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1 Ensino de História e Direitos Humanos: em busca de uma prática de aprendizagem libertadora “As crianças logo se afeiçoam a quem lhes quer bem e leva a sério suas pequenas questões e até mesmo seus caprichos. E o que são caprichos, senão sua vontade e seu sentimento que buscam se afirmar e desenvolver em confronto com a vontade e os sentimentos dos maiores? E, se estes não compreendem isto e recorrem muitas vezes às pancadas e às intimidações autoritárias, só conseguem tornar hipócritas as crianças e amargurá-las sem razão. 1 A atual concepção dominante em torno da prática pedagógica do professor de História pressupõe um conhecimento anterior ao espaço escolar, no qual deve ser simplesmente aplicado. Mesmo parte das pesquisas sobre Ensino de História corrobora com essa concepção, na medida em que privilegia a investigação da atuação do professor em detrimento da sua relação com os estudantes. “A didática da história, por muito tempo, não era considerada parte integrante da disciplina especializada história”, mas apenas como aplicação pedagógica, referente apenas ao uso externo do saber histórico. 2 Se nosso foco específico é a prática pedagógica do professor, não podemos deslocá-la da sua relação intrínseca com os estudantes. O professor tem suas preocupações, angústias externas a sala escolar, e mesmo certa formação profissional que o guia para esta ou aquela escolha naquele espaço. Mas será a sua relação com os estudantes, a priori, que o formará como profissional da educação. A sociedade concebe profissionais que exercem o papel de professores para que no espaço escolar aprendam e ensinem certas áreas de conhecimento (as quais estão em permanente disputa). A escola existe para os estudantes e com eles devemos construir uma relação horizontal, de respeito mútuo e admiração. Os professores não são admirados pelos estudantes se não os admiram, se não os percebem como parte mais 1 GRAMSCI, Antonio. Cartas do Cárcere, V.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Pág 313 2 RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórica. Brasília, UNB, 2010. Pág. 11

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Ensino de História e Direitos Humanos: em busca de uma prática de aprendizagem libertadora

“As crianças logo se afeiçoam a quem lhes quer bem e leva a sério suas pequenas

questões e até mesmo seus caprichos. E o que são caprichos, senão sua vontade e seu

sentimento que buscam se afirmar e desenvolver em confronto com a vontade e os

sentimentos dos maiores? E, se estes não compreendem isto e recorrem muitas vezes às

pancadas e às intimidações autoritárias, só conseguem tornar hipócritas as crianças e

amargurá-las sem razão.1”

A atual concepção dominante em torno da prática pedagógica do professor de

História pressupõe um conhecimento anterior ao espaço escolar, no qual deve ser

simplesmente aplicado. Mesmo parte das pesquisas sobre Ensino de História corrobora

com essa concepção, na medida em que privilegia a investigação da atuação do

professor em detrimento da sua relação com os estudantes. “A didática da história, por

muito tempo, não era considerada parte integrante da disciplina especializada história”,

mas apenas como aplicação pedagógica, referente apenas ao uso externo do saber

histórico.2”

Se nosso foco específico é a prática pedagógica do professor, não podemos

deslocá-la da sua relação intrínseca com os estudantes. O professor tem suas

preocupações, angústias externas a sala escolar, e mesmo certa formação profissional

que o guia para esta ou aquela escolha naquele espaço. Mas será a sua relação com os

estudantes, a priori, que o formará como profissional da educação.

A sociedade concebe profissionais que exercem o papel de professores para que

no espaço escolar aprendam e ensinem certas áreas de conhecimento (as quais estão em

permanente disputa). A escola existe para os estudantes e com eles devemos construir

uma relação horizontal, de respeito mútuo e admiração. Os professores não são

admirados pelos estudantes se não os admiram, se não os percebem como parte mais

1 GRAMSCI, Antonio. Cartas do Cárcere, V.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Pág 313

2 RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórica. Brasília,

UNB, 2010. Pág. 11

2

fundamental da escola. Nossa prática de aprendizagem deve ter esse horizonte de ação:

aprender com os estudantes como ensinar, ensinar com os estudantes como aprender.

Mesmo que o professor exerça certo papel na sala escolar, e outras dezenas de pessoas

exerçam o papel de estudantes, esta relação professor-estudantes não é estática, e em

diversos momentos torna-se estudante-professores, na medida em que, de forma ativa e

de maneiras diretas e indiretas, os estudantes ensinam ao professor como deveria ser a

sua prática de aprendizagem.

Entretanto, muitos daqueles que exercem o papel de professor na sala escolar

sequer percebem esta relação de aprender com os estudantes como ensinar. Não se

colocam no papel daqueles que devem aprender a aprender, não tentam decifrar o que

os estudantes querem falar através de seus textos, atitudes ou desobediência a certas

regras de controle sobre a juventude no espaço escolar.

Nem tudo que o professor diz é límpido: a linguagem traz consigo um

emaranhado de signos e símbolos, especialmente no espaço escolar, que detém certas

normas comportamentais próprias. Um gesto, o tom de voz ou mesmo um olhar pode

ser entendido, de forma relacional, de certa maneira no ambiente escolar, e de outra fora

daquele local (o mesmo pode ser pensado para a sala escolar). E para os estudantes não

é diferente. Até que ponto os professores propõem-se a tentar entender o que os

estudantes dizem através das suas palavras, textos, gestos e ações? Acreditamos que

essa tentativa de compreensão é um dos pilares centrais na construção de uma prática de

aprendizagem voltada para a libertação mútua dos professores e estudantes de uma

sociedade baseada no lucro e não na vida. Uma pedagogia da liberdade que se propõe a

ser uma construção coletiva. Uma aprendizagem relacional, que encara os desafios da

prática de ensino com alegria humildade e perseverança.

Uma dos paradigmas fundamentais deve ser a maneira pela qual aprendemos a

ensinar. Infelizmente devido a certa concepção que privilegia a pesquisa histórica

restrita, que desloca a investigação da sua prática de aprendizagem, muitos dos

profissionais de história não constroem uma formação ampla. Mantêm-se restritos a

pesquisa no âmbito da história, e não se dedicam a reflexão sobre sua prática de

3

aprendizagem, mesmo que esta prática seja apenas a redação de um texto para que esse

seja mais compreensível para o leitor. Como nos diz RÜSEN, um ponto de vista

decisivo para a práxis historiográfica é:

“(…) a relação com os destinatários, com o público-alvo. (…) Refletir sobre o uso prático do saber histórico é um requisito da ciência da história. (e é uma exigência aos especialistas, para que não confundam o fundamento de sua ciência na vida como uma torre de marfim perdida no espaço). Deve-se investigar, explicitar e fundamentar os pontos de vista e os princípios particulares que se aplicam ao uso pratico do saber histórico. A relação com a vida, inerente à práxis cientifica mesma, precisa ser refletida3”

A maneira que escrevemos revela nossa concepção de História; seja através de

uma visão que se diz mais próxima do leitor através de elementos próprios da “narrativa

literária” (muitas vezes ligada ao oportunismo metodológico que deseduca), ou mesmo

aquela que escrevinha preocupada com termos “inéditos” e como estes poderão disputar

o mercado das ideias editoriais.

Uma escrita da História mais próxima dos seus interlocutores deve pensar o

científico e o artístico de maneira complementar, na medida em que certas

afirmativas/indagações são tão amplas e complexas que necessitam de uma busca no

fundo do gênero humano, através de suas inquietudes e criatividades, próprias da arte

que humaniza e do lúdico que aproxima. Nesta perspectiva os conceitos não são meras

“caixas” que resumem frases, mas um movimento relacional e dinâmico, o qual utiliza

as cores vivas da criatividade humana como sua expressão.

No interior de uma práxis pedagógica voltada para a liberdade, um dos

pressupostos do aprender a ensinar deve ser a construção de uma relação horizontal

entre professor-estudante. Esta relação horizontal deve se basear na fé sincera de que

devemos construir nosso ensinar através do aprendizado realizado com os estudantes.

Esta concepção torna-se vazia, apenas uma atitude “pedagogicamente correta”, sem uma

verdadeira crença na potencialidade criadora dos estudantes na construção de novos

saberes. Como nos diz Paulo Freire:

3 RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórica. Brasília,

UNB, 2010. Pág. 15

4

“A auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Os homens que não tem humildade ou a perdem, não podem aproximar-se do seu povo. (...) Não há também diálogo, se não há uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e de se refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens. (...) Sem esta fé nos homens o diálogo é uma farsa. Transforma-se, na melhor das hipóteses, em manipulação adocicadamente paternalista. Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um pólo no outro é conseqüência óbvia.4”

Para consolidação de uma relação horizontal entre professor-estudantes é

necessária também a busca permanente da superação de hierarquias e autoritarismos.

Em diversos momentos, profissionais da educação confundem a manutenção de

autoritarismo como um princípio necessário para a disciplina na construção de

conhecimentos na escola. Uma via de mão-única, que relaciona o fim do autoritarismo

com o aumento da indisciplina e da desordem. Para esta concepção a sala como espaço

deve ser quieta, com um ser que emite o conhecimento, e outros que o absorvem, e

quando necessário, pedem para que o ser capacitado explique, e, portanto, possa nutrir o

aluno com muitas lições e retirá-lo da “escuridão da burrice”. Uma verdadeira sala de

aula na qual um fala e outros ouvem, e não uma sala de aprendizagem, na qual se

constrói o conhecimento coletivamente. Como sinalizou Luckesi em uma entrevista:

“(...) vamos substituir o nome “aluno” por estudante ou educando. O termo aluno, segundo os filólogos, vem do verbo alere, do latim, que significa alimentar; porém, existe uma forma de leitura desse termo mais popular e semântica do que filológica que diz que “aluno” significa “aquele que não tem luz” e que teria sua origem também no latim, da seguinte forma: prefixo “a” (=negação) e “lummen” (=luz). Gosto dessa segunda versão, certamente, não correta do ponto de vista filológico, mas verdadeira do ponto de vista da prática cotidiana de ensinar. Nesse contexto de entendimento, agindo com nossos educandos como seres “sem luz”, só poderemos praticar uma pedagogia depositária, bancária..., como sinalizou o prof. Paulo Freire. Nunca uma pedagogia construtiva.5”

Dessa maneira, é necessário que pensemos a aprendizagem como una, ou seja,

integral, universal e indivisível, que tenha como objetivo congregar forma/conteúdo. A

separação entre forma e conteúdo é meramente analítica, já que no real, o todo é um

concreto complexo e denso, definido por múltiplas determinações.

4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra,. 1987. Pág. 39

5 Entrevista Aprender a Fazer, publicada em IP – Impressão Pedagógica, publicação da Editora Gráfica

Expoente, Curitiba, PR, nº 36, 2004, p. 4-6.

5

Poderíamos acreditar que a prática de aprendizagem tem maior relação com a

“forma”, o “jeito” ou moldagem do “conteúdo” a ser “ensinado”. Entretanto, ao

modificar a “forma”, o “conteúdo” também se modifica no real: o conhecimento é

reconstruído coletivamente na escola, e torna-se qualitativamente diferente daquele

anteriormente construído, seja na mente do professor, nas formulações teóricas

acadêmicas, ou mesmo no que está redigido no livro didático.

1.1 Conhecimento histórico, praticidade e mobilização

“Na verdade, nada me irrita mais do que a “veleidade” que suplanta a vontade

concreta; me irrita nas pessoas que me são indiferentes sentimentalmente e considero

“inúteis”; me dói nas pessoas que não me são indiferentes e que não quero nem posso

julgar utilitariamente, mas gostaria de estimular e despertar. Conheci, especialmente

na Universidade, muitos tipos veleidosos e acompanhei seu projeto tragicômico de

vida (...) Em minha opinião, deve-se ser sempre muito prático e concreto, não sonhar

de olhos abertos, estabelecer fins razoáveis, factíveis, e pensar neles com todas as

condições que, só elas, os tornam realizáveis; deve-se ter, pois, uma perfeita

consciência dos próprios limites, mesmo que se queira ampliá-los e aprofundá-los”6.

Como poderíamos sensibilizar os estudantes, construindo conhecimento sobre a

sociedade de forma compreensível e mobilizadora?

A escola existe para os estudantes. São eles os agentes fundamentais e

prioritários de qualquer atividade político-pedagógica. Mas, no cotidiano, são

pouquíssimos os espaços nos quais os estudantes podem, em conjunto com os

professores, formular o currículo, a prática de aprendizagem e ter maior abertura para

concretizar, no abstrato, suas visões sobre a realidade.

Uma prática de aprendizagem comprometida com os ideais de transformação

social não pode desconsiderar o papel protagonista dos estudantes. Eles não são meros

absorvedores do conhecimento pré-produzido pelo professor. Os professores constroem

em conjunto com os estudantes o conhecimento em sala. Alguns defendem a ideia que

devemos “deixar os estudantes falarem para que nós possamos ouvi-los”; entretanto, é

mais do que isso: os estudantes devem ter papel de decisão conjunta nas atividades

6 GRAMSCI, Antonio. Cartas do Cárcere, V.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Pág 403.

veleidade s. f. 1. Vontade imperfeita. 2. Intenção fugitiva. 3. Fantasia; capricho; utopia; volubilidade.

6

político-pedagógicas do ambiente escolar. Os construtores da escola precisam se pensar

e repensar, tendo em vista que não apenas o professor deve ser o “responsável” por

“fazer e acontecer”, como solucionador de todos os problemas.

O professor tem uma função específica sendo coordenador da produção de

saberes e de conhecimento através da sua criatividade ousada. Como podemos articular

diversos saberes históricos, pedagógicos e de experiência empírica?

Precisamos valorizar nossa experiência, já que o professor cria métodos através

da experiência prática. Mobiliza o conhecimento em diversos níveis de abstração e

complexidade, de forma não pulverizada e universalizante, buscando sistematizar uma

metodologia da aprendizagem voltada para os desafios do nosso tempo. Ao contrário da

visão negativa da docência que faz parte do cotidiano da academia (refletindo a visão

hegemônica conservadora da sociedade), defendemos que o saber escolar tem sua

cientificidade própria, pois parte de hipóteses, empiricidade, formulação de teses,

análise e síntese. Dessa maneira, a didática não é algo “externo” a história, mas faz parte

do seu estatuto epistemológico:

“Está a difundida noção atual (e não é de hoje), aparentemente indestronável, de que a didática é alguma coisa completamente externa à historia como ciência. Ela se ocuparia da aplicação e da intermediação do saber histórico, produzido pela história como ciência, em setores do aprendizado fora da ciência. Os didáticos seriam transportadores, tradutores, encarregados de fornecer ao cliente ou à cliente – comumente chamado de “aluno” ou “aluna” - os produtos científicos. A didática relacionar-se-ia com o saber histórico produzido cientificamente como o marketing se relaciona com a produção de mercadorias”7.

Uma visão ampla, contestadora, e não conteudista da construção do

conhecimento em história na escola faz parte de nossa concepção do que é a ciência

histórica e de qual é sua função social. Não separamos a “História ciência” da “História

escolar”: existe apenas a História que em sua metodologia de análise e síntese tem em

seu âmago a aprendizagem.

7 RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórica. Brasília,

UNB, 2010. Pág. 75

7

Como nos diz Paulo Freire, os estudantes chegam à escola já com uma

concepção de mundo própria, formada pelos diversos espaços que constituem sua vida.

Um dos mais fundamentais é o espaço familiar:

“As relações pais-filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as condições objetivo-culturais da totalidade de que participam. E, se estas são condições autoritárias, rígidas, dominadoras, penetram nos lares e incrementam o clima de opressão. Quanto mais se desenvolvem estas relações entre pais e filhos, tanto mais vão os filhos, na sua infância, introjetando a autoridade paterna. (...) Crianças deformadas num ambiente de desamor, opressivo, frustradas na sua potência, como diria Fromm, se não conseguem, na juventude, endereçar-se no sentido da rebelião autêntica, ou se acomodarem numa demissão total do seu querer, alienados à autoridade e aos mitos que lançam mão esta autoridade para formá-las, ou poderão vir a assumir formas de ação destrutiva”8 .

A demissão do seu querer íntimo e a construção de novos mitos através da “vida

fácil”, da conquista “mágica” do sonho de jogadores de futebol, modelos e artistas (a

sociedade do espetáculo e de suas celebridades); celulares e roupas que demonstram

status e inserção de certo padrão social “aceitável”, como também a socialização através

da degradação de diversos princípios morais como o respeito à vida e ao outro, além da

glorificação do dinheiro e dos bens materiais. Ao contrário do que pode parecer, esta

concepção da “livre escolha” baseada na valorização do dinheiro e dos bens materiais, e

do desrespeito perante as diferenças e aos outros (traduzida pela padronização das

roupas, músicas e linguagem), não é puro símbolo de liberdade total: é a internalização

do padrão das classes dominantes, o qual grande parte dos estudantes segue de forma

obcecada. Subordinados a ditadura do pensamento único de que não devem pensar (pois

não são capazes), acreditam que cidadania é sinônimo de coisificação e inserção no

mercado, seja tornando-se uma mercadoria no mercado de força de trabalho (“apenas

são pessoas aqueles que têm emprego, quem não tem emprego é fracassado e culpado

pela sua derrota”), seja através da compra de mercadorias que transferem valor a sua

identidade humana-cifrão (“quanto mais valor-de-troca, mercadorias e dinheiro

demonstro ter, mais inserido e aceito sou”).

8 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra,. 1987. Pág. 74. Grifos nossos.

8

Os estudantes não escolhem estes padrões: são esmagados através de sua

imposição. Muitos resistem de forma difusa e sofrem com sua existência. Participar de

um padrão tão rígido é uma agressão ao corpo, à mente e à vida da juventude; mas os

jovens constroem esta forma de “aprendizado” também na sua experiência escolar:

“Esta influência do lar se alonga na experiência da escola. Nela, os educandos cedo descobrem, como no lar, que para conquistar alguma satisfação, tem de adaptar-se aos preceitos verticalmente estabelecidos. E um destes é não pensar.9”

Acreditamos que devemos construir outra forma de experiência no espaço

escolar. Ao invés de tornar a escola simples reprodutora, sem contradições, dos modelos

dominantes de segregação/padronização de identidades e sociabilidade, a produção de

conhecimento e da vida dos participantes da comunidade escolar deve estar intimamente

ligada à uma praticidade crítica. Um conhecimento que abarque as demandas do

cotidiano, que tenha funcionalidade na vida da juventude e da comunidade escolar em

geral, e que se proponha a superar, através da mobilização de saberes, práticas e ideais,

todas as formas de opressão, exploração, e discriminação. Sem uma preocupação clara

com sua influência na vida prática, na vida que existe e sentimos com nosso corpo e

coração, a história perde seu sentido, torna-se apenas um apanhado de afirmações sobre

um passado sem relação com propostas de futuro. Uma concepção de História sem cores

vivas, calcada em uma percepção do mundo individualista e desumanizadora:

“O efeito sobre a vida prática (mediado seja como for) é sempre um fator do processo do conhecimento histórico, de tipo fundamental, e deve ser considerado parte integrante da matriz disciplinar da ciência da história. Esse efeito pode estar baseado em intenções mais ou menos conscientes dos historiadores, mas o está também nas expectativas, desafios e incitamentos que experimentaram no contexto social de seu trabalho.10”

Nossa concepção de história, portanto, tem em seu estatuto epistemológico uma

relação direta com a possibilidade de, através da metodologia e critérios próprios das

ciências humanas, buscar uma relação com o cotidiano do senso-comum de forma

crítica, em direção a uma prática de aprendizagem libertadora. Trabalhar numa linha

9 Idem, ibidem. Pág 74

10 RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórica. Brasília,

UNB, 2010. Pág. 86

9

afirmativa de que existem os saberes próprios dos construtores da escola, isto é, temos

nossa própria forma de produzir conhecimento.

Entretanto, os profissionais da educação são contestados por uma concepção

conservadora que defende que não existe nenhuma especificidade na condução,

instigação, e sistematização da produção de conhecimento nas escolas, o que geraria a

não necessidade de uma formação própria. Defende-se uma prática “fantástica” e

“tecnológica”, que resolveria por si só, de fora e externamente ao ambiente escolar,

“todos os problemas”. Os gestores e secretários de educação, especialistas de uma visão

economicistas e produtivista da educação teriam todas as soluções que devem ser

aplicadas pelos professores nos estudantes. Pensamos, ao contrário, que nossa

concepção de história será cada vez mais fortalecida na medida em que os estudantes,

ao lado dos profissionais da educação, decidam os rumos político-pedagógicos da

escola, que aprendam em união a superar seus problemas íntimos e coletivos. Uma

história de perspectiva humanizadora baseada na cultura de direitos e da defesa da vida

em plenitude.

1.2 Ensino de História e Educação em Direitos Humanos

“(...) me parece que toda a nossa vida é uma luta para nos adaptarmos ao ambiente,

mas também, especialmente, para dominá-lo e não nos deixarmos esmagar por ele. (...) Um

erro que se comete habitualmente na criação dos meninos e meninas me parece o seguinte

(pense em você mesmo e depois julgue se estou certo): não se percebe que, na vida deles,

existem duas fases muito distintas, antes e depois da puberdade. Antes da puberdade, a

personalidade da criança ainda não se formou e é mais fácil guiar sua vida e fazê-la adquirir

determinados hábitos de ordem, de disciplina, de trabalho: depois da puberdade, a

personalidade se forma de modo impetuoso e torna intervenção alheia se torna odiosa, tirânica,

insuportável. Na verdade, o que acontece é que os pais sentem a responsabilidade em relação

aos filhos exatamente neste segundo período, quando é tarde: então, naturalmente, entra em

cena o porrete e a violência, que, no fim das contas, dão bem poucos frutos. (...) Tenho a

impressão de que as gerações mais velhas renunciaram a educar as gerações mais jovens e

estas cometem o mesmo erro; o fracasso gritante das velhas gerações se reproduz tal qual na

geração que agora parece dominar. Pense um pouco no que escrevi e reflita se não é

necessário educar os educadores!11”

Encontramo-nos numa conjuntura histórica de fortalecimento de uma visão

regressiva em torno dos direitos fundamentais do ser humano. Chamada especialmente

11

GRAMSCI, Antonio. Cartas do Cárcere, V.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Pág 440

10

na década de 1990 de “Globalização”, as políticas neoliberais acentuaram seu caráter

repressor e de aprofundamento de retirada de direitos, tanto do ponto de vista formal

através da mudança da legislação, quanto do “real” através da difusão no senso-comum

de uma cultura conservadora que valoriza a lógica do lucro, da padronização, das

opressões e da exploração humana.

Do ponto de vista das relações sociais, a moral burguesa dissemina visões de

mundo egoístas, individualistas, competitivas e alienantes que são internalizadas por

segmentos expressivos da sociedade civil em nosso país. É este senso-comum que

viabiliza e apoia, seja de forma ativa ou passiva, a lógica de retidas de direitos atual.

Em tempos de crise, certos direitos se tornam meramente formais, e as

economias se livram dos produtos e das pessoas excedentes e indesejáveis.

A crise que se apresenta hoje não é apenas a crise econômica que tanto é

noticiada pelos veículos de comunicação: é um conjunto de crises, estruturais, sociais,

ambientais, as quais culminam numa verdadeira crise humanitária.

Esta crise de civilização resulta em uma avassaladora escalada de violência. O

Estado assume caráter cada vez mais mínimo nas políticas verdadeiramente públicas, e

mostra sua face de Estado Máximo no que tange à repressão e controle sobre a

sociedade.

Incursões militares nas favelas, tortura, execução de inocentes, e chacinas, são

exemplos corriqueiros do que podemos chamar de criminalização da pobreza. O

panorama da violência se agrava com a expansão do crime organizado e domínio das

milícias, frutos da corrupção generalizada e política equivocada das polícias. Outro

perverso elemento compõe este cenário: a crise do sistema prisional e as constantes

violações de direitos humanos. Os números oficiais nacionais existentes sobre violência

confirmam que são os jovens as maiores vítimas da violência no Brasil. Isto se

manifesta ainda mais no caso dos homicídios.Entretanto, precisamos ressaltar duas

questões: um cuidado a ser tomado é o de não criminalizar o jovem brasileiro. Os

jovens estão mais presentes não só entre agressores, mas também entre as vítimas no

11

mundo todo. Estudos apontam, porém, que a criminalização precoce, com políticas de

repressão focadas especialmente nos jovens, tende a aumentar ainda mais a violência12.

Outra questão diz respeito à sobrevalorização dos adolescentes como autores de

crimes violentos. Os números mostram que isto não corresponde à realidade. O que

ocorre, no geral, é uma maior exposição na mídia de episódios violentos envolvendo

adolescentes, o que leva a sociedade a acreditar que estes estão mais violentos. Este

movimento muitas vezes é associado à defesa de mais ações penalizadoras contra os

jovens.

Segundo os dados do Sistema de Informações de Mortalidade do Sistema

Únicode Saúde (SIM/SUS), as mortes por homicídios entre os jovens de 15 a 29 anos

passaram da média anual de 24,8 mil, entre 1999 e 2001, para 27,2 mil, entre 2004 e

2006, número que consiste em 37,5% de todas as mortes juvenis neste período mais

recente. Quanto à violência não letal, os jovens também são as maiores vítimas. Um

levantamento realizado pelo Ministério da Justiça (MJ) com as ocorrências registradas

pelas Polícias Civis dos estados indica que, em 2005, o grupo de 18 a 24 anos foi a

maior vítima não apenas dos casos de homicídio doloso (47,4 ocorrências por 100 mil

habitantes), mas também das lesões corporais dolosas (514,8 por 100 mil), das

tentativas de homicídio (38,1 por 100 mil), da extorsão mediante sequestro (0,8 por 100

mil) e do roubo a transeunte (333,8 por 100 mil); já os jovens de 25 a 29 anos

apareceram como as maiores vítimas dos furtos a transeunte (260 por 100 mil) e do

roubo de veículo (32,7 por 100 mil), enquanto os adolescentes de 12 a 17 anos foram as

maiores vítimas de estupro (35,4 por 100 mil) e de atentado violento ao pudor (10 por

100 mil). Ou seja, a juventude está sendo cada vez mais vítima de uma política de

segurança pública baseada no conflito armado e na repressão física13.

Em 2008, ano mais recente com dados disponíveis de pesquisa, a juventude de

15 a 24 anos representava 18,3% da população, mas o número de jovens assassinados

12

CASTRO, Jorge Abrahão de Castro; AQUINO, Luseni Maria C. de & ANDRADEm Carla Coelho de.

Juventude e políticas sociais no Brasil. Brasília: IPEA, 2009. Pág 193 13

Idem, Ibidem. Pág 200.

12

(18.321) correspondeu a 36,6% do total de homicídios no país. O Estado do Rio de

Janeiro tem uma taxa de assassinato de jovens de 72,5 para cada 100 mil habitantes.

A escola e os profissionais da educação que nela trabalham sofrem diretamente

com o aumento da repressão em relação à juventude. A banalização da violência se

reflete no ambiente escolar com o desrespeito ao profissional e a desvalorização do

magistério. Além disso, grande parte das escolas encontra-se em áreas consideradas

mais violentas, atingindo diretamente o profissional da educação. Não destacamos

apenas os tiroteios e o risco de morte cada vez mais crescente, mas a construção de um

“ambiente tenso e vigilante”, no qual “todos são suspeitos”. Uma pedagogia cada vez

mais autoritária e repressora. Os profissionais, contra a sua vontade, tornam-se parte da

reprodução de uma visão de mundo baseada na violência enquanto resposta à própria

violência. A escola e seus profissionais são, portanto, também vítimas da política de

violência contra a juventude.

Acreditamos que uma sociedade segura é aquela que desenvolve a capacidade

da cultura de direitos. E isso não se faz com armas ou com mais instrumentos de

controle sobre a sociedade; ao contrário, quanto mais se investe nestas políticas é

porque se busca repressão e se perde liberdade.

Estima-se que 16 milhões de armas de fogo estejam em circulação no Brasil –

metade delas ilegalmente. Dessas, apenas 2 milhões estão com as forças de segurança

estatal. Ou seja, 14 milhões de armas estão nas mãos de civis. Pelo menos uma das

armas usadas na tragédia em Realengo pertencia a civis. Foi roubada há mais de uma

década da casa de uma família e agora foi usada para matar 12 crianças e adolescentes e

ferir mais uma dezena, viabilizando ainda um suicídio14.

Segundo uma pesquisa realizada na PUC-RJ, para cada 18 armas apreendidas,

uma pessoa deixa de ser morta a tiros. Ainda de acordo com o estudo, as armas em

circulação no estado do Rio representam 5,7% do total de armas em posse de civis no

14

BANDEIRA, Antônio Rangel. “Arma é problema de sociedades arcaicas”. Entrevista. Sítio Comunidade

Segura. http://www.comunidadesegura.org/pt-br/MATERIA-arma-e-problema-de-sociedades-arcaicas

(acessado em 27/8/2011)

13

Brasil sendo que 40% delas são ilegais. Das armas apreendidas no nosso estado, 75,3%

são armas curtas (revólveres e pistolas) e 79,6% são de uso permitido. Os calibres .38 e

.32, justamente as armas usadas pelo atirador de Realengo, representam 52%. Quase

70% das armas que circulam no país são de fabricação nacional, o que reforça a

necessidade do controle interno, e desmistifica o debate sobre as fronteiras, que em

muitas vezes é utilizada para justificar o aumento das armas ilegais15.

Os profissionais da educação não podem mais ser vítimas de uma política de

segurança baseada na violência: queremos construir uma sociedade baseada no bem

comum e no respeito à dignidade como princípios pedagógicos. Não queremos uma

pedagogia da repressão, queremos uma pedagogia da liberdade. Queremos superar o

senso-comum que rotula grande parte dos estudantes como os “perdedores”,

“descartáveis”, os quais não têm “direito a ter direitos” 16. Como afirma Candau, a

educação em Direitos Humanos tem que afirmar uma nova cultura que penetre em todas

as práticas sociais:

“(...) e seja capaz de favorecer processos de democratização, de articular a afirmação de direitos fundamentais de cada pessoa e grupo sociocultural, de modo especial os direitos sociais e econômicos, com o reconhecimento dos direitos de diferença”17.

Nesta concepção ampla de direitos humanos, conceitos como democracia e

liberdade são parte integrante de seu escopo de análise, não se tornando meras etiquetas,

mas parte de todo teórico-prático. Uma práxis que reafirma a possibilidade da diferença

e se propõe a superar a desigualdade:

“Não se deve opor igualdade à diferença. De fato, igualdade não está oposta à diferença, e sim, à desigualdade. Diferença não se opõe à igualdade, e sim à padronização, à produção em série, a tudo o “mesmo”, a “mesmice”. O que estamos querendo trabalhar é, ao mesmo tempo, negar a padronização e lutar contra todas as formas de desigualdades presentes na nossa sociedade. Nem padronização, nem desigualdade” 18.

15

CERQUEIRA, Daniel Ricardo de Castro. Causas e Consequencias do Crime no Brasil. Tese de Doutorado

do programa de Pós-graduação em Economia da PUC-Rio. Rio de Janeiro: PUC-RIO, 2010 16

CANDAU, Vera Maria. A configuração de uma educação em Direitos Humanos. In: SILVEIRA, Rosa

Maria Godoy, et al. Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa:

Editora Universitária, 2007. Pág 399 17

Idem, ibidem. Pág 400 18

Idem, ibidem. Pág 400

14

Dessa maneira, a Educação em Direitos Humanos parte de princípios formais,

mas os transgride, na medida em que a própria lógica formal-institucional seja

repressora. Não podemos nos apegar a “formalidades” se estas introjetam em nossa

pedagogia uma concepção de mundo próxima das classes dominantes, que colocam para

toda a sociedade seus interesses como se fossem os interesses gerais, e seu padrão de

vida como algo ser atingindo sumariamente. Infelizmente, em diversos momentos nossa

concepção de mundo (influenciada pelo senso-comum) acaba por refletir em nossa

concepção pedagógica práticas que corroboram com a manutenção de uma ordem

baseada na exploração do homem e da natureza, em detrimento de uma vida em

plenitude. Conseguir, mesmo que contraditoriamente, ampliar nossa concepção de

pedagogia é um dos nossos maiores desafios. Pensar uma Educação em Direitos

Humanos não apenas como parte de uma atuação na qual um ensina e outro aprende, já

que a conquista de direitos dá-se coletivamente, inclusive o direito de ter uma Educação

em Direitos Humanos realmente satisfatória. Conjugar uma aprendizagem libertadora,

que congrega como parte de seu íntimo práticas condizentes com a democracia, a

liberdade, o respeito às diferenças e a luta contra toda forma de desigualdade e

exploração.

Temos clareza que apesar de nosso olhar partir desta sociedade, apenas através

de uma visão de mundo revolucionária, que transborde o amor entre todos e todas como

prática de vida, conseguiremos nos aproximar desta “utopia que inquieta”. Apesar de

perplexos diante do inadmissível no mundo, acreditamos na possibilidade da construção

do novo, desde que este novo seja o reencontro do gênero humano consigo mesmo, em

sua totalidade, essência e sentimento. Não uma revolução de “cima para baixo”, de “um

para os outros”, mas do “nós”, que através de suas dificuldades, tentam entender-se e

buscam construir conhecimento para superá-las.

O conhecimento produzido na sala escolar tem em seu âmago metodológico esta

necessidade de ser coletivo, de ter em sua pintura todas as tintas e cores dos estudantes e

dos profissionais da educação. A Educação em Direitos Humanos, nesta perspectiva,

não seria apenas mais uma área de conhecimento para englobarmos em nossa

“caixinha de conteúdos”, mas uma práxis humana que contribui para a refundação

15

democrática de nossa sociedade. Democracia como poder do povo, que retoma para si

as rédeas do seu destino, e renova através da escola sua prática libertadora. Uma

verdadeira cidadania, que tem em seu âmago a mobilização, a luta contra todas as

formas de exploração e opressão, a liberdade em construir o conhecimento, divulgá-lo a

todos e todas, e sistematizá-lo de forma coerente e compreensível. O direito à

comunicação torna-se também fundamental, na medida em que apenas podemos nos

entender e conhecer o mundo, se nos comunicamos, se dividimos entre nós as angústias

e sonhos que temos.

Os professores e professoras devem ampliar a visão sobre seu papel no interior

da escola para que atuem, efetivamente, nesta perspectiva transformadora:

“(...) não se pode conceber o papel dos educadores como meros técnicos, instrutores, responsáveis unicamente pelo ensino das diferentes áreas curriculares e por funções de normalização e disciplinamento. Os professores e professoras são profissionais e cidadãos, mobilizadores de processos pessoais e grupais de natureza cultural e social. Somente nesta ótica poderão ser promotores de uma educação em direitos humanos.19”

Partir da realidade, sentir em seu âmago, tentar compreender mesmo que

contraditoriamente, e se propor humildemente a transgredir o possível através da

atuação coletiva. Entretanto, a lógica do “quieto”, da sala escolar como “vazia de

barulhos e cheia de ouvidos atentos” ainda nos conforta, ao invés de incomodar. Por

que nos incomodamos com o barulho e não com o silêncio? Por que nos sentimos

melhores quando aparentemente não existem conflitos, quando a estabilidade, mesmo

no “microcosmo” da sala escolar, torna-se a regra?

Nossa prática tem diversos níveis de intervenção (como também a teoria tem

diversos níveis de abstração e saturação). Precisamos tentar articular estes níveis, e

construir conhecimento sobre este problema: nossas diversas maneiras de atuar no

interior da sala de aprendizagem:

“É necessário estabelecer processos que articulem teoria e conduta, que estimulem o compromisso com os vários níveis das práticas sociais e que favoreçam a sensibilização, a análise e a compreensão da realidade. É a realidade – educativa e a social – que deve

19

Idem, ibidem. Pág 411

16

pautar todas as ações de construção desse processo cujo objetivo maior é a afirmação de uma cultura de direitos humanos.” 20.

Grande parte das concepções pedagógicas que trazemos dentro de nós é

influenciada pelo senso-comum. Confundimos o barulho desorientador das cidades,

comumente chamado de “poluição sonora”, com as inquietudes e os conflitos existentes

no ambiente escolar. As palavras dos estudantes deflagradas também pelos seus gestos,

cultura e orientação corporal, mesmo que numa disciplina contraditória e insubordinada,

podem gerar novos passos e soluções. Esta inquietude deve ser parte de nossa

compreensão do que é conhecimento, já que também pode ser sistematizada de forma

coerente para novos caminhos e jeitos de caminhar. A “confusão” da desorganização do

mundo numa perspectiva democrática, sua falta de estrutura em políticas públicas nas

quais a cidade seja amplamente participativa, não deve ser confundido com a expressão

dos estudantes no espaço escolar. A perda do direito à cidade se mescla com uma

concepção conservadora sobre o espaço escolar, difundindo uma cultura de supressão

de direitos e repressão das vozes dos subalternos. Se acreditamos que a cidade é de

uma parte minoritária, e não do todo majoritário, também pensaremos desta maneira

no ambiente escolar.

Os ruídos e barulhos no cotidiano das cidades são desorganizados e

desorganizantes, sem sentido claro para além da lógica destrutiva de “trabalhar para

viver, viver para ser explorado, e acreditar que sou parte de um mundo de celebridades”,

como nos carros individuais (que ocupam um espaço irracional do ponto de vista de

uma organização coletiva dos meios de transporte) suas buzinas, sujeira baseada nos

combustíveis fósseis. Temos diversos outros exemplos, a desorganização dos sons e da

música: cada um escuta sua música (quando mais alta, melhor, mesmo que seja no meu

ouvido ou no alto-falante do carro); não existe uma sintonia organizada dos sons para

que estes possam nos humanizar, acalmar e refletir sobre o mundo. As conversas

individuais e coletivas que não tem relação entre si, tendo em vista que em nossa 20

TAVARES, Celma. Educar em direitos humanos, o desafio da formação dos educadores numa

perspectiva interdisciplinar. In: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy, et al. Educação em direitos humanos:

fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007. Pág 491

17

sociedade as relações interpessoais se dão através diversas maneiras, mas dificilmente

tendo como norte principal o interesse coletivo e sua organização de forma solidária.

Assim, a conversa ao lado “não faz sentido”, é barulho ensurdecedor, e me inquieta, já

que “não tenho nada a ver com aquilo”. “Ninguém deve se meter onde não é chamado”,

somos obrigados a aceitar uma desumanização, e acreditamos que nos humanizamos

apenas nas nossas relações interpessoais mais íntimas, tornando o encontrar com outros

humanos apenas como uma parte necessária, porém “chatíssima”, de nosso cotidiano

banal repetitivo.

Desta maneira, o formal e o não-formal constroem uma relação contínua através

de nossa experiência:

“Considerando a educação formal ou a não-formal para o desenvolvimento da Educação em Direitos Humanos, o principal é que as práticas educacionais utilizadas sejam dialógicas e participativas, e que a vivência dos direitos humanos penetre no cotidiano desses ambientes de forma a proporcionar não apenas o saber pedagógico, mas, sobretudo, o saber experiencial.21

Aprender através da experiência anterior, vivenciando nossas dificuldades e

possibilidades na leitura de mundo, indicando como princípio norteador a transformação

das relações sociais também no interior da escola.

1.3 Aprendizagem significativa crítica: na busca de uma prática libertadora

Partimos de David Ausubel, segundo o qual a aprendizagem significativa

caracteriza-se pela interação cognitiva entre o novo conhecimento e o conhecimento

prévio. Nesse processo, o novo conhecimento adquire renovadas configurações e o

conhecimento prévio fica mais rico, mais diferenciado, mais elaborado em termos de

significados. Tendo como ponto inicial o que estudante construiu, reconstruímos

21

Idem, ibidem. Pág. 497

18

coletivamente novos conhecimentos através não apenas de emissão de mensagens, mas

essencialmente através da experiência. Em resumo:

“A aprendizagem significativa é aprendizagem com significado, compreensão, sentido, capacidade de transferência; oposta à aprendizagem mecânica, puramente memorística, sem significado, sem entendimento; dependente essencialmente do conhecimento prévio do aprendiz, da relevância do novo conhecimento e de sua predisposição para aprender. Essa predisposição implica uma intencionalidade da parte de quem aprende. Esta, por sua vez, depende da relevância que o aprendiz atribui ao novo conhecimento”22.

Esta concepção de aprendizagem interacional, que dialoga com os

conhecimentos prévios dos estudantes e percebe que sua construção é parte integrante

da efetivação de novas formulações, tem do ponto de vista metodológico contribuições

a nos dar. Especialmente se vincularmos nossa prática de aprendizagem a uma

concepção crítica do mundo e de sua forma de organização atual, baseada na exploração

e opressão da ampla maioria dos seres humanos e da natureza. Esta concepção

subversiva da aprendizagem, na medida em que subverte os padrões impostos e tenta

reconstruir novas relações de poder no interior da escola, proposta por Marco Antônio

Moreira, tem alguns princípios fundamentais, dos quais destacamos:

“1. Princípio do conhecimento prévio. Aprendemos a partir do que já sabemos. A aprendizagem significativa, no sentido de captar e internalizar significados socialmente construídos e contextualmente aceitos, é o primeiro passo, ou condição prévia, para uma aprendizagem significativa crítica. Quer dizer, para ser crítico de algum conhecimento, de algum conceito, de algum enunciado, primeiramente o sujeito tem que aprendê-lo significativamente e, para isso, seu conhecimento prévio é, isoladamente, a variável mais importante.23” Assim, não podemos partir do preconceito socialmente difundido de que o

estudante não sabe nada, é “burro”, que temos que ensiná-lo como são as coisas de

verdade, para que ele esqueça “tudo de errado que aprendeu”. Mesmo os “erros de

português”, que demonstram certa grafia ou concepção gramatical do estudante, ou uma

visão sobre o que deve ser a história (“história não serve para nada, pois só fica falando

sobre quem já morreu”) devem ser levados em consideração. Em que medida uma

22

MOREIRA, Marco Antônio. Aprendizagem significativa crítica. Conferência proferida no III Encontro

Internacional sobre Aprendizagem Significativa, Lisboa (Peniche), 11 a 15 de setembro de 2000. 23

Idem, ibidem. Pág. 8.

19

grafia diferente do padrão é uma forma difusa de questionamento de regras e

afirmação de identidade? Será mesmo que as críticas dos estudantes de que “história

não serve para nada” não tem efetiva validade, na medida em que muitos historiadores

não tem preocupação com o função prática daquilo que constroem em sala? Temos que

aprender a nos questionar, para questionar o mundo em que somos construídos.

“Princípio da interação social e do questionamento. Ensinar/aprender perguntas ao invés de respostas. Um ensino baseado em respostas transmitidas primeiro do professor para o aluno nas aulas e, depois, do aluno para o professor nas provas, não é crítico e tende a gerar aprendizagem não crítica, em geral mecânica. Ao contrário, um ensino centrado na interação entre professor e aluno enfatizando o intercâmbio de perguntas tende a ser crítico e suscitar a aprendizagem significativa crítica”24.

Em conjunto com o princípio do questionamento, gostaríamos de citar o princípio da aprendizagem pelo erro:

“Princípio da aprendizagem pelo erro. É preciso não confundir aprendizagem pelo erro com o conceito de aprendizagem por ensaio-e-erro, cujo significado é geralmente pejorativo. Na medida em que o conhecimento prévio é o fator determinante da aprendizagem significativa, ela, automaticamente, deixa de ser o processo errático e ateórico que caracteriza a aprendizagem por ensaio-e-erro. A idéia aqui é a de que o ser humano erra o tempo todo. É da natureza humana errar. O homem aprende corrigindo seus erros. Não há nada errado em errar. Errado é pensar que a certeza existe, que a verdade é absoluta, que o conhecimento é permanente.25”

Quando buscamos o conhecimento através das perguntas trabalhamos uma nova

concepção, que ao invés de afirmar, busca construir coletivamente. Quando buscamos

perguntas, o “erro” faz parte da aprendizagem, tendo em vista que todos erram, pois este

é o caminho determinante para aprendermos algo diferente do que já somos. A escola,

no entanto, pune o erro e busca promover a aprendizagem de fatos, leis, conceitos,

teorias, como verdades duradouras. A escola em sua concepção da classe domintante

simplesmente ignora o erro como mecanismo humano, por excelência, para construir o

conhecimento. Para ela, ocupar-se dos erros daqueles que pensavam ter descoberto fatos

importantes e verdades duradouras é perda de tempo. “Ao fazer isso, ela dá ao aluno a

24

Idem, ibidem. Pág 9. 25

Idem, ibidem. Pág 14.

20

ideia de que o conhecimento que é correto, ou definitivo, é o conhecimento que temos

hoje do mundo real, quando, na verdade, ele é provisório, ou seja, errado.26”

Dessa maneira, buscamos aprender a aprender, criticando certezas absolutas,

encarando o erro como algo humano e a aprendizagem através de sua superação.

Mas como construir esta prática de aprendizagem na sala escolar? Do ponto de

vista metodológico, acreditamos que os princípios da participação ativa do aluno e da

diversidade de estratégias de ensino são os mais importantes. Baseados nestes

princípios, construímos conhecimento através da experiência (nossa e dos estudantes).

Para isso, precisamos ter o interesse em conhecer os estudantes: seus medos, angústias e

sonhos, sua vida material e familiar. É fundamental também respeitá-los, e construir em

conjunto uma disciplina que signifique libertação das formas de opressão; em regra

geral, caracterizamos que uma turma de estudantes terá maior disciplina na medida em

que conseguir construir coletivamente estratégias sistemáticas de produção de

conhecimento e de difusão de uma cultura de direitos através do respeito mútuo e da

solidariedade.

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26

Idem, ibidem. Pág 17

21

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