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JUVENTUDE URBANA POBRE: MANIFESTAÇÕES PÚBLICAS E LEITURAS SOCIAIS Ana Maria Q. Fausto Neto Consuelo Quiroga* RESUMO: Este artigo tem como objetivo compreender as mudanças ocorridas no processo de socialização da juventude urbana pobre brasileira dos anos 90, identificadas através de organizações como gangs, galeras e tribos, e ampliar as bases da leitura social da mesma, freqüentemente fundadas em estigmas e preconceitos. Ao analisarem os sentimentos de exclusão e pertencimento entre jovens pobres urbanos, captados em pesquisa de campo, as autoras percebem que muito que é identificado como manifestação da violência resulta de comportamentos que visam a auto-afirmação da origem social e dos locais de moradia desses jovens. PALAVRAS-CHAVE: Juventude urbana pobre; socialização; representações sociais. • INTRODUÇÃO A sociedade contemporânea vive, em relação a sua juventude, um paradoxo. De um lado tem-se uma cultura marcada por uma supervalorização do jovem e do “ser jovem” que se expande como valor canônico para todos os grupos de idade e se manifesta em múltiplas representações sócio-culturais, da publicidade à moda, da música às produções televisivas . Essa dimensão, a que se relacionam, valores de vitalidade, dinamismo e criatividade, se articula a outras características dos tempos atuais: a valorização social do tempo livre, do lazer e do ócio. A juventude seria pois o grupo social emblemático, com legitimidade para assumir todas essas dimensões. Esse protagonismo da condição juvenil não coincide, entretanto, com sua inserção sócio-econômica real onde a falta de horizontes profissionais, as altas taxas de desemprego juvenil, a falta de equipamentos sócio-culturais, a extensão da vacuidade, têm alimentado os fantasmas da marginalidade, da delinqüência e da possibilidade de rupturas da ordem social. Ainda que para vários autores (Ariès, 1981 Morin, 1969) a juventude, enquanto segmento social específico, tenha se configurado neste século como conseqüência do prolongamento do período escolar e das necessidades de uma preparação formal para entrada na vida adulta e do trabalho, sua visibilidade social remete a conflitualidades, principalmente urbanas, que emergiram sob forma de rebeldias, revoltas e situações consideradas de delinqüência. No caso brasileiro a reflexão sociológica tem, na década dos anos 60, um marco fundamental no qual as manifestações juvenis são vistas como questionadoras da ordem social, revolucionárias de usos e costumes, e estruturadoras de utopias sociais e políticas. A geração dessa década e suas mobilizações tipificaram a “juventude engajada”, sendo o movimento estudantil uma de suas formas mais características. Essa juventude crítica – objeto de estudos clássicos no Brasil – (lanni, 1968

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Page 1: 10.16. juventude resumo conceitos

JUVENTUDE URBANA POBRE: MANIFESTAÇÕES PÚBLICAS E LEITURAS SOCIAIS Ana Maria Q. Fausto Neto Consuelo Quiroga* RESUMO: Este artigo tem como objetivo compreender as mudanças ocorridas

no processo de socialização da juventude urbana pobre brasileira dos anos 90, identificadas através de organizações como gangs, galeras e tribos, e ampliar as bases da leitura social da mesma, freqüentemente fundadas em estigmas e preconceitos. Ao analisarem os sentimentos de exclusão e pertencimento entre jovens pobres urbanos, captados em pesquisa de campo, as autoras percebem que muito que é identificado como manifestação da violência resulta de comportamentos que visam a auto-afirmação da origem social e dos locais de moradia desses jovens.

PALAVRAS-CHAVE: Juventude urbana pobre; socialização; representações sociais.

• INTRODUÇÃO A sociedade contemporânea vive, em relação a sua juventude, um paradoxo.

De um lado tem-se uma cultura marcada por uma supervalorização do jovem e do “ser jovem” que se expande como valor canônico para todos os grupos de idade e se manifesta em múltiplas representações sócio-culturais, da publicidade à moda, da música às produções televisivas . Essa dimensão, a que se relacionam, valores de vitalidade, dinamismo e criatividade, se articula a outras características dos tempos atuais: a valorização social do tempo livre, do lazer e do ócio.

A juventude seria pois o grupo social emblemático, com legitimidade para assumir todas essas dimensões. Esse protagonismo da condição juvenil não coincide, entretanto, com sua inserção sócio-econômica real onde a falta de horizontes profissionais, as altas taxas de desemprego juvenil, a falta de equipamentos sócio-culturais, a extensão da vacuidade, têm alimentado os fantasmas da marginalidade, da delinqüência e da possibilidade de rupturas da ordem social.

Ainda que para vários autores (Ariès, 1981 Morin, 1969) a juventude, enquanto segmento social específico, tenha se configurado neste século como conseqüência do prolongamento do período escolar e das necessidades de uma preparação formal para entrada na vida adulta e do trabalho, sua visibilidade social remete a conflitualidades, principalmente urbanas, que emergiram sob forma de rebeldias, revoltas e situações consideradas de delinqüência.

No caso brasileiro a reflexão sociológica tem, na década dos anos 60, um marco fundamental no qual as manifestações juvenis são vistas como questionadoras da ordem social, revolucionárias de usos e costumes, e estruturadoras de utopias sociais e políticas. A geração dessa década e suas mobilizações tipificaram a “juventude engajada”, sendo o movimento estudantil uma de suas formas mais características.

Essa juventude crítica – objeto de estudos clássicos no Brasil – (lanni, 1968

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– Foracchi, 1972) tinha como referência fundamental jovens de classe média cujos questionamentos culturais e políticos deram relevância à juventude como ator social. Diferentemente da juventude transviada americana, ou dos rebeldes sem causa europeus dos anos 50, os movimentos juvenis de década de 60 representavam mais que uma ruptura entre adultos e jovens ou uma violência sem direção social definida. Eles foram vistos como expressão de uma certa politização que apontava ideais de construção de uma nova sociedade.

Essa forma de representar a juventude permaneceu como referência de análise, o que significou, para muitas reflexões posteriores, a desqualificação das manifestações juvenis dos anos subseqüentes, que passaram a ser vistas como expressões de alienação (Martins, 1979). Essa desqualificação relaciona-se, basicamente, ao fato de que nos anos 70, e principalmente durante toda a década de 80, os jovens se organizaram em torno de movimentos culturais que se apresentavam socialmente com um estilo de vida que tinha na música, no lazer e no privilegiamento de determinados ítens de consumo, sua marca de identificação.

Aparecendo no cenário urbano através de movimentos tais como os punk, dark (Caiafa, 1985 – Abramo, 1994), rock (Souza, 1995), os jovens “atraíram a atenção pela agressividade real e simbólica de seu comportamento, pela negatividade de suas representações do presente e do futuro, pelo investimento na própria imagem e pelo privilegiamento do lazer e dos produtos da indústria cultural como elementos articuladores de suas atividades” ( Abramo, 1994: XI).

Mesmo que a dimensão de classe não tenha sido o elemento caracterizador de tais movimentos, pode-se dizer que sua relação com a juventude urbana pobre nunca foi destacada. Esta aparece mais nitidamente através da recente expansão dos movimentos e estilos musicais ligados à cultura hip-hop – “conjunto de manisfestações culturais – abrange o rap, o funk, o break, o graffiti, B-Boy – bastante comum nos guetos norte-americanos e que vêm sendo apropriados de modo geral pela camada menos favorecida da população que habita as periferias das grandes cidades brasileiras” (Herschmann, 1995:90). Ainda que tais manifestações estivessem presentes entre esses segmentos desde os anos 70, sua grande expansão e visibilidade só se dá na década de 80 e, principalmente, nos atuais anos 90, quando adquirem importante espaço nos meios de comunicação, e na indústria fonográfica, com suas músicas e ritmos ganhando audiência e seus bailes expandindo-se em diferentes pontos das cidades.

“Os jovens vêm encontrando, sem dúvida, nas representações associadas a estes universos musicais e à sociabilidade que eles promovem, o estabelecimento de novas formas de representação social que não só permitem expressar seu descontentamento, mas também se opor à tese de que o Brasil seria uma nação diversa mas não conflitual” (Herschmann, 1995:90).

Além de mobilizar semanalmente milhares de jovens que, agrupados em turmas e galeras, se deslocam para divertir-se nos bailes e concursos neles realizados, suas músicas falam dos dilemas por eles enfrentados no quotidiano de suas vidas em favelas e bairros periféricos, em que onde são destacados os preconceitos, estigmas e segregações dos quais são vítimas.

É importante enfatizar que nas leituras sociais feitas em relação a esses tipos de manifestação, se destaca a ótica da marginalidade e da violência urbana. Assim, sejam as movimentações dos grupos nas ruas, em direção (ou na ocupação das) às praias da zona sul, seja sua presença maciça em bailes funk, seja a atuação das torcidas nos jogos de

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futebol e suas comemorações de vitória, sejam simplesmente as aglomerações juvenis em “points”de conversas e “bebericos”, em todas essas situações esses agrupamentos têm sido considerados suspeitos ou ameaçadores.

Por outro lado, as próprias análises sociais, jornalísticas ou acadêmicas, têm privilegiado a juventude urbana pobre como objeto de estudos de delinqüência ou violência urbana (onde ocupam lugar destacado nas estatísticas de vítimas e agressores); nos estudos sobre o mercado de trabalho informal (onde se destacam por uma inserção prematura em atividades legais e ilegais) ou nos estudos sobre evasão, fracasso escolar ou consumo de drogas.

Esses campos configuram hoje o centro das preocupações da sociedade em relação à dinâmica de seus centros urbanos e à expansão de processos de dualização da sociedade e exclusão social. Essa expansão vem se configurando por um aumento cada vez maior de segmentos sociais economicamente desnecessários que têm como horizonte de trabalho perspectivas crescentemente mais frágeis e inseguras de garantia de sobrevivência. A isso se acrescem perspectivas políticas de submissão a esquemas autoritários e violentos de exercício de poderes locais e uma relação com a sociedade cada vez mais intolerante e julgadora de seus comportamentos e diferenças.

Nesse contexto, o estudo da juventude urbana pobre e seu processo de formação/deformação como sujeitos e suas manifestações se torna uma tarefa socialmente fundamental. Compreender a teia de relações subjacentes a sua presença no cenário urbano, ampliando as bases de leitura usualmente utilizadas para seu entendimento é um dos objetivos deste artigo e da pesquisa a partir da qual foi gerado.

• AS LEITURAS DA PRESENÇA PÚBLICA JUVENIL: GANGS – GALERAS

A análise da presença juvenil no espaço público, principalmente urbano, tem pelo menos duas grandes tradições de estudo; uma de origem americana e outra francesa. A tradição americana remonta aos anos 30, quando a delinqüência juvenil torna-se um dos objetos clássicos pesquisa sociológica.

Ligada aos estudos da Escola de Chicago, retomados posteriormente pelas análises de Parsons e Merton nos anos 50/60, a juventude e sua presença através de grupos organizados tem suas formas de ação analisadas pela perspectiva da rebeldia e dos comportamentos desviantes. A questão fundamental subjacente às organizações juvenis seja ao nível de seus bandos ou ao nível das gangs, é a noção de desvio, fruto de uma desorganização social (e familiar) decorrente de uma forte urbanização e de reduzidas oportunidades oferecidas pela industrialização. A defasagem entre esses dois processos somada a choques e dificuldades de adaptação sócio-cultural de migrantes e grupos étnicos diferenciados produziria “zonas de marginalidade” nos centros urbanos. Essas zonas, que no contexto americano seriam ainda marcadas por uma forte segregação espacial e étnica, viveriam em constante estado de crise de valores, de padrões culturais e modos de vida os quais se configurariam em “caldos de cultura” para o surgimento de bandos de gangs juvenis. Essas afirmariam, assim, uma cultura juvenil segregada socialmente construída nas disfunções da sociedade industrial e urbana e realimentada pela marginalização e pelo racismo. Além disso, a participação em uma economia desviante ampliaria sua condição de grupos delinqüentes, socialmente ameaçadores.

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O princípio unificador dessas gangs é o do território, onde a questão étnica e a defesa guerreira de suas comunidades marcariam as querelas de honra, os conflitos e as provocações internas e externas seja em relação a outros grupos seja em relação aos órgãos de repressão e controle social.

Em sua organização, as gangs se caracterizariam por rituais de entrada e permanência, pela presença em atividades delinqüentes organizadas, pelo constante acionamento de mecanismos de solidariedade interna e por uma socialização marcada pelo uso da força e da violência tanto no controle de seus membros participantes como em suas relações externas. As gangs criariam assim, regras de engajamento e fidelidade, segredos e hierarquias necessários a uma socialização guerreira onde as dimensões de “defesa e ataque” e as possibilidades do uso da violência estariam sempre presentes em seus horizontes de organização e ação.

Evidentemente essas características mas fortemente delituosas não se generalizariam à totalidade das organizações juvenis. Entretanto, nessa perspectiva de estudos, as possibilidades de condutas anônimas, de comportamento de frustração, ou de ações de respostas agressivas a mecanismos de estigmatização estariam presentes, em diferentes níveis, nas formas de ação da juventude pobre americana.

Essa dimensão real ou potencialmente transgressora está bem presente no imaginário coletivo americano (e brasileiro) e representa, na verdade, um modelo dominante de leitura que modela a própria sociologia como assinala Paixão, em seu artigo sobre a cultura oficial da sociologia (Paixão, 1995).

A Segunda tradição internacional de análise da presença social da juventude nos centros urbanos é representada por autores franceses, dentre os quais Morin (1969), Maffesoli (1988) e Dubet (1987,1992).

Edgard Morin em seu estudo sobre a “Cultura de massas no século XX” (1969) indica a década de 60 como marco onde as configurações do ciclo de desenvolvimento instaurado no pós-guerra, a ampliação da escolarização, os benefícios da sociedade do Welfare, o aumento de novos bens de consumo, a indústria cultural e a valorização social do tempo livre passam a ser componentes fundamentais tanto da cultura como do nascimento de novos atores sociais. Dentre esses, a juventude se destaca como um ator fundamental por sua absorção fundamental aos ideais de consumo e valorização do tempo livre.

Para ele a juventude ao mesmo tempo que “simboliza a rebeldia diante da ordem social” desmoralizada pelo tédio burocrático e pelo trabalho uniforme e mecânico, “projeta o sonho de abundância, do consumo e do usufruto do lazer” (Morin, 1969).

Apesar de localizar o significado da juventude em outro contexto – no da cultura de massa – Morin mantém a gang como nomeação de suas organizações. Compara-as aos clãs arcaicos, no que se refere à presença de sistemas de prescrição e contratos sociais na garantia da fidelidade pessoal, da solidariedade coletiva, nas regras de interdição e sanções além da agressividade em relação ao estrangeiro. Enquanto Morin, utilizando o conceito da gang, retira a forte conotação de desorganização social dada pelos estudos americanos, Dubet (1987 e 1992) introduz uma nomeação mais contemporânea – galeras – mas retoma a noção de desvio e crise social.

Para este autor, as galeras correspondem a organizações juvenis nascidas em um mundo não mais estruturado em torno da experiência operária. Elas resultam da crise de um tipo de ator social e seu modo de vida. Segundo sua análise, o mundo operário e do trabalho organizava a vida social das classes trabalhadoras seus bairros de residência (Les

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quartiers rouges). Nesses predominavam mecanismos de integração, sentimento de pertencimento e acordos normativos comunitários que são gradativamente desarticulados quando, pelas modificações no mundo do trabalho, esses bairros passam da condição de bairros de operários para a de “periferia de pobres”, dominados por sentimentos e realidades de exclusão.

Ocupados por uma população heterogênea, desempregada e diferenciada sócio-culturalmente, esses bairros passam a ser hierarquizados segundo uma escala de infâmias que afeta não só seus habitantes mas seus próprios equipamentos sociais (casas, escolas, sistema de saúde, equipes de esporte etc).

Assim, a vivência da exclusão social na qual se articulariam o desemprego (e subemprego) os estigmas e racismos e a xenofobia configurariam as bases estruturadoras das galeras.

É importante destacar que para Dubet, a exclusão do mercado de trabalho e do acesso a toda uma série de benefícios e relações sociais, convive com uma integração cultural pela qual os jovens são mobilizados por aspirações de consumo e desejos de reconhecimento social. Não sendo mais regrados por uma cultura da pobreza nem pelos limites estruturadores da condição operária, os jovens participantes das galeras buscam a integração através de “grupos protetores” e de atividades ilegais por meio das quais possam ter acesso a bens dos quais se sentem injustamente privados. Em suma, as galeras são, hoje, uma forma de sociabilidade juvenil e uma maneira de viver a juventude no meio popular.

Uma terceira abordagem em relação à sociabilidade juvenil contemporânea é apresentada por Maffesoli em sua obra “Le temps des tribus” (1988). As tribos seriam “micro-grupos que se desenvolvem no interior de uma sociedade massificada”. Parte também da diferenciação entre uma sociedade marcada pela modernidade (fundada sobre uma organização econômico-política onde a inserção dos indivíduos estaria marcada por funções configuradoras de identidades específicas e agrupamentos contratuais) e uma estruturação social pós-moderna (caracterizada por uma estrutura complexa onde as massas - ou o povo – se localizariam socialmente através de uma multiplicidade de engajamentos e exercício de papéis intercambiáveis). As tribos corresponderiam a novas formas de reagrupamento social onde a fluidez de sua composição social, o caráter efêmero e frágil de suas organizações e a dimensão local, seriam suas marcas distintivas. O engajamento em tais micro-grupos implicaria no compartilhamento emocional de valores, lugares e ideais que são ao mesmo tempo circunscritos (localismo) e universalizáveis, vale dizer, presentes sob diversas formas, em numerosas outras experiências sociais não necessariamente apenas juvenis. Todas essas leituras têm como denominador comum, a ênfase na dimensão da sociabilidade juvenil, recorrendo a modelos ou analogias explicativas distintas. Como fenômeno predominantemente urbano e de grandes cidades, as análises apontam para formatos organizativos mais ou menos estruturados onde regulações hierárquicas e comportamentos são comandados por códigos específicos, freqüentemente pessoalizados. No caso das análises que enfocam a juventude pobre a dimensão do desvio e da segregação configura-se como ótica predominante de leitura.

• JUVENTUDE POBRE: EXCLUSÃO E PERTENCIMENTO Pensar a juventude urbana pobre brasileira implica, evidentemente pensar a

situação mais geral da pobreza no país e a dinâmica de nossos centros urbanos. Ainda que se trate de um segmento social específico, suas relações estão de tal

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forma enraizadas e articuladas a dinâmicas sociais vitais que torna-se impossível tratá-la como “amígdalas ou apêndices” que podem ser separados ou cirurgicamente eliminados sem maiores conseqüências ao conjunto do corpo ou tecido social.

Por outro lado, ela reflete também as contradições desse final de século onde globalização de economia e mundialização da cultura estruturam paradoxalmente seus contrários: exclusões, localismos e territorializações. Rompem-se assim, barreiras internacionais e criam-se fortes e intransponíveis barreiras internas.

Um dos dilemas fundamentais deste país – como a rigor das demais realidades terceiro-mundistas – é a entrada numa dinâmica globalizada e pós-industrial sem sequer ter tido resolvidas, para o conjunto de sociedade, questões básicas postas pela modernidade.

De fato, sempre tivemos um processo de “modernidade incompleta” onde a sociedade do trabalho e os ideais iluministas nunca se universalizaram. A empresa – ou mais especificamente a empresa industrial – nunca conseguiu ser o centro ou a base real da organização produtiva e social, nem as relações capital-trabalho se expandiram como referência efetiva de relações e hierarquias sociais.

Assim, para grande parte da população trabalhadora desse país, o assalariamento, os direitos e a proteção social não se configuraram como horizonte histórico nem como realidade de vida. Mesmo na mais restrita concepção de cidadania, como direitos e proteção, nossa realidade se apresentou não só limitada aos indivíduos com participação produtiva em alguns setores de atividade ou categorias profissionais (o que caracterizaria a cidadania regulada – Santos/1979) como incompleta no que se refere aos tipos e qualidades de coberturas sociais.

Para amplos setores, seus espaços de reconhecimento e proteção social continuaram e continuam se dando em esferas privatizadas seja ao nível das famílias, das comunidades vicinais ou dos espaços religiosos.

Essa situação evidentemente se agrava com as atuais mudanças no mundo do trabalho onde se amplia enormemente a instabilidade, a insegurança e a precariedade dos vínculos trabalhistas. Transitando todo o tempo pelo mercado, tangenciando o formal, o informal e o ilegal, o emprego, o subemprego e o desemprego, parcelas hoje majoritárias de trabalhadores – com ênfase radical em seu segmento juvenil – não conseguem constituir-se nem enquanto trabalhadores, nem enquanto cidadãos ou sujeitos de direitos (Telles, 1994).

Pelo contrário, o mais generalizável na população juvenil – e isso tem se evidenciado em nossa atual pesquisa – é a vinculação dos jovens a um diarismo onde se multiplicam um sem-número de estratégias e “metiers” precários de obtenção de renda possíveis de serem geradas no interior do espaço urbano ou no universo de suas comunidades.

Nesse universo periférico de trabalho e vida se diluem os limites entre legalidade e ilegalidade, posto que ou não existem regras claras, ou estas obedecem a códigos distintos. Assim, pequenos desvios não são percebidos como transgressões. A própria lógica individualiza, e individualizadora do “quebra-galho” para dar conta de necessidades pessoais e familiares, neutraliza ou dá fluidez aos julgamentos e às possíveis culpabilidades. Essas são justificadas pelos “azares da vida e pela vivência de circunstâncias infelizes”.

Esse tipo de constituição dos indivíduos como trabalhadores tem evidentemente conseqüências que vão muito além das meramente econômicas ou financeiras, pois atinge a própria construção de sua identidade como trabalhador e cidadão:

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Um indivíduo com referências coletivas públicas reduzidas, referências de direitos distantes, e com garantias limitadas às possíveis de serem alcançadas por energias e sagacidades próprias: “self” mergulhado e alimentado num mundo de códigos mais ou menos particulares.

A isso se agrega a sistemática e crescente erosão dos serviços e instituições públicas que não são capazes de preencher suas funções mínimas de fornecer os bens coletivos de educação, saúde, segurança e justiça. E mais, na medida em que os serviços públicos se reduzem a clientelas cada vez mais pobres, eles tendem a acentuar o isolamento e a estigmatização de seus usuários a ponto de operar uma verdadeira fragmentação tanto no interior da própria pobreza como entre esta e o restante da sociedade.

A redução, precarização ou ausência de recursos públicos não só retira bens coletivos, empurrando populações inteiras para a lógica do mercado, como anula também referências coletivas e presença da sociedade e do Estado, enquanto gestor de interesses mais gerais. Na medida em que, no mercado, nem todos têm os mesmos interesses nem possibilidades iguais de acesso, seus recursos se tornam uma ficção social ou mais um espaço do “cada um por si”.

Nesse contexto, ganham força os espaços mais privatizados da vida social, “radicalizando-se a ordem privada ou o mundo dos códigos particulares”. Uma vez que a viabilização da existência depende cada vez mais das energias morais, das solidariedades pessoais e das lealdades privadas (Telles, 1994).

É nesse “universo conhecido” que as famílias – e os jovens pobres especificamente – conseguem arrancar alguma alternativa de vida e trabalho, além de uma respeitabilidade mínima e uma neutralização dos estigmas da pobreza e da discriminação social. Talvez por aí se pudesse entender também seu apoio a sistemas de autoridades locais que, mesmo ilegais, são próximas e conhecidas.

Evidentemente que a hegemonização de uma ordem de vida privatizada não é apenas caracterizadora da situação da pobreza. É antes de tudo uma dimensão marcante da cultura contemporânea que atravessa as diferentes classes e segmentos sociais. Esses contam com recursos e adotam estratégias diferenciadas, os condomínios fechados, as casas – como habitat auto-suficiente a partir do qual podem ser acessadas comunicações diretas com diferentes serviços, negócios, relações interpessoais e diferentes partes do mundo; representam também exemplos desse modo de vida com reduzida alteridade e sem contato com diferenças incômodas. A redução dos contatos sociais diretos, o afastamento das diferenças, a radicalização da experiência social à “convivência apenas entre os iguais”, amplia enormemente não só as possibilidades de aumento de preconceitos, racismos e autoritarismos como a configuração dos fantasmas de uma sociedade de apartheid.

Por outro lado, e paradoxalmente a esse distanciamento e territorialização dos espaços da vida social, que atinge fortemente a juventude urbana pobre, esta dá sinais de movimentos contrários.

Integrados culturalmente pelo acesso a uma socialização multimédia e pela disseminação de valores participatórios advindos do ambiente cultural do processo de democratização (não tanto da experiência real da democracia), os jovens pobres têm apresentado comportamentos e críticas sociais importantes.

As letras de suas músicas sinalizam uma não aceitação dos processos de rejeição, estigmas e violências a que estão submetidos. Seus espaços de vida não são mais envergonhadamente ocultados, como o fizeram muitas das antigas gerações de moradores de favelas e periferias, mas assumidos explicitamente em seus poemas e “gritos de guerra”

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rituais. Assim, o “sou Borel até morrer” ou o “Ê, Ô, Ê, Ô Santa Cruz é o terror” e tantos outros que emergem entre torcidas organizadas, nas chegadas e no interior dos bailes, nos trajetos de ônibus ou nas diferentes movimentações coletivas dos jovens pela cidade são formas sérias ou jocosas de auto-afirmar, muitas vezes pela intimidação, sua origem social e seus locais de moradia.

Por outro lado, o “ser feliz e andar tranqüilamente na favela onde eu nasci”, como estribilho central de um rap de grande sucesso é indicativo de uma demanda de legitimidade e de reconhecimento não só de igualdades mas de diferenças além de uma forte expressão de pertencimento.

Além disso, o investimento e o interesse que se observa entre os jovens pobres no acesso a diferentes ítens de consumo, não só de bens eletrônicos mas principalmente de vestuário e calçados – ou da garantia de um “look” aceitável – são manifestações de desejo de integração.

Sem uma perspectiva miserabilista de aspirações apenas por pão e comida (“a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte” – Titãs) o jovem de um modo geral e especificamente o pobre indicam que “as mudanças na maneira de consumir alteraram as possibilidades e as formas de exercer a cidadania” (Canclini, 1995:13).

Eles sabem, e isso se torna dramático em termos de possibilidades reais, que estamos nos distanciando da época em que as identidades e a aceitação social se definiam por essências ou pela participação em grupos contratuais. Se de alguma forma sempre foi assim, hoje se radicaliza o fato de que o reconhecimento e a aceitação social dependem cada vez mais do consumo ou “daquilo que se possua ou seja capaz de possuir” (Canclini,1995).

Talvez o que assuste no comportamento da juventude urbana pobre, e que acione os modelos de leitura social do desvio e da transgressão, seja esse movimento de sair do lugar onde sempre estiveram seus pais. Estes viveram sua subordinação e seu confinamento a determinados espaços da cidade como normalidade. O invadir as praias ou transitar coletiva e ruidosamente pela cidade indicam um afastamento até mesmo do pacto territorial que serviu à organização da cidade” (Rezende,1995:62). São pois movimentos certamente simbólicos mas também reais, de ampliação dos limites impostos aos diferentes grupos e segmentos sociais, na sua convivência urbana e social. Representam, certamente, uma ruptura, um encurtamento do hiato que separa a formalidade dos direitos de cidadania e a prática destes direitos por seus presumidos sujeitos (Jelin,1994). Uma mudança de posicionamento e comportamento dos jovens frente à ordem social, sem representar forçosamente delinqüência nem “manifestações da violência urbana”.

O que desafia hoje a sociedade e o pensamento social é portanto a compreensão dessas novas linguagens e dinâmicas trazidas pelos jovens pobres. Continuar lendo-as pelos códigos das transgressões, do desvio e principalmente pelo da criminalidade urbana representa, a nosso ver, uma miopia que nos impede de captá-las e nos imobiliza para encontrar novas saídas sociais.

ABSTRACT: The article seeks to understand the changes that have transpired

in the socialization of Brazil’s poor urban youth during the 1990s. It also aims to broaden the social reading of the organizational forms identified with these youth – such as gangs, galeras, and tribos, often the target of stigma and prejudice. Analyzing

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the feelings of exclusion and of belonging expressed by these youth during field research, the authors conclude that much of what is identified as an expression of violence is in fact behavior prompted by the need for self-affirmation regarding social origin and place of residence.

KEYWORDS: poor urban youth, socialization, social representations BIBLIOGRAFIA ABRAMO, Helena Wendel. Cenas juvenis: punks e darks no espetáculo urbano.

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