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Ensino de História e Direitos Humanos: em busca de uma prática de aprendizagem libertadora
“As crianças logo se afeiçoam a quem lhes quer bem e leva a sério suas pequenas
questões e até mesmo seus caprichos. E o que são caprichos, senão sua vontade e seu
sentimento que buscam se afirmar e desenvolver em confronto com a vontade e os
sentimentos dos maiores? E, se estes não compreendem isto e recorrem muitas vezes às
pancadas e às intimidações autoritárias, só conseguem tornar hipócritas as crianças e
amargurá-las sem razão.1”
A atual concepção dominante em torno da prática pedagógica do professor de
História pressupõe um conhecimento anterior ao espaço escolar, no qual deve ser
simplesmente aplicado. Mesmo parte das pesquisas sobre Ensino de História corrobora
com essa concepção, na medida em que privilegia a investigação da atuação do
professor em detrimento da sua relação com os estudantes. “A didática da história, por
muito tempo, não era considerada parte integrante da disciplina especializada história”,
mas apenas como aplicação pedagógica, referente apenas ao uso externo do saber
histórico.2”
Se nosso foco específico é a prática pedagógica do professor, não podemos
deslocá-la da sua relação intrínseca com os estudantes. O professor tem suas
preocupações, angústias externas a sala escolar, e mesmo certa formação profissional
que o guia para esta ou aquela escolha naquele espaço. Mas será a sua relação com os
estudantes, a priori, que o formará como profissional da educação.
A sociedade concebe profissionais que exercem o papel de professores para que
no espaço escolar aprendam e ensinem certas áreas de conhecimento (as quais estão em
permanente disputa). A escola existe para os estudantes e com eles devemos construir
uma relação horizontal, de respeito mútuo e admiração. Os professores não são
admirados pelos estudantes se não os admiram, se não os percebem como parte mais
1 GRAMSCI, Antonio. Cartas do Cárcere, V.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Pág 313
2 RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórica. Brasília,
UNB, 2010. Pág. 11
2
fundamental da escola. Nossa prática de aprendizagem deve ter esse horizonte de ação:
aprender com os estudantes como ensinar, ensinar com os estudantes como aprender.
Mesmo que o professor exerça certo papel na sala escolar, e outras dezenas de pessoas
exerçam o papel de estudantes, esta relação professor-estudantes não é estática, e em
diversos momentos torna-se estudante-professores, na medida em que, de forma ativa e
de maneiras diretas e indiretas, os estudantes ensinam ao professor como deveria ser a
sua prática de aprendizagem.
Entretanto, muitos daqueles que exercem o papel de professor na sala escolar
sequer percebem esta relação de aprender com os estudantes como ensinar. Não se
colocam no papel daqueles que devem aprender a aprender, não tentam decifrar o que
os estudantes querem falar através de seus textos, atitudes ou desobediência a certas
regras de controle sobre a juventude no espaço escolar.
Nem tudo que o professor diz é límpido: a linguagem traz consigo um
emaranhado de signos e símbolos, especialmente no espaço escolar, que detém certas
normas comportamentais próprias. Um gesto, o tom de voz ou mesmo um olhar pode
ser entendido, de forma relacional, de certa maneira no ambiente escolar, e de outra fora
daquele local (o mesmo pode ser pensado para a sala escolar). E para os estudantes não
é diferente. Até que ponto os professores propõem-se a tentar entender o que os
estudantes dizem através das suas palavras, textos, gestos e ações? Acreditamos que
essa tentativa de compreensão é um dos pilares centrais na construção de uma prática de
aprendizagem voltada para a libertação mútua dos professores e estudantes de uma
sociedade baseada no lucro e não na vida. Uma pedagogia da liberdade que se propõe a
ser uma construção coletiva. Uma aprendizagem relacional, que encara os desafios da
prática de ensino com alegria humildade e perseverança.
Uma dos paradigmas fundamentais deve ser a maneira pela qual aprendemos a
ensinar. Infelizmente devido a certa concepção que privilegia a pesquisa histórica
restrita, que desloca a investigação da sua prática de aprendizagem, muitos dos
profissionais de história não constroem uma formação ampla. Mantêm-se restritos a
pesquisa no âmbito da história, e não se dedicam a reflexão sobre sua prática de
3
aprendizagem, mesmo que esta prática seja apenas a redação de um texto para que esse
seja mais compreensível para o leitor. Como nos diz RÜSEN, um ponto de vista
decisivo para a práxis historiográfica é:
“(…) a relação com os destinatários, com o público-alvo. (…) Refletir sobre o uso prático do saber histórico é um requisito da ciência da história. (e é uma exigência aos especialistas, para que não confundam o fundamento de sua ciência na vida como uma torre de marfim perdida no espaço). Deve-se investigar, explicitar e fundamentar os pontos de vista e os princípios particulares que se aplicam ao uso pratico do saber histórico. A relação com a vida, inerente à práxis cientifica mesma, precisa ser refletida3”
A maneira que escrevemos revela nossa concepção de História; seja através de
uma visão que se diz mais próxima do leitor através de elementos próprios da “narrativa
literária” (muitas vezes ligada ao oportunismo metodológico que deseduca), ou mesmo
aquela que escrevinha preocupada com termos “inéditos” e como estes poderão disputar
o mercado das ideias editoriais.
Uma escrita da História mais próxima dos seus interlocutores deve pensar o
científico e o artístico de maneira complementar, na medida em que certas
afirmativas/indagações são tão amplas e complexas que necessitam de uma busca no
fundo do gênero humano, através de suas inquietudes e criatividades, próprias da arte
que humaniza e do lúdico que aproxima. Nesta perspectiva os conceitos não são meras
“caixas” que resumem frases, mas um movimento relacional e dinâmico, o qual utiliza
as cores vivas da criatividade humana como sua expressão.
No interior de uma práxis pedagógica voltada para a liberdade, um dos
pressupostos do aprender a ensinar deve ser a construção de uma relação horizontal
entre professor-estudante. Esta relação horizontal deve se basear na fé sincera de que
devemos construir nosso ensinar através do aprendizado realizado com os estudantes.
Esta concepção torna-se vazia, apenas uma atitude “pedagogicamente correta”, sem uma
verdadeira crença na potencialidade criadora dos estudantes na construção de novos
saberes. Como nos diz Paulo Freire:
3 RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórica. Brasília,
UNB, 2010. Pág. 15
4
“A auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Os homens que não tem humildade ou a perdem, não podem aproximar-se do seu povo. (...) Não há também diálogo, se não há uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e de se refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens. (...) Sem esta fé nos homens o diálogo é uma farsa. Transforma-se, na melhor das hipóteses, em manipulação adocicadamente paternalista. Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um pólo no outro é conseqüência óbvia.4”
Para consolidação de uma relação horizontal entre professor-estudantes é
necessária também a busca permanente da superação de hierarquias e autoritarismos.
Em diversos momentos, profissionais da educação confundem a manutenção de
autoritarismo como um princípio necessário para a disciplina na construção de
conhecimentos na escola. Uma via de mão-única, que relaciona o fim do autoritarismo
com o aumento da indisciplina e da desordem. Para esta concepção a sala como espaço
deve ser quieta, com um ser que emite o conhecimento, e outros que o absorvem, e
quando necessário, pedem para que o ser capacitado explique, e, portanto, possa nutrir o
aluno com muitas lições e retirá-lo da “escuridão da burrice”. Uma verdadeira sala de
aula na qual um fala e outros ouvem, e não uma sala de aprendizagem, na qual se
constrói o conhecimento coletivamente. Como sinalizou Luckesi em uma entrevista:
“(...) vamos substituir o nome “aluno” por estudante ou educando. O termo aluno, segundo os filólogos, vem do verbo alere, do latim, que significa alimentar; porém, existe uma forma de leitura desse termo mais popular e semântica do que filológica que diz que “aluno” significa “aquele que não tem luz” e que teria sua origem também no latim, da seguinte forma: prefixo “a” (=negação) e “lummen” (=luz). Gosto dessa segunda versão, certamente, não correta do ponto de vista filológico, mas verdadeira do ponto de vista da prática cotidiana de ensinar. Nesse contexto de entendimento, agindo com nossos educandos como seres “sem luz”, só poderemos praticar uma pedagogia depositária, bancária..., como sinalizou o prof. Paulo Freire. Nunca uma pedagogia construtiva.5”
Dessa maneira, é necessário que pensemos a aprendizagem como una, ou seja,
integral, universal e indivisível, que tenha como objetivo congregar forma/conteúdo. A
separação entre forma e conteúdo é meramente analítica, já que no real, o todo é um
concreto complexo e denso, definido por múltiplas determinações.
4 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra,. 1987. Pág. 39
5 Entrevista Aprender a Fazer, publicada em IP – Impressão Pedagógica, publicação da Editora Gráfica
Expoente, Curitiba, PR, nº 36, 2004, p. 4-6.
5
Poderíamos acreditar que a prática de aprendizagem tem maior relação com a
“forma”, o “jeito” ou moldagem do “conteúdo” a ser “ensinado”. Entretanto, ao
modificar a “forma”, o “conteúdo” também se modifica no real: o conhecimento é
reconstruído coletivamente na escola, e torna-se qualitativamente diferente daquele
anteriormente construído, seja na mente do professor, nas formulações teóricas
acadêmicas, ou mesmo no que está redigido no livro didático.
1.1 Conhecimento histórico, praticidade e mobilização
“Na verdade, nada me irrita mais do que a “veleidade” que suplanta a vontade
concreta; me irrita nas pessoas que me são indiferentes sentimentalmente e considero
“inúteis”; me dói nas pessoas que não me são indiferentes e que não quero nem posso
julgar utilitariamente, mas gostaria de estimular e despertar. Conheci, especialmente
na Universidade, muitos tipos veleidosos e acompanhei seu projeto tragicômico de
vida (...) Em minha opinião, deve-se ser sempre muito prático e concreto, não sonhar
de olhos abertos, estabelecer fins razoáveis, factíveis, e pensar neles com todas as
condições que, só elas, os tornam realizáveis; deve-se ter, pois, uma perfeita
consciência dos próprios limites, mesmo que se queira ampliá-los e aprofundá-los”6.
Como poderíamos sensibilizar os estudantes, construindo conhecimento sobre a
sociedade de forma compreensível e mobilizadora?
A escola existe para os estudantes. São eles os agentes fundamentais e
prioritários de qualquer atividade político-pedagógica. Mas, no cotidiano, são
pouquíssimos os espaços nos quais os estudantes podem, em conjunto com os
professores, formular o currículo, a prática de aprendizagem e ter maior abertura para
concretizar, no abstrato, suas visões sobre a realidade.
Uma prática de aprendizagem comprometida com os ideais de transformação
social não pode desconsiderar o papel protagonista dos estudantes. Eles não são meros
absorvedores do conhecimento pré-produzido pelo professor. Os professores constroem
em conjunto com os estudantes o conhecimento em sala. Alguns defendem a ideia que
devemos “deixar os estudantes falarem para que nós possamos ouvi-los”; entretanto, é
mais do que isso: os estudantes devem ter papel de decisão conjunta nas atividades
6 GRAMSCI, Antonio. Cartas do Cárcere, V.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Pág 403.
veleidade s. f. 1. Vontade imperfeita. 2. Intenção fugitiva. 3. Fantasia; capricho; utopia; volubilidade.
6
político-pedagógicas do ambiente escolar. Os construtores da escola precisam se pensar
e repensar, tendo em vista que não apenas o professor deve ser o “responsável” por
“fazer e acontecer”, como solucionador de todos os problemas.
O professor tem uma função específica sendo coordenador da produção de
saberes e de conhecimento através da sua criatividade ousada. Como podemos articular
diversos saberes históricos, pedagógicos e de experiência empírica?
Precisamos valorizar nossa experiência, já que o professor cria métodos através
da experiência prática. Mobiliza o conhecimento em diversos níveis de abstração e
complexidade, de forma não pulverizada e universalizante, buscando sistematizar uma
metodologia da aprendizagem voltada para os desafios do nosso tempo. Ao contrário da
visão negativa da docência que faz parte do cotidiano da academia (refletindo a visão
hegemônica conservadora da sociedade), defendemos que o saber escolar tem sua
cientificidade própria, pois parte de hipóteses, empiricidade, formulação de teses,
análise e síntese. Dessa maneira, a didática não é algo “externo” a história, mas faz parte
do seu estatuto epistemológico:
“Está a difundida noção atual (e não é de hoje), aparentemente indestronável, de que a didática é alguma coisa completamente externa à historia como ciência. Ela se ocuparia da aplicação e da intermediação do saber histórico, produzido pela história como ciência, em setores do aprendizado fora da ciência. Os didáticos seriam transportadores, tradutores, encarregados de fornecer ao cliente ou à cliente – comumente chamado de “aluno” ou “aluna” - os produtos científicos. A didática relacionar-se-ia com o saber histórico produzido cientificamente como o marketing se relaciona com a produção de mercadorias”7.
Uma visão ampla, contestadora, e não conteudista da construção do
conhecimento em história na escola faz parte de nossa concepção do que é a ciência
histórica e de qual é sua função social. Não separamos a “História ciência” da “História
escolar”: existe apenas a História que em sua metodologia de análise e síntese tem em
seu âmago a aprendizagem.
7 RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórica. Brasília,
UNB, 2010. Pág. 75
7
Como nos diz Paulo Freire, os estudantes chegam à escola já com uma
concepção de mundo própria, formada pelos diversos espaços que constituem sua vida.
Um dos mais fundamentais é o espaço familiar:
“As relações pais-filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as condições objetivo-culturais da totalidade de que participam. E, se estas são condições autoritárias, rígidas, dominadoras, penetram nos lares e incrementam o clima de opressão. Quanto mais se desenvolvem estas relações entre pais e filhos, tanto mais vão os filhos, na sua infância, introjetando a autoridade paterna. (...) Crianças deformadas num ambiente de desamor, opressivo, frustradas na sua potência, como diria Fromm, se não conseguem, na juventude, endereçar-se no sentido da rebelião autêntica, ou se acomodarem numa demissão total do seu querer, alienados à autoridade e aos mitos que lançam mão esta autoridade para formá-las, ou poderão vir a assumir formas de ação destrutiva”8 .
A demissão do seu querer íntimo e a construção de novos mitos através da “vida
fácil”, da conquista “mágica” do sonho de jogadores de futebol, modelos e artistas (a
sociedade do espetáculo e de suas celebridades); celulares e roupas que demonstram
status e inserção de certo padrão social “aceitável”, como também a socialização através
da degradação de diversos princípios morais como o respeito à vida e ao outro, além da
glorificação do dinheiro e dos bens materiais. Ao contrário do que pode parecer, esta
concepção da “livre escolha” baseada na valorização do dinheiro e dos bens materiais, e
do desrespeito perante as diferenças e aos outros (traduzida pela padronização das
roupas, músicas e linguagem), não é puro símbolo de liberdade total: é a internalização
do padrão das classes dominantes, o qual grande parte dos estudantes segue de forma
obcecada. Subordinados a ditadura do pensamento único de que não devem pensar (pois
não são capazes), acreditam que cidadania é sinônimo de coisificação e inserção no
mercado, seja tornando-se uma mercadoria no mercado de força de trabalho (“apenas
são pessoas aqueles que têm emprego, quem não tem emprego é fracassado e culpado
pela sua derrota”), seja através da compra de mercadorias que transferem valor a sua
identidade humana-cifrão (“quanto mais valor-de-troca, mercadorias e dinheiro
demonstro ter, mais inserido e aceito sou”).
8 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra,. 1987. Pág. 74. Grifos nossos.
8
Os estudantes não escolhem estes padrões: são esmagados através de sua
imposição. Muitos resistem de forma difusa e sofrem com sua existência. Participar de
um padrão tão rígido é uma agressão ao corpo, à mente e à vida da juventude; mas os
jovens constroem esta forma de “aprendizado” também na sua experiência escolar:
“Esta influência do lar se alonga na experiência da escola. Nela, os educandos cedo descobrem, como no lar, que para conquistar alguma satisfação, tem de adaptar-se aos preceitos verticalmente estabelecidos. E um destes é não pensar.9”
Acreditamos que devemos construir outra forma de experiência no espaço
escolar. Ao invés de tornar a escola simples reprodutora, sem contradições, dos modelos
dominantes de segregação/padronização de identidades e sociabilidade, a produção de
conhecimento e da vida dos participantes da comunidade escolar deve estar intimamente
ligada à uma praticidade crítica. Um conhecimento que abarque as demandas do
cotidiano, que tenha funcionalidade na vida da juventude e da comunidade escolar em
geral, e que se proponha a superar, através da mobilização de saberes, práticas e ideais,
todas as formas de opressão, exploração, e discriminação. Sem uma preocupação clara
com sua influência na vida prática, na vida que existe e sentimos com nosso corpo e
coração, a história perde seu sentido, torna-se apenas um apanhado de afirmações sobre
um passado sem relação com propostas de futuro. Uma concepção de História sem cores
vivas, calcada em uma percepção do mundo individualista e desumanizadora:
“O efeito sobre a vida prática (mediado seja como for) é sempre um fator do processo do conhecimento histórico, de tipo fundamental, e deve ser considerado parte integrante da matriz disciplinar da ciência da história. Esse efeito pode estar baseado em intenções mais ou menos conscientes dos historiadores, mas o está também nas expectativas, desafios e incitamentos que experimentaram no contexto social de seu trabalho.10”
Nossa concepção de história, portanto, tem em seu estatuto epistemológico uma
relação direta com a possibilidade de, através da metodologia e critérios próprios das
ciências humanas, buscar uma relação com o cotidiano do senso-comum de forma
crítica, em direção a uma prática de aprendizagem libertadora. Trabalhar numa linha
9 Idem, ibidem. Pág 74
10 RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórica. Brasília,
UNB, 2010. Pág. 86
9
afirmativa de que existem os saberes próprios dos construtores da escola, isto é, temos
nossa própria forma de produzir conhecimento.
Entretanto, os profissionais da educação são contestados por uma concepção
conservadora que defende que não existe nenhuma especificidade na condução,
instigação, e sistematização da produção de conhecimento nas escolas, o que geraria a
não necessidade de uma formação própria. Defende-se uma prática “fantástica” e
“tecnológica”, que resolveria por si só, de fora e externamente ao ambiente escolar,
“todos os problemas”. Os gestores e secretários de educação, especialistas de uma visão
economicistas e produtivista da educação teriam todas as soluções que devem ser
aplicadas pelos professores nos estudantes. Pensamos, ao contrário, que nossa
concepção de história será cada vez mais fortalecida na medida em que os estudantes,
ao lado dos profissionais da educação, decidam os rumos político-pedagógicos da
escola, que aprendam em união a superar seus problemas íntimos e coletivos. Uma
história de perspectiva humanizadora baseada na cultura de direitos e da defesa da vida
em plenitude.
1.2 Ensino de História e Educação em Direitos Humanos
“(...) me parece que toda a nossa vida é uma luta para nos adaptarmos ao ambiente,
mas também, especialmente, para dominá-lo e não nos deixarmos esmagar por ele. (...) Um
erro que se comete habitualmente na criação dos meninos e meninas me parece o seguinte
(pense em você mesmo e depois julgue se estou certo): não se percebe que, na vida deles,
existem duas fases muito distintas, antes e depois da puberdade. Antes da puberdade, a
personalidade da criança ainda não se formou e é mais fácil guiar sua vida e fazê-la adquirir
determinados hábitos de ordem, de disciplina, de trabalho: depois da puberdade, a
personalidade se forma de modo impetuoso e torna intervenção alheia se torna odiosa, tirânica,
insuportável. Na verdade, o que acontece é que os pais sentem a responsabilidade em relação
aos filhos exatamente neste segundo período, quando é tarde: então, naturalmente, entra em
cena o porrete e a violência, que, no fim das contas, dão bem poucos frutos. (...) Tenho a
impressão de que as gerações mais velhas renunciaram a educar as gerações mais jovens e
estas cometem o mesmo erro; o fracasso gritante das velhas gerações se reproduz tal qual na
geração que agora parece dominar. Pense um pouco no que escrevi e reflita se não é
necessário educar os educadores!11”
Encontramo-nos numa conjuntura histórica de fortalecimento de uma visão
regressiva em torno dos direitos fundamentais do ser humano. Chamada especialmente
11
GRAMSCI, Antonio. Cartas do Cárcere, V.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Pág 440
10
na década de 1990 de “Globalização”, as políticas neoliberais acentuaram seu caráter
repressor e de aprofundamento de retirada de direitos, tanto do ponto de vista formal
através da mudança da legislação, quanto do “real” através da difusão no senso-comum
de uma cultura conservadora que valoriza a lógica do lucro, da padronização, das
opressões e da exploração humana.
Do ponto de vista das relações sociais, a moral burguesa dissemina visões de
mundo egoístas, individualistas, competitivas e alienantes que são internalizadas por
segmentos expressivos da sociedade civil em nosso país. É este senso-comum que
viabiliza e apoia, seja de forma ativa ou passiva, a lógica de retidas de direitos atual.
Em tempos de crise, certos direitos se tornam meramente formais, e as
economias se livram dos produtos e das pessoas excedentes e indesejáveis.
A crise que se apresenta hoje não é apenas a crise econômica que tanto é
noticiada pelos veículos de comunicação: é um conjunto de crises, estruturais, sociais,
ambientais, as quais culminam numa verdadeira crise humanitária.
Esta crise de civilização resulta em uma avassaladora escalada de violência. O
Estado assume caráter cada vez mais mínimo nas políticas verdadeiramente públicas, e
mostra sua face de Estado Máximo no que tange à repressão e controle sobre a
sociedade.
Incursões militares nas favelas, tortura, execução de inocentes, e chacinas, são
exemplos corriqueiros do que podemos chamar de criminalização da pobreza. O
panorama da violência se agrava com a expansão do crime organizado e domínio das
milícias, frutos da corrupção generalizada e política equivocada das polícias. Outro
perverso elemento compõe este cenário: a crise do sistema prisional e as constantes
violações de direitos humanos. Os números oficiais nacionais existentes sobre violência
confirmam que são os jovens as maiores vítimas da violência no Brasil. Isto se
manifesta ainda mais no caso dos homicídios.Entretanto, precisamos ressaltar duas
questões: um cuidado a ser tomado é o de não criminalizar o jovem brasileiro. Os
jovens estão mais presentes não só entre agressores, mas também entre as vítimas no
11
mundo todo. Estudos apontam, porém, que a criminalização precoce, com políticas de
repressão focadas especialmente nos jovens, tende a aumentar ainda mais a violência12.
Outra questão diz respeito à sobrevalorização dos adolescentes como autores de
crimes violentos. Os números mostram que isto não corresponde à realidade. O que
ocorre, no geral, é uma maior exposição na mídia de episódios violentos envolvendo
adolescentes, o que leva a sociedade a acreditar que estes estão mais violentos. Este
movimento muitas vezes é associado à defesa de mais ações penalizadoras contra os
jovens.
Segundo os dados do Sistema de Informações de Mortalidade do Sistema
Únicode Saúde (SIM/SUS), as mortes por homicídios entre os jovens de 15 a 29 anos
passaram da média anual de 24,8 mil, entre 1999 e 2001, para 27,2 mil, entre 2004 e
2006, número que consiste em 37,5% de todas as mortes juvenis neste período mais
recente. Quanto à violência não letal, os jovens também são as maiores vítimas. Um
levantamento realizado pelo Ministério da Justiça (MJ) com as ocorrências registradas
pelas Polícias Civis dos estados indica que, em 2005, o grupo de 18 a 24 anos foi a
maior vítima não apenas dos casos de homicídio doloso (47,4 ocorrências por 100 mil
habitantes), mas também das lesões corporais dolosas (514,8 por 100 mil), das
tentativas de homicídio (38,1 por 100 mil), da extorsão mediante sequestro (0,8 por 100
mil) e do roubo a transeunte (333,8 por 100 mil); já os jovens de 25 a 29 anos
apareceram como as maiores vítimas dos furtos a transeunte (260 por 100 mil) e do
roubo de veículo (32,7 por 100 mil), enquanto os adolescentes de 12 a 17 anos foram as
maiores vítimas de estupro (35,4 por 100 mil) e de atentado violento ao pudor (10 por
100 mil). Ou seja, a juventude está sendo cada vez mais vítima de uma política de
segurança pública baseada no conflito armado e na repressão física13.
Em 2008, ano mais recente com dados disponíveis de pesquisa, a juventude de
15 a 24 anos representava 18,3% da população, mas o número de jovens assassinados
12
CASTRO, Jorge Abrahão de Castro; AQUINO, Luseni Maria C. de & ANDRADEm Carla Coelho de.
Juventude e políticas sociais no Brasil. Brasília: IPEA, 2009. Pág 193 13
Idem, Ibidem. Pág 200.
12
(18.321) correspondeu a 36,6% do total de homicídios no país. O Estado do Rio de
Janeiro tem uma taxa de assassinato de jovens de 72,5 para cada 100 mil habitantes.
A escola e os profissionais da educação que nela trabalham sofrem diretamente
com o aumento da repressão em relação à juventude. A banalização da violência se
reflete no ambiente escolar com o desrespeito ao profissional e a desvalorização do
magistério. Além disso, grande parte das escolas encontra-se em áreas consideradas
mais violentas, atingindo diretamente o profissional da educação. Não destacamos
apenas os tiroteios e o risco de morte cada vez mais crescente, mas a construção de um
“ambiente tenso e vigilante”, no qual “todos são suspeitos”. Uma pedagogia cada vez
mais autoritária e repressora. Os profissionais, contra a sua vontade, tornam-se parte da
reprodução de uma visão de mundo baseada na violência enquanto resposta à própria
violência. A escola e seus profissionais são, portanto, também vítimas da política de
violência contra a juventude.
Acreditamos que uma sociedade segura é aquela que desenvolve a capacidade
da cultura de direitos. E isso não se faz com armas ou com mais instrumentos de
controle sobre a sociedade; ao contrário, quanto mais se investe nestas políticas é
porque se busca repressão e se perde liberdade.
Estima-se que 16 milhões de armas de fogo estejam em circulação no Brasil –
metade delas ilegalmente. Dessas, apenas 2 milhões estão com as forças de segurança
estatal. Ou seja, 14 milhões de armas estão nas mãos de civis. Pelo menos uma das
armas usadas na tragédia em Realengo pertencia a civis. Foi roubada há mais de uma
década da casa de uma família e agora foi usada para matar 12 crianças e adolescentes e
ferir mais uma dezena, viabilizando ainda um suicídio14.
Segundo uma pesquisa realizada na PUC-RJ, para cada 18 armas apreendidas,
uma pessoa deixa de ser morta a tiros. Ainda de acordo com o estudo, as armas em
circulação no estado do Rio representam 5,7% do total de armas em posse de civis no
14
BANDEIRA, Antônio Rangel. “Arma é problema de sociedades arcaicas”. Entrevista. Sítio Comunidade
Segura. http://www.comunidadesegura.org/pt-br/MATERIA-arma-e-problema-de-sociedades-arcaicas
(acessado em 27/8/2011)
13
Brasil sendo que 40% delas são ilegais. Das armas apreendidas no nosso estado, 75,3%
são armas curtas (revólveres e pistolas) e 79,6% são de uso permitido. Os calibres .38 e
.32, justamente as armas usadas pelo atirador de Realengo, representam 52%. Quase
70% das armas que circulam no país são de fabricação nacional, o que reforça a
necessidade do controle interno, e desmistifica o debate sobre as fronteiras, que em
muitas vezes é utilizada para justificar o aumento das armas ilegais15.
Os profissionais da educação não podem mais ser vítimas de uma política de
segurança baseada na violência: queremos construir uma sociedade baseada no bem
comum e no respeito à dignidade como princípios pedagógicos. Não queremos uma
pedagogia da repressão, queremos uma pedagogia da liberdade. Queremos superar o
senso-comum que rotula grande parte dos estudantes como os “perdedores”,
“descartáveis”, os quais não têm “direito a ter direitos” 16. Como afirma Candau, a
educação em Direitos Humanos tem que afirmar uma nova cultura que penetre em todas
as práticas sociais:
“(...) e seja capaz de favorecer processos de democratização, de articular a afirmação de direitos fundamentais de cada pessoa e grupo sociocultural, de modo especial os direitos sociais e econômicos, com o reconhecimento dos direitos de diferença”17.
Nesta concepção ampla de direitos humanos, conceitos como democracia e
liberdade são parte integrante de seu escopo de análise, não se tornando meras etiquetas,
mas parte de todo teórico-prático. Uma práxis que reafirma a possibilidade da diferença
e se propõe a superar a desigualdade:
“Não se deve opor igualdade à diferença. De fato, igualdade não está oposta à diferença, e sim, à desigualdade. Diferença não se opõe à igualdade, e sim à padronização, à produção em série, a tudo o “mesmo”, a “mesmice”. O que estamos querendo trabalhar é, ao mesmo tempo, negar a padronização e lutar contra todas as formas de desigualdades presentes na nossa sociedade. Nem padronização, nem desigualdade” 18.
15
CERQUEIRA, Daniel Ricardo de Castro. Causas e Consequencias do Crime no Brasil. Tese de Doutorado
do programa de Pós-graduação em Economia da PUC-Rio. Rio de Janeiro: PUC-RIO, 2010 16
CANDAU, Vera Maria. A configuração de uma educação em Direitos Humanos. In: SILVEIRA, Rosa
Maria Godoy, et al. Educação em direitos humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa:
Editora Universitária, 2007. Pág 399 17
Idem, ibidem. Pág 400 18
Idem, ibidem. Pág 400
14
Dessa maneira, a Educação em Direitos Humanos parte de princípios formais,
mas os transgride, na medida em que a própria lógica formal-institucional seja
repressora. Não podemos nos apegar a “formalidades” se estas introjetam em nossa
pedagogia uma concepção de mundo próxima das classes dominantes, que colocam para
toda a sociedade seus interesses como se fossem os interesses gerais, e seu padrão de
vida como algo ser atingindo sumariamente. Infelizmente, em diversos momentos nossa
concepção de mundo (influenciada pelo senso-comum) acaba por refletir em nossa
concepção pedagógica práticas que corroboram com a manutenção de uma ordem
baseada na exploração do homem e da natureza, em detrimento de uma vida em
plenitude. Conseguir, mesmo que contraditoriamente, ampliar nossa concepção de
pedagogia é um dos nossos maiores desafios. Pensar uma Educação em Direitos
Humanos não apenas como parte de uma atuação na qual um ensina e outro aprende, já
que a conquista de direitos dá-se coletivamente, inclusive o direito de ter uma Educação
em Direitos Humanos realmente satisfatória. Conjugar uma aprendizagem libertadora,
que congrega como parte de seu íntimo práticas condizentes com a democracia, a
liberdade, o respeito às diferenças e a luta contra toda forma de desigualdade e
exploração.
Temos clareza que apesar de nosso olhar partir desta sociedade, apenas através
de uma visão de mundo revolucionária, que transborde o amor entre todos e todas como
prática de vida, conseguiremos nos aproximar desta “utopia que inquieta”. Apesar de
perplexos diante do inadmissível no mundo, acreditamos na possibilidade da construção
do novo, desde que este novo seja o reencontro do gênero humano consigo mesmo, em
sua totalidade, essência e sentimento. Não uma revolução de “cima para baixo”, de “um
para os outros”, mas do “nós”, que através de suas dificuldades, tentam entender-se e
buscam construir conhecimento para superá-las.
O conhecimento produzido na sala escolar tem em seu âmago metodológico esta
necessidade de ser coletivo, de ter em sua pintura todas as tintas e cores dos estudantes e
dos profissionais da educação. A Educação em Direitos Humanos, nesta perspectiva,
não seria apenas mais uma área de conhecimento para englobarmos em nossa
“caixinha de conteúdos”, mas uma práxis humana que contribui para a refundação
15
democrática de nossa sociedade. Democracia como poder do povo, que retoma para si
as rédeas do seu destino, e renova através da escola sua prática libertadora. Uma
verdadeira cidadania, que tem em seu âmago a mobilização, a luta contra todas as
formas de exploração e opressão, a liberdade em construir o conhecimento, divulgá-lo a
todos e todas, e sistematizá-lo de forma coerente e compreensível. O direito à
comunicação torna-se também fundamental, na medida em que apenas podemos nos
entender e conhecer o mundo, se nos comunicamos, se dividimos entre nós as angústias
e sonhos que temos.
Os professores e professoras devem ampliar a visão sobre seu papel no interior
da escola para que atuem, efetivamente, nesta perspectiva transformadora:
“(...) não se pode conceber o papel dos educadores como meros técnicos, instrutores, responsáveis unicamente pelo ensino das diferentes áreas curriculares e por funções de normalização e disciplinamento. Os professores e professoras são profissionais e cidadãos, mobilizadores de processos pessoais e grupais de natureza cultural e social. Somente nesta ótica poderão ser promotores de uma educação em direitos humanos.19”
Partir da realidade, sentir em seu âmago, tentar compreender mesmo que
contraditoriamente, e se propor humildemente a transgredir o possível através da
atuação coletiva. Entretanto, a lógica do “quieto”, da sala escolar como “vazia de
barulhos e cheia de ouvidos atentos” ainda nos conforta, ao invés de incomodar. Por
que nos incomodamos com o barulho e não com o silêncio? Por que nos sentimos
melhores quando aparentemente não existem conflitos, quando a estabilidade, mesmo
no “microcosmo” da sala escolar, torna-se a regra?
Nossa prática tem diversos níveis de intervenção (como também a teoria tem
diversos níveis de abstração e saturação). Precisamos tentar articular estes níveis, e
construir conhecimento sobre este problema: nossas diversas maneiras de atuar no
interior da sala de aprendizagem:
“É necessário estabelecer processos que articulem teoria e conduta, que estimulem o compromisso com os vários níveis das práticas sociais e que favoreçam a sensibilização, a análise e a compreensão da realidade. É a realidade – educativa e a social – que deve
19
Idem, ibidem. Pág 411
16
pautar todas as ações de construção desse processo cujo objetivo maior é a afirmação de uma cultura de direitos humanos.” 20.
Grande parte das concepções pedagógicas que trazemos dentro de nós é
influenciada pelo senso-comum. Confundimos o barulho desorientador das cidades,
comumente chamado de “poluição sonora”, com as inquietudes e os conflitos existentes
no ambiente escolar. As palavras dos estudantes deflagradas também pelos seus gestos,
cultura e orientação corporal, mesmo que numa disciplina contraditória e insubordinada,
podem gerar novos passos e soluções. Esta inquietude deve ser parte de nossa
compreensão do que é conhecimento, já que também pode ser sistematizada de forma
coerente para novos caminhos e jeitos de caminhar. A “confusão” da desorganização do
mundo numa perspectiva democrática, sua falta de estrutura em políticas públicas nas
quais a cidade seja amplamente participativa, não deve ser confundido com a expressão
dos estudantes no espaço escolar. A perda do direito à cidade se mescla com uma
concepção conservadora sobre o espaço escolar, difundindo uma cultura de supressão
de direitos e repressão das vozes dos subalternos. Se acreditamos que a cidade é de
uma parte minoritária, e não do todo majoritário, também pensaremos desta maneira
no ambiente escolar.
Os ruídos e barulhos no cotidiano das cidades são desorganizados e
desorganizantes, sem sentido claro para além da lógica destrutiva de “trabalhar para
viver, viver para ser explorado, e acreditar que sou parte de um mundo de celebridades”,
como nos carros individuais (que ocupam um espaço irracional do ponto de vista de
uma organização coletiva dos meios de transporte) suas buzinas, sujeira baseada nos
combustíveis fósseis. Temos diversos outros exemplos, a desorganização dos sons e da
música: cada um escuta sua música (quando mais alta, melhor, mesmo que seja no meu
ouvido ou no alto-falante do carro); não existe uma sintonia organizada dos sons para
que estes possam nos humanizar, acalmar e refletir sobre o mundo. As conversas
individuais e coletivas que não tem relação entre si, tendo em vista que em nossa 20
TAVARES, Celma. Educar em direitos humanos, o desafio da formação dos educadores numa
perspectiva interdisciplinar. In: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy, et al. Educação em direitos humanos:
fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa: Editora Universitária, 2007. Pág 491
17
sociedade as relações interpessoais se dão através diversas maneiras, mas dificilmente
tendo como norte principal o interesse coletivo e sua organização de forma solidária.
Assim, a conversa ao lado “não faz sentido”, é barulho ensurdecedor, e me inquieta, já
que “não tenho nada a ver com aquilo”. “Ninguém deve se meter onde não é chamado”,
somos obrigados a aceitar uma desumanização, e acreditamos que nos humanizamos
apenas nas nossas relações interpessoais mais íntimas, tornando o encontrar com outros
humanos apenas como uma parte necessária, porém “chatíssima”, de nosso cotidiano
banal repetitivo.
Desta maneira, o formal e o não-formal constroem uma relação contínua através
de nossa experiência:
“Considerando a educação formal ou a não-formal para o desenvolvimento da Educação em Direitos Humanos, o principal é que as práticas educacionais utilizadas sejam dialógicas e participativas, e que a vivência dos direitos humanos penetre no cotidiano desses ambientes de forma a proporcionar não apenas o saber pedagógico, mas, sobretudo, o saber experiencial.21
Aprender através da experiência anterior, vivenciando nossas dificuldades e
possibilidades na leitura de mundo, indicando como princípio norteador a transformação
das relações sociais também no interior da escola.
1.3 Aprendizagem significativa crítica: na busca de uma prática libertadora
Partimos de David Ausubel, segundo o qual a aprendizagem significativa
caracteriza-se pela interação cognitiva entre o novo conhecimento e o conhecimento
prévio. Nesse processo, o novo conhecimento adquire renovadas configurações e o
conhecimento prévio fica mais rico, mais diferenciado, mais elaborado em termos de
significados. Tendo como ponto inicial o que estudante construiu, reconstruímos
21
Idem, ibidem. Pág. 497
18
coletivamente novos conhecimentos através não apenas de emissão de mensagens, mas
essencialmente através da experiência. Em resumo:
“A aprendizagem significativa é aprendizagem com significado, compreensão, sentido, capacidade de transferência; oposta à aprendizagem mecânica, puramente memorística, sem significado, sem entendimento; dependente essencialmente do conhecimento prévio do aprendiz, da relevância do novo conhecimento e de sua predisposição para aprender. Essa predisposição implica uma intencionalidade da parte de quem aprende. Esta, por sua vez, depende da relevância que o aprendiz atribui ao novo conhecimento”22.
Esta concepção de aprendizagem interacional, que dialoga com os
conhecimentos prévios dos estudantes e percebe que sua construção é parte integrante
da efetivação de novas formulações, tem do ponto de vista metodológico contribuições
a nos dar. Especialmente se vincularmos nossa prática de aprendizagem a uma
concepção crítica do mundo e de sua forma de organização atual, baseada na exploração
e opressão da ampla maioria dos seres humanos e da natureza. Esta concepção
subversiva da aprendizagem, na medida em que subverte os padrões impostos e tenta
reconstruir novas relações de poder no interior da escola, proposta por Marco Antônio
Moreira, tem alguns princípios fundamentais, dos quais destacamos:
“1. Princípio do conhecimento prévio. Aprendemos a partir do que já sabemos. A aprendizagem significativa, no sentido de captar e internalizar significados socialmente construídos e contextualmente aceitos, é o primeiro passo, ou condição prévia, para uma aprendizagem significativa crítica. Quer dizer, para ser crítico de algum conhecimento, de algum conceito, de algum enunciado, primeiramente o sujeito tem que aprendê-lo significativamente e, para isso, seu conhecimento prévio é, isoladamente, a variável mais importante.23” Assim, não podemos partir do preconceito socialmente difundido de que o
estudante não sabe nada, é “burro”, que temos que ensiná-lo como são as coisas de
verdade, para que ele esqueça “tudo de errado que aprendeu”. Mesmo os “erros de
português”, que demonstram certa grafia ou concepção gramatical do estudante, ou uma
visão sobre o que deve ser a história (“história não serve para nada, pois só fica falando
sobre quem já morreu”) devem ser levados em consideração. Em que medida uma
22
MOREIRA, Marco Antônio. Aprendizagem significativa crítica. Conferência proferida no III Encontro
Internacional sobre Aprendizagem Significativa, Lisboa (Peniche), 11 a 15 de setembro de 2000. 23
Idem, ibidem. Pág. 8.
19
grafia diferente do padrão é uma forma difusa de questionamento de regras e
afirmação de identidade? Será mesmo que as críticas dos estudantes de que “história
não serve para nada” não tem efetiva validade, na medida em que muitos historiadores
não tem preocupação com o função prática daquilo que constroem em sala? Temos que
aprender a nos questionar, para questionar o mundo em que somos construídos.
“Princípio da interação social e do questionamento. Ensinar/aprender perguntas ao invés de respostas. Um ensino baseado em respostas transmitidas primeiro do professor para o aluno nas aulas e, depois, do aluno para o professor nas provas, não é crítico e tende a gerar aprendizagem não crítica, em geral mecânica. Ao contrário, um ensino centrado na interação entre professor e aluno enfatizando o intercâmbio de perguntas tende a ser crítico e suscitar a aprendizagem significativa crítica”24.
Em conjunto com o princípio do questionamento, gostaríamos de citar o princípio da aprendizagem pelo erro:
“Princípio da aprendizagem pelo erro. É preciso não confundir aprendizagem pelo erro com o conceito de aprendizagem por ensaio-e-erro, cujo significado é geralmente pejorativo. Na medida em que o conhecimento prévio é o fator determinante da aprendizagem significativa, ela, automaticamente, deixa de ser o processo errático e ateórico que caracteriza a aprendizagem por ensaio-e-erro. A idéia aqui é a de que o ser humano erra o tempo todo. É da natureza humana errar. O homem aprende corrigindo seus erros. Não há nada errado em errar. Errado é pensar que a certeza existe, que a verdade é absoluta, que o conhecimento é permanente.25”
Quando buscamos o conhecimento através das perguntas trabalhamos uma nova
concepção, que ao invés de afirmar, busca construir coletivamente. Quando buscamos
perguntas, o “erro” faz parte da aprendizagem, tendo em vista que todos erram, pois este
é o caminho determinante para aprendermos algo diferente do que já somos. A escola,
no entanto, pune o erro e busca promover a aprendizagem de fatos, leis, conceitos,
teorias, como verdades duradouras. A escola em sua concepção da classe domintante
simplesmente ignora o erro como mecanismo humano, por excelência, para construir o
conhecimento. Para ela, ocupar-se dos erros daqueles que pensavam ter descoberto fatos
importantes e verdades duradouras é perda de tempo. “Ao fazer isso, ela dá ao aluno a
24
Idem, ibidem. Pág 9. 25
Idem, ibidem. Pág 14.
20
ideia de que o conhecimento que é correto, ou definitivo, é o conhecimento que temos
hoje do mundo real, quando, na verdade, ele é provisório, ou seja, errado.26”
Dessa maneira, buscamos aprender a aprender, criticando certezas absolutas,
encarando o erro como algo humano e a aprendizagem através de sua superação.
Mas como construir esta prática de aprendizagem na sala escolar? Do ponto de
vista metodológico, acreditamos que os princípios da participação ativa do aluno e da
diversidade de estratégias de ensino são os mais importantes. Baseados nestes
princípios, construímos conhecimento através da experiência (nossa e dos estudantes).
Para isso, precisamos ter o interesse em conhecer os estudantes: seus medos, angústias e
sonhos, sua vida material e familiar. É fundamental também respeitá-los, e construir em
conjunto uma disciplina que signifique libertação das formas de opressão; em regra
geral, caracterizamos que uma turma de estudantes terá maior disciplina na medida em
que conseguir construir coletivamente estratégias sistemáticas de produção de
conhecimento e de difusão de uma cultura de direitos através do respeito mútuo e da
solidariedade.
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CASTRO, Jorge Abrahão de Castro; AQUINO, Luseni Maria C. de & ANDRADE, Carla Coelho de. Juventude e políticas sociais no Brasil. Brasília: IPEA, 2009.
26
Idem, ibidem. Pág 17
21
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