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1 Peleja Se entendermos os “movimentos culturais modernos” como associações orgânicas fundadas em manifestos afirmativos, que expõem diretrizes objetivamente definidas, exigindo engajamento político dos participantes e unidade de ação nas “missões” que se propõem a cumprir, identificaremos aí referências estéticas e simbólicas que, em associação direta com as proposições políticas adotadas, devem fundamentar as produções e as performances artísticas dos sujeitos filiados. Articulada sob esta proposta organizativa, a afirmação de nacionalidade se destacou como motivação permanente da grande maioria das movimentações culturais e intelectuais no Brasil, onde a necessidade de autodefinição pelas peculiaridades que nos distinguiriam do estrangeiro esteve guiando desde as construções ideais do “ser nacional” realizadas pelo romantismo do século XIX até as reações antiimperialistas dos movimentos culturais de esquerda, na década de 1960. Ou seja, no cerne de todos esses discursos, mesmo consideradas as inegáveis diferenças de contextos e concepções, estavam o que entendiam por “nacional” e “popular”, dois dos principais referenciais identitários da modernidade, que aí se associaram a construções narrativas que contribuíram para sua legitimação enquanto representação do ideário coletivo.

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Peleja

Se entendermos os “movimentos culturais modernos” como associações orgânicas

fundadas em manifestos afirmativos, que expõem diretrizes objetivamente definidas,

exigindo engajamento político dos participantes e unidade de ação nas “missões” que se

propõem a cumprir, identificaremos aí referências estéticas e simbólicas que, em associação

direta com as proposições políticas adotadas, devem fundamentar as produções e as

performances artísticas dos sujeitos filiados.

Articulada sob esta proposta organizativa, a afirmação de nacionalidade se destacou

como motivação permanente da grande maioria das movimentações culturais e intelectuais

no Brasil, onde a necessidade de autodefinição pelas peculiaridades que nos distinguiriam

do estrangeiro esteve guiando desde as construções ideais do “ser nacional” realizadas pelo

romantismo do século XIX até as reações antiimperialistas dos movimentos culturais de

esquerda, na década de 1960. Ou seja, no cerne de todos esses discursos, mesmo

consideradas as inegáveis diferenças de contextos e concepções, estavam o que entendiam

por “nacional” e “popular”, dois dos principais referenciais identitários da modernidade,

que aí se associaram a construções narrativas que contribuíram para sua legitimação

enquanto representação do ideário coletivo.

De acordo com as reflexões de Renato Ortiz (Ortiz, 1985), um ideal de povo se

manteve no centro destas definições de nacionalidade, seja como detentor das tradições

originárias e autênticas da nação, seja como sujeito por excelência das possibilidades de

transformação. No entanto, tal potencial precisaria ser evidenciado e direcionado pela ação

de alguma vanguarda comprometida com o estabelecimento de um vínculo estreito entre o

popular e o nacional. Afirmou-se assim, uma relação de dependência entre a preservação da

memória do país e a conservação dos valores populares, como se estivessem na mesma

instância de significação. Ortiz apresenta uma análise do pensamento social brasileiro a

partir desta associação que se estabeleceu entre a problemática da cultura popular e a

identidade nacional, investigando suas mais variadas formas de expressão.

Segundo o sociólogo, indianismo, mestiçagem, regionalismo, desenvolvimentismo,

entre outras, foram, então, noções que fundamentaram a discussão acerca da relação

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exterior/interior na formação da identidade cultural brasileira e as reivindicações de

independência em relação à dominação colonialista, contra a qual se deveria reagir pela via

da auto-representação.

Na primeira metade do século XX, uma marcada visão de progresso colocou, ainda,

os nacionalismos entre um desejo de universalidade e a afirmação das particularidades,

dilema vivido por várias vertentes do pensamento moderno, particularmente nos países

periféricos. As diferenças entre as nações eram compreendidas por contraposição, num

movimento que opôs avanço a atraso e hierarquizou as diversidades culturais.

Assim exposta, a construção da identidade nacional se mostra como um processo de

seleção e ordenação de signos, efetivado sob a mediação de agentes encarregados da

interpretação dos elementos locais reunidos e de sua articulação com uma dimensão global.

Esta função intermediária foi assumida pelos principais intelectuais brasileiros que, em

relação direta ou indireta com o Estado, “confeccionam uma ligação entre o particular e o

universal”, com o intuito de promover a modernização autônoma da nação (Ortiz, Op. Cit.,

p. 139).

Tais apontamentos acerca da busca de representação cultural do país por parte dos

movimentos de cunho nacional se apresentam aqui como chave para abrir uma discussão

que pretende dar conta do complexo significado da adoção pelo Manguebit da proposta de

"cooperativa cultural" como forma de organização e atuação, o que implica diferenças

substanciais em relação à postura que referenciou as experiências coletivas nesta área até os

anos sessenta.

A afirmação de nacionalidade não está no centro das preocupações daquela

movimentação, que acontece sob a consciência de que as formações de culturas nacionais

na modernidade ocidental se deram pela via da suplantação de diferenças internas e da

criação de narrativas históricas, literárias e publicitárias que traçaram imagens, construíram

cenários e determinaram sentido – enquanto ordem e direção – para as instituições,

mentalidades e comportamentos circunscritos aos territórios dos Estados. Discursos que

operaram pela via da “invenção de tradições” e que, nos termos colocados por Hobsbawn

(Hobsbawn, 1985), definem-se por um complexo processo de construção de símbolos,

criação de mitos e consolidação de rituais destinados a forjar unidades, manter coesões e

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fundar ideologias baseadas na idéia de que as nações seriam pontos de identificação

naturais e primordiais.

Estas formulações aparecem aos articuladores do Manguebit como fala da elite

dominante, fruto da associação que fazem entre elementos culturais selecionados de acordo

com seus interesses conservadores. Lógica dentro da qual também operam os

regionalismos, ao prezarem pela conformação de tradições que justifiquem a permanência

das elites locais no poder.

Ao desnaturalizarem tais referências identitárias, os mangueboys recolocam a

discussão acerca da relação exterior/interior na formação da cultura nacional, condenando a

tendência da maioria dos movimentos modernos de polarizarem essas duas instâncias, que

deveriam ser tomadas em termos relacionais. Realizam a interconexão entre diversos signos

e matrizes culturais, deglutindo fragmentos das culturas populares tradicionais e da cultura

pop de maneira autônoma, criativa e livre de hierarquizações. A hibridização, o sincretismo

e a mestiçagem, que aparecem como formas de mediação cultural nas sociedades

colonizadas, se manifestam de maneira produtiva no Manguebit, por suas propostas não

estarem comprometidas com a afirmação de essências regionais ou especificidades

nacionais.6

Atentam, então, para a necessidade de diluir as rupturas estabelecidas, para que, a

partir de uma compreensão mais livre das diversidades, a proposta de “integrar o planeta

mangue no circuito pop mundial” possa enfim se manifestar em sua plenitude.

Expressando-se pelo “cruzamento das etnias periféricas”, desautorizam a idéia de essência

cultural, desnaturalizam as identidades e reforçam a própria autonomia criativa (Zero

Quatro, 1994).

Por fim, a existência de uma raiz nacional de onde poderia partir um discurso de

descolonização é negada pelo Manguebit. A relativização das distinções clássicas entre

categorias culturais, da forma como foi colocada por esse núcleo de jovens recifenses, nos

6 Daniel Berson Sharp (Sharp, 2001), na dissertação A Satellite Dish in the Shantytown Swamps: Musical Hybridity in the ‘New Scene’ of Recife, Pernambuco, Brazil, investiga o modo como a nova cena musical recifense se insere nos debates acerca das identidades nacional e regional, por meio da consideração das heranças simbólicas tradicionais exibidas em suas misturas sonoras. O autor empreende um diálogo crítico com a tese do etnomusicólogo Philip Andrew Galinsky (Galinsky, 1999), “Maracatu Atômico”: Tradition, and posmodernity in the movement and “new music scene” of Recife, Pernambuco, Brazil , que identificou na nova cena musical do Recife uma tendência pós-moderna – presente em todo o mundo ocidental contemporâneo – de forjar novas identidades culturais.

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induz a repensar as teorias sociológicas de subdesenvolvimento e dependência, e a revisar

os binarismos que tradicionalmente mediaram a compreensão das relações entre

colonizadores e colonizados.

Na voz de Fred Zero Quatro (Zero Quatro, 1994), líder da banda “mundo livre s/a”,

os “mangueboys” afirmaram: “Não temos complexos terceiro-mundistas, estamos atentos

para o colapso da modernidade”. Ocuparam as fronteiras, lugares de acontecimento do

híbrido, pontos de onde melhor se avista a ambivalência fundada pelas disputas de poder

simbólico travadas durante as experiências coloniais e as possibilidades aí abertas para o

questionamento do discurso do dominador.

O Manguebit pode, assim, ser reconhecido como iniciativa de desvio e

transfiguração de tal discurso. Combater a metrópole utilizando-se de sua própria

linguagem, agir nas fissuras do modelo imposto, mostrar sua fragilidade enquanto caminho

único são, como nos apontou Silviano Santiago (Santiago, 1978), as formas de transgressão

muitas vezes adotadas pelos artistas críticos das nações subordinadas na iniciativa de

desconstrução da ordem colonialista. Ironicamente, a colonização fundara a mestiçagem

nas sociedades dominadas, o que subverte a noção de unidade e forja a possibilidade de

distorção do processo de dominação. Este teria sido o principal desvirtuamento provocado

pelas culturas subalternas na intenção civilizadora dos colonizadores estrangeiros.

Partindo de tal constatação, Nestor Garcia Canclini (Canclini, 1998) definiu o

caráter híbrido que assumiu o processo de modernização das nações latino-americanas,

afirmando que as “mesclas interculturais” constituíram uma heterogeneidade temporal, na

qual se baseia a atual consciência da fragilidade e da inadequação dos modelos de

desenvolvimento impostos. Desta forma, uma aproximação entre as manifestações político-

culturais assim geradas e as formulações da crítica pós-colonial contemporânea pode nos

ser esclarecedora. As reflexões de Homi Bhabha acerca desta nova perspectiva de

abordagem social concluem que:

A crítica pós-colonial á testemunha das forças desiguais e irregulares de representação cultural envolvidas na competição pela autoridade política e social a partir da reordenação dos signos tradicionais dentro da ordem do mundo moderno. As perspectivas pós-coloniais emergem do testemunho colonial dos países do Terceiro Mundo e dos discursos das minorias dentro das divisões geopolíticas de Leste e Oeste, Norte e Sul. Elas intervêm naqueles discursos ideológicos da modernidade que tentam dar uma “normalidade” hegemônica ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas das nações, raças,

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comunidades, povos. Elas formulam suas revisões críticas em torno de questões de diferença cultural, autoridade social e discriminação política a fim de revelar os momentos antagônicos e ambivalentes no interior das “racionalizações” da modernidade. (Bhabha, 1998, p. 239)

Ou seja, se dão como proposta de revisão de categorias, atestando a perda de

validade das noções estabelecidas pela modernidade histórica e a necessidade de

reconsideração da temporalidade projetada pela historicidade moderna. Fundadas sob signo

da transição, buscam, para além da revisão de conceitos ultrapassados, a identificação do

ethos no qual a nova realidade está inserida. Colocam-se no espaço das margens e seguem

as trajetórias dos deslocamentos, tomando o indeterminismo como caráter de uma

disposição social que tem recriado sensibilidades políticas e redirecionado estratégias

críticas.

Dito isto, podemos reafirmar que a cultura contemporânea cada vez mais se

apresenta enquanto teoria, contribuindo para localização do Manguebit por este, em sua

dinâmica de organização e criação, retomar a dimensão cotidiana da transmissão cultural,

induzindo-nos a admiti-la como “produção irregular e incompleta de sentido e valor”, nem

sempre recuperável por narrativas totalizantes e constantemente reconstruída “no ato da

sobrevivência social” (Idem, p. 240).

Em contradição com as propostas de preservação de tradições – quando estas são

entendidas como mera afirmação da autenticidade nacional –, as estratégias de resistência

cultural apresentadas pelo Manguebit teriam sido forjadas sob o signo da

transnacionalidade, e devem ser compreendidas como exercícios de “tradução” – conceito

adotado por Bhabha para definir as trocas culturais no contexto complexo das sociedades

globalizadas. O Manguebit expressa desta forma os termos de uma ordem social diversa da

que fundou os movimentos até então atuantes no Brasil.

Um outro importante aspecto a ser levado em consideração na dissociação entre a

agitação cultural ocorrida na cidade do Recife na década de 1990 e as implicações que o

termo "movimento" impõe, é a ausência de uma definição estética aglomeradora da arte aí

produzida. Como afirma Fred Zero Quatro, a inexistência de precedentes na história

cultural do país de uma movimentação coletiva fundada na diversidade formal de suas

expressões causou confusões na caracterização do Manguebit, tanto pela imprensa, quanto

pelo público:

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No começo chegou a ser uma coisa meio desconcertante para a imprensa especializada, porque sempre que se falou em cenas ou movimentos pop no mundo, sempre havia uma batida básica ali, que se tornava uma marca registrada. Mas no caso do Recife a gente colocou, desde o princípio, que não devia ser uma batida só. Diferente, por exemplo, da Bahia, diferente da Jamaica e de outras cenas que apareceram. Nós até fazemos essa metáfora com o mangue, porque ele é um dos ecossistemas mais ricos em biodiversidade do mundo, é o berço da maioria das espécies marinhas, e a cidade do Recife também tem essa característica cultural de ser o berço de um monte de músicas e manifestações folclóricas, como o maracatu, a ciranda, o coco, a embolada e o frevo, então, nos primeiros manifestos7, já tinha essa história de preservar a diversidade, de tentar resistir a essa lógica da cópia que impera na sociedade de consumo. Para nós, é a diversidade em primeiro lugar. (Zero Quatro, http://www.sambanoise. hpg.ig.com.br/falecida.html)

A música produzida pelas bandas associadas ao Manguebit não se define, portanto,

nem por uma base rítmica específica, nem tampouco pela mistura obrigatória de

sonoridades diversas. O já comentado caráter multiforme da cultura urbana contemporânea,

assim como o destaque da colagem como meio de construção simbólica que tem refundado

identidades interculturais, se associam diretamente às misturas de estilos e gêneros, às

remixagens, às citações e apropriações operadas pela música pop. No entanto, uma

movimentação que conseguiu aglomerar artistas e grupos tão diversos, para além da

abertura de possibilidades estéticas apresentadas pelas combinações sonoras, teve que

oferecer a oportunidade de projeção de trabalhos identificados com as mais variadas

correntes. Como confirma Renato L., jornalista e DJ, um dos articuladores da cooperativa:

No começo, chamávamos a história apenas de mangue, não tinha essa de bit ou beat. Depois, Fred 04 fez a música Mangue Bit8 e parte da imprensa começou a se referir ao lance com o acréscimo do bit e daí também era fácil confundir com o beat, de batida. E a coisa fugiu ao nosso controle. Jamais a gente queria chamar aquilo de movimento, achávamos o termo muito pretensioso. Ainda hoje há uma grande preocupação minha e dos outros (Fred, a galera da Nação Zumbi etc) de preservar, dentro desse rótulo, o sentido da diversidade. Mostrar que se você identificar o mangue como a vibe [vibração, sentimento] do Recife, dentro desse sentido cabe o hardcore da Devotos: ele é tão legitimamente pernambucano quanto o coco, acredito. (Lins, Renato. http://.terra.com.br/manguenius/artigos/ctudo-entrevista-renatol.htm)

7 “Caranguejos com cérebro” foi o primeiro release de apresentação das idéias da “cooperativa mangue”, tomado como manifesto pela imprensa cultural e divulgado pela primeira vez no Jornal do Commercio de Recife, em 1991. Posteriormente o “manifesto” foi publicado no encarte do CD Da lama ao caos, primeiro da banda Chico Science e Nação Zumbi, lançado pela Sony Music em 1994. “Quanto vale uma vida”, considerado o segundo manifesto, foi escrito logo após a morte de Chico Science, e novamente divulgado pelo Jornal do Commercio de 21/02/1997. Ambos foram escritos por Fred 04 e se encontram anexados a este trabalho.8 Gravada no CD da "mundo livre s/a": Samba Esquema Noise, Abril Music, 1994.

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E o símbolo original que articula toda imagem atrelada ao Manguebit é denominado

Chamagnathus Granulatus Sapiens, o “homem-caranguejo”. Criado pela dupla multimídia

Dolores & Morales9 como personagem dos quadrinhos publicados no encarte do CD Da

Lama ao Caos, o crustáceo pensante protagoniza a estória de uma metamorfose

kafikaniana, na qual recifenses se transformam em caranguejos com cérebro depois de

consumirem cerveja fabricada com a água contaminada dos manguezais.

Temos fome de informação. Na imagem de Josué somos "caranguejos com cérebro", como os pescadores que ele descreve no livro "Homens e Caranguejos". Eles pescam e comem caranguejos para depois excretá-los num ciclo caótico. Fazemos uma música caótica. (Science In: Giron, 1994)

Como nos aponta Chico Science, uma mutação parecida já havia sido narrada pelo

médico pernambucano Josué de Castro 10 em seu livro Homens e Caranguejos, publicado

em 1967. Por ser Recife uma cidade cruzada por rios e erguida sobre manguezais, a relação

de proximidade entre a população e este ecossistema virou, nas mãos daquele cientista,

temática de uma mistura de romance com tratado geopolítico sobre a fome nos centros

urbanos periféricos. A mutação identificada por Castro nas periferias pobres do Recife se

dá em termos mais realistas:

Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se assemelham em tudo aos caranguejos. Arrastando- se, acaçapando- se como caranguejos para poderem sobreviver. Parados como os caranguejos na beira da água, ou caminhando para trás como caminham os caranguejos. (Castro, 2001, p. 10)

No entanto, as imagens construídas pelos idealizadores do Manguebit não se

associam às de Josué de Castro apenas pela utilização simbólica do caranguejo – que neste

caso serve à representação dos mangueboys como recicladores dos resíduos absorvidos no

fluxo cultural da cidade –, mas também pelo estabelecimento do Recife como cenário da

encenação de sua narrativa, e pela posição política combativa assumida a partir da

constatação de desigualdades extremas na estrutura socioeconômica da região.

9 Helder Aragão (atualmente conhecido como “DJ Dolores” e componente da Orquestra Santa Massa, grupo musical que mistura sons eletrônicos com temas populares) e Hilton Lacerda, produtores que aliaram seus trabalhos de DJ, roteirista e web desiner na construção da “cena mangue”.10 Cientista, professor universitário, publicou os estudos Geografia da fome (1946) e Geopolítica da fome (1951). Idealizou uma série de políticas públicas voltadas a melhoria das condições de vida e saúde da população em diversos países e foi presidente do Conselho da ONU para Agricultura e Alimentação.

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O termo "Mangue", todavia, foi em princípio pensado por Chico Science para

batizar a batida criada por ele a partir da fusão dos toques do maracatu com o compasso do

rap. Posteriormente, o conceito foi ampliado pelo coletivo dos mangueboys (sendo o bit

acrescentado por Fred Zero Quatro) na definição de uma proposta mais abrangente. O que

deveria implicar a reformulação cultural do Recife por meio do incentivo à criação e da

construção de meios que pusessem em evidência a produção artística das diversas áreas nas

quais se aventuravam. A origem é narrada por Renato L.:

Estávamos reunidos no bar Cantinho das Graças, quando Chico chegou dizendo: “Fiz uma jam session com o Lamento Negro11, aquele grupo de samba-reggae, peguei um ritmo de hip hop e joguei no tambor de maracatu... Vou chamar essa mistura de mangue”. Aí todo mundo sugeriu: “Não, cara! Não vamos chamar de mangue só uma batida ou limitar ao som de uma banda. Empresta esse rótulo pra todo mundo, porque todos estão a fim de fazer alguma coisa...” Então foram surgindo idéias de todos os lados. Foi realmente uma viagem coletiva. (Lins In: Foca, http://www.officina.digi.com.br)

No que diz respeito às transformações implementadas no campo da música pop

pelas bandas de maior destaque na cena mangue, o "maracatu atômico" da "Nação Zumbi",

e o "samba esquema noise" da "mundo livre s/a" podem, de certa maneira, ter se revertido

em parâmetro formal para as composições das gerações posteriores. Porém, a iniciativa dos

mangueboys nos coloca diante da possibilidade de produção cultural autônoma, que se vale

de fontes e formas de expressão das mais variadas procedências sem se submeter às centrais

de distribuição de sentido, ou seja, dialogando de maneira crítica com diversos fluxos

culturais. O primeiro “manifesto”, que sintetizou as propostas dos idealizadores do

Manguebit, publicado pela imprensa pernambucana em 1991, foi inicialmente pensado

como um release – texto de apresentação e divulgação das idéias dos artistas envolvidos

com o projeto –, e assumiu certo caráter publicitário, confirmado por sua posterior

divulgação no encarte de um CD comercializado.

Escrito por Fred Zero Quatro, implicou reivindicação de revivamento da cultura

recifense então em fase de marasmo. Neste texto, a estaticidade do tradicionalismo

conservador e a pasteurização estética promovida pela indústria cultural são contrapostas à

fertilidade dinâmica dos mangues do Recife, que estariam “entre os ecossistemas mais

11 Bloco de samba-reggae ligado ao grupo cultural “Daruê Malungo” (“companheiro de luta”), sediado na comunidade de Chão de Estrelas, bairro da Zona Norte do Recife. Chico travou contato com os músicos do Lamento Negro por intermédio de Gilmar Bola Oito, percussionista do bloco que depois se tornou integrante da “Nação Zumbi”.

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produtivos do mundo”. Estes se apresentariam – enquanto promotores da percepção da

diversidade, e não enquanto sistema orgânico – como metáfora das transformações

pretendidas pelo grupo.12

Na primeira parte do manifesto, a ênfase está posta sobre a pluralidade e riqueza

cultural da cidade, que é associada à produtividade dos manguezais que a cortam. Os

mangues, “símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza”, seriam fontes inesgotáveis de

vida criativa, assim como a movimentação inaugurada pelos que "assinaram" o manifesto e

se posicionaram contra as castrações excludentes e discriminatórias que vinham sofrendo.

Ainda hoje, as questões do manifesto estão postas, e Fred Zero Quatro, seu principal

formulador, reconhece a atualidade das propostas ali colocadas:

O que eu acho legal naquele manifesto é que ele consegue ser bem abrangente e ter uma consistência atemporal, porque a maior parte dos princípios que tinham ali que eram a diversidade e da alegoria dos manguezais como berçário de milhões de espécies como Recife e suas bandas. Isso permanece forte lá em Recife e é o que a gente acredita, o que a gente mantém como princípio até para combater essa lei do pensamento único na indústria cultural brasileira. As rádios e agora até a MTV obedecem à lógica da cópia e da clonagem do pensamento único em detrimento da diversidade. E o mangue existe para isso para tentar resistir e enfrentar essa lógica perversa. (Zero Quatro In: Adelson Luna, www.sambanoise.hpg.ig.com.br/fred04entrev.htm)

Num segundo momento, a declaração de uma consciência política ativa no que diz

respeito à situação de degradação ecológica e social da cidade toma conta do texto.

Questiona-se a idéia moderna de progresso e as vantagens da auto-afirmação do Recife

como metrópole regional. Nesse exercício crítico, o manifesto recupera na história da

cidade, o trajeto de sua experiência de exploração e depredação, lembrando que o Recife

exibia na época “o maior índice de desemprego do país”, tendo a maioria da população

morando em favelas e alagados e se apresentando, segundo o Institut Population Crisis

Commitee de Washington, como “a quarta pior cidade do mundo para se viver”. 13

12 Cláudio Moraes de Souza (Souza, 2002), na dissertação “Da Lama ao Caos”: a construção da metáfora mangue como elemento de identidade/identificação da cena recifense, identifica os mecanismos de simbolização e as formas de apreensão da cultura apresentadas pelo Manguebit, incluindo-o no movimento de reordenação social que estaria reconsiderando o conceito de identidade nos termos da globalização. Segundo Souza, uma “metáfora mangue” teria articulado a leitura de uma geração acerca da realidade cultural híbrida que funda sua produção artística, e uma atitude flâneur os teria permitido construir imagens de si e da cidade do Recife.13 Pesquisa divulgada na edição do Jornal do Commercio de 26/11/1990.

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O texto termina colocando o Manguebit como resposta a tal situação de degradação

e como proposta de intervenção transformadora, que por meio de um “choque violento”

geraria um efeito motivador na vida cultural estagnada. O estímulo viria da aplicação de

uma alta voltagem de energia e faria reviver a produção local, conectando as “boas

vibrações dos mangues” com o global representado pela “rede mundial de circulação de

conceitos pop”, ou seja, com as referências urbanas e as expressões artísticas internacionais

às quais os mangueboys tinham acesso por habitarem uma cidade-porto. “Imagem símbolo:

uma antena parabólica enfiada na lama”. Fred Zero Quatro comenta o impacto causado fora

do Recife pelo inesperado cosmopolitismo dos "meninos da província":

(...) estavam com uma visão muito preconceituosa pelo fato de a gente ter vindo do Nordeste. Era engraçado porque a gente veio falando de realidade virtual, de teoria do caos, de world music. Uma coisa bem urbana, porque a formação da gente era urbana. Ninguém esperava que viesse de Recife alguma coisa com a nossa consistência. (Zero Quatro, www.velotrol.com.br/volotrol110/fred04.htm)

Essa formação urbana, no entanto, foi condenada pela mesma corrente

tradicionalista que já havia entrado em choque com os tropicalistas pernambucanos mais de

vinte anos antes.14 A tão condenada "descaracterização do maracatu" rendeu muita

polêmica, não somente entre Ariano Suassuna e Chico Science, mas entre os defensores da

“autenticidade da cultura regional” e aqueles que pretendiam se dissociar da imagem

tradicionalista que a idéia de Nordeste evocava. O Manguebit procura desnaturalizar a

noção de ruralidade e rusticidade que costuma identificar a região, comumente tomada

como espaço de sobrevivência do passado. Um tradicionalismo louvado pelas elites locais

em seu esforço de conservação de estruturas sociais.

Ao narrar o processo de “invenção do Nordeste” como universo simbólico e

categoria de análise, o historiador Durval Albuquerque Jr. (Albuquerque Jr., 1999)

contextualiza a criação e consolidação do recorte regional, que não deve ser tomado como

objeto fora da dinâmica de transformações sociais, mas como identidade espacial criada

14 Segundo o jornalista José Teles, foi contra o caráter conservador e elitista da "cultura regional" que se articulou, no final dos anos sessenta, um movimento tropicalista entre intelectuais e artistas do Recife, João Pessoa e Natal. Referenciado nas idéias apresentadas pelos manifestos “O Que É o Nosso Tropicalismo ou Vamos Desmascarar o Nosso Subdesenvolvimento”, “Inventário do Feudalismo Cultural Nordestino” e “Porque Somos e Não Somos Tropicalistas”, todos publicados pela imprensa local no ano de 1968, o grupo condenou “o marasmo cultural da província” e questionou seus princípios conservadores (Teles, 2000, p. 111).

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num momento histórico específico: o período pós-proclamação da República. Segundo o

historiador, foi nesta ocasião que as oligarquias das províncias do Norte começam a

articular um discurso unificador diante de sua perda de poder político. A partir do

agrupamento de experiências, memórias e signos de origens diversas fundou-se uma

narrativa que terminou por estabelecer os traços definidores da Região Nordeste e

determinar sua “essência”. Compôs-se uma unidade cultural e geográfica e criou-se uma

"visibilidade" e uma "dizibilidade" a seu respeito.

Essa articulação entre poder e linguagem e sua distribuição espacial orientam o

entendimento da região como domínio: território da vigência de determinados valores e de

exercício do mando de uma elite sociopolítica. O discurso regionalista, que recorta e produz

espacialidade pela construção de narrativas, gerou a afirmação de uma “nordestinidade” a -

histórica, permanente, imutável, numa associação estreita entre o caráter da região e a

cultura de seu povo.

No decorrer de tais processos, a identificação das raízes originais do Nordeste,

entendido como espaço de sobrevivência da autêntica cultura brasileira, geralmente se

voltou para uma dimensão folk, que evoca a “pureza cultural” reconhecida nos grupos

populares e afirma a atemporalidade dos “costumes” que os definem. Uma narrativa que

distancia a trajetória popular das dinâmicas de transformação da história, e se associa ao

mecanismo de criação e articulação de tradições rituais e simbólicas colocadas a serviço da

manutenção de estruturas sociais. De acordo com Hobsbawn, estas “tradições inventadas”

são construções “cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de idéias, sistema

de valores e padrões de comportamento” (Hobsbawn, Op. Cit.p. 17).

O lugar do popular em tais discursos é também posto em questão pelo Manguebit, já

que, além de se atrelarem aos interesses políticos mencionados, determinam muitas vezes o

imobilismo das manifestações culturais e subordinam sua legitimação a missões intelectuais

de preservação. Diante da impossibilidade de estabelecimento de fronteiras rígidas entre

popular, culto e massivo, o Mangue se expressa pelas linguagens impuras, formadas nos

entrecruzamentos promovidos pelos processos de migração, mestiçagem e urbanização.

Em última instância, os defensores da tradição acreditam que as manifestações

populares não têm capacidade de resistir ao confronto com a indústria cultural e com as

intervenções externas. Argumento desmontado pela experiência do Manguebit que, ao

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invés de desarticular, fortaleceu as expressões populares tradicionais, chamando atenção de

seu público para a riqueza e dinamicidade estética de tais manifestações, e se revertendo

num exemplo eficiente de subversão dos meios modernos de construção de hegemonia

cultural.

Além disso, as modificações das práticas populares, quando vinculadas às

transformações socioculturais, não implicam necessariamente extinção, mas rearticulação e

atualização revigoradoras de suas formas de manifestação, pois, como afirma Canclini,

“nem a modernização exige abolir as tradições, nem o destino fatal dos grupos tradicionais

é ficar de fora da modernidade” (Canclini, 1998, p. 339). A esse respeito, argumenta Zero

Quatro:

Eu acho que a maneira mais fácil de você matar uma cultura é estagná-la. Tem muitas manifestações e gêneros de Recife que foram dizimados. Coisas que passaram de pai pra filho, sem ter nenhuma relação com a evolução cultural da cidade e foram ficando cada vez mais restritas. E quando o último cara desistiu, o negócio morreu. Hoje em dia, há toda uma geração de adolescentes em Recife, que está louca para conhecer maracatu. Então maracatu é uma coisa que vai permanecer por muito tempo ainda e eu acho que Chico deu uma grande contribuição para isso. O que ainda falta acontecer no Brasil é abrir espaço para que os autênticos representantes da cultura tradicional tenham acesso à tecnologia. Tem o caso de Chico, mas Chico não se propõe a fazer uma coisa tradicional, ele se propõe a envenenar e redimensionar a coisa. Mas têm algumas figuras aqui no Brasil que se apropriam de uma cultura tradicional e fazem uma coisa popularesca, entendeu? (Zero Quatro In: Lins e Seibel, 1996)

Uma posição mais adequada à realidade urbano-periférica do Recife é ocupada pelo

Manguebit. Pregam um diálogo simétrico entre artistas de variadas procedências,

assumindo uma atitude “receptiva”, que busca absorver influências, “enriquecendo e

aperfeiçoando sua [própria] linguagem e seus procedimentos criativos”; e uma iniciativa

“entusiasta/incentivadora”, que reivindica o respeito à autonomia dos artistas populares por

meio da promoção do acesso ao instrumental tecnológico de produção e gravação e aos

meios modernos de divulgação e comercialização dos seus trabalhos. Condenam, por fim, a

postura “atravessadora” identificada em muitos músicos pernambucanos:

Você pode se aproximar daqueles músicos [populares] e não resistir à tentação de se apropriar da sua herança e sabedoria, tentando reproduzir com todos os detalhes a sua técnica e copiando descaradamente o seu som, em benefício próprio (mas em nome da tradição, é claro). Enfim, difundindo sem o menor escrúpulo mundo afora uma versão mais “educada” do que a original - pouco importando que os “mestres” permaneçam ignorados, isolados em sua ingenuidade, desinformação e miséria. É o que eu chamo – sempre chamei

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– de pilhagem. Quem quiser que vista a carapuça... (Zero Quatro, http://www.manguetronic.com.br)

Tema recorrente no debate acerca da cultura pernambucana, a questão dos usos

estéticos e políticos da arte popular já havia sido tratada por uma pesquisa publicada em

Recife na década de 1970 (Maurício, Cirano e Almeida, 1978). Em uma leitura

marcadamente marxista, seus autores abordam a relação entre artistas populares e

produtores culturais na Região Metropolitana, desde a criação do Movimento de Cultura

Popular, fundado durante a administração de Miguel Arraes na década de 1960, até o

Movimento Armorial, articulado por Ariano Suassuna, quando diretor do Departamento de

Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco, no início da década de 70.

Levantam questionamentos acerca do discurso de preservação das raízes populares,

considerando os interesses de classe que poderiam estar atuando em tais formas de

mediação.15

Com uma visão não muito diversa, Fred Zero Quatro reconhece, nas objeções de

Suassuna ao trabalho de Chico Science, a adoção de uma “postura aristocrática” recorrente

entre os encarregados da política cultural no Estado:

Ele é padrinho da Orquestra Armorial, e com essa postura aristocrática, eles se julgam donos da cultura popular, mas sempre acham que a cultura popular precisa de certos filtros acadêmicos para poder ser vendida para a classe média. (Zero Quatro, www.velotrol.com.br/velotrol110/fred04/fred02htm)

Em entrevista aos autores de Arte popular e dominação, Suassuna se defende das

acusações de praticar um preservacionismo conservador em relação às expressões da arte

popular, embora admita a importância da função de arquivamento e musealização da

cultura atribuída aos folcloristas:

É difícil julgar com isenção a si mesmo, mas quanto a mim, não creio que “pesquise o pastoril, cordel, etc” para “colocá-los em museus ou publicá-los para o consumo das elites pensantes”. Esse é o trabalho dos folcloristas – e, aliás, eles prestam um bom serviço (...) (Suassuna In: Maurício, Cirano e Almeida, Op. Cit., p. 47)

15 O próprio Suassuna é, neste estudo, alvo de uma das denúncias de apropriação cultural. Francisco Sales Areda, cordelista paraibano, é autor do folheto “O homem da vaca e o poder da fortuna” e, em entrevista aos pesquisadores, diz não ter sido consultado quanto à utilização de seus versos em uma peça homônima escrita por Suassuna, embora a contenda tenha sido resolvida, segundo o depoimento do próprio poeta, assim que o escritor teve informações sobre Francisco e o procurou para negociar os direitos autorais. (Maurício, Cirano e Almeida, Op. Cit., pp. 90-91).

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No entanto, o contexto cultural contemporâneo que redefine os universos populares,

inviabiliza e desautoriza os esforços de preservação baseados numa concepção de folclore

como saber originário do povo, fundado no costume e na tradição e direcionado para a

construção identitária e integradora da nação.

Como foi dito, a constatação da crescente urbanização das sociedades periféricas e a

afluência cultural das massas decorrente desse processo, assim como o questionamento da

homogeneidade das identidades fundadas sob o signo da nação, estão redefinindo o

entendimento das culturas populares no Brasil. Uma reordenação que nos permite refletir a

respeito da dinâmica das relações entre temporalidades e matrizes culturais diversas – em

interação por contradição ou apropriação – que envolvem a modernização de nações

subalternas. A idéia de mestiçagem cultural deve ser então atualizada, distanciada de sua

conotação totalizadora para, enfim, conseguir dar conta das multiplicidades que nos tem

constituído. Imbuído de tal intuito, Jesús Martin-Barbero redefine o caráter das formações

culturais latino-americanas a partir:

(...) da mestiçagem, que não é só aquele fato racial do qual viemos, mas a trama hoje de modernidade e descontinuidades culturais, deformações sociais e estruturas do sentimento, de memórias e imaginários que misturam o indígena com o rural, o rural com o urbano, o folclore com o popular e o popular com o massivo. (Martin-Barbero, 2001, p. 16)

Com essa consciência, o Manguebit se alimenta não de expressões extintas ou

isoladas, mas atuantes, misturadas, e que emergem dos anacronismos e da complexidade da

cultura urbana. Um universo dinâmico, onde toda manifestação está inserida no processo de

constituição do massivo como uma das formas de atuação e meios de expressão do popular.

Na cidade do Recife, o Mangue absorve e reprocessa a arte das revistas em quadrinhos, os

recursos estéticos e políticos do hip-hop, as estratégias publicitárias do punk, as

possibilidades da tecnologia musical, o colorido das roupas compradas nas feiras, a

inventividade dos pregões de camelô, a força do maracatu, a malícia e a ironia das

emboladas. Tudo em prol da produção de uma arte pop criativa, subproduto da indústria

cultural. 16 Com isso, prega a inauguração de uma nova sensibilidade política, voltada para

a apreensão da multiplicidade, da simultaneidade e da simetria entre tais elementos. Uma

16 Em Chico Science: A rapsódia afrociberdélica, Moisés Neto (Neto, 2000) explora o pós-modernismo na obra do músico e aponta para as intertextualidades atuantes na “cena mangue”.

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percepção que ultrapasse as operações dicotômicas, complexificando a compreensão das

contradições, apropriações e recriações culturais.

O “espírito antropofágico” fundado pelo modernismo brasileiro em sua luta contra o

colonialismo cultural é constantemente evocado na caracterização desse tipo de postura. No

entanto, se quisermos apreender os ecos da antropofagia oswaldiana sobre as propostas do

Manguebit, devemos ter como referência um entendimento claro da distinção entre os

contextos e das diferenças entre as intenções que os moveram.

Segundo Silviano Santiago (Santiago, 1991), em Oswald de Andrade a proposta de

“redescoberta do Brasil” estava associada à incorporação do espírito vanguardista moderno,

portanto, o contato cultural com a Europa foi visto como aprimoramento intelectual e

movimento necessário para se pensar a realidade local em interação com os princípios de

modernidade que se pretendeu adotar.

Descompromissado com ufanismos e tradicionalismos, Oswald condenou a

reprodução do que chamou de "macumba para turista", que seria a pura externalização das

características primitivas da nacionalidade brasileira por meio do apelo ao exotismo nativo.

Sendo assim, a validade do que seria exteriorizado teria que estar submetida à reformulação

da nacionalidade efetuada pela devoração do elemento estrangeiro. A “antropofagia”

funcionou como processo constante de seleção e exclusão que deveria orientar a

recolonização modernista voluntária, ativa, nacional e universalizadora, includente,

consciente da situação de subordinação e movida pelo esforço de superação da anacronia

em relação às nações já completamente modernizadas. Perspectiva que condenou a

homogeneização e afirmou a coexistência de diferentes tempos, ordens sociais,

sensibilidades e visões de mundo no universo cultural brasileiro.

O que o mangue apreende desta percepção é um compromisso de transformação que

opera pela incorporação de culturas antes negligenciadas e pelo diálogo constante com a

produção cultural global, sem, no entanto, tomar a nação como principal referencial

simbólico, nem assumir a missão vanguardista de apontar os caminhos da modernização

brasileira. 17

17 Neste sentido, ver a dissertação de Roberto Azoubel da Mota Silveira (Silveira, 2002), Mangue: uma ilustração da grande narrativa pós-moderna, que parte das reordenações narrativas desenvolvidas pelo Mangue – configuradas principalmente pela inclusão de grupos e linguagens tradicionalmente marginalizados pelo discurso ocidental – para localizar e compreender a definição e o papel das movimentações culturais no contexto da pós-modernidade.

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Além de ampliada – pela flexibilização dos critérios seletivos adotados pelo

modernismo –, a dimensão antropofágica é atualizada – pela absorção de elementos da

cultura pop contemporânea, pela utilização das possibilidades de criação apresentadas pelo

instrumental tecnológico posto a serviço da produção cultural, pela apropriação dos meios

massivos de produção, divulgação e comercialização da arte, e pela inserção no contexto

sociocultural da globalização. Como afirma Annateresa Fabris:

Se a proposta do “Manifesto Antropófago” era proclamar a originalidade da cultura brasileira numa inversão proposital da lógica colonialista, não é com esse quadro de referências que se deparam os artistas e intelectuais das últimas décadas do século 20. Longe de ser uma construção nacional, a cultura afigura-se cada vez mais como um processo de montagem multinacional, como uma atividade gestada em diversos centros, para a qual os referentes tradicionais de identidade estão perdendo importância diante do caráter transnacional das tecnologias e do consumo de mensagens e produtos simbólicos. Neste momento, as análises relativas à cultura não podem levar em conta apenas a problemática da diferença, mas abrir-se cada vez mais ao fenômeno do hibridismo, da transação intercultural. (Fabris, 1998)

De acordo com Stuart Hall (Hall, 2001), a mundialização aparece como fenômeno

atrelado ao capitalismo moderno, que fundou tanto as nacionalidades quanto as exigências

globais de interação, no entanto, a intensificação das relações interculturais aparece como

uma tendência pós-moderna, no momento em que as nações já não são mais o único veio

dos fluxos entre os povos. Seguindo o mesmo raciocínio, Renato Ortiz (Ortiz, 2000)

apontou para a formação de uma “cultura internacional-popular” desenhada por objetos e

símbolos desterritorializados, que não implicam uma narrativa fundadora e coerente, mas

uma compilação de elementos multinacionais fragmentados, que acentuam a sensação de

desenraizamento, ou de pertencimento globalizado.

No entanto, uma concepção de mundo formado por países diferenciados e

autônomos, construídos sobre tradições autocentradas e imunes às transformações globais,

ainda fundamenta a associação imediata entre memória e nação, dificultando a aceitação da

existência de uma cultura mundializada, supostamente destituída de referenciais coletivos

que possam determinar a identidade de um grupo. Isto não bloqueia a percepção da

insuficiência das categorias tradicionais de identidade na reprodução da sociedade de

consumo, que além de manipular valores, costumes e condutas pré-existentes, fundou

novos símbolos, criou demandas, estabeleceu normas, laços e mentalidades sociais, até

constituir-se como sistema. Elementos internacionalizados, frutos da modernidade

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industrial, configuram a “cultura popular-internacional”, construindo imagens

comercializáveis a partir de uma ideologia globalizante que se empenha em abarcar

diferentes grupos, classes e nações, criando necessidades universais de consumo.

Como já foi dito, a análise da produção artística do Manguebit não pode deixar de

considerar as intertextualidades, os diálogos, as adaptações e apropriações como forma de

construção estética e afirmação política na pós-modernidade, além da citação de

referenciais globais e imagens desterritorializadas como um dos elementos que determinam

a inteligibilidade de seus trabalhos. Fragmentos de memória partilhados, manipulação de

imagens-lembrança que podem estar localizadas nos cenários mais diversos ou híbridos,

caracterizam a bricolagem gerada no Mangue. No entanto, sua iniciativa de criação de um

produto cultural de consumo se deu por inspiração na elaboração da “imagem punk” pelo

produtor Malcom McLaren e pela estilista Viviene Westwood.

Inspirados na atitude e no visual da juventude londrina do final da década de 1970,

o casal formulou uma cena pop que incluiu a confecção das roupas e adereços, a construção

do vocabulário, a criação do cenário e a definição do som que iriam responder ao niilismo,

à agressividade e à descrença nos modelos sociais e estéticos exibidos pela geração punk

(Essinger, 1999).

Com a mesma inventividade, os mangueboys de primeira hora processaram as

demandas por alternativas culturais da juventude recifense e criaram a “cena mangue”. No

entanto, a postura anarquista, posteriormente adotada pelos punks, de negação do sistema

capitalista e das formas de atuação cultural por ele geradas, não foi adotada em sua

radicalidade pelo Manguebit. Este preferiu lançar mão das possibilidades apresentadas pela

indústria cultural para projetar-se como alternativa no mercado pop:

Fora a música, a cena buscou usar outras formas de expressão, como o linguajar, o vocabulário de mangueboy, do aratu e do caritó. Tem também o lance do visual, de misturar, por exemplo, chapéu de palha com adereços eletrônicos, e essa imagem símbolo, que é uma parabólica na lama do mangue. Isso tudo ajudou a estimular um monte de bandas novas, com linguagens bem diversificadas. Hoje eu acho que é bem mais fácil conseguir um espaço do que há dez anos, por causa dessa trincheira que a gente abriu e desse satélite que a gente ajudou a lançar (Zero Quatro In: Milena Andrade, http:// www.sambanoise.hpg.ig.com.br/hpg.ig.com.br/entrev.htm).18

18 A dissertação de Paula de Vasconcelos Lira (Lira, 2000) Uma antena parabólica enfiada na lama: Ensaio de diálogo complexo com o imaginário do mangueBit, se funda em uma etnografia detalhada que articula todos estes elementos, na análise da construção da cena pop recifense como organização de um sistema simbólico complexo, fundado na diversidade das expressões e linguagens que se articulam sob o signo do

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As estratégias publicitárias estão aqui subordinadas ao interesse maior de promover

a diversidade, subvertendo, pela via da apropriação dos meios massivos, o movimento de

homogeneização seguido pela indústria cultural. A maioria dos formuladores da cena

mangue era estudante ou profissional da área de comunicação e designer, o que com certeza

contribuiu para o sucesso de suas investidas publicitárias. Apelaram para a construção de

cena como forma de intervir na realidade por meio da ficção e da virtualidade pós-

modernas, e travaram uma relação de negociação com o mercado cultural na tentativa de

tornar acessíveis suas produções.

Um dos elementos constitutivos do que se identificou como movimento punk é a

lógica do “faça você mesmo”, que partiu da crítica ao comercialismo capitalista para a

criação de circuitos underground de circulação de informação. Lição aprendida pelos

militantes do movimento hip-hop, que a aplicam no processo de produção e distribuição de

seus trabalhos, com o objetivo de criar espaços de divulgação e garantir a qualidade do que

veiculam.

O mecanismo de mediação na “cultura hip-hop” opera pela construção de formas de

“se fazer ouvir”, pela conquista de espaços de intervenção reconhecidos inclusive no

âmbito do consumo (Herschmann, 2000). Também distante do rumo que tomou o

movimento punk, os militantes do movimento hip-hop se apropriam dos mecanismos da

indústria cultural na busca de inclusão social, entendendo o acesso igualitário aos bens

culturais e materiais como forma de promover democracia. Postura que aponta para a

importância estratégica de se subverter as relações de consumo pela diversificação da oferta

de produção estética e pela facilitação do acesso a informações e decisões. Atentam, assim,

para as possíveis contribuições que estas transformações podem trazer para o exercício

pleno da cidadania.

O Manguebit se associa a esta vertente da cultura pop e cria programas de rádio e

televisão, produtoras de vídeo e cinema, selos e gravadoras independentes, sites, revistas e

Manguebit. Toma as manifestações artísticas como parte deste sistema, fragmentos que possibilitam a compreensão da ordem geral por contê-la em sua constituição. Enfatiza assim, a indissociação entre os vários aspectos apresentados pela cena mangue, a dialética entre ordem e caos que movimenta as relações culturais por ela apresentada, assim como as representações e os mitos fundados por seus ciclos criativos.

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fanzines. 19 20 No interior deste circuito desenvolve-se a profissionalização dos trabalhos e

crescem as possibilidades de interferência na reformulação e democratização das políticas

públicas, devido ao destaque adquirido pelos mangueboys na vida cultural da cidade do

Recife. 21

Estas conquistas se deram associadas à tendência à comercialização das

diversidades tomada pela indústria cultural internacional. Caracterizam-se como um

processo de negociação simbólica e estética que se vale do gradativo reconhecimento das

produções regionais e de grupos minoritários, da agregação das grandes gravadoras com

selos independentes, e da flexibilização e diversificação da produção industrial inserida

num contexto de hibridismo cultural. Ou seja, o mangue, como um produto cultural de

consumo, também se insere no movimento de regionalização da produção, com suas

estratégia de mercadorização de elementos que respondam às identificações culturais

definidas pela pluralidade.

No entanto, apesar das formas de convivência contemporâneas estarem fundando

identidades transnacionais e apontando os caminhos da promoção da democracia cultural

nos centros urbanos pela via do multiculturalismo, persistem, também na formulação das

políticas oficiais, discursos territorializantes, que evocam a lealdade aos símbolos

tradicionais e se empenham na defesa de autenticidades locais. Enquadrando-se no que

afirma Canclini (Canclini, 1995) a respeito das políticas culturais urbanas na América

Latina, o Projeto Cultural Pernambuco-Brasil, apresentado por Ariano Suassuna como 19 A dissertação de Carolina Carneiro Leão (Leão, 2002) A maravilha mutante: Batuque, sampler e pop no Recife dos anos 90 é dedicada à análise das formas de articulação entre comunicação e crítica social promovidas pela a cena Manguebeat, estando esta associada aos signos da cultura pop e identificada com os mecanismos da cultura de massas. Toma as colagens de gêneros como definição estética desta movimentação cultural (adotando o termo samplear como conceito orientador) e procura localizar as intervenções da lógica de mercado em sua configuração.20 O barateamento e as facilidades de acesso à tecnologia permitiram a consolidação de uma produção local profissional e competitiva. No entanto, persistem as dificuldades de distribuição e divulgação pela resistência dos meios massivos no Brasil, ainda muito referenciados em critérios mercadológicos tradicionais.21 Talvez devido à pressão do que veio a representar o mangue em termos de afirmação identitária do Estado de Pernambuco e de rentabilidade econômica pelo turismo, várias gestões políticas associaram aos signos do Manguebit aos seus projetos. Chico Science é freqüentemente homenageado na programação oficial do carnaval, um dos eventos mais resguardados em termos de “autenticidade”, seu trabalho foi adotado pela Secretaria Municipal de Educação do Recife como tema principal do ano letivo de 2003 – Ano Letivo Chico Science: Um passo a frente e você já não está mais no mesmo lugar –, o governo do Estado publicou um disco com oito versões do hino pernambucano, entre elas uma “versão mangue”, composta por músicos de gêneros diversos, nem todos diretamente ligados à formação da cooperativa (Hino de Pernambuco, Recife: Secretaria Estadual de Cultura/CEPE Editora, 2002). O projeto de maior destaque, no entanto, foi o Acorda Povo, formulado por alguns dos articuladores do mangue e concretizado em parceria com a banda Devotos e as secretarias municipal e estadual de cultura, experiência que será abordada ainda neste capítulo.

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base de sua gestão na Secretaria Estadual de Cultura, esteve explicitamente guiado pela

delimitação territorial das referências simbólicas:

(...) o “Projeto Cultural Pernambuco-Brasil”, planejado para os quatro anos do governo Arraes, terá como centro a arte popular brasileira, ou aquela que, não sendo popular de origem, é, porém nacional por ser visceralmente ligada ao popular. (Suassuna, 1995a, p. 5)

A já mencionada associação entre nacional e popular construída pelo pensamento

social brasileiro é aqui reforçada pela ligação do projeto cultural com as concepções do

então governador, citado por Suassuna como co-autor de algumas de suas propostas. Em

um artigo publicado no Diário de Pernambuco em agosto de 1995, o secretário explicita

sua proximidade ideológica com Miguel Arraes:

Sempre afirmei que minhas idéias sobre cultura brasileira se assentam sobre dois fundamentos, o nacional e o popular, os mesmos que estão na base do “Projeto Cultural Pernambuco-Brasil”. (...) Por isso, vivia a espera de alguém que no Brasil, honestamente, eficazmente, tentasse efetivar, no campo da política, aquilo que eu sonhava para o da Cultura. Minha busca foi infrutífera ou extraviada, até que li o livro de Arraes “O Jogo do Poder no Brasil” (...) E Arraes conclui: é necessário consolidar “uma força nacional e popular, capaz de promover um amplo debate e de executar democraticamente a grande tarefa que se tem pela frente. É a tarefa que só o povo tem condições de executar. Para tanto, é necessário que detenha o poder. Embora todas as constituições declarem que ele emana do povo, o fato é que este nunca o exerceu. Cabe lutar para que isso seja uma realidade”. Como se vê, não foi por acaso que o governador Arraes me chamou para ser seu secretário da Cultura. Nem foi por acaso que eu aceitei. [grifos do autor]

O histórico político de Arraes nos permite evocá-lo como um dos promotores do

MCP na década de 1960, movimento que aliava formação cultural à transformação social,

motivado pela “demanda por uma consciência popular adequada ao real e possuída pelo

projeto de transformá-lo” (MCP, 1986, p. 51). Apresentada por uma vanguarda intelectual

que se propunha a identificar os verdadeiros interesses dos grupos subordinados, tal

perspectiva dissociou a categoria de “cultura popular” dos signos da tradição, atrelando-a a

vocação revolucionária do que Marilena Chauí (Chauí, 2000) denominou “cultura do

povo”. Esta noção, que pressupõe a divisão da sociedade em classes e se põe a serviço de

sua modificação, fundamentou a crítica da esquerda socialista da década de 60 ao “caráter

conservador” da apologia ao folclore e à tradição, em contraposição à defesa dos aspectos

“realmente ligados às intenções revolucionárias do povo”.

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Ao projetar a ação cultural do segundo mandato de Arraes como governador, Ariano

Suassuna reforça a proposta de direcionamento da política estatal pelas culturas populares,

sem, no entanto, compartilhar da concepção que atribui às expressões tradicionais o papel

de obstáculo aos movimentos de transformação social. O popular recuperado por Suassuna

é justamente aquele manifestado na “invenção dionisíaca e espetacular do Bumba- meu-

boi, do Mamulengo, da Nau Catarineta, do Pastoril” (Suassuna, 1977, p. 48). E é aí que se

encontram, segundo a “concepção armorial” do escritor, os signos da unidade nacional:

A unidade nacional brasileira vem do Povo, e a Heráldica popular brasileira está presente, nele, desde os ferros de marcar bois e os autos de Guerreiros do Sertão, até as bandeiras das Cavalhadas e as correntes azuis e vermelhas dos Pastoris da Zona da Mata. Desde estandartes de Maracatus e Caboclinhos até as Escolas de Samba, as camisas e as bandeiras dos Clubes de futebol do Recife ou do Rio. (Idem, p. 40)

Este memorial de símbolos e emblemas expressaria o espírito popular e identificaria

a autêntica arte regional e nacional: a arte “daquele que quer criar a partir da realidade que

o cerca” (Suassuna, 1962, p. 477). Sendo assim, em seu projeto político, Suassuna contesta

a idéia de progresso que norteia a visão eurocêntrica de arte e cultura, atentando para os

equívocos de análise nos quais se pode incorrer quando esta perspectiva é adotada

acriticamente. Afirma a origem local (regional/nacional) de toda obra, sendo a “qualidade”

(valor) e a “divulgação” (alcance) seus principais fatores de universalização. Por

conseqüência, taxa de preconceituosa a discriminação que sofre a arte voltada para a

afirmação identitária, desvalorizada por seu caráter nacionalista:

Assim, é também um mero preconceito considerar estreita e arcaica toda obra de arte que se preocupe com a identidade nacional. Não existem obras de arte universais: as que assim são consideradas, são apenas universalizadas pela qualidade e pela divulgação. (Suassuna, 1995a, p. 4)

Entende, ainda, a hierarquização entre arte erudita e popular em termos de

dominação cultural, afirmando que a distinção formal reconhecível entre as duas não deve

fundar nenhum tipo de assimetria. Os modelos estéticos impostos pelo processo de

colonização estariam, assim, arbitrariamente elevados à condição de superioridade pela

força das culturas hegemônicas, tanto estrangeiras quanto nacionais. Analisando a

constituição cultural brasileira, Suassuna reconhece estar na formação ibérica romanizada a

base das expressões artísticas eruditas, e em sua “reinterpretação” por negros e mestiços, a

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origem da cultura popular. Recupera, aqui, a associação popular/nacional, afastando-se da

delimitação por extrato ou grupo social para se orientar em direção à construção da

identidade coletiva, alcançada por um duplo trajeto: do erudito para o popular - do popular

para o erudito. A idéia de nação preza pela unidade, esvaziando as distinções de classe:

É por isso que, no Projeto não se faz qualquer discriminação entre arte “arcaica” e arte “moderna”, entre arte “nacional” ou “universal”, entre arte “erudita” e arte “popular”. Todas elas são encaradas como pertencentes a uma imensa fraternidade, na linha da riqueza e variedade das diversas etnias que compõe nossa população. A única restrição dirige-se contra os servis e imitadores, isto é, aqueles que, confundindo inovação com renovação, se curvam ansiosos de qualquer “novidade” que nos vêm de fora como se fosse verdadeiramente de vanguarda. (Suassuna, 1995a, p. 6)

A reunião dos contrastes exposta pelos elementos associados na citação acima

denuncia uma visão harmônica que subentende a existência de uma democracia cultural

enquanto vocação nacional, evidenciada na convivência pacífica e na complementaridade

entre gêneros, temporalidades, etnias e extratos sociais. A própria tese de livre docência de

Ariano Suassuna se localiza na linha da produção teórica nacional que buscou identificar o

caráter do país pela via da abordagem culturalista. O escritor desenvolve sua reflexão a

partir de obras selecionadas na literatura brasileira, publicadas entre os séculos XVI e XX,

tentado evidenciar a tendência à conciliação entre os povos mestiços do mundo, dos quais

os brasileiros seriam os representantes mais típicos. De acordo com o autor, “se

examinarmos o Povo brasileiro do ponto de vista de seu comportamento social, de sua

Psicologia, de sua História, de sua Arte, de sua Literatura, encontraremos sempre essa

tendência assimiladora e unificadora de contrários” (Suassuna, 1976, p. 5).

Motivados por esta afirmação, voltamos às reflexões de Marilena Chauí para nos

aproximamos da noção de que o reconhecimento da divisão social e das contradições de

classes não implica necessariamente a admissão do confronto entre elas. A autora identifica

no termo “popular” o signo neutralizador das desigualdades sociais, por sua associação

imediata com a idéia de nação:

Quando “do povo” ruma para “popular”, o adjetivo tende a deslizar para um outro que encobre efetivamente a contradição e a luta: o adjetivo “nacional”, cuja peculiaridade, sobejamente conhecida, consiste em deslocar a luta interna para um ponto externo à sociedade que permita a esta última ver-se imaginariamente unificada. (Chauí, Op. Cit., p. 42)

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Suassuna parte da identificação das especificidades atribuídas aos grupos

subalternos, entendendo-os como elemento catalisador dos consensos em torno da

construção nacional. Acrescenta aí a crítica aos estrangeirismos, à efemeridade e ao

imediatismo das vanguardas modernas, e, por contraposição, deixa entrever a valorização

da tradição enquanto espaço do perene, manifestação do mítico atemporal, espírito de um

povo e inspiração para a verdadeira arte. Esta constatação deveria direcionar as ações do

Estado ao cultivo de tais tradições. O secretário atenta para os riscos de apropriações e

deturpações e determina os cuidados necessários “para que a oficialização e a burocracia

não prejudiquem, ou mesmo sufoquem, a beleza e a verdade da criação popular” (Suassuna,

1995a, p. 17). Expõe aí o reconhecimento de uma autenticidade na cultura popular que não

deve ser corrompida pela intervenção estatal.

O Movimento Folclórico Brasileiro, já estabelecia, em 1951, regras e limites à

intervenção de pesquisadores e às ações estatais de preservação, registro e divulgação das

manifestações culturais. Definiu o “fato folclórico” como expressão tradicional,

"essencialmente popular", espontânea e não institucionalizada. 22 Seu tratamento deveria se

dar com base no esforço de nacionalização do caráter regional de tais expressões, e estar

atrelado à iniciativa governamental de identificação de origem, conservação, organização,

catalogação, preservação e exposição do material recolhido. Acrescentou-se, no entanto,

que a intenção de difusão e vulgarização das expressões populares regionais não deveria

alterar sua autenticidade, nem deformar sua expressão primitiva, mantendo a fidelidade nos

processos de transposição. Como afirmaram Marcos e Maria Ignês Ayala:

Algumas interferências são consideradas descaracterizadoras ou mesmo ameaças à existência do folclore. A interferência representada pela “reconstituição”, pelo contrário, é pregada como uma necessidade. A diferença está em que a preservação procura manter os elementos de composição mais visíveis do “fato folclórico”. Temem-se não só as mudanças

22 As delimitações conceituais e metodológicas realizada pelo I Congresso Brasileiro de Folclore, reunido no Rio de Janeiro em agosto de 1951, tornam-se públicas por meio da divulgação de um documento que contém, “os princípios fundamentais, as normas de trabalho e as diretrizes que devem orientar as atividades do folclore brasileiro”. Ao inserir os estudos de cultura popular num campo cientifico (o da Antropologia), a Carta do Folclore Brasileiro identifica seu objeto e delimita seu campo de ação: “Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação, e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou a renovação e conservação do patrimônio cientifico artístico humano ou a fixação de uma orientação religiosa e filosófica”. (Carta do Folclore Brasileiro, 1951, p. 77)

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das características mais evidentes do folclore, mas também as transformações sociais. Essa perspectiva, portanto, é claramente conservadora. (Ayala e Ayala, 1987, p. 19)

Pode-se reconhecer, assim, no interesses pelas manifestações da chamada cultura

popular uma atitude própria aos intelectuais da modernidade, que, movidos por um ideal

romântico de identidade, atribuem valor às expressões originais da cultura nacional de

acordo com critérios de antigüidade, conservação e espontaneidade, em contraste com a

efemeridade, ruptura e artificialidade da cultura moderna.

No decorrer dos anos 50, período de auge do Movimento Folclorista no Brasil, o

desenvolvimentismo se apresentou como o projeto econômico, político e cultural que

deveria dar conta da efetivação da unidade nacional tão desejada pelo setor intelectual e

pelos grupos dirigentes do país. Tal programa, que mobilizou considerável esforço político

e deveria decretar a suplantação do atraso nacional, associava medidas de modernização

comercial e industrial a concessões democráticas que deveriam ser garantidas pela

ampliação do sistema educacional. Em termos políticos, o projeto social a ser levado a cabo

pelos intelectuais se traduzia em um conjunto de reformas modernizantes (Ortiz, 1985).

Sendo assim, a definição do caráter folclórico a partir de sua natureza residual – que

aponta para resquícios de passado no presente – em detrimento de uma abordagem

contextual – que incluiria o popular na dinâmica de transformações históricas – recebeu

influências do positivismo, evolucionismo e difusionismo, que tendo se afirmado no Brasil

no final do século XIX, ainda se mostravam atuante na primeira metade do século XX. Isso

teria incentivado uma política de musealização e catalogação de fragmentos de

nacionalidade em extinção por culpa do processo irreversível, e na maioria dos casos

desejável, de modernização no país.

Já indicamos neste capítulo os termos da autodistinção de Ariano Suassuna em

relação à prática folclorista, que o escritor vê como meio de preservação e divulgação das

expressões populares. Mas entende que, para além disto, tais expressões deveriam ser

tomadas em sua vivacidade, não apenas como fonte de inspiração estética, mas como

indicador de formas ativas de sociabilidade. Suassuna procura, em seu trabalho de escritor,

“mostrar que a partir da Arte popular, é possível, no Brasil, procurarmos uma Arte

nacional, um pensamento nacional, e até uma teoria do poder brasileiro” (Suassuna, In:

Maurício, Cirano e Almeida, Op. Cit., p. 46).

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No entanto, as reflexões de Luís Rodolfo Vilhena (Vilhena, 1997) acerca do

movimento folclórico brasileiro nos permitem compreender que na perspectiva dos

intelectuais aí envolvidos a cultura popular não apareceu apenas como objeto de pesquisa

classificatória, mas como caminho de identificação da identidade nacional. Tal constatação

se insere na discussão aqui levantada a respeito das formas de apreensão do povo como

elemento definidor do caráter da nação. Pioneiros na formulação de uma concepção

sistemática de cultura popular, os folcloristas fundaram os termos dos quais partiram as

diversas propostas de adequação e reordenação conceitual.

Alguns dos critérios estabelecidos por eles são absorvidos por Ariano Suassuna em

suas abordagens acerca das manifestações populares, como a afirmação de seu caráter

original, a concentração nas expressões rurais, a contraposição entre modelos hegemônicos

e subalternos de apreensão da realidade e construção de conhecimento, e os contrastes entre

saberes letrados e iletrados. Ao mesmo tempo, a preservação requerida pelo artista

implicaria assimilação e adoção de uma forma de existência ou convivência alternativa, e

não no seu isolamento, já que o que Suassuna persegue é a recuperação, ou melhor, a

incorporação do passado pelo presente. Ou seja, o escritor deseja que os aspectos estéticos

que identifica nas manifestações populares como de procedência arcaica (relativa à origem,

arquétipo), se revertam em projeto político e modelo social para o Brasil. Concepção que

também norteia seu entendimento da função do Estado no campo da cultura:

É por aí que se chega a definir o papel do Estado na cultura: apoiar as manifestações culturais que, sendo importantes, vitais mesmo, para o país, por sua própria natureza não têm condições de receber apoio do mercado – para repetir a idéia do atual Ministro da Cultura Francisco Weffort. (Suassuna, 1995a, p. 26)

Suassuna opina sobre o que é apropriado para a garantia da vitalidade cultural da

nação – em associação com os princípios exibidos pelo governo federal –, já que não faz

distinção entre as dimensões estadual, regional e nacional. Neste movimento, o Nordeste é

visto como lócus original da cultura brasileira e surge como tema privilegiado na defesa de

uma nacionalidade autêntica. Torna-se categoria fundamental de identificação do que deve

ser reconhecido como popular, e digno de receber investimentos públicos. O secretário

assumiu esta trajetória de busca das raízes nacionais com a convicção de que estaria

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“fazendo o melhor para a Cultura brasileira, nordestina e pernambucana” (Suassuna, Idem,

p. 31).

Tal postura corrobora a idéia já esboçada neste trabalho de que as políticas estatais

de administração e preservação de patrimônio ainda estariam definidas pela submissão às

tradições que distinguem cada povo, confundidos com os habitantes de determinado

território. Entretanto, a articulação de memórias diversas pelo Estado moderno no processo

de composição de uma identidade nacional harmoniosa se encontra ameaçada quando as

cidades se apresentam como espaços onde se evidenciam a diluição das monoidentidades e

se desautorizam macropolíticas sociais e culturais. Torna-se latente o apelo da

heterogeneidade da população, das marcas impressas pela migração e da “multiplicidade

irredutível de linguagens e estilos de vida” (Canclini, 1995, p. 113). Considerando tal

realidade, Canclini reconhece que:

(...) as necessidades culturais de grandes cidades requerem políticas multisetoriais, adaptadas a cada zona, estrato econômico, grau de escolaridade e faixa etária, em suma, à complexa heterogeneidade do que se costuma simplificar como “público” (...) Talvez o ponto de partida para políticas urbanas seja não pensar a heterogeneidade como problema, mas sim como base para a pluralidade democrática. (Idem)

Segundo o autor, uma reordenação da concepção de cidadania deveria, ainda,

considerar o papel mediador das indústrias culturais e dos meios de comunicação de

massas, e se dedicar à compreensão de suas linguagens e à democratização de suas

produções. Deveria determinar também um novo direcionamento para as políticas de

promoção de culturas tradicionais, agora vistas em articulação com as condições de

internacionalização e com os signos da modernização. Ou seja, esgotadas, tanto a posição

da vertente marxista que limitou as possibilidades de interação cultural aos interesses de

classe nos anos 60, quanto a leitura política da corrente preservacionista que mais isola do

que reúne os grupos socioculturais da Nação, se faz necessária a busca por alternativas de

convivência que, sem negar os conflitos entre os diversos grupos, entenda a promoção da

democracia como uma questão de complexidade e pluralidade.

Sendo assim, a aplicação do Projeto Cultural Pernambuco-Brasil à capital

pernambucana não pôde deixar de provocar polêmicas e reações por parte dos diversos

grupos preteridos pelos seus critérios de favorecimento, embora estes não tenham sido, na

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prática, aplicados com muita rigidez. 23 O programa chegou a ser contestado por um grupo

de intelectuais, artistas e produtores culturais através de um abaixo assinado. O texto do

documento diz:

Os Artistas, Intelectuais e Produtores Culturais em geral, abaixo assinados, vêm a público contestar e repudiar o programa cultural consubstanciado no texto “projeto Cultural Pernambuco-Brasil” elaborado e apresentado pelo Ilmo Sr Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco, Dr Ariano Suassuna, e assessores, datado de maio de 1995. Tal programa de governo elimina um Direito Fundamental, inerente a todos que se dedicam à Produção Cultural nas suas variadas manifestações artísticas, ou seja, a Liberdade de Expressão (...) Desta forma, nos manifestamos contra qualquer tipo de ingerência do Estado, que venha a cercear os direitos e garantias fundamentais para o Exercício da Liberdade, em todas as suas formas de expressão. Não aceitamos, portanto, a imposição de qualquer tipo de linha estética e conduta artística. O “Projeto Cultural Pernambuco-Brasil” constitui, efetivamente, um retrocesso inadmissível para a Cultura Artística do Estado, por ser preconceituoso e ditatorial. 24

Ariano Suassuna responde aos ataques com o argumento de que um projeto

democrático deve deixar claros os critérios de seu juízo crítico, reconhecendo que as

seleções de manifestações associadas aos interesses políticos dos mandatos fazem parte de

qualquer atuação pública (Suassuna In: Moura, 1995). Defende-se por antecipação, no texto

do projeto, das esperadas acusações de “exclusivismo” e “radicalismo” afirmando não

serem os atores envolvidos em seu programa “indefinidos nem amorfos a ponto de ficarem

na rotina do simples e indiscriminado repasse das poucas verbas de que dispõem para apoio

à cultura brasileira” (Suassuna, 1995a, p. 31). Aplicando tais critérios políticos e estéticos à

identificação das expressões musicais dignas de receberem o apoio e os investimentos da

secretaria no decorrer de sua gestão, Suassuna propõe a realização de eventos que:

23 Em entrevista ao Jornal do Commercio, o secretário se defende: “Discordo dessas críticas. Nos últimos quatro anos o Estado de Pernambuco gastou R$ 42 milhões em assuntos culturais. Desses, apenas R$ 320 mil foram usados pela Secretaria de Cultura. O resto foi repassado pela Fundarpe, por outros órgãos ou por meio de renúncia fiscal de projetos aprovados pela Lei de Incentivo a Cultura. Ou seja, dos R$ 42 milhões, apenas R$ 30 mil foram submetidos à política cultural estabelecida por incentivo para a Secretaria. Vale ressaltar que as outras despesas tiveram a minha aprovação. Eu concordei que o governo gastasse dinheiro com projetos culturais que não se incluíram no meu plano de ação. Entre elas está o Festival de Cinema, patrocinado pela Telpe, a contratação de certas bandas para o festival de Garanhuns, a viagem de Chico Science a Nova York, a fita da banda Paulo Francis Vai Pro Céu?, que inclusive fazia uma piada colocando- me na capa ao lado de Paulo Francis. Então acho que houve uma abertura grande, com verbas para as mais diversas áreas” (Suassuna In: Barbosa, 1998).24 No documento constam nomes como o do escultor Abelardo da Hora, dos maestros Geraldo Menucci e Duda, dos artistas plásticos Sérgio Lemos, Tiago Amorim, Montez Magno, Jobson Figueiredo, do escritor Nelson Saldanha, do produtor Raimundo Campos e da cineasta Kátia Mensel. O texto foi publicado na íntegra pelo Diário de Pernambuco de 09/07/1995, em uma matéria intitulada “Quixote da cultura brasileira”, assinada pela jornalista Ivana Moura.

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(...) apresentem aos meios de comunicação e ao público urbano instrumentistas populares como os de rabeca, percussão, viola e marimbau. Será ocasião para estudar e revalorizar os timbres e os ritmos da música feita pelo nosso Povo, tão rica de sugestões mas que, quase sempre servindo apenas de suporte a espetáculos e secundarizada perante a ação e os figurantes, não recebe a atenção que merece. Voltamos a lembrar que ela pode servir de roteiro a nossos compositores eruditos para a criação de uma música que expresse nosso País e nosso Povo. (Idem, p. 30)

Estas proposições já excluem, por princípio, a possibilidade de diálogo com o

Manguebit, por seus articuladores não se enquadrarem no perfil que Suassuna reconhece

nos “artistas populares”, e pela formação urbana dos mangueboys, que os aproxima das

expressões da música pop comercial, “rasa” e “alienante”, e os distancia da profundidade

que pode alcançar a música erudita “interessada”. Por fim, a definição do que deve ser

entendido como cultura popular, e conseqüentemente nacional, passa, assim, pelo crivo de

um intelectual acadêmico inserido na “cultura de elite” e que, imbuído de uma “missão

redentora”, detém poderes sobre os recursos públicos a serem investidos na produção

artística dos grupos que pretende abarcar. Desta forma, abriga experiências já consolidadas,

afirmando a possibilidade de apoio a iniciativas populares, desde que associadas aos

princípios estéticos adotados pela política cultural da Secretaria.

Suassuna apresenta um projeto fechado estética e politicamente, que prevê a criação

de companhias que executem idéias pré-concebidas, a serem coordenadas por antigos

parceiros da fase de construção do Movimento Armorial.25 Assim como quando ocupava o

cargo de diretor do Departamento de Extensão Cultural da UFPE, sua gestão pública é vista

como possibilidade de concretização das idéias propostas pelo movimento26:

25 O secretário indicou, por exemplo, o escritor Raimundo Carrero para a presidência da Fundarpe e o maestro Antônio Madureira para coordenar a área de música. Artistas atuantes no movimento Armorial desde a sua primeira fase.26 Colocadas em tais termos as linhas mestras do projeto, o adjetivo adotado para nomear os diferentes grupos que deveriam, a partir daí, concretizar as propostas nos âmbitos das diferentes expressões artísticas é representativo no que diz respeito a concepção estética do autor, já que “Romançal” é o nome atribuído por Ariano Suassuna à terceira fase do Movimento Armorial. O termo é definido na segunda versão do manifesto armorial como “romance ou romanço, aquele amálgama de latim ‘mal-falado’ e popular que deu origem às línguas românicas, ou neolatinas, inclusive o português, o Provençal, o Espanhol e o Galego” (Suassuna, 1977, p. 60). Valendo-se de grupos já existentes, ou prevendo a criação de novos, idealiza o Balé Romançal que deveria estudar os passos das danças populares para “criação de uma dança brasileira total”, uma fusão entre o popular e o clássico. O Conjunto Romançal de Câmara obedece à mesma lógica da proposta anterior – de fundação de uma música erudita nacional –, tendo por base não apenas as melodias, mas a própria instrumentação das canções populares (dos romances ibéricos aos galopes e repentes nordestinos). Juntaria-se a estes a Trupe Romançal de Teatro que, com base no teatro popular dos brincantes, deveria fundir encenação e dança na execução de um “teatro nacional e popular”. Propõe a criação do “Teatro-Circo Arraial”. O nome

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Vou procurar retomar o que já disse aqui antes, que no fundo, é uma retomada do Movimento Armorial, como sua busca de uma arte erudita, com fundamento no popular. A grande bandeira era e é o folheto, com suas três artes: na capa, a gravura, caminho da arte; narrativa do folheto, gerando outros caminhos literários; e a música de toda a história contada acompanhada por rabeca e viola. É a volta do movimento Armorial na sua essência. (Suassuna In: Oliveira, 1994)

Maria Thereza Didier (2000) localiza na atmosfera política e cultural dos primeiros

anos da década de 1970, a proposta de criação de uma arte nacional inspirada nas

expressões populares, traçada pelo Movimento Armorial. Fundado sob a vigência do AI 5,

de um nacionalismo autoritário e unificador e de um modelo desenvolvimentista que tinha

entre as estratégias de integração nacional a proposta de promoção econômica e social da

Região Nordeste, o projeto armorial se contrapunha aos princípios que fundamentavam os

programas governamentais de investimento na região que a tomavam como território

“miserável” e “atrasado”.

O movimento esteve delimitado pelo recorte espacial e simbólico configurado pelo

nordeste brasileiro, e partiu do cenário rural e sertanejo para construção de uma linguagem

que pretendia “assumir aquele caráter de comunhão com a realidade, através da região que

cerca o artista” (Suassuna, 1962, p. 481). E os artistas envolvidos com a construção

armorial eram todos de origem nordestina, mais especificamente do interior dos estados de

Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte, universos dos quais demonstram

guardar certa nostalgia, por serem filhos de famílias abastadas que adquiriram formação

universitária nas capitais e se estabeleceram profissionalmente no Recife (Santos, 1999).

No entanto, apesar da identificação com uma “nordestinidade” que os fez resistir

aos apelos da Região Sudeste e se situarem enquanto “intelectuais regionais”, os armoriais

se distanciam do regionalismo histórico por não adotarem uma posição militante em torno

da afirmação local, mas se apropriarem dos signos da literatura oral e da cantoria nordestina

como meio de construção de uma forma autêntica de criação. Segundo Idelette Santos, o

Armorial:

faz alusão aos arraiais de Canudos e Palmares e o espaço abrigaria os espetáculos a serem montados pelos grupos acima mencionados. Arraial, de acordo com o autor, seria um outro nome-conceito para a terceira fase do Movimento Armorial, que pelo que tudo indica, ofereceu as bases do projeto em questão.

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(...) situa-se num quadro regional, o Nordeste, espaço geográfico, histórico e mítico, comum aos cantadores e aos armorialistas na afirmação, sempre renovada, de sua “nordestinidade”. Esta presença da região continua sendo um elemento fundamental da criação popular que o movimento Armorial adota, numa dimensão poética e pessoal mais do que sociológica, sem se tornar no entanto arauto de um regionalismo militante. (Idem, p. 19)

Mesmo assim, parece inegável a influência de Gilberto Freyre na vida intelectual do

Recife e na forma particular de conceber a nação e o papel das regiões na sua composição

por parte de Suassuna. No Manifesto Regionalista, Freyre declara sua intenção de divulgar

a existência de “um movimento de reabilitação de valores regionais e tradicionais desta

parte do Brasil” – a Região Nordeste –, e desenvolve sua concepção de nação articulada sob

a suposição de uma interação orgânica entre as diferentes regiões:

Pois são modos de ser - os caracterizados no brasileiro por suas formas regionais de expressão - que pedem estudo ou indagação dentro de um critério de inter-relação que, ao mesmo tempo em que amplie, no nosso caso, o que é pernambucano, paraibano, norte-rio-grandense, piauiense e até maranhense, ou alagoano, ou cearense em nordestino, articule o que é nordestino em conjunto com o que é geral e difusamente brasileiro ou vagamente americano. (Freyre, 1976, pp. 54-55)

Dito isto, a defesa da valorização da Região Nordeste aparece associada à

preservação da própria cultura nacional, já que aquela guardaria, apesar da constatada

situação de degradação, os elementos originais da identidade e da sociabilidade brasileiras.

Ao tecer uma análise sobre os ecos das idéias de Gilberto Freyre sobre sua obra, e

uma possível ligação do Armorial com o Movimento Regionalista, Suassuna diz preferir

adotar o conceito de “região” ao de “regionalismo”, devido ao esgotamento deste segundo

termo, que acabou abarcando uma diversidade muito grande de expressões com as quais

nem sempre se identificou. Usando o conceito de “região” o autor acredita poder operar

com maior liberdade, endossando o caráter flexível que atribui à questão e se desobrigando

de um comprometimento direto com os promotores do Movimento Regionalista. Afirma a

naturalidade que existe no fato da “obra viva” refletir a realidade da região em que está

inserido o artista, condenando, no entanto, a busca pelo pitoresco, já que “jamais valorizaria

uma arte pelo simples fato de ela ser regional e popular” (Suassuna, 1962, p. 477).

Segundo Suassuna, a cultura local deve se impor como fonte de criação artística e

esta deve estabelecer uma relação estreita entre o tradicional e o universal, apelando para a

atemporalidade dos mitos e para a universalidade dos arquétipos, qualidades que tornam

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uma obra clássica. A região é, por fim, apresentada como mais um elemento de unidade e

força da nação, e não de fragmentação, e a Região Nordeste em especial, como lócus das

tradições mais originais e características, portanto, mais propícia a representar o nacional.

Desconstruíndo a noção evolucionista que localiza as tradições orais em estágios

ultrapassados da civilização humana, associando-as a um primitivismo ingênuo e

negligenciando seu valor estético, o Armorial opera pela elevação da produção popular à

condição de arte nacional. E o romanceiro nordestino reúne os elementos que

possibilitariam tal representação identitária. De acordo com a definição do “Manifesto

Armorial”:

A arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos folhetos do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus ‘cantares’, e com a xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e as forma das artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados. (Suassuna, 1974, p. 7)

Aponta os caminhos oferecidos pelos três elementos da literatura de cordel - poesia,

xilogravura e música que ponteia a recitação - para as diversas modalidades artísticas,

desde que seus autores estejam preocupados em atribuir um caráter nacional às suas obras.

A própria abertura do texto oral para as interferências criativas aparece como motivação

fundamental para a proposta armorial de inserção dos artistas eruditos no universo popular,

e corrobora a defesa das mestiçagens culturais.

Dentro da mesma lógica, a adoção do termo “armorial” por Suassuna se traduz num

esforço de simbolização da unidade entre os grupos nacionais. Adapta uma concepção

européia e medieval à paisagem e aos signos das “culturas populares nordestinas”,

identificadas por meio dos símbolos que figuram espírito do povo brasileiro:

Acontece que, sendo "armorial" o conjunto de insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um Povo, no Brasil a Heráldica é uma arte muito mais popular do que qualquer outra coisa. Assim, o nome que adotamos significava, muito bem, que nós desejávamos ligar-nos a essas heráldicas raízes da Cultura Popular brasileira. (Idem, p. 8)

É esse espírito que Suassuna busca extrair das fontes populares, que ao serem

descritas por ele em suas qualidades formais e morais, incorporam uma noção de povo

como grupo que produz determinadas formas e mentalidades a serem valorizadas e

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reproduzidas. O escritor reforça, a partir de apontamentos sobre a música armorial, sua

concepção de cultura popular:

Nos centros mais populosos do Litoral, é difícil observar os resquícios da Música primitiva. É importante esse fato, porque essa música primitiva será o futuro ponto de partida para uma música erudita nordestina, como se observou atrás. No Sertão é fácil, porém estudá-la, pois ali a tradição é mais severamente conservada. A Música sertaneja se desenvolveu em torno dos ritmos que a tradição guardou. Não é ela penetrada de influências externas posteriores ao "período do pastoreio", continuando como uma sobrevivência arcaica coletiva que o povo mantém heroicamente. (Ibidem, p. 57)

Verdadeiramente popular é então o rural, mais especificamente o sertanejo:

primitivo, tradicional, e livre das influências externas. Critérios que excluem a cultura de

massa urbana recifense pela localização (litoral, próximo do porto, espaço de troca); e pela

ausência de originalidade e continuidade (corrompidas nos centros urbanos pela

miscigenação das culturas e pela rapidez das transformações). O Sertão se apresenta,

portanto, como cenário privilegiado para a coleta das matrizes estéticas favoráveis às

intenções armoriais. No entanto, o Armorial não preconiza a simples reprodução das

criações das artes populares, mas sua apropriação por artistas eruditos interessados na

construção de uma forma nacional:

Por um lado, estamos conscientes de que a Arte Armorial, partindo de raízes populares da nossa Cultura, não pode nem deve se limitar a repeti-las; tem de recriá-las e transforma-las de acordo com o temperamento e o universo particular de cada um de nós. Por outro lado, temos consciência de que, se conseguirmos expressar o que é nosso com a qualidade artística necessária, estaremos seguindo o único caminho capaz de levar à verdadeira Arte universal, aquela que, partindo do nacional, se universaliza pela boa qualidade. (Idem Ibidem, ps 62-63)

E neste trajeto do popular ao nacional, do nacional ao universal, uma unidade

intermediária é apreendida na categoria “povos castanhos da Rainha do Meio-Dia”. A

afirmação da proximidade entre os países da América Latina, deve-se tanto a uma posição

solidária em relação aos povos do Terceiro Mundo, quanto ao reconhecimento das

características estabelecidas pela colonização ibérica, instauradora das matrizes culturais

tão valorizadas por Suassuna. O escritor prega a busca do “espírito dos povos” na

formulação de políticas apropriadas a cada contexto sociocultural, o que o fez apontar, por

um bom tempo, a monarquia como modo mais adequado de organização para o Brasil, pois

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absorveria a estética das expressões populares tradicionais, e incorporaria o caráter afetivo

das relações sociais brasileiras.

O conceito de “socialismo cristão” também foi cunhado por Suassuna para explicar

sua filiação ao Partido Socialista Brasileiro, motivada pelo “sonho de justiça social que

existe desde os apóstolos”, com base “na fraternidade, na justiça e na liberdade” (Suassuna

In: Filho, 1993). Ao condenar a importação de modelos fundados em outras realidades ou

impostos pela dominação, apela para a associação dos povos subordinados:

Estamos conscientes ainda que, sendo fiéis ao Nordeste e ao Brasil, estamos sendo fiéis, também, à América Latina inteira, assim como à Etiópia ou à Índia, tão semelhantes a nós. É por isso que, em todo o nosso trabalho, tanto insistimos nessas raízes e nesse parentesco. Fazemos isso não porque reneguemos o que o Brasil tem de europeu, ou, mais precisamente, de mediterrâneo e ibérico: mas sim porque estamos convencidos de que somente fortalecendo aquele tronco cultural acima referido é que qualquer coisa que nos venha de fora passa a ser, em vez de uma influência que nos esmaga ou nos massifica num cosmopolitismo achatador e monótono, uma incorporação que nos enriquece. O Movimento armorial passará um dia, como é da natureza de qualquer movimento. (...) Mas, mesmo quando ele se extinguir como movimento, ficarão as obras armoriais que tiverem qualidade para resistir ao tempo, e ficará sua influência, seu rastro na Cultura brasileira. (Suassuna, 1974, p. 63)

Ariano Suassuna aparece então como principal articulador do Movimento Armorial.

Aglutina interesses comuns a uma geração de artistas nordestinos, identifica tendências e

promove um encontro de criação em torno dos signos da literatura de cordel. Numa

iniciativa de sensibilização dos artistas e do público, o Armorial realiza uma releitura do

universo popular, e funda uma nova poética. Mostra-se como uma referência estética

construída não como conceito, mas como “espírito”, e que, para além da permanência do

movimento enquanto organização, continua atuante em termos de linguagem artística. As

palavras do ator Antônio Nóbrega, um dos principais seguidores do “espírito armorial”,

confirmam essa leitura:

De lá para cá, além de ter feito espetáculos ligados a essa ideologia, tenho procurado refletir também o que é armorial, como o sinto hoje em dia. Uma das coisas mais interessantes que a cultura popular tem é essa faculdade de trazer para a gente a vivência do mito, do dionisíaco principalmente, do universo do feminino. Porque, se a gente olhar direitinho, toda arte do século XX teve um caminho muito conceitual. Uma arte em que há a primazia do intelecto (...) E nesse sentido, quando o Armorial fala em reinterpretar a cultura, está procurando recolocar o mito na vivência da arte. Isso para mim é de uma importância fundamental. (Nóbrega In: Lucas, 2002, p. 8)

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Podemos, a partir daí, tentar complexificar a abordagem da experiência armorial,

compreendendo-a como uma das práticas possíveis dentro do movimento contemporâneo

de revisão de categorias estéticas e reelaboração de estratégias políticas. Quando seus

princípios são transplantados por Ariano Suassuna para um projeto de intervenção na

produção cultural pernambucana na década de 1990, passam a atuar como instrumental

crítico de apreensão de um período de agudas transformações sociais. A perspectiva

armorial permitiu ao Secretário identificar o processo de pasteurização desencadeado pela

indústria cultural, sem deixar, porém, de crer na capacidade de resistência e possibilidade

de reativação da criação por meio de uma relação vital entre os artistas e as tradições. Para

Suassuna, estas dizem muito mais respeito a uma construção do presente do que a uma

recuperação do passado.

O foco central de seu trabalho está na reconhecida persistência de formas e valores

pré-capitalistas e na conseqüente crítica ao espírito teleológico da modernidade que

apresenta o tradicional como resquício de uma realidade agonizante e esfacelada, e entrave

ao progresso inevitável. Ou seja, como uma ordem decadente vista sob a emergência das

inquestionáveis transformações em curso. Suassuna apresenta o pré-moderno como

componente das relações civis e políticas no Brasil ainda hoje.

De maneira não conflituosa, a atuação do secretário se dá sob a lógica organizativa

unificadora dos movimentos culturais defensores do nacional-popular. Submete as

possibilidades de criação a paradigmas estéticos restritos, entendendo as diversidades

apenas como variações das formas de expressão da nacionalidade e limitando a ação

cultural da Secretaria ao âmbito da produção artística e da sensibilização do público. Enfim,

noções modernas como “Movimento”, “Arte”, “Nação” e “Estado” permanecem como

categorias direcionadoras de sua política.

Nesse sentido, uma breve menção à experiência proporcionada pela implementação

do projeto Acorda Povo pode contribuir para o esclarecimento das diferenças de atuação

geradas sob os termos de uma "cena cultural". Formulado por Renato L., a produtora Alê

Oliveira e os músicos da Nação Zumbi e da Devotos, o projeto foi realizado inicialmente

em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura do Recife, depois adotado pela

FUNDARPE – Fundação de Arte de Pernambuco, ligada à Secretaria Estadual. Consistiu

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numa programação diversificada e itinerante que levou oficinas de arte27, mostras de filmes

pernambucanos28 e shows de várias bandas e DJs29 para as periferias da Grande Recife30

entre os anos de 1999 e 2002. 31 Em seu catálogo de divulgação, os músicos das duas

bandas citadas assinam um texto introdutório onde narram os eventos dos quais

participaram:

E, assim, determinado espaço urbano quase abandonado ou mal aproveitado se transformava em ponto de encontro da coletividade, reavivando a memória do seu uso ou abrindo expectativas para o futuro próximo. Futuro que também acenava para grafiteiros, evangélicos, estilistas da terceira idade ou guitarristas de punk-rock recém saídos do primário, toda uma humanidade diversificada descobrindo ou revelando seu talento nas oficinas e nos shows. Uma prova a mais dos efeitos letais de duas armas poderosas contra a falta de esperança: Música e informação, combinadas na medida certa, devem estar sempre de andada pelas periferias desse mundo. (Acorda Povo, 2002)

A união dos promotores do Manguebit com os músicos da Devotos já aponta para

um esforço de traduzir as conquistas das movimentações culturais em mudanças sociais

concretas. Devotos é uma banda de hardcore formada por moradores do Alto José do Pinho,

comunidade do bairro de Casa Amarela – periferia do Recife – onde diversos grupos se

articularam desde a meados dos anos 80, em torno da chamada "cena do Alto". Para além

da promoção e divulgação das bandas envolvidas (onze, atualmente), os músicos do Alto

27 Moda, fotografia, pintura, desenho, grafitagem, reciclagem e dança. Ver: Carpeggiani, Schneider. “O Acorda Povo está maior e melhor”, Jornal do Commercio, Recife, 27/04/2001, Assumpção, Michelle. “Projeto Acorda Povo tem edição ampliada”, Diário de Pernambuco, Recife, 28/04/01, “Fique acordado para ver Devotos e Nação Zumbi”, Diário de Pernambuco, Recife, 05/05/2001, “Projeto leva arte para comunidades do Recife e Região Metropolitana”, Diário Oficial do Estado de Pernambuco, Recife, 27/09/2001.28 “Clandestina Felicidade”, de Beto Normal e Marcelo Gomes, “Simeão Martiniano”, de Hilton Lacerda e Clara Angélica, “Recife de Dentro Pra Fora”, de Kátia Mensel, “Maracatu, Maracatus”, de Marcelo Gomes, “O Velho, O Mar e O Lago”, de Camilo Calazans e vídeos como “A Perna Cabeluda” e “De Malungo pra Malungo” (Assumpção, 2001).29 Além das bandas citadas: “mundo livre s/a”, Mestre Ambrósio, Lia de Itamaracá, Faces do Subúrbio, Chão Chinelo, Querosene Jacaré, Eddie, Salvador Spider e a Incógnita Rap, Kaya na real, Supersonics, Bonsucesso Samba Clube, Comadre Fluorzinha, Matalanamão, Os Cachorros, Lula Quieroga, Testículos de Mary, Cascabulho, Jorge Cabeleira, Tânia Cristal Sistema X, Silvério Pessoa, Etnia, Hanagorik, Lamento Negro, Mônica Feijó, Dj Dolores e a Orquestra Santa Massa, Pra Mateuz Poder Dançar, Carranza, Mombojó Ragajá, A Ostenta, RDA, A Linha da Última Resistência, RMC, Erasto Vasconcelos, Cambio Negro HC, Distorção social, Vargas, LSD, Pindorama, Aborígenes, Junkers, Otto, Elite na Mira, Acauã, S Fardas, KZF, Dolores Del Fuego, El Matador, Ahuma, os DJs Bahiano, RenatoL, Jorge Du Peixe, Spider, Bruno Pedrosa, Alex, DJ Hum, Jacson Bandeira, Salvador, Rodrigo P-Funk, Lala K, Moacir Jacaré, Nutz, KSB, Tarzan, hd Mabuse, Fortex e Os Traficca (Acorda Povo, 2002).30 Neste caso: Recife, Olinda, Paulista, Jaboatão dos Guararapes, Camaragibe e São Lourenço da Mata.31 Entre outubro de 1999 e abril de 2000, sob a coordenação da administração municipal, e entre maio de 2001 e agosto de 2002, da administração estadual, ambas ocupadas pelo PSDB.

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José do Pinho se organizaram em prol do desenvolvimento da localidade fundando uma

ONG (Alto Falante) que conta com uma rádio comunitária e organiza eventos culturais e

oficinas de arte voltadas principalmente para crianças e adolescentes. No decorrer da

década de 90, um pouco devido à repercussão alcançada pelo Manguebit, a "cena do Alto"

ganhou notoriedade e tem sido citada pela imprensa pernambucana como exemplo bem

sucedido de associação entre arte e cidadania.32

Visando os mesmos resultados, os promotores do Acorda Povo reconhecem a

importância das favelas e periferias urbanas na configuração cultural da cidade e tomam

sua produção artística como meio de promoção social. Ao apontarem para a pluralidade do

público que atingiram, e para a possível efetivação da proposta de reversão da situação de

degradação local, evocam a força da criação enquanto intervenção transformadora,

distanciando-se do ideal de arte como vocação e utilizando suas linguagens como forma de

atuação política e meio de realização do desenvolvimento comunitário autônomo. 33 Neste

caso, a relação estratégica dos mangueboys com o Estado é explicitada por Lúcio Maia,

guitarrista da “Nação Zumbi”:

A partir do momento que a gente começou a ter um poder dentro de um jornal, digo não a gente da Nação Zumbi somente, mas a cena como um todo, inclusive toda a galera que começou a receber um respaldo da mídia, então os Governos não ficariam para trás, sabendo que há um poder de massa nesses veículos. (...) Então acho que se estou fazendo da minha forma, vendendo um conceito para as pessoas que estão na gestão e eles o bancam, fazendo do jeito que quero para quem eu quero... (...) No Acorda Povo dissemos de A a Z como queríamos que fosse feito o festival e o Governo só fez acrescentar, ajudando, ao invés de 10 bandas, contrataram-se 20. Tudo ficou nas nossas mãos. Acho essa a forma mais legal de agir. Ao mesmo tempo temos o respeito do pessoal do PT, do PFL, do PMDB etc. (Maia In: Belém, www.vitrolazwebzine.com.br)

32 No entanto, tal experiência não pode ser abarcada pela idéia de um movimento unificado da juventude recifense, já que, como apontou Canibal, vocalista e baixista da Devotos: "Não vejo mangue como um movimento, mas apenas uma movimentação de banda de vários estilos. Não dá para rotular grupos por estarem no mesmo contexto social e temporal (...) Nós acompanhamos a história, mas não fazemos parte dela" (Canibal In: Myra, 1999). Sobre a cena cultural do Alto José do Pinho, ver a dissertação de Ana Maria Ezcurra (Escurra, 2002) “As fugas musicais”: a movimentação das bandas do Alto José do Pinho, que analisa a relação de cooperação entre as bandas, a criação de laços de solidariedade comunitários e as formas de atuação políticas fundadas a partir da articulação entre arte e cidadania.33 Paulo César Menezes Teixeira (Teixeira, 2002), na dissertação “Um passo à frente e você já não está mais no mesmo lugar”: A geração mangue e a (re) construção de uma identidade regional, estuda as conexões entre o considerável desenvolvimento tecnológico contemporâneo e o surgimento de novas práticas sociais, manifestações culturais e formas de participação política. Apresenta um histórico dos processos de construção de identidades regionais e nacionais no Brasil e identifica o caráter das reformulações propostas pelos atores sociais identificados como “geração mangue”, que agiram por meio da desarticulação dos modelos tradicionais de identificação cultural e intervenção social.

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Podemos reforçar aqui a idéia de que a rejeição conservadora das inovações

apresentadas pelo Manguebit se reverteu em apoio político devido à repercussão pública

alcançada pela cena. Tudo ainda dentro da mesma lógica estatal de garantir o respaldo

popular pela afirmação de intenções democratizadoras. A atuação dos mangueboys se dá

novamente pela via do aproveitamento das brechas dos sistemas e pelo desligamento em

relação às ideologias partidárias, já que se centram em propostas objetivas e direcionadas,

reivindicando a atenção pública aos interesses expressados pelos próprios cidadãos,

independente das forças políticas que ocupem o poder.

No entanto, mesmo que reconheçamos os riscos políticos apresentados por tamanha

flexibilidade (e eles não são poucos), o caráter plurideológico desta experiência de

movimentação social não implica ausência de ideais comuns, ao contrário, permite que a

leiamos como uma crítica tanto ao sistema capitalista quanto às propostas socialistas de

organização, na medida em que extrapola as referências de classe, identificando várias

outras formas de opressão e fundando novos meios de subversão.

Não nos seria possível, nos limites deste trabalho, avaliar o alcance real do projeto,

nem identificar os resultados palpáveis de suas atividades. Porém, parece lícito reconhecer

que, agindo sobre a formação cultural da população, o Acorda Povo denunciou as relações

de dominação atuantes neste âmbito e, para além da participação política, reivindicou a

emancipação social e pessoal dos moradores das periferias, apontando para algumas

possibilidades de transformação concretas e imediatas. Ou seja, sem perder de vista as

utopias de reconstrução social, seguiram o caminho traçado pelo que Boaventura Santos

identificou como “novos movimentos sociais”, já que, ao intervirem na rotina das

comunidades, oferecendo o instrumental necessário para conquista de autonomia, visaram

“transformar o cotidiano das vítimas da opressão aqui e agora e não num futuro longínquo”

(Santos, 2001, p. 259).

Devemos, então, firmar nossa compreensão de que diferentes concepções de

organização e atuação cultural implicam projetos políticos diversos. Projetos traçados em

meio aos conflitos fundados pelo contexto contemporâneo. As variadas noções de popular

aparecem em nossa análise como viés particularizador das experiências abordadas. No caso

do Acorda Povo, evoca-se uma população plural e atuante, localizadas nas periferias do

planeta, e ansiosas pelo poder de intervenção. O Projeto Cultural Pernambuco - Brasil

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define o popular por uma unidade estética e simbólica e submete a participação à proposta

de resistência nacional. Esta compreensão foi alcançada por meio da análise de

interconexões culturais, que poderão ser melhor apreendidas através da interpretação das

imagens e símbolos articulados por Chico Science e Ariano Suassuna em suas construções

estéticas.

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