixes no corpo cartesiano, passa a dar lugar amgdala,estrutura cerebral do lobo temporal do crebro humano, responsvel pelaFilosofia e Histria da Biologia, v. 2, p. 337-349, 2007. 343

    9. atribuio emocional aos estmulos sensoriais provenientes do mundoexterior e pela integrao de diferentes estruturas cerebrais face a um est-mulo externo. Os trabalhos realizados atualmente mostram que a rede neuronal quecompe a amgdala permite acionar estruturas cerebrais implicadas em umaresposta comportamental (como ficar ou fugir diante de um acontecimen-to), estabelece conexes com estruturas relacionadas resposta neurovege-tativa (como a modificao da resposta cardaca) e ainda mantm conexescom estruturas responsveis pelas respostas endcrinas, como a secreode adrenalina e testosterona. Tais modificaes corporais estariam direta-mente relacionadas aos estados de euforia e tristeza que parecem ser con-trolados pela amgdala. O recente trabalho de Antnio R. Damasio (1996) sobre a relao entreemoo e deciso foi decisivo para a reabilitao do estudo das emoespela cincia ocidental atual. Em 1995, Damasio e Paul Eslinger descrevemo caso de um paciente, identificado como Elliot, o qual, em funo de umtumor cerebral, foi operado com retirada de um poro do lobo pr-frontal. Aps a operao o paciente manteve todas as suas capacidadesperceptivas, aprendizagem, lingstica, matemtica e de memria, mas a-presentava um dficit importante na realizao de tarefas simples do dia-a-dia que exigiam uma escolha. A partir deste quadro clnico, Damasio for-mula uma teoria na qual o crtex pr-frontal seria responsvel pela elabo-rao de representaes muito breves de diferentes possibilidades de ao.Tais representaes seriam enviadas rapidamente amgdala suscitandouma resposta emocional adaptada ao contedo desta representao, quepor sua vez suscitaria as transformaes fsicas descritas h pouco. Dama-sio chama essas reaes fsicas de marcadores somticos que seriam res-ponsveis pela rapidez da associao entre uma determinada imagem euma determinada ao permitindo uma deciso rpida do crebro no pro-cesso de escolha e deciso. O caso de Elliot, descrito por Damasio apresentado como um exem-plo da relao estreita entre as emoes e os processos racionais de decisoda vida quotidiana. Mas ser que poderamos afirmar que o caso Elliot,descrito por Damasio, se apresenta como uma prova suficiente capaz defundamentar uma teoria sobre a naturalizao das emoes e das

  • diferentesdecises tomadas pelo ser humano?4 LIMITES E OPOSIES DE UM REDUCIONISMO DAS344

    10. EMOES Todas essas pesquisas e dados empricos relatados aqui tendem a refor-ar a idia de que o projeto de naturalizar as emoes seria apenas umaquesto de tempo e que o desenvolvimento tecnolgico e metodolgicoainda vira a confirmar a reduo das emoes ao corpo fsico. Mas um talprojeto no isento de crticas. O paradigma cientfico dominante no estudo das emoes assume queas emoes so entidades que existem de modo real e que estas residem nocrebro e que quando uma certa emoo processada ocorreria uma sriede alteraes em um sistema de resposta como alteraes fsicas, molecula-res, eltricas, que seriam a assinatura da resposta emocional. Se uma grande parte dos pesquisadores atuais como Damasio e PaulEkman afirmam que as diferentes emoes possuem um substrato neuro-nal especfico, por outro lado outros pesquisadores como Lisa FeldmanBarrett (2006), afirmam que um tal correlato neuronal das emoes nopode ser comprovado empiricamente. Segundo Barrett as meta anlisesrealizadas com os dados das imagens cerebrais mostram que no existeuma assinatura neural para as diferentes emoes e que elas tampoucomantm relaes estveis com a manifestao comportamental. Barrettafirma que as emoes no podem ser naturalizadas simplesmente porqueelas no so entidades fsicas, mas, sim, estados conceituais, posio quereabilita de certa forma o dualismo no interior da discusso sobre as emo-es. Alguns autores mostram que a correlao comportamental, fisiolgica ea experincia emocional atribuda a cada tipo de emoo so fracamenterelacionadas entre si, no permitindo estabelecer uma relao de causalida-de consistente entre emoo, comportamento e outras alteraes fisiolgi-cas. Os autores que se opem a uma naturalizao das emoes alegamque existe uma dificuldade em medir as sensaes. Segundo esses autores,os parmetros comportamentais utilizados para assinalar cada uma dasdiferentes emoes podem variar segundo as diferentes situaes. Max R. Bennett e Peter Michael Stephan Hacker (2003) fazem uma cr-tica ainda mais radical tentativa reducionista dos estudos em neurocinciacognitiva de modo geral. Segundo eles, a forma atual de explicao da ci-ncia cognitiva consiste em designar um atributo psicolgico ao crebro es suas partes quando, na verdade, ela deveria preocupar-se em explicarcomo se possui este atributo psicolgico e como se exerce o poder cogni-tivo nos seres humanos.Filosofia e Histria da Biologia, v. 2, p. 337-349, 2007. 345

    11. No atual panorama das discusses, fica claro que as emoes no po-dem ser estudadas ou debatidas unicamente no campo da neurocincia. Ostrabalhos em neurocincia permitem uma abordagem cada vez mais cient-fica das emoes, no entanto, essas pesquisas so ainda insuficientes parareduzir as emoes a simples substratos orgnicos. Por outro lado, aqueles que se opem ao reducionismo das emoestambm no conseguiram propor um conjunto de conceitos capaz de sus-tentar a autonomia das emoes e das aes que dela decorrem indepen-dentemente dos substratos neuronais. A dificuldade de propor uma respos-ta a este impasse sobretudo pelo fato de que estamos discutindo um temaem pleno desenvolvimento. No o tema em si que novo, pois comovimos o tema das emoes atravessa sculos. O que novo o debate deum mesmo tema por diferentes disciplinas que vm surgindo, se reestrutu-rando, se aproximando ou se transformando tal como a neurocincia, apsicologia, a filosofia e a cincia social. As discusses atuais sobre o tema deixam claro que existe a necessidadede se elaborar uma concepo para as faculdades mentais e as emoes quesejam compatveis com o estudo fisiolgico sem que isso leve a um redu-cionismo radical destes processos, pelo menos no enquanto a cinciaainda no provar completamente que capaz de faz-lo. Se o debate sobrea reduo das emoes ainda existe porque ambos os campos, reducio-nista e no reducionista, apresentam dificuldades em apresentar propostasque sejam decisivas para a sustentao destas posies. Se por um lado, a utilizao das

  • novas tecnologias e conceitos aplicadasao estudo das funes mentais e particularmente das emoes fornece uminstrumental comum para todos aqueles interessados no estudo das fun-es cerebrais, por outro lado ainda estamos longe de atingir um consensono que diz respeito s concluses destes estudos emitidas por neurofisiolo-gistas, filsofos, psiclogos e antroplogos no que diz respeito ao estudodas funes mentais, comportamento e emoes. Ao longo da histria, apolmica entre dualistas e reducionistas acerca das funes mentais semprepareceu estabelecer-se como um dilogo de surdos, onde cada campoconstitui seus paramentos, mtodos e conceitos para fundamentar e defen-der suas respectivas posies. Hoje, apesar dos avanos tcnicos, a situaono se mostra muito diferente. Disputado por neurofisiologistas, psiclogos e filsofos, o estudo atualdas emoes parece carecer no apenas de um vocabulrio comum quepermita articular estas discusses mas tambm de critrios experimentaisreguladores e estveis que permitam a comparao das diferentes tcnicas e346

    12. resultados obtidos por estas vrias disciplinas. Fundamentando-se nos resultados experimentais obtidos a partir dosnovos estudos em neurocincia, Jean Pierre Changeux, vem por fim sinali-zar a necessidade de rever a noo materialista que norteia a discussosobre os fenmenos mentais, mostrando que estes so subordinados aosubstrato biolgico e arquitetura cerebral. Segundo Changeux trata-se detomar distncia em relao ao materialismo ingnuo de outrora que foium alvo fcil demais dos filsofos idealistas. Ns entramos na era do ma-terialismo instrudo e a partir dele que devemos agora debater (Chan-geux, 2002, p. 16). Em seu trabalho, Changeux mostra que as noes deemergncia, plasticidade e epignese abrem um novo caminho para a con-cepo de modelos e teorias aplicados ao estudo das funes mentais, a-pontando para a necessidade de compor um modelo terico capaz de inte-grar os dados moleculares, genticos, comportamentais e subjetivos associ-ados a estes estudos (Changeux, 1985). Mas ser que a concepo de modelos e teorias mais abrangentes para aexplicao das funes cerebrais poder acabar com o grande debate sobreo reducionismo das funes mentais e das emoes ao substrato neuronal? Cientes de que esta anlise envolve disciplinas e tcnicas em plena ex-panso e desenvolvimento, sabemos dos limites e restries que acompa-nham esta nossa exposio sobre o estudo cientfico das emoes. Noentanto, nosso objetivo no foi o de fazer uma anlise exaustiva das cor-rentes que discutem o problema das emoes, mas apontar alguns dosatuais rumos desta discusso.REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBARON-COHEN, Simon; RING, Howard A.; WHEELWRIGHT, Sally; BULLMORE, Edward T.; BRAMMER, Mick J.; SIMMONS, Andrew; WILLIAMS, Steve C. R. Social intelligence in the normal and autistic brain: an fMRI study. European Jornal of Neurosciences 11: 1891-1898, 1999.BARRETT, Lisa Feldman. Solving the emotion paradox: categorization and the experience of emotion. Personality and Social Psychology Review 10 (1): 20-46, 2006.BELL, Charles. Idea of a new anatomy of the brain; submitted for the observations of his friends. London: Strahan and Preston, 1811.BENNETT, Max R.; HACKER, Peter Michael Stephan. Philosophical foun- dations of neuroscience. Malden, MA: Blackwell Publishing, 2003.Filosofia e Histria da Biologia, v. 2, p. 337-349, 2007. 347

    13. BLAIR, R. J.; MORRIS, J. S.; FRITH, C. D.; PERRET, D. I.; DOLAN, R. J. Dissociable neural responses to facial expressions of sadness and an- ger. Brain 122 (5): 883-893, 1999.BREITER, H. C.; ETCOFF, N. L.; WHALEN, P. J.; KENNEDY, W. A.; RAUCH, S. L.; BUCKNER, R. L., et al. Response and habituation of the human amygdala during visual processing of facial expression. Neuron 17 (5): 875-887, 1996.CABANIS, Pierre Jean Georges. Rapports du physique et du moral de lhomme. Paris: Chez Crapart, Caille et Ravier, an X [1802].CHANGEUX, Pierre. Lhomme de verit. Paris: Odile Jacob, 2002.. Neuronal man: the biology of mind. Trad. L. Garey. New York: Pan- theon, 1985.DALGLEISH, Tim. The emotional brain. Nature Reviews Neuroscience 5:

  • 583-589, 2004.DAMASIO, Antonio R. Lerreur de Descartes: la raison des emotions. Paris: Odile Jacob, 1995.. The somatic marker hypothesis and the possible functions of the prefrontal cortex. Philosophical Transactions of the Royal Society of London, B. Biological Sciences 35 (1346): 1413-1420, 1996.DESCARTES, Ren. Les passions de lame. Paris: Chez Henry LeGras, 1649.DOLAN, R. J.; FLETCHER, P.; MORRIS, J.; KAPUR, N.; DEAKIN, J. F.; FRITH, C. D. Neural activation during covert processing of positive emotional facial expressions. NeuroImage 4 (3 Pt. 1): 194-200, 1996.GALL, Franz Josef; SPURZHEIM, Johann Gaspar. Anatomie et physiologie du systme nerveux en gnral, et du cerveau en particulier, avec des observations sur la possibilit de reconnotre plusieurs dispositions intellectuelles et morales de lhomme et des animaux, par la configuration de leurs ttes. Paris: F. Schoell, 1810-1819.GREENE, Joshua D.; SOMMERVILLE, Brian R.; NYSTROM, Leigh E. DARLEY, John M.; COHEN, Jonathan D. An fMRI investigation of emotional engagement in moral judgment. Science 293: 2105-2108, 2001.HALLER, Albert . Dissertation on the sensible and irritable parts of ani- mals. Bulletin of the History of Medicine 4: 651-99, 1936.HARIRI, A. R.; MATTAY,V.S.; TESSITORE, A.; FERA, F.; WEINBERG, D. R. Neocortical modulation of the amygdala response to fearful stimuli. Biology. Psychiatry 53 (6): 494-501, 2003.LA METRIE, Julien Offray de. Machine man and other writings. [1747] Ed. por A. Thomson. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.. Man a machine. Trad. Marquiss DArgens. London: W. Owen, 1749.348

    14. MALEBRANCHE, Nicolas. De la recherche de la vrit, ou on traitte de la nature de lesprit de lhomme, & de lusage quil en doit faire pour viter lerreur dans les sciences. Paris: Chez Andr Pralard, 1674-1675. 2 vols.MORRIS, J. S.; FRITH, C. D.; PERRET, D. I.; ROWLAND, D.; YOUNG, A. W.; CALDER, A. J. A differential neural response in the human amygdala to fearful and happy facial expressions. Nature 383 (6603): 812-815, 1996.PHILLIPS, M. L.; YOUNG, A. W.; SENIOR, C.; BRAMMER, M.; ANDREW, C.; CALDER, A. J., et al. A specific neural substrate for perceiving facial expressions of disgust. Nature 389 (6650): 495-498, 1997..SPINOZA, Benedictus. Opera posthuma, quorum series post praefationem ex- hibetur. Amstelodami: J. Rieuwertsz, 1677.WHALEN, P. J.; SHIN, L. M.; McINERNEY, S. C.; FISCHER, H.; WRIGHT, C. I.; RAUCH, S. L. A functional MRI study of human amygdale responses to facial expressions of fear versus anger. Emotion 1 (1): 70-83, 2001.Filosofia e Histria da Biologia, v. 2, p. 337-349, 2007. 349