1 vermelho ou de como cheguei até aqui · : perspectivas de uma antropologia literária”,...

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1 Vermelho ou De como cheguei até aqui Entre a primeira bactéria e Shakespeare... muitas coisas tiveram de acontecer.” 1 Jorge Wagsberg Boa literatura é boa literatura; agrada tanto crianças quanto críticos.” 2 Rebecca Lukens Há tempos que na Literatura, ou por outra, na Teoria Literária, a discussão entre biografia e bibliografia emergiu, mais tarde foi descartada, voltou à tona, tendo sido devidamente relativizada. De qualquer modo, considero que a vida do indivíduo autor possua certa relevância em suas escolhas, ou talvez seja, até mesmo, determinante para sua mundividência. Afinal, em certa instância, a visão de mundo de um autor é outra maneira de se considerar a literatura produzida pelo escritor. Sua obra não deixa de ser a sua Umwelt senão na sua totalidade, ao menos, como parte dela , que, obviamente será realizada com todos os jogos estéticos e recursos linguístico-literários possíveis, tais como: emprego de similaridade; utilização de alteridade; uso de mescla; fusão de indivíduos em uma personagem; transposição de situações para outro local, dentre muitos outros recursos artísticos. Considerando uma tese acadêmica da área de literatura também como um texto, não apenas crítico, mas assemelhado a uma produção literária, ainda que não possua caráter biográfico, seguramente, tal gênero textual não deixa de apontar traços e marcas, escolhas e estilos, limitações e preferências, modos de compreensão, vícios de linguagem, ideias e indícios do que pensa quem a escreve. 1 WAGENSBERG, Jorge. Pensamentos sobre a incerteza: 531 frases sobre temas essenciais da vida. Trad. Simone Mateos. São Paulo: Saraiva [Benvirá], 2010. p.43. 2 LUKENS, Rebecca. “The Child, the Critic and a Good Book”. Language Arts, 55: 452 -54, 546. In: SHAVIT, Zohar. Poetics of Children’s Literature. Athens and London: The University of Georgia Press, 2009 (paperback ed). p. 37. “Good literature is good literature; it satisfies both children and critics.” Vale ressaltar que Shavit diverge do estatuto de boa literatura que Lukens confere à literatura infantil. Não é que Shavit não atribua qualidade ao gênero, mas considera uma postura anacrônica, que simplifica, como se a boa literatura fosse universal. Traço um viés distinto, ao passar ao largo da discussão da qualidade literária (por considerar que há de ser algo tácito, alguém gosta de ler algo que não considere bom?), e focar na ponte estabelecida entre a criança e o crítico, no quanto de crítico há na criança, no quanto de criança há no crítico.

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1 Vermelho ou De como cheguei até aqui

“Entre a primeira bactéria e Shakespeare...

muitas coisas tiveram de acontecer.” 1

Jorge Wagsberg

Boa literatura é boa literatura;

agrada tanto crianças quanto críticos.”2

Rebecca Lukens

Há tempos que na Literatura, ou por outra, na Teoria Literária, a discussão

entre biografia e bibliografia emergiu, mais tarde foi descartada, voltou à tona,

tendo sido devidamente relativizada. De qualquer modo, considero que a vida do

indivíduo autor possua certa relevância em suas escolhas, ou talvez seja, até

mesmo, determinante para sua mundividência. Afinal, em certa instância, a visão

de mundo de um autor é outra maneira de se considerar a literatura produzida pelo

escritor. Sua obra não deixa de ser a sua Umwelt – senão na sua totalidade, ao

menos, como parte dela –, que, obviamente será realizada com todos os jogos

estéticos e recursos linguístico-literários possíveis, tais como: emprego de

similaridade; utilização de alteridade; uso de mescla; fusão de indivíduos em uma

personagem; transposição de situações para outro local, dentre muitos outros

recursos artísticos.

Considerando uma tese acadêmica da área de literatura também como um

texto, não apenas crítico, mas assemelhado a uma produção literária, ainda que

não possua caráter biográfico, seguramente, tal gênero textual não deixa de

apontar traços e marcas, escolhas e estilos, limitações e preferências, modos de

compreensão, vícios de linguagem, ideias e indícios do que pensa quem a escreve.

1 WAGENSBERG, Jorge. Pensamentos sobre a incerteza: 531 frases sobre temas essenciais da

vida. Trad. Simone Mateos. São Paulo: Saraiva [Benvirá], 2010. p.43. 2 LUKENS, Rebecca. “The Child, the Critic and a Good Book”. Language Arts, 55: 452-54, 546.

In: SHAVIT, Zohar. Poetics of Children’s Literature. Athens and London: The University of

Georgia Press, 2009 (paperback ed). p. 37. “Good literature is good literature; it satisfies both

children and critics.” Vale ressaltar que Shavit diverge do estatuto de boa literatura que Lukens

confere à literatura infantil. Não é que Shavit não atribua qualidade ao gênero, mas considera uma

postura anacrônica, que simplifica, como se a boa literatura fosse universal. Traço um viés

distinto, ao passar ao largo da discussão da qualidade literária (por considerar que há de ser algo

tácito, alguém gosta de ler algo que não considere bom?), e focar na ponte estabelecida entre a

criança e o crítico, no quanto de crítico há na criança, no quanto de criança há no crítico.

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Recordo a discussão acerca do saber tácito da ficção e da realidade,

encetada pelo crítico alemão Wolfgang Iser, em seu seminal livro “O fictício e o

imaginário: perspectivas de uma antropologia literária”, levando-se em conta o

fato de que praticamente se trata de um chavão considerarmos unicamente que tais

textos são ficcionais e, por exclusão, os textos que não são literários se relacionam

com o seu oposto, ou seja, são da ordem da realidade, Iser parte para questionar

tal distinção dualista. Pergunta ele: “Os textos “ficcionados” serão de fato tão

ficcionais e os que assim não se dizem serão de fato isentos de ficções?” 3. O

amálgama entre criação e crítica, ficção e não-ficção, vida e obra, texto acadêmico

e texto literário está explicitado nesta tese em sua forma, pois é questão de fundo,

bem como está na raiz de sua concepção, refletindo principalmente acerca da

linha de pensamento que, ao opor fantasia e realidade, traz como corolário a

localização da fantasia em espaço antípoda à razão. A fantasia seria parte do

campo da desrazão, da irracionalidade, da loucura, insanidade.

A aproximação dos temas que ora realizo, a saber, vida e obra; crítica e

criação; texto acadêmico e texto literário; fantasia e filosofia; possui dois motivos

principais: (1) contextualizar a origem da tese, situar o problema a ser analisado,

apresentar a gênese do incômodo de reflexão em articulação com minha biografia,

retomando o tópico “vida e obra” [apresentado no item 1.1. Contando uma

história]; (2) explicitar o próprio cerne da minha investigação, que se propõe a

problematizar a literatura de fantasia enquanto modo de fazer filosofia, como

ferramenta filosófica, ou seja, seria a criação para criança é uma mirada crítica

para o adulto? [desenvolvido no item 1.2. Mas afinal, qual é a pergunta?].

3 ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de

Janeiro: EdUERJ, 1996. p.13.

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1.1 Contando uma história

“venha começar nossa história, pois

estou mesmo é faminto de começos”.

Maurício, personagem de O Rei do Manacá.4

Minha trajetória de vida – predominante no âmbito profissional, mas

também quanto ao aspecto pessoal – aproxima Arte e Ciência. Para tanto, parto da

condição de menino de oito anos de idade – os eternamente emblemáticos oito

anos, por conta do poema romântico de Casimiro de Abreu –, filho de pesquisador

da área de Matemática, leitor voraz, aluno ainda na escola pública primária com

redações elogiadas, sendo expostas pela professora que me fazia percorrer com

ela, sala após sala das três terceiras séries, gerando em mim um misto de orgulho

e vergonha. Chego ao lugar de indivíduo de quarenta e um anos, como escritor e

pesquisador de literatura infantil, tendo passado pela condição de jovem

graduando de Ciências Biológicas; e este percurso mostra bem como a literatura

infantil foi tanto origem (como criador-menino) quanto destino (como crítico-

adulto), com um desvio estratégico, parada metodológica, engano juvenil ou

trapaça do destino pelo modo de compreender os fenômenos de forma cartesiana.

Cruciais foram dois momentos em minha vida, que ora percebo como

alicerces desta pesquisa. Inicialmente, recém-saído dos bancos escolares do

Colégio Pedro II, ao não ouvir as evidências apresentadas pela vida e cismando

que a literatura na minha vida não passava de mero hobby, optei pela carreira

romantizada de cientista, sonhando com as veredas da biologia, acreditando que a

rotina de biólogo seria tão-somente enlevo com a diversidade da natureza.

O segundo momento, já bem mais adiantado na faculdade de Ciências

Biológicas, cursando a disciplina de sexto período denominada “Metodologia

Científica”. Magistralmente ministrada pelo astrônomo e Professor Doutor Jorge

Vieira, do Observatório Nacional, a matéria gestou um lampejo de epifania

epistemológica: de que a Ciência não era capaz de dar conta da multiplicidade dos

fenômenos do universo. O insight de que a expressão “comprovada

4 MOURA, André. O Rei do Manacá. Il. Alê Abreu. São Paulo: Jujuba, 2011. p. 12.

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cientificamente”, repetida à exaustão pelos meios de comunicação, não passava de

uma balela ou, no mínimo, era algo falseado, uma falácia. Sobreveio o desencanto

com a Ciência (situação que, na verdade, hoje repenso como um aprofundamento

da postura de investigador crítico, ao me libertar das amarras rígidas e limitadoras

do método científico e me aproxima da postura epistemologicamente ousada de

Paul Feyerabend, em Contra o método), e em seguida, a busca por outros

caminhos e, finalmente, o encontro com um curso de extensão da Faculdade de

Letras, da mesma Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulado Oficina de

Criação Literária: Literatura Infantil, na qual ainda cursava o bacharelado em

Ciências Biológicas. Minha crise analítica teve seu ápice no contato com a

criação.

Incentivado pelas professoras Rosa Cuba Riche (que mais tarde

reencontrei na condição do votante do Prêmio da Fundação Nacional do Livro

Infantil e Juvenil) e Enilda Newman Alves, responsáveis pela oficina mencionada

acima, escrevi o conto infantil “O Lápis e a Estrela”, que foi publicado em 1992,

nas páginas 11, 12 e 13 de Bioletim No 9 – Revista dos Alunos de Biologia da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – Agosto e Setembro de 1992, organizada

pelos alunos do curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio de

Janeiro. Como havia mencionado que retomaria o porquê da escolha do título da

tese, como um preâmbulo, acredito ser necessária a inclusão do conto infantil

escrito há quase duas décadas atrás, primeira e ainda ingênua (quase caseira,

familiar, amadora) produção na área de crítica e criação que abracei

definitivamente a partir do ano de 1995. É curioso pensar que, apesar de ter sido

escrito quando considerava o texto de literatura infantil como gênero direcionado

prioritariamente ao público infantil, o conto não foi modificado mesmo sabendo

que seria divulgado entre jovens adultos, estudantes universitários do curso de

graduação de Ciências Biológicas do Instituto de Biologia da Universidade

Federal do Rio de Janeiro.

O Lápis & a Estrela

Para o Fabio (é, é sem acento) e para o Tiaguinho, para a Juliana. Para a

Marcinha, para todas as Marcinhas e para o Dudu também. Para a Lili e para o

Batata, para o Márcio e para o bebê da Márcia. Para as duas Larissas, ambas

muito bonitas de se ver, e para a Beta, e para a Drica. Para a Patty, para a Paty e

todas as Patricinhas... Para as gêmeas Dea e Lu, para o Pinguim, para o Barney.

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Para as Carlas, Cláudias, Flávias e Carolinas. Para as Marianas, as Julianas, as

Lucianas, as Joanas, todas as Anas, enfim, para as bananas cor-de-carmim. Para a

Chapeuzinho Vermelho, para o Lobo Mau. Para a Sapatinho de Cristal, para o

saco plástico cheio de cola, para o menino com dente cariado no sinal. Para o

Evandro quando ele for for vovô, para o André quando ele aprender a amar sem

erro. Para as rosas-meninas de abril, para os meninos-zangões dos dezembro.

Para o Leozinho, para o Frederico quando ele era só Freddy, pro Carlos quando

ele brincava no recreio e para as garotas deles. Para as luzes, para as sombras,

para as frases difíceis de esquecer. Paraas attitudes fáceis de lembrar. Para o

Thomas, e todas as pessoas que a gente gosta de lembrar. Para o Nando, para ele

nunca virar adulto, para a Tê, para ela nunca deixar de ser criança, para a Déia e

para a Tiane, minhas mais caras amigas, para a a Annie, sem maiores

comentários. Para o Gil, para o Magoo e para o Mantovani. Para cada um dos

três, e para todos os três juntos… E já que a gente falou de felicidade (é, vocês

três, mesmo!), para a vontade de ser feliz… Para as Valérias e para as amizades

sinceras, para ler nas filas de espera (leia Argila a estória da bruxa Camila, é

ótimo para filas longas). Para os Alexandres, Xandis ou não. Para as vitórias e

para as derrotas, e para as medias atritméticas, também. Para os pais dos pais,

para os filhos das mães e para os árbitros do digníssimo esporte bretão... Por que

não? Para os manos, para os Caetanos, para os gaoianos e os sul-coreanos. Para

os Jotinhas, para as Marthas, com e sem h. Para a Anaize, com um carinho e uma

admiração especial, para todas as Anas, de A a Z. Para as Amélias e para as

torneirinhas de asneiras que nós carregamos no peito. Para a Débora, que teve a

grandeza, a finesse, a audácia e a sensibilidade de escolher o sacrossanto ofício,

que teve a coragem de escolher como instrumento de trabalho, juntamente aquele

que fere, corta e mata sem que a gente possa perceber. A tão falada palavras. E

nada destas bobagens de bichinhos e plantinhas, coisa mais sem graça. Para a

Gabriela e para a Isabela e para a Manuela e para a epsilon-ela. Para a Mari,

como não poderia deixar de ser e para as crianças de modo geral. Todos nós,

todos vocês, hoje e sempre. Mais crianças do que nunca. Do modo mais geral

possível. Da mesma maneira mais simples possível. Lúdico. Ou melhor,

simplesmente infantil.

Era uma vez... Era uma vez, eram duas vezes, eram várias vezes... Todas

as vezes que uma criança quiser contar uma estória para outra criança, então a

gente vai se lembrar da nossa. E do lápis e da estrela. O lápis, o nosso amiguinho,

vivia contente e feliz da vida, brincando de amarelinha nas linhas do papel

branco. E corria e brincava e cada hora fazia um desenho novo, cada um mais

bonito que o outro. E nem se preocupava com nada que não fosse celulose ou

grafite. Enquanto isso, lá no céu, tinha uma estrela que brilhava e piscava feliz

durante a noite. Mas ela não era muito feliz não. Ela tinha um pouco de vergonha

do seu brilho. Vê se pode! Ela ficava sem graça de brilhar tanto, e sempre com os

seus amiguinhos e amiguinhas, estrelas como ela: – Eu queria ter um interruptor

aqui nas minhas costas, pra que eu pudesse me desligar. E a amiga falou: – Por

quê? Não é ótimo brilhar e iluminar o caminho de todo mundo? – Ah, mas assim

ninguém consegue dormir, com essa luz na cara! Não quero ofuscar ninguém. E

continuaram conversando horas a fio, dia após dia, ou melhor, noite após noite. E

mesmo que ficasse preocupada com os dorminhocos da cidade, ela vivia sua vida

mais ou menos contente. Até que um dia...

Naquele dia onde o dia era mais dia e a noite veio beijá-los, foi que os

nossos amiguinhos se conheceram. O Lápis já tinha desenhado quase tudo e

pensou que não tinha mais nada para desenhar. E começou a pensar e ficar

chateado. Muito chateado, muito chateado mesmo. Até que resolveram começar

um traço, ou um pedaço de linha. E daquele traço, trouxe um outro traço e acabou

fazendo uma estrela. E gostou do que tinha feito. Pensou, que estrela bonita, que

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estrela linda! Parece até que vai falar, parece que vai abrir os olhinhos... – Hum...

Que sono... – disse a estrelinha ainda com os olhos um pouco fechados... – Ei,

você fala, você tá viva e pode ser minha amiga! – falou o Lápis todo animado. –

Quê? Onde eu estou, cadê todo mundo? – Todo mundo? Que todo mundo, só tem

eu aqui nesse caderno. Ou pelo menos, nessa página. Sabe que eu nunca tinha

pensado nisso? – disse o Lápis, já mais pensativo... – Ei, cara, me explica como

eu vim parar aqui? Eu moro lá no céu e hoje acordei aqui nesse papel, com estas

linhas que parecem uma partitura... – Ih, não sei, eu só sei que eu estava

desenhando e já não tinha mais nada para desenhar. Então, fiquei triste, achando

que eu tinha desaprendido a desenhar. Mas veio uma idéia e desenhei uma

estrela, desenhei você. – E eu acordei e vi você – disse a Estrela, ao mesmo

tempo em que pensava: “Vi você todo feio e pontudo”. Ela não tinha simpatizado

muito com ele, muito sem graça para ela que tinha se acostumado ao seu próprio

brilho e ao de suas amigas.

– Pois é... disse ele, percebendo que ela estava com aquela cara de quem

comeu arroz-e-feijão e não gostou. Mas também, bem melhor são as coisas

gostosas que nem sorvete e mousse de chocolate. Mas ele logo se animou e fez a

ela um convite. – Ei, já que você está aqui, porque a gente não brinca de alguma

coisa? – Brincar de que? Só se for uma brincadeira para duas pessoas. – Que tal

amarelinha? Você é tão amarelinha! – disse o Lápis. E a Estrela ficou

vermelhinha de vergonha, mas aceitou mesmo assim. E começaram a brincar, e

nem perceberam que o tempo foi escorrendo para o ralo.

Passou o dia, passou a noite, e o dia depois da noite, e a noite depois do

dia, e o dia depois da primeira noite, e a noite depois da primeira noite... E o

tempo foi passando e eles foram ficando cada vez mais amigos. Uma nova

brincadeira sempre aparecia e eles esqueceram de tudo e até pensaram que nada

de mal podia lhes acontecer. Mas foi aí, e é sempre assim (sempre que a gente

pensa que o bicho papão foi embora, ele volta pra chatear, afinal ele é um chato

de galocha), que o mal aconteceu. A estrelinha lembrou das suas dúvidas e pediu

pro seu amiguinho que desenhasse um interruptor nas suas costas. – Mas eu não

sei desenhar um interruptor, Estrela. – Ah, sabe sim, Lá (ela agora chamava ele

de Lá, quem diria, hein? Antes ele era o feio e pontudo e agora era o Lá, uma

forma carinhosa de lápis). Você desenha tão bem... – Tá legal, então fica de

costas. – Pronto, fiquei. Tá bom assim? – Eu não sei não, mas algo me diz que eu

não devo fazer isso... – Deixa de bobagem, você não gosta de mim? Então, eu

sempre sonhei com um interruptor... Liga! Desliga! Liga! Desliga! E ficou

encantada, se divertindo com a idéia de ter de ter um interruptor, tudo o que ela

sempre sonhou. E nem percebeu que seu amigo estava com sua ponta muito fina,

o que era muito perigoso para uma estrela, eu é tão brilhante, mas é muito frágil.

Enquanto ele se preparava para desenhar, a sua ponta a espetou e ela gritou tão

alto, tão alto que acordou até o Carlinhos, que é um tremendo dorminhoco. Ele

nunca acorda na hora de ir para a escola. – O que foi? Ah, o que eu fiz? Gritou o

lápis, completamente desesperado ao ver sua amiga sofrer. – Não sei, você me

espetou, mas a dor é tão grande que parece que eu vou me desfazer! – Vem cá,

minha amiga, você não pode ir, a gente ainda tem tantas brincadeiras para

inventar... E ela foi sumindo, sumindo, foi desaparecendo. Até que desapareceu

completamente, levando toda a luminosidade com ela. E ficou tudo escuro, tão

escuro quanto a boca do lobo mau, ou tão escuro quanto os olhos do dragão, que

tem uns olhos pretos, pretos. O Lápis, que morria de medo de escuro, começou a

chorar. E a berrar, enquanto chorava e soluçava.

Gritando pelo nome de sua amiga e morrendo de medo que os apontadores, os

guardas do Rei Borracha, aproveitassem que ele estava sozinho para pegá-lo. Ele

estava começando a ficar com muito medo. Medo de escuro, todo mundo diz que

é bobagem, este papo de fantasma é tudo criação dos Estúdios de Walt Disney,

tudo mentirinha. Mas eu sinto medo, pô! Era assim que ele pensava. E estava

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descobrindo isso agora, porque nunca tinha ficado naquele caderno. A Marcinha

me puxou pela mão e me perguntou: – E a Estrela? Ela morreu, tio? – Não, ela

apenas ficou um pouco diferente... E falando nisso...

A Estrela abriu os olhos e percebeu que estava um pouco estranha. Agora ela era

uma estrela estranha. Em cada ponta da estrela, agora tinha um pontinho

colorido. E ela viu que estes pontinhos eram de cinco cores diferentes. Azul,

vermelho, verde, branco e preto. E cada ponto era uma ponta de lápis de cor. Na

verdade, a Estrela não era mais uma estrela. A Estrela era um conjunto de cinco

lápis de cor. E agora estava bem mais contente. Ela esqueceu aquela estória boba

de que incomodava as pessoas com seu brilho e assustava quem não estava

acostumado à luz forte, e começou a curtir estes lápis nos quais ela havia

transformado. E desenhou um monte de árvores com o seu lápis verde. E grama

também, que nem essa aqui que a gente tá sentada, criançada. E maçãs e bocas, e

um monte de coisas vermelhas. Com o preto ela desenhou um pedaço de carvão,

que servia para fazer mais desenhos... Com o azul, ela desenhou o céu, e se

lembrou de quando era uma estrela. E se lembrou de quando acordou, ao lado do

amigo Lápis e sentiu uma saudade imensa. E ficou triste. Então pegou o lápis

branco. – Alguém aí sabe o que ela desenhou com o lápis branco? – Ah, eu sei!

disse o Fred. – Diga lá, Frederico. O que a estrela desenhou? – Ah, ela desenhou

umas nuvens, é lógico. Disse ele com aquela cara, aquela que vocês conhecem. –

Não, você errou. Mas não fica triste, não. Olha só o que ela fez... Ela rabiscou

com o branco e começou a encher tudo de branco. E o branco foi preenchendo

tudo, como se transbordasse. E de repente... De repente o Lápis que estava no

meio daquele escuro danado, viu tudo ficar branco e suspirou aliviado. E então

viu aquele lápis branco, que era um lápis fêmea extremamente interessante. Eles

ficaram amigos e acabaram trilhando juntos vários caminhos pautados. Um dia

desses ela acabou se lembrando de tudo que havia vivido e foi então que riram

muito de tudo. – Acabou, tio? – Acabou... eu fiquei com medo de decepcionar as

crianças... Mas felizmente, ataquei com um chavão salva-vidas: ...e viveram

felizes para sempre. (Moura, 1992).

Independente da imaturidade literária do texto, vale a escolha das duas

personagens que nomeiam o conto. Propositadamente, trata-se do título desta tese.

Apresentarei adiante, no item 1.2., as razões da escolha. Mas afinal, qual é a

pergunta? O título do presente trabalho ainda não esclarece a tese a ser defendida,

a questão essencial a ser investigada, a pergunta principal, a premissa motriz.

Curiosamente, em plena Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, em 1992, logo pude perceber que, se me incomodava a empáfia

cientificista reinante no que se ensinava e se aprendia no Instituto de Biologia,

também o campo da arte literária apresentava seus nichos e linhas de força, seus

estigmas e juízos de valor. Supostamente, ao menos para mim, àquela época, seria

a universidade se apresentaria como instância de produção de saber, um celeiro de

livres pensadores, não deveria vicejar preconceitos ou conceitos prévios. Contudo,

logo percebi que se tratava de mais um espaço de discriminação de campos de

conhecimento, de eleição de determinadas áreas do saber.

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A pesquisadora israelense Zohar Shavit, em seu livro Poetics of Children’s

Literature, originalmente publicado em 1983 e relançado em 2009, em edição

brochura, já chamava a atenção para a necessidade de modificarmos tal postura

acadêmica ao constatar que “a literatura infantil não era nem mesmo considerada

um campo legítimo de pesquisa no mundo acadêmico” 5. E de forma tão

específica quanto paradoxal, ocorre que o desvalor que a área sofre entre seus

pares, é resumido por Shavit na seguinte afirmação: “a literatura infantil padecia

de um status inferior dentro do polissistema literário.” 6

Interessante tecer alguns comentários acerca da legitimidade da literatura

infantil na universidade. Indubitavelmente que o descrédito e a desqualificação

sofridas pela área têm raízes históricas e ideológicas, num ambiente que é

notadamente um espaço de manutenção e tradição, no qual as inovações

caminham a passos lentos, em saltos quânticos. Contudo, cumpre salientar que a

ideia de vitimização que pauta a própria auto-imagem do gênero não contribui e

não deve ser menosprezada como parte integrante da crítica da literatura infantil,

que, em minha opinião, ainda possui um longo caminho para trilhar e não é uma

exclusividade do nosso país ou do nosso hemisfério.

Concorre, em adição, para a exclusão da área nos corredores universitários

não só a auto-indulgência, a aceitação do escamoteamento das críticas, como a

condescendência entre os pares. Peer reviews não são rotina para pesquisadores

que se ressentem de não terem periódicos nacionais especializados ou mesmo o

acesso aos mais respeitados journals. Como retomarei adiante, me interessa como

pesquisador de literatura infantil e leitura, investigar a literatura infantil por um

prisma não convencional. Aproximando a fantasia da filosofia, neste recorte da

presente tese de doutorado, utilizando abordagens críticas não tão desgastadas,

com ferramentas oriundas de saberes aparentemente imiscíveis, como, por

exemplo, teologia e literatura infantil. Sobrevém-me, por exemplo, a pergunta:

quanto de demiurgo tem o leitor de literatura infantil, construindo sentidos e

universos, moldando sentimentos e circunstâncias nos interstícios deixados

propositada, ou inadvertidamente, pelo autor?

5 SHAVIT, Zohar. Poetics of Children´s Literature. Athens and London: The University of

Georgia Press, 2009. “children’s literature was not even considered a legitimate field of research

in the academic world”. p.ix. 6 SHAVIT, Zohar. Poetics of Children´s Literature. Athens and London: The University of

Georgia Press, 2009. “children’s literature suffered from an inferior status within the literary

polysystem.” p.ix.

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Retomando a trajetória pessoal-profissional: após o contato com a oficina

de literatura infantil, soube da possibilidade de cursar como ouvinte algumas

disciplinas na Faculdade de Letras na mesma universidade que havia ingressado.

O departamento que me seduziu foi o Departamento de Ciência da Literatura.

Oriundo da ciência, foi natural que eu me afeiçoasse a um departamento que

tivesse, em seu nascimento e batismo, o viés do estruturalismo. As aulas de Teoria

Literária IV – que me apresentaram à pesquisa do russo Vladimir Propp e suas

trinta e uma funções – eram bálsamos para meu olho ainda marcado pela lente

ocular do microscópio. As várias vertentes de análise literária (formalista russa e

estruturalista de dicção francesa, psicanalítica e feminista, marxista, new criticism,

desconstrutivismo, etc.) me encantavam e me faziam desejar seguir no caminho

da pesquisa de literatura. Literatura para crianças, bem entendido. Mas o desejo

não era isolado. Como contraponto ou enquanto complemento, a perspectiva de

produzir literatura infantil me estimulava. Para mim, a crítica nunca foi dissociada

da criação. A criação sempre esteve atrelada à crítica, em minha opinião. Em

realidade, por muito tempo, tive mesmo por espécie de dogma interno a reflexão

de que um criador de literatura infantil só poderia ser um bom criador caso fosse

simultaneamente crítico. Não apenas uma postura crítica acerca de tudo, mas um

crítico, um especialista, um pesquisador de literatura infantil. Vinculado ou não

com a academia. E, como contraponto, o dogma mostrava sua outra face, a de que

um especialista de literatura infantil só poderia ser um bom crítico caso já tivesse

se arriscado na seara criativa. Ao menos uma vez, deveria experimentar as delícias

e os desesperos da criação literária. Adaptando o dizer popular: criticar é fácil,

fazer é que são elas. Hoje, em tempos de reavaliação crítica, não seria tão

peremptório, exigindo que a dupla condição seja obrigatória.

Ante a descoberta da possibilidade de cursar um mestrado em Ciência da

Literatura, mesmo com a graduação em Ciências Biológicas, era imperativo a

conclusão do curso. Foi difícil prosseguir nos compromissos no Laboratório de

Fisiologia Vegetal, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho. Meu corpo

ainda era de biólogo, minha mente já perambulava na literatura. E confirmando a

correta escolha, os poemas escritos durante as aulas de Microbiologia e

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Imunologia se tornaram parte de um livro publicado em 2009.7 Entretanto, optei

por reduzir o ritmo, pois não me considerei apto a perpetrar tão intenso salto.

Partir da graduação em Ciências Biológicas para o mestrado em Ciência da

Literatura pareceu manobra por demais arriscada. Tudo era muito novo. Decidi,

então, cursar uma Especialização em Literatura Infantil e Juvenil oferecida pelo

Departamento de Letras Vernáculas. Foi mesmo um virar de página, apresentar a

monografia intitulada “Isolamento de Protoplastos de Ipomoea Batatas L. (Lam.)”

8 em um mês e iniciar o curso de especialização no mês seguinte.

À medida que fui avançando no meio acadêmico, estarrecia-me a

desqualificação da Literatura Infantil e Juvenil como área de conhecimento. Ao

mesmo tempo, o interesse por dois temas crescia dentro de mim. O primeiro foi o

Sítio do Picapau Amarelo. Vale recuperar a experiência da infância que foi ver,

pela televisão, um mundo mágico, exuberante e totalmente diferente do que eu, à

época, garoto urbano nascido em Nova Iorque, nos Estados Unidos, e criado na

Zona Sul carioca, estava acostumado. A obra de Monteiro Lobato logo emergiu

como possibilidade de estudo quando pensei em fazer o mestrado em literatura, e

abordando a literatura infantil, mesmo antes de optar pela redução estratégica do

ritmo (o curso de Especialização pareceu de bom tamanho para o fôlego

disponível à época).

O segundo tema, surgido nas aulas de Filosofia do ensino secundário, foi o

interesse pelo exercício do pensamento, pela investigação filosófica. Cheguei

mesmo a cursar alguns meses do curso de graduação de Filosofia, no Instituto de

Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Apesar de

ser seduzido pelos percursos do pensamento, já não concordava com a

hipervalorização da filosofia como um saber legitimado. Veio-me a ideia de juntar

os meus dois principais interesses – literatura infantil e filosofia –, verificar de que

forma se dava o diálogo entre a fantasia e a filosofia, ou antes, averiguar acerca da

existência ou não de tal diálogo. Tomar a fantasia enquanto uma ferramenta

filosófica é o enfoque para verificação da hipótese.

A meu ver, a postura infantil, o “modo de ser de criança”, o devir infantil

está tanto nos escritores, quanto nos personagens e nos leitores. Ao empregar a

7 MOURA, André. Lã de Vidro: diálogos poéticos. Il. Julie Pires & Marcelo Ribeiro. Rio de

Janeiro: Memória Visual, 2009. Selecionado para os acervos escolares da Secretaria Municipal de

Educação do Rio de Janeiro, em 2010. 8 Nome científico do tubérculo batata-doce.

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expressão “postura infantil” (encanto crítico), o que considero é o viés de se

encantar com o mundo, o enfoque de se maravilhar com o mesmo, o rotineiro e o

cotidiano, que possuem uma pulsão de poder. Tal pulsão faz com que o indivíduo

se considere demiurgo, capaz de criar mundos e, ao mesmo tempo, totalmente

aberto para a ignorância. Ignorância enquanto desconhecimento, na acepção de

que há todo um universo para preencher com seus significados (em óbvia

articulação com a alteridade, com o exterior, não é uma postura isolada e

solipsista). Considero a fantasia na literatura infantil como um resgate da

“infância da filosofia”, ou seja, o período dos pré-socráticos, a aurora do

pensamento original. Ultrapassando a importante discussão sócio-histórica da

invenção burguesa da infância, encontrei ecos das minhas considerações nas

formulações de Giorgio Agamben, por certo. Para Agamben, a infância não se

reduz à uma etapa cronológica. Além disso, a condição de infante (aquele que não

fala9) inspira uma condição de ausência, de falta, desaparelhamento,

desinstrumentalização, de deficiência. Mas o filósofo italiano toma exatamente

essa ausência como vantagem e torna o fato de não ter fala como possibilidade de

crescimento e construção, na fricção da natureza com a cultura, em modulação

pela linguagem. E estende a condição da infância para o ser humano,

independendo de sua situação cronológica. Analogamente, descarto a faixa etária

como pré-requisito para a infância. Minha formulação para a fantasia trafega de

forma bífida, pois tributária da “infância da filosofia” – sendo portanto anterior à

clivagem socrática-platônica-aristotélica –, dos filósofos pré-socráticos ou, mais

propriamente, na definição de Emanuel Carneiro Leão, dos pensadores

originários, se reconhece como “filosofia da infância”, ou seja, é o modo de

perceber os fenômenos internos e externos com o olhar inaugural, sem pré-

conceitos, de responder às perguntas com a criatividade, não temendo se

conduzirá ao disparate, se condiz com o esperado.

É o que fico tentado a denominar de “encanto crítico”. Ainda não posso

afirmar que se trata de uma “Teoria do Encanto Crítico”, me afasto de tal

tentação, mas uma linha de raciocínio que confere à fantasia um status de

9 Conforme o excerto de YUNES, Eliana (1986): Do latim in (prefixo de negação) + fans, fantis

(particípio presente de fan, falar, ter a faculdade da fala) forma-se o termo infante, “aquele que não

fala” e por decorrência, “de pouca idade, ainda criança”, tendo várias acepções: 1) de “menino,

menina de seis a quinze anos” (na baixa latinidade), 2) de jovem nobre (no século XII), 3) filho do

rei (já no século XVII). O termo se associa ao caráter de servidor submisso quando designa

“soldado de infantaria” que serve aos cavaleiros.

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perquirição, tão legítimo quanto qualquer outra abordagem do rol das teorias

literárias, ou outra clivagem distinta. É assumindo a fantasia na sua força, na sua

potência, ao considerá-la em sua própria pulsão identitária, ou seja, exatamente a

partir do encantamento, do enlevo, que irá irromper a solução para a explicação

das questões propostas pelo pensamento. Recordo (e reitero a construção frasal,

sem temor de incorrer em tautologia a afirmativa afirmação – posto que é tomada

de posição, posicionamento ideológico – de Bartolomeu Campos de Queirós:

“vivo numa sociedade que não encara a fantasia como o mais profundo do ser” 10

.

O escritor desnuda seu pensamento em sua escrita (e, de forma deliberada, estou

atando escrita e pensamento), quando, de maneira crítica, aponta uma fissura da

sociedade, elaborando um binômio que circunscreve os termos “o mais profundo

do ser” em conjunto com o conceito “fantasia”, ou seja, poetica e politicamente

(no sentido primevo) rimando fantasia com ontologia.

Em se tratando de textos teóricos, elenquei dois pontos de partida, como

uma espécie de alicerce para a premissa que sedimentou, desde a origem, a

presente investigação: da possibilidade da fantasia ser uma ponte para a filosofia,

ou em uma perspectiva de radicalização deste diálogo, de ser a fantasia uma forma

de filosofia, que não seria uma oposição à realidade, à razão. A fantasia como

filosofia. Trabalharia com outra dimensão de realidade, com outra maneira de

encarar o fazer filosófico. Mesmo antes de enfrentar a travessia da vereda do

Tolkien teórico (no emblemático artigo “On Fairy-Stories”, que integra o livro

Tree and Leaf 11

) ou do basilar estudo de Todorov (Introdução à literatura

fantástica 12

), a especificidade dos títulos dos artigos “Philosophy and Fantasy” e

“Agents of Reform?: Children’s Literature and Philosophy”, quase como um

binômio fantástico de octanagem rodariana – apresentado em Gramática da

Fantasia13

– fez com que os artigos de Gagnon e McGavock, respectivamente,

balizassem minha busca, ao fornecer os eixos de abscissa e ordenada que

norteariam e fariam o reconhecimento da terra a ser lavrada.

10

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. “Literatura: leitura de mundo, criação de palavra.” in:

YUNES, Eliana. (org.). Pensar a leitura: complexidade. 2ed. Rio de Janeiro / São Paulo: EdPUC /

Loyola, 2005. p.160. 11

TOLKIEN, J.R.R. “On Fairy-stories”. In: Tree and Leaf. Boston (EUA): Houghton Mifflin

Company, 1964. 12

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello.

São Paulo: Perspectiva, 2008. (Coleção Debates, v. 98). 13

RODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo: Summus editorial, 1988.

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O contato com a separata do artigo de Laurence Gagnon, publicado em

1972, e intitulado “Philosophy and Fantasy”, no periódico Children´s Literature:

the Annual of the Modern Language Association Division on Children´s

Literature 14

) ocorreu em biblioteca estrangeira especializada, a biblioteca

internacional da juventude, o maior acervo mundial de literatura infantil e juvenil,

em Munique, Alemanha. Trata-se de um diálogo permeado de humor que lembra

o estilo lobatiano, com uma dicção ácida assemelhada àquela que recorrentemente

travamos contato nas narrativas do Sítio do Picapau Amarelo, na voz da

iconoclasta boneca Emília, autodenominada filósofa, ao engendrar suas

Memórias. Antropofagicamente, homenageei tanto Monteiro Lobato quanto

Lawrence Gagnon ao cerzir artigo intitulado “Fantasia e Filosofia: uma estrada

diferente ou um diálogo estranho?” 15

, publicado na revista IHU (Revista do

Instituto Humanitas Unisinos), pela instituição de ensino e pesquisa UNISINOS,

Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

O outro esteio é o artigo “Agents or Reform? Children’s Literature and

Philosophy”, da pesquisadora Karen L. McGavock que foi publicado, em 2007,

no periódico Philosophia16

. Ao recuperar as origens históricas da literatura

infantil (a fim de conferir lastro a seu argumento, McGavock traça um recorte

temporal limitando ao Século XVIII), a autora resgata o fato de que as ideias

filosóficas de Jean-Jacques Rousseau sobre educação e infância estavam em voga.

Segundo a tese defendida por Karen McGavock – com a qual concordo – a

aproximação da Literatura Infantil com a Filosofia não possui apenas raízes

históricas mas se apresenta como perspectiva de estudos futuros, já que não

obstante sua proximidade anterior, foram áreas que sofreram um distanciamento

radical e que, agora, em tempos pós-modernos, sua linhagem e interrelação estão

começando a ser recuperadas. Dada a importância fulcral de seu texto, considero a

inclusão de extenso excerto como sendo de alta relevância.

Obras tomadas como seminais para o cânone da literatura infantil como Alice no

País das Maravilhas, Peter Pan e As Crônicas de Nárnia desafiam os leitores a

14

GAGNON, Laurence. “Philosophy and Fantasy”. Children’s Literature, vol. 1., 98-103. (1972). 15

MOURA, André. Disponível em versão online, acesso realizado em 07/08/2011, na url abaixo:

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2380&secao

=284. 16

McGAVOCK, Karen. Agents of Reform?: Children’s Literature and Philosophy. Philosophia

(2): 129-143.

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lidarem com conflitos, muitos das quais podem ser identificadas

retrospectivamente como exibindo características pós-modernas. Ao explorar

dilemas morais e espirituais nas suas escritas, as obras de Carroll, Barrie e Lewis

podem ser consideradas como contribuições às discussões sobre pós-modernismo

teódico. Os sucessos comerciais dos filmes baseados nos livros dos universos de

O Senhor dos Aneis e de Nárnia sugerem a existência de interesse na exploração

de dilemas morais, buscando preencher um anseio (talvez por tolerância e

compreensão) na sociedade como um todo. A literatura infantil possui um poder

quase divino de restaurar, de reparar e de curar todas as características do pós-

modernismo teódico mas difere da concepção mais geral do pós-modernismo que

separa, exacerba e expõe. A literatura infantil, portanto, oferece um enfoque

saudável e construtivo para trabalhar dilemas morais. Nas suas desconstruções da

infância, tais autores aproximaram a literatura infantil dos aspectos investigativos

tradicionalmente encontrados nos domínios da literatura adulta “mainstream”. 17

Ainda que faça brevíssima ressalva à expressão “quase divino”, atribuída

ao poder da literatura infantil de restauração, reparação e cura (?!) do pós-

modernismo, o trecho acima reforça o acerto da escolha de corpus literário para

esta tese. Optei por três autores estrangeiros “canônicos” para a literatura de

fantasia (Lewis Carroll, Clive Staples Lewis, Lyman Frank Baum) para realizar

interlocução com a obra lobatiana. Ainda que se tratem de livros não escritos em

nosso atual século, as contribuições de Carroll, Lewis e Barrie (breve

esclarecimento: McGavock, muito propriamente menciona o criador de Peter

Pan, um wonderlander fundamental – mas apesar da “Terra-do-Nunca” ser um

topos importantíssimo como instância crítica do real –, não incluí o universo do

escocês James Barrie neste meu estudo, por opção metodológica (foram quatro

escolhas de paixão, minhas leituras marcantes de infância, fossem leituras no

suporte livro ou leituras em outras mídias, como as versões televisivas de Nárnia

ou do Sítio do Picapau Amarelo), é um verdadeiro manancial de reflexão acerca

dos nossos tempos e costumes, nos quais vemos a dissolução dos limites tanto da

subjetividade infantil como da adulta, com uma progressiva infantilização do

17

McGAVOCK, Karen. Works deemed to be seminal to the canon of children’s literature such as

Alice’s Adventures in Wonderland, Peter Pan and The Chronicles of Narnia challenge readers to

work through conflicts many of which can be identified retrospectively as exhibiting postmodern

characteristics. By exploring moral and spiritual dilemmas in their writing, Carroll, Barrie and

Lewis’s works can be regarded as contributing to discussions on theodical postmodernism. The

successes of The Lord of the Rings and Narnia films suggest that there is an interest in exploring

moral dilemmas, fulfilling a need (perhaps for tolerance and understanding) in society at large.

Children’s literature has an almost divine power to restore, to repair and to heal, all characteristics

of theodical postmodernism but differing from the more widely held conception of postmodernism

which pulls apart, exacerbates and exposes. Children’s literature therefore offers a healthy and

constructive approach to working through moral dilemmas. In their deconstruction of childhood,

these authors have brought children’s literature closer to aspects of enquiry traditionally found in

the domain of adult mainstream literature. Agents of Reform?: Children’s Literature and

Philosophy. Philosophia (2): 129-143.

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adulto acompanhada em paralelo e a um só tempo, da adultização da criança, para

as discussões pós-modernas dão o estofo necessário para seguir nossa jornada.

Conforme se pode verificar quando McGavock afirma que

À medida que as fronteiras entre a infância e a vida adulta se tornam mais fluidas,

menos definidas, os debates passaram a serem centralizados na questão da

crescente redundância e da ausência de significado do próprio cânone da

literatura infantil, já que não haveria mais restrições quanto aos temas que

deveriam ser tratados pela literatura infantil. Apesar do fato da literatura infantil

claramente lidar com temas difíceis, ela continua a ser descartada da equação

crítica, não lhe é dado real crédito, sendo desconsiderada como simplista e

ignorada nas discussões filosóficas contemporâneas que lidem com ética, pós-

modernismo e o futuro da infância.18

A constatação de que a literatura infantil ainda não é considerada como

área séria de investigação, não obstante lide – desde sua gênese em seu berço da

oralidade ou modulada pela clave didática e edificante – com temas polêmicos,

provocativos e, por conseguinte, caros à existência, não é nenhuma novidade.

McGavock contribui com a novidade para o quadro atual da metacrítica, ao

vislumbrar que a ponte a ser estabelecida com a filosofia é, ao um só tempo, um

resgate ancestral e uma futura e natural decorrência:

Com a literatura infantil se aproximando da literatura “mainstream”, e

apresentando características proeminentes do pós-modernismo, é apenas uma

questão de tempo até que as discussões se engajem ativamente com a literatura e

se reconheça suas contribuições para a resolução e a reconciliação de dilemas

ontológicos.

Quando isso ocorrer, a filosofia e a literatura infantil se reconciliarão,

enriquecendo as pesquisas contemporâneas que lidem com ontologia, ética e

epistemologia e desenvolvendo pensamentos produtivos nestas áreas.19

18

As the boundaries between childhood and adulthood become more fluid, less certain, debate is

centring around whether the canon of children’s literature itself has become redundant or

meaningless since there are no longer any restrictions on which subjects can be treated in

children’s literature. Despite the fact that children’s literature clearly engages with difficult issues,

it continues to be left out of the critical equation, not given serious attention, disregarded as

simplistic and ignored in contemporary philosophical discussions concerning morality,

postmodernism and the future of childhood. 19

With children’s literature coming closer to mainstream literature, and exhibiting prominent

features of postmodernism, however, it is only a matter of time before philosophical discussions

actively engage with children’s literature and recognise its contribution to the resolution and

reconciliation of ontological dilemmas.

When this occurs, philosophy and children’s literature will re-engage, enriching contemporary

investigations of existence, ethics and knowledge and fruitfully developing thought in these areas.

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Assim, tanto em artigo recente – mais ortodoxo, mais acadêmico – quanto

em produção que possui mais de três décadas e meia – em criativa radicalidade

usando a paródia em estilo que se assemelha à sátira menipeia – a perspectiva de

aproximação, colaboração e diálogo entre a filosofia e a fantasia é salientada,

afastando a ideia muitas vezes corrente de que se trata de um disparate ou de uma

postura teórica falseada.

1.2 Mas afinal, qual é a pergunta?

Uma pessoa sem fantasia teria morrido de fome.

Bruno Munari 20

Mas afinal, qual seria a questão, a pergunta, a tese a defender, ou melhor, a

tese a investigar? O movimento circular de se aproximar da questão como que

desnudando as cascas de uma cebola não é gratuito ou aleatório. Nem mesmo a

imagem metafórica. O círculo hermenêutico gadameriano é uma pista, não apenas

da pergunta em si, como também da escolha do percurso que visa alcançar a

resposta. Seria a fantasia uma ferramenta filosófica? Seria a filosofia uma fantasia

de adultos, um jogo mental?

Antes mesmo de ter contato com a terminologia de Gianni Rodari em sua

Gramática da Fantasia o “binômio fantástico”, o par lápis-estrela perdurou (e se

imiscuiu para o livro de diálogos poéticos Lã de Vidro 21

). Como analogia, o lápis

e também a estrela serviriam como metáfora tanto para a filosofia quanto para a

fantasia, de uma maneira intercambiável. O lápis é um objeto do cotidiano com a

possibilidade de desenhar, escrever, de inscrever significações. Objeto concreto,

ao alcance do ser humano. Já a estrela é o brilho, a luz, o intangível. Objeto

20

MUNARI, Bruno. Fantasia. Lisboa: Edições 70, 2007. 21

“Dia 11”: Lápis raciocina: / – Todo indivíduo é dívida e idílio. / Estrela vaticina: /– Toda pessoa

é pérola e peçonha. MOURA, André. Lã de Vidro: diálogos poéticos. Il. Julie Pires e Marcelo

Ribeiro. Rio de Janeiro: Memória Visual. 2009.

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existente, porém quase que abstrato, intocável para o ser humano, mensurável

apenas por artefatos científicos, distantes do manuseio do cidadão comum.

Dessa forma, a fantasia, a literatura de fantasia (talvez refinando a

nomenclatura), seria na primeira possibilidade, o lápis, pois é a possibilidade de

criação, é o texto escrito. De posse do lápis, a criança, o adulto, o leitor e o

escritor podem construir mundos e enredos. Mundus est fabula. O mundo é uma

fábula. Já a filosofia seria o etéreo, o intangível, a estrela distante, remetendo à

imagem – um tanto estereotipada – do filósofo como sendo aquele indivíduo que

vive com a cabeça nos astros, em devaneios e digressões, tropeçando nos próprios

passos.

Em outra possibilidade, a filosofia é que seria o lápis, pois há o lado

lógico, ortodoxo, racional, rigoroso da filosofia que considera alguns critérios e se

fecha com alguns limites. Então, seria a fantasia, a estrela a ser alcançada, o sonho

que implode os limites do real, pois seu compromisso não é com a lógica, mas sim

como lúdico, com o enlevo, com a fruição de uma boa narrativa, com o enredo

encantado.

Tomando como baliza a epígrafe do designer e pensador da imagem, o

italiano Bruno Munari, utilizada no presente subcapítulo, ao considerar – e me

encontro em concordância com ele – a fantasia como visceral para a existência

humana, sigo com outra de suas reflexões, constante no mesmo livro Fantasia:

"Um estudo sobre a fantasia pode parecer a muitos uma tarefa impossível. Para

algumas pessoas a fantasia é capricho, bizarria, excentricidade. Para outras, é

ficção, no sentido de não realidade, desejo, génio, inspiração." 22

Atentemos para os termos empregados: tarefa impossível, capricho,

bizarria, excentricidade. A desqualificação da fantasia, da imaginação, do sonho,

da poesia – assunto sobre o qual oportunamente me debruçarei – possui raízes

históricas que remontam à civilização helênica. Como espécie de preâmbulo,

insiro abaixo a pergunta do estadunidense Richard Kearney, que fará às vezes de

mote que glosarei em seguida:

Por que filosofar sobre imaginação? Por que transformar um dos grandes dons da

existência humana em um objeto de investigação intelectual? Afinal de contas,

não é óbvio o que é imaginar? Já não o fazemos todos os dias, todas as noites, a

todo o momento que sonhamos, fingimos, brincamos, fantasiamos, inventamos,

22

MUNARI (2007). Op. cit. p.7.

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nos perdemos em devaneios, recordamos tempos passados, projetamos dias

melhores no porvir? Então por que não deixar como tem sido? Por que analisar?

Por que, nas palavras do poeta, matar para dissecar? 23

“Por que matar para dissecar?”, é o questionamento de Kearney e foi,

como mencionado o meu ponto de mutação em minha crise epistemológica,

ocorrida durante a epifania nas aulas de Metodologia Científica. O incômodo

crítico precisou se transmutar em ficção, retrabalhado no trecho de meu livro O

Rei do Manacá, adotado pelo Programa Nacional da Biblioteca da Escola para o

segmento do 6º ao 9º ano para as escolas públicas, no qual Maurício, o

personagem principal, questiona a mãe acerca da necessidade de ir à escola pela

primeira vez. Acredita piamente que já possui um cabedal de conhecimentos e ele,

que não está bem certo nem se considerarão o que ele sabe, nem se aquele saber

já não está bem encaminhado e suficiente, indaga sobre a necessidade de se abrir

um inseto (uma cigarra) para só então, verificar que ela não é uma caixinha de

música... A postura da personagem de não aceitar o estabelecido, de não

concordar com a ida para a escola pelo simples fato de ser imposição vinda do

adulto, de questionar aquilo que lhe é dado (ou imposto?) é o posicionamento que

sempre é lembrado, seja por estudiosos, seja por leitores de várias idades, como

sendo o modus operandi da boneca de pano Emília. A emblemática personagem

lobatiana mistura a criança com o filósofo, ao se indagar acerca do mundo que a

rodeia e propor, por intermédio da fantasia, um novo desenho para o que lhe dado.

A criança, como o filósofo (bem como o poeta, o griot, o clown, o velho, o louco),

é ser de exceção, excluído, pois não se encaixa na engrenagem vigente das

estruturas sistêmicas do mundo.

Como bem nos lembra François Laplantine e Liana Trindade, no estudo O

que é imaginário, a imaginação, muito antes do filósofo cartesiano francês

Nicolas Malebranche (1638-1715), já era suspeita de ser “a amante do erro e da

falsidade”. Portanto, não causa espanto, que, ainda hoje, estudar Fantasia, gere

certo incômodo, academicamente falando. No âmbito da Psicologia, é notória a

inquestionável relevância conquistada pela fantasia, a partir do corte

23

KEARNEY, Richard. Poetics of Imagining: From Husserl to Lyotard. New York: Routledge,

1991. Why philosophize about imagination? Why turn one of the great gifts of human existence

into an object of intellectual interrogation? After all, is it not obvious what imagining is? Are we

not doing it every day, every night, every time we dream, pretend, play, fantasize, invent, lapse

into reverie, remember times past or project better times to come? So why not just let it be? Why

analyse? Why, in the poet’s words, murder to dissect?

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epistemológico desferido por Sigmund Freud. Entretanto, ao que parece, os

estudos de fantasia como matéria validada academicamente permanecem mais

circunscritos à esfera da psicologia.

Este trabalho busca, em primeira instância, palmilhar as definições de

fantasia / fantástico e de imaginário / imaginação. Ao apresentar um panorama

inicial, já se lança na problematização acerca do tema. A conceituação do que é e

do que não é fantasia, a definição da diferença existente (ou não) entre fantasia e

fantástico, a investigação do que está delimitado como sendo do domínio do

imaginário e do que pertence ao escopo da imaginação, o questionamento

conjunto acerca da natureza do imaginário e da definição da imaginação e que

servirão como espécie de terraplanagem do campo de investigação, como

estabelecimento dos alicerces de uma crítica de literatura infantil que suporte (no

âmbito da resiliência) para os futuros embates de uma área que está sendo

intensamente repensada. Tal “redesenho” se dá por conta dos feixes das novas

configurações do leitor, que hoje se lança no mundo da leitura verificando que o

próprio Rabicó já está no iPad, quanto mais o Visconde de Sabugosa!

Mas qual é a premissa, qual é a tese a ser investigada, comprovada ou

descartada? Indo diretamente ao ponto: a tese busca refletir sobre a formulação:

evoco o aspecto fantástico da filosofia? Falo da fantasia como filosofia? Seria a

fantasia uma ferramenta filosófica? Isto é, a narrativa de fantasia (de maneira

específica) pode ser considerada como um recurso filosófico (nos seus

desdobramentos, isto é, ética, ontológica e esteticamente falando)? Ou ainda,

olhando de outro modo, a literatura de fantasia seria consequência de um modo-

de-ser investigativo, em termos filosóficos? Quais seriam as possibilidades do

pensamento estético de, ao decodificar o real no viés do belo, alcançar o

metafísico, o ético, o ontológico? Sabemos que o real só se abre ao humano

enquanto linguagem, então não seria a própria linguagem o modo de alcançar o

real? No estético, encontraríamos o real em si? Para além da dicotomia tradicional

(já questionada e, quiçá superada, em tempos de pós-modernidade) essência

versus aparência, a estética, ou a linguagem esteticamente modulada (e não

apenas como comunicação) alcançaria o que a razão não poderia apreender.

Conquanto os textos fantásticos possuam sua lógica interna, eles não necessitam

de comprovação dos dados – como a ciência – para cirurgicamente captar o cerne

dos fenômenos, das coisas.

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Investigando as decorrências da premissa, não seriam os topoi dos mundos

paralelos, das wonderlands, das realidades alternativas, muito mais do que

mundos secundários, mas instâncias de crítica à realidade circundante,

experimentação e proposição de novas alternativas à Realidade? Mais do que

“meros criadores de fantasia”, os wonderlanders (o inglês Lewis Carroll, o

irlandês Clive Staples Lewis, o estadounidense Lyman Frank Baum, o escocês

James Barrie, o brasileiro José Bento Monteiro Lobato, a sueca Astrid Lindgren,

os ingleses John Ronald Reuel Tolkien e Joanne Kathleen Rowling, dentre outros)

seriam críticos do real, real tomado como a realidade? Eis a pergunta. Ou uma

delas.

Para citar um exemplo nacional — e sem medo de incorrer em argumento

tendencioso, mas sem dúvida, Lobato é um dos mais revolucionários e ousados

pensadores fantasistas do real — o Sítio do Picapau Amarelo não se apresenta

como alegoria do Brasil e nem como o Brasil do devir (“O Brasil é o país do

futuro”), mas o Brasil que apenas pode ser capturado pelo discurso estético da

fantasia. Não quero afirmar que a racionalidade captura a aparência e a fantasia, a

essência. Fujamos, leitor(a), da dicotomia e da simples inversão ao pensamento

platônico. O que quero afirmar é que o Sítio do Picapau Amarelo é o Brasil em

sua multiplicidade, que a fantasia é capaz de fazer emergir um Brasil que é, a um

só tempo, essência e aparência, polifônico por definição (o que condiz com a

linhagem de filiação da fantasia que remonta à sátira menipéia), em condição

análoga à dualidade onda-partícula do conceito físico da natureza da luz.

O presente estudo visa aproximar, ou melhor dizendo, colocar em diálogo,

confronto e sinergia, a Fantasia e a Filosofia. Cumpre ressaltar de que não se trata

de qualquer fantasia, mas em um crivo específico, o que abordo é a literatura de

fantasia que, na maioria das vezes, é considerada como exclusivamente voltada

para crianças e jovens. Cabe aqui estabelecer uma breve ressalva. É bom que se

afirme – ainda que de passagem – que a própria fantasia, já devidamente

desqualificada tanto pelo senso comum quanto pelo meio intelectual, e também

parte de um gênero também bastante discriminado ou tomado como segmento

menor da arte literária (a literatura infantil), sendo até mesmo classificado por

alguns críticos como paraliteratura), é menosprezada frente à filosofia. A

Filosofia, área de saber historicamente classificada no extremo oposto, isto é,

valorizada academicamente, possui status de alta respeitabilidade intelectual.

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Trafegando na via da razão, da racionalidade, do rigor metodológico, a filosofia

“fantasia” o real – ou o imagina. Ou não?

Exatamente por não concordar com a desvalorização da literatura infantil

nem com a postura hiperestimada da filosofia, nossa proposta é do diálogo, do

embate dialético. Retomando, em moldura mais sintética, a linha de investigação:

seria a literatura de fantasia uma via de investigação filosófica e não apenas uma

ponte estética da literatura como forma de apreensão dos fenômenos, da

compreensão do Real, da realidade? Retomando Laplantine e Trindade, temos

uma sentença que se afina com a inquietação acima explanada: “O real é a

interpretação que os homens atribuem à realidade” 24

. A importância da

hermenêutica e a mediação da linguagem no processo investigativo estabelecem

importantes balizas para a presente análise e será analisada mais detidamente no

Capítulo 4 – “Verde ou Fantasia como horizonte de sentidos”.

Mais adiante em seu ensaio, abordando a questão fulcral do seu estudo,

Laplantine e Trindade tecem cotejo com o filósofo grego contemporâneo

Cornelius Castoriadis, que assevera que

O imaginário, portanto, de maneira geral, é a faculdade de pôr ou dar-se, sob a

forma de apresentação de uma coisa, ou fazer aparecer uma imagem e uma

relação que não são dadas diretamente na percepção. Ao contrário de Castoriadis,

que afirma ser o imaginário a capacidade de “produzir” uma imagem que não é e

nunca foi dada na percepção, consideramos que a imagem é formada a partir de

um apoio real na percepção, mas que no imaginário o estímulo perceptual é

transfigurado e deslocado, criando novas relações inexistentes no real.

Ainda que não seja o cerne dessa parte do trabalho, pois será tratada na

parte que aborda a imaginação e o imaginário, não posso me eximir de comentar,

ainda que em breves linhas, a interessante questão que se põe em relação ao

imaginário e à percepção para Castoriadis e para Laplantine & Trindade. A

questão da percepção é per si, um dos alicerces da mirada filosófica — questão

básica e imediata o mundo é assim como eu percebo ou é assim porque eu o

percebo desse modo? Não haveria realidade em si, mas percepção e interpretação

da realidade. Me aproximo mais da linha de pensamento de Castoriadis, com o

imaginário mais descolado da percepção como motor gerador das imagens, como

dimensão propositiva, pois a percepção e a interpretação se delineiam como mais

24

LAPLANTINE, François e TRINDADE, Liana. O que é o imaginário. São Paulo: Brasiliense,

2003. (Primeiros passos). p. 12.

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filiadas à razão, em oposição ao inconsciente e à livre associação das ideias, que

se coadunam com um calibre criativo mais potente.

A interação da filosofia com a literatura infantil, mais especificamente

com a fantasia é viés que perseguimos desde 1995, quando, ao cursarmos a

Especialização em Literatura Infantil; ali nos deparamos, durante a leitura do livro

De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o Modernismo, de Vasda Landers,

com o trecho que apontava a necessidade de se estudar a influência que a leitura

do filósofo alemão Friedrich Nietzsche teria tido na vida e na obra do criador do

Sítio do Picapau Amarelo. Nele, a autora demonstra perplexidade:

O impacto da filosofia de Nietzsche no pensamento de Lobato ainda não foi

estudado com o cuidado devido, o que é muito estranho, pois sendo um tipo de

filosofia que enfatiza a individualidade do homem, o entusiasmo que sente pelo

alemão poderia explicar a procedência de todas as suas “iconoclastias” diante da

vida e da arte.25

São nossos os grifos da citação de Landers. Seu estudo é digno de nota e

foi realmente desenvolvido com o sentido de contribuir para uma revisão do lugar

que ocupa a obra de Monteiro Lobato nos cânones da historiografia literária

brasileira e literatura comparada. Ao comparar as personagens Macunaíma e Jeca

Tatu, a pesquisa traz novas luzes críticas para o anátema imposto a Lobato:

conservador, passadista, retrógado, enfim, anti-modernista. Visto que as valorosas

contribuições modernistas tornaram-se uma espécie de dogma da teoria literária,

Lobato só mais recentemente, principalmente com os estudos iniciados por

Landers (na área da literatura) e o de Tadeu Chiarelli 26

(no campo das artes

plásticas) começa a ter seu estigma de antimodernista apagado. Ambos os

estudiosos apontam características notadamente modernistas em produções

lobatianas — quer seja enquanto crítico ou como criador — anteriores, inclusive,

aos trabalhos de Mário de Andrade ou Oswald de Andrade. Landers chega mesmo

a defender o argumento de que o criador do Sítio do Picapau Amarelo seria o

verdadeiro precursor do modernismo.

Tomo a sugestão da pesquisadora da Columbia University, brasileira

radicada nos Estados Unidos, como tema motriz para a inquietação que pautou a

25

LANDERS, Vasda Bonafini. De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o Modernismo. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. Grifos nossos. 26

CHIARELLI, Tadeu. Um Jeca nos vernissages: Monteiro Lobato e o desejo de uma arte

nacional. São Paulo: EdUNESP, 1996.

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pesquisa de mestrado em Ciência da Literatura27

e que culminou na defesa da

dissertação intitulada Monteiro Lobato: um leitor de Nietzsche. Fio de boa meada:

a ideia de um homem caipira, o Jeca Tatu, ser um filósofo de pé-no-chão bem

como a imagem de um saci filósofo. A primorosa definição “saci filósofo”

recuperada por Tânia Piacentini em artigo tornado público no site Dobras da

Leitura, que se confessa novamente encantada com a “opinião do saci sobre a

estupidez e a lerdeza dos homens para aprender, no início de suas conversas

altamente filosóficas sobre natureza, animais e homens, vida e morte” com

Pedrinho, no livro O Saci, é indício de que há convergência entre a fantasia e a

filosofia na visão de outros estudiosos.

De forma análoga à revisão crítica com o objetivo de reabilitar a obra de

Monteiro Lobato, recuperando o vigor e a pujança críticos, considero que os

estudos sobre fantasia necessitam de uma aproximação com outras áreas do

conhecimento, a fim de retirar da fantasia a pecha de alienada e alienante, acusada

de estar encerrada em guetos epistêmicos de grupos endógenos de pesquisadores.

Minha mirada é a que parte de um local fundante no qual os referidos escritores

de fantasia seriam alçados ao patamar de pensadores do real, já que suas obras são

dignas de serem analisadas criticamente como tratados de pensamento crítico. E

do que se move o filosofar, senão as investigações críticas realizadas a partir do

pensamento? Mesmo que, ao fim deste caminho investigativo, parafraseando o

artista, a pesquisa resulte em nada, nada do que pensava encontrar, como filosofa,

cantando, Gilberto Gil.

De qualquer forma, o processo de produção de conhecimento não convoca

a dogmas ou resultados a priori, mas conclama aberturas, novos olhares,

possibilidades que se descortinam no processo e não podem ser vislumbradas no

momento de partida. O ensaio de Laplantine e Trindade traz luz à discussão

acerca da atualidade e sua busca pelas trilhas do saber:

Vivemos na atualidade a busca de novos caminhos que possam conduzir à

compreensão e à superação da realidade. A imaginação tornou-se o caminho

possível que nos permite não apenas atingir o real, como também vislumbrar as

coisas que possam vir a tornar-se realidade. 28

27

Assim como a especialização em literatura infantil e juvenil, cursei o Mestrado em Ciência da

Literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro. 28

LAPLANTINE e TRINDADE, 2003. p. 7.

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A título de ilustrar o interessante cotejo entre críticos e criadores de

literatura infantil ao refletirem acerca do binômio fantasia-filosofia, convocamos

outros dois exemplos de escritores de épocas distintas, idiomas diferentes e estilos

diversos e que, não obstante, apresentam pensamentos bastante perfilados ao que

ora discutimos.

O primeiro é o guatemalteco Miguel Ángel Astúrias29

, Nobel de Literatura

de 1967, citado por François Laplantine e Liana Trindade, autores do já

mencionado estudo sobre imaginário. Em nosso estágio preliminar de

investigação, podemos afirmar que as elaborações teóricas mais acuradas têm sido

desenvolvidas por escritores, conforme poderemos atestar. Assim afirma Astúrias,

em espécie de epifania: “Dei-me conta de que existe uma realidade criada pela

imaginação e que se reveste de tantos detalhes que se torna ela também tão ‘real’

quanto a outra.” 30

Os limites entre a dimensão que denominamos como realidade e a

dimensão engendrada pela imaginação são tênues, intercambiáveis ou meramente

apenas uma questão de enfoque?

A segunda a ser convocada é a premiada escritora Ursula Kroeber Le

Guin, nascida nos Estados Unidos, em 1929, com vários títulos publicados de

fantasia e ficção científica. Mais conhecida como Ursula K. Le Guin, a autora

indica uma definição de fantasia que apresenta elevada percuciência, em minha

opinião: "É um diferente enfoque da realidade, uma técnica alternativa para

apreender e enfrentar a realidade. Não é antirracional, mas pararracional; não é

realista, mas surrealista, superrealista, uma elevação da realidade." 31

Eis, de forma condensada, exatamente a linha mestra do pensamento que

norteará nossa investigação: a fantasia como transposição da realidade, mas não

como transcendência ou alegoria, e sim como uma realidade em outro tom, para

empregar uma linguagem no âmbito musical. Uma sobrerrealidade. A realidade

apreendida na forma de percepção diversa, que distoa do estabelecido, mas que

não deixa de ter sua lógica própria. Não é que a fantasia seja irracional, não que

29

Miguel Ángel Asturias Rosales (1899-1974), escritor e diplomata guatemalteco, autor de Senhor

Presidente, Homens de Milho, Lendas da Guatemala, dentre outros. 30

LAPLANTINE e TRINDADE, 2003. Op. cit. p.7. 31

It is a different approach to reality, an alternative technique for apprehending and coping with

existence. It is not antirational but pararational; not realistic, but surrealistic, superrealistic, a

heightening of reality. (Todas as traduções das citações que constam do texto são de minha

autoria). LE GUIN, Ursula K. apud SANDNER, David. (2004)

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ela esteja na instância da desrazão. É um olhar tangencial, oblíquo à razão para

atingir meandros que a razão não alcança. E não se trata de acaso o fato das

elaborações mais precisas e sucintas acerca da teoria da fantasia partirem de

artistas, de escritores, de criadores de fantasia. Retomaremos em seção posterior –

o capítulo 2 - Laranja ou ‘Fancy-O-Rama’: caleidoscópio de fantasia – as ideias

não apenas de Ursula K. Le Guin, mas de outros fantasistas que não apenas

elaboraram seus textos de fantasia filosoficamente em dicção estético-criativa,

mas também o fizerem de forma mais ortodoxa, através de ensaio abordando o

próprio tema da fantasia.

Elegemos como pontos cardeais do nosso corpus literário, as obras de

quatro grandes fantasistas, renomados wonderlanders, com seus respectivos

mundos secundários, a saber: como foco primordial, a do brasileiro José Bento

Monteiro Lobato com a saga do Sítio do Picapau Amarelo; como corpus de

interlocução, os livros do mundo mágico de Oz, escritos pelo estadunidense

Lyman Frank Baum; também como material de interlocução, as aventuras de

Alice no País das Maravilhas e através do espelho, do inglês Lewis Carroll

(Charles Dodgson); visando enfoque comparativo, para verificar semelhanças e

diferenças, As Crônicas de Nárnia, do irlandês Clive Staples Lewis. Como

objetivos da tese, temos a discussão, a reflexão e a elaboração acerca de certos

conceitos teóricos como fantasia e filosofia, praxis e poiesis, mimesis e

imaginação, infância e imaginário, razão e realidade em determinados autores de

literatura infantil, visando (1) contribuir para uma Teoria da Fantasia e (2)

conferir maior lastro aos estudos de literatura infantil (sobrevém-me a indagação

ouvida tempos atrás – embebida em ironia mordaz – “a literatura infantil suporta

ser “crivada” de teoria pesada?, ela agüenta a verdadeira crítica, uma formulação

teórica hard ou são pesquisadores de segunda linha que, não possuindo fôlego

para alçar maiores voos se aninham em nicho seguro, autoindulgente e

endógeno?”).

Vale reiterar que a perspectiva assumida parte da compreensão das obras

dos criadores de Fantasia numa clave de leitura que os lê como “Críticos da

Realidade”, como investigadores de uma sobrerrealidade (realidade mais

profunda), como pensadores de suas respectivas mundividências, pois, ao

desenvolverem dimensões de mundos paralelos, não apenas estavam criticando os

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espaços que os circundavam, mas também propuseram outros caminhos (não

necessariamente otimistas; é possível que pudessem apenas enxergar distopias).

De saída, mesmo antes de esmiuçar o plano geral da obra, cabe explicar o

porquê da não inclusão da Terra Média de J.R.R.Tolkien (O Hobbit e a trilogia do

O Senhor dos Anéis). Seria, indubitavelmente, a alusão natural e óbvia, pois não

apenas é um universo muito conhecido, mas que foi criado por um teórico que é

um dos pilares da literatura de fantasia. Não incluí as aventuras dos “hobbits” por

conta de se tratar de um mundo de fantasia que não tem conexão, via de passagem

com o “mundo primário”, para usar uma terminologia tolkieniana (ainda que, para

muitos críticos, todo o universo d’O Senhor dos Anéis seja uma alegoria /

metáfora da Europa de sua época, envolvida no entre guerras, com o Mal

encarnado por Sauron, transposição do Nazismo e de Adolf Hitler). É uma

dimensão fechada em si. Não há buraco de coelho, tornado, guarda-roupa, portal

de qualquer ordem.

A questão do espaço e dos portais interdimensionais foi extensivamente

analisada pela estudiosa inglesa Farah Mendlesohn, em seu livro Retórica da

Fantasia (“Rhetorics of Fantasy”, ainda não traduzido para o português). Trata-se

de um tema que oferece um espectro amplo de investigações, que, neste caso,

apenas tangenciam a abordagem principal, no sentido que os loci desenvolvidos

pelos “wonderlanders” são os espaços narrativos nos quais emergem as reflexões

críticas acerca do que circundava os escritores. Mas a elaboração ficcional e o

estado da arte que se encontra a teoria literária contemporânea faz com que as

fronteiras estejam mais do que delgadas, postas em xeque. Um exemplo digno de

nota está no Sítio do Picapau Amarelo. Não obstante a existência do pó de

pirlimpimpim, Lobato esgarça os limites entre realidade e fantasia, o que, de

saída, já o posicionaria como à frente de todos os demais wonderlanders

escolhidos, daí o foco principal em sua obra e a interlocução com os demais

corpora.

Bem com a questão do espaço, outras questões tangenciais devem ser

discutidas como moldura da investigação como, por exemplo, a infância como

ponte para a fantasia; a infância como espaço de experimentação filosófica e não

como mera etapa cronológica; a fantasia como sobrerrealidade, entre outras.

Há tempos que os escritores promovem a dissolução dos gêneros literários

e mesmo os críticos literários – por definição, sempre a reboque dos artistas – já

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tentam capturar a multiplicidade da obra de arte. Contudo, para abordar a fantasia

em um enfoque que se propõe ir contra séculos de desqualificação, numa possível

instância de apreensão de conhecimento, há que se examinar o objeto, a fantasia,

não com o mesmo antigo olhar que tradicional (em razão das raízes platônicas de

nossa civilização judaico-cristã) e dicotomicamente aparta realidade e fantasia.

Uma postura mais do que heterodoxa, uma manobra radical. Meu enfoque crítico

radicaliza uma tomada de posição ao considerar que toda análise acerca do

fenômeno literário ou mesmo qualquer investigação sobre o objeto artístico,

demanda uma postura epistemológica que deve apresentar criatividade e ousadia

na sua metodologia.

Há que se olhar de outro lugar, a fim de poder vislumbrar as relações e

trocas entre as duas instâncias. Para tanto, a tese assumiria em sua própria forma,

uma dicção híbrida entre um texto de uma tese, duro e ortodoxo, e um texto mais

arejado, como que levantando as possibilidade e não fechando as portas teóricas,

literatura de experimentação. Que é o que defendo, como lugar eminentemente

ocupado pela literatura de fantasia para crianças.

A intenção inicial era abolir os contornos adotando um viés que concebe a

arte como um caminho de investigação em si, amalgamando forma e conteúdo em

detrimento de um enfoque mais tradicional. Abordagem convencional que não

alcançaria toda a dimensão epistemológica de um texto radicalmente forte como

consideramos serem os textos de qualidade para crianças e jovens. A ideia seria

mesmo apresentar o estranhamento, o deslocamento, o incômodo de se olhar

criticamente de uma maneira incomum. Empregar a filosofia – saber respeitado e

prescrito na academia – para dialogar com a literatura infantil – saber ainda pouco

respeitado e outrora proscrito na academia – , gênero ainda hoje lutando por seu

lugar ao sol na universidade. Obviamente, a situação evoluiu muito nas últimas

três décadas. Todavia, é ainda estarrecedor que o nível mais alto de formação

acadêmica em teoria e crítica da área seja o de pós-graduações lato sensu. Não se

encontra um mestrado em literatura infantil, quanto mais um doutorado em

literatura infantil num país que possui autores escritores e autores ilustradores

premiados e reconhecidos internacionalmente como, por exemplo, Lygia Bojunga,

Bartolomeu Campos de Queirós, Angela Lago, Rui de Oliveira, Roger Mello, para

citar, minimamente, uma pletora de luminares. Sem dúvida que os trabalhos têm

surgido, simpósios, congressos e publicações não cessam de emergir e os novos

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críticos, jovens pesquisadores sendo formados, mas são doutores em letras,

educação, artes e design, psicologia ou comunicação que optam por fazer suas

pesquisas convergirem para o tema. As grades dos créditos das pós-graduações

não são exclusivamente de literatura infantil e juvenil como temos em outras

áreas, indo mais profundamente no assunto. A tese visa, tão somente, contribuir

para a mudança da forma de se encarar a literatura para crianças e jovens. Trata-se

de um objeto de estudo rico e plural, completo e complexo, que necessita de

crítica aprofundada (e por assim dizer uma autocrítica, uma metacrítica), e não de

uma postura de vitimização ou de se fechar em uma espécie de quisto que só

reforça as mesmas teorias e abordagens metodológicas.

1.3 O feitio da trama

Ainda que a universidade tenha como compromisso demonstrar novos

aspectos do saber para a sociedade e o pesquisador acadêmico não esconda seu

caráter vaidoso ao exibir (ou desejar exibir) criatividade pujante, não se pode

menosprezar que a academia é uma instituição que se alimenta de ritos, que bebe

da manutenção de formas conhecidas. É necessário ousar dentro da moldura

aceitável, dentro do que é permitido. Apresento, por conseguinte, a forma como se

estrutura esta tese de doutorado, neste subcapítulo. Ao falar de texto, é sedutor

para todos os envolvidos com o tema, recorrer à imagem recorrente, beirando o

desgaste de “texto enquanto estrutura tecida”, como organização costurada, urdida

trama. Mostrar o feitio da trama, a configuração deste trabalho é não apenas o

esperado, mas uma atitude cordial e metodologicamente necessária, a fim de se

obter uma real interlocução para as discussões ulteriores. O presente capítulo, o

primeiro, intitula-se “Vermelho ou De como cheguei aqui” e aborda um alinhavo

entre biografia e bibliografia ativa e passiva, situando o problema que constitui a

viga mestra da tese. Fato é para fazê-lo, parte de circunvoluções que

progressivamente vão se aproximando do cerne da questão. Em seguida, o

segundo capítulo “2. Laranja ou ‘Fancy-O-Rama’: caleidoscópio de fantasia”,

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como se percebe, almeja ser um panorama, traçar um espectro das concepções do

termo “fantasia” ao longo do tempo e nas suas várias linhas de pensamento.

Obviamente, a constatação analítica de que os limites são tênues e até mesmo

esgarçados, de maneira consciente, impeliu-me a recuperar a imagem dinâmica e

de mutante do caleidoscópio.

Discutir a diferenciação bem como a indiscernibilidade entre fantasia e

imaginação, entre imaginação e imaginário, com o viés que considera – contudo

não se limita a – imaginário significando coletivo de imagens, é o que pauta o

começo do terceiro capítulo deste estudo, que foi nomeado como Amarelo ou

Imaginário: relicário de imagens. Como que preparando o terreno para a reflexão

crítica que culminará com o derradeiro capítulo em termos de reflexão, o

“capítulo amarelo” trata de uma poética do imaginário, uma poética do imaginar,

convocando para o debate, a investigação hermenêutica tributária da

fenomenologia de Husserl, passando por Sartre, Bachelard, Merleau Ponty,

desembocando nas ideias desenvolvidas por Paul Ricoeur acerca da interpretação.

A etapa subsequente, explicitada na seção seguinte, intitulada de “4. Verde ou

Fantasia como horizonte de sentidos” parte do pensamento de extração

gadameriana, o que nos leva a tensionar as linhas de fronteira da realidade e da

fantasia, pondo em questionamento o postulado mimético da arte literária,

evocando as formulações do pensamento do Paul Ricoeur, discutidas em “Tempo

e Narrativa”, “A metáfora viva” e em “Do texto à ação”.

Como a última parte da tese – 7. Violeta ou Páginas percorridas – é a

apresentação das páginas percorridas durante o percurso, a tradicional seção

ortodoxamente chamada de Bibliografia, temos que “5. Azul ou Criadores de

mundos paralelos, críticos do próprio mundo” e “6. Anil ou Fantasia: o encanto

crítico” são os dois últimos capítulos de discussão. A quinta parte desta tese lida

com a análise dos textos literários propriamente ditos, de posse do que foi

estabelecido como mapa da situação existente, bem como as interações e as

diferenciações entre as abordagens dos respectivos crivos críticos. Recordando,

nosso corpus literário foi baseado em uma opção metodológica que privilegiou os

textos de minha predileção como leitor criança, por compreender que a escolha

infantil fosse um indício de um olhar atento crítico, germe do investigador

maduro. Os autores foram o inglês Lewis Carroll, o estadunidense Lyman Frank

Baum, o irlandês Clive Staples Lewis e o brasileiro José Bento Monteiro Lobato,

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luminares da narrativa de fantasia para crianças. Seus universos estão

verdadeiramente plasmados no inconsciente coletivo. Ainda para aqueles que

nunca tiveram a chance (ou o desejo) de conhecer suas obras, é certo que todos

possuem uma certa familiaridade com os personagens (seja o coelho branco, a

lagarta ou o chapeleiro louco), o espaço (o Sítio de Dona Benta) ou alguma

situação (crianças que entram num guarda-roupa que se abre para um outro

mundo no qual o inverno nunca cessa ou um furacão que arranca uma menina

interiorana e seu pequeno cachorro do seu lar).

Eleitos como objetos de análise, os textos seminais de Lyman Frank Baum

(O mágico de Oz, de 1900) e de Clive Staples Lewis (O leão, a feiticeira e o

guarda-roupa, de 1950) são justificados pelos seguintes argumentos. O mundo de

Oz possui nada mais do que 14 títulos escritos pelo criador do Espantalho, do

Leão Covarde, do Homem de Lata, de Dorothy Gale e de Totó. Além disso, após

a morte de Baum, duas linhagens de livros seguiram com uma imensa profusão de

histórias. A escritora Ruth Plumly Thompson seguiu o cânone estabelecido por

Baum, com toda a atmosfera, apesar de seu estilo ser naturalmente distinto.

Desnecessário afirmar que a quantidade tornou a literariedade muito rarefeita, já

nos quatorze livros iniciais, chamados de originais e oficiais, os livros

“canônicos”. Até hoje são publicados livros ficcionais sobre o mundo de Oz,

explorando uma vertente da literatura de fantasia que transbordou do segmento

editorial e alcança desdobramentos no mercado voltado para a infância. Por ora,

pode se fazer o paralelo com o universo do Sitio do Picapau Amarelo caso

foquemos na profundidade com que tal imaginário criado por um indivíduo

estabeleceu raízes no inconsciente coletivo nacional, Baum principalmente no

Estados Unidos, Lobato predominante no Brasil.

As Crônicas de Nárnia não padecem do mesmo desdobramento. Os sete

livros que compõem a coleção foram escritos por Clive Staples Lewis em

sequência e ainda que tenham sido criticados por seu amigo J.R.R. Tolkien (do

grupo de discussão Inklings, da Universidade de Oxford), não sofreram alterações

nem receberam adendos ao seu universo. O primeiro livro a ser escrito foi O leão,

a feiticeira e o guarda-roupa, carro-chefe e, de certa maneira, o texto que

condensa toda a poética de Nárnia. É, em minha opinião, o que explicita melhor a

perspectiva crítica que se vale da criação ao ter a criança como ponto de partida (o

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olhar inaugural, ousado, propositivo) e também local de chegada (destinatário

principal, sem entrar na discussão do leitor almejado pela literatura para crianças).

A obra paradigmática de Lewis Carroll para o conjunto da sua bibliografia,

para sua biografia e também modelar para a literatura para crianças e jovens, para

a psicologia, para a física (muitos hão de se lembrar de Alice no país dos quarks,

por exemplo), filosofia, sociologia e história das mentalidades é obviamente Alice

no país das maravilhas. O termo “wonderland” se espalhou de tal maneira que é

difícil querer restringi-lo aos estudos de literatura. Contudo, Alice através do

espelho, o texto que considero nem uma continuação nem obra-irmã do livro mais

conhecido, mas sim verdadeira faceta especular, indissociável, costumava ficar

eclipsado. Recentemente, com a adaptação para o cinema numa leitura muito

peculiar do diretor de cinema Tim Burton, retomou-se o interesse. Como objeto

de estudo, priorizei os dois livros, deixando de abordar as desventuras de Bruno e

sua irmã fada Silvia contantes em “Sylvie and Bruno / Sylvie and Bruno

Concluded”, lançados no Brasil em uma publicação intitulada Algumas aventuras

de Sílvia e Bruno.

Por último, mas não menos importante, pincei nos livros da coleção de

Monteiro Lobato que apresenta as peripécias do Sitio do Picapau Amarelo, os

momentos mais inspiradores e, novamente, os de minha intensa predileção. A

relação com a obra como o mágico das sobrancelhas em til vem, como já

explicitado, de longa data. Anterior ao ambiente acadêmico. Como se sabe, o

aspecto inovador da obra de Lobato já foi repetido à exaustão pelos especialistas,

mas ainda não é suficiente. De certa maneira, Lobato continua tão desconhecido

quanto mal lido. As abordagens de leitura e interpretação, de análise e

comparação são quase sempre auto-laudatórias e com poucas diferenças. Elege-se

uma linha crítica incensada pela universidade, escolhe-se uma obra que se encaixa

na teoria e buscam-se os trechos que reforcem o que se quer dizer, parafraseando

com maestria para fazer uma costura bem feita.

Tomar a obra literária como ponto de partida uma reflexão mais vigorosa,

que abale as certezas metodológicas, como plataforma de lançamento para voos

epistemológicos mais altos e ousados não é postura usual. De qualquer maneira,

os livros elencados para fazer o contraponto nacional aos demais lados do

quadrilátero de autores foram Reinações de Narizinho, o abre-alas da extensa série

do títulos que contam as aventuras da turma da boneca recheada de macela; O

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Picapau Amarelo, por conta do fato de trazer, utilizando o recurso da

intertextualidade, não simplesmente todos os personagens da literatura clássica,

dos contos de fadas e do folclore, discutindo não só a referencialidade do texto,

mas a própria condição de alteridade, conceito tão importante para a visão da

criança quanto para a do filósofo; O Saci, narrativa que uma leitura ligeira pode se

prender ao estatuto de história de aventura, mas que tem como alicerce uma

profunda discussão que questiona o antropocentrismo em grande radicalidade; e,

por último, Memórias da Emília, que é um dos mais interessantes livros, pois

retoma passagens das obras anteriores e o faz em clave de dúvida, já que Emília

reconta sua biografia, retrabalhando as partes que lhe parecem menos dignas ou

aborrecidas, discute acerca da ficcionalidade da História. Sagazmente, Lobato,

que apresentava uma grecofilia assumida ao longo de sua vida literária e de

produção de idéias – um dos traços da influência nietzschiana32

–, opta por

realizar um livro que está predominantemente estruturado como diálogo. Em

breve viés histórico, tem-se que o diálogo é a forma eminentemente filosófica.

Diria até paradigmaticamente filosófica.

O capítulo “6. Anil ou Fantasia: o encanto crítico”, ocuparia o lugar de

conclusão, caso esta tese se propusesse a conduzir a um conjunto de leis ou

postulados que serviram, doravante, como modelo a ser aplicado nas mais

variadas narrativas que apresentassem passagens fantásticas ou mesmo que se

mostrem ser, em essência, “pura” fantasia. Não é o caso. O objetivo da tese que

está explicitado no capítulo é trazer à tona o incômodo intelectual que é não se

considerar a fantasia (em especial, neste recorte desta tese de doutorado, a fantasia

na forma de literatura) como uma forma de apreensão da realidade e

transpassando esta viga de pensamento, a não aceitação da razão como instância

legitimada e sobrepujante de investigação filosófica. Torna-se claro para mim, que

é um início de empreitada que não se restringirá ao presente estudo. E que só se

configura como passível de atribuição de sentido caso haja interlocução com o

maior número possível de atores. Dentro e fora dos centros de pesquisa e

produção de saber prescrito pela sociedade, mas também com crianças, jovens e

adultos em ambientes de sala de aula e de interação como oficinas e encontros

triangulares com o livro, o leitor e o autor.

32

MOURA, André. Monteiro Lobato, um leitor de Nietzsche. Dissertação de mestrado. Rio de

Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.

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Recuperando a frase de Robert Bloomfield escrita em 1817, também

reforço a cada instante minha escolha afetiva, opção profissional, posição

ideológica e postura filosófica; em suma, meu apreço e comprometimento pela

literatura infantil: “quanto mais eu vivo, mais estou convencido da importância

dos livros infantis”.

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