1 vermelho ou de como cheguei até aqui · : perspectivas de uma antropologia literária”,...
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1 Vermelho ou De como cheguei até aqui
“Entre a primeira bactéria e Shakespeare...
muitas coisas tiveram de acontecer.” 1
Jorge Wagsberg
Boa literatura é boa literatura;
agrada tanto crianças quanto críticos.”2
Rebecca Lukens
Há tempos que na Literatura, ou por outra, na Teoria Literária, a discussão
entre biografia e bibliografia emergiu, mais tarde foi descartada, voltou à tona,
tendo sido devidamente relativizada. De qualquer modo, considero que a vida do
indivíduo autor possua certa relevância em suas escolhas, ou talvez seja, até
mesmo, determinante para sua mundividência. Afinal, em certa instância, a visão
de mundo de um autor é outra maneira de se considerar a literatura produzida pelo
escritor. Sua obra não deixa de ser a sua Umwelt – senão na sua totalidade, ao
menos, como parte dela –, que, obviamente será realizada com todos os jogos
estéticos e recursos linguístico-literários possíveis, tais como: emprego de
similaridade; utilização de alteridade; uso de mescla; fusão de indivíduos em uma
personagem; transposição de situações para outro local, dentre muitos outros
recursos artísticos.
Considerando uma tese acadêmica da área de literatura também como um
texto, não apenas crítico, mas assemelhado a uma produção literária, ainda que
não possua caráter biográfico, seguramente, tal gênero textual não deixa de
apontar traços e marcas, escolhas e estilos, limitações e preferências, modos de
compreensão, vícios de linguagem, ideias e indícios do que pensa quem a escreve.
1 WAGENSBERG, Jorge. Pensamentos sobre a incerteza: 531 frases sobre temas essenciais da
vida. Trad. Simone Mateos. São Paulo: Saraiva [Benvirá], 2010. p.43. 2 LUKENS, Rebecca. “The Child, the Critic and a Good Book”. Language Arts, 55: 452-54, 546.
In: SHAVIT, Zohar. Poetics of Children’s Literature. Athens and London: The University of
Georgia Press, 2009 (paperback ed). p. 37. “Good literature is good literature; it satisfies both
children and critics.” Vale ressaltar que Shavit diverge do estatuto de boa literatura que Lukens
confere à literatura infantil. Não é que Shavit não atribua qualidade ao gênero, mas considera uma
postura anacrônica, que simplifica, como se a boa literatura fosse universal. Traço um viés
distinto, ao passar ao largo da discussão da qualidade literária (por considerar que há de ser algo
tácito, alguém gosta de ler algo que não considere bom?), e focar na ponte estabelecida entre a
criança e o crítico, no quanto de crítico há na criança, no quanto de criança há no crítico.
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Recordo a discussão acerca do saber tácito da ficção e da realidade,
encetada pelo crítico alemão Wolfgang Iser, em seu seminal livro “O fictício e o
imaginário: perspectivas de uma antropologia literária”, levando-se em conta o
fato de que praticamente se trata de um chavão considerarmos unicamente que tais
textos são ficcionais e, por exclusão, os textos que não são literários se relacionam
com o seu oposto, ou seja, são da ordem da realidade, Iser parte para questionar
tal distinção dualista. Pergunta ele: “Os textos “ficcionados” serão de fato tão
ficcionais e os que assim não se dizem serão de fato isentos de ficções?” 3. O
amálgama entre criação e crítica, ficção e não-ficção, vida e obra, texto acadêmico
e texto literário está explicitado nesta tese em sua forma, pois é questão de fundo,
bem como está na raiz de sua concepção, refletindo principalmente acerca da
linha de pensamento que, ao opor fantasia e realidade, traz como corolário a
localização da fantasia em espaço antípoda à razão. A fantasia seria parte do
campo da desrazão, da irracionalidade, da loucura, insanidade.
A aproximação dos temas que ora realizo, a saber, vida e obra; crítica e
criação; texto acadêmico e texto literário; fantasia e filosofia; possui dois motivos
principais: (1) contextualizar a origem da tese, situar o problema a ser analisado,
apresentar a gênese do incômodo de reflexão em articulação com minha biografia,
retomando o tópico “vida e obra” [apresentado no item 1.1. Contando uma
história]; (2) explicitar o próprio cerne da minha investigação, que se propõe a
problematizar a literatura de fantasia enquanto modo de fazer filosofia, como
ferramenta filosófica, ou seja, seria a criação para criança é uma mirada crítica
para o adulto? [desenvolvido no item 1.2. Mas afinal, qual é a pergunta?].
3 ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 1996. p.13.
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1.1 Contando uma história
“venha começar nossa história, pois
estou mesmo é faminto de começos”.
Maurício, personagem de O Rei do Manacá.4
Minha trajetória de vida – predominante no âmbito profissional, mas
também quanto ao aspecto pessoal – aproxima Arte e Ciência. Para tanto, parto da
condição de menino de oito anos de idade – os eternamente emblemáticos oito
anos, por conta do poema romântico de Casimiro de Abreu –, filho de pesquisador
da área de Matemática, leitor voraz, aluno ainda na escola pública primária com
redações elogiadas, sendo expostas pela professora que me fazia percorrer com
ela, sala após sala das três terceiras séries, gerando em mim um misto de orgulho
e vergonha. Chego ao lugar de indivíduo de quarenta e um anos, como escritor e
pesquisador de literatura infantil, tendo passado pela condição de jovem
graduando de Ciências Biológicas; e este percurso mostra bem como a literatura
infantil foi tanto origem (como criador-menino) quanto destino (como crítico-
adulto), com um desvio estratégico, parada metodológica, engano juvenil ou
trapaça do destino pelo modo de compreender os fenômenos de forma cartesiana.
Cruciais foram dois momentos em minha vida, que ora percebo como
alicerces desta pesquisa. Inicialmente, recém-saído dos bancos escolares do
Colégio Pedro II, ao não ouvir as evidências apresentadas pela vida e cismando
que a literatura na minha vida não passava de mero hobby, optei pela carreira
romantizada de cientista, sonhando com as veredas da biologia, acreditando que a
rotina de biólogo seria tão-somente enlevo com a diversidade da natureza.
O segundo momento, já bem mais adiantado na faculdade de Ciências
Biológicas, cursando a disciplina de sexto período denominada “Metodologia
Científica”. Magistralmente ministrada pelo astrônomo e Professor Doutor Jorge
Vieira, do Observatório Nacional, a matéria gestou um lampejo de epifania
epistemológica: de que a Ciência não era capaz de dar conta da multiplicidade dos
fenômenos do universo. O insight de que a expressão “comprovada
4 MOURA, André. O Rei do Manacá. Il. Alê Abreu. São Paulo: Jujuba, 2011. p. 12.
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cientificamente”, repetida à exaustão pelos meios de comunicação, não passava de
uma balela ou, no mínimo, era algo falseado, uma falácia. Sobreveio o desencanto
com a Ciência (situação que, na verdade, hoje repenso como um aprofundamento
da postura de investigador crítico, ao me libertar das amarras rígidas e limitadoras
do método científico e me aproxima da postura epistemologicamente ousada de
Paul Feyerabend, em Contra o método), e em seguida, a busca por outros
caminhos e, finalmente, o encontro com um curso de extensão da Faculdade de
Letras, da mesma Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado Oficina de
Criação Literária: Literatura Infantil, na qual ainda cursava o bacharelado em
Ciências Biológicas. Minha crise analítica teve seu ápice no contato com a
criação.
Incentivado pelas professoras Rosa Cuba Riche (que mais tarde
reencontrei na condição do votante do Prêmio da Fundação Nacional do Livro
Infantil e Juvenil) e Enilda Newman Alves, responsáveis pela oficina mencionada
acima, escrevi o conto infantil “O Lápis e a Estrela”, que foi publicado em 1992,
nas páginas 11, 12 e 13 de Bioletim No 9 – Revista dos Alunos de Biologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Agosto e Setembro de 1992, organizada
pelos alunos do curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Como havia mencionado que retomaria o porquê da escolha do título da
tese, como um preâmbulo, acredito ser necessária a inclusão do conto infantil
escrito há quase duas décadas atrás, primeira e ainda ingênua (quase caseira,
familiar, amadora) produção na área de crítica e criação que abracei
definitivamente a partir do ano de 1995. É curioso pensar que, apesar de ter sido
escrito quando considerava o texto de literatura infantil como gênero direcionado
prioritariamente ao público infantil, o conto não foi modificado mesmo sabendo
que seria divulgado entre jovens adultos, estudantes universitários do curso de
graduação de Ciências Biológicas do Instituto de Biologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
O Lápis & a Estrela
Para o Fabio (é, é sem acento) e para o Tiaguinho, para a Juliana. Para a
Marcinha, para todas as Marcinhas e para o Dudu também. Para a Lili e para o
Batata, para o Márcio e para o bebê da Márcia. Para as duas Larissas, ambas
muito bonitas de se ver, e para a Beta, e para a Drica. Para a Patty, para a Paty e
todas as Patricinhas... Para as gêmeas Dea e Lu, para o Pinguim, para o Barney.
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Para as Carlas, Cláudias, Flávias e Carolinas. Para as Marianas, as Julianas, as
Lucianas, as Joanas, todas as Anas, enfim, para as bananas cor-de-carmim. Para a
Chapeuzinho Vermelho, para o Lobo Mau. Para a Sapatinho de Cristal, para o
saco plástico cheio de cola, para o menino com dente cariado no sinal. Para o
Evandro quando ele for for vovô, para o André quando ele aprender a amar sem
erro. Para as rosas-meninas de abril, para os meninos-zangões dos dezembro.
Para o Leozinho, para o Frederico quando ele era só Freddy, pro Carlos quando
ele brincava no recreio e para as garotas deles. Para as luzes, para as sombras,
para as frases difíceis de esquecer. Paraas attitudes fáceis de lembrar. Para o
Thomas, e todas as pessoas que a gente gosta de lembrar. Para o Nando, para ele
nunca virar adulto, para a Tê, para ela nunca deixar de ser criança, para a Déia e
para a Tiane, minhas mais caras amigas, para a a Annie, sem maiores
comentários. Para o Gil, para o Magoo e para o Mantovani. Para cada um dos
três, e para todos os três juntos… E já que a gente falou de felicidade (é, vocês
três, mesmo!), para a vontade de ser feliz… Para as Valérias e para as amizades
sinceras, para ler nas filas de espera (leia Argila a estória da bruxa Camila, é
ótimo para filas longas). Para os Alexandres, Xandis ou não. Para as vitórias e
para as derrotas, e para as medias atritméticas, também. Para os pais dos pais,
para os filhos das mães e para os árbitros do digníssimo esporte bretão... Por que
não? Para os manos, para os Caetanos, para os gaoianos e os sul-coreanos. Para
os Jotinhas, para as Marthas, com e sem h. Para a Anaize, com um carinho e uma
admiração especial, para todas as Anas, de A a Z. Para as Amélias e para as
torneirinhas de asneiras que nós carregamos no peito. Para a Débora, que teve a
grandeza, a finesse, a audácia e a sensibilidade de escolher o sacrossanto ofício,
que teve a coragem de escolher como instrumento de trabalho, juntamente aquele
que fere, corta e mata sem que a gente possa perceber. A tão falada palavras. E
nada destas bobagens de bichinhos e plantinhas, coisa mais sem graça. Para a
Gabriela e para a Isabela e para a Manuela e para a epsilon-ela. Para a Mari,
como não poderia deixar de ser e para as crianças de modo geral. Todos nós,
todos vocês, hoje e sempre. Mais crianças do que nunca. Do modo mais geral
possível. Da mesma maneira mais simples possível. Lúdico. Ou melhor,
simplesmente infantil.
Era uma vez... Era uma vez, eram duas vezes, eram várias vezes... Todas
as vezes que uma criança quiser contar uma estória para outra criança, então a
gente vai se lembrar da nossa. E do lápis e da estrela. O lápis, o nosso amiguinho,
vivia contente e feliz da vida, brincando de amarelinha nas linhas do papel
branco. E corria e brincava e cada hora fazia um desenho novo, cada um mais
bonito que o outro. E nem se preocupava com nada que não fosse celulose ou
grafite. Enquanto isso, lá no céu, tinha uma estrela que brilhava e piscava feliz
durante a noite. Mas ela não era muito feliz não. Ela tinha um pouco de vergonha
do seu brilho. Vê se pode! Ela ficava sem graça de brilhar tanto, e sempre com os
seus amiguinhos e amiguinhas, estrelas como ela: – Eu queria ter um interruptor
aqui nas minhas costas, pra que eu pudesse me desligar. E a amiga falou: – Por
quê? Não é ótimo brilhar e iluminar o caminho de todo mundo? – Ah, mas assim
ninguém consegue dormir, com essa luz na cara! Não quero ofuscar ninguém. E
continuaram conversando horas a fio, dia após dia, ou melhor, noite após noite. E
mesmo que ficasse preocupada com os dorminhocos da cidade, ela vivia sua vida
mais ou menos contente. Até que um dia...
Naquele dia onde o dia era mais dia e a noite veio beijá-los, foi que os
nossos amiguinhos se conheceram. O Lápis já tinha desenhado quase tudo e
pensou que não tinha mais nada para desenhar. E começou a pensar e ficar
chateado. Muito chateado, muito chateado mesmo. Até que resolveram começar
um traço, ou um pedaço de linha. E daquele traço, trouxe um outro traço e acabou
fazendo uma estrela. E gostou do que tinha feito. Pensou, que estrela bonita, que
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estrela linda! Parece até que vai falar, parece que vai abrir os olhinhos... – Hum...
Que sono... – disse a estrelinha ainda com os olhos um pouco fechados... – Ei,
você fala, você tá viva e pode ser minha amiga! – falou o Lápis todo animado. –
Quê? Onde eu estou, cadê todo mundo? – Todo mundo? Que todo mundo, só tem
eu aqui nesse caderno. Ou pelo menos, nessa página. Sabe que eu nunca tinha
pensado nisso? – disse o Lápis, já mais pensativo... – Ei, cara, me explica como
eu vim parar aqui? Eu moro lá no céu e hoje acordei aqui nesse papel, com estas
linhas que parecem uma partitura... – Ih, não sei, eu só sei que eu estava
desenhando e já não tinha mais nada para desenhar. Então, fiquei triste, achando
que eu tinha desaprendido a desenhar. Mas veio uma idéia e desenhei uma
estrela, desenhei você. – E eu acordei e vi você – disse a Estrela, ao mesmo
tempo em que pensava: “Vi você todo feio e pontudo”. Ela não tinha simpatizado
muito com ele, muito sem graça para ela que tinha se acostumado ao seu próprio
brilho e ao de suas amigas.
– Pois é... disse ele, percebendo que ela estava com aquela cara de quem
comeu arroz-e-feijão e não gostou. Mas também, bem melhor são as coisas
gostosas que nem sorvete e mousse de chocolate. Mas ele logo se animou e fez a
ela um convite. – Ei, já que você está aqui, porque a gente não brinca de alguma
coisa? – Brincar de que? Só se for uma brincadeira para duas pessoas. – Que tal
amarelinha? Você é tão amarelinha! – disse o Lápis. E a Estrela ficou
vermelhinha de vergonha, mas aceitou mesmo assim. E começaram a brincar, e
nem perceberam que o tempo foi escorrendo para o ralo.
Passou o dia, passou a noite, e o dia depois da noite, e a noite depois do
dia, e o dia depois da primeira noite, e a noite depois da primeira noite... E o
tempo foi passando e eles foram ficando cada vez mais amigos. Uma nova
brincadeira sempre aparecia e eles esqueceram de tudo e até pensaram que nada
de mal podia lhes acontecer. Mas foi aí, e é sempre assim (sempre que a gente
pensa que o bicho papão foi embora, ele volta pra chatear, afinal ele é um chato
de galocha), que o mal aconteceu. A estrelinha lembrou das suas dúvidas e pediu
pro seu amiguinho que desenhasse um interruptor nas suas costas. – Mas eu não
sei desenhar um interruptor, Estrela. – Ah, sabe sim, Lá (ela agora chamava ele
de Lá, quem diria, hein? Antes ele era o feio e pontudo e agora era o Lá, uma
forma carinhosa de lápis). Você desenha tão bem... – Tá legal, então fica de
costas. – Pronto, fiquei. Tá bom assim? – Eu não sei não, mas algo me diz que eu
não devo fazer isso... – Deixa de bobagem, você não gosta de mim? Então, eu
sempre sonhei com um interruptor... Liga! Desliga! Liga! Desliga! E ficou
encantada, se divertindo com a idéia de ter de ter um interruptor, tudo o que ela
sempre sonhou. E nem percebeu que seu amigo estava com sua ponta muito fina,
o que era muito perigoso para uma estrela, eu é tão brilhante, mas é muito frágil.
Enquanto ele se preparava para desenhar, a sua ponta a espetou e ela gritou tão
alto, tão alto que acordou até o Carlinhos, que é um tremendo dorminhoco. Ele
nunca acorda na hora de ir para a escola. – O que foi? Ah, o que eu fiz? Gritou o
lápis, completamente desesperado ao ver sua amiga sofrer. – Não sei, você me
espetou, mas a dor é tão grande que parece que eu vou me desfazer! – Vem cá,
minha amiga, você não pode ir, a gente ainda tem tantas brincadeiras para
inventar... E ela foi sumindo, sumindo, foi desaparecendo. Até que desapareceu
completamente, levando toda a luminosidade com ela. E ficou tudo escuro, tão
escuro quanto a boca do lobo mau, ou tão escuro quanto os olhos do dragão, que
tem uns olhos pretos, pretos. O Lápis, que morria de medo de escuro, começou a
chorar. E a berrar, enquanto chorava e soluçava.
Gritando pelo nome de sua amiga e morrendo de medo que os apontadores, os
guardas do Rei Borracha, aproveitassem que ele estava sozinho para pegá-lo. Ele
estava começando a ficar com muito medo. Medo de escuro, todo mundo diz que
é bobagem, este papo de fantasma é tudo criação dos Estúdios de Walt Disney,
tudo mentirinha. Mas eu sinto medo, pô! Era assim que ele pensava. E estava
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descobrindo isso agora, porque nunca tinha ficado naquele caderno. A Marcinha
me puxou pela mão e me perguntou: – E a Estrela? Ela morreu, tio? – Não, ela
apenas ficou um pouco diferente... E falando nisso...
A Estrela abriu os olhos e percebeu que estava um pouco estranha. Agora ela era
uma estrela estranha. Em cada ponta da estrela, agora tinha um pontinho
colorido. E ela viu que estes pontinhos eram de cinco cores diferentes. Azul,
vermelho, verde, branco e preto. E cada ponto era uma ponta de lápis de cor. Na
verdade, a Estrela não era mais uma estrela. A Estrela era um conjunto de cinco
lápis de cor. E agora estava bem mais contente. Ela esqueceu aquela estória boba
de que incomodava as pessoas com seu brilho e assustava quem não estava
acostumado à luz forte, e começou a curtir estes lápis nos quais ela havia
transformado. E desenhou um monte de árvores com o seu lápis verde. E grama
também, que nem essa aqui que a gente tá sentada, criançada. E maçãs e bocas, e
um monte de coisas vermelhas. Com o preto ela desenhou um pedaço de carvão,
que servia para fazer mais desenhos... Com o azul, ela desenhou o céu, e se
lembrou de quando era uma estrela. E se lembrou de quando acordou, ao lado do
amigo Lápis e sentiu uma saudade imensa. E ficou triste. Então pegou o lápis
branco. – Alguém aí sabe o que ela desenhou com o lápis branco? – Ah, eu sei!
disse o Fred. – Diga lá, Frederico. O que a estrela desenhou? – Ah, ela desenhou
umas nuvens, é lógico. Disse ele com aquela cara, aquela que vocês conhecem. –
Não, você errou. Mas não fica triste, não. Olha só o que ela fez... Ela rabiscou
com o branco e começou a encher tudo de branco. E o branco foi preenchendo
tudo, como se transbordasse. E de repente... De repente o Lápis que estava no
meio daquele escuro danado, viu tudo ficar branco e suspirou aliviado. E então
viu aquele lápis branco, que era um lápis fêmea extremamente interessante. Eles
ficaram amigos e acabaram trilhando juntos vários caminhos pautados. Um dia
desses ela acabou se lembrando de tudo que havia vivido e foi então que riram
muito de tudo. – Acabou, tio? – Acabou... eu fiquei com medo de decepcionar as
crianças... Mas felizmente, ataquei com um chavão salva-vidas: ...e viveram
felizes para sempre. (Moura, 1992).
Independente da imaturidade literária do texto, vale a escolha das duas
personagens que nomeiam o conto. Propositadamente, trata-se do título desta tese.
Apresentarei adiante, no item 1.2., as razões da escolha. Mas afinal, qual é a
pergunta? O título do presente trabalho ainda não esclarece a tese a ser defendida,
a questão essencial a ser investigada, a pergunta principal, a premissa motriz.
Curiosamente, em plena Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, em 1992, logo pude perceber que, se me incomodava a empáfia
cientificista reinante no que se ensinava e se aprendia no Instituto de Biologia,
também o campo da arte literária apresentava seus nichos e linhas de força, seus
estigmas e juízos de valor. Supostamente, ao menos para mim, àquela época, seria
a universidade se apresentaria como instância de produção de saber, um celeiro de
livres pensadores, não deveria vicejar preconceitos ou conceitos prévios. Contudo,
logo percebi que se tratava de mais um espaço de discriminação de campos de
conhecimento, de eleição de determinadas áreas do saber.
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A pesquisadora israelense Zohar Shavit, em seu livro Poetics of Children’s
Literature, originalmente publicado em 1983 e relançado em 2009, em edição
brochura, já chamava a atenção para a necessidade de modificarmos tal postura
acadêmica ao constatar que “a literatura infantil não era nem mesmo considerada
um campo legítimo de pesquisa no mundo acadêmico” 5. E de forma tão
específica quanto paradoxal, ocorre que o desvalor que a área sofre entre seus
pares, é resumido por Shavit na seguinte afirmação: “a literatura infantil padecia
de um status inferior dentro do polissistema literário.” 6
Interessante tecer alguns comentários acerca da legitimidade da literatura
infantil na universidade. Indubitavelmente que o descrédito e a desqualificação
sofridas pela área têm raízes históricas e ideológicas, num ambiente que é
notadamente um espaço de manutenção e tradição, no qual as inovações
caminham a passos lentos, em saltos quânticos. Contudo, cumpre salientar que a
ideia de vitimização que pauta a própria auto-imagem do gênero não contribui e
não deve ser menosprezada como parte integrante da crítica da literatura infantil,
que, em minha opinião, ainda possui um longo caminho para trilhar e não é uma
exclusividade do nosso país ou do nosso hemisfério.
Concorre, em adição, para a exclusão da área nos corredores universitários
não só a auto-indulgência, a aceitação do escamoteamento das críticas, como a
condescendência entre os pares. Peer reviews não são rotina para pesquisadores
que se ressentem de não terem periódicos nacionais especializados ou mesmo o
acesso aos mais respeitados journals. Como retomarei adiante, me interessa como
pesquisador de literatura infantil e leitura, investigar a literatura infantil por um
prisma não convencional. Aproximando a fantasia da filosofia, neste recorte da
presente tese de doutorado, utilizando abordagens críticas não tão desgastadas,
com ferramentas oriundas de saberes aparentemente imiscíveis, como, por
exemplo, teologia e literatura infantil. Sobrevém-me, por exemplo, a pergunta:
quanto de demiurgo tem o leitor de literatura infantil, construindo sentidos e
universos, moldando sentimentos e circunstâncias nos interstícios deixados
propositada, ou inadvertidamente, pelo autor?
5 SHAVIT, Zohar. Poetics of Children´s Literature. Athens and London: The University of
Georgia Press, 2009. “children’s literature was not even considered a legitimate field of research
in the academic world”. p.ix. 6 SHAVIT, Zohar. Poetics of Children´s Literature. Athens and London: The University of
Georgia Press, 2009. “children’s literature suffered from an inferior status within the literary
polysystem.” p.ix.
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Retomando a trajetória pessoal-profissional: após o contato com a oficina
de literatura infantil, soube da possibilidade de cursar como ouvinte algumas
disciplinas na Faculdade de Letras na mesma universidade que havia ingressado.
O departamento que me seduziu foi o Departamento de Ciência da Literatura.
Oriundo da ciência, foi natural que eu me afeiçoasse a um departamento que
tivesse, em seu nascimento e batismo, o viés do estruturalismo. As aulas de Teoria
Literária IV – que me apresentaram à pesquisa do russo Vladimir Propp e suas
trinta e uma funções – eram bálsamos para meu olho ainda marcado pela lente
ocular do microscópio. As várias vertentes de análise literária (formalista russa e
estruturalista de dicção francesa, psicanalítica e feminista, marxista, new criticism,
desconstrutivismo, etc.) me encantavam e me faziam desejar seguir no caminho
da pesquisa de literatura. Literatura para crianças, bem entendido. Mas o desejo
não era isolado. Como contraponto ou enquanto complemento, a perspectiva de
produzir literatura infantil me estimulava. Para mim, a crítica nunca foi dissociada
da criação. A criação sempre esteve atrelada à crítica, em minha opinião. Em
realidade, por muito tempo, tive mesmo por espécie de dogma interno a reflexão
de que um criador de literatura infantil só poderia ser um bom criador caso fosse
simultaneamente crítico. Não apenas uma postura crítica acerca de tudo, mas um
crítico, um especialista, um pesquisador de literatura infantil. Vinculado ou não
com a academia. E, como contraponto, o dogma mostrava sua outra face, a de que
um especialista de literatura infantil só poderia ser um bom crítico caso já tivesse
se arriscado na seara criativa. Ao menos uma vez, deveria experimentar as delícias
e os desesperos da criação literária. Adaptando o dizer popular: criticar é fácil,
fazer é que são elas. Hoje, em tempos de reavaliação crítica, não seria tão
peremptório, exigindo que a dupla condição seja obrigatória.
Ante a descoberta da possibilidade de cursar um mestrado em Ciência da
Literatura, mesmo com a graduação em Ciências Biológicas, era imperativo a
conclusão do curso. Foi difícil prosseguir nos compromissos no Laboratório de
Fisiologia Vegetal, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho. Meu corpo
ainda era de biólogo, minha mente já perambulava na literatura. E confirmando a
correta escolha, os poemas escritos durante as aulas de Microbiologia e
21
Imunologia se tornaram parte de um livro publicado em 2009.7 Entretanto, optei
por reduzir o ritmo, pois não me considerei apto a perpetrar tão intenso salto.
Partir da graduação em Ciências Biológicas para o mestrado em Ciência da
Literatura pareceu manobra por demais arriscada. Tudo era muito novo. Decidi,
então, cursar uma Especialização em Literatura Infantil e Juvenil oferecida pelo
Departamento de Letras Vernáculas. Foi mesmo um virar de página, apresentar a
monografia intitulada “Isolamento de Protoplastos de Ipomoea Batatas L. (Lam.)”
8 em um mês e iniciar o curso de especialização no mês seguinte.
À medida que fui avançando no meio acadêmico, estarrecia-me a
desqualificação da Literatura Infantil e Juvenil como área de conhecimento. Ao
mesmo tempo, o interesse por dois temas crescia dentro de mim. O primeiro foi o
Sítio do Picapau Amarelo. Vale recuperar a experiência da infância que foi ver,
pela televisão, um mundo mágico, exuberante e totalmente diferente do que eu, à
época, garoto urbano nascido em Nova Iorque, nos Estados Unidos, e criado na
Zona Sul carioca, estava acostumado. A obra de Monteiro Lobato logo emergiu
como possibilidade de estudo quando pensei em fazer o mestrado em literatura, e
abordando a literatura infantil, mesmo antes de optar pela redução estratégica do
ritmo (o curso de Especialização pareceu de bom tamanho para o fôlego
disponível à época).
O segundo tema, surgido nas aulas de Filosofia do ensino secundário, foi o
interesse pelo exercício do pensamento, pela investigação filosófica. Cheguei
mesmo a cursar alguns meses do curso de graduação de Filosofia, no Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Apesar de
ser seduzido pelos percursos do pensamento, já não concordava com a
hipervalorização da filosofia como um saber legitimado. Veio-me a ideia de juntar
os meus dois principais interesses – literatura infantil e filosofia –, verificar de que
forma se dava o diálogo entre a fantasia e a filosofia, ou antes, averiguar acerca da
existência ou não de tal diálogo. Tomar a fantasia enquanto uma ferramenta
filosófica é o enfoque para verificação da hipótese.
A meu ver, a postura infantil, o “modo de ser de criança”, o devir infantil
está tanto nos escritores, quanto nos personagens e nos leitores. Ao empregar a
7 MOURA, André. Lã de Vidro: diálogos poéticos. Il. Julie Pires & Marcelo Ribeiro. Rio de
Janeiro: Memória Visual, 2009. Selecionado para os acervos escolares da Secretaria Municipal de
Educação do Rio de Janeiro, em 2010. 8 Nome científico do tubérculo batata-doce.
22
expressão “postura infantil” (encanto crítico), o que considero é o viés de se
encantar com o mundo, o enfoque de se maravilhar com o mesmo, o rotineiro e o
cotidiano, que possuem uma pulsão de poder. Tal pulsão faz com que o indivíduo
se considere demiurgo, capaz de criar mundos e, ao mesmo tempo, totalmente
aberto para a ignorância. Ignorância enquanto desconhecimento, na acepção de
que há todo um universo para preencher com seus significados (em óbvia
articulação com a alteridade, com o exterior, não é uma postura isolada e
solipsista). Considero a fantasia na literatura infantil como um resgate da
“infância da filosofia”, ou seja, o período dos pré-socráticos, a aurora do
pensamento original. Ultrapassando a importante discussão sócio-histórica da
invenção burguesa da infância, encontrei ecos das minhas considerações nas
formulações de Giorgio Agamben, por certo. Para Agamben, a infância não se
reduz à uma etapa cronológica. Além disso, a condição de infante (aquele que não
fala9) inspira uma condição de ausência, de falta, desaparelhamento,
desinstrumentalização, de deficiência. Mas o filósofo italiano toma exatamente
essa ausência como vantagem e torna o fato de não ter fala como possibilidade de
crescimento e construção, na fricção da natureza com a cultura, em modulação
pela linguagem. E estende a condição da infância para o ser humano,
independendo de sua situação cronológica. Analogamente, descarto a faixa etária
como pré-requisito para a infância. Minha formulação para a fantasia trafega de
forma bífida, pois tributária da “infância da filosofia” – sendo portanto anterior à
clivagem socrática-platônica-aristotélica –, dos filósofos pré-socráticos ou, mais
propriamente, na definição de Emanuel Carneiro Leão, dos pensadores
originários, se reconhece como “filosofia da infância”, ou seja, é o modo de
perceber os fenômenos internos e externos com o olhar inaugural, sem pré-
conceitos, de responder às perguntas com a criatividade, não temendo se
conduzirá ao disparate, se condiz com o esperado.
É o que fico tentado a denominar de “encanto crítico”. Ainda não posso
afirmar que se trata de uma “Teoria do Encanto Crítico”, me afasto de tal
tentação, mas uma linha de raciocínio que confere à fantasia um status de
9 Conforme o excerto de YUNES, Eliana (1986): Do latim in (prefixo de negação) + fans, fantis
(particípio presente de fan, falar, ter a faculdade da fala) forma-se o termo infante, “aquele que não
fala” e por decorrência, “de pouca idade, ainda criança”, tendo várias acepções: 1) de “menino,
menina de seis a quinze anos” (na baixa latinidade), 2) de jovem nobre (no século XII), 3) filho do
rei (já no século XVII). O termo se associa ao caráter de servidor submisso quando designa
“soldado de infantaria” que serve aos cavaleiros.
23
perquirição, tão legítimo quanto qualquer outra abordagem do rol das teorias
literárias, ou outra clivagem distinta. É assumindo a fantasia na sua força, na sua
potência, ao considerá-la em sua própria pulsão identitária, ou seja, exatamente a
partir do encantamento, do enlevo, que irá irromper a solução para a explicação
das questões propostas pelo pensamento. Recordo (e reitero a construção frasal,
sem temor de incorrer em tautologia a afirmativa afirmação – posto que é tomada
de posição, posicionamento ideológico – de Bartolomeu Campos de Queirós:
“vivo numa sociedade que não encara a fantasia como o mais profundo do ser” 10
.
O escritor desnuda seu pensamento em sua escrita (e, de forma deliberada, estou
atando escrita e pensamento), quando, de maneira crítica, aponta uma fissura da
sociedade, elaborando um binômio que circunscreve os termos “o mais profundo
do ser” em conjunto com o conceito “fantasia”, ou seja, poetica e politicamente
(no sentido primevo) rimando fantasia com ontologia.
Em se tratando de textos teóricos, elenquei dois pontos de partida, como
uma espécie de alicerce para a premissa que sedimentou, desde a origem, a
presente investigação: da possibilidade da fantasia ser uma ponte para a filosofia,
ou em uma perspectiva de radicalização deste diálogo, de ser a fantasia uma forma
de filosofia, que não seria uma oposição à realidade, à razão. A fantasia como
filosofia. Trabalharia com outra dimensão de realidade, com outra maneira de
encarar o fazer filosófico. Mesmo antes de enfrentar a travessia da vereda do
Tolkien teórico (no emblemático artigo “On Fairy-Stories”, que integra o livro
Tree and Leaf 11
) ou do basilar estudo de Todorov (Introdução à literatura
fantástica 12
), a especificidade dos títulos dos artigos “Philosophy and Fantasy” e
“Agents of Reform?: Children’s Literature and Philosophy”, quase como um
binômio fantástico de octanagem rodariana – apresentado em Gramática da
Fantasia13
– fez com que os artigos de Gagnon e McGavock, respectivamente,
balizassem minha busca, ao fornecer os eixos de abscissa e ordenada que
norteariam e fariam o reconhecimento da terra a ser lavrada.
10
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. “Literatura: leitura de mundo, criação de palavra.” in:
YUNES, Eliana. (org.). Pensar a leitura: complexidade. 2ed. Rio de Janeiro / São Paulo: EdPUC /
Loyola, 2005. p.160. 11
TOLKIEN, J.R.R. “On Fairy-stories”. In: Tree and Leaf. Boston (EUA): Houghton Mifflin
Company, 1964. 12
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello.
São Paulo: Perspectiva, 2008. (Coleção Debates, v. 98). 13
RODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo: Summus editorial, 1988.
24
O contato com a separata do artigo de Laurence Gagnon, publicado em
1972, e intitulado “Philosophy and Fantasy”, no periódico Children´s Literature:
the Annual of the Modern Language Association Division on Children´s
Literature 14
) ocorreu em biblioteca estrangeira especializada, a biblioteca
internacional da juventude, o maior acervo mundial de literatura infantil e juvenil,
em Munique, Alemanha. Trata-se de um diálogo permeado de humor que lembra
o estilo lobatiano, com uma dicção ácida assemelhada àquela que recorrentemente
travamos contato nas narrativas do Sítio do Picapau Amarelo, na voz da
iconoclasta boneca Emília, autodenominada filósofa, ao engendrar suas
Memórias. Antropofagicamente, homenageei tanto Monteiro Lobato quanto
Lawrence Gagnon ao cerzir artigo intitulado “Fantasia e Filosofia: uma estrada
diferente ou um diálogo estranho?” 15
, publicado na revista IHU (Revista do
Instituto Humanitas Unisinos), pela instituição de ensino e pesquisa UNISINOS,
Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
O outro esteio é o artigo “Agents or Reform? Children’s Literature and
Philosophy”, da pesquisadora Karen L. McGavock que foi publicado, em 2007,
no periódico Philosophia16
. Ao recuperar as origens históricas da literatura
infantil (a fim de conferir lastro a seu argumento, McGavock traça um recorte
temporal limitando ao Século XVIII), a autora resgata o fato de que as ideias
filosóficas de Jean-Jacques Rousseau sobre educação e infância estavam em voga.
Segundo a tese defendida por Karen McGavock – com a qual concordo – a
aproximação da Literatura Infantil com a Filosofia não possui apenas raízes
históricas mas se apresenta como perspectiva de estudos futuros, já que não
obstante sua proximidade anterior, foram áreas que sofreram um distanciamento
radical e que, agora, em tempos pós-modernos, sua linhagem e interrelação estão
começando a ser recuperadas. Dada a importância fulcral de seu texto, considero a
inclusão de extenso excerto como sendo de alta relevância.
Obras tomadas como seminais para o cânone da literatura infantil como Alice no
País das Maravilhas, Peter Pan e As Crônicas de Nárnia desafiam os leitores a
14
GAGNON, Laurence. “Philosophy and Fantasy”. Children’s Literature, vol. 1., 98-103. (1972). 15
MOURA, André. Disponível em versão online, acesso realizado em 07/08/2011, na url abaixo:
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2380&secao
=284. 16
McGAVOCK, Karen. Agents of Reform?: Children’s Literature and Philosophy. Philosophia
(2): 129-143.
25
lidarem com conflitos, muitos das quais podem ser identificadas
retrospectivamente como exibindo características pós-modernas. Ao explorar
dilemas morais e espirituais nas suas escritas, as obras de Carroll, Barrie e Lewis
podem ser consideradas como contribuições às discussões sobre pós-modernismo
teódico. Os sucessos comerciais dos filmes baseados nos livros dos universos de
O Senhor dos Aneis e de Nárnia sugerem a existência de interesse na exploração
de dilemas morais, buscando preencher um anseio (talvez por tolerância e
compreensão) na sociedade como um todo. A literatura infantil possui um poder
quase divino de restaurar, de reparar e de curar todas as características do pós-
modernismo teódico mas difere da concepção mais geral do pós-modernismo que
separa, exacerba e expõe. A literatura infantil, portanto, oferece um enfoque
saudável e construtivo para trabalhar dilemas morais. Nas suas desconstruções da
infância, tais autores aproximaram a literatura infantil dos aspectos investigativos
tradicionalmente encontrados nos domínios da literatura adulta “mainstream”. 17
Ainda que faça brevíssima ressalva à expressão “quase divino”, atribuída
ao poder da literatura infantil de restauração, reparação e cura (?!) do pós-
modernismo, o trecho acima reforça o acerto da escolha de corpus literário para
esta tese. Optei por três autores estrangeiros “canônicos” para a literatura de
fantasia (Lewis Carroll, Clive Staples Lewis, Lyman Frank Baum) para realizar
interlocução com a obra lobatiana. Ainda que se tratem de livros não escritos em
nosso atual século, as contribuições de Carroll, Lewis e Barrie (breve
esclarecimento: McGavock, muito propriamente menciona o criador de Peter
Pan, um wonderlander fundamental – mas apesar da “Terra-do-Nunca” ser um
topos importantíssimo como instância crítica do real –, não incluí o universo do
escocês James Barrie neste meu estudo, por opção metodológica (foram quatro
escolhas de paixão, minhas leituras marcantes de infância, fossem leituras no
suporte livro ou leituras em outras mídias, como as versões televisivas de Nárnia
ou do Sítio do Picapau Amarelo), é um verdadeiro manancial de reflexão acerca
dos nossos tempos e costumes, nos quais vemos a dissolução dos limites tanto da
subjetividade infantil como da adulta, com uma progressiva infantilização do
17
McGAVOCK, Karen. Works deemed to be seminal to the canon of children’s literature such as
Alice’s Adventures in Wonderland, Peter Pan and The Chronicles of Narnia challenge readers to
work through conflicts many of which can be identified retrospectively as exhibiting postmodern
characteristics. By exploring moral and spiritual dilemmas in their writing, Carroll, Barrie and
Lewis’s works can be regarded as contributing to discussions on theodical postmodernism. The
successes of The Lord of the Rings and Narnia films suggest that there is an interest in exploring
moral dilemmas, fulfilling a need (perhaps for tolerance and understanding) in society at large.
Children’s literature has an almost divine power to restore, to repair and to heal, all characteristics
of theodical postmodernism but differing from the more widely held conception of postmodernism
which pulls apart, exacerbates and exposes. Children’s literature therefore offers a healthy and
constructive approach to working through moral dilemmas. In their deconstruction of childhood,
these authors have brought children’s literature closer to aspects of enquiry traditionally found in
the domain of adult mainstream literature. Agents of Reform?: Children’s Literature and
Philosophy. Philosophia (2): 129-143.
26
adulto acompanhada em paralelo e a um só tempo, da adultização da criança, para
as discussões pós-modernas dão o estofo necessário para seguir nossa jornada.
Conforme se pode verificar quando McGavock afirma que
À medida que as fronteiras entre a infância e a vida adulta se tornam mais fluidas,
menos definidas, os debates passaram a serem centralizados na questão da
crescente redundância e da ausência de significado do próprio cânone da
literatura infantil, já que não haveria mais restrições quanto aos temas que
deveriam ser tratados pela literatura infantil. Apesar do fato da literatura infantil
claramente lidar com temas difíceis, ela continua a ser descartada da equação
crítica, não lhe é dado real crédito, sendo desconsiderada como simplista e
ignorada nas discussões filosóficas contemporâneas que lidem com ética, pós-
modernismo e o futuro da infância.18
A constatação de que a literatura infantil ainda não é considerada como
área séria de investigação, não obstante lide – desde sua gênese em seu berço da
oralidade ou modulada pela clave didática e edificante – com temas polêmicos,
provocativos e, por conseguinte, caros à existência, não é nenhuma novidade.
McGavock contribui com a novidade para o quadro atual da metacrítica, ao
vislumbrar que a ponte a ser estabelecida com a filosofia é, ao um só tempo, um
resgate ancestral e uma futura e natural decorrência:
Com a literatura infantil se aproximando da literatura “mainstream”, e
apresentando características proeminentes do pós-modernismo, é apenas uma
questão de tempo até que as discussões se engajem ativamente com a literatura e
se reconheça suas contribuições para a resolução e a reconciliação de dilemas
ontológicos.
Quando isso ocorrer, a filosofia e a literatura infantil se reconciliarão,
enriquecendo as pesquisas contemporâneas que lidem com ontologia, ética e
epistemologia e desenvolvendo pensamentos produtivos nestas áreas.19
18
As the boundaries between childhood and adulthood become more fluid, less certain, debate is
centring around whether the canon of children’s literature itself has become redundant or
meaningless since there are no longer any restrictions on which subjects can be treated in
children’s literature. Despite the fact that children’s literature clearly engages with difficult issues,
it continues to be left out of the critical equation, not given serious attention, disregarded as
simplistic and ignored in contemporary philosophical discussions concerning morality,
postmodernism and the future of childhood. 19
With children’s literature coming closer to mainstream literature, and exhibiting prominent
features of postmodernism, however, it is only a matter of time before philosophical discussions
actively engage with children’s literature and recognise its contribution to the resolution and
reconciliation of ontological dilemmas.
When this occurs, philosophy and children’s literature will re-engage, enriching contemporary
investigations of existence, ethics and knowledge and fruitfully developing thought in these areas.
27
Assim, tanto em artigo recente – mais ortodoxo, mais acadêmico – quanto
em produção que possui mais de três décadas e meia – em criativa radicalidade
usando a paródia em estilo que se assemelha à sátira menipeia – a perspectiva de
aproximação, colaboração e diálogo entre a filosofia e a fantasia é salientada,
afastando a ideia muitas vezes corrente de que se trata de um disparate ou de uma
postura teórica falseada.
1.2 Mas afinal, qual é a pergunta?
Uma pessoa sem fantasia teria morrido de fome.
Bruno Munari 20
Mas afinal, qual seria a questão, a pergunta, a tese a defender, ou melhor, a
tese a investigar? O movimento circular de se aproximar da questão como que
desnudando as cascas de uma cebola não é gratuito ou aleatório. Nem mesmo a
imagem metafórica. O círculo hermenêutico gadameriano é uma pista, não apenas
da pergunta em si, como também da escolha do percurso que visa alcançar a
resposta. Seria a fantasia uma ferramenta filosófica? Seria a filosofia uma fantasia
de adultos, um jogo mental?
Antes mesmo de ter contato com a terminologia de Gianni Rodari em sua
Gramática da Fantasia o “binômio fantástico”, o par lápis-estrela perdurou (e se
imiscuiu para o livro de diálogos poéticos Lã de Vidro 21
). Como analogia, o lápis
e também a estrela serviriam como metáfora tanto para a filosofia quanto para a
fantasia, de uma maneira intercambiável. O lápis é um objeto do cotidiano com a
possibilidade de desenhar, escrever, de inscrever significações. Objeto concreto,
ao alcance do ser humano. Já a estrela é o brilho, a luz, o intangível. Objeto
20
MUNARI, Bruno. Fantasia. Lisboa: Edições 70, 2007. 21
“Dia 11”: Lápis raciocina: / – Todo indivíduo é dívida e idílio. / Estrela vaticina: /– Toda pessoa
é pérola e peçonha. MOURA, André. Lã de Vidro: diálogos poéticos. Il. Julie Pires e Marcelo
Ribeiro. Rio de Janeiro: Memória Visual. 2009.
28
existente, porém quase que abstrato, intocável para o ser humano, mensurável
apenas por artefatos científicos, distantes do manuseio do cidadão comum.
Dessa forma, a fantasia, a literatura de fantasia (talvez refinando a
nomenclatura), seria na primeira possibilidade, o lápis, pois é a possibilidade de
criação, é o texto escrito. De posse do lápis, a criança, o adulto, o leitor e o
escritor podem construir mundos e enredos. Mundus est fabula. O mundo é uma
fábula. Já a filosofia seria o etéreo, o intangível, a estrela distante, remetendo à
imagem – um tanto estereotipada – do filósofo como sendo aquele indivíduo que
vive com a cabeça nos astros, em devaneios e digressões, tropeçando nos próprios
passos.
Em outra possibilidade, a filosofia é que seria o lápis, pois há o lado
lógico, ortodoxo, racional, rigoroso da filosofia que considera alguns critérios e se
fecha com alguns limites. Então, seria a fantasia, a estrela a ser alcançada, o sonho
que implode os limites do real, pois seu compromisso não é com a lógica, mas sim
como lúdico, com o enlevo, com a fruição de uma boa narrativa, com o enredo
encantado.
Tomando como baliza a epígrafe do designer e pensador da imagem, o
italiano Bruno Munari, utilizada no presente subcapítulo, ao considerar – e me
encontro em concordância com ele – a fantasia como visceral para a existência
humana, sigo com outra de suas reflexões, constante no mesmo livro Fantasia:
"Um estudo sobre a fantasia pode parecer a muitos uma tarefa impossível. Para
algumas pessoas a fantasia é capricho, bizarria, excentricidade. Para outras, é
ficção, no sentido de não realidade, desejo, génio, inspiração." 22
Atentemos para os termos empregados: tarefa impossível, capricho,
bizarria, excentricidade. A desqualificação da fantasia, da imaginação, do sonho,
da poesia – assunto sobre o qual oportunamente me debruçarei – possui raízes
históricas que remontam à civilização helênica. Como espécie de preâmbulo,
insiro abaixo a pergunta do estadunidense Richard Kearney, que fará às vezes de
mote que glosarei em seguida:
Por que filosofar sobre imaginação? Por que transformar um dos grandes dons da
existência humana em um objeto de investigação intelectual? Afinal de contas,
não é óbvio o que é imaginar? Já não o fazemos todos os dias, todas as noites, a
todo o momento que sonhamos, fingimos, brincamos, fantasiamos, inventamos,
22
MUNARI (2007). Op. cit. p.7.
29
nos perdemos em devaneios, recordamos tempos passados, projetamos dias
melhores no porvir? Então por que não deixar como tem sido? Por que analisar?
Por que, nas palavras do poeta, matar para dissecar? 23
“Por que matar para dissecar?”, é o questionamento de Kearney e foi,
como mencionado o meu ponto de mutação em minha crise epistemológica,
ocorrida durante a epifania nas aulas de Metodologia Científica. O incômodo
crítico precisou se transmutar em ficção, retrabalhado no trecho de meu livro O
Rei do Manacá, adotado pelo Programa Nacional da Biblioteca da Escola para o
segmento do 6º ao 9º ano para as escolas públicas, no qual Maurício, o
personagem principal, questiona a mãe acerca da necessidade de ir à escola pela
primeira vez. Acredita piamente que já possui um cabedal de conhecimentos e ele,
que não está bem certo nem se considerarão o que ele sabe, nem se aquele saber
já não está bem encaminhado e suficiente, indaga sobre a necessidade de se abrir
um inseto (uma cigarra) para só então, verificar que ela não é uma caixinha de
música... A postura da personagem de não aceitar o estabelecido, de não
concordar com a ida para a escola pelo simples fato de ser imposição vinda do
adulto, de questionar aquilo que lhe é dado (ou imposto?) é o posicionamento que
sempre é lembrado, seja por estudiosos, seja por leitores de várias idades, como
sendo o modus operandi da boneca de pano Emília. A emblemática personagem
lobatiana mistura a criança com o filósofo, ao se indagar acerca do mundo que a
rodeia e propor, por intermédio da fantasia, um novo desenho para o que lhe dado.
A criança, como o filósofo (bem como o poeta, o griot, o clown, o velho, o louco),
é ser de exceção, excluído, pois não se encaixa na engrenagem vigente das
estruturas sistêmicas do mundo.
Como bem nos lembra François Laplantine e Liana Trindade, no estudo O
que é imaginário, a imaginação, muito antes do filósofo cartesiano francês
Nicolas Malebranche (1638-1715), já era suspeita de ser “a amante do erro e da
falsidade”. Portanto, não causa espanto, que, ainda hoje, estudar Fantasia, gere
certo incômodo, academicamente falando. No âmbito da Psicologia, é notória a
inquestionável relevância conquistada pela fantasia, a partir do corte
23
KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,
1991. Why philosophize about imagination? Why turn one of the great gifts of human existence
into an object of intellectual interrogation? After all, is it not obvious what imagining is? Are we
not doing it every day, every night, every time we dream, pretend, play, fantasize, invent, lapse
into reverie, remember times past or project better times to come? So why not just let it be? Why
analyse? Why, in the poet’s words, murder to dissect?
30
epistemológico desferido por Sigmund Freud. Entretanto, ao que parece, os
estudos de fantasia como matéria validada academicamente permanecem mais
circunscritos à esfera da psicologia.
Este trabalho busca, em primeira instância, palmilhar as definições de
fantasia / fantástico e de imaginário / imaginação. Ao apresentar um panorama
inicial, já se lança na problematização acerca do tema. A conceituação do que é e
do que não é fantasia, a definição da diferença existente (ou não) entre fantasia e
fantástico, a investigação do que está delimitado como sendo do domínio do
imaginário e do que pertence ao escopo da imaginação, o questionamento
conjunto acerca da natureza do imaginário e da definição da imaginação e que
servirão como espécie de terraplanagem do campo de investigação, como
estabelecimento dos alicerces de uma crítica de literatura infantil que suporte (no
âmbito da resiliência) para os futuros embates de uma área que está sendo
intensamente repensada. Tal “redesenho” se dá por conta dos feixes das novas
configurações do leitor, que hoje se lança no mundo da leitura verificando que o
próprio Rabicó já está no iPad, quanto mais o Visconde de Sabugosa!
Mas qual é a premissa, qual é a tese a ser investigada, comprovada ou
descartada? Indo diretamente ao ponto: a tese busca refletir sobre a formulação:
evoco o aspecto fantástico da filosofia? Falo da fantasia como filosofia? Seria a
fantasia uma ferramenta filosófica? Isto é, a narrativa de fantasia (de maneira
específica) pode ser considerada como um recurso filosófico (nos seus
desdobramentos, isto é, ética, ontológica e esteticamente falando)? Ou ainda,
olhando de outro modo, a literatura de fantasia seria consequência de um modo-
de-ser investigativo, em termos filosóficos? Quais seriam as possibilidades do
pensamento estético de, ao decodificar o real no viés do belo, alcançar o
metafísico, o ético, o ontológico? Sabemos que o real só se abre ao humano
enquanto linguagem, então não seria a própria linguagem o modo de alcançar o
real? No estético, encontraríamos o real em si? Para além da dicotomia tradicional
(já questionada e, quiçá superada, em tempos de pós-modernidade) essência
versus aparência, a estética, ou a linguagem esteticamente modulada (e não
apenas como comunicação) alcançaria o que a razão não poderia apreender.
Conquanto os textos fantásticos possuam sua lógica interna, eles não necessitam
de comprovação dos dados – como a ciência – para cirurgicamente captar o cerne
dos fenômenos, das coisas.
31
Investigando as decorrências da premissa, não seriam os topoi dos mundos
paralelos, das wonderlands, das realidades alternativas, muito mais do que
mundos secundários, mas instâncias de crítica à realidade circundante,
experimentação e proposição de novas alternativas à Realidade? Mais do que
“meros criadores de fantasia”, os wonderlanders (o inglês Lewis Carroll, o
irlandês Clive Staples Lewis, o estadounidense Lyman Frank Baum, o escocês
James Barrie, o brasileiro José Bento Monteiro Lobato, a sueca Astrid Lindgren,
os ingleses John Ronald Reuel Tolkien e Joanne Kathleen Rowling, dentre outros)
seriam críticos do real, real tomado como a realidade? Eis a pergunta. Ou uma
delas.
Para citar um exemplo nacional — e sem medo de incorrer em argumento
tendencioso, mas sem dúvida, Lobato é um dos mais revolucionários e ousados
pensadores fantasistas do real — o Sítio do Picapau Amarelo não se apresenta
como alegoria do Brasil e nem como o Brasil do devir (“O Brasil é o país do
futuro”), mas o Brasil que apenas pode ser capturado pelo discurso estético da
fantasia. Não quero afirmar que a racionalidade captura a aparência e a fantasia, a
essência. Fujamos, leitor(a), da dicotomia e da simples inversão ao pensamento
platônico. O que quero afirmar é que o Sítio do Picapau Amarelo é o Brasil em
sua multiplicidade, que a fantasia é capaz de fazer emergir um Brasil que é, a um
só tempo, essência e aparência, polifônico por definição (o que condiz com a
linhagem de filiação da fantasia que remonta à sátira menipéia), em condição
análoga à dualidade onda-partícula do conceito físico da natureza da luz.
O presente estudo visa aproximar, ou melhor dizendo, colocar em diálogo,
confronto e sinergia, a Fantasia e a Filosofia. Cumpre ressaltar de que não se trata
de qualquer fantasia, mas em um crivo específico, o que abordo é a literatura de
fantasia que, na maioria das vezes, é considerada como exclusivamente voltada
para crianças e jovens. Cabe aqui estabelecer uma breve ressalva. É bom que se
afirme – ainda que de passagem – que a própria fantasia, já devidamente
desqualificada tanto pelo senso comum quanto pelo meio intelectual, e também
parte de um gênero também bastante discriminado ou tomado como segmento
menor da arte literária (a literatura infantil), sendo até mesmo classificado por
alguns críticos como paraliteratura), é menosprezada frente à filosofia. A
Filosofia, área de saber historicamente classificada no extremo oposto, isto é,
valorizada academicamente, possui status de alta respeitabilidade intelectual.
32
Trafegando na via da razão, da racionalidade, do rigor metodológico, a filosofia
“fantasia” o real – ou o imagina. Ou não?
Exatamente por não concordar com a desvalorização da literatura infantil
nem com a postura hiperestimada da filosofia, nossa proposta é do diálogo, do
embate dialético. Retomando, em moldura mais sintética, a linha de investigação:
seria a literatura de fantasia uma via de investigação filosófica e não apenas uma
ponte estética da literatura como forma de apreensão dos fenômenos, da
compreensão do Real, da realidade? Retomando Laplantine e Trindade, temos
uma sentença que se afina com a inquietação acima explanada: “O real é a
interpretação que os homens atribuem à realidade” 24
. A importância da
hermenêutica e a mediação da linguagem no processo investigativo estabelecem
importantes balizas para a presente análise e será analisada mais detidamente no
Capítulo 4 – “Verde ou Fantasia como horizonte de sentidos”.
Mais adiante em seu ensaio, abordando a questão fulcral do seu estudo,
Laplantine e Trindade tecem cotejo com o filósofo grego contemporâneo
Cornelius Castoriadis, que assevera que
O imaginário, portanto, de maneira geral, é a faculdade de pôr ou dar-se, sob a
forma de apresentação de uma coisa, ou fazer aparecer uma imagem e uma
relação que não são dadas diretamente na percepção. Ao contrário de Castoriadis,
que afirma ser o imaginário a capacidade de “produzir” uma imagem que não é e
nunca foi dada na percepção, consideramos que a imagem é formada a partir de
um apoio real na percepção, mas que no imaginário o estímulo perceptual é
transfigurado e deslocado, criando novas relações inexistentes no real.
Ainda que não seja o cerne dessa parte do trabalho, pois será tratada na
parte que aborda a imaginação e o imaginário, não posso me eximir de comentar,
ainda que em breves linhas, a interessante questão que se põe em relação ao
imaginário e à percepção para Castoriadis e para Laplantine & Trindade. A
questão da percepção é per si, um dos alicerces da mirada filosófica — questão
básica e imediata o mundo é assim como eu percebo ou é assim porque eu o
percebo desse modo? Não haveria realidade em si, mas percepção e interpretação
da realidade. Me aproximo mais da linha de pensamento de Castoriadis, com o
imaginário mais descolado da percepção como motor gerador das imagens, como
dimensão propositiva, pois a percepção e a interpretação se delineiam como mais
24
LAPLANTINE, François e TRINDADE, Liana. O que é o imaginário. São Paulo: Brasiliense,
2003. (Primeiros passos). p. 12.
33
filiadas à razão, em oposição ao inconsciente e à livre associação das ideias, que
se coadunam com um calibre criativo mais potente.
A interação da filosofia com a literatura infantil, mais especificamente
com a fantasia é viés que perseguimos desde 1995, quando, ao cursarmos a
Especialização em Literatura Infantil; ali nos deparamos, durante a leitura do livro
De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o Modernismo, de Vasda Landers,
com o trecho que apontava a necessidade de se estudar a influência que a leitura
do filósofo alemão Friedrich Nietzsche teria tido na vida e na obra do criador do
Sítio do Picapau Amarelo. Nele, a autora demonstra perplexidade:
O impacto da filosofia de Nietzsche no pensamento de Lobato ainda não foi
estudado com o cuidado devido, o que é muito estranho, pois sendo um tipo de
filosofia que enfatiza a individualidade do homem, o entusiasmo que sente pelo
alemão poderia explicar a procedência de todas as suas “iconoclastias” diante da
vida e da arte.25
São nossos os grifos da citação de Landers. Seu estudo é digno de nota e
foi realmente desenvolvido com o sentido de contribuir para uma revisão do lugar
que ocupa a obra de Monteiro Lobato nos cânones da historiografia literária
brasileira e literatura comparada. Ao comparar as personagens Macunaíma e Jeca
Tatu, a pesquisa traz novas luzes críticas para o anátema imposto a Lobato:
conservador, passadista, retrógado, enfim, anti-modernista. Visto que as valorosas
contribuições modernistas tornaram-se uma espécie de dogma da teoria literária,
Lobato só mais recentemente, principalmente com os estudos iniciados por
Landers (na área da literatura) e o de Tadeu Chiarelli 26
(no campo das artes
plásticas) começa a ter seu estigma de antimodernista apagado. Ambos os
estudiosos apontam características notadamente modernistas em produções
lobatianas — quer seja enquanto crítico ou como criador — anteriores, inclusive,
aos trabalhos de Mário de Andrade ou Oswald de Andrade. Landers chega mesmo
a defender o argumento de que o criador do Sítio do Picapau Amarelo seria o
verdadeiro precursor do modernismo.
Tomo a sugestão da pesquisadora da Columbia University, brasileira
radicada nos Estados Unidos, como tema motriz para a inquietação que pautou a
25
LANDERS, Vasda Bonafini. De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o Modernismo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. Grifos nossos. 26
CHIARELLI, Tadeu. Um Jeca nos vernissages: Monteiro Lobato e o desejo de uma arte
nacional. São Paulo: EdUNESP, 1996.
34
pesquisa de mestrado em Ciência da Literatura27
e que culminou na defesa da
dissertação intitulada Monteiro Lobato: um leitor de Nietzsche. Fio de boa meada:
a ideia de um homem caipira, o Jeca Tatu, ser um filósofo de pé-no-chão bem
como a imagem de um saci filósofo. A primorosa definição “saci filósofo”
recuperada por Tânia Piacentini em artigo tornado público no site Dobras da
Leitura, que se confessa novamente encantada com a “opinião do saci sobre a
estupidez e a lerdeza dos homens para aprender, no início de suas conversas
altamente filosóficas sobre natureza, animais e homens, vida e morte” com
Pedrinho, no livro O Saci, é indício de que há convergência entre a fantasia e a
filosofia na visão de outros estudiosos.
De forma análoga à revisão crítica com o objetivo de reabilitar a obra de
Monteiro Lobato, recuperando o vigor e a pujança críticos, considero que os
estudos sobre fantasia necessitam de uma aproximação com outras áreas do
conhecimento, a fim de retirar da fantasia a pecha de alienada e alienante, acusada
de estar encerrada em guetos epistêmicos de grupos endógenos de pesquisadores.
Minha mirada é a que parte de um local fundante no qual os referidos escritores
de fantasia seriam alçados ao patamar de pensadores do real, já que suas obras são
dignas de serem analisadas criticamente como tratados de pensamento crítico. E
do que se move o filosofar, senão as investigações críticas realizadas a partir do
pensamento? Mesmo que, ao fim deste caminho investigativo, parafraseando o
artista, a pesquisa resulte em nada, nada do que pensava encontrar, como filosofa,
cantando, Gilberto Gil.
De qualquer forma, o processo de produção de conhecimento não convoca
a dogmas ou resultados a priori, mas conclama aberturas, novos olhares,
possibilidades que se descortinam no processo e não podem ser vislumbradas no
momento de partida. O ensaio de Laplantine e Trindade traz luz à discussão
acerca da atualidade e sua busca pelas trilhas do saber:
Vivemos na atualidade a busca de novos caminhos que possam conduzir à
compreensão e à superação da realidade. A imaginação tornou-se o caminho
possível que nos permite não apenas atingir o real, como também vislumbrar as
coisas que possam vir a tornar-se realidade. 28
27
Assim como a especialização em literatura infantil e juvenil, cursei o Mestrado em Ciência da
Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro. 28
LAPLANTINE e TRINDADE, 2003. p. 7.
35
A título de ilustrar o interessante cotejo entre críticos e criadores de
literatura infantil ao refletirem acerca do binômio fantasia-filosofia, convocamos
outros dois exemplos de escritores de épocas distintas, idiomas diferentes e estilos
diversos e que, não obstante, apresentam pensamentos bastante perfilados ao que
ora discutimos.
O primeiro é o guatemalteco Miguel Ángel Astúrias29
, Nobel de Literatura
de 1967, citado por François Laplantine e Liana Trindade, autores do já
mencionado estudo sobre imaginário. Em nosso estágio preliminar de
investigação, podemos afirmar que as elaborações teóricas mais acuradas têm sido
desenvolvidas por escritores, conforme poderemos atestar. Assim afirma Astúrias,
em espécie de epifania: “Dei-me conta de que existe uma realidade criada pela
imaginação e que se reveste de tantos detalhes que se torna ela também tão ‘real’
quanto a outra.” 30
Os limites entre a dimensão que denominamos como realidade e a
dimensão engendrada pela imaginação são tênues, intercambiáveis ou meramente
apenas uma questão de enfoque?
A segunda a ser convocada é a premiada escritora Ursula Kroeber Le
Guin, nascida nos Estados Unidos, em 1929, com vários títulos publicados de
fantasia e ficção científica. Mais conhecida como Ursula K. Le Guin, a autora
indica uma definição de fantasia que apresenta elevada percuciência, em minha
opinião: "É um diferente enfoque da realidade, uma técnica alternativa para
apreender e enfrentar a realidade. Não é antirracional, mas pararracional; não é
realista, mas surrealista, superrealista, uma elevação da realidade." 31
Eis, de forma condensada, exatamente a linha mestra do pensamento que
norteará nossa investigação: a fantasia como transposição da realidade, mas não
como transcendência ou alegoria, e sim como uma realidade em outro tom, para
empregar uma linguagem no âmbito musical. Uma sobrerrealidade. A realidade
apreendida na forma de percepção diversa, que distoa do estabelecido, mas que
não deixa de ter sua lógica própria. Não é que a fantasia seja irracional, não que
29
Miguel Ángel Asturias Rosales (1899-1974), escritor e diplomata guatemalteco, autor de Senhor
Presidente, Homens de Milho, Lendas da Guatemala, dentre outros. 30
LAPLANTINE e TRINDADE, 2003. Op. cit. p.7. 31
It is a different approach to reality, an alternative technique for apprehending and coping with
existence. It is not antirational but pararational; not realistic, but surrealistic, superrealistic, a
heightening of reality. (Todas as traduções das citações que constam do texto são de minha
autoria). LE GUIN, Ursula K. apud SANDNER, David. (2004)
36
ela esteja na instância da desrazão. É um olhar tangencial, oblíquo à razão para
atingir meandros que a razão não alcança. E não se trata de acaso o fato das
elaborações mais precisas e sucintas acerca da teoria da fantasia partirem de
artistas, de escritores, de criadores de fantasia. Retomaremos em seção posterior –
o capítulo 2 - Laranja ou ‘Fancy-O-Rama’: caleidoscópio de fantasia – as ideias
não apenas de Ursula K. Le Guin, mas de outros fantasistas que não apenas
elaboraram seus textos de fantasia filosoficamente em dicção estético-criativa,
mas também o fizerem de forma mais ortodoxa, através de ensaio abordando o
próprio tema da fantasia.
Elegemos como pontos cardeais do nosso corpus literário, as obras de
quatro grandes fantasistas, renomados wonderlanders, com seus respectivos
mundos secundários, a saber: como foco primordial, a do brasileiro José Bento
Monteiro Lobato com a saga do Sítio do Picapau Amarelo; como corpus de
interlocução, os livros do mundo mágico de Oz, escritos pelo estadunidense
Lyman Frank Baum; também como material de interlocução, as aventuras de
Alice no País das Maravilhas e através do espelho, do inglês Lewis Carroll
(Charles Dodgson); visando enfoque comparativo, para verificar semelhanças e
diferenças, As Crônicas de Nárnia, do irlandês Clive Staples Lewis. Como
objetivos da tese, temos a discussão, a reflexão e a elaboração acerca de certos
conceitos teóricos como fantasia e filosofia, praxis e poiesis, mimesis e
imaginação, infância e imaginário, razão e realidade em determinados autores de
literatura infantil, visando (1) contribuir para uma Teoria da Fantasia e (2)
conferir maior lastro aos estudos de literatura infantil (sobrevém-me a indagação
ouvida tempos atrás – embebida em ironia mordaz – “a literatura infantil suporta
ser “crivada” de teoria pesada?, ela agüenta a verdadeira crítica, uma formulação
teórica hard ou são pesquisadores de segunda linha que, não possuindo fôlego
para alçar maiores voos se aninham em nicho seguro, autoindulgente e
endógeno?”).
Vale reiterar que a perspectiva assumida parte da compreensão das obras
dos criadores de Fantasia numa clave de leitura que os lê como “Críticos da
Realidade”, como investigadores de uma sobrerrealidade (realidade mais
profunda), como pensadores de suas respectivas mundividências, pois, ao
desenvolverem dimensões de mundos paralelos, não apenas estavam criticando os
37
espaços que os circundavam, mas também propuseram outros caminhos (não
necessariamente otimistas; é possível que pudessem apenas enxergar distopias).
De saída, mesmo antes de esmiuçar o plano geral da obra, cabe explicar o
porquê da não inclusão da Terra Média de J.R.R.Tolkien (O Hobbit e a trilogia do
O Senhor dos Anéis). Seria, indubitavelmente, a alusão natural e óbvia, pois não
apenas é um universo muito conhecido, mas que foi criado por um teórico que é
um dos pilares da literatura de fantasia. Não incluí as aventuras dos “hobbits” por
conta de se tratar de um mundo de fantasia que não tem conexão, via de passagem
com o “mundo primário”, para usar uma terminologia tolkieniana (ainda que, para
muitos críticos, todo o universo d’O Senhor dos Anéis seja uma alegoria /
metáfora da Europa de sua época, envolvida no entre guerras, com o Mal
encarnado por Sauron, transposição do Nazismo e de Adolf Hitler). É uma
dimensão fechada em si. Não há buraco de coelho, tornado, guarda-roupa, portal
de qualquer ordem.
A questão do espaço e dos portais interdimensionais foi extensivamente
analisada pela estudiosa inglesa Farah Mendlesohn, em seu livro Retórica da
Fantasia (“Rhetorics of Fantasy”, ainda não traduzido para o português). Trata-se
de um tema que oferece um espectro amplo de investigações, que, neste caso,
apenas tangenciam a abordagem principal, no sentido que os loci desenvolvidos
pelos “wonderlanders” são os espaços narrativos nos quais emergem as reflexões
críticas acerca do que circundava os escritores. Mas a elaboração ficcional e o
estado da arte que se encontra a teoria literária contemporânea faz com que as
fronteiras estejam mais do que delgadas, postas em xeque. Um exemplo digno de
nota está no Sítio do Picapau Amarelo. Não obstante a existência do pó de
pirlimpimpim, Lobato esgarça os limites entre realidade e fantasia, o que, de
saída, já o posicionaria como à frente de todos os demais wonderlanders
escolhidos, daí o foco principal em sua obra e a interlocução com os demais
corpora.
Bem com a questão do espaço, outras questões tangenciais devem ser
discutidas como moldura da investigação como, por exemplo, a infância como
ponte para a fantasia; a infância como espaço de experimentação filosófica e não
como mera etapa cronológica; a fantasia como sobrerrealidade, entre outras.
Há tempos que os escritores promovem a dissolução dos gêneros literários
e mesmo os críticos literários – por definição, sempre a reboque dos artistas – já
38
tentam capturar a multiplicidade da obra de arte. Contudo, para abordar a fantasia
em um enfoque que se propõe ir contra séculos de desqualificação, numa possível
instância de apreensão de conhecimento, há que se examinar o objeto, a fantasia,
não com o mesmo antigo olhar que tradicional (em razão das raízes platônicas de
nossa civilização judaico-cristã) e dicotomicamente aparta realidade e fantasia.
Uma postura mais do que heterodoxa, uma manobra radical. Meu enfoque crítico
radicaliza uma tomada de posição ao considerar que toda análise acerca do
fenômeno literário ou mesmo qualquer investigação sobre o objeto artístico,
demanda uma postura epistemológica que deve apresentar criatividade e ousadia
na sua metodologia.
Há que se olhar de outro lugar, a fim de poder vislumbrar as relações e
trocas entre as duas instâncias. Para tanto, a tese assumiria em sua própria forma,
uma dicção híbrida entre um texto de uma tese, duro e ortodoxo, e um texto mais
arejado, como que levantando as possibilidade e não fechando as portas teóricas,
literatura de experimentação. Que é o que defendo, como lugar eminentemente
ocupado pela literatura de fantasia para crianças.
A intenção inicial era abolir os contornos adotando um viés que concebe a
arte como um caminho de investigação em si, amalgamando forma e conteúdo em
detrimento de um enfoque mais tradicional. Abordagem convencional que não
alcançaria toda a dimensão epistemológica de um texto radicalmente forte como
consideramos serem os textos de qualidade para crianças e jovens. A ideia seria
mesmo apresentar o estranhamento, o deslocamento, o incômodo de se olhar
criticamente de uma maneira incomum. Empregar a filosofia – saber respeitado e
prescrito na academia – para dialogar com a literatura infantil – saber ainda pouco
respeitado e outrora proscrito na academia – , gênero ainda hoje lutando por seu
lugar ao sol na universidade. Obviamente, a situação evoluiu muito nas últimas
três décadas. Todavia, é ainda estarrecedor que o nível mais alto de formação
acadêmica em teoria e crítica da área seja o de pós-graduações lato sensu. Não se
encontra um mestrado em literatura infantil, quanto mais um doutorado em
literatura infantil num país que possui autores escritores e autores ilustradores
premiados e reconhecidos internacionalmente como, por exemplo, Lygia Bojunga,
Bartolomeu Campos de Queirós, Angela Lago, Rui de Oliveira, Roger Mello, para
citar, minimamente, uma pletora de luminares. Sem dúvida que os trabalhos têm
surgido, simpósios, congressos e publicações não cessam de emergir e os novos
39
críticos, jovens pesquisadores sendo formados, mas são doutores em letras,
educação, artes e design, psicologia ou comunicação que optam por fazer suas
pesquisas convergirem para o tema. As grades dos créditos das pós-graduações
não são exclusivamente de literatura infantil e juvenil como temos em outras
áreas, indo mais profundamente no assunto. A tese visa, tão somente, contribuir
para a mudança da forma de se encarar a literatura para crianças e jovens. Trata-se
de um objeto de estudo rico e plural, completo e complexo, que necessita de
crítica aprofundada (e por assim dizer uma autocrítica, uma metacrítica), e não de
uma postura de vitimização ou de se fechar em uma espécie de quisto que só
reforça as mesmas teorias e abordagens metodológicas.
1.3 O feitio da trama
Ainda que a universidade tenha como compromisso demonstrar novos
aspectos do saber para a sociedade e o pesquisador acadêmico não esconda seu
caráter vaidoso ao exibir (ou desejar exibir) criatividade pujante, não se pode
menosprezar que a academia é uma instituição que se alimenta de ritos, que bebe
da manutenção de formas conhecidas. É necessário ousar dentro da moldura
aceitável, dentro do que é permitido. Apresento, por conseguinte, a forma como se
estrutura esta tese de doutorado, neste subcapítulo. Ao falar de texto, é sedutor
para todos os envolvidos com o tema, recorrer à imagem recorrente, beirando o
desgaste de “texto enquanto estrutura tecida”, como organização costurada, urdida
trama. Mostrar o feitio da trama, a configuração deste trabalho é não apenas o
esperado, mas uma atitude cordial e metodologicamente necessária, a fim de se
obter uma real interlocução para as discussões ulteriores. O presente capítulo, o
primeiro, intitula-se “Vermelho ou De como cheguei aqui” e aborda um alinhavo
entre biografia e bibliografia ativa e passiva, situando o problema que constitui a
viga mestra da tese. Fato é para fazê-lo, parte de circunvoluções que
progressivamente vão se aproximando do cerne da questão. Em seguida, o
segundo capítulo “2. Laranja ou ‘Fancy-O-Rama’: caleidoscópio de fantasia”,
40
como se percebe, almeja ser um panorama, traçar um espectro das concepções do
termo “fantasia” ao longo do tempo e nas suas várias linhas de pensamento.
Obviamente, a constatação analítica de que os limites são tênues e até mesmo
esgarçados, de maneira consciente, impeliu-me a recuperar a imagem dinâmica e
de mutante do caleidoscópio.
Discutir a diferenciação bem como a indiscernibilidade entre fantasia e
imaginação, entre imaginação e imaginário, com o viés que considera – contudo
não se limita a – imaginário significando coletivo de imagens, é o que pauta o
começo do terceiro capítulo deste estudo, que foi nomeado como Amarelo ou
Imaginário: relicário de imagens. Como que preparando o terreno para a reflexão
crítica que culminará com o derradeiro capítulo em termos de reflexão, o
“capítulo amarelo” trata de uma poética do imaginário, uma poética do imaginar,
convocando para o debate, a investigação hermenêutica tributária da
fenomenologia de Husserl, passando por Sartre, Bachelard, Merleau Ponty,
desembocando nas ideias desenvolvidas por Paul Ricoeur acerca da interpretação.
A etapa subsequente, explicitada na seção seguinte, intitulada de “4. Verde ou
Fantasia como horizonte de sentidos” parte do pensamento de extração
gadameriana, o que nos leva a tensionar as linhas de fronteira da realidade e da
fantasia, pondo em questionamento o postulado mimético da arte literária,
evocando as formulações do pensamento do Paul Ricoeur, discutidas em “Tempo
e Narrativa”, “A metáfora viva” e em “Do texto à ação”.
Como a última parte da tese – 7. Violeta ou Páginas percorridas – é a
apresentação das páginas percorridas durante o percurso, a tradicional seção
ortodoxamente chamada de Bibliografia, temos que “5. Azul ou Criadores de
mundos paralelos, críticos do próprio mundo” e “6. Anil ou Fantasia: o encanto
crítico” são os dois últimos capítulos de discussão. A quinta parte desta tese lida
com a análise dos textos literários propriamente ditos, de posse do que foi
estabelecido como mapa da situação existente, bem como as interações e as
diferenciações entre as abordagens dos respectivos crivos críticos. Recordando,
nosso corpus literário foi baseado em uma opção metodológica que privilegiou os
textos de minha predileção como leitor criança, por compreender que a escolha
infantil fosse um indício de um olhar atento crítico, germe do investigador
maduro. Os autores foram o inglês Lewis Carroll, o estadunidense Lyman Frank
Baum, o irlandês Clive Staples Lewis e o brasileiro José Bento Monteiro Lobato,
41
luminares da narrativa de fantasia para crianças. Seus universos estão
verdadeiramente plasmados no inconsciente coletivo. Ainda para aqueles que
nunca tiveram a chance (ou o desejo) de conhecer suas obras, é certo que todos
possuem uma certa familiaridade com os personagens (seja o coelho branco, a
lagarta ou o chapeleiro louco), o espaço (o Sítio de Dona Benta) ou alguma
situação (crianças que entram num guarda-roupa que se abre para um outro
mundo no qual o inverno nunca cessa ou um furacão que arranca uma menina
interiorana e seu pequeno cachorro do seu lar).
Eleitos como objetos de análise, os textos seminais de Lyman Frank Baum
(O mágico de Oz, de 1900) e de Clive Staples Lewis (O leão, a feiticeira e o
guarda-roupa, de 1950) são justificados pelos seguintes argumentos. O mundo de
Oz possui nada mais do que 14 títulos escritos pelo criador do Espantalho, do
Leão Covarde, do Homem de Lata, de Dorothy Gale e de Totó. Além disso, após
a morte de Baum, duas linhagens de livros seguiram com uma imensa profusão de
histórias. A escritora Ruth Plumly Thompson seguiu o cânone estabelecido por
Baum, com toda a atmosfera, apesar de seu estilo ser naturalmente distinto.
Desnecessário afirmar que a quantidade tornou a literariedade muito rarefeita, já
nos quatorze livros iniciais, chamados de originais e oficiais, os livros
“canônicos”. Até hoje são publicados livros ficcionais sobre o mundo de Oz,
explorando uma vertente da literatura de fantasia que transbordou do segmento
editorial e alcança desdobramentos no mercado voltado para a infância. Por ora,
pode se fazer o paralelo com o universo do Sitio do Picapau Amarelo caso
foquemos na profundidade com que tal imaginário criado por um indivíduo
estabeleceu raízes no inconsciente coletivo nacional, Baum principalmente no
Estados Unidos, Lobato predominante no Brasil.
As Crônicas de Nárnia não padecem do mesmo desdobramento. Os sete
livros que compõem a coleção foram escritos por Clive Staples Lewis em
sequência e ainda que tenham sido criticados por seu amigo J.R.R. Tolkien (do
grupo de discussão Inklings, da Universidade de Oxford), não sofreram alterações
nem receberam adendos ao seu universo. O primeiro livro a ser escrito foi O leão,
a feiticeira e o guarda-roupa, carro-chefe e, de certa maneira, o texto que
condensa toda a poética de Nárnia. É, em minha opinião, o que explicita melhor a
perspectiva crítica que se vale da criação ao ter a criança como ponto de partida (o
42
olhar inaugural, ousado, propositivo) e também local de chegada (destinatário
principal, sem entrar na discussão do leitor almejado pela literatura para crianças).
A obra paradigmática de Lewis Carroll para o conjunto da sua bibliografia,
para sua biografia e também modelar para a literatura para crianças e jovens, para
a psicologia, para a física (muitos hão de se lembrar de Alice no país dos quarks,
por exemplo), filosofia, sociologia e história das mentalidades é obviamente Alice
no país das maravilhas. O termo “wonderland” se espalhou de tal maneira que é
difícil querer restringi-lo aos estudos de literatura. Contudo, Alice através do
espelho, o texto que considero nem uma continuação nem obra-irmã do livro mais
conhecido, mas sim verdadeira faceta especular, indissociável, costumava ficar
eclipsado. Recentemente, com a adaptação para o cinema numa leitura muito
peculiar do diretor de cinema Tim Burton, retomou-se o interesse. Como objeto
de estudo, priorizei os dois livros, deixando de abordar as desventuras de Bruno e
sua irmã fada Silvia contantes em “Sylvie and Bruno / Sylvie and Bruno
Concluded”, lançados no Brasil em uma publicação intitulada Algumas aventuras
de Sílvia e Bruno.
Por último, mas não menos importante, pincei nos livros da coleção de
Monteiro Lobato que apresenta as peripécias do Sitio do Picapau Amarelo, os
momentos mais inspiradores e, novamente, os de minha intensa predileção. A
relação com a obra como o mágico das sobrancelhas em til vem, como já
explicitado, de longa data. Anterior ao ambiente acadêmico. Como se sabe, o
aspecto inovador da obra de Lobato já foi repetido à exaustão pelos especialistas,
mas ainda não é suficiente. De certa maneira, Lobato continua tão desconhecido
quanto mal lido. As abordagens de leitura e interpretação, de análise e
comparação são quase sempre auto-laudatórias e com poucas diferenças. Elege-se
uma linha crítica incensada pela universidade, escolhe-se uma obra que se encaixa
na teoria e buscam-se os trechos que reforcem o que se quer dizer, parafraseando
com maestria para fazer uma costura bem feita.
Tomar a obra literária como ponto de partida uma reflexão mais vigorosa,
que abale as certezas metodológicas, como plataforma de lançamento para voos
epistemológicos mais altos e ousados não é postura usual. De qualquer maneira,
os livros elencados para fazer o contraponto nacional aos demais lados do
quadrilátero de autores foram Reinações de Narizinho, o abre-alas da extensa série
do títulos que contam as aventuras da turma da boneca recheada de macela; O
43
Picapau Amarelo, por conta do fato de trazer, utilizando o recurso da
intertextualidade, não simplesmente todos os personagens da literatura clássica,
dos contos de fadas e do folclore, discutindo não só a referencialidade do texto,
mas a própria condição de alteridade, conceito tão importante para a visão da
criança quanto para a do filósofo; O Saci, narrativa que uma leitura ligeira pode se
prender ao estatuto de história de aventura, mas que tem como alicerce uma
profunda discussão que questiona o antropocentrismo em grande radicalidade; e,
por último, Memórias da Emília, que é um dos mais interessantes livros, pois
retoma passagens das obras anteriores e o faz em clave de dúvida, já que Emília
reconta sua biografia, retrabalhando as partes que lhe parecem menos dignas ou
aborrecidas, discute acerca da ficcionalidade da História. Sagazmente, Lobato,
que apresentava uma grecofilia assumida ao longo de sua vida literária e de
produção de idéias – um dos traços da influência nietzschiana32
–, opta por
realizar um livro que está predominantemente estruturado como diálogo. Em
breve viés histórico, tem-se que o diálogo é a forma eminentemente filosófica.
Diria até paradigmaticamente filosófica.
O capítulo “6. Anil ou Fantasia: o encanto crítico”, ocuparia o lugar de
conclusão, caso esta tese se propusesse a conduzir a um conjunto de leis ou
postulados que serviram, doravante, como modelo a ser aplicado nas mais
variadas narrativas que apresentassem passagens fantásticas ou mesmo que se
mostrem ser, em essência, “pura” fantasia. Não é o caso. O objetivo da tese que
está explicitado no capítulo é trazer à tona o incômodo intelectual que é não se
considerar a fantasia (em especial, neste recorte desta tese de doutorado, a fantasia
na forma de literatura) como uma forma de apreensão da realidade e
transpassando esta viga de pensamento, a não aceitação da razão como instância
legitimada e sobrepujante de investigação filosófica. Torna-se claro para mim, que
é um início de empreitada que não se restringirá ao presente estudo. E que só se
configura como passível de atribuição de sentido caso haja interlocução com o
maior número possível de atores. Dentro e fora dos centros de pesquisa e
produção de saber prescrito pela sociedade, mas também com crianças, jovens e
adultos em ambientes de sala de aula e de interação como oficinas e encontros
triangulares com o livro, o leitor e o autor.
32
MOURA, André. Monteiro Lobato, um leitor de Nietzsche. Dissertação de mestrado. Rio de
Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.
44
Recuperando a frase de Robert Bloomfield escrita em 1817, também
reforço a cada instante minha escolha afetiva, opção profissional, posição
ideológica e postura filosófica; em suma, meu apreço e comprometimento pela
literatura infantil: “quanto mais eu vivo, mais estou convencido da importância
dos livros infantis”.