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Page 1: 11,11M;i'i I 1111 I$, LII Li - JSTORpsimg.jstor.org/fsi/img/pdf/t0/10.5555/al.sff.document.crp2b20005.pdfmanutenção da linha férrea. Trabalhei aqui durante trêsanos, ganhando 450$00

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Northwestern University Library Evanston, Illinois 60208-2300LII Li

'~Entrevistas e canções recolhidasem 1979-1981por Alpheus Manghezi.TLrabalho forçado ecultura obrigatória do algodão., O colonato do Limpopo ereassentamento pós-independênciac. 1895-1981Guijá, Província de GazaMaputoArquivo Histórico de Moçambique2003

i 2-77LFicha Técnica:Título: Guijá, Província de Gaza 1895-1977: Trabalho Forçado,cultura obrigatória do algodão, o Colonato do Limpopo e reassentamento pós-independência. Entrevistas e cançõesrecolhidas 1979-1981Autor: Alpheus MangheziTexto da Capa: David Hedges Capa: António Sopa Tradução do Inglês: LuzidiaFelimoneRevisão: A. Sopa, G. LiesegangEditor: Arquivo Histórico de Moçambique Série: Documentos 6 Registo: INLD:4078/RLIND/2003Tiragem: 1.500 exemplaresImpressão: ML Graphics, Maputo

PREFÁCIO DO AUTOR

Page 2: 11,11M;i'i I 1111 I$, LII Li - JSTORpsimg.jstor.org/fsi/img/pdf/t0/10.5555/al.sff.document.crp2b20005.pdfmanutenção da linha férrea. Trabalhei aqui durante trêsanos, ganhando 450$00

As entrevistas que se seguem foram realizadas durante três visitas de campo àProvíncia de Gaza, organizadas pelo Departamento de História e pelo Centro deEstudos Africanos (CEA) da Universidade Eduardo MondIane.Em Fevereiro do 1979, um grupo de investigação esteve cerca de duas semanasem diferentes distritos da Província, a fazer um levantamento que se centrouprincipalmente na história do cultivo do algodão' . As primeiras duas entrevistas,com Mahawani Khosa e Gabriel Mukavi, foram feitas nesta visita.Em Maio de 1980, este autor realizou uma nova viagem de campo, cujo objectivoera fazer um levantamento mais generalizado da história colonial e pós-colonialde Gaza. Em parte, o objectivo era aumentar o material existente sobre a históriada migração laboral, na sequência do principal estudo sobre o tema realizado peloCEA durante um trabalho de campo, centrado na Província de Inhambane2. Osassuntos tratados durante a visita incluíam excertos sobre: o Império de Gaza;Trabalho Forçado; Migração Laboral para as Minas da África do Sul; introduçãoda cultura obrigatória do algodão; penetração dos colonos portugueses na área deChókwè (anos 50), e a distribuição de terras no período pós-colonial. Asentrevistas 3-7, com Mindawu Bila, Maria Nqavane, Melisina Nhlongo, OselinaMarindzi e os Anciãos de Guijá foram realizadas durante esta visita.Em Setembro de 1981, o CEA organizou uma visita de dois dias, com uma equipade pesquisa constituída por pessoal do CEA e por cientistas sociais visitantes,provenientes da Universidade1 A equipa, dirigida pelo Prof. Alan Isaacman, que na altura era docente(professor visitante) na Universidade Eduardo Mondiane, incluía também YussufAdam e Maria João Homem, então estudantes de História na Universidade, eSalomão Zandamela, do CEA.2 Para uma versão revista deste estudo, que contém canções sobre o trabalhomigratório e algumas entrevistas longas com mineiros, ver CEA/UEM, O mineiromoçambicano. Um estudo sobre a exportação de mão-de-obra em Inhambane,Maputo: CEA/UEM, 1998.

Nacional do Lesotho e da antiga República Democrática Alemã. As entrevistasefectuadas durante esta visita centraram-se principalmente no funcionamento dasrecentemente criadas estruturas políticas e administrativas, incluindo ascooperativas de produção agrícola nas aldeias comunais. A última entrevista aquiapresentada (entrevista 8) foi efectuada durante esta viagem, e reflecteexperiências mais contemporâneas, depois das grandes cheias do Limpopo em1977, e do início do reassentamento promovido pelo Governo.À excepção das entrevistas com os anciãos (entrevista 7), que foram realizadasem casa de um deles, todas as outras foram efectuadas em reuniões públicas, emcada aldeia comunal. Tal como era exigido em todo o país, todas as reuniõesforam preparadas com antecedência pelas estruturas políticas e administrativas dogoverno local e pelos Grupos Dinamizadores3.Todos os entrevistados, mulheres e homens, estiveram directa e pessoalmenteenvolvidos nos eventos históricos que narraram, que revelam uma mistura deorgulho e amargura. As histórias eram muitas vezes contadas de forma animada,

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com um sentimento intenso, como se os acontecimentos tivessem acontecidoapenas "ontem".As canções, que eram cantadas no passado como um acto de protesto e desafiocontra o opressor colonial, são cantadas ainda hoje, com uma grande firmeza.Contudo, enquanto que as canções usadas como uma arma cultural contra ocolonialismo falavam directa e abertamente, as que têm como objectivocomunicar a injustiça ou a desaprovação em relação a certas políticas do governopós-independência da FRELIMO são muitas vezes tão subtis que é necessário umconhecimento e compreensão da língua e da cultura do povo para entender "ahistória por detrás da história'4.3 Os textos dactilografados das transcrições originais em Changane serãodepositados no Arquivo Histórico de Moçambique.4 Ver a canção "Tsutsumani ngopfu - Corram, rápido! no fim da entrevista n 8,pág. 1394

É necessário indicar o contexto mais amplo em que as entrevistas foramrealizadas: as entrevistas foram efectuadas depois das fortes cheias de 1977 no sulde Moçambique. Na província de Gaza, uma das consequências foi a aceleraçãoda construção de aldeias comunais, ao abrigo do programa do governo para asocialização do campo. As entrevistas foram realizadas também na altura em queas forças rodesianas estavam a intensificar os seus ataques militares em Gaza.Maputo 2001,Alpheus Manghezi

NOTAS DO EDITORO autor utiliza palavras ou frases em "negrito" para exclamações. A entrevista n°6 com Oselina Marindzi, considerada relevante para a compreensão da situação damulher, criação de canções eoutros assuntos, contrastando com algumas dos homens que transmitem a visão eexperiência de uma elite local capaz de dialogar com estruturas coloniais, foitraduzida e introduzida no texto depois das outras, em 2003. Ela aparece tambémnuma fotografia. Faltam para esta os textos originais das canções em changana.

AGRADECIMENTOSO autor gostaria de exprimir o seu agradecimento e demonstrar a sua apreciaçãoaos seguintes pelo seu encorajamento e apoio prático na preparação destedocumento:Ao Dr. David Hedges, do Departamento de História da UEM, que constituiu umatábua de ressonância intelectual durante o tempo de investigação, facilitou oacesso à assistência financeira ao autor permitindo uma visita a UEM e executaros trabalhos preparatórios para publicação;Ao Dr. Joel das Neves Tembe, Director do Arquivo Histórico, que demonstroutanto apoio intelectual como prático, incluindo o texto nas publicações do AHM;

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Ao Dr. Gerhard Liesegang, cujo conhecimento da história de Moçambiquepermitiu fornecer ao autor algumas dicas sobre o que se passou no sul deMoçambique, incluíndo algumas notas e bibliografia no processo da revisão;Ao doutor António Sopa, documentalista do AHM, o autor agradece a localizaçãode alguma documentação, e a realização da capa; À doutora Lusidia Felimone quetraduziu o texto com atenção a pormenores menos claros;Finalmente à população de Guijá e aos principais informadores identificados, àsequipas de trabalho que vieram de Maputo, e a outros que ajudaram no trabalho.Maio de 2003A. Manghezi

ABREVIATURASAHM - Arquivo Histórico de MoçambiqueCAIL - Complexo Agro-Industrial do Limpopo OMM - Organisação da MulherMoçambicanaPIDE - PolíciaInternacional e de Defesa do Estado. PolíciaSecreta Portuguesa, no tempo de Marcelo Caetano foi rebaptisadacomo DGS, Direcção Geral de Segurança.

ENTREVISTAS

MAHAWANI KHOSA[Nasceu em 1894]Entrevistado por Alpheus Manghezi (e SalomãoZandamela), Guijá, Fevereiro de 1979.Nota do Editor: Gui'á, conhecido no tempo colonial também por Caniçado e emca. 1964-1974 como Vila Alferes Chamusca,foi estabelecido na margem esquerdado rio Limpopo perto da antiga residência de Gidja, um primo de Ngungunvane,que fugiu para o Transvaal em 1897. Foi a partir de Caniçado que se administrougrande parte da área do Colonato do Limpopo até à formação do Concelho doLimpopo com sede em Vila Trigo de Morais [antiga (até 1964) Vila de Gujá ehoje Chókvé] nos anos 60. Por isso as entrevistas transmitem também algumasexperiências da margem direita do rio Limpopo, que se encontrava na mesmaCircunscrição ou Concelho (que corresponde ao actual Distritos de Chókwè).Entrevistador: Mahawani Khosa, gostaríamos que nos dissesse alguma coisaacerca da sua vida? Khosa: Nasci em 1894, foi esse o ano em que nasci. Ent:Onde é que nasceu - nesta área? Khosa: Nasci nesta área, no tempo em que aindahavia aqui ngunis fixados.Ent: Quer dizer que os ngunis ainda dominavam esta área? Khosa: Sim, os ngunisainda dominavam, mas em 1895 os brancos chegaram e capturaramNgungunhana. Alguns anos depois da sua captura, cerca de três anos se não meengano - a minha memória trai-me muito [estes dias]; sim, então veio a guerra deMaguiguane. Os brancos lutaram contra Maguiguane e finalmente mataram-no.Passaram-se alguns anos até que os brancos começaram a reorganizar o país -abrindo serviços públicos. Eles fizeram isso depois da morte de Maguiguane [

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1897]. O governo dos brancos introduziu o imposto, prendeu-nos e enviou-nospara o xibalo (trabalho forçado), que fizemos até recentemente.Ent: O que é você fazia quando era jovem? Khosa: Eu cuidava de gado. Maistarde comecei a fazer trabalho remunerado, andando de um patrão branco paraoutro à procura de trabalho.

Ent: Onde é que trabalhou?Khosa: Em Mpfumu [Ka-Mpfumu, Lourenço Marques], mas não me lembro dosanos que trabalhei lá. Eu fazia serviço doméstico, lavando roupa e louça - isto é oque eu tinha de fazer. Também servia refeições à mesa dos brancos. Ent: Qual erao seu salário?Khosa: Eu recebia uma libra esterlina, "equivalente" a 100$00 (escudos) por mês.Trabalhei 18 meses para uma famflia e depois fui para as alfândegas2 duranteuma semana como lasher carregando carvão. Eu recebia apenas uma libra pormês, mas só fiquei lá seis meses antes de deixar e ir para os Caminhos de Ferro.Ent: O que é você que fazia nos Caminhos de Ferro? Khosa: Fazíamos amanutenção da linha férrea. Trabalhei aqui durante três anos, ganhando 450$00.Depois disso voltei para casa para descansar.Ent: Durante o tempo em que trabalhava em Lourenço Marques ia de vez emquando a Gaza?Khosa: Nunca visitei a minha casa durante todos os cinco anos que fiquei atrabalhar em Lourenço Marques. Ent: Havia trabalhadores do xibalo quandotrabalhava nos Caminhos de Ferro?Khosa: Havia muitos! Eles vinham de diferentes partes do país: de Moamba,Inhambane, Gaza, etc. Ent: O que é que fazia durante as suas férias aqui em casa?Khosa: Depois das férias fui para as minas da África do Sul. Ent: Em que ano foiisso?Khosa: Foi em 1915.Ent: Como é que viajou para a África do Sul? Khosa: Fui a pé. Viajei a pé eapanhei o comboio em Ximowini [no "imbondeiro"].Ent: Caminhou a pé até ao Norte do Transvaal?. Khosa: Sim, eu fiz todo opercurso até lá. Caminhei até Massingir e atravessei a fronteira. Então apanhei ocomboio que passava por2 N.E.: Talvez melhor: uma empresa de estiva (ou a empresa de Portos eCaminhos de Ferro).12

Zoekmekaar, onde me juntei a outros que tinham vindo no comboio de Pafúri.Apanhámos o nosso comboio num lugar chamado Ximowini.Ent: Foi sozinho de casa até ao Norte do Transvaal? Khosa: Eu estava nacompanhia de outros trabalhadores. Ent: O que é que aconteceu depois dechegarem à África do Sul? Khosa: Quando lá chegámos, eu fui ao governo [postode recrutamento da Wenela], e de lá fui enviado para trabalhar em Randfontein.Ent: Quantos contratos cumpriu nas minas? Khosa: 8 anos. Primeiro trabalhei nosubsolo e depois na superfície. Ent: Quanto é que recebia?

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Khosa: Eu recebia duas libras e dez xelins por mês na perfuração, sem nenhumpagamento de horas extraordinárias não trabalhei muito tempo nesta secçãoporque o trabalho era demasiado pesado para mim - eu dificilmente conseguiaperfurar um buraco por dia, por isso fui autorizado a trabalhar na superfície depoisde apresentar um pedido de transferência. Aqui recebia três libras e dezassetexelins. Contudo, fiquei aqui apenas seis meses antes de me mandarem de voltapara o subsolo, onde eu fazia lashing. Ent: Voltava para casa de férias no fim decada contrato? Khosa: Não, trabalhei sete anos consecutivos nas minas antes deregressar para casa.Ent: Nessa altura ainda não se tinha casado? Khosa: Ainda não me tinha casado.Casei-me quando regressei. Depois disso, voltei novamente para as minas, masdesta vez não fiquei muito tempo porque tinha que pensar na minha mulher emcasa.Ent: Onde é que trabalhou desta vez? Khosa: Em Benoni.Ent: E quanto tempo ficou lá?Khosa: Apenas um ano e meio. Depois de voltar para casa pela segunda vezdediquei-me à agricultura. Ent: Comprou gado e uma charrua com o dinheiro dasminas? Khosa: Não com o dinheiro das minas - comprei algum gado com odinheiro que ganhei em Moçambique. Ent: Voltou depois para as minas paraoutro contrato?

Khosa: Nunca mais voltei para a África do Sul até hoje. Ent: E sobre o cultivo dealgodão em Gaza - como é que a cultura obrigatória do algodão foi introduzidaaqui? Khosa: Não me lembro do ano em que o algodão foi introduzido. Ent:Conte-nos a história da cultura obrigatória do algodão mesmo que não se lembredo ano em que foi introduzida pela primeira vez? Khosa: Quando o algodão foiprimeiramente introduzido em Gaza, era produzido pelos machambeiros. Ent: Osmachambeiros?Khosa: Os machambeiros que tinham charrua. Ent: Esses eram grandesagricultores negros? Khosa: Sim, eles foram os primeiros a produzir algodão, edurante algum tempo foram os únicos. Mas mais tarde todos nós fomos forçados acultivar algodão. Eles mandaram-nos a todos nós produzir algodão, e nóstrabalhávamos com as nossas próprias mãos (usando enxada). Nós cultivávamos,sachávamos, colhíamos e vendíamos o algodão.Ent: Quem disse aos machambeiros para cultivar algodão? Khosa: Foram osencarregados do algodão. Ent: Quem eram estes encarregados do algodão? Khosa:Era o Governo.Ent: Porque é que o governo pediu primeiro aos machambeiros e não a todos paracultivarem o algodão? Khosa: Porque a lei exigia que só os machambeiros comcharruas deviam produzir algodão. Contudo, quando perceberam que não seobtinha dinheiro suficiente se a produção continuasse a ser feita apenas por umpequeno número de machambeiros, decidiram então que toda a gente deviacultivar algodão. Ent: Todos os machambeiros aceitaram voluntariamente cultivaralgodão quando lhes foi exigido que o fizessem, ou foi necessário usar algumaforça para os obrigar? Khosa: Não conheço nenhum machambeiro que tenha sidoforçado a cultivar algodão. Nós fomos os únicos que fomos obrigados a produzir

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algodão usando a enxada. Eles tiveram que prender-nos e mandar-nos para asmachambas, e faziam isso em nome da lei decretada em Lourenço Marques.

Ent: Como receberam as orientações de que deviam cultivar algodão? Khosa:Chamaram-nos para uma reunião onde nos disseram que dali em diante todostinham de cultivar algodão. Ent: Quem vos convocou para a reunião? Khosa: Foio governo.Ent: Através dos régulos?Khosa: Foi o governo dos brancos. Ent: Através dos régulos?Khosa: O quê? Os nossos chefes* e régulos foram simplesmente mandadostransmitir as directivas ao povo, de que dali em diante tínhamos de nos dedicar àprodução de algodão. Ent: O que é eles realmente disseram às pessoas? Khosa:Eles vieram e disseram: "É necessário algodão. Vêm o algodão que osmachambeiros estão a produzir? Eles estão a ganhar muito dinheiro com isso.Vocês também devem dedicar-se ao cultivo de algodão a fim de ganharemdinheiro para pagar os vossos impostos."Ent: Que mais vos disseram?Khosa: Não nos disseram mais nada. Começámos então a cultivar algodão porquenão podíamos recusar as ordens. Membro do Grupo Dinamizador: Papá Khosa, eugostaria de acrescentar algo sobre o que você disse. Quando os machambeirosreceberam ordens para produzir algodão, os que possuíam charruas eram aindamuito poucos. Os machambeiros eram aqueles que tinham charruas e, nesta área,podiam contar-se pelos dedos de uma mão - talvez um pouco mais. Quando oalgodão foi introduzido pela primeira vez, as autoridades decidiram que estesindivíduos é que se deviam dedicar ao cultivo de algodão. Cada um deles lavrouuma área de 100 m2, tendo produzido algodão durante duas épocas. Na terceira,chegou um homem de Lourenço Marques chamado Soares. Ele foi ao réguloMbeki, acompanhado pelo administrador, para falar com todas as pessoas, quetinham sido informadas para comparecerem"N.T.: - Chefe - Posto na hierarquia tradicional colonial que também se designavapor chefe de terra ou cabo de terra.3 N.E.: A maneira comum de indicar um hectare (100 x 100m).

a uma reunião, e toda a "terra" estava presente. O Soares disse: "O algodão é umacultura muito importante e se o cultivarem poderão ganhar dinheiro para osvossos impostos. Se se dedicarem à produção de algodão não terão sequer que irpara as minas na África do Sul, e as vossas mulheres ficarão felizes." Durante areunião, um homem chamado Muthema Ubisse foi preso e batido com palmatóriapor ter colocado algumas dúvidas sobre a utilidade de se cultivar algodão quandodisse: "se alguém cultivar algodão apenas recebe como pagamento uma pequenaquantia, uma vez por ano e no fim da colheita. Eu sou um trabalhador emigrante eganho um (melhor) salário. Se (eu deixar de ir às minas e) me envolver no cultivodo algodão, não serei capaz de alimentar e vestir-me a mim mesmo e à minhafamlia."O algodão é muito difícil de cultivar. Depois da colheita, tinha de ser classificadoem categorias, primeira e segunda, mas quando se ia vender podiam dizer que não

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estava devidamente classificado. Depois disso ainda podiam dizer que o sacopesava apenas 30 Kg (em vez de 100 Kg?), e pagar só 100$00, de onde deduziamo dinheiro do imposto; nos dias de mercado, o branco da administração estavapresente para recolher o dinheiro do imposto no local. Foi quando o governo seapercebeu de que o número de machambeiros com charrua era demasiadopequeno que tomou obrigatório o cultivo do algodão para todos. Dali em diante,todos - homem ou mulher foram obrigados a cultivar meio hectare de algodão. Foiassim que foi introduzida a cultura obrigatória do algodão nesta área, e isso foi em1942, em que toda esta terra foi obrigada a produzir algodão. Ent: (para o membrodo Grupo Dinamizador): Obrigado pela sua contribuição. Voltemos agora paraMahawani Khosa: As pessoas aceitaram as ordens transmitidas na vossa zonapelo Soares? Khosa: Todos nós aceitámos porque vimos que todos os que tinhamcharrua já tinham aceite. Nós que não tinhamos charrua [também] cultivámosalgodão, e eles disseram que desta maneira poderíamos ganhar dinheiro parapagar os impostos. Eles disseram-nos ainda que se cultivássemos algodão nãonecessitaríamos de ir para as minas porque obteríamos tudo o quenecessitássemos em casa. Começámos o cultivo do algodão, mas compreendemoslogo que isso ia criarnos grandes problemas, pois tínhamos que cultivar algodão emilho

ao mesmo tempo. Tínhamos que sachar as machambas de algodão e de milho aomesmo tempo, e isso era difícil, ou mesmo impossível. Não havia nada a fazer aesse respeito senão tentar trapacear, i.e., em vez de irmos tratar da machamba dealgodão, como se esperava que fizéssemos, íamos para as nossas machambas demilho. Mas isso trouxe-nos mais problemas porque, quando o supervisor doalgodão vinha para a machamba de algodão e via que não estávamos, ele sabiaque podíamos estar no campo de milho; ele seguia-nos até lá e batia-nos, dizendo:"porque é que você não toma conta da sua machamba de algodão...?" Nósrespondíamos: "Eu tive que ir sachar a minha machamba de milho porque aquelaé a minha comida." Ele batia-nos e dizia: "nunca mais faça isso, não é permitido;o algodão está em primeiro lugar." Apesar de tudo, continuávamos com o cultivodo algodão porque éramos forçados. Ent: Quantas mulheres tinha nessa altura?Khosa: Uma.Ent: Você e a sua mulher cultivavam cada um a sua machamba de algodão?Khosa: Nós tínhamos só uma machamba. Ent: De que tamanho era?Khosa: Tinha 50 m x 50 m.Ent: Você e a sua mulher trabalhavam juntos nesta machamba? Khosa: Sim.Ent: Teve, alguma vez, problemas com o capataz por ter abandonado a machambade algodão para ir tratar do seu milho? Khosa: Um dia ausentei-me da minhamachamba de algodão para ir sachar a machamba de milho, porque o milho é omeu estômago, não o algodão! Se eu tivesse que despender todas as minhasenergias a tratar do algodão eu havia simplesmente de morrer de fome, porque aservas daninhas destruiriam o milho. O capataz bateu-me. Ent: Bateram-lhe lámesmo na machamba? Khosa: Sim, justamente lá na machamba. Ent: O capatazestava sozinho ou na companhia de outros? Khosa: Ele estava sozinho.

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Ent: A sua mulher estava presente quando ele lhe bateu? Khosa: Ela estava namachamba de algodão.

Ent: Qual foi a sua reacção a esta agressão? Defendeu-se? Khosa: Haa! Vocêpodia lutar com o "rei"? Eu nem tentei ripostar. Ent: Com que é que ele lhe bateu?Khosa: Bateu-me com um chamboco [chicote feito de pele de hipopótamo].Ent: Quantas chicotadas lhe deu?Khosa: Duas, sabe que dois ou três golpes é muito! Ent: Depois deste castigo, nãovoltou a cometer outra vez o "crime"? Khosa: Não, nunca mais voltei anegligenciar a minha machamba de algodão.Ent: Portanto, essa foi a única vez que foi punido? Khosa: Sim.Ent: Conhece pessoas na sua área que, devido à cultura obrigatória de algodão,tenham decidido abandonar as suas casas e viver numa outra zona distante, longedo alcance desta lei? Khosa: Isso aconteceu apenas em Magude, onde as pessoassouberam dos problemas do cultivo de algodão que estávamos a ter, porque nósaqui fomos os primeiros a ser forçados a cultivá-lo antes de se fazer qualquertentativa para se introduzir a cultura obrigatória lá. Quando enviaram ordens paraMagude para que todas as pessoas começassem a fazer o cultivo de algodão, oschefes e régulos chamaram a população para uma reunião, onde se tomou adecisão de resistir. Nós soubemos que a estratégia deles foi aceitar as sementes dealgodão distribuídas e fervê-las antes de serem plantadas, para que nãogerminassem. Ent: De acordo com o que ouviu, onde é que foram realizadas estasreuniões - em público ou em segredo? Khosa: As reuniões foram realizadas emsegredo. Ent: As autoridades portuguesas nunca descobriram nada sobre estasreuniões nem souberam que as sementes tinham sido fervidas? Khosa: Não sei.Ent: Houve pessoas que tentaram ferver as sementes em Guijá nesta área?Khosa: Não, mas nós tentámos exigir melhores preços pelo algodão. Ent: Qual foio resultado disso?Khosa: As pessoas reclamaram e mostraram que o dinheiro da

produção de algodão era muito pouco, e que ainda por cima, grande parte do queganhavam era absorvido pelos impostos. O agricultor ficava virtualmente semnada no bolso no fim do ano agrícola. As pessoas reclamaram tantas vezes até queo preço do algodão foi aumentado e, embora fosse ainda muito baixo, mesmoassim era melhor que nada.Ent: As reclamações foram feitas individualmente ou as pessoas organizaram-se eapresentaram as suas exigências? Fizeram algumas reuniões para discutir esteproblema por forma a apresentar uma frente unida perante as autoridades doalgodão? Khosa: As discussões foram secretas, e quando as pessoas chegaram aum acordo, o assunto foi levado às autoridades do algodão. Nessa altura, elasfalaram com uma única voz, dizendo às autoridades que o preço era demasiadobaixo.Ent: Durante quantos anos esteve envolvido na cultura obrigatória de algodão?Khosa: A cultura obrigatória do algodão começou em 1932. Ent: Foi em 1932 -ou em 1942?

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Khosa: 1932 foi o ano em que os que tinham charrua começaram a cultivaralgodão, e em 1942 a cultura obrigatória generalizou-se pela primeira vez. Nósproduzimos algodão até 1950 e, depois disso, o cultivo do algodão começou adeclinar até que foi cancelado. Ent: Como é que finalmente se pôs fim à cultura dealgodão? Khosa: Isso aconteceu porque as pessoas concluíram que não tinhanenhum benefício para elas, tendo reclamado que não podiam sustentar as suasfamílias com o que ganhavam com o algodão. Elas referiram que isso era a causadirecta da fome porque viam o seu milho a morrer devido às ervas daninhas,enquanto eles gastavam as suas energias a trabalhar nas machambas de algodão.Por isso, optaram por deixar de cultivar algodão, visto não lhes trazer nenhumbenefício.Ent: Agora, Mahawano Khosa, pode contar-nos alguma coisa sobre o xibalo, vistoque deve ter testemunhado o fenómeno na sua área? Khosa: Este é um assuntomuito longo. Ent: Faça um resumo do que sabe acerca do xibalo. Khosa: O xibaloé um assunto muito longo porque começou a partir

da altura em que os brancos puseram os pés em Moçambique. Eles prendiam-nose obrigavam-nos a trabalhar a troco de nada. Eles prendiam alguém, faziam-notrabalhar duramente, batiam-lhe e pagavam-lhe 100$00 por mês. Nós sofremosdurante muitos, muitos anos e só muito recentemente é que o xibalo terminou. Oxibalo e a palmatória vieram ao mesmo tempo e já acabaram. Ent: Você esteve noxibalo?Khosa: Eu estive duas vezes no xibalo. Ent: Onde é que foi o seu primeiro xibalo?Khosa: Fiz o meu primeiro xibalo em 1923; isso foi em 1923. Ent: Por que é quefoi levado para o xibalo? Khosa: Como eu era filho do chefe da área, nóstínhamos a responsabilidade de fornecer homens da nossa zona para o xibalosempre que o administrador necessitasse. Era nossa responsabilidade persuadir oshomens, ou a irem "voluntariamente", ou a serem presos e entregues àsautoridades. Eu não fui capaz de fornecer os homens solicitados, por isso tive deir eu mesmo para o xibalo. Ent: Você é filho de um chefe?Khosa: Sim, o Chefe Khosa. Eles levaram-me para Nghululeni, em Xinavane, naplantação de açúcar. No fim do meu contrato de xibalo regressei à minha terrapara descansar mas, antes mesmo de me instalar, veio uma nova ordem parafornecer um outro grupo de trabalhadores para o xibalo. Tive o mesmo problema -não consegui os homens exigidos, e desta vez fui enviado para Chibuto, paracumprir xibalo.Ent: Que tipo de trabalho fez em Chibuto? Khosa: Trabalhei na machamba de umbranco, cultivando a terra. Em Xinavane, o nosso trabalho era cortar e carregarcana-de-açúcar nos vagões. Depois de acabarmos esse trabalho, ensacávamos oaçúcar na fábrica. O trabalho no xibalo era diferente do cultivo de algodão porquenão nos batiam.Ent: E quanto à comida, que tipo de comida recebiam? Khosa: Farinha e couve,mas não era suficiente para comer. Ent: Quanto tempo duraram os contratos dexibalo em Xinavane e em Chibuto?Khosa: Estive seis meses nos dois lugares.

Page 11: 11,11M;i'i I 1111 I$, LII Li - JSTORpsimg.jstor.org/fsi/img/pdf/t0/10.5555/al.sff.document.crp2b20005.pdfmanutenção da linha férrea. Trabalhei aqui durante trêsanos, ganhando 450$00

Ent: Quanto dinheiro trouxe para casa? Khosa: Trouxe 600$00. Eles pagavam-nos100$00 por mês e, nas duas ocasiões, o administrador deduziu 300$00 para oimposto, deixando-me com 300$00 para levar para casa. Ent: O que é queproduzia o agricultor branco em Chibuto? Khosa: Produzia milho, batata e feijão.Ent: Havia muitos trabalhadores do xibalo a trabalhar consigo em Chibuto?Khosa: Muitos - havia cerca de dez trabalhadores do xibalo. Ent: Qual era o nomedesse agricultor? Khosa: Ele chamava-se Capela, Eduardo Capela4. Ent: Houvealguma greve dos trabalhadores do xibalo durante o tempo em que trabalhou emXinavane? Khosa: Não, não houve greves em Xinavane enquanto eu trabalhei lá.Ent: Quando foi para lá ouviu falar de alguma greve que tivesse acontecido?Khosa: Não.Ent: E na machamba do Capela? Khosa: Não havia conflitos.Ent: As pessoas trabalhavam felizes? Khosa: Como é que uma pessoa podiatrabalhar feliz estando no xibalo? As pessoas reclamavam porque estavam a sofrer(embora não exprimissem as injustiças por que passavam). Ent: Como é que vocêe o seu pai não conseguiam juntar o número de homens que era solicitado navossa área para o xibalo? Khosa: Nós tínhamos muita população, mas as pessoasfugiam e escondiam-se quando se faziam rusgas para o xibalo. As pessoas nãoqueriam ir para o trabalho forçado, e por isso desapareciam quando se precisavadelas.Ent: Você era o único filho do seu pai?4 N.E.: Eduardo Dias Capela, dono de várias cantinas [lojas] nas duas margens doLimpopo, com sede em Mohambe no limite com o Guijá, criador de gado eagricultor e até ca. 1970 também dono de uma pequena empresa de transportesentão vendido a empresa Oliveiras.

Khosa: Eu tinha irmãos, mas eram demasiado pequenos para o xibalo. Eu era oprimeiro filho e, por isso, o único suficientemente adulto para ir para o xibalo.Ent: Depois de receber a solicitação do administrador para fornecer um certonúmero de homens para o xibalo, o que é faziam depois, como é que abordavamas pessoas? Khosa: Íamos à casa de cada pessoa e pedíamos-lhe para vir para oxibalo e, se ela recusasse, voltávamos para casa de mãos vazias, sabendo queteríamos nós próprios que ir para o xibalo. Ent: Quando foi levado para Xinavanefoi por não ter conseguido o número de homens solicitado ou porque nãoconseguiu nenhum? Khosa: Eu não consegui nenhum. Ent: Quantos homenstinham sido solicitados? Khosa: Como o meu pai era apenas um nganikani[subchefe/nduna do chefe5 ], sob as ordens do chefe Mahuhu, eles pediram-lheapenas um homem da nossa área; um seria de Masekani e outro de Xipetani.Mesmo ao próprio Chefe Mahuhu pediram para fornecer apenas um homem. Eunão consegui fornecer um homem da nossa área e tive que ir eu próprio para otrabalho forçado, tendo acontecido o mesmo quando veio a solicitação seguinte etive que ir para Chibuto. Ent: Na sua opinião, o que era mais difícil entre o xibaloe o cultura obrigatória de algodão?Khosa: O xibalo era mais difícil.Ent: Poquê?

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Khosa: Porque uma pessoa era presa para o xibalo e, no meu caso, eu fui para oxibalo simplesmente por não ter conseguido encontrar um homem para mandarpara lá. O xibalo estava sempre presente podia haver rusgas em qualquer dia,todas as semanas e todos os meses. O xibalo foi a coisa mais terrível que algumavez nos aconteceu nesta área.Ent: Disseram que por causa do xibalo muitas pessoas foram para as minas naÁfrica do Sul e nunca mais voltaram para Moçambique. O que é que diz sobreisso?'Aportuguesado "enganacana"

Khosa: Há muita gente que deixou a sua terra para sempre. Ent: Onde é que essaspessoas se foram fixar? Khosa: Elas foram para outras terras [outras partes deMoçambique] onde a população era mais densa e havia melhores possibilidadesde escapar às rusgas. Pelo menos, uma pessoa podia descansar entre um contrato eoutro, enquanto as rusgas do xibalo lançavam as suas redes noutro sítio qualquer.Era possível, em algumas áreas, uma pessoa ficar seis meses ou mesmo um anosem ser levada para o trabalho forçado. Deste modo, os homens podiam deixar-seestar sentados e meditar: se eu tivesse partido e me fixado na área do régulo tal etal, eu estaria melhor. Ent: Era possível uma pessoa ser presa mesmo com oimposto desse ano pago?Khosa: Eles prendiam as pessoas mesmo que provassem que tinham pago oimposto mostrando os recibos. Alguns homens iam esconderse no mato e sóregressavam à casa apenas para levar comida ou quando tinham a certeza de queas rusgas tinham passado para a aldeia seguinte.Ent: Em certas áreas, levavam mesmo rapazes para o xibalo, como aconteceu, porexemplo, em Manjacaze. Aconteceu isso na sua zona? Khosa: Eles aqui sóprendiam adultos. Contudo, quando se introduziu a cultura obrigatória do algodãopela primeira vez em Moamba, alguns rapazes foram levados para ajudar nacolheita. Ent: Moamba foi então a primeira zona onde se produziu algodão antesde esta cultura ser introduzida no Guijá? Khosa: Sim.Ent: Eles vieram buscar rapazes aqui no Guijá? Khosa: Sim, vieram.Ent: Como é que levavam os rapazes? Khosa: Eles vinham e conversavam com opai, dizendo que o filho tinha sido chamado para ir ajudar na colheita do algodão,e então levavam o rapaz.Ent: Eles levavam o filho mesmo se o pai recusasse o pedido? Khosa: Como é queuma pessoa podia recusar sabendo que a solicitação tinha vindo das autoridades?Ent: Eles pediam a permissão deles?

Khosa: Eles pediam, mas faziam o pedido numa posição de poder; eles eram osgovernantes, não eram? Isto não era xibalo? Ha, Ha, Ha!Ent: Os pais não perguntavam para que é que eles iam levar o seu filho e que tipode trabalho lhe iam dar para fazer? Khosa: A pessoa podia perguntar. Ent: O que éque diziam?Khosa: Eles diziam que o filho ia fazer trabalho para crianças, e que receberia deacordo com a sua idade [e por conseguinte não havia nada com que se preocupar].Ent: Essas crianças eram levadas apenas para a colheita de algodão, ou davam-

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lhes outro tipo de trabalhos para fazer? Khosa: Não sabemos, diziam-nos que elesiam ajudar na colheita do algodão.Ent: Quantos meses é que estas crianças tinham que trabalhar. Khosa: Seis meses,o mesmo que no xibalo para os adultos. Ent: Quanto recebiam?Khosa: 50$00 por mês, e os adultos recebiam 100$00. Ent: As crianças falavamsobre as suas experiências quando regressavam à casa?Khosa: Algumas diziam que lhes batiam quando se "portavam mal" e quandoeram "preguiçosas". Ent: Mahawani Khosa, estamos-lhe gratos por tudo o que nosensinou hoje.

GABRIEL MUKAVI[Nasceu em 1901]78 anos de idade, entrevistado por AlpheusManghezi, Guijá, 16 de Fevereiro de 1979.Mukavi: Chamo-me Gabriel Mapeswa Mukavi. Nasci aqui em Guijá, emNkwinika, na zona do régulo HIomani. Nasci no tempo da Guerra Anglo-Boer,logo no início, em 1901. O meu pai estava na África do Sul; eu nasci justamentena altura em que ele regressou à casa. Eu era pastor - na minha infância, eutomava conta de cabritos aqui na minha terra, Guijá. Em 1911 fui para Magude efiquei em Antioka com os meus avós. Em 1913, os meus avós começaram afrequentar a escola nocturna em Antioka. Dan Malugani acabava de voltar deRicatla para trabalhar como professor. Eu então acompanhava os meus avós àescola nocturna, para aprender qualquer coisa. Depois de algum tempo, os meusavós voltaram para a África do Sul e eu deixei de ir para a escola porque nãopodia ir sozinho à noite. Ent: Quanto tempo ficou na escola? Mukavi: [Até ter]cerca de treze ou catorze anos. Não se aprendia nada de valor na escola (nessetempo). Eles ensinavam apenas na nossa língua materna. Em Magude tornei-mepastor, e tomava conta dos bois do meu avô. Depois de 1917 fui para LourençoMarques à procura de emprego, tendo conseguido arranjar um trabalho ondeaprendi a cozinhar.Ent: Lembra-se quanto é que ganhava como cozinheiro? Mukavi: Eu recebia75$00 por mês como aprendiz de cozinheiro. Mais tarde, em 1920, comocozinheiro com experiência, ganhava 200$00, em moedas de ouro e não em notas.Em 1920 voltei para a minha terra [Guijá]. Como tinha tomado consciência daimportância da educação, decidi voltar para Antioka para estudar. Isto foi no mêsde Outubro.Em 5 de Novembro de 1920 fui nadar no Rio Incomáti na companhia dos meusamigos. Era de dia, e nós descemos ao Incomáti para nadar. Aí um crocodiloapanhou-me. Havia uma árvore grande que tinha

caído à água (mas não tinha sido arrastada), e quando o crocodilo me apanhou,agarrei-me a um dos ramos da árvore, segurando-me firmemente. Tive a sensaçãode que minha perna estava na boca de uma poderosa armadilha. Larguei o ramo,achando que se não fizesse isso, a minha perna partir-se-ia, (com um ar de quemestá a recordar o passado), como se tivesse preferido perder a vida do que partir

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uma perna. Eu larguei o ramo e o crocodilo puxou-me. Eu pensava nos meus pais,implorando que Deus estivesse com eles- eu era o seu único filho. O crocodilo deixou-me nadar para longe, mas penseique ele podia seguir-me porque (dizia-se) se um crocodilo larga uma pessoa nomeio da água, de certeza que a vai seguir, mas este crocodilo não me seguiu. Nãogritei por socorro quando tudo isto aconteceu, por isso os meus companheiros -Izap Malungani, Artur Malungani, Josefa Mandhongwe e outros, não sabiam oque estava a acontecer até eu sair do rio e desmaiar. Desmaiei porque... olhe paraaqui [Mukavi dobrou uma perna das calças e mostrou uma cicatriz enorme e feiana sua perna]. Ent: Estas são as marcas deixadas pelos dentes do crocodilo!Mukavi: É mesmo esta perna e estes são os "dentes" do crocodilo. Apenas o ossoficou intacto, mas as veias estavam cortadas, e eu tive que ser carregado do sítioonde tinha desmaiado até lá acima, em Antioka. Lá encontrei uma mulher suíça, aMiss Suzanne (esqueci-me do apelido)2, que tratou de mim com muito cuidado ecarinho (e apontando para a perna) - ela cuidou desta perna! Por me ter tratadocom muito cuidado e carinho, eu sobrevivi. Eu não pude trabalhar durante todo oano devido a este ferimento, mas depois voltei para a cidade à procura detrabalho. Mas, mesmo assim, como eu era cozinheiro, tinha que trabalhar muitasvezes com a perna apoiada numa cadeira. Contudo, foi este crocodilo que mepermitiu encontrar a Miss Suzanne, caso contrário não a teria conhecido. Depoisde eu sair de Antioka para Lourenço Marques ela também foi transferida paraManjacaze, e foi de lá que ela se lembrou de mim.2 N.E.: Suzanne Emery, enfermeira, natural de Neuchâtel, Suiça, em Moçambique1920-25, cf. Linder 2001:273.26

Em Lourenço Marques eu trabalhava para uns franceses, e a Miss Suzannedescobriu que eu trabalhava para esta família. Quando ela veio de Manjacazevisitá-los, nós tornámo-nos irmãos. Depois de trabalhar durante um ano para estafamília francesa, arranjei trabalho numa outra família também francesa, cujomarido era gerente da Companhia do Boror. Nessa altura eu já era um cozinheirocom muita experiência. Um ano mais tarde, esta família foi-se embora, e umaoutra (também) francesa veio pedir-me para ir trabalhar para eles, tendo eu aceitea oferta.Durante esse ano, a "Miss" (da história) do crocodilo lembrou-se de mim eescreveu-me uma carta em que dizia, ".... Gabriel Mukavi, tens que pensar em irpara a escola de Ricatla. Eu vou pagar e vou ajudá-lo (porque) será útil ao seupaís". Ela disse ainda que, embora a Missão tivesse poucos fundos, não permitiriaque isso me desanimasse. Eu não concordei com esta proposta porque, comoreferi, eu era o único filho da minha mãe. Se aceitasse a oferta e fosse paraRicatla, isso significaria uma vida instável para mim no futuro, visto que teria queandar de um lado para o outro, até mesmo de uma terra para outra (comoevangelista), e o dinheiro que eu ganharia nesse trabalho de missionário não seriasuficiente para eu sustentar os meus pais. Nessa altura a minha mãe ainda estavaviva, mas em Outubro desse ano ela morreu subitamente sem sequer adoecer.

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Quando recebi a notícia da sua morte, conclui que Deus tinha-me chamado paratrabalhar para ele, e por isso decidi ir para Ricatla.Deram-me três meses para participar nas cerimónias fúnebres da minha mãe, masdepois de um mês em casa, os meus patrões chamaram-me para ir retomar o meutrabalho, dizendo que a pessoa que eu tinha pedido para me substituirtemporariamente não os satisfazia. Quando voltei para o serviço, os meus patrõesofereceramme um contrato de cinco anos e disseram-me que, depois desseperíodo, eles iriam deixar Moçambique definitivamente e regressar à Suíça, e quedurante esse tempo não queriam outro empregado negro em casa. Eles mostraram-me que (com um trabalho seguro) eu poderia guardar dinheiro para gastar com aminha futura mulher, e que poderiam oferecer-me dinheiro para o lobolo e para asdespesas

do casamento. Nessa altura eles pagavam-me 300$00 por mês em moedas deouro.Um contrato de cinco anos, pensei! Mas havia a proposta da "Miss" (Suíça)! Bem,eu não podia, e não aceitei o contrato de cinco dos meus patrões porque Deustinha-me chamado (para trabalhar para Ele). Eu pensei (seriamente) no dinheirodo lobolo que obteria e na mulher com quem me casaria, por um lado, e na minhamãe, por outro. Cheguei à conclusão de que a minha mãe, "cuja morte me havialibertado", era mais importante que o dinheiro e, por conseguinte, devia ir paraRicatla. Quando informei os meus patrões sobre a minha decisão, eles"choraram". Mas eu nasci no Guijá e não tinha tido nenhuma instrução. Fui paraRicatla no primeiro período escolar, onde fui admitido, enquanto que outros, queeram mais qualificados do que eu, foram rejeitados. Depois dos exames doprimeiro período, alguns dos que tinham obtido melhores resultados do que euforam mandados embora, enquanto que eu tive permissão para ficar e continuarcom os meus estudos. Um dia o director de Ricatla chamou-me e disseme:"Mukavi, nós temos consciência de que você não tem as qualidades académicasnecessárias para o curso, e o seu rendimento, até aqui, não tem sido bom.Contudo, achamos que é sensato mantê-lo aqui porque há qualquer coisa em si,vemos que existe algo no seu futuro". Então, ajoelhámo-nos e rezámos. Eucontinuei a estudar durante mais quatro anos. Depois disso, assumi aresponsabilidade pela classe de catecismo, o Serviço das Três Horas, que erarealizado aos domingos no Khovo.Trabalhei aqui durante alguns anos, tendo sob minha responsabilidade todas ascrianças das províncias de Lourenço Marques e Gaza. Eu leccionei nessesserviços da tarde durante os anos 29, 30, 31, 32, 33, antes de ser transferido paraNcovo, em Magude - de volta à terra dos meus avós - onde trabalhei agora comoevangelista. Como a minha mãe tinha morrido, o meu pai veio viver co'nigo,porque não desejava voltar a casar. Mas, quando o meu pai adoeceu, ele decidiuque queria morrer no Guijá, na terra dos seus antepassados- não queria morrer em Magude. Eu compreendi isso muito bem, e acompanhei-opara Guijá, onde faleceu pouco depois. Eu próprio

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decidi posteriormente ficar no Guijá, minha terra, e a Missão permitiu-me fazer omeu trabalho lá. Durante o tempo em que fiz este trabalho viajei por toda a zona.Depois do nascimento do meu filho (Luís), o subsídio da Missão Suíça já nãochegava, uma vez que tinha que o meter na escola, e mais tarde enviá-lo para oliceu. Por isso, decidi dedicar-me à produção agrícola a fim de complementar osubsídio da Missão Suíça. Quando mais tarde a Missão tentou transferir-me paraoutra zona, declinei polidamente, referindo as minhas responsabilidades de criar eeducar os meus filhos. A Missão compreendeu o meu problema e decidiu deixar-me em paz, mas cortou o subsídio que eu recebia. Como agora estava por minhaconta, decidi dedicar todas as minhas energias à produção agrícola. Ent: Produziapara vender?Mukavi: Sim, eu produzia para vender. Ent: O que é que produzia?Mukavi: Eu produzia feijão; produzia algodão. Eu produzia algodão para vender,por forma a pagar as propinas na escola. As coisas eram muito difíceis nessetempo porque os portugueses não queriam que os nossos filhos tivesseminstrução, mas nós conseguimos educálos - eu eduquei os meus filhos, e algunsfranceses ajudaram-me nisso. Quando a Missão Suíça deu conta de que o meufilho agora estava longe de casa, voltou a solicitar-me que eu me encarregasse dapregação noutra zona, mas eu recusei. Eu estava agora a tomar mais consciênciado que os colonialistas portugueses estavam a fazer no meu país - eu estava aganhar interesse e a sentir uma certa atracção pela actividade política, e queriajuntar-me aos meus compatriotas que estavam a lutar e a ser presos peloscolonialistas: eu queria lutar pelo meu país.Comecei (a minha actividade política) em 1947 quando os padres (missionárioscatólicos) levaram os nossos filhos e puseram-nos a trabalhar nas machambas quepertenciam à igreja, e que tinham sido criadas para produzir algodão. Fui eu quecomecei a levantar a questão na nossa área depois de consultar os anciãos deHlomani3.1 N.E.: A forma aportuguesada do nome deste regulado é Chomane.

A primeira acção que decidimos pôr em prática foi impedir que usassem as nossasenxadas, e recusámos dá-las às crianças quando os padres pedissem para seremusadas nas suas próprias machambas. Mas os chefes não ficaram entusiasmadoscom esta ideia - eles tinham medo das consequências que tal acção poderia trazer.Este foi o início das minhas actividades políticas; este foi o primeiro caso. Otempo passou, e estávamos agora a entrar nos anos 50. Em 1958, a lei do xibaloera muito mais rígida e as exigências para que os chefes fornecessemtrabalhadores para o xibalo eram feitas quase semanalmente. As pessoas eramregularmente chicoteadas nas machambas devido à cultura obrigatória do algodão,e as mulheres eram levadas para as machambas de algodão mesmo se fossemencontradas a cozinhar.Nesta altura decidi consultar apenas alguns dos nossos anciãos, e juntosanalisámos a situação. De novo abordámos os chefes e os régulos, mas eles nãocolaboraram connosco, à excepção de alguns, nomeadamente os régulos Hlomanie Eduardo Nkuna4, que concordaram em levar as nossas reclamações aoadministrador, tendo solicitado uma reunião entre ele e os anciãos. O

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administrador prometeu reunir-se com os anciãos no seu regresso do Xai Xai, masnunca honrou esta promessa. Como não tinha a certeza se o pedido para a reuniãotinha sido realmente transmitido ao administrador, enviei quatro anciãos parasaber o que ele tinha para dizer. Os anciãos foram, mas acabaram por sermaltratados pelo administrador, que os expulsou rudemente lembrando-lhes queele lidava apenas com os chefes ou régulos e não com pessoas ordinárias comoeles. Ele insultou-os e envergonhou-os.Costumávamos reunir-nos aqui, nesta minha cabana, que agora caiu. Quando osquatro anciãos regressaram do encontro com o administrador, encontrámo-nosaqui com o resto do grupo de anciãos. Os quatro anciãos estavam zangados,assustados e humilhados com o tratamento que tinham recebido do administrador.Decidi que este" N.E.: O regulo Hiomani era possivelmente Conjane [abaixo p.....K: Khondlani]Efraimo Chomane[Hlomanil Zitha. Eduardo Nkuna era em 1968-9 um dos trêsregulos moçambicanos no Conselho Legislativo da Província de Moçambique. 30

tinha que ser novamente abordado, e que nessa altura eu acompanharia adelegação de anciãos e sofreria juntamente com todos. Isto foi durante o mês deSetembro (1958). Ent: Qual era o nome do administrador? Mukavi: O nome deleera V. da Silva, Adriano V. da Silva. A delegação de anciãos foi ver oadministrador, mas ele não nos recebeu, embora nos tivesse mandado esperar. Amesma delegação foi pela segunda vez, e desta vez o administrador disse: "Querofalar apenas com o Gabriel Mukavi; deixem-no vir ao meu gabinete." Eu disselheque (talvez) devia ter pedido para falar comigo (a sós) ontem, ou mesmo antes,mas não estava preparado para falar com ele agora. Pedi-lhe para sair do seugabinete e falar com todos ao mesmo tempo. O administrador rejeitou o meupedido, e chamou-me três vezes para entrar e falar com ele sozinho. Eu recusei.Alguns chefes aconselharam-me a obedecer e entrar e falar com ele, poisreceavam que eu me envolvesse em problemas por desafiar a autoridade. Eu disseaos anciãos que o administrador não era um governante (legítimo) mas umcriminoso, e que nós, os anciãos, estávamos ali precisamente por causa disso.Contudo, por fim o administrador saiu para a varanda do seu gabinete e nósdirigimo-nos a ele. Mas quando lhe coloquei o nosso caso, ele ficou muitozangado. Eu disselhe que nós, as pessoas que naquele momento estavam à frentedele, éramos mais importantes que a sua mulher e filhos, e que esta era a razãopor que ele deixou Portugal para vir para África. Disse-lhe que ele veio paraÁfrica por causa das pessoas que ele estava agora a ignorar e a desprezar.Estas observações enfureceram o administrador, que ameaçou mandar-nos para acadeia. Ele perguntou, gritando, se algum de nós conhecia a palmatória. Algunsdos anciãos responderam que, de facto, tinham apanhado com palmatória, mastodos nós permanecemos firmes.Ent: Quantos anciãos estavam presentes dessa vez? Mukavi: Havia cerca de 30anciãos. Tinham vindo todos os chefes do Guijá. O administrador escolheu o dia 4de Dezembro para uma reunião pública em que seria permitido aos chefesapresentar as suas queixas. No dia 4 de Dezembro, os chefes de Massingir, Maba-

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lane e de outros lugares vieram e a reunião realizou-se. Escolhi um ancião de cadaum dos lugares representados para explicar as injustiças que acontecem na suaárea. Uns queixaram-se da palmatória devido à cultura obrigatória do algodão eoutros referiram que os agricultores brancos tinham posto para seu exclusivo osreservatórios que o governo tinha construído para o uso dos proprietários de gadoafricanos, criando desta maneira problemas para o nosso gado. Outros queixaram-se ainda das exigências da administração de fornecer semanalmente trabalhadorespara o xibalo.Fui o último a falar e disse: vocês, os administradores, não honram as normas dogoverno português em Moçambique porque abusam do poder que vos foi dado,causando, deste modo, sofrimento no país. Como resultado disso, os portuguesesjá não são bem vindos em Moçambique, não há lugar para vocês emMoçambique. O administrador ficou furioso, mas continuei: há moçambicanosque não voltam para casa por causa do medo do xibalo, preferindo viverpermanentemente na África do Sul. Quando os seus contratos nas minasterminam, em vez de voltarem para casa, eles viajam no máximo até à vila deGraskop5, onde assinam novos contratos e continuam a trabalhar. Estas pessoasnão regressam à casa com medo do xibalo. Havia muito sofrimento no país. Tudofoi anotado, mas nós não conseguimos causar impressão. De Janeiro a Março nãohouve nenhuma palavra sobre a reunião, e começámos a duvidar se as nossasreclamações teriam sido remetidas para as autoridades superiores. Contudo, nomesmo dia em que a reunião foi realizada, a 4 de Dezembro, tínhamos mandadosecretamente três ou quatro anciãos para consultar um advogado em LourençoMarques.Ent: Vocês enviaram esses anciãos? Mukavi: Eles foram enviados por nós, parapedir a um advogado que levasse as nossas queixas ao Governador Geral, para eletomar conhecimento dos problemas do Guijá.1 No Transvaal Oriental, na África do Sul, agora Província de (Phumalanga?).

Ent: Vocês enviaram estes anciãos sem conhecimento do administrador.Mukavi: Ele não sabia que tínhamos enviado alguns anciãos para LourençoMarques.Ent: Lembra-se do nome desse advogado? Mukavi: Não me lembro do seu nome;ele era das Canárias [Ilhas]6. Temos que perguntar a outras pessoas que nospodem ajudar a recordar o seu nome.Ent: Foi o Karel Pott?Mukavi: Não, não foi o Karel Pott. Conheci o Karel Pott quando vivia emLourenço Marques. Esse advogado ajudou-nos (muitas vezes) porque ele gostavados negros, foi desta maneira que o conhecemos. O nosso caso foi assimapresentado ao Governador Geral de Moçambique. Passado algum tempo, oadministrador foi chamado a Xai Xai, onde recebeu ordens para apresentar osdocumentos da reunião de 4 de Dezembro. Ele voltou para vir buscar essesdocumentos que nunca tencionara enviar para as autoridades. Sempre que oschefes iam perguntar se os documentos já tinham sido remetidos, o administradordizia-lhes que só seriam enviados depois de ele efectuar uma cuidadosainvestigação sobre as sérias alegações feitas pelos anciãos.

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Sentimos que tínhamos vencido desta vez porque o nosso caso tinha sido aceite eestava a ser considerado a nível nacional. Já começavam a manifestar-se algunsmelhoramentos - houve algum abrandamento na aplicação do xibalo e na culturaobrigatória do algodão: as pessoas já não eram batidas nas machambas e naconstrução de estradas, e houve um abrandamento geral na aplicação dorecrutamento para o xibalo.Ent: Em que ano foi isso?Mukavi: Isso foi em 1958 (1959). Quando entrámos no ano de 1959, não nosavistámos mais com o administrador. Ele tentou arranjar formas de me meter emproblemas mas não conseguiu. E, como o nosso caso estava agora nas mãos doGovernador Geral, o6 Mais provavelmente canarim (goês)? Havia bastantes indianos cristãos comformação em direito em Moçambique.

administrador tinha que ser mais cuidadoso. Ele não me disse nada de 1959 a1961. Em 1962 (1961) começou a guerra na Índia e os portugueses foramderrotados em Goa. Este acontecimento permitiu que eu e o administrador nosavistássemos mais uma vez porque, depois da derrota dos portugueses, pedi aosanciãos para irmos fazer uma manifestação em apoio à Índia. Contudo, os anciãostinham medo e não quiseram fazer a manifestação proposta. Decidi ir sozinho tercom o administrador e apresentar as minhas "condolências" a Portugal. Não melembro da data porque não tomei nota, mas lembro-me que era uma quarta feira.Foi numa quarta feira porque sabia que as pessoas não costumavam trabalharnesse dia à tarde, e por isso eu podia encontrar o administrador sozinho no seugabinete; e, de facto, ele estava lá. Falei sobre a situação na Índia, referindo que oGoverno Português tinha feito muito bom trabalho naquela terra (Goa); que osportugueses ensinaram muito (capacidades úteis) aos goeses: os primeiros "chefesdo Caminho de Ferro" eram goeses; os primeiros médicos "não brancos" quealguma vez vimos eram goeses. Mas, (disse), achamos surpreendente que hoje osportugueses tenham sido expulsos da Índia "Sinto muito por isso." Oadministrador estava muito satisfeito nesse dia. Perguntou-me quais eram, naminha opinião, as causas (da expulsão dos portugueses), mas prosseguiurespondendo à sua própria pergunta: "Mukavi, os americanos estão por detrásdisto; os russos estão detrás; e os chineses também. São esses povos que estão pordetrás desta agitação e exigem uma Índia unida. Esses são os povos que estão pordetrás de tudo isto."Quando lhe perguntei se era realmente essa a razão, o administrador disse "Sim,de facto!" Eu disse então que o senhor administrador devia lembrar-se que estespovos (americanos, russos e chineses) ainda não tinham terminado a sua agitação.Assim que acabassem de incitar os indianos e o povo de Damão, eles podiam virpara África fazer o mesmo. A observação causou-lhe um rude choque esubitamente ele compreendeu o verdadeiro objectivo da minha visita ao seugabinete. Ele ficou vermelho, e nós separámo-nos (sem mais nenhumaformalidade).

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Ent: Ele disse alguma coisa depois disso? Mukavi: Não disse mais nada e nósseparámo-nos. Em 1963 chegaram novidades sobre a guerra em Angola. Asnovidades sobre Angola e outros países africanos chegavam até nós. Então, umdia, o administrador pediu-me para ir vê-lo à sua casa. Isso foi no dia 18 deAgosto de 1963. Ele disse que me tinha chamado porque queria perguntar-meuma coisa. O administrador perguntou-me então: "Qual é a sua opinião acerca daconfusão e desordem a respeito da independência ~nacional" que estamos a ouvirsobre alguns países?" Eu disse: Senhor Administrador, quem sou eu para ter umaopinião. Não sou ninguém, e não estou em posição de perceber todas estasquestões complexas; estão fora do meu alcance. Terá que me perdoar porquerealmente não compreendo estes assuntos. O administradorjurou imediatamente,dando a sua palavra de honra, que não tencionava mandar-me prender (porqualquer coisa que eu dissesse). Quando eu mantive a minha posição, ele juroupela segunda e terceira vez. Quando ele deu pela terceira vez a sua palavra dehonra de que não tencionava meter-me em sarilhos, eu disse o seguinte:Todos vocês, os brancos que governaram África, falharam. Existe conflito econfusão porque vocês vieram para África por um motivo errado. Justamenteporque, quando chegaram aqui pela primeira vez e nos encontraram a vestir pelese sem habitações adequadas, vocês consideraram-nos bestas de carga que podiamtrabalhar para vocês, para os vossos filhos e para os vossos bisnetos. Tudo issoestá a acabar, Senhor Administrador. Quando vieram para África, transformaram-nos em escravos, e é por isso que o Senhor [dos Céus] está agora a condenar-vos.Vocês vieram para África por motivos errados e são culpados. Não vou falar dasituação nas outras terras porque não sei nada sobre isso, mas posso falar sobre-Gaza. Qual era a situação quando vocês chegaram a Gaza, no tempo deNgungunhana? Foi fácil para vocês capturá-lo porque fizeram-no na ausência deMaguiguane, que tinha ido "consultar" os ancestrais e procurar comida para oexército. Depois da captura de Ngungunhana oprimiram sistematicamente o povo,usando soldados ango-

lanos, que andavam de casa em casa a obrigar as nossas mulheres a lavarem-lhesos pés.O Maguiguane então apareceu e mobilizou o exército nguni em Ncayi Ncayi (XaiXai), que o seguiu para Phafula [Pafúri], onde Maguiguane lutou até morrer?.Depois disso, indicaram alguns de nós, os donos da terra, para serem chefes ourégulos, enquanto os ngunis dispersavamse e desapareciam. Isto é o que vocês, osportugueses fizeram, mas também deixarão esta terra da mesma maneira que osngunis fizeram. Depois de os ngunis partirem, vocês prenderam Mhongo eMaphophe e baniram-nos. Os ngunis, sob o domínio de Mpisanes, atravessaramos Montes Libombo e fixaram-se em Pessane, enquanto que nós, os donos destaterra, permanecemos aqui. Vocês começaram a promover costumes retrógrados nanossa cultura, e eram ainda esses aspectos negativos da nossa cultura que vocêsdiziam que tinham vindo destruir. Vocês pensaram que nós aceitaríamos tudo semresistir, e que Deus vivo nunca teria conhecimento do nosso sofrimento, mas Deusvai apoiar a nossa luta.

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E agora, Senhor Administrador, a menos que os portugueses façam o que osbelgas, os franceses e os britânicos fizeram, permitindo [às suas colónias]tomarem-se independentes e desenvolverem-se a si próprias, nunca vão ganhareste país pela força das armas. Ele [o administrador] disse: "Mukavi, você está aenganar-se a si próprio. Você está a enganar-se a si próprio, Mukavi. Veja,quando os americanos "descobriram" Mondlane e perceberam que ele era umapessoa muito inteligente, eles disseram para si próprios: agora encontrámosalguém através de quem podemos roubar Moçambique! Porquê? (Bem), elessabiam que Moçambique tem riqueza [mineral] porque os engenheirosamericanos tinham estado aqui a fazer pesquisas. Os americanos assinaram umcontrato para vir fazer mais pesquisas em Moçambique quando descobriram 29minerais diferentes no país. Nenhum destes minerais foi extraído. Moçambique,do Rovuma ao Maputo, é muito rico.1 N.E.: Maguiguane (Magigwane Khosa) morreu em Mapulanguene ao nordoestede Magude em 1897.'Tio de Ngungunhane.36

O administrador disse (então): Não tente confundir-me. Não me diga que osrussos, os americanos e os chineses virão para aqui ajudar-vos - eles virão aquipor causa dos minerais. Quando perguntei ao administrador se havia chineses eamericanos (nas ex-colónias britânicas) depois de esses países ficaremindependentes, ele disse que nós não podíamos esperar tornarmonos governantes(se os portugueses se fossem embora), porque eles (os russos, chineses eamericanos) sabiam que o país é muito rico. Pareceu-me que o administradorestava ciente do que estava a acontecer lá longe (algures em África), e eu disse-lhe então que se nos dessem a nossa independência não iríamos lutar mas, casocontrário, podíamos ir pedir apoio aos russos, chineses, etc. Foi isto que eu disseao administrador, e este foi o fim do nosso contacto, uma vez que pouco depoisele foi transferido para Mueda. Ent: Quando é que ele foi transferido? Mukavi:Em 1964. O administrador era da Silva. Ele regressou de Lourenço Marques [umdia] e chamou-me para me dizer que o Governador Geral tinha-o transferido paraMueda porque ele era considerado uma pessoa calma e paciente. Eu disse-lhe queele devia ter confiança no seu Deus. Contudo, a sua calma e paciência nãoserviram de nada, uma vez que não foi capaz de convocar e presidir nenhumareunião pública em Mueda. Lá não havia paz, e ele não foi capaz de convocarreuniões como costumava fazer aqui. Mas logo depois da sua chegada (a Mueda),adoeceu e foi transferido para Matola. Ele veio uma vez a Chókwè e perguntoupor mim, para me contar o que tinha visto em Mueda. Não vou entrar em detalhessobre isto porque levaria muito tempo. Ent: Estamos gratos pelo que nos contou,mas há outras coisas que gostaríamos de saber de si. Quando é que começou acultivar algodão?Mukavi: Comecei a cultivar algodão nas minhas machambas em 1947. O cultivodo algodão já tinha iniciado quando regressei de Antioka; comecei em 1947, commeio hectare. Nós éramos mobilizados e recebíamos instrumentos para cultivar -

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emprestavamnos charruas para o cultivo do algodão. Ent: Quem lhe pediu paraparticipar no cultivo do algodão - começou

voluntariamente por ver que os outros estavam a fazê-lo, ou alguém disse-lhe paracomeçar a semear algodão? Mukavi: Disseram-nos para cultivar - informaram-meque tinha de fazer isso, porque eu não estava muito interessado em produziralgodão. Foi um capataz chamado Monteiro de Barros quem me disse paracultivar algodão. Ele veio aqui à minha casa - ele era o encarregado do algodão9,e veio à minha casa informar que eu devia começar a cultivar algodão. Nósrecebíamos 1$50 por Kg; isso é o que eles nos davam pelo nosso algodão. Sim,nós cultivávamos algodão, mas depois começou-se a usar muita força, o quecausou grandes conflitos na região quando se tornou claro que o algodão não eranosso. O algodão já não nos pertencia. Então eles começaram por distribuir umhectare (a cada chefe de família), mas quando eles iam a uma casa e encontravamcinco mulheres, davam meio hectare a cada uma para cultivar algodão, e o chefede família recebia um hectare.Ent: Quantas mulheres é que tinha? Mukavi: Só tenho esta (apontando para umasenhora sentada). Esta era a minha machamba - aqui em volta da casa. Sim, defacto, cultivávamos o algodão, enquanto que o milho era negligenciado porque émuito difícil semear algodão e milho ao mesmo tempo. O algodão tem de sersachado (pelo menos) três vezes, e isso (cultivo do algodão) criou muitosconflitos. Nós cultivámos algodão, e em 1948 veio o Governo do Sul do Save;dali em diante Gaza deixou de ser administrada a partir de Inhambane'°, ficandosob o controlo do Governador do Sul do Save. O (novo) Governador veio fazeruma visita aqui à administração, e foi nesta ocasião que, juntamente com algunsanciãos, comecei a tentar mandar uma mensagem para o Governador, informandosobre os problemasAntónio Monteiro de Barros, Agente de Propaganda da Algodoeira do Sul doSave.o A Província do Sul do Save já existia antes de 1948, sendo governado por umintendente, enquanto que o Governador do Sul do Save estava em LourençoMarques, onde substituiu muitas das vezes o Governador Geral. Parece que apartir de 1948 Gaza foi administrada por um intendente e depois governador apartir de Xai-Xai.38

ligados ao cultivo do algodão. A reclamação devia-se ao facto de o cultivo doalgodão exigir muito trabalho e o preço pago, 1$50, ser insignificante. OGovernador tomou nota da nossa reclamação, mas isto irritou a administração ealguns dos chefes e régulos. O preço do algodão foi depois aumentado para 2$50por Kg no ano seguinte, e nós sentimos que tínhamos conseguido alguma coisa.Ent: A administração criou-vos algum problema? Mukavi: Eles chamaram-mepara me interrogar mas não me mandaram para a prisão. Interrogaram-me e eudisse-lhes o que sabia. Falei-lhes dos nosso problemas e do sofrimento, dizendoque não era apenas eu quem sofria mas toda a região. A administração deume umaviso dizendo "tome cuidado! Não faça esse tipo de coisas novamente". Não

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obstante, sentimos que tínhamos conseguido um importante progresso porque opreço do algodão foi aumentado para 2$50, e este preço manteve-se em vigor até1958. De facto, pensámos que era um feito revolucionário! Em 1958, o preço foiaté 3$80 por Kg mas, nessa altura, as pessoas estavam desiludidas e tinhamcomeçado a produzir cada vez menos algodão porque achavam que estavam a servigarizadas quando o algodão era pesado durante a venda. Eles roubavam-nos, epor isso não tínhamos nenhum benefício material por mais que trabalhássemos.Ent: Ouvimos dizer que, por causa desta vigarice, os produtores de algodãorecorriam à várias artimanhas, como por exemplo, colocar seixos ou abóboraspequenas dentro do saco de algodão, para aumentar o peso. Você recorreu a isso?Mukavi: Nunca fiz, não fiz isso.Ent: Porque não?Mukavi: Eu? Nunca sonharia em fazer isso! Eu nunca recorreria a tais artimanhasmesquinhas. Estou a dizer-lhe a verdade; nunca pus pedras nos meus sacos dealgodão na tentativa de aumentar o peso. Tal como dizia, as pessoas passaram adetestar (tanto) a cultura do algodão que começaram a produzir cada vez menos.Isso foi por volta de 1960. Em 1959 [?], depois do meu regresso de uma visita aomeu filho que trabalhava em Nampula, comecei a organizar uma delegação deanciãos para ir ter com o "Chefe do Algodão" para discutirmos o problema doalgodão - para lhe dizer que as pessoas

não queriam cultivar mais algodão. Alguns régulos, como o HIomani e o Ubisse,deram-me o seu consentimento e apoio para abordar a administração.Ent: Quem era o seu régulo?Mukavi: O meu régulo era o Hlomani. Eles (os régulos) acompanharam-me até aoChefe do Algodão, de Oliveira (?) que vivia em Chókwè. Eu fui o porta-voz quetransmitiu a mensagem de que as pessoas não queriam mais continuar a cultivaralgodão. Não se podia esperar que as pessoas continuassem com o cultivo quandonão recebiam nenhum benefício do seu trabalho. Não houve resposta (do Chefedo Algodão) até o fim de 1959. 1960 veio e foi, mas ainda não havia resposta. Em1961 fui sozinho ter com o administrador e perguntei-lhe "Que tipo de pessoassão vocês, funcionários do governo português, que se preocupam apenas com avossa família e amigos, e não com os negros? Estão a esquecer-se de que foi Deusquem colocou os negros nas vossas mãos a fim de eles trabalharem para vocês?"O administrador ouviu em silêncio, mas estava surpreendido por aquilo que eudisse. Ele perguntou-me então donde é que vinham estas minhas ideias. Oadministrador apreciou a minhas palavras porque mais tarde enviou um tractorpara vir lavrar a minha machamba - a minha machamba de algodão. Esta foi umademonstração prática de que ele apreciou as minhas palavras. Ele (realmente)disse que ninguém lhe tinha alguma vez dito algo como aquilo, que as minhaspalavras o tinham comovido, e que tentaria fazer alguma coisa em relação àsqueixas. (Depois) o preço do algodão subiu para 4$00 por Kg." Ent: A ajuda como tractor foi só para si? Mukavi: Ele só me ajudou a mim. Ele fez isso para meagradecer pelas palavras que lhe tinha dito. Ele disse que vinha agradecer-mepelas coisas que eu lhe disse porque é muito raro as pessoas terem coragem para

Page 24: 11,11M;i'i I 1111 I$, LII Li - JSTORpsimg.jstor.org/fsi/img/pdf/t0/10.5555/al.sff.document.crp2b20005.pdfmanutenção da linha férrea. Trabalhei aqui durante trêsanos, ganhando 450$00

dizer coisas como aquelas. Mais tarde o administrador ficou doente, mas o cultivodo algodão nunca melhorou."Com o fim do indigenato em 1960 mudou também o regime de cultivo dealgodão, levando eventualmente a Algodoeira do Sul do Save a desistir da suaconcessão. Sobre as mudanças do regime ver Hedges 2002. 40

Ent: Você disse que o preço do algodão subiu para 4$00 por Kg? Mukavi: Opreço do algodão foi aumentado para 4$00 o Kg (mas) a produção não melhorou.O administrador foi então substituído por outro (que tinha a alcunha) deMatanato. Ent: Qual era o seu nome europeu? Mukavi: Não me lembro do seunome verdadeiro. Ent: Não era Manuel Matos?Mukavi: Não, era M-a-t-a-n-a-t-o12. Ent: O que traz problemas! [Mensageiro deproblemas]. Mukavi: Sim, foi o administrador "Bulgare"'3 Ele causou muitosofrimento nesta zona. Muitas pessoas foram presas por não poderem pagar oimposto de palhota e (mesmo) os chefes foram obrigados a trabalhar. Por estaaltura havia muitos inimigos que estavam à procura de um pretexto para me meterem problemas. Certa vez, houve um colono que tentou aumentar a sua manada degado usando artimanhas com certos criadores africanos. Esse homem decidiu ir aPortugal (de férias), mas antes de partir, pediu aos irmãos Mabunda, filhos deNjanganja, para cuidarem do seu gado enquanto ele estivesse fora. No seuregresso após um mês de férias em Portugal, o colono foi ter com o administradorBulgare e apresentou queixa contra os irmãos Mabunda por roubo. Os dois jovensforam presos e enviados para a prisão. Entretanto, a polícia, chefiada pelo políciaMaringo, foi à casa dos Mabunda e levou cinco cabeças de gado que, segundo ocolono, haviam sido roubadas pelos dois irmãos. Como eu já era conhecido nazona, a família Mabunda abordou-me para intervir. Como fui mal recebidoquando fui ao gabinete do administrador para fazer algumas averiguações sobre ocaso, decidi levar o assunto para Xai Xai (a capital provincial), ao governador,cujo nome esqueci. Quando o administrador recebeu a convocatória para ir a XaiXai por causa deste problema e descobriu que tinha sido eu quem tinhacomunicado o assunto a Xai Xai, jurou que (mais cedo ou mais tarde) havia detratar de mim.12 Segundo uma nota de J.P. Borges Coelho (Rafael 2001) o administrador SaulDias Rafael tinha a alcunha de Matanato. ,3 João da Luz Bourgard. Ele veioprovavelmente em 1969 (cf. Anuário da Província Moçambique 1970-71)e aindaestava lá em 1971.

Mais tarde o meu caso foi reportado à PIDE, com a alegação de que eu estava adesencorajar as pessoas de cultivar algodão em Guijá, mas não fui preso.Contudo, ouvi dizer que o problema tinha sido apresentado à PIDE. Uma vez,durante uma visita ao meu filho, Luís, em Xai Xai, fiquei a saber que o chefe daPIDE tinha atacado violentamente um homem que foi parar ao hospital, onde omeu filho o tratou. O homem, chamado Ghelezi, era um grande caçador do Guijá.Quando o chefe da PIDE descobriu que o Mukavi (o meu filho) trabalhava nohospital, chamou-o ao seu gabinete e interrogou-o sobre o cultivo de algodão noGuijá. No decurso deste interrogatório, durante o qual o Luís alegou ignorância

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acerca da questão, o homem da PIDE disse-lhe que ele não tinha problemanenhum, pois de facto estava era à procura de mim. Quando o Luís lhe disse queeu estava na cidade naquele momento, o chefe da PIDE deu instruções para eucomparecer no seu gabinete às 9.00 horas da manhã seguinte. Cheguei nogabinete na hora indicada, para responder a perguntas sobre o estado do cultivo doalgodão no Guijá. O chefe da PIDE perguntou-me o que é que eu sabia acercadisso. A minha resposta foi que, de facto, o cultivo do algodão estava a "matar"pessoas no Guijá; que algumas tinham sido presas por falsas acusaçõesrelacionadas com o cultivo de algodão, e que jaziam nas cadeias da PIDE. Osadministradores oprimiam as pessoas e causavam um sofrimento indescritível nasfamílias. O chefe da PIDE ouviu cuidadosamente e então respondeu: Mukavi,disse, ouvi dizer que, embora algumas pessoas como eu tenham nascido emMoçambique, serão um dia expulsas do país. Também ouvi dizer que a luta estáagora perto de Cahora Bassa e que está a ser feita uma tentativa para destruir abarragem. Eu nasci em Vila Pery. Eu disse-lhe que era verdade, que um dia eleteria que deixar o país. Esta resposta surpreendeu-o, e ele então perguntou-meonde é que eu tinha nascido e onde é que vivia. Ele tomou notas enquanto eufalava, e prometeu visitar-me em casa. Voltei para casa no dia seguinte, que eraum domingo, e o chefe da PIDE apareceu na minha casa no dia seguinte, ondeencontrou a minha mulher sozinha, visto que eu tinha ido ao hospital. A minha

mulher apanhou um grande choque quando o homem se apresentou, e mandouimediatamente informar a todos os nossos parentes (para avisá-los sobre o quepodia estar iminente). O homem foi-se embora, dizendo que voltaria para me verpor volta das 16.00 horas desse mesmo dia.Quando estava a sair do hospital do Guijá, ouvi subitamente um chiar de rodas aomesmo tempo que um carro parava subitamente. O chefe da PIDE saltou do carroe disse-me que acabava de vir da minha casa, onde a minha mulher lhe tinha ditoque não sabia para onde é que eu tinha ido. Eu perguntei-lhe, de passagem, se eleesperava realmente que a minha mulher revelasse o meu paradeiro! Quando eleme perguntou se eu estaria disponível para recebê-lo em casa à tarde, eu disse-lheque não tinha escolha senão obedecer à sua ordem e ficar à sua disposição,mesmo que tivesse outras coisas a fazer.O chefe da PIDE chegou às 14.00 horas, num carro conduzido por um motorista.Ele estava para entrar na minha casa quando eu o detive e lhe disse: Estou muitofeliz por receber o chefe da PIDE em minha casa, "viva o Gabinete da PIDE!" Éuma grande honra para um pobre homem como eu ter a sua visita. Quando o vejo,eu (sintome como) se estivesse a ver (o próprio) Infante Dom Henrique e o Beira-Mar. Os portugueses foram enviados para viajar e atravessar os oceanos à procurado negro que necessitava da sua ajuda! Mas, veja, (há) outros que estão paratomar as vossas colónias. (Embora) vocês ainda tenham Moçambique, Angola eGuiné Bissau, estas hão-de ir, senhor chefe! Isto foi em 1961, e eu disse-lhe queos portugueses nunca ganhariam a luta armada, e que seria melhor começarem anegociar com os nacionalistas negros. O oficial da PIDE começou então a fazer-me perguntas sobre o cultivo do algodão, e (mais uma vez) expliquei-lhe asituação. Quando ele disse que tinha sido informado de que havia indivíduos que

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estavam a organizar outros para resistir à cultura obrigatória do algodão, eu disse-lhe: chefe, porque não me diz directamente que estou a ser acusado de tal delito?Eu disse-lhe que alguns anciãos e eu fomos falar com o encarregado do algodãoem 1959, e de novo em 1961. Se ele quisesse qualquer informação sobre essesencontros,

disse-lhe, podia obtê-la com esse funcionário. Ele estava particularmenteinteressado no preço do algodão, e depois de eu lhe explicar a situação, elepareceu concordar comigo que os produtores não recebiam o preço justo pelo seutrabalho. Antes de se ir embora, perguntou-me se eu podia vender-lhe algunspatos, e eu vendi-lhe dois.Ent: Lembra-se do nome do funcionário? Mukavi: Não me lembro do seu nome,mas devem tê-lo no Xai Xai. Ele voltou para a minha casa em Agosto,acompanhado pelo encarregado do algodão. Eu estava ocupado a construir aquelacabana ali quando eles chegaram. A sua visita fez-nos ficar inquietos ficámos commedo. Mas o chefe da PIDE assegurou-me que não havia nada a temer, e quetinha trazido o outro homem para que eu pudesse explicar-lhe pessoalmentealguns dos problemas relacionados como o cultivo do algodão. Eu disse-lhe quetinha ficado muito aliviado ao ouvi-lo dizer que não havia problemas, porqueestas visitas significavam sempre perigo. Seguiu-se uma curta conversa, durante aqual percebi que o encarregado do algodão era o mesmo homem que uma vezcorrera comigo do seu gabinete quando fui lá para encontrar um homem chamadoMhlayeli, que tinha sido preso. Ele evitou que eu visitasse Mahlayeli com ajustificação de que este não tinha nenhuma relação comigo. Quando ele veio paraa minha casa também me reconheceu, mas deu a impressão de estar contente -como se nunca tivesse acontecido nada de desagradável entre nós. (Ascircunstâncias em que Mukavi se encontrou com o encarregado do algodão,quando foi rudemente tratado, foram as seguintes): Mukavi: O administrador,(senhor) "Bulgare"'4, aceitou suborno de um colono chamado Correia que viviaem Chibabela, o que permitiu que este alargasse a sua machamba até às terras doGuijá, que pertenciam aos Mabunda. Este terreno roubado foi depois vedado,impedindo o acesso aos donos. Os chefes de Mabunda não haviam'4 N.E.: João da Luz Bourgade. Em 1971 havia histórias de burla, extorsão desuborno a cantineiros indianos, etc. que se contaram entre funcionarios LourençoMarques sobre este administrador.44

sido consultados antes de o administrador dar o terreno ao colono português.Quando se pediu ao administrador que explicasse por que razão o terreno tinhasido dado ao colono, ele disse aos Mabunda que esse terreno tinha sido compradoao governo. Os Mabunda decidiram então impedir o colono de entrar na área efazer uso da terra. Em resposta a esta acção, 6 homens, incluindo o seu chefe,foram presos e acusados de "terrorismo", tendo sido enviados para Xai Xai, ondeforam encarcerados como criminosos. O administrador alegou efectivamente queos Mabunda tinham tentado matar o Correia, o colono, que tinham danificado oseu tractor e ameaçado matar o condutor que estava a tentar abrir uma nova

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estrada na terra em disputa. Ele alegou ainda que, quando o abordaram, os 6homens estavam armados com lanças e pangas, tendo ameaçado de o matar a eletambém.Depois da detenção e prisão dos 6 homens, os Mabunda chamaramme para tentarajudar. Eu disse-lhes que o caso estava na PIDE e já não era possível ninguémintervir e prestar ajuda. Mas, mesmo assim, ganhei coragem e abordei asautoridades. A resposta que recebi quando perguntei sobre os homens presos foi: "...aqueles homens são criminosos - são terroristas. (Eles) queriam assassinar oCorreia; queriam assassinar o administrador", e queriam matar o condutor dotractor. (Eles explicaram que, de maneira nenhuma) o Correia tinha intenção dealargar a sua machamba para dentro do Guijá - os que demarcaram o terrenotinham cometido algum erro. Chamei a atenção para o facto de (este era aindaoutro caso) as pessoas estarem a ser incriminadas pelo administrador com base emfalsas acusações. Pedi que o governo enviasse um agrimensor para o Guijá paraverificar e determinar a extensão da ocupação ilegal da terra dos Mabunda peloCorreia. O agrimensor que foi enviado verificou que o Correia havia ocupadoilegalmente cerca de 20 hectares de terra que pertenciam a Guijá (Reserva). Masnão houve resposta sobre quem o tinha autorizado a ocupar aquela terra. Depoisdisso, as mulheres dos presos foram proibidas de visitar os seus maridos. Elasperguntaram-me se podia ajudar, e eu viajei com elas para Xai Xai para falar como chefe da PIDE. Pedi-lhe para considerar a libertação de seis homens que não sóestavam presos

sob a falsas acusações, como também durante os três meses de encarceramentonão lhes tinha sido permitido ter roupa limpa de casa. Foi durante esta reunião queo chefe da PIDE confidencioume as conclusões do agrimensor (que o Correiatinha penetrado muito na área de Guijá). Ele prometeu-me que os homens seriamlibertos no devido momento, e que a demora da sua libertação devia-se ao factode ser necessário tratar o caso com cautela, porque autoridades superiores - oadministrador e o Governador Geral estavam envolvidos no assunto. Ele disse queera importante que a posição do administrador não prevalecesse sobre a doGovernador Geral. Os homens foram libertos na devida altura e eu salvei a terra(!)Há muito mais para dizer mas temos que parar por aqui. Ent: Conhece algumaspessoas que resistiram à cultura obrigatória do algodão fervendo as sementes eque depois abandonaram o país para se fixarem na África do Sul? Mukavi: Ah!Os que abandonaram o país são os que viviam na fronteira, e foram-se embora porcausa da cultura obrigatória do algodão.Ent: Viviam na fronteira?Mukavi: As pessoas de Massingir. Elas sofreram e algumas fixaramsedefinitivamente na África do Sul. Os anciãos de Massingir estavam presentes nareunião de 1958; eles sofreram connosco. Ent: Gostaria que voltasse um poucoatrás, para a época em que trabalhava para a família francesa em LourençoMarques. Teve contacto, nesse tempo, com a Associação Negrófila; participounas suas reuniões?Mukavi: O Instituto Negrófilo começou a existir durante a minha estadia emLourenço Marques.

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Ent: Você era membro do Instituto? Mukavi: Era, e depois fiz propaganda peloInstituto em Gaza. Ent: Fez propaganda?Mukavi: Fiz propaganda em Chibuto, Bilene Macia e noutras partes. Ent: Haviaoutras pessoas que o ajudavam a fazer propaganda do trabalho do Instituto?Mukavi: Não aqui.Ent: Não aqui, mas (em qualquer outra parte) em Gaza?

Mukavi: Em Gaza - fui o primeiro em Gaza. Ent: Não havia problema nem perigoem fazer este trabalho de propaganda para esta organização? Mukavi: Não haviaproblemas; não havia perigo porque o governo não tinha proibido as pessoas de setornarem membros desta organização.

MINDAWU BILA[Nasceu ca. 1910]Nota do Editor:Parece ter sido um dos poucos régulos de origem nguni. O nomeZava é o de um importante induna de Ngungunyane que era responsável porMandlakaz, a poyoação de Ngungunyane, éom a sua população e o seu gado.Ent: Onde nasceu?Bila: Nasci aqui (Guijá).Ent: O que é que fazia quando era jovem? Bila: Na minha juventude, as raparigaseram ensinadas a trabalhar na machamba, a pilar milho, cozinhar e a tratar dacasa. Isto é o que eu fazia quando era jovem. A úiinha mãe deu-me uma enxada edisse-me para ir para a machamba; deu-me um cântaro e disse-me para ir buscarágua ao rio, e deu-me um pilão e disse-me para pilar milho. Ent: E desta maneiracresceu até ser uma mulher, e ter de se confrontar com a situação colonial. O queé que nos pode dizer acerca dessa situação?Bila: Sim, "vi coisas" durante o governo dos portugueses. Fui uma vez presa elevada para a casa do régulo, onde éramos obrigadas a trabalhar nas suasmachambas e a maticar a sua casa. Nós maticávamos a casa do régulo enquanto asmulheres dele ficavam sentadas de braços cruzados, sem fazer nada. Lembro-mede uma experiência terrível quando o meu irmão se casou. A data da festa tinhasido marcada, e eu fui para a casa dele de manhã muito cedo, para ajudar nospreparativos. Ia ser uma grande festa e eu estava ansiosa por que chegasse essaocasião. O meu marido e alguns dos seus amigos seguiriam mais tarde, no fim damanhã, uma vez que tinham algumas coisas a resolver primeiro em casa. Estavaquase tudo pronto quando chegou uma mensagem a dizer que o meu marido e osamigos não viriam ao casamento porque tinham sido capturados numa rusga parao xibalo. Eles estavam, na altura, na administração à espera do transporte que irialevá-los para os respectivos lugares onde iriam cumprir o xibalo. Eu estavagrávida na altura, e fiquei muito abalada. Não havia tempo a perder. Arrumeialguma comida e pus-me a andar para a

administração, na esperança de que ele pudesse ainda lá estar para poder comeralguma coisa antes de o levarem para longe. Chorei todo o caminho. Como estavagrávida, não podia andar depressa, e estava a chorar. O meu marido teria

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desaparecido sem nós sabermos nada sobre isso se não tivesse um irmão atrabalhar perto da administração, que o viu entre o grupo que estava a serconduzido na cidade por polícias armados. Foi o meu cunhado que mandou amensagem para mim através de uns rapazes que estavam a brincar ali perto.Cheguei antes de ele ser transportado, e conseguimos trocar algumas palavras.Entreguei-lhe a comida que trazia e voltei para casa. Eles foram levados para oxibalo, mas alguns fugiram depois, entre eles o meu marido.Ent: Para onde é que os levaram? Bila: Eles levaram-nos para aquele sítio - comoé chamam agora? Namaacha, é para lá que os levaram. Ent: Que tipo de trabalho éque eles faziam lá? Bila: Não sei o que eles faziam.Ent: O trabalho devia ser tomar conta de gado ou ajudar na construção da cidade.-Bila: Não sei, mas eles fugiram e foram para a África do Sul. Ent: Como é quesoube que eles tinham fugido? Bila: Depois de eles fugirem foram passar a noiteem casa de "parentes" (amigos), e tivemos notícias através destas pessoas. O meumarido foi para a Africa do Sul, mas depois regressou a casa: andava doente, emorreu pouco depois. Depois disso veio a cultura obrigatória do algodão, quecausou grande sofrimento. Ent: Antes de continuar a falar da cultura obrigatóriado algodão, pode dizer-me o nome do régulo que a forçou a trabalhar em suacasa?Bila: Foi o régulo Zava2.Ent: Porque razão vocês eram obrigadas a trabalhar para o régulo? Bila: Nós nãotínhamos feito nada de errado: no governo desse tempo, o régulo tinha direito amão-de-obra gratuita: todas nós2 "Ante" pronúncia local de "Até". 50

tínhamos que ir "ajudar" o régulo enquanto as mulheres ficavam sentadas semfazer nada.Ent: Quer dizer que todas as mulheres deviam ir trabalhar para o régulo sempreque ele exigisse, ou isso era apenas exigido a certas mulheres devido adeterminadas circunstâncias? Bila: Todas as mulheres estavam sujeitas a seremchamadas para trabalhar, sobretudo aquelas cujos maridos estivessem na Áfricado Sul e tivessem impostos atrasados. Em: Obrigavam-vos a ir trabalhar para orégulo porque os vossos maridos estavam na África do Sul e não tinham pago oimposto? Bila: Não ouviu o que eu disse? Eu disse que toda a gente devia irtrabalhar para o régulo sempre que fosse chamada. Durante a época de lavrar aterra, a seguir às primeiras chuvas, todos os homens e mulheres tinham que irprimeiro lavrar as machambas do régulo antes de irem para as suas própriasmachambas. Os homens usavam a charrua, e nós seguíamo-los atrás lançando asemente. Ent: O Zava tinha machambas grandes? Bila: Sim, ele tinha machambasenormes. Ent: Uma vez que o Zava fazia as pessoas cultivarem as suasmachambas, ele fazia festas e convidava as pessoas depois da colheita?Bila: Nunca! Ele nunca nos deu comida. Nós não só cultivávamos as machambas,como também sachávamos e fazíamos a colheita. Mas não recebíamos nada pelonosso trabalho; ele ficava com toda a colheita.Ent: E acerca da cultura obrigatória do algodão - qual foi a sua experiência?

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Bila: Integrei-me na cultura obrigatória do algodão, e nós sofremos.Trabalhávamos sob a supervisão rígida dum capataz insensível que nos chicoteavapela mais pequena infracção às suas ordens. Por exemplo, exigiam-nos quequeimássemos os caules do algodão depois da colheita, mas alguns destescapatazes não nos davam tempo para os caules secarem antes de seremqueimados. Trabalhávamos duramente mas nunca nos pagavam o preço certo pelonosso algodão. Como resultado, chegou uma altura em que achámos que erademais e parámos de cultivar algodão para os colonialistas.

Ent: Você pessoalmente teve de cultivar algodão obrigatoriamente, ou fê-lovoluntariamente?Bila: Eles disseram que todos tínhamos que cultivar algodão e que todo o dinheiroganho seria nosso. Pensámos que esta era uma boa ideia, e decidimos cultivar oalgodão - "para fazer dinheiro." Contudo, compreendemos logo que, embora nostivéssemos voluntariado para produzir algodão, eles estavam sempre sentadosatrás de nós, empunhando o chamboco, e forçando-nos a trabalhar. Ent: De quetamanho era a sua machamba de algodão? Bila: Eu era uma boa produtora demilho, amendoim e feijão, e tinha uma machamba separada para cada uma destasculturas. Então, para além destas, acrescentaram uma machamba de algodão, queeu tinha que cultivar sob vigilância. Ent: Deve ter passado por um grande conflitoentre ter que cuidar das suas culturas alimentares, por um lado, e da machamba dealgodão por outro.Bila: Uma pessoa acordava muito cedo de manhã, quando ainda estava escuro, etrabalhava na machamba de algodão, para depois ir, mais tarde, tratar das suaspróprias machambas. Depois de fazer isso tudo, a pessoa não podia descansarsegura de que podia ir para casa e almoçar, sem que o temível capataz aparecessepara dizer que não estava satisfeito com a forma como a pessoa tinha trabalhadona machamba de algodão. O seu almoço podia ser então interrompido porque istosignificava que a pessoa tinha que interromper tudo o que estivesse a fazer eregressar à machamba, com ele a seguir atrás. Ent: O que é que aconteceurealmente naquele dia em que vos bateram?Bila: Quando eles vieram à minha machamba de algodão nesse dia, notaram queeu já havia queimado alguns dos caules secos, deixando os que estavam húmidospara secarem. Perguntaram-me porque é que não tinha queimado todos os caules,mandaram-me deitar fogo nos caules que estavam ainda húmidos. Fiz isso, e oscaules fizeram um ruído "fiti, fiti, fiti", antes de se apagarem. Sentei-me eobservei enquanto (o Monteiro de Barros, encarregado do algodão) andava arecolher bocados de caules secos que ele conseguia apanhar. Depois de recolhercaules suficientes, colocou-os por cima do monte de

caules húmidos. Todo o monte pegou fogo e ficou logo reduzido a cinzas. Entãoele aplicou o chamboco! Ent: Foi o Monteiro que a chicoteou pessoalmente? Bila:Sim, isso era opressão! Ele disse que me estava a bater para me dar uma lição!Ent. E esta foi a sua experiência com a cultura obrigatória do algodão, eh!Bila: Esta foi a minha experiência pessoal com a cultura obrigatória do algodão.Quando chegou o novo governo, quando nos tornámos independentes, compus

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uma canção em recordação do sofrimento por que tínhamos passado. Sabe, nóssofremos a fazer trabalho forçado. Durante o xibalo, trabalhámos na construçãode estradas, a carregar areia.Ent: E isso era xibalo?Bila: Nós trabalhámos naquela estrada, a estrada de Chibuto, e também naquelaoutra, a que vai para Mabalane. Ent: Quantos meses trabalhou na construção deestradas? Bila: Eles não contavam em termos de meses porque não era esse tipode xibalo (com um contrato específico). Toda a gente fazia o trabalho de estradas- todos foram chamados para trabalhar na construção de estradas sem pagamento.Hoje, depois da independência, a vida é melhor porque já não estamos maissujeitos ao xibalo. Quando os homens voltavam das minas, tinham que pagar100$00 ao régulo - "o pão do régulo". Sim, todos os magaízas [trabalhadoresemigrantes regressados], tinham de pagar 100$00 ao régulo e, todavia, o régulonão fazia nada por eles. Os magaízas que não pagassem esta quantia eram levadospara o xibalo [durante o tempo de férias]. Nesse tempo, se alguém abatesse umboi, era obrigado a cortar uma porção de carne e mandá-la ao régulo. Mas tudoisso pertence ao passado - agora estamos livres! Ent: E a canção que disse quecompôs na altura da independência? Bila: A canção diz, "Nós dizemos obrigado aMachel"

Canção: Siya Benga MacheleMusumi: Tanani núta vona, Siya bonga Machele zacha Vapangalati: Siya bongaMachele zacha Mu: Bongani Machele Vap: Siya bonga Machele zacha Mu:Bongani hinkwavo Vap: Siya bonga Machele zacha Mu: Bongani Moisés (tatanawa Samora) Vap: Siya bonga Mac hele zacha Mu: Na mamani n'waMathongaVap: Siya bonga Machele zachaMu: Va nga tswala xilwati Vap: Síya bonga Machele zacha Mu: Xi nga lwela tikoVap: Siya bonga Machele zacha Mu: Ku sukela Rovuma Vap: Siya bongaMachele zacha Mu: "Ante2" Ka Maputsu Vap: Siya bonga Machele zachaMu: Tolweni wa masiku Vap: Siya bonga Machele zacha Mu: A hi khomaxipadoro Vap: Siya bonga Machele zachaMu: Xa ku tala núsava Vap: Siya bongaMachele zacha Mu: Hi ya dhiba le-e Vap: Siya bonga Machele zacha Mu: Gha-hontlo-o! Vap: Siya bonga Machele zacha

Tradução portuguesa: Obrigado a MachelRegente: Venham ver, nós dizemos obrigado a Machel Coro: Nós dizemosobrigado a Machel Regente: Digam obrigado a Machel Coro: Nós dizemosobrigado a Machel Regente: Digam obrigado a Moisés (pai de Samora) Coro: Nósdizemos obrigado a Machel Regente: Digam obrigado à Mamã N'wa Mathonga(mãe de Samora) Coro: Nós dizemos obrigado a Machel Regente: Porque geraramum combatente Coro: Nós dizemos obrigado a Machel Regente: Que lutou pelopaís Coro: Nós dizemos obrigado a Machel Regente: Do Rovuma Coro: Nósdizemos obrigado a Machel Regente: Ao Maputo Coro: Nós dizemos obrigado aMachel Regente: Anteontem, nós transportávamos o carrinho de mão Coro: Nósdizemos obrigado a Machel Regente: Carregado de areia Coro: Nós dizemos

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obrigado a Machel Regente: E descarregávamo-lo acolá Coro: Nós dizemosobrigado a MachelObservação: Esta é uma canção simples, leal, de exaltação ao herói, Samora,assim como aos seus pais. Os membros da comunidade interpretaram-na com umprofundo orgulho emocional. A outra canção que Bila executou na entrevista eraintitulada "Agostinho, meu marido". Bila admitiu que não tinha sido ela acompositora desta canção:

Canção: Magostino, nuna wa minaMu: I Magostino, nuna wa mina, mamani Vap: Ee, ha muke kaya Mu: A n'wanawa rila a rilaka bava, mamani Vap: Ee, ha muke. kaya Mu: Nzi ta muvona ka yinepapayi wa wena, mamani Vap: Ee, nuna wa mina Mu: A África do Sul a wahlweli va hlWela ka Mpfumo kunga ni Murhonga, mamani Vap: Ee, nuna wamina Mu: Wa xisuti xa ku tani xi fana ni kwembe, mamani Vap: Ee, nuna wamina Mu: Muheti wa mina ya nuna wa mina, mamam Vap: Ee, nuna wa minaMu: Se ndzi andiala mubedwa ku nghena nkolombwe, mamani Vap: Ee, nuna wamina Mu: Ndzi katinga timanga ti dyiwa hi khondlo, mamani Vap: Ee, nuna wamina Mu. Ndzi sweka vuputsu byi huma hunguva, mamani Vap: Ee, ha mukekaya Mu: Se ndzi andIala masangu ma dyiwa hi muhlwa, maman Vap: Ee, nunawa mina Mu: Se ndzi ta ku yini nuna wa mina,. mamani Vap: Ee, nuna wa minaMu: Oliveira a wu ndzi-sizi nuna wa mina, mamam Vap: Ee, nuna wa mina Mu:ndzi ta khwela xo xibomba ndzi ta fika ka Mpfumo, mamani Vap: Ee, nuna waminaMu: Loko se a fika nsati wa kona, mamani Vap: Ee, nuna wa mina Mu: Ite se wavuya yele wanuna a cuvukisa Vap: Ee, nuna wa mina Mu: Ali: "U huma kwini kewena ke?"

Vap: Ee, nuna wa mina Mu: "Wo lava yini?" Vap: Ee, nuna wa mina Mu: Aku:"A vana va vabya nuna wa mina, mamani Vap: Ee, nuna wa minaMu: A malin dza yi pfumala, nuna wa mina Vap: Ee, nuna wa mina Mu: aku: "Sekutani u sungulekile sweswi" Vap: Ee, nuna wa mina Mu: Leswi tatana ku lavekaleswako u famba na mina Vap: Ee, ha muke kaya Mu: Ndzi ta ku mangalelahikusa a wu lavi ku muka kaya Vap: Ee, nuna wa mina Mu: Se vaku: "Ha, heewena, famba uya mu mangalela loyi" Vap: Ee, nuna wa mina Mu: Aku: "Hayi,ndzi sizi, ndzi swi tiwisisile nkata mina" Vap: Ee, nuna wa mina Mu: Se kutani hita famba swoswi Vap: Ee, ha muke kaya Mu: Hi ta famba mundzuku Vap: Ee,nuna wa mina Mu: Kambe ndza ha ta tlhela ndzi vuya Vap: Ee, nuna wa minaMu: Loko se fambe va fike laha kaya Vap: Ee, nuna wa mina Mu: A kumaleswaku impela ku hluphekile Vap: Ee, nuna wa minaMu: O fika o mubvu nsati wa kona, aku a hi fambe Vap: Ee, nuna wa mina Mu:Va famba va fika le Xilungwini Vap: Ee, ha muke kaya Mu: A kuma leswakuheyi, luya wa xisuti xa ku tani anga ha mulavi Vap: Ee, nuna wa mina Mu: Seaku: "Famba, se kutani a ndzi hluphiwa I wena"

Vap: Ee, nuna wa mina Mu: 'U ndzi hetela mali yanga ni nsati wa mina ndzimutshika" Vap: Ee, nuna wa mina

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Mu: ndzi hetile, swo-o-o!Tradução portuguesa: Agostinho, meu maridoRegente: É o Agostinho meu marido, oh, mãe! Coro: Sim, vamos para casaRegente: A criança está a chorar pelo pai, oh, mãe! Coro: Sim, meu marido,Regente: Eu não encontro o teu pai, oh, mãe! Coro: Sim, vamos para casa,Regente: Eles não demoram na África do Sul, demoram em Lourenço Marquesonde há uma mulher ronga! Coro: Sim, meu marido Regente: Que tem umasancas redondas como abóboras, oh, mãe! Coro: Sim, meu marido Regente: Queesbanja o dinheiro do meu marido Coro: Sim, vamos para casa Regente: Eu faço acama mas é o lagarto que nela se deita, oh, mãe! Coro: Sim, meu marido Regente:Eu torro amendoim mas é comido pelos ratos, oh, mãe! Coro: Sim, meu maridoRegente: Eu faço bebida mas fica insípida, oh, mãe! Coro: Sim, vamos para casaRegente: Eu estendo a esteira no chão mas esta é comida pelas térmitas, oh, mãe!Coro: Sim, meu marido Regente: O que é que eu posso fazer meu marido, oh,mãe! Coro: Sim, vamos para casa Regente: Oliveira (companhia de transportes)ajude-me por favor Coro: Sim, meu marido Regente: Vou apanhar omachimbombo e ir para Lourenço Marques, oh, mãe!

Coro: Sim, vamos para casa Regente: E quando a mulher chega a LourençoMarques, oh, mãe! Coro: Sim, meu marido Regente: Quando o marido voltou e aviu, oh, mãe! Coro: Sim, vamos para casa Regente: Ele diz: ", donde é que vens?"Coro: "O que é que queres?" Regente: Sim, vamos para casa Coro: Sim, meumarido Regente: Ela diz: "As crianças estão doentes, meu marido" Coro: Sim,meu maridoRegente: Não tenho dinheiro, meu marido Coro: Sim, vamos para casa Regente:Ele diz: "Já começaste (com os teus problemas)" Coro: Sim, meu marido Regente:"Começaste agora" Coro: Sim, vamos para casa Regente: Ela diz: "Pai, se turecusares vir comigo" Coro: Sim, meu marido Regente: "Eu vou queixar-me" (àsautoridades) Coro: Sim, meu marido Regente: "Porque tu não queres ir para casa"Coro: Sim, vamos para casa Regente: Eles (os vizinhos) dizem: "Hei, vaiapresentar queixa" Coro: Sim, meu marido Regente: Ele disse: "Por favor, tenhapaciência; em compreendi, minha querida mulher" Coro: Sim, vamos para casaRegente: Ele disse: "Podemos ir amanhã" Coro: Sim, meu marido Regente: Eledisse: "vamos partir amanhã" Coro: Sim, vamos para casa Regente: Mas eu tenhoque regressar (para a cidade) Coro: Sim, meu marido

Regente: Quando chegam a casa Coro: Sim, meu marido Regente: Encontrou umasituação de grande pobreza Coro: Sim, vamos para casaRegente: Ele diz à sua mulher: "vamos partir" Coro: Sim, meu marido Regente:Eles voltam para a terra dos brancos (cidade) Coro: Sim, vamos para casaRegente: Ele descobre já que não gostava mais daquela que tinha ancas deabóbora Coro: Sim, meu marido Regente: Ele disse: "Vai-te embora; fizeste-mesofrer!" Coro: Sim, vamos para casa Regente: Tu esbanjaste o meu dinheiro efizeste-me abandonar a minha mulherCoro: Sim, meu marido

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Mindawu Bila: A história acaba aqui. Melisina Nhlongo: Muito bem, minha tia! Afilha do Bila saiu-se muito bem!

MARIA NQAVANE[Nasceu em 1947]Entrevistada por Alpheus Manghezi na Aldeia Comunal de Ximbongweni, Guijá,Provínciade Gaza, Maio de 1980.Ent: Que idade tem?Nqavane: Nasci em 1947, aqui no Guijá. Ent: O que é que fazia quando era jovem- os rapazes tomavam conta de gado e cabritos - o que é que as raparigas faziamnesta parte do país?Nqavane: Eu fazia o mesmo trabalho que os rapazes. Ent: Fazia o mesmo trabalhoque os rapazes? Nqavane: Sim.Ent: Cuidou de bois?Nqavane: Tomei conta de bois, e também fui para a escola. Ent: O quê? Sabemontar uma rigava, um boi jovem? Nqavane: Sim, sei, e também sei tocarxighovia [um instrumento musical feito de massala, tocado quase exclusivamentepor rapazes pastores], assim como musengle ou xitiringu [flauta feita de bambu].Ent: Onde está o seu xighovia agora? Nqavane: Deixei-o em casa. Uma mulher(na multidão): Ele quer ver; tem de apresentar o xighovia e tocar!Ent: Porque é que deixou o xighovia em casa, se sabia que íamos conversar ecantar? Não faz mal; vamos continuar com a nossa conversa. Que mulhermoçambicana emancipada, que toca xighovia, xitiringu e monta um boi!Nqavane: Sim, sou uma mulher moçambicana libertada! Audiência: (um grandeaplauso) Ent: Agora, diga-me, sabe guiar uma bicicleta? Nqavane: Guio muitobem. Um homem (na multidão) : ha, haa, ela sabe tudo! Ent: Uma vez que cresceua cuidar de gado e a fazer coisas que se considera que são exclusivamente pararapazes, não teve depois dificuldades em encontrar um homem para casar?

Nqavane: Muitos homens não me queriam porque pensavam que eu não sabiasequer pilar milho.Ent: Ehe!Nqavane: Finalmente apareceu um, um jovem que teve pena de mim, e propôs-mecasamento.Ent: Ha, ha, ha!Nqavane: Este homem percebeu que, embora eu não fosse capaz de pilar ecozinhar, tinha as minhas qualidades de mulher. Ent: Ehe!Nqavane: Por isso, casámos e fui viver com ele em casa dele. Ent: É verdade quenão sabia pilar nem cozinhar? Nqavane: Eu sabia como fazer estas coisas, aprenditudo isso ao mesmo tempo que tomava conta do gado, mas todos os jovenspensavam que eu não sabia e não queriam casar-se com uma mulher ignorante.Ent: Pode ser que esses jovens tivessem medo de que, para além das coisas queaprendeu dos rapazes, podia ter aprendido também a lutar, e nenhum homemgostaria de se casar com uma mulher tão potencialmente "perigosa"!Nqavane: Ha, ha, ha!

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Ent: Depois de casar, que é que aconteceu então? Nqavane: Eu queria era falarsobre a minha experiência sob o regime colonial. Quero contar-lhe que, depois dedeixar de apascentar gado, casei-me e fui viver com o meu marido. Passei pordificuldades no regime colonial, mas mesmo assim, não tão mal como a geraçãomais velha que a minha. Por exemplo, pessoalmente sei muito pouco sobre acultura obrigatória de algodão. Depois de casarmos, o meu marido foi para a terrados brancos - ele foi para a África do Sul e eu acompanhei-o até LourençoMarques. No meu regresso de lá, fui presa e levada para a casa do régulo, ondeme disseram que o meu marido devia o imposto de palhota. Uma vez que ele tinhaido para as minas na África do Sul, disseram que eu tinha a responsabilidade deprocurar pagar os impostos em atraso. Disseram-me que o meu marido nãopagava imposto havia dois anos, e eu tinha que ir trabalhar em casa do régulo atéque o dinheiro fosse pago.

Segue-se uma descrição do que descobri enquanto trabalhava em casa do régulo:quando chegávamos a este lugar, fomos divididas em grupos de trabalho. Foramseleccionados dois grupos, com base no critério da "boa aparência". Todas asmulheres bonitas ficavam em casa para lavar roupa, varrer a casa do régulo ecozinhar, enquanto que as restantes eram enviadas para trabalhar nas machambasdo régulo, que incluíam machambas de algodão.Enquanto as que estavam em casa do régulo faziam o seu trabalho, os polícias dorégulo perseguiam-nas e exigiam favores sexuais. Se o régulo estivesse em casa,ele, naturalmente, tinha o direito de fazer a primeira escolha - ele seguia a mulherque considerava a mais bonita e desejável do grupo, e acompanhava-a quandoentrava numa das casas para varrer e arrumar. Se a pessoa recusasse cooperar,então de certeza que, no dia seguinte era colocada entre as que iam para amachamba.Contudo, as coisas eram mesmo piores nas machambas. Por exemplo, se algumativesse um bebé de peito, eles [os supervisores] não a deixavam amamentarquando a criança chorava de fome: eles diziam-lhe que devia trazer um biberãopara o bebé. Quando me apercebi desta situação tomei uma decisão: aquilo nãoera para mim; eu não estava preparada para ser humilhada daquela maneira. Porisso fugi e encontrei trabalho em casa de um colono. Neste novo trabalhorecebíamos um xelim e seis pences por dia. Trabalhei e guardei dinheiro até ter osuficiente para pagar as dívidas de impostos de um ano. Depois de pagar o valorde 385$00, eles disseram-me que ainda havia dívidas do outro ano. Então escreviuma carta para o meu marido na África do Sul, e ele voltou para casa. Quando elechegou disseram-lhe que tinha que dar 100$00 para o "pão do régulo". Estaexigência veio mesmo antes de o meu marido ter tido tempo de pagar o seuimposto, o que significava que ele tinha que pagar 775$00 no total. Só depois deeste pagamento ser feito eu suspirei de alívio - agora podia descansar! Ent: Vamosvoltar um pouco atrás, ao tempo em que trabalhava em casa do régulo. Quem erao régulo? Nqavane: Era o régulo Hlomani. Era na regedoria de Hlomani, mas orégulo na altura chamava-se Khondlani.

Ent: Não nos disse quanto tempo é que trabalhou em casa do régulo

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- pode-nos contar um pouco mais sobre o que aconteceu consigo enquantotrabalhava para Khondlani. Não precisa de nos contar nada que ache embaraçoso.Nqavane: Trabalhei apenas duas semanas - ha! ha! ha! Ent: Ha! ha! ha!Nqavane: Apenas trabalhei duas semanas, mm! Ent: Teve alguma "guerra" com orégulo? Nqavane: Sim, nós lutámos.Ent: Como é que fugiu para ir trabalhar em casa do colono? Nqavane: Saísimplesmente; não apareci para trabalhar no dia seguinte.Ent: Ehe!Nqavane: Khondlani então mandou alguém para casa da minha sogra para saberporque é que eu não ia trabalhar. Ela disse-lhe que eu tinha ido procurar trabalho afim de ganhar o dinheiro do imposto. Ent: Eles não a perseguiram mais depoisdisso? Nqavane: Não, eles não foram atrás de mim, embora o nduna do réguloquisesse. Depois de ganhar dinheiro suficiente, levei-o ao Matiyani Mashava, onduna do régulo, e disse-lhe que aquele era o dinheiro que o meu marido devia deimposto. Ent: Se tivesse escolhido trabalhar em casa do régulo em vez de irprocurar dinheiro para o imposto, quanto tempo é que teria que trabalhar lá?Nqavane: Não nos davam um cartão que fosse marcado todos os dias em que setrabalhava; eles mantinham as pessoas lá - faziamnas trabalhar e sofrer atéescreverem para os maridos para enviarem o dinheiro necessário. O marido tinhaque pagar um resgate antes de eles a libertarem.Ent: E teve que escrever ao seu marido e descrever a intolerável situação em quese encontrava por causa desta falta de pagamento do imposto, pedindo-lhe paravir e resgatá-la. Nqavane: É verdade!Ent: E eles podiam mantê-la indefinidamente até receberem o dinheiro?Nqavane: Sim, ainda faziam uma pessoa trabalhar, dia após dia.

Faziam uma pessoa trabalhar duramente nas machambas com uma enxada (que apessoa trazia de casa). Ent: Vocês cantavam algumas canções enquantotrabalhavam para o régulo?Nqavane: Nunca cantei em casa do régulo. Eu apenas cantava em casa enquantopilava milho, porque queria que os pais do meu marido ouvissem as cançõestristes, para que eles também sentissem a dor que me ia no coração. Ent:Aha!Nqavane: Sim!Ent: Gostaria de cantar alguma das canções que costumava cantar enquantopilava? Nqavane: Sim, há uma canção que eu gostaria de cantar, mas os outrosdevem acompanhar-me.Canção: Iyo, N'wana MamaniMu: Iyo, n'wana mamani Vap: Hiko iyo n'wana mamani Mu: A ni ma tivimakhere ya kona Vap: Makhere ya kona Mu: I para n'ta kherela nuna wa minaVap: Nuna wa mina Mu: A ni xitivi xibhomba xa kona Vap: Xibhomba xa konaMu: A lexi xinga fambisa nuna wa mina Vap: Nuna wa minaMu: I Danyela, nuna wa mina Vap: Nuna wa mina Mu: Daniel Sithoye a ngarhumela nuna wa mina Vap: Nuna wa mina Mu: Hi yena anga khiyela nuna wamina Vap: Nuna wa mina Mu: A wu ni kombi xibhomba xa kona

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Vap: Xibhomba xakona Mu: I jele muni nuna wa mina Vap: Nuna wa mina Mu:ndlela a ni yitivi; xibhomba xakona Vap: Xibhomba xakona Mu: Niku iyo n'wamamani Vap: N'wa mamaniTradução portuguesa: Oh, filho da minha mãe!Regente: Oh, filho da minha mãe! Coro: Filho da minha mãe Regente: Nãoconheço o endereço Coro: O endereço Regente: Queria escrever para o meumarido Coro: O meu marido Regente: Não conheço o machimbombo que o levouCoro: O meu marido Regente: Foi o Daniel que o levou Coro: O meu maridoRegente: O Daniel Sithoye (recrutador) "prendeu" o meu marido Coro: O meumaridoRegente: Mostrem-me o autocarro que o levou Coro: O autocarro Regente: Quetipo de prisão é esta? Coro: O meu marido Regente: Não conheço o caminho, nãoconheço o autocarro Coro: O autocarro Regente: Oh, filho da minha mãe Coro:Filho da minha mãeEnt: Quando fala de prisão, quem estava na prisão - era você ou o seu marido?Nqavane: Era eu, mm!

MELISINA NHLONGOEntrevistada por Alpheus Manghezi, Guijá, 17 de Maio 1980Ent: Mãe, por favor, diga-nos o seu nome. Nhlongo: O meu nome é MelisaMatewu Nhlongo. Ent: Nasceu nesta zona?Nhlongo: Nasci aqui, em HIomani. Ent: O que é que fazia quando era jovem?Sabemos que os rapazes cresciam a apascentar bois e cabritos, depois disso elesiam para as minas na África do Sul.Nhlongo: Quando eu tive idade suficiente, fui para a escola. Não fiquei lá muitotempo porque nessa época, logo que uma rapariga começava a desenvolver osseus seios, obrigavam-na a desistir da escola. Mesmo que os seios fossem muitopequenos, mandavam-na embora da escola, dizendo: "estás crescida, (demasiada)instrução vai tomar-te muito esperta" (com uma mentalidade muitoindependente). Deixei então de estudar, mas continuei com a escola, aosdomingos, para a educação religiosa, visto que éramos muito jovens paraparticipar nos serviços religiosos. Quando me tomei uma mulher, encontrei umhomem, da família Bila, que me cortejou. Depois casámos e fui morar em casadele. O meu marido começou então a trabalhar em Mabalane como professor; defacto, nós fundámos a escola lá, abrimos a escola. Ensinámos naquela escola, masos van 'walungo (pessoas "do norte") não estavam interessadas na instrução, elesnão gostavam da escola. O meu marido adoeceu e ficou mentalmente perturbadoe, por conseguinte, incapacitado.Ent: É isso que aconteceu ao seu marido? Nhlongo: Foi isso que aconteceu com omeu marido. Ent: Mm-mm!Nhlongo: Depois ele morreu e eu fiquei com o coração partido pela dor. Fiqueiviúva muito jovem, com apenas três filhos. Pensei em voltar a casar-me, masdepois decidi participar no cultivo do algodão

por forma a sustentar o meu único filho sobrevivente - os outros dois tinhammorrido. Eu fazia bebida [para a tsima] e criei o meu filho com os ganhos do

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cultivo do algodão. Nós éramos exploradas: alguém podia fornecer muitos sacosde algodão - vinte sacos, mas recebia muito pouco dinheiro por todo esse algodão.Ent: Voltemos atrás e falemos um pouco sobre a educação. Nhlongo: Mm-mm!Ent: Você disse que nesse tempo, logo que os as mamas apareciam, obrigavam asraparigas a sair da escola. Quantos anos passou na escola antes de a tirarem?Nhlongo: Eu fiquei lá três anos. Ent: Que classe passou?Nhlongo: Passei a segunda.Ent: Depois foi afastada da escola? Nhlongo: Sim.Ent: Tornou-se também professora na escola? Nhlongo: Não, não! O meu maridoé que era professor. Ent: A que igreja é que pertencia - era da Missão Suíça?Nhlongo: Sim, era da Missão Suíça. Ent: Você disse que após a morte do seumarido, começou a cultivar algodão. Isso foi em Mabalane? Nhlongo: Não, foiaqui, porque voltei para casa dos meus pais, aqui no Guijá, Caniçado. Nós fomospara Mabalane por causa do trabalho, mas a nossa casa era aqui. Nós vínhamos deMabalane para aqui para ajudar os nossos pais no cultivo, mas também tínhamosas nossas próprias machambas em Mabalane [culturas alimentares]. Ent: Em queano deixou Mabalane e voltou para o Guijá, lembra-se? Nhlongo: (Recorrendo aoSr. Bila): Pai, pode ajudar-me, eu esquecime, faça-me lembrar, por favor. Bila:Parece que foi em 1946.Nhlongo: Nós ainda estávamos em Mabalane em 1946 e 1947... porque regresseipara aqui em 1950. Ent: Portanto, quando regressou para aqui em 1950 notou queas pessoas estavam a produzir algodão. Nhlongo: Sim, decidi então participar nocultivo do algodão, sabendo, naturalmente, que este era um trabalho deexploração. O

meu marido trabalhou duramente no ensino e foi explorado porque recebia apenas300$00 por mês, o que era insignificante. Ele sofreu muito.Ent: Você integrou-se voluntariamente no cultivo do algodão? Nhlongo: Sim, tiveque fazê-lo porque eu era muito pobre. Ent: Quantos hectares é que cultivava,lembra-se? Nhlongo: Não era uma machamba grande; era apenas um hectareporque eu tinha que cultivar também a minha machamba de milho. Ent: Dividiu aterra em duas - uma para o algodão e outra para o milho?Nhlongo: Não, eu tinha duas machambas separadas. Ent: Não teve dificuldadesem tratar de duas machambas ao mesmo tempo, sobretudo porque o algodãorequer muito trabalho intensivo? Nhlongo: O quê, o algodão requer muitotrabalho! Ent: Por favor, diga-nos tudo o que tem a ver com o cultivo do algodão,em termos de investimento de trabalho e os cuidados que requer.Nhlongo: Primeiro, a terra tem de ser lavrada e depois devidamente alisada.Depois abrem-se sulcos e lançam-se as sementes, que são depois cobertas de terrapara germinarem quando chover. Depois de germinarem e as plantas tiveremdesenvolvido duas folhas, arrancam-se algumas plantas para que haja espaçosuficientes entre as plantas. Quando duas plantas estão muito próximas uma daoutra não ficam felizes (!)Ent: E sobre a sacha - quantas vezes deve ser efectuada antes da colheita?Nhlongo: (Com ar sério) A sacha é feita duas vezes, sendo uma terceira paragarantir que não haja ervas trepadeiras que possa enrolar-se em volta das plantas

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de algodão e sujá-lo. O algodão é uma planta tão delicada que gosta ser mantidabranca como o lírio. O solo à volta de cada planta deve estar limpo, de modo quemesmo que a "flor" caia, possa ser apanhada, com muito cuidado, sem ficar suja.Ent: Essa é a altura em que está a "florir". Nhlongo: Sim, quando o algodão está a"florir". Ent: E a colheita, como é feita?

Nhlongo: Na colheita, as "flores" brancas (primeira) devem ser separadas dasvermelhas (segunda). As flores brancas devem ser manuseadas com muitocuidado e colocadas em sacos muito limpos. Por exemplo, por forma a evitar acontaminação das flores de algodão, nunca se deve usar sacos que antes tenhamcontido espigas de milho, uma vez que o algodão é uma cultura muito difícil. Ent:Quantos sacos de algodão produzia na sua machamba nos bons anos?Nhlongo: Nos bons anos, e considerando que a minha machamba não era grande,eu era capaz de produzir cerca de vinte e cinco sacos.Ent: Era algodão de primeira?Nhlongo: Sim, algodão de primeira. Ent: Nos anos 50, quanto é que vos pagavampor cada saco de algodão?Nhlongo: Não sei quanto é que pagavam por cada Kg, mas os nossos pais(indicando o Sr. Bila e outros homens presentes) devem saber. Tudo o que sei éque quando eu fornecia vinte sacos, recebia 200$00; e isto era umainsignificância..Bila: Era 3$00 por Kg.Ent: Portanto, eram três escudos por Kg. Nhlongo: E era, contudo, um saco cheio;o saco devia estar tão cheio que não era fácil levantá-lo e carregá-lo. Ent:Sabemos que a produção de algodão criou grandes problemas nesta área,especialmente, para os que tinham que cultivá-lo coercivamente.Nhlongo: Sim, isso é verdade!Ent: Aqueles que foram forçados a produzir algodão, e por causa de todas asvigarices na altura em que o algodão era pesado nas vendas, recorriam algumasvezes a certos estratagemas, tal como nos disseram, neste encontro, como porexemplo juntar excrementos de galinha, para aumentar o peso. E os queproduziam o algodão voluntariamente - recorriam alguma vez a estas estratégias?Nhlongo: Yi-ii! Tínhamos medo porque, se descobrissem que alguém tinhacontaminado o algodão, essa pessoa estava em apuros. Se eles notassem a partirdo cimo do saco que o algodão não estava limpo,

eles então mergulhavam a mão bem fundo no saco e tiravam algum algodão paraver o seu aspecto. Se se descobrisse que tinham acrescentado algumas substânciasestranhas todo o carregamento era declarado de segunda. Nesse caso, a pessoasofria uma grande perda. Nós tínhamos que ser tão cuidadosos que mesmo que oscapatazes do algodão cavassem no fundo dos sacos para verificarem, nãoencontrassem nada de errado. Eles podiam então classificar o algodão como sendode primeira, embora, com certeza, a pessoa ainda recebesse o mesmo preçoexplorador. Ent: Uma vez que é uma cultivadora voluntária, os vigilantes doalgodão ainda vinham para a sua machamba verificar se você trabalhava deacordo com as suas instruções? Nhlongo: Não.

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Ent: Não a seguiam nem a investigavam? Nhlongo: Eles apareciamocasionalmente quando tinham que me mostrar como manusear o algodão. Elesdiziam "Faça isto desta ou daquela maneira"! Eles foram apenas uma vez porque amachamba tinha algumas sepulturas. Veja, no passado, cultivávamos à volta dassepulturas mas sem remover a erva e pequenas plantas, uma vez que estas eramusadas para demarcar a sepultura. Este campo era uma antiga residência dos meusparentes por afinidade, que foi desde então abandonada. Foi onde nasceu o meumarido, e nós transformámos isto numa machamba.Um dia à tarde veio um branco. Ficou de longe e mandou o capataz para mechamar até onde ele estava à espera. Ele disse-me que tinha que limpar todo ocapim e as ervas da sepultura. Eu não iria remover a sepultura, mas tive quelimpá-la. Fiz o que ele me pediu para lhe agradar. Um dia ele enviou umamensagem através de umas pessoas, dizendo que eu devia esperar por ele naestrada num certo dia. Ele disse-lhes que queria dar-me uma recompensa porqueeu era uma cultivadora exemplar. Mas eu só soube isso muito tarde porque aspessoas a quem foi confiada a mensagem nunca me disseram: eu teria recebidoalguma coisa valiosa porque ele ficou impressionado pela maneira como eutratava da minha machamba de algodão - Eu trabalhava duramente na esperançade ganhar mais dinheiro.

Ent: Nos anos 50, por exemplo, em 1958, houve conflitos nesta área por causa dacultura obrigatória do algodão. Nhlongo: Yi-i, He-e!Ent: Tinha conhecimento destas lutas? Nhlongo: He, he-e! Houve grandesconflitos; conflitos sérios por causa do algodão..Ent: Mm - hmm!Nhlongo: Mm!Ent: Uma vez que os que eram forçados a cultivar algodão participaram nestaslutas, e você, o que é que fez? Nhlongo: Bem, fiquei fora do conflito. Todos osdias eu ia à machamba e cultivava e sachava, como esperavam que eu fizesse.Desta forma evitei entrar em confusão. (Se a pessoa não cumprisse,) eles (asautoridades do algodão) vinham à sua casa ao meio dia, justamente quando apessoa acabava de voltar das machambas, e forçavam-na a voltar para trás etrabalhar um pouco mais. Eles gritavam "famba, famba"! (vai, vai!) fazendo apessoa sofrer. Um homem na audiência: Não tenha medo; conte a verdade: elesmostraram algum respeito por si porque era viúva. Ent: É verdade que elesmostraram algum respeito por si porque era viúva?Nhlongo: Bem, sim, isso é verdade. Ent: Receio que tenhamos que nos apressarpor falta de tempo. Você hoje é residente na Aldeia Comunal 7 de Abril. Émembro da Organização da Mulher Moçambicana? Nhlongo: Estou na OMM.Sou encarregada dos Serviços Sociais. Ent: Quais são as suas responsabilidadesnesta posição? Nhlongo: Ajudamos as mulheres que tenham problemas nos seuslares; também lidamos com disputas entre casais quando eles nos abordam com osseus problemas. Quando não conseguimos resolver o problema, remetêmo-los aoutras estruturas na comunidade. Se o assunto não puder ser resolvido a essenível, será então remetido à Administração Distrital.Ent: Muito obrigado.

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OSELINA MARINDZI[Nasceu antes de 1930]Entrevistada por Alpheus Manghezi em Ximbongweni no dia15 de Maio de 1980. Da brigada fazia parte José Mazivi.Entrevistador: Gostaria que me dissesse que se passou consigo, que tipo de vidalevava aqui em casa, durante estes anos em que o seu marido estava ausente, nasminas da África do Sul e em que teve de ganhar a sua vida sozinha.Marindzi: Hei-de contar alguma coisa do meu sofrimento. Eu sofri bastanteporque o meu marido foi para as minas e não voltou para casa pelo medo que tevedo xibalo. O que costumava acontecer nestes tempos era que o meu maridovoltava das minas para passar férias e que na manhã depois da sua chegada iambuscá-lo para o xibalo. Foi isto que os colonos fizeram para fazer-nos sofrer.Depois de ele ter ido para o Joni [John] para voltar nunca mais2, fiquei aquisozinha e tive de cultivar algodão para pagar o imposto de palhota que elesdisseram que ele devia ao regime colonial. Fomos sovados por pessoas comoAlbino Mabunda durante o cultivo forçado de algodão. Eles bateram-me erasgaram o meu cartão de algodão, alegando que eu era uma mulher que sócausava problemas, mas eu não era uma mulher que causava sarilhos - eu estavaapenas cansada de cultivar algodão forçadamente, algodão do qual não tiravanenhum benefício. Eu fui sendo castigada pelo facto que o meu marido ter fugidodo país porque receava ser recrutado para o xibalo. Por causa deste sofrimento, eucostumava voltar para a casa depois do trabalho no campo, ficando sentado epensando, desesperadamente, o que havia de fazer, aonde havia de ir, e comohavia de lá chegar. Devido ao meu desespero, costumava cantar a canção seguintequando pilava o milho3:2 N.C.: Voltou apenas quando estavajá velho. Uma entrevista com o marido efilho de Oselina- este último trabalhava no hospital de Chókwè - tinha sidoplanificada mas não foi realizada por falta de tempo.3 N.E.: O autor diz ~'moía o milho" mas Guijá pertence a uma zona onde sepilava o milho geralmente.

Canção : Nta muka hi kwiniMusumi: Nta muka hi kwini? Vapangalati: He, nta muka hi kwini? Mu: Ndzokayakaya mino-o! Vap: He, nta muka hi kwini? Mu: Nuna wa mina a kholwengopfu mino-o! Vap: He, nta muka hi kwini yini? Mu: Nkomati yi tele; ntafambisa ku yini? Vap: He, nta muka hi kwini? Mu: Milambu yi tele; nta muka hikwini? Vap: He, nta muka hi kwini yini? Mu: Mumithi [Limpopo] yi tele; ntafambisa ku yini? Vap: He, nta fambisa ku yini? Mu: Nta muka hi kwine-e? Vap:He, nta muka hi kwini? Mu: Nta muka hi kwine-e'?Canção: Aonde hei-de ir?Aonde hei-de ir ? Como hei-de chegar lá? O meu marido está a sofrer, aí,pobrezinha de mim! O meu marido fugiu há muito tempo, Aí, pobrezinha de mim.Como hei-de chegar lá ? Há cheia no rio Incomati, Há cheia nos rios, Há cheia noMumithi [Limpopo], Há cheia nos rios.

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Aonde hei-de ir ? Como hei-de chegar lá? Tenho o coração deprimido edestroçado, Aí, pobrezinha de mim, Como hei-de chegar lá?

Cantei esta canção pelo grande sofrimento que nos afligiu devido à acção decolonos como Monteiro4; eles nos fizeram sofrer porque os nossos maridostinham fugido e ficaram no Joni [John] devido ao medo que tiveram do xibalo, eesses colonos roubaram-nos toda os nossos recursos. Nem se teria atrevido olharpara mim quando cantei esta canção porque estava nua - só tinha trapos porquenão tinha dinheiro para comprar roupa. O meu marido nem me mandava umacarta porque tinha medo do "fogo" aqui em Moçambique - o "fogo" do xibalo.Isso é a minha história. Paro aqui. Ent: Não saia! Gostaria que cantasse a cançãooutra vez, e vou pedir o resto da gente aqui para acompanhar? Marindzi: Quer queeu cante outra vez? Ent: Sim, quero que cante outra vez a mesma canção.[Canção: Aonde hei-de ir?]Regente: Aonde hei-de ir ? Coro: Hee, como hei-de chegar lá? Regente: O meumarido está a sofrer, aí, pobrezinha de mim! Coro:Hee, como hei-de chegar lá?Regente: O meu marido fugiu há muito tempo, Coro: Hee, como hei-de chegar lá? Regente: Há cheia no rio Incomati, como hei-de chegar lá? Coro: Hee, comohei-de chegar lá? Regente: Há cheia nos rios, como hei-de chegar lá? Coro: Hee,como hei-de chegar lá? Regente: Há cheia no rio Mumithi [Limpopo], como hei-de chegar lá?Coro: Hee, como hei-de chegar lá? Regente: Aonde hei-de ir? Coro: Hee, comohei-de chegar lá? Regente: Tenho o coração deprimido e destroçado, oh,pobrezinha de mim!Coro: Hee, como hei-de chegar lá?4 Agente de propaganda da Algodoeira do Sul do Save, António Monteiro deBarros, em Caniçado desde 1950, pelo menos.

Ent: O que que significa se diz :"Aonde hei-de ir? Como hei-de chegar lá?"Marindzi: Falo do sofrimento, porque não tinha meios de escapar, de escapardesta situação. O meu marido abandonou-me e não mandava nada para me apoiare fico aqui e sofro. Nem posso voltar para a casa dos pais porque estou amarradopelo lobolo; se voltasse para a casa dos pais, a fanulia do meu marido iria pedir adevolução do gado pago como lobolo. Por causa disso tudo, eu estava obrigada aficar aqui [entre dois rios em cheia] e sofrer: É isso que a canção significa.Ent: Foi você quem compôs esta canção? Marindzi: A canção foi composta porcausa da pobreza e do sofrimento e como resultado da fuga e longa ausência domeu marido. Ent: Ainda há outras canções que compôs? Marindzi: . (silêncio)Ent: Esta é a única que compôs?Marindzi: Não, há outras (pouco convincente). Ent: Gostaria que cantasse umaoutra canção se houver. Marindzi: Não tenho outra.Ent: Vamos deixar o cantar para um outro momento, e continuar com a nossaconversa. Era este tipo de canção que eu esperava ouvir quando vim para aqui. Éo tipo de canção que as mulheres cantavam no Transvaal onde nasci; e estasmulheres, como você, tinham filhos e seus maridos que estavam ausentes nasminas e fábricas de Johannesburgo e outros centros industriais. Agora, conta-me

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mais acerca do seu marido: porque é que ele foi preso para o xibalo e quantasvezes é que ele tinha de fazer xibalo. Marindzi: O meu marido foi levado váriasvezes para fazer xibalo. Uma vez ele foi levado para Xinavane, e quando eleestava lá viajei toda a distância até lá para trazer comida porque lá eles passavamfome. Foi quando ele estava em Xinavane que ele desertou e escapou para Joni,mas não sei como ele escapou realmente. Ent: Era esta a vez quando ele escapoudefinitivamente? Marindzi: Esta foi a vez quando ele me abandonou, ele nuncamais voltou para casa.Ent: Ele não voltou?

Marindzi: Ele voltou apenas quando era um homem velho. Ent: Ele voltou apenasquando era um homem velho, ah sim? Marindzi: Como ele era muito velho agorajá não podiam levá-lo para o xibalo5.Ent: Ainda está vivo?Marindzi: O quê?Ent: O seu esposo ainda está vivo? Marindzi: Ele ainda existe, mas está muitovelho. Ent: Aonde está ele? Ele está em casa? Marindzi: Ele está em casa. Ele estáa "cultivar tabaco no nyaka"6 Assistência: (risos altos: há! Há! Ha-a-a) Ent: Eleestá agora "cultivar tabaco", esse é o seu trabalho das minas agora, eh? Sabequanto tempo ele ficou no Joni depois de fugir. Marindzi: Não sei.Ent: Ele ficou ausente por muitos anos? Marindzi: Muitos, muitos anos. Ent: Edurante este tempo ficou em casa sozinha? Marindzi: Eu fiquei lá fechada. Ent:Vocês já tinham filhos antes de ele fugir? Marindzi: Tinhamos dois filhos antes deele ser recrutado para o xibalo de que ele depois escapou. Estes filhos cresceram,casaram e tinham filhos próprios antes de o meu marido pôr o pé novamente noGuijá [Gidjani].Ent: Compreendo.Marindzi: Sim, foi nesta altura que ele regressou. Ent: Que foram as suasexperiências enquanto que o seu marido estava ausente no Joni? Foi alguma vezpresa? [Pergunto] porque mencionou os problemas que teve com AlbinoMabunda. Marindzi: Eles não me prenderam e não me levaram para o xibaloporque produzia algodão e eles sabiam que eu já não lhes escapava.1 Possivelmente depois de 1960, quando o xibalo praticamente acabou em Gaza eInhambane.6Nyaka é um tipo de solo fértil nas baixas, mas a expressão "cultivar (ou plantar)tabaco no nyaka" é utilisado localmente no sentido de que alguém é velho demaispara ser de muito préstimo.

Ent: Você teve um pedaço de terra reservado para o algodão? Marindzi: Nuncalevaram alguém para xibalo que estava a produzir algodão porque desta cultura[pedaço de terra] eles receberiam o dinheiro para os impostos deles. Ent: Que quefoi a sua experiência nesta área, entrou num conflito sério com as autoridades?Marindzi: Eles bateram-me, que que pensa foi a causa, porque eles confiscaram erasgaram o meu cartão de algodão? Ent: Pode explicar o que que aconteceu nestedia quando a bateram. Marindzi: Eles bateram-me alegando que tinha misturadoalgodão de segunda com cocó de galinha. Ent: Ah sim!

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Marindzi: Sim, eles alegavam isso e bateram-me depois. Ent: Foi isso queaconteceu?Marindzi: Sim, de facto tinha escolhido o algodão, separando o da primeira e dasegunda.Ent: Ah, sim!Marindzi: Tinha feito um bom trabalho. Ent: Não é possível que tenhas posto ládentro algum coco de galinha para aumentar o peso7?Marindzi: Não juntei nenhum coco de galinha. O único cocó de galinha queencontraram no algodão estava lá porque esta "filha" da galinha tinha dormido poracaso em cima do saco na noite antes da entrega do algodão. (Isso foi seguido poruma aprovação viva da audiência).Ent: E no que toca a este Albino Mabunda, ele era o quê? Marindzi: Ele era ocapataz.Ent: Ehée!Marindzi: Mmh.7 N.A.: Isso era um dos métodos para exprimir a resistência contra o cultivoforçado de algodão. Outros objectos como areia, pedras e abóboras foram muitasvezes colocados nos sacos com algodão para aumentar o peso no acto da pesageme para sabotar as fábricas de descaroçamento de algodão. Nesta entrevista,Osalina Marindzi usou o vocábulo macimba (merda) em vez de vulongo byatihuku (uma palavra educada para bosta ou estrume de galinha), que seria maisapropriado porque queria exprimir a dor e raiva que ela ainda sentia no coração.

Ent: Ele vive ainda?Marindzi: Ele pode ouvi-lo quando fala! Ele é membro do Grupo Dinamizador.Trabalhamos com ele e ele esqueceu agora todo o sofrimento e miséria que elenos causou a nós! Público Assistente: Há!Ha! ha-a-a! Ent: Muito obrigado, nãovamos aprofundar isto. E enquanto ao Monteiro? Quem era ele? Marindzi: Ele erao chefe do algodão. Ent: Ele era o chefe do algodão, realmente? Marindzi: Ele erao chefe dos capatazes, tais como Albino Mabunda, foi ele quem lhes pagava. Oscapatazes levaram-nos para sermos julgados pelo Monteiro de ofensas quepoderiamos ter cometido. Ent: Khanimambo.

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OS ANCIÃOS DE GUIJÁ (MADODA YA GIJANA)Entrevistados por Alpheus Manghezi. Guijá, 18 de Maio de 1980Esta entrevista foi feita a um grupo de homens que, nas suas vidas, estiveramintimamente envolvidos na migração laboral, no trabalho forçado, na culturaobrigatória do algodão e nas lutas à volta destas questões no Vale do Limpopo. Aentrevista, que vai desde a história do Império de Gaza, no período de MudungaziNgungunhana à chegada dos colonos portugueses nos anos 50, foi realizada emcasa de Gabriel Mukavi. Segue-se um extracto da referida entrevista. As pessoasentrevistadas são:Gabriel MukaviAbner Ngwenya

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Zacarias MakukuleEduardo Nkuna Machele (ex-régulo)Eliaza NhlongoEnt: Estou interessado na criação do Colonato do Limpopo e na chegada doscolonos portugueses para se estabelecerem aqui. Podemos começar com AbnerNgwenya? Ngwenya: Testemunhei, de facto, a chegada dos colonos portuguesesnesta área. Eles começaram a chegar aqui em 1953. Trigo de Morais recrutou-osde Portugal para virem colonizar-nos nesta terra de Guijá. Nem sequer tinhamsapatos quando chegaram aqui pela primeira vez. Os brancos daqui deram-lhescobertores, roupa e sapatos quando desembarcaram no porto de LourençoMarques. Isso foi feito à noite para que os negros não vissem que aqueles colonosestavam mal vestidos e descalços. De manhã foram então colocados num comboiocom destino ao Guijá.À sua chegada ao Guijá, deram-lhes casas, deram-lhes machambas para cultivar,deram-lhes gado que tinha sido comprado em Muhambe, ao Capela, uma junta debois e uma vaca leiteira. Sim, deram-lhes gado para criar, tirar leite, para usar nalavoura, e ainda lhes deram charruas.Não empregavam ninguém para cultivar para eles, pois eles faziam isso sozinhos -marido e mulher, com as suas próprias mãos. Os

colonos faziam isso. Assim, acontecia que quando um negro pedia à sua própriamulher: "minha mulher, podes fazer-me isto ou aquilo" a resposta era "eu não soucolono..." (para fazer tais serviços baixos). Os negros olhavam para os colonoscom desdém. Por exemplo: achávamos muito estranho ver os colonos a andar decasa em casa a vender couves que eles carregavam à cabeça em cestos cónicos,apregoando "couve, couve!". Nesta área, nós não sabíamos que os brancospodiam andar por ai a vender legumes. Nós olhávamo-los com desprezo, mas elessabiam o que estavam a fazer - eles tinham um objectivo. (Quando eleschegaram), eles estavam preparados para deixar as suas filhas casar nas famíliasnegras, nós os changana de Guijá. Quando eles chegaram aqui, viram, porexemplo, que os membros da famflia Chambale iam de bicicleta à machamba,enquanto eles, os colonos, andavam a pé. Quando eles vieram para o Guijá nãoesperavam encontrar pessoas com bem-estar social, como os Chambale. Issotomou-se um problema tão sério que tiveram de pedir a intervenção doadministrador, que teve de lembrar aos colonos para não se esquecerem de quenão podia haver cruzamentos entre raças. Os colonos produziam três culturasprincipais, nomeadamente milho, algodão e trigo. Também plantavam árvores defruta e receberam bananeiras para plantar nas suas machambas. Como tinham oapoio do governo, eles não demoraram muito a obter resultados. Eles fizeramalguns avanços depois de dois ou três anos. Foi nesta altura que os negroscomeçaram a aproximar-se dos brancos à procura de emprego. Por essa altura oscolonos tinham formado uma cooperativa onde eles podiam pedir emprestadodinheiro para pagar salários aos trabalhadores negros, que estavam fixados emdois xelins por dia (20 xelins = 100 escudos).Aos negros era também dada terra ao mesmo tempo que os colonos, mas esta eramais pobre, eram terras arenosas, não adequadas para o trigo. Os colonos

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prosperaram e compraram tractores e outros utensílios. Eles abandonaram logo ocultivo do algodão porque descobriram que não podiam produzir algodão deprimeira através do sistema de irrigação, mas apenas o de segunda. Abandonaramtambém a produção de trigo.

Ent: Eles deixaram de produzir trigo nas suas machambas? Ngwenya: Sim, nassuas machambas. Eles pararam de plantar laranjeiras - cortaram-nas todas;pararam de plantar bananeiras e começaram a produzir arroz. Eles cultivavamarroz, cultivavam batatas, cultivavam cebola, cultivavam alho e couve. Elescortaram todas as árvores, queixando-se de que as árvores atraíam os pássaros quecomiam o arroz.Então, nós, os donos da terra, viemos trabalhar para os colonos. Isso aconteciaparticularmente para nós da margem norte do Limpopo, que afluíamos aoColonato nos tempos de seca e fome: fomos trabalhar para os colonos quehavíamos ridicularizado (quando chegaram pela primeira vez).Os colonos tornaram-se prósperos. Alguns deles abriram hotéis em LourençoMarques. Outros abriram lojas e começaram a fixar-se em diferentes partes dopaís para fazer agricultura. Eles ainda subornaram o administrador para estepermitir-lhes abrir machambas na terra de um dos nossos régulos, um homemchamado Mahuhe. Um colono tomou a terra do régulo e cultivou-a até à porta decasa. O que é que podíamos fazer, nós éramos pessoas derrotadas. Foi assim quetestemunhei a chegada dos colonos quando eles vieram colonizar as terras doLimpopo através da agricultura. Ent: Quem era essa pessoa chamada Capela, deMuhambe? Ngwenya: Capela era um comerciante e criador de gado. O seuprimeiro negócio em Chibuto foi o transporte público; ele ia recolher os magaízasem Xinavane. Prosperou e começou a comprar lojas. Até então, as lojas que aquitínhamos pertenciam aos indianos, mas o Capela comprou-as. Ele também tomouconta das lojas em Ngomani, em Javanyana [Javanhane], em Xibhabela, emChaimite e uma em Muyanga. Ele então comprou gado. O gado era tão barato queo compravam por uma ninharia. Nos tempos de seca, eles cobravam-nos um boipor uma lata de amendoim. Este branco criou gado, que se reproduziu emultiplicou. Ele então mudou da raça local e trouxe a raça africânder - o gadovermelho, e era este gado que era distribuído aos colonos à sua chegada ao valedo Limpopo. A família Capela ainda hoje é comerciante.

Ent: Quer dizer que a família Capela ainda vive em Gaza? Ngwenya: A famíliaainda está viva mas, o próprio Capela já morreu- parece que ele morreu no ano passado. Ent: Você falou da família Chambale, ostais que possuíam bicicletas quando os colonos chegaram. Quem eram eles?Ngwenya: Eles são (eram) os donos da Vila do Xokwe (Chókw¢). Nkuna: Elessão a família Chókwè. Ngwenya: Sim, eles são a família Chókwè. Chókwè era oseu "avô", que fundou a vila. Eles fundaram o Chókwè. As machambas que foramexpropriadas pelos colonos e a partir das quais eles prosperaram pertenciam àfamília Chókwè. Os Chambale foram removidos e realojados numa terra pobre emenos produtiva. Sim, estes eram os Chambale, a família Chókwè.

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Ent: Muito obrigado. E o Bava* Makukule, gostaria de acrescentar algo sobre oque nos disse o Ngwenya? Makukule: Não tenho nada a acrescentar porque oNgwenya "convenceu-meEnt: E o bava Mukavi, tem alguma coisa a acrescentar ao que ouvimos?Mukavi: Bava Nkuna terá alguma coisa a acrescentar. Nkuna: Bem, a história doColonato do Limpopo é um assunto que conheço muito bem. Eu fiz parte dessahistória; vivi essa experiência. Não vou comentar sobre o que o Ngwenya disse,mas vou contarvos como é que o Projecto começou. A pessoa que concebeu esteprojecto foi um engenheiro chamado Trigo de Morais, que era amigo e braçodireito de Salazar. Qualquer conselho que ele desse a Salazar era aceite. Tudoquanto Trigo de Morais solicitasse a Salazar eralhe concedido. Por isso, foi elequem fez o estudo do projecto em 1924-25. Ele veio cá e andou por aqui às voltascom dois brancos. Não conhecemos os nomes destas duas pessoas, mas podemosdescrevê-las pela sua aparência.* N.T. - Bava - forma de tratamento que se dá a pessoas mais velhas em sinal derespeito, e que significa "'pai".84

Um deles usava óculos, e demos-lhe o nome de Mafasitela (da palavra "venster"em africânder, que significa "janelas"). O outro era calvo, e demos-lhe a alcunhade Mpandlani (careca). Eram estes os dois homens que acompanhavam Trigo deMorais. Observámo-. los a passear, a escavar e a recolher pedras, mas nãotínhamos a mais pequena ideia do que eles estavam a fazer, ou o que eles queriamfazer! Penso que isso aconteceu em 1924-25, e só foi em 1953 que vimos o queeles queriam fazer! Mas nessa altura já tínhamos esquecido o que vimos em 1924-25. Vimos este homem, Trigo de Morais; reapareceu (1953) e foi recebido naAdministração. Nós, os chefes, fomos convidados e fomos informados de queaquele era o Engenheiro Trigo de Morais, que tinha ali estado em 1924-25, notempo do administrador a quem chamavam Xikosi (nuca), que nessa altura orecebeu. O administrador deu-nos instruções: "Ele, o Trigo de Morais, está aqui.Vocês os chefes devem instruir os vossos ndunas para procurar e indicar ondeforam colocadas algumas pedras." Nós cumprimos as ordens. Havia umagrimensor que nos indicava onde é que estavam as pedras, algumas das quais nãose viam porque estavam cobertas de areia. O agrimensor dizia-nos para cavar emcertos lugares, onde encontrávamos algumas pedras a cerca de um metro deprofundidade. Eles então olhavam para todas as marcas nas pedras e diziam:"Sim, Chókwè, este lugar onde está a sua casa é onde será a cidade do Colonato."E Chókwè disse: "O quê?", ao que eles responderam: "Sim, justamente aqui ondevocê está. Aqui será uma cidade; esta é a cidade!" Anciãos: (Todos riram)Nkuna: A cidade foi fundada e a família Chókwè foi retirada do lugar que é hoje acidade (Chókwè). É onde estava a propriedade da família Chókwè. Eles foramempurrados para trás e colocados de forma dispersa do outro lado da linha férrea.Foram expulsos antes de trazerem trabalhadores para o xibalo, para construírem acidade, e isso levou um ano.Vimos tractores a arrancar árvores das nossas machambas. Ficámos perplexos eperguntámos o que é que estava a acontecer. A resposta que obtivemos foi que

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estavam a distribuir terreno para cada casa, (veja), as casas foram construídasmesmo antes de os colonos chegarem; eles

construíram casas para eles antes de chegarem! Os colonos chegaram; oscolonizadores brancos chegaram. Após a sua chegada, eles começaram a trabalharnos campos que já estavam preparados para eles. É isto que quero acrescentar aoque o Ngwenya disse, e também mencionar a origem real do Projecto; Trigo deMorais começou em 1924-25. É verdade que os colonos eram pessoas muito,muito trabalhadoras. O marido começava a trabalhar com uma junta de bois demanhã cedo, e a mulher preparava comida e levava-a para o campo. À hora doalmoço, quando ele parava de trabalhar, prendia os bois e davalhes capim paracomer e água para beber. Voltava de novo para o trabalho às 14.00 horas elargava às 16 ou 17.00 horas. Eles trabalhavam duramente - trabalhavam elespróprios, com as suas mãos, visto que não tinham dinheiro para empregartrabalhadores. De facto, esta era uma das normas (dos seus contratos), elesestavam proibidos de contratar trabalhadores. No início era assim, mas logo quecomeçaram a ter algum rendimento da sua produção, começaram a contratartrabalhadores. Trigo de Morais permitiu-lhes então contratar trabalhadores.O que eu gostaria de acrescentar é que depois dos primeiros dois hectares(oferecidos aos africanos), Trigo de Morais, com a sua propaganda (de nãodiscriminação) conseguiu enganar muito bem os valandi (termo depreciativo paranegros). Ele ordenou, então, a construção de outras casas, e ofereceu-asjuntamente com machambas maiores de quatro hectares aos negros queestivessem preparados para integrar o Colonato. Ele disse: "...vocês receberãotambém bois, tal como os brancos, porque vocês são portugueses; Moçambique éuma parte (Província) de Portugal".Alguns negros aceitaram a oferta e tomaram posse das casas, enquanto outrosrecusaram e disseram que não estavam interessados em fazer parte do Colonato.Eles disseram: "...Não, não queremos viver nas casas dos brancos; dêem-nos terrapara cultivar!" A família Chókwè foi a primeira a recusar integrar-se no Colonato.Eles foram os primeiros a ser chamados para fazer parte do Colonato depois deterem sido retirados compulsivamente, e tinham um intenso ódio contra Trigo deMorais. A família Chókwè disse a Trigo de Morais: "...se quer que nós venhamospara as vossas casas, será na condição

de que não tenhamos que nos tomar assimilados, visto que pretendem quesejamos portugueses. Vocês esperam que nós nos tomemos realmenteassimilados, que nos tomemos portugueses?" Dêem-nos terra para cultivar, e fá-lo-emos a partir das nossas casas. Nós somos agricultores, e vocês encontraram-nos a fazer justamente isso quando chegaram." A família Chókwè nunca seintegrou no Colonato. Eles então enviaram um administrador "intendente", umbranco chamado António Calçada Bastos,2 para vir aconselhar (persuadir osnegros a integrarem-se no Colonato). Ele fez uma lista daqueles que queriamfazer parte do Colonato de acordo com a sua área ou distrito administrativo deorigem, e os de Manjacaze, de Inhambane etc., vieram para frente e registaram-se.Quando as pessoas do Guijá se aperceberam do que estava a acontecer, a sua

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reacção foi: "Hei, vamos perder e ficar para trás, enquanto que os de Inhambane,os chopes e outros estão a entrar no esquema!" Eles começaram então a virintegrar-se. Houve negros que se integraram, trabalharam duramente e compraramtractores. Alguns ainda conseguiram aumentar a sua terra em quatro a seis ou setehectares. Isto aconteceu quando os portugueses perceberam que a situação políticaestava a mudar - eles estavam a introduzir estes melhoramentos por forma aapaziguar os negros, a fim de extinguir o fogo que estava a começar a arder emtodo o lado. Eles convidavam estrangeiros para visitar o Colonato e ver por sipróprios que não havia discriminação (racial), que os negros e os brancos viviamlado a lado; que os campos eram os mesmos e iguais, e que tanto os negros comoos brancos tinham recebido bois: esta propaganda era arquitectada por ele(António. Casca da Bastos). Contudo, as coisas não eram assim no início doColonato, pois só os brancos é que recebiam ajuda, e só foi quando elesprosperaram e o "fogo começou a arder" que eles começaram a recrutar negrospara entrarem no Colonato.Ent: Embora tivessem começado a recrutar negros, alegando que não haviadiscriminação racial, não havia nenhuma outra forma de discriminação? Elesrecrutavam qualquer negro, por exemplo, sem ter em conta o seu níveleducacional?2 Conforme se percebeu

Nkuna: Não, não tinha importância nenhuma. Mesmo que uma pessoa fosseanalfabeta podia entrar no Colonato. Mesmo que não soubesse escrever podiaentrar, porque eles estavam apenas interessados nos números, quantos negrosforam recrutados. Ent: Sim.Nkuna: Mais tarde, alguns preguiçosos foram expulsos. Estas eram pessoas que seintegraram no esquema apenas porque estavam interessadas em obter gado, quedepois vendiam e gastavam todo o dinheiro a beber, sem pagar as suas contas.Essas pessoas foram expulsas. Mas os outros trabalharam muito bem, de facto.Ent: Ehe! Bava Mukavi, tem alguma coisa a acrescentar ao que foi dito?Mukavi: Eles (colonos) entraram no Colonato, como o Ngwenya explicou, ecomo o Nkuna nos disse. Há uma coisa importante que eu, Mukavi, gostaria deacrescentar ao que foi dito. Trata-se de uma questão que está ligada ao Colonato,que faz parte integrante desta história, e é sobre a área da Barragem. Os brancosque trabalhavam na construção da barragem eram muitos - cerca de 500. Nós, osnegros, incluindo os nossos chefes aqui presentes, ficámos alarmados porquepercebemos que a presença de tantos brancos nesta área significava um grandeperigo para nós. Soubemos que iramos sofrer e que a palmatória estaria na ordemdo dia. A chegada daquele administrador cujo nome era...Nkuna: Kotamixikito...(?)Mukavi: Não, não, ele era chamado Xijumani,...(?) Nkuna: Vaz da Silva.Mukavi: (Sim), Vaz da Silva. A chegada deste homem fez-nos sentir queestávamos cercados, acantonados. Quando viemos dar-lhe as boas vindas naadministração, avisei-lhe de que ele tinha chegado a Guijá numa altura crítica. DaSilva garantiu-nos que iria tratar as pessoas com justiça. Contudo, seis mesesdepois, houve sérios problemas com ele: a barragem tinha que ser construída

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através de xibalo, envolvendo centenas e centenas de trabalhadores do xibalo. Otrabalho nunca parava - as pessoas trabalhavam dia e noite - 24 horas por dia,quando construíram a Barragem do Limpopo. Nós vimos isto tudo com os nossospróprios olhos.

Nkuna: Gostava de acrescentar algo importante sobre a chegada dos colonos aoColonato do Limpopo. A sua chegada não nos deixou felizes; magoou-nos muitoporque criou sérios problemas para esta área, e eu desejava discutir dois dos maisimportantes. O primeiro problema foi o facto de eles expropriarem as nossasterras, os campos férteis onde produzíamos a nossa comida. Em segundo lugar,eles afastavam-nos da a área do Guijá conhecida por mananga (deserto), ondehavia solos férteis que cultivávamos. Esta área foi transformada em terra depastagens para o gado dos colonos. Como resultado, foram convocadas grandesreuniões públicas (mabandla) para deliberar sobre este problema. As reuniõestiveram lugar na área de dois chefes, na minha, Nkuna e na de Ghajani, emNthavelani. Estas mabandIa tinham por objectivo mobilizar os anciãos, osmadoda*, como o bava (Gabriel) Mukavi e (Zacarias) Makukule, a quemmandatámos para ir discutir o problema com o administrador. Pedimos a eles paracolocar a questão ao administrador da seguinte maneira:"[Senhor] Administrador, você tirou-nos das nossas terras e pôs os colonos. Nósentão refugiámo-nos na mananga, mas depois pôs lá o gado (dos colonos). Pode-nos dizer o que é que vale mais, entre uma vaca e um ser humano? Uma pessoacompra (e possui) um boi, mas não o inverso. Uma pessoa tem mais valor que umboi! Expulsou-nos das nossas terras e agora empurra-nos para fora de manangapara deixar lugar para o gado." Esta reunião foi realizada na minha casa, em Hlati.O administrador acusou-me posteriormente de agitador, de voltar as pessoascontra a autoridade. Isto era "guerra"; não havia paz na terra. As pessoascomeçaram a perceber que os brancos estavam aqui realmente para nos oprimir,como foi demonstrado pela expropriação das nossas machambas e confiscação daterra em mananga. Apesar de terem dado dois hectares de terra e algum dinheiro(como compensação), as pessoas não ficaram satisfeitas. Eles davam umapequena quantia em dinheiro, por exemplo 500 ou* N.T. - Madoda - pessoas adultas do sexo masculino chamadas frequentementecomo conselheiros, para discutir qualquer assunto importante para a comunidade.

100$00, com base em critérios ou normas estabelecidos por eles (sem nosconsultar). Se uma pessoa se recusasse a aceitar o dinheiro, eles cortavamalgumas estacas e construíam uma cabana pouco sólida que seria rapidamentecomida (por formigas). Houve muitas injustiças em torno do estabelecimento doColonato, mas estas são as principais que causaram grande amargura napopulação, que foi forçada a dispersar.Ent: Quem tomava conta do gado dos colonos na mananga, uma vez que os seusproprietários viviam nas suas casas no Colonato? Nkuna: Os colonos vinhampassar a noite depois do trabalho e os fins de semana na mananga. Depois deterem acumulado dinheiro suficiente, começaram a empregar negros para tomarconta do seu gado. Antes disso, eles próprios, juntamente com os seus filhos,

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tomavam conta do gado. Sim, os seus próprios filhos tomavam conta do gado.Depois da escola, as crianças vinham tomar conta do gado. Mais tarde,empregaram os nossos próprios filhos para o fazer3. Mesmo os adultos negroseram empregados como capatazes nas pastagens de gado. Deste modo, os colonoscomeçaram a dedicarse à criação de gado.Ent: Bava Ngwenya, tem mais alguma coisa a dizer? Ngwenya: Não, eu já dissetudo.Ent: E bava Makukule?Makukule: Não tenho mais nada a dizer. Ent: Bava Eliaza Nhlongo, qual é o seucomentário sobre o que foi dito?Nhlongo: Não tenho muita coisa para acrescentar sobre o que foi dito. O que elesdisseram foi o que aconteceu na nossa terra, nesta área. O sofrimento era grande,e nós pessoalmente passámos por isso - nós que estamos aqui a falar sobre issoagora. Os colonos, com o poder do estado, fizeram grandes estragos nesta área;eles não vieram aqui para brincar. É verdade que quando eles desembarcaram pelaprimeira vez dos navios, as autoridades não queriam que eles fossem vistos (comroupa esfarrapada). Mas assim3N.A.: Em 1977, o autor teve uma conversa na residência de estudantes emMaputo, com um estudante de direito que cresceu como um aluno/pastor emGaza. 90

que eles chegaram ao Guijá, ficámos surpreendidos por vê-los a juntar-se a nóspara dançar xingombela [uma dança vigorosa e altamente sensual executada porhomens e mulheres juntos]. Ent: Eles dançavam xingombela convosco? Nhlongo:Xingombela! Eles divertiam-se no xingombela. Nkuna: Assim como as crianças.Nhlongo: Eles dançavam, fazendo com que as pessoas ficassem admiradas comaquele tipo de pessoas [que, embora fossem estrangeiros, executavam as nossasdanças daquela maneira]. Mas quando o governo [os funcionários] viram isso,sentiram que os colonos estavam a rebaixar-se. Quando viram os colonos a tocartambores e a dançar xingombela com as suas mulheres, não gostaram eobrigaram-nos a parar. Começaram a ensinar-lhes como comportarsedevidamente.Ent: Foi o administrador que acabou com isso? Nhlongo: Foi o administrador e oscomerciantes brancos. Os colonos costumavam juntar-se ao ar livre e dançar lá,como quando nós dançamos ndzumba. O administrador e outros brancos achavamque este comportamento rebaixava-os como governantes, porque os governadospodiam concluir que esta era uma prática no país donde eles vinham. Isto é tudo oque tenho a dizer. Ent: Vamos agora falar do algodão. Quando é que a produçãode algodão começou no Guijá?Makukule: Eu vou começar. Quando o algodão começou nesta área, nós, osprodutores ("machambeiros"), éramos o centro de atenção. Concordámos emparticipar no cultivo do algodão. Disseram-nos que o algodão que iríamosproduzir seria nosso e que receberíamos 1$20 por (Kg). Nós produzimos durantedois anos, e no terceiro ano, eles puseram polícias e vigilantes, que nos seguiamatrás todos os dias. Hawu, estranhámos! Que tipo de trabalho é que estamos afazer agora, com dois polícias a seguir-nos? Havia um capataz da Companhia (do

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algodão), e um segundo polícia era o régulo ou o chefe. É assim que eles usavamos chefes. No terceiro ano, começámos a mostrar descontentamento, mas dumamaneira subtil. Eles disseram-nos para não ficarmos descontentes, que nosmantivéssemos calmos. Éramos seis aqui em Hlomani que

tínhamos começado a produzir algodão. Eles então ofereceram-se para aumentar opreço de 1$20 para 1$30. Também prometeram fornecer-nos enxadas, meios parafazer a sacha e dinheiro para nos ajudar nas colheitas, mas não vimos estas coisas.O que eles me deram a mim foi um saco de feijão e um saco de milho, e isso foicom intenção de me calar. Nós reclamámos, e eles aumentaram o preço doalgodão para 1$50 por Kg. Quando as autoridades se deram conta de que aprodução de algodão era boa, decidiram fazer pressão sobre os chefes, dizendo:"Envolvam o resto da população no cultivo do algodão porque o actual número deprodutores é demasiado pequeno; a extensão que está a ser cultivada éinsuficiente". Eles então fizeram um recenseamento e fomos todos contados eregistados. A produção de algodão cresceu muito nesta área. Então vimos overdadeiro sofrimento: havia permanentemente um polícia e um capataz que nosseguiam sempre. Os polícias do régulo também acompanhavam o capataz paraverificar tudo. Se vissem que o lugar (trabalho) não era satisfatório, a pessoa erachamada para ir estender a sua mão à palmatória, para que no futuro soubesseobedecer às instruções. Toda a região estava agora envolvida no cultivo dealgodão - todos, homens e mulheres. Se alguém fugisse de manhã cedo para irtratar do milho ou voltasse para casa à hora do almoço, o capataz podia aparecer emandá-lo de volta para a machamba de algodão, e nós obedecíamos. Alguns eramchicoteados pelo capataz, e mesmo os chefes receberam castigos corporais, compalmatória, por não conseguirem garantir que o algodão fosse tratado de modoque o capataz do algodão considerasse satisfatório. O régulo Nkuna aqui tevesorte porque nunca apanhou palmatória; eles tinham-lhe algum respeito. O meupróprio régulo (Hlomani) foi também poupado. Contudo, muitos outros réguloslevaram com palmatória.O algodão causou um grande sofrimento. Era, de facto, xibalo. Era trabalhoforçado que não discriminava homens, mulheres e crianças. Afectou toda a gentede igual modo. E vou parar por aqui mas, se eu soubesse que vínhamos aqui parafalar da produção do algodão, teria trazido uma caderneta que apanhei naadministração, onde li tudo o que eles disseram acerca da produção do algodão.Depois de.

ler o caderno, vim ter com o HIomani, o meu régulo, e disse: "Hlomani, meuchefe, não quero mais participar na produção do algodão!" O régulo respondeu:"Bava, eles vão matar-te com a palmatória" (se parasse de cultivar). Eu disse queacontecesse o que acontecesse, não queria ouvir nada sobre o algodão, porquedetestava-o. Colhi o meu algodão em 1944 e enviei-o. Já não queria mais lidarcom ele porque o trabalho que estávamos a fazer era xibalo.Ent: Parou de produzir algodão em 1944, e o que é que lhe aconteceu depoisdissó?

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Makukule: Eles chamaram-me para me castigar, mas eu recusei. Ent: Deixaram-no em paz?Makukule: Eles deixaram-me em paz e nunca mais voltei a cultivar algodão.Ent: Qual era o tamanho da sua machamba quando cultivava algodão?Makukule: Deram-me uma área de 150m x 150m. Ent: E as suas mulheres?Makukule: Eu tinha apenas uma mulher na altura, e tínhamos quatro criançasjovens.Ent: A sua mulher tinha uma machamba separada de algodão? Makukule:Trabalhávamos juntos na mesma machamba. Ent: Então vocês trabalhavam juntosna mesma machamba. Makukule: Sim, e também com as crianças. Ent: Quando éque foi introduzida a produção do algodão no Guijá? Makukule: Foi introduzidano Guijá em, ---eh-Nkuna: Em 1937.Makukule: 1937, sim, 1937. Foi em 1937-38 que iniciou o algodão, pelo qualrecebíamos 1$20 por Kg. Em 1950, estava então a ser cultivado em toda esta área(por todas as famílias), e nessa altura pagavam-nos zukwa (sixpence).Ent: Abner Ngwenya, tem alguma a acrescentar, da sua experiência pessoal, aoque Makulue disse?Ngwenya: Estive envolvido no cultivo do algodão. Comecei a vender algodão em1939. Mas não era eu que produzia, era a minha mulher. Eu era um trabalhadoremigrante mas estava registado como

machambeiro porque, se alguém possuísse uma charrua e dois bois era chamadomachambeiro, e por consequência era-lhe atribuído um hectare. Uma vez que eutinha uma charrua, deram-me uma machamba de um hectare. Como trabalhadoremigrante, eu produzia algodão quando estivesse em casa, e na minha ausência,era a minha mulher e a minha mãe que usavam os bois para trabalhar. Eu produzialgodão até à altura em que já não pude ir mais para as minas porque fui apanhadoe enviado para a tropa portuguesa. Isso foi em 1947. Quando voltei, em 1951, aprodução de algodão ainda continuava. Houve uma colheita abundante em 1953.Havia tanto algodão que, embora se tivesse utilizado camiões para levar o algodãopara a fábrica de descaroçamento, uma grande quantidade acabou por se estragar.A seguir à minha desmobilização da tropa, envolvi-me pessoalmente na produçãode algodão a tempo inteiro. A partir dessa altura nunca mais trabalhei para osportugueses (para um patrão) até hoje. Sim, produzíamos algodão. O algodão, (erepito) o algodão é uma cultura difícil! É uma cultura difícil em si, e nós tivemosmuita dificuldade em lidar com ela, e era muito difícil porque os capatazes batiamnos agricultores. Os gestores do algodão brancos e o capataz eram mais temidosque o comissário nativo. O régulo não era temido mas o capataz era, porque seviesse para a machamba de alguém e visse que esta estava "suja", podia bater-lhe,podia até mandar a mulher parar de pilar o milho na hora do almoço e mandá-lapara a machamba de algodão para sachar. Sim, experimentei a produção dealgodão desde 1953. Este era o tempo em que o administrador (de alcunha)Xikatlula (o que chicoteava até arrancar a pele) foi substituído por outro (cujaalcunha era) Xijumani (o que atacava sorrateiramente). Após a chegada deXijumani, o cultivo de algodão sofreu uma grande mudança para pior. Oscapatazes tomaram-se mais perversos. O branco encarregado do algodão,

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Monteiro de Barros, e o seu capataz, que estavam fixados na nossa área deHlomani, tomaram-se extremamente maus. Se ordenassem que até uma certa datatodos os caules de algodão (após a colheita) deviam estar limpos e queimados, aordem tinha que ser cumprida. Se alguém falhasse, eles forçavam-na a carregartodos os

caules para ir despejá-los no Mumithi (Limpopo), se a sua machamba estivessepróxima do Limpopo. É essa a razão por que o cultivo do algodão era penoso.O tempo passou, e estávamos agora em 1958. Eu estava um dia a descansar emcasa quando recebi uma nota a dizer que tinha que ir à casa do Mukavi. Não tinhaideia porque é que estava a ser chamado, mas fui à casa do Gabriel Mukavi.Quando lá cheguei encontrei o Zacarias Makukule juntamente com o filho do seuirmão mais velho, o Ezequiel Makukule - num total de três madodas (anciãos)presentes. Eles disseram-me que "nós convidámo-lo para aqui porque a terra estáa arder por causa da cultura obrigatória do algodão. O que é que pensa?" A minharesposta foi que eu era da mesma opinião. Eles então disseram: "bem, convidámo-lo para aqui porque percebemos que você agora é um homem maduro, tomou-sehomem, por conseguinte, decidimos convidá-lo aqui para discutirmos osproblemas sérios colocados pela cultura obrigatória do algodão". Eu disse-lhesque estava pronto e que podíamos seguir em frente. Então disseram-me quetinham decidido fazer reuniões, e que estas seriam efectuadas à noite. Os outrosanciãos seriam, e de facto foram, depois convidados para participar nestasreuniões. Estas reuniões eram realizadas à noite porque eram secretas, e nem orégulo nem os chefes foram informados sobre a sua realização. Nestas reuniõesnós deliberávamos sobre o que devia ser feito sobre a cultura obrigatória doalgodão, e finalmente decidimos que devíamos abordar o administrador. Contudo,pensámos que antes de abordar o administrador, os anciãos deviam ter umareunião (preparatória). Os anciãos de Massingir, Mabalane, Manzimhlope, etc.deviam encontrar-se por forma a irmos como um grupo unido. Nós realizávamosestas reuniões em casa do Gabriel Mukavi ou em casa do Zacarias Makukule, otal que tinha a alcunha de Ximbhinyani (pequeno cabo de enxada). O outro lugaralternativo de reunião era em "casa do Leão", em casa do falecido Pedro Tivane.Agora, como é que isso ia ser feito? Eles disseram que devíamos seleccionaralguns "embaixadores", que deviam contactar os chefes e discutir com eles osproblemas (sobre cultura forçada do algodão). Eles escolheram-me a mim e aofalecido Pedro Tivane. Instruíram-

me dizendo: "Vai ter com o régulo Xitlolo, mas passa pela casa de XikweniNovela", e foram Gabriel Makavi e Ximbhinyani que disseram isso. Elesdisseram: "vai e fala sobre o problema da cultura forçada do algodão. Pergunta-lhes se eles estão felizes com isso, se se sentem bem, e se têm consciência dofacto de que nós já lançámos a luta aqui em Hlomani". De facto nós fizemosmesmo isso. Conduzimos as nossas bicicletas e chegámos à casa, ondeconvidámos o ndhonga (família) e explicámos-lhes a questão. A reacção foi: "Oquê, quem teria pensado que vocês, de Hlomani, estavam conscientes (oupreocupados) com este problema!" (Eles disseram): ".. .na semana passada um

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polícia da administração defecou (a céu aberto) e depois pegou numa parte dassuas fezes com o seu pau e besuntou a cara de uma pessoa, dizendo depois a essapessoa "você cheira mal, você é inútil como esta merda!". Nós exclamámos:"Hawu, aconteceu mesmo uma coisa dessas?", e eles responderam que de factoisso tinha ocorrido. Convidámo-los então a ir a uma reunião em Hlomani numcerto dia. Eles deviam vir à noite e não durante o dia.Quando voltámos para reportar o resultado da nossa missão, eles (os anciãos)disseram, "Hei rapaz, você agora deve ir ao régulo Ghajani Mapeceye4." Quandolhes perguntei quem me ia acompanhar, disseram-me que era Samson Nhlongo.Instruíram-nos para irmos pela casa de Zankewu Mahlayeye5, que deviaacompanhar-nos para Mapeceye, uma vez que ele era um homem bem conhecidodos nossos anciãos. Eu, que estou agora a falar consigo, levei essas mensagens amando destes anciãos. Depois de explicar o assunto ao Mahlayeye, eleacompanhou-nos ao régulo, onde explicámos que se tinha tomado uma decisão(pelos anciãos de Hlomani), de levar a queixa ao administrador. Pedimos-lhe queele escolhesse dois anciãos seus, em segredo, que se juntariam à dele4 Talvezsignifica ~regulo Ghajani do outro lado do rio" [mpeceya=outro lado do rio].Ghajani já foi referido acima.' Na transcrição portuguesa Zaqueu Maxaieie. Vários membros da linhagemMaxaieie de Lionde e Chòkwé, que eram machambeiros, engajaram-se ao ladodos nacionalistas na UDENAMO e FRELIMO.

gação que ia à administração. O régulo seleccionou Samuel Nhlana e ZankewuMahlayeye.Quando todos foram contactados, incluindo o régulo Maxele (Machele), ondehomens corajosos e fortes como o Isaka Mundhini, Dias Ngomani, RibeiroKubayi e Elija Mthombeni viviam, todos os anciãos foram convidados para umareunião em casa do Ximbhinyani. A questão foi levantada: "O que é quefaremos?" A resposta era que devia ser enviada um delegação para ir dizer aoadministrador que a população queria ter uma reunião com ele. Eles escolheram-me a mim, Abner Ngwenya; escolheram o João Mahlanza Xiviti; escolheram oIsaka Mundhini, e escolheram o Dias Ngomani - éramos quatro os madodas queforam escolhidos. Então fomos ter com o administrador e confrontámo-lo.Dissemos ao intérprete que desejávamos ver o chefe, o administrador. Quando opedido lhe foi comunicado, a resposta foi um (desdenhoso) "quem são eles?"Quando lhe disseram que alguns madodas queriam falar com ele, ele saiu do seugabinete, ficou na varanda sem nos convidar a entrar. Ele olhou para nós comopessoas insignificantes. Mantevese de pé, com as mãos nos quadris e disse,(vamos), "falem, falem!" Nós dissemos que vínhamos dizer-lhe que a população,através dos anciãos, desejava falar com ele. Pedimos ao intérprete para transmitiressa mensagem ao administrador, e ele fê-lo em português. O administrador ficousilencioso por algum tempo e depois disse: "Um dia um lobo apanhou umcordeiro a beber água no rio, e disse para o cordeiro, 'Ah, és tu que costumas sujarestas águas de lama, eh!' o cordeiro respondeu: 'Não, não sou eu. Esta é a primeiravez que bebo aqui'. O lobo respondeu: 'Mesmo que não sejas tu, o teu pai e o teuavô fizeram-no. Por isso, serás comido hoje"'. O administrador continuou,

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dizendo que nunca nos daria um dia para um encontro marcado, em que nós, osmadoda, pudéssemos falar com ele. Ele disse que, talvez no futuro ele nospudesse convidar para uma conversa, se e no caso de a administração se dividirem novos gabinetes, que funcionariam do nosso lado do rio. "Fambani" (vão-seembora), ele mandou-nos embora sem cerimónias. Nós voltámos e reportámosisto aos anciãos, e a sua reacção foi de que tínhamos que ir em massa cercar oedifício da administração.

Isto era Mfuxe-Mfuxe. "Vamos 'mfuxela'* a administração e encher todo o sítio" -ordenaram. Nós fomos e 'agitámos' (dhumela xikanekisso)* * o edifício daadministração. Quando o administrador viu que o lugar estava invadido por umamultidão, chamou o nome de Gabriel Mukavi (para avançar como um "portavoz"). Quando ele gritou "Gabriel, Gabriel!" todos nós avançámos para a varandae perguntámos-lhe o que é que ele queria fazer com o Gabriel. "Nós estamos aquipara discutir o problema do algodão; dê-nos uma data em que possamos discutireste problema consigo", pedimos. "Dispersem; vão-se embora, não tenciono falarconvosco", ordenou! Todos nós dispersámos, mas fomos reunir-nos na cidade6(Chókwè), no quintal de uma família indiana. Poucos dias depois ouvimos,através dos chefes, que o administrador estava agora pronto a encontrar-seconnosco. Antes de irmos à reunião, realizámos primeiro um encontro deplanificação da nossa própria estratégia. Nesse dia reunimo-nos com dois régulos,Machele e Hlomani, em casa do Muhondo, onde lhes informámos sobre asituação. A sua reacção foi "vão em frente, não retrocedam; estamos convosco!"Sim, a pergunta que colocávamos a nós mesmos era o que é que iríamos fazer(agora que o administrador concordou em falar connosco). A resposta era quetinha que ser escolhida uma pessoa como porta-voz para apresentar o nosso casoao administrador. Eu, Abner Ngwenya, fui escolhido para essa tarefa. Contudo,parecia que a nossa estratégia tinha sido prevista porque, quando chegámos àreunião, o administrador decidiu que cada régulo devia escolher um homem parafalar em seu nome. Isto era claramente um plano para nos intimidar. Ele esperavaque um homem escolhido desta maneira para falar, não sendo membro da nossaorganização secreta, poderia fazer declarações que haviam de entrar emcontradição com todas as nossas razões de queixa.Todos os chefes e régulos estavam presentes e sentados juntos. Havia umescriturário que ia registando tudo o que se dizia com uma máquina"N.T.- Vamos visitar a administração. "" N.T.- Agitar a administração. 6N.E.:Provavelmente era vila na altura.

de escrever, e polícias bem uniformizados, com as suas armas bem polidas, de pée atentos. A primeira pessoa que foi chamada para falar representava o réguloMbeki. Mas o que é que ele podia dizer quando o espírito da nossa organização játinha tocado muitas pessoas? Ele criticou a cultura obrigatória do algodão. Aseguir foi o representante do régulo Machele. Bem, este era um ancião sensato,Isaka Mundhindi, e criticou também a cultura obrigatória do algodão. Como eu játinha sido escolhido para representar o régulo Hlomani, levantei-me e também

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critiquei a cultura obrigatória do algodão. O Mukavi, que foi escolhido na nossareunião preparatória para falar sobre o xibalo, levantou-se e falou sobre isso.Ao falar sobre a cultura obrigatória do algodão, declarei que, embora o algodãofosse nosso, não tirávamos nenhum benefício dele; que éramos enganados durantea sua pesagem, e ainda por cima batiamnos quando estávamos na machamba.Face a este tratamento, quem era afinal, o dono deste algodão, perguntei. Amáquina estava a registar tudo à media que falávamos. Perguntaram-nos entãoquanto é que queríamos pelo algodão, e nós dissemos dois xelins; queríamos doisxelins por Kg. O preço do nosso algodão foi então aumentado para 3$80 por Kg.Recebemos este dinheiro como resultado da luta! A partir desse dia, nunca maisapanhámos palmatória. Quando íamos vender a colheita produzida durante a luta,o branco encarregue da pesagem insistia para que verificássemos a balançaenquanto ele pesava cada saco de algodão. Sim, vimos a miséria que a culturaobrigatória do algodão trouxe a esta terra de Hlomani (onde se realizou aentrevista). Fizemos uma greve a que chamámos Mfuxe Mfuxe, e enfrentámos oadministrador. Durante este tempo, os distritos da Macia (Bilene-Macia), Chibutoe Magude estavam a observar e estavam com os ouvidos bem abertos. Eles nuncaapanharam palmatória porque Guijá trabalhou (lutou contra a cultura obrigatóriado algodão). Ent: Vocês deram a este administrador o nome de Xijumani: porqueé que lhe deram esse nome?Ngwenya: Ele veio de Bilene Macia com esse nome; não foi dado aqui em Guijá.Ent: O seu verdadeiro nome era Vaz da Silva? Makukule: Adriano Vaz da Silva.

Ent: Gostaria de saber dos anciãos quem enviou a carta para o Ngwenya - porquevocês chegaram à conclusão de que ele era, então, um "homem ideal" - quaisforam as qualidades que vocês viram nele?Makukule: Nós conhecemos este ndoda (ancião) na nossa igreja. Nós fazíamosum estudo cuidadoso da personalidade e carácter de qualquer pessoa que seassociasse à nossa igreja. Ficámos a conhecer a sua força. Conhecêmo-lo aindajovem, e ele tomou-se homem diante dos nossos olhos: podiam ser-lhe confiadosassuntos confidenciais; é isto o que vimos nele. Ent: Mukavi, foi você queescreveu a carta para ele, tem alguma coisa a acrescentar ao que disse oMakukule? Mukavi: Sim.Ent: À noite.Mukavi: Ha, ha, haa!Makukule: De facto, a luta foi conduzida à noite! Mukavi: É verdade o que oMakukule disse (sobre as qualidades do Ngwenya). Quanto a mim, posso dizerque este homem cresceu debaixo dos meus próprios olhos - eu conheci-o quandoele ainda gatinhava. Observei-o a partir da altura em que eles (rapazes) dançavamswichacha e quando apascentavam bois. Nós conhecêmolo na igreja onde elerealizava, de bom grado, qualquer tarefa que lhe pedíssemos. A sua intervençãonas discussões realizadas pelos anciãos mostrou um sentido de maturidade da suaparte. Concluímos, a partir destas observações, que este jovem devia serintegrado, dado que seria precioso para nós, e ele provou que tínhamos razão.Usámolo como mensageiro para ir de um lado para outro (e nunca falhou). Ent: E

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você, bava Nkuna, o que é que nos pode dizer acerca da cultura forçada doalgodão?Nkuna: Vou acrescentar algumas coisas que não foram referidas. Vou falar sobreo tempo em que o país (povo) decidiu revelar a opressão do regime colonial -quando, depois da colheita, as pessoas foram forçadas a queimar os caules doalgodão estando ainda verdes: éramos obrigados a cortar os caules e queimá-losquando ainda estavam verdes! Alguns ndunas de certas áreas decidiram organizaruma petição em que expunham o facto de, aqui no Guijá, as pessoas100

serem forçadas a queimar os caules quando ainda estavam verdes. Como estes nãose queimavam (facilmente), éramos chicoteados pelos polícias. O administrador,Adriano da Silva, enviava a polícia para nos vir bater. Estes ndunas vieram efalaram comigo confidencialmente sobre esta petição. Tinham sido enviados poroutros chefes que queriam que eu soubesse o que se estava a passar, e pediram-meque incluísse o meu nome na petição: "Como você está a colaborar connosco,viemos para que você e os seus madodas (anciãos/conselheiros) assinem apetição", disseram eles. Eles informaram-me que tinham já estado no (chefe)Malawu em Manzimhlope, e agora vinham ter comigo. Eles queriam saber o queeu pensava sobre aquele assunto da petição - será que eu e os meus anciãospodíamos assiná-la? Para mim era óbvio que a petição era sobre a realidade danossa experiência diária sob o regime colonial: a pancada e o sofrimento.(Contudo) eu pessoalmente nunca apanhei; (por alguma razão) eles, os políciastinham algum respeito por mim - mostravam algum respeito. Mas muitos outroschefes, alguns mais importantes do que eu, foram chicoteados. (Por exemplo)Mbhika foi chicoteado; o Mbhika foi chicoteado. Ele foi chicoteado abertamentena machamba de algodão - foi chicoteado na machamba. Mbhika era um chefesénior, um homem de posição, (mas) foi chicoteado na machamba de algodão àfrente de mulheres!Por isso, quando eles me trouxeram esta petição, reuni os meus anciãos(conselheiros). Mandei chamar Dias Ngomani, mandei chamar Isaka Mundhindi,mandei chamar Elija Mthombeni e Ribeiro Kubaye. Na minha casa emMazimhlope estavam Thelighadi, Ubisse e Titossi. Lázaro assinou o documento, apetição, confirmando que tínhamos compreendido e estávamos de acordo com asreclamações contra o administrador.A preparação desta petição mostrou-nos que esta terra (isto é, o povo) tinha maispoder do que nós; os chefes. Fizeram-na, uma vez que nós éramos merosempregados (domésticos) do administrador. Como resultado desta petição, houveum abrandamento nas exigências da cultura do algodão. O administrador recebeuum aviso para ter cuidado com a forma como lidava com as pessoas em relação101

às exigências da cultura do algodão. Com uma longa lista de assinaturas, oadministrador compreendeu a mensagem: a cultura obrigatória do algodão tinhaperdido a sua força. A partir dali, apenas os que desejavam produzir algodãocontinuaram a fazê-lo, pois os que não queriam deixaram de fazer esta cultura. O

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governo está hoje a apelar à população para recomeçar a cultivar algodão, mas aresposta é negativa porque as pessoas ainda se lembram da história da cultura doalgodão; ele lembram-se do sofrimento e não desejam começar de novo a produziralgodão. Isto é especialmente verdade em relação às comunidades do Vale doLimpopo, onde a exploração foi maior. As pessoas ainda têm medo, apesar de oalgodão hoje ter muito dinheiro. Eles dizem que é impossível um leão tornar-seleopardo, e dizem que uma mamba será sempre uma mamba! Apesar de hojehaver muito dinheiro no algodão. As pessoas têm receio de se envolver, pois~gato escaldado até de água fria tem medo!" A cultura obrigatória do algodãocausou um grande sofrimento nesta terra. Não houve mais nada que tivessecausado mais sofrimento aos homens e mulheres do que a cultura obrigatória doalgodão. Assim, as [últimas] palavras de Ngungunhana7, quando ele disse [emzulul "Miya kusebenza ne bafazi beno!" consumaram-se.Makukule: [Isto significa que] vão vos fazer trabalhar duramente junto com asvossas mulheres! (uma vez que os portugueses levaram Ngungunhana).Nkuna: (Sim) vão fazer-vos trabalhar duramente junto com as vossas mulheres.De facto, verificou-se que os homens e as mulheres tinham de cultivar algodãosQb ameaça nesta terra. É isto que eu queria acrescentar ao que foi dito, e realçarque foram os conselheiros e os anciãos de Guijá que conseguiram organizar ecanalizar as energias da população para fazerem um bom trabalho (de desafiar aopressão colonial).' Segundo a tradição as últimas palavras de Ngungunyani em Gaza, quando presoe embarcado no vapor em fins de 1895. Teria dito: Hão-de trabalhar com asvossas mulheres.102

Ent: Obrigado, Kanimambo! E agora, bava Nxumayo: você era um dos jovens quelevava as mensagens junto com bava Ngwenya. Você levava as mensagens paratodo o lado, convidando as pessoas para participarem em reuniões (secretas) sobrecultura obrigatória de algodão. De que é que se lembra a respeito destasactividades? Nxumayo: Não tenho nada a acrescentar ao que foi dito. O que osanciãos afirmaram é precisamente o que vimos com os nossos próprios olhos eouvimos com os nossos próprios ouvidos. Ent: Obrigado. E você, KokwanFNhlongo, qual é a sua opinião sobre o que nos contaram acerca da culturaobrigatória do algodão- tem alguma coisa a acrescentar a isso? Nhlongo: Só posso confirmar que o quefoi dito é a verdade: todos nós passámos por um grande sofrimento durante acultura obrigatória do algodão. Mesmo quando hoje nos dizem que podíamosganhar muito dinheiro cultivando algodão, nós só nos lembramos dessesofrimento. As pessoas ainda têm medo dessa experiência. Ent: Essa experiênciaainda provoca medo às pessoas? Nhlongo: O quê! (Sim), têm medo de que asmesmas experiências voltem de novo - quando um supervisor (de algodão)aparecia subitamente numa altura em que uma pessoa estava a comer e levavaacomo um boi, para a machamba de algodão. Sim, o que foi relatado aqui éverdade, e não há mais nada a acrescentar ao que foi dito. Ent: O ano de 1958 é

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muito importante na memória do povo do Guijá. Há outros anos que provocamrecordações tão fortes para o povo aqui?Mukavi: Há períodos desses aqui no Guijá; o sistema de xi-Padre que foiintroduzido aqui nunca será esquecido, porque foi um dos acontecimentos(históricos) que despertaram o povo. Isso foi quando as escolas foram transferidasdo governo para a autoridade dos padres. Depois disso, os padres abriram grandesmachambas, em que produziam algodão para venda. As nossas crianças erampostas a trabalhar para produzir algodão. Entre os que perderam a sua terraencontrava-se Zacarias Makukule"N.T. - Kokwani - avô.103

(Ximbhinyani). Ele foi a primeira pessoa a perceber o que os padres queriam e fezsoar o alarme, e começou a luta - tudo sozinho. Viajou para Maputo (entãoLourenço Marques) à procura de ajuda. Lá, encontrou o Daniel Tivane, que oapresentou a um advogado. Ele contou ao advogado 9 que estava a acontecer emGaza (entre outras coisas), que os padres estavam agora a envolver-se naagricultura quando deviam concentrar-se no ensino. (No seu regresso de LourençoMarques) Ximbhinyani foi convocado para o gabinete do administrador para serinterrogado. Todos os anciãos foram com ele. O administrador disse queXimbhinyane devia apanhar palmatória, mas ele recusou submeter-se ao castigocorporal. Por causa da presença de todos os anciãos, o administrador mudou deideias e ordenou que Ximbhinyani fosse metido na cadeia. Todos nós seguimo-lo(fazendo um protesto silencioso) e sentámonos no portão da prisão.Ent: Em que ano foi isso?Mukavi: Foi... lembra-se do ano, Ximbhinyani? Ximbhinyani: 48.Mukavi: 48; sim. Fomos todos nós e sentámo-nos na prisão. O administrador...(não), o substituto, o secretário - um homem barrigudo - como é que ele sechamava? Nkuna: Manikiniki (barriga que treme). Makukule: Mosca Rosa.Mukavi: Mosca Rosa! Ele mandou-nos dispersar da prisão. Dispersámos depoisde uma tentativa de salvar o nosso jovem que estava em problemas sérios. Este foio imcio de (importantes) eventos no Guijá.Os padres não simpatizavam connosco, os anciãos de Guijá. (Mas, comencorajamento) dos dois chefes, Hlomani e Machele (Nkuna), começámos uma"revolução" aqui em Hlomani: nós retirámos as enxadas aos nossos filhos.Realizámos encontros, e este "rapaz" (Ngwenya) estava presente (quando)convencemos o chefe Hlomani (da necessidade de resistir). O outro chefe,Nxumayo, aqui, em cuja casa as importantes actividades revolucionárias eramplaneadas secretamente, estava já envolvido. Decidimos manter as enxadas e ogoverno veio perguntar-nos sobre isso. As nossas crianças deixaram104

de levar enxadas para as machambas de algodão dos padres, e assim o algodãonão podia ser cultivado. Como consequência, os padres começaram a comprar assuas próprias enxadas para permitir que a cultura de algodão continuasse. Isto foiem 1948, um ano muito difícil. Foi nesse ano, e Machele (Nkuna) pode confirmar

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isso, que o Governo do Sul do Save foi estabelecido. Ngwenya: Eu não estavacá...Mukavi: Este "rapaz" estava na África do Sul. Ngwenya: Eu estava na Índia.Mukavi: Você estava na Índia em 1948 - quando o Governo do Sul do Save foiestabelecido (no dia em que fomos dar as boas vindas ao Governador do Sul doSave)... Levantei-me para falar, sem consultar previamente os anciãos, contra acultura de algodão no Guijá.Não os consultei antes de falar porque pensei que podiam desencorajar-me defazer isso. Eu disse ao governador que nós estávamos a enfrentar problemas nestaterra relacionados com o cultivo do algodão. Isto foi em 1948. O preço do algodãoera de 1$50 (por Kg). O cultivo do algodão estava a causar muito sofrimento - enão dava dinheiro. Apresentei estas reclamações sem me aperceber de que estavanum terreno perigoso, porque o Secretário, que tinha substituído... (como é queele se chamava?) Nkuna: João Domingos.Mukavi: (Sim) João Domingos.Makukule: mmm! (Domingos costumava arreganhar os dentes). Mukavi: (Depoisda reunião) eles vieram e levaram-me [de volta para a administração]. Pensei, eagora, o que é que eu fiz? [Arrependime] de ter reclamado perante o Governadorsem consultar previamente os chefes. O administrador queria saber porque é queeu tinha falado directamente com o Governador sem antes o consultar. A minharesposta foi que eu não via necessidade disso porque ele, o administrador, nãoteria tomado nenhuma atitude em relação às nossas razões de queixa. Eu falei como Governador porque tinha confiança de que ele levaria as nossas queixas paraLourenço Marques. Fui ameaçado de prisão, mas disse ao administrador queestava preparado para ir para a cadeia.105

(Felizmente para mim) aconteceu o Doutor Sousa Santos' estar a passar quando aameaça foi proferida e decidiu agir como meu advogado. Ele interveio: "...Esterapaz não teve culpa nenhuma porque estava a esclarecer o que ele sabia.. .Vocêsdeviam apreciar quando a população [abertamente/honestamente] vos informasobre as suas queixas". Sousa Santos defendeu-me, e este foi o início de umarelação estreita entre o Dr. Santos e nós. Estas pessoas aqui ficaram surpreendidasquando saí do gabinete do administrador como um homem livre. Eles ficaramadmirados sem saber como é que eu tinha conseguido evitar ser preso. Nada meaconteceu porque Deus estava connosco. Eventos mais importantes, que vamosrelatar, iam ainda acontecer.Ent: Bava Nkuna, quer acrescentar alguma coisa ao que acabámos de ouvir?Nkuna: Gostaria de acrescentar qualquer coisa, mas não muito. Eu estava presentena cerimónia de recepção do Governador do Sul do Save. Testemunhei isto queMukavi acaba de contar. O Secretário Ghadhuka estava muito aborrecido [com aintervenção do Mukavi]. Ele tinha alcunha de Ghadhuka por causa da forma comoandava assim! (imitando). Ele era um homem cruel - batia nas pessoas (à maispequena provocação), e por isso o que o Mukavi disse enfureceu-o. Mas haviauma boa razão para o Mukavi ter falado: as pessoas tinham sido convidadas aavançar e dizer os problemas que tivessem. A reclamação do Mukavi era apenas

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uma das tantas que foram apresentadas (nesse dia), mas o problema é que os(funcionários) portugueses locais não queriam que a população fizesse ouvir assuas razões de queixa em público, e por isso o secretário tentou intimidar oMukavi. O Dr. Sousa Santos era diferente dos outros portugueses - e ele estavapreparado para lutar pela causa dos negros. Foi por isso que ele tentou falar comGhadhuka, o encarregado, para lhe fazer compreender o quão importante erapermitir que a população apresentasse as suas razões de queixa. Eu apoio o que oMukavi nos disse porque vi com os8 Possivelmente um veterinário com simpatias pelos africanos e não o inspectoradministrativo Sousa Santos, que também esteve na área depois doestabelecimento do Colonato do Limpopo..106

meus próprios olhos e ouvi com os meus próprios ouvidos o que aconteceu.Ent: Gandhuka era a mesma pessoa que João Domingos? Nkuna: [Sim], JoãoDomingos. Demos-lhe essa alcunha por causa da forma como ele andava.Ent: Obrigado.Agora voltamos para si bava Ximbhinyane. Pode explicar a sua visita clandestinaa Lourenço Marques, quando encontrou o Daniel Tivane, que subsequentemente oapresentou a um advogado. O que é que aconteceu então?Makukule (Ximbhinyane): Saí da prisão onde tinha sido encarcerado depois deuma luta com os padres que tinham levado as minhas terras. Eles tinhamapresentado uma queixa contra mim ao administrador. Quando cheguei àadministração acusaram-me de ter faltado respeito ao governo. A minha respostafoi que a acusação era falsa e que, pelo contrário, eu continuava leal e comrespeito pelo governo. Disseram que eu estava a mentir e ordenaram que medessem palmatória como punição. Recusei submeter-me a esta ordem, masquando ameaçaram prender-me, mudei de ideias e submeti-me ao castigocorporal. Eles começaram a dar-me palmatoadas, mas ao terceiro golpe retirei aminha mão e disse-lhes que era suficiente e não estava preparado para levar mais.Eles pararam mas ordenaram que eu fosse encarcerado por quinze dias "...mandapara o calabouço - 15 dias..."! Antes de eu deixar a administração eu disse aoSecretário: "...olhe, senhor Secretário, você e eu vamos falar quando eu sair daprisão dentro de 15 dias. Você puniu-me sem que eu tivesse culpa alguma. Opadre que apresentou queixa contra mim veio aqui como professor, mas em vezdisso envolveu-se em actividades agrícolas. Ele não ensina, mas cultiva a terracom as nossas crianças [mão-de-obra barata]". Fui para a prisão mas só fiquei lá -e vou dizer isto em inglês - apenas 15 minutos.Ente: Ha, ha, ha!Makukule: Depois de 15 minutos o Dr. [o trabalhador de saúde foi informado daminha prisão] veio ver-me. Nesta altura, os anciãos que se tinham juntado naprisão para protestar tinham já dispersado.107

Quando o médico perguntou ao administrador porque é que eu tinha sido preso,ele disse que tinha feito isso só para me assustar. Fui imediatamente liberto da

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prisão, mas eu disse que não havia de sair enquanto não me dessem uma carta desoltura. Aí começou uma nova guerra, mas eu persisti até que a carta fosseemitida. Foi a partir daqui que fui para Lourenço Marques. Os meus protestosfinalmente chegaram às autoridades apropriadas e foi instruído um inquérito aquino Guijá.Os chefes aqui tomaram-se testemunhas. Apresentaram provas aos investigadores,[por exemplo] sobre outras pessoas que tinham apresentado queixas e tinham sido[coercivamente] removidas do Guijá para outras áreas como Malehice, Magude,etc. Foi confirmado aos investigadores que algumas pessoas tinham perdido assuas terras a favor dos padres, e a terra foi subsequentemente devolvida aos seusproprietários legítimos. Como vê, o inquérito foi ordenado a partir da capital. Ascópias da documentação [sobre o inquérito] foram postas ao abrigo do gabinete doGovernador Geral. Foi isso que aconteceu.Ent: Como é que se chamava o advogado? Makukule: Não, não me lembro donome dele. Ent: Não se lembra do nome dele? Makukule: Eu havia de me lembrarse visse de novo a documentação. Ent: Vou visitá-lo em casa - na minha próximaviagem a Guijá para vermos a documentação que tem na sua posse. Makukule:Vou procurar e ver se encontro. Ent: Porque esta é uma questão muito importante.Makukule: Tenho a certeza de que ainda tenho os documentos sobre o movimentoMfuxeMfuxe - sim, esses documento ainda estão comigo. Ent: A outra perguntaque eu lhe quero fazer é esta: Quando você e os outros anciãos se envolveramnestas lutas, trabalhavam sozinhos ou a população também estava envolvida?Ngwenya: A população estava connosco. Os anciãos faziam as reuniões emsegredo, à noite. Mas cada membro do Mfuxe-Mfuxe "mobilizava" a populaçãoclandestinamente durante o dia, para a luta. Toda a terra [Guijá] concordavaconnosco.108

Ent: Mm!Ngwenya: Toda gente na comunidade sabia o que estava a acontecer. Sempre queencontrávamos alguém no caminho, os sinais positivos eram notórios - elesdiziam "Ayiye mahlweni..." (vamos em frente, com a luta), por isso chegámos àconclusão de que a população estava connosco. No dia em que se realizou agrande reunião na administração, não convidámos a população mas ela veio(pelos seus próprios meios) às centenas; o lugar estava tão cheio de pessoas quenão havia espaço nem para cuspir. Makukule: Do norte e do leste...Ngwenya: Toda a região, de Massingir, Mabalane - todos estavam lá porqueestavam bem informados sobre a nossa luta - sim! Ent: Está a dizer que não foramsomente os anciãos que participaram reunião na administração?Ngwenya: Toda a gente do Guijá esteve lá; não foram apenas os anciãos queparticiparam.Ent: Aha, aha, haa!Ngwenya: Toda a gente esteve lá nesse dia, incluindo mulheres. Ent: Quando oscolonialistas vieram para cá, começaram a alienar a terra. Você deu o exemplo dopadre que confiscou a terra, que, no fim de contas, acabou por ser devolvida aoslegítimos donos. Qual é a situação hoje em relação à posse da terra, considerando

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o grande aumento na população desde essa altura? Existem queixas sobre aescassez de terras?Nkuna: É compreensível que a população se queixe da escassez de terras porqueeste é o início do novo governo. A população, na minha opinião, cresceu muitodesde ontem [era colonial]. Naquele período, muitas pessoas fugiam para asminas na África do Sul, dispersavam e viviam no Save escondidos. Mesmo os queficavam cá, alguns iam esconder-se quando falhavam o pagamento dos seusimpostos. Muitas destas pessoas regressaram à terra depois da independência. Emrelação à agricultura, o murmúrio de descontentamento que se ouve tem a ver como facto de termos um novo governo ainda em processo de se estabelecer.Nenhum governo novo começa com respostas prontas para os problemas sócio-económicos existentes. As pessoas estavam109

preocupadas com a distribuição da terra. Por exemplo, deste lado do Limpopo, anorma é atribuir-se um hectare a cada chefe de família- aqui no Caniçado - 1 ha.Agora, o que é que uma pessoa com uma família grande - com crianças - podefazer com 1 ha? Isto só pode ser suficiente para um homem com uma mulher e umfilho. Ent: Acredito que sim.Nkuna: Seria melhor se a distribuição da terra tomasse em consideração otamanho da famflia - para permitir a uma pessoa viver da terra. Deve ser tambémtomado em consideração que 1 ha, ou mesmo 5 ha neste caso, não são viáveis,visto que tudo depende das chuvas. Mas uma pessoa podia colher pelo menosalguma coisa de uma machamba maior, mesmo que houvesse pouca chuva. Sim,as pessoas estão lamentar-se porque não compreendem, nesta fase, como é que vaio governo em termos de formulação de políticas. Contudo, o governo iráfinalmente pôr a casa em ordem, e então as pessoas estarão em paz.Ent: Sim, de facto.Nkuna: Se eu dissesse que não há injustiças, não estaria a dizer a verdade. Háqueixas, mas essas queixas não chegam a ser críticas [destrutivas ao governo]. Aspessoas estão acostumadas a cultivar 4 ha ou 5 ha, dependendo das suascapacidades, mas ao mesmo tempo algumas não conseguem sequer gerir mesmo 1ha. Ent: Sim.Nkuna: Algumas não conseguem gerir mesmo um hectare porque nunca forambons agricultores, mesmo no passado. Estes são únicos na comunidade que nãoreclamarão contra a actual prática de distribuição de terra.Ent: Quando diz que na era colonial algumas pessoas fugiam para a África do Sule para Mashonalândia [hoje Zimbabwe], nós estamos familiarizados com essahistória. Quem eram as pessoas que fugiam para o Save, e onde é o Save?Nkuna: Save - no lado sul africano da fronteira. Jossias Machava [secretário doGrupo Dinamizador de Ximbomgweni]: Save é aquela área de Swighodanini[pequenas minas de ouro na área de Barberton].110

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Nkuna: Em Swighodanini, sim, sim! As pessoas partiam e fixavam-se lá. Não erapreciso um contrato para trabalhar lá. A pessoa simplesmente trabalhava ecuidava da sua vida - e tudo isto por causa das (políticas) do regime colonial. Ent:Agora vamos tentar terminar a nossa entrevista: Bem, quanto ao Bava Mukavi,nós já tivemos uma entrevista consigo, onde nos contou a história da sua vida ereferiu o incidente em que foi atacado por um crocodilo e teve que ser tratado poruma mulher suíça até recuperar. Agora gostaríamos de ouvir do Bava Nkunasobre a sua infância. Foi para a escola quando era jovem? Nkuna: Fui para aescola aqui, no Caniçado, em 1931. Passei a terceira classe "rudimentar". Em1935-36 fui para Lourenço Marques, para me matricular na terceira classe"elementar". Tive dificuldades de me sustentar a mim próprio durante o meuprimeiro ano de escolaridade porque, embora eu fosse filho de um chefe, o meuavô não concordava que eu andasse na escola. Ele achava que a educação podiaalienar-me (das minhas raízes culturais), e por isso não me dava dinheiro para memanter em Lourenço Marques. Enviava-me apenas 100$00 por ano, por issopassei fome. Decidi matricular-me nas aulas nocturnas em 1937, e fiz o exame daterceira classe elementar em 1936.Devido à falta de dinheiro, matriculei-me no curso nocturno em 1937, etrabalhava como empregado doméstico durante o dia. Trabalhei para um brancochamado João Silva Freitas. Este era o meu patrão e pagava-me 45 escudos pormês. Continuei na escola nocturna e passei a quarta classe. Depois decidi tornar-me professor e matriculei-me em Alvor, na Manhiça. Ent: Conheço a escola!Nkuna: Eu estava muito entusiasmado com a ideia de ser professor. O meurequerimento foi aceite pelo governo, mas pediram-me que apresentasse umacarta do padre católico confirmando que eu era católico. Mas eu não era católico,era protestante. Ent: Aí é que você foi apanhado!Nkuna: Eu disse ao governo que era protestante e não católico. Se para conseguira carta que me permitiria ir para Alvor tinha de me tornar católico, então eu nãoestava interessado nisso. Eles tentaram111

persuadir-me a ir fazer a formação de professores, mas eu já tinha abandonado aideia. Sim, eu queria ser professor para poder ensinar os meus irmãos e irmãs[mas não à custa de] ter de me converter ao catolicismo.Voltei para casa com a minha quarta classe e andei às voltas [em Guijá]perguntando a mim mesmo o que faria a seguir. Fiz uma carta a requerer umemprego nos Caminhos de Ferro, em Chókwè. Indiquei na carta que tinha feito aquarta classe, e passar a quarta classe era uma verdadeira proeza nesse tempo!Embora eu seja um velho hoje, ainda escrevo bem em português - sim! O meurequerimento foi indeferido, mas descobri mais tarde que a pessoa que recebeu orequerimento era menos qualificada do que eu - não tinha feito a quarta classe.Ele falava muito bem português mas obteve o seu emprego porque tinha umpatrão nesse escritório. O meu requerimento foi rejeitado porque essa pessoasentiu-se ameaçada por um indivíduo melhor qualificado do que ele. Contudo,não fiquei desencorajado; fiz outro requerimento a solicitar colocação no Posto deCultura de "IRIGADO" [Regadio], Vale do Limpopo - hoje conhecido por Posto

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Agrário, perto do Chókwè. Tive sucesso e fui informado de que seria escrituráriodo Barradas, o Engenheiro. Apresentei-me ao serviço, e isso foi em 1938. O GilBarradas recebeu-me, com o meu certificado de quarta classe. Quando meinformou que o meu salário seria de 4 escudos por dia 120 escudos por mês,fiquei chocado. 4 escudos por dia, com a minha "quarta classe". Recusei a ofertaporque sabia que os outros empregados no seu escritório ganhavam mais do queele me oferecia, embora não tivessem a quarta classe. Comecei a pensar em irpara a África do Sul. Eu tinha lá um amigo e decidi escrever-lhe uma carta paraele me ajudar a arranjar emprego. Na altura eu não sabia mesmo onde eraJoanesburgo, mas lá estava eu, com a minha boa formação, incapaz de arranjaremprego. Eu tinha então 21 anos. Fui para a WENELA, e posteriormenterecrutado para as minas. O meu amigo prometeu encontrar-se comigo emMzilikazi [mina da WENELA em Joanesburgo]. Viajei e passei Ressano Garcia,mas o meu amigo não apareceu para se encontrar comigo. Ele ter-me-ia levadopara uma mina onde havia um parente112

meu que era um nduna. O que é que eu faria agora que o meu amigo não me tinhaido esperar? Eu tinha no bolso uma quantia de 50 xelins em moeda sul africana,mas não falava inglês. Eu tinha convertido esse dinheiro em moeda sul africanaem Komatipoort mas o que é que eu faria agora?(Felizmente) Eu estava na companhia de uma pessoa mais velha (comexperiência), de Guijá. Ele avisou-me que devia tornar-me amigo do mabalani (oescriturário da WENELA em serviço) se eu quisesse conseguir ir para uma mina àminha escolha. Abordei o escriturário, com o meu companheiro mais velho aservir de intérprete: "...este é o meu filho que necessita da sua ajuda...", e oescriturário disse "...hei, mufana (rapaz), como um novato nas minas, as coisasserão muito difíceis para si. Conhece a mina para onde quer ir?" Quando eu lhedisse que se chamava Hovolani, ele disseme: "agora, ouça, quando eu gritarHovolani você deve aproximarse directamente. Venha e fique de pé justamente àminha frente. Vou dar-lhe uma bofetada na cara - como se não o conhecesse. Masnão fique desencorajado por isso - continue a andar para frente". Todos ospresentes: Ha, ha, haaa!Nkuna: Fiz como ele mandou. Quando ele gritou, "Hovolani", eu movi-merapidamente e coloquei-me em frente do mabalani. Ele esbofeteou-me na face,mas continuei, passei por ele e fui ficar na fila. Alguns recrutados que lutavampara entrar na fila depois de mim foram rejeitados - havia muito mais pessoas doque eram necessárias para Hovolani naquele dia. Mas lá estava eu, justamente àcabeça da fila, ainda com dores, naturalmente, por causa da bofetada que haviaapanhado na face! Makukule: Vocês estavam a lutar pela vossa sobrevivência -nada fácil!Nkuna: Depois de os nossos papéis terem sido processados, fomos transportadospara o acampamento da nossa mina. Fui indicado para trabalhar no subsolo, etrabalhei lá como lasher antes de ser mandado para os túneis - novamente comolasher. Mas, a sorte estava comigo porque encontrei aqui uma pessoa que vinha deSaviyela, onde tinha conhecido alguns Nkunas. Esta pessoa transferiu-me

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imediatamente do meu trabalho de lashing e fez de mim um mabalani, para fazero113

registo dos instrumentos de perfuração (majombolo). Eu tinha de apresentar oregisto desses instrumentos no fim de cada turno a este homem que, por seu lado,o entregava a um branco. Estive neste trabalho durante seis meses. Daí em diantederam-me um trabalho na superfície como 'rapaz jardineiro' em casa do Directorda Mina, Sr. C. H. Gischer,9 um russo. Foi emitido um regulamento, enquanto eu.trabalhava aqui, que impedia os empregados das minas de trabalhar nas casas dosgestores da mina. Tive então que voltar para o acampamento, onde trabalhei como'rapaz' da cozinha até que terminei o meu xibalo (contrato) e voltei para casa. Nomeu regresso para o segundo contrato, colocaram-me como .chefe' da cozinha.Então, veio um aviso a dizer que era necessária uma pessoa para trabalhar emcasa do Director Geral, e que devia ser alguém considerado 'um rapaz esperto'.Perguntaram-me se sabia passar a roupa a ferro e se sabia falar inglês. Sim, eusabia passar a ferro, uma vez que tinha trabalhado como empregado doméstico emLourenço Marques, mas não sabia falar inglês. Consegui o trabalho. O DirectorGeral considerou o meu trabalho satisfatório e prometeu pagar-me um bomsalário. Os 2 xelins que recebia no emprego anterior foram aumentados em 8pences, passando o salário para 2 xelins e 8 pences! Trabalhei lá durante doisanos. Ent: Antes de regressar para casa de férias? Nkuna: Antes de voltar paracasa. Veja, eu trabalhava para o "grande", e por isso o fim do contrato era sempreignorado. Trabalhei 24 meses até me concederem férias em casa. Quandoregressei para o meu terceiro contrato, o regulamento que proibia os gestores deusar trabalhadores das minas nas suas casas privadas tinha sido reintroduzido. ODirector Geral disse-me: "...tudo bem Eduardo; você tem que voltar para amina..."!. Ele fez uma chamada dando instruções para eles me colocarem como'chefe' de cozinha de dia. Deram-me ainda, para além das minhas tarefas normais,um responsabilidade especial pelo talho - uma posição antes ocupada por umXhosa.-Nesta altura comecei a ter lições de inglês à noite. Em 1948 regressei paraterra. O meu avô, que estava doente, morreu' Conforme se percebeu.114

em Agosto de 1948. Como eu era o neto mais velho, fui escolhido numa reunião(Bandla) - i.e., todas as pessoas disseram que o Eduardo deve suceder o seu avôcomo chefe. Fui assim escolhido, em 1948, como régulo da terra de Nkuna(oficialmente) conhecida como regedoria Machele (Maxele). Tornei-me réguloem 1948, e (daí em diante), trabalhei estreitamente com o regime colonial. Fuiempossado pelo regime colonial como régulo. Eles seguiam-me por trás everificavam tudo o que eu fazia. Trabalhei com régulo desde 1948 até àIndependência Nacional (1975). Não tive nenhuns problemas tanto com o regimecolonial como com as pessoas - fora da vigilância da PIDE. Esta é a história daminha vida. Hoje continuo a fazer o meu trabalho como machambeiro. Nasci em1917, no mês de Setembro. A minha data de nascimento foi atribuída pelo meu tio

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materno, que era pastor. Não conheço o dia em Setembro, mas se não fosse o meutio, eu não saberia que tinha nascido em Setembro de 1917. Ent: Muito obrigado,Machele. Eu tenho relação com os Machele (clã), por parte da minha mãe. Aminha mãe era Machele, n'wa Nkuna.Nkuna: Haa!, você é da nossa casa, de facto! Mukavi: Tal como o meu "filho" queacabou de falar, eu gostaria de acrescentar alguma coisa ao que ele contou. Ent:Bava, acrescente.Mukavi: Quando ele (o Nkuna) regressou das minas, não aceitou a posição dechefe para a qual havia sido escolhido. Subsequentemente escrevi-lhe uma carta,insistindo para que ele aceitasse a chefia, visto que não havia mais ninguém (maisapropriado) para ocupar aquela posição na casa dos Nkuna. Ent: Escreveu para eleenquanto estava ainda na África do Sul? Mukavi: Aqui, em casa, quando elerecusou a chefia, chegaram-lhe duas cartas simultaneamente - uma do seu tioIsaya - o irmão da sua mãe. As duas cartas chegaram-lhe no mesmo dia, aconvidá-lo para conversas separadas, com o seu tio e comigo, respectivamente.Elefoi ter primeiro com o tio, que insistiu: "meu filho, a terra dos Nkuna é grande(importante) e não pode ser governada por qualquer pessoa a não ser você... !" Aseguir à conversa com o seu tio ele veio ter115

comigo, e eu argumentei com ele: "...você não pode recusar a chefia porque aterra dos Nkuna não tem mais ninguém para ocupar aquela posição"!Argumentei com ele até ele submeter-se e aceitar a posição de réguloEle entãogovernou as pessoas da maneira como descreveu. Ele tornou-se um filho adoptivona minha casa porque vimos nele um cristão exemplar. Contudo, ocorreu qualquercoisa inconveniente durante a sua chefia: por instigação da irmã da sua mulher,Nkuna foi persuadido a levar uma segunda mulher - parente da instigadora. ONkuna viu-se então numa situação difícil. Ent: Bem, bem, bem! [Nkuna estavaum tanto embaraçado, mas tentou manter-se calmo].Mukavi: Isto foi um assunto sério que tem de ser mencionado [nesta entrevista].Nkuna: Sim, compreendo isso.Mukavi: Nós (família Mukavi) tomámos este assunto muito a sério. Sentimos queo nosso 'filho' tinha perdido o caminho [como um cristão]. O que é que ele faria aseguir, interrogámo-nos? Tínhamos receio de que a próxima coisa que ele fizessefosse lançar ossos como um adivinho, ou começar a beber álcool. Eu e a mãe doLuís [mulher do Mukavi] decidimos agarrar o touro pelos cornos e dirigimos anossa atenção para a jovem noiva. Tentámos persuadi-la (forçá-la) a anular ocasamento. Também falámos repetidas vezes com o Machele (Nkuna) e com a suaprimeira mulher - tentando mostrar a ele que desposar uma segunda mulher sóserviria para minar a sua autoridade. Nós trabalhámos nisso durante o ano inteiro,durante o qual a jovem noiva deu à luz o seu primeiro filho. Contudo, no fim, oNkuna abandonou a sua segunda mulher - anulou o casamento - mas não exigiu olobolo de volta à família dela e aceitou a responsabilidade de tomar conta dacriança.Mukavi: Sim, ele pagou as despesas do casamento do seu filho, e esta foi a provade que este mufana [rapaz] era uma pessoa especial. Ele ocupou a posição de

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"primeiro filho" na casa do Gabriel Mukavi. É muito importante falar sobre istoporque nós sentimos que o tínhamos resgatado da lama.116

Ent: Kanimambo.Agora, bava Makukule, e sobre você - quando é que nasceu, como é que cresceu,foi para a escola?Makukule: Fui para a escola mas não aprendi xilungo [língua dos brancos] -aprendi a minha língua materna, a língua da terra. Ent: Sim.Makukule: Não passei nenhum exame. Eu era um crente e Deus ajudou-me. Deacordo com o que eles me disseram, nasci em 1904. O meu pai não sabia ler nemescrever - não sabia nada a esse respeito. Eu não tenho nem possuo nadarelacionado com escolarização, excepto a bíblia.Ent: Quantos anos é que passou na escola que frequentou? Que grau passou?Makukule: Não há graus na igreja, eu era precisamente um membro dacongregação.Ent: Trabalhou na África do Sul? Makukule: Fui em 1927, e o meu segundocontrato foi em 1930. Voltei de vez para casa em 1932.Ent: Comprou uma charrua na África do Sul - em preparação das suas futurasactividades agrícolas? Makukule: Comprei a charrua aqui na terra depois de voltarda África do Sul.Ent: Já teve gado?Makukule: Mm! Também comprei gado aqui, cá na minha terra. O gado erabarato nesse tempo por causa dos portugueses. Uma pessoa podia comprar umavaca por 100 escudos ou 150 escudos. Comprei os meus bois e comecei a lavrar.Ent: Kanimambo.Bava Ngwenya, você e eu tivemos uma conversa em Ximbomgweni (15 de Maiode 1980), quando você falou da sua infância. Na nossa chegada para estaentrevista hoje, eu ouvi-o a aclamar o seu xivongo (canção de louvor dalinhagem) - talvez fosse sobre a linhagem de Ngungunhana. Pode recitar a cançãode exaltação de Ngungunhana- da maneira como faziam os seus Conselheiros? Ngwenya: Ha, ha,ha! Bem,aprendemos isso com a geração dos nossos avós.117

Ent: É isso que nós gostaríamos de ouvir. Ngwenya: Nós ouvíamo-los quandocantavam as canções de louvor dos swivongo10. É uma boa coisa (como umrapaz) ter um estreito relacionamento com os anciãos. Eu adorava andar à volta domeu avô porque ele era um Mbhoza (dos Regimentos de Manukosi)". Eucostumava comer com o meu avô - e foi aí que descobri que a carne de ghoya(gato doméstico que abandonou a casa e se tornou selvagem) era muito deliciosa,porque o meu avô comia esta carne- sim, ele comia. Eu pessoalmente comi ghoya. No fim da refeição o meu avôdisse: "..hawu, neto..., se wu shuthe? (neto, estás satisfeito)?" - em zulu. Quandoeu disse, "sim, fiquei satisfeito", ele então continuou "...sabes que tipo de carne é

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que acabaste de comer"? Quando eu disse que não sabia, ele então disse "..foighoya"!Todos os presentes: (rebentaram a rir) ha, ha, ha, hee, hee, hee! Ngwenya: Já nãose podia fazer nada, eu já tinha comido carne de ghoya.Um dia ele disse-me que o Rei Ngungunhana aparecia de manhã cedo, assim queo sol nascia. Nessa altura os madhoda (conselheiros) deviam já estar sentados,esperando por ele na bandia (corte). O cantor que entoava a canção de louvor, quedevia estar entre eles, devia surgir assim que o Rei aparecesse e louvá-lo destamaneira:Plural de Xivongo."Ver Swiwongo Swa Machangana por A. A. Jacques (Cleveland, Transvaal,1971) p.15118

O rei podia agora (com toda a dignidade e orgulho) sentar-se. O cantor terminavaa sua aclamação com "Hayethi, Hayethi, Hayethi! (Bayethi)" Esta era a canção delouvor que eu cantava quando vocês quando cheguei aqui - e que me foi ensinadapelo meu avô. Ent: E sobre o seu próprio xivongo - aquele dos Ngwenya (clã)?Ngwenya: Eu não tenho nenhum. Ent: E você, kokwani Makukule? Makukule:Nós ficámos estragados por integrar a igreja. Contudo, tentámos anotar a história(dos swivongo). Ent: Bem, um dia teremos oportunidade de ver tudo o que vocêsescreveram.Makukule: Nós vamos desenterrar essas anotações. Ent: E o bava Nhlongo,conhece algumas canções de louvor? Nhlongo: Não, não conheço nenhuma. Ent:Bem, não importa se você não conhece nenhuma. Nhlongo: Mas posso falar daminha origem, como cresci. Ent: Vamos, conte-nos.Nlongo: Fui criado pelos meus avós depois da morte do meu pai. Tudo o que seieles é que me ensinaram. Posso dizer que nasci em 1904 e fui para a escola em1913. Por causa da morte do meu pai, e o facto de a educação não ser muitovalorizada nesses tempos, não fiquei muito tempo na escola - só fiz a terceiraclasse. Em 1919, fugi e fui à procura de emprego na África do Sul. Trabalhei lápor alguns anos, uma vez que essa era a única forma de me ajudar a mim próprio.Ent: Você trabalhou nas minas?Nlongo: Se trabalhei nas minas? Não, trabalhei num hospital e na cozinha.Ent: Você foi recrutado como mineiro, mas encontrou um serviço fora das minas?Nlongo: Sim, fui recrutado para as minas mas deram-me um trabalho nasuperfície. Tinha um tio, irmão da minha mãe, que trabalhava no hospital [damina]. Mandaram-me trabalhar no "motor" [casa das máquinas] na superfície.Quando o meu tio regressou à terra, ele obteve autorização do chefe dele para queeu o substituísse no seu trabalho no subsolo, como substituto de um trabalhadorcuja tarefa119

era manter o registo dos madjombolo - instrumentos de perfuração. Depois disso,mandaram-me de volta para o meu trabalho à superfície, e mais tarde voltei à terrapara me concentrar na agricultura, depois do meu último contrato.

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Ent: Obrigado.Agora, e você bava Nxumayo, qual é a história da sua vida? Nxunayo: Não tenhomuita coisa a dizer. Ent: Diga-nos um pouco do que você quiser contar.Nxumayo: No que diz respeito à educação, não recebi nenhuma. Embora tivesseido à escola, não fiquei lá muito tempo - saí de lá sem ter aprendido nada. Entãofui para as minas, onde trabalhei durante quatro contratos nas "pequenas minas"(área mineira de Badton). Daqui voltei para terra, para assumir a chefia, e hojeestou envolvido na agricultura. É tudo o que eu posso dizer sobre mim. Ent:Obrigado.Ent: Este foi um grande dia para mim. Quero exprimir os meus agradecimentos atodos vocês, os anciãos de Guijá, por tudo quanto me ensinaram hoje sobre avossa história. Espero visitar-vos de novo no futuro para aprender mais convoscosobre a história de Gaza. Mukavi: Nós é que devemos agradecer o interesse quemostrou pelas nossas antigas actividades. Nunca pensámos que alguém estivesseinteressado na nossa história. Esperamos que algumas das coisas que você gravousejam publicadas. Nós consideramo-lo como moçambicano de facto, você émoçambicano. Os seus antepassados deixaram o seu cordão umbilical aqui emMoçambique. A extensão de terra daqui (Caniçado) para a fronteira sul africana éa terra dos Ngoveni (nome do clã do entrevistador). Metade dos Ngoveniatravessaram a fronteira e instalaram-se no Transval (durante as invasões Nguni -por volta da 1820), por isso você é filho desta terra. Makukule: Nós estamos tãogratos (pela sua visita) que gostaríamos de nos manter em contacto consigo paraque nos possa dar conselhos sobre algumas "coisas": nós temos algumas coisasnos nossos corações para lhe perguntar. O problema é que nós ainda temos medo- uma sequela do (tempo) dos portugueses. Quando falo consigo, lembro-me dotrabalho forçado, lembro-me do tempo em que uma pessoa podia ser chamada(para comparecer perante o adminis-120

trador). Nós ainda vivemos sob o medo experimentado no tempo do regimecolonial, porque você, o nosso próprio filho, assusta-nos quando nos fala dosportugueses, quando fala sobre "...a linha da FRELIMO" com um lápis na mão,lápis esse que os portugueses usavam para nos assustarem.Ent: Lápis vermelho (como o que o entrevistador tinha na mão nessa altura)?Makukule: Sim, os lápis vermelhos eram usados para nos desencorajar de colocarquestões às autoridades (sobre as razões de queixa da comunidade).Ent: Khanimambo.Makukule: Ficaremos muito felizes se nos visitarem de novo. Ent: (para o Nkuna)Já terminou ou tem mais alguma coisa para dizer?Makukule: É ele (como antigo régulo) de facto, que deve fechar a conversa.Nkuna: Estamos agradecidos, de facto (pela sua visita). Eu sou (dizem) umopressor porque trabalhei com os portugueses (autoridades). Nesta terra (hoje)chamam-nos de (ex-régulos) opressores - nós não temos outro nome além de"opressor". Hoje estou muito feliz por ter estado presente nesta bandla a que você,bava Ngoveni (apelido do entrevistador) presidiu. Você mostrounos que, emboraseja (mais) educado (do que nós), ainda é nosso filho. Estamos felizes por lhe

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contar o que sabemos e o que nos contaram. Quando lhe contei como fomosgovernados como "escravos", você perguntou-me o que é que eu queria dizer coma palavra "escravos". Foi o meu avô que contou - não o meu pai. O meu avô é queconhecia o significado de "escravo". Estamos cientes de que o que lhe contámoshoje terá alguma utilidade para os nossos netos porque (o que foi registado) serápreservado. Quanto a mim, tenho receio de falar sobre assuntos relacionados coma chefia. Ainda que saiba no meu coração que trabalho fiz para a FRELIMO(durante a Luta Armada) - eu sei o que fiz... (mas não vou vangloriar-me porisso). Lembro-me mesmo dos nomes daqueles que trabalharam comigo, emboraalguns deles tenham morrido mortos pelos portugueses - a PIDE.121

Alguns seriam capazes de testemunhar e confirmar que (o Nkuna) fez isto eaquilo. Mas tenho receio porque dizem-nos todos os dias que os chefes já não sãoprecisos. Onde iremos - onde viveremos, até quando temos que ouvir este tipo deconversas todos os dias? A resposta é que vou morrer aqui em Moçambique - soumoçambicano! Fui controlado (mas tentei) lutar contra as coisas que o meucolonizador queria que eu fizesse. Nós, os chefes, tínhamos que fazer aquilo queos governantes exigiam de nós. Nós, os chefes, éramos polícias (do regimecolonial). Nenhum chefe, bava Ngoveni, devia receber 500 escudos por ano, masisso é o que recebíamos, e isso só a partir de 1948. Antes, esses chefes nãorecebiam nada. Mesmo então, foram apenas os régulos que receberam pagamentoa partir de 1948 para diante. Um régulo não tinha muita gente nos seus domínios,por exemplo, na minha regedoria eu tinha apenas 17.000 pessoas.Makukule: E você recebia apenas 500$00! Nkuna: Eu recebia apenas 500$00.Isso significa que eu era mesmo um chefe? Eu não era um chefe; era umempregado doméstico. Contudo, depois da sua derrota, os colonialistas fugiram,deixando-nos para suportar o fardo da sua culpa. Nós é que somos criticados hoje,e estamos a ser criticados pelos nossos irmãos, pelos nossos filhos, por coisaspelas quais não somos responsáveis. Nós éramos empregados que tinham queobedecer ordens, e eu quero dizer isso abertamente. O que ouvimos, dia após dia,é que "os régulos não são mais necessários; os chefes não são mais necessários!"Quando é que estes criticismos e acusações irão terminar? Nós ansiamos porsentir que somos também moçambicanos. Isto é doloroso. Sentimo-nos alienadose estamos com medo. Eu estava com medo quando vim para esta reunião -ansioso por saber o que é que me podia estar reservado. Tenho medo de falarporque eu era um régulo - uma pessoa acusada de ter sido um opressor justamentecomo os portugueses foram! As coisas não foram assim: nós recebíamos ordensdos portugueses para fazer o que eles queriam que nós fizéssemos - "... vaiprender esta e aquela pessoa; vai fazer isto e vai fazer aquilo..." Não podíamosrecusar porque tínhamos medo122

dos castigos corporais. Podíamos apanhar palmatória até as nossas mãossangrarem. E isso, bava Ngoveni, era muito doloroso. (Verdade) nós fizemosmuitas coisas porque estávamos a obedecer ordens, mas algumas coisas fizemo-

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las por causa da nossa fraqueza. Fiquei contente por ter a sua garantia de que nada(me) ia acontecer, e que se espera que as coisas venham a melhorar no futuro.Estou ansioso pelo dia em que verei um 'jeep' (carro do governo) chegar à minhacasa e convidar-me para ir fazer alguma coisa (participar nos esforços dedesenvolvimento do país). Felizmente, eu sou autoconfiante; eu estou em paz(comigo mesmo) porque trabalho para me ajudar a mim próprio.Eu dependia da agricultura mesmo quando era régulo. Era um machambeiro quedependia da sua própria terra - a terra que a (Governo) FRELIMO transformouem machambas estatais. Deramme um pedaço de terra e é dele que vivo. Ent:Khanimambo.123

OS LOUVORES A NGUNGUNHANAWena ungange zuluWena ungange zulu Uyi juba elihlezi phezu kwe mithiUyi qamu eziphete ngoko buthuUyi nyathi eya jama ethuzini le ntabaAmaqheine-ndleya masabe kuya shayaUyi mbavazani eya thandeya amahlathiUyi Ngwani kanye no HabangwanaUyi isighodo maqina singa phanhe U'mghanu wa hluma mini ka MandhlakaziWati wa bona ntambama wa hohlokaAthi hoya kampa Nkomo12 Reptil saurio forte. 13 Chefes Dzivi (Tswa) no actual Distrito de Morrumbene(Inhambane) " Ou: As folhas caiem.124Você que é como os céus Você é um pombo empoleirado numaÁrvoreVocê é o varano3 quem comanda todos os regimentos Você é o búfalo que fica nabaía do lado da sombra junto à montanhaOs guardas do trilho temendo atacá-loVocê é o (antílope) que anda às voltas pelas florestas Yingwani juntamentecomHlawangwani'4 Vocês são um bloco vacilante, Um canhoeiro deverá estar verdede dia em Manjacaze Mas à tarde ele murchou5 todo.

A ALDEIA COMUNAL DE XIMBONGWENIEntrevista 4.9.81Nota do Autor: Em 4 de Setembro de 1981, uma delegação de investigadores,constituída por cientistas sociais do Centro de Estudos Africanos da UEM, daUniversidade Nacional do Lesoto e da antiga República Democrática Alemãvisitou a Aldeia Comunal de Ximbongweni, em Guijá. O resumo do Secretário doConselho Executivo sobre a história da aldeia foi seguido de uma sessão aberta dePerguntas e Respostas.2Secretário: Em 1977, o Terceiro Congresso do Partido FRELIMO explicou anecessidade de se criarem aldeias comunais. Aqui, no Guijá, este anúncio

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coincidiu com as cheias que afectaram muito as comunidades que estavam fixadasnas margens do Rio Limpopo, onde cultivavam o solo muito rico, da nhaca. Ascheias deram assim um ímpeto ao governo para a mobilização das populaçõescom vista ao seu reassentamento nas aldeias comunais. A nossa aldeia comunalfoi fundada em 18 de Abril de 1977. Esta aldeia está dividida em Bairros: osBairros 1 e 4 foram os primeiros a ser construídos, seguidos pelo Bairro 5 e pelaCooperativa de Consumo, em 1978. A construção da Cooperativa Agrícola só foiiniciada no ano passado. Embora as coisas não tenham funcionado muito bem nanossa aldeia, esperamos que haja uma mudança para melhor; por exemplo, acooperativa adquiriu agora uma bomba de água, o que nos permitiu produzirbatatas, milho e feijão na nossa primeira colheita. Existem três escolas na aldeia:duas vão até a Quarta Classe, e a terceira até a Terceira Classe. Uma casa, agoraem construção, será o local de reuniões para os 36 deputados da aldeia. Uma casarecentemente construída, que se pretende que seja uma creche, será entretantousada como centro de saúde, visto que não temos o equipamento necessário parafornecer à creche. Embora,2 Os membros da equipa de investigação foram: Alpheus Manghezi, DanO'Meara, Michael Sefali, Klaus Ernst, Klaus Hutschenreuter e Luciano Jossefa(motorista).125

presentemente, não tenhamos fornecimentos médicos, esperamos que estesestejam disponíveis em breve. De facto, a casa está neste momento a ser usadacomo armazém para as colheitas da cooperativa agrícola. A casa a seguir, tambémconcluída, será para a estação de transmissão da rádio para a aldeia. A casa agbraem construção a seguir à estação de rádio será a Estação de Correios da aldeia.Existe ainda uma outra casa concluída, que servirá de cooperativa de alfaiatespara produzir roupa para homens, mulheres e crianças. Presentemente existemapenas dois alfaiates com máquinas de costura.O mercado da aldeia é lá, atrás daquela árvore! O mercado está fechado hojeporque os vendedores foram para o Limpopo comprar vegetais no CAIL(Complexo Agro Industrial do Limpopo), em Chókwè. O mercado só abre no diaseguinte porque os vendedores têm de passar um dia a viajar até Chókwè paracomprar os géneros alimentícios que vendem. A padaria situa-se perto domercado. Nós só recebemos pão três vezes por semana, quando mandam cerca de2.000 pães. O matadouro público, para onde os proprietários de gado levam a suasmanadas para matar para fornecer carne à aldeia, está localizado justamentedepois da padaria. Há duas pessoas na aldeia que receberam formação comocarniceiros. Os que querem abater um boi têm de notificar as autoridades daaldeia, que por seu turno, avisam as comunidades de que haverá carne à vendanum certo dia. Embora qualquer decisão de abater um boi dependa dos própriosdonos, a carne está disponível, em geral, pelo menos uma ou duas vezes porsemana. Aquela casa, atrás de nós, que está ainda em construção, é a Casa deCultura, na qual se realizarão todas as actividades culturais da aldeia. A suaconclusão está demorada devido à carência de materiais de construção como, porexemplo, tijolos. Temos que usar bois para transportar qualquer material desde o

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Guijá, sempre que estiver disponível. Também construímos uma casa de hóspedespara acomodar os visitantes que tenham que pernoitar na aldeia. No fim doscomentários introdutórios do Secretário, a equipa de investigação apresentouquestões, a maior parte das quais foram respondidas pelo Secretário do ConselhoExecutivo (Agostinho Sitoe) pessoalmente:126

P: Quantas pessoas vivem nesta aldeia comunal? R: Existem 7.606 residentes.P: Quantos é que são membros do Partido? R: Há 34 membros.P: Quantas famílias existem na aldeia? R: Existem 1.158 famílias.P: Quantas pessoas pertencem à cooperativa como membros? R: (Presidente:) Acooperativa não tem associados; espera-se que toda a gente contribua comtrabalho para a cooperativa. O plano futuro é que a cooperativa seja organizada deacordo com os membros que se associarem. Presentemente enfrentamos oproblema das pessoas não frequentarem nem irem trabalhar quando se espera queo façam, por causa da forma como as coisas estão. A solução para este problema éas pessoas associarem-se como membros permanentes. Para efeitos decontribuição em termos de trabalho para a cooperativa (o arranjo actual), osbairros são divididos em grupos de 400 pessoas, que fazem turnos paratrabalharem na cooperativa.P: Existe alguma estrutura que dirige a cooperativa? R: Existe uma estrutura deliderança que dirige e controla a cooperativa - com o presidente no topo; esta é adirecção da cooperativa.P: O director da cooperativa é a mesma pessoa que é o chefe da aldeia comunal?R: Sou o presidente da cooperativa, e sou também o Presidente do ConselhoExecutivo da Aldeia Comunal. A direcção que dirige a aldeia comunal é tambémresponsável pelo funcionamento da cooperativa. Posso indicar para vocês um dosproblemas que temos na cooperativa? Bem, embora tenhamos um bomba de água,o tubo que vai para dentro da água é muito curto. Isto significa que, para ter aágua, somos forçados a colocar a bomba no declive, correndo assim o risco de ela[bomba] submergir ou ser mesmo arrastada quando os níveis de água sobemdurante as grandes chuvas. Não sabemos o que fazer para resolver este problema.P: Vocês é que compraram a bomba de água, ou foi dada pelo governo?127

R: Recebemos esta bomba depois da visita do Ministro Guebuza, quando ele seapercebeu de que muitas culturas estavam a perder-se nas cooperativas por faltade bombas de água. Depois dessa visita, várias cooperativas, incluindo a nossa,receberam bombas de água, muitas das quais eram idênticas.P: Onde é que vocês viviam antes de se fixarem nesta aldeia, e a que distânciaficavam daqui? Ainda têm que voltar para trás para cultivarem as vossasmachambas? A que distância fica a cooperativa da aldeia? R: Vivíamos lá embaixo no nyaka [solos ricos ao longo das margens dos rios] - todas as famíliasviviam lá em diferentes propriedades. As casas estavam construídas a umadistância segura do rio e não podiam ser afectadas pelas cheias normais mesmoque o rio transbordasse. Os campos estavam próximas das propriedades, embora

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uma família pudesse ter uma machamba próxima da casa de uma outra. As cheiasde 1977 afectaram muita gente porque não foram cheias normais. Por isso, comoresultado, fomos todos mobilizados para construir e viver nas aldeias comunais. Adistância daqui para as nossas machambas é de 6 Km. Nós viajamos todos os dias,com os nossos bois, para ir trabalhar nas nossas machambas, voltando para aaldeia depois do trabalho. (Ver a canção em baixo, "Tsutsumani Ngopfu: corram,Rápido", que esclarece esta resposta.) P: Vocês lembram-se de alguma outra cheiano passado que tenham sido tão destrutivas como as de 1977? R: A cheia deMurimi ("o cultivador") de 1915 é a única que se acredita que tenha afectado apopulação da mesma maneira que a de 19771. Houve uma outra cheia entre estasduas que, todavia, não forçou as pessoas a abandonarem as suas casas para terrasmais seguras. Mesmo as cheias de 1955, que foram severas, não foram, contudosuficientemente sérias para forçar as pessoas a deixarem as suas casas para terrasmais altas.P: Parece, pelo que foi dito, que a comunidade é auto-suficiente em carne, masquanto ao pão - há pão suficiente para a comunidade? R: Cada aldeia comunalrecebe cerca de 2.500 pães em dia sim dia não, mas isso não é suficiente para acomunidade.3 As cheias de 2000 haviam de atingir e talvez mesmo ultrapassar o nivel demurimi que contou com vítimas humanas em Chibuto. 128

P: Qual é a alimentação básica das pessoas aqui? R: MilhoP: Como é que o pão é pago?R: O Conselho Executivo encomenda o pão e paga - e as pessoas compram-no napadaria. O pão custa 2 meticais cada, e á vendido a 2,5 meticais cada.P: Quem fica com o lucro?R: O lucro vai para o Concelho Executivo, e é usado para comprar diesel para abomba de água da cooperativa e para despesas com a alimentação dos visitantesda comunidade. P: Onde á que aldeia obtém água para beber - existe algum poçode água aqui?R: Existem vários poços de água na aldeia, mas uma parte da água é salobra e nãoé boa para beber. Um outro problema relacionado com o fornecimento de água éque, como não há cimento, os poços ficam destruidos sempre que chove. Cadabairro tem o seu próprio poço, tendo o Bairro 3, 3 poços. Contudo, um dos 3poços que, a propósito, foi cimentado, caiu num dia chuvoso. P: Qual é a principalcultura de cada família, houve alguma mudança no padrão de culturas desde queas pessoas se reafixaram nesta aldeia? R: A cultura básica é o milho (depois ofeijão, abóbora, amendoim, mandioca, etc.) e não houve nenhuma mudança desdeque a aldeia foi fundada. Mas, voltando à questão da falta de cimento,gostaríamos de referir que há muitas pessoas na aldeia que gostariam de construircasa de cimento. Eles têm dinheiro suficiente para isso, mas não é possível fazê-losem cimento.P: Que tipo de culturas são produzidas na cooperativa - por ordem deimportância?R: Milho, tomate, cebola, alho, feijão, cenoura, alface, etc. As culturas maisimportantes são o milho e o tomate. Nós começámos também a plantar algodão na

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cooperativa mas a colheita será fraca, porque o gado desgarrado destruiu algum.Uma vez que estamos ainda ocupados com as colheitas, não sabemos qual será aquantidade de colheitas. Planeamos mudar a machamba no futuro e plantaralgodão no vale onde os solos são mais apropriados, e as culturas estarão maisprotegidas do gado descuidado.129

P: Que produtos são produzidos para venda, e onde é que os vendem? R: O queproduzimos na cooperativa é para a venda. As famílias não produzem nenhumacultura especificamente para venda, excepto quando há excedentes. Nesse caso,eles vendem os excedentes para comprarem outros produtos de que necessitam eque não tenham. No passado vendíamos os nossos excedentes aos comerciantes.Contudo este comércio já não é possível uma vez que (os comerciantes coloniais)deixaram o pais depois da independência, e aos comerciantes locais não épermitido comprar produtos das pessoas. O governo ainda está em processo dereorganizar os canais e meios de comercialização, e entretanto, as pessoas vendemas suas colheitas excedentes a outras dentro da comunidade. Não existeuniformidade no estabelecimento de preços dos produtos que são vendidos ecomprados à aldeia. Embora existissem canais de comercialização no tempocolonial, as pessoas não estavam, contudo, interessadas em vender as suasmercadorias porque os comerciantes coloniais enganavam-nos. As pessoasvendiam apenas pequenas quantidades dos seus excedentes mesmo quandohouvesse uma colheita abundante, e faziam-no para obter dinheiro para comprarroupa, açúcar, sabão, sal e outros géneros. A produção de algodão nesta área, noperíodo colonial, finalmente caiu porque os produtores sentiram que estavam a seroprimidos e explorados pelo regime colonial. P: A quem é que vocês vendem aprodução da cooperativa? R: A produção é vendida na aldeia - são os mesmosprodutores que compram na cooperativa.P: Quem irá comprar o algodão da cooperativa? R: O Ministério da Agriculturaforneceu-nos as sementes, e por conseguinte, espera-se que seja o Ministério acomprar o algodão. P: Vocês sabem quanto é que o Ministério irá pagar por umKg de algodão?R: O Ministério pagará 12 meticais por Kg. P: Vocês têm hoje mais ou menoshomens da aldeia que vão para a África do Sul?R: Há menos pessoas a irem para a África do Sul hoje em dia. Esta é a razãoporque se vêm todos estes homens nesta encontro; é porque eles não vão mais àÁfrica do Sul. Se lhes fossem dados bonus130

certificates4 neste momento, todos eles partiriam para a África do Sulimediatamente! No passado, um homem que estivesse de férias das minas, podiapassar uns dias extra (sem a permissão do empregador) por forma a reparar ou aconstruir uma nova casa, e podia, depois regressar à mina sem nenhumadificuldade. Mas hoje, se um trabalhador se atrasasse um dia a voltar para a mina,ela seria despedido! Os mineiros necessitam muitas vezes de passar mais tempoem casa para fazer determinados serviços domésticos que requerem a sua atenção

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particular (depois de uma ausência de 24 meses). Esta contradição aparente émuito pior hoje porque os trabalhadores só têm direito a 90 dias de férias. P:Existem pessoas na aldeia que trabalham no CAIL? R: Sim, existem pessoas quetrabalham no CAIL, e a algumas delas foi concedido alojamento no Chókwè paraque não tivessem de viajar todos os dias de um lado para outro. Os trabalhadoresque tiveram alojamento no Chókwê têm as suas famílias divididas em duas partes- uma parte no Chókwè e o resto continua a residir aqui. Há trabalhadores naaldeia que viajam diariamente para o CAIL. P: E acerca dos que viajam para otrabalho todos os dias, significa isso que são trabalhadores ocasionais de que oCAIL precisa apenas no pico da estação?R: Alguns são trabalhadores permanentes, enquanto que outros são empregadosapenas no pico da estação, por exemplo, durante as colheitas (os entrevistados nãopuderam dizer quantos trabalhadores da aldeia estão empregados no CAIL). P: Ostrabalhadores que estão alojados no CAIL também têm lá espaços de terra paracultivar para eles próprios? R: Nós não temos certeza se eles têm ou não terra paracultivar, mas é duvidoso que o façam. Pensamos que eles só vão ao CAILtrabalhar porque continuam a cultivar as suas machambas na aldeia - pelo menoso resto das suas famílias que permanecem aqui continua a trabalhar nasmachambas familiares. P: Todas as famílias na aldeia possuem gado? R: A maiorparte das pessoas na aldeia não tem gado.4 Um documento dado a um trabalhador migrante que dá o direito de voltar aoseutrabalho na África do Sul.131

P: Qual é a percentagem daqueles que têm gado, e os que têm gado têm tambémcharruas?R: Se alguém tem uma junta de bois, leva 5 dias a lavrar um hectare. P: Qual é aextensão de terra que cada família possui, e quantos hectares é que pode cultivaruma pessoa com uma charrua? R: Cada família tem 1 ha; independentemente deter ou não bois. Se um homem tem duas, três ou mesmo dez mulheres, entãoreceberá 1 ha por cada mulher. A terra não era racionada antes da independência,o tamanho de terra que cada um pode cultivar depende da sua força. Contudo, anova lei que foi aprovada depois da independência restringe cada família (homemou mulher) a 1 ha. P: Cada família possui, na realidade, terra de acordo com anova lei?R: Sim. O governo enviou para aqui pessoas treinadas que vieram parcelar oslotes de acordo com a nova lei. A razão porque isso teve de ser feito é que notempo colonial havia pessoas que tinham mais terra do nyaka do quenecessitavam, enquanto que outras famílias tinham muito pouca ou nenhuma terrano vale. O novo sistema de posse da terra permite que cada família na área teracesso a terra fértil.' P: Todos os chefes da aldeia possuem gado? R: Secretário: Amaior parte dos chefes da aldeia não possuem gado, mas temos que pedir àO.M.M. (Organização da Mulher Moçambicana) para responder a esta perguntaporque se há algo sobre isso, a O.M.M. tem que saber a verdadeira resposta.Mulher: Alguns responsáveis têm gado, mas a maior parte dos chefes não tem.

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P: A cooperativa possui gado?R: Não.P: Como é feito o cultivo na cooperativa - com enxadas ou com tractor?R: Nós usamos bois com que cada membro da cooperativa contribui. Estesmembros não recebem nada pela utilização dos seus bois.10 autor encontrou um número de kulaks (camponeses ricos do tipo descobertopara a literatura depois da revolução russa) perto de Guijá, que possuíam charruase bombas de água, que não foram reassentados nas aldeias comunais, mascontinuaram a fazer agricultura em grandes extensões de terras férteis nos solosdo nyaka. 132

Também alugamos um tractor à Mecanagro, à taxa normal de pagamento: opagamento do tractor é efectuado depois da colheita e da venda dos produtos, masusam-se mais os bois do que o tractor. O governo está agora a desencorajar ascooperativas de recorrerem sempre aos serviços da Mecanagro porque tendem aacumular dívidas que no fim não conseguem pagar. A ideia agora é encorajar ascooperativas a confiar mais nas suas próprias forças, e só alugar tractores quandofor absolutamente necessário. P: Quais são os problemas que têm de serresolvidos para garantir uma maior produtividade na cooperativa? R: O primeiro,e o mais importante, é que a maior parte das pessoas aqui ainda não compreendeuou aceitou a ideia geral subjacente ao movimento cooperativo, e por isso há faltade entusiasmo. Em segundo lugar, os indivíduos que emprestam os seus bois e assuas charruas à cooperativa, na realidade não cumprem as suas promessas, emesmo quando trazem as charruas para cultivar, não fazem o trabalho com omesmo entusiasmo que mostram nas suas próprias machambas. Eles dão muitasvezes desculpas por não completarem o trabalho que deviam fazer nesse dia,como por exemplo "...eu não pude concluir o trabalho esta manhã porque um dosmeus bois não parecia estar muito bem, e podia ter caído morto se eu continuassecom o trabalho". O que isto significa é que muitos de nós na aldeia ainda nãoaceitamos a ideia da agricultura colectiva como um método viável de produçãoagrícola. A maior parte das pessoas da aldeia não aparece para trabalhar nacooperativa quando é a sua vez de o fazer, e muitas delas só aparecem agoraporque estamos neste momento a colher batatas. A aldeia deve ter o seu própriotractor como condição para uma maior produtividade. Mas a raiz do problema tema ver com o facto de as pessoas na aldeia não estarem convencidas de que se podeobter benefícios significativos com a agricultura cooperativa.P: De que tamanho é a vossa cooperativa? R: É de 140 ha.P: Quantas pessoas participam na cooperativa? R: Solicitamos a cada Bairro 40pessoas de cada vez para trabalhar na cooperativa, mas nunca podemos contarcom mais de 25133

indivíduos. O grupo que começa de manhã termina ao meio-dia, e o gruposeguinte trabalha à tarde. Em geral, uma pessoa trabalha na cooperativa uma vezpor semana.

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P: Como é que a produção é distribuída pelos participantes? R: Não hádistribuição da produção. A colheita é vendida para aqueles que contribuíram como trabalho. Nós tentamos descobrir, por exemplo, o preço do milho no mercado, ecobramos aos nossos membros um pouco menos do que teriam que pagar fora daaldeia. P: E a pessoa que tiver emprestado a sua junta de bois e charrua àcooperativa - recebe um pouco mais que os outros? R: Depende do dinheirodisponível - de quanto é que a cooperativa pode dar.P: Por outras palavras, isso pode significar que uma pessoa que tenha contribuídocom muitas horas de trabalho na cooperativa pode acabar sem nenhum benefíciopor falta de dinheiro? R: Isso pode acontecer, e esta é a razão por que decidimosreconstituir a cooperativa, de forma que a organização será baseada na filiaçãodos membros, em vez do actual sistema, em que todos na aldeia são solicitados acontribuir com trabalho para a cooperativa. Em todo o caso, a terra que pertence àcooperativa é tão pequena que é irrealista pensar em fazer qualquer distribuiçãoda produção por toda a aldeia. P: Quem é que contribui mais no trabalho dacooperativa, entre homens e mulheres, até agora?R: As mulheres contribuem mais que os homens. P: Porquê?R: Existem certos homens que ficam em casa e mandam as suas mulherestrabalhar na cooperativa porque acham que têm coisas mais importantes a fazer. Asegunda razão é que, em muitas famílias, o homem está na África do Sul, enoutras os homens trabalham no CAIL. P: Como é que a cooperativa funciona? R:Funciona bem, embora tenha os mesmos problemas que as cooperativas, de umamaneira geral, enfrentam em todo o país: escassez de fornecimento de alimentos -tudo o que conseguimos nunca é suficiente para toda a aldeia, o que provocamuitas vezes confusão, cuja culpa se atribui à direcção da aldeia, a quem se acusa,por exemplo, de roubar a comida em seu próprio proveito.134

P: Qual é a base para a filiação na cooperativa? R: Cada família paga um valorfixo em dinheiro ao entrar na cooperativa. A taxa foi inicialmente fixada em 50meticais, mas este valor foi posteriormente elevado para 500 meticais. Hámembros. na aldeia que não conseguiram pagar este quantia. P: Quem fornece osgéneros alimentícios à cooperativa? R: A pessoa que dirige a cooperativa éresponsável por procurar fornecimentos em diferentes lugares, sendo alguns delesadquiridos em armazéns autorizados; existe um armazenista deste género emGuijá. O vestuário compra-se na Empresa Estatal em Xai Xai. A cooperativaperde muito dinheiro em transporte para trazer todos os abastecimentos para aaldeia.P: Como é que as famílias que não pagaram a sua quota de filiação se abastecem?R: A norma na cooperativa é que não se pode recusar a ninguém na aldeia aoportunidade de comprar comida, uma vez que tal acção só podia desencorajar aspessoas de se integrarem na cooperativa. Por isso, o que se faz é permitir que osmembros que tenham saldado as suas quotas tenham prioridade no abastecimentode qualquer produto disponível, tendo os não membros de se satisfazer emcomprar o que restar. Contudo, o problema real é que muitas vezes não há comidasuficiente mesmo para os membros que pagaram integralmente as suas quotas!

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P: Quais são as funções do Conselho Executivo - os seus membros recebem?R: Em primeiro lugar, a Célula do Partido realiza uma reunião para decidir quaisas tarefas específicas que necessitam de ser realizadas na aldeia. As decisões sãoentão passadas para o Conselho Executivo para implementação. O Conselho é oGoverno, e para realizar as suas tarefas, tem de criar várias comissões, porexemplo, a comissão para orientar a construção de casas, escolas, etc. OsMembros do Conselho não recebem nenhum pagamento - isso nunca aconteceuainda.P: E quanto à Assembleia Popular - existe alguma na aldeia? R: Sim, existe umaAssembleia do Povo na aldeia. [Infelizmente, por engano, o resto da conversasobre este assunto135

não foi gravado. Contudo, um dos pontos interessantes que se destacou foi que amaioria dos responsáveis tende a acumular funções, por exemplo, o presidente doConselho Executivo é também o presidente da cooperativa de produção agrícola.As tarefas do Partido, do Conselho Executivo e da Assembleia do Povo nãopareciam estar claramente definidas - parecia haver uma grande sobreposição nospapéis das estruturas]. P: A prestação de serviços de educação melhorou desde aindependência, ou a situação continua na mesma? R: A situação é muito melhoragora do que antes da independência; nesse tempo havia menos escolas do queagora, e ficavam a muitos quilómetros. Hoje, nesta aldeia as crianças nãonecessitam de percorrer longas distâncias visto que todas as escolas estão aqui. Oúnico problema é que todas as nossas escolas aqui não vão para além da quartaclasse.P: Todas as crianças vão à escola? R: Sim.P: Todos os professores são da aldeia ou vêm de fora da aldeia? R: Alguns dosprofessores são de fora da aldeia, mas esta assume a responsabilidade pelo seualojamento. P: Quantos professores existem?R: Temos 15 professores; 11 de fora e 4 da comunidade; este últimos estão todoscasados com mulheres da aldeia. P: Quem paga os salários dos professores? R: Éo governo.P: A aldeia contribui com alguma coisa para o funcionamento das escolas?R: A aldeia constrói as casas para o alojamento dos professores que vêm de fora e,de vez em quando, disponibiliza dinheiro para providenciar meios específicospara as escolas. P: Quais são as funções da O.M.M. na aldeia? R: EsterMashavane (Secretária da O.M.M.): Nós temos a responsabilidade de manter aaldeia limpa e organizada. Seleccionamos pequenos grupos de pessoas em cadaBairro para verificar as condições sanitárias dos respectivos bairros. Estes gruposaconselham as famlias acerca da higiene individual e também136

servem de intermediário na resolução de disputas. Nós mobilizamos as mulheresna luta contra a poligamia, lobolo, casamentos prematuros e vários tabus e rituaisque as mulheres eram forçadas a observar o passado. Sabemos que o lobolo aindacontinua, mas isso é feito em segredo e as pessoas não falam sobre isso. P: Há

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homens na aldeia que têm uma segunda mulher numa outra? R: Sim, há homensque têm outra mulher fora da aldeia. Esses homens são os que possuem gado quefica num lugar chamado mananga, que é uma região do interior geralmente seca,mas que tem poças de água suficientes para o gado. A área é escassamentepovoada, e as famílias que lá vivem são parte das famílias que se encontram emalgumas aldeias comunais. Isto significa que um homem que tenha duas mulheresconstrói uma casa para uma delas naquela área, e ela, em conjunto com alguns dosfilhos, toma conta do gado. O governo construiu escolas em algumas dessas áreaspara permitir que as crianças estudem. Mas não há nenhum homem nesta aldeiaque tenha outra mulher numa outra aldeia. P: Como é que as pessoas dividem oseu tempo entre o trabalho nas machambas, tendo em conta as longas distânciasenvolvidas, e o trabalho de casa?R: O trabalho na machamba é dividido em dois períodos: as pessoas saem de casade manhã muito cedo e trabalham no campo até cerca do meio (ia. Elas entãoregressam a casa para preparar as refeições, e podem voltar de novo para amachamba à tarde. O trabalho na machamba torna-se mais exigente na altura dasacha. Na época agrícola, as famílias preparam a comida de manhã e levam-napara o campo, mas deixam uma parte em casa para as crianças que estão naescola. As pessoas normalmente trabalham até ao meio dia, altura em que fazemuma interrupção para o almoço e descansam quando o sol está muito quente.Depois retomam o trabalho durante o resto da tarde, regressando à casa no fim datarde.137

Canção: Tsutsumani Ngopfu (Corram, Rápido!)6Observação: É necessário incluir uma nota explicativa para revelar a históriasubjacente que inspirou a composição desta "canção aparentemente inocente". Defacto, é uma canção de protesto, usada como veículo de crítica social contra aautoridade. Enquanto que as canções de protesto contra a autoridade colonial,relacionadas com as ofensas e injustiça social de que eram vítimas, erampronunciadas de uma maneira aberta e mais directa, as canções de protestopóscoloniais contra a FRELIMO e as suas estruturas são muitas vezestransmitidas de uma forma indirecta e subtil. Esta canção é um exemplo do últimoestilo de protesto. O autor foi informado, a título confidencial à margem dasgravações, de que quando as comunidades foram transferidas das áreas de cheiasao longo do Limpopo (1977) e reassentadas em aldeias comunais longe das suasmachambas, elas tiveram alguns problemas para realizar as suas actividadesagrícolas. Quando as pessoas de Xombongweni, por exemplo, colocaram esteproblema às suas estruturas políticas, foi-lhes prometido que seria organizado umserviço de autocarros para os transportar diariamente para a machamba. Contudo,quando, de facto, os autocarros apareceram, os motoristas não permitiam que osagricultores entrassem com as suas enxadas. Uma vez que não era seguro deixaras enxadas e catanas nas machambas depois do trabalho, além do facto de que oserviço de autocarros não seria sustentável naquelas circunstâncias, a ideia nãovingou.

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Nesta canção, as mulheres queixam-se do facto de terem de percorrer longasdistâncias entre as suas aldeias (mencionadas uma por uma na canção) e asmachambas (6 Km, no caso de Ximbongweni), tendo em consideração que elastêm de procurar lenha e carregar água para preparar o jantar (ver acima). Ocomentário feito no fim da canção por uma das cantoras é interessante porqueexalta a independência do país e a liberdade de expressão - "hoje a nossa voz éouvida..." As cantoras protestam contra o reassentamento, mas mesmo assim "nósdevemos dedicar-nos a trabalhar duramente, e com grande entusiasmo, para onosso país, Moçambique".6 Gravada na Aldeia Comunal de Ximbongweni, Guijá, Província de Gaza porAlpheus Manghezi, 15.05.80138

CançãoTsutsumani Ngopfu Musumi: Tsutsumani Vapangalatani: Tsutsumani ngopfu,dyambu se riperile Mu: Hina-a Vap: Kuve kule lomu hi yaka konaMu: Hi fika Nyampungwane-I Vap: Tsutsumani ngopfu, dyambu se riperile Mu:Hina-a Vap: Kuve kule lomu hi yaka konaMu: Hi fika Ximbongweni-I Vap: Tsutsumani ngopfu., dyambu se riperile Mu:ina-a Vap: Kuve kule lomu hi yaka konaMu: Hiya fika 7 de Abril-I Vap: Tsutsumani ngopfu, dyambu se riperile Mu:Hina-a Vap: Kuve kule lomu hi yaka konaMu: Hi fika Mubangwini Vap: Tsutsumani ngopfu, dyambu se riperile Mu: Hina-a Vap: Kuve kule lomu hi yaka konaCorram, Rápido!Regente: Corram Coro: Corram, rápido, o sol já se pôsRegente: Nós... Coro: É muito longe o sítio para onde vamosRegente: Nós vamos até Nyampungwani Coro: Corram, rápido, o sol já se pôsRegente: Nós... Coro: É muito longe o sítio para onde vamosRegente: Nós vamos até Ximbongweni Coro: Corram, rápido, o sol já se posRegente: Nós... Coro: É muito longe o sítio para onde vamosRegente: Nós vamos até 7 de AbrilCoro: Corram, rápido, o sol já se pôsRegente: Nós... Coro: É muito longe o sítio para onde vamos Regente: Nós vamosaté Mubangwini Coro: Corram, rápido, o sol já se pôs139

Mú: Hi fika Ntomanini-I Vap: Tsutsumani ngopfu, dyambu se riperile Mu: Hina-aVap: Kuve kule lomu hi yaka konaMu: Hi fika Xinyakanini-I Vap: Tsutsumani ngopfu, dyambu se riperile Mu:Hina-a Vap: Kuve kule lomu hi yaka konaRegente: Nós... Coro: É muito longe o sítio para onde vamosRegente: Nós vamos até Ntomanini Coro: Corram, rápido, o sol já se pôsRegente: Nós... Coro: É muito longe o sítio para onde vamosRegente: Nós vamos até Xinyakanini Coro: Corram, rápido, o sol já se pôsRegente: Nós... Coro: É muito longe o sítio para onde vamos

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[Uma das participantes faz o seguinte comentário durante a interpretação dacanção]: Hiwo nkarhi wa hina wa ku tsaka: a Musambiki wa hina a vuyeke, hi ngantshuxeka. A tolo ka mukolonyi a nga hi pfumeti a kuva ku twala rito ra hina andzeni ka xitsungu. Namuntlha hi huma ka magaravhadore hi huma mutlulube ,na hi kombisa ku tiko i la hina; li vuyile, hi fanela kuli tirhela, hi hiteka hi ntamolowu kulu hikusa i la hina tiko: li vuyile, i Musambiki wa hina![Tradução: Este é tempo da nossa alegria porque o nosso país, Moçambique,voltou para as nossas mãos. Ontem os colonos não deixavam que a nossa vozfosse ouvida no país, entre o nosso povo. Hoje nós [as nossas vozes] saimos nosgravadores e nos clubes (Rádio Clube)' quando celebramos a volta do nosso país,e prometemos dedicar-nos ao trabalho com muita força e entusiasmo para ele,porque é nosso. Voltou para as nossas mãos, e é o nosso país, Moçambique].'Nome da Rádio Moçambique antes da independência (Rádio Clube de LourençoMarques).141

BibliografiaAnuário de Moçambique. Lourenço Marques.COVANE, Luis 2001: Trabalho Migratório e Agricultura no Sul de Moçambique(1920-1992). Maputo: Promédia, Colecção Identidades; 9.FIRST, Ruth 1998: O mineiro moçambicano. Um estudo sobre a exportação demão-de-obra em Inhambane, Maputo: CEAIUEM [lP ed. Black Gold 1984].ISAACMAN, Allen 1987: Régulos, diferenciação social e protesto rural: Oregime do cultivo forçado do algodão em Moçambique. In: Revista Internacionalde Estudos Africanos, 6-7, pp. 37-82. ISAACMAN, Allen 1991: Camponeses,Trabalho e Processo de Trabalho: O Cultivo Forçado do Algodão emMoçambique Colonial (1930-1961). In: Moçambique: 16 Anos de HistoriografiaVol. 1. pp. 195-237.ISAACMAN, A. 1996: Cotton is the mother ofpoverty. Portsmouth [etc.].MANGANHELE, Agostinho Rafael 1997: Poder tradicional e sua legitimidade nocontexto histórico de Gaza: Estudo de Caso de Chibuto 1897/1996. Maputo:UEM, Dissertação de Licenciatura em História.MANGHEZI, A. 1983: Ku Thekela: Strategies for Survival Against Famine inSouthern Mozambique. In: Mozambican Studies: Journal ofthe Centre ofAfricanStudies, Maputo, 4, pp. 19-39. (Ku Thekela: Estratégias de Sobrevivência Contraa Fome no Sul de Moçambique. In: Estudos Moçambicanos: Revista do Centro deEstudos Africanos 4)MANGHEZI, Alpheus 2001: Samora Machel, homem do povo. In: Samora,homem do povo, ed. A. Sopa pp, 127-138. Maputo: Maguezo Editores.RAFAEL, Saul Dias 2002: Dicionário Toponímico, Histórico, Geográfico eEtnográfico de Moçambique. Maputo: AHM.142

ÍNDICE

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Prefácio do autor ........................................................................... 3Agradecimentos ............................................................................. 7E ntrevistas .................................................................................... 91. Mahawani Khosa [nascido 1894] ........................................... 112. Gabriel Mukavi [nascido 1901] ........................................... 253. Mindawu Bila [nascida ca. 1910] ............................................ 49Canção: Siyabonga Machele ...................................................... 54Tradução portuguesa: Obrigado a Machel ................................. 55Canção: Magostino, nuna wa mina ............................................. 56Tradução portuguesa: Agostinho, meu marido ............................ 584. Maria Nqavane ........................................................................ 61Canção: Iyo, N'wana mamani! .................................................... 65Tradução portuguesa: Oh, filho da minha mãe! ........................... 665. Melisina NhIongo ............................................................ 676. Oselina Marindzi ..................................................................... 73Canção: Nta muka hi kwini /Aonde hei-de ir? ............................ 747. Os Anciãos de Guijá (Madodaya Gijana) .............................. 81Os louvores de Ngungunhana ........................................................ 1248. AAldeia Comunal de Ximbongweni ......................................... 125Canção: TsutsumaniNgopfu .......................................................... 139Tradução portuguesa: Corram, rápido! ........................................ 139Bibliografia ............... .................... 142143

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sobre 4) autol,Alpileti,, Mangillezii do c i i 1 1134 c i n I IL A m h I kw H K I,Alrica do ýýtlL onde 1 cm,Alpilew Núncheli Ilinim1~,C 1c i.,111 e em ( . i e lIý.' ý, l -, ',S~Alvim nas de 11m13n. Memt Ilislizi. ýuccja. cili Ilil70.KOIaik ela ÀhIca Mi Sul dede 19(1). trdhalhçqi ciiiýii:[i\ idade, 1v13&(Inzklas cimil a sti"em GUI2OU, I-SLmã em Umidres L, lia Kaicril pim Ime da anie, dc rK em,v em Nfl)i, 'ambi,,ju,, -,11) 11)-7(),( ilide i I I I li ýý pr i i i ic ýl-ý I eq u i p,ý I de i i I\ e,,t i i, ý dý ) ( e I H i sde 1~ hs AI da t,ý n i\ cr, i I ade [,dua R A, \h I h H I i lu,a dilwc: de Aquino de e 141111 l-&l. kniwA lóh Ao, A h w Múmm, ( 1977. 1 Q7qLii ire 1 (A) e 1 IM 1 Ao Nrevi ord n 9A I, H Ib I I Ai I I i i o u FircIM CA1C2e.esc(ot m) C\l*Irýý d,ý Ã\C liaLi Alvica do Sul dulmic i HzHlsiçàl, VIC~CrilICA. e lw

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