139252429 reflexoes sobre o romance moderno rosenfeld

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    anatol rosenfeld

    TEXTO/CONTEXTO I

    ~\\,~~ ~ EDITORA PERSPECTIVA

    ~I\~

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    5" edioISBN 85-273-0073-7

    Direitos reservados EDITORA PERSPECTIVA S.A.Avenida Brigadeiro Lus Antnio, 302501401-000 - So Paulo - SP -BrasilTelefone: (011) 885-8388Fax: (011) 885-68781996

    Quando a alma fala, j no fala a alma.

    FRIEDRICH SCHILLER

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    REFLEXES SOBRE O ROMANCE MODERNO

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    Estas consideraes sobre o romanceA modernoI'lll. visam a uma apresentao sistemtica ou histri-ca, por mais rudimentar que seja, de um vasto stor d~ literatura atual. O que propomos, nestas pginas, um jogo de reflexes, espcie de dilogo iUdico .como leitor, baseado numa srie de hipteses. possivelmen-te fecundas.

    A hiptese bsica t.:mque nos apoiamos a supo-sio de que em cada fase histrica exista certo Zeitgeist, um esprito unificador que se comunica atodas as manifestaes de culturas em contato, natu-ralmente com variaes nacionais. Falamos nestas

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    pginas da "cultura ocidental", no tomando em con-ta as diversificaes naciclDais. . Supomos, pois, quemesmo numa cultura muito complexa como a nossa,com alta especializao e autonomia das vrias esferas- tais como cincias, artes, filosofia - no s hajainterdependncia e mtua influncia entre esses cam- pos, mas, alm disso, certa unidade de esprito e sen-timento de vida, que impregna, em certa medida, tOdasestas atividades.

    A segunda hiptese sugere que se deva conside-rar, no campo das artes, como de excepcional impor-tncia o fenmeno da "desrealizao" que se observana pintura e que, h mais de meio sculo, vem sus-citando reaes pouco amveis no grande pblico. Otermo "desrealizao" se refere ao fato de que a pintu-ra deixou de ser mimtica, recusando a funo de re- produzir ou copiar a realidade emprica, sensvel. Isso,

    sendo evidente no tocante pintura abstrata ou no--figurativa, inclui tambm correntes figurativas comoo cubismo, expressionismo ou surrealismo. Mesmoestas correntes deixaram de visar a reproduo maisou menos fiel da- tealidade emprica. Esta, no expres-sionismo, apenas "usada" para facilitar a expressode emoes e vises subjetivas que lhe deformam aaparncia; no surrealismo, fornece apenas elementosisolados, em contexto inslito, para apresentar a ima-gem oDrica de um mundo dissociado e absurdo; no

    cubismo, apenas ponto de partida de uma reduoa suas configuraes geomtricas subjacentes. Em todosesses casos podemos falar de uma negao do realis-mo, se usarmos este termo no sentido mais lato, de-signando a tendncia de reproduzir, de uma forma es-tilizada ou no, idealizada ou no, a realidade apreen-dida pelos nossos sentidos. H interpretaes diame-tralmente opostas deste fenmeno. Marcel Brion, por exemplo, baseado nas teorias de Worringer, consideraa abstrao (e o anti-realismo) como manifestao cor-

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    riqueira, freqente na histria. de um sentimento devida religioso ou pelo menos espiritualizado. "S a pintura abstrata pode dar expresso ao que pela sua

    prpria essncia no-figurativo: a um estado psqui-co." J o catlico Hans Sedlmayr considera a arteabstrata (e moderna em geral) um fenmeno riico nahistria, uma revoluo "como antes nunca existiu".E alm disso julga esta arte profundamente irreligio-sa por nela no se vislumbrarem outros valores que

    os puramente estticos e por tornar-se assim a prpriaarte em dolo.

    Abstendo-nos de tais interpretaes extremas, ve-rificamos apenas o fato da abstrao, atribuindo-lhegrande importncia. Desse fato seguem, ou a ele seligam, vrios momentos de igual importncia: o ser

    humano. na pintura moderna, dissociado ou "redu-zido" (no cubismo). deformado (no expressionismo)ou eliminado (no no-figurativismo). O retrato de-sapareceu. Ademais, a perspectiva foi abolida ou so-freu, no surrealismo. distores e "falsificaes". Sobreeste fato h muitas especulaes fascinantes. A pers-

    pectiva central, eliminada pela pintura moderna, surgiuno Renascimento; a perspectiva grega, diversa da re-nascentista, foi introduzida na poca dos sofistas, nosculo V a.c. Como se sabe, a pintura egpcia ou a pintura europia medieval - para dar s estes exem- plos -- no conheciam ou no empregavam a pers- pectiva. As hipteses sobre esse curioso fenmeno ten-dem a considerar provvel que a. perspectiva seja umrecurso para a conquista artstica do mundo terreno,isto . da realidade sensvel. f: caracterstica tpicade pocas em que se acentua a emancipao do in-divduo, fenmeno fundamental da poca sofista e re-nascentista.

    A perspectiva cria a iluso do espao tridimen-sional. projetando o mundo a partir de uma conscin-cia individual. O mundo relativizado, visto em rela-

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    Nossa segunda hiptese resulta, portanto, naafirmao de que a pintura moderna - eliminando oudeformando o ser humano, a perspectiva "ilusionista"

    e a realidade dos fenmenos projetados por ela - expresso de um sentimento de vida ou de uma atitu-de espiritual que renegam ou pelo menos pem em d-vida a "viso" do mundo que se desenvolveu a partir do Renascimento. Merece, alis, ser salieI!tado que anegao do ilusionismo particularmente bem caracte-

    rizada no teatro. Este, ao abandonar a partir dos in-cios do nosso sculo as convenes tradicionais, o pal-co italiana, a imitao minuciosa da vida emprica,tal como visada pelos naturalistas, comea a se con-fessar teatro, mscara, disfarce, jogo cnico, da mes-ma forma como a pintura moderna se confessa planode tela coberta de cores, em vez de simular o espaotridimensional, volumes e figuras. O crtico teatral S.Melchinger ressalta com preciso que, da mesma for-ma como o desenvolvimento da pintura levou do fe-nmeno individual "rvore" linha ou cor puras ou organizao abstrata da superfcie, assim o desen-volVImento do teatro conduz reconstituio dosseus fenmenos especficos: do Ludus (jogo) que precisamente no a realidade, da pea, que no avida, da cena, que no o mundo.

    O palco italiana era tipicamente um palco pers- pectvico. A cena moderna, "espacial", sem caixa de palco, cena que faz parte da sala de espetculos, sem

    separar-se dela pela moldura que a "enquadra" e cons-titui como mundo distinto, ~ nitidamente aperspect-vica. H uma interpenetrao entre o espao cnico eo espao emprico da sala que borra a perspectiva.Resultado semelhante decorre dos teatros de arena.

    Recorrendo nossa primeira hiptese da unida-

    de espiritual das fases histricas, chegamos nossa ter-ceira hiptese: tais alteraes profundas, verificadasna pintura (e tambm nas outras artes), devem, de

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    um ou outro modo. manifestar-se tambm no roman-ce, embora neste campo seja bem menor o nmero de pessoas que se deram conta de modificaes semelhan-tes quelas que na pintura provocaram verdadeiros es-

    . cndalos. De fato, as alteraes ocorridas no romao-ce no "do tanto na vista" como as de uma arte vi-sual. Alm disso, o mercado de romances abastecido

    em escala muito maior por obras de tipo tradicional.O valor das nossas hipteses mede-se pela fertili-

    dade da sua aplicao, pelos esclarecimentos que elas porventura so capazes de oferecer no campo da lite-ratura e pela iluminao que certas interpretaes, co-lhidas destarte no romance, podero por sua vez lan-ar sobre a pintura.

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    Nota-se no romance do nosso sculo uma modi-ficao anloga da pintura moderna, modificaoque parece ser essencial estrutura do modernismo.A eliminao do espao, ou da iluso do espao, pa-rece corresponder no romance a da sucesso temporal.A cronologia, a continuidade temPoral foram abala-das, "os relgios foram destrudos". O romance mo-denio nasceu no momento em que Proust, Joyce, Gide,Faulkner comeam a desfazer a ordem cronolgica,fundindo passado, presente e futuro.

    Fenmeno semelhante ocorre no teatro com aPea de Sonho, de Strindberg. De um modo geral com o grande sueco e com Pirandello que se iniciano teatro a destruio do espao cnico fechado, pro-cesso que acompanha a superao da mecnica clssi-ca e da matemtica euclidiana. Com a "teoria da re-latividade cnica", espao e tempo fictcios comeama oscilar e pelas paredes rotas do palco penetra o mito,a mstica, o irreal, enquanto a psicologia profunda

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    faz estremecer os planos da conscincia, impregnandoa realidade de elementos onricos.

    Com isso, espao e tempo, formas relativas da

    nossa conscincia, mas sempre manipuladas como sefossem absolutas, so por assim dizer denunciadascomo rdativas e subjetivas. A conscincia como que pe em dvida o seu direito de impor s coisas - e prpria vida psquica - uma ordem que j no pa-rece corresponder realidade verdadeira. A dificul-

    dade que boa parte do pblico encontra em adaptar-sea este tipo de pintura ou romance decorre da circuns-tncia de a arte moderna negar o compromisso comeste mundo emprico das "aparncias", isto' , com omundo temporal e espacial posto como real e absolu-to pelo realismo tradicional e pelo senso comum. Tra-

    ta-se, antes de tudo, de um processo de desmascara-mento do mndo epidrmico do senso comum. Reve-lando espao e tempo -- e com isso o mundo empricodos sentidos - como relativos ou mesmo como apa-rentes, a arte moderna nada fez seno .reconhecer oque corriqueiro na cincia e filosofia. Duvidandoda posio absoluta da "conscincia central", ela re- pele o que faz a sociologi~ do conhecimento, com suareflexo crtica sobre as posies ocupadas pelo sujei-to .cognoscente:

    O fundamentalmente novo que a arte modernano o reconhece apenas tematicamente, atravs de umaalegoria pictrica ou a afirmao terica de uma per-sonagem de romance, mas atravs da assimilao des-ta' relatividade prpria estrutura da obra-de-arte. Aviso de uma realidade mais profunda, mais real, doque a do senso comum incorporada forma total daobra. ~ s assim que essa viso se toma realmentevlida em termos estticos.

    ~ absurdo negar arte tradicional o direito devida, j que vastos setores do pblico lhe do franca

    preferncia. No entanto, tem-se diante dessas manifes-

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    futuro se inserem -- atravs da repetio incessanteque d ao romance um movimento giratrio - nomonlogo interior da personagem que se debate na

    sua desesperada angstia, vivendo o tempo do pesa-delo. A irrupo, no momento atual, do passado re-moto e das imagens obsessivas do futuro no pode ser apenas afirmada como num tratado de psicologia. Elatem de processar-se no prprio contexto narrativo emcuja estrutura os nveis temporais passam a confundir-

    -se sem demarcao ntida entre passado, presente efuturo. Desta forma, o leitor - que no teme esseesforo - tem de participar da prpria experinciada personagem. No conta com as facilidades que,quase sempre, marcam no filme o retrocesso do flashback: este recurso d passado como passado, como

    coisa morta, apenas lembrada. Para faz-lo ressurgir em toda a sua pujana, como presena atual, no se pode narr-lo como passado. O processo dessa atuali-zao (que foi adotado no filine Hiroshima, meu Amor e, de outro modo, em Ano passado em Ma-rienbad), no s modifica a estrutura do romance,mas at a da frase que, ao acolher o denso tecido dasassociaes com sua carga de emoes, se estende, de-compe e amorfiza ao extremo, confundindo e mistu-rando, como no prprio fluxo da conscincia, frag~mentos atuais de objetos ou pessoas presentes e agora percebidos com desejos e angstias abarcando o futuroou ainda experincias vividas h muito tempo e se im- pondo talvez com fora e realidade maiores do queas' percepes "reais". A narrao toma-se assim pa-dro plano em cujas linhas se funde, como simultanei-dade, a distenso temporal.

    A tentativa de reproduzir este fluxo da conscin-cia - com sua fuso dos nveis temporais - leva

    radicalizao extrema do monlogo interior. Desapa-rece ou se omite o intermedirio, isto , o narrador,que nos apresenta a personagem no distanciamento

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    gramatical do pronome "ele" e da "Vozdo pretrito.A conscincia da personagem passa a manifestar-se nasua atualidade imediata, em pleno ato presente, comoum Eu que ocupa totalmente a tela imaginria do ro-mance. Ao desaparecer o intermedirio, substitudo pela presena direta do fluxo psquico, desaparece tam- bm a ordem lgica da orao e a coerncia da estru-

    tura que o narrador clssico imprimia seqncia dosacontecimentos. Com isso esgara-se, alm das formasde tempo e espao, mais uma categoria fundamentalda realidade emprica e do senso comum: a da causa-lidade (lei de causa e efeito), base do enredo tradicio-nal, com seu encadeamento lgico de motivos e situa-es, com seu incio, meio e fim.

    Tais modificaes, que de um ou outro modo seligam abolio do tempo cronolgico (corresponden-te do espao-iluso na pintura), decorrem, pelo que

    se v, do uso de recursos destinados li reproduzir coma mxima fidelidade a experincia psquica. Implicamuma retificao do enfoque: o narrador, no af deapresentar a "realidade como tal" e no aquela reali-dade lgica e bem comportada do narrador tradicional, procura superar a perspectiva tradicional, submergindona prpria corrente psquica da personagem ou toman-do qualquer posio que lhe parece menos fictcia queas tradicionais e "ilusionistas".

    Segundo Wolfgang Kayser, a supresso da funo

    mediadora do narrador ruinosa para a fico. E .

    que tradicionalmente coube ao narrador, como eixo emtomo do qual revolve a narrao, garantir a ordemsignificativa da obra e do mundo narrado. No entan-to, se esta ordem posta em dvida, a ausncia doorganizador e a supresso de uma ordem ilusria cer-tamente se justificam.

    Trata-se, no fundo, de uma radicalizao do ro-mance psicolgico e realista do sculo passado; maseste excesso levou a conseqncias que invertem por

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    inteiro a forma do romance tradicional. A enfocaomicroscpica aplicada vida psquica teve efeitos se-melhantes viso de um inseto debaixo da lente domicroscpio. No o reconhecemos maia como tal, pois,eliminada a distdncia, focalizamos apenas uma parceladele, imensamente ampliada. Da mesma forma se des-faz a personagem ntida, de contornos firmes e claros,to tpica do romance convencional. Devido focali-zao ampliada de certos mecanismos psquicos perde--se a noo da personalidade total e do seu "carter"que j no pode ser elaborado de modo plstico, ao lon-go de um enredo em seqncia causal, atravs de umtemp.o de cronologia coerente. H, portanto, plena in-terdependncia entre a dissoluo da cronologia, da mo-tivao causal, do enredo e da personalidade. Esta

    ltima, ademais, no se esfarpa apenas nos contornosexteriores, mas tambm nos limites internos: ela setranscende para o mundo nfero das camadas infra- pessoais do it, para o poo do inconsciente; mundoem que, segundo Freud, no existe tempo cronolgicoe em que se acumulariam, segundo lung, nio s as

    experincias da vida individual e sim as arquetpicase coletivas da prpria humanidade.Reconhecemos, no processo descrito, muitas ana-

    logias com a pintura moderna. abolio do espao--iluso corresponde a do tempo cronolgico. Isso im- plica uma srie de alteraes que eliminam ou ao me-nos borram a .perspectiva ntida do romance realista.Espao, tempo e causalidade foram "desmascarados". .como meras aparncias exteriores, como formas epidr-micas por meio das quais o senso comum procura im- por uma ordem fictcia realidade. Neste processode desmascaramento foi envolvido tambm o ser hu-mano. Eliminado ou deformado na pintura, tambmse fragmenta e decompe no romance. Este, no p0-dendo demiti-lo por inteiro, deixa. de apresentar o re-

    'trato de Uldivduos ntegros. Ao fim, a personagem

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    chega. p. ex. nos romances de Beckett .. a mero porta-dor abstrato - invlido e mutilado - da palavra. amero suporte precrio. "no-figurativo", da lngua. Oindivduo. a pessoa, o heri so revelados como ilusoou conveno. Em seu lugar encontramos a ViS30microscpica e por isso no-perspectvica de mecanis-mos psquicos fundamentais ou de situaes humanasarquetpicas.

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    Partimos, para forar a analogia com a pintura,de alteraes "tcnicas" que acabaram por resultar nu-ma verdadeira desmontagem da pessoa humana e do"retrato" individual. No entanto, chegados a este ponto. justo acentuar que o processo talvez tenhasido inverso ou interdependente. O que se afigurou co-

    mo resultado de desenvolvimentos "formais". talvez te-nha sido em verdade ponto de partida ou parte ineren-te desses desenvolvimentos. Talvez fora bsica umanova experincia da personalidade humana. da pre-cariedade da sua situao num mundo catico, em r- pida transformao, abalado por cataclismos guerrei-ros, imensos movimentos coletivos, espantosos progres-sos tcnicos que, desencadeados pela ao do homem. passam a ameaar e dominar o homem. No se re-fletiria esta experincia da situao precria do indi-

    vduo em face do mundo. e da ~ua relao alterada para com ele, no fato de o artista j no se sentir auto-rizado a projet-lo a partir da prpria conscincia? Umapoca com todos os valores em transio e por issoincoerentes, uma realidade que deixou de ser "ummundo explicado", exigem adaptaes estticas capa-zes de incorporar o estado de fluxo e insegurana den-tro da prpria estrutura da obra. De qualquer mododesapareceu a certeza ingnua da posio divina do in-divduo, a certeza do homem de poder constituir, a

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    partir de uma conscincia que agora se lhe afigura epi-drmica e superficial, um mundo que timbra, em de-monstrar-lhe. por uma \'erdadeira revolta das coisas.que no aceita ordens desta conscincia.

    Notamos uma espcie de pressentimento disso noauge do individualismo, em pleno sculo XIX. Os pin-tores impressionistas, com sua arte alegre e luminosa,certamente no desejavam exprimir nenhuma cosmovi-so profunda.' Desejavam, precisamente, reproduzir apenas a aparncia passageira da realidade, a impres-so fugaz do momento. De certa forma eram realistasao extremo. Mas precisamente por isso j no alegamreproduzir a realidade e sim apenas a sua "impresso".Tornaram-se subjetivos por quererem ser objetivos. Eno mesmo momento a perspectiva comea a borrar-se:

    o pintor j no pretende projetar a realidade; reproduzapenas a sua prpria impresso, flutuante e vaga, eassim renuncia posio de quem se coloca "em face"do mundo. Da a Kandinsky h s um passo: o daexpresso imediata do mundo psquico, sem necessi-dade de recorrer mediao de impresses figurativas.

    A perspectiva desaparece porque no h mais nenhummundo exterior a projetar, uma vez que o prprio fluxo psquico, englobando o mundo, se espraia sobre o planoda tela. No entanto, neste processo - que correspon-de ao do monlogo interior radical - se manifesta pre-cisamente a crise acima apontada. O que se verifica, o

    segumte, posto em termos esquemticos e simplificados:s~ a perspectiva expresso de uma relao entre dois plos, sendo um o homem e o outro o mundo pro-. jetado, d-se agora uma ruptura completa. Um dos plos eliminado e com isso desaparece a perspectiva. Num caso, resta s o fluxo da vida psquica que absor-veu totalmente o mundo (seria o caso de Kandinskye dos seus seguidores); noutro caso, resta s o mundo,reduzido a estruturas geomtricas em equilbrio que, por sua vez, absorvem o homem (seria o caso de Mon-

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    drian e dos seus seguidores). Em ambos os casos,suprime-se a distncia entre o homem e o mundo ecom isso a perspectiva. O abandono da perspectivamostra ser expresso do anseio de superar a distnciaentre indivduo e mundo; distncia de que a perspecti-va se torna a expresso decisiva no momento em queo indivduo j no tem a f renascentista na posio privilegiada da conscincia humana em face do mundoe no acredita mais na possibilidade de, a partir dela, poder constituir uma realidade que no seja falsa e"ilusionista" .

    Assim, a perspectiva, de incio recurso artstico para dominar o mundo terreno, torna-se agora smbolodo abismo entre o homem e o mundo, smbolo dessaciso e distncia que o poeta G. Benn chamou a "ca-tstrofe esquizide", a fragmentao da unidade para-disaca original. O sentimento dessa "conscincia in-

    feliz" suscita uma verdadeira angstia. Geraes intei-ras de artistas e intelectuais procuram reencontrar uma posio estvel e essa procura, resultado e causa deuma mstabilidade cada vez maior, exprime-se no esta-do de pesquisa e experimentao no romance, cujosautores tentam retificar as enfocaes tradicionais; emanifesta-se, principalmente, no desejo de fugir paraum mundo ou uma poca em que o homem, fundidocom a vida universal, ainda no conquistara os contor-nos definitivos do eu, em que no se dera ainda o pecado original da "individuao" e da projeo pers- pectvica. Esse culto do arcaico, esta glorificao doincio e do elementar so tpicos justamente para asvanguardas mais requintadas. O intelectual, o "esqui-zide" neurtico, dissociado entre os valores em trau-sio, enquanto revela essa fragmentao nas suas per-sonagens desfeitas e amorfas, exprime nesta mesmadecomposio do indivduo a sua esperana de, che-gado substncia annima do ente humano, poder vis-lumbrar a integrao no mundo elementar do mito.

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    Da a glorificao dos deuses passados e o mis-ticismo orientalizante de tantas "Beat Generations" eadeptos de Zen, arautos fervorosos de uma unidadeaperspectvica em que no h "pontos de fuga" e emque os seres se confundem e apagam na "unio mystica" plana, que apenas o reverso "dialtico" dos imensosespaos vazios, feitos de pesadelo e angstia, dos sur-realistas: perspectiva deformada que encontramos tam- bm nos romances de Kafka.

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    Vimos que a radicalizao do romance psicol-gico do sculo passado levou sua autodissoluo -da mesma forma como a aprofundao da pesquisa

    cientfica levou a hiptese de o indivduo consCiente eracional ser apenas um ente fictcio, epidrmico. Estaconscincia individual seria apenas uma tnue camada,uma onda fugaz no mar insondvel do inconscienteannimo. No fundo e em essncia o homem repetesempre as mesmas estruturas arquetpicas - as de

    f:dipo ou de Electra (a prpria psicologia recorreuao mito); as do pecado original, da individuao; da partida da casa paterna, da volta do filho prdigo; dePrometeu, de Teseu no labirinto - e assim em diante.A prpria emergncia e emancipao do indivduo ra-cional e consciente apenas parte daquele "eterno re-torno", um padro fixo que a humanidade repete nasua caminhada circular atravs dos milnios.

    Compreendemos agora mais de perto porque a personalidade individual tinha de desfazer-se e tomar--se abstrata no processo tcnico descrito: para que serevelem tanto melhor as configuraiks arquetpicas doser humano; estas so intemporais como intemporalo "tempo mtico" que,Jonge de ser linear e progressivo(como o tempo judaico-cristo), circular, voltandosobre si mesmo. O tempo linear, cronolgico, se apa-

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    ga como mera aparncia no eterno retomo das mes-mas situaes e estruturas coletivas. Na dimenso m-tica, passado, presente e futuro se identificam: as per-sonagens so, por assim dizer, abertas para o passadoque presente que futuro que presente que pas-sado - abertas no s para o passado individual esim o da humanidade; confundem-se com seus prede-cessores remotos, so apenas manifestaes fugazes,mscaras momentneas de um processo eterno quetranscende no s o indivduo e sim a prpria huma-nidade: esta, reintegrada no Arqui-Ser, que a ultrapassae abarca, parte da luta eterna entre as foras divinase demonacas; portadora de uma mensagem sobre--humana; ergue-se prometeicamente contra as divinda-des; expulsa da unidade original; sofre a tortura deSsifo num mundo absurdo; vive a frustrao do homemque almeja chegar ao Castelo dos poderes insondveisetc. Assim, em Ulysses transparecem, atravs dasmscaras de Bloom, Dedalus e Mol1y, as personagensmticas de Ulisses, Telmaco e Penlope. Na odissiade um s dia, no mar urbano da "Polis" de Dublin, celebrada, ainda que em termos de pardia, a inter-minvel viagem do heri homrico. Renasce - numaviso saudosa e irnica - um mundo em que as es-feras divina e humana ainda se interpenetram numaunidade sem fenda. Esta odissia do sculo XX, prenhe, de dissociaes, montagens artificiais, variaes

    de estilo, evoca a unidade mtica e revela ao mesmotempo, na sua prpria estrutura, a razo dessa procurasaudosa.

    Boa parte da obra de Faulkner reencena comomito puritano a conspurcao da terra prometida pelomaterialismo e pelo dio racial. B uma repetio daqueda. Essa corrupo original atua incessantementenos dias atuais. A tcnica complexa de Faulkner, ainverso cronolgica dos acontecimentos, a construocircular, a irrupo do passado no presente e, com

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    isso, do inconsciente no consciente, so a expressoformal precisa de um mundo em que a continuidadedo tempo emprico e o eu coerente e epidrmico jno tm sentido.

    No esfacelamento de Macunama manifestam-se,atravs das preocupaes nacionais e pessoais de Mriode Andrade, que disse de si que "sou trezentos, s_outrezentos-e-cinqenta", as estruturas arquetpicas dosdeuses despedaados, mas de novo recompostos; o heride Grande Serto: Veredas, de Guimares Rosa, revi-ve o drama de Fausto em pleno serto brasileiro; Revel,o heri de L'Emploi du Temps, de Michel Butor, re- pete no labirinto da grande cidade a aventura de Teseu,lutando com o Minotauro do tempo; as angstias doheri de Berlim Alexanderplatz (Alfred Doeblin), vi-

    vidas na Babel moderna da grande cidade, so sincro-nizadas com temas bblicos.Em todas estas e em muitas outras obras se nota,

    em grau maior ou menor, esta desrealizao, abstraoe desindividualizao de que partimos, evidente tentati-va de superar a dimenso da realidade sensvel para

    chegar, segundo as palavras do pintor expressionistaFranz Marc, "essncia absoluta que vive por trs daaparncia que vemos".

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    No romance do sculo passado a perspectiva, a plasticidade das personagens e a iluso da realidade fo-r~m criadas por uma espcie de truque: o romancista,onisciente, adotando por assim dizer uma viso estereos-cpica ou tridimensional, enfocava as suas personagenslogo de dentro, logo de fora, conhecia-lhes o futuroe o passado empricos, .biogrficos, situava-as num am- biente de cujo plano de fundo se destacavam com niti-

    dez, realava-lhes a verossimilhana (aparncia da ver- .dade) conduzindo-as ao longo de um enredo cronol-gico (retrocessos no tempo eram marcados como tais),

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    de encadeamento causal. O narrador, mesmo quandono se manifestava de um modo acentuado, desapare-cendo por trs da obra como se esta se narrasse sozi-nha, impunha-lhe uma ordem que se assemelhava projeo a partir de uma conscincia situada fora ouacima do contexto narrativo. Por mais fictcio que sejao imperfeito da narrao, esta voz gramatical reveladistncia e indica que o narrador no faz parte dos su-cessos, ainda que se apresente como Eu que alega nar-rar as prprias aventuras: o Eu que narra j se distan-ciou o suficiente do Eu passado (narrado) para ter aviso perspectvica. O Eu passado j se tornou objeto para o Eu narrador. ' E : . digno de nota a grande quanti-dade de romances modernos narrados na voz do pre-sente, quer para eliminar a impresso de distncia entreo narrador e o mundo narrado, quer para apresentar a "geometria" de um mundo eterno, sem tempo.

    O primeiro grande romancista que rompe a tra-dio do sculo XIX, conquanto ainda de modo mo-derado, MareeI Proust: para o narrador do seu grau-de romance o mundo j no um dado objetivo e simvivncia subjetiva; o romance se passa no ntimo donarrador, as perspectivas se borram, as pessoas se frag-mentam, visto que a cronologia se confunde no tempovivido; a reminiscncia transforma o passado em atua-lidade. Como o narrador j no se encontra fora dasituao narrada e sim profundamente envolvido nelano h a distncia que produz a viso perspectvica.

    Quanto mais o narrador se envolve na situao,atravs da viso microscpica e da voz do presente, tantomais os contornos ntidos se confundem; o mundo nar-rado se torna opaco e catico. Vimos que esta "tcni-ca", se de um lado causa, de outro lado resultadodo fato de que, conforme a expresso de VirgniaWoolf, a vida atual feita de trevas impenetrveis queno permitem a viso circunspecta do romancistatradicional.

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    Em muitos romances de transio o prprio nar-rador comea a ironizar a sua perspectiva ainda con-vencional. Chega mesmo a desculpar-se por saber tan-to a respeito de personagens de que no pode conhe-cer as emoes e a biografia mais ntimas.

    Surge ento a tentativa de superar tais dvidasatravs da autoridade do mito: o narrador, ente hu-mano como suas figuras, participa das mesmas estru-turas coletivas: no as inventa. Os mecanismos psqui-

    cos so os mesmos em todos os seres humanos: elemesmo os vive. No descreve a psicologia individualde Fulano e Sicrano que, de fato, no pode conhecer;descreve processos fundamentais de dentro da perso-nagem que se confunde com o narrador no monlogointerior. A romancista Nathalie Sarraute acentua que

    "o leitor se encontra de chofre no ntimo, no mesmolugar em que se encontra o autor, numa profundezaem que nada mais permanece das marcas confortveiscom cujo auxlio (o autor tradicional) constri a per-sonagem fictcia. Ele submerge. .. numa matria toannima como o sangue, num magma sem nome oucontornos" (VEre de Soupon). Nos seus prpriosromances, vai tecnicamente muito alm de Proust. Jno existe um Eu narrador fixo face a um Eu narradoem transformao; o prprio Eu narrador se transfor-ma constantemente, como se a autora quisesse demons-trar a relatividade de tudo e a teoria de ,Einstein;pos-sive1mente a relatividade da prpria teoria da relati-vidade.

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    Se neste tipo de romances o narrador objetivose omite, lanando-se, junto com o mundo exterior, nofluxo da conscincia catica da personagem, h outro'

    tipos de narrativas m que o narrador se omite - ou pelo menos supera o narrador tradicional - pela en-focao rgida das personagens somente de fora: renun-

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    cia a conhecer-lhes a intimidade. Descreve-lhes apenaso comportamento exterior e reproduz os dilogos. Nun-ca lhes penetra a alma.

    Em alguns contos admirve-is, Hemingway aplicoucom rigor esta tcnica derivada da psicologia compor-tamentista ("Behaviorism" - psicologia que eliminaqualquer referncia vida psquica). f: uma focaliza-o que se presta de incio a dar vida intensa a ummundo herico e primitivo em que a psicologia subs-tituda pela ao. Mas a perspectiva unilateral, ligadaa um estilo seco e impessoal, isento de quaisquer ex- plicaes causais, torna as personagens estranhas e im- penetrveis, num mundo igualmente estranho e mJc-vassvel. Neste mundo, os seres humanos tendem atornar-se objetos sem alma entre objetos sem alma.entes "estrangeiros", solitrios, sem comunicao.

    f : . precisamente L .' E;'ranger que se chama o melhor

    romance .de Camus. Esta obra, curiosamente, nar-rada na forma do Eu, mas com a tcnica behaviorista.

    f: um Eu que nada tem a narrar sobre a sua vidantima porque no a tem ou no a con~ece - um"falso Eu", como foi chamado. No tem dimensointerior, vive planando na superfcie das sensaes. O

    prprio assassnio que comete conseqncia de umreflexo e no de dios ou emoes ntimas. O tribunalque o condena tenta restituir-lhe a alma para poder conden-lo. Introjeta nele motivos que no tivera, mal-

    dades que no conhecera. uma coerncia de atitudesque ignorara. Faz dele personagem de romance tra-dicional para poder conden-lo. Esse tribur.al absur-do um grande smbolo da alienao: entre o ru --cidado de quem o Estado e seu tribunal tiram o seudireito e fora - e este mesmo tribunal criado pelocidado, j no existe a mnima relao. Reconhece-mos, em certa medida, o tribunal de Kafka: este, po-rm, exprimiu a profunda dvida em face da alienaointerposta entre o homem "exilado" e o poder meta-

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    fsico insondvel que o esmaga. Em Camus j no hdvida, apenas a afirmao do absurdo.

    Notamos nesta obra de Camus algo da ptica

    "surrealista" de Kafka, com suas "personagens em pro- jeto" que nem nome tm e que vivem no tempo para-lisado da espera (como as personagens da pea Espe-rando Godot, de Beckett): perspectiva falsa e exage-rada dos surrealistas que corresponde com preciso aeste mito da frustrao e da impossibilidade de reen-

    contrar a unidade perdida: o pecado a prpria indi-viduao. Kafka, com efeito, escreveu o mito da im- possibilidade do retomo ao mundo mtico.

    Tambm neste tipo de romances se verifica oabandono completo da psicologia "retratista" do ro-mance tradicional (psicologia e romance que, em

    L'etranger, so objetos de pardia). Ainda o mesmoocorre nas obras, cujo tema a simultaneidade da vidacoletiva de uma casa ou cidade ou de um amplo espa-o geogrfico num segmento de tempo. O grande mo-delo de tais romances USA, de Dos Passos, cujatcnica encontramos tambm em Berlim Alexanderplat,z. Le Sursis (Sartre) ou, mais recentemente, embora mo-dificada, em Passage de Milan, de Michel Butor, bemcomo em muitos outros romances. A tcnica simult-nea joga com grandes espaos e coletivos. Elimina,quase sempre, o centro pessoal ou a enfocao coeren-te e sucessiva de uma personagem central. Os indiv-duos - quase totalmente desindividualizados - solanados no turbilho de uma montagem catica demonlogos interiores, notcias de jornal, estatsticas,cartazes de propaganda, informaes polticas e meteo-rolgicas, itinerrios de bonde - montagem que re- produz, maneira de rapidssimos cortes cinematogr-ficos, o redemoinho da vida metropolitana. O indivduo

    dissolve-se na polifonia de vastos afrescos que tendemli abandonar por inteiro a iluso ptica da perspectiva, j em si destruda pela simultaneidade dos aconteci:

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    mentos, a qual substitui a cronologia. Poder-se-ia falar de um enfocao telescpica, de grande distncia, cujoefeito o mesmo da microscpica - o "achatamento"do objeto - se o foco no se dissolvesse junto comas personagens visadas, neste mundo imenso da reali-dade social que sufoca o "elemento" humano.

    Vemos, portanto, que a perspectiva tanto se des-

    faz nos romances em que o narrador submerge, por inteiro, na vida psquica da sua personagem, como na-queles em que se lana no rodopiar do mundo. Quer o mundo se dissolva na conscincia, quer a conscin-cia no mundo, tragada pela vaga da realidade coletiva,em ambos os casos o narrador se confessa incapaz oudesautorizado a manter-se na posio distanciada e su- perior do narrador "realista" que projeta um mundo deiluso a partir da sua posio privilegiada. Essa dis-tncia precisamente exagerada e acentuada ao extre-

    mo na perspectiva deformada que, falando de Camus eKafka, chamamos de "surrealista". Curiosamente, emtodos os trs casos os resultados se assemelham: no primeiro, o indivduo desfaz o mundo e deixa de ser pessoa ntegra, pois esta s6 se define no mundo, desta-cando-se dele; no segundo caso, o mundo desfaz o in-divduo que, tambm nesta enfocao, deixa de ser pessoa ntegra. E no ltimo caso abre-se um abismoentre indivduo e mundo e, ainda nesta ptica, a pes-soa perde a sua integridade. Todas as trs perspecti-

    vas, sendo sintomas de um grave desequilbrio,' so,como sintomas, ao mesmo tempo expresso verdadeiradas transformaes ameaadoras que a perspectivaequilibrada do romance tradicional, quando usada emnossos dias, timbra em ignorar.

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    Nestas pginjis no foi tentado apresentar umateoria e sim uma srie de hipteses que, como todasas analogias entre as diversas artes, devem ser encara-

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    das com certa reserva. Muito menos foi tentado apre-sentar um quadro completo das novas enfocaes.

    No foi abordado o romance existencialista, nem o ro-mance "geomtrico" de A. Robbe-Grillet que, por exemplo, em Jaio:Jsie, tenta reproduzir o eterno ritmo"grfico", por assim dizer o padro geomtrico, docime como tal, eliminando por inteiro a personagemque portadora deste cime.

    Entretanto, mesmo base desta exposio rudi-mentar bvio que preocupaes semelhantes, decorren-do do mesmo Zeitgeist, se manifestam na pintura e noromance (e, sem dvida, nas outras artes). No che-gamos a concluses to radicais como MareeI Brionou Hans Sedlmayr: de que a arte moderna seria essen-cialmente religiosa ou irreligiosa. Mas sem dvida se

    exprime na arte moderna uma nova viso do homeme da realidade ou, melhor, a tentativa de redefinir asituao do homem e do indivduo, tentativa que serevela no prprio esforo de assimilar, na estruturada obra-de-arte (e no apenas na temtica), a preca-riedade da posio do indivduo no mundo moderno.

    A f renascentista na posio privilegiada do indivduodesapareceu.O modo de abordar o problema foi, evidentemen-

    te, um pouco arbitrrio. Nem todas as facetas pu-deram ser visadas a partir dos momentos da abstrao,da eliminao do retrato individual e da ausncia ou

    deformao da perspectiva. Mas esta nossa enfoca-o, sabendo-se unilateral embora flutuante como ummobile de Calder, tentou incorporar na prpria estru-tura deste trabalho a dvida, atravs da constante re-tomada do fio do raciocnio e do Crculo - talvez vi-cioso - das cogitaes. O que importa a fertilidadedesta perspectiva, ainda que ela seja precria como sohoje todas as perspectivas.

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