114253288 cadernos de subjetividade o reencantamento do concreto

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 SAÚDELOUCURA direção e An tôni o Lanc et ti A partir deste número os Cadernos de Subjetividade serão pu bli cad os na SaúdeLoucura. Desejamo s as sim in te nsificar noss a vocação pl ur al e nosso afeto pelos pe ns ador es da imanência. ANTONIO LANCETTl diretor de Saúd eLou cu ra A R EL AÇÃ O CO MP LE TA DA S OB RAS P UBL IC ADA S N A C OL EÇ ÃO S AÚD EL ou CUR A AC HA -S E NO FIM DO LIVRO. Cadernos de Subjetividade o REENCANTAMENTO DO CONCRETO cl eo de Estudos da Su bj etividade Programa de Es tu do s s- Gr aduados em Psic ol ogia Cl ínica da PUC-SP EDIT OR A HUCITEC EDUC São Paulo, 200 3

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Artigos imprescindíveis para estudiosos da subjetividade contemporânea.

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  • SADELOUCURAdireo deAntnio Lancetti

    A partir deste nmero os Cadernos de Subjetividade sero publicadosna SadeLoucura. Desejamos assim intensificar nossa vocao plural enosso afeto pelos pensadores da imanncia.

    ANTONIO LANCETTl

    diretor de SadeLoucura

    A RELAO COMPLETA DAS OBRAS PUBLICADAS NA COLEO SADELouCURA ACHA-SE NO FIMDO LIVRO.

    Cadernos de Subjetividade

    o REENCANTAMENTO DO CONCRETO

    Ncleo de Estudos da SubjetividadePrograma de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica da PUC-SP

    EDITORA HUCITECEDUCSo Paulo, 2003

    JesioNotaMarked definida por Jesio

  • Cadernos de Subjetividade uma publicao do Ncleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade doPrograma de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica da PUC-SP - Linha de pesquisa:Subjetividades Contemporneas

    COLETIVO EDITORIALEli

  • SUMRIO

    ApresentaoPeter Pl Pelbart & Rogrio da Costa

    11

    () comunismo da imanncial:ntrevista de Flix Guattari a Toni Negri

    15

    Pliss fractalI)ierre Lvy

    23

    A paixo das mquinasNlix Guattari

    39

    ( ) som da linha de varredura/lill Viola

    53

    ( ) reencantamento do concretoFrancisco]. Varela

    71

    ( ) indivduo e sua implexa pr-individualidade1.lliz B. L. Orlandi

    87

    A g~nese do indivduomlbert Simondon

    97

  • 8 SUMRIOGilbert Simondon, O indivduo e sua gnese fsico-biolgica 119Gilles Deleuze

    Da linguagem zaum rede tecnomaya 125Franco Berardi

    A mquina-cinema 135Raymond Bellour

    o trabalho afetivo 143Michael Hardt

    Uma poltica do futuro-presenteMauro S Rego Costa

    Por uma tica da metaestabilidade na relao homem-tcnica 177Liliana da Escssia

    Notas sobre os autores 187

    Fontes dos artigos traduzidos 189

    159Homenagem a Francisco Varela

    (1946-2001)

  • APRESENTAO

    COMO PROJETAR O pensamento altura do nosso tempo e de suasvertigens? O desencanto ps-moderno no soube apreender o sen-tido das mutaes em curso. A subjetividade esgarada por todos oslados pede novas ferramentas tericas, outras antenas, direes indi-tas. As formas inerciais de pensar, de existir, de subjetivar-se e de relaci-onar-se caducaram, mas ainda persistem. O fato que continuamos im-pregnados por dicotomias tais como consciente/inconsciente, acaso/ne-cessidade, natureza/cultura, Ocidente/Oriente, infra-estrutural superes-trutura, etc. No entanto, o tecido fibroso de nossa realidade transbordouem muito esses pares, introduziu no meio deles dobras insuspeitadas,revelando uma tessitura em tal medida complexa que apenas um pen-samento j instalado nessa multiplicidade pode a orientar-se.

    Como expor-se ento s novas foras em jogo neste universo poli-morfo, numa poca em que a megamquina capitalista no cessa deproduzir novas formas de controle social e subjetivo, novas formas demisria e horror? Como abrir-se para a vitalidade das subjetividadesemergentes, nesse contexto? Como cuidar dos vetores que atravessam aMultido? Eis o propsito desta publicao: no se ater ao fascnio com-placente da globalizao, nem ao pessimismo atvico em relao aosubismos sociais, culturais e tecnolgicos do planeta, mas dar-se meiospara lidar com o nascente, oper-lo, corporific-lo, reconhecer-se nele epor meio dele resistir ao mortfero.

    Estamos inseridos numa rede planetria cada vez mais acentrada eomplexa. Para uma nova geografia, novas estratgias. Nesse sentido,resistir hoje significa mais do que crispar-se na marginalidade ou nas

    11

  • 12 APRESENTAO

    bordas ou inilitarizar-se no enfrentamento com um suposto centro pla-netrio. No se trata to-somente de opor-se, mas de compreender osprocessos que percorrem a Multido, conceber meios concretos quepermitam a eles se expressarem, ganharem voz e rosto.

    O reencantamento do concreto um mapeamento de algumas dessas es-tratgias. Eis o calidoscpio que oferecemos ao leitor: experimentaestericas, textos inditos ou inacessveis em nossa lngua. Dos muitosmundos possveis que eles encerram, quais ho de vingar, quais ho desoobrar, quantos ho de se mutiplicar? Em todo caso, preciso rein-ventar o sopro das coisas.

    Em meio a um tecnocosmos a cada dia mais complexo e sofisticado,

    o homem contemporneo v-se s voltas com um novo para o qual ain-da no tem palavras. A estranheza de habitar um ciberespao, de vercrianas tomadas numa relao apaixonada com a multimdia, de assis-tir informatizao galopante da vida domstica, de enfrentar questesinditas no campo da biotica e da biodiversidade - eis alguns poucosindcios, e apenas anedticos, das mutaes cuja dimenso e amplitudemal chegamos a avaliar.

    O que resta de "subjetivo" neste perturbador mundo novo? Afinal,quem somos ns sem os nossos instrumentos, as nossas mquinas, osnossos remdios e as nossas bactrias? Essas misturas em que vivemos eque nos constituem solicitam uma retomada em profundidade da ques-to da subjetividade. So tantas as passagens que nos lanam do "subje-tivo" ao "tecnolgico", que mal sabemos hoje onde comea um e termi-na o outro, quanto de maqunico encontramos no humano e vice-versa. preciso percorr-los como o avesso um do outro, como numa fita deMoebius.

    Assim, no se trata de lamentar ou glorificar a morte do sujeito. Nemo triunfo ou os desastres resultantes dos progressos tcnicos. Pois soacada dia mais artificial pensar tcnica e sujeito sem considerar a conti-nuao que os reinventa a cada momento.

    Seria preciso partir da idia mais provocativa e radical que atravessaos textos do presente volume: a subjetividade ela mesma situa-se naadjacncia de focos de produo mltiplos, heterogneos, no hum a-

    APRESENTAO 13nos. apenas a partir dessa heterogeneidade constitutiva, micro e ma-crocsmica, povoada de elementos tcnicos, semiticos, energticos, quea produo de si pensvel. H portanto uma nova circularidade a serinventada.

    O humanismo clssico concedeu um privilgio excessivo ao indiv-duo j constitudo, em detrimento do processo de individuao. A for-mulao desse problema pelo filsofo francs Gilbert Simondon, numtexto seminal de 1964, est presente, de maneira direta ou indireta, emgrande parte dos trabalhos reunidos neste volume. Quando se pensa afundo esses processos, como o faz a maioria dos ensaios aqui publicados,percebe-se em que medida o indivduo emerge de um mundo complexo(biolgico, tcnico, semitico, poltico ...) e o corporifica, encama-o .

    Se podemos nomear nossa Atualidade uma megarrede heterognea ondeno h estratos determinantes, nela no caberia procurar o fio de Ariad-ne em busca de uma viso totalizante. A infinitude de variveis em jogonos convida a exercer aqui uma certa miopia: ao deter-se neste ou na-quele ponto singular, deixar ressoar a megarrede em toda a sua diversi-dade. Afinal, o que somos hoje seno fragmentos espalhados por estamirade de linhas, aninhados em seus entroncamentos, seduzidos porsuas bifurcaes e ramificaes? Por que ento essa insistncia em bus-car no espelho do mundo apenas o reflexo opaco de nosso rosto dema-siadamente humano? Talvez j pudssemos abrir mo dessa miragem.Mais do que nunca, vemo-nos enlaados pela heterogeneidade a maisestrangeira, a mais avessa, simplesmente inumana. Ao ver roubado nos-so reflexo, estaramos mesmo perdidos?

    PETER PL PELBART & ROGRIO DA COSTA

  • oCOMUNISMO DA IMANNCIA .

    .................................... FLIX GUATTARIEntrevistado por To N I N E G R [

  • 16 O COMUNISMO DA IMANNCIA

    CD0G)~) (~

    TONI NEGRI

    Gostaria de comear por uma questo que tambm fiz, recentemen-te, a Gilles Deleuze, a propsito de Mil Plats. Nesse livro, que consideroum dos grandes ensaios filosficos do sculo, acreditei perceber umanota trgica. Os pares conflitantes que nele se desenham (processo/pro-jeto, singularidade/sujeito, composi%rganizao, linhas de fuga/dis-positivo e estratgia, micro/macro, etc.), tudo o que, em suma, constituium sistema aberto encontra-se, por outro lado, no re-enclausurado,mas contido como numa tenso insolvel e num esforo sem fim. nisso que me parece consistir o elemento trgico desse livro.

    FLIX GUATTARI

    Alegria, tragdia, comdia ... os processos que gosto de qualificar co-mo maqunicos tranam um futuro sem garantia - o mnimo que po-demos dizer! Estamos ao mesmo tempo "presos numa ratoeira" e desti-nados s mais inslitas e exaltantes aventuras. impossvel levar-se asrio, mas tambm impossvel no "se enganchar". Essa lgica da ambi-gidade, eu no a vejo tanto como uma "tenso insolvel", mas como ojogo multvoco, polifnico, de escolhas paralelas, por vezes antagni-cas, que no lhe deixa outro recurso seno o da m-f, a bifurcaointerrompendo todo o resto. Como "lidar" com essas constelaes in-sustentveis de universos de referncia? O esquecimento pode ser degrande ajuda, mas ele no est ao alcance de todos!

    16

    o COMUNISMO DA IMANNCIA !!li 17NEGRI

    Nas Cartographies Schizoanalytiques, mas a partir da em todos os seustextos, para caracterizar o perodo histrico atual, voc utiliza a expres-so "era informtica planetria". Esta categoria ecoa com os discursosfoucauItiano e deleuziano sobre a era da comunicao, especificando-os. A aceitao dessa categoria em filosofia tem efeitos metodolgicosfundamentais: ela lhe permite resolver a genealogia na epistemologia evice-versa, e construir os agenciamentos de enunciao de um ponto devista histrico. No entanto, esta reduo no pode ter tambm efeitosperversos no caso de uma epistemologia de referncia informtica? Noh risco de achatamento da determinao ou do agenciamento genea-lgico no universo das relaes transversais, lineares e indiferentes ca-ractersticas desta epistemologia? Como romper a indiferena do hori-zonte informtico?

    GUATTARI

    A subjetividade capitalstica implica uma binarizao e uma desqua-lificao sistmica de todas as "mensagens". Ela coroa o reino de umequivaler generalizado que tem, alm disso, estendido suas coordena-das nos domnios do Espao, do Tempo, da Energia, do Capital, doSignificante, do Ser ... Trata-se ao mesmo tempo de um horizonte hist-rico, cujo surgimento datado, e de uma vertigem axiolgica que re-monta a tempos imemoriais. Por toda parte sempre houve ameaa deabolio da complexidade qualificada, desde o interior. O caos habita ocomplexo; o complexo habita o caos. O que implica que este ltimoseja composto de entidades animadas a uma velocidade absoluta - dei-xando que a cincia "reduza" essas velocidades com constantes tais comoc, h (constante de Planck), o instante zero do bigue-bangue, o zero abso-luto, etc ... O que legitima uma perspectiva de "revoluo molecular" que esta entropia capitalstica da subjetividade se instaura em todos asescalas e renasce constantemente de suas cinzas. Uma periodizao comoa que encadeia a passagem das sociedades de soberania para as socieda-des disciplinares, para resultar nas sociedades de controle, ao mesmotempo genealgica e ontogentica. Todos esses regimes de territoriali-zao do poder, do saber e da subjetividade se decompem e se re-compem na subjetividade contempornea. O que faz com que, porexemplo, no se possa falar hoje, com a escalada dos integrismos e dos

  • 18 O COMUNISMO DA IMANNCIA

    racismos, de "regresso arcaica", mas antes de progressismo fascista ou,a rigor, de neo-arcasmo, sendo entendido que eles reinventam comtodas as peas formas de inteligncia e de sensibilidade do mundo con-temporneo. Recomear a histria desde o comeo ou dobr-la em di-reo a finalidades progressistas: este no mais, verdadeiramente, oproblema! Trata-se antes de recompor, sobre outras bases, os agencia-mentos de subjetivao e, neste momento, recriar de um modo pticoas diversas figuras da subjetivao histrica, das quais a subjetividadecapitalstica a mais vertiginosa por seu vazio, sua banalidade, sua vul-garidade ...

    NEGRI

    Ns vivemos num mundo em que a pluralidade dos processos desubjetivao se constitui atravs de uma pluralidade de equipamentoscoletivos, bem como de mercados e de instituies. Esse processo muito rico e impossvel de ser encaixado nas velhas categorias da de-mocracia ou do socialismo. Para no falar nas velhas categorias do capi-talismo liberal. Mas esse processo tambm atravessado por dinmicasde globalizao e de subordinao que relativizam e sobrecodificam aintensidade dos processos de subjetivao. Por vezes, tenho a impressoque o processo molecular, uma vez tomado hegemnico, foi consumi-do e digerido por uma potncia molar que no reconhece mais seu opostocomo existente. Nesse contexto as sadas metafsicas e polticas no sointeressantes. Como na multido molecular se pode reconstruir umaoposio molar?

    GUATTARI

    Substituda pela mdia de massa, pelas sondagens, pela publicidade,pelas consultorias em comunicao, a democracia poltica toma-se nos cada vez mais formal, cada vez mais cortada da realidade, mas tam-bm cada vez mais delirante. O que no significa que ela perca todarelao com a subjetividade capitalstica. Os lderes polticos rivalizamcom os apresentadores de televiso para penetrar sempre mais na pseu-do-intimidade dos lares. o reino do show de variedades substitudopelo psico-show. O vertiginoso, em tudo isso, a capacidade que temesse tipo de produo de subjetividade de capturar toda imanncia pro-cessual, toda mutao molecular. Existiria, contudo, uma prova de ver-

    o COMUNISMO DA IMANNCIA 19dade capaz de discriminar-se do engodo, do fingimento, do simulacro,j que estes podem tambm tomar-se o lugar de uma autntica territo-rializao existencial? Veja, por exemplo, o gestual estereotipado de umaestrela da cultura rock, cujos traos so contudo objetos de reapropria-o por crianas e adolescentes em momentos cruciais de sua existn-cia. Mas a prova da verdade no engana, ela de ordem ptica: elaque encadeia uma espcie de adeso existencial que cria o aconteci-mento.

    bem verdade que todos esses focos de resistncia molecular contraa serialidade da subjetividade capitalstica se encarnam, freqentemen-te, como retornos transcendncia, ao misticismo, ao culto do "natu-ral". Isso me incomoda menos que a voc. Eu me digo que Deus encon-trar a os ~eus! H algo de to artificial nesses neo-arcasmos ... Elesnunca implicam mais que um estrato dentre outros das formaes desubjetividade. Sabemos muito bem que os integristas tomam um trago eassistem filmes porns s escondidas. O que no desculpa nada! Resu-mindo, o microfascismo est sempre renascendo, mas no forosamen-te o macrofascismo.

    A oposio molar passa ainda e sempre pela constituio de mqui-nas de guerra social. Chegou a hora, porm, de pensar em outra coisaque no nas mquinas leninistas. Acabamos de ver nascer mquinasmolares conhecidas no terceiro mundo, com o integrismo iraniano edepois o nacionalismo iraquiano. Houve durante oito anos guerra demodelos, seleo artificial e depois colocao prova! Uma vez que asobrecodificao das relaes internacionais pelo antagonismo Leste-( leste se enfraqueceu, podemos esperar ver nascer e proliferar toda umasrie de mquinas molares. No h apenas exemplos catastrficos: o PT!lO Brasil autoriza esperanas reservadas ... mas veja bem que eu notenho programa, modelo de referncia! Tudo o que posso dizer queme parece legtimo, inevitvel, que as revolues moleculares sejam"duplicadas" por mquinas de grande escala trabalhando no seio dasrelaes de foras sociais que, longe de se apagar, iro se endurecer,mesmo que se diferenciando.

    N EU RIVoc sustenta o direito fundamental singularidade. Voc o ilustra

    WITIO um recentramento das finalidades da diviso do trabalho e das

  • 20 _. O COMUNISMO DA IMANNCIAprticas sociais emancipadoras, como exerccio de uma tica da finitu-de. Como a partir da um processo de singularizao pode tornar-seantagonista? Ou ainda, como a resistncia das singularidades oprimidaspode tornar-se eficaz? H ainda um intolervel? Ou ele prprio foi reab-sorvido no mecanismo da pluralidade crescente dos mercados? Existe apossibilidade de construir uma idia filosfica do comunismo e de lig-la ao processo de subjetivao? Ainda possvel fazer tudo isso sem cairnas armadilhas do positivismo, do dogmatismo e da utopia?

    GUATTARI

    Tenho a impresso que voc se esfora em me fazer falar. Voc sabetanto quanto eu que um processo de singularizao uma pura afirma-o que ignora o antagonismo, a opresso ou mesmo simplesmente ainterao. Trata-se justamente a de sair mais uma vez das metforasdinmicas e energticas. Um comunismo da imanncia conduziria cons-tantemente o cursor sobre prxis tico-polticas dando suporte a seusprprios universos de referncia. Fora com os paradigmas cientficosque assediaram o marxismo, o freudismo, o estruturalismo, etc ... Todoum pensamento da transcendncia, toda uma sentimentalidade da eter-nidade transformaram o progressivismo em uma imensa fobia, um evi-tamento sistemtico da finitude, da inutilidade ltima da existnciamagnificamente ilustrada por Samuel Beckett. No lugar de fazer dissouma doena, constituir uma razo pragmtica. H a um salto estticoque expropriaria o salto religioso de Kierkegaard. Por que mudar? Porque a revoluo e no o nada? Porque isso tem uma cara melhor! Mas,no fundo, por nada, por um prazer imaterial, uma palpitao impercep-tvel na superfcie das coisas.

    NEGRI

    Conheo sua paixo pelo acontecimento e seu prazer pela vida. Masquando filosofa, voc parece querer distanciar-se disso. Como voc con-segue gerir a esquizofrenia estrutura-acontecimento? Voc no tem sem-pre tendncia de antecipar a estrutura subjacente ao acontecimento,correndo risco de no o deixar falar? Esta questo pode ser encontradaem seu trabalho com Deleuze? Qual sua teoria do acontecimento?Como imaginar hoje no o processo, mas o acontecimento revolucion-rio, no as condies da revoluo, mas o poder constitu!nte?

    o COMUNISMO DA IMANNCIA 21

    GUATTARI

    O acontecimento um dom de Deus. Temos sempre a impresso deque nada acontece, de que nada mais acontecer. E, ento, surgem os"acontecimentos do Golfo". Mesmo neste caso eu pensei que, no fundo,nada aconteceria. A mquina mass-meditica planetria lamina todasas asperidades, todas as singularidades. No encontramos mais as zonasde mistrio. A questo agora fazer um acontecimento com o que seapresenta. No como os jornalistas que so obrigados, o que quer que sepasse, a fazer seu "servio". Mas de modo mais potico. Trata-se aqui,portanto, de um poder constituinte, de uma produo ontolgica suigeneris. Lidar com a serialidade. Nem que seja sonhando com os mili-tares americanos cozinhando nos seus tanques, com a confuso dos re-fns, com o jbilo dos jovens rabes, com o delrio sistemtico deSadam ... Essas cenas, sem limites precisos, para que enfim aconteaalguma coisa!

    Quanto questo que voc levanta, relativa estrutura, eu gostariade descentr-Ia. Eu nunca pretendo descrever um estado de fato, umestado da histria ou da subjetividade. Eu procuro apenas demarcar ascondies de possibilidade dos diversos modos de descrio possveis.Para apreender ou para contornar as problemticas da enunciao cole-tiva, todo sistema de modelizao - quer seja ele terico, teolgico, es-ttico, delirante ... - levado a posicionar o que chamo de fatores onto-lgicos (os Fluxos, os Phylums maqunicos, os Territrios existenciais, osUniversos incorporais). Assim, encontra-se conjurada ou assumida par-cialmente a questo, para mim essencial, do pluralismo ontolgico. Hescolha de constelaes singulares de Universos de referncias, encar-nados em Territrios existenciais, eles prprios marcados por uma pre-cariedade, uma finitude que faz oscilar o Ser numa irreversibilidadecriacionista. Nessas condies, uma ontologia s pode ser cartogrfica,ll1etamodelizao de figuras transitrias de conjunes intensitrias. Ollcontecimento reside nessa conjuno: de uma cartografia enunciadora(~essa tomada de ser precria, qualitativa, intensiva. Essa relao defundao recproca entre o que exprime e o expresso, o que d e oChldo, encontra sua expresso exacerbada na criao esttica precisa-mente considerada como poder constituinte ontolgico.

    Digamos que existam trs tempos: o do estado inicial, o do retorno a

  • 22 O COMUNISMO DA IMANNCIAzero e o da retomada de processualidade. O segundo tempo no dia-ltico. Nele, nunca se termina com a finitude, com o no-senso. E, noentanto, trata-se de um tempo rico, de uma recarga de complexidadeatravs de um banho catico. O tempo zero sempre reserva surpresas; apartir de pontos de singularidade podem dar partida novas linhas depossvel. O terceiro tempo seria o dos imaginrios, ou seja, da retomadadas ambigidades. Como definir um comunismo, ou simplesmente umamor bem-sucedido, escapando de fato s iluses de um desejo de eter-nidade. A potncia de viver, a alegria spinozista s escapa transcen-dncia, lei mortfera por seu carter de modalidade fragmentar, po-lifnica, multirreferencial. A partir do momento em que uma normapretende unificar a pluralidade dos componentes ticos, a processuali-dade criativa se oculta. A nica verdade ltima a do caos como reser-va absoluta de complexidade. O que constituiu a fora e a pureza dasprimeiras "reprises" de socialismo e de anarquismo foi justamente termantido reunidos, ao menos parcialmente, um imaginrio comunistaou libertrio e um sentido agudo da precariedade dos projetos indivi-duais e coletivos que os suportavam. Desde ento, a finitude tornou-seinspida, a subjetividade mass-mediatizada e coletivizada se infantilizou.A finitude do segundo tempo de "fio-terra" no est dada de uma vezpor todas. Sem cessar, ela deve ser reconquistada, recriada nos seusritornelos e na sua textura ontolgica. A reconstruo do comunismopassa hoje por uma ampliao considervel dos modos de produo desubjetividade. Donde a temtica de uma juno entre a ecologia do meioambiente, a ecologia social e a ecologia mental por uma ecossofia.

    TraduoROGRIO DA COSTA

    PLISS FRACTAL .

    ........................................ PIERRE LVY

  • O PENSAMENTO deve lanar-se acima dos "fatos" para interrogar-se, no apenas sobre suas causas mecnicas, mas tambm so-bre o que os faz serem o que so, sobre os agenciamentos de enunciaodos quais eles so os enunciados, sobre os mundos de vida e de signifi-cao do magma dos quais eles surgem. Remontar at s fontes, tal osentido do problema do transcendental.

    Atravs de qu h um mundo? A histria da filosofia e, parcialmente,a da cincia, podem ser consideradas como o conjunto de proposiesque foram articuladas para responder a esta questo. Evidentementeno possvel retomar aqui toda a histria da filosofia e nem mesmoresumi-la. Contentar-nos-emos com algumas sondagens inspiradas poralguns trabalhos recentes, depois mostraremos como as mquinas deGuattari (que podem ser tudo, exceto mecnicas) nos ajudam hoje arepropor este problema.

    No lugar sem lugar da origem sempre presente, ser preciso eleger,depois de Kant, um sujeito transcendental do conhecimento? Ou ento,como os cognitivistas contemporneos, uma arquitetura do sistema cog-nitivo humano? Isto nos remete imediatamente a uma nova instncia,pois o fundamento biolgico do sujeito cognitivo est no crebro, comopensam hoje os conexionistas e os adeptos do homem neuronal. Ora,mesmo correndo o risco de situar a ltima fonte no estrato biolgico,no seria prefervel considerar o organismo inteiro, suas operaes re-cursivas e sua autopoiese, como o sujeito cognitivo ltimo, aquele quecalcula seu mundo? Nisto seguiramos toda a corrente da segunda ci-

    24

    PLISS FRACTAL 25berntica, especialmente ilustrada por von Foerster, Maturana e Varela.Teramos ento atingido o termo? No, pois o organismo, tal como ele, remete duas vezes s contingncias da Histria: o "fora" intervmuma primeira vez atravs da construo ontogentica e da experinciade vida; ele se aloja uma segunda vez no corao do organismo espec-fico ao acaso da filognese. A evoluo biolgica, por sua vez, no podese separar da histria infinitamente bifurcante e diferenciada da biosfe-ra, e at mesmo alm, ela se conecta rizomaticamente com a Terra, comsuas redobras e seus climas, com os fluxos csmicos, com todas as com-plexidades da physis e de seu devir.

    Em vez de conduzir, gradativamente, do cognitivo ao biolgico e dobiolgico ao fsico, a meditao do sujeito transcendental do conheci-mento pode remeter a seu outro: o inconsciente dos afetos, das pulsese dos fantasmas. Mas ainda aqui impossvel deter-se no inconscientefreudiano como num termo ltimo. Guattari e Deleuze mostraram queo dito inconsciente no se limita a um reservatrio de desejos incestuo-sos ou agressivos recalcados, mas que est aberto sobre a Histria, asociedade e o cosmos. O inconsciente total, que no mais concebidocomo uma entidade intrapsquica, so os agenciamentos coletivos deenunciao, os rizomas heterogneos ao longo dos quais circulam nos-sos desejos e pelos quais se lanam e se relanam nossas existncias.Ora, no se pode estabelecer uma lista a priori de tudo o que entra nacomposio dos agenciamentos de enunciao e das mquinas desejan-tes: lugares, momentos, imagens, linguagens, instituies, tcnicas, flu-xos diversos, etc. E, finalmente, descobrimos mais uma vez que o termoltimo, ou melhor, o horizonte sem fim do transcendental, aqui nomea-do "inconsciente", bem poderia ser o prprio mundo.

    Voltemos encruzilhada de onde partimos, o sujeito do conhecimen-to, para seguir uma terceira via, a da empiria. A experincia no origin-ria? E antes mesmo da experincia, os sentidos que a tornam possvel?Em Os Cinco Sentidos, Michel Serres conseguiu a proeza de construir, apartir de cada uma das modalidades sensoriais, uma metafsica, umaIlsica, uma gnosiologia, uma esttica, uma poltica e uma tica. A sensa-o seria, por conseguinte, fundadora. Mas o prprio do tato, da audi-.o, do olfato, do paladar e da vista no seria o de se remeter ao mun-do? Se a percepo faz existir para ns o fora, por outro lado, tambmsobre o devir e o terrvel esplendor do mundo que repousa a vida dos

  • 26 PIERRE LVYsentidos. Ser ser percebido, dizia Berkeley. A percepo e o mundosensvel so as duas faces, as duas bordas da mesma dobra. Por umareverso talvez previsvel, o livro seguinte de Michel Serres, Statues, punhaa coisa, a massa, a exterioridade mais densa no fundamento dos coleti-vos humanos, das subjetividades e do conhecimento. O empirismo si-tua o mundo no corao do conhecimento. o que Kant, que pretende-ra pr o sujeito no centro, demonstrou muito bem em sua metfora da"revoluo copernicana" em filosofia. Mas por mais que se queira ex-pulsar o mundo pela grande porta do transcendental, ele volta pelasjanelas do corpo, sob o aspecto de imagens impalpveis que freqen-tam e fazem viver o sujeito, e pela fora do tempo, que tudo transforma.

    Explorando outras vias, podemos remontar do sujeito individual ssignificaes sociais que o habitam, ao imaginrio instituinte que () atra-vessa (Castoriadis), remisso historial que o destina (Heidegger), aosepistemai que estruturam seu discurso (Foucault), etc. Recordemos que aprincipal aporia, quando se considera um transcendental histrico, vemde seu carter por definio evolutivo e variado. Um transcendental his-trico existe, mas sob o efeito de que causas, de que devires inominadosele se metamorfoseia permanentemente? Se concebssemos causas eefeitos na regio transcendental, o que ento a diferenciaria do campoemprico? Todo o fatual e o contingente da Histria (geografia, quedade imprios, propagao de religies, invenes tcnicas, epidemias,etc.) no retroage sobre a regio historial? No resultam as idas e vindasdo transcendental histrico, de efeitos ecolgicos, de processos cosmo-politas? Mais uma vez, para compreender aquilo atravs de que h ummundo, somos conduzidos complexidade e aos redemoinhos do pr-prio mundo.

    PRIMEIRA ABORDAGEM DA DOBRA

    Com efeito, sempre o mundo, sua multiplicidade indefinida, suarealidade, sua materialidade, sua topologia singular, as contingncias deseu devir, Cosmpolis povoada de coletivos heterogneos ao infinito eem todas as escalas de descrio, finalmente o prprio mundo que sedescobre, a cada vez, acima do complexo vital de significaes que o fazser tal mundo para ns.

    Pelas metforas e imagens recebidas, pelas significaes culturais a

    PLISS FRACTAL 27

    ns transmitidas (implicando em suas dobras fragmentos hologrficosde natureza), pelo inconsciente maqunico conectado ao fora, pelas tc-nicas materiais, as escrituras e as lnguas sob cuja dependncia pensa-mos e produzimos nossas mensagens, tudo aquilo atravs de que expe-rimentamos e vivemos o mundo precisamente o prprio mundo, acomear por nosso corpo de sapincia.

    Mais do que grosseiramente adaptado ao seu nicho-universo, o orga-nismo vivo com certeza seu produtor; nisso preciso seguir Varela.Mas devemos reconhecer igualmente que o mundo exterior, ou se qui-sermos, "o meio", j est tambm sempre includo no organismo cog-noscente que o produz. No vivo, o mundo se redobrou localmente emmquina autopoitica e exopoitica, produtora de si e de seu fora. Aci-ma do mundo emprico experimentado por ns, o mundo transcenden-tal que evocamos aqui no certamente redutvel a algum estrato fsico,ou biolgico, ou social, ou cognitivo, ou qualquer outro. Tampouco asoma ordenada ou bem articulada dos estratos. Trata-se do mundo comoreserva infinita, transmundo, sem hierarquia de complexidade, sempree por toda parte diferente e complicado: Cosmpolis.

    Corpos, culturas, artifcios, linguagens, significaes, narraes ... oemprico torna-se transcendental e o transcendental faz advir um mun-do emprico. "Isso" se dobra e se redobra em transcendental e empri-co. A dobra o acontecimento, a bifurcao que faz ser. Cada dobra,ao-dobra ou paixo-dobra, o surgimento de uma singularidade, ocomeo de um mundo. A proliferao ontolgica irredutvel a uma ououtra camada particular dos estratos; igualmente irredutvel a qualquerdobra-mestra como a do ser e dos entes, da infra-estrutura e da su-perestrutura, do determinante x e do determinado y. O mundo total eintotalizvel, o transmundo cosmopolita, diferenciado, diferenciante emltiplo , ao contrrio, infinitamente redobrado, ele fervilha de singu-laridades nas singularidades, de dobras nas dobras. As oposies bin-rias macias ou molares como a alma e o corpo, o sujeito e o objeto, oindivduo e a sociedade, a natureza e a cultura, o homem e a tcnica, oinerte e o vivo, o sagrado e o profano, e at a oposio de que partimosentre transcendental e emprico, todas essas parties so maneiras dedobrar, resultam de dobras-acontecimentos singulares do mesmo "pla-no de consistncia" (Deleuze e Guattari). "Isso" poderia ter-se dobradode outra maneira. E como a dobra emerge num mundo infinitamente

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    diversificado mas nico, sempre se pode voltar ao acontecimento dadobra, seguir seu movimento e sua curvatura, desenhar seu drap, pas-sar continuamente de um lado para o outro.

    A ALMA E o CORPO PARA GILBERT SIMONDON

    De sorte que, como o demonstrou Gilbert Simondon, no h subs-tncias, mas processos de individuao, no h sujeitos, mas processosde subjetivao. A subjetivao como ao ou processo continuado cons-titui um "dentro", que no outro seno "a dobra do fora" (Deleuze).Os dualismos achatam e unificam violentamente aquilo que eles distin-gue~, impedindo, assim, de localizar as dobras e as curvaturas pelasquaIS passam as regies do ser, uma na outra. "Descartes no apenasseparou a alma do corpo; ele criou tambm, no prprio interior da alma,uma homogeneidade e uma unidade que prObe a concepo de um gradien-te contnuo [o grifo meu - P.L.] de distanciamento em relao ao euatual, reunindo as zonas mais excentradas, no limite da memria e daimaginao, a realidade somtica" (Gilbert Simondon. L'individuationpsychique et collective, p. 167).

    A alma e o corpo, apreendidas como multiplicidades diferenciadas. ,comUnIcam-se por suas zonas de sombra. A conscincia livre, racional evolunt~ria, de um lado, o mecanismo fsico-qumico dos rgos, de ou-tro, se Juntam pela sensao, pelo afeto, toda a obscuridade psicossom-tica do desejo, da sexualidade e do sono. O maquinal, o reflexo, o her-dado do psiquismo, toda a diviso e a exterioridade do esprito a simesmo o redobram para o somtico, fazem-no tornar-se corpo.

    A unio psicossomtica s se torna um problema se tentarmos conec-tar as extremidades da dobra, que so apenas dois casos-limite: de umlado, a conscincia clara e racional; do outro, o corpo-matria ou o ca-dver automvel. ~as a alma e o corpo j se comunicam sempre peladobra que os relacIOna um ao outro, pelas multiplicidades negras dacurvatura, que formam a maior parte do sujeito.

    O esforo em se seguir a dobra, esboado aqui sobre o caso da almae do corpo, deveria ser levado a todas as oposies molares. A cada vez,no lugar de entidades homogneas e bem recortadas, descobriramosum pliss fractal (Mandelbrot), uma infinita diferenciao do ser segun-do dobras, passando continuamente umas nas outras.

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    A CINCIA E A SOCIEDADE EM BRUNO LATOUR

    O que Gilbert Simondon assinalou sobre as relaes da alma e docorpo, Bruno Latour mostrou no caso da cincia e da sociedade. O au-tor de La Science en Action mergulhou a cincia e a tcnica no grandecoletivo heterogneo dos homens e das coisas. Mas seria um erro acre-ditar que ele negou toda especificidade tecnocincia, uma vez que elemostra as foras dspares que a compem.

    A cincia e a tcnica emergem de uma megarrede heterognea; emcontrapartida, elas contribuem para at-la, curv-la de outra maneira.Cincias e tcnicas resultam de uma dobra do coletivo cosmopolita,que se redobra em cincia das coisas, de um lado, e em sociedade doshomens, de outro.

    H certamente uma identidade (mltipla e varivel) da cincia, umestilo de dobra, um regime de enunciao que a singulariza. Mas umpensador rigoroso no pode se atribuir a particularidade produzida porum acontecimento (por mais contnuo que seja) sem ter percorrido pre-viamente a dobra que o efetua. Ele no pode dar-se a essncia antes doprocesso. Antes de qualquer especificidade do conhecimento cientficoe da eficcia tcnica, h primeiro uma maneira de dobrar entre a verda-de das coisas em si e o conflito hermenutico das subjetividades. Essetipo de partio se redobra sempre :novamente, no prprio seio da ativi-dade cientfica, e poderia sempre se dobrar de outro modo ou em outrolugar. Uma tal proposta cientfica ter-se-ia situado na face social ou de-masiado humana da partio se a dobra tivesse passado mais longe.Como para a alma e o corpo, o trabalho que consiste em reencontrar edesenhar a dobra no pode se realizar sem dissolver a unidade e a ho-mogeneidade das regies que ele distingue. Apesar de todas as analo-Kiaspossveis, a dobra que singulariza a cincia no idntica, por exem-plo, s que fazem advir a justia, a beleza ou a santidade.

    As LEIS DO INERTE E O MILAGREno VIVO EM PRIGOGINE E STENGERS

    De todos os contemporneos exploradores de dobras, Ilya Prigogine(! Isabelle Stengers esto indubitavelmente entre os mais notveis. Em

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    suas duas obras, Entre o Tempo e a Eternidade e A Nova Aliana, eles tenta-ram pr abaixo a cortina de ferro ontolgica que uma certa tradiofilosfica havia construdo entre os seres (o em si) e as coisas (o para si).Apoiando-se sobre os ltimos desenvolvimentos da cincia contempo-rnea, a filsofa e o prmio Nobel renovaram profundamente a filosofiada natureza. Lendo-os, redes cobrimos na physis a irreversibilidade dodevir e o carter instituinte do acontecimento que acreditvamos reser-vados aos universos do homem (desde que se pensa a Histria) e davida (desde a descoberta da evoluo biolgica). Os processos distantesdo equilbrio e os sistemas dinmicos caticos conectam, por uma do-bra que permaneceu invisvel por muito tempo, a necessidade estticado mecanismo e o acaso miraculoso da auto-organizao viva. Desde omomento em que o determinismo da "matria" e a inventividade finali-zada do vivo no so mais do que casos-limite de um continuum infinita-mente complexo, redobrado e semeado de singularidades, a vida e ouniverso fsico, o sinal e a significao deixam de se opor. No somenteeles se relacionam um com o outro em sua diferena, mas passam tam-bm um no outro.

    O conceito de sistema dinmico catico um dos que permitem pen-sar a voluta gigante unindo a vida organizada s necessidades da physis.Para ilustrar e modelizar este conceito, Prigogine e Stengers escolheramespecialmente a "transformao do padeiro", isto , o estiramento e aredobra indefinidamente reiterada de uma superfcie representando "oespao das fases de um sistema". A operao matemtica da transfor-mao do padeiro uma espcie de anlogo formal do trabalho que umverdadeiro padeiro aplica a uma massa de po (ver La Nouvelle Alliance,p. 329-43 e 401-07, assim como Entre le Temps et l'ternit, p. 96-107). Etalvez seja a prpria imagem do tempo antes que ele escoe, antes queele seja apreendido num sistema de coordenadas: esse movimento semfim de estiramento, de dobra e de redobra de uma superfcie abstrata.

    A MECANOSFERA

    Dobras no cessam de involuir e de se recurvar umas nas outras, aopasso que outras se desdobram. Acolhido na dobra individuante, o si-nal, ou a ondulao das coisas, torna-se significao. Os seres se indivi-duam em torno das dobras das coisas, da ondulao das paisagens, das

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    curvas dos corpos, dos arabescos desenhados por alguma linha meldi-ca da curvatura dos acontecimentos ... Entidades se individuam ou se,desindividuam para que "isso" se preste a outras dobras, para que "isso"se reindividue de outra maneira. Quer se trate de um objeto csmico,de uma espcie, de um biotopos,l de uma cultura, de um regime polti-co, de um momento, de uma atmosfera ou de um sujeito, sob qualquerprocesso de individuao, uma mquina trabalha (ver "I1htrogenesemachinique", Flix Guattari, Chimeres n.O 11, 1991, retomado em Caos-mose, Galile, 1992).

    A anlise redutora acredita ter encontrado um fundamento da expli-cao, um ltimo solo causal, que se confunde freqentemente com esteou aquele estrato (o "biolgico", o "psquico", o "social", o "tcnico",etc.) Ora, a anlise preocupada com a singularidade dos seres, em vezde perder tudo (exceto a certeza), numa regresso a um fundamento,qualquer que seja ele (ver o pensiere debole enaltecido por Gianni Vatti-mo), deve ao contrrio tentar fazer aparecer a consistncia prpria, adimenso de autopoiese (Vareia), a qualidade ontolgica p~rticular da

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    ou por uma pro to-subjetividade elementar. No nos representaremos,portanto, mquinas (biolgicas, sociais, tcnicas, etc.) "objetivas" ou"reais", e vrios "pontos de vista subjetivos" sobre esta realidade. Naverdade, uma mquina puramente "objetiva" que no fosse movida pornenhum desejo, nenhum projeto, que no fosse infiltrada, animada, ali-mentada de subjetividade, no se sustentaria nem um segundo, essacarcaa vazia e seca se pulverizaria imediatamente. A subjetividade nopode, portanto, ser restringida ao "ponto de vista" ou "representa-o", ela instituinte e realizante. Por outro lado, a subjetividade notoma forma e s se sustenta com agenciamentos maqunicos diversos,entre os quais, na escala humana, os agenciamentos biolgicos, simbli-cos, miditicos, sociotcnicos ocupam um lugar capital.

    As concepes habituais da composico s respondem na verdadeaos problemas da objetividade pura, dos quais os modelos sistmicos,informticos e cibernticos so apenas uma variante elaborada. Masas mquinas no so nem puramente objetivas nem puramente subje-tivas. A noo de elemento ou de indivduo tambm no lhes convmmais, nem a de coletivo, uma vez que a coleo supe a elementari-dade e faz sistema com ela. Como pensar ento a composio das m-quinas?

    Cada mquina possui uma qualidade de afecto diferente, uma con-sistncia e um horizonte fabulatrio particular, projeta um universosingular. E no entanto ela entra em composio, ela se associa comoutras mquinas. Mas de que modo? Querer integrar, unificar violen-tamente as mquinas plurais sob um s projeto, um s princpio deconsistncia, resultaria talvez em mat-las e certamente diminuir suariqueza ontolgica. Uma unificao "real" seria destruidora, uma uni-ficao conceitual empobreceria a compreenso e a inteligncia dofenmeno considerado. Portanto, necessrio respeitar a pluralidademaqunica, uma pluralidade sem elementos (por baixo) nem snteseou totalizao (por cima). Mas a pluralidade, justamente porque elano composio de elementos, no pode ser sinnimo de separao.H certamente uma composio ou uma correspondncia das mqui-nas. Esta articulao paradoxal dever ser analisada com infinita deli-cadeza e precauo em cada caso particular. Levantamos a hiptesede que no existe nenhum princpio geral de composio, mas que, pelocontrrio, cada agenciamento maqunico inventa localmente seu pr-

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    prio modo de comunicao, de correspondncia, de compossibilida-de ou de entrelaamento da autopoiese (plo identitrio) e da hetero-poiese mtua (plo associativo).

    Distingamos cinco dimenses da mquina:1. Uma mquina diretamente (como no caso do organismo) ou in-

    diretamente (na maior parte dos casos) autopoitica (Varela), ou auto-realizadora (como se diz de uma profecia auto-realizadora), isto , elacontribui para fazer durar o acontecimento da dobra que a faz ser.

    2. Uma mquina exopoitica, ela contribui para produzir um mundo,universos de significaes.

    3. Uma mquina heteropoitica, ou fabricada e mantida por foras dofora, pois ela se constitui de uma dobra. O exterior j est a presentesempre, ao mesmo tempo geneticamente e atualmente.

    4. Uma mquina no somente constituda pelo exterior ( a redobrada dobra), mas igualmente aberta para o fora (so as bordas ou a abertu-ra da dobra). A mquina se alimenta, recebe mensagens, est atravessa-da por fluxos diversos. Em suma, a mquina desejante. A este respeitolodos os agenciamentos, todas as conexes so possveis de uma mqui-na a outra.

    5. Uma mquina interfaciante e interfaciada. Ela traduz, trai, desdo-bra e redobra para uma mquina jusante os fluxos produzidos por umamquina montante. Ela ao mesmo tempo composta por mquinaslradutoras que a dividem, multiplicam e heterogenizam. A interface adimenso de "poltica estrangeira" da mquina, o que pode faz-la en-trar em novas redes, faz-la traduzir novos fluxos.

    Toda mquina possui as cinco dimenses, mas em graus e propor-~:(cs variveis. Repitamo-lo, as mquinas nunca so puramente fsicas,hiolgicas, sociais, tcnicas, psquicas, semiticas, etc. Cosmpolis atra-v(~ssasempre as dobras transitrias que escavam estas distines. Certas1l1(Lquinasestratificantes ou territorializantes - elas mesmas perfeitamenteIwlcrogneas - trabalham precisamente para endurecer as dobras es-Ir(llicas. So redes de mquinas cosmopolitas que produzem os seres, oslIlodos de ser, o prprio Ser de acordo com uma modulao infrnita deIJ.I'llUS e qualidades.

    A produtividade ontolgica se auto-entretm, pois mquinas interfa-n's, parasitas, vm gerar os hiatos, os abismos ou as dobras muito pro-fundas que separam as subjetividades-mundos, suas temporalidades, seus

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    espaos e seus signos. Uma mquina mantm presente (traindo-o aomesmo tempo) o acontecimento da dobra do qual ela resulta. Ela ins-creve o clinmen inicial na mecanosfera, faz com que ele dure, retorne e,ao faz-lo, ela se instaura na origem de outras dobras.

    Pensado como mecanosfera, todo o mundo emprico retorna ao trans-cendental, torna-se fonte multiforme e plurvoca de universo de exis-tncia e de significao.

    OS TRS ANDARES DO TRANSCENDENTAL

    Partimos de uma concepo clssica do transcendental: a interiorida-de do sujeito, ou o objeto, ou a experincia, etc. Pouco a pouco, adobra do ser e do ente (ver Heidegger. Essais et Confrences. Gallimard, p.279-310) ou do transcendental e do emprico que se imps nossa medi-tao. Devemos agora voltar prpria possibilidade das dobras (e nosomente da dobra heideggeriana ser/ente). Distingamos para este fimtrs nveis de transcendental.

    O transcendental de nvel zero: H inicialmente o "isso", o inconscientetotal intotalizvel, o plano de consistncia. As entidades que povoamesse arquilugar ou esse prototempo esto em composio e decomposi-o perptuas e simultneas. Elas se deslocam a uma velocidade absolu-ta e esto ao mesmo tempo infinitamente prximas e infinitamente dis-tanciadas umas das outras. Evidentemente ser preciso ter cuidado paradistinguir o caos transcendental da desordem no sentido habitual outermodinmico do termo ... antes de meditar a dobra que relaciona unscom outros estes sentidos. (Ver, para uma exposio mais detalhada so-bre o caos, as Cartographies Schizoanalytiques de Flix Guattari.) O caostranscendental a condio de possibilidade da dobra como aconteci-mento.

    O transcendental de nvel um: O acontecimento da dobra aquilo peloqual algo se diferencia. A dobra trabalho antes de qualquer objeto ouqualquer fluxo trabalhado, processo antes de qualquer estado, incoativoabsoluto. A dobra uma espcie de inflexo do plano de consistncia,um clinmen.

    O transcendental de nvel dois: So os complexos maqunicos dobrados/dobrantes que produzem os mundos empricos. Sob o ser e o nada, oser e os entes, os universos biolgicos, sociais; seus modos de enuncia-

    PLISS FRACTAL 35o e suas significaes trabalham agenciamentos transestrticos, m-quinas cosmopolitas heterogneas que se entre traduzem, se entrepro-duzem e se entredestroem perpetuamente. O transcendental de nveldois o coletivo em metamorfose permanente de todos os "aquilo atra-vs de que". A organizaco "hipertextual" (ver P. Lvy. As Tecnologias daInteligncia, 1993) da rede maqunica probe qualquer reduo a umainfra-estrutura, qualquer rebatimento do transmundo sobre uma ordemparticular de discurso. Eis aqui a mecanosfera, a megamquina mundo-mundo, o anel de Moebius csmico onde emprico e transcendentalIrocam perpetuamente seus lugares ao longo de uma dobra nica e infi-nitamente complicada.

    DIREES DE PESQUISA: TICA E SEMITICA

    A ontologia do pliss fractal poderia prolongar-se em duas direes.I'rimeiramente para uma filosofia da significao. Pois todo signo do-Ilra, a forma mais simples da dobra significante sendo o desdobramentosignificado/significante, que se pode complicar, segundo Hjelmslev, emI'xpresso e contedo, cada um destes dois termos se subdividindo ain-da em forma e matria. Mas o signo pode se dobrar de mil modos (ape-IIIIS Peirce recenseou mais de sessenta tipos de signos). o mesmo quedizcr, com Flix Guattari, que existem tantas semiticas (de estilos dedobras significantes) quantos agenciamentos de enunciao. Msicas,!'idades, rituais, tatuagens, signos plsticos ou cinematogrficos, ima-Io4f'nsinfinitamente difratadas da rede miditica, mquinas de escrita emIlbismo dos softwares, imaginrios plurissemiticos em ato, universosf'xislcnciais ... a dobra simples do significante e do significado s apare-1'1', p.nto, como um caso-limite bastante pobre.

    S evocamos aqui, por enquanto, a esttica do signo, sua estrutura.ll.!lltl o trabalho da significao como ato? Como pensar o redobra-IIIPlllo/desdobramento de afetos, de imagens e representaes produzi-do pelo acontecimento do signo no grande drap fractal da memria e,IlIIt1salm, ao longo das alternncias de dentro e de fora interfaciadasChl mecanosfera? Quais so as mquinas heterogneas que trabalhamI'UI'Il manter o estrato semitico como tal e pelas quais o signo se rela-I'lollll sempre j com o a-significante, se confunde com os processosl'IIIUllOpolitas ?

  • 36 PIERRE LVYEnfim, a ontologia da dobra desemboca numa tica, ou numa pol-

    tica. Se o emprico volta ao transcendental, os cabalistas tinham razo: no mundo de baixo que se decide em ltima instncia a sorte domundo de cima. No somos somente destinados pelo desvelamentohistoriaI, como o pretendia Heidegger, somos tambm responsveis(no sentido mais forte do termo) por ele. Agindo efetiva ou empirica-mente, fazemos emergir um horizonte de sentido historiaI, um imagi"nrio instituinte, um universo existencial ou incorporaI. Temos certa-mente de responder pelas conseqncias materiais de nossos atos, mastambm pelas matrizes de significao que ajudamos a transmitir, con-solidar, edificar e destruir. No entendamos esta relao essencial datica com a significao num sentido estreito. No se trata unicamentede lembrar o papel primordial dos escritores, dos artistas, dos homensde "comunicao" e, em geral, de todos os que trabalham explicita-mente no campo semitico. Os atos "puramente prticos", tcnicos,administrativos, econmicos e outros contribuem tanto quanto os atosde discurso para a construo dos agenciamentos coletivos de enun-ciao, para a produo das qualidades de ser. A tica e a poltica noconcernem apenas s relaes dos humanos entre eles, relao como "prximo", mas igualmente relao com o mundo. Que mundoajudamos a inventar e a fazer existir?

    Esta interrogao fundamental pode desdobrar-se em trs questestico-polticas particulares.

    Em primeiro lugar, enquanto cidados do mundo total, o que feitode nossa responsabilidade para com a Terra, seus oceanos, suas flo-restas, suas massas humanas e seus climas? Em que planeta queremosviver?

    Em segundo lugar, enquanto fontes de mundos particulares, de quemodo devemos agir para com os outros mundos, produtos de formas devida, de cultura, de significao e de subjetividade diferentes? Que tiposde relao estabelecemos com modos de ser que no so os nossos (mascom os quais estamos, no entanto, sempre em relao pelas redobras denossa participao com a mecanosfera)?

    Em terceiro lugar, que atitude fundamental adotamos para com otransmundo? Mantemos livre a possibilidade de emergncia de novosagenciamentos de enunciao? Favorecemos ou, ao contrrio, restringi-mos a produtividade ontolgica? Mantemos as dobras em sua essncia

    PLlSS FRACTAL 37

    de acontecimento, ou trabalhamos para endurec-las em oposies, es-tratos, substncias? Escolhemos as individuaes sempre capazes dereceber novas dobras ou as individualizaes rgidas e fechadas?

    A tica se relaciona com o mundo sob estas trs faces: a Terra, osoutros mundos (o prximo apenas um caso particular de outro mun-do), e o transmundo das dobras, dos agenciamentos de enunciao edos processos cosmopolitas. Trs figuras do anel imanncia-transcen-dncia que no cessa de destruir, de metamorfosear e de produzir o serem sua infinita diversidade.

    TraduoSORAYA OLIVEIRA

  • A PAIXO DAS MQUINAS .

    .................................. FLIX GUATTARI

  • (]) (i)

    O TEMA da mquina ocupa-me h muito tempo, talvez menos comoobjeto conceitual que como objeto afetivo. Sempre fui, como mui-tos dentre vocs, atrado, fascinado pela mquina. Quando estudanteda Sorbonne, lembro-me de ter apresentado uma anlise sobre Le Tra-vail en Miettes de Friedmann, e do olhar espantado do professor enquan-to e~ lanava meus ataques contra Friedmann; nessa poca, eu era mui-to vIrule~to contras as vises mecanicistas da mquina. Achava, no quetalv:z. seja uma queda pelo cientificismo, que podamos esperar umaespecIe de salvao pela mquina. Na seqncia, tentei alimentar esteobjeto maqunico. Devo avis-los que no se trata de algo que dominomas de uma espcie de ncleo ao qual fui conduzido por ciclos. O lti-mo foi desencadeado pelo livro de Pierre Lvy, As Tecnologias da Inteli-gncia. Fiquei surpreso por encontrar ali uma reativao dessa temtica,transposta para o campo das tecnologias informticas. Em outras pa-lavras, reivindico o direito a essa forma de pensamento que procedepor eixos afetivos, por afetos, em vez de um pensamento que preten-de fornecer uma descrio cientfica, axiomtica. Repito que se trata deuma temtica totalmente aberta, e gostaria que ela assim fosse tratadana discusso, para perceber os ecos que esse tipo de reflexo podedespertar.

    Encontramo-nos atualmente numa inevitvel encruzilhada, a do an-tema lanad~ contra a mquina, a idia de que as tecnologias nos colo-c~ nu:n~ sItuao de inumanidade, de ruptura em face de qualquerprojeto etlco. De fato, a histria contempornea refora esta perspectiva

    40

    @A PAIXO DAS MQUINAS 41

    maqunica catastrfica, com as degradaes ecolgicas e outras mais.Poderamos assim ficar tentados a dar meia-volta e recuar em relao~l era maqunica, para compartilhar de no sei qual territorialidadeprimitiva.

    Pierre Lvy usa a seguinte frmula, na minha opinio muito feliz:"lentar derrubar a cortina de ferro ontolgica entre o ser e as coisas".Parece-me que um dos meios de derrubar esta cortina de ferro, presenteem toda a histria da filosofia at Heidegger, talvez seja esta interfacemaqunica, ou esta mquina concebida como interface, que Pierre Lvydenomina "hipertexto". De fato, para sair desta fascinao pela tcnica,c da dimenso .mortfera que s vezes assume, preciso reapreender,reconceitualizar a mquina de outro modo, para partir do ser da mqui-na como aquilo que se encontra na encruzilhada, tanto do ser em suainrcia, sua dimenso de nada, como do sujeito, a individuao subjeti-va ou a subjetividade coletiva. Este tema est presente na histria daliteratura e do cinema, nos mitos, como o da mquina que possui umaalma e um poder diablico. No proponho exatamente um retorno alima concepo animista mas sim uma tentativa de considerar que, namquina, na interface maqunica, existe alguma coisa que seria, no daordem da alma, humana ou animal, anima, mas da ordem de uma pro-lo-subjetividade. Isto quer dizer que h na mquina uma funo de con-sistncia, de relao a si e de relao a uma alteridade. seguindo estesdois eixos que tentarei avanar.

    Comecemos do mais simples, do que j mais ou menos adquirido, aidia de que o objeto tcnico no pode ser limitado sua materialidade.Il na techn elementos ontogenticos, elementos de um plano, de cons-truo, relaes sociais que sustentam as tecnologias, um capital de co-nhecimento, relaes econmicas e, pouco a pouco, toda uma srie deIlIlerfaces no seio das quais se insere o objeto tcnico. A partir destaconcepo, pode-se estabelecer uma ponte entre uma mquina tecnol-~'ica de tipo moderno e as ferramentas ou mesmo as peas da mquina,(' consider-los igualmente como elementos que se conectam uns aosoulros. Desde Leibniz, dispomos do conceito de mquina articulada (deIllaneira fractal, diramos hoje) com outras mquinas, elas mesmas com-postas de elementos maqunicos at o infinito. Assim, aqum e alm daml'lquina, o ambiente da mquina faz parte de agenciamentos maquni-('OS, O elemento liminar da entrada na rea maqunica passa por um

  • 'li

    42 FLIX GUATTARI

    certo aplainamento, a uniformizao de um material, como o ao que processado, desterritorializado e uniformizado para se moldar s for-mas maqunicas. A essncia da mquina est ligada aos procedimentosque desterritorializam seus elementos, seu funcionamento, suas relaesde alteridade. Falaremos de uma relao de ontogenia da mquina tc-nica que a faz abrir-se para o exterior.

    Ao lado deste elemento ontogentico, h uma dimenso filogentica.As mquinas tecnolgicas so consideradas dentro de um Phylum, ondeh mquinas que as precedem e outras que as sucedem. Elas seguempor geraes - como as geraes de automveis - cada uma abrindo avirtualidade de outras mquinas que viro. Elas incitam, por este ouaquele elemento, uma juno com todas as filiaes maqunicas do fu-turo.

    As duas categorias de ontognese e de filognese aplicadas ao objetotecnolgico nos permitem traar uma ponte com outros sistemas ma-qunicos que nem sequer so tecnolgicos. Na histria da filosofia geral-mente toma-se o problema da mquina como um elemento secundriode uma questo mais geral, a da techn, das tcnicas. aqui que eu pro-poria uma inverso de ponto de vista, no sentido de que o problema datcnica no passaria de um subconjunto de uma problemtica maquni-ca muito mais ampla. Esta "mquina" aberta para o exterior, para oseu ambiente maqunico e entretm todo tipo de relaes com os com-ponentes sociais e as subjetividades individuais. Trata-se ento de ex-pandir o conceito de mquina tecnolgica ao de AGENCIAMENTOS MA-QUNICOS, categoria que engloba tudo o que se desenvolve como mqui-nas nos diferentes registros e suportes ontolgicos. Em vez de haveroposio entre o ser e a mquina, o ser e o sujeito, esta nova concepoda mquina implica que o ser se diferencia qualitativamente e desem-b~c~ ~uma pluralidade ontolgica, que o prprio prolongamento dacnativIdade dos vetores maqunicos. Em vez de haver um ser, comotrao comum presente no conjunto dos entes maqunicos, sociais, hu-manos, csmicos, teremos, ao contrrio, uma mquina que desenvolveUNIVERSOS DE REFERNCIA, universos ontolgicos heterogneos, marca-do~ por reviravoltas histricas, um fator de irreversibilidade e de singu-land~de. No farei aqui uma descrio exaustiva, seria demasiado longa.

    Alem ~a ferramenta protomquina e das mquinas tecnolgicas, hos conceitos de mquinas sociais. Por exemplo, a cidade uma mega-

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    mquina. Ela funciona como uma mquina. Tericos da lingstica comoChomski introduziram o conceito de "mquina abstrata", presente nasmquinas lingsticas ou sintagmticas. Atualmente, muitos bilogosI"alamde mquina a respeito da clula viva, do rgo, da individuaoe mesmo do corpo social. A tambm o conceito de mquina tende aimpor-se. Mquinas matemticas de Turing ... Tambm no domnio dasidealidades - outro universo de referncia - assiste-se ampliao doconceito de mquina. Mquina musical. Muitos msicos contempor-neos desenvolvem esta noo. Mquina lgica, mquina csmica, umavez que certos tericos afirmam que o ecossistema da Terra equivalen-le a um ser vivo, ou a uma mquina, no sentido amplo que estou usan-do. Para remeter a um passado de j vinte anos, podemos evocar asMQUINAS DESEjANTES, que retomam a teoria dos objetos parciais da psi-canlise - o objeto "a" como mquina desejante -, mas sob a forma deelementos no redutveis a objetos adjacentes ao corpo humano. Aocontrrio, o que est em questo so objetos de desejo, mquinas dedesejo, objetos-sujeitos de desejo e vetores de subjetivao parcial, quese abrem bem alm do corpo ou das relaes familiares, para os conjun-los sociais, csmicos, e os universos de referncia de todo tipo.

    No campo da biologia, este cOI\ceito de mquina foi recentementedesenvolvido por tericos como Umberto Maturana e Francisco Vare-la. Eles defmem a mquina como o conjunto de inter-relaes dos seus('omponentes, independentemente dos prprios componentes. Eles ofe-recem assim uma definio que prxima de uma mquina abstrata eque descreve a mquina como autopoitica, autoprodutora dela mesma(I reproduzindo permanentemente os seus componentes qual um siste-IIIU sem input nem output. Varela desenvolve bastante esta teoria. Na sua('otlcepo, ope a autopoiese, relacionada essencialmente aos seres vi-vos biolgicos, a uma alopoiese, em que a mquina busca os seus com-ponentes no exterior dela mesma. No seu conceito de alopoiese ele ar-rola os sistemas sociais, as mquinas tcnicas e, para terminar, todos osHIst.emasmaqunicos que no os viventes. Este conceito de autopoiesepllrece-me muito interessante e proveitoso. No entanto, acho que seriapl"(~cisoir alm da perspectiva de Varela e estabelecer uma ligao entreIIN mquinas alo e autopoiticas. As mquinas alopoticas encontram-se11t1mprena adjacncia das mquinas autopoiticas e preciso assim le-vur em considerao os agenciamentos que as fazem viver juntas.

  • 44 FLIX GUATTARI

    Uma outra idia, tomada de emprstimo a P. Lvy, que os sistemasmaqunicos so interfaces que se articulam umas s outras - no que elechama de hipertextos - e que aos poucos recobrem o conjunto da "me-canosfera". Finalmente, gostaria de reunir as perspectivas de Varela ede P. Lvy, a fim de considerar a mquina ao mesmo tempo no seucarter autopoitico e em todos os seus desenvolvimentos alopoticos,de interfaceamento, que lhe conferem uma espcie de poltica exterior,de relaes de alteridade. No seu primeiro livro, La Machine Univers,Pierre Lvy fazia referncia a Varela; no segundo, paradoxalmente, noo menciona. Creio que isto ficar para uma terceira obra.

    A mquina tem qualquer coisa a mais que a estrutura. Ela "mais"que a estrutura porque no se limita a um jogo de interaes, que sedesenvolve no espao e no tempo, entre os seus componentes, mas pos-sui um ncleo de consistncia, de insistncia, de afirmao ontolgica,que prvio ao desenvolvimento nas coordenadas energtico-espao-temporais. Este ncleo maqunico que se pode qualificar, sob certosaspectos, de proto-subjetivo, protobiolgico, possui caratersticas queVarei a no levou em considerao. So elementos de onto ou filogne-se, mas tambm de finitude. A mquina portadora de uma finitude, dequalquer coisa da ordem do nascimento e da morte, donde a fascinaoque ela pode exercer enquanto mquina explodida, destruda, em im-ploso, portadora da morte no exterior mas tambm por si mesma.

    Este foco de insistncia autopoitica e de desenvolvimento de umalateridade heterogentica - que desenvolve registros de alteridade - difcil de descrever ou definir. No um existente que se afirma nodesdobramento das coordenadas energtico-espao-temporais. Comoabordar um tal objeto, seno por intermdio do mito, da narrao, isto, de meios no cientficos. Acho que este ncleo maqunico est sem-pre, de uma certa maneira, ligado a sistemas de metamodelaes queexigem um desenvolvimento da teoria. Dou apenas uma indicao queno desenvolverei, pois ser retomada ulteriormente numa obra comGilles Deleuze. Este ncleo de afirmao autopoitica e interestrtico,de abertura para o exterior, implica uma concepo da complexidadeconsiderada a partir de coordenadas decididamente "extra-ordinrias".A complexidade do objeto maqunico se realiza e se encama nos dife-rentes sistemas maqunicos que evoquei acima. Ao mesmo tempo, ela permanentemente perseguida pelo caos que a dissocia, repartindo os

    A PAIXO DAS MQUINAS 45

    seus elementos numa decomposio de natureza diferente. Como se('ste ser autopoitico, esta proto-subjetividade maqunica estivesse aomesmo tempo no registro da complexidade e do caos. Creio que pre-ciso considerar o caos no como puramente catico, mas que pode, nassuas composies de elementos e de entidades, desenvolver frmulasde uma complexidade extrema. Tomemos um sistema aleatrio como ojogo de roleta. Se voc aposta no preto e no vermelho, a cada jo?~davoc tem a impresso de um sistema catico que forma composloesaleatrias, sem nenhuma apreenso cognitiva. Mas se voc joga porlongos perodos, aparecem sries das quais certos clculos estatsticospermitem detectar composies complexas. Este sistema aleatrio de-pende portanto de uma certa descrio matemtica. D~-se o mesm~com o caos. O caos portador de dimenses da maior hlpercompleXI-dade. Existe um mito muito conhecido segundo o qual, sorteando letrasao acaso, pode-se obter a frmula da obra potica de Mallarm. Serpreciso esperar muito tempo. No obstante, a obra de Mallarm habitapotencialmente este universo catico de combinaes mltiplas entre

    as letras.Como fazer coexistirem essas duas dimenses, a complexidade e o

    caos? Simplesmente considerando que as entidades presentes no caossuo animadas por uma velocidade infinita. Elas podem compor as com-pleies mais diferenciadas, mas se decomplexificar com a mesma ve-locidade. A idia de uma velocidade infinita desemboca numa concep-(,JLO do caos capaz de ser portadora da complexidade. nesses focoscaticos que vir inserir-se essa proto-subjetividade que pode, por suavez, ser adjacente dissociao catica, sua prpria morte e s compo-sies infinitamente complexas. o que chamo de "grasping CATICO":Ilpreenso instantnea da complexidade, constituda por todo tipo depotencialidade. Chamarei de "hipercomplexidade" essa complexidadeque mais assumida do que realmente dominada e que se encontranuma relao de insistncia, de repetio.

    Na teoria estruturalista do significante, os diferentes componentes deum sistema podem ser tratados em termos de economia do significante.111\ sempre um sistema de quantidade de informao ou um sistemabinrio presente nos diferentes sistemas heterogneos. No modelo qu:pl'Oponho, no existe traduo entre os diferentes nveis de complexl-Ilude. Eles so portadores do seu substrato ontolgico.

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  • 48 FLIX GUATTARI

    ralizada. De modo algum. Esses diferentes sistemas de codificao estoo tempo todo impregnados de focos de afirmao e posicionalidadesautopoiticas do sistema de expresso. Este ltimo portanto sempresegundo em relao a um foco no discursivo do ncleo ontolgico.

    Seria preciso falar agora dessa heterogeneidade ontolgica que re-presentam os universos de referncia encarnados em diferentes siste-mas de discursividade e de certa forma tributrios deles. Como se temacesso a eles? Estamos diante de um paradoxo. Somos lanados emsistemas discursivos, relaes de tempo, de espao e de trocas energti-cas, e, ao mesmo tempo, temos de lidar com focos de afirmao existen-ciais por sua vez no discursivos. O paradoxo que justamente atra-vs de um material discursivo que devemos conseguir fornecer, nouma representao, mas uma presentificao existencial desses focos.

    No domnio da poesia, o ritmo, os elementos de regularidade, tantono nvel da expresso quanto do contedo, que desenvolvem um certouniverso potico. a chave da existncia de uma encruzilhada ontol-gica entre a poesia e a msica. No domnio psicanaltico, so objetos,sistemas repetitivos, portanto discursivos, que constituem os suportesexistenciais de focos de afirmao subjetiva. Por exemplo, na neuroseobsessiva encontra-se uma repetio infmita da lavagem de mos queno remete em absoluto a uma significao do tipo "o que significa la-var-se as mos? E os micrbios?" Tudo co-presente. O indivduo serecompe ao efetuar esse ritual. Ele se reafirma num componente desubjetividade parcial: sentir-se-estar-nessa-Iavagem-de-mos. A neuro-se obsessiva talvez no seja o exemplo mais simples. Certos comporta-mentos tm a mesma funo. O fato de roer as unhas, de cantarolarmentalmente quando se sente medo ou de repetir uma frase (como sehouvesse uma testemunha), tudo isto representa um meio de "apreen-so" dessas relaes no discursivas. uma funo que eu chamo exis-tencial.

    Ela aparece nos sistemas semiticos. Os lingistas j a descreveramparcialmente. Penso nos tericos como Austin, Ducrot, Benveniste, queenfatizaram a questo dos "shifters", os elementos da linguagem queexistem no para portar uma significao, mas para gravar no enuncia-do a marca do sujeito da enunciao. Lacan tambm fez uso dessa fun-o performativa. De certo modo, foi atravs desse tipo de operadorque ele construiu a sua teoria da fala plena e da relao simblica. Para

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    uma boa abordagem desse assunto, recomendo o livro de R.Jakobson(Essais de Linguistique Gnrale, Minuit, 1963), mestre absoluto de Lacan.

    Estamos diante de um paradoxo insustentvel que somos obrigadosa sustentar. De qualquer forma, todos ns estamos nesta situao. Todasas sociedades tm de aceitar essa aposta, particularmente as sociedadesanimistas ou cientficas. Devemos propor universos de referncia, estru-turas qualitativas, texturas ontolgicas a partir de elementos de discursi-vidade. Temos de produzir, desenvolver UNIVERSOS INCORPORAIS queso universais, ainda que datados ou marcados pelo nome prprio dosseus inventores. Eles poderiam evocar as idias platnicas, e, no entan-to, esto inscritos na histria. Trata-se de rupturas, mutaes, marcadasde um fator de irreversibilidade, de singularidade.

    P. Lvy opera grandes distines entre as mquinas que derivam dooral ou da escrita, e as mquinas informticas. Dentro do universo damquina de processamento de texto - que muda completamente a re-lao expresso -, Lvy nota as interfaces que compem, que singula-rizam esse novo universo de referncia: a escritura, o alfabeto, a im-prensa, a informtica, a tela catdica, a impressora laser, a linotipo, osbancos de dados, o banco de imagens digitais, as telecomunicaes ...Pronto, uma nova mquina. Hoje em dia, as crianas que aprendemlnguas atravs do processador de texto no se encontram mais no mes-1110 tipo de universo de referncia, nem de um ponto de vista cognitivo(mmo se d uma outra organizao da memria, ou melhor, das mem-rias ... ), nem na ordem das dimenses afetivas, das relaes sociais ouNicas.

    O que essa espcie de delrio maqunico suscita? Tomemos um obje-to institucional, por exemplo um estabelecimento que acolha doentesIlsicticos. Pode-se reificar completamente as relaes intersubjetivasdizendo: o doente psictico vem buscar ajuda de indivduos que pos-Hlwmum saber, que administraro medicamentos, interpretaes, indi-,'u~:es comportamentais para curar a psicose. toda uma concepodll. subjetividade onde cada um est fechado na sua mnada, o que,lIum segundo momento, obriga a construir meios de "comunicao". IIl1niverso da "referncia comunicacional". preciso inverter essa pers-jl"ctiva e nunca partir de entidades fechadas umas em relao s outras,pois isto implica a interveno de modos de "comunicao", de "trans-1'",' .!lcia", Pelo contrrio, a transferncia deve ser primeira, deve j estar

  • 50 FLIX GUATTARIl. Haver mquina de subjetivao (ou no), segundo haja ultrapassa-mento (ou no) dos diferentes limiares de insistncia ontolgica, subje-tiva. Nesse momento, nessa relao autopoitica, h um conhecimentoimediato e ptico da situao, "alguma coisa se passa". Quando umamquina amorosa ou uma mquina de medo se desencadeia, no de-vido ao efeito de frases discursivas, cognitivas ou dedutivas. Ocorre derepente. Tal mquina desenvolver progressivamente diferentes meiosde expresso.

    A clnica de La Borde um estabelecimento concebido (em princ-pio) como uma mquina de subjetivao que, por sua vez, compostade n subconjuntos de subjetivao. Desde a internao, essas relaesde subjetivao devem funcionar entre o doente e quem o acolhe. Ou-tros tipos de relaes sero construdas a seguir entre os pacientes, osmonitores, mas tambm com os animais ou as mquinas. Cada um des-ses conjuntos deve ser suscetvel de produzir ou de ser vetor de trata-mento, vetor de tomada de consistncia existencial para os psicticos,os quais, precisamente, esto em fase de descompensao ontolgica.Ser que nos contentaremos em fazer a constatao passiva: "Tudo vaibem, no nos restringimos ao mero face-a-face com o doente, h vriasoutras inter-relaes"? Ou, ao contrrio, trabalharemos as linhas de vir-tualidade maqunica, as linhas de alteridade maqunica trazidas pelosdiferentes subconjuntos? Se a cozinha for considerada um foco auto-poitico de subjetivao, ser importante preocupar-se com o seu espa-o, com suas dimenses arquiteturais, para favorecer as trocas e paraque ela no se torne uma pequena cidadela fechada em si mesma. Hojeem dia, nos hospitais, caminhes trazem, do exterior, os pratos de comi-da j prontos. No h mquina de subjetivao. Uma mquina-cozinhaimplica um certo tipo de espao, mas tambm num certo tipo de forma-o e de troca entre as pessoas que nela trabalham. Os cozinheiros de-vem poder circular pelos outros servios para conhecer as posies dealteridade dos diferentes postos de trabalho. uma mquina complexa,um sistema de interfaces. Diria o mesmo para todos os outros servios.A conduo de um automvel, por exemplo, um momento muitoimportante para os psicticos. Um psictico pode ser incapaz de man-ter uma conversa, mas perfeitamente capaz de dirigir. Haver assimuma composio subjetiva em funo da tomada de consistncia dessesdiferentes conjuntos. Enquanto alguns dentre eles perdem a sua consis-

    A PAIXO DAS MQUINAS 51

    lncia, outros podero aparecer. Pode-se tambm levantar o problemade uma perda de consistncia geral, na medida em que se entra emrelaes de serialidade de natureza etolgica, provocando estados deselvageria inter-humana tal como ocorrem nos hospitais tradicionais.

    A posio autopoitica e "hipertextual" da mquina possui uma po-tencialidade pragmtica, permite assumir uma atitude criacionista, decomposio maqunica, em face dessa corlina de ferro ontolgica quesepara o sujeito de um lado e as coisas de outro.

    TraduoJAYME ARANHA FILHO

  • o SOM DA LINHA DE VARREDURA .

    ,, BILL VIOLA

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    56 BILL VIOLApo, O espao interno privado - espao da contemplao - e o reinoainda mais vasto do inefvel. No cinema, efeitos de ressonncia forammuitas vezes utilizados nas cenas de sonho ou nos flash-backs, para subli-nhar o carter subjetivo e o desinteresse. As catedrais, como a catedralde Chartres, na Frana, foram construdas a partir de conceitos deriva-dos da filosofia grega - em particular de Plato e Pitgoras -, a partir desuas teorias sobre a correspondncia entre o macrocosmo e o microcos-mo. Elas se expressam na linguagem do nmero de ouro, na proporoe na harmonia; manifestam-se na cincia dos sons e da msica. Estesconceitos no eram considerados nem como fruto do pensamento hu-mano, nem como puras funes do pensamento arquitetural; represen-tam, ao contrrio, os princpios divinos que sustentam a estrutura douniverso. Incorpor-los na estrutura de uma igreja era uma maneira derefletir sua forma na Terra, de um modo harmonioso.

    Chartres e as outras catedrais foram freqentemente descritas como"msica petrificada". Neste contexto, a referncia ao som e acstica3 dupla. Trata-se no somente das caractersticas sonoras do espao inter-no, que lembram as de uma caverna, mas tambm da prpria forma eestrutura do prdio, que refletem os princpios das propores sagradase da harmonia universal, espcie de acstico dentro do acstico. Assim quese entra numa igreja gtica, percebe-se imediatamente que o som quedomina o espao. No se trata simplesmente de um efeito de eco, mastodos os sons - estejam eles prximos, afastados, fortes ou fracos - pa-recem ter como fonte o mesmo ponto afastado, como se eles se des-prendessem da cena mais prxima para ir flutuar l onde o ponto devista se torna o espao inteiro.

    A arquitetura antiga est repleta de exemplos notveis de es~a~osacsticos - galerias com eco, onde um simples sussurrar se matenahzaalgumas centenas de metros mais adiante; perfeita nitidez dos anfitea-tros gregos, onde a voz de um ator, proveniente de um ponto fo.caldeterminado pelas paredes do recinto, pode ser claramente entendIdapor todos os ouvintes. As tcnicas modernas da arquitetura acstica -W\.llaccSabine foi pioneiro nessa rea, no incio do sculo - foramdesenvolvidas para responder aos problemas de falta de nitidez devido~

    reverberao do som dentro de um espao. Eduplamente divertido se pensarmos que, por um

    :1 Ver lUj notaM complcmenta- d hrCM, no Ilnal do artigo, lado, os anfiteatros gregos foram constru os

    o SOM DA LINHA DE VARREDURA 57dois mil anos, e, por outro, que o efeito de reverberao acstica dascatedrais gticas - resultante de sua estrutura arquitetnica, e no deuma inteno precisa - era considerado um elemento essencial de suaforma e de sua funo global.

    A cincia acstica estuda o som no espao. Ainda que possa ser des-crita simplesmente como o estudo do comportamento das ondas sono-ras, no pode ser dissociada da arquitetura, pois os sons se manifestam,justamente, em sua forma mais interessante e complexa, quando se cho-cam com corpos slidos, sobretudo os que enchem os espaos internosconstrudos pelo homem. Na sociedade rural da Idade Mdia, os mem-bros do clero ouviram, provavelmente pela primeira vez, as terrveisreverberaes sonoras que invadem o espao das catedrais. Uma lista,mesmo parcial, dos fenmenos acsticos mais comuns, pode parecerlima enumerao das vises msticas da natureza.

    REFRAO.: quando ocorre uma mudana de meio (duas camadas dear em diferentes temperaturas, por exemplo), a velocidade de propaga-(,:

  • 58 BILL VIOLA

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    RESSONNCIA:4 as ondas sonoras se reforam ao juntar-se a um somidntico, ou quando sua forma fsica se harmoniza com as propriedadesda matria ou as dimenses do espao. A voz de um cantor toma-semais poderosa quando difundida num pequeno espao; um objeto pro-duz um som especfico quando batemos nele. O material e a forma deum objeto representam o seu potencial sonoro imobilizado.

    VIBRAO SIMPTICA:5 ligada ressonncia; provavelmente o fen-meno mais evocador: quando se toca uma campainha, uma outra cam-painha idntica comea a vibrar atravs da casa, produzindo o mesmosom.

    Cada um destes fenmenos continua nos maravillhando mesmo de-pois de apreendermos o seu funcionamento cientfico de um modo ra-cional. H algo de imortal num eco. Poderamos, por exemplo, aventarum ltimo estgio de reverberao, um espao no interior do qual tudoo que j existiu um dia continuaria existindo - o final dos tempos, ondetudo est vivo, eternamente presente. No mera coincidncia quandose tem a impresso de que a descrio de uma vibrao simptica lem-bra uma emisso de rdio: o mesmo princpio atuando. Os procedi-mentos que caracterizam os sistemas miditicos contemporneos estopresentes em estado latente nas leis naturais; existiram desde sempre,sob diversas formas.

    No fenmeno da ressonncia, podemos constatar que todos os obje-tos possuem um componente sonoro, uma espcie de segunda existn-cia oculta, que se traduz num certo conjunto de freqncias. Em 1896,Nikola Tesla, um dos grandes gnios da era da eletricidade, suspendeupor uma corrente um pequeno motor oscilante na pilastra central deseu laboratrio em Manhattan. Produziu, assim, uma poderosa resso-. nncia fsica que se propagou atravs do prdio at as suas fundaes

    e provocou um tremor de terra: prdios intei-ros sacudiram, vidros quebraram e os condutos

    , Ver as notas complementa-res, no final do artigo. de vapor explodiram em vrios ptios de edi-, Ver as notas complementa- fcios. Ele teve de det-lo a golpes de martelo.res, no final do artigo. Tesla concluiu que poderia calcular a freqncia

    da ressonncia da terra e transform-la numaforte vibrao, utilizando um condutor correta-mente ajustado, calibrado e colocado no lugarcerto.(i

    1.1111.,

    H Descrito por John 'Neillem Prodigal Genius: lhe Lift ofNikola 'Rsla. Nova York: IvesWashbum Inc., W44, p. 159-62.

    o SOM DA LINHA DE VARREDURA 59"Percorrendo a terra, Palongawhoga experimentou o seu chama-

    do, conforme lhe havia sido pedido. Todos os pontos de vibrao aolongo do eixo terrestre, de um plo a outro, comearam a ressonar: aterra inteira tremeu, o universo estremeceu em unssono. Ele fez domundo um instrumento de som, e do som, um meio para transmitirmensagens e para celebrar o criador do universo."7

    (Mito dos ndios hopis sobre a criao do primeiro Universo.)

    "No comeo era o Verbo" ... E nos perguntamos, agora: "onde estava11 imagem?" Assim como o mito bblico da Criao, a religio hindu (oioga e o tantra, por exemplo), e as religies asiticas mais recentes (comoo budismo) decrevem a origem do mundo no som. A fora criadoraoriginal permanece acessvel ao homem sob a forma do discurso sagra-do e do canto religioso. A inveno e o desenvolvimento das tecnolo-fl,iasde comunicao suscitam a seguinte idia: o som estaria na origemelasimagens. Na era da imagem eletrnica, tendemos a esquecer que os~islcmasmais antigos de comunicao tinham por objetivo transmitir ar"la. Edison, por exemplo, tentou, inicialmente, promover o fongrafo110 mundo dos negcios, para substituir os estengrafos dos escritriospor um meio mecnico. Se o discurso est na base da criao de umI'IIr/Jusmiditico(telgrafo, telefone, rdio, televiso, etc.), a acstica (ou,C'II1 geral, a teoria das ondas) constitui o princpio estrutural fundamen-t,,1de suas numerosas manifestaes.

    !\. imagem de vdeoS um motivo de ondas estacionrias de energiac.INrica,um sistema vibratrio composto de freqncias especficas, como1111 que esperamos encontrar em qualquer objeto sonoro. Como se ob-IIf'rvou com freqncia, a imagem que aparece na superfcie do tuboc'lItdico o trao de um nico ponto de luz em movimento, produzidopor um jato de eltrons que vm bater na tela por trs, fazendo irradiarIIlIll superfcie recoberta de fsforo. Em vdeo, no existe imagem fixa.A fonte de toda imagem de vdeo, seja ela fixa ou mvel, um feixeIrlr('mico ativo, varrendo permanentemente aI III - a chegada regular de impulsos eltricosJlI'ovc'nientes da cmara ou do videoteipe. AsIIvlHllcsem linhas e frames so unicamente divi-.n Ij no tempo: abrir e fechar de janelas tempo- 8 Ver as notas complementa-I..que delimitam perodos de atividade no in- res, no final do artigo.

    7 Frank Waters. Book of lheHopi. Nova York: BallantineBooks, 1963, p. 5.

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    terior do fluxo de eltrons. A imagem de vdeo um campo energticovivo e dinmico, uma vibrao que adquire uma aparncia slida so-mente porque ultrapassa nossa capacidade de discernir intervalos detempo to finos.

    Todo vdeo tem suas razes no que ao vivo, direto (live). E a essnciadesta vitalidade reside no carter acstico vibratrio do vdeo, enquantoimagem virtual. De um ponto de vista tecnolgico, o vdeo desenvol-veu-se a partir do som (o eletromagnetismo); por outro lado, a refern-cia ao cinema parece enganadora, pois o filme e seu antepassado, afotografia, fazem parte de um outro ramo da rvore genealgica (a me-cnica e a qumica). A cmara de vdeo, enquanto transdutor eletrnicode energia fsica em impulsos eltricos, est mais diretamente ligada aomicrofone do que cmara de cinema.

    Em sua origem, o estdio de televiso era uma mistura de rdio, teatroe cinema. As imagens s existiam no presente. Sua estrutura estava calca-da na estrutura dos estdios de rdio, com cabine de controle isolada porvidros e, no palco, cmaras colocadas para captar a ao. A estrutura dosdiferentes elementos no interior do estdio pode ser considerada como arepresentao concreta da esttica cinematogrfica, uma espcie de re-mdio engenhoso obrigao de "s poder existir diretamente". Vriascmaras, geralmente trs (que correspondem aos trs planos clssicos docinema: longo, mdio, e rapproche), retomam a ao, cada uma de umponto de vista diferente. No cinema, a atividade numa determinada cenadeve criar uma iluso de simultaneidade e de fluxo temporal seqencial;o vdeo representa, ao contrrio, um ponto de vista que, literalmente,desloca-se no espao em tempo presente, de um modo paralelo ao. Ovdeo se esforou em criar a iluso de um tempo gravado - o que foi feitos quando necessrio -, utilizando as diferentes partes do estdio comefeitos de luz. As primeiras novelas de televiso e uma grande parte dastransmisses de variedades eram, de fato, o resultado da transposiodireta de uma forma de arte, o teatro, que se expressa em tempo presente.Geralmente, estas emisses eram produzidas diante de um pblico queestava l como telespectador privilegiado, mais tarde substitudo por risa-das gravadas e mquinas de aplausos.

    Um elemento essencial do cinema, a montagem (que consiste numaarticulao no tempo), foi traduzida, nos primrdios da televiso, porum de seus aspectos fundamentais, a emisso direta (que consiste numa

    o SOM DA LINHA DE VARREDURA 61articulao no espao), graas a um instrumento chave: a console. Foigraas a ela que diferentes seqncias foram organizadas para formar oprograma destinado aos telespectadores. Os elementos de base da lin-guagem cinematogrfica estavam contidos em sua prpria estrutura. Umsimples boto representava a montagem soberana de Eisenstein, o cor-te, e, com um boto para cada cmara, os cortes podiam ser realizadosde qualquer ponto de vista. O fondu au noir de Griffith era nada mais doque uma reduo progressiva da voltagem do sinal, com um potenci-metro varivel. Os volets e as telas divididas foram transformados pelostcnicos em circuitos destinados a interferir eletronicamente com a vol-tagem normal da corrente eltrica do sinal e a compens-lo. Os mode-los mais simtricos de postes de mixage eram as notas harmnicas dasfreqncias fundamentais do sinal de base do vdeo. Assim, na ausnciade qualquer possibilidade de gravao, e atravs de um instrumentoeletrnico de emisso direta, podia-se obter uma simulao de monta-gem cinematogrfica do tempo.

    Esta imitao dos modelos cinematogrficos durou at o final dosanos 60, quando os artistas comearam a penetrar na superfcie pararevelar as caractersticas fundamentais da medium, liberando o potencialvisual nico da imagem eletrnica, que hoje se costuma considerar ba-nal, como uma das caractersticas normais da televiso. A console foilogo depois transformada, e se tomou o primeiro sintetizador de vdeo.Os princpios em que se baseou foram acsticos e musicais, uma etapaposterior na evoluo dos primeiros sistemas de msica eletrnica, comoo Moog. O videoteipe foi o ltimo elo da cadeia a ser desenvolvido,uma boa dezena de anos aps o surgimento da televiso, e s foi inte-grado de fato ao sistema de tratamento da imagem de vdeo no inciodos anos 70, com a introduo do time-based corrector. Graas inclusonatural de material gravado no fluxo das imagens, e ao progresso damontagem eletrnica, sentiu-se cada vez mais a necessidade de identifi-car acontecimentos anteriores como sendo ao vivo. O vdeo comeou aficar parecido no s com o cinema, mas com todo o resto: a moda, asconversas, a poltica, as artes visuais e a msica.

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