cadernos de subjetividade n 2 linguagens 1993

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  • 8/13/2019 Cadernos de Subjetividade n 2 Linguagens 1993

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    NCL EO DE ESTUD OS E PESQUISAS DA SUBJETIVIDADEPROGRAMA DE ESTUDO S PS-GRA DUA DOS EM PS ICOLOGIA CLINIC

    PONTIFCIAUNIVERSID DECATLICA DE SO PAULO

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    CADERNOS DE SUBJETIVIDADE

    NcleodeEstudosePesquisasdaSubjetividadeProgramadeEstudosPs-GraduadosemPsicologiaClnica daPUC-SP

    Cad.Subj. S.Paulo v.1n.2 pp.137-274 set/fev. 1993

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    Catalogaona Fonte -BibliotecaCentral/ P U C - S PCadernos de Subjetividade /Ncleode Estudos ePesquisasda Subjetividade do Programade Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica da P U C - S P . - v . l ,n.2(1993)-. - S oPaulo,1993-

    Semestral1.Psicologia-peridicos I.Instituio.

    I S S N 0104-1231 C D D150.5

    Cadernos deSubjetividade6umapublicaosemestraldoNcleode Estudos ePesquisasda Subjetividade, do Programa de Estudos Pos-Graduados emPsicologia ClnicadaP U C - S P .Revistafinanciada com a verba de apoioinstitucionaldaC A P E Sao Programa de EstudosPs-GraduadosemPsicologia C lnicadaP U C - S P .PONTIFCIA U N I V E R S I D A D EC A T L I C A D E S OP A U L O (PUC-SP)Programa deEstadosPos-Graduados emPs icologia Cl in icaCoordenaoLus CludioFigueiredoVice-CoordenaoMarliaAncanaLopesGrisiNcleode Estudos ePesquisasda SubjetividadeCoordenaoSuetyRolnik

    Cadernos de SubjetividadeConselhoE ditorialDanyAi-BehyKanaan,InisR.B. Loureiro,MananA .L. DiasFerrari,NelsonCoelhoJnior, PatrciaViannaGeumgerProduo EditorialDanyAl-Behy Kanaan eMoranA .L. DiasFerrariProjetoGrficoeCapangelaMendesProduo GrficaFernanda doValComposiode TextoJussaraRodriguesGomes

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    A P R E S E N T A O

    NCLEO D EESTUDOSEPESQUISASD ASUBJETIVIDADE

    O Ncleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, um dosquatro ncleosquecompem oProgramadeEstudosPs-GraduadosemPsicologiaClnica daPUC-SP,umaproposta de cursode ps-graduaoque nasceu comoformalizaodeummovimento que vinhaocorrendo,halguns anos, emnossoPrograma:todaumavidaextracurricular,feita de seminrios, conferncias,cursos, grupos deestudoetc, que se organizavamparadarconta de demandas emergentes nos trabalhos desenvolvidos, tanto pelo corpodocente,quantopelocorpodiscente.Adecisode oficializarestemodo defuncionamento, visoudar crdito quiloqueconstituao realtrabalho de investigao que desenvolvamose eliminar aquilo que setransformaraemmeraobrigaoformal,sem umaprodutividade efe-tiva. Visvamos,comisso,incentivar ogostopelo estudo,pela reflexoe a escrita, e funcionar comoumsuporte, o maisconsistentepossvel,parao trabalho detodos,o quenossosprimeirosanosdeexistnciaparecem ter confirmado. Nossa inteno que cadaumpossa concentrar-se emtornodeseusinteresses,desdeseuingressonoPrograma,visando comissono smaximizaras oportunidadesdeavanar emseutrabalho, mas tambmencurtaroprazoparaadefesada dissertaoe/outese

    SuelyRolnik

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    AEE.

    D

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    S U M A R I O

    A P R E S E N T A O 139E D I T O R I A L 143E N T R E V I S T A S

    GneseedoaonaclinicaRogrio da CostaePaulo CesarLopes 145D O S S I : L I N G U A G E N S

    Oterceiroouvido- Nietzschee oenigma da linguagemAlfredoNaffahNeto 151A linguagemfalae osujeito tambmNelsonCoelhoJnior 157Oque(no)seva t rsda portaDcio OrlandoSoaresda Rocha 163A suspensoda palavraPedro deSouza 169A psicanliseno contextodasautobiografias romnticasLuizAugustoM .Ceies 177

    T E X T O SA militnciacomo mododevida. U m captulonahistriados(maus) costumes contemporneosLus Cludio Figueiredo 205Goya:conflitos. Subjeuvidade,histriae arte napassagemdosculoX V I I IparaoX I X ,apartirdeumestudodavidaeobra de GoyaPatrcia Vianna Gettinger 217D oparadigmacientficoaoparadigmatico-estticoepoltico:aartecomo perspectiva nassolueseducacionaisMarisaLopesda Rocha 235

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    C O M U N I C A E SPensamento, corpo e devir.U m aperspectiva tico/esttico/polt icano trabalho acadmicoSuetyRolnik 241

    R E S E N H A SA alma do mundoes tdoenteLdiaArantangy 253Althusser- Umabiografado invisvelMarianA.L. DiasFerrari 254Desonstruindoanoode tempoMariaSylvia Porto Alegre 256U m aponteentrepsicanliseepolticaCelinaRamosCouri 258

    I N F O R M E S 263

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    E D I T O R I A L

    O n m e r ode estreia deCadernos de Subjetividade, l a n a d o emm a r o de 1993, obteve umar e p e r c u s s osurpreendente para uma pub l i c a o de origem a c a d m i c a . Isso mostra que h um e s p a o crescente na universidade e t a m b m fora dela para a p r o d u o e odebatedos temas relacionados subjetividade.

    O reflexo desta boa a c e i t a o aparece neste segundo n m e r ode v r i a s maneiras. Recebemos c o n t r i b u i e s provenientes de diversas partesdo Pais, de autores com as mais variadas f o r m a e s , m u i tos dos quais i n d i t o s .Isso vem ao encontro de nossa expectativa empromover uma i n t e r l o c u o sempre renovada entre aqueles que seinquietame questionam a contemporaneidade.

    Diferente do n m e r o anterior, no qual 'Entrevistas' e ' D o s s i 'dedicaram-se exclusivamente a prestar uma homenagem a F l i xGuattari, no atual 'Entrevistas' apresenta um texto resultante dod i l o g o de R o g r i oda Costa com Paulo Cesar Lopes acerca da p r t i c a c l n i c a ;por sua vez, o ' D o s s i ' dedicado d i s c u s s o das ' l i n guagens', mais um reflexo damultiplicidadeque pretendemos explorar, no nos restringindo a uma s abordagem, mas criando um espa o no qual c i r c u l a m as diferentes m a n i f e s t a e s sobre o tema. No' D o s s i ' temos dois textos que dizem respeito fa la na s i t u a o ter a p u t i c a , sendo que o de A l f r e d o N a f f a h p r i v i l e g i a a leitura nietzs-chiana, enquanto o de N e l s o n Coelhoenfoca a c o n c e p o de linguag em de Merleau-Ponty. Em seguida, temos t r s textos que p r i v i l e giam uma certa c o n c e p o de 'linguagem' e sua aplicabilidade emcontextos diversos. D c i o Orlando Soares da Rocha destaca asideias de Guattari no campo da l i n g s t i c a ;Pedro de Souza, partindo de uma carta enviada ao Grupo de A f i r m a o Homossexual(Somos), " v i s a examinar discursivamente o problema da e x p r e s s odo sujeito na h i s t r i a " deste movimento na d c a d a de 1980; L u i zAugusto Ceies em seguida, trata desta e x p r e s s o do sujeito nas autobiografias r o m n t i c a s e na c l n i c a p s i c a n a l t i c a .

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    'Textos' apresenta t r s temas bem diversos. O primeiro, porL u s C l u d i o Figueiredo,trata da subjetividade do militante; em seguida, P a t r c i aGetlinger faz umestudoda subjetividade por meio dav i d a e obra de G o y a ; e M a ri z a Lopes da Rocha desenvolve o temado paradigma t i c o - e s t t i c o - p o l t i c o e a criatividade no e s p a o escolar.

    Neste n m e r o , t a m b m encontramos a c o m u n i c a o de SuelyR o l n i k , por o c a s i o de seu concurso de a s c e n o na carreira naP U C - S P ,na qual ela expressa sua c o n c e p o de trabalho a c a d m i c o .N a s e o 'Resenhas', temos o l i v r o de James H i l l m a n , Cidade ealma, por L d i a A r a ntang y ; o l i v r ode L o u i s Althusser,Ofuturo dura muito tempo, por M a r i a n D i a s Ferrari; o l i v r o de Jacques LeG o f f , Histria e memria, por M a r i a S y l v i a Porto A l e g r e ; e a diss e r t a ode mestrado de M a r i a A u x i l i a d o raArantes,Pacto re-velado:abordagem psicanaltica de fragmentos da vida militante clandestina, por C e l i n a C o u r i .

    Fechando o n m e r o , 'Informes' traz a p r o g r a m a o do N c l e opara o segundo semestre de 1993.

    Esperamos que este segundo n m e r o continue a propiciar odebatee a troca deideiasiniciadas nosemestre passado.Conselho E d i t o r i a l

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    E N T R E V I S T A S

    G NE SEED O A ONACLNICA*Rogrio da Costa

    PauloCesarLopesA doao i umconceitocristo,agnesei umconceitonmade.

    M q u i n a s , i n d s t r i a s , a u t o m v e i s ,telefones, computadores, asma, fax,neuroses, i n f l a o , c o r r u p o , m d i a ,aids, t r n s i t o , t r f e g o , t r f i c o , j u r d i c o , mercadorias, n e g c i o s , juros, financeiro, m o l c u l a s , n d i o s , t e l e v i s o ,cinema, arte, favela, v i o l n c i a s , massacres, e x t e r m n i o s , poesia, membran a , musicalidade, festas, dores, g e n tica, intrigas, amores, sexo, l i v r o s ,p r o s t i t u i o , palavras, signos, cores,nomes, afetos, p a i x e s , d e l r i o s , realidadesvirtuais etc.

    Subjetividade/multiplicidade/osmo-s e / h e t e r o g n e s e / d e v i r e s / e s p a o frac-tal /singularidade/ co n s i s t n c i a / p o l t i -c a / c o r p o r i f i c a e s / g n e s e s / c o n e x e s /rede/rizoma/ecologia do e s p r i t o / p r o cessos de m u l t i p l i c a o dos eus/encen a o / e m e r g n c i a .

    O ambiente acima um hipertexto,u m a nascente h e t e r o g e n t i c a . A hete-r o g n e s e o jorro das c o n e x e s , dasinterfaces, do hipertexto, desse u n i verso de mesclas.

    Tudo isso um estofo, uma m a t r i a . Se h alguma coisa a ser tratada,e la tem diretamente a ver com isso.Comopensaruma clinicahoje?

    Incluir esse ambiente em todos oscampos de tratamento da subjetivida-de, trazer para esses campos todos osmovimentos da realidade, da p r o d u oreal de subjetividade, no seria issoque precisaria ser feito?

    Parece normal que as p r t i c a satuais de tratamento da subjetividadetenham uma p r e t e n s o cientificista, namedida em que uma c i n c i a destacaseu objeto de um fluxo de realidade eo compreende segundo um certo rolde variantes. Contudo, para analisaru m tal objeto, no caso a subjetividadehumana, essas p r t i c a s podem recorrera modalidades categoriais (psicopato-l g i c a s ) muito distantes da compreens o dos processos de s u b j e t i v a o , dee f e t u a o da realidade. Quando isso

    Aentrevista deRogr iodaCosta,concedida aPauloCesarLopes,acabou resultando nopresentetexto,noqualentrevistador e entrevistado sintetizamsuasideiasa respeito daprtica clnica.145

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    acontece, elas respondem demandade seres que esperam que algo sejadado como r e f e r n c i a de valor, comor e f e r n c i a de autoposicionamentoexistencial. E , no entanto, o fundamental sempre a c o n s t r u o dae x i s t n c i a , o construtivismo da exist n c i a : esse a nosso ver seria o problema alvo de uma a n l i s e . Para tantoe la precisaria efetivamente trabalhar asubjetividade num outro plano, a fimde desprender as amarras que i m p l i ca m esta dupla captura: uma capturadada por algumoutro e t a m b m umacaptura desejada.

    E importante lembrar que essacaptura desejada nada mais que oeterno jogo da p r o d u o de uma necessidade, de i n s t a u r a o de uma demanda. No caso da c l i n i c a , podemospensar que, por um lado, t e r a m o so desejo do analista investido numcerto plano de categorias que lhe assegurariam um lugar, um movimento;p o r outro lado, t e r a m o s o desejo doanalisando que investiria um supostosaber do analista. d i f c i l , porque essa dupla captura instala um plano denecessidade, uma cadeia de demandase, com isso, acaba-se por esquecerque s h g n e s e , e m e r g n c i a , encarn a e s singulares onde se processa ae x i s t n c i a . Ela no pode serdada pornenhum outro, o seu ovo que deveser fecundado e as suas c o n e x e s quev odeterrninarisso,assuasredes.

    Como pensar a h e t e r o g n e s e numac l n i c a ? E preciso antes de tudo dis

    tinguir o condicionante, o transcendental, o atemporal da g n e s e . aideiade umag n e s equev a isedesdobrar em todos os operadores desseambiente hipertextual. Lembra-se doe s p a o fractal? Ume s p a o fracta l num a c l n i c a , por exemplo, onde quee la fractal?

    E l a fractal no ambiente, ou seja, aecologia do e s p r i t o e s t l presente.A cada momento numa s i t u a o c l n i c a , em cada caso c l n i c o estaremosdiante de um movimento, de uma dobra , da e n c a r n a o de um personag e m , de um dos eus larvares, ou maisde um ao mesmo tempo. Issoque vaiproduzir a d i s t i n o , a singularidade, |talvez por isso possa-se dizer 'este'caso. Esses pequenos eu larvares, emsuas dobras fractais constroem umacurva p s q u i c a que no pode ser compreendida por meio de um modeloexterno, mas sim a partir de todas essas m i c r o c o n s t r u e s que efetivamente a c o m p e m .

    A p s i c a n l s e com p r e t e n s o cienti-ficista deve necessariamente perderessa d i m e n s o fractal toda vez que rebate essas dobras segundo um n i c op a r m e t r o universal. A c r t i c a fundamentalmente se calca nisso, ou seja,n a c r i a o de universais. Toma-se esses 'n' eus que efetuam essas dobrasaparentemente i n d i s c e r n v e i s e diz-se:a subjetividade funciona 'assim'.C o n s t r i - s e e n t o um eixo, um pilarque sustenta todo um sistema baseadonessa a p r e e n s o , um recorte que sefa z . S que um recorte reducionistaque, no fundo, ainda reitera essa S

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    mesma demanda de doao c r i s t quee s t em jogo. O desejo de c i en t i f i c i s m o isso, a e n c a r n a o disso.S e o nosso problema aqui c l n i ca ,

    estamos pressupondo uma subjetivi-dade que p a s s v e l de ser tratada, ho que ser feito al i , h como intervirnessa subjetividade para romper comesse c o r d o u m b i l i c a l que a d o a od i v i n a . Ora, a d o a o d i v i n a pode serentendida aqui em muitos sentidos:d o a o que transcendente ou transcendental, d o a o do dado, da forma,do bom senso e do senso comum. Nocaso da c l n i c a nos confrontamos comtoda uma s r i e de categorias psicopa-t o l g i c a s , estruturas, esquemas etc.Essas categorias so um pouco comoaquelas do entendimento kantiano. Oanalista, neste caso, aplicaria tais categorias p s i c o p a t o l g i c a s em seue x e r c c i o , ou seja, elas seriam o condicionante a partir do qual ele apreenderia o universop s q u i c odo analisando . E no entanto o que tem que acontecer uma r e v e r s o , uma p o s s i b i l i dade de engajamento com o ambienteh e t e r o g e n t i c o . Poder-se-ia objetaraqui que e s t a r a m o s diante de maisum a categoria. Contudo, no se tratadisso. Trata-se de ideias problemas,ideias p r o b l e m t i c a s , a m u l t ip l i c id ad en o sendo uma categoria, pois enquanto ela no for encenada, dramatizada, encarnada, ela no nada. Elan o se apresenta como um universal .H e t e r o g n e s e , osmose, singularidade,nada disso dado, isso v i r t ua l e temque ser encarnado, comvalor de refe

    r n c i a estrito, l o c a l i z a d o . Tem queatualizar, o fundamental nessesoperadores.

    N u m a c l n i c a , como pensamos isso? O importante que se produza desamarras todo o tempo, mas sem cairno negativo, sem afundar, sempre nal i n h a da p o s i t i v a o da e x i s t n c i a . Oque s ign i f i ca romper com a represent a o ? No querer d o a o , quererproduzir sua p r p r i a subjetividade,construir sua p r p r i a e x i s t n c i a , inv e n t - l a sempre. No h dado no p l a no da e x i s t n c i a , deve-se sempreq u e s t i o n - l a , p r o b l e m a t i z - l a todo otempo, v i v e r as m n i m a s s i t u a e ss e n s v e i s , poder ser atetado, investir evalorar seus afetos. Contudo, usualmente, no querer d o a o entendidocomo desejar a morte ou querer a desordem,poisnessemomento se estariafora do bom sentido, onde s haveriamorte, caos como morte. Entretanto,verificamos hoje que perfeitamentep o s s v e l pensar a e m e r g n c i a comog n e s e , e m e r g n c i a sem d o a o . Deu m protoplasma, de uma c l u l a , passando pelo p o l t i c o , pelo s o c i a l at oc o s m o l g i c o , pode-se constatar quetudo p o s s v e l num sistema de auto-p r o d u o , num sistema h e t e r o g e n t i c os e m t r a n s c e n d n c i a , sem c o n d i c i o nantes do afeto, sem d o a o , ou seja,constatar que todas essas d i m e n s e sd a e x i s t n c i apodem se auto-organizar.O problema pensar a conquista deu m plano de c o n s i s t n c i a que nodemande um dado que traga a segur a n a , a i l u s o de seguridade. Caso

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    contrario, no e s t a r a m o s inventandonovas modalidades de sintomas?

    A i d i a da pedagogia importante.H um trabalho que o e x e r c c i o ,uma pedagogia da e x p e r i m e n t a o ,sua v a l o r a o . Isso porque e n c e n a o ,f a b u l a o , d e l r i o tm uma p o s i t i v i d a de que absolutamente desprezada noplano da d o a o .O cinema de Godard,segundo Deleuze, uma pedagogia dap e r c e p o , porque rompe com a expectativa dos mecanismos sensorio-motores. Na verdade podemos falar depedagogia em v r i o s outros planos,a literatura t a m b m uma pedagogiado entendimento, da i n t e l i g n c i a et a m b m dos afetos. A arte pedagog i a , a c i n c i a hoje pedagogia, assimcomo a i n f o r m t i c a , pois ela e s t for a n d o o pensamento a entrarem confronto com planos at e n t o i n d i t o s .P o r que a c l n i c a no seria uma pedagogia? E neste caso, que e s p c i e depedagogia a c l n i c a poderia ser? Poroutro lado, como v o c pode pensar isso com r e l a o ao ideal de neutralidade do analista na p s i c a n l i s e , porexemplo? Na verdade, h sim uma pedagogia na c l n i c a , mas uma pedagog i a na qual o analista pode no estarquerendo arriscar: neste caso, suap r p r i a subjetividade parece j estarengajada, capturada por toda umaredeque ele no quer colocar em jogo, emq u e s t o . preciso sempre lembrar queestamos falando de um campo de exp e r i m e n t a o , l a b o r a t r i o de subjetividade, de coisas v i t a i s . Nesse sentidoseria preciso repensar operadores con

    ceituais da p s i c a n l i s e como transfe-r n c i a / c o n t r a t r a n s f e r n c i a etc. 1I n t e r v e n o . No podemos i m a g i nar uma i n t e r v e n o que no pressu

    ponha a figura do analista como maisu m ator desse e s p a o fractal, absolutamente encarnado nesse plano demultiplicidade, de h e t e r o g n e s e . Hu m exemplo do Nietzsche em que eleencontra uma menina que acaba desair da igreja e lhe pergunta se eleacredita em Deus. Ele responde ques i m .A nosso ver essa p e r c e p o queimaginamos para uma analista hetero-g e n t i c o , poder entender que e s t diante de a l g u m cuja subjetividade |modulada constantementepela maquinaria da m d i a ,do capital etc., que lhei m p e m mi l demandas. El e precisa saber l i d a rcom isso. Isso t a m b m umac o n s t r u o . T a m b m se c o n s t r i permanentemente um 'analista'. Noexiste 'O' A n a l i s t a , ' O' Terapeuta,existe sim umagenciamento analtico, preciso que seescapedo ' O' . O n i c o contrato p o s s v e l no 'tratamento'da subjetividade seria um contrato deagenciamento analtico, pois isso jtraz a i m p l i c a o do ambiente hetero-g e n t i c o fractal. Esse seria um contrato aberto, que i m p l i c a r i a a produ o da subjetividade de cada um desde sempre a cada encontro.

    Lembremos que o condicionante outranscendental em K a n t deveria garantir a c o n s t i t u i o do objeto. Esseobjeto apareceria enquanto f e n m e n odelimitadopelo condicionante ou campo transcendental. A g o r a , se se diz

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    O hotes, uda,qvantaque nvel , dpolailisa,rdoquideabonddas ca trelativsr o

    *PncotenP6*-Gradeologiacldeumtecoteiup

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    D O S S I

    O T E R C E I R O O U V I D O- N I E T Z S C H EE OE N I G M ADAL I N G U A G E MAlfredo Naffah Neto*

    OmundonamedidadohomemOque (...) a verdade? Uma mul t idomovente de metforas ,de metorrmias, de antropomorfismos, em resumo, um conjunto de relaes humanas poeticamente e retoricamente erguidas,transpostas,enfeitadas, e que depois de um longo uso,parecem a um povo firmes, canoniais e constrangedoras: asverdades so ilusesquensesquecemos que os o . . . 1

    O homem, ao procurar dominar a natureza e se comunicar comseus semelhantes, u t i l i z a conceitos comosignos de reconhecimento2, mas esquece, em seguida, que ao fazer isso traduz deveres singulares por generalidades a b s t r a a s . Avantagem que aquilo que acontece e se produz de forma n i c a , i n e x p r i m v e l ,que nem sequer identicamente, masdevemdiferencialmente, torna-se n o m i n -v e l , d e s i g n v e l , r e c o n h e c v e l , podendo ser objeto de c o m u n i c a o e de manip u l a o de diferentes tipos. O i n a p r e e n s v e l capturado num signo que o paral i s a , recorta e aprisiona: doravante quando a l g u m disser "folha" todos s a b e r odo que se trata. Mas s a b e r o , mesmo? "Toexatamentecomo umafolha nunca i d n t i c a a outra, assim t a m b m o conceito de folha foi formado g r a a s aoabandono deliberado dessas diferenas individuais, g r a a s ao esquecimentodas caractersticas..." 3 O conceito c o n s t r i , pois, umesqueleto demundo correlativo aos usoshumanos', e essa c o n s t r u o envolve umesquecimento necessrio das diferenas, das singularidades, dos estados de perene

    *Psicoterapeuta, professordoNcleode Estudos e Pesquisas da Subjetividade, do Programa de EstudosPs-Graduadosem Psicologia ClnicadaP U C - S P .Mestrado emfilosofia pelaU S Pe doutorado empsicologiaclinicapelaP U C - S P .Possuivrios livrospublicados, sendoos trs ltimos:Paixese questesde umterapeuta(ed.Agora,1989),Oinconscientecomopotncia subversiva(ed. Escuta, 1992)eApsicoterapia embuscadeDionisoNietzschevisitaFreud(ed.Escuta - no prelo).

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    transmutao imanentes a tudoque est a, rumo s identidades e s t v e i s , pass v e i s de c o m u n i c a o e m a n i p u l a o .

    N o h nada,pois,a se esperar desse uso da linguagem a no ser aquilo aque se p r o p e : tornar o i n a p r e e n s v e l , o f u g i d i o , d e s i g n v e l e r e c o n h e c v e l ,fundar a c o m u n i c a o e o d o m n i o da natureza segundo critrios utilitrios des o b r e v i v n c i a da e s p c i e humana. O contra-senso, que da se segue, p r o v m ,segundo Nietzsche, da expectativa de que esse instrumentals i m b l i c o , descarnado, utilitariamente c o n s t r u d o por sobre oesquecimento da profuso de singularidades que o mundo, possa ainda guardar qualquer relao interna como seu ser. A vontade de verdade nasce desta i l u s o e v a i , e n t o ,servir de ancoradouro f i l o s o f a e s c i n c i a s .

    Transpondo essas c o l o c a e s para o nosso universop s i c o t e r a p u t i c o namaior parte das vezes eminentemente verbal p o s s v e l constatar o quanton s , terapeutas, somos t a m b m assolados por essa i l u s o . O u v i r um pacientedizendo "meu pai " , "minha m e" ou "meu f i l h o " seguidos de uma a f i r m a oqualquer nos d, grande parte das vezes, a i l u s o de que sabemos do que elef a l a . Ou , se no sabemos ainda, saberemos em algum momento, enquanto h aexpectativa e a vontade de verdade. A maior parte das perspectivas t e r a p u t i c a s uma boa parcela da p s i c a n l i s e a compreendida resvala e rodopia nessabusca, ainda que muitas vezes a disfarce sob o termo "verdade inconsciente".Pois a c r t i c a nietzschiana aplica-se tanto aos apologistas da "verdade consciente" quanto aos da "verdade insconsciente" . Pressupor que a verdade emerg i r a t r a v sda linguagem consciente ou a t r a v s de algum significante recalcadoque, a t r a v s de uma s r i e de malabarismos t c n i c o s g a n h a r palavra e voz nomomento oportuno, d no mesmo: apenas se adia e se transmuta o lugar da verdade. A i l u s o permanece.4

    Questionar a vontade de verdade s i g n i f i c a ira l mdisso, ou seja, perceberque onde quer que se esteja "descobrindo" verdades, e s t - s e apenas reafirmand o uma forma de poder garantida pela hegemonia de um cdigo; e saber asc o n s e q u n c i a s disso. Num m b i t o t e r a p u t i c o , no penso que esse e x e r c c i oproduza efeitos diferentes do que uma r e a f i r m a o n a r c s i c a do poder do terapeuta e do seu referencial t e r i c o , reencontrando no "real"aquilo mesmo quel foi projetado. Como d i z i aNietzsche "... supondo que projetamos certos valores nas coisas, em seguidaessesvalores re-agem sobre ns, assim que tivermos esquecido que fomos seus autores" 5. Tautologia. A l i e n a o .

    A outra s a d a tentar reverter todoesseplatonismo e buscar um outro usod a linguagem, que escape ao d o m n i o da representao6.

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    Arco-fris queiludema solido acompanhando Zaratrusta convalescente, na conversa comseusanimais,

    que podemos, q u i , encontrar apontamentos para uma funo da linguagemque opere nummbitoparaalmda r e p r e s e n t a o :A h meus animais(.),continuem tagarelando: onde se tagarela ,ai o mundo deestendediante demimcomoumjardim.Queagradvel que existam palavras e sons: palavras e sons noso ,por acaso, arco-iris e pontes ilusriasestendidasentreoenternamenteseparado? A cada alma pertenceummundodistinto; para cada alma qualquer outra alma um ultra-mundo.(...) Como poderia haver para mim um fora-de-mim? Noexiste nenhum fora Mas isso esquecemos to logovibramossons; queagradvel esquecerisso Nose presentearam, poracaso, as coisas com nomes e sons para que o homem nelas sereconforte? Uma formosa necessidade falar ao falar o homem dana sobre todasas coisas. Que agradveisso todofalar e todas as mentiras dos sons Nosso amor danacomsons sobre arco-frismulticoloridos7.

    N o por mero acaso que na linguagem-em-ato: afala vamos encontraruma possibilidade de ultrapassar a sua dimenso representativa na direo deuma funo basicamente afetiva. A f i n a l ,os afetos se formam nas relaesvivasentre os homens e a, talvez, que a lnguapode servir para i l u d i r ,dissimularuma solido i n s u p o r t v e l .N o existe nenhum fora " A afirmao talvez possa espantar os leitorespoucofamiliarizados comNietzsche.Mas,e n t o ,a proposta de um solipsismototal? No bemesseo caso; no existe nenhum fora porque:

    ...o mundo que nos diz respeito somente aparncia ,no real. (...) O conceito 'real, verdadeiramente existente' ns otiramos primeiramentedesse'nos dizer respeito'; quanto maissomos tocados em nossos interesses, mais acreditamos na'realidade'de umacoisaou de um ser. 'Isso existe'significa:eume sintoexistindono contato com isso8.

    Por outro lado no h outro mundo "real", "objetivo", alm desse que nosafeta e nos d sinal de sua p r e s e n a : " N o h acontecimento em si . O queacontece um conjunto de f e n m e n o s , escolhidos e reunidos por um ser interpretante" 9.Ou seja, a interpretaoque articula e d forma ao acontecimento;mas ela obra das nossas necessidades, dos nossos instintos, portanto de forasinterpretantes. Haveria solipsismo se essa interpretao fosse obra de sujeitos,fechados em si mesmos, aprisionados nassuasrepresentaesde mundo; porm

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    t a m b m : "... 'o sujeito' " uma criao desse g n e r o (...): uma simplificaopara designar, enquanto tal, a f o r a que aloca, inventa, pensa, por o p o s i o atoda a l o c a o , i n v e n o , pensamento..."1 0. Ou seja, no h fora, mas t a m b mn o h dentro; o dentro e o fora so criaes das f o r a s interpretantes, quesimplificam o acontecimento tornando-o mais r e p r e s e n t v e l perantea comunidade humana - a t r a v sda conhecidao p o s i o sujeito-objeto.

    Entretanto, h s o l i d o .Quando o homem compreende, finalmente, a mortede Deus e o que ela s ign i f i ca : a a u s n c i a de qualquer tipo de garantias a p r i o r ipara a v i d a , ele acaba, paradoxalmente, por "ter o mundo na m o ,sem ter maisonde se segurar", como diz J o s M i g u e l W i s n i k , num de seus poemas.1 1 frente aesse"eternamente separado" - sem garantias de qualquer p e r m a n n c i a ,de qualquer verdade - essedeserto s o l i t r i o , que a l n g u apode funcionar como" a r c o - r i s , m u l t i c o l o r i d o " , "ponte i l u s r i a "para que o homem possa "se reconfortar no seio das coisas". Uma "formosura mentirosa" que lhe possa devolvero amor fundamental: oamorfati. O ato a t r a v sdo qual as coisas so banzadasc o m nomes e sons o mesmo que produz o esquecimento da s o l i d o e ensina ohomem a d a n a r com os sons por sobre os a r c o - r i s multicoloridos, o que querdizer: por sobre as cascatas de r u d o s e r e v e r b e r a e s esfuziantes que constituem a l n g u a no ato da fa la . Se a l i n g u a g e m - r e p r e s e n t a o aprisionava nummundo i d e a l , i m a g i n r i o , a linguagem-afeto talvez possa ensinar a andar nomundo dos homens, no momento em que as l t i m a s garantias vm abaixo. Redescobrir a prpria potncia, aprendendo a danar a lngua dos afetos:noe s t a apontada uma p o s s v e l s o l u o ? De qualquer forma, as alternativas nos o muitas num mundo onde no h mais onde se segurar. "Se o meu mundocair" - aconselha o poeta - "eu que aprenda a levitar" 1 2 . E l e v i t a r / d a n a r sobre todasas coisas pode resumir-se num ato m g i c o denominado fala.

    OterceiroO U V i d Oe a raigiraliwgnagrmN o aforismo 246 deAlm do Bem e do M o / 1 3 , Nietzsche comenta:

    Que tortura so os livrosescritos emalemopara aquele quepossui oterceiroouvido Comose detmcontrariado junto aolento evolverdesse pntanode sons sem harmonia, de ritmosque nodanam,que entreos alemes

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    intencionale comoatraentea quebra de uma simetria muitorigorosa,prestarouvidossutis e pacientes a todostaccato,todorubato,atinar com o sentido dasequnciade vogais e di-tongos, e o modoricoedelicado comosepodemcolorire variarde cor em sucesso:quem,entreosalemesquelem l i -vros,estaria disposto a reconhecer tais deveres eexigncias,eaescutar tamanhaarteeintenonalinguagem?

    Quem ousaria decifrar um discurso como se decifra uma partitura musiE aguar o terceiro ouvido que o que apreendeo incorprea do texto - h a r m n i c o s , os ritmos que danam? Quantos estariam aptos a

    tempo- no sentidomusicaldo termoe discriminaros staccatos, legatos, os rubatosl E a variaodas cores e dos matizes: os tons escuros e levitar nos limites dos

    E conseguirdiscriminar um tremolo, l onde o som reverbera e se agi mudanasde timbre voz humana, anunciando ora uma dor camuflada, ora uma alegria contida e,

    s vezes, devastando espaos afetivos atravs de suspiros r t m i c o s ,lacrimejan- exploses exuberantes, ensolaradas, de prazer? E quem ousaria,sutil e

    multiplicidade metamorfoseante, sus interpretaoprecipitada, esperando que o corpo ecoe e responda e emergentesdemforma ao sentido que brota e ilumina?

    Esse, a meu ver, o grande desafio de todo psicoterapeuta que queira ul dana multicolorida

    fala como canais para a sua p u l s a o . Tarefa r d u a , dado que o nosso hbito tecido as malhas da linguagem repre vezes, no meio de uma s e s s o , quando me percebo seduzido pela

    desse h b i t o , suspendo todo o contedo da fala do paciente e perma longos minutos escutando apenasa msicado discurso: suamelodia, seu

    seu timbre e todasasmudanase flutuaesque se seguem. Geralmente, volto s palavras tenho um novo ngulo de v i s o , deixei-me afetar deoutra forma, posso - atravs da minhafalacriarpassagem para um novo

    i n t e r p r e t a o . Caberiachamar, a,esse sutil canal,vibrtil edesegunda garganta

    1. F.Nietzsche, Introduo teorticasobre a verdade e a mentira no sentidoextramoral,emOlivrodo filsofo,Porto,ed.R s ,p. 94.155

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    2. Nietzsche diz: "Os conceitos so (...) signos de reconhecimento. No encontramos anenhuma inteno lgica; o pensamento lgico uma decomposio" (Fragmentopstumo 1 [50], outono de 1885 - primavera de 1886,Oeuvresphilosophiquescompletes,Paris,Gall imard, 1978; v.X I I ,p. 32).3. F. Nietzsche,Int roduo teor t icasobre a verdade..., loc.cit., p. 93,meusgrifos.

    4. Nobastadescrever a "verdade inconsciente" comometfora (ou metonmia),se elacontinua a ser buscada, no processo teraput ico,como ograndeato doador de sentido, revelador daquilo que . Neste caso, qualquer convergncia com a descrionietzschiana apenasaparente.5. F. Nietzsche, Fragmento ps tumo 5 [19],vero de 1886 - outono de 1887,Oeuvres

    philosophiquescompletes,loc.cit.,v o l. X I I ,p. 193.6. Nietzsche faz referncia ao platonismo como originrio dessa i luso,decorrentedaformao de conceitos, e que "... acorda,en to ,arepresentao,como se houvesse nanatureza, fora das folhas, alguma coisa que fosse 'a coisa', umaespciede forma o r i ginal segundo a qual todasas folhas seriam tecidas,desenhadas,rodeadas,coloridas,onduladas, pintadas..." (Cf. F. Nietzsche,Int roduo teor ticasobre a verdade..., loc.cit.; p. 93). Uma formaoriginaldestetipo define,certamente,aIdeiaplatnica, modelo primeiro do qual osentes empricos sotodosconcebidos como cpias, representaes (etimologicamente: re-apresentaes)mais ou menos fiis.7. F. Nietzsche,Asi habl Zaratrusta,t raduodeA n d r sSanchez Pascual,A l ianzaed.,Madr id , 1981, "O convalescente", 2, p. 299.8. F. Nietzsche, Fragmento ps tumo 5[19], vero de 1886 - outono de 1887,Oeuvres

    philosophiquescompletes, loc.cit., p. 193.9. F. Nietzsche, Fragmento ps tumo 1[115], outono de 1885 - primavera de 1886,Oeu

    vresphilosophiquescompletes,loc.cit., p. 47.10. F. Nietzsche, Fragmento ps tumo2[152], outono de 1885 - outono de 1886,Oeuvres

    philosophiquescompletes,loc.cit., v.X I I ,p. 142,meusgrifos.11 . J. M.W isnik, Se meu mundo cair,encarte do CD Jos Miguel Wisnik,Camerati,1993.12. Idem.13 . F.Nietzsche,Alm do Bem e do Mal,So Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 155.

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    A L I N G U A G E M F A L AE OSUJEITO TA MB MNelson Coelho Jnior*

    Acabo de falar e f i co com a i m p r e s s o de que disse alguma coisa nova;n o repeti nada que me lembre j ter ouvido ou l i d o . H uma r p i d a surpresa.Escuto sons que saem da minha boca; consigo d i f e r e n c i - l o s em meio a umemaranhado de e x p r e s s e s que repetem uma linguagem que e s t sempre emm i m , como em toda parte. A surpresa logo se transforma numa alegria, masalegria d e s c o n f o r t v e l : s e r que acabo de criar uma e x p r e s s o nova? Ou fuiapenas criado mais um pouco por essa linguagem que me p r - e x i s t e ? S e r quen o foi s o acaso reordenando o que j existe? o mais p r o v v e l , mesmo porque sempre me lembram que s sou sujeito em f u n o da linguagem ter mec o n s t r u d o . E a l g i c ame diz que no posso construir o que me construiu. Masa intensidade da e x p r e s s o continua me provocando. E outras perguntas aparecem: ainda h lugarneste mundo para um sujeito que ao falar c r i a linguagem?O u melhor, s e r que ainda p o s s v e l imaginar um movimento incessante dem t u a c o n s t i t u i o entre sujeito e linguagem?

    1Este texto pretende expor uma c o n c e p o sobre linguagem e sua r e l a oc o m a n o o de sujeito, estabelecida a partir de uma leitura c r t i c a da f i losof i a

    de Merleau-Ponty. O estatutoda linguagem no interior da filosofia de Merleau-Ponty no claro, nem i n e q u v o c o . Pouco tematizada em suas duas p r i m e i ras obras (A estrutura ao comportamento e Fenomenologia da percepo), a

    * Psiclogo Clnico.Mestre emPsicologia Clnica (PUC -SP )e doutorando doNcleode Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Ps-GraduadosemPsicologia ClnicadaP U C - S P . coautor, com Paulo Sergio do Carmo, dol ivroMerleau-Ponty:ilosofiacomocorpoeexistncia(ed.Escuta) e autor do artigo 'O inconsciente emMerleau-Ponty',publicado emOinconsciente- vriasleituras(ed. Escuta).

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    linguagem parece ser tema de grande interesse na d c a d a de 1950, quando a l mde alguns cursos no C o l l g e de France ainda merece o denso estudo (mesmoque inacabado) publicado postumamente, em 1969, com o t t u l o A prosa domundo. Interesse pela linguagem, em Merleau-Ponty, nunca s i g n i f i c o u a d e s oi n c o n d i c i o n a l ; ele i n i c i a sua p a r t i c i p a o no debate do VIC o l q u i o de Bonne-v a l em 1960, dedicado ao tema do inconsciente, expressando um claro desconforto:"Algumas vezes experimento um mal-estar em ver a categoria da linguagem ocupar todo o lugar" (Ey, 1966; p. 143).N o de se estranhar que uma f i l o so f i a voltada para a v i v n c i a perceptiv a , que p r i o r i z a a t e m a t i z a o do plano p r - r e f l e x i v o em detrimento da consc i n c i a r e f l e x i v a , mantenha com a linguagem uma r e l a o simultaneamente deinteresse e distanciamento.

    O tema da linguagem estava inegavelmente na modanestes anos de grande p r o d u o de Merleau-Ponty: da f i l o so f i a de Wittgenstein de Heidegger,dos estudos l i n g u s t i c o s de Saussure p s i c a n l i s e de L a c a n , passando pela antropologia estrutural de L v i - S t r a u s s . C omL a c a n e L v i - S t r a u s s ,em particular,Merleau-Ponty mantinha um forte contato no s de ordem a c a d m i c a comopessoal. d i f c i l saber quais i n f l u n c i a s foram predominantes em suas ideiassobre linguagem, ainda que por c i t a o , a l i n g u s t i c a de Saussure seja a que semostre mais presente, a l m ,claro,da fenomenologia dalinguagemdeHusserl.

    M a s as i d i a s de Merleau-Ponty sobastantepessoais e precisam ser pensadasem um contexto que envolve toda sua obra. No essa, no entanto, a minha p r e o c u p a o p r i n c i p a l aqui; r e a l i z e i esse percurso em dois outros textos(Coelho J n i o r , 1988 e 1992). A g o r a estou interessado em expor, da form a mais clara p o s s v e l , a proposta radical da m t u a c o n s t i t u i o entre sujeito elinguagem.

    Sujeito e linguagem: intensidades em mtua constituio. Sujeito e l i n guagem, conceitos que no precisam se opor. O 'e', aqui, no i n d i c a dois termos exteriores um ao outro: intensidades em m t u a c o n s t i t u i o , e no entidades separadas em o p o s i o ou em r e l a o . Este ponto fundamental. A eternanecessidade em se determinar o primeiro (constituinte) para se conhecer o segundo ( c o n s t i t u d o ) , deixa de fazer sentido. Como p r i n c p i o ,no h anterioridade do sujeito com r e l a o linguagem, nem da linguagem com r e l a o aosujeito. So intensidades. Constituem-se mutuamente. No h exterior, nem interior. A linguagem no compreendida como o p e r a o do pensamento quee s t no interior do sujeito. Sujeito e linguagem se constituem a partir da expres-158

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    sividade prpria de um corpo v i v i d o , se quisermos utilizar uma noo fundamentalnos primeiroslivros deMerleau-Ponty.Emseusltimos textos ele diria:sujeito e linguagem so carne (chair).1 E m todo este tema, h sempre emMerleau-Ponty a recusa de uma concepo dualista, marcada pelos recorrentespares de opostos, comosujeito e objeto. "Procurando descrever ofenmeno dafalae o ato preciso de s i g n i f ic a o , teremos oportunidade de ultrapassar definitivamente a dicotomiaentre sujeito e objeto" (Merleau-Ponty, 1945; p. 203).N o processo desta d e s c r i o , na busca dos fundamentos de toda expressividadehumana, surgem como elementos primordiais o silncio e o gesto:

    Nossavisosobre o homempermanecersuperficial enquantono remontarmos a esta origem, enquanto no reencontrarmos,sob o barulho das falas, osilncioprimordial, enquantono descrevermos o gesto que rompeestesilncio.A fala umgesto e suasignificaoum mundo(ibid.;p. 214).

    Silncio e gesto. Intensidades criativas, campo de intensidades onde sujeitoe linguagem se constituem mutuamente, gerando sentidos e um mundo.

    3A linguagem fala e o sujeito tambm. A linguagem antecede o sujeito

    particular que a u t i l i z a ; mas ao mesmo tempo, criar linguagem possibilidadede todo sujeito. A linguagem no precisa ser entendida como uma estrutura queaprisiona e determina e tampouco o sujeito precisa ser pensado como o ditadorsoberano da expressividade. H movimento constante. Intensa reversibilidade.

    Isto prova que cada ato parcial de expresso, enquanto atocomum do todo da l ngua, no se limita a despender umacapacidade expressiva nela acumulada, mas a ambas recria,permitindo-nosverificar, nadiferena entreo sentido dado eo recebido, o poder que tm os sujeitos falantes para ultrapassar os signos no sentido. No se restringem os signos parans a um evocar-se sem fim, a linguagem no prisoondeestamos encerrados, ou o guia a que preciso confiar-se cegamente...(Merleau-Ponty,1960; p. 101).

    O ato expressivo recria a lngua e a prpria capacidade expressiva nelaacumulada. H a l n g u a .H a linguagem. Mas elas no so um em si, j instit u d o , apenas. Elas so, enquanto so constantemente recriadas pelos sujeitosfalantes. A linguagem por j estar a o que permite que um ato expressivotorne-se c o m u n i c a o . No entanto, o ato expressivo sempre de a l g u m . E

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    por isso que "... a linguagem bem o que temos de mais individual, ao mesmotempo que dirigindo-se aos outros, ela se faz valer como universal" (Merleau-Ponty,1945; p. 120).4

    Fala falada e fala falante. A fala estsedimentada em um grande nmerode sentidos adquiridos ou j c o n s t i t u d o s , mas pode a cada momento inovar,criarnovos sentidos, fazer da linguagem uma linguagem nova. Esse movimentoentre inovao e sedimentaofaz com que Merleau-Ponty (1945; pp. 229-230)sugiraaexistnciade dois tipos de fala:Poder-se-iadistinguirentreumafalafalante(parole parlante)e umafalafalada(paroleparl). A primeira aquela na qualaintenosignificativase encontra emestadonascente.A q u iaexistncia se polariza num certo 'sentido' que no pode serdefinido por nenhum objeto natural, procura reunir-se consigo mesma para alm do ser e por issocria a falacomo umapoio empricode seu prpriono ser. Afala o excesso denossaexistnciasobre o ser natural. Mas o ato deexpressoconstituium mundo lingsticoe um mundo cultural, faz recairno ser aquilo que tendia para a lm.Surge da a fala falada, que frui as significaes disponveis como uma fortunaadquirida.A partirdessasaquisiestornam-se possveisoutros atosde expresso autntica:os do escritor, do artista oudo filsofo. Esta abertura sempre recriada na plenitude do sercondicionaa primeirafaladacrianacomo afalado escritor,aconstruodovocbulocomo a do conceito.T al esta funo que adivirhamos atrsda linguagem, que se reitera e seapoiasobre si mesma ou que, como uma vaga, se comprimee se retoma para projetar-se almde si mesma.

    Fala falada e fala falante mutuamente se constituem e estabelecem em suatenso um movimento que cria a prpria l inguagem. No h necessidade depensarmos a linguagem como s n t e s e , at porque, em certo sentido, ela simultaneamente apenasfala falada e fala falante. Por outro lado,antecedea fala,mas s existe, paradoxalmente, porque recriada constantemente pela fala.

    5Psicoterapia, sujeito e linguagem. O trabalho psicoteraputico acontece

    em meio a um movimento paradoxal da linguagem: para ser c o m u n i c a o , alinguagem deve preexistir a cada fala singular; no entanto, simultaneamente,160

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    s p o s s u i r toda sua p o t n c i aexpressiva se for recriada a cada nova f a l a . O poder da linguagem situa-se nesse movimento. A fala r e p e t i o , mas pode sert a m b m ato c r i a t i v o . Pensar o sujeito ou a linguagemapenas como movimentonovo e criativo desconsiderar a n e c e s s r i a r e p e t i o , que funciona como elemento de c o e s o e "estrutura". A pura e simples r e p e t i o o e s p a o caracter s t i co da neurose; no entanto, o puro e simples movimento criativo e inovadorn o garantia da c o n s t i t u i o de um e s p a o de s a d e . Trabalhar na t e n s o , noplano do "quiasma" ou no "entre", para u t i l i z a r conceitos centrais dos l t i m o strabalhos de Merleau-Ponty, o d e s a f o de todo trabalho t e r a p u t i c o . A buscada f a l a c r i a t i va , do movimento inovador, a p r t i c a constante do l imi t e da l i n guagem e, portanto, do l imi t e do sujeito. O "quiasma", o "entre"este e s p a ode t e n s o . O novo torna-se rapidamente o i n s t i t u d o ; e no existe o permanentemente novo. H t e n s o entre o j i n s t i t u d o e o novo. nesta t e n s o que otrabalho t e r a p u t i c o pode gerar e s p a o scriativos. nessa t e n s o , e s nela, queexistem as criatividades.

    Nota1. A noo 'carne' (chair) 6fundamental na elaboraoda Ontologia do Ser Bruto queMerleau-Pontydesenvolve em seu l t imo l ivro,Ovisvele oinvisvel:" A 'carne' no matr ia ,no esp r i to ,no substncia.Seria preciso, parade sign- la ,o velho termo

    'elemento', no sentido em que era empregado para falar-se dagua,do ar, da terra e dofogo, isto , no sentido de umacoisageral,meio caminhoentreo indivduo espacio-temporal e aideia,espcie de princpio encarnado que imprime um estilo de ser emtodosos lugares onde encontra uma parcela sua."(Le visible et linvisible,Paris, Gal l i mard, 1964; p. 184.)R e f e r n c ia s b ib l i o g r f i c a sCOELHO JNIOR, Nelson (1988).O visvel e o invisvel em psicoterapia - a filosofia de

    Merleau-Pontypenetrandoaprtica clnica. S oPaulo,P U C .D isser taode Mestrado.e C A R M O ,Paulo S. (1992).Merleau-Ponty: filosofiacomocorpo e existncia.

    SoPaulo, Escuta.E Y Henr i(org.) (1966).L'inconscient. VI Colloque de Bonneval.Paris,D esclede Browe.M E R L E A U - P O N T Y , Maurice(1945).Phnomnologie delaperception.Paris,Ga ll imard.

    (1960).Signes.Paris,G all imard.(1964).VisibleetFinvisible.Paris,G all imard.

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    Guatdadee m sil i ng i itante(parares sidel aGuatltendopassaacredde urpromic o m (Subjeinteree s p a pressiofereccomp]

    ProfesC A P - Un a P U C

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    O Q U E (N O ) S E V A T R A SDAP O RT ADcio Orlando Soares da Rocha*

    H algum tempo venho procurando fazer a leitura de textos de Deleuze eGuattari,com um objetivo nem sempre muito claro para m i m :misto de c u r i o s i dade, a d m i r a oe... uma boa dose de d i s p o s i opara acolher o d e s a f o l a n a d oe m seus escritos a todos aqueles que, como no meu caso, se dedicam r e a dal i n g s t i c a . D e s a f o que no posso no momento avaliar s e n o em e x t e n s o bastante limitada, mas cuja p e r t i n n c i a me parece definitivamente i n c o n t e s t v e l(para citar apenas dois momentos fundamentais da r e f l e x o dos referidos autores sobre a l i n g s t i c a , penso emKafka por uma literatura menor e 'Postulatsde lalinguistique',em Mille plateaux).

    S e acabo de dizer que o objetivo que norteia minha leitura de Deleuze eGuattari nem sempre se baseia em c r i t r i o s suficientemente e x p l c i t o s ,no pretendo com isto criar a i l u s o deestar fazendo uma a u t o c r t i c a (o que, a l i s ,nopassaria de mero recurso e s t i l s t i c o ) . Pelo c o n t r r i o , neste exato momento,acredito que uma leitura feita 'ao acaso', no se tendo qualquer garantia p r v i ade um retorno pelo e s f o r o despendido, pode, a f i n a l , revelar-se uma e s t r a t g i apromissora. D i g o isto, porque acabo de 1er a t r a n s c r i o do encontro realizadoc o m Guattari na P U C - S P , em 21 de outubro de 1991, editado emCadernos deSubjetividade 1(1), texto que me parecia, de i n c i o , responder t o - s o m e n t e aointeresse doprofissional de p s i c a n l i s e , estando o l i n g i s t a e x c l u d odo referidoe s p a o de d i s c u s s o . Julgamento precipitado e mesmo preconceituoso, porpressupor que Guattari pudesse (ou quisesse) escolher de a n t e m o a quem seoferecer como intercessor.

    O e q u v o c o , p o r m , no durou mais de alguns minutos, desfazendo-se porcompleto ao ser explicitadaporSuely R o l n i k a q u e s t odo sintoma, que parecia

    Professor assistente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde leciona Lfngua Francesa noC A P - U E R J ;mestre em Letras( P U C - R J );doutorando em Lingustica Aplicada aoEnsinode Lnguasna P U C - S P .163

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    assumir, com Guattar i, um novoestatuto.R e d e f i n i o geradora de a n g s t i a s parao psicanalista, para o l i n g i s t a e para todos aqueles que no podem se imped i r "de ver coisas a t r s das coisas" (Guattari, 1993; p. 19). A l i s , "ver coisasa t r sdas coisas" umapossibilidadeadmitida por Guattari, nac o n d i o , c l a ro , de que nos lembremos que "... geralmente, a t r s da porta no h nada, oumais exatamente, temos que partir de uma p o s i o de que pode no haver nadaa t r s . . . " ( i b i d . ; p. 19)

    A r e f l e x o de Guattari parece referir-se basicamente natureza daquiloque se procura " a t r s da porta". E,neste sentido, uma coisa certa: de f in i t i vamente, l no se encontra "a chave do enigma a ser decifrado", o "elo perdid o " que traria luz um sentido previamente c o n s t i t u d o , mantido cautelosamente em segredo, espera do momento de sua r e v e l a o . Retomando L a c a n ,Guattariadverte que "... o inconsciente um conceito e no umacoisa,no hu m inconsciente a t r s das coisas" ( i b i d . ;p. 20). Se isto o que buscamos a t r sd a porta, todo e s f o r o se r i n t i l : nada l se encontra. Ou melhor, se isto oque buscamos, a n i c a resposta p o s s v e l mera r e d u n d n c i a : a t r s da porta seencontra o sistema interpretativo, causalista, que l depositamos.

    Q u a l a alternativa oferecida por Guattari? Como proceder diante do s i n toma? De uma certa forma, a resposta j se encontra presente na p r p r i a quest o : diante do sintoma, o l h - l o de frente, a fim de cartografar as l i g a e s queele estabelece com seu ambiente de o c o r r n c ia , os agenciamentos de que partic i p a , as possibilidades h e t e r o g e n t i c a s de que portador. " O sintoma habitau m t e r r i t r i o existencial" ( i b i d . ;p. 20);a t r sdele ( a t r sda porta), o que h "... nada, o movimento do nada, o movimento da caosmose, que faz com quese esteja, ao mesmo tempo, no tudo e no nada, na complexidade e no caos"( i b i d . ;p. 20).

    E quanto ao l i n g i s t a ,como explicar o estranho sentimento de, a partir deu m momento preciso do debatecom Guattari,s e n t i r - s ele t a m b mum interlocutor em processo? O que (entre)via ele a t r sda porta, se que l algo havia aser visto? A n i c a resposta p o s s v e l a tal i n d a g a o parece e x i g i r que se retomeinicialmente a l i odeixada por Guattari: em geral, nada existe a t r s da porta,o u , pelo menos, pode ser que nada exista.Comose percebe, l i o cuja sabedoria reside precisamente em no estabelecer julgamentos c a t e g r i c o s de verdade(acerca do que existe ou no), abrindo e s p a o para que c o n e x e s m l t i p l a s ei m p r e v i s v e i svenham a se efetuar.

    A este respeito, uma d i g r e s s o por Ionesco me parece particularmenteconveniente, revelando-se como recurso esclarecedor do que acabo de expor.Refiro-me ao texto deLa cantatrice chauve, no momento exato em que os personagens discutem acerca de uma q u e s t o que nos p a r e c e r , de algum modo,bastante famil iar : quando ouvimos a campainha tocar, devemos c o n c l u i r que h164

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    a l g u m porta ou, ao c o n t r r i o , que no h n i n g u m ? 1 Tal i n d a g a o , que adquire sua e x p r e s s o mais intensa no universo f i c c i o n a l de Ionesco, poderia, t a l v e z , ser parafraseada como se segue: com que grau de confiabilidade poderemos estabelecer uma r e l a o entre um sintomax (toque da campainha) e uma'realidade' y ( p r e s e n a / a u s n c i a de a l g u m porta?) Ou ainda: dado um sintom ax , a que 'real idade' (y, z, n, .. .) r e m e t - l o ?

    E m resposta q u e s t o , as o p i n i e s divergem no e s p a o c n i c o , i n i c i a l mente ocupado por quatro personagens, polarizando-se em extremos opostos noque concerne leitura do 'sintoma' apresentado: "sempre que a campainha toc a , porque h a l g u m " ; "quando ouvimos tocar a campainha, sinal de quenunca h n i n g u m " . Diga-se,a l i s ,que cada personagem a p r e s e n t a r uma l g i c a p r p r i a para s u s t e n t a o de seu ponto de vista. O impasse criado ('nuncan i n g u m ' , 'sempre a l g u m ' ) parece resolver-seapenas a t r a v s da i n t e r v e n o deu m quinto personagem (o C a p i t o dos Bombeiros) que, admitindo a p o s s i b i l i dade de ambas as p o s i e s assumidas, c o n c l u i que, quando a campainha daporta toca, s vezes h a l g u m ,s vezes no h n i n g u m . A s o l u o apresentad a para restabelecer a harmoniaentre todos plenamente s a t i s f a t r i a do pontode vista da l g i c a que rege o universo de Ionesco. Acreditoque Guattari tamb m estivesse disposto a subscrever tal s o l u o : a f i n a l , a t r sde um sintoma pode no haver nada. Com uma d i f e r e n a , talvez: se a c o n t i n g n c i a dos fatos no motivo de i n q u i e t a o para os personagens de Ionesco, o mesmo j no se dc o m o paciente e, em especial , com o psicanalista (casoestese imponha a o b r i g a o permanente de desvendar o que se l o c a l i z a a t r sdo sintoma).

    C o n c l u d a a d i g r e s s o , retomo o projeto anteriormente anunciado, a saber,o que o l inguista capaz de ver (ou ainda, o que no pode se impedir de ver)a t r sda porta. Com Guattari, h a v a m o s percebido que a pergunta era, de certomodo, falaciosa. Ora, se verdade que pode haver algo a t r sda porta (mas nonecessariamente) e que este algo, ainda que l esteja, no da ordem dos ob-jetos ('o' inconsciente), caracterizando-se, antes, como puro movimento de natureza c a s m i c a , e n t o umacoisa certa: no h r a z o alguma para se p r i v i l e giareste lugar em especial (o " a t r s da porta"), em detrimento de uma abordagem do sintoma que explicitasse n oapenasseu c a r t e r reificador, mas t a m b msuaspossibilidades de h e t e r o g n e s e . Neste sentido, o que conta no o " a t r sd a porta", mas todos os e s p a o s nos quais ele for capaz de fazer rizoma; umacerta c o n c e p ode sintoma que no remeta a p r e s e n t a ode uma cena do passado (cena, a l i s , que todos ns j conhecemos): abertura para novos devires,em sincronia com as diversas tonalidades que vai adquirindo em f u n o do(s)t e r r t r o ( s )que habita, sempre pronto para novas p r o d u e s .

    Nesta perspectiva,dentreas 'metamorfoses' virtuais a que se encontra exposto o sintoma, gostaria de fazer algumas o b s e r v a e s sobre o relato apresen-165

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    tadopor Guattari acerca de uma de suas a t u a l i z a e s (a que se processa com ap a r t i c i p a o de um psiquiatra ou um psicanalista que se obriga a "ver coisasa t r s da porta"): " E al vou consultar um psiquiatra ou um psicanalista e,no seuolhar, algo diz 'Ah, sim, isto um problema, interessante'. Com isso,j muda o t e r r i t r i o existencial do sintoma. interessanteque a l g u m ache interessantemeu sintoma, mas atu mcerto ponto, s e n o no se sai mais disso, fica-se passando de um s u b r b i o para outro, incorporase o psicanalista ao sintoma, atribui-se isto t r a n s f e r n c i a - em l t i m a i n s t n c i a , o que acontece, queo sintoma muda de cor. E d a ? "(Guattari, 1993; p. 20)2

    Como podemos depreender com alguma facilidade do trecho acima, tratase da narrativa de um dos p o s s v e i s caminhos a serem trilhados pelo sintoma.N o caso, um caminho que o aprisiona nas malhas de uma certa verdade quese recusa a mostrar-se de frente, escondendo-se ' a t r s de'. Destino(s) de um' s i n t o m a - c a m a l e o ' , que 'muda de cor' em f u n o dos agenciamentos de queparticipa.O que, no entanto, me atrai particularmente no referido relato a possibilidade de nele localizar um dos momentos mais felizes de e x p l i c i t a o do ca-r t e r necessariamente social da e n u n c i a o . Em Mille plateaux, Deleuze eGuattari (1980; p. 101) enfatizavam que, para que a natureza social da enuncia o pudesseestar intrinsecamente fundada, d e v e r a m o s ser capazes de mostrarde que modo ela remeteria a agenciamentos coletivos. Eis a c r t i c a que os autores dirigem l i n g s t i c a : incapaz de apreender os agenciamentos coletivos dee n u n c i a o , a l i n g s t i c a insiste em subordinar o enunciado a um significante ea e n u n c i a o a um sujeito, permanecendo, em nome de uma pretensa c i e n t i f i c i -dade, ao n v e l das constantes ( f o n o l g i c a s , m o r f o l g i c a s , s i n t t i c a s ) ( i b i d . ;p . 104). Mesmo quando incorpora um componente p r a g m t i c o , considera-secomo remetendo exclusivamente a c i r c u n s t n c i a s exteriores, deixando de perceber a e x i s t n c i a de v a r i v e i s de e x p r e s s o imanentes l n g u a : " U n type d' -n o n c ne peut t r e e v a l u qu'en fonction de ses implications pragmatiques,c ' e s t - - d i r e , de son rapport avec des p r s u p p o s s implicites, avec des actesim-manentsou des transformations incorporelles q u ' i l exprime, et qui vont intro-duire de nouveaux d c o u p a g e s ente les corps" (Deleuze e Guattari, 1980). oque j e n c o n t r v a m o s emKafka por uma literatura menor: " Ae n u n c i a o l i te r r i a mais i n d i v i d u a l um caso particular de e n u n c i a o coletiva" (Deleuze eGuattari, 1977). Se a l i n g s t i c a no consegue perceber a 'comunidade virtual'que se expressa a t r a v s da a t u a l i z a ode um enunciador, isto no se deve, comcerteza, a qualquer forma de 'descuido' ou 'ingenuidade': trata-se,na realidade,de uma o p o que visa sufocar todo 'devir menor' de que as l n g u a s so susce-t v e i s , "... um caso p o l t i c o , que os l i n g i s t a s no conhecem de modo algum,nem querem conhecer - pois,enquanto l i n g i s t a s , so ' a p o l t i c o s ' e puros eruditos"(Deleuze e Guattari, 1977).166

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    Retomando da entrevista com Guattari o trecho acima destacado, acreditoser p o s s v e l depreender algumas sutilezas dos agenciamentos coletivos dee n u n c i a o . Partindo de " Ah , sim, isto um problema, interessante", percebemos tratar-sede uma suposta m a n i f e s t a o do discurso direto, sendo a fa l a do'psicanalista' introduzida pelo discurso do 'paciente', com bem o justificam asaspasutilizadas. As coisas, p o r m ,no so to simples como poderiam parecer:a t r a v s do relato do 'paciente', a fa la do 'analista' se revela em toda a sua densidade. E x p l i c o - m e : no a t r a v s do registro verbal que a fa la do 'analista' s e r apreendida pelo 'paciente' ( "no seu olhar" que o sentido se c o n s t r i , o "o-Ihar" que se faz signo e "violenta" o pensamento Deleuze, 1987; p. 96);a t r a v s do olhar-signo, revelam-se processos de s u b j e t i v a o que atravessam o'analista', no qual 'algo' diz que 'isto' um problema. Se o 'psicanalista' capaz de entrever uma r e g i o ' a t r sde' no discurso do paciente ( p o s i o ' a t r s dosintoma'), este, por sua vez, t a m b m capaz de denunciar as engrenagens dam q u i n a p s i c a n a l t i c a situadas ' a t r s do analista', acionando-o em seu discurso.E m outras palavras, imagem que o 'paciente' faz da vozes que habitam o discurso do "analista". I l u s o de um discurso direto o r i g i n r i o ,que no faz s e n orecolocar em cena os agenciamentos coletivos de e n u n c i a o . "Mon discoursdirect est encore le discours indirect libre qui me traverse departenpart,et quivientd'autres mondes etd'autres p l a n t e s "(Deleuze e Guattari, 1980).

    neste sentido que compreendo a l i odeixada por Guattari em " M i c r o -p o l t i c a do fascismo": a n i c a "porta de s a d a " e s t no revezamento de um discurso por todos aqueles que puderem lhe servir como f o r a de alteridade. " U menunciado i n d i v i d u a l s tem alcance na medida em que pode entrarem conjun o com agenciamentos coletivos j funcionando e f e t i v m e n t e . . . " (Guattari,1981). Umas a d a ,pois, que no se encontra " a t r s da porta".

    Notas1. Trata-se departedascenasVII e V I I I deLa cantatricechauve,de Eugne Ionesco,em que participam cinco personagens: dois casais( M .e MadameSmith, M .e MadameMartin) e oCapi todos Bombeiros. A peafoi encenada pela primeira vez em maiode 1950.2. Grifos meus, objetivando destacar os elementos mais relevantes para o que exponho

    adiante.

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    R e f e r n c ia s b ib l i o g r f i c a sD E L E U Z E , Gilles(1987).Prouste ossignos.R io deJaneiro, Forense-Univers i tr ia .

    e G U A T T A R I , Flix (1977).Kafka por uma literaturamenor. Rio de Janeiro,Imago.

    (1980).Postulatsde lalinguistique.In:Milleplateaux.Paris,Minui t .G U A T T A R I , Flix (1985).Revoluo molecular:pulsaes polticas do desejo. So Paulo,Brasiliense.

    (1993).Guattarin a P U C . CadernosdeSubjetividade. 7(1): 9-28.IONESCO,E . (1954).Lacantatricechauve.Paris, Gallimard.

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    A S U S P E N S ODAP A L A V R A *Pedro de Souza**

    Este artigo parte de uma pesquisa mais ampla que visaexaminar discur-tvamente o problema da e x p r e s s o do sujeito na h i s t r i a do movimento de homossexual na d c a d a de 1980. A pesquisa consiste na a n l i s e da enviada ao Grupo de A f i r m a o Homossexual (Somos), prin

    de ativistas que atuou pela l i b e r a o e a f i r m a o das identidaO movimento gay tecido por um discurso de a f i r m a o pautado pelo

    deal i d e n t i t r i o (MacRae, 1989). Mas o peso da identidade sexual socialmente provoca uma r e a o c o n t r r i a nos i n d i v d u o s que adotam p r t i c a senquanto poltica de silncio como forma de r e s i s t n c i a . Re

    istem a dobrar-se e a assujeitar-se ante uma identidade sem garantiasde l e g i Nesse contexto, manter o s i l n c i o no s i g n i f i ca calar, mas antesproduzir e x p r e s s o . O indicador mais evidente desse as p r o b l e m a t i z a o do com quem falar, onde e de que forma. Coloca-se

    o problema da c o n s t r u o de e s t r a t g i a s de i n t e r l o c u o que marquem pre d i z v e l e do no d i z v e l . Por isso, o mote da investiga o examinar sob que c o n d i e s de possibilidade aestruturado relato epistola r pode adotara forma de um discurso do privado no contexto das lutas p o l t i a f i r m a o homossexual.A c o r r e s p o n d n c i a enviada ao Somos configura-se, no campo discursivo

    a a f i r m a o homossexual, como o lugar do cruzamento entredois e s p a o s deo do Grupo Somos, na sua i n s e r o institucional e p b l i c a , e o dasartas, na sua d i m e n s o privada de e x e r c c i o da subjetividade em c o n e x o com p r t i c a homossexual.

    Este artigo fruto de uma pesquisa que s foi possvel graas ao apoiocientfico e financeiro daF A P E S Pe orientaodedicada deE n i P .Orlandi.Pedro de Souza6professor no Departamento deLingu sticadaP U C - S Pe doutorando emLing usticapelaUnicamp.

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    Certamente p o s s v e l observar como determinados mecanismos l ingfs t icos de e n u n c i a o , tomados como pontos de d e l i m i t a oentredois e s p a o s discursivos, manifestam o limite do que exterior ao discurso do privadotecidinas cartas. Recorro aqui q u e l e s fatos de linguagem que Jacqueline Authie(1984) concebe como pontos de heterogeneidade constitutiva, ou seja, manif e s t a e s l i n g s t i c a spontuaisda exterioridade na qual se produz o sentido dapalavras no plano interno do discurso. O conceito de heterogeneidade remetei m p l o s odo paradigma da unidade subjetiva e s e m n t i c a que sustenta a c o e r nc i a discursiva. Num mesmo texto, so m l t i p l o s os sujeitos e os sentidos quorientam a i n t e r p r e t a o .

    Neste artigo, pretendo, a partir da a n l i s e de uma das cartasdocorpus dreferida pesquisa, refletir sobre um mecanismo l i n g s t i c o de e n u n c i a o quagencia formas de e x p r e s s o de si, especialmente no d o m n i o da sexualidadeM e u p r o p s i t o assinalar os planos de exterioridade e interioridade que podeiestruturar a p r o d u o de um ato de linguagem.R e f r o - m e , especificamente ncaso dessa i n v e s t i g a o , s marcas l i n g s t i c a sque delineiam as no coincidencias entre os d o m n i o s p b l i c o e privado da e n u n c i a o de si enquanto sujeitconectado a uma p r t i c ahomossexual.

    Comomaterial de a n l i s e , tomo a carta transcrita a seguir, datada de 10.dagosto de 1981.

    A oGrupo SomosEscrevo-lhesmais uma vez pra meauxiliarem.Escrevi-lhespela primeira vez, acho que, em abril ,e no mspassado (julho) mandaram-me uma carta comumjornal.M a s , nas minhas mosno chegaram. que meus pais pegaram, abriram e descobriram a minha "homossexualidade". Ldentro (eles me falaram sem a menor vergonha na minhafrente) estava escrito que um rapaz me escreveu dando osseuscaracteres e continha tambmum jornal: fiquei triste por 2motivos:l e den osaber quem escreveu2-De eles descobriremP or favor: se desse, pedir p'ra ele me escrever de novorapidamente pois, agora no tem perigo e rpido,pois, pretendofugir com um cara dia 20 proR i o .Esse cara eu no gosto delee adorariaficarem So Paulo comalgumque me queira.E mcasan od mais.

    C o m respeito a n l i s e a ser desenvolvidanesteartigo, atenho-me sobrtudo s e q u n c i a de enunciado que parece conter o ponto nodal do processos i g n i f i c a o que se manisfesta aqui.170

    palavde eipistarelatimepi o dthier,*uso'

    a autcum ccconsic

    1distanitre as]este e:consid

    CAuthie

    A.aos dopanhadc o ioperarllc o u n c

    esuprega:iAc a l de t

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    1) que meus pais pegaram, abriram e descobriram a minha"honossexualidade".

    Quero ressaltar aocorrnciadas aspascomomarcaodo modo de dizer apalavrahomossexualidade. O uso desse sinal grfico representa, neste recortede enunciado, um particular jogo de sentido que pode ser tomado como umapista para a compreenso do processo discursivo que funciona nesta missivarelativamente ao campo de questesem foconestetrabalho.

    Para pensar o fato enunciativo que me intrigano trecho destacado, guime pelo estudo de Authier (1980), que apresenta dois modos de definir a funo das aspas no interior de um texto. Numa primeiraacepo, segundo Au thier, a colocao das aspas indica que o enunciador faz 'meno ' e no'uso' da palavra. Em (exemplos da autora):2)Eledisse:"Idon'tmina".3) A palavra"caridade"temtrs slabas.

    O que se ressalta o estatutoautonmicoda palavraentre aspas. Segundoa autora, "... o elemento autonmico consti tui, no enunciado em que aparece,um corpo estranho, um objeto 'mostrado' ao receptor; neste sentido pode-seconsideraras palavrasentreaspas como 'tomadas distncia ' " (ibid.;p. 127).

    Pode-se ento supor que o enunciador da carta em questoproduz iu umdistanciamentoentre ele prprio e a palavrahomossexualidade mencionada entre aspas em sua escritura. Importa saber para que direo de sentido apontaeste efeito de distanciamento. Para chegar a esta resposta, necessrio aindaconsiderar outros elementos envolvidos no uso das aspas.

    O segundo modo de conceber a funo das aspas, observa-se, segundoAuthier,no uso das palavras comoconotaodemeno.No exemplo:4) Ns nos contentaremos provisoriamente com esta "definio .

    A autora distingue a justaposio das cadeias do uso e da meno, comonos dois exemplos anteriores 2) e 3), do uso simultaneamente duplicado, acompanhado de meno. Estafunocombina, nos termos de Authier, duas estruturas complexas a da conotao e a da autonmia - , na medida em que podeoperar sob dois modos - discurso indiretolivre e marcao pelas aspas. sobesta ltima modalidade que se pode reconhecer, nas aspas sobre a palavra doenunciado recortado, a conotao autonmica.Isso equivale a dizer queessesi nal est conotando aqui um corte entre o sujeito que fala e a palavra que emprega: no caso, homossexualidade.

    Authier aponta as aspascomo o traode umaoperao metalingsticalocalde tomada de distncia,a que designa uma palavra como "objeto, o lugar de171

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    u m a s u s p e n s o da responsabilidade". Tal s u s p e n s o produz um v c u o a serpreenchido, reclama uma i n t e r p r e t a o ,ou, ao menos, uma glosa.

    Distanciamento e s u s p e n s o da responsabilidade, tem-se nesse f e n m e n oprovavelmente o funcionamento fundamental que se pode depreender da men oentreaspasdo termo homossexualidade. O objeto que o enunciador refere as i como propriedade revestido de s i g n i f i c a o por a t r i b u i o exterior. Dessemodo, a p o s i o do enunciador da carta seria a da no responsabilidade pelotermo que menciona.P o r este efeito de distanciamento, ao mesmo tempo que afasta de si a responsabilidade pela palavra mencionada, o enunciador c o n s t r i , no curso dae n u n c i a o , um lugar em que pode simular um controle sobre a palavra. Nac o n c e p o de Authier, isso se explicapelo fato de que asaspasp e ma palavrasob v i g i l n c i a , sob controle, o que s i g n i f i c a tomar a palavra em um terceirosentido. Este ato de e n u n c i a o o p e - s e ao do deixar a palavra l i v r e . Trata-sede no permitir que a palavra escape, como uma e s p c i ede antilapsus.

    Certamente so determinadas redes de sentidos que a palavraentre aspasn o deixa capturar. Cabe perguntar que sentidos m a n t m - s e aqui sob controlen a m e n odo termo homossexualidade. interessante lembrar que a palavra homossexualidade tem uma h i s t r i a

    que l o c a l i z a seu aparecimento no d o m n i oda medicina, onde seus sentidos est o associados ideiade d o e n a . Correlativamente, no campo discursivo damoral e dos costumes, encontra-se termos pejorativamente associados express o com os quais se procura designar uma patologia - desvio sexual, pederast i a , i n v e r s o . Como r e a o a essas ordens de d e s i g n a o e a c e p o , a mesmapalavra subsumida pelo campo das c i n c i a s humanas para designar, sob a g i d e da neutralidade c i e n t f i c a , a d e s i g n a o conceituai dos atossexuais entrei n d i v d u o s do mesmo sexo.D a ocorre que, no m b i t o p o l t i c o - s o c i a l ,no qual mobilizam-se os sujeitos envolvidos nesta p r t i c a , a palavra reclame reconhecimento e l e g i t i m a odesta mesma p r t i c a que ela designa. Considerando que neste m b i t o que seconstituio campo enunciativo da a f i r m a ohomossexual, em que o d e s t i n a t r i odos relatos pessoais o Grupo Somos, ao destacar, na carta ema n l i s e ,a palav ra homossexualidade, o enunciador declara ao seu d e s t i n a t r i o com que valorespera que a referida palavra seja e no seja compreendida.N o se trata de um valor p o l m i c o de sentido. Authier mostra que estas i t u a o enunciativa de distanciamento pelas aspas pode ser glosada nos seguintes termos: "eu digo esta palavra, mas no como eu digo as outras, porqueeu a digo do modo como X diz". Nae x p r e s s o "digo no como as outras", deacordo com o quadro de c o n d i e s de p r o d u o relativo carta, mostra mais oafastamento dos sentidos no desejados, os que indiciam,no discurso do outro,a n e g a oe no a a f i r m a o do sujeito das p r t i c a sque a palavra designa.172

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    Cabe lembrar as outras formas perturbadoras de dizer a mesma palavra,que no campo discursivo da a f i r m a o homossexual temseussentidos apagadospela s a t u r a o do uso no e s p a o mesmo dos discursos de a f i r m a o . Termoscomo 'bicha', 'fanchona', ' m a r c o n a ' , 'viado' designamantes de tudo a p l u r a l i dade a t r i b u d a das homossexualidades e, conforme a i n v e s t i g a o de NestorPerlongher (1987), entram num modelo c l a s s i f i c a t r i o de nomenclaturas queexpressam modelos de r e l a e s - i g u a l i t r i o (gay/gay) ou h i e r r q u i c o (bicha/macho) - , bem como, na e x p r e s s o de Perlongher, "o m u l t f o r m i s m o dascondutas e das r e p r e s e n t a e s " , fazendo pensar antesnuma ' c a r n a v a l i z a o ' Bakhtine,do que numa ' c o n s t r u ode identidade' da "minoria desviante".

    M a s os sentidos apreendidos por Perlongher situam-se mais margem docampo correlato aos dicursos de a f i r m a o homossexual. Nesta r e g i o de maisintensa exterioridade relativamente que e s t em foco em meu trabalho, as modalidades enunciativas de r e f e r n c i a a si tm menos a ver com um processo l i near e u n v o c o de i d e n t i f i c a o do que com uma e s t r a t g i a de d e m a r c a o terr i t o r i a l e enquanto recurso propiciador dos encontros desejantes. De qualquermodo,esta urnad i s c u s s oque mereceria um tratamento mais aprofundado nop o s s v e l no horizontedeste trabalho.

    A passagem, entretanto, por esta forma de abordagem, torna mais clara ap e r c e p o de que a e n u n c i a o de si elaborada na carta cruza, na c o n t r a - m odo processo discursivo em q u e s t o , com o que se p r o p e no e s p a o p b l i c o dap o l t i c a da a f i r m a o homossexual. Ou seja, a a subjetividade reivindicada nose conecta diretamente com a p r t i c a sexual, mas com as prerrogativas das pos i e s de cidadania. Da decorre a forma do sujeito de direito que demanda ar e f e r n c i aa um campo u n v o c oem que e s t olegitimadas as p o s i e s para falar.A s s i m que retomando o segmento da glosa mencionada anteriormente, na suaparte expl icat iva - "porque eu digo do modo como X di z " - a p r p r i a perspectivado d e s t i n a t r i oque o enunciador reafirma.

    A t aquiestesmodos de distanciamento destacam as formas de s u s p e n s od a responsabilidade do enunciador em r e l a o s palavras que menciona. Paratodos os efeitos, o c a r t e r de a d e q u a oda palavra que e s t em jogo no espa o discursivo em que aparece. Neste caso, as aspas indicam que a e x p r e s s oe s t emigrando de um outro discurso.

    Authier assinala que o estatuto de no a d e q u a o da palavraentre aspaspode ser o lugar marcado pela falta. Ou seja, ao empregar estesinalo enunciador alerta o d e s t i n a t r i odizendo algo como: "esta palavra noc o n v m , mas eua digo assim mesmo", ou "eu a digo, se bem que no convenha". sobre ad i m e n s o negativa que recai esta forma de abordar o uso das aspas. Isso s i g n i fica dizerque no se responsabilizar pela palavra n e g - l a .

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    M a s as aspas podem adotar uma f u n o posit iva. Tratar-se-ia, segundoA u t h i e r , de imputai ao enunciador uma p o s i o de " d o m n i o das palavras", naqual, por um lado, ele se mostra como r e s p o n s v e l pelas outras palavras noditas entreaspas e, por outro lado, s i n a l i z a que sabequal o d o m n io pertinente palavra colocada em suspenso.

    Neste sentido, outro modo de distanciamento entre o enunciador e as palavras que u t i l i z a aquele em que as e x p r e s s e s entre aspas so assinaladascomo "deslocadas", "fora de lugar",pertencente a outro discurso. No caso doemprego da palavra homossexualidade localizado na carta em a n l i s e ,as aspas,vistas aqui na perspectiva de A u t h i e r , remetem a palavra margem do c d i g o .Historicamente, diz a autora, "... a e v o l u o das aspassobre um elemento l e x i c a l um s i n a l da e v o l u o de seu estatuto relativamente ao c d i g o comum"( i b i d . ; p. 132).F i c a claro que uma coisa considerar as aspascomo marca de uma falta,outra tomar o uso dela como i n d i c a o do d o m n i o da palavra pelo enunciador. No primeiro, o distanciamento produz um efeito de n o - r e s p o n s a b i l i d a d e( n o sou eu que digo X) e no segundo um efeito de saber,em que o enunciadorsugere estar consciente de que a a c e p o da palavra e s t em outro discursop r p r i o dela. Este o sentido do que A u t h i e r assinala como l a n a r a palavrapara as margens do c d i g o partilhado pelos interlocutores.

    A s aspas podem t a m b m manifestar "uma e s p c i e de narcisismo ofensiv o " , na c o n s t i t u i o de uma imagem de si a t r a v s das d i f e r e n c i a e s nas palavras, cuja glosa seria: "eu sou i r r e d u t v e l s palavras que eu emprego". Estamodalidade definida por A u t h i e r parece-me interessantecomo h i p t e s e , no casoda palavra em q u e s t o , se arrolarmos a estrutura s i n t t i c a em que figura o iteml e x i c a l homossexualidade. A f u n o em que a palavraapresenta-se a de ob-jeto direto, fato gramatical pelo qual, num enunciado emitido em primeira pessoa, o enunciador pode operar, em sua e n u n c i a o , uma d i s j u n o entre o sujeito que fala e o objeto do qual f a l a . Da que em "descobriram a minha 'homossexualidade' ", no hc o i n c i d n c i a entreo sujeito que se designa pelo possessivo de primeira pessoa e a unidade l e x i c a l que preenche a referencialidadedo pronome. Em s n t e s e , as aspas podem estar apontando aqui uma forma den o c o i n c i d n c i a entreo sujeito e a palavra.

    A este p r o p s i t o , A u t h i e r recorre a B o u r d i e u (1979) para pensar as aspascomo uma e s u a t g i a de e n u n c i a o em que o enunciador produz em sua falauma i n s t n c i a de intimidade. Tem-se nesta perspectiva um s ina l de d i s t i n oque permite q u e l e que enuncia "distinguir-se" num dos mais n t i m o s tipos demarcadores: as palavras.U m marcador particular de d i s t i n o apontado por A u t h i e r como as aspas de ' c o n d e s c e n d n c i a ' . A autora reporta-se aos exemplos de discursos dea p a r n c i a c i e n t f i c a , em que registrar uma palavra a t r a v s de aspas a s s i n a l - l a174

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    como apropriada ao d e s t i n a t r i o , mas no ao enunciador - como lembrar "seeu no lhes falasse, eu nod i r i a estapalavra". Pensando na r e l a ointerlocuti-v a estabelecida com o Grupo Somos, o remetente pode estar ressaltando, pormeto das aspas, que o item l e x i c a l homossexualidade aloja-se no campo sem n t i c o j pressuposto no discurso do d e s t i n a t r i o . Resta refletir se aideiade' c o n d e s c e n d n c i a ' caberia a este jogo de i n t e r l o c u o , em que, na forma dac o n f i d n c i a ,as palavras s otomadasnuma linhagems e m n t i c ade reciprocidade.

    Se levado em conta, p o r m , que o recorte em a n l i s e i n c l u i uma p o s i oenunciativa terceira, a da n e g a o da a f i r m a o homossexual, f u n o recobertapela figura dos pais, podemos compreender aqui que a condescendncia temc o r r e l a ocomestap o s i ode sujeito. Deste modo, asaspasindicariamque a palavra mencionada no apropriada a este discurso, que tem sua r e p r e s e n t a onafala dos pais, manifestada na forma do discurso relatado entre p a r n t e s i s :

    5) L dentro (eles me falaram sem a menor vergonha na minha frente)O sinal de p a r n t e s i se a forma de discurso indireto da s e q u n c i a circuns

    critanele permite demarcar o limiteentreduas r e g i e senunciativas, produzindoo efeito do fora e do dentro: respectivamente o contexto da carta e o contextoda conversa familiar.Marca-se a fronteira entreuma forma marginal de privadoe outra j institucionalmente estabelecida, determinando ainda o lugar constit u d o para falar de si. Formula-se uma e s p c i e de t i c a discursiva que define,neste caso, o que pode e no pode ser dito, uma vez interpelado em certa posi o de sujeito.

    H na forma l i n g u s t i c a de 5), a a c e n t u a o de um estranhamento, a conf r o n t a o com um dizer inesperado, relativamente ao e s p a odiscursivo em queaparece. V - s e aqui uma i n d i c a o mais e x p l c i t a do funcionamento das aspasna palavrahomossexualidade. Elas marcam nesta palavra o sentido do que sed i z "entre dois", no se admitindo a i n t r o m i s s o de um terceiro. Eis um modosingular de m a t e r i a l i z a odo sentido da i n t e r d i o . P r e s s u p e - s e o p r i n c p i o deuma ordem discursiva, segundo os termos de Foucault (1971): " U m lugar paracada discurso e cada discurso em seu lugar".

    Neste ponto, importante salientar o que h de fundamental em termos dofuncionamento discursivo das aspas. Este sinal, di z u t h i e r , "se faz sobre aextremidade de um discurso". Isso equivale a dizer que as aspasmarcam o encontro com um discurso outro; a t r a v s delas que o discurso constitui-se emr e l a o a um outro exterior. A s s i m , segundo a autora, as aspas alojam-se nointerior de um discurso como eco, o i n d c i o do lugar onde o discurso entra emcontato om o que e s t fora dele. assim que estae s p c i e de sinal opera sobrea extremidade.

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    A saspasmanifestam que para o locutor h uma borda, que localizaum exterior emrelaoao qual se constitui para ele, locutor, um interior, seu discurso prpr io,no qual ele se reconhece. A zona onde operam asaspas,queestabeleceesteexterior eesteinterior uma zona deequilbrio instvel,de tenso, de compromisso em que se jogam a identidade do locutore suarelaocom o mundo exterior(Authier,1984; p. 135).

    A s c o n s i d e r a e s da autora nos levam p e r c e p o do que e s t em jogonestacarta enquanto um correlato discursivo do campo no qual se insere. Parafraseando Authier, d i r a m o s que, ao aparecer aqui entre aspas, a palavra homossexualidade denuncia uma r e g i o enunciativa de t e n s o e instabilidade, onde se pe em q u e s t o a c o n s t r u o da intimidade do enunciador.

    Decorre da que a c o l o c a o em suspensoda palavra em foco - homossexualidade e x p e uma p r o b l e m t i c a de d e l i m i t a o de planos enunciativos: para falar de si como sujeito homossexual, busca-se o limite extremo do dentro edo fora.

    O s resultados a que pude chegar, a partir da a n l i s eprecedente,giram emtorno de uma mesma q u e s t o : a e l a b o r a o de um lugar discursivo para expor as i como sujeito da p r t i c a homossexual. O trabalho sobre o i n v e n t r i o de algunsdos empregos das aspas sobre a palavra homossexualidade revelou a produtividade do agenciamento da linguagem a saber, as possibilidades de subjetiva- oarticulada a uma particular e x p e r i n c i a de intimidade.

    Re f e r nc i a s b i b l i o g r f i c a sA U T H I E R - R E V U S ,Jacqueline (1984).Htrogn it(s) nonciative(s).Langages.(73): 98-111.

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    A P SICANL ISENOC O N T E X T ODASA U T O B I O G R A F IA S R O M N T I C A S *Luiz Augusto M. Celes**

    Este trabalho constitui um e s f o r o de explorar as r e l a e s entrea psican l i s e e as autobiografias, para indicar as proximidades eafastamentosentre asc o n c e p e sde sujeito que e s t oimplicadas ou que subjazem aambasas prticas.

    A s s i m colocado o objetivo, duas ordens de expectativas devem ser dis-feitas. Primeira, com respeito literatura, ou mais amplamente, narrativa aut o b i o g r f i c a ; no se t r a t a r de uma a n l i s e l i t e r r i a ou e s t t i c a , de uma avalia o c r f t i c o - l i t e r r i a , nem de uma i n t e r p r e t a o p s i c a n a l t i c a da autobiografia,seja do f e n m e n o a u t o b i o g r f i c o , seja de alguma autobiografia particular. Segunda, com respeito p s i c a n l i s e , no se t r a t a r de uma a v a l i a o da teoriap s i c a n a l t i c a do sujeito, mas do sujeito implicado em seus procedimentos; nose t r a t a r t a m b m de uma i n t e r p r e t a o l i t e r r i a da p s i c a n l i s e , ou seja, ded e t e r m i n - l a como alguma estranha e s p c i e de literatura a u t o b i o g r f i c a - aindaque esteja suposto t r a t - l a como f e n m e n o a u t o b i o g r f i c o . A l m disso, no sepretende cobrir a multiplicidade do que se tem c o n s t i t u d o como p s i c a n l is e : ar e f e r n c i a s e r obra freudiana, sem p r e j u z o para o uso do termo ' p s i c a n l i s e 'o u ' a n l i s e ' .

    Explorando a p s i c a n l i s e como f e n m e n o a u t o b i o g r f i c o em face da l i t e ratura a u t o b i o g r f i c a , a fim de avaliar valores de mundo e de sujeito que lhessejam comuns, obviamente no se pretende esgotar a c o m p r e e n s o do contextop s i c a n a l t i c o (e nem da p s i c a n l i s e ) ,mas elucidar-lhe uma faceta. s u p r f l u o afirmar, para dar fim a d i s c u s s o ,que a literatura a u t o b i o g r fica est associada ao surgimento e a f i r m a o do ' i n d i v d u o ' . insuficiente afirmar, para resolver apressadamente a q u e s t o , que ambas, tanto a literatura a u t o b i o g r f i c a como a p s i c a n l i s e , tm como pressuposto

    * Este artigo fruto de um trabalho orientado pelo prof. dr. LubCludioFigueiredo,em 1986-1987.Almdisso,ele leu e comentou as diversasversesdo texto. O autor lhe imensamente grato.* *Departamento dePsicologia ClnicadaUniversidadedeBraslia.

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    e condio de existncia o surgimento e a difuso disso que se convencionouchamar de 'individualismo'.Istoporque o individualismo, que segundo uma definio abrangente dada por Dumont (1985; p. 37), caracteriza-se pela afirmao daideia do homem como valor, ser moral e (de uma ou de outra maneira)l i v r e , na verdade expressa uma variedade deideiase suposies sobre o sujeitohumano1; assim, a sugesto s faz reafirmar o b v i o : que a literatura autobiogrfica e a psicanlise sofenmenos da modernidade. Nahistriadas concepes de sujeito individual,p o r m , estimplicada umamultiplicidade tal que suaadjetivao co