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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP Rafael da Gama ―Por uma religião nacional‖: a separação entre Igreja e Estado e a disputa religiosa entre católicos e protestantes em Belém do Pará (1889-1931) Doutorado em História São Paulo 2019

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP

Rafael da Gama

―Por uma religião nacional‖:

a separação entre Igreja e Estado e a disputa religiosa

entre católicos e protestantes em Belém do Pará (1889-1931)

Doutorado em História

São Paulo 2019

2

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP

Rafael da Gama

―Por uma religião nacional‖:

a separação entre Igreja e Estado e a disputa religiosa

entre católicos e protestantes em Belém do Pará (1889-1931)

Doutorado em História

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em História, sob a orientação do Prof. Dr. Fernando Torres Londoño.

São Paulo 2019

3

Banca Examinadora

________________________________________

________________________________________

________________________________________

_________________________________________

_________________________________________

4

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Também contou com apoio da PUC-SP/Fundasp.

5

AGRADECIMENTOS

Mesmo com as diversas batalhas travadas para a construção e finalização

dessa pesquisa, tenho muito mais a agradecer do que lamentar. Foram diversas

experiências positivas que tive nessa trajetória e gostaria de manifestar aqui, neste

espaço, os meus mais profundos agradecimentos.

A começar agradecendo a Deus. Não apenas por ter me sustentado até

aqui, mas, principalmente, por ter me dado a oportunidade de conhece-lo

intimamente, e me amado como um Pai ama um filho, mesmo com meus pecados e

falhas. Desde o dia 10/03/2011 eu tenho seguido a Jesus Cristo como meu Senhor e

Salvador, e tem sido os 8 anos mais intensos e felizes que já vivi. Agradeço a Deus

por tudo o que foi feito até aqui. A Ele toda a honra e glória.

Gostaria de agradecer a minha mãe, Maria Amparo da Gama, por ter

acreditado e torcido por mim durante toda essa trajetória. Sempre procurou investir

em mim com os poucos recursos que tinha, e sou muito grato a esse investimento.

Parte do meu esforço em construir esse trabalho foi para tentar retribuir, ainda que

pouco, todo o amor, carinho e educação que ela me proporcionou por todos esses

anos. Te amo muito, mãe.

Agradecer a grandes amigos que fiz em São Paulo, Mateus Prates Mori e

Mateus Faria Bueno, meus ―amigos mais chegados que irmãos‖, estes dois últimos,

também tive a honra de ser padrinho de casamento de ambos. Vocês junto as suas

esposas, Thais Mori e Martha Bueno se tornaram como uma família para mim. Amo

muito vocês.

Agradecer ao Mateus Cunha pela parceria em me acompanhar neste ultimo

ano que passou nas loucas visões de Reino que Deus me dá. Está sendo

abençoador demais caminhar junto contigo.

Quero agradecer a Igreja Presbiteriana de Pinheiros pela acolhida desde

quando cheguei em São Paulo em 2012. Ao lado de vocês cresci muito na fé e

conheci irmãos maravilhosos que me acolheram aqui nessa nova cidade em que

migrei por esses anos. Sou grato a Deus pela vida de vocês.

Agradeço aos amigos da minha nova república: Roberto Tsukino e Saulo

Reis. Não deve ser fácil aguentar alguém tão ansioso, desligado e notívago,

dividindo o quarto e a vida em um apartamento pequeno. Quantas vezes já acordei o

Saulo Reis por entrar no quarto às 4h da manhã após ficar até essas horas

6

escrevendo esta tese. Agradeço muito a vocês pela amizade, compreensão e

companheirismo que vocês têm demonstrado para comigo nesses últimos meses.

Quero agradecer ao GEPP- Grupo de Estudos de Protestantismo e

Pentecostalismo. Nunca participei de um grupo de pesquisa tão maduro, com

análises tão boas e consolidadas e, ao mesmo tempo, tão divertido, leve e

descontraído. Foi bom demais caminhar esses quatro anos com vocês. Não me

sentia em um grupo de pesquisa somente, mas em um grupo de amigos, o que

melhorava inclusive a própria produtividade do grupo. Sou grato por esses quatro

anos ao lado de vocês aprendendo e me divertindo bastante.

E continuando a lembrar dos amigos que fiz na PUC-SP, quero agradecer

aos grupos cristãos que atuam dentro da universidade, tentando ser luz do mundo e

sal da terra. Em especial o Dunamis Pocket, a Pastoral Católica Universitária e a

Aliança Bíblica Universitária (ABU-PUC), cresci na fé ao lado de vocês. Estar com

vocês em comunhão e trabalhando para a promoção do Reino de Cristo foi

abençoador demais. Contem sempre comigo para amizades, orações e ações.

Gostaria de agradecer a CAPES, que financiou esta pesquisa. Sem esse

programa de financiamento essa pesquisa não se realizaria. Muito obrigado.

Quero agradecer a banca pela aceitação do convite, eu espero que tenham

apreciado a leitura.

E, por fim, quero agradecer ao meu orientador, Fernando Torres Londoño.

Agradeço por sempre acreditar na proposta da pesquisa e neste pesquisador. Pois

foram pouco, em vida, que acreditaram neste último. Agradeço por se esforçar em

me ajudar, seja na pesquisa ou em problemas que vão além da relação

orientador\orientando. Para mim, não foi apenas um orientador, mas um amigo.

Deus colocou em meu coração um carinho muito grande por esse brilhante

professor\orientador de sotaque espanhol. Sempre terá minha amizade, carinho,

respeito e orações.

Foram quatro anos de muita luta, porém de muita alegria. Agradeço todas as

experiências que tive e pessoas que eu conheci nesse trajeto. ―Em tudo dai graças.‖

(1 Tessalonicenses 1:8)

7

De igual modo a igreja, seja ela católica romana ou evangélica, deverá impor-se pelo seu valor moral sem precisar do prestígio oficial, tendo deante de si um terreno franco, em uma atmosfera livre, para manifestar ao povo os seus princípios e agir de acordo que não ofenda a moral pública e as leis do paiz. “Dae a cezar o que é de cezar e a Deus o que é de Deus”. [...]1

1 NORTE EVANGÉLICO. Garanhuns, 1925.

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RESUMO

GAMA, Rafael da. “Por uma religião nacional”: a separação entre Igreja e Estado e a

disputa religiosa entre católicos e protestantes em Belém do Pará (1889-1931). Tese

(Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2018.

Nesta pesquisa, procuraremos analisar o Cristianismo em Belém do Pará a partir da

disputa religiosa de suas principais vertentes na cidade: o Catolicismo e o

Protestantismo. A temporalidade eleita (1889-1931) é significativa pois tem como marco

o fim do império e o início da Primeira República no Brasil e, consequentemente, a

separação oficial da Igreja Católica do Estado Brasileiro. Com isso, notamos que

católicos e protestantes estruturam seus discursos e práticas religiosas influenciados por

este novo momento político que se inicia. Através da análise de periódicos, veículos da

grande imprensa, livros e registros de memória produzidos no período, analisaremos a

disputa religiosa entre católicos e protestantes na cidade, que tomava proporções

variantes do campo simbólico ao físico, em uma conjuntura de separação entre Igreja e

Estado no novo regime político representado pelo regime republicano. Procuraremos

analisar uma dinâmica religiosa específica presente em Belém do Pará, com o seu

catolicismo majoritário e uma fervorosa devoção a Virgem de Nazaré. Um

protestantismo minoritário, mas melhor consolidado na cidade e sempre atuando como

agentes ativos, seja a nível religioso, social ou político, e a gênese movimento

pentecostal surgida no período, como uma vertente do protestantismo que trazia

consigo elementos sobrenaturais que conseguiam dialogar com o catolicismo popular da

região. Nesse cenário político-religioso específico, Católicos e Protestantes revelam

querelas entre si que vão além de embates á nível teológico, nos mostrando uma

disputa pelo reconhecimento de serem vistas como as principais religiões da nação. Em

uma formação política de ausência á uma religião oficial, Católicos e protestantes

procuram representar-se como soluções salvíficas não apenas no âmbito religioso, mas

como elementos importantes para a prosperidade do país, dialogando com um discurso

político e assim, procurando ser reconhecidas pelo Estado e pela sociedade como as

verdadeiras religiões nacionais.

Palavras-chave: catolicismo, protestantismo, separação Igreja-Estado, República,

religião nacional.

9

ABSTRACT

GAMA, Rafael da. “For a national religion”: the separation between Church and State

and the religious dispute between catholics and protestants in Belém do Pará (1889-

1931). Thesis (Doctorate in History), PUC-SP, São Paulo, 2018.

In this research, we will try to look into Christianity in Belém do Pará from the religious

dispute of its main aspects in the city: Catholicism and Protestantism. The selected time

(1889-1931) is significant because it has as a milestone the end of the empire and the

beginning of the First Republic in Brazil and, consequently, the official separation of the

Catholic Church from the Brazilian State. With this, we note that Catholics and

Protestants structure their discourses and religious practices influenced by this new

political moment that begins. Through the analysis of periodicals, means of the great

communication like books and records of memory produced in the period, we will

analyze the religious dispute between Catholics and Protestants in the city, which took

great proportions from the symbolic field to the physical one, in a conjuncture of

separation between Church and State in the new political regime represented by the

republican regime. We will try to analyze a specific religious dynamic present in Belém

do Pará, with its majority Catholicism and a fervent devotion to the Virgin of Nazareth. A

minority Protestantism, but better consolidated in the city and always acting as active

agents, whether religious, social or political, and the beginning of the Pentecostal

movement that emerged in the period, as a side of Protestantism that brought with itself

supernatural elements that managed to dialogue with the Catholicism that was popular in

the region. In this specific political-religious scenario, Catholics and Protestants reveal

quarrels among themselves that go beyond clashes on the theological level, showing us

a dispute for the recognition of being seen as the main religions of the nation. In a

political formation of absence from an official religion, Catholics and Protestants seek to

represent themselves as salvific solutions not only in the religious sphere, but as

important elements for the country's prosperity, dialoguing with a political discourse and

thus seeking to be recognized by the State and by society as the true national religions.

Keywords: catholicism, protestantism, Church-State separation, Republic, national

religion.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................................................................ 13

CAPÍTULO I – BELÉM DO PARÁ: CATOLICISMO, ESTADO E

HEGEMONIA SOCIAL......................................................................................... 21

1.1 ―A DEVOÇÃO MARIANA‖: CATOLICISMO E HEGEMONIA SOCIAL........... 21

1.2 ―ENTRE MARIA E MARRIANE‖: O CATOLICISMO NO BRASIL REPÚBLICA......................................................................................................... 35

1.3 ―A PALAVRA‖: A IMPRENSA COMO INSTRUMENTO DE HEGEMONIA..... 54

CAPÍTULO II – “UMA FÉ IGNORANTE”: O PROTESTANTISMO NO PERÍODO REPUBLICANO.................................................................................. 73

2.1 ―A VERDADEIRA IGREJA‖: UMA BREVE ANÁLISE DO PROTESTANTISMO............................................................................................ 73

2.2 ―UM CRISTIANISMO MAIS PURO‖: O PROTESTANTISMO NO BRASIL.... 82

2.3 ―DISTRIBUINDO BÍBLIAS NO RIO‖: O PROTESTANTISMO NO PARÁ....... 90

2.4 ―AS IGREJAS ESQUECIDAS‖: O PROTESTANTISMO NO BRASIL REPÚBLICA EM BELÉM...................................................................................... 95

2.5 ―BATISMO DE FOGO‖: A CHEGADA DO MOVIMENTO PENTECOSTAL EM BELÉM........................................................................................................... 114

2.6 ENTRE SUECOS E BRASILEIROS: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE RUPTURAS E PERMANÊNCIAS DO PROTESTANTISMO NO BRASIL REPÚBLICA NO PARÁ........................................................................................ 134

CAPÍTULO III – ENTRE A AUTORIDADE RELIGIOSA E A AUTONOMIA DO LEIGO: CATÓLICOS, PROTESTANTES, PENTECOSTAIS E O “CAMPO RELIGIOSO” EM DISPUTA................................................................................. 138

3.1 A DISPUTA SIMBÓLICA ENTRE CATÓLICOS E PROTESTANTES............ 139

3.1.1 “A desconstrução histórica”: a depreciação da figura de Lutero........ 139

3.1.2 Bíblia x Maria............................................................................................. 144

3.1.3 “Ignorantes e tolos”: o embate entre as lideranças religiosas

locais.................................................................................................................... 157

3.2 ―MATEM O MISSIONÁRIO‖: EMBATES E TENSÕES ENTRE CATÓLICOS E PENTECOSTAIS NO PARÁ............................................................................. 171

3.2.1 “Da violência simbólica à física”: tensões e conflitos entre católicos e pentecostais..................................................................................................... 172

3.2.2 “Delegado pune os crentes”: catolicismo, protestantismo e Estado.. 183

11

CAPÍTULO IV – “O APOLOGISTA CHRISTÃO”: A SEPARAÇÃO ENTRE IGREJA E ESTADO E A PRISÃO DE JUSTUS NELSON.................................. 190

4.1 ―A SEPARAÇÃO ENTRE IGREJA E ESTADO‖............................................. 190

4.2 ―O ULTRAJE À RELIGIÃO CATÓLICA‖: A PRISÃO DE JUSTUS

NELSON............................................................................................................... 202

CAPÍTULO V – CRISTIANISMO E REPÚBLICA: A DISPUTA PELA “RELIGIÃO NACIONAL”..................................................................................... 226

5.1 ―A RAINHA DAS NAÇÕES‖: O CATOLICISMO E A REPRESENTAÇÃO DA IGREJA COMO REDENTORA SOCIAL DA EUROPA................................... 227

5.2 ―OS PROTESTANTES DO BRASIL SÃO ANTIPATRIOTAS‖: A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CATOLICISMO COMO REDENTOR NACIONAL........................................................................................................... 235

5.3 ―A REPÚBLICA CHRISTA‖: PROTESTANTISMO E POLÍTICA..................... 242

5.4 ―O CRISTO REDENTOR E O ENSINO LEIGO‖: CATOLICISMO, PROTESTANTISMO E ESTADO REPUBLICANO.............................................. 259

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 281

REFERÊNCIAS.................................................................................................... 285

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Vista parcial da Basílica a partir do altar-mor.......................................... 44

Figura 2 - Porta de bronze na entrada da Basílica.................................................. 44

Figura 3 - ―Clássico tímpano da Basílica‖................................................................ 46

Figura 4 - ―Precioso mosaico de abside‖................................................................. 46

Figura 5 - ―Vista do altar-mor todo em mármore de Carrara‖.................................. 47

Figura 6 - ―A famosa Berlinda em que nossa Senhora de Nazaré, todos os

anos, durante o Círio, percorre as principais ruas de Belém.‖................ 48

Figura 7 - ―Monumento à República‖ em Belém, ao lado do Teatro da Paz............ 52

Figura 8 - Basílica ainda em construção, 1920........................................................ 53

Figura 9 - Solenidade do início da construção da Basílica de Nazaré,

em 1909.................................................................................................. 53

Figura 10 - ―O Biblismo‖, obra do Padre Dubois, 1921............................................ 67

Figura 11 - ―A devoção à Virgem de Nazaré, em Belém do Pará‖, do

Padre Dubois........................................................................................ 68

Figura 12 - Folha do Norte, 14/08/1931................................................................... 69

13

APRESENTAÇÃO

―É surpreendente que o cristianismo, uma das maiores construções

intelectuais do homem, tenha atravessado vinte séculos e chegado até nós com a

força de uma mensagem que atinge nada menos que dois terços da população

planetária‖. Essa observação feita por Oscar Pilagallo nos faz refletir sobre a

abrangência e importância de estudarmos essa religião.2 Uma fé que além de

duradoura e crescente também é diversificada se transforma conforme o tempo e as

sociedades às quais ela atinge, transforma culturas e é transformada por elas, está

em constante processo de rupturas e permanências em seus dogmas, valores e

crenças.

Estudar sobre o cristianismo, seja a história de suas instituições ou de seu

pensamento, nem sempre foi primordial para mim, embora, desde metade do meu

curso de graduação de História, essa religião já me chamasse a atenção, justamente

pelo seu rápido avanço pelo mundo. Uma fé que surgiu em um território judaico, tão

inexpressivo diante de um dos maiores impérios da história da humanidade,

conseguiu ter um crescimento tão rápido, a ponto de em um pouco mais de três

séculos fazer o Império Romano se tornar uma ―nova civilização‖3 mantendo sua

expansão a ponto de se tornar a maior religiosidade praticada no mundo, nos

últimos dois milênios?

Desde o início das pesquisas na graduação, tenho trabalhado a construção

social do feminino presente no cinema em Belém nas décadas de 1920 e 1930, uma

temporalidade que era pouco explorada pela historiografia local e apenas

recentemente vem chamando atenção.4 No mestrado permaneci com uma temática

2 PILAGALLO, Oscar. O sagrado na história: cristianismo. São Paulo: Dueto, 2010.

3 Diversos autores retratam que, após o cristianismo se tornar a religião oficial do Império Romano e

nos próximos séculos se tornar hegemônico na sociedade, já dá um retrato de que uma nova civilização surgia, mesmo que o estado ainda fosse considerado ―romano‖. Dão embasamento para essa visão: STARK, Rodney. O crescimento do cristianismo: um sociólogo reconsidera a história. São Paulo: Paulinas, 2006. FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2007. 4 Até anos atrás, uma boa parte da historiografia paraense analisava o período procedente do final do

século XIX e início do XX. Um período de grandes transformações urbanas na cidade de Belém. Com uma economia em alta devido ao comercio internacional da borracha, grandes obras foram feitas em sua estrutura inspiradas em características urbanas de cidades europeias, além de parte da população que, a partir da sua admiração pelo povo europeu, procurou absorver seus costumes e valores. A década de 1920 já nos mostra um período em que a cidade passa por uma crise econômica e uma renovação de valores, quando percebemos mulher mais atuante na sociedade, mudança em hábitos de lazer como ida a cinemas, bailes noturnos, clubes, e um processo de ―norte-americanização‖ em que parte da sociedade procurou ter modelos norte-americanos de comportamento social, o que alguns autores chamam de ―yankismos‖. Para saber mais, ver:

14

semelhante, analisei como os valores femininos presentes nos filmes eram

retratados por diversos veículos de imprensa (especialmente as revistas de

variedades) para se criar a construção social de uma mulher ideal apresentada por

esses veículos. Da graduação até o fim do mestrado, foram cinco anos me

aprofundando no tema até no fim da pós-graduação da PUC-SP, ocasião em que

decidi por enveredar por outros caminhos.

Já no fim do mestrado, ao pensar em continuar trilhando os caminhos da

pós-graduação e tentar um doutorado, de início parti à pesquisa com a ideia de

avançar num projeto que retratasse a construção social da imprensa católica sobre o

cinema em Belém. Havia encontrado algumas fontes e trabalhos sobre isso e

comecei a estruturar a pesquisa por essa linha. Uma das minhas principais

referências documentais de início foi o jornal católico ―A Palavra‖. Um periódico que

circulou em Belém, onde encontrei exemplares publicados no período entre 1916 a

1941. Provavelmente o tempo de publicação do jornal é mais extenso, pois os

assistentes do ―Arquivo público do Pará‖ mencionaram a existência de exemplares

de 1945, ao quais eles não teriam mais acesso. A Palavra era um jornal confessional

que tinha como objetivo promover e consolidar a fé católica. Os padres que

escreviam as matérias constantemente abordavam notícias e opiniões sobre a

sociedade da época a partir de uma visão estritamente católica, e os temas eram

casamento, opções de lazer, trabalho, atualidades da Igreja Católica,

acontecimentos internacionais e opiniões sobre ideologias e outras religiões.

Dos diversos grupos acatólicos citados pelo jornal, pude perceber as

constantes citações ao espiritismo, ao comunismo, a maçonaria e ao protestantismo,

e na maioria dessas matérias essas religiões e práticas eram abordadas de forma

negativa e tratadas como inadequadas. A partir da abordagem desses temas, o

jornal sugeriria que a moral católica deveria ser o norteador comportamental dos

seus leitores.

CORRÊA, Ângela Tereza de Oliveira. História, cultura e música em Belém: décadas de 1920 a 1940. Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2010. Idem. Músicos e poetas na Belém do início do século XX: incursionando na história da cultura popular. Dissertação (Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento - PLADES), NAEA-UFPA, Belém, 2002. GAMA, Rafael. O sistema mágico: a imprensa e os valores femininos presentes no cinema (1938-1941). Dissertação (Mestrado em História), PUC-SP, São Paulo, 2014. CANCELA, Donza Cristina. Relações familiares em Belém (1890-1940). In: BEZERA NETO, José Maia; GUZMAN, Décio Alencar (Orgs.). Terra matura: historiografia e história social na Amazônia. Belém: Paka-Tatu, 2002, p.407-421. GOUDINHO, Liliane Cavalcante. Mulher e ação católica em Belém (1939-1947). Dissertação (Mestrado em História), PUC-SP, São Paulo, 2003.

15

Vi ali, naquele jornal, todo um universo de pesquisa a ser explorado,

incluindo o que eu estava procurando, o cinema. Mas, ao ler e analisar aquele jornal,

percebi que o meu objeto de pesquisa já havia se restringido comparado a temáticas

muito mais interessantes que me haviam sido apresentadas. Resolvi, assim, me

debruçar mais sobre as fontes, ler mais sobre os temas do período e conversar com

outros historiadores. Depois de muito ponderar, me decidi por trabalhar com os

embates entre o catolicismo e o protestantismo em Belém.

O jornal, como dito acima, se envolvia em polêmicas com diversos grupos

sociais, mas notei que o protestantismo era tanto a religiosidade quanto o grupo

social que o jornal mais referenciava nos mais de 30 anos de publicação analisada.

Além de não ter nenhuma fonte documental sobre o protestantismo do

período, ao se analisar a historiografia paraense fica claro que pouco se fala sobre

os protestantes no início do Brasil República, o que dificultou bastante a pesquisa.

Contudo, após uma intensa pesquisa consegui encontrar alguns jornais protestantes

como ―O Apologista Christão Brazileiro‖, do pastor metodista Justus Nelson,

publicado de 1890 a 1925. O próprio título do jornal, O Apologista Christão

Brazileiro, mostra que se tratava de um periódico de imprensa que visava defender a

fé protestante a partir da perspectiva da denominação Metodista. Também notei que

assim como no jornal ―A Palavra‖, o jornal de Nelson também era um instrumento de

propagação da fé, mas a partir do viés protestante, conflitando com outras crenças e

grupos sociais, como os espíritas, maçons, os católicos e algumas vezes alguns dos

próprios protestantes.

Também consegui analisar outras fontes documentais do período como ―O

jornal Baptista‖, um jornal da denominação batista de circulação nacional que

começou a ser publicado em 1901 e está sendo veiculado até hoje. Circulando

frequentemente em Belém nas primeiras décadas da República, o jornal ―A boa

semente‖, publicado em Belém em 1919, pelo movimento pentecostal na cidade,

junto com o diário de seu pioneiro, Gunnar Vingren, se tornaram as fontes iniciais

para construir uma análise desse tema ainda tão pouco explorado na cidade, o

protestantismo. Além do jornal ―Norte-evangélico‖, periódico protestante de vertente

presbiteriana feito exclusivamente para circular no Norte e Nordeste do país.

Ao analisar essas fontes e dialogar com referenciais teóricos do período,

notei o intenso conflito entre católicos e protestantes na região, e, a partir daí, fiz um

projeto baseado nesses conflitos. Ingressei no doutorado com um projeto que

16

propunha analisar os conflitos entre católicos e protestantes na cidade de Belém no

período entre 1890 e 1941. A temporalidade eleita refere-se a um período específico

na história do país em que a Igreja Católica, legalmente, deixa de ser a religião

oficial do Estado e o protestantismo aproveita para se consolidar enquanto religião.

A religiosidade desses cristãos faz-nos deparar com práticas religiosas muito

significativas na cidade, como a devoção aos santos e a Nossa Senhora de Nazaré.

Um protestantismo que, nesse período, se destaca pela chegada de missionários

suecos que chefiaram importantes denominações, tiveram seus próprios veículos de

comunicação e espaço na grande imprensa, ocuparam também cargos políticos, se

associaram a personalidades e movimentos políticos importantes na cidade, e, por

meio da Assembleia de Deus, conseguiram muitos fiéis não só em Belém, mas em

todo o Brasil e em um curto período de tempo. A intenção nessa pesquisa era

analisar pormenorizadamente como se dava esse embate entre católicos e

protestantes a partir desse cenário político de construção de um estado laico no

início do período republicano.

Parte dessa intencionalidade permaneceu na pesquisa, mas enquanto eu

me aprofundava nas análises das fontes e dos referenciais teóricos adquiridos, além

das grandes contribuições das orientações do professor Fernando Torres Londoño,

fui percebendo que essa temática era parte de um tema mais amplo e expressivo,

até então pouco explorado: As particularidades da relação entre religião e estado no

início do período republicano.

Aprofundei-me também na temática da laicidade do estado, autores como

Fernando Catroga e José Murilo de Carvalho foram de fundamental importância para

me mostrar a profundidade que havia na ideia da separação entre Igreja e Estado,

religião e política e de toda a mentalidade republicana secularizada que se procurou

formar naquele período.

No continuar da análise de fontes, eu e meu orientador notamos um discurso

específico de católicos e protestantes no período. Ambos se declaravam ―religiões

nacionais‖, e procuravam se legitimar em seus discursos como religiões que seriam

benéficas não apenas para seus fiéis, como as portadoras da salvação individual,

mas redentoras também para a nação em que fossem hegemônicas, tornando a

nação prospera na sua economia e em sua ordem social. Notamos, então, o conflito

entre católicos e protestantes, que abordamos no início da pesquisa, como uma

―disputa religiosa‖ pelo reconhecimento de religião nacional diante da forte ideia de

17

nação e patriotismo retratada no período republicano e pela consolidação dessas

vertentes religiosas diante de um período em que a Igreja Católica havia deixado de

ser a religião oficial do estado.

A partir de materiais impressos pelo próprio catolicismo vigente, ou mesmo

veículos da grande imprensa locais, nos quais membros do alto clero católico tinham

espaço, passei a analisar como a Igreja Católica representava outras vertentes

religiosas e continuava a construir o discurso do catolicismo como religião oficial da

nação. Também me utilizei de periódicos e diários de missionários protestantes que

foram a Belém para notar a representação do protestantismo como uma religião do

―progresso‖, que poderia ser instrumento de prosperidade para fazer a nação

brasileira chegar a patamares econômicos e sociais de países como os Estados

Unidos. Ambas religiões se retravam como salvacionistas, e se abraçadas pela

sociedade trariam não apenas a salvação individual, mas também uma indiscutível

prosperidade econômica e social à nação.

Em paralelo a isso, houve a chegada do movimento pentecostal, que passa

a atingir um público religioso leigo popular católico que o protestantismo tradicional

até então pouco conseguia dialogar, difundindo de forma mais rápida uma religião

não católica como nunca havia ocorrido desde o período colonial.

Assim, procurarei analisar um cristianismo paraense reestruturado e

particularizado tanto pela própria religiosidade peculiar da região amazônica, quanto,

principalmente, pela nova estrutura política onde o estado brasileiro não tinha mais

uma religião oficial, o que influenciava diretamente as igrejas católicas e

protestantes em sua eclesiologia e discurso, retratando, desta forma, um

cristianismo nacional com suas características próprias e particulares de dialogar

com a política laica republicana e com a religiosidade dos brasileiros.

Diversos autores nos embasam a trabalhar tais ideias. Para retratar o

movimento protestante diante da hegemonia da Igreja Católica, trabalharemos o

conceito de hegemonia à luz de autores como Antônio Gramsci e Raymond Wlliams,

definindo essa hegemonia como um conjunto de práticas e expectativas sobre a

totalidade da vida e percepção de mundo do fiel, mas controlados por uma

instituição dominante que controla uma sociedade a níveis ideológicos. Usando a

Igreja Católica como exemplo, uma instituição que na Idade Média se tornou a mais

poderosa, controlando as esferas política e ideológica da sociedade europeia,

Gramsci trabalha os intelectuais e o ―mass-media‖, quando se vê que foi necessário

18

que os intelectuais dessa instituição dominante se apossassem de instrumentos

como a imprensa e a literatura para propagar seus ideais e conservar ou construir

seu poder hegemônico.5

A ideia de ―campo religioso‖ definida por Bourdieu também será retratada na

pesquisa, nos ajudando a trabalhar a dinâmica religiosa entre católicos e

protestantes; o autor trata a Igreja como uma religião dominante em uma sociedade

que monopoliza seus instrumentos de salvação.

Nesse trabalho, os veículos de imprensa serão de fundamental importância

para a pesquisa, visto que somados são a maior parte das minhas fontes. Para

trabalhar esse tema proposto e essas fontes documentais, terei como base

metodológica o diálogo de obras e autores, como o de Heloísa de Faria Cruz e Maria

do Rosário Cunha Peixoto, que abordam a imprensa enquanto uma força social ativa

diante de cada conjuntura que o historiador elege pesquisar, pois ―pensar a

imprensa com esta perspectiva implica, em primeiro lugar, tomá-la como uma força

ativa da história do capitalismo e não como um mero depositário de acontecimentos

nos diversos processos e conjunturas.‖6

Analisando a fonte como uma força ativa, com suas intencionalidades

especificas na exposição de seus conteúdos, procurarei analisar os veículos de

imprensa abordados à luz do conteúdo da própria fonte. A partir daí pretendo guiar a

pesquisa e construir a dissertação, trabalhando uma lógica de análise da própria

experiência do historiador com as fontes, como aborda Edward P. Thompson em

sua obra ―A miséria da teoria‖, onde ―os homens se aprisionam em estruturas de sua

própria criação porque mistificam a si mesmos‖7 fazendo assim uma crítica a

pesquisadores que constroem suas pesquisas tomando como base teorias já

prontas, e dão pouca ênfase à ―experiência humana‖ do pesquisador com sua fonte

de análise, para que assim ele construa sua própria teoria usando do estudo de sua

fonte.

Nos utilizaremos da ideia de separação entre Igreja e Estado, laicidade e

secularização discutida por autores como Fernando Catroga, que explica que a

sociedade procurava manter um estado que fosse pautado nas leis estipuladas em

5 PORTELLI, Hugues. Gramsci e a questão religiosa. São Paulo: Edições Paulinas, 1984.

6 CRUZ, Heloísa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador:

conversas sobre história e imprensa. Projeto História. São Paulo, n. 35, 2007, p.183. 7 THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao

pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.183.

19

vez de em dogmas religiosos, mas, ainda assim, a sociedade em geral continuava

predominantemente religiosa, e que mesmo em um estado juridicamente laico, a

mentalidade religiosa continua atrelada à sociedade, se mesclando à própria

estrutura do Estado se manifestando em discursos, inscrições, monumentos,

produções filatélicas e numismáticas e em frequentes citações religiosas.

Para retratar essa nova temática dividiremos a tese em quatro capítulos. No

capítulo 1, ―A devoção mariana: Catolicismo, Estado e Hegemonia Social‖,

procuraremos retratar Belém e sua historicidade e o quanto a história da cidade

sempre esteve entrelaçada com a religiosidade católica desde a sua fundação.

Atravessaremos os séculos, mas enfatizaremos o período referente ao final do

século XIX e início do século XX, época em que a cidade, além de passar por um

grande período de reconfiguração econômica e social com a economia da borracha,

passa também por grandes transformações políticas e religiosas com o fim do

Império e o início do período republicano. Para retratar esse período, nos

utilizaremos de diversas fontes de jornais católicos, como o periódico ―A Palavra‖.

No capítulo 2, ―Uma fé ignorante: O protestantismo no período republicano‖,

mostraremos a história do protestantismo na cidade desde suas primeiras aparições

até o início da República, que é o nosso ponto de conclusão, com ênfase no

processo de reestruturação a partir do período político em que o estado brasileiro se

torna laico, dividindo-o em três subitens, nos quais mostraremos desde a história do

protestantismo no Brasil e do Pará, até o Brasil república em Belém, retratando as

rupturas e permanências do protestantismo na primeira república na cidade, fazendo

uma análise pormenorizada também do movimento pentecostal que se iniciava.

No capítulo 3, ―Entre a autoridade religiosa e a autonomia do leigo:

Católicos, protestantes, pentecostais e o ‗campo religioso‘ em disputa‖, analisaremos

a disputa religiosa que ocorreu na primeira república nas principais vertentes do

cristianismo na cidade. Perceberemos algumas características desde o embate

simbólico até a ameaça física, envolvendo também difamações e prisões, e como o

período político republicano influenciava tal disputa. Procuraremos retratar como

havia, como pano de fundo dos vários temas de embate, o conflito entre a

autoridade religiosa legítima representada pelo catolicismo e a autonomia do leigo,

como enfaticamente era defendida pelo protestantismo.

No capítulo 4, ―O Apologista Christão: A separação entre igreja e estado e a

prisão de Justus Nelson‖, apresentaremos a separação entre Igreja e Estado no

20

Brasil e como isso ocorreu. Veremos ainda, por meio das análises feitas pelos

periódicos do pastor metodista Justus Nelson, como essa temática era discutida no

Norte do país e como era aplicada na prática. A partir do episódio da prisão de

Justus Nelson por ataques ao principal símbolo religioso da fé católica paraense, a

devoção a virgem de Nazaré, entenderemos como a separação entre Igreja e

Estado (e o conceito de liberdade religiosa trazidos pela república que despontava)

ocorria na prática misturada às tensões e aos conflitos com o catolicismo vigente.

No capítulo 5, ―Cristianismo e república: A disputa pela ―Religião Nacional‖,

nos utilizaremos de jornais católicos, como o ―A Palavra‖ e Jornais protestantes

como ―O Apologista Christão Brazileiro‖, ―Norte Evangélico‖ e ―O jornal Baptista‖

para retratar como o cristianismo na nova república se reconfigurava a partir do

processo de separação entre Igreja e Estado. Analisaremos o discurso específico

diferenciado das principais vertentes cristãs que desejavam ser reconhecidas como

a religião verdadeira e oficial do país. Veremos também como católicos e

protestantes procuravam se representar como religiões que seriam benéficas para a

nação brasileira caso se tornassem (protestantes) ou se mantivessem hegemônicas

(católicos). Essas vertentes cristãs propunham um salvacionismo que ia muito além

do âmbito religioso, mas também econômico e social para a nação. Analisaremos

que, assim como nas outras regiões do ocidente hegemonicamente cristãs, a

religião sempre se entrelaçava com a estrutura política, mesmo em um estado

juridicamente sem uma religião oficial. Sob as lentes do cenário de Belém do Pará,

notaremos que o processo de laicidade na República teve como característica uma

disputa religiosa entre vertentes cristãs já consolidadas na sociedade, e que sempre

dialogaram com a estrutura política do Estado durante toda a República Velha – uma

relação entre religião e política que podemos perceber em todo o ocidente até os

dias atuais.

21

CAPÍTULO I – BELÉM DO PARÁ: CATOLICISMO,

ESTADO E HEGEMONIA SOCIAL

1.1 ―A DEVOÇÃO MARIANA‖: CATOLICISMO E HEGEMONIA SOCIAL

Toda a população vem a rua nessa ocasião. Todos os soldados da linha ou da guarda nacional tomam parte na procissão, cada batalhão acompanhado por sua banda de música. Acompanham-na também as autoridades civis, com o presidente à frente, bem como as pessoas gradas, e também muitos residentes estrangeiros. O bote dos náufragos portugueses é transportado atrás da santa, nos ombros de oficiais da marinha e marinheiros e em seguida vem outros símbolos dos milagres realizados por Nossa Senhora. [...] O aspecto da praça é então o de uma feira, sem o bom humor e a galhofa de festas semelhantes a Inglaterra, mas também sem sua algazarra e grosseria. Preparam-se grandes salas, para vistas panorâmicas e outros divertimentos, onde o público tem entrada grátis. Há todas as noites uma queima de fogos de artifício, tudo obedecendo a um programa publicado da festa. [...] Nazaré não tardou em passar de largo suburbano a largo urbano, tamanho foi o interesse que despertou nos governadores do estado, da cidade e do povo simples.8

O catolicismo, desde o século IV, foi uma religião que seguiu atrelada aos

estados nos quais se tornava hegemônico, desde o Império Romano, Franco,

Bizantino, Caroningio e Merovingio à formação do continente europeu. Em todos

esses períodos, há a forte atuação da Igreja Católica na mentalidade social e na

influência das autoridades de estado. Em alguns momentos, tal influência se torna

tão poderosa quanto a de reis e imperadores.9

No século XVI, o protestantismo foi uma vertente cristã que rompeu com a

Igreja Católica, causando a maior cisão do cristianismo já registrada na história, que

se disseminou pela Europa e se fundiu a diversas nações, adotada por membros da

nobreza e autoridades de estado. A relação entre essas duas formas de

religiosidade cristã sempre foi conflituosa, contudo essas foram, simultaneamente,

as duas principais vertentes do cristianismo que mais se expandiram ao longo da

história e transformaram a cultura ocidental.

8 DUBOIS, Florencio. A devoção a Nossa Senhora de Nazareh. Rio de Janeiro, 1949, p.69.

9 Para melhor embasamento sobre esse período, nos debruçamos em obras como: DAWSON,

Christopher. Criação do Ocidente – A religião e a civilização medieval. Tradução e apresentação à edição brasileira de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2016. LE GOFF, Jaques. Por uma outra Idade Média. Lisboa: Estampa, 1985.

22

Refletir sobre essas duas modalidades cristãs é um exercício que se faz

importante para analisarmos a forma com que o catolicismo chegou ao Brasil,

reflexo de uma disputa religiosa que estava ocorrendo na Europa, e a conquista

religiosa do Novo Mundo se deve tanto ao catolicismo estar atrelado a determinadas

nações europeias que procuravam colonizar os territórios que descobriram em

grandes navegações, como uma tentativa de consolidar sua cosmovisão de mundo

nas terras recém-conquistadas, tanto para exploração quanto para proteção de

outras nações da Europa que estavam adotando a ―herege‖ religião protestante.

A chegada das ordens missionárias católicas europeias na Amazônia no

século XVI nos mostram esse fenômeno religioso que ocorria no seu catolicismo

nesse período: uma reestruturação de parte da religião católica como reação à

reforma protestante que despontava na Alemanha e se espalhava rapidamente pelo

continente. Com isso o Brasil, e especialmente a Amazônia, recebem um catolicismo

que se reestruturava, onde se enfatizava uma prática religiosa de ―aspectos negados

pelos protestantes‖ como o ―culto aos santos, sacramentos, boas obras‖, e

menosprezando outros dogmas valorizados pelos protestantes tidos como hereges

como a ―leitura da Bíblia e importância da fé‖.10 Com esse modelo católico

fortemente influenciado pela contra-reforma, as ordens religiosas católicas que

foram para a Amazônia, assim como a outras partes do país, conseguiram

influenciar tanto o aspecto religioso quanto o social, o econômico e o educacional da

região.

Em Belém, o próprio nome da cidade, ―Santa Maria de Belém do Grão Pará‖,

já demonstra as fortes marcas da Igreja Católica deixadas desde sua formação.

Maria de Nazaré Sarges, ao trabalhar de forma sucinta a relação da Igreja Católica

com os índios da região, analisa como a Igreja era usada pelo estado português

para ―acalmar os índios‖, principalmente na contribuição da relação deles com o

estado português. No entanto, ao que parece, no decorrer dos séculos os nativos

não apenas se ―acalmaram‖, mas também se mesclaram com o catolicismo na

região.11 A fé católica continuou sendo a religião oficial do Estado durante o período

colonial e imperial. Grande parte dos moradores da cidade seguiam seus valores e

dogmas, mas o catolicismo de Belém parecia ter suas diferenciações se comparado

10

MAUÉS, Heraldo. Ação das ordens e congregações religiosas da Amazônia. Belém: Ed. da UFPA, 1968, p.20. 11

SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque (1878-1907) Belém: Paka-Tatu, 2000.

23

ao dos países Europeus. As ordens religiosas católicas de seminários franceses que

iam a Belém constantemente reclamavam sobre as práticas dos católicos

paraenses, as ―simpatias‖ e ―mandingas‖ além de outros tantos sincretismos

presentes na religiosidade local.12

No Pará, especificamente nos séculos XIX e XX, era notória a associação de

práticas religiosas de santos com as pajelanças. A ―pajelança cabocla‖ fazia parte da

medicina popular local, baseada nas curas xamânicas dos povos indígenas

tupinambás, sincretizados com o branco e o negro que permearam a região no

processo de colonização. O pajé inicia seu ritual de cura em indivíduos que

apresentam alguma enfermidade (rito chamado de ―trabalho‖), é quando ele invoca

os ―encantados‖, seres invisíveis que incorporam o pajé durante o ritual. Nessa

sessão, há uma mesa com imagens de santos católicos, e é através dessa mesa

que o pajé ―entrega o seu espírito a Deus‖ antes de incorporar os encantados.13

Ainda que esse sincretismo de diversas religiosidades fosse presente em

rituais como esse, que soma elementos de diversas religiosidades como o

xamanismo, o kardecismo e as religiões de matriz africana, os praticantes da

pajelança, desde pajés até o indivíduo que participa do rito, se identificavam como

―bons católicos‖.14 O catolicismo ainda era elemento predominante na mentalidade

religiosa paraense, mesmo diante de todo esse sincretismo. Heraldo Maués

relaciona a ideia de santos e encantados; ambos convivem no imaginário religioso

popular paraense, mas com alguns diferenciais entre eles, como o autor aborda:

Assim como os santos possuem representação material, também só eles fazem milagres (além de Deus). Os encantados não são pensados como capazes de fazer milagre; suas ações são designadas como cura, castigo malinesa, e outras expressões. Por outro lado, se os santos atendendo às preces dos doentes são capazes de proporcionar a cura, eles não agem como os encantados que, tendo o corpo do pajé como instrumento, vêm eles mesmos curar os doentes.15

12

GUEIROS, David Vieira. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1980. Após um tempo de pesquisa também tivemos contato com a obra de Raymundo Heraldo Maués, na qual faz uma análise bem semelhante à nossa, justamente por se embasar no mesmo autor, David Vieira Gueiros; assim, por ordem, decidimos também referenciá-lo aqui. MAUÉS, Raymundo Heraldo. Uma outra invenção da Amazônia: religiões, histórias e identidades. Belém: Cejup, 1999, p.123. 13

MAUÉS, op. cit., p.196. 14

Ibidem, p.198. 15

Idem. Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular e controle eclesiástico - Um estudo antropológico numa área do interior da Amazônia. Belém: Cejup, 1995, p.207.

24

O autor nos mostra que nesse sincretismo havia uma certa hierarquia, onde

os santos, diferentemente dos encantados, não precisam incorporar o pajé. Eles

mesmos curam diretamente o doente. Os santos, ícones do catolicismo, ocupavam a

preferência não apenas na identidade dos praticantes da pajelança, como na própria

dinâmica do ritual.

A cura é elemento de crença presente no imaginário religioso popular,

especialmente se tratando dos santos. Maués menciona relatos de devotos aos

santos ou à Virgem Maria, como este: ―Uma mulher que era cega fez a promessa de

preparar um manto novo pra ela, caso recuperasse a visão. Conseguindo sua graça,

preparou o manto mais belo e mais rico que pôde confeccionar‖.16 Ou quando

ocorreu uma epidemia de Varíola no estado, menos na região da Vigia, sendo esse

―não contato‖ da doença interpretado por muitos moradores como uma proteção feita

por Nossa Senhora, como relata o caboclo entrevistado pelo antropólogo: ―Meu tio

disse que não, que esse ano constô que deu muito essa doença, mas na Vigia, no

Itapuá tudo, num deu. Eles calcularam que aquilo só podia sê Nossa Senhora que

estava livrando os inocentes ali daquela passagem.‖17

Esse mundo encantado e sincrético presente na região, no qual santos e

entidades xamânicas conviviam curando os enfermos, era um imaginário religioso

enraizado e naturalizado e fazia parte do catolicismo majoritário local.18

Pela própria herança da religiosidade católica que por aqui foi propagada no

século XVI, notamos uma crença muito forte do catolicismo popular paraense, que

se revelava por meio da devoção dos santos e suas imagens. O ―santo particular‖ do

paraense poderia ser bem tratado se tudo ocorresse bem em sua vida e na de seus

familiares, se suas preces forem atendidas regularmente, mas a imagem poderia

sofrer punições caso o propósito do fiel não fosse atendido, como enterrar a cabeça

da imagem na areia ou pendurá-la em uma árvore.

16

MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular e controle eclesiástico - Um estudo antropológico numa área do interior da Amazônia. Belém: Cejup, 1995, p.176. 17

Ibidem. 18

David Vieira Gueiros, em sua obra ―O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil‖, ao falar sobre a vinda de ordens religiosas católicas de seminários franceses a Belém, fala das constantes reclamações dos sacerdotes acerca das práticas dos católicos paraenses, ―simpatias‖, ―mandingas‖, além de outros problemas como corrupção do clero e idolatria, como discutiremos mais adiante. GUEIROS, David Vieira. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1980.

25

Nessa prática expressiva do católico paraense popular.19, relacionada à

adoração aos santos através das imagens, notava-se em grande destaque a sua

devoção à Nossa Senhora de Nazaré. Um tipo de ―adoração‖ que foi além do

conceito teológico do catolicismo de render mais que uma homenagem (dulia), e

chegou a ser um fenômeno como a ―latria‖ (adorar como se adora a Deus),

transformando-se numa ritualidade católica extremamente festiva, com procissões

dedicadas a santos, especialmente à Nossa Senhora de Nazaré, como a ―festa do

Círio‖, com foguetes e irmandades dançantes. Esse catolicismo que se dá nas

procissões e adorações aos santos, sincretizado com as religiões de origem

indígena e africana ocorreu em todo o paísApesar das diferenciações entre cada

estado, a religião católica europeia, atrelada ao estado português, na relação entre

metrópole e colônia, o catolicismo continuou sendo uma religião predominante.20

Os estudos de autores ―pós-coloniais‖ nos ajudam a entender melhor os

fenômenos religiosos surgidos no norte do país. Em muitos deles há uma crítica à

dicotomia marxista do ―opressor e oprimido‖, que muitas vezes interpreta o

colonizado como um agente passivo do colonizador. Os autores mostraram que a

análise do pós-colonial é muito mais complexa, polissêmica e dinâmica. A

disseminação do ideal eurocêntrico para os povos colonizados, em que a Europa era

o modelo de civilização a ser seguido, nos mostra, sim, que as colônias absolveram

muito do modelo europeu, mas com suas diferenciações e perticularidades, de forma

que não foram passivas nesse processo. Sua cultura local transformou e

particularizou o processo de europeização de cada região colonizada.

Retratamos, desta forma, autores como Homi Bha Bha, que produz análises

que nos ajudam a entender o funcionamento do processo de relação colônia e

metrópole europeia por meio da ideia do ―entre-lugares‖, quando ao analisar as

colônias europeias do período da colonização até o decorrer do século XX ele

19

Utilizaremos aqui perspectiva de um catolicismo popular como um conjunto de crenças e práticas que fazem parte de um catolicismo pluralizado. Práticas socialmente reconhecidas como católicas, de que partilham sobretudo os não especialistas do sagrado, quer pertençam as classes subalternas ou às classes dominantes, mas que não são inicialmente vinculadas a Igreja Católica como instituição. O autor ressalta que a relação entre crenças populares e clericais não era sempre contraditória, em diversos momentos dialogavam entre si, a ponto de muitas vezes essas crenças serem cooptadas pela Igreja católica institucional. Notaremos esse fenômeno na própria pesquisa, ao perceber a forma como a Virgem de Nazaré era retratada no Brasil República, legitimada tanto por populares, quanto por clérigos de renome na cidade. 20

Para as informações presentes nesse parágrafo, nos embasamos inicialmente na obra de David Vieira Gueiros, que retrata o cenário religioso paraense. GUEIROS, David Vieira. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1980.

26

percebe que predominou nas colônias o modelo político, econômico, cultural e

religioso da Europa, contudo o modelo social dos povos nativos da colônia

permaneceu, criando assim uma sociedade diferente das europeias, mas que por

sua vez resultou numa estrutura social muito diferente do que se via antes dos

europeus colonizarem essas regiões. Trata-se de um ―entre-lugar‖, uma sociedade

nova que surge com novos significados a partir dessas diferenças culturais, como

Homi explica a seguir nesta passagem:

Esses ―entre-lugares‖ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir o próprio ato de identidade.21

Pelas discussões de Homi Bha bha sobre a relação colônia e metrópole,

adquirimos melhor embasamento para entender o cristianismo na Colônia,

especialmente o catolicismo. O cristianismo chegou ao Pará no período da

colonização europeia, mas seu desenvolvimento no estado se diferenciou do

catolicismo europeu. No Pará, notamos um catolicismo imagético, místico e popular

que predominou com muito mais intensidade na região. Com devotos fervorosos às

imagens dos santos, atraídos pelas ―procissões e foguetórios‖ de práticas religiosas

mais pontuais e festivas, assim como a permanência dos encantados da religião

xamânica, com seus rituais de cura sincretizados com a devoção aos santos.

Esse tipo de análise é importante para entendermos que trabalharemos um

catolicismo hegemônico, que possui semelhanças com o catolicismo europeu e

brasileiro, mas também possui diferenciações que serão essenciais para

compreendermos a análise que faremos na pesquisa.

Como dito acima, uma característica da religiosidade católica paraense que

se nota como um diferencial é a adoração à Nossa Senhora de Nazaré. Um dos

eventos que melhor simbolizam essa devoção é o Círio de Nazaré, festividade

religiosa paraense que até os dias de hoje é extremamente popular e que há séculos

existe na cidade promovida pela Igreja Católica, mas que desde seu início envolveu

autoridades políticas da região e teve grande apoio e participação da população

paraense.

21

BHA BHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, Humanitas, 2013, p.20.

27

A vinda da imagem da Nossa Senhora de Nazaré a Belém é difícil de

precisar, como bem ressalta Carlos Alberto da Conceição Teixeira, que apresenta a

própria convergência de historiadores que dizem que ela teria vindo do interior do

Pará trazida pelos Jesuítas da pequena cidade de Vigia. Na tradição da crença, a

imagem é encontrada por um pobre caçador e lenhador no ano de 1700, chamado

Plácido José de Sousa, que encontrou a imagem de Nazaré em um igarapé, entre

pedras lodosas. ―Apesar das intemperes, não estava maltratada e tinha o manto a

brilhar como se tivesse ficado no templo.‖22 Ao ver a imagem, ele a levou para sua

casa e fez um simples altar.23 A tradição conta que no outro dia a imagem da santa

sumiu do altar de Plácido, e quando o caboclo procurou por ela a imagem estava no

lugar de origem, as margens do igarapé. Após esse misterioso deslocamento ocorrer

por ―muitas diversas vezes‖24, Plácido e outros caboclos que estariam presenciando

o fenômeno entenderam que era da vontade da santa não abandonar o local em que

foi encontrada, e fizeram ali um pequeno altar para a imagem. A história da santa,

suas fugas, local de devoção e os possíveis devotos que surgiam em torno dela

chamaram a atenção do governador da época que decretou que a imagem fosse

para o Palácio do Governo. Assim foi feito. Mas não demorou muito para a imagem

desaparecer novamente e ser encontrada em seu local de origem.

Plácido, então, construiu sua cabana ao lado do local de devoção da virgem.

Teixeira nos aponta que os jornais que circulavam nos anos de 1721 a 1733

mencionam que o Bispo do Pará, D. Bartolomeu de Pilar, visitou a pequena ermida

onde estava a santa, e, ao visitar Plácido, ―o caboclo sugeriu que se levantasse uma

nova capela para Nossa Senhora de Nazaré, sendo essa ideia aprovada por D.

Bartolomeu‖25. Com isso, nota-se o alto clero da Igreja absorvendo a crença popular

que se instaurava e crescia no período, e aqui Teixeira percebe também o controle

eclesiástico sobre a devoção popular que se inicia nesse período, agregando a

devoção à Nossa Senhora de Nazaré ao alto clero, assim como uma marca da

cidade, pois o próprio D. Evangelista coloca ―a cidade de Belém sob proteção de

Nossa Senhora de Nazaré‖26.

22

DUBOIS, Pe. Florencio. Devoção a Nossa Senhora de Nazareh. Rio de Janeiro, 1949, p.41. 23

TEIXEIRA, Carlos Alberto da Conceição. Círio: a construção de um texto cultural através da semiosfera amazônica. Dissertação (Mestrado em Semiótica), PUC-SP, São Paulo, 1999, p.59. 24

DUBOIS, op. cit., p.46. 25

TEIXEIRA, op. cit., p.60. 26

Ibidem, p.61.

28

O Círio de Nazaré é um acontecimento religioso que retrata essa relação de

um catolicismo popular que é cooptado e controlado pelo alto clero e pelo Estado.

Ivone Maria Xavier Correia, em sua tese de doutorado ―Círio de Nazaré: a festa de fé

e suas ressignificações culturais (1970-2008)‖, assim como Teixeira, nos mostra que

o Círio de Nazaré foi elaborado 93 anos depois do possível achado da imagem da

santa. Em uma romaria que, pelos historiadores consultados pela autora, já ocorria

entre populares antes mesmo da ―romaria oficial‖. Populares faziam romarias,

promessas, rezas e outras práticas devocionais à santa durante este quase um

século antes da instauração do Círio.27

O Círio é composto de elementos simbólicos que vão desde arraiais,

festividades e romarias nas quais a imagem da santa era levada na berlinda. Uma

festa estruturalmente mais simples, mas sempre coordenada por bispos e pelo

capitão Mor da província do Pará. Com o tempo o Círio foi se estruturando, novos

elementos foram adicionados na romaria, assim como novos espaços de transição

da imagem da santa, ―o tempo vai inexoravelmente transformando a romaria

tradicional‖28 , que passou a ter uma parte fluvial e também um trajeto marítimo,

adicionou-se cordas ligadas à berlinda, puxadas diretamente pelos fiéis, dando a

sensação de estarem ―carregando‖ a santa. Assim como o aumento das

festividades com bandas e fogos de artifício nos arraiais, com essas diversas

modificações, no decorrer do tempo, o capital simbólico dessa religiosidade aumenta

entre rupturas e permanências, e se consolida no imaginário e na prática do

paraense durante as décadas e séculos que seguiram.

Toda a população vem a rua nessa ocasião. Todos os soldados da linha ou da guarda nacional tomam parte na procissão, cada batalhão acompanhado por sua banda de música. Acompanham-na também as autoridades civis, com o presidente à frente, bem como as pessoas gradas, e também muitos residentes estrangeiros. O bote dos náufragos portugueses é transportado atrás da santa, nos ombros de oficiais da marinha e marinheiros e em seguida vem outros símbolos dos milagres realizados por Nossa Senhora. [...] O aspecto da praça é então o de uma feira, sem o bom humor e a galhofa de festas semelhantes a Inglaterra, mas também sem sua algazarra e grosseria. Preparam-se grandes salas, para vistas panorâmicas e outros divertimentos, onde o público tem

27

CORREIA, Ivone Maria Xavier de Amorim. Círio de Nazaré: a festa da fé e suas (re)significações culturais - 1970-2008. Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2010, p.21. 28

DUBOIS, Pe. Florencio. Devoção a Nossa Senhora de Nazareh. Rio de Janeiro, 1949, p.70.

29

entrada grátis. Há todas as noites uma queima de fogos de artifício, tudo obedecendo a um programa publicado da festa29 [...] Nazaré não tardou em passar de largo suburbano a largo urbano, tamanho foi o interesse que despertou nos governadores do estado, da cidade e do povo simples.30

Nesta análise, mais que analisar o Círio, suas possíveis origens e

construções históricas, devemos perceber a relação que há entre o catolicismo

popular, o alto clero da Igreja e as autoridades de Estado locais. Tanto Dubois como

os outros autores que retratam o Círio de Nazaré nos mostram através de um

processo histórico uma característica que notamos até os dias de hoje. Desde o

início, há interferências de autoridades políticas, geralmente governadores da

província, na devoção à Nossa Senhora de Nazaré. As interferências se dão tanto

na normatização do rito quanto no próprio usufruto desses governadores se

utilizando do rito para própria autopromoção, mostrando uma relação que vai além

de Estado e Igreja, mas do Estado e a religiosidade católica presente na população,

visto que nem sempre a Igreja Católica enquanto instituição caminhou de braços

dados com a religiosidade popular praticante de um catolicismo muitas vezes

diferenciado do alto clero. Havia uma constante tentativa de permanência da Igreja

Católica como uma instituição que detinha o controle de sua hegemonia na

sociedade, seja por meio da busca de uma constante continuidade de seu

atrelamento ao Estado ou na cooptação da religiosidade popular.

Houve alguns casos particulares, no decorrer da formação da festa, em que

o Círio de Nazaré e algumas práticas devocionais feitas pelos fiéis de Nossa

Senhora de Nazaré foram reprovadas pelo auto clero católico, a ponto de sofrerem

algumas tentativas de censura. O caso mais clássico dessa tensão se dá no

ministério do bispo do Pará, Dom Macedo Costa, no fim do Império. Dom Marcedo,

ao perceber que os paraenses adoravam a imagem de Nazaré como se fosse a

própria Virgem Maria encarnada, procurou fazer declarações contrárias à prática

religiosa, causando grandes indignações populares e entre alguns membros do clero

católico.

Corria o ano de 1877. Por ocasião da festa de Nossa Senhora de Nazaré, escreve Dom Antônio de Almeida Lustrosa, um diário de Belém fez chegar ao domínio público a notícia de

29

DUBOIS, Pe. Florencio. Devoção a Nossa Senhora de Nazareh. Rio de Janeiro, 1949, p.67. 30

Ibidem, p.69.

30

representações indecorosas no arraial. O Prelado (Dom Antônio Macedo Costa) surge vigilante, pronto em curar os interesses do seu rebanho, suspende os atos religiosos donde se originou a magna questão de Nazaré, que para o seu coração de bispo e dos verdadeiros católicos foi uma acerba e pungente dor.31

Como já vimos, essa devoção aos santos e adoração ao santo particular era

uma prática corriqueira entre os populares no Pará, e particularmente a ―devoção

extremada‖ dos paraenses à imagem de Nossa Senhora de Nazaré. A prática

incomodou o Bispo do Pará no final do Século XIX, Dom Macedo Costa a tal ponto

que ele entendeu que era sua responsabilidade ―regulamentar todas as questões

relativas ao culto da santa; devendo atar novamente a obediência dos católicos ao

prelado, deixando o governo e a religião sob autoridade da igreja‖32. Nesse período,

o Círio de Nazaré, seu planejamento e organização, os cuidados da imagem da

santa no decorrer do ano, a pequena capela construída no local onde a imagem da

santa foi vista pela primeira vez, eram de responsabilidade da Irmandade de Nazaré.

Dom Macedo Costa,

[...] exigindo a subordinação da festa de Nazaré, reduz a irmandade à condição de festeiros [...] desautoriza usar a igreja, a autoridade da santa, os exercícios de oração como novenas e trezenas sem seu selo. No arraial, as composições dos divertimentos nos teatros precisam da sua aquiescência, destituíndo jogos de azar e a pornografia possivelmente presente nas ―representações indecentes de um poyorama‖.33

Assim, a Irmandade de Nazaré continuou a procurar realizar as festividades

e os ritos presentes no Círio de Nazaré, o que levou a uma futura suspensão da

festa, alegando ―ser sua responsabilidade preservar o culto da religião oficial do

Império quando os próprios católicos não observam suas prescrições‖34.

Havia aí uma tentativa de mostrar a sociedade paraense a representação

simbólica da Igreja Católica institucional representada pelo bispo e sua autoridade

diante das manifestações religiosas relevantes presentes na cidade. Notamos que a

devoção à Nossa Senhora de Nazaré e o Círio eram práticas tão arraigadas na

31

DUBOIS, Pe. Florencio. Devoção a Nossa Senhora de Nazareh. Rio de Janeiro, 1949, p.79. 32

NEVES, Fernando Arthur. Solidariedade e conflito: estado liberal e nação católica no Pará sob o pastorado de Dom Macedo Costa (1862-1889). Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2009, p.215. 33

Ibidem, p.218. 34

Ibidem, p.219.

31

mentalidade religiosa da sociedade paraense que, mesmo com a interrupção do

Bispo, o Círio foi realizado com o apoio da sociedade civil e das autoridades políticas

do período. O chamado ―Círio Civil‖ foi realizado em 1878, quando os membros da

Irmandade, as autoridades políticas do período, e boa parte da população

mantiveram o rito, mas sem a presença do Bispo Dom Macedo e representantes do

alto clero da Igreja Católica da cidade.35

Essas querelas, assim como outras envolvendo o Círio e a devoção à Nossa

Senhora de Nazaré, não impediram o continuar da prática religiosa que ocorre até

os dias atuais, mas desse conflito em específico podemos tirar algumas reflexões.

Há uma hegemonia católica que abarca desde o paraense popular até o alto clero

católico e as autoridades políticas que representam a sociedade civil. Há também

uma tentativa constante da Igreja de manter essa hegemonia, seja entrando em

diálogo ou conflito com práticas católicas populares ou com as autoridades civis

percebendo o atrelamento existente entre Igreja Católica, Estado e sociedade.

Partindo desse raciocínio e analisando ainda o caso do conflito do Bispo Dom

Macedo com o Círio de Nazaré, podemos entender que foram necessárias

mudanças estruturais na Sociedade Civil e na Igreja Católica para que Dom Macedo

tomasse uma decisão diferenciada da maioria dos bispos anteriores, de ser

conflitante com a devoção praticada pelos paraenses à santa.

O Bispo Dom Macedo era fruto de seu tempo, estava presente em um

período de reestruturação da Igreja Católica no século XIX em que a relação Igreja e

Estado estava sendo debatida no ocidente a partir das diversas revoluções que

estavam ocorrendo em países europeus e nas colônias norte-americanas, onde

pensamentos trazidos pela modernidade, como liberalismo e positivismo traziam

atreladas discussões sobre o papel da Igreja na sociedade, sua separação com o

Estado em países nos quais ela era atrelada e reconhecida como religião oficial.

Encíclicas como a Síbabus e Quanta Cura, introduzidas pelo Papa Pio IX, nos

mostram o posicionamento da Igreja diante dessas correntes de pensamento, em

35

Esse relato é bem fundamentado na tese de Fernando Arthur Neves e no livro do padre Florencio Dubois. NEVES, Fernando Arthur. Solidariedade e conflito: estado liberal e nação católica no Pará sob o pastorado de Dom Macedo Costa (1862-1889). Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2009. DUBOIS, Pe. Florencio. Devoção a Nossa Senhora de Nazareh. Rio de Janeiro, 1949.

32

que o Papa ―não podia e nem devia transigir com o liberalismo e com a civilização

moderna‖36.

Com efeito, nesses documentos não só fulminou o indiferentismo, o panteísmo, o racionalismo absoluto, o racionalismo moderado, o comunismo, as sociedades secretas, as sociedades bíblicas, as sociedades liberais, a autonomia das leis morais em relação à lei divina, a autonomia da filosofia e da ética, as liberdades de pensamento, opinião, religião, culto, como censurou a reconciliação com o progresso.37

Os ataques a essas correntes de pensamento que permeavam o século XIX

foram mantidas pelo Papa Leão XIII em 1887, que reprovou a relação da Igreja

especialmente com o liberalismo e com o socialismo.

Essa reação de resistência e combate da Igreja Católica diante dessas

ideias presentes no século XIX a fizeram tomar posicionamentos conservadores.

Dom Macedo, para mostrar que a Igreja detinha controle, adotou práticas

conservadoras como as interdições de irmandades que não estivessem cumprindo

os regulamentos da Sé em suas práticas religiosas, gerando conflitos como o

ocorrido com a Irmandade de Nazaré e toda a prática religiosa do Círio que a

cercava. Medidas assim tiveram como pano de fundo o combate ao liberalismo que

Dom Macedo julgava presente na Igreja, permitindo desta forma centralizar o poder

na Igreja enquanto instituição.

Católicos liberais defendiam a liberdade dos fiéis católicos de realizarem

suas novenas e seus pagamentos de promessas, condenados pelo bispo vigente. O

argumento dado por eles era o fato de que símbolos do catolicismo como as

imagens eram parte integrantes do catolicismo praticado pelo Império. ―Restava-lhes

contra-atacar o baluarte da hierarquia aonde lhe era penoso - a religião oficial do

estado.‖38

O deputado Tito Franco de Almeida, um político liberal contemporâneo de

toda essa polêmica envolvendo Dom Macedo Costa e o Círio de Nazaré, escrevia

em seu material de imprensa, o jornal ―O Liberal do Pará‖, opiniões contrárias à

36

CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Cesares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra, Portugal: Almedina, 2010, p.290. 37

Ibidem, p.290. 38

NEVES, Fernando Arthur. Solidariedade e conflito: estado liberal e nação católica no Pará sob o pastorado de Dom Macedo Costa (1862-1889). Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2009, p.223.

33

decisão de Dom Macedo e aos posicionamentos do catolicismo pelo império.

―Restava-lhes contra-atacar o baluarte da hierarquia aonde lhe era penoso - a

religião oficial do estado.‖39

O deputado Tito Franco de Almeida, um político liberal contemporâneo de

toda essa polêmica envolvendo Dom Macedo Costa e o Círio de Nazaré, escrevia

em seu material de imprensa, o jornal ―O Liberal do Pará‖, opiniões contrárias à

decisão de Dom Macedo e aos posicionamentos do catolicismo ultramontano,

defendendo que a prática religiosa de adoração a imagens de santos fazia parte da

cultura brasileira. Ainda retratado em seu jornal, críticas a Dom Macedo por

declarações feitas por ele, contrárias à prática religiosa da devoção à Nossa

Senhora de Nazaré, rotulando tal prática como ―adoração de Isis‖ e chamando o

festival que precedia a procissão do Círio de ―libertinagem‖.

Tito Franco também simpatizava com a religião protestante, pois além de dar

espaço em seu veículo de imprensa a católicos liberais, também cedeu espaço a

missionários do protestantismo que estavam presentes no Pará, como Richard

Holden, um protestante que teve espaço no jornal. Seus artigos chamaram a

atenção de Tito Franco de Almeida a ponto dos dois se tornarem amigos, e seu

jornal passou a defender a liberdade de culto para religiões acatólicas; defesa que,

na época, era um tabu no país. Nesse período, o político e jornalista entrou em

conflitos com personalidades importantes do clero católico, como o bispo Dom

Macedo Costa.

Gueiros retrata os conflitos entre Dom Macedo Costa e Richard Holden

também a partir de cartas pastorais, dizendo que a base da fé católica não era a

Bíblia, tida como ―a babel do protestantismo‖; afirmando que os protestantes eram ―o

monstro da heresia‖ e que tentavam invadir o ―império da Cruz‖, que ―a Bíblia

protestante deveria ser destruída‖, proibindo os católicos de a possuírem em casa.40

Os protestantes eram minoritários na região, e o liberalismo era abraçado

também por outro grupo muito restrito formado por alguns intelectuais e políticos no

estado. O que percebemos desses dois grupos em específico é que, além de terem

39

NEVES, Fernando Arthur. Solidariedade e conflito: estado liberal e nação católica no Pará sob o pastorado de Dom Macedo Costa (1862-1889). Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2009, p.223. 40

GUEIROS, David Vieira. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1980, p.182.

34

suas querelas com o catolicismo, defendiam amplamente o regime democrático e a

separação entre Igreja e Estado.

O Círio e toda a devoção mariana que o cerca é um exemplo significativo da

hegemonia social católica que já estava consolidada na sociedade Paraense. Um

catolicismo que durante os séculos procurou manter a continuidade de seu poder

hegemônico durante o período que esteve consolidada na região, e que no final do

século XIX se via diante de novos desafios para se manter no poder, ora regulando

práticas religiosas de populares, ora as permitindo, procurando apoderar-se do

poder simbólico da igreja institucional através do alto clero, combatendo ideais como

o liberalismo, o protestantismo e outras religiões e correntes de pensamento que

permeavam alguns segmentos sociais, fosse no Pará ou no resto do ocidente.

Autores como Hugues Portelli e Raymond Willams procuram trabalhar os

conceitos de Antônio Gramsci sobre hegemonia. Willams descreve hegemonia como

sendo: todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida:

nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso

mundo. É um sistema vivido de significados e valores – constitutivo e constituidor –

que, ao serem experimentados como práticas, parecem confirmar-se

reciprocamente.41

Portelli segue uma visão semelhante, definindo hegemonia como esse

mesmo conjunto de práticas e expectativas sobre a totalidade da vida e percepção

de mundo, porém controlados por uma instituição dominante que controla uma

sociedade a nível ideológico. Portelli analisa Gramsci e nos mostra o quando ele usa

a Igreja Católica como exemplo para conceituar hegemonia, justamente por ser ela

uma instituição que na Idade Média se tornou a mais poderosa, controlando as

esferas políticas e ideológicas da sociedade europeia.

A devoção à Nossa Senhora de Nazaré ou às imagens de santos católicos,

mesmo sendo questionada por alguns clérigos, na maior parte do tempo tiveram sua

prática tolerada pelos cleros, ainda que eles fizessem intervenções constantemente,

em especial para que assim pudessem continuar sendo vistos como os reais

representantes de toda a religiosidade presente.

Essa aparente unidade mantida pelo catolicismo é um de seus mecanismos

de consolidação de sua hegemonia usado desde o período medieval, o que se

41

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

35

convencionou chamar de o ―monopólio ideológico‖42 da sociedade. Com uma

sociedade inteira tendo uma cosmovisão fortemente influenciada pela Igreja,

Gramsci a define como um aparelho religioso e ao mesmo tempo um aparelho

político do Estado.

Não nos embasaremos nas visões que Gramsci tinha sobre o catolicismo,

que punha a religião católica como o aparelho ideológico do estado como se fosse

submissa ao poder estatal. O que nós extrairemos de sua análise é a percepção

sobre o quanto o catolicismo hegemônico era atrelado ao Estado, como um

instrumento político que se vinculava ao poder estatal justamente pela Igreja

Católica ser a principal formadora da mentalidade de toda a sociedade civil.

Trabalharemos com a via de mão dupla existente entre Estado e Igreja, na qual a

igreja não necessariamente era controlada pelo Estado, agindo de forma autônoma

e procurando muitas vezes usufruir do poder do Estado em favor de seus próprios

interesses.

A separação entre Igreja e Estado, marca registrada do discurso de liberais

e protestantes contra a Igreja Católica, foram um dos principais temas de conflito

entre o clero católico e esses segmentos sociais. Notamos assim que desde o

Império no Brasil já existem grupos políticos e religiosos que procuram se contrapor

a essa hegemonia católica. As medidas enérgicas do catolicismo contra o

liberalismo, o protestantismo, a maçonaria e uma série de outras religiões e ideais

acatólicos vão se reestruturar conforme surge o regime republicano, que oficializa,

juridicamente, a separação da Igreja Católica do estado brasileiro.

1.2 ―ENTRE MARIA E MARRIANE‖: O CATOLICISMO NO BRASIL REPÚBLICA

Se analisarmos os diversos trabalhos historiográficos sobre a história da

cidade de Belém, veremos que apontam mudanças consideráveis na cidade a partir

da segunda metade do século XIX. Historiadoras como Maria de Nazaré Sarges, ao

analisar a cidade de Belém no final do século XIX e início do século XX, afirmam

tratar-se de uma época na qual a economia de Belém estava em alta devido ao fato

da região amazônica ser a principal exportadora de borracha no mundo e por ser

uma cidade portuária; sendo assim, era o principal município para se efetuar a

42

PORTELLI, Hugues. Gramsci e a questão religiosa. São Paulo: Edições Paulinas, 1984, p.42.

36

exportação dos produtos manufaturados da borracha. Nessas circunstâncias, o

governo local pôde destinar verbas para investir em mudanças no espaço urbano.

Por essas razões, surgiram mais indústrias na cidade, bancos e obras, entre elas a

construção de teatros, palacetes, monumentos, cinemas; ―é que a cidade começa a

se desenvolver em uma progressão assombrosa sob todos os aspectos –

intelectuais, materiais e econômicos‖. A historiografia trabalha esse período como

um momento de constantes mudanças na cidade, na estrutura urbana, no comércio,

no comportamento social de vários segmentos da sociedade.

Novos espaços sociais foram sendo construídos e junto a eles novas

barreiras e diferenciações. Tendo como modelo a París de Haussuman do século

XIX, a cidade passou a ser estruturada com largas avenidas. Enquanto o povo era

alijado para as periferias, os mais abastados passaram a se concentrar no entorno

do centro da cidade, justamente onde se concentrava a melhor infraestrutura urbana

e os melhores serviços de conforto e lazer, tais como praças arborizadas,

importantes lojas de comércio, bancos, teatros, bailes e bondes elétricos. Na região

central também se localizavam as maiores catedrais católicas, desde as primeiras

igrejas fundadas no século XVI até a basílica de Nazaré, o maior templo católico da

cidade, localizado no centro de Belém, no bairro de Nazaré. O centro da cidade era

uma referência não apenas para as práticas de lazer, serviços e comércio, mas

também como um referente polo religioso da cidade.

Entre as diversas mudanças que ocorriam no urbanismo, também foi

possível presenciar na Belém da época uma grande mudança na estrutura política,

acompanhando as mudanças que ocorriam no Brasil, já que no final do século XIX,

mais especificamente em 1889, é declarado o fim do Império e o início da República

no Brasil. Com o advento da República, as autoridades políticas vigentes

procuraram reestruturar não apenas a política do país, mas todo o imaginário social

de uma população por meio da inserção de novas simbologias, que se dava por

meio de festas cívicas, mudanças de nomes de ruas e a construção de monumentos

que remetessem ao ideal republicano. Eis como se fomentava uma ideologia política

e se construia um imaginário social a partir da instauração do regime republicano no

país.

Para a legitimação ideológica desse novo regime, o autor aponta três

correntes que disputavam a natureza do novo sistema político, o ―liberalismo à

37

americana, o jacobinismo à francesa e o positivismo‖.43 Dentre eles, o positivismo

aparece ganhando maior destaque por ser o principal ideal abraçado pelas elites

republicanas. Os republicanos no Brasil tiveram como maior inspiração simbologias

que remetiam à República Francesa, ancorada pelos ícones de revolução jacobina,

além do positivismo como um modelo ideal a ser seguido, trabalhando com a tese

de que para se construir um discurso republicano para uma população iletrada e de

baixa educação formal era necessário o uso de imagens, alegorias, símbolos e

mitos. Importante salientar que essas simbologias para os imaginários sociais no

Brasil foram, em sua maior parte, mais inspiradas pela revolução francesa do que

por símbolos do liberalismo norte-americano que, por sua raiz protestante, tinha um

empobrecido arcabouço de imagens simbólicas de representação.

Mesmo com algumas inspirações americanas e predominantemente

francesas, houve, como dito antes, o positivismo como o ideal que mais agradou os

republicanos. No ideal positivista, há uma perspectiva política de uma mudança

evolutiva, na qual os regimes políticos se aperfeiçoam com o passar do tempo.

Assim, a monarquia seria apenas uma ―fase‖ que naturalmente se modificaria para o

regime republicano, considerado um regime melhor. Como nos fala o autor:

O arsenal teórico positivista trazia armas muito úteis. A começar pela condenação da monarquia em nome do progresso. Pela lei dos três estados, a monarquia correspondia à fase teológico-militar, que devia ser superada pela fase positiva, cuja melhor encarnação era a república.44

Apesar dos republicanos serem contrários à monarquia, a intervenção social

do Estado continuou semelhante à monárquica, diferentemente do que propunha o

liberalismo norte-americano. O ideal jacobino de revolução também não era visto

com bons olhos, fazendo com que o modelo positivista que defendia o fim da

monarquia fosse concretizado no Brasil, mas não como uma revolução civil feita à

força como a francesa, ou com grandes perdas estatais de poder, como defendiam

os liberais.

Entre as propostas políticas republicanas trazidas pelo positivismo, a

―separação entre igreja e estado também era atraente para este grupo,

43

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.09. 44

Ibidem, p.27.

38

particularmente entre professores, estudantes e militares‖45, embora tal separação

também fosse um assunto de conformidade com outros setores do movimento

republicano no país, caso dos próprios liberais, maçons e tantos republicanos

admiradores dos modelos de república norte-americanos ou franceses, que

procuraram, mesmo de maneiras distintas, aplicar a separação entre Igreja e

Estado.

Essa relação da Igreja com o Estado em um regime republicano foi algo que

acompanhou a história desse modelo político em países ocidentais. Na França, a

partir da revolução francesa, os modelos de repúblicas instituídos foram hostis ao

catolicismo presente, visto que:

A revolução francesa, ao dar luz a uma nova ordem política e social, teve de faze-lo dentro de um estado regalista. E em confronto directo com o poder (espíritual, político e econômico) da confissão dominante, um dos alicerces do antigo regime. (Catroga, p.223) [...] O que deu origem a implantação de muitos cultos alternativos (Theofilantropia, culto da razão) e as novas expressões rituais (Panteão, festas cívicas, música coral patriótica, novas fórmulas de juramento), tendo em vista abolir, ainda que mimeticamente em relação ao adversário, o papel que o cristianismo (e o catolicismo) tinha exercido no papel de ―formação das almas‖.46

Essas simbologias que procuravam substituir toda a hegemonia católica

europeia se mostravam presentes nas festas cívicas que homenageavam

revolucionários, substituindo as festas católicas que referenciavam seus santos e

mártires; livros sobre os ―direitos do homem‖ substituindo as escrituras e tradições

escritas do catolicismo como fonte de fundamento moral, a figura revolucionária da

Marriane, constantemente utilizada em esculturas e gravuras de grandes

monumentos, utilizada como tentativa de substituição do ícone de Maria enquanto

objeto feminino de devoção e admiração; a defesa de escolas laicas comandadas

pelo Estado, tirando a Igreja Católica enquanto principal instituição que coordenava

a educação francesa. Mesmo com permanências do catolicismo francês na

sociedade, essa relação de Igreja e Estado na França se deu em uma relação

conflituosa no decorrer da história republicana francesa, indo desde perseguição e

45

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.27. 46

CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Cesares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra, Portugal: Almedina, 2010, p.235.

39

morte de clérigos, até sua expulsão do país, ocasião da terceira república no final do

século XIX e início do XX. Como exemplo desse exílio de ordens católicas

francesas, temos a própria Ordem Barnabita que analisaremos neste capítulo.

Na adesão do Pará ao regime republicano não foi diferente, logo se procurou

mudar nomes de ruas, avenidas, escolas e praças, especialmente nos espaços que

tinham nomes que referiam o regime monárquico. Como exemplo temos as

travessas com nomes de ícones do período republicano, como Quintino Bocaiúva

(antiga Travessa Príncipe), Serzedelo Correa, Avenida Gentil Bittencourt, Ruy

Barbosa, Benjamin Constant, além dos nomes de alguns palácios, como o Antônio

Lemos, Lauro Sodré e escolas como a tradicional Paes de Carvalho (antigo Liceu

Paraense) e Justo Chermont. Nos primeiros dois anos da República, no estado

também já se elaboravam festas cívicas para comemorar as datas de 15 e 16 de

novembro, referentes à data da proclamação da república, com bandas, orquestras

e foguetes. Houve ainda a construção de monumentos aludindo a símbolos

republicanos a serem exautados, que como exemplo significativo temos a praça

Dom Pedro II, que teve alterado o nome para ―Praça da República‖ e ali se construiu

o ―Monumento à República‖, considerado um dos maiores monumentos republicanos

do país.47

Mesmo com esses símbolos republicanos sendo aplicados aqui e com a

separação da Igreja e do Estado concretizados nas repúblicas ―pós-revolução

francesa‖ houve uma reação da Igreja diante desses fenômenos. No século XIX,

papas como Pio IX, Leão XIII e Gregório XVI lançaram encíclicas como a ―Quanta

Cura‖ e ―Sylabus‖ que eram contrárias a ideais como o naturalismo, o comunismo, o

liberalismo, a ideia de progresso advinda do positivismo e o protestantismo.48 A

Igreja também incentivou o maior proselitismo dos leigos com a ―Ação católica‖ e o

―movimento social católico‖49, além do forte apelo ao marianismo vigente,

dogmantizando a doutrina da Immaculada Conceição.50

47

MOURA, Daniella de Almeida. A república paraense em festa (1890-1911) - por outras referências. Dissertação (Mestrado em História Social da Amazônia), UFPA, Belém - PA, 2008. Nessa dissertação de mestrado, a autora retrata a conjuntura da cidade no período da primeira república, descrevendo a situação do novo regime político no país e logo delimitando sua análise ao estado do Pará, especialmente à cidade de Belém, as festas cívicas, monumentos e mudanças de nomes de ruas que ocorriam na cidade à época. 48

CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Cesares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra, Portugal: Almedina, 2010, p.290. 49

Ibidem, p.288. 50

Ibidem, p.290.

40

No Brasil, especificamente no Pará, a hegemonia católica permaneceu

vigente por meio de rearticulações, alianças políticas, mudanças em sua eclesiologia

e em seu discurso. A tese de Edgar da Silva Gomes revela o quando a Igreja

Católica se aliou a políticos, rearticulou suas bases, principalmente através das

dioceses implantadas em vários estados brasileiros e ganhando a ―forma

estadualizada que o episcopado havia planejado com o fim do império‖51.

Logo, ainda que com a separação entre a Igreja Católica e o Estado, há

aproximações entre autoridades civis e eclesiásticas, seja nas áreas federais ou

estaduais, como ações de colaboração mútua entre esses poderes. Lustosa destaca

a capacidade de mobilização da Igreja na primeira república, onde são barradas

políticas contrárias a ela, como os ―ideais socialistas do ministro Osvaldo Aranha‖52,

que consegue manter a sua liberdade para atividades religiosas e faz alianças com

autoridades civis a nível federal e estadual.53

Liliane Cavalcante Goudinho retrata que a criação de uma diocese na cidade

de Manaus, em 1892, auxiliou o fortalecimento da Igreja Católica no norte do país,

que antes apresentava como coordenação apenas a arquidiocese do Pará. Com

esse poder eclesiástico dividido, houve um fortalecimento do catolicismo do Norte,

onde a coordenação de evangelismos, pastoreamentos e investimentos de projetos

da Igreja se tornaram mais eficazes.54

O catolicismo que nos é apresentado nesse período é diverso, não só nas

práticas católicas presentes nos diferentes segmentos sociais de uma sociedade

hegemonicamente católica. Até mesmo entre a Igreja ligada à instituição havia uma

diversidade de ordens religiosas que se instauravam no país, com diferenças entre

si, mesmo mantendo sua diversidade católica. Liliane Cavalcante Goudinho relata

que na Amazônia, desde Manaus até Belém, havia diversas ordens religiosas.

Desde o fim do aviso imperial que proibia a entrada de novas ordens religiosas, nos

últimos anos do Império, o número de ordens foi crescente e muitas se

estabeleceram no século XX após a instauração do regime republicano. Também

como estratégia de fortalecimento do campo de influência da Igreja Católica, nas

51

GOMES, Edgar da Silva. O catolicismo nas tramas do poder: a estadualização diocesana na Primeira República (1889-1930). Tese (Doutorado em História), PUC-SP, 2012, p.312. 52

LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. Os bispos do Brasil e a imprensa. São Paulo: Edições Loyola, 1983, p.37. 53

Ibidem, p.36. 54

GOUDINHO, Liliane Cavalcante. A palavra que vivifica e salva contra o mal da palavra que mata: imprensa católica em Belém (1910-1930). Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2014, p.51.

41

primeiras décadas do séc. XX, já tínhamos Barnabitas, Jesuítas, Sagrada Família,

Agostinianos Recoletos, Franciscanos, Trinitários e tantos outros.55

Dentre essas diversas ordens que se estabeleceram na região, os

barnabitas merecem destaque, pois no início do séc. XX, ao chegarem em Belém,

passaram a organizar espaços e eventos importantes para o catolicismo paraense,

como a basílica de Nazaré, o Círio e a imprensa católica no Pará.

A Ordem Barnabita tem origem na Itália, no ano de 1502, com um jovem

médico chamado Antônio Maria Zaccaria, que, sendo inicialmente um médico leigo

católico, procurava propagar a fé católica em diversas cidades da Itália que julgava

serem ―fortemente contagiadas pelo paganismo e doutrinas contrárias ao homem‖56 .

Aos 26 anos se tornou sacerdote e no decorrer de seu ministério Antônio Zaccaria

―[...] salvou, com isso, sua terra natal do paganismo, impedindo ao mesmo tempo

que nela penetrasse a doutrina protestante, que surgia na época avassaladora,

como um vulcão em erupção‖57. Os sacerdotes que se reuniram em torno de Antônio

Maria Zaccaria em Milão, na Itália, diante de diversos nomes anteriores, foram

nomeados como ―os barnabitas‖ e se espalharam por diversos países, mantendo

sua ordem ao redor do mundo no decorrer dos séculos seguintes.

Os Barnabitas que chegaram a Belém no início do século XX foram expulsos

da França em após as ―Leis de separação‖ entre a Igreja e Estado na França. As

congregações procuravam resistir às políticas de laicização da sociedade Francesa

introduzidas pela terceira república a mando do ministro Émilie Combes, que nesse

período já havia expulsado cerca de vinte mil religiosos do país, onde os Barnabitas

estavam inclusos.58

Aqui no Brasil os barnabitas também encontraram um quadro de separação

entre Igreja e Estado ocorridas na proclamação da república.

Com as transformações políticas do Brasil a partir do advento da República houve a separação entre igreja e estado, em 1890. A constituição de 1891 suprimiu o pagamento ao clero, mas garantiu à Igreja liberdade e direito de propriedade. As relações diplomáticas foram restabelecidas e a organização

55

GOUDINHO, Liliane Cavalcante. A palavra que vivifica e salva contra o mal da palavra que mata: imprensa católica em Belém (1910-1930). Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2014, p.51. 56

MERCES, José. M. Ramos. Barnabitas no Brasil - 100 anos. Belém: Sociedade Brasileira de Ação e Cultura (Província dos Barnabitas do Norte), 2003, p.20. 57

Ibidem, p.20. 58

Ibidem, p.20.

42

eclesial passou a depender diretamente de Roma. Foi então que a hierarquia brasileira teve que lutar para refazer-se dos prejuízos e o meio mais utilizado foi o favorecimento da chegada das ordens religiosas [...] Tudo isso para evidenciar que, também a vinda dos Barnabitas ao Brasil, embora ocasionada por fatos contingentes - como descritos anteriormente - não foi um acontecimento isolado. Foi acolhida nesse contexto mais amplo de renovação pastoral promovida pelo episcopado brasileiro, que para tanto incentivou a vinda dessas congregações religiosas, para educação da juventude e, sobretudo, para enfrentar a grande escassez do clero secular.59

Notamos então que a iniciativa da Igreja Católica no Brasil de agregar aos

barnabitas em seu meio eclesiástico fazia parte desse período de renovação do

catolicismo diante de um novo quadro político e religioso de separação entre Igreja e

Estado. Os barnabitas, assim como outras diversas ordens, tiveram facilitações em

seu acesso para poder renovar o clero com menos custo, com objetivos que

acreditamos ir além da ―educação para a juventude‖ e enfrentamento da escassez

do clero secular, como retratados por Merces. Analisando de uma perspectiva mais

ampla, os Barnabitas, assim como outras ordens, eram um instrumento de

renovação do catolicismo para que ele se mantivesse hegemônico em uma

sociedade que havia perdido sua titulação de religião oficial do Estado.

Entre as diversas cidades brasileiras às quais os Barnabitas foram

chamados, como São Paulo e Recife, eles também foram para a Amazônia e

administraram setores muito significativos do catolicismo paraense e foram

responsáveis por evangelizações nos interiores do estado do Pará, dirigiram um

seminário católico na cidade de Bragança, onde além de ensinar sacerdotes

também se dedicaram ao ensino da população leiga. Em Belém, no ano de 1905, foi

―entregue a eles o mais importante santuário de devoção popular da Amazônia, o de

Nossa Senhora de Nazaré‖60, utilizada como uma estratégia do episcopado

brasileiro para controlar os principais centros de devoção do Brasil.

59

MERCES, José. M. Ramos. Barnabitas no Brasil - 100 anos. Belém: Sociedade Brasileira de Ação e Cultura (Província dos Barnabitas do Norte), 2003, p.30. 60

MAUÉS, R. Heraldo. Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular e controle eclesiástico. Belém: Cejup, 1995, p.63.

43

A intensão dos barnabitas era fazer uma reforma no santuário, mas que, na

prática, caracterizou o reestabelecimento de uma nova igreja. A ideia era a

construção de uma basílica com uma ornamentação que a caracterizasse como um

grande templo. A obra, que começou em 1909, durou 14 anos, sendo reconhecida

como a terceira Basílica do Brasil, em 1923.

Um estilo da nossa basílica é neo-clássico em suas linhas gerais. Ela se apresenta com cinco naves, divididas em 36 colunas, de puro granito italiano. Possui 53 vitrais franceses da casa Champignuelle de Paris, 65 ilustrações em mosaico veneziado, 15 estátuas de mármore, 3 grandiosas portas de bronze da firma Barigozzi de Milão – sendo que o maior pesa duas toneladas, medindo 1,80m de diâmetro.61

Notamos a grandiosidade da ornamenetação da basílica, muitas vindas de

países europeus, como o granito italiano e os vitrais franceses além das portas de

bronze. Havia uma clara intensão de retratar a basílica como um monumento

suntuoso, grandioso. Pe. Afonso di Gigorio, o barnabita que é destacado como o

padre que dedicou tempo para as obras da Basílica de Nazaré nas primeiras

décadas do século XX, é retratado por Merces como aquele que "ornaria

dignamente o maior templo românico do Brasil", e que essa suntuosa ornamentação

era necessária pois estaria sendo feita para a "Mãe de Deus". A intensão dos

barnabitas parece ser a de edificar a basílica com a grandiosidade que julgam

merecer a virgem de Nazaré. Merces, retratando um biógrafo de Pe. Afonso,

descreve seu empenho: ―estudou-lhe a estrutura, examinou as possibilidades,

consultou os arquitetos e depois formulou o seu plano: cobri-la dos mais valiosos

mármores e das obras de artes mais preciosas‖62.

61

MERCES, José. M. Ramos. Barnabitas no Brasil - 100 anos. Belém: Sociedade Brasileira de Ação e Cultura (Província dos Barnabitas do Norte), 2003, p.54. 62

Ibidem, p.52.

44

Figura 1 - Vista parcial da Basílica a partir do altar-mor.63

Figura 2 - Porta de bronze na entrada da Basílica.64

63

Interior da Basílica, colunas de granito de Baveno (Alpes). DUBOIS, Pe. Florencio. Devoção a Nossa Senhora de Nazareh. Rio de Janeiro, 1949. 64

Ibidem.

45

Observando a porta de bronze pode-se perceber mais uma característica da

Basílica. Diversas imagens também passaram a fazer parte de sua estrutura, e

muitas delas eram imagens de santos, algumas fabricadas na Europa, como a de

santa Terezinha, ou santa Inês. Também havia imagens de Jesus Cristo, a maior

parte delas mostrando sua morte. Uma imagem em específico chamou a atenção do

jornal "O Estado do Pará", em 1916, a imagem da Imaculada Conceição de Maria. O

jornal a descreveu assim:

[...] sugestiva e impressionante cerimônia do culto católico realizada na Catedral, aquela manhã. Será benção de linda imagem da Imaculada Conceição de Maria, adquirida em París, pelo Cura da Sé, Padre Melibeu de Lima. É uma obra primorosa trabalhada em CARTON PIERRE pelos inválidos da atual guerra e mede 1 metro e 20 cmts de altura.65

Entre as diversas imagens que ornamentavam a basílica, percebemos um

trato e um destaque maior para as imagens marianas, seja através da própria

percepção de jornais da grande imprensa à imagem de Imaculada Conceição ou a

outras imagens de Nossa Senhora, feitas em mármore, pintadas ou esculpidas no

bronze, como pode-se ver na porta de entrada, figura acima.

65

O ESTADO DO PARÁ. Belém, 1916. Apud: DUBOIS, Pe. Florencio. Devoção a Nossa Senhora de Nazareh. Rio de Janeiro, 1949.

46

Figura 3 - ―Clássico tímpano da Basílica‖.66

Figura 4 - ―Precioso mosaico de abside‖.67

66

―Clássico tímpano da Basílica. A cruz central é coberta de mosaicos ouro. O frontal encerra o rico mosaico da apoteose de Nossa Senhora, onde se veem representados todos os elementos étnicos da Amazônia. Imagem de Nossa Senhora de Nazaré.‖ DUBOIS, Pe. Florencio. Devoção a Nossa Senhora de Nazareh. Rio de Janeiro, 1949. 67

―Precioso mosaico de abside, cuja cornija é um rico e majestoso arco com lindos estuques dourados: representa a casa de Nazaré com a Sagrada Família.‖ Ibidem.

47

Figura 5 - ―Vista do altar-mor todo em mármore de Carrara‖.68

68

―Vista do altar-mor todo em mármore de Carrara. As colunas que regem a mesa são de vermelho de Verona. No centro o sacrário, com sua porta de bronze, verdadeira obra-prima de buril da Casa Bertarelli de Milão. No alto fazendo centro a uma grandiosa glória, a pequena e histórica imagem da Virgem de Nazaré, donde partem lindos raios, do mais puro mármore de Carrara, engastados de mosaico ouro.‖ DUBOIS, Pe. Florencio. Devoção a Nossa Senhora de Nazareh. Rio de Janeiro, 1949.

48

Figura 6 - ―A famosa Berlinda em que nossa Senhora de Nazaré, todos os anos, durante o Círio, percorre as principais ruas de Belém.‖69

69

DUBOIS, Pe. Florencio. Devoção a Nossa Senhora de Nazareh. Rio de Janeiro, 1949.

49

A Ordem Barnabita percebeu a representatividade daquele espaço para os

paraenses, Merces retrata a construção da obra como uma valorização dos

barnabitas diante da fé católica paraense voltada à Nossa Senhora de Nazaré. Eles

tinham a consciência de que a Basílica de Nazaré seria o "centro do Círio",

conheciam a força da devoção mariana na cidade e procuraram fazer um

monumento "a altura" de toda essa religiosidade. A Basílica acabou sendo um

elemento a mais para a construção de todo um imaginário religioso paraense voltado

para a devoção à Virgem de Nazaré.

Todavia, gostaríamos de analisar tal acontecimento para além da narrativa,

muitas vezes heroizada por José M. Ramos Mercês na revista ―Barnabitas no Brasil:

100 anos‖ com relação às ações dos barnabitas no estado. Independentemente da

boa vontade dos barnabitas, acreditamos que a construção da basílica também fazia

parte do processo de reestruturação do catolicismo na República, na qual as ordens

procuravam renovar espaços simbólicos da fé católica brasileira para consolidar sua

hegemonia presente na cidade. Especialmente em um período em que o estado

republicano também construía seus monumentos simbolizando seus ideais, fazendo

muitas vezes o catolicismo perder espaço na simbologia republicana.

Como exemplo, já citamos a Praça da República, anteriormente chamada

―Dom Pedro II‖, que se modificou poucos anos após a proclamação da república, e

que se tornou um dos mais importantes pontos de circulação da cidade, reunindo em

suas imediações grandes teatros reconhecidos pelo mundo todo, como o Teatro da

Paz. Para dignificar ainda mais este espaço, em 1897 foi construído o ―mais

expressivo conjunto escultórico construído no Brasil em homenagem à república‖70.

O monumento à república. Tendo a Marianne como o principal destaque, sua figura

foi esculpida no alto de uma coluna de 22 metros de altura, a construção desse

monumento foi incentivada pelo governador Justo Chermont. Ela era retratada como

a própria representação da República. A escultura compreende uma mulher

imponente, em pose de luta, segurando uma espada, mostrando como a República

lutava contra seus inimigos, ―remete a uma ideia de movimento, de marcha

aguerrida, a República realizava-se como vontade, determinação e imperativo,

conceitos reunidos na condição de discurso‖71. O conceito de república deveria ser

70

COELHO, Geraldo Martires. No coração do povo: o monumento à República em Belém - 1891-1897. Belém: Paka Tatu, 2002, p.64. 71

Ibidem, p.138.

50

reconhecido nela, e assim como as festas civis instauradas, os desfiles, as

mudanças de nomes de praças e de ruas, Marianne também era um símbolo desse

―novo tempo‖ que representava o período republicano, uma república que

[...] chamava o cidadão a integrar-se ao universo dos signos que redefiniam os parâmetros de sua lealdade à república, ao mesmo tempo que universalizava os grandes emblemas - a começar, é claro, por Marianne - pelos quais o cidadão reconhecia a república e se reconhecia nela. Havia, portanto, uma nítida preocupação em formar uma alma republicana a habitar o corpo social, de modo que a República imperasse sobre todos os pensamentos e sobre todas as vontades, no que seria o substrato ético da consciência republicana. Esses processos simbólicos, de grande eficiência ideológica, já eram desenvolvidos na França, nos primórdios da terceira república.72

A figura feminina, desde as repúblicas francesas, até mesmo as instauradas

no Brasil, era retratada como o principal simbolismo, contrastando com o símbolo

monárquico do masculino como a principal figura de autoridade.73 Dentre as diversas

figuras femininas, a simbologia da Marianne como uma mulher revolucionária

representante do período republicano, quando utilizada sempre foi acompanhada de

grupos antirrepublicanos que utilizavam a figura de Maria como um símbolo feminino

que rivalizava com Marianne. Seja na França ou no Brasil, os republicanos sempre

precisaram conviver com algum símbolo de uma devoção mariana hegemônica

desde o período imperial. José Murilo de Carvalho nos mostra Nossa Senhora

Aparecida sendo utilizada como ―arma antirrepublicana‖ ao ser ―coroada como

rainha da nação em 1904‖74. Essa competição simbólica de uma representação

feminina do novo regime se perpetuou até 1930 com a declaração de Pio IX

consagrando Nossa Senhora de Aparecida padroeira do Brasil.75

72

COELHO, Geraldo Martires. No coração do povo: o monumento à República em Belém - 1891-1897. Belém: Paka Tatu, 2002, p.132. 73

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.75. 74

Ibidem, p.93. 75

Ibidem, p.94.

51

Ao analisarmos esses dois grandes monumentos construídos em Belém, o

Monumento à República e a Basílica de Nazaré, é interessante perceber que diante

de uma cidade com uma crença tão fervorosa à figura mariana como a Nazaré,

houve um aproveitamento de todo esse imaginário para se criar esculpir uma

Marianne em um dos maiores monumentos do país. Seria a basílica uma tentativa

direta de contraponto a diversos monumentos como este? Para melhor entendermos

essa perspectiva, precisamos refletir sobre o conceito de ―monumento‖.

Segundo Françoise Choay, um monumento é ―aquilo que traz a lembrança

de algo‖, algo edificado por uma comunidade de indivíduos para fazer com que as

pessoas pertencentes àquela sociedade rememorem acontecimentos, sacrifícios,

ritos ou crenças. A intenção do monumento é invocar um discurso, construir um

passado e contribuir para o desenvolvimento de uma ―identidade de uma

comunidade étnica, religiosa, nacional tribal ou familiar‖.76

Jaques Le Goff avança um pouco mais nessa perspectiva e acrescenta algo

que conversa ainda melhor com as fontes que temos. O autor afirma que devemos

refletir o monumento de forma crítica, como um documento histórico construído,

―produto de um centro de poder, deve ser estudado em uma perspectiva econômica,

social, política, cultural, espiritual, mas, sobretudo, como instrumento de poder”, este

não é ―qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade

que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder‖.77

Construções como a da Basílica de Nazaré ou o Monumento à República possuem

essa intencionalidade. Construir para a região uma identidade, na qual as pessoas

se identifiquem e se reconheçam naquele monumento ali construído. Notamos uma

batalha identitária de grupos sociais poderosos na cidade, do clero católico a grupos

intelectuais e políticos republicanos que procuravam passar por meio desses

monumentos suas próprias visões de mundo e perspectivas sociais, procurando

construir na cidade suas mentalidades sociais.

Notamos que o início da construção da basílica se deu justamente em um

período muito próximo à reação da igreja brasileira diante do simbolismo feminino

republicano. A ordem Barnabita conhecia bem esse embate simbólico, pois veio

expulsa da própria nação, onde estava sendo travada uma verdadeira disputa

76

CHOAY, Françoise. Alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade; Editora UNESP, 2001, p.18. 77

LE GOFF, Jaques. História e Memória. Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 1994.

52

simbólica entre Estado e Igreja através da construção de monumentos. Tanto a

ordem barnabita quanto o Estado sabiam da importância do monumento na

formação da mentalidade de uma sociedade. Ainda que não fosse de forma tão

direta, é possível notar o quanto os monumentos eram utilizados na república

brasileira, tanto pelo Estado quanto pela Igreja, como um capital simbólico para se

legitimar discursos e imaginários sociais em um período onde ambos procuravam

―formar as almas de cidadãos‖ com representações muitas vezes conflitantes entre

si na história do período republicano ocidental, como as figuras femininas de Maria e

Marianne.

Figura 7 - ―Monumento à República‖ em Belém, ao lado do Teatro da Paz.78

78

COELHO, Geraldo Martires. No coração do povo: o monumento à República em Belém - 1891-1897. Belém: Paka Tatu, 2002.

53

Figura 8 - Basílica ainda em construção, 1920.79

Figura 9 - Solenidade do início da construção da Basílica de Nazaré, em 1909.80

79

COELHO, Geraldo Martires. No coração do povo: o monumento à República em Belém - 1891-1897. Belém: Paka Tatu, 2002. 80

Ibidem.

54

1.3 ―A PALAVRA‖: A IMPRENSA COMO INSTRUMENTO DE HEGEMONIA

Como dito acima, a imprensa católica no Pará se fez presente do século XIX

ao início do XX. Os meios de comunicação de massa, no geral, faziam parte dessas

diversas mudanças ocorridas na urbe. O maior nível de instrução das pessoas nas

áreas urbanas e o consequente aumento ao acesso aos conteúdos publicados

contribuíram para a elevação das tiragens.

Heloísa Cruz em seus estudos sobre a imprensa em São Paulo no final do

século XIX e início do XX nos diz o quanto a imprensa, além de crescer em

publicações, também se diversifica, ―chegando ao público através de um grande

número de publicações das mais variadas modalidades; através da expansão de

suas tiragens, acompanham o salto populacional da cidade‖. Ainda, segundo essa

autora, a imprensa foi, nesse período, um fator importante no letramento da

população.

Belém também se mostrou um território urbano em crescimento no estado

do Pará, e ali notamos uma maior variedade de tipos de imprensa. No século XX

havia uma alta circulação de jornais e revistas na cidade de Belém, desde o jornal

informativo ―Folha do Norte‖, que circulava desde o final do século XIX, até revistas

que passaram a ser publicadas nesse período. Entre elas, as mais populares e

duradouras eram ―A Semana‖ e ―Belém nova‖, que na década de 1920 eram

publicadas quinzenalmente e até semanalmente. A revista ―A Semana‖ continuou a

ser publicada na década de 1930, mas não era a única revista em circulação na

cidade, havia outras, como ―Terra Imatura‖ e ―Pará Ilustrado‖. Encontramos muitos

exemplares delas nos acervos do Pará. Assim percebemos tanto uma similaridade

desse fenômeno do crescimento urbano em Belém como uma maior propagação da

imprensa, que junto ao cinema, rádio e outros meios de comunicação, propagavam

e construíam valores, hábitos e comportamentos urbanos. A imprensa serve como

um elemento de propagação desses ideais de cidade, que se articula com as

transformações no meio urbano como nos relata Heloísa Faria Cruz.

A cidade intromete-se na imprensa. O crescimento da cidade, a diversificação das atividades econômicas, a ampliação do mercado e o desenvolvimento da vida mundana são incorporados às formas e conteúdos dessas publicações. Através de novas temáticas, personagens e linguagens, o

55

processo social que transforma a cidade passa também a configurar as publicações.81

Desde o século XIX, percebemos veículos da imprensa católica circulando

no estado, como ―A boa nova‖. Tratava-se de um recurso da modernidade do qual a

Igreja se apropriou para propagar seus ideais. No século XX, com esse boom da

imprensa acontecendo em Belém, a imprensa católica também se reestrutura e se

torna uma importante difusora da fé católica, seus posicionamentos religiosos e

políticos, que também terá um considerável espaço na grande imprensa, com

diversos artigos em jornais como ―Folha do Norte‖; eram artigos escritos por padres,

propagandas de batismos, informes sobre missas e rituais como o Círio de Nazaré,

todas informações que eram constantemente propagadas e propagandeadas pelos

jornais. Dessas novas formas de estrutura na tentativa do catolicismo de manter seu

poder hegemônico, a imprensa se revelou um importante instrumento. Veículos de

imprensa predominantemente católicos existiam desde o período imperial, porém no

período republicano notamos uma nova rearticulação da imprensa católica no país,

em que pequenos periódicos eram ajudados por organizações como o ―centro‖ e as

várias dioceses espalhadas pelo país.82

É destaque dentre os veículos de imprensa que circulavam em Belém no

período, o jornal católico ―A Palavra‖, que circulou na cidade no período entre 1914 a

1945. Era um jornal confessional que objetivava promover e consolidar a fé católica

aos seus leitores. Os padres que escreviam nele constantemente abordavam

notícias e davam opiniões sobre a sociedade atual sob uma ótica católica. Falava-se

de casamento, opções de lazer, trabalho, atualidades da Igreja Católica,

acontecimentos internacionais e opiniões sobre ideais e religiões não católicas. A

partir da abordagem desses temas, o jornal sugeriria que a moral católica deveria

ser o norteador comportamental dos seus leitores.

O jornal era publicado semanalmente na cidade, e também passou a ser

administrado pela Ordem Barnabita, tendo como um dos principais articulistas e

editor-chefe, por alguns anos, o Padre Florêncio Dubois, e como redator-chefe o

81

CRUZ, Heloísa. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana - 1890-1915. São Paulo: Educ/ Fapesp/ Imprensa Oficial/ Arquivo do Estado, 2000. 82

Dentre os trabalhos que retratam a rearticulação da imprensa católica no Brasil república, destaca-se a tese de Liliane Cavalcante Goudinho sobre imprensa católica no Pará, já abordada neste capítulo. GOUDINHO, Liliane Cavalcante. A palavra que vivifica e salva contra o mal da palavra que mata: imprensa católica em Belém (1910-1930). Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2014.

56

doutor Paulino de Almeida Brito. O livro ―Barnabitas no Brasil - 100 anos‖ mostra Pe.

Florence Dubois como um comunicador, formado em retórica pela Sorbonne de

Paris aos 19 anos, e que veio a Belém junto com a Ordem Barnabita chegando ao

Pará em 1905. O padre é retratado como dono de ―uma invejável cultura‖, e assim

foi se tornando a liderança católica que melhor conseguia se articular como um

comunicador, conseguindo ser editor-chefe do jornal ―A Palavra‖ e ganhando espaço

no jornal da grande imprensa local, o ―Folha do Norte‖.

Padre Dubois era um padre barnabita famoso por sua defesa ferrenha à fé

católica, característica que se revelava nitidamente em seus artigos publicados na

maior parte das edições recolhidas do jornal ―A Palavra‖, e que ocupavam sempre a

primeira página. Os temas recorrentes dessas matérias refletiam as temáticas

frequentes do jornal: críticas ao comunismo, ao espiritismo, regras de usos e

costumes e ataques ao protestantismo. Periodicamente havia matérias em que o

comunismo era a temática central, cujos argumentos desqualificavam tanto a

ideologia quanto os países que se declaravam comunistas, especialmente a Rússia,

como nesta matéria, intitulada ―Comunismo‖.

Por todo canto, e a proposito de tudo, deve-se falar nas doutrinas em que Lenin prostituiu a desventurada Russia. Na Russia Bolchevista anno passado morreram de innanição mais de 200 mil pessoas. Tivessemos nós no Brasil o communismo, o que seria dessa terra de santa cruz? A Russia, país europeu, dos maiores e mais ricos; celebre em diversos aspectos da sciencia e dos astros, a que está hoje reduzida? A um chão de desordem, a anarchia, à infelicidade. Para ser soberana nos seus desatinos e nos seus absurdos, insurgiu-se contra o catolicismo porque neste via a voz de um inimigo impiedoso. A egreja de Deus, na Russia ou no Brasil, nos confins da África ou entre as ilhas longínquas da Oceania é sempre a mesma, a sentinela fiel a guardar o arsenal bemdito das reservas Moraes da humanidade. Deus nos livre de um país communista – supremo anseio dos vadios e dos idealistas que desejam vida commoda e descansada... a custa dos que trabalham.83

Notamos que os textos sobre o comunismo passaram a ser maiores e

publicados com maior frequência no jornal a partir de 1938, mas, como podemos

notar nessa matéria, essa era uma temática que já havia aparecido no jornal

anteriormente, sempre apresentada de um ponto de vista negativo. Nessa matéria

em específico, nos é mostrado os males que a Rússia está passando após a

83

A PALAVRA. ―Comunismo‖. Belém, 1931.

57

revolução bolchevique de Vladmir Lenin. A matéria denuncia 200 mil mortos de

fome, lamentando um país que, antes de Lenin, era um dos mais ricos, e que havia

sido reduzido a ―um chão de desordem, anarquia e infelicidade‖. O interessante é

que logo após titular a Rússia comunista como uma terra anárquica, desordenada e

caótica, a matéria denuncia também a perseguição que o regime comunista russo

faz contra a própria Igreja Católica, visto que ela aparentemente era uma ―voz‖

contrária ao comunismo nessa nação.

Nota-se o jornal declarando o catolicismo como sendo uma fé globalizada e

fiel aos seus princípios, se mantendo reta em suas crenças nos vários países que

faz figura soberana, como Rússia, Brasil e na Oceania. Para além disso, a Igreja é

descrita de maneira edificante e austera, como a ―sentinela fiel a guardar o arsenal

bemdito das reservas Moraes da humanidade‖. Sob essa visão a Igreja seria uma

instituição com a missão de conservar e proteger a boa moral existente em todo o

mundo. Vale observar que ela precisa ser uma sentinela fiel e protetora do mundo é

porque há inimigos que querem destruir essa moral por toda a face da Terra, e esse

inimigo é apontado nas entrelinhas como sendo o comunismo, o que se contrapõe à

Igreja no mundo, levando a pobreza aonde havia riqueza, levando a desordem

aonde havia a ordem, e perseguindo assim a Igreja Católica, responsável essa por

resistir fiel e impavidamente a essa ameaça, e, como um guardião incansável,

resguardar o mundo inteiro dela.

Se analisarmos a relação entre os regimes comunistas e as instituições

cristãs pelo mundo, veremos que foi formada por alguns diálogos e muitos conflitos.

Inspirados pelos socialistas utópicos e científicos, donos de ideais revolucionários

semelhantes aos da Revolução Francesa. Um regime como o de Lenin, na Rússia,

também se tornou hostil à monarquia vigente no período, tomando o poder por meio

de uma revolução armada. O catolicismo enquanto religião e grande influenciador da

cosmovisão do povo russo, também possuía ideais que conflitavam com a ideologia

de Lenin.84 Segundo Catroga, regimes socialistas e comunistas, assim como

84

Lenin considerava que: ―A religião é uma das formas de opressão espiritual que pesa em toda a parte sobre as massas populares, esmagadas pelo seu perpétuo trabalho para outros, pela miséria e pelo isolamento.‖ Apud: NOVA CULTURA. Lenin: "Socialismo e Religião". 21/05/2018. Disponível em: <https://www.novacultura.info/single-post/2018/02/18/Lenin-Socialismo-e-Religiao>. No livro de Albert Galter, ―O livro vermelho da igreja perseguida‖, vê-se de forma pormenorizada as tensões entre o estado russo após a revolução comunista e a Igreja Católica ali presente. Desde uma desconstrução simbólica a prisões e mortes de lideranças católicas, o que nos faz entender um pouco sobre as constantes críticas do catolicismo ao regime comunista russo. GALTER, Albert. O livro vermelho da igreja perseguida. Petrópolis, RJ: Vozes, 1953.

58

nazistas, fascistas, e outros regimes totalitários característicos do século XX,

também procuram, a semelhança do que ocorreu na França, a separação entre

Igreja e Estado, sendo este último o novo representante do ―Deus-providência‖,

substituindo o Deus cristão. No comunismo haveria ainda a intensão de ―formar as

almas‖ das sociedades em que o sistema se instaurava.85 Os comunistas que

existem no Brasil também são desqualificados pela matéria, mas ao contrário dos

que estão no poder na Rússia, os nossos são retratados como ―vadios e idealistas

de vida cômoda‖.

Apesar da desqualificação com os comunistas brasileiros estar presente, as

palavras utilizadas são menos duras se comparadas às descrições feitas do

comunismo francês, para além de até mesmo uma certa obviedade analítica, já que

o Brasil passava longe de ser um regime comunista, pois os comunistas por aqui

eram um grupo minoritário, concentrado nas universidades, em alguns cargos

políticos e em nichos do operariado. Mesmo sua força política sendo pequena no

país, havia uma preocupação do jornal em desqualificá-los e descrevê-los de forma

pejorativa.

Desde a história do comunismo europeu, os conflitos com o cristianismo

eram constantes, mas para além desse fato havia uma preocupação do clero em

alimentar um embate retórico com grupos sociais acatólicos e até mesmo

anticatólicos, a maioria pertencente a uma parcela da população composta por

pessoas economicamente abastadas e letradas, vindas de boas escolas e

universidades, segmentos que muitos dos comunistas brasileiros também faziam

parte.

Uma outra parcela minoritária da população, que o jornal constantemente

retratava, eram os espíritas. Para eles o jornal dava maior destaque que ao grupo

anterior, com matérias maiores e mais frequentes, utilizando letras garrafais nos

títulos. A maior parte dessas matérias refutavam as doutrinas espíritas, como

exemplo da matéria ―O espiritismo‖, com trecho a seguir:

Sem dúvida, podemos afirmar com o código penal numa das mãos e a medicina na outra, que as práticas de espiritismo levam os seus adeptos aos mais criminosos excessos e os fazem enlouquecer, reduzindo-os a barbaria das antigas religiões pagãs, arrastando após um cortejo de males psysicos

85

CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra, Portugal: Almedina, 2010, p.268.

59

e moraes [...] Fazemos nossas as palavras do presidente da Academia Brasileira de Letras, o conde dr Carlos de Laet: ―O simples facto de assistir uma secção espirita, é um requerimento de entrada em um hospício de alienados‖ Continua o nosso príncipe do jornalismo brasileiro ―das entradas de manicômios e de xadrez policiaes‖ [...] o Dr Juliano Moreira, director do hospício nacional desta capital affirma: Tenho visto muitos casos de perturbações mentaes e nervosas evidentemente despertadas por sessões espíritas‖ o dr Franco da Rocha, director do hospício de alienados de Juquery, do Estado de S. Paulo também é de opinião <que são frequentíssimos os exemplos de pessoas, sobretudo moças, anteriormente sãs, que se tornaram hysterico-epyleticas em consequência de terem tomado parte nas scenas de evocação de espíritos em sessões espíritas. O dr homem de melo, director da casa da saúde, do mesmo nome, de S. Paulo, escreve. <o espiritismo concorre para o formento dos nossos hospícios e casas de saúde, acho tão forte o seu contingente que a lei deve tolher-lhe a marcha [...]86

Eis o espiritismo sendo desqualificado por esse jornal alicerçado em

argumentos da área médica e penal, acusando a prática de enlouquecer seus

adeptos. O jornal reforça o embasamento trazendo falas de médicos com altos

cargos tanto no estado do Pará, como em São Paulo e Rio de Janeiro, além das

palavras do próprio presidente da Academia Brasileira de Letras. O embate do jornal

com relação ao espiritismo não se mostrava apenas na opinião do escritor da

matéria, mas buscava respaldo em grandes nomes da área médica e acadêmica do

país, fazendo com que a desqualificação do espiritismo, mostrado como uma crença

perigosa, fosse além do campo religioso, sendo também um problema de saúde.

Além da tentativa de legitimação do argumento baseado na medicina e nas

reflexões acadêmicas, somava-se um discurso de criminalização do espiritismo,

como notamos no trecho a seguir:

O código penal nos seus artigos 157 e 158 prohibe terminantemente as práticas espíritas sob pena de prisão cellular e multa. Perguntamos agora, se as autoridades às quaes compete a observância dessa lei, cumprem o seu dever, negligenciando o combate ao espiritismo, tolerando as escancaras, escandalosamente, o funcionamento público dessas associações, antros do inferno, onde os cidadãos vão procurar a ruina mental. Será patriótico cooperar permitindo o que o código prohibe? Não devem os poderes públicos, obstar por todos os meios (sic) tão calamitoso mal? Esse indiferentismo por parte das autoridades é um criminoso

86

A PALAVRA. ―O espiritismo‖. Belém, 09/07/1922.

60

atentado e um desrespeito as leis, ao bem público e ao mais rudimentar sentimento de patriotismo. [...] Os poderes públicos estudem as consequências funestíssimas do espiritismo e organizem uma cruzada para combate-lo, como se está combatendo a syphilis e assim secundará a acção da egreja católica contra esse vírus corrosivo que infesta a sociedade! Olavo Bilac reputava o espiritismo mais nocivo que a síphilis.87

Após mostrar, através de argumentos da medicina, os danos que o

espiritismo causa às pessoas, o jornal agora apresenta, à luz do código penal, que a

prática do espiritismo é ilegal e desafia constantemente as autoridades legais a

combatê-lo.

Mesmo com a separação entre Igreja Católica e Estado na primeira

república, o código penal criminalizava algumas práticas que eram condenadas pelo

catolicismo. O artigo 157 do código penal brasileiro, citado pela matéria, diz que:

Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs, e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim para fascinar, e subjulgar a credulidade pública, penas de prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$.88

Nota-se o quanto no Brasil na primeira república, mesmo com a separação

oficial da Igreja e do Estado, ainda se elaboram leis que criminalizam algumas

religiões acatólicas, revelando assim a manutenção de uma hegemonia católica no

corpo jurídico do país. Contudo, apesar dessa criminalização, o apelo da matéria

nos dá a entender que as autoridades não estavam cumprindo o seu papel de

combate ao espiritismo, mesmo com a lei proibindo essa prática. Nota-se que a

matéria direciona seu discurso não apenas para os católicos nominais, mas para as

autoridades públicas, mostrando dados e argumentações que revelam o quão

danoso é o espiritismo para a população brasileira, apresentando argumentações de

Olavo Bilac, elevando o espiritismo a um mal ―mais perigoso que a syfilis‖ e pedindo

para os ―poderes públicos‖ estudarem as ―consequências funestíssimas do

espiritismo‖ e ―organizarem uma cruzada para combate-lo‖.

87

A PALAVRA. ―O espiritismo‖. Belém, 09/07/1922. 88

BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Codigo Penal. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1890. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html>.

61

É interessante notar na narrativa do texto que o discurso de desqualificação

do espiritismo tem a intenção de criminalizá-lo, persuadindo não apenas os

católicos, mas as autoridades públicas a punirem os espíritas. Para continuar a

combater diversos grupos sociais que a Igreja não concordava no início do Brasil

República, a Igreja Católica se utilizará de leis remanescentes ainda do Brasil

Império, nas quais religiões acatólicas eram punidas por lei. Todavia, para além da

lei, há a construção de um discurso veiculado pela imprensa no qual o catolicismo

era a religião verdadeira, e precisava, junto ao Estado e a sociedade brasileira,

combater as religiões acatólicas que seriam ilegais, patológicas e até demoníacas.

Será que toda essa persuasão às autoridades pela imprensa católica não

seria um apelo que, agora, ela precisaria levar ao Estado para que ele efetivasse

seus desejos? Seria uma demonstração de perda de poder da Igreja ao ter que fazer

apelos para a aparente falta de interesse do Estado em punir o espiritismo? Ou na

verdade seria algo além, uma renovação da Igreja que já procurava mostrar por

meio da imprensa e de outros meios, usando o novo cenário político de separação

entre Igreja e Estado, manter sua hegemonia através de discursos e representações

em que algumas religiões acatólicas, marginalizadas pelo Código Civil, tinham a

Igreja Católica como uma instituição que as fiscalizava e também as desconstruía?

Percebemos a imprensa católica como um instrumento de desconstrução do

grupo social ou religioso antagônico à Igreja Católica, a imprensa se mostra como

um outro instrumento utilizado pela Igreja para a consolidação de sua hegemonia,

tanto por seus fiéis como por toda a sociedade brasileira.

Além disso, por mais que a separação entre Igreja e Estado tenha ocorrido

no aspecto jurídico, na prática toda a estrutura estatal estava atrelada à mentalidade

social do povo, que em sua maioria vinha fortemente influenciado pelo catolicismo.

Independentemente da influência positivista ou de inspirações na realidade das

repúblicas francesas, aqui a estrutura de estado republicano se atrelou

constantemente à cosmovisão católica que permeava a nação brasileira.

O que também se pode notar nessa matéria sobre o espiritismo é uma

tendência de discurso similar ao que se vê em outras: apontar o chamado

―patriotismo‖ como um possível ideal que promovia um contraponto com o

pensamento católico. Essa ideia é sutilmente abordada na frase ―Será patriótico

cooperar permitindo o que o código prohibe?‖. Essa pergunta retórica pode nos

62

indicar uma possível contrariedade, onde certos ―patriotas‖ estavam defendendo

uma liberdade do espiritismo condenável, tanto pela lei quanto pela Igreja Católica.

Essa ideia de ―patriotismo‖ também será retratada outra vez pelo jornal em

matérias como ―Patriotismo e religião‖ e ―Catholicismo e patriotismo‖. Nas duas

últimas matérias, não percebemos o ataque direto à ideia de patriotismo, mas alguns

outros ideais que podem estar vinculados a eles:

A heresia do livre exame, seguida fatalmente dos erros do philosophismo e do liberalismo. Da revolução Francesa e do maçonismo que fomentou todos os erros e revoltas. Conspiraram contra a Egreja Catholica e expeliram-na da política quase geralmente. Uma época de industrialismo inaldito favoreceu a conspiração iludindo os povos, membriando-nos no progresso puramente material. Veiu porém a catástrophe da guerra universal abrir os olhos a todos, demonstrando a necessidade de voltar ao ideal chistão, e clamar como o apóstolo na tempestade ―senhor, salvamos todos senão perecemos todos.89

Esse texto, retirado do órgão católico do Rio de Janeiro ―A União‖,

semelhantemente a abordagem feita ao comunismo, mostra a função da Igreja

Católica a nível global. Segundo a matéria, ideais como o liberalismo,

acontecimentos como a Revolução Francesa e grupos como a maçonaria, se

mostraram contrários à na política, tendo como consequência ―guerras universais‖

presentes no mundo, provavelmente remetendo a fatos como a I Guerra Mundial.

Após isso, o mundo percebeu a ―necessidade de voltar ao ideal Chistão‖, e, no

decorrer da matéria, o autor citará a volta de clérigos a cargos políticos em diversos

países da Europa e da América.

A matéria não fala especificamente do Brasil, porém continua a construir a

ideia da Igreja Católica como uma instituição que mantém a ordem social e se faz

necessária na política, pois fora dela as sociedades entram em catástrofe. Assim, a

Igreja Católica defende a sua permanência no Estado, mostrando as consequências

de regimes que propõem sua exclusão.

Patriotismo é um outro ideal, mas não chega a ser nem abordado pelo jornal.

A palavra ―patriotismo‖ só aparece em títulos, como na matéria ―Patriotismo e

religião‖, que aparentemente não aprofunda o conceito de patriotismo, mas mostra o

quanto há uma apropriação dessa ideia pelo jornal, vinculando o patriotismo ao

89

A PALAVRA. ―Catholicismo e patriotismo‖. Belém, 1921.

63

catolicismo e não a liberais, filósofos não católicos, comunistas, maçons ou

protestantes, estes últimos por sinal os mais citados em ―Patriotismo e religião‖,

conforme a seguir.

Este é que deveria ser o título da matéria e não ―Nacionalismo clerical‖ em que o padre Victor vem dar a mão ao pastor Alvaro Dias na obra impatriótica e destruidora de fazer esse nosso Brazil, já tão trabalhado de ideias subversivas e anarchicas, uma espécie de Egypto ou Tunisia sob protectorado dos... norte americanos. [...] Agora sim, parece que a providencia na sua sabedoria quis mostrar-nos até que ponto é perigoso o nosso indiferentismo, o pouco caso em que vivemos da religião dos nossos maiores, a como casam, agora e sempre, no passado e no futuro, religião e pátria.90

A ideia de patriotismo é agregada pelo jornal, mas desde que ande junto

com a ―religião‖, no caso, a católica. Voltaremos a essa matéria em outros

momentos da pesquisa, mas no trecho em questão notamos que existe um eco

social ao discurso que o jornal constantemente traz: há um patriotismo benéfico e

um maléfico à sociedade brasileira. O patriotismo benéfico é aquele que anda lado a

lado com a religião católica, reconhecendo-a como a religião nacional. O patriotismo

pode causar danos à sociedade brasileira se for formado tendo como embasamento

quaisquer religiões ou grupos sociais acatólicos, como maçons, espíritas, liberais,

filosofias não católicas e protestantes.

Mesmo com esses diversos ―inimigos‖ da Igreja, dos temas mais citados

pelo jornal ―A Palavra‖, o protestantismo foi o assunto mais combatido nos mais de

30 anos da publicação. Desde 1918, havia citações no jornal falando que ―a egreja

protestante é devorada dentro de si mesma [...] não possue nem vontade, nem

organização, o que a torna absolutamente incapaz de toda ação importante‖.

Muitas vezes, matérias contra o protestantismo eram escritas logo na

primeira página do jornal, em títulos garrafais e feitos pelo próprio Padre Dubois. No

ano de 1921, o padre publicou um livro chamado ―O biblismo‖, que se tornou

conhecido pelo país inteiro, no qual ele publicou alguns veiculados no ―A Palavra‖.

Tais artigos teológicos refutavam sistematicamente o protestantismo, desde seu

início em Lutero até aquela data.

90

A PALAVRA. ―Patriotismo e religião‖. Belém, 14/04/1921.

64

Dubois já inicia o livro dizendo que ―não procurem esse livro aqueles que

vão atraes de uma linguagem acadêmica. Escrito popularmente, cheio de

vulgarismos, embora encerre uma documentação séria‖91. Dubois mantém uma

linguagem mais acessível, direcionando o livro ―ao povo, o clero e ajude a algum

protestante‖92. Há um interesse no livro de instruir o povo com relação ao

protestantismo, ajudar ao próprio clero nessa instrução e também fazer com que

algum protestante perceba o seu possível erro de aderir ao protestantismo e voltar

para a verdadeira igreja, a católica.

Chamada de ―biblismo‖, ―bibliolatria‖ ou ―seitas biblistas‖, geralmente termos

jocosos que procuravam desqualificar a fé protestante, retratando-a como falsa,

herética, como uma seita que se afastou da verdadeira igreja desde os tempos da

Reforma. Dubois se utilizava desses termos para adjetivar pejorativamente os

protestantes ao longo de sua obra, criticando as práticas e comparando-as com o

islamismo e o hinduísmo, principalmente para mostrar a similaridade daquela que

seria a principal característica comum entre elas, refutada por padres como Dubois,

a utilização da Bíblia (no caso das religiões citadas, os seus livros sagrados Alcorão,

os escritos de Confúcio as leis de Manú dos Vedas, respectivamente) como principal

fonte de fé e prática religiosa.

A bibliolatria é o centro, o eixo da Reforma. O delírio escripturario dos luteranos hombrea com o fetichismo dos muçulmanos pelo Alcorão, com o apego dos chineses pelos livros de Confucio, e com a idolatria dos Hindus pelas leis de Manú e dos Vedas. ―todas as seitas‖ por acanhada que seja a sua esphera de vida particular e por mesquinha que seja a sua mutilação do chistianismo, asseveram ter por fonte e norma de doutrina a bíblia e só a bíblia.93

Nas publicações da década de 1930 se percebe uma maior preocupação

com o protestantismo, provavelmente por já ter crescido ainda mais e se

consolidado na cidade. O jornal retomava o assunto por diversas vezes, criticando

os católicos e até mesmo padres que aderiam a essa nova fé. Como exemplo temos

a matéria ―podem ficar com eles‖, publicada em 1938 pelo padre Dubois; a matéria

versava sobre padres que estariam aderindo à ―bibliancia‖, dizendo que ―o povo tem

91

DUBOIS, Pe. Florencio. O Biblismo. Rio de Janeiro, 1921, p.7. 92

Ibidem. 93

Ibidem, p.16.

65

nojo dos Iscariotes, mas a pastorada lambe-se por eles‖ e como os protestantes

usavam esse fato para argumentar a fé católica.

Também havia ataques diretos às lideranças protestantes de diversas

denominações na cidade, nomes como o pastor metodista Justus Nelson, o pastor

presbiteriano Antônio Teixeira Gueiros ou os ―pregadores da João Balby‖, referência

àqueles pregadores batistas que eram citados algumas vezes no jornal.

O embate entre católicos e protestantes ocorria em todo o país,

principalmente após a instauração do estado laico e, com isso, a perda da Igreja

Católica de sua posição como religião oficial, e que precisou se reestruturar para

manter consolidada sua estrutura religiosa, tentando fazer articulações políticas e

institucionais para se ligar ao novo regime e manter a sua hegemonia no país.

Gomes também destaca que se aumentaram as chances de propagação de outras

religiões e ideias de pensamento discordantes do catolicismo.

[...] o catolicismo tentou combater seus inimigos imaginários, ou seja, com o complexo de exclusivismo e baluarte da moral e bons costumes da sociedade ocidental, o catolicismo nunca conseguiu conviver pacificamente com outras expressões religiosas ou ideais de sociedade que não fossem os seus. Poderia até colocar que não fossem compatíveis, mas, na realidade, nada pode ser compatível com uma instituição que se considera única e detentora da verdade [...] Dentre todas as ameaças existentes, mesmo que só no imaginário católico da época, na sociedade moderna, destaco apenas essas três ―ameaças‖: a maçonaria, o espiritismo e o protestantismo.94

Concordamos com o autor em sua análise, pois seja em seus livros

publicados, nos veículos de imprensa comandados por eles, entre outras fontes e

produções historiográficas retratando o catolicismo, constantemente percebemos a

Igreja Católica como a instituição que se auto-intitulava a fundadora e protetora da

moral e dos bons costumes ocidentais. E podemos perceber certa lógica para o

catolicismo reivindicar para si esse título, visto que na história do ocidente esteve em

constante expansão desde o início do surgimento da fé cristã, se espalhando e se

tornando hegemônica em diversas nações ocidentais, onde até mesmo o

protestantismo, religião da qual a Igreja Católica tanto combatia, também foi gerado

94

GOMES, Edgard da Silva. O catolicismo nas tramas do poder: a estadualização diocesana na Primeira República. Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2012, p.62.

66

a partir do próprio catolicismo. É inegável o forte papel da Igreja Católica na

formação da civilização ocidental.95

Ainda assim, procuraremos aqui aprofundar a análise do catolicismo diante

de seus ―inimigos‖ e da sociedade como um todo. Inimigos do catolicismo eram até

bem mais numerosos, incluindo vários grupos sociais que eram contrários à Igreja

Católica como religião oficial do Estado, ou que de alguma forma a Igreja entendia

que ameaçava a sua hegemonia social. É por isso que iremos um pouco além, e

mesmo que muitas ameaças ao catolicismo estivessem apenas ―no imaginário

católico‖, como afirma Edgar Gomes, procuraremos perceber o porquê da

construção de tal imaginário, analisando a forma como o catolicismo estava se

rearticulando em um processo de separação de Igreja e Estado, onde, em Belém do

Pará, notamos a influência de um catolicismo global que procura lidar com o

anticlericalismo que surgia nos estados em processo de secularização, adotando a

laicidade do Estado e que surgiam ao lado de regimes republicanos, onde, na

Europa, especialmente na França, combatiam ferozmente o catolicismo.

Dentre os grupos sociais citados, considerados ―inimigos da igreja‖, por que

essa aparente preferência ao protestantismo como o ―inimigo‖ mais falado nos

jornais, a ponto de, em Belém, até livros serem publicados especialmente para sua

refutação? As tensões entre católicos e protestantes sempre existiram desde a

fundação do protestantismo, e no Brasil surgem desde a chegada dos protestantes

no país. Todavia, procuraremos demonstrar nesta pesquisa uma questão que vai

além das tensões entre católicos e protestantes. A partir da separação entre Igreja e

Estado, instituída pelo período republicano no Brasil, como o cristianismo brasileiro,

em sua maior parte influenciado por católicos e protestantes, se reconfigura para se

tornar a principal religião do país? Seja o catolicismo procurando manter a sua

hegemonia ou o protestantismo procurando tirar o catolicismo do posto de ―principal

religião do país‖, e procurando ser ela própria a religião hegemônica da nação,

detalharemos melhor essa disputa religiosa no decorrer do trabalho. Por hora, é

importante nos aprofundarmos mais nesse processo de hegemonia do catolicismo

no Brasil República, como procuramos discutir até então.

95

Como já retratamos, é consenso entre diversos autores sobre o cristianismo, em especial o catolicismo, na formação da civilização ocidental. Oscar Pilágio, Pedro Paulo Funari, Antônio Gramsci, Denis Lecompte, Max Weber, são alguns dos vários teóricos que reconhecem essa afirmação citada.

67

Gramsci procura analisar todo esse processo e percebe o papel dos

intelectuais e o ―mass-media‖ na construção do poder hegemônico católico europeu,

em que se revela necessário que os intelectuais dessa instituição dominante se

apossem de instrumentos como a imprensa e a literatura para propagar seus ideais

e conservar ou construir seu poder hegemônico, especialmente no período

equivalente ao início do século XX, onde Gramsci começa a estudar sobre a igreja

católica:

Os ―mass media‖ católicos constituem, efetivamente, um dos pilares do aparato ideológico eclesiástico [...] esses meios de difusão são essencialmente a edição e a imprensa que realizam sua função de criar homogeneidade ideológica em duplo nível: o do aparelho eclesiástico para manter a unidade doutrinal e o da população católica – mas também não católica.96

Figura 10 - ―O Biblismo‖, obra do Padre Dubois, 1921.97

96

PORTELLI, Hugues. Gramsci e a questão religiosa. São Paulo: Edições Paulinas, 1984, p.146. 97

DUBOIS, Pe. Florencio. O Biblismo. Rio de Janeiro, 1921.

68

Figura 11 - ―A devoção à Virgem de Nazaré, em Belém do Pará‖, do Padre Dubois.98

Além da imprensa católica, clérigos da Igreja nesse período também

obtiveram bastante espaço na grande imprensa, especialmente o padre Dubois. No

jornal ―Folha do Norte‖, percebemos constantes menções a horários de missas,

batismos e acontecimentos de eventos da Igreja Católica.

A Folha do Norte era um jornal da grande imprensa que circulava

quinzenalmente na cidade, produzindo matérias dos mais variados temas, os fatos

do cotidiano da cidade que o jornal julgava ser importantes retratar, política,

economia, esportes, dicas de cinema, maquiagem, além de grandes e expressivas

propagandas de diversos produtos. A religião, enquanto tema, foi sendo

98

DUBOIS, Pe. Florencio. A devoção à Virgem de Nazaré, em Belém do Pará. Belém: Imprensa Oficial, 1953.

69

constantemente abordada no jornal também, especialmente o catolicismo. As

matérias sobre o Círio ganhavam grande destaque nos períodos próximos ao início

da festividade.

O jornal geralmente começava a falar sobre o Círio nos períodos próximos

da festividade, mês de setembro e início de outubro, geralmente as matérias

ocupavam as primeiras páginas, se utilizando de grandes gravuras da imagem de

Nossa Senhora de Nazaré, expondo esse acontecimento como uma ―Exaltação da

cidade á Excelsa padroeira dos seus destinos‖99.

Figura 12 - Folha do Norte, 14/08/1931.

Padre Dubois era um colunista muito requisitado no jornal. Constantemente

havia colunas escritas por ele, e o jornal sempre o descrevia como um ―querido‖ ou

―distinto‖ colaborador da Folha do Norte. Nas colunas, o padre constantemente

opinava sobre usos e costumes, política e elaborava contos e criticava alguns

grupos sociais e religiosos, entre eles os espíritas e protestantes.

99

FOLHA DO NORTE. ―Exaltação da cidade á Excelsa padroeira dos seus destinos‖. Belém, 14/08/1931.

70

Não apenas no estado, mas o jornal também frequentemente publicava

notícias da Igreja Católica que circulavam a nível nacional, conforme matéria:

O mundo catholico brasileiro começou a agitar-se em torno da legislação da república nova. Há dias reuniram sob a presidência do cardeal Leme cerca de cinquenta juristas que professam o catholicismo. Ficou resolvida então a organização de uma grande comissão, que se subdividira, para acompanhar não somente as leis que vem sendo postas em vigor, mas, sobretudo, as que estão em estudo e elaboração. Os juristas catholicos tomaram com o cardeal o compromisso de ficarem atentos a execução de tais leis e nelas colaborarem no sentido da defesa dos interesses da egreja e da sociedade. E ponto assente dar mais decisivo combate às tentativas do divorcio a vínculo. A reforma eleitoral também merecerá a maior attenção dos catholicos que estão a colaborar egualmente nella, prevendo-se por isso, a próxima organização de um partido catholico no Brasil.100

Mesmo não estando atrelada ao estado como religião oficial, no período

republicano ela se utiliza de meios para procurar manter seu poder. A matéria

mostra uma estratégia da Igreja Católica de poder acompanhar e intervir no Estado

através de uma frente própria de juristas, fiscalizando as leis e projetos de lei que

fossem a favor ou contrários aos seus interesses, sendo que a matéria nos passa

claramente a ideia de que, caso houvesse alguma lei criada que não fosse

concordante com o catolicismo seria combatida pela instituição.

É interessante perceber a forma como a imprensa retrata a atenção que a

Igreja dá a leis que vão contra seus interesses. Interesses ―da egreja e da

sociedade‖, diziam no esforço de mostrar que sociedade e igreja tinham interesses

alinhados; a igreja se colocando mesclada à sociedade, como se leis que fossem

contrárias aos seus interesses também prejudicariam toda a sociedade. A imprensa

aqui também mostra o discurso da Igreja como o baluarte da moral e dos bons

costumes sociais, defendendo que destruí-la seria prejudicar a sociedade como um

todo. Essa era a busca constante da Igreja Católica, se apresentar como a salvadora

da sociedade brasileira e mundial, discurso utilizado tmbém para defender a

manutenção de sua influência perante o Estado. O jornal ao afirmar que a Igreja

possui diversos juristas observando a lei e vislumbrando a criação de um partido

100

FOLHA DO NORTE. ―Os catholicos vão arregimentar-se em defesa da egreja e da sociedade‖. Belém, 06/09/1931.

71

católico, procura transmitir a ideia de um catolicismo ativo e atuante na formação da

estrutura estatal republicana.

Sua tentativa de permanecer influenciando o estado, mesmo deixando de

ser a religião oficial e ocupando grandes espaços na imprensa, mostra o esforço

despendido para manter seu poder hegemônico, mesmo com um novo panorama

político em que, ao menos no aspecto jurídico, o catolicismo deixou de ser a religião

oficial do estado brasileiro.

Sobre a dinâmica do catolicismo enquanto igreja dominante, com a

preocupação da consolidação e continuidade de sua hegemonia, Bourdieu explica

que

Na medida que a igreja impõe o reconhecimento de seu monopólio e também pretende perpetuar-se, tende a impedir de maneira mais ou menos rigorosa a entrada no mercado de novas empresas de salvação (como por exemplo as seitas e todas as formas de comunidade religiosas independentes), bem como a busca individual da salvação (por exemplo, através do ascetismo, da contemplação e da orgia). Ademais, a igreja visa conquistar ou preservar um monopólio mais ou menos total de um capital da graça institucional ou sacramental, pelo controle do acesso aos meios de produção, de reprodução e de distribuição (ou seja, assegurando a ordem no interior do corpo de especialistas) e pela delegação ao corpo de sacerdotes do monopólio da distribuição.101

Gramsci, ao procurar estudar a cultura ocidental e tecer críticas ao sistema

capitalista vigente, objetivando a destruição do capitalismo a partir do campo

cultural, percebeu o catolicismo como a principal religião, classificada por ele como

uma ideologia que impedia a consolidação de outras ideologias para concretizarem

o domínio cultural ocidental. Notando, assim, desde o período medieval até o início

do século XX, ―um esforço dessa hegemonia católica no domínio cultural‖, em que

ela se utiliza da ―imprensa e da literatura católica como o principal obstáculo para o

domínio cultural‖ justamente por ser estes os meios utilizados pelo catolicismo para

a consolidação de sua hegemonia no campo cultural. Gramsci trabalha os

intelectuais e o ―mass-media‖, afirmando que se faz necessário que os intelectuais

da instituição dominante se apossem de instrumentos como a imprensa e a literatura

para propagar seus ideais e conservar ou construir seu poder hegemônico. Desde o

período da reforma protestante, com o surgimento da própria reforma e com as

101

BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013, p.58.

72

diversas revoluções que ocorreram na Europa em tempos posteriores, os ideais

iluministas e as diversas outras correntes de pensamento moderno e religioso que

passaram a circular no ocidente no decorrer dos séculos fizeram com que a Igreja

Católica perdesse muito de seu poder político, social e ideológico; mas, ainda do

século XX, ela mantinha a sua hegemonia presente em diversos países ocidentais e

continuava procurando se consolidar no poder, ainda se utilizando de intelectuais e

dos ―mass-media‖, e no início do século XX, com a ação católica, renasce uma

prática que havia séculos o catolicismo não utilizava, o incentivo para que os leigos

trabalhassem na igreja.

Essa teoria nos dará um embasamento do que já podemos perceber nas

fontes, veículos da imprensa católica circulando na capital paraense, padres

intelectualizados vindos de países europeus e que tomam conta desses veículos de

comunicação, publicam livros e se associam aos grandes veículos de imprensa. É

daí que notamos a importância do padre Dubois e dos barnabitas em todo esse

processo de reestruturação hegemônica do catolicismo no estado do Pará no

período republicano. Uma ordem católica que toma conta de seminários, instituições

de ensino, constrói monumentos, controla veículos de imprensa católicos e é

influente em periódicos da grande imprensa, escreve livros embasando o catolicismo

como principal religião e refutando religiões acatólicas; conseguindo manter o

conservadorismo católico francês que fazia frente às políticas de laicidade

anticlericais da terceira república, mas, diferentemente das práticas ultramontanas

de Dom Macedo Costa no final do século XIX, na primeira república, clérigos

influentes como Dubois conseguiam dialogar com as peculiaridades religiosas

católicas locais, como a devoção à Nossa Senhora de Nazaré e às práticas

religiosas do Círio, na quais, ao menos aparentemente, não havia registro de

grandes conflitos entre o catolicismo popular e os dogmas católicos do alto clero;

pelo contrário, havia diversas citações, artigos e livros publicados elogiando a santa.

Podemos perceber, desta forma, que houve uma reestruturação do

catolicismo, e que mesmo com as particularidades do ethos religioso paraense, se

reinventava diante do cenário político e religioso que existia não apenas no país,

mas em todo o ocidente.

73

CAPÍTULO II – “UMA FÉ IGNORANTE”:

O PROTESTANTISMO NO PERÍODO REPUBLICANO

2.1 ―A VERDADEIRA IGREJA‖: UMA BREVE ANÁLISE DO PROTESTANTISMO

Um processo significativo de ruptura do cristianismo na Europa ocorreu em

1517, na Reforma Protestante. Um movimento religioso cristão iniciado pelo padre

alemão Martinho Lutero rompeu com o estado alemão católico para provocar uma

reforma no catolicismo baseado em dogmas como a salvação vinda da fé e não das

obras, o sacerdócio universal, onde todos teriam acesso a Deus diretamente pelo

sacerdócio de Jesus Cristo, contrariando o dogma do sacerdote intercessor,

representado pelo clero católico; a escritura sagrada (Bíblia) como regra de fé e

prática, dando autonomia ao cristão para interpretá-las por conta própria, tirando a

autoridade de padres, bispos e Papa de serem os únicos vocacionados para

interpretar a mensagem das escrituras. Esse movimento continuou, foi além das

fronteiras da Alemanha e se espalhou pela Europa. Essa tentativa de reforma

consequentemente gerou uma brusca desvinculação de pessoas e instituições ao

catolicismo europeu, e em alguns anos produziu uma nova vertente cristã, que viria

a se tornar conhecida como protestantismo.

A partir daí, desde o início do movimento protestante, catolicismo e

protestantismo se transformaram em dois polos cristãos que não apenas se

diferenciavam fundamentalmente, como também passaram a manter embates ao

longo dos séculos, do campo teológico ao bélico. Confrontos que se expandiram

pela Europa e se espalharam pelo mundo, incluindo o ―Novo Mundo‖, descoberto no

século XV.102

Notamos a reforma protestante como um significativo marco histórico, que

significou mais do que uma cisão com o catolicismo europeu vigente, mas uma

mudança da cosmovisão que estava se reestruturando e se expandindo pela Europa

e se consolidou em alguns países europeus posteriormente. Diferentemente de

outros vários movimentos surgidos dentro do catolicismo que discordavam dos seus

102

Diversos historiadores publicaram obras sobre história da igreja cristã, e nos fundamentamos em algumas delas. GONZALES, Justo L. Uma história do pensamento cristão. De Agostinho às vésperas da Reforma. Vol. 2. São Paulo. Cultura Cristã, 2004. HURLBUT, Jesse Lyman. História da igreja cristã. São Paulo: Vida, 2007. NICHOLS, Robert Hastings. História da igreja cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2013.

74

dogmas, e que a Igreja Católica conseguia reaglutiná-los institucionalmente (o

franciscanismo, por exemplo)103, ou mesmo procurando desqualificá-los, de forma

discursiva ou através de punições físicas como prisões e morte (como os valdenses

ou hussenistas). O protestantismo foi um movimento que escapou do controle do

catolicismo e ganhou sua própria estrutura eclesiástica, fundamentos teológicos e

uma cosmovisão específica que influenciou drasticamente as estruturas sociais de

diversas sociedades que o absorveram enquanto religião hegemônica.

A análise de Gramsci sobre a igreja primitiva, da qual Portelli disserta em

seus estudos, trabalha uma ideia de ―revolução pacífica‖ feita por pobres contra a

elite econômica do Império Romano, que como o nome diz, não registra atos

violentos como é usual nas revoluções. Neste caso, Gramsci diz que houve um

fenômeno de passividade no qual as pessoas morriam por sua causa revolucionária

(no caso, o cristianismo) sem resistência física, proclamando valores de amor,

igualdade, mas discordando do sistema econômico e social instituído. Esse

pacifismo é desfeito quando o cristianismo se associa ao estado e passa a ser

dominante, a partir daí surge uma resistência por parte de muitos cristãos que

procuram continuar sua ―revolução‖ e a luta de classes dentro da Igreja, tendo a

igreja primitiva como um modelo a ser seguido.

É necessário fazer algumas ressalvas a essa visão política do cristianismo

primitivo apresentado pela teoria Gramsciana. Há de se avaliar que com relação aos

movimentos cristãos contrários ao catolicismo, o cristianismo primitivo não deve ser

visto apenas como um movimento religioso feito por pobres, visto que parte de uma

elite econômica e social também aderiu a ele em seu período inicial, os 3 séculos

que durou o que se denomina de ―igreja primitiva‖. Outro fator é que a abordagem do

movimento cristão neste trabalho não será sob a ótica desse nível de estruturalismo

econômico, pois tanto os teóricos que utilizaremos aqui como as fontes analisadas

contradizem esse tipo de análise. O cristianismo é uma religião que dialoga com o

econômico e o social, mas não é um agente passivo diante delas. Há uma via de

mão dupla em que o cristianismo influencia e é influenciado por sua conjuntura

103

Francisco de Assis e a ordem franciscana por ele fundada são exemplos utilizados por autores como Gramsci e Bourdieu para retratar a diversidade do catolicismo presente na Igreja Católica enquanto instituição. E a tolerância da Igreja diante de ordens dentro do catolicismo que contrastavam com o alto clero, mas que eram toleradas se fossem incorporadas no catolicismo enquanto instituição. Para saber mais: BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013. PORTELLI, Hugles. Gramsci e a questão religiosa. São Paulo: Edições Paulinas, 1984. LE GOFF, Jaques de. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2015.

75

social. Especialmente por seu caráter de ―universalidade‖, o cristianismo desde o

período primitivo quer ―ler‖ a cultura pagã a partir de seu próprio viés cristão,

procurando aculturá-la.104

Apesar disso, acredito que a análise Gramsciana sobre o cristianismo, e

especialmente sobre o protestantismo, nos ajuda a entender algumas questões que

serão pertinentes a este trabalho. Entre elas os constantes processos de

―revoluções puras‖ que ocorriam internamente no catolicismo medieval, que ora

procuravam fugir ou se contrapor diante do sistema eclesiástico católico medieval.

Movimentos como esses ora eram perseguidos, ora assimilados pelo catolicismo

vigente, uma tática do catolicismo que abordamos no capítulo anterior. O

protestantismo foi uma vertente do cristianismo que promovia valores diferentes dos

que a Igreja Católica possuía, e esta, após o racha, não conseguiu assimilá-lo. Os

protestantes referenciavam-se como uma religião que procurava restaurar os valores

da igreja primitiva que haviam se perdido com o catolicismo do século IV atrelado ao

estado romano. O discurso de protestantes como uma vertente religiosa que tinha o

cristianismo primitivo como modelo será um elemento discursivo utilizado no período

de sua fundação, mas que permanecerá no decorrer dos séculos.

O protestantismo surge como uma religião que procura trazer os valores do

cristianismo primitivo, e é a partir da perspectiva de Bourdieu que se pode fazer uma

análise mais profunda desse processo, trabalhando a ideia do protestantismo

surgindo como uma ―seita‖ que nasce para se contrapor à religião dominante,

geralmente apresentada por profetas que trabalham uma religiosidade com menos

dogmas e ―capital religioso‖, diminuindo o poder do sacerdócio e uma maior

participação dos leigos da religiosidade, incentivando até mesmo uma relação mais

próxima do religioso leigo com Deus, situação na qual

As ideologias religiosas (e até mesmo as secularizadas) denominadas heréticas (situadas em estados muito diversos do campo religioso) no sentido de que tendem a contestar a ordem religiosa que a ―hierarquia‖ eclesiástica visa manter, apresentam temas invariantes (por exemplo, recusa da graça institucional, prédica dos leigos e sacerdócio universal, auto-gestão direta das empresas de salvação, os eclesiásticos ―permanentes‖ sendo considerados meros ―servidores‖ da comunidade, e mais ―liberdade de consciência‖, ou seja, direito

104

COSTA, Cezar Paulo. Diálogo entre cristianismo e mundo cultural nos primeiros séculos. Atualidade Teológica. Rio de Janeiro, Ano XIII, n. 33, set./dez. 2009, p.313.

76

de cada indivíduo à autodeterminação religiosa em nome da igualdade de qualificações religiosas etc, porque tem sempre por princípio gerador uma contestação mais ou menos radical da hierarquia sacerdotal que pode exacerbar-se mediante uma denúncia do arbitrário de uma autoridade religiosa que não esteja fundada na santidade de seus detentores, podendo inclusive chegar a uma condenação radical do monopólio eclesiástico enquanto tal.105

Weber nos mostra uma análise pormenorizada do protestantismo,

especialmente sobre a questão do sacerdócio universal, destacada pelo calvinismo.

Weber defende que o protestantismo, com o passar do tempo, passou a construir

seus próprios dogmas representativos como sinais de salvação. A questão do

trabalho era um exemplo das principais funções religiosas do cristão protestante, o

Homem teria sido feito para a glória de Deus e toda a atividade social que fizesse

deveria servir para este fim.106 Assim, era como se cada homem tivesse uma função

específica no mundo, um ―sacerdócio‖. Percebemos pela análise de Weber que a

importância que o protestantismo dá ao indivíduo rompe com o poder da instituição.

Notamos, assim, que protestantismo modifica a perspectiva da relação ―Deus /

homem‖, estimulando que o homem tenha uma relação única com Deus, a ideia de

sacerdócio universal, no qual o cristão pode se relacionar com Deus diretamente,

sendo ele mesmo um sacerdote único, criado por Deus com habilidades e

competências específicas para trabalhar para Deus a partir do seu trabalho feito aqui

nesse mundo, e aqui ―a posição do calvinismo, com a sua férrea concepção da

predestinação e da graça, que determina uma vasta expansão do espírito de

iniciativa (ou torna-se a forma deste movimento) é ainda mais expressiva e

significativa‖107.

Esse ―sacerdote metafísico‖ proposto pela religião protestante daria uma boa

discussão teórica, mas para a tensão que analisaremos no momento, essa

informação nos serve para retratar o quanto o protestantismo propunha uma religião

mais centrada na graça a partir do próprio homem convertido ao cristianismo, e

menos na instituição e no homem como sacerdote. Eis um dos motivos da

diferenciação do protestantismo e do catolicismo e dos constantes conflitos ao longo

105

BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013, p.64. 106

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2001, p.94. 107

GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere. Vol. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p.107.

77

da história dessas duas vertentes cristãs; no protestantismo se valorizava o

indivíduo e se conferia maior autonomia ao leigo, já no catolicismo se vê uma igreja

hierarquizada, rica em institucionalidades, simbolismos e com uma valorização

exacerbada do sacerdote.

Uma das características que o cristianismo manteve foi sua marca

expansionista, o mandamento de ―ide e fazei discípulos em todas as nações‖108.

Tanto católicos quanto protestantes continuaram a expandir sua fé cristã por outras

partes do mundo, e o ―novo mundo‖, as américas, passou a ser ocupado por nações

que tinham o cristianismo como religião oficial. Nos séculos XVIII e XIX, ao se

analisar um mapa territorial das américas baseado na dominação religiosa, fica

evidente que a do Sul e a Central assumiram como religião oficial o catolicismo,

enquanto a América do Norte, a partir da colonização de diversos segmentos do

cristianismo europeu, em sua maioria protestantes (mórmons, batistas,

presbiterianos), desenvolveu-se protestante, assumindo noções como ética,

moralidade e jurisdição, fortemente ligadas ao protestantismo.

Um exemplo claro de uma nação hegemonicamente protestante é a nação

norte-americana. Para entendermos a história dos Estados Unidos é essencial

estudar os povos migrantes que viajaram para o ―novo mundo‖ descoberto em 1492.

No século XVII, um grupo de migrantes protestantes chega na colônia inglesa

fugidos da perseguição feita pela Igreja Anglicana na Inglaterra, e aquele passa a

ser visto como um local de refúgio para esses religiosos. Várias denominações

protestantes migraram para a colônia, a maioria protestantes calvinistas, foi o

conhecido ―movimento puritano‖.

No protestantismo calvinista cria que cada cristão protestante era alguém

que foi salvo por Deus, mediante a fé, sem mérito nenhum dos seus atos, e que os

protestantes em geral eram um povo eleito por Deus. Neste período, os puritanos se

classificavam ―como um grupo escolhido por Deus para criar uma sociedade de

―eleitos‖109. O movimento puritano nos Estados Unidos se referenciava como o ―novo

Israel‖, fazendo constantes analogias de sua perseguição sofrida na Inglaterra com a

perseguição dos hebreus no Egito, que provocou o seu êxodo.

Muitas obras literárias e construções históricas trabalham os puritanos como

o padrão da população colonial norte-americana, não obstante entre eles houvesse

108

Evangelho de Mateus 28:19. 109

KARNAL, Leandro. Estados Unidos: a formação da nação. São Paulo: Contexto, 2013, p.38.

78

aventureiros, negros, índios e pobres que migravam da Europa em busca de

promessas de melhora de vida. Os puritanos eram apenas parte desse emaranhado

de grupos sociais que faziam parte da colônia, embora fossem os mais importantes

partícipes da consolidação de uma mentalidade religiosa, política e social que

fundamentaria a futura nação que dessa colônia se formaria, os Estados Unidos da

América.

Fernando Catroga procura analisar historicamente o processo de

secularização de países ocidentais, e retrata que, por mais que se tente construir

estados secularizados, é perceptível que essas sociedades mantêm fortes

elementos religiosos na construção de seu estado-nação. No caso da nação

americana, o autor percebe muitas diferenciações entre sua formação e a europeia;

e ressalta também que, diferentemente de países como a França, os EUA

procuraram conciliar a sua sociedade predominantemente protestante com um

modelo de estado formado por ideais iluministas e deístas.110 Ao estudar o processo

de secularização das nações ocidentais, o autor trabalha com reflexões de

pensadores como Locke e Rousseau. Segundo Rousseau, essa teoria encerra a

ideia de que mesmo havendo uma separação jurídica da igreja cristã com o Estado,

em que este deixasse de ser um estado teocrático, a sociedade ainda assim

manteria uma ―religião natural‖ na qual a sociedade seria controlada por um ―Deus

supremo‖ e o funcionamento dessa sociedade teria como função seguir as ordens

desse Deus, com éticas e valores morais universais111, e que isso seria essencial

para conservar a virtude da população. Já Locke defendia uma separação total entre

a Igreja e o Estado, não defendendo nenhum católico como liderança estatal e o

Estado como uma instituição que não professasse nenhum tipo de religiosidade,

embora, assim como Rousseau, defendesse os valores do cristianismo como bases

para o bem comum de uma sociedade, porém se colocando contra representantes

estatais católicos ou ateus.112

O autor, ao analisar a nação norte-americana, nota que o modelo nacional

construído se assemelha a essa teoria de Rousseau, pois a sociedade procurava

manter um estado que fosse pautado nas leis estipuladas em vez de em dogmas

religiosos, todavia a sociedade, de maneira geral, continuava predominantemente

110

CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra, Portugal: Almedina, 2010, p.157. 111

Ibidem, p.113. 112

Ibidem, p.94.

79

religiosa professando o protestantismo calvinista e influenciando claramente na

estrutura jurídica do estado, e aqui vale lembrar que o estado norte-americano

incorporou a ideia de uma nação constituída de um ―povo eleito‖, de um Deus único,

uma nação com vocação messiânica, escolhida para abençoar todos os demais

países do mundo.

Essa cosmovisão religiosa patriótica, para ser construída e consolidada na

sociedade norte-americana, não foi imposta de forma teológica, mas através de ritos

e simbologias específicas que ajudaram a construir a mentalidade da nação.

[...] tanto mais que a religião civil se manifesta, não numa teologia, mas, sobretudo, nos seus ritos e símbolos. [...] Assim sendo, é licito concluir que, nos EUA, a religião civil assenta num postulado monoteísta, em que a transcendência e o profano se aliam, e quase se fundem para instituírem, simultaneamente, uma religião bíblica e nacional. Concretamente, ela objectiva-se em discursos, inscrições, em monumentos, em produções filatélicas e numismáticas, em frequentes citações religiosas [...] na veneração de heróis cívicos e no uso paradigmático de suas vidas, no culto sacrificial da Pátria [...]113

Da simbologia presente nos hinos e bandeiras, nos ritos existentes pelas

paradas e discursos inaugurais, culto cívico aos mortos e nas construções de mitos

fundantes se arquiteta uma religião secular que busca legitimar uma mentalidade

social de um destino histórico pertencente à América.

A nação norte-americana tem como boa parte de seus fundadores os

protestantes das mais diversas denominações, que procuraram construir em sua

republica um estado de tolerância religiosa e que incentivasse a própria separação

entre Igreja e Estado, principalmente por serem grupos que um dia foram

perseguidos por uma igreja atrelada ao estado, na Inglaterra. Porém, a procura de

uma secularização política não eliminou sua forte moralidade e religiosidade

baseada no protestantismo, e seu sistema político não se tornou isento de valores

de sua religião predominante, principalmente pelos símbolos e ritos da construção

de uma nação republicana norte-americana.

Durante dois séculos se procurou construir uma civilização cristã segundo o

modelo protestante, dando prioridade à religião, moralidade e educação. O autor nos

113

CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra, Portugal: Almedina, 2010, p.170.

80

mostra que os cidadãos norte-americanos estavam tentando construir um modelo

ideal de sociedade que deveria ser propagado em todas as nações, e que, segundo

Mendonça,

[...] é nesse contexto que se insere a ideologia do ―Destino Manifesto‖. O mesmo comissionamento outorgado aos judeus através de Abraão se transferia agora para os americanos num messianismo nacional direcionado para a redenção política, moral e religiosa do mundo.114

No desenvolvimento econômico e social dos Estados Unidos, segundo

Mendonça, havia um discurso teológico na América do Norte de que o ―Reino de

Cristo‖ voltaria após a implantação de uma civilização cristã, as agencias

missionárias norte-americanas ensinavam essa perspectiva de evangelização aos

missionários protestantes, onde não apenas se propagava a fé protestante, mas o

modelo econômico e social norte-americano, fortalecendo a ideia de que os Estados

Unidos eram o modelo ideal de nação e que haviam sido eleitos por Deus para ser a

―nação exemplo‖, aquela que salvaria as outras nações nos mais diversos espectros

sociais.

A educação e consequentemente uma escolarização letrada eram questões

muito valorizadas desde o período das 13 colônias, e isso de devia à influência do

protestantismo na região. Havia um incentivo à alfabetização e escolarização das

pessoas para que pudessem ler a Bíblia, e em alguns estados se estipulavam leis

em que cidadãos pagavam um instrutor para alfabetizar a sociedade. Havia, ainda, a

preocupação de se criar institutos de ensino superior.

O grande interesse pela educação tornou as 13 colônias uma das regiões do mundo onde o índice de analfabetismo era dos mais baixos. Apesar das variações regionais e raciais, as 13 colônias tinham um nível de educação formal bastante superior à realidade dos séculos XVII e XVIII.115

Daí notamos significativas diferenças entre as 13 colônias, que após se

tornar uma nação, não apenas se posicionava como ―a nação escolhida por Deus‖,

como tinha a admiração de diversos países do ocidente pelo seu sistema político,

114

MENDONÇA, Antônio Gouveia. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: IMS, 1995, p.19. 115

KARNAL, Leandro. Estados Unidos: a formação da nação. São Paulo: Contexto, 2013, p.42.

81

econômico e educacional. No século XIX, o protestantismo era tido como a ―religião

da modernidade‖, visto que era a principal religião de países que haviam se tornado

referências de prosperidade para o mundo, como Estados Unidos e Inglaterra.

A América do Sul era foco dos missionários protestantes, em especial o

Brasil. Apesar do país já ter a Igreja Católica como religião oficial, para as agências

missionárias norte-americanas protestantes o catolicismo não fazia parte da

―verdadeira igreja‖, que viam o catolicismo como uma religião que se apostatou, se

perdeu em folclores e sincretismos locais.116 Era necessário que os brasileiros

aderissem à fé protestante e só assim eles conheceriam o verdadeiro cristianismo.

Ao virem para o Brasil com esse propósito, abriram congregações, venderam Bíblias

e falaram sobre a sua fé tanto dentro de casas como a céu aberto; procuraram ser

influentes na política (muitos deles defendendo o modelo de estado norte-

americano) e, além da Bíblia, publicaram e distribuíram folhetos e jornais

protestantes.

A partir daí percebe-se como a religião secular norte-americana construiu o

olhar do outro, primeiramente defendendo ser ela própria a civilização eleita, que

havia chegado ao estágio ideal de civilidade ideal, dona de valores políticos,

econômicos e religiosos que precisavam ser propagados e absorvidos pelo mundo.

E se alguém deve ser salvo é porque existem os perdidos. No caso nações e etnias

perdidas, o que legitimava a existência do cristão no mundo, como um pequeno

messias necessário para a salvação do outro, do não cristão. A religião civil norte-

americana, mergulhada na percepção do cristianismo protestante, aplica na prática

essa ideia, devido à clara mescla entre sua noção de civilidade e religiosidade

oriunda do protestantismo calvinista. O mundo precisava ser salvo, e os Estados

Unidos deveriam, com base nisso, propagar e expandir o seu modelo de nação ideal

a todas as outras nações. Uma nação messiânica supostamente escolhida por Deus

para tal.

Precisamos entender essa cosmovisão religiosa e social do protestantismo

para entendermos melhor a mentalidade protestante no Brasil, e mais precisamente

no Pará. Perceberemos as rupturas e permanências desse protestantismo histórico

que atravessou séculos e rompeu os limites geográficos europeus, se tornando

hegemônico nas 13 colônias. Urge compreender como essa cosmovisão

116

MENDONÇA, Antônio Gouveia. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: IMS, 1995, p.92.

82

protestante, em sua maior parte norte-americana, se inseriu em um país de

hegemonia católica como o Brasil, perceber suas estratégias expansionistas e seu

modus operandi, muitas vezes similar à mentalidade social norte-americana e outras

vezes não, ocasiões em que se recria e produz adaptações à conjuntura brasileira

produzindo rupturas, como veremos mais adiante.

2.2 ―UM CRISTIANISMO MAIS PURO‖: O PROTESTANTISMO NO BRASIL

A historiografia nos mostra a presença de protestantes no Brasil desde os

primórdios do período colonial; presenças pontuais e atípicas, como a do viajante

Hans Staden, protestante, que indo para Argentina teve seu barco naufragado em

1547 no litoral paulista, e por aqui acabou permanecendo por sete anos professando

a fé protestante aos tupinambás, e ao retornar a Alemanha, em 1554, escreveu um

livro com suas memórias, intitulando ―Viagem ao Brasil e meu cativeiro entre os

selvagens do Brasil‖.117

Mas a primeira expedição de protestantes ao país de forma planejada se

deu em 1555, poucos anos depois da colonização portuguesa. Missionários

franceses objetivaram fazer do Brasil a ―França Antártica‖, um território Francês em

que os huguenotes poderiam professar a fé protestante livremente, sem a

perseguição que ocorria ao protestantismo pelo estado monárquico francês na

época.118

Mas a história conta que esse primeiro projeto da instauração do

protestantismo no país não deu certo. Tanto pela resistência portuguesa como por

membros da própria expedição, como o seu chefe, Villegaignon, que desde a

tentativa de um processo civilizatório protestante por aqui procurou concordar com o

pedido dos frades católicos sobre questões caras à Reforma nesse período, como a

eucaristia, orações aos mortos, purgatório. Logo começaram as desavenças entre

Villegaignon e o pequeno grupo protestante francês que viera com ele na expedição.

Foram desavenças com pessoas da própria expedição e principalmente com

portugueses, contendas que acarretou a morte desses huguenotes pelas próprias

lideranças políticas e religiosas portuguesas que estavam no Brasil. Mesmo com as

117

SANTOS, Marcelo; PINHEIRO, Jorge. Manual de história da Igreja e do pensamento cristão. São Paulo: Fonte Editorial, 2013. 118

MENDONÇA, Antônio Gouveia. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: IMS, 1995, p.24.

83

perseguições chegando a esse extremo, foram desses protestantes o crédito do

primeiro culto protestante no Brasil, que se deu no dia 10 de março de 1557.119

No século XVII, notamos uma empreitada semelhante a que ocorreu no

século anterior após o Brasil ter, desde 1580 se tornado uma colônia ibérica, por

Portugal ter se tornado território Espanhol. No século XVII, a Espanha estava

gradativamente perdendo força, enquanto países como a Holanda estavam em

constante ascensão. Foi em 1630 que a Holanda, país declaradamente protestante,

procurou vir ao Brasil e conquistar terras que forneciam riquezas para a Espanha

manter suas pretensões imperialistas na Europa. Uma estratégia inicialmente

política, mas que teve consequências tanto no aspecto político como no religioso de

algumas regiões da colônia brasileira.120 A Holanda se instalou na região de

Pernambuco, e aquela área e suas proximidades se tornaram território protestante.

Muitos templos católicos eram tomados pelos portugueses para servirem como

templos protestantes, e imagens e altares eram retirados.121 Costumes foram

inseridos; agora ordem e silêncio deveriam prevalecer nos horários de culto,

santificação absoluta no domingo, proibindo os trabalhos e algumas práticas de lazer

nesse dia. Era uma disciplina religiosa que também atingia a área política e civil,

pois cabia às lideranças protestantes representadas pelos presbitérios realizar

casamentos e examinar documentos de identidade de estrangeiros.122

Havia uma preocupação de diversos missionários protestantes em implantar

aqui ministérios de pregação e educação, especialmente para indígenas, e então

produziram literatura em língua Tupí, especialmente voltada para a fé cristã, como

os catecismos. Alguns indígenas aderiram à fé protestante e se tornaram, inclusive,

lideranças do protestantismo local.123

Essa ―Nova Holanda‖, como denominavam os colonizadores holandeses, foi

destituída em 1654 quando os portugueses novamente assumiram o controle do

Brasil como colônia lusa. Os holandeses foram expulsos da região e o

protestantismo enquanto religião institucional no Brasil foi praticamente eliminado.

119

MENDONÇA, Antônio Gouveia. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: IMS, 1995. CALDAS, Carlos. As ondas missionárias estrangeiras no Brasil. In: WINTER, Ralph; HAWTHORNE, S. C.; BRADFORD, Kelvin D. (Eds.). Perspectivas no movimento cristão mundial. São Paulo: Vida Nova, 2009. 120

CALDAS, op. cit., p.358. 121

SANTOS, Marcelo; PINHEIRO, Jorge. Manual de história da Igreja e do pensamento cristão. São Paulo: Fonte Editorial, 2013, p.341. 122

MENDONÇA, op. cit., p.25. 123

CALDAS, op. cit., p.359.

84

Não encontramos autores e fontes documentais que nos mostrem o movimento

protestante atuando nesse período. Assim, podemos, por hora, nos juntar à

conclusão de outros diversos autores desse tema: O protestantismo no Brasil é

erradicado por aproximadamente 200 anos, reaparecendo apenas no século XIX.

Com a família real portuguesa vindo ao Brasil, e a dependência portuguesa

diante da Inglaterra, é que notamos uma maior abertura a vinda de imigrantes anglo-

saxões para o Brasil, muitos deles protestantes. ―Assim, progressivamente passando

pela constituição de 1824 até a de 1891, foi sendo reduzida a hegemonia católica, e

os protestantes foram conquistando o seu lugar no espaço brasileiro.‖124 Diversos

protestantes de diversos países europeus, como alemãos, suecos e ingleses, assim

como muitos norte-americanos, passaram a viver no Brasil vendendo Bíblias e

praticando cultos religiosos, mesmo que de forma legalmente muito restritiva.125

No Brasil monárquico é que temos o ressurgimento do protestantismo, e,

consequentemente, uma pequena quebra da hegemonia católica como principal

religião do país. Além dos protestantes estrangeiros que já estavam chegando aqui

desde o início do império, no reinado de Dom Pedro II começaram a aparecer as

missões estrangeiras. O próprio Dom Pedro II admirava esses missionários ―pelos

seus conhecimentos e pelos serviços práticos que poderiam prestar‖126. O

proselitismo religioso protestante não era algo que o Imperador se opunha. Mesmo

sendo católico, ele não adotou a linha católica ultramontana que se reestruturava no

século XIX e que se mostrava combativa a qualquer religião ou ideal acatólico. Além

do que, a admiração pelo protestantismo ia além da inteligência desses

missionários, é algo que acompanha a relação entre os protestantes e o país desde

a primeira caravana de protestantes que aqui pisou: havia um projeto civilizatório

onde o protestantismo era visto como um instrumento para se chegar a um devir, em

um modelo ideal de nação próspera. Um projeto que, aparentemente, não estava

apenas permeando o imaginário social norte-americano, mas também de muitas

lideranças políticas e intelectuais brasileiras. Notamos esse discurso na obra ―O

protestantismo brasileiro‖, em que Leonard analisa o discurso de Marquês de

Paraná, em 1854:

124

MENDONÇA, Antônio Gouveia. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: IMS, 1995, p.26. 125

Ibidem. 126

LEONARD, Emilie. Protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. Rio de Janeiro; São Paulo: Juerp/ASTE, 1981, p.48.

85

Meu governo, dizia ele no discurso do trono em 3 de maio de 1855, empenha-se com particular interesse na tarefa de promover a colonização, da qual depende essencialmente o futuro do país. Para tanto, é necessário assegurar aos mais ―evoluídos‖ desses colonos esperados, pertencentes a nações protestantes, a possibilidade de exercer seu culto e de nele educar seus filhos.127

Esse discurso civilizatório também foi um gancho para missionários como

James Cooley Fletcher se inserirem no país, ele que, como pastor e também como

banqueiro, se utilizava da sua titulação de ―homem de negócios‖ para vir ao Brasil

propagar a fé protestante. Trabalhou em hospitais, ajudou outros missionários

protestantes financeiramente, vendia bíblias e depois de vários anos de tentativas

conseguiu entrar no ciclo social do imperador Dom Pedro II. Tornou-se presidente da

Sociedade Bíblica no Brasil e a distribuição de bíblias no país aumentou de 4000

para 20.000 exemplares. Segundo Mendonça, a liberdade que se passou a ter no

Império para vender e distribuir bíblias por parte de agências das sociedades

bíblicas estrangeiras, bem antes da chegada e estabelecimento das missões

protestantes, se tornou uma estratégia protestante de penetração da sua fé no

país.128

Segundo David Vieira Gueiros, um dos assuntos recorrentes de Fletcher

com Dom Pedro II e com diversos empresários brasileiros era a ideia de ―progresso‖

do país, que procurava retratar os países anglo-saxões usando-os como exemplo,

atribuindo ao protestantismo o motivo do sucesso econômico e social dessas

nações, e tentando convencer o Imperador, os literatos e estadistas do Brasil da

superioridade do protestantismo, de modo que eles cooperassem para que a

imigração protestante se desenvolvesse no país.129

Além disso, Fletcher foi um grande incentivador do ministério de Robert Reid

Kalley, relevante personagem na história do protestantismo no Brasil. Nascido na

Escócia, Kalley havia trabalhado em uma obra de evangelização vinculada a um

projeto de assistência médica, e conseguiu ter milhares de adeptos e adotou o

calvinismo como um modelo doutrinário protestante, algo que não foi bem visto pelo

127

LEONARD, Emilie. Protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. Rio de Janeiro; São Paulo: Juerp/ASTE, 1981, p.48. 128

MENDONÇA, Antônio Gouveia. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: IMS, 1995, p.27. 129

GUEIROS, David Vieira. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1980, p.75.

86

clero local, gerando perseguições a ponto de levá-lo à prisão por uns meses. Após

obter asilo nos Estados Unidos, Kalley foi convidado para vir ao Brasil ajudar na

propagação da fé protestante, desembarcando aqui em 1855.130

Kalley foi além da distribuição e venda de bíblias como forma de

evangelismo e passou a fazer pregações de rua. Convocou aliados portugueses

para auxiliá-lo na pregação do protestantismo, e assim como Fletcher também

―dedicou-se a estabelecer, com as autoridades mais elevadas e com a alta

sociedade brasileira, contatos que garantiam sua obra e seus convertidos‖131. Seus

contatos políticos eram tais que conseguiu ser conhecido pelo próprio Imperador, a

ponto de Dom Pedro II ir à sua casa convidá-lo pessoalmente para fazer uma

conferência à família imperial.132

Kalley tinha seus motivos para temer e procurar se cercar de pessoas de

grande prestígio político e social, pois em algumas reuniões de culto protestante

organizadas por ele no Rio de Janeiro ―eram atiradas pedras, as escadas externas

ensaboadas ou untadas de excrementos; insultos e ameaças de sevícia eram

dirigidas contra os assistentes, e tudo isso com a autorização da polícia local‖133.

Em 1860, oito portugueses calvinistas foram presos em uma reunião domiciliar, e a

alegação da prisão era por estarem promovendo uma ―reunião ilícita‖, como retratou

o veículo de imprensa do período, Correio Mercantil. Kalley e seus aliados

publicaram artigos para os jornais acusando as autoridades de intolerantes e sempre

retratando aos veículos de imprensa norte-americanos os casos de intolerância

religiosa no Brasil. Por estar cercado de amigos de influência na corte, Kalley se

esquivou de grandes perseguições, embora claramente no decorrer de seu

ministério os alvos fossem os seus seguidores. Mesmo com perseguições

recorrentes, muitos missionários aproveitaram essa abertura do país com relação a

estrangeiros anglo-saxões, e o respeito que autoridades políticas e literatos

brasileiros já possuíam pelo protestantismo para virem ao Brasil e propagar a fé

protestante. Com isso, muitas denominações passaram a se estruturar no país,

mesmo que com diversas restrições. Notamos a presença de congregacionistas

130

LEONARD, Emilie. Protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. Rio de Janeiro; São Paulo: Juerp/ASTE, 1981, p.50. GUEIROS, David Vieira. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1980, p.120. 131

LEONARD, op. cit., p.50. 132

GUEIROS, op. cit., p.121. 133

LEONARD, op. cit., p.51.

87

vindos através do próprio Kalley (1855), os presbiterianos (1859), os metodistas

(1867) e os batistas (1871).

A Igreja Presbiteriana chegou ao Brasil pelas mãos do missionário Ashebel

Green Simonton, que recebeu cartas de apresentação escritas por James Cooley

Fletcher dirigida a membros de ―alta classe‖, mas pouco as utilizou. Simonton foi

responsável pela iniciação de um seminário presbiteriano no Brasil, distribuição de

bíblias e criação de um jornal presbiteriano chamado ―A imprensa evangélica‖. O

primeiro jornal protestante presente no país.134

Em 1882 surgiu a primeira igreja batista brasileira em Salvador. Um

missionário que se destacou no trabalho foi Willian B. Bagby, junto com sua esposa

Ana. B Bagby. Contudo, já existiam batistas vivendo no Brasil havia uma década, e

congregando em residências.135 A filha dos Bagby, Helen Bagby Harrison, escreve

sobre a vida dos pais, contando inicialmente a migração dos batistas para o país,

relatando o quanto esse processo migratório foi consideravelmente influenciado pela

guerra civil ocorrida nos EUA, na qual centenas de famílias americanas de origem

batista migraram para o Brasil por perderem terras e escravos, recebendo o convite

do próprio Dom Pedro II.136

Hawthorne, um general norte-americano sulista, que tinha contatos com o

imperador, se tornou membro da sociedade missionária do Texas e, a partir daí,

incentivou o Brasil como um forte território a ser trabalhado por missionários batistas.

Há várias justificativas, tais como esta:

Primeiro, o governo é justo e estável, sábio e firmemente administrado e oferece segurança de vida, liberdade e prosperidade, um governo onde o mérito é devidamente recompensado e o crime é prontamente punido. Imigrantes industriosos de todos os climas e países, mas especialmente dos Estados Unidos, são convidados e recebidos com corações e braços abertos, e toda a proteção e comodidade

134

A imprensa protestante no país é um tema bem fundamentado na tese de Micheline Reinaux de Vasconcelos, que conta a trajetória dessa imprensa por aqui desde o período imperial até o republicano. A autora trabalha o tema a partir dos jornais ―Imprensa Evangélica‖ e ―O jornal Baptista‖, usando-os como suas principais fontes, mas também cita outros periódicos que circulavam nas outras denominações e em outras regiões. O jornal presbiteriano ―Norte Evangélico‖, publicado para o Norte e o Nordeste do país, acerca do qual falaremos mais adiante, também é citado por Vasconcelos. VASCONCELOS, Micheline Reinaux de. As boas novas pela palavra impressa: impressos e imprensa protestante no Brasil (1837-1930). Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2010. 135

SANTOS, Marcelo; PINHEIRO, Jorge. Manual de história da Igreja e do pensamento cristão. São Paulo: Fonte Editorial, 2013, p.342. 136

HARRISON, Helen Bagby. Os Bagby no Brasil. Rio de Janeiro: JUERP, 1987, p.14.

88

lhes são dadas que passam ser necessárias para o progresso e prosperidade. Segundo: O povo do país é polido, liberal e hospitaleiro ao mais alto grau. Tem grande admiração pelo povo americano, e está, evidentemente, na condição mais favorável para receber de nossa parte um cristianismo mais puro.137

Essas informações romanceadas com as quais Hawthorne retrata o Brasil

mostram o quanto ele quer revelar a abertura dada ao governo feita por Dom Pedro

II. Naturalmente, podemos comparar o relato de Hawthorne acerca da história de

tensões entre católicos e protestantes (no decorrer do Império) com as que viveram

outros missionários aqui mencionados, e outros dos quais falaremos mais à frente.

Contudo, se analisarmos para além dessa visão romanceada do general missionário

batista sobre o Brasil notaremos o quanto ele reconhece o Governo como o agente

que promove a abertura política para a vinda de imigrantes, especialmente de norte-

americanos, uma migração legitimada por um discurso de que eles faziam parte do

―progresso‖; essa foi a mensagem que fez com que Willian e Ana B. Bagby viessem

ao Brasil.

O protestantismo desde o Império se instaurou nos grandes centros

urbanos, especialmente no Rio de Janeiro e São Paulo. Todavia, houve missionários

que procuraram levar a fé protestante para o interior do país. Um caso muito peculiar

do protestantismo no Império no interior de estados do Sul, Sudeste e Centro-Oeste

foi o de José Manuel da Conceição.

Ao contrário dos outros casos retratados aqui, José Manuel da Conceição

era um padre católico que se tornou ―o primeiro pastor protestante brasileiro‖138 que,

intencionando aprofundar seu conhecimento teológico, debruçou-se sobre a

literatura protestante em alemão a partir do editor Henrique Larmmert. Houve

acontecimentos peculiares, como sua negação em se confessar, e que ele defendia

para os fiéis católicos reflexões como ―Eu e você precisamos nos confessar a Deus

e não a homens‖139. Essa perspectiva de discordância dos dogmas católicos e

assimilação cada vez maior da teologia protestante fez com que, anos mais tarde,

ouvindo as pregações do missionário presbiteriano Alexandre Blackford, José

137

Apud: HARRISON, Helen Bagby. Os Bagby no Brasil. Rio de Janeiro: JUERP, 1987, p.14. 138

MENDONÇA, Antônio Gouveia. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo: IMS, 1995, p.185. 139

LEONARD, Emilie. Protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. Rio de Janeiro; São Paulo: Juerp/ASTE, 1981, p.57.

89

Manuel da Conceição abandonasse a Igreja Católica, se batizando em uma igreja

protestante presbiteriana.

Conhecido como ―o padre protestante‖, Conceição propagou o

protestantismo no interior de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, em cidades

como Ibiúna, Sorocaba, Limeira, São José dos Campos, Aparecida, Jacareí,

Pindamonhangaba, Mogi Mirim, Ouro Fino, Santa Ana, e outras cidades menores

das províncias imperiais.

Mesmo tendo diversos companheiros para propagar a fé protestante, como

Blackford e Simonton, ele acabou por incorporar métodos diferenciados dos

protestantes estrangeiros, mostrando-se bem mais pragmático e pouco

organizacional. José Manuel da Conceição não se fixava em uma cidade por muito

tempo, era um ―pregador itinerante‖, fazia viagens e proclamava a fé protestante por

um tempo imprevisível a cada cidade que passava. Com isso, deixou de receber

apoio de agências missionárias e passou a se encontrar pouco com os líderes

protestantes que se destacavam na época. ―Não tinha havido um rompimento entre

ele e seus companheiros, mas sua missão não era o ministério organizado e a

propaganda confessional‖140, a peculiaridade de seu pragmatismo fez com que ele

desse maior atenção a ―um ministério de caridade e instrução religiosa entre os mais

humildes‖, transformando-se, ele próprio, em um homem materialmente pobre. Além

disso, José Manuel da Conceição não procurava destruir os hábitos religiosos do

povo brasileiro como um todo, aparentemente, ele planejava ―uma reforma

realmente brasileira, harmonizada com o temperamento e os hábitos do país‖, e

apesar de discordar das práticas do catolicismo brasileiro, reconhecia que, em

muitos fiéis, havia uma ―fé ignorante, mas profunda e sincera‖.141 O proselitismo

religioso protestante no Império nos leva a algumas reflexões: Esses protestantes, a

partir de uma abertura do Imperador que permitia a inserção do protestantismo no

país, mesmo com diversas restrições jurídicas, procuraram por meio da distribuição

de bíblias, contatos com pessoas de grande credibilidade política e social da época,

pregações pelo país em templos, casas ou na rua, elaboração de veículos de

imprensa, tradução de livros e construção de instituições de ensino e saúde, a

propagação da fé protestante no país. Era comum, tanto os protestantes norte-

140

LEONARD, Emilie. Protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. Rio de Janeiro; São Paulo: Juerp/ASTE, 1981, p.65. 141

Ibidem.

90

americanos como os brasileiros, observar uma cosmovisão cristã que ia além da

prática religiosa. Pessoas que proclamavam uma fé a partir de uma visão de que o

país prosperaria nos cenários político, econômico e social a partir da inserção do

protestantismo na sociedade.

O chamado ―boom‖ protestante no século XIX fez com que cerca de 1% da

população se tornasse protestante. Apesar disso, vimos que o protestantismo se

propagou especialmente nas regiões do Rio de Janeiro e São Paulo, e foi mais bem

recebido entre os de renda financeira estável, em geral a classe média ou alta.

Ainda assim, não devemos ignorar que houve uma tentativa de comunicação desses

protestantes com os populares, que aparentemente houve uma falta de assimilação

dessa camada popular a esse modelo de fé diferenciada. José Manuel da Conceição

parece ter sido, dos missionários retratados, o que mais procurou vivenciar a sua fé

protestante entre os populares. Conseguiu ser o protestante nesse período que mais

penetrou no interior e proclamou um protestantismo afastado das grandes capitais.

Precisamos, é claro, considerar as suas particularidades, visto que ele era brasileiro,

não tinha a ideia do ―destino manifesto‖ em sua dinâmica religiosa e procurou fazer

pontes entre o catolicismo popular e o protestantismo que havia abraçado. Mas,

ainda assim, a abordagem do ex-padre foi algo particularizado e aparentemente não

se iniciou daí um movimento protestante popular que melhor dialogasse com o

brasileiro, ainda na maioria católicos, em suas diversas camadas sociais, embora

talvez tenha sido um dos que mais se aproximaram de um bom diálogo com a

religiosidade católica local. Ainda que o protestantismo no Brasil nesse período

tenha crescido e se consolidado como nunca havia ocorrido em séculos anteriores, a

maior parte de seu público ainda se concentrava nas grandes capitais, o qiue talvez

explique a dificuldade de crescimento do protestantismo na região Norte,

especialmente no Pará, como retrataremos a seguir.

2.3 ―DISTRIBUÍNDO BÍBLIAS NO RIO‖: O PROTESTANTISMO NO PARÁ

As manhãs e as noites no Pará são de indescritível beleza. Nenhuma outra região do globo oferece maior interesse que esta, no que se respeita a natureza. Sua situação geográfica sob a faixa equatorial, sua enorme extensão territorial, seus rios colossais, o encanto e o romanesco de sua história e de

91

seu nome, são característicos originais, peculiares a essa gleba imensa.142

Retratar o protestantismo nessa região é um grande desafio para a

pesquisa, pois foram poucos os materiais produzidos sobre protestantes no Pará.

Dos relatos de viajantes que circulavam pelo país no período colonial, não

encontramos relatos de protestantes, no máximo algumas suposições.143 Até onde

podemos averiguar, a região amazônica era majoritariamente católica desde a

colonização europeia portuguesa no século XVI e até meados do século XIX.

Notamos assim a primeira tentativa da inserção de protestantes na

Amazônia a partir de um missionário da Igreja Metodista chamado Daniel Kidder. O

missionário viajou pelo Brasil inteiro e esteve em Belém do Pará em 1839, e teria

mencionado que Belém era a maior comunidade de americanos que já havia

encontrado no país depois do Rio de Janeiro.144 A maioria desses norte-americanos

eram negociantes e mecânicos. A presença deles em Belém era relatada por

políticos como Tavares Bastos, que atribuía a escolha desses norte-americanos pela

região como ―prova de que o Brasil abandonara o espírito de obscurantismo e tinha

finalmente adotado bom senso em relação ao Amazonas‖145 . Fletcher via esses

norte-americanos como pessoas que ―tinham trazido o ‗progresso‘ para o

Amazonas‖146. Para além disso, era um atrativo para outros missionários norte-

americanos perceberem a região como um campo missionário.

Kidder via o Pará especificamente como a ―região com a maior variedade de

produtos regionais que qualquer outra região do Império, e, talvez, mesmo do

mundo‖.147 Havia realmente uma diversificação de matérias-primas na região para

sua comercialização, mas não descartamos a possibilidade de, para além disso,

notar uma possível intenção de Daniel Kidder de propagandear a região amazônica

142

KIDDER, Daniel. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: províncias do Norte. Brasilia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. Apud: SILVA, Claudio Lísias Gonçalves dos Reis. “Ganhar almas para Cristo” e as relações de poder: a propaganda protestante em Belém do Pará. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), UEPA, Belém, 2014. 143

Martin Dreher, ao falar sobre os protestantes na Amazônia, menciona possíveis alemães que foram a cidade de Santarém, no sul do Pará, no período colonial. Mas, ainda assim, reconhece que não há documentações que embasam essas informações, sendo, assim, apenas suposições. DREHER, Martin. O protestantismo na Amazônia. In: HOOTNEART, Eduardo (Coord.). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992. 144

GUEIROS, David Vieira. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1980, p.165. 145

Ibidem. 146

Ibidem. 147

Apud: SILVA, op. cit., p.55.

92

como um território a ser explorado pelos missionários. A região Norte parecia ser um

importante ponto de ocupação protestante, na qual

[...] havia uma grande expectativa nos Estados Unidos e na Europa de que o rio Amazonas fosse aberto à navegação mundial, e que a Amazônia viesse a ser um novo centro de civilização, um ponto magnético para o qual seriam atraídos centenas de milhares de imigrantes europeus e americanos, onde criariam um novo El Dourado.148

Apesar dessa visão internacional europeia e norte-americana com relação

ao Amazonas, ao menos no Pará, aparentemente, a maioria dos ingleses e norte-

americanos que estavam na região eram contrários à presença de pregadores

protestantes na cidade.149 Além disso, era notável a forte presença do catolicismo

em Belém. Tanto Daniel Kidder quanto outros missionários que foram

posteriormente ao Pará mencionaram a religiosidade católica paraense,

especialmente com relação ao Círio de Nazaré. Kidder a retratava como ―a maior

festividade que se celebra no Pará‖150.

Outro protestante no período imperial que procurou propagar sua fé na

região amazônica foi Robert Nesbit. Capitão naval americano, ele sempre levava

consigo nas viagens um carregamento de bíblias para serem distribuídas na região.

Em 1857 se tornou agente da Sociedade Bíblica Americana no Rio Amazonas, e

assim distribuiu bíblias em uma área territorial que ia de Belém a Iquitos no Peru.

Além de ser um grande fornecedor de Bíblias para a cidade de Belém, também

fornecia constantemente bíblias para as comunidades ribeirinhas.151 Em 1960,

outro protestante que chega ao Pará e marca a história do protestantismo do estado

é Richard Holden. Enviado do conselho mundial de Missões da Igreja Episcopal

Americana, Holden chegou a Belém do Pará e montou um centro comercial para

depositar seus livros, bíblias e anunciar sua venda em jornais.152 Viajava durante

semanas pelo Rio Amazonas para vender bíblias em vilas e cidades vizinhas153, e

apesar de se associar com alguns comerciantes e políticos locais, também começou

148

GUEIROS, David Vieira. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1980, p.164. 149

Ibidem, p.165. 150

Ibidem, p.225. 151

Ibidem, p.178. 152

Ibidem, p.179. 153

Ibidem, p.180.

93

um trabalho de evangelização das classes populares. Holden sentiu a forte

resistência que as pessoas que viviam em Belém do Pará tinham com a fé

protestante, fossem os estrangeiros ingleses e americanos ou a própria população

local; teria declarado que na cidade havia ―hostilidade intensa ao evangelho no

coração do povo e quase todos professam princípios hostis‖. Ocorre que Holden se

deparou com a pouca instrução de muitos padres da região, e um catolicismo de

forte devoção popular aos santos, à Maria, práticas que julgava ser idólatras.

Uma das características que mais marcaram a trajetória de Holden pelo

estado foi a sua atuação na imprensa e suas polêmicas com o clero católico

paraense, especialmente com o bispo do Pará, Dom Macedo Costa. Apoiado pelo

deputado Tito Franco de Almeida, ele conseguiu espaço para publicar artigos em

seu jornal por um baixo custo. Holden publicou os evangelhos descritos na bíblia

como o Evangelho de Mateus e as Epístolas de Paulo, além de algumas críticas ao

catolicismo que, mesmo moderadas por Tito Franco, não deixavam de ser

publicadas no jornal.

Com a chegada de Dom Macedo Costa como o novo bispo do Pará, as

dificuldades sofridas pelo protestantismo para a perpetuação em solo paraense se

intensificaram. Também se utilizando de veículos de imprensa, Dom Macedo

ganhava espaço em periódicos locais onde publicava diversos artigos atacando

diretamente Richard Holden, refutando a sua ―Bíblia protestante‖ e proibindo os

católicos de comprá-la e tê-la em casa. Ao mesmo tempo que recomendava que os

fiéis católicos deveriam ―encher-se de bondade para com seus irmãos desviados‖,

Dom Macedo também pedia ―Ódio de morte ao Protestantismo‖, refutando essa fé

que possuía um ―espírito de independência que põe a razão individual acima da

augusta autoridade da Igreja Católica‖154.

O debate de Holden e Dom Macedo Costa durou um bom tempo nos jornais,

neles Holden defendia a veracidade da bíblia protestante, que Dom Macedo acusava

de ser falsificada. Aparentemente, Holden também ganhou apoio de diversas

pessoas como intelectuais, políticos e até mesmo padres, como o Padre Eutíquio155,

que também tinha espaço na grande imprensa e que adotava ideais liberais e

154

GUEIROS, David Vieira. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1980, p.183. 155

Padre Eutiquio era um padre católico de linha liberal residente em Belém do Pará que ganhou espaço na imprensa fazendo críticas ao próprio catolicismo ultramontano do período. Recebendo também diversas críticas do clero local, principalmente por seus princípios políticos.

94

criticava constantemente o ultramontanismo católico. O número de pessoas que

foram no estabelecimento de Holden comprar seus livros aumentou, tanto por

pessoas curiosas, como por jovens intelectuais que manifestavam opiniões

contrárias ao catolicismo vigente.156 Em 1962, Holden deixou Belém e foi para a

Bahia, mas continuou sendo citado algumas vezes em veículos de imprensa dos

quais Dom Macedo Costa tinha espaço.

Então notamos que no Pará o protestantismo seguiu algumas tendências

nacionais no período imperial. Uma brecha nas boas relações internacionais do

Brasil com Inglaterra e Estados Unidos permitiu a vinda de missionários protestantes

no Brasil, que preferiam a região amazônica, vista internacionalmente como uma

boa região de comércio e um bom lugar para a ocupação de estrangeiros europeus

e norte-americanos, percepção compartilhada por protestantes como Fletcher, que

constantemente assinalava a importância da Amazônia ser ocupada pela fé

protestante, que ―traria o progresso‖ para a região. Será que Fletcher estaria

pensando em uma possível separação da Amazônia iniciada pelos costumes, e

quem sabe por rupturas futuras no campo político e territorial? Para nós fica claro

que havia uma tentativa dos missionários protestantes de, além da propagação da fé

protestante, promover uma modificação da sociedade amazônica como um todo a

partir de um possível protestantismo assimilado pela comunidade local. Contudo,

além das intenções, é interessante notarmos os acontecimentos registrados. A

maioria dos ingleses e norte-americanos que estavam na região não parecia seguir

o ethos moralista protestante, a ponto de rejeitarem até seus compatriotas

missionários. Aparentemente, nem os estrangeiros e nem os missionários

conseguiam dialogar com a mentalidade local. Mesmo os trabalhos com populares

não atingiram sua eficácia, que seguiram a tendência nacional de se articular com

grupos sociais notáveis da região, como políticos, intelectuais e comerciantes.

No Pará, pelos relatos de missionários como Holden, além da dificuldade de

um clero católico romanista, também havia o próprio povo que ―não possuía

entendimento‖157, e ele via isso como um quadro geral, e tal visão abarcava até

mesmo os padres, e a respeito de todos garantia que ―não conseguia encontrar um

católico de verdade‖ na região.

156

GUEIROS, David Vieira. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1980, p.185. 157

Ibidem.

95

É interessante refletir sobre essa perspectiva, pois se o catolicismo na

sociedade brasileira era místico e sincrético. Os missionários protestantes paraenses

notavam no Pará esses fenômenos de forma muito acentuada. Havia ali dificuldades

semelhantes às sofridas pelos protestantes no resto do país, pois:

Apesar desse ―boom‖ protestante que se alastrava pelo Brasil, ser evangélico naquela época era de uma dificuldade, pois havia muita discriminação. O fim dos constrangimentos com relação à lei só aconteceu com o advento da república e a promulgação da primeira constituição republicana de 1891, onde estado e religião foram oficialmente separados.158

Realmente a historiografia protestante brasileira nos dá embasamento para

identificarmos que houve verdadeiras dificuldades que os protestantes enfrentaram

na tentativa de propagar sua fé no país. Embora, diferentemente das afirmações do

autor, não acreditamos que os ―constrangimentos com relação a lei‖ aconteceram

após o advento da primeira república, visto que o catolicismo, mesmo tendo deixado

de ser a religião oficial do país, ainda era a religião hegemônica por aqui, e sua

coerção a religiões e ideais não católicos se manifestava nas mais diversas

instituições, inclusive nos aparelhos de estado. E isso justificava as constantes

ameaças de prisão que muitos desses protestantes sofriam, que iam desde

ameaças de prisão, violências físicas e simbólicas feitas pelo clero católico em

diversas regiões do Estado, que não cessaram no período republicano,

especialmente no Pará.

2.4 ―AS IGREJAS ESQUECIDAS‖: O PROTESTANTISMO NO BRASIL REPÚBLICA

EM BELÉM

Como dizíamos no capítulo anterior, no final do século XIX e início do XX, a

cidade de Belém se modernizava, ganhava status de metrópole, grandes obras de

infraestrutura saíam do papel, como suntuosas e espaçosas praças, teatros, ruas,

prédios, bondes circulando pela cidade, luzeiros espalhados pelas ruas clareando o

breu da noite, um aumento nos números do comércio e da economia. A maior parte

158

SANTOS, Marcelo; PINHEIRO, Jorge. Manual de história da Igreja e do pensamento cristão. São Paulo: Fonte Editorial, 2013, p.342.

96

dessa modernização da cidade se devia aos altos lucros obtidos com a economia da

borracha, produto que o estado do Pará era o principal exportador.

Durante esse período, a cidade dobrou o número de moradores. Nos anos

de 1888 a 1920 a cidade passou de 66 mil para 236 mil habitantes, muitos vindos do

interior do estado ou mesmo de outas regiões do país como o Nordeste,

especialmente o estado do Ceará. Os motivos principais dessa migração incomum

eram a busca por trabalho e por uma vida melhor em uma cidade em franco

crescimento econômico. Apesar disso, memorialistas da cidade constantemente

denunciavam as mazelas sociais vistas por eles. Nos seus registros de percepções,

observavam construções deterioradas, um maior número de pessoas mendigando,

estruturas precárias, entre outras mazelas.

Também há registros da historiografia paraense com relação ao aumento do

número de mortos vitimados por epidemias que assolavam a região, como febre

amarela e lepra. Grandes alagamentos em uma cidade onde a maioria das ruas não

possuía um bom sistema de esgoto e pavimentação, o aumento da mendicância e

as famílias do estado que no período da borracha ostentaram grandes riquezas e

após a crise perderam muitos dos seus bens.159

Ao que parece, o estado continuava sendo visto internacionalmente, não

tanto pela economia que despontava, mas como um campo missionário para a

propagação da fé protestante, que nesse período já era um grupo religioso

identificado como sujeito social de relativa visibilidade na cidade.

No final do século XIX, já vemos um cenário um pouco diferente de décadas

anteriores: Um catolicismo que estava deixando de ser religião oficial em 1890, e um

protestantismo que ganhava força. Agora, além de missionários que vendiam bíblias

nos portos, havia congregações fixas, denominações com um número crescente de

membros que pregavam sobre sua fé nos templos, nas ruas, vendiam bíblias e

distribuíam folhetos e jornais protestantes. Ou seja, assim como no resto do país,

159

No jornal ―Folha do Norte‖ eram recorrentes os casos de epidemias, alagamentos e falta de luz. Muitas mortes ocorreram nesse período e a crise econômica é apontada por alguns historiadores como um fator que contribuía para as calamidades que ocorriam na cidade. A obra literária ―Belém do Grão Pará‖, de Dalcídio Jurandir, narra a história de uma família que perdeu seus bens devido à crise econômica da borracha, sendo um objeto de análise para retratar as famílias que perderam bens financeiros nesse período. Para saber mais: CORRÊA, Ângela Tereza de Oliveira. História, cultura e música em Belém: décadas de 1920 a 1940. Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2010. MIRANDA, Aristóteles Guilliod de. A epidemiologia das doenças infecciosas no início do século XX e a criação da faculdade de medicina e cirurgia do Pará. Tese (Doutorado em Biologia de Agentes Infecciosos e Parasitários), Universidade Federal do Pará, Belém, 2013.

97

podemos ver o protestantismo presente também na cidade de Belém, e ainda mais

consolidado que no período imperial.

Na última década do século XIX e primeira década do século XX,

denominações batistas, metodistas e presbiterianas passaram a funcionar

ativamente na cidade. Faziam cultos regulares semanalmente, tinham um

determinado número de fiéis que frequentavam e seguiam a fé protestante, ainda

conectados a caraterísticas do início do XIX, como, por exemplo, estar

constantemente propagando sua fé ao ar livre, vendendo bíblias e distribuindo

jornais e folhetos. Essas denominações eram lideradas por muitos missionários que

se tornaram pastores, gente que na maioria das vezes vinha de outros países, assim

como havia os que chegavam de outros estados brasileiros.

Um dos protestantes que se destacou nesse novo momento do

protestantismo no Pará foi o sueco Eurico Nelson. Destacou-se desde a Suécia,

onde vinha de uma denominação batista, e na juventude foi morar com a família nos

Estados Unidos. Um de seus biógrafos, José dos Reis Pereira, relata que o principal

motivo de sua ida aos Estados Unidos foi a perseguição que os batistas sofriam na

Suécia por serem considerados uma ―seita‖, muito malvista aos olhos do povo, onde

tinham a igreja Luterana como denominação oficial do estado e referência para a

população. A família de Eurico Nelson, junto com outros batistas, foi para os Estados

Unidos por lá ser a ―terra tradicional da liberdade religiosa e que sempre acolheu

generosamente todos aqueles que, desejando adorar a Deus segundo os ditames

de sua consciência, eram perseguidos pelo oficialismo intolerante‖160. O autor

menciona Nelson como alguém que abandonou a escola, trabalhava como peão na

fazenda, e, consequentemente, não possuía o mesmo cabedal intelectual de outros

missionários protestantes. Apesar disso, Pereira destaca que ―Eurico Nelson era um

menino de singular inteligência e grande vivacidade de espírito‖ e que ―Jornais e

livros que chegavam em sua casa eram por ele devorados com sofreguidão‖161.

Estamos considerando alguns possíveis exageros do biógrafo, pois ao

trabalhar com determinadas biografias precisamos ter cuidado com a linguagem

que, muitas vezes, retrata sempre os aspectos positivos do personagem principal.

Ponderando isso, acreditamos ser importante analisar suas entrelinhas, e ali

160

PEREIRA, José dos Reis. O Apóstolo da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1945, p.21. 161

Ibidem.

98

podemos notar, desde já, alguns diferenciais de Eurico Nelson com relação a outros

missionários protestantes que foram a Belém do Pará no período imperial, pois parte

de sua trajetória religiosa foi herdada da Suécia; ele veio de uma família popular e

permaneceu com uma renda similar morando nos Estados Unidos. Contudo as

diferenciações de Eurico Nelson são claras, ele é um novo tipo de missionário

adentrando o solo amazônico para a proclamação da fé protestante; um estrangeiro,

sueco, que foi para os Estados Unidos como migrante, pertencente a uma religião

protestante praticada em grande parte por populares suecos. Esse ethos religioso

sueco também estará presente em sua trajetória missionária, diferenciando-o em

alguns aspectos da mentalidade missionária e teológica protestante norte-

americana.

Nos anos de 1890, Eurico Nelson leu em um jornal batista sueco uma carta

do missionário W.B. Bagby sobre o trabalho missionário batista no Brasil. Segundo

ele, tal carta ―dizia que o Brasil tinha se tornado uma república e agora era um

campo aberto para a pregação do evangelho‖162. Não conseguimos encontrar o

exemplar desse jornal sueco com a entrevista de W.B. Bagby, mas localizamos esse

fato retratado em outra biografia, ―The Apostle of the Amazon‖, de L. M. Bratcher, em

que ele diz: ―while there he head a letter written by missionary W. B. Bagby and

published in a swedish Baptist missionary said in his letter that Brasil was now

republic and entirely open to the preaching of the gospel‖163. Se as informações da

notícia se alinharem com o que está escrito na biografia, notamos que o Brasil, ao se

tornar república, passa a ter um regime político atrativo, a ponto de se transformar

numa legítima propaganda internacional, atraindo mais cristãos protestantes

residentes nos Estados Unidos para se tornarem missionários em terras brasileiras.

Fica claro o quanto a abertura do regime republicano para outras religiões era

motivo de propaganda internacional para a vinda de novos missionários norte-

americanos.

Eurico Nelson conta em uma matéria, acerca de sua trajetória missionária

nas regiões do Pará e de Manaus, sobre seu interesse em ir à Amazônia:

[...] Quando ainda residia na América, em um dia de outubro de 1890, veio-me ao pensamento a ideia de trabalhar no Valle do

162

PEREIRA, José dos Reis. O Apóstolo da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1945, p.37. 163

BRATCHER, L. M. The apostle os the amazonas. Nashville, Tennessee, 1952.

99

amazonas, havia completado um mez como pregador do evangelho, no Estado de Kansas, e o meu pensamento de trabalhar no amazonas era minha preocupação continua. Em janeiro de 1891 finalmente resolvi seguir para Belém do Pará, onde cheguei no dia 19 de setembro do mesmo anno. Enquanto aprendia a língua portuguesa, ocupava-me de pregar a bordo dos navios de vela, surtos do porto de Belém, na maior parte noruegueses, suecos e ingleses, e a ajudar nos hospitais o tratamento dos doentes, especialmente estrangeiros, atacados com a febre amarella, que até então grassava intensamente. [...]164

Eurico Nelson chega a Belém do Pará com a economia em alta, um alto

fluxo de estrangeiros a visitar a cidade, principalmente a negócios, fato que apenas

se potencializava havia décadas, fruto das relações internacionais feitas entre Brasil,

Estados Unidos e Europa, países que foram apenas fortalecidos na República,

especialmente no trânsito marítimo de cidadãos estrangeiros em rios da região

amazônica.

Apesar disso, notamos doenças como a febre amarela atingindo a cidade

como pano de fundo desse glamour apresentado no centro da cidade no período da

belle époque. Ezilene Fontes, ao retratar a conjuntura social de Belém na chegada

de Eurico Nelson à cidade, enfatizou as epidemias que estavam ocorrendo por lá na

época, em especial a de Febre Amarela. Em sua pesquisa, a autora cita discussões

com diversos autores do Pará sobre a presença da doença na cidade, e notou o

quanto esse era um assunto considerado habitual na província, assim como outras

epidemias e suas consequências, o que mostra que a doença já fazia parte do

cotidiano da região e que atingia diversas pessoas, como notado por Eurico Nelson

e mesmo outros missionários protestantes que viam o Pará como seu campo

missionário.165 Uma doença que atingiu até mesmo a esposa de Eurico Nelson, Ida

Nelson. Como o próprio missionário que residia no Pará, Justus Nelson, escreve em

seu jornal, ―O Apologista Christão Brazileiro‖, dizendo que: ―a esposa do pastor

Eurico Nelson cahiu doente de febre amarela em 17 do mês de fundo, porém na

164

O JORNAL BATISTA. ―Campo Baptista Amazonense‖. Manaus, 04/01/1923. 165

A dissertação de mestrado de Ezilene Ribeiro conta toda a trajetória de Eurico Nelson, tanto pelas biografias escritas como por fontes de jornais, o que dá um enriquecimento para a sua análise sobre o missionário batista. RIBEIRO, Ezilene. Eurico Alfredo Nelson (1862-1939) e a inserção dos batistas em Belém do Pará. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo, 2011, p.23.

100

data de escrever-se essa notícia (27) já se achava felizmente em franca

convalescência‖.166

Ezilene nos mostra a intensão de Eurico Nelson em se posicionar como um

agente ativo de transformação social à luz do cenário em que se encontrava, visto

que além de atender os doentes de febre amarela ele pretendia ―construir um asilo

para cuidar dos doentes de febre amarela‖, fato que gerou uma nota do jornal

metodista ―O Apologista Christão Brazileiro‖, que dizia que ―apoiado por seus amigos

pessoais e filantrópicos da pátria, e também pelos estrangeiros, do seu idioma na

capital, elle presente abrir um modesto asylo para os marinheiros no bairro do

comércio‖167. A autora mostra, entretanto, que esse projeto não continuou.168

Eurico Nelson tinha seus contatos pessoais e apoio, seja das pessoas de

―seu idioma‖, amigos e até mesmo ―filantrópicos da pátria‖, referência a possíveis

políticos ligados ao regime republicano, pois em algumas matérias do jornal ―O

Apologista Christão Brazileiro‖ eram definidos como ―filantropos‖ por Justus Nelson.

Desses grupos apoiadores de Eurico nenhum parecia ser necessariamente

protestante, o que mostra um possível contato com pessoas de outros grupos

sociais da cidade que vão além da Igreja, uma tendência semelhante com a ocorrida

por protestantes que foram para a cidade antes dele, e até mesmo de protestantes

contemporâneos seus.

A historiografia considera o sueco Eurico Alfredo Nelson como o pioneiro

para o nascimento da denominação batista no Pará. Quando, em 1891, ele ―chegava

ao Brasil em plena festa de Nossa Senhora de Nazaré‖169, a ―festa Católica por

excelência da cidade‖, e o autor continua dizendo que ―Foi assim, pouco rude o

primeiro contacto de Nelson com a idolatria romanista‖.170 Segundo o autor, Eurico

Nelson chegou na cidade já tendo contato com uma das principais práticas do

catolicismo paraense. A biografia já deixa claro seu juízo de valor diante do contato

de Nelson com a festa de Nossa Senhora de Nazaré, uma ―festa idólatra‖, contrária

a fé protestante que Nelson propagaria na cidade. O autor já nos condiciona a um

166

Apud: RIBEIRO, Ezilene. Eurico Alfredo Nelson (1862-1939) e a inserção dos batistas em Belém do Pará. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo, 2011, p.22. 167

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―Justus Nelson‖. Belém, 21/11/1891. 168

RIBEIRO, op. cit., p.28. 169

PEREIRA, José dos Reis. O Apóstolo da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1945, p.45. 170

Ibidem.

101

antagonismo entre catolicismo e protestantismo na cidade que se tornará visível nas

fontes documentais que veremos posteriormente.

Eurico Nelson também costumava vender bíblias que lhe eram oferecidas

pela Sociedade Bíblica Americana, ele as vendia nos portos ou em locais

estratégicos da cidade, como ―em frente ao Hotel América‖, um hotel importante no

centro.171 Também distribuía edições do ―Jornal Batista‖ que circulava por todo o

país, com o objetivo de ensinar sobre a fé batista, dizer o que acontecia nas

congregações batistas pelos estados brasileiros, publicar estudos bíblicos e criticar

algumas religiões não protestantes e, até mesmo, vertentes do próprio

protestantismo, espiritismo, catolicismo, calvinismo e, anos depois, o

pentecostalismo. Após alguns anos na proclamação da fé batista na cidade, ele foi a

Manaus, onde continuou seu trabalho missionário. Outro personagem importante do

protestantismo paraense nesse período é o sueco metodista Justus Nelson. O

―turbulento‖ pastor, como define José dos Reis Pereira em rápidas citações ao

metodista, chega a Belém em 1880 e permanece na cidade até o ano de 1925. Uma

das principais fontes que temos acerca de sua estadia na cidade, seu ministério e

obras feitas na região é o jornal que o pastor metodista publicou na cidade por 20

anos (1890-1910); e após 15 anos voltou a publicar apenas um volume explicando

sua trajetória como um missionário brasileiro e o motivo de sua partida em 1925.

Segundo descrito na última edição do jornal ―O Apologista Christão

Brazileiro‖, Justus Nelson, um sueco que foi para os Estados Unidos ainda criança, e

durante esse período viveu ali até decidir ser um missionário na América Latina, veio

ao Brasil por conta de um projeto missionário chamado Taylor Self Supporting

Mission, que levaria missionários norte-americanos metodistas para regiões como

Pará, Maranhão, Pernambuco e Bahia. Todavia, segundo o próprio pastor, esse

projeto missionário não deu certo, embora tenha sido a partir dele que Justus. N.

Nelson chegou ao Brasil, e precisamente a Belém do Pará.

Uma das formas de ingresso e consolidação da fé protestante no país era a

partir de uma instituição de ensino chamada ―Collegio Americano‖. Alguns bacharéis

norte-americanos vêm ao Brasil junto com Justus Nelson para o projeto, que

também seria aplicado nas províncias citadas acima. Todavia, nos outros estados os

colégios não duraram nem um ano, Justus Nelson procurou perseverar, chamando

171

PEREIRA, José dos Reis. O Apóstolo da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1945, p.55.

102

outros bacharéis, incluindo seus irmãos e sua cunhada. Um de seus irmãos, Jonh

Nelson, morre de febre amarela, assim como a esposa de seu outro irmão, James

Willet Nelson. Esse acontecimento fez com que o seu irmão que se encontrava vivo

voltasse para os Estados Unidos, fazendo com que, em 1882, Justus Nelson

inicialmente desistisse do Collegio Americano.172

Daí notamos a continuidade da ideia do protestantismo de missão focado em

modificar a sociedade na qual se insere por elementos que vão além da questão

religiosa, mas também educacional, de saúde, etc. Há uma mentalidade institucional

que vai além da construção de congregações protestantes, trata-se de uma

cosmovisão protestante norte-americana. Alex Seabra dos Santos nos conta que em

1883, após algumas pregações em cultos domiciliares em períodos anteriores, é

inaugurada a primeira Igreja Metodista Episcopal do Pará onde Justus Nelson se

tornara pastor.173 Em 1884 Justus Nelson também reabre o Colégio Americano,

sendo sócio do intelectual paraense José Veríssimo.174

O jornal ―O Apologista Christão Brazileiro‖ em si foi outro feito do missionário

metodista, ele se destacava como ―Um jornal noticioso, semanal, para as famílias,

dedicado à formação da fé evangélica e da boa moral‖175. Nele ―Nelson publicou

notícias do Brasil e do estrangeiro, atos governamentais, da região, propagou

exposições doutrinárias, esclareceu sobre a taxa de câmbio, preço da borracha e

principalmente fatos religiosos‖176. Tudo isso em um periódico onde ele mesmo era o

chefe, redator e o principal articulista, escrevendo sozinho a maior parte do

conteúdo. O jornal circulou durante 20 anos, quinzenalmente, retomando em edição

única em 1925, já como edição de encerramento. Foi um importante periódico

172

Essa trajetória de Justus Nelson é retratada com maiores detalhes na última matéria do jornal ―O Apologista Christão Brazileiro‖, na última publicação do jornal, em 1925. 173

SANTOS, Alex Seabra. O protestantismo metodista em Belém: buscando determinações de sua efetivação (1880-1896). Monografia (Graduação em História), UFPA, Belém - PA, 2000, p.29. 174

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Belém, 1925. Nesta matéria, este relata a breve parceria entre Justus Nelson e José Veríssimo. O intelectual José Veríssimo nasceu em Óbidos, no Pará, em 1857, e faleceu, no Rio de Janeiro, em 1916, passando parte de sua vida intelectual no Pará e parte na capital da República, onde fundou e participou ativamente da Academia Brasileira de Letras (ABL) e da Revista Brasileira. O autor foi estudioso importante nas discussões sobre as conseqüências do colonialismo português e as tentativas frustradas de uma política republicana de educação no Brasil. Para José Veríssimo, a educação pública deveria estrategicamente superar as degenerescências raciais, especialmente localizadas nos sertões do Brasil, promovidas pela colonização. Para saber mais, ver: ARAUJO, Sonia Maria da Silva. Educação republicana sob a ótica de José Veríssimo. Educar em Revista. Curitiba, n. especial 2, p.303-318, 2010. 175

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Belém, 1890. 176

COSTA, Heliane Monteiro da. Tensões entre metodistas e Igreja Católica, Belém (1890-1925). Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião), UEPA, Belém, 2013, p.77.

103

servindo como propagador de notícias locais, nacionais e internacionais e,

principalmente, foi um aparelho difusor da fé protestante na capital paraense.

Quando lemos o jornal e nos aprofundamos mais na trajetória de Justus

Nelson na cidade, compreendemos a pecha de ―turbulento‖ dada a ele.177 Nas várias

temáticas retratadas pelo jornal ―O Apologista Christão Brazileiro‖, Nelson defendia

ideais políticos, especialmente o regime republicano, além de defesas do casamento

civil e separação entre Igreja e Estado. Também criticava as doutrinas internas do

protestantismo, a predestinação calvinista, cosmovisão protestante que enfatiza a

soberania de Deus na salvação, onde Deus elege seu povo, acerca da qual Justus

Nelson afirmava ser uma doutrina ―monstruosa‖. Criticava ainda a continuidade do

batismo infantil, alegando que ―o baptismo de crianças deve conservar-se na

egreja‖178, contrariando o pensamento batista que considerava o ato herético,

criando tensões com o próprio Eurico Nelson179, além das relativas aos dogmas da

Igreja Católica nos mais de 20 anos de circulação do seu jornal. Logo durante as

primeiras publicações, Justus Nelson foi autor de diversas polêmicas contra o

catolicismo vigente e defesa da fé protestante. Eram constantes as matérias do seu

jornal e panfletos que ele entregava pessoalmente em frente às missas católicas da

cidade, criticando a devoção dos paraenses à Nossa Senhora de Nazaré.180

Polêmicas como essas foram responsáveis por levar o pastor metodista à prisão por

4 meses em 1892, por ―ultraje à religião católica‖.

Mesmo com essas constantes polêmicas e prisões, a denominação

metodista encabeçada por Justus Nelson cresceu no decorrer dos anos; em 1895 já

possuía 44 membros professos, 26 candidatos à membresia e 250 simpatizantes.181

Além de manter diálogos com grupos políticos da cidade, o pastor publicava

constantemente em seu jornal notícias do partido republicano, e em alguns

177

Termo utilizado por José Reis Pereira ao citar Justus Nelson na Biografia de Eurico Nelson. PEREIRA, José dos Reis. O Apóstolo da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1945. 178

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Belém, 15/02/1890. 179

Esse fato é mencionado no último capítulo de: RIBEIRO, Ezilene. Eurico Alfredo Nelson (1862-1939) e a inserção dos batistas em Belém do Pará. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Metodista de São Paulo, São Paulo, 2011. 180

Essa prisão e todos os processos de julgamento podem ser achados no jornal ―O Apologista Christão Brazileiro‖ e também em trabalhos como: COSTA, Heliane Monteiro da. Tensões entre metodistas e Igreja Católica, Belém (1890-1925). Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião), UEPA, Belém, 2013. SANTOS, Alex Seabra. O protestantismo metodista em Belém: buscando determinações de sua efetivação (1880-1896). Monografia (Graduação em História), UFPA, Belém - PA, 2000. O caso da prisão de Justus Nelson e seus conflitos com o catolicismo vigente serão melhor retratados no quarto capítulo. 181

COSTA, op. cit., p.70.

104

momentos, jornais como ―O Democrata‖, que circulava nesse período substituindo o

―Liberal do Pará‖, anunciava eventos de sua igreja, como cultos e casamentos.

Exemplo a seguir do aviso ―Casamentos acatólicos‖, publicado em 1890:

No dia 1º do corrente na casa n27 á travessa do príncipe desta capital, pelo revd Justus Nelson, pastor da igreja Methodista Episcopal, forão casados oo sr Marcellino Duarte, e a exm srª d Adelaide do Carmo Nobre Salgado. Servirão de testemunhas do acto religioso os sr. Antônio José Duarte e Francisco Romano da Costa.182

Apesar do crescimento em poucos anos e desses vastos contatos com

grupos sociais importantes da cidade, aparentemente a Igreja Metodista Episcopal

não alcançou um número muito expressivo de membros. Ao menos aos olhos do

próprio Justus Nelson, que, na última publicação do Jornal ―O Apologista Christão

Brazileiro‖, em 1925, se manifesta acerca de sua saída da cidade após 45 anos de

ministério. No texto, após narrar sua trajetória missionária, dificuldades financeiras,

prisões e perseguições, conclui que

Se a egreja Metodista episcopal, nesses 45 annos no Brasil, conseguiu attrair algumas pessoas a uma vida limpa, por mais diminuto que seja o número, fica plenamente justificado o dispêndio aqui feito, de dinheiro, de trabalho, e de vidas ceifadas já no seu primor.183

Vale observar que ele reconhece que foram atraídas apenas ―algumas‖

pessoas, embora, pela mensagem, mostra-se satisfeito com seu trabalho. Se essas

pessoas passarem a ter ―uma vida limpa‖, a transformação ética e moral promovida

pelo protestantismo estará concluída, porque é característica do protestantismo

histórico, uma das características da salvação. Essa dificuldade do pastor metodista

com um número expressivo de conversões ao protestantismo se soma aos relatos

de José dos reis Pereira que, em alguns trechos da biografia de Eurico Nelson, ao

retratar sobre a trajetória do pastor Justus Nelson, afirma que:

Havia, em Belém, por essa época, um missionário metodista, Justus. H. Nelson. Êste, que passava por médico, tinha vindo em companhia de outros missionários em 1885, com o bispo

182

O DEMOCRATA. ―Casamentos acatólicos‖. Belém, 1890. 183

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Belém, 1925.

105

metodista William Taylor, afim de estabelecer o trabalho na amazônia. Julgavam eles que se poderiam manter dando aulas de inglês. Começaram com animação a empresa em Belém e em Manaus, mas dentro em pouco alguns morreram de febre amarela, outros abandonaram o campo e Justus H. Nelson ficou só com sua esposa. Lutou quarenta anos em Belém, sem conseguir estabelecer trabalho sólido. Isso prova o quanto era difícil o campo que Eurico Nelson escolheu.184 (grifo nosso)

Mesmo Justus Nelson sendo utilizado por Pereira nesse aspecto apenas

para exaltar o protagonismo de Eurico Nelson como um missionário em um campo

extraordinariamente difícil de se propagar a fé protestante, a dificuldade de Justus

Nelson era reconhecida por ele mesmo em seu jornal. Dificuldade da qual também

aparentemente passou Eurico Nelson e diversos protestantes que os antecederam.

Ambos procuraram ser agentes ativos na cidade, ambos procuraram se articular com

outros grupos sociais não vinculados ao protestantismo. Ambos procuraram

trabalhar na área da saúde. E Justus Nelson, indo além do movimento batista na

região, criou seu próprio veículo de imprensa e uma instituição de ensino própria,

que, mesmo entre idas e vindas, durou alguns anos. Justus Nelson em sua trajetória

teve reconhecimento de grupos políticos do período, especialmente os republicanos,

e foi um agente ativo para uma tentativa de transformação da cidade, tanto pela via

religiosa como pela política, educação e saúde.185

A partir do aprofundamento da pesquisa sobre o protestantismo na cidade

de Belém no período republicano, encontramos outra denominação que foi pouco

pesquisada, e parte das fontes que a ela se referem encontramos apenas

posteriormente, na cidade de São Paulo. Trata-se da Igreja Presbiteriana do Pará.

Segundo Martin Dreher, o primeiro presbiteriano a surgir no Pará, foi o

reverendo Blackford, em 1878, que fazia seu trabalho missionário distribuindo

bíblias, trechos das escrituras e pregações ao ar livre. Dreher cita apenas uma

pequena reunião de fiéis presbiterianos, sendo que a maioria esmagadora era de

migrantes nordestinos. Lísias Nogueira diz que esses nordestinos foram os que 184

PEREIRA, José dos Reis. O Apóstolo da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1945, p.47. 185

Eurico Nelson e Justus Nelson foram lembrados em alguns trabalhos historiográficos, seja por biógrafos que se interessaram pela sua trajetória de vida, ou por historiadores e cientistas da religião presentes em Belém ou de outras partes do país que procuraram se utilizar deles para traçar a história da religiosidade na cidade. Trabalhos sobre eles estão presentes na Universidade Estadual do Pará - UEPA, na Faculdade Batista Equatorial - FATEBE e o Jornal ―O Apologista Christão Brazileiro‖ está presente no arquivo público do Pará. Parte dele também está digitalizado na Hemeroteca digital do Rio de Janeiro.

106

levaram o presbiterianismo para a cidade, pois muitos já praticavam sua fé em seu

local de origem.186 Na Igreja Presbiteriana Independente também notamos esse

fenômeno. O reverendo Lessa, na publicação do jornal ―O Estandarte‖, em 1907,diz

que

A imigração para aqui é fornecida pelos estados vizinhos, notadamente pelo Ceará e Rio Grande do Norte. Para se fazer uma idea da afluência de pessoas dos estados vizinhos, basta notar que, entre os cincoenta membros de nossa egreja independente, temos sergipanos, alagoanos, pernambucanos, rio grandenses do norte, cearenses, piauhyenses, maranhenses, e paraenses. A Parahyiba está representada entre os congregados.187

Ainda assim, o Dreher nos mostra que nos anos seguintes o movimento não

se consolidou e prosperou, mesmo nas primeiras décadas no século XX, o autor

regista que em 1917 a Igreja Presbiteriana se encontrava apenas com uma sala de

oração. Dreher refere que na ata da Primeira Igreja Presbiteriana do Pará, na

câmara dos deputados, há um informe sobre os 100 anos da igreja na cidade:

A organização da Igreja Presbiteriana de Belém ocorreu em 09 de novembro de 1904, sob a orientação dos Pastores Belmiro de Araújo César e Willian Thompson, sendo empossado no Pastorado da Igreja o Reverendo Carlos R. Womeldorf. No ano seguinte, 1905, o Rev. Womeldorf necessitou ir aos Estados Unidos da América em busca de saúde para sua esposa. Daí em diante, até 1910, a Igreja Presbiteriana de Belém ficou sendo assistida pelos pastores Willian Thompson, Rev. Langdon Herderlite e Rev. João Marques da Mota Sobrinho. Este último sendo o primeiro Pastor brasileiro residente. Em 1912, a Igreja foi pastoreada pelo ilustre Pr. José Martins Leitão. No período de 1917 a 1924, a Igreja ficou sem Pastor efetivo, recebendo Pastores que vinham periodicamente do Ceará ou do Maranhão para ministrar atos eclesiásticos. Foi destaque, ainda, a passagem do Rev. Antônio Teixeira Gueiros, que no período de 1925 a 1938 foi o Pastor

186

DREHER, Martin. O protestantismo na Amazônia. In: HOOTNEART, Eduardo (Coord.). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992, p.86. 187

Procuramos a obra original de Daniel Kidder sobre as suas viagens no Norte no site do senado federal e em bibliotecas em Belém do Pará e em São Paulo, mas não encontramos as obras espefcíficas da região Norte disponíveis. Perto de finalizarmos esta pesquisa, descobrimos que há uma cópia da obra disponível no setor de Educação Física da USP, deslocada para lá devido a uma reforma feita em algumas outras bibliotecas. Mas também não conseguimos ter acesso a obra, então retiramos os trechos da obra de outro autor. KIDDER, Daniel. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil: províncias do Norte. Brasilia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. Apud: SILVA, Claudio Lísias Gonçalves dos Reis. “Ganhar almas para Cristo” e as relações de poder: a propaganda protestante em Belém do Pará. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), UEPA, Belém, 2014, p.86.

107

responsável direto pela construção do Templo da Igreja Presbiteriana de Belém, cuja inauguração ocorreu em 1938.188

Notamos, assim, que as mudanças eclesiásticas da Igreja Presbiteriana

eram constantes no início do século XX, os pastores se revezavam constantemente

e durante 5 anos a igreja ficou sem pastor efetivo. Isso mostra que, provavelmente,

não houve um trabalho consistente a longo ou médio prazo dessa denominação na

cidade.

Contudo, ao final do trecho nota-se que a liderança mais duradoura na igreja

nesse período foi do reverendo Antônio Teixeira Gueiros, que é citado rapidamente

por Dreher. Porém, a informação que ele apresenta é de grande relevância; segundo

ele ―no Pará viria a se destacar o Rev. Teixeira Gueiros, que em virtude de sua

atividade política viria a se tornar governador do estado‖189.

O pastor presbiteriano Antônio Teixeira Gueiros foi chamado para liderar a

Primeira Igreja Presbiteriana do Pará em 1925. Além dele ser o líder presbiteriano

que perdurou mais tempo como pastor da igreja presbiteriana em Belém, também

chegou a se destacar na política a partir da década de 1940 como deputado,

superintendente da Polícia Militar e vice-governador do Pará. Nesse período,

continuou exercendo o papel de pastor presbiteriano, cargos que foram ocupados

por ele em um período um pouco posterior à temporalidade que retrataremos em

nosso trabalho, mas esses dados já mostram o quando o reverendo era articulado

politicamente e um líder religioso diferenciado na cidade. Também notamos o quanto

188

DREHER, Martin. O protestantismo na Amazônia. In: HOOTNEART, Eduardo (Coord.). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992. 189

Ibidem, p.329. Na verdade, acreditamos que esse dado de que Antônio Teixeira Gueiros se tornou governador do Pará foi engano. Retratando aqui melhor a sua biografia, Antônio Teixeira Gueiros foi professor, promotor público em Belém, chefe de polícia durante a Segunda Guerra Mundial, na interventoria de Joaquim de Magalhães Barata, e consultor jurídico-geral do estado. Em janeiro de 1947, elegeu-se deputado à Assembléia Constituinte do Pará na legenda do Partido Social Democrático (PSD). Assumindo o mandato ainda nesse ano, tornou-se presidente da Assembléia e. por várias vezes. ocupou interinamente o executivo estadual. No pleito de outubro de 1950, candidatou-se a uma cadeira na Câmara Federal pelo estado do Pará na legenda do PSD, obtendo a primeira suplência. Em janeiro de 1951, deixou a Assembléia paraense, assumindo o mandato na Câmara em janeiro de 1954 em substituição a Osvaldo Orico. Em outubro de 1954, elegeu-se deputado federal pelo mesmo estado na legenda da Aliança Social Democrática, coligação formada pelo PSD e pelo Partido de Representação Popular. No pleito de outubro de 1958 candidatou-se à reeleição, obtendo a segunda suplência. Deixou a Câmara dos Deputados em janeiro de 1959, quando terminou seu mandato e tornou-se membro do Instituto dos Advogados do Pará, presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, diretor da Sociedade Bíblica do Brasil e conselheiro da World Wide Evangelization Cruzade, com sede em Londres. Foi ainda secretário-geral do Pará. FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS - FGV. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil - CPDOC. Verbete - Teixeira Gueiros. s/d. Disponível em: <http://www.fgv. br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/antonio-teixeira-gueiros>.

108

Gueiros ganhou uma grande notoriedade como pastor, conseguindo ter acesso à

grande imprensa para propagar suas ideias políticas, econômicas e sociais,

incluindo a propagação da fé protestante. Escreveu em jornais como ―A Província do

Pará‖, ―O Estado do Pará‖ e ―Folha do Norte‖.

Além disso, Gueiros foi um difusor do jornal ―Norte Evangélico‖, um jornal

presbiteriano feito especialmente para os estados do Norte e Nordeste do país,

tentando cobrir a dificuldade da imprensa presbiteriana do Sudeste em abarcar os

territórios do Norte e Nordeste.

O Jornal ―Norte Evangélico‖, além de publicar os acontecimentos recorrentes

nas igrejas do Norte e Nordeste, publicava atas de reuniões de presbitérios e

notícias das igrejas em outras partes do Brasil. Também publicava matérias de

conteúdo teológico e doutrinário através de estudos bíblicos. Percebemos seus

posicionamentos com relação ao catolicismo, sempre publicando colunas como

―Marianismo‖, em que a devoção mariana era refutada, assim como colunas a

respeito, por exemplo, de ―bíblias falsas‖, matérias nas quais defendia a veracidade

da bíblia protestante. Nas matérias também notamos claramente sua politização,

que constantemente exaltavam o regime republicano e traziam temáticas sobre

ícones importantes para a república nesse período, como Ruy Barbosa. Muitas das

polêmicas contra católicos levantadas pelo jornal tinham um viés majoritariamente

político, como o debate sobre o ensino religioso em colégios protestantes e a

liberdade religiosa na República.

A Amazônia sempre era posta como uma região problemática, com poucos

obreiros e pouco financiamento. No artigo ―Da Amazônia‖ ele fala da igreja do Pará

com muito lamento, como uma igreja ―esquecida‖ pelas lideranças do presbitério nas

regiões Norte e Nordeste do país.

Atirados para este fim de mundo da Amazônia, sem os recursos de que despoem, para um trabalho eficiente, egrejas de outras circumscripções do paíz, mesmo no norte do Brasil, vamos por aqui laborando, no círculo reduzido das nossas habilidades, o trabalho bem dito da Seára... E vamos para a diante, sem desfalecimentos, posto que pequeninos e poucos obreiros... Sem pastor, sem um missionário – e neste particular vae de parelha com nosco a egreja de Manaos – a Egreja presbiteriana de Belém, pobre e humilde, mas activa e enthusiasta, trabalha, trabalha, e vê, e colhe, a cada passo, os fructos de sua actividade fecunda. Mas... nem um pastor, nem um missionário a colaborar neste grande e santo trabalho...

109

Porque nos deixam sós... porque nos deixam tão sós, empenhados na dura peleja, aquelles que, lá longe, nos sorriem, nos festejam, com saudações alviçareiras, e lá se ficam? Febre Amarela?... Malaria?... Kobras kilometricas?, e onças vorazes, e índios feios e caniballes a povoarem as ruas civilizadas das cidades da Amazônia? Lendas... Fábulas... Lendas... [...]190

Essa é uma matéria que mostra toda sua carga de apelo, para que os

leitores do jornal, lideranças e missionários se compadeçam pelo trabalho na Igreja

Presbiteriana na Amazônia como um todo, em especial Manaus e Pará. Revela,

assim, algumas visões que aparentavam ser de senso comum sobre a região,

começando por descrever seu campo missionário como ―fim de mundo‖, e sem os

recursos que outras igrejas em outras partes do país dispunham, além de estarem

sem pastores e missionários. Uma situação aparentemente caótica e apelativa, que

mostra que o jornal estava servindo como um canal de apelo para que pastores e

missionários se interessassem por esse campo.

A Amazônia como uma região de ―fim de mundo‖, ainda povoada por índios

canibais, cobras e onças e diversas epidemias como febre Amarela e Malária,

ocupavam de fato o imaginário de grande parte da população brasileira, incluindo os

presbiterianos. Mas em certa medida vemos que boa parte dessa percepção não era

assim tão lendárias. As epidemias, como a febre amarela, por exemplo, eram casos

recorrentes na cidade e atingiam pessoas incluindo muitos estrangeiros e parentes

dos missionários, como a esposa de Eurico Nelson ou o irmão e a cunhada de

Justus Nelson, que por sinal morreram.

David Vieira Gueiros, em seu livro sobre a família Gueiros, destaca dois

membros dessa família que foram ao Pará como missionários presbiterianos, dois

com nomes bem semelhantes. ―Antônio Gueiros‖ e ―Antônio Teixeira Gueiros‖. O

primeiro, ao ir para a cidade, não ficou por muito tempo justamente pelo surto de

doenças que ocorriam na região. Voltou para o Ceará com a família após a filha

sofrer de febre amarela; o segundo, Antônio Teixeira Gueiros, como já dissemos, foi

o missionário cearense enviado ao Pará e que ali continuou até o fim da sua vida,

fato retratado inclusive na continuidade da matéria ―Da Amazônia‖:

Revdo dr Teixeira Gueiros Estamos a espera deste nosso querido irmão, evangelista, pelo presbyterio do Norte, das

190

NORTE EVANGÉLICO. ―Da Amazônia‖. Garanhuns, 1923.

110

egrejas do Pará e Amazônas. Prometida para maio a sua visita, adiada, a contragosto seu, pela superveniência de imprevistos sucessivos, vamos, agora ter, a alegria de abraçar o infagável e consagrado obreiro, joven culto de palavra fluente e poderosa. Na próxima quarta feira, acompanhado de sua exma. Srª esposa d. Zoe de motta Teixeira Gueiros, chegará a essas paragens, pelo Ceará, do Lloyd o nosso illustre pastor, que, a custo de tenacidade e talento, conquista, este anno, o honroso titulo de bacharel em sciencias jurídicas e sociaes. Deus abençoe e guarde o seu servo a quem galardoa, com os louros dos mais altos prêmios.191

Diante de todo o cenário de desolação descrito pela matéria com relação ao

campo missionário presbiteriano nas regiões do Amazonas e Pará, Antônio Teixeira

Gueiros no final da matéria é descrito como o missionário que se prontificou a ir a

este ―fim de mundo‖ ajudar na difusão do presbiterianismo na região. O fato de

Antônio Teixeira Gueiros ser o homem que se dispôs a ir a uma região tão difícil,

―isolada‖, com pouca estrutura e epidemias e passando por crises econômicas

mostra um discurso de heroização do sujeito, e apelo para que o público alvo do

jornal siga seu exemplo.

Após sua viagem mencionada na matéria anterior, após um tempo na igreja

de Belém, Teixeira Gueiros conta suas percepções sobre a igreja presbiteriana em

Belém:

Escrevo aqui de Belém do Pará para transmittir aos leitores os mais

importantes informes do nosso movimento evangélico neste campo. Chegamos

aqui (eu e minha senhora) no dia 4 do fluente depois de uma rápida e feliz

viagem de Fortaleza para Belém pelo vapor Ceará do Lloyd brasileiro [...] “A

egreja tem mesmo como uma das maiores bênçãos uma idea feliz da sua

localização da avenida onde se encontra. Esta circumstancia tem feito attrahir

ao local dos nossos cultos, constantemente, assistências que são verdadeiras

multidões, talvez não seja exagero dizer que as egrejas do Pará nunca foram

frequentadas por assistências tão numerosas como as que, de commum,

constituem os nossos auditórios. No último culto (que foi o de hontem), por

exemplo, não somente o nosso vasto salão de cultos actual, como a sua entrada

e considerável área em frente a egreja, ficaram apinhados de curiosos em todo o

tempo em que o pregador da noite, que era o Dr. Severino Silva, empolgou o

audictorio com sua palavra de oiro, na exposição da mensagem da cruz, durante

191

NORTE EVANGÉLICO. ―Da Amazônia‖. Garanhuns, 1923.

111

todos os actos dos cultos, em que foram recebidos profissão de fé e baptismo 4

irmãos congregados em que celebramos também a ceia do Senhor.

A egreja do Pará atravessa uma das phases mais brilhantes da sua

história. Ella está sendo hoje, graças á actividade incansável do Dr. Severino

Silva, e o seu zelo intransitivel, o vehiculo do evangelho para o grande meio

paraense. O evangelho que se prega hoje e é conhecido hoje tanto na choupana

do Pobre, nos vários arrabaldes de Belém, como nos largos e praças

movimentados desta metrópole setrenptrional, frequentados pelos que se julgam

mais illustres e melhor arquivadas nas posições e distinções sociaes, prega tanto

nos vastos, mas modestos salões das egrejas, como das columnas de grandes

órgãos, paladino da imprensa do norte, que é a Folha do Norte. A perspectiva do

trabalho é a mais lisonjeira possível. A este esforço e esta operosidade da

egreja, encabeçada pelos seus oficiaes consagrados se sucedem conversões

animadoras. Afora os 12 ou 13 membros recebidos em fevereiro por ocasião do

presbyterio, acabei de receber hontem, consoante referi acima, 4 pessoas mais

para a comunhão da egreja, além de cinco creanças que foram consagradas

pelo rito do baptismo, cujos nomes este periódico inserirá noutra parte.Estes

dados provam tão somente que a egreja trabalha, mas que Deus sanciona,

aprova o seu trabalho por esta derrama sensível e abundante de fructos sobre a

mesma. Bem haja, pois, a egreja no santo esforço em que se empenha de tornar

Christo conhecido a este grande povo, e que Christo crucificado seja em breve a

magna esperança dos milhares de filhos da gleba paraense, destinados por

Deus ao grosso das nossas fileiras [...] Antes porém de finalizar esta

correspondência quero consignar aqui um apello em favor da egreja do Pará

neste seu novo empenho de adquirir um prédio próprio e bem situado para sua

sede. Esta egreja é merecedora do apoio e auxílio de todas as suas irmãs, E’

uma das mais antigas no norte. E’ uma das mais antigas no norte e única, das

capitaes, que não possue um templo próprio. Já mais de uma vez temos

salientado que apesar do esforço e da dedicação dos irmãos, a egreja não pode,

com recursos locaes, dos seus membros pobres na sua totalidade, sem o

concurso de fóra, de outros mui generosos, levar a effeito este seu desejo, que é

uma grande necessidade local. Que os irmãos de outros locaes comprehendam

a situação da egreja do Pará e venham generosa e fraternalmente em seu

socorro; abram as suas entranhas, e o seu bolso para com essa egreja luctadora

e paciente, a egreja está fazendo sua parte. Está fazendo o que é possível. Os

irmãos cotizam-se quase que mensalmente para ver se em breve, terão

realizada a grande aspiração de todos, de dotar a egreja de um modesto templo

112

próprio e bem localizado para os louvores de Deus e pregação do Evangelho. Há

por ahi a fora, pelo sul sobretudo, tantos irmãos e egrejas ricas e prosperas que

muito podiam fazer comnosco e por nós. [...]

Ah! Fica o apello da egreja do Pará, para o qual solicitamos a prompta

attenção de todos.

Teixeira Gueiros192

A partir daí podemos refletir acerca de algumas realidades da denominação

na cidade. Quando analisamos jornais e não temos acesso às atas, como é o caso,

temos que ter cautela ao verificar a fonte. A tendência do jornal é fazer uma

propaganda positiva do presbiterianismo em Belém; Gueiros procura ressaltar os

aspectos positivos que aparentemente está vivenciando na cidade: a boa localização

do templo e o crescente número de membros. A partir daí apresenta a igreja

presbiteriana como uma denominação que está vivendo ―uma das fases mais

brilhantes de sua história‖193. Apesar dos floreios, os dados concedidos ao jornal,

como os ―12 a 14 membros‖ que entraram, eram registrados em ata e entregues à

liderança responsável pelas regiões Norte e Nordeste para confirmar o crescente

número de membros. Se compararmos as informações da matéria com os estudos

de Martin Dreher sobre o presbiterianismo no Pará em décadas anteriores,

podemos, sim, pensar na possibilidade da igreja estar passando por um crescimento

no período que se inicia um pouco antes da chegada de Gueiros na cidade. Na

matéria, o próprio Teixeira Gueiros não atribui a si o motivo do crescimento, mas sim

―pelos seus oficiaes consagrados” e ―graças á actividade incansável do Dr. Severino

Silva, e o seu zelo intransitivel, o vehiculo do evangelho para o grande meio

paraense”. Isso mostra consonância com o cenário descrito por Dreher do

presbiterianismo em Belém no final do século XIX e início do século XX que

destacamos acima, um grupo que não tinha pastor fixo, apenas uma casa de

oração, e passou a se estruturar e se consolidar melhor apenas a partir de 1925. O

jornal procura nos mostrar uma denominação presbiteriana já bem estruturada se

comparada a décadas anteriores, e que Antônio Teixeira Gueiros veio do Nordeste

para somar forças a esse trabalho.

192

NORTE EVANGÉLICO. Garanhuns, 1923. 193

NORTE EVANGÉLICO. Garanhuns, 1923.

113

Mesmo o presbiterianismo estando bem reestruturado e com uma liderança

fixa, não podemos dizer que não havia precariedade na denominação como o jornal

afirma, visto que a partir do próprio periódico e pela historiografia já apresentada,

notamos que Belém era a única capital onde havia presbiterianos que estavam sem

templo, e durante anos estavam pedindo ajuda tanto aos membros como doações

de outros presbitérios, as quais, aparentemente, não foram suficientes para a

construção do templo em um curto período de tempo, já que esse templo ficou

pronto apenas 15 anos depois, em 1938.

Dois outros fatores que talvez estivessem levando a um crescimento e

consolidação do presbiterianismo na cidade foram o possível alcance da igreja

presbiteriana do período. O local das reuniões e do futuro templo eram

emblemáticos, pois ele se localizava em um local um pouco mais afastado dos

principais templos da igreja batista e metodista na cidade. Apesar de ainda estar em

uma área considerada central, estava bem próximo de uma localidade considerada

já periférica na época, o bairro de São Brás. A avenida onde a igreja se localizava

tinha um considerável fluxo de pessoas que saiam da periferia para o Centro. Era

um local realmente estratégico onde se poderia ter acesso a grupos bem

heterogêneos economicamente, como moradores das áreas periféricas e grupos

abastados nos centros, frequentavam ―as praças notórias da cidade‖, como a Praça

da República e a Praça Batista Campos. O foco na igreja nas obras sociais e em se

aproximar de áreas periféricas parece ser um grande diferencial do presbiterianismo

local se comparado às outras denominações protestantes. Ainda assim, eles

mantinham as características do protestantismo histórico de se vincular a setores de

grande influência social, conseguindo espaço na grande imprensa, e até mesmo

podendo pregar em espaços das redações de jornais da grande imprensa como a

―Folha do Norte‖.

Notamos que Gueiros ganhou notoriedade como protestante não apenas em

sua denominação. Ele conseguiu, assim como os outros protestantes que

retratamos acima, ser um agente ativo na sociedade em que vivia, sendo a imprensa

um método difusor de suas ideias e a propagação da fé cristã protestante. Também

foi o pastor local mais citado pelo jornal ―A Palavra‖, geralmente recebendo críticas

negativas diversos artigos escritos pelo próprio Dubois.

O movimento presbiteriano nesse período no Pará teve seus diferenciais,

era encabeçado basicamente por brasileiros, em sua maioria nordestinos. Tratava-

114

se de uma geração de protestantes que mantiveram uma continuidade do trabalho

missionário elaborado inicialmente por protestantes estrangeiros.

O fato do presbiterianismo em Belém ser chefiado por brasileiros facilitava o

diálogo com a população local. Além da preocupação em comunicar o Evangelho ao

pobre, aproximava seu espaço congregacional de áreas periféricas e focava em

ações de caridade. Aparentemente, através da figura de Gueiros, foi aberto espaço

na grande imprensa, diferentemente de Eurico Nelson ou mesmo Justus Nelson que

sempre tiveram seu próprio jornal e dele eram porta-vozes.

Mesmo com um possível crescimento e consolidação do presbiterianismo

nas primeiras décadas da República, e procurando dialogar também com os pobres,

não notamos um crescimento expressivo como acontecia no resto do país onde a

Igreja Presbiteriana era a denominação protestante com o maior número de

membros no Brasil, menos ainda se comparado ao movimento pentecostal, que

analisaremos a seguir.

2.5 ―BATISMO DE FOGO‖: A CHEGADA DO MOVIMENTO PENTECOSTAL EM

BELÉM

Há diversas discussões teóricas e historiográficas sobre o movimento

pentecostal ser considerado protestante.194 Há um consenso historiográfico que tal

movimento surgiu em 1905 a partir do avivamento na Rua Azuza. Embora se tenha

relatos de movimentos semelhantes ocorridos em períodos anteriores195, uma das

principais características desse movimento é a experiência do ―Batismo com o

Espírito Santo‖, que se dá a partir de um êxtase emocional seguido de ―glossolalia‖,

o ato de falar em ―línguas estranhas‖, um fenômeno referente ao momento de

194

Utilizaremos na pesquisa a definição do pentecostalismo como uma vertente do protestantismo adotado por Antônio Gouveia de Mendonça, na qual os protestantes seriam tanto aquelas igrejas originárias do tempo da reforma, como igrejas que surgiram posteriormente, mas adotaram os princípios gerais do movimento. A assembleia de Deus, apesar de suas diferenciações, nesse período, não racha com os princípios tradicionais da reforma como defesa da autoridade da Bíblia Sagrada e Jesus como o único mediador entre Deus e os homens. MENDONÇA, Antônio Gouveia. O protestantismo no Brasil e suas encruzilhadas. Revista da USP. São Paulo, n. 67, 2005. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/revusp/article/download/13455/15273>. 195

―Bem antes da igreja de Seymour, na Azuza, em 1906, já existiam diversas outras igrejas pentecostais (Holliness em 1895 e do Nazareno em 1899), inclusive uma associação de igrejas pentecostais formada em 1895 (Vinson, 2003) e também pentecostalismos na Suécia e regiões próximas.‖ ALENCAR, Gedeon Freire de. Matriz pentecostal brasileira. Assembleias de Deus - 1911-2011. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2013, p.58.

115

pentecostes relatado no capítulo 2 do livro de Atos dos Apóstolos. Fenômenos como

supostas curas, visões e revelações também eram enfatizados por eles.

Os propagadores do pentecostalismo em Belém, Daniel Berg e Gunnar

Vingren, também foram consequentemente os pioneiros desse movimento no Brasil

inteiro. Os dois eram de origem Sueca e de denominação batista, e faziam parte da

mesma denominação que Eurico Nelson, que como já mencionado era uma

denominação marginalizada no país devido ao forte atrelamento do estado à Igreja

Luterana. Daniel Berg mostra a pressão que muitos suecos de denominações

protestantes de sua cidade sofriam devido à recusa de seus filhos serem batizados

na igreja oficial. ―Naquele tempo pude observar a desvantagem e o perigo de o povo

ter uma fé dirigida, sem liberdade‖. E assim deixava claro que a religião que

dominava a sua cidade era uma ―fé morna‖, fazendo com o que o povo não

alcançasse ―a experiência dos milagres e da salvação plena do nosso Deus que

transforma as almas de pecadores arrependidos‖196. Assim como Eurico Nelson,

Gunnar Vingren e Daniel Berg não parecem ser de famílias abastadas ou

intelectualizadas da Suécia. Berg vinha de uma cidade pequena de uma região

montanhosa sueca e Vingren era jardineiro como seu pai. Ambos foram para os

Estados Unidos ―como muitos outros haviam feito antes dele‖197. Vingren conta que

foi atingido pela ―febre dos Estados Unidos‖198, migrando para lá em 1903. Em seus

respectivos diários, nota-se que ambos não foram para os Estados Unidos apenas

por questões religiosas, mas principalmente por motivos financeiro. A Suécia

passava por uma crise financeira nesse período, estimulando diversos suecos a

migrarem para países mais prósperos, como os Estados Unidos, que nesse período

já possuía uma visibilidade mundial de grande potência.

Vingren, teve essa experiência nos Estados Unidos, após cursar um

seminário teológico sueco em Chicago. Sem dar muitos detalhes em seu diário

sobre como conheceu a doutrina do batismo do Espírito Santo, ele relata o seguinte:

No verão de 1909, Deus me encheu de uma grande sede de receber o batismo com o Espírito Santo e com fogo. Em novembro do mesmo ano, pedi licença à minha igreja para visitar uma conferencia batista que deveria ser realizada na primeira Igreja Batista Sueca em Chicago. Fui a conferencia

196

BERG, Daniel. O enviado de Deus: memórias de Daniel Berg. São Paulo, 1959, p.15. 197

Ibidem. 198

VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961, p.23.

116

com o firme propósito de buscar o batismo com o Espírito Santo. E, louvado seja Deus, depois de cinco dias de busca, o Senhor Jesus me batizou com o Espírito Santo e com fogo! Quando recebi o batismo, falei novas línguas, justamente como está escrito que aconteceu com os discípulos no dia de pentecoste, em Atos 2. É impossível descrever a alegria que encheu o meu coração. Eternamente o louvarei, pois Ele me batizou com o seu Espírito Santo e com fogo.199

Tanto Berg quanto Vingren procuram evidenciar essa experiência em suas

memórias, assim como a mudança de caráter que tiveram após o batismo. Berg

―decidiu viver somente para o Senhor‖, e Vingren passou a pregar em diversas

igrejas norte-americanas. Também foi após essa experiência que Vingren relata ter

sido direcionado ao chamado ao Brasil, mais especificamente para Belém do Pará.

Também foi após essa experiência que Daniel e Gunnar Vingren se conhecem, em

uma conferência evangélica em Chicago. O Batismo com o Espírito Santo e suas

visões missionárias foram os pontos de convergência de seus pensamentos

doutrinários, e a partir deles eles resolveram ―se encontrar diariamente para orar e

esperar que Deus nos mostrasse o caminho a seguir‖200. Retratam, assim, a

experiência do ―Batismo com o Espírito Santo‖ como um marco na trajetória

ministerial de ambos.

Vingren conta que em uma reunião de oração ele e Berg recebem uma

revelação em que ―um outro irmão, Adolfo Undini, recebeu do Espírito Santo

palavras maravilhosas e vários mistérios sobre o meu futuro foram revelados, e entre

outras cousas o Espírito Santo falou a esse irmão que eu deveria ir para o Pará‖201.

Ao contrário dos missionários protestantes históricos, estes vieram para o Pará sem

o apoio de uma agência missionária, confiando apenas no poder do Espírito Santo

advindo da doutrina pentecostal que haviam abraçado.202

Percebemos, dessa forma, que tanto na trajetória de vida, quanto na forma

como ambos foram ao Pará, havia um diferencial místico nas práticas de fé

efetuadas por esses missionários. O sobrenatural é enfatizado com muito mais

afinco em seus discursos e práticas de fé. O Espírito Santo não deixa de fazer parte

da teologia presente no protestantismo histórico do período, mas, aqui, entre os

pentecostais, ele recebe um protagonismo de vivência prática na vida do fiel.

199

VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961, p.25. 200

BERG, Daniel. O enviado de Deus: memórias de Daniel Berg. São Paulo, 1959, p.34. 201

VINGREN, op. cit., p.27. 202

Ibidem, p.35.

117

Apesar de suas evidentes diferenciações com relação ao protestantismo

tradicional histórico vigente no período, a própria congregação se considerava

protestante, pois criam na Bíblia como verdade absoluta e Jesus Cristo como único

mediador entre Deus e os homens. Contudo, a partir da própria Bíblia como base, os

fiéis sempre enfatizavam a sua ―nova doutrina‖ que incluía a praticidade de viver

uma religiosidade a partir de experiências com o Espírito Santo como descritas em

Atos dos Apóstolos, onde havia curas, visões, revelações e o falar em outras línguas

como evidência do batismo com o Espírito Santo.

Gunnar Vingren e Daniel Berg chegam ao Pará em 1911 e são acolhidos

pelo pastor Justus Nelson em sua casa, personagem que ―Vingren conhecera na

América do Norte‖ e o reencontrou ali. Justus Nelson prontamente apresentou os

novos missionários a Eurico Nelson, e ambos passaram a congregar na Igreja

Batista, pregar em cultos e fazer reuniões de oração. Essas reuniões ocorriam tanto

na casa de membros batistas ou eram realizados até mesmo no porão da própria

igreja, onde eles se hospedaram; local que, desde o início, tanto Berg quanto

Vingren descreviam como um quarto pequeno, apertado e quente. Berg chamava

esse cômodo de ―quarto-corredor‖, em alusão ao fato de ser muito estreito. E ali, em

casas e não em templos, que as reuniões ocorriam, reuniões, nas quais pessoas

eram curadas e algumas recebiam o chamado ―batismo com o Espírito Santo‖. A

seguir um relato de Virgren após alguns meses em Belém:

As visitas dos membros da igreja ao nosso quarto-corredor eram cada vez mais intensas. Desejavam orações por suas vidas. Alguns já tinham recebido o batismo com o Espírito Santo e muitos doentes haviam sido curados. Resolvemos, por isso, improvisar cultos a noite naquele lugar apertado203 […] Durante aquela semana realizamos cultos de oração todas as noites na casa de uma irmã que tinha uma enfermidade incurável nos lábios. Ela não podia assistir os cultos da igreja. A primeira coisa que fiz foi perguntar-lhe se cria que Jesus podia cura-la. Ela respondeu que sim. Dissemos-lhe então que deixasse de lado todos os remédios que estava tomando. Oramos por ela, e o Senhor Jesus a curou completamente. Nos cultos que se seguiram, aquela irmã começou a buscar o batismo com o Espírito Santo. O seu nome era Celina de Albuquerque. Na quinta-feira, depois do culto, continuou orando em sua casa, juntamente com outra irmã. A uma hora da madrugada a irmã Celina começou a falar em novas línguas, e continuou falando durante duas horas. Foi, portanto,

203

BERG, Daniel. O enviado de Deus: memórias de Daniel Berg. São Paulo, 1959, p.56.

118

a primeira operação de batismo com Espírito Santo em terras brasileiras.204

Algo muito diferente ocorreu com o protestantismo em geral. Ao menos é o

que notamos a partir das desavenças dos missionários pentecostais com

protestantes, especialmente as lideranças da sua própria denominação. Vingren,

em seu diário, menciona um diálogo com Eurico Nelson, quando ele lhes falava

sobre a questão dos dons espirituais e o batismo com o Espírito Santo enfatizado

pelo pentecostalismo.

No início ele nos ouviu silenciosamente. Mas em outra oportunidade disse-nos que deveríamos deixar fora da nossa mensagem aquele versículo que fala de Jesus batizar com o Espírito Santo, ―pois propaga divisões‖, argumentou ele. No princípio, pensávamos que estivéssemos falando com um verdadeiro cristão, mas depois agradecemos a Deus por Ele ter nos livrado das garras daquele homem. O inimigo havia preparado uma cilada muito astuta para nos desviar da vontade de Deus, e dessa maneira desfazer completamente o plano do Senhor para a obra pentecostal no Brasil por nosso intermédio. Quando chegou ao Brasil, esse missionário tinha buscado o batismo e o poder do Espírito Santo durante quatorze dias. Porém, quando começou a sentir o poder de Deus, sua mulher ficou com medo e o impediu de continuar. Ele cessou então de buscar a face do Senhor e tornou-se contrário a essas manifestações.205

É interessante perceber a forma como o diário retratava Eurico Nelson. No

discurso escrito de Vingren, Eurico Nelson era um falso cristão, um instrumento do

―inimigo‖, do próprio Diabo, que queria preparar uma cilada para eles. Eurico Nelson

era descrito dessa forma por, aparentemente, discordar da doutrina do batismo do

Espírito Santo como Vingren pregava. Esse modelo de tentativa de desqualificação

seria constantemente usado nas tensões entre as vertentes cristãs que

apresentaremos. Porém, por hora, notamos essa desqualificação do outro como

uma tentativa de legitimação do novo movimento que despontava, em que a visão

que Vingren tinha e propagava da fé pentecostal que havia abraçado era a única

verdadeira e santa, e qualquer um que se opusesse a essa ―nova doutrina‖ era

demonizado.

204

VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961, p.41. 205

Ibidem, p.40.

119

O relato de Vingren sobre Eurico Nelson na ocasião de sua chegada ao

Brasil, por ele ter buscado o poder do Espírito Santo por 14 dias, nos leva a outras

reflexões. Nelson chegou ao Brasil em 1890, 15 anos antes do avivamento da Rua

Azuza ocorrido nos Estados Unidos. Não temos outras fontes além dessa para

retratar essa possível tentativa de experiência de Eurico Nelson em buscar o poder

do Espírito Santo. Todavia, como dizíamos, muitas manifestações sobrenaturais

enfatizadas pelo movimento pentecostal não são novas ao cristianismo, desde os

avivamentos e reavivamentos norte-americanos aos europeus. Talvez possamos

dialogar com a possibilidade que já indicamos anteriormente, de uma possível

mística já estar inserida em uma mentalidade religiosa batista sueca, e que teria

permanecido com Eurico Nelson nos Estados Unidos. Independentemente da

origem dessa prática de Eurico Nelson em buscar um ―poder do Espírito‖, já se

notava no missionário batista uma busca que difere da maioria dos missionários

protestantes que vinham ao Brasil até então. A relação entre mística e racionalidade

era, muitas vezes, conflituosa na mentalidade religiosa protestante. Eurico Nelson,

segundo esse relato, não escapou desse conflito. Considerando que sua esposa, Ida

Nelson, interrompeu a busca de seu esposo quando ele, aparentemente, já

mostrava sinais de estar conseguindo o poder que ansiava deter. O ―medo‖ que Ida

Nelson sentiu, como descreve Vingren, pode significar não necessariamente o medo

do poder em si, mas o meo de sair do campo da ―ortodoxia‖ e cair no campo da

―heresia‖, como Berg e Vingren logo seriam taxados meses depois.

Mesmo com a possível tentativa de convencimento de Eurico Nelson a fazer

com que Berg e Vingren não propagassem a doutrina do batismo com o Espírito

Santo, eles continuaram com essas práticas da fé pentecostal. Depois de 6 meses

acabaram expulsos pelo próprio pastor da igreja batista por ―causar discussões

acerca das doutrinas, coisa que nunca acontecera‖206, e que dizia ainda que aquelas

eram ―falsas doutrinas‖, alegando que batismos com o Espírito Santo e curas

realmente aconteciam no livro de Atos mas ―essas coisas tinham sido somente no

tempo dos apóstolos‖ e que ―hoje temos a sabedoria para ser usada‖207.

Além de Berg e Vingren, foram expulsos da igreja com eles outros 19 que

concordavam com as doutrinas pentecostais ensinadas por eles, incluindo Celina de

Albuquerque. Alguns desses se uniram e passaram a se reunir em moradias de

206

BERG, Daniel. O enviado de Deus: memórias de Daniel Berg. São Paulo, 1959, p.56. 207

Ibidem, p.57.

120

membros dissidentes da denominação batista que agora aderiam à fé pentecostal,

praticando o batismo com o Espírito Santo e curas. A partir daí, a congregação

passa a ser independente dos batistas, sendo nominada inicialmente por ―Missão de

fé apostólica‖, que 8 anos depois viria a se chamar ―Assembleia de Deus‖, dando

início a um movimento que se tornou crescente tanto na cidade quanto no resto do

país.

O Jornal Batista publica em sua edição do dia 20 de Julho de 1911, na

coluna ―Nossa correspondência‖, espaço reservado para as correspondências dos

líderes das igrejas batistas presentes no Brasil inteiro, a carta enviada ao redator do

jornal de uma das lideranças batistas paraenses, Raymundo Nobre. A sessão do

Pará, nessa coluna, se mostrou maior que as sessões de outros estados, onde a

carta de Raymundo Nobre foi publicada na íntegra:

Presado irmão, redactor:

Como sabeis pela correspondência do irmão João Jorge de Oliveira,

inserta no numero de 20 de abril do corrente, na ausência do nosso mui

estimado irmão missionário Eurico A. Nelson, ficou o abaixo assignado como

encarregado do trabalho de evangelização desta egreja e da do Castanhal.

Devo dizer-vos que os cultos internos e externos desta egreja iam sempre

em progresso, pois eram bem frequentados e com bastante atenção; e,

sem que houvesse oposição de pessoa alguma, a egreja trabalhava em

perfeita paz com Deus. Porém pela experiência de dezoito séculos, pela

qual tem passado as egrejas do Senhor, sabemos exatamente quando ellas

vão mais prosperas é que Satanaz se introduz manhosa e sorrateiramente

dentro delas procurando aniquila-las. Deveras o ultimo assalto que

Satanaz fez á Egreja do Senhor aqui foi o mais astuto e perigoso de todos.

O caso é que há uns cinco mezes atraz, chegaram aqui da America do

Norte dois homens suecos que se diziam mensageiros do evangelho; e antes de

bem conhecermos taes pessoas conseguiram ellas captar a sympathia dos

irmãos J.J de Oliveira e Eurico. A. Nelson, apresentando-se lhes muito

desejosos de trabalharem para o progresso da causa do Senhor neste logar. Na

sua boa fé os ditos irmãos Oliveira e Nelson apresentaram os taes indivíduos a

egreja; que, naturalmente, com tão boa apresentação, logo os recebeu sob

condição de elles trazerem as cartas demissórias das egrejas a que pertenciam,

121

certas que, afinal, nunca chegaram. Logo que estes homens começaram a

fallar o nosso idioma, começaram a vender bíblias de casa em casa dos

crentes iam fazendo orações, lendo alguns trechos da bíblia, concernentes

ao dia de Pentecostes, a cornelio, etc. Pediam também que os crentes se

unissem em oração com elles assim que acabava o culto público, etc. Com

estas outras artimanhas foram ganhando os corações de muitos crentes, como

fizera o príncipe Absalão.

Começaram também a se reunir-se em casa de uma irmã cujo

marido é marítimo, não se achando em casa. Depois de cinco dias de

orações e Jejuns me ocorreu rapidamente a noticia de que aquela irmã

havia sido baptizada com o Espírito Santo e com fogo do céo, e que como

prova lhe tinha sido concedi lo o dom de fallar em diversas línguas.

Sendo isto para nós muito estranho, logo depois do nosso culto de

quinta feira, 8 do corrente, dirigimo-nos, eu e diversos irmãos, para o bairro da

cidade velha, onde mora a referida irmã, e ao entrarmos em sua casa fiquei

deveras surpreendido como em tempo nenhum! Vi aquela irmã, que é

brasileira, tendo os joelhos no soalho, mãos postas na fronte bem erguida

e olhos fechados, articulando com rapidez sons que ninguém podia

harmonizar e entender, nem sabemos se aquilo era linguagem. Na mesma

ocasião, muitos outros de joelhos, choravam uns, outros oravam, outros

cantavam e outros liam. De repente uma irmã começou a tremer como se

sofresse de maleitas, a gemer até que ficou sem sentidos; seguindo-se

esta crise outra na qual ora cantava hymnos, ora modinhas, inclusive o

tango. A este momento, diziam, suscitara-se um debate entre os dois

espíritos que tomavam conta das pessôas; a primeira pessoa que tinha o

Espírito dizia que tinha o dom de discernir os espíritos, e por isso conhecia

que o outro espírito era o de Beelzebú; emquanto que a outra respondia,

ora dizendo que era mesmo o espírito de Lúcifer, ora que era de Christo.

Esta scena revoltante durou três horas, depois do que cada um foi para sua

casa. Creio que, como eu, muitos dos que commigo a presenciaram não

dormiram naquela noite.

No dia seguinte houve um culto externo, onde por mandado de um dos

taes doutrinadores, um espirito se manifestou numa das duas pessoas

mencionadas. Fiquei deveras envergonhado de semelhante escândalo público;

mas não me achei com coragem de me oppor para não fazer ainda maior

confusão aos incrédulos. Logo que o culto findou elles convidaram uns crentes

para o templo de nossa egreja. O que então se deu é indescritivel. As quatro

122

pessoas actuadas, cantavam, riam, choravam! Todos os outros irmãos que se

achavam presentes sofriam uma agonia terrível. Até que não pude suportar

mais; levantei-me e fiz signal de silêncio e comecei a fallar aos crentes sobre os

falsos signaes que haveria nos últimos tempos; porém as pessoas actuadas

fizeram uma balburdia tamanha em cima de mim que por mais que eu gritasse

ellas mais gritavam; e como não me fosse possível fazer sobresahir a minha voz,

fui forçado a calar-me e a aconselhar os crentes a se retirarem, no que alguns

me attenderam. No dia seguinte, eu e outro irmão, como não sabíamos notícias

do irmão Nelson, passamos telegramma para o irmão J.J de Oliveira e para o

irmão pastor do Maranhão, pedindo providencias urgentes.

Fui nesse mesmo dia à tarde fazer a pregação da Egreja de Castanhal;

e voltei no domingo de manhã para pregar aqui na egreja; e tanto na pregação

da manhã como na da noite fui rebatido por um adepto da tal heresia. Esta

doutrina diabólica ia-se alastrando rapidamente e vi que em poucos dias,

se não tomássemos posição de verdadeiros crentes baptistas, ficaríamos

sem egreja baptista na capital. Terça feira 13 do corrente, depois do culto de

oração, convoquei a egreja em sessão extraordinária, na qual foram cortados

todos quantos se manifestaram adeptos da heresia, sendo o numero total dos

eliminados 17. Como estamos em tempos trabalhosos, combinei com a egreja

termos uma serie de conferencias e orações que terminaram hontem, as quaes

embora pouco concorridas, deram bons resultados. Os crentes acham-se

novamente promptos para o trabalho. Sem outro assumpto pelo a todos os

amados do Senhor as suas orações por nós aqui.

Vosso irmão na fé.

Raymundo P. Nobre208

Aqui, Raymundo Nobre nos narra as tensões entre a igreja batista e o ainda

embrionário movimento pentecostal. A forma como a liderança local retrata o novo

movimento que surgia é similar à forma como Daniel Berg desenha Eurico Nelson

quando ele se mostrou contrário à experiência de fé pentecostal, tratando-a por

―satânica‖. Daniel Berg e Gunnar Vingren são vistos como ―instrumentos de satanás‖

que se instauraram em uma igreja que, até então, segundo o relato, estava em

―progresso‖, ―bem frequentada‖ e ―em perfeita paz com Deus‖.

Notamos que, desde o início, a chamada ―nova doutrina‖ se alastrava

rapidamente na igreja, a ponto de apenas ―em poucos dias‖ fazia-se necessário que 208

O JORNAL BAPTISTA. ―Nossa correspondência‖. Manaus, 20/07/1911.

123

as lideranças tomassem uma providência para frear tal movimento religioso que

surgia por entre as brechas da denominação. A própria liderança conclui que se não

houvesse a expulsão dos ―membros heréticos‖ eles ficariam ―sem igreja‖. Não

interpretamos aqui os pentecostais querendo o fim da igreja batista, mas a

implementação da ―nova doutrina‖ que praticavam. Todavia, caso essas doutrinas

pentecostais fossem incorporadas pelos novos membros, a dinâmica religiosa dos

batistas seria completamente modificada em sua essência.

Raymundo Nobre aqui faz um dualismo entre o protestantismo e o

pentecostalismo, onde o protestantismo batista é retratado como uma igreja santa,

enquanto o pentecostalismo seria um movimento herético. Nessa perspectiva a

heresia está relacionada à ideia de pureza e santidade. O protestantismo batista

seria uma igreja ortodoxa, santa, que estava indo bem em suas obras na cidade,

enquanto o pentecostalismo seria uma igreja herética, demoníaca, utilizada por

Satanás para atrapalhar a obra santa da verdadeira igreja. A diferenciação

doutrinária entre a denominação batista e o movimento pentecostal emergente

marca uma perspectiva frequente nos embates entre protestantes e pentecostais,

uma dualidade na qual os protestantes se veem como santos e ortodoxos e

enxergam os pentecostais como heréticos e demoníacos.

Poucos anos depois, após o início do movimento pentecostal na cidade,

notamos que os periódicos também passaram a falar do pentecostalismo; matérias

sobre ―A heresia pentecostal‖ (1923) e nominações jocosas como ―espíritos de fogo‖

(1916), ―A praga que veio do Pará‖ (1916) eram comuns nesses jornais. Várias

matérias e até colunas eram publicadas com o objetivo de refutar as práticas e

costumes do pentecostalismo. Como por exemplo, temos o Jornal Batista, que

circulava no Brasil inteiro, e era distribuído em Belém pelo próprio Eurico Nelson,

missionário da igreja batista em que Gunnar Vingren foi expulso; na matéria

―Pathologia religiosa‖ notamos a forma como o jornal os retratava.

O seu falso propheta Vingren, chegou a hospedar-se na egreja de Belém dizendo-se missionário desta denominação [...] A conversão normal é aquella em que se combinam proporcionalmente todos os elementos espirituaes da pessoa [...] A sua doutrina é a própria encarnação do phanatismo, da superstição e da bisbilhotice religiosa na sua expressão de máximo requinte. Nós o temos presenciado nas suas espeluncas sob uma atmosphera de suggestão, exitamento e ultrasentimentalismo; temos testemunhado o ridículo de suas

124

proezas linguísticas, o indecente de seus tremeliques e grunhidos histéricos, temos ouvido por elles mesmos os seus suppostos milagres, e podemos afirmar que esse nosso acerto são verdades incontestes.209

O pentecostalismo era identificado por esses jornais como ―seita‖, ―praga‖ e

até ―pathologia‖. Nessa matéria, em específico, o autor ressalta uma diferença da

conversão ―normal‖ para a ―pathologica‖, pois na conversão dita normal deveria

haver, segundo ele, um equilíbrio entre razão, vontade e emoção. A emoção não é

descartada, mas o elemento racional é valorizado pelo protestantismo. A acusação

do jornal era do pentecostalismo ser uma religiosidade patologia, uma doença

mental, já que exaltava o sentimentalismo e o misticismo em detrimento da razão, o

que justificava a rejeição dos batistas a essas expressões religiosas.

No jornal presbiteriano ―Norte Evangélico‖ havia uma coluna quinzenal

chamada ―Heresia pentecostal‖, em que diversos dogmas do pentecostalismo eram

refutados. Em uma de suas colunas há menção específica aos ―milagres‖, apontado

como ―um assumpto muito decantado pelos pentecostaes‖; em outra coluna, o autor

destrincha melhor o assunto.

[...] os pentecostaes se propalam como os obradores de milagres, curas maravilhosas – etc. Creio em parte nos milagres pentecostaes, não como elles querem impingir, mas como sendo manifestações diabólicas, suggestões demoníacas e nada mais.210

Os elementos sentimentais e místicos eram alguns dos argumentos de

refutação de protestantes contra católicos, e agora os protestantes usam os mesmos

argumentos para refutar o pentecostalismo, o classificando-o também como

―herético‖ e demoníaco, visto que o protestantismo que veio ao Pará manteve sua

característica histórica de ser uma religião intelectual, racional e letrada.211 Uma

rejeição que se dá por ―traços de tradições protestantes que controlam e inibem

209

O JORNAL BAPTISTA. ―Pathologia religiosa‖. Manaus, 1922. 210

NORTE EVANGÉLICO. ―A heresia pentecostal‖. Garanhuns, 1923. 211

Precisamos ressaltar aqui que o próprio Emilie Leonard, que faz essa análise do protestantismo, revela que entre as igrejas protestantes houve vários movimentos internos que caracterizavam uma ênfase em uma experiência mística com o Espírito Santo. Destaco aqui o movimento Pietista do século XVII, em que se enfatizava uma vida piedosa, momentos longos de oração e experiências com o Espírito Santo. Deste movimento surgiram muitas denominações, incluindo a Igreja Metodista. LEONARD, Emilie. Protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e história social. Rio de Janeiro; São Paulo: Juerp/ASTE, 1981.

125

manifestações que a teologia da Reforma proíbe‖212. A racionalidade era uma marca

profunda dos protestantes, e seu ―poder sobrenatural‖ era observado apenas no

campo moral, em que o cristão protestante passaria por uma mudança de

mentalidade após aderir à fé, e a própria fé em Jesus Cristo e a mudança

comportamental que tal fé proporcionaria ao fiel seria a manifestação sobrenatural,

já que a fé é um dom dado pelo próprio Deus. Poderes que fossem além dessa

limitação de poder e contrários ao equilíbrio entre razão e emoção proposto seriam

manifestações que não se adequariam a essa teologia e acabariam rejeitadas e até

demonizadas pelos protestantes.

Logo percebemos constantes discursos negativos de protestantes com os

pentecostais do período, apontando-os como produtores de uma heresia patológica

ou demoníaca. Há uma relação muito conflituosa entre eles, sendo os próprios

protestantes mais um entre os seus ―inimigos‖, desde a sua expulsão da igreja

batista. O embate de católicos com várias vertentes do protestantismo era comum

desde a chegada de protestantes na cidade, mas os pentecostais, além de não

serem quistos pelos católicos, não conseguiram ter apoio nem do seu próprio

movimento de origem.

Como dito antes, a historiografia nos aponta uma adesão de paraenses ao

protestantismo, mas em menor projeção se comparada a estados como Rio de

Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Ainda assim, era uma vertente religiosa que

ganhava fiéis e espaço de visibilidade através da admiração de pessoas importantes

do estado e da imprensa. Embora percebamos em Belém o mesmo que ocorreu em

outras regiões do país, nas quais o protestantismo melhor se consolidou, não

notamos uma difusão tão grande das três principais vertentes do protestantismo que

a historiografia nos aponta em Belém (Metodistas, Batistas e Presbiterianos), como

houve com o movimento pentecostal, que resultou posteriormente na igreja

Assembleia de Deus. Samuel Ninstron, um dos líderes da Assembleia de Deus no

período, diz que ―Quando deixamos o Pará em 1930 havia três igrejas com locais

próprios e mil membros. No interior havia 50 igrejas locais e algumas delas tinham já

quase 400 membros‖213. Em 1934 o obreiro da Assembleia de Deus, Nels. J. Nelson,

registra mais de 6000 fiéis e 70 igrejas espalhadas pelo Pará, além de outras várias

212

MENDONÇA, Antônio Gouveia. Protestantismo no Brasil: marginalização social e misticismo pentecostal. São Paulo: Loyola, 1990. 213

VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961.

126

igrejas espalhadas pelo país.214 Gedeon Alencar nos mostra, por meio do Censo de

1940, que o número de protestantes que até 1910 era de 1,1% da população

brasileira, em 30 anos chegou a 2,6%. Esse aumento da porcentagem dos

denominados ―protestantes‖ do Censo, na verdade, segundo o autor, se dá pelo

número crescente de pentecostais que nesse período também eram considerados

protestantes pela metodologia da pesquisa.215 As denominações protestantes mais

significativas na cidade variavam entre 50 a 120 fiéis. Igrejas como a presbiteriana,

por exemplo, que era a maior denominação protestante do país, com grande

concentração no Sudeste e em Belém, passaram décadas com umas poucas

dezenas de membros e vários anos sem um pastor fixo. Podemos afirmar, assim,

que, não apenas em Belém, mas em toda a história do país após a colonização

europeia, nenhuma vertente religiosa acatólica cresceu mais no Brasil em tão curto

período de tempo que o movimento pentecostal. Diante disso, acreditamos ser

importante refletirmos sobre alguns dos prováveis motivos que levaram o

pentecostalismo a ter esse rápido crescimento.

Como relatamos anteriormente, Belém era uma cidade que devido à

economia da borracha, durante o final do século XIX e início do século XX, se tornou

uma capital de grande circulação econômica e melhoramentos em sua estrutura.

Apesar disso, no início do século XX também estava vivendo um surto de epidemias,

especialmente lepra e febre amarela. E a partir de 1909 a cidade já estava

começando a viver os primeiros efeitos de uma crise econômica de exportação da

borracha que se agravaria em anos posteriores. Berg e Vingren chegam à cidade

nessa particular conjuntura social, e Berg conta que:

Era comum naquela época os leprosos andarem pelas ruas da cidade, com grande perigo de contaminar outras pessoas. Vimos doentes sem mãos ou sem pés, com as orelhas e o nariz comidos pela doença. A quantidade de enfermos nas ruas era um espetáculo deprimente. A esse mal juntou-se outro: a febre amarela. Essa epidemia viera do interior. Começara com alguns casos, mas pouco tempo depois, alastrou-se por toda a cidade. As filas de enfermos nos hospitais eram cada dia mais longas, e os cortejos para os cemitérios aumentavam a curtos intervalos. Era doloroso ver as classes pobres, tão duramente provadas na vida, assoberbadas com mais aquele fardo da

214

O MENSAGEIRO DA PAZ. Belém, 1923. 215

ALENCAR, Gedeon. Todo poder aos pastores, todo trabalho ao povo, todo louvor a Deus. Assembléia de Deus: origem, implantação e militância (1911-1946). Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2000.

127

doença nos ombros. Algumas pessoas que haviam perdido parentes vitimados pela enfermidade, vinham nos visitar em nosso quarto-corredor, em busca de conforto na palavra de Deus.216

Esse cenário dantesco descrito por Daniel Berg em Belém do Pará pouco é

retratado nos trabalhos acadêmicos sobre esse período. Contudo, como como já

mencionado, em paralelo com as transformações urbanas e espaços de lazer

luxuosos, como os cinemas e clubes presentes na cidade, havia um surto epidêmico

de doenças como lepra e febre amarela, aumentando o número de enfermos e

mortos por lá.

Ao entendermos a conjuntura social da cidade e o surgimento do

pentecostalismo, podemos refletir sobre o diálogo do movimento pentecostal diante

dos vários surtos epidêmicos que ocorriam em Belém do Pará nesse período.

Notamos uma sociedade que imergia numa crise econômica, passando por surtos

de diversas doenças que atingiam pessoas de todas as classes sociais, mas

especialmente os mais pobres. Paralelo a isso, surgia uma vertente protestante que

em seu principal corpo doutrinário estava uma fé que evidenciava milagres através

de experiências que promoviam a manifestação do Espírito Santo, principalmente

por meio da ênfase de curas. Essa era uma religiosidade que dialogava bem com a

situação dos belenenses nesse período, além de ser melhor assimilável pela cidade

que já vivia uma religiosidade popular mística e oralizada, como o catolicismo da

região.

A partir dos diários de Daniel Berg e Gunnar Vingren, tanto a questão da

cura quanto de pessoas sonhando, tendo revelações do Espírito Santo, falando em

outras línguas (seja as incompreensíveis, ou línguas em outros idiomas), podemos

concordar com hipóteses que indicam a glossolalia como a principal identidade do

pentecostal ou com outras perspectivas que retratam a mística pentecostal como

sua principal distinção de outros movimentos religiosos protestantes.217

Concordamos com essas duas constatações. Porém, em nossa análise sobre o

movimento pentecostal em seu início, dessas experiências sobrenaturais

promovidas pelo Espírito Santo e tão enfatizada por eles, as curas de enfermos

eram os acontecimentos que mais ocupavam as narrativas de Berg e Vingren

216

BERG, Daniel. O enviado de Deus: memórias de Daniel Berg. São Paulo, 1959, p.55. 217

Ibidem. VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961.

128

durante seus relatos de expansão do movimento pentecostal em Belém, em sua

primeira década. Eles retratavam as curas até mesmo como elemento de

legitimação para o movimento.

A obra de Deus continuou, e sua palavra continuou a ser confirmada a cada dia com milagres e maravilhas. Um irmão foi curado de uma enfermidade muito grave na perna. Uma irmã foi curada de uma doença considerada incurável nos lábios. Um outro irmão, que sentia uma dor de cabeça há dez anos, também foi alcançado pela cura. Um homem paralítico, que estava moribundo e não mais podia falar, foi curado e passou a participar dos nossos cultos. Uma criança que estava quase morrendo de tanta febre também foi curada. Um homem muito idoso, que sofria de hérnia há nove anos, também foi alcançado pela cura divina. Um outro homem, que já vários meses sofria de Febre e tinha o corpo todo inchado, também curado e batizado com o Espírito Santo. Ele recebeu ainda o dom da profecia. Uma irmã foi curada em uma mesma noite de duas enfermidades.218

No decorrer do diário, ambos, mas especialmente Gunnar Vingren, passam

a dar outras ênfases em sua narrativa sobre o crescimento pentecostal no Pará,

principalmente as perseguições, as pessoas recebendo batismos com o Espírito

Santo e os dons de profecias. Todavia, pelos relatos iniciais de seus primeiros anos,

tanto em Belém, como no interior do Pará, a cura com certeza foi a característica do

movimento pentecostal mais citada em ambos os diários. Podemos notar uma

vertente protestante que promovia uma ―cura‖ para uma cidade cheia de enfermos,

mostrando um diálogo com a mentalidade religiosa paraense muito mais profunda

que a tentativa de cuidado desses enfermos a partir da medicina, como ocorreu com

os protestantes Eurico Nelson e Justus Nelson, tanto por apresentar um elemento

religioso que de certa forma não era estranho aos paraenses, pois a ―cura‖ feita

pelos santos e por Nossa Senhora de Nazaré por meio de preces fazia parte da

crença popular, quanto porque a ―cura‖ vinha como solução religiosa para um

problema fortemente presente naquela ocasião.

Outra característica clara do movimento pentecostal é a questão do leigo e a

função social da mulher que, aparentemente, possuí algumas diferenciações se

compararmos suas funções com relação ao próprio movimento protestante de outras

denominações, ou mesmo a Igreja Católica da região. A começar pelo próprio Daniel

Berg que, ainda nos primeiros anos, tinha autonomia para evangelizar pessoas e

218

VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961, p.47.

129

procurou fazer isso na capital e no interior, Vingren não retratava Berg nos primeiros

anos do pentecostalismo em Belém apenas como um parceiro de viagem. Em sua

narrativa missionária, Berg era citado constantemente junto com Vingren

trabalhando para a expansão do pentecostalismo no estado.219

Há relatos de outros pentecostais que procuravam expandir sua fé pelo

estado, como Joaquim Batista de Macedo, um lavrador do Pará que ―recebeu a

revelação de Deus para ir ao Nordeste‖, e ―em todos os cultos muita gente se

entregou a Jesus, muitos foram batizados com o Espírito Santo e muitos foram

libertos de demônios‖220. Ou relatos como o de Crispiniano Fernando de Melo,

descrito como ―um irmão que trabalhava com borracha‖ e que:

[...] viajou diversas vezes a um outro rio afim de testificar a Jesus‖. Depois de um determinado tempo havia ali um grupo de uns sessenta crentes que esse irmão mesmo batizou nas águas. Ele depois foi separado como evangelista e pastor para atuar na evangelização das ilhas do Pará.221

Ou mesmo de outros ―irmãos‖ que saiam do Pará para irem a outros

estados, nesse período inicial especialmente para o nordeste. Pessoas das quais

―Os inimigos ficam admirados ao ver a grande sabedoria e inteligência com que

Deus, através do seu Espírito, reveste os seus servos de origem tão simples‖ (grifo

nosso)222.

A separação de pastor ou evangelista difere da maioria dos relatos que

percebemos de protestantes históricos. Em sua maioria, sua titulação acadêmica e

seu arcabouço teórico eram postas em evidência, seja por eles mesmos ou por

membros que queriam exaltá-los em jornais e folhetos. Essa talvez não fosse a

219

Na obra ―Matriz pentecostal brasileira‖, Gedeon Alencar, em alguns momentos de sua análise, enfatiza a maior importância dada a Vingren como liderança do movimento pentecostal se comparado a Berg, mostrando o fato de Vingren ter terminado um seminário para obter maior valorização em relação a Berg. Vingren, quando analisa o papel de Frida Vingren ressalta a falta de Daniel Berg em reuniões de liderança e até mesmo na escola dele como alguém que o substituiria para liderar as igrejas em Belém das diversas vezes em que ficou doente, mas acabou passando essa liderança a Frida. Entendemos a importância de Frida no movimento pentecostal em seu início, assim como a de Gunnar Vingren, mas, ao menos no período da origem e expansão do movimento pentecostal em Belém, não notamos um menosprezo à liderança de Berg, pelo contrário, ele foi alguém responsável pela expansão do movimento pentecostal nos interiores e sempre sendo retratado como um personagem de expressiva liderança na narrativa missionária no início do pentecostalismo na cidade, revelando uma estratégia de diálogo de Berg com os leigos de locais mais afastados do centro urbano, e Vingren alocado na capital, promovendo o pentecostalismo na urbe. 220

VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961, 221

Ibidem, p.61. 222

Ibidem, p.62.

130

característica exclusiva do pentecostalismo nesse período, pois já comentamos que

o batista Eurico Nelson também não teve formação teológica. Porém, enviar

missionários sem formação teológica simplesmente demonstrando um bom

conhecimento teólógico não fazia parte da prática comum dos protestantes até

então. O movimento pentecostal nesse início não parecia ter essa preocupação, ou

pelo menos não como primordial, o que explica bastante de sua expansão, pois o

capital simbólico para o leigo tomar a frente da obra congregacional se diferencia,

em vez de um conhecimento teológico aprofundado ou até mesmo uma profundo

conhecimento da Bíblia, bastava o fiel pentecostal receber ―uma revelação‖ ou uma

―visão‖ do Espírito que instantaneamente adquiria o privilégio de proclamar sua fé

aonde o Espírito Santo o guiasse. E, pelo que notamos na fé pentecostal, se

acreditava que as revelações do Espírito Santo eram direcionadas tanto às

principais lideranças, como Berg e Vingren, quanto a muitos de seus fiéis

independentemente de posição econômica e social.

Notamos ainda um maior protagonismo feminino com relação a outras

igrejas protestantes e mesmo entre o catolicismo institucional presente na região.

Era comum Vingren mencionar mulheres como Celina de Albuquerque, a primeira

segundo Berg e Vingren a ser batizada com o Espírito Santo, que ganha bastante

notoriedade em diversos relatos desses missionários, como a mulher que cedia sua

casa para realizar os cultos. Celina protegeu Vingren de uma perseguição de

católicos, ―salvando a vida deste‖223.

Uma figura feminina muito retratada em algumas obras como Isael de Araujo

e Gedeon Alencar é Frida Vingren, esposa de Gunnar Vingren. Gedeon retrata sua

proatividade, sendo ela uma mulher que, como missionária pentecostal,

Dirigia cultos na praça onze, em presídios, nas casas e nos templos. Trabalhou no jornal oficial da denominação a boa semente em Belém e, depois, no Rio de Janeiro, no Som Alegre. Em 1930 os dois jornais são unidos e nasce o Mensageiro da paz. (Existente até hoje) e ela se torna sua redatora.224

223

Falaremos melhor desse episódio no próximo capítulo. VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961, p.58. 224

ALENCAR, Gedeon. Matriz pentecostal brasileira. Assembleias de Deus - 1911-2011. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2013, p.116.

131

O autor também nos mostra, à luz da análise do diário de Vingren, as vezes

em que Frida, enquanto Vingren esteve doente, o apoiava. ―Minha esposa, junto

com alguns obreiros da igreja, tem assumido a responsabilidade pela obra‖225,

mostrando Frida como uma mulher que redigia jornais e administrava igrejas na

ausência do marido. Isael de Araujo também diz que ―como Vingren precisava viajar

bastante, Frida ficava responsável pela direção da igreja e dos cultos muitas vezes.

Seu bom conhecimento bíblico foi de grande benção tanto verbalmente como por

escrito‖226, seu direcionamento nas igrejas e seu conhecimento bíblico que ficava

evidente em seus estudos, hinos e nas redações de jornal, era usado ―tanto no Pará

quanto no Rio de Janeiro‖227. No Pará, em específico, Frida também trabalhava ―com

crianças‖, fazia ―trabalhos sociais‖ e ―na igreja‖. Também tinha conhecimentos de

enfermagem e trabalhou em Belém como ―parteira‖228.

Podemos entender como fato que Frida e Celina de Albuquerque eram

mulheres diferenciadas. Frida era uma mulher que vinha da Suécia com um provável

curso de enfermagem e tinha passado por um seminário teológico. Celina de

Albuquerque tem indícios de ser de um grupo abastado e privilegiado da cidade,

morava na rua Siqueira Mendes229, rua existente até os dias de hoje. local onde está

localizada em uma área central e nobre da cidade, isso desde o século XIX.

Contudo, mesmo com esses atributos que as valorizavam, como maior renda

econômica e estudos, ambas tiveram seu local de destaque no movimento

pentecostal em suas primeiras décadas, e podemos notar a partir delas um maior

destaque da mulher no pentecostalismo em seu início, se comparada a outras

denominações protestantes na cidade.

Pode-se enumerar análises sobre as mulheres no movimento pentecostal

que vão além delas, há mulheres como Maria de Nazaré, a segunda mulher a ser

―batizada com o Espírito Santo‖ em Belém, e que passou a pregar no Nordeste,

assim como também há relatos de outras irmãs, como:

225

Apud: ALENCAR, Gedeon. Matriz pentecostal brasileira. Assembleias de Deus - 1911-2011. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2013. 226

ARAUJO, Isael de. Frida Vingren - Uma biografia da mulher de Deus, esposa de Gunnar Vingren, pioneiro das Assembleias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2014, p.46. 227

Ibidem, p.46. 228

Ibidem, p.42. 229

Além de ser uma rua central, também é a primeira rua registrada na história da cidade. Presente desde sua colonização em 1616, era denominada ―Rua do Norte‖, surgindo ali as primeiras casas e instalações comerciais da cidade em sua gênese.

132

Uma irmã que pertencia à igreja no Pará sentiu a direção de Deus de viajar para o Nordeste (Estado do Ceará). Sua viagem de navio durou quatro dias. Ela queria testificar aos seus parentes. Porém, ao chegar ali o seu testemunho não foi bem recebido. Mas alguns crentes presbiterianos ouviram suas palavras e aceitaram o seu testemunho sobre o batismo com o Espírito Santo. Mais tarde, Deus enviou o nosso evangelista, Adriano Nobre, para lá, e muitos foram batizados nas águas e com o Espírito Santo. Quando cheguei ali, em 1914, encontrei duas igrejas, uma com sessenta membros e outra com trinta. Frutos da semente que aquela irmã plantara.230

Tanto Maria de Nazaré quanto a ―outra irmã‖ foram sozinhas até o Nordeste

propagar a fé pentecostal que abraçavam. O relato dessa ―outra irmã‖ tem detalhes

que chamam a atenção. Embora Vingren reconheça que, de início, seu testemunho

foi rejeitado na região, a ponto dela precisar do auxílio de pessoas como Adriano

Nobre para seu testemunho ter credibilidade, Vingren reconhece que as duas igrejas

que ele encontrou posteriormente, com ―sessenta membros e outra com trinta‖ foram

os ―frutos da semente que aquela irmã plantara‖. Os créditos são todos dados a ela.

Assim como a autonomia que a ela detinha para ir até outras regiões falar a fé

pentecostal, sem a necessidade de uma companhia masculina. Vingren conta o que

essa irmã fez na mesma sequencia narrativa que relata que outros irmãos saíram de

regiões do Pará e foram aos seus interiores ou ao Nordeste propagar a fé

pentecostal. Essa irmã também está inserida no relato das ―pessoas simples‖,

descrito por Vingren, no qual ele menciona o fato de ser ela uma mulher sozinha (e

talvez solteira). Além do mais, a ida de Adriano Nobre pode ser vista por alguns

como a companhia masculina necessária para que dessem crédito a fala dessa

irmã; não descartamos essa hipótese, embora achemos mais provável que sua

presença na evangelização da irmã se deveu aos próprios presbiterianos que devem

ter aceitado melhor a fala de alguém que aparentemente era mais preparado para

dialogar com eles devido ao fato de já ter sido ele mesmo presbiteriano também.

Fica perceptível a partir daí outro fenômeno, protestantes de diferentes

denominações estavam aderindo à fé pentecostal.

Esses diversos episódios nos mostram a forte autonomia que o movimento

pentecostal deu a pessoas de diferentes gêneros e escolaridades ao propagar sua

fé, conquistando até mesmo cargos de liderança naqueles primeiros anos, mesmo

que para isso fosse preciso sair da região para pregar em outros locais. A autonomia

230

VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961, p.61.

133

do leigo, se comparada a outras denominações protestantes, fica muito clara nesse

período.

A prática do sacerdócio universal incorporada por um público pouco letrado,

com ênfase nos dons, faz com que vários líderes surjam e propaguem a fé com mais

rapidez. Percebemos, assim, mais uma característica para o seu crescimento ―as

igrejas pentecostais oferecem numerosas atrações, para não falar no mecanismo de

proselitismo‖231. Leigos absorviam melhor a fé através das experiências místicas,

nela permaneciam e propagavam-na por meio de sua ortopraxia.

Os pentecostais, assim como as outras denominações protestantes, também

consideravam a bíblia protestante como regra de fé e prática, e que todos deveriam

ter acesso a essa fé, valorizando a ideia do leigo como um sacerdote que pode se

achegar diretamente a Cristo. Notamos que, na prática, a valorização do leigo era

posta em prática com uma maior eficácia em relação até ao próprio protestantismo

histórico.

Como dito no capítulo anterior, ao falarmos sobre o ―sacerdócio universal‖,

em que o homem teria sido feito para a glória de Deus e toda a atividade social que

produzisse deveria servir para este fim, como um sacerdócio único do homem para

com o Deus, intermediado pelo próprio Jesus Cristo.232 Notamos a partir de Max

Weber que o pentecostalismo também dá importância ao indivíduo e em um nível

mais abrangente, no qual o leigo pode entrar para o movimento e ser liderança com

menos capital simbólico que católicos e protestantes.

Mas, para além das questões apontadas aqui, como: ―cura\ gênero\ leigo\

sacerdócio universal‖, que sugerem motivos para o rápido crescimento do

movimento pentecostal, há também a sua inserção no momento político do período.

Os pentecostais já se inseriram na cidade em um período republicano, no qual as

pregações de religiões acatólicas nas ruas, feitas em português, já não eram mais

proibidas, em um tempo no qual o protestantismo passa a se consolidar, construir

seus templos, publicar seus periódicos. Todo esse proselitismo praticado pelo

movimento pentecostal tinha respaldo no corpo jurídico do regime republicano.

Contudo, ainda assim, a prática das leis que garantiam a liberdade de religiões e

231

MENDONÇA, Antônio Gouveia. Introdução ao protestantismo no Brasil. In: Idem. Protestantismo no Brasil: marginalização social e misticismo pentecostal. São Paulo: Loyola, 1990. 232

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2001, p.94.

134

ideais acatólicos nem sempre protegeram o movimento de perseguições e

impedimentos de práticas de fé.

O regime republicano era novo na história do país, e trouxe um país um

código jurídico que protegia mais as religiões acatólicas. Em paralelo a isso, surge o

movimento pentecostal nessa virada política, mostrando-se como uma religião

acatólica diferenciada. Um movimento religioso com dogmas protestantes como a

Bíblia como regra de fé e prática, valorização do leigo, centralidade da salvação e

intercessão em Jesus Cristo, mas com um discurso místico, evocando o

sobrenatural, e, de certa forma, demonstrando uma certa ―eficácia‖ do seu poder em

efetuar serviços e milagres. Nisso, não apenas o protestantismo histórico, mas até

mesmo práticas significativas da religiosidade popular, como a devoção mariana,

estavam sendo postas em xeque. Mas esse outro aspecto referente ao

pentecostalismo, especialmente na sua relação com o catolicismo na região e como

os representantes de estado reagiram a esse avanço, retrataremos quando

voltarmos a analisar o movimento no terceiro capítulo.

2.6 ENTRE SUECOS E BRASILEIROS: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE

RUPTURAS E PERMANÊNCIAS DO PROTESTANTISMO NO BRASIL REPÚBLICA

NO PARÁ

Muitos pesquisadores do protestantismo brasileiro elaboram suas pesquisas

elegendo como parâmetro territorial de análise a região sudeste, em especial o Rio

de Janeiro e São Paulo. Até mesmo em estudos sobre a historicidade da

Assembleia de Deus, muitos autores não retratam o início do movimento pentecostal

em Belém com a mesma pormenorização com que retratam sua expansão e

concentração no Rio de Janeiro, por exemplo. Muitas vezes, até mesmo a maior

denominação pentecostal (e, consequentemente, evangélica) do país não tem a

cidade onde se originou tão bem esmiuçada nas pesquisas, quiçá o protestantismo

no Brasil, onde a maior parte do movimento se concentrou no Sudeste.

Acreditamos que o Pará, especialmente a cidade de Belém, sua capital,

pode ser um bom campo de análise para reflexões sobre o protestantismo no Brasil

no período republicano, tanto para entendermos certas rupturas e especificidades da

região, como para compreender a religiosidade no país nesse período, de forma a

nos permitir mergulhar em pormenorizações geográficas e ao mesmo tempo

135

elaborarmos uma análise territorial mais ampla, que podem nos ajudar a elucidar

muito acerca do protestantismo brasileiro a partir de questões que escapam à

historiografia protestante tradicional.

Em ―O celeste porvir‖, Antônio Gouveia de Mendonça aborda um

protestantismo fortemente influenciado pela religiosidade protestante norte-

americana.233 Temos concordância com tal perspectiva, mas também notamos

possíveis influências de outros países europeus na dinâmica religiosa. Uma

migração protestante que no Brasil não apareceria diretamente dos Estados Unidos,

mas uma relação Suécia-EUA-Brasil. Na dissertação de mestrado de Samuel

Valério, notamos o retratar das ondas de imigração que ocorreram da Suécia para

os Estados Unidos no século XIX, somada ao fluxo migratório de diversos outros

europeus que procuraram sair de seu país de origem devido às diversas crises

econômicas e regimes políticos autoritários que emergiam no continente. Era uma

Europa em crise que contrastava com a democracia norte-americana em ascensão,

considerada exemplo para o mundo, com seu regime político democrático e

prosperidade econômica; foi uma nação que encheu os olhos de milhares de

europeus, incluindo os suecos.234

Gedeon Alencar foi sensível a esse fato em ―Matriz pentecostal brasileira‖ e

ali retrata a forte migração de suecos para os Estados Unidos, ou mesmo a forte

vinda de migrantes que, pela crise que o país estava passando, vinham diretamente

para o Brasil.235 Nós não encontramos trabalhos acadêmicos sobre a migração

sueca ao Pará, mas é bem provável que eles existiam; o fato é que precisamos

entender um certo ethos protestante sueco que também notamos no período por nós

abordado. Grande parte das principais lideranças protestantes, Eurico Nelson,

Justus Nelson, Gunnar Vingren e Daniel Berg, eram de origem sueca e traziam em

sua bagagem religiosa não apenas o protestantismo norte-americano, mas também

a religiosidade protestante sueca, marginalizada em seus países. As quatro

lideranças vinham de origem popular, e dessas pessoas citadas apenas duas

fizeram seminário, contrastando com toda aquela importância dada ao

academicismo por parte dos missionários tipicamente norte-americanos.

233

MENDONÇA, Antônio Gouveia. O celeste porvir: a invenção do protestantismo no Brasil. São Paulo: IMS, 1995. 234

VALÉRIO, Samuel Pereira. Pentecostalismo de migração: terceira entrada do pentecostalismo no Brasil. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), PUC-SP, São Paulo, 2013, p.16. 235

ALENCAR, Gedeon. Matriz pentecostal brasileira. Assembleias de Deus - 1911-2011. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2013.

136

Das quatro lideranças, Justus Nelson parece seguir um modus operandi

semelhante ao de missionários norte-americanos que vieram ao Brasil. Investiu em

instituições de ensino e veículos de imprensa. Contudo, aqui cabe ressaltar a

particularidade desse pastor metodista, pois ele produziu um veículo próprio de

imprensa em vez de circular na cidade periódicos protestantes de grandes capitais

brasileiras como fizeram outras lideranças. O Apologista Christão Brazileiro foi um

meio de comunicação que circulou em Belém por 20 anos em um período no qual

eram raros os periódicos que se mantinham na cidade por menos de uma década.

Além do que, esse foi um jornal que conseguiu ganhar repercussão em outros

estados, tanto por seu conteúdo quanto por suas polêmicas.

Notamos na região um presbiterianismo que desde o Império teve

dificuldade de se consolidar até mesmo se comparado às outras regiões do país,

conseguindo manter um trabalho expressivo apenas no período republicano, por

missionários brasileiros. Nota-se então um outro cenário, que começa a despontar

se comparado ao período imperial. Lideranças brasileiras começam a tomar a frente

do campo protestante na cidade, o que facilitaria questões como a comunicação,

identidade e uma brasilidade que, mesmo com fortes traços de uma práxis religiosa

norte-americana, também possui uma maior inserção na conjuntura social e política

em que estão inseridos, além de posicionamentos que correspondem a

particularidades de um ―protestantismo brasileiro‖ em suas práticas. Procuram criar

uma imprensa confessional própria para o Norte e Nordeste do país, ganham uma

maior inserção na grande imprensa em relação às lideranças estrangeiras, traçando

abordagens diferenciadas na tentativa de consolidar o protestantismo em um país

hegemonicamente católico.

O fato de pastores como Antônio Teixeira Gueiros agora prestar contas não

para agências missionárias norte-americanas, mas para presbitérios que atuavam

especialmente para as regiões Norte e Nordeste do país, já nos mostra uma

autonomia maior de um protestantismo que agora era legalizado e conseguia se

reestruturar melhor a partir de lideranças brasileiras, evangelizadas por esses

diversos missionários norte-americanos. Isso vai influenciar a abordagem de

propagação de sua fé e sua forma de lidar com o Estado, agora republicano, como

veremos mais a frente.

Então, no período republicano no Pará, continuamos encontrando imigrantes

norte-americanos que procuravam propagar o protestantismo no país, mas muitos

137

deles vindos de outras partes da Europa. Muitos eram bem mais pragmáticos,

punham uma maior ênfase em veículos de imprensa para a propagação de sua fé,

fosse através de uma imprensa específica de circulação nacional de sua

denominação, como ―O jornal Baptista‖, fossem por meio de veículos de imprensa

com uma produção mais regionalizada, como ―O Apologista Christão Brazileiro‖ e

―Norte Evangélico‖. Sendo assim, vê-se que o período republicano nos apresenta

um protestantismo bem mais estruturado, localizado, e ainda se articulando com

grupos políticos e conseguindo espaços na grande imprensa, mas, para além disso,

através do movimento pentecostal, a religiosidade protestante chega a um público

que até então o protestantismo histórico teve pouco acesso, o católico leigo popular

paraense.

Como vimos afirmando, havia uma reestruturação religiosa no período

republicano e um dos motivos é a Igreja Católica deixar de ser religião oficial do

Estado. E é por essa ―brecha‖ política que vemos uma maior consolidação do

protestantismo na cidade, ainda que nem todas as vertentes religiosas se

posicionem diretamente sobre suas preferências políticas, notamos o período

republicano influenciando-as, seja pela maior abertura de suas vindas ao país, um

processo que já vinha ocorrendo desde os tempos do império, ou mesmo pelo seu

posicionamento político, sempre em defesa de um regime republicano destacando a

importância desse modelo de regime para a manutenção da liberdade religiosa, ou

ainda pela continuidade de perseguições como ocorriam no Império, onde o próprio

Estado era utilizado como um instrumento de coerção ao protestantismo.

Das lideranças protestantes citadas neste capítulo, a maior parte delas

passou por uma delegacia, por ameaças de prisões, ou mesmo, em casos como o

de Justus Nelson, tendo sua prisão decretada. Essas tensões entre católicos e

protestantes ocorridas no Brasil república será o principal tema do nosso próximo

capítulo.

138

CAPÍTULO III – ENTRE A AUTORIDADE RELIGIOSA E A AUTONOMIA DO

LEIGO: CATÓLICOS, PROTESTANTES, PENTECOSTAIS

E O “CAMPO RELIGIOSO” EM DISPUTA

O caso de Luthero é comum a todos os protestantes, maníacos leitores da bíblia abandonada ao capricho da interpretação individual, com mais ou menos ma fé, ignorância ou presumpção. Chegam ao ponto de não se entenderem mais entre si e nem consigo: e cada qual puxando a bíblia para seu lado, em nome do Espírito Santo, julga-se autorizado a puxar sua igrejola: e as taes egrejolas, ou seitas, nascem, e morrem, e multiplicam ao infinito. [...] O protestantismo parece-se com um vasto hospital de doidos, metidos a interpretes da bíblia.236

Como discutido nos capítulos anteriores, analisamos as origens, o

crescimento e a consolidação do catolicismo e do protestantismo na região

amazônica, especialmente na cidade de Belém do Pará. Traçamos um panorama

histórico para entendermos a trajetória dessas religiosidades para assim melhor

embasar nossa análise dessas duas vertentes cristãs no período específico da

nossa pesquisa. Catolicismo e protestantismo se reestruturam após a mudança do

sistema político do Império á República, destacando especialmente a separação da

Igreja e do Estado que ocorreu no período republicano, quando a Igreja Católica

deixa de ser a religião oficial do país e o Estado se torna laico.

Desde o início do movimento protestante surgido na Alemanha até os

séculos posteriores, incluindo a temporalidade abordada por nós, os protestantes

continuaram a conflitar com o catolicismo vigente. No Brasil, e especialmente em

Belém do Pará, não foi diferente. Os capítulos anteriores já abordaram, ainda que de

forma menos detalhada, tensões entre católicos e protestantes. Nesse capítulo

analisaremos mais a fundo tais conflitos, especialmente os ocorridos em Belém do

Pará nesse período histórico tão distinto, como o período republicano.

Para entender os conflitos, a imprensa é uma reveladora fonte histórica. Os

jornais católicos e protestantes, entre outras funções exercidas, eram instrumentos

de propagação da fé e também de ataque a grupos considerados antagônicos.

Católicos e protestantes se utilizavam dos jornais impressos de suas próprias

instituições religiosas, ou até mesmo o espaço que tinham na grande imprensa para

retratar negativamente a fé do outro. Analisaremos pormenorizadamente esses

236

A PALAVRA. Belém, 28/09/1922.

139

discursos para começarmos a desnudar a disputa religiosa que havia entre essas

duas vertentes cristãs.

3.1 A DISPUTA SIMBÓLICA ENTRE CATÓLICOS E PROTESTANTES

3.1.1 “A desconstrução histórica”: a depreciação da figura de Lutero

Como vimos no primeiro capítulo, veículos de comunicação católicos que

circulavam em Belém tinham diversos grupos sociais aos quais constantemente

dirigiam críticas negativas, a ponto de os retratarem como ―inimigos da igreja‖. Pelas

três décadas de publicação que analisamos do jornal católico ―A Palavra‖, o

protestantismo foi a temática mais recorrente, sempre alvo de depreciações e

refutações. Só essa constância no tema já deixa evidente a importância social do

movimento, e o quanto ele incomodava as lideranças católicas.

Os termos com que o ―A Palavra‖ definiam os protestantes eram

depreciativos e jocosos, frases como ―seitas biblistas‖, ―os bibliolatras‖ e ―filhos de

Luthero‖. Muitas das matérias contra os protestantes eram escritas pelo próprio

editor do jornal, o Padre Dubois. Os tipos de críticas variavam: desde a histórica,

criticando os fundadores do protestantismo na Europa no século XVI, ou mesmo

jogando luz sobre algumas práticas de protestantes referentes ao seu tempo.

Também havia constantes refutações dos dogmas protestantes, especialmente pela

forma como eles utilizavam a Bíblia. Por essas tensões se passarem em Belém do

Pará, também havia matérias depreciando alguns líderes do movimento protestante

na cidade. Em contraponto, também notamos em algumas declarações da imprensa

protestante envolvendo constantes ataques aos católicos, chamando de ―idolatras‖,

pela devoção deles aos santos, especialmente à Virgem de Nazaré. Muitas vezes

também de forma jocosa e depreciativa, como veremos adiante.

Os veículos de imprensa são fundamentais para entendermos tal processo,

e se tornarão aqui a nossa principal fonte documental. A maior parte dos discursos

tensionais entre essas duas vertentes eram registrados pelos periódicos. Para isso,

precisamos nos aprofundar na análise também da mídia. Nos utilizaremos mais uma

vez da metodologia de análise da imprensa feita por Heloísa Cruz e Maria do

Rosário Peixoto. Elas incentivam que o historiador analise a imprensa de forma

crítica, não apenas o conteúdo publicado, mas também seu projeto gráfico, sua

140

diagramação e as temáticas mais recorrentes que o jornal elege, todos aspectos

pensados para passar ao leitor uma mensagem que vai além da letra, pois os

veículos de imprensa constroem narrativas que selecionam temáticas em seu grau

de importância a partir de um editorial que decide o que fará parte da mensagem

que será passada ao leitor.

[...] a análise do projeto gráfico volta-se para a organização e distribuição de conteúdos nas diversas partes e seções no interior do periódico como, por exemplo, a localização e extensão que ocupam, as funções editoriais a elas atribuídas e por elas desempenhadas, seus modos de articulação e expressão.237

Nos mais diversos temas retratados pelos veículos de imprensa, há uma

―hierarquização de conteúdos‖ que o historiador deve estar atento para entendê-la,

seja através da constância das mensagens ou pela forma como as mensagens

estão sendo colocadas. Bom exemplo são ―as capas e primeiras páginas: funcionam

como vitrine da publicação que, por meio de ‗chamadas‘ de matérias, fotos,

manchetes e slogans, indicam ênfase em determinados temas e questões‖238.

É necessário nos apropriarmos dessa metodologia para entendermos o

grande espaço que o jornal ―A Palavra‖ cedia às críticas aos protestantes. Eles

ganhavam um destaque que ultrapassava outros grupos sociais e religiosos dos

quais o jornal também criticava. Como já dissemos, nos 30 anos de documentação

analisada, o protestantismo ganhava protagonismo em boa parte das primeiras

páginas, incluindo as análises editoriais.

Daí já notamos que o jornal tinha um discurso claro e categórico contra o

protestantismo, e que as matérias procuravam desqualificá-lo se utilizando de

diversos recursos discursivos. Uma das formas de desenhar o protestantismo era

atacando o seu fundador. O ex-monge Martinho Lutero. Eram constantes as

matérias em que Lutero era citado sempre de forma depreciativa, como a matéria

―Orgulho‖, redigida por Padre Dubois no jornal ―A Palavra‖, na qual ele retratava

diversas ―reformas radicaes‖ promovidas por homens, que tinham o pecado do

orgulho como o fator que impulsionava essas reformas. Dubois cita Voltarie,

237

Na oficina do historiador: conversas sobre história e imprensa. CRUZ, Heloísa; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: conversas sobre história e imprensa. Projeto História. São Paulo, n. 35, p.255-272, 2007. 238

Ibidem.

141

Compte, Zarathustra e Allan Kardec e mostra que nas ideias propagadas por esses

homens havia um orgulho de não obedecer a fé católica, se afastar da Igreja, e que

muitos desses disseram inclusive que a fé cristã chegaria ao fim. Entre esses

diversos exemplos, o Padre cita Lutero, dizendo que:

Luthero, pae de um movimento que injustamente congominaram de reforma, pisou ao pé da egreja quinze vezes secular, a exegese dos mais veteranos glosadores, a theologia de gênios como São Thomaz e São Boaventura, a espiritualidade dos maiores santos, para impor, uma diatribe e pela força armada, uma doutrina que deu o belo nome de evangelismo. [...]239

Ao mesmo tempo que havia uma desqualificação do protestantismo, era

comum o jornal evocar a tradição católica como argumento de legitimidade como

igreja. Seus dogmas são confirmados como corretos por diversos teólogos católicos

prestigiados na tradição da Igreja, como S. Tomas de Aquino. A tradição é

constantemente utilizada, seja nessa ou em outras matérias, como um instrumento

de legitimação do catolicismo como a religião verdadeira e correta.

Não é à toa que constantemente o jornal fazia uso de uma breve descrição

histórica para retratar o protestantismo como um movimento contrário a Igreja

Católica desde a raiz. Figuras como Lutero constantemente são referenciadas pelo

jornal para destacar o que se considerava como o iniciador do movimento na Europa

do século XVI, um exemplo está na matéria ―Os Inimigos da Igreja‖, publicada pelo

―A Palavra‖ em 22/09/1938.240

Nessa matéria, o autor passa a estabelecer os inimigos da Igreja Católica

através da história. Desde os primeiros séculos, o jornal nos aponta os

perseguidores da igreja primitiva, nos primeiros séculos da nova era.

Imperadores como Nero, Dioclesiano, que perseguiram e mataram cristãos,

são citados como exemplos de inimigos. Mas o intrigrante é que no próximo

parágrafo Lutero estará na lista de inimigos, porque segundo eles por meio do

protestantismo muitos adeptos da Igreja se afastaram onde este se utilizava de uma

estratégia de ataque, ainda pior que as dos imperadores romanos.

239

A PALAVRA. ―Orgulho‖. Belém, 28/03/1923. 240

A PALAVRA. ―Os inimigos da Igreja‖. Belém, 22/09/1938.

142

Luthero, muito mais aquem, depois de ordenado sacerdote, por vaidade e fraqueza de vocação, abandonou a religião. Invéstivou-a e caluniou de todos os modos. Fundou o Lutheranismo e o protestantismo conseguindo afastar muitos adeptos e afastar da igreja números sectários que falta alguma lhe faziam.241

Essa matéria nos mostra o protestantismo não apenas como um inimigo,

mas um inimigo a um nível até maior do que estadistas que perseguiram e

torturaram cristãos fisicamente. Mais uma vez se utilizando da nivelação a outras

personalidades para mostrar que o fundador do protestantismo era um inimigo do

catolicismo tão (ou ainda mais) cruel quanto os outros mencionados. Há a constante

afirmação do jornal que o catolicismo era a religião verdadeira e o protestantismo

era um movimento antagônico à verdadeira igreja. Deixar de ser católico e se tonar

protestante era equivalente a abandonar a verdadeira religião e aderir a uma ―seita‖,

uma ―religião falsa‖.

Na Coluna ―Para o povo‖, publicada constantemente na primeira página do

jornal ―A Palavra‖, eram publicadas de três a quatro pequenas matérias em uma

única seção. Acreditamos que o jornal se utilizava disso como uma metodologia para

ser mais enfático nas mensagens que queria passar ao leitor antes das demais. As

matérias feitas tendo o protestantismo como temática eram constantes. Dos quatro

temas retratados, era comum ter uma ou duas matérias falando sobre o

protestantismo, sempre em um tom de refutação ao movimento, ou de pura

desqualificação. Na publicação feita no dia 08\08\1918, todas as matérias falavam

dos protestantes, especialmente de Lutero. A matéria ―os autores do protestantismo‖

diz que ―Muner, um pregador protestante dos tempos de Luthero, se refere a ele

como sendo um escrevinhador ambicioso, louco orgulhoso, monge sem vergonha,

doutor de mentiras, papa de Wittenberg e ímpio‖. Por ser um próprio protestante de

seu tempo, o Jornal utiliza essa fonte para dar mais credibilidade à desqualificação

de Lutero. Na matéria ―Os absurdos de Luthero‖, o jornal qualifica os ensinamentos

do monge protestante sobre vontade humana como ―doutrina bestial‖.

Usar a figura de Lutero com frequência nos parece ser uma característica

plausível para uma instituição como a Igreja Católica, pois ela se utilizava da força

de sua tradição como uma das suas principais características de legitimação. Nas

suas versões da história procuravam demonstrar que historicamente o catolicismo

241

A PALAVRA. ―Os inimigos da Igreja‖. Belém, 22/09/1938.

143

era o único coerente, e o protestantismo era um movimento falho desde sua gênese,

ombreado à falibilidade de seu próprio ―fundador‖. Desqualificar Lutero, bestializá-lo

e demonizá-lo era uma forma de usá-lo como um elemento simbólico de

desqualificação do movimento protestante. Um orgulhoso, ambicioso e mentiroso

que protagonizou um ―movimento bestial‖.

Provavelmente a figura de Lutero era pouco conhecida na cidade, não fazia

parte do imaginário popular. Especialmente pela maioria de católicos frente a um

diminuto número de protestantes. Mas acreditamos que o jornal tinha um público

minoritário e letrado, que podia consumir o jornal e entender a sua mensagem.242

Era este mesmo universo que compunha grande parte dos protestantes históricos,

um público que consegue assimilar as abordagens históricas feitas pelo jornal com

relação à figura de Lutero.

Na obra ―Simulacro e poder‖, de Marilena Chauí, a autora fala de um

fenômeno midiático que ocorre atualmente. A espetacularização da mídia diante de

fatos concretos, mas que são distorcidos ou caricaturados para chamar a atenção do

público para quem a mídia se direciona. É como uma ―encenação da informação‖243.

No texto de Cox Barronas, a mídia vai mostrando um cotidiano de sentidos e

interpretações além do fato propriamente dito, segundo ―as ideologias dos grupos,

organizações e instituições que os veiculam‖.

Esse simulacro construído pela mídia é constantemente visto nas polêmicas

entre dois grupos antagônicos.

[...] no nível propriamente polêmico, subsume-se que a heterogeneidade, as dissensões, as oposições, as contovérsias são visíveis na superfície linguística. Um discurso envolvido em uma polêmica poderá se referir ao seu outro de forma clara, usando expressões variadas: agressivas, mal intencionadas, derrisórias, irônicas, intrigantes ameaçadoras, etc, mas todas essas expressões serão desferidas pelo Mesmo a partir de um simulacro do outro. A polêmica é uma espécie de homeopatia pervertida: Ela introduz o Outro em seu recinto para melhor

242

O número de analfabetos do país na primeira república variava entre 85% a 65%, como revela o Mapa do Analfabetismo do Brasil. O Pará permaneceu nessa média, em torno de 70%, segundo o Censo de 1906. BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP. Mapa do Analfabetismo no Brasil. Brasília, 2003. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/documents/186968/485745/Mapa+do+analfabetismo+no+Brasil/a53ac9e e-c0c0-4727-b216-035c65c45e1b?version=1.3>. BOMENY, Helena B. Quando os números confirmam impressões: desafios na educação brasileira. Rio de Janeiro: CPDOC, 2003. 243

CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Perseu Abramo, 2006, p.15.

144

conjurar sua ameaça, mas esse Outro só entra anulado enquanto tal, simulacro.244

Precisamos notar que os jornais, sejam católicos ou protestantes,

direcionavam suas mensagens a um nicho social específico. Para esse público, o

jornal católico está utilizando a figura de Lutero para corroborar a sua visão de

sentido diante de um público letrado, alfabetizado e que consegue entender uma

linguagem mais complexa, aprofundada e acadêmica. É importante refutar o

protestantismo em diversos pontos, incluindo uma abordagem histórica na qual a

figura de Lutero é capturada pelo jornal católico e transmitida aos seus leitores com

as nuances que os editores desejam. Independentemente da figura de Lutero estar

de fato presente na mentalidade social paraense ou não, a figura do líder protestante

é passada aos seus leitores a partir do simulacro midiático construído pela própria

imprensa católica. Assim como feito com outros símbolos protestantes, o jornal os

ressignifica, educando os seus leitores a considerarem o protestantismo como

herético e inimigo da verdadeira fé, a católica.

As expressões ―agressivas, mal-intencionadas, derrisórias, irônicas,

intrigantes e ameaçadoras‖ analisadas no artigo serão constantemente utilizadas

pelos veículos de imprensa para a desqualificação do outro, do antagônico. Será um

recurso utilizado tanto por católicos, quanto por protestantes. Trata-se de uma

construção retórica que viria a ser a mais recorrente para se criar um ambiente de

embate entre essas duas religiosidades, como perceberemos nas próximas matérias

a seguir.

3.1.2 Bíblia x Maria

Uma das características mais criticadas pelo jornal católico ―A Palavra‖ era o

uso da Bíblia pelos protestantes, além da própria Bíblia protestante em si. Não é à

toa que o jornal descreve os protestantes com apelidos depreciativos como

―biblistas‖, ―bibliolatras‖, ―seitas biblistas‖. A Bíblia sempre foi um elemento

significativo da fé protestante, escolhida pelo catolicismo vigente como um dos

pontos de ataque ao protestantismo.

244

BARRONAS, Roberto Leiser; COX, Maria Inês Pagliarini. Por uma vida melhor na mídia: discurso, aforização e polêmica. Linguagem em (Dis)curso. Tubarão - SC, v. 13, n. 1, p.65-93, jan./abr. 2013.

145

Uma matéria que nos chamou a atenção não tinha a assinatura de nenhum

autor, o que faz entender que o seu conteúdo era convergente com a opinião do

jornal. Intitulada como ―Bíblias protestantes em penca‖, e repetida em outras

diversas edições em que o jornal era veiculado:

Um grande despacho de livros em língua portuguesa acaba de ser despachado em língua portuguesa e acaba de ser recebido de Nova York. No Rio, pela agencia brasileira, da sociedade bíblica americana. São 72 caixas contendo 103.272 livros. Esse despacho feito pelo vapor ―Southein Cross‖, que entrou no porto ali, na quinta feira, do dia 19 corrente deste mez. Já sabem os catholicos o destino que devem dar as bíblias e demais livros heréticos: ao fogo todos, como fez Santa Catharina. Uma lição dão esses ―filhos do século‖ aos ―Filhos da luz‖: ―têm para o mal o fervor e ardor que os catholicos não tem para o bem‖.245

Provavelmente a matéria foi feita em algum jornal católico do Rio, mas o ―A

Palavra‖ não referenciou. É interessante notar o caráter instrutivo da matéria, que

procura instigar seus leitores a praticar uma ação de destruição às bíblias que

chegavam, queimando-as. Uma atitude legitimada pela matéria não apenas pelo seu

ordenamento, mas ao por uma santa como um exemplo de referência para

concretizar este ato. Outro incentivo do autor à queima de bíblias protestantes é

através da frase final: ―têm para o mal o fervor e ardor que os catholicos não tem

para o bem‖, referindo-se a uma crítica do autor com uma certa passividade dos

católicos em não fazer o ―bem‖, que, nesse caso específico, se refere a queimar as

bíblias protestantes.246 Há um incentivo a destruição física de um artefato que seria

um dos principais elementos da fé protestante. O jornal não apenas legitima, mas

classifica a ação como ―boa‖ e até mesmo ―santa‖. A Igreja Católica era retratada

pelo jornal como a guardiã da ortodoxia cristã. Destruir elementos escritos do

protestantismo seria, portanto, legítimo e santo justamente pelo protestantismo ser

herético, contrário à verdadeira ortodoxia que o catolicismo representava.

Todavia, vale ressaltar que, mesmo percebendo no jornal matérias com um

conteúdo semelhante à mensagem que acabamos de analisar, não era comum

245

A PALAVRA. ―Bíblias protestantes em penca‖. Belém, 08/03/1931. 246

Vale ressaltar aqui que a Bíblia Sagrada também era um artefato religioso relevante para os católicos, mas a diferença entre as bíblias protestantes e católicas está nos números a mais de livros que a segunda possui: Tobias, Judite, I Macabeus, II Macabeus, Baruque, Sabedoria e Eclesiástico. Todos presentes no antigo testamento. Essa diferenciação era utilizada como mais um elemento retórico para deslegitimar a sacralidade da bíblia protestante.

146

encontrar matérias incentivando a destruição física de bíblias protestantes. O mais

comum era um discurso de desqualificação da forma como os protestantes

utilizavam a Bíblia, como percebemos em uma coluna fixa publicada pelo jornal

chamada ―A bíblia! Só a bíblia‖, redigida pelo Padre Salvador Tracalori:

Diz o Apostolo Paulo que tudo o que está nos livros santos foi escripto para nossa instrução. Os protestantes admitem esse papel instructivo da sagrada escriptura; exageram no porém, na hora de rejeitar a egreja.‖a bíblia e só a bíblia‖ gritam! ―A bíblia é só um código em que se acha depositada toda a revelação divina. É suficiente em si mesma‖ [...] Mas, respondo eu, se a bíblia é um código completo, deve haver uma autoridade competente que o explique e aplique, e qual seria essa autoridade? Os protestantes fiam se na interpretação individual do leitor, illuminado directamente, dizem, pelo Espírito Santo.247

Padre Tracalori prossegue:

Se a interpretação de cada leitor é legitima e verdadeira, porque é que os protestantes, em vez de darem todos a mesma interpretação, dão muitas contradictórias? Uma sendo verdadeira, as outras hão de ser falsas, pois a verdade é uma só. Assim diz o simples bom senso. Mas o bom senso não é coisa que sympatizam os biblistas: Divorciam-se delle desde o momento em que renegaram o catholicismo. [...] O caso de Luthero é comum a todos os protestantes, maníacos leitores da bíblia abandonada ao capricho da interpretação individual, com mais ou menos ma fé, ignorância ou presumpção. Chegam ao ponto de não se entenderem mais entre si e nem consigo: e cada qual puxando a bíblia para seu lado, em nome do Espírito Santo, julga-se autorizado a puxar sua igrejola: e as taes egrejolas, ou seitas, nascem, e morrem, e multiplicam ao infinito. [...] O protestantismo parece-se com um vasto hospital de doidos, metidos a interpretes da bíblia.248

Nessa coluna já notamos um tipo diferente de acusação. Dessa vez,

refutando a forma como os protestantes usam a Bíblia. Especialmente a legitimidade

dada ao protestantismo, em que cada fiel poderia ter acesso à Bíblia e autoridade

para interpretá-la, dando poder ao leigo como intérprete das escrituras sagradas.

A mensagem que o autor quer passar é que a única instituição que tem

autoridade para interpretar a Bíblia é a Igreja Católica. O texto argumenta suas

247

A PALAVRA. ―A bíblia! Só a bíblia‖. Belém, 14/09/1922. 248

A PALAVRA. ―A bíblia! Só a bíblia‖. Belém, 28/09/1922.

147

possíveis legitimações para tal: apenas a Igreja Católica dialoga com a tradição

teológica da Igreja. O protestantismo peca por não considerar a autoridade e

tradição teológica na interpretação, se desfazendo dela e por isso se contradizendo

em suas doutrinas, chegando ao nível da loucura. A Igreja Católica seria, segundo

esse pensamento, uma instituição religiosa coesa, que mantém a decência porque

respeita uma hierarquia de autoridade, mantém a sua unidade e sua constância, já

que existe há séculos e quer continuar numa linha teológica de tradição que

corrobora como a chave interpretativa da Bíblia.

Assim, o texto procura constantemente defender a legitimidade do sacerdote

católico em ser a principal autoridade interpretativa dos textos bíblicos, contrastando

com uma outra crença que empoderava o leigo a tal ponto de permitir a ele uma

interpretação livre da Bíblia, que poderia até mesmo contradizer ou construir um

argumento de superioridade em relação ao do sacerdote católico caso o sacerdote

concluísse algo contraditório no discurso clerical comparado com o que se lia nas

escrituras.

Essa retaliação de católicos com a Bíblia era assunto constante nas

discussões entre católicos e protestantes na primeira república. O pastor Metodista

Justus Nelson já chamava a atenção desse fato em seu jornal O Apologista Christão

Brazileiro, como podemos ver na matéria ―Bíblias Falsas‖:

No domingo, o Diário do Gram-Pará honrou-nos com a sua atenção por tempo suficiente para reconhecer o facto de que a igreja romana manda queimar bíblias. Eis a confissão: ―cremos finalmente que a verdade inteira é a seguinte, a igreja manda queimar bíblias falsas‖ Para justificar esse procedimento diz ―assim, a pouco tempo, o governo inglez se oppoz à publicação de um livro que sò podia fazer estragos a sociedade e nenhum bem‖. Mas o Gram-para, esqueceu-se de dizer que este livro foi a tradução em latim empregado constantemente nos estudos dos padrecos, e consiste principalmente de instrucções para os confessores e perguntas indecentes que eles deveriam fazer aos penintentes no confessionário, o collega deve contar não ―meias verdades‖ mas ―a verdade inteira‖. Mas, quanto a acusação, ou antes, insinuação que os protestantes espalham ―bíblias falsas‖ diremos que é uma falsidade, quem o escreveu deve saber que é uma falsidade. E para provar que é uma falsidade, ao colega ou a qualquer outro membro da igreja romana, desafiamos a provar a falsificação de um só texto das bíblias que os protestantes espalhão, comparando-as com o original grego do novo testamento e o original hebraico do velho testamento. Por falsificação entendemos modificação essencial do sentido da passagem de

148

maneira que se faz conflicto com o sentido da passagem no original. E, demais, se o fim do seu jornal ―é muito outro‖, como assevera o colega do órgão clerical desta capital, offerecemos as nossas columnas a qualquer membro da igreja romana que de boa-fé e livre das descomposturas pessoaes quiser aceitar este nosso desafio. Promettemos publicar por inteiro os artigos de quem o acceitar e, quando for possível, no mesmo numero do jornal em que vai a resposta. Agora, provae que são falsas as nossas bíblias ou confessae que falsa é a acusação.249

Por certo, nesta matéria, o pastor metodista estava respondendo a outra

matéria, publicada por um jornal da grande imprensa que circulava no período, o

Diário do Grão-Pará, retaliando a declaração dos católicos a respeito da queima de

―bíblias falsas‖ dos protestantes.

Não temos a matéria do Diário do Grão-Pará publicada nesse período para

analisarmos na íntegra, porém, pela forma como o jornal católico ―A Palavra‖ se

referia à bíblia protestante, deduzimos que se trata de um questionamento católico

sobre o uso da bíblia e a veracidade da bíblia protestante, constantemente acusada

de ser uma bíblia herética, falsa e que deveria ser queimada. Justus Nelson procura

defender a veracidade da bíblia protestante de forma enérgica, numa espécie de

contragolpe; um discurso forte de defesa do livro que é considerado um pilar da sua

fé, além de procurar demonstrar que a falsidade vem da outra bíblia, dizendo que o

que é falso não é a bíblia, mas a Igreja Católica enquanto instituição.

Além disso, há algo importante de se reconhecer nas entrelinhas do texto. O

descaso com o clero católico. O uso de nomes jocosos como ―padrecos‖, a suspeita

que havia dos padres fazerem ―perguntas indecentes‖ no confessionário aos fiéis.

Sua descrição debochada ao clero católico procura causar um efeito de

desqualificação de autoridade do catolicismo. É um ataque direto a simbologia da

autoridade que o catolicismo tanto preza. Esse elemento discursivo é

constantemente utilizado pelo pastor metodista.

Aparentemente, a resposta dada a Justus Nelson não foi a partir do tema

que ele gostaria, segundo o pastor, ele só obteve uma resposta da igreja sobre seu

desafio, e a publicou em seu jornal:

O sr J.H.N. quer dizer, o methodista Justus Nelson pretende nos envolver em tal questão de bíblias falsas e bíblias verdadeiras, comparações do texto, etc. ―não nos sobra tempo

249

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―Bíblias falsas‖. Belém, 01/02/1890.

149

para este extemporâneo trabalho‖ ―E o caso, o sr Justus Nelson, levado demais pelo fanatismo, foi uma noite durante o Mez de Maria, à igreja do Carmo, e no vestíbulo do templo começou a entregar as famílias, que entravam uns pamphletos indecentes contra o culto de devoção a Maria Santissima. As famílias que tinham recebido na porta da igreja, na boa fé, aquelles panfletos, apenas reconheceram o seu engano e começaram a rasgal-os, visto como a grandeza dessa devoção eram ali atacadas baixamente. ――A igreja, ao final do findar-se do seu acto religioso estava alastrada dos destroços do repelente pamphleto‖ ―Portanto é claro que os fieis da Igreja de Roma não precisam de ordem para queimar ou rasgar livros falsos e inconvenientes. Elles sabem o que lhes convem e o que não lhes convem‖ ―que o sr Justus nos conteste o facto si puder‖.250

Não houve uma resposta direta ao questionamento de Justus Nelson quanto

à acusação feita por parte da liderança católica em relação ao uso de bíblias falsas,

assim como não houve a exposição dos equívocos da bíblia protestante, como o

pastor metodista os havia desafiado. Porém, nota-se aqui uma troca de acusações.

Justus Nelson é acusado de entregar panfletos que refutavam o culto de devoção à

Maria, em um período importante para o culto mariano e bem em frente a uma Igreja

Católica.

A recusa da liderança católica de responder Justus Nelson é oferecida em

um tom de desprezo, seja pelo desafio do pastor metodista ou até pelo próprio

protestante, pois além de dizer que ―não sobra tempo para tal trabalho‖, no decorrer

do texto, Justus Nelson é retratado como um ―fanático‖. Mais uma vez, um

argumento católico que desenha os protestantes como uma ―seita de fanáticos‖

diante de uma Igreja Católica que supostamente possuí senso e racionalidade de

instruir acerca do certo e do errado, do bem e do mal.

A resposta do articulista à Justus Nelson diz que, após perceberem o que

tratavam os panfletos que lhes haviam sido entregues, os fiéis católicos tomaram a

iniciativa de rasgar as peças, já que entendiam claramente sobre ―livros falsos e

inconvenientes‖.

O articulista ergue os fieis católicos à categoria de autônomos, capazes de

avaliar a literatura boa e a ruim e selecioná-las por conta própria. O ato do católico

rasgar livros e bíblias protestantes é de certa forma afirmado pelo autor como algo

que ocorre, e é visto inclusive como correto pela igreja. O fiel católico teria, segundo

250

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―Bíblias falsas‖. Belém, 01/02/1890.

150

o jornal, entendimento para perceber ―o que convém e o que não convém‖,

retratando os fieis católicos como autônomos e suficientes para diferenciar o certo e

o errado, a verdade e a mentira, o ortodoxo e o herético.

Justus Nelson, após citar a resposta do articulista do Grão-Pará, procura,

nos parágrafos seguintes, refutar a resposta do autor:

Citamos estes paragraphos somente para apontar os dous erros mais salientes. O escriptor delles é o mesmo padre que na ocasião da distribuição dos pampheletos occupou o púlpito poucos momentos depois, e levando ao púlpito um dos folhetos rasgou-o a vista do auditório e mandou que os ouvintes fizessem o mesmo, segundo nos contarão testemunhas oculares. Uma das devotas obdecerão o mandato do padre, mas muitos também guardarão os folhetos para examina-los depois e ainda outros muitos vierão pedir-nos exemplares para o mesmo fim. Portanto se vê que nessa ocasião o reverendo collega achava necessário mandar rasgar os folhetos. A ―ordem‖ é justamente o que os ―fieis da igreja de Roma‖ precisam para saber ―o que lhes convem e o que não lhes convem.‖ Os ditos ―fieis‖ não tem o direito de examinar e estudar. E o collega quer fazer nos crer que nos cinco ou dez minutos que passarão entre a distribuição de folhetos e o seu rasgamento, que essa gente, a maior parte da qual não sabia ler, tinha examinado esse folheto de dezoito paginas sufficientemente para saber se lhes convinha ou não? Outro erro na contagem da historia feita pelo rev. Collega é a accusação de aerem (sic) indecentes os ditos folhetos. Ainda temos uns poucos exemplares dos mesmos folhetos. Enviamos um exemplar ao reverendo agora, sabendo que já rasgou um exemplar que recebeu a sete anos; e desafiamos a elle a apontar uma só palavra, ou uma só alusão do dito folheto que seja ―indecente‖ e incapaz. O nosso desafio para provar a sua falsa accusação a respeito das bíblias, o collega não aceitou-o, dessa maneira confessando que é falsa a sua accusação. Agora, prove a accusação de serem ―indecentes‖ os folhetos ou confesse o reverendo que mentiu.251

A partir de matérias como essa, podemos tatear a defesa dos protestantes

sobre as críticas do catolicismo. Justus Nelson aponta o domínio do clero diante das

ações dos fiéis católicos, que são manobrados pelos padres, direcionados por eles

sobre os livros que ―convém e não convém‖, e ainda que são estimulados a destruir

a literatura que ―não convêm‖, não dando ao católico a autonomia própria para

decidir sobre o que ler e o que acreditar. Mais uma vez notamos aqui um conflituoso

embate entre católicos e protestantes que se dá entre a autonomia do leigo

251

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―Bíblias falsas‖. Belém, 01/02/1890.

151

defendida pelo protestantismo, e a autoridade da Igreja, representada pelo clero,

como afirma o catolicismo; segundo o jornal, o padre é o manipulador, o

direcionador da fé do leigo, aquele que suprime a liberdade de crença e a autonomia

para decidir o que é certo e o que é errado.

A Bíblia, sendo defendida ou atacada, é um elemento central na fé cristã, e

especialmente a protestante. É através dela que o protestante retoma a sua regra de

fé e a pratica. É por meio do seu, em a interpretação de um sacerdote, que a

autonomia do leigo era defendida pelo protestantismo. Atacar a Bíblia, seja através

de sua veracidade ou de seu uso era atacar o maior símbolo religioso do

protestantismo e a autonomia do leigo, antagônica à ideia católica da igreja como

principal norteadora e instrutora da fé de seus fiéis.

Acreditamos que os ataques e as defesa do uso da Bíblia se davam em

torno desses valores. Defender e tentar destruir tais pontos era tocar em dogmas

que serviam como pilares de sustentação das duas vertentes cristãs.

Todavia, pela própria matéria de Justus Nelson e pela análise da literatura

protestante, notamos que se a Bíblia era um objeto de ataque pelos católicos, os

protestantes também tinham suas refutações ao catolicismo, baseados também em

questões específicas. Uma delas era com relação a uma prática muito cara ao

catolicismo, especialmente à religiosidade católica paraense, a devoção mariana. Na

maior parte dos veículos de imprensa protestante que analisamos, o assunto da

devoção mariana pelos católicos vinha à tona, seja a crítica feita aos fiéis ou feita

diretamente ao clero.

A matéria ―Marianismo‖ do jornal presbiteriano ―Norte Evangélico‖ mostra

exatamente as críticas comuns que ocorriam diante dessa prática religiosa:

[...] cada dia mais nos convencemos que os padres e frades se permitem fortemente em mudar a religião christa para religião mariana. Quem se der o trabalho de percorrer as paginas da historia ecclesiastica notará admirado a transformação operada de seculo em seculo, cada vez mais accentuada, do Chistianismo em marianismo. Os papas e os concílios têm trabalhado com tal pericia na obra destructiva da religião do filho de Deus que os povos, destigitados pela ausência do clero, não sentem, não percebem que as verdades do evangelho vao pouco a pouco sendo substituídas pelos ensinos de invenção humana. [...] Tanto tem o clero trabalhado abolir o chistianismo primitivo para substitui-lo pelo marianismo, que, chegaram ao ponto de crearem o novo dogma da ―imaculada conceição de maria‖, em 8 de dezembro de 1854,

152

não obstante ser doutrina corrente da Sagrada Escriptura que o pecado alcançou todo o gênero humano, com a única excepção de Jesus, cuja conceição foi a única imaculada, por ser obra do Espirito Santo. E‘ assim que lemos Rom. Cap 5, v 12. ―Portanto, assim como por um homem entrou um peccado neste mundo, e pelo peccado a morte, assim também passou a morte a todos os homens, por um homem do qual todos pecaram‖.252

A matéria já começa com uma acusação: o clero católico procura, no

decorrer dos séculos, mudar a religião cristã para algo que no jornal é chamado de

―religião mariana‖. Maria é apresentada como uma mulher ―imaculada‖, sem

pecado. No decorrer da narrativa, notamos que o chamado ―marianismo‖ é visto

como uma prática antagônica à fé cristã, a ponto de ser considerada ―destrutiva‖

para o cristianismo.

Daí notamos algumas argumentações singulares, inicialmente a crença

protestante de pôr a Bíblia como regra de fé e prática, acima de outras questões que

são muito caras para os católicos – a tradição. Se a devoção mariana é justificada e

legitimada pelos católicos a partir das encíclicas, da autoridade papal e do clero

católico formado por padres e bispos, os protestantes se utilizam do conteúdo bíblico

como um contra argumento, considerando que se há uma contradição entre a

mensagem bíblica e a autoridade católica e sua tradição, o que diz na Bíblia deve

prevalecer. Com isso, a ideia de tradição como um legitimador da autoridade católica

é desconstruída no discurso protestante, no qual a Bíblia é um artefato religioso

cristão que pode ter informações contrárias até mesmo às tradições mantidas desde

séculos antes pelo catolicismo vigente, e o conteúdo bíblico possui mais validade

que a tradição vigente. As informações contidas ali são mais válidas que a tradição.

Notamos argumentações semelhantes no decorrer da matéria:

[...] Dahi as innumeras invocações de senhoras com denominações mais ou menos sympaticas, laços armados aos corações dos devotos, objectos do predomínio do clero. Dahi as padroeiras de localidades pequenas e grandes, de cidades e estados. E o povo que não se embaraça em examinar e procurar saber a razão de ser dessas invocações, desses patronados, que nada patrocinam e se deixam embahir pela astucia desses pervidos guias religiosos que, além de obstruírem o caminho que conduz a vida eterna, além de impedirem que o povo entre no reino de Deus, além de desviarem as almas de Chisto e sua salvação, se locupletam

252

NORTE EVANGÉLICO. ―Marianismo‖. Garanhuns, 16/09/1918.

153

com os seus haveres para a construccão de grandes e ricos conventos, para o estabelecimento de novos bispados e para dominarem no estado occupando as posições mais salientes na politica nacional. E‘ tempo portanto de despertar e de indagar porque mudaram os padres a antiga religião de Jesus Christo nesta nova religião que eleva Maria ao lugar que compete ao filho de Deus. E‘ tempo de cada um abrir a Sagrada Escriptura, fonte da religião e cotejar essas novas doutrinas que os padres andam a ensinar ao povo incauto, com as antigas doutrinas ensinadas por Christo e seus apóstolos.253

Vemos claramente uma tentativa de desqualificação do próprio clero católico

como autoridade religiosa, como pessoas que impedem os fiéis de conhecerem a

verdadeira fé cristã através da devoção mariana, considerada herética, e pelos seus

possíveis falsos testemunhos, que procuram construir conventos ricos e luxuosos e

adquirir poder na estrutura do Estado.

Essa representação do catolicismo afortunado e atrelado ao Estado, e que

engana fiéis com crenças populares, tem como antagônico a própria representação

que o protestantismo faz de si, no qual, para a libertação do povo, o jornal mostra

como necessária a leitura da sagrada escritura, a ―fonte da religião‖, que destruiria

todo esse sistema, não apenas herético, mas de poder construído pelo catolicismo

vigente. O protestantismo apresenta aqui a leitura da Bíblia como uma ação

libertadora do povo, não apenas para a salvação das almas a Cristo que o

catolicismo ―desvia‖ por meio do culto mariano, mas uma libertação de uma

exploração de fé baseada também em exploração financeira feita pelo catolicismo.

Assim como era costumeiro entre os protestantes, Justus Nelson também

constantemente fazia declarações sobre o dogma da Virgem Maria e as devoções

marianas, geralmente taxando tais práticas de ―idolatras‖. Nessa última matéria que

analisamos, Nelson se refere à devoção mariana pelo nome jocoso de ―matriolatria‖,

e diz que na catedral reformada se fariam ―cultos mariolátricos‖. E, sendo uma

prática religiosa constante, por mais que o pastor aponte haver um mês específico

onde se aumentam as práticas devocionais a Maria (o mês de maio), a devoção

mariana era uma prática contínua na região. Justus Nelson queria mostrar a

devoção mariana como uma idolatria recorrente no Pará.

253

NORTE EVANGÉLICO. ―Marianismo‖. Garanhuns, 16/09/1918.

154

Assim, recorrentemente, havia provocações as devoções marianas

presentes em Belém, como na matéria ―Idolatria‖, publicada no jornal do pastor

metodista:

Chegou a bonequinha, o ―Gram Pará‖ diz que já não é feia, que alegria para as beatas e para os jogadores de Nazareth. Chama-se Nossa Senhora de Narazeth, ou, por melhor dizer, assim será chamada depois de apanhar latim e agua benta amanhã na igreja de Santo Alexandre. Por ora ainda é só bonequinha. Depois das momices milagrosas do mon Senhor Jorge Gregório, a boneca tornar-se-ha milagrosa Mãe de Deus, Nossa Senhora de Nazareth-para o povo pelo menos [...] Responsabilizamos ao governador do bispado por toda a idolatria que o povo vae tributar aquela calunguisha [...] é o seu latim que a torna um verdadeiro fetisch para o povo. Não vale o clero declarar que não ensina idolatria e culto de imagens; pois é o seu benzimento que aos olhos do povo torna imagem o objeto de adoração que é ―Não pedimos ao referido padre para desistir d‘esse acto de idolatria e de fetischismo, porque sabemos que não seriam attendidos n‘esse sentido. Porém, em nome de nosso Deus omnipotente e de sua santa lei, protestando contra a reabertura dos diques para deixar correr esse diluvio de idolatria. Diz nosso Deus: ‗não farás para ti imagem de escultura, nem figura alguma de tudo que há em cima do céo, e do que embaixo da terra, nem de cousa que haja nas aguas embaixo da terra. Não as adoraras, nem lhes darás culto, porque eu sou o Senhor, teu céus‘ (Ex XZ 4..5). D. Antônio Macedo Costa, arcebispo da Bahia declara que este supracitado mandamento de Deus ‗increpa de idolatria‘ essa romaria que está anunciando para Domingo que vem, para transportar esse ídolo para o collegio do Amparo. Tende um medo salutar de Deus e do juízo final. J.H.N.‖.254

Um dos diferenciais de Justus Nelson, se comparado aos outros

protestantes que analisamos, é justamente o fato dele apontar casos locais,

ocorridos especifícamente no Pará, para fomentar suas querelas contra os católicos.

De um jeito jocoso e debochado, Nelson chama a devoção mariana, representada

na região pela ―virgem de Nazaré‖, como ―bonequinha‖ e ―calunguicha‖, dando ares

depreciativos à imagem da Virgem.

Contudo, para além da depreciação, Justus Nelson aponta toda a dinâmica

religiosa que envolve o marianismo na região dizendo que o valor simbólico dado

para a imagem é o benzer do clero. Segundo ele, no momento que o bispo católico

―unge‖ a imagem ela passa a ser reconhecida pelo povo como ―Mãe de Deus‖ e

254

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―Idolatria‖. Belém, 21/06/1890.

155

―Nossa Senhora de Nazaré‖. Nelson culpa todo o clero católico local por promover o

que os protestantes chamavam de idolatria, e para isso se utiliza de passagens

bíblicas e usa até as palavras do antigo bispo do Pará, no período imperial, Dom

Macedo Costa, como argumentação contrária ao rito feito à imagem de Nazaré.

Assim, o pastor não acusa apenas a prática devocional à Virgem de Nazaré como

idólatra, mas todo o clero de estar envolvido no estímulo ao povo de praticar

idolatria, já que eles estavam cientes de tratar-se apenas de uma imagem, uma

prática condenável, e ainda assim continuavam a executá-la.

Na matéria ―A festa de Nazareth‖, Justus Nelson responde ao jornal ―Gram

Pará‖ pela crítica às festividades que acompanhavam o Círio de Nazaré no mês de

outubro, afirmando que essas festividades estimulavam os ―vícios‖ e os ―crimes‖:

O ―Gram Pará‖ acha inconveniência na nossa crítica, porque, entre outros motivos, criticamos ao clero que contribue com sua influencia para tornar popular a festa, e que aos vergonhosos vícios e crimes da festa não se oppõem, porque lhes rende uma somma avultada. [...] A festa de Nazareth é sustentada principalmente por jogadores que ahi roubam este povo de uma maneira espantosa e altamente criminosa. Quem mais lucro tira da festa são os jogadores e os padres. [...] por causa d‘essa sociedade e esses interesses mútuos, o púlpito de Nazareth guarda um interesse tumular a respeito do jogo da festa. Há poucos anos o clero paraense entendeu não ter parte na festa por essa vez, qual o motivo? Não por ser imoral essa combinação, mas sim uma questãozinha lá com a irmandade de Nazareth, a respeito das sociedades secretas. Dão se bem com os jogadores, porém, com os maçons nunca, senão quando convem. Comtudo, essa pequena escaramuça deu ensejo para o clero paraense expor a sua opinião da festa de Nazareth. [...] Porque? Porque a festa é uma passeata chamada Cyrio, e aquilo do largo e nada mais. De facto, a festa de Nazareth sempre foi um accesorio insignificante. Pouca gente s‘importava da Ermida, nem do qué já se passava. As dissipações, os jogos, os deboches do largo eram tudo. A imagem da santíssima virgem era apenas um chamariz para o povo: sua devoção, mero pretexto para chamar gente honesta àquiella feita nocturna e cheia de mil perigos. Portanto, temos razão de dizer que a festa de Nazareth, como vai fazer-se, é uma solemne mystificação, um laço armado a boa fé e simplicidade dos devotos da immaculada virgem.255

A depreciação do clero como uma classe corrupta e racionalmente herética

continua a ser propagandeada pelo jornal. O principal argumento do pastor é que o

255

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―A festa de Nazareh‖. Belém, 27/10/1890.

156

clero tinha total consciência de que as práticas do catolicismo local eram contrárias à

fé cristã, incluindo o próprio catolicismo. Era uma forma de continuar desqualificando

a autoridade católica local com fatos concretos que ocorriam na localidade. Apontar

a festividade do Círio de Nazaré como uma festividade lucrativa para a igreja,

estando eles cientes dos possíveis vícios, crimes e jogos de azar ali realizados.

Ao continuarmos na análise de fontes, notamos que Justus Nelson

permaneceu em sua militância contrária à devoção mariana, como exemplo vamos

retornar ao artigo ―as bíblias falsas‖ publicado em 1893, que analisamos no começo

do capítulo, em que se notam os trechos do jornal ―A semana religiosa‖ publicados

no ―O Apologista Christão Brazileiro‖:

E‘ o caso, O sr Justus Nelson, levado demais pelo fanatismo, foi uma noite durante o Mez de Maria, à igreja do Carmo, e no vestíbulo do templo começou a entregar as famílias, que entravam uns pamphletos indecentes contra o culto de devoção a Maria Santissima.As famílias que tinham recebido na porta da igreja, na boa fé, aquelles panfletos, apenas reconheceram o seu engano e começaram a rasgal-os, visto como a grandeza dessa devoção eram ali atacadas baixamente. ―A igreja, ao final do findar-se do seu acto religioso estava alastrada dos destroços do repelente pamphleto. Portanto é claro que os fieis da Igreja de Roma não precisam de ordem para queimar ou rasgar livros falsos e inconvenientes. Elles sabem o que lhes convem e o que não lhes convem‖ que o sr Justus nos conteste o facto si puder.256

Nelson responde essa acusação afirmando que os fiéis católicos rasgaram

os folhetos por mando do padre, e não por terem eles próprios averiguado se o

conteúdo fazia sentido ou não. Assim como, segundo o pastor, alguns fiéis

guardaram os folhetos para examiná-los futuramente e outros até pediram folhetos

ao pastor. Lembremos que esse fato que estava sendo discutido nesses jornais,

ocorreram 7 anos antes da discussão, em 1886, ainda no período imperial.

Independentemente da versão mais coerente dos fatos, há aqui mais um

exemplo da ação de Justus Nelson em propagar a sua fé e sua contrariedade com

relação à devoção mariana da região, a ponto de ir defronte a uma igreja católica

distribuir folhetos que refutavam o culto católico de devoção à Maria. Pelo jornal ―O

Apologista Christão Brazileiro‖ esses acontecimentos se referiam a episódio ocorrido

7 anos antes, o que mostra que havia anos o pastor vinha travando essa batalha

256

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―As Bíblias falsas‖. Belém, 1893.

157

contra a devoção mariana local, uma batalha enérgica, agressiva e que chegava ao

limiar da entrada do espaço de culto católico para afrontar o catolicismo vigente.

Justus Nelson faz diversos discursos e narrativas, incluindo até mesmo a do

bispo Dom Macedo Costa, para assim construir sua narrativa de desqualificação da

devoção mariana local. Tece críticas negativas ao clero, as festividades e à própria

devoção mariana em si, taxando-a como idólatra, sempre de maneira taxativa,

jocosa e irônica. O pastor metodista constantemente abordava esses assuntos a

partir da conjuntura local, e construía a sua narrativa do seu universo in loco,

presente em Belém do Pará. Como vimos, a devoção mariana era bem presente e

fervorosa na cidade, destratá-la e desacatá-la era enfrentar um ponto nevrálgico da

religiosidade local. A forma como Justus Nelson se pronunciava diante do

catolicismo vigente em Belém, a partir das fontes que vimos, é importante para

entendermos que as tensões entre ele e os católicos se aprofundava desde o início

de seu ministério na cidade, especialmente em relação ao seu posicionamento

perante a expressão religiosa mais característica do catolicismo paraense, a

devoção mariana.

Detalharemos essa oposição à devoção Mariana de Justus Nelson ainda

neste capítulo. Mas, por hora, notamos o quanto o simbolismo da figura de Maria é

importante para a argumentação contrária ao catolicismo feita pelos protestantes,

justamente pelo peso que ela tem como simbologia do imaginário católico,

especialmente o catolicismo local. Também percebemos que católicos e

protestantes não tratavam apenas seus dogmas, mas as aplicações deles em sua

localidade, seus líderes e suas estigmatizações da liderança local.

3.1.3 “Ignorantes e tolos”: o embate entre as lideranças religiosas locais

O jornal católico A Palavra, em algumas de suas matérias, mostrava a ação

de alguns protestantes na cidade. Geralmente, eram matérias assinadas pelo padre

Dubois, principal articulista e editor chefe do jornal.

Em colunas como ―cartas a um jovem moço‖, padre Dubois procurava refutar

o protestantismo como fazia em suas outras matérias no jornal. Mas, dessa vez, com

uma estética textual diferenciada. Escrevia como se trocasse correspondências com

um jovem, um rapaz ansioso por aprender que lhe dirigia perguntas e a quem ele

orientava. Dubois responde às perguntas do tal ―moço‖ esclarecendo suas dúvidas.

158

Sem dúvida um excelente expediente estilístico, ainda que de verossimilhança

questionável, no qual Dubois pode se autorrepresentar como uma liderança sábia,

um mestre experiente que instruí os moços; enfim, uma autoridade religiosa

legitimada para instrução e discipulado de seus leitores.

Destacamos uma matéria desta coluna em que Dubois comenta sobre a

possibilidade do ―moço‖ fazer uma pesquisa sobre a quantidade de protestantes no

país, e discorrer sobre o seu possível crescimento. Em resposta, o padre retrata as

dificuldades de se fazer este ―censo‖. Primeiro, por se duvidar desse suposto

aumento dos protestantes que seu amigo afirmaria ocorrer. Dubois garantia que

muitos membros do protestantismo haviam aderido à causa por conseguirem

facilidades financeiras, ou apenas por comprarem a Bíblia de um protestante. No

decorrer da matéria, ele dá o exemplo do que ocorria em Belém: ―[...] aqui em

Belém, local onde posso estar a par do movimento, o protestantismo se recruta na

gentinha ignorante, e está muito dividida entre si‖257. E continua: ―[...] as demais

egrejolas não suportam a seita pentecostal que é, apesar dos pesares, a que mais

se expande no meio dos tolos e dos grulhas‖. Continuando a discorrer da

desqualificação do movimento protestante em sua localidade, taxando os que

aderem ao protestantismo de ―ignorantes‖ e ―tolos‖, com especial ênfase aos que

aderem ao movimento pentecostal.

O protestantismo é mostrado como uma religião de ―gentinha ignorante‖, que

constantemente ―se divide‖, e atrai apenas ―ignorantes e tolos‖. Dubois aqui se

diferencia, mostrando que é uma referência de sabedoria e que contrasta com a

―ignorância protestante‖, e que é qualificado para direcionar seus leitores a escapar

da ignorância e da tolice como os que já caíram no ―engodo‖ representado pelo

protestantismo. O catolicismo é representado como uma fé de sabedoria, por conter

em si os verdadeiros dogmas cristãos, a virtude da unidade das diferentes ordens e

a liderança religiosa católica como a mais capacitada a instruir os moços em suas

práticas de fé.

Em seu livro ―O biblismo‖ padre Dubois se utiliza de exemplos locais sobre

como o homem simples que comprava a Bíblia, na maior parte dos casos, não a lia

como os protestantes supostamente visionavam.

257

A PALAVRA. ―Cartas a um jovem moço‖. Belém, 27/07/1922.

159

Para darmos um exemplo local, nesta leal cidade de Belém do Grão-Pará, nas vizinhanças do Ver-o-Peso e da Villa Têta, logradouros essencialmente populares, os mercadores bíblicos oferecem sua mercadoria aos canoeiros, bruxeiros e peixeiros, os quais, satisfeitos por possuírem um bem encadernado livro, voltam ao sítio, a roça, ou a barraquinha, onde a edição anglo-americana irá dormir o sono do justo no baú ancestral, perto do dente de jacaré ou da banha de anta, entre o ramilete de alfazema e o santo Antonio pequenino, ao lado da garrafa de água benta ou do vidro de Maravilha até que as traças venham, com seu trabalho perfurante, pertubar a dormidela do inocente volume.258

A Bíblia, para muitos desses homens populares paraenses, era considerada

como mais um artefato mágico entre os diversos outros que eles tinham, como

garrafas de água benta, imagens do Santo Antônio, dentes de jacaré... Segundo

Dubois, a Bíblia seria apenas um elemento a mais para a crença católica popular

paraense, não representando de fato uma conversão ao protestantismo.

O cenário descrito por Dubois, usando a região do Pará onde vivia como

referência, serve para entender como era o universo protestante na visão dele, onde

muitos não fariam o usufruto da Bíblia de saída porque ―não sabiam ler, não

compreendiam a linguagem ou não se interessariam pela leitura‖259. Já analisamos

a dificuldade que o protestante tinha de expandir sua fé letrada num cenário de

maioria analfabeta. Dubois reafirma esse cenário religioso local e se utiliza dessa

mazela para demonstrar que aqueles que se tornavam protestantes eram ―não

praticantes‖, ―ignorantes‖ e ―tolos‖. Notamos no livro uma afirmação que, para nós, é

essencial para que se entenda a narrativa do padre: ―A bíblia na mão do leigo, sem

alguém que a explique, é como o primeiro livro de leitura na mão do alumno sem o

mestre-escola, é uma obra inútil, quando não prejudicial.‖260 O cenário do

protestantismo em Belém do Pará para Dubois reforça o que seria para ele a falha

do protestantismo – a qual o catolicismo poderia suprir: o leigo paraense não tem

condições de entender o conteúdo bíblico por si só justamente por ser ignorante e

analfabeto, faz-se necessário que haja um sacerdote preparado para instruí-lo. Um

sacerdote referencial. Um sacerdote, claro, católico.

258

DUBOIS, Pe. Florencio. O Biblismo. Rio de Janeiro, 1921. 259

GOUDINHO, Liliane Cavalcante. A palavra que vivifica e salva contra o mal da palavra que mata: imprensa católica em Belém (1910-1930). Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2014, p.160. 260

DUBOIS, op. cit., p.19.

160

As lideranças católicas são desenhadas como as autoridades necessárias e

capacitadas para instruir o fiel paraense na sua prática de fé, incluindo até mesmo

no seu usufruto da Bíblia. Excluir o sacerdote católico da instrução do fiel faz com

que ele se utilize da Bíblia como um amuleto, um artefato mágico diante de um

universo de outros tantos das crenças locais. O argumento do catolicismo como

sendo uma ―autoridade instruída‖ para conduzir ―o popular paraense analfabeto e

ignorante‖ é mais um ataque à doutrina protestante acerca de sua defesa da

autonomia religiosa do leigo. Só as lideranças católicas seriam capazes de pegar

pela mão o leigo e conduzi-lo no caminho de compreender as Sagradas Escrituras.

Além de fazer críticas ao protestantismo local, também fazia críticas

específicas a lideranças significativas do protestantismo na cidade. Um dos seus

desafetos mais recorrentes era o pastor presbiteriano Antônio Teixeira Gueiros, o

difusor do jornal ―Norte Evangélico‖ em Belém, e que também conseguia espaço

para publicar na grande imprensa. Dubois escreveu no jornal ―A Palavra‖ uma

resposta a um artigo de Gueiros no qual ele mencionava ícones do catolicismo,

como Agostinho de Hipona, a igreja primitiva e o próprio Jesus Cristo como

propagadores de uma religiosidade semelhante ao protestantismo. Dubois refuta

fortemente essas premissas, em matérias como ―Mestre Gueiros, pai de uma nova

seita protestante denominada ‗Os imaginários‘‖:

Contemos a história de sua origem, que é instrutiva e interessantíssima. Mestre Gueiros, acaba de affirmar pelos jornaes que o primeiro protestante foi o Nosso Senhor Jesus Christo. Dahi a existência de dois protestantismos; um imaginado por mestre Gueiros, outro consta na história; este apareceu como apostasia de Luthero. [...] no protestantismo do século dezesseis acabou se toda a subordinação. No protestantismo anterior ao século dezesseis não se professava o falso principio do ―livre exame‖, não se considerava como única regra de fé e pratica a escriptura, não se afirmava que na salvação bastava a fé sem obras. No protestantismo do século dezesseis é tudo o contrario. [...] Nestas alturas, das duas uma; ou mestre Gueiros se abraça com o Christo catholico, o que infelizmente não quer, ou continua onde está, apegado ao seu Christo protestante. [...] Gueiros nem se quer chega a ser um dos muitos galhos da arvore do protestantismo, mas um parasita, ou melhor, um protestante imaginário fundador da seita que se dá pelo nome de ―os imaginários‖.261

261

A PALAVRA. ―Mestre Gueiros, pai de uma nova seita protestante denominada ‗Os imaginários‘‖. Belém, 15/11/1931.

161

Não temos as matérias escritas pelo Gueiros para nos aprofundarmos no

que ele realmente disse, o que sabemos é que a matéria foi publicada em um jornal

da grande imprensa do estado do Pará, visto que não encontramos nenhum escrito

dele no jornal Norte Evangélico no ano em que a matéria foi publicada discorrendo

acerca do tema. Pela afirmação de Dubois, nota-se que Gueiros tinha seu espaço de

publicação na grande imprensa. Não vimos tais espaços ocupados por outros

protestantes locais nesse período, o que dá a Gueiros um diferencial nesse ponto,

justificando também a preocupação do jornal ―A Palavra‖ de se utilizar de seu

espaço para constantemente atacá-lo.

A matéria ironiza e zomba a afirmação de Gueiros, em especial quando ele

diz que Jesus Cristo seria considerado o primeiro protestante. A matéria de Dubois

em resposta àquela se utiliza da ideia da tradição para mostrar que o catolicismo

está mais ligado aos ideais de Cristo do que a ―ruptura‖ protestante no século XVI. O

tema do ―livre exame‖ é mais uma vez trazido à tona, assim como a ideia da Igreja

Católica como religião que preserva a tradição cristã. Há uma distinção de dois

cristos, e de dois cristianismos. O cristianismo do catolicismo, tido como verdadeiro;

e o de Gueiros como falso, herético e ―parasitário‖ até mesmo entre o próprio

protestantismo.

Gueiros insiste nessa linha, se utilizando de outros ícones da história cristã,

como Agostinho de Hipona. Gueiros publica o artigo ―Agostinho, tirando Luthero e

Calvino, foi talvez o maior protestante‖. Segundo Dubois, acerca da matéria em

questão, publicada no dia 29/11/1931, a própria história derruba tais afirmações do

pastor. Dubois diz que, nos tempos de Cristo e da igreja primitiva, havia o respeito à

autoridade, não havia a ―heresia do livre exame das escrituras‖, ou mesmo o debate

jocoso.

Gueiros havia discorrido na referida matéria sobre a história de Agostinho,

desde sua vida pregressa até a sua conversão ao catolicismo com 34 anos. Dubois,

sendo irônico, diz:

[...] Eis as duas phases da vida de Agostinho, na primeira até os trinta e quatro annos aparece-nos o Agostinho protestante proclamado pelo pastor Gueiros, aparece-nos o Africano com todos os seus vícios, incapaz de ser regenerado pela moral de Luthero e Calvino! Na Segunda é o Agostinho catholico, não só regenerado, mas transformado num Santo que se chama Santo

162

Agostinho. Fica mais uma vez provada a ma fé do pastor Gueiros [...]262

Há um estilo de retórica nas duas matérias que envolve, primeiramente,

contra-argumentação pelo nível histórico, na qual se defende a tradição católica e a

conecta a personagens e momentos históricos de grande significado para o

cristianismo, como Jesus Cristo, a igreja primitiva e Agostinho de Hipona, colocando-

os como parte única e exclusivamente da tradição do catolicismo. Gueiros entra em

um campo argumentativo da tradição e a lê com uma chave hermenêutica

protestante.

Logo da primeira página, vemos diversas críticas ao protestantismo. Em

meio às várias matérias, acima da página havia um trecho pequeno de uma

publicação do jornal da grande imprensa ―Folha do Norte‖, intitulada ―Epigramma‖:

Bem baratinho ao mestre Jesus Cristo Judas trocou por uns trinta dinheiros: Em bons dólares, mais caros que isso. Ao biblismo de Sam, Vendeu-se o senhor Gueiros. Vejam, depois, dos nomes a união feia! - a bem rimar, ó musa, tu me ajudas – Pensei em Judas – Gueiros me veio a ideia. Em Gueiros penso? Vem-me a mente Judas.

Com Antônio Teixeira Gueiros, o embate entre católicos e protestantes não

se limitava apenas à imprensa confessional, chegava também à grande imprensa,

ambiente que no período republicano era bem restrito à Igreja Católica,

especialmente o jornal ―Folha do Norte‖, o de maior publicação no estado. Padre

Dubois mantinha coluna semanal de grande prestígio ali, e era respeitado pelo

redator chefe, Paulo Maranhão. Eis que Antônio Gueiros conseguiu também um

espaço no periódico, espaço que, até então, na temática religião, era exclusivo de

Dubois.

O que se percebia era o intuito da maior parte dos veículos de imprensa

ligados total ou parcialmente a Igreja Católica para combater o protestantismo, seja

as ideias protestantes ou até mesmo a figura do próprio pastor como pessoa.

Os pastores protestantes eram constantemente acusados de serem

heréticos; mas, nesse caso, as acusações a Gueiros iam além. Ele era taxado de

―pastor vendido‖ à fé norte-americana. Não é mais apenas um herege, é também um

262

A PALAVRA. ―Mestre Gueiros, pai de uma nova seita protestante denominada ‗Os imaginários‘‖. Belém, 15/11/1931.

163

interesseiro, ombreado a Judas, o traidor de Jesus. Gueiros trai a ―verdadeira fé‖

representada pelo catolicismo e adere a uma religião estrangeira. Sobre essa

relação do protestantismo como uma religião do ―Tio Sam‖, trataremos melhor no

capítulo seguinte; por hora, falemos do ataque do catolicismo ao protestantismo

presbiteriano.

Por mais que não tenhamos tido acesso às matérias de Antônio Teixeira

Gueiros nos jornais da grande imprensa, notamos pelas suas matérias no jornal

―Norte Evangélico‖ que as polêmicas entre o padre Dubois e protestantes ocorriam

recorrentemente nesse período:

Um caso curioso que não nos deixou ferir a atenção dos que ultimamente foram ao Pará em presbyterio foi o silencio do sanhudo campeão de hostes romanas- Padre Dubois, vejam os leitores: Anno passado, após a reunião do presbytério em Caxias, durante a qual foi derrotado em polemica verbal com o padre Arias, que não obstante, mandou trombetar para fora uma sua victoria fantástica, teve o Padre Dubois a pachorra de se abalar do Pará para fazer trejeitos e momices em Caxias e S. Luiz. Agora, porém, o presbyterio reunido na sua casa, na sua arena de belluario pavoneado, annunciando, como o fez, na Folha do Norte diariamente, os trabalhos de referido presbyterio, padre Dubois, nada fez, nada disse, nada escreveu – não tugiu, nem mugiu- resignado a um silêncio de demasiado, de vencido! Curioso e significativo! Como se justifíca o silêncio de Padre Dubois, conhecidíssimo fazedor de arrengas?! Como se harmonizar esta atitude de hoje, com a de hontem em Caxias? Que se teria passado na alma do corifeu das hortes humanas?... Deixamos ao leitor a resposta a esta indagação, Elle que faça o seu juízo sobre Dubois e sua obra...Eu daqui apenas lembrarei que, no Pará, padre Dubois já foi derrotado apenas trez vezes pelos nossos: duas por Severino Silva e uma por Bezerra Lima. Como já dissemos, Dubois tinha espaço na grande imprensa, e em especial, no jornal ―Folha do Norte‖.263

Gueiros mostra padre Dubois como alguém que constantemente se envolve

em polêmicas com lideranças religiosas, sejam pastores evangélicos ou até mesmo

padres católicos; alguém que nas polêmicas com as quais se envolvia na própria

cidade perdia os debates para protestantes locais. Uma perda ―na sua própria casa‖.

A matéria o retrata como um padre que tem grande visibilidade na cidade de Belém

do Pará e no país, mas essas informações não são colocadas na matéria para

exaltá-lo, mas para desqualificá-lo ainda mais, um padre que cria polêmicas, perde

263

NORTE EVANGÉLICO. ―O trabalho no Pará‖. Garanhuns, 1923.

164

discussões para protestantes e que, inclusive, os teme. Está era uma forma de

desqualificá-lo como autoridade religiosa. Um padre local, mas de prestígio nacional,

que perde embates verbais para protestantes.

Dubois conseguia ocupar espaços na imprensa confessional católica e na

grande imprensa. Antônio Teixeira Gueiros, ao que notamos, foi o primeiro pastor

local do período republicano a se inserir no debate da grande imprensa. Era

evidente o quanto o pastor presbiteriano se diferenciava de outras lideranças locais

protestantes do período republicano em Belém. Por mais que, no geral, os

protestantes conseguissem articulações com pessoas influentes, os presbiterianos

conseguiram um espaço na grande imprensa maior que qualquer outra

denominação presente no período havia conseguido, disputando assim um espaço

até então exclusivo de lideranças católicas, e sofrendo as represálias do catolicismo

diante dessa ocupação de espaço.

O fato de Gueiros conseguir debater com Dubois se utilizando de espaços

na grande imprensa, ou entrando em terrenos argumentativos que, até então, só

eram utilizados pela liderança católica, como a tradição cristã, mostra uma liderança

protestante brasileira que consegue melhor se adequar à conjuntura local, aos

espaços de fala e aos sujeitos presentes na região, criando uma diferenciação até

mesmo de outras lideranças protestantes locais estrangeiras.

Outro embate entre católicos e protestantes que repercutiam na grande

imprensa era o direito de resposta de protestantes citados por Dubois, como o

pastor batista que se tornou ―ex-padre‖, Victor Coelho de Oliveira.

Na matéria ―Sempre os mesmos - Dubois em scena‖, resposta do ex-padre

Victor Coelho de Oliveira, notamos que o jornal ―Folha do Norte‖ publicou, em 24 de

janeiro de 1920, a resposta a um possível ataque de padre Dubois ao ex-padre e

atual pastor batista.

Do norte ao sul do Brasil estão os padres numa agitada azafama, receiosos de que a penetração do verdadeiro sentimento chistão no coração do povo ponha justo termo a tradicional exploração que fez do Brasil o el dourado do clero. A verdade vae fazendo brecha; e para sustentar-lhe, a macha vertiginosa e límpida, que fazem os Dubois de lá e de cá? Em vez de terçarem armas com os adversários no leal e nobre terreno dos princípios, sentindo-se incapazes de defender a sua falsa these romanista e de refutar as doutrinas que lhes oppõem, fingem-se superiores aos ataques e tratam de inutilizar os antagonistas pela calumnia. A este gênero

165

pertence o artigo de padre Dubois, publicado na FOLHA DO NORTE, de 14 de novembro, contra mim. O sr Dubois gosta de ser chistoso, mente, calunia brincando, fazendo rir. e brincando também insulta, lança phases como essa: ―O protestantismo e o monturo da egreja catholica‖. E esta outra chula e brejeira: ―quando o papa capina o seu quintal, atira o malto por cima do muro, no quintal protestante‖.264

Victor Coelho de Oliveira adquiriu fama nacional entre católicos e

protestantes por ter sido um padre católico que aderiu ao protestantismo. Em Belém,

o jornal ―Folha do Norte‖ abriu espaço para a retratação do ex-padre para se

defender de ataques de Dubois no mesmo jornal.

De início, vemos que o pastor acusa o padre de não conseguir debater

enfocando na defesa de princípios do catolicismo, e por não ter argumentações, se

utiliza de calúnias contra seus adversários, acusando-o ainda de ser mentiroso e

sempre escrever suas matérias em tom jocoso e difamatório. Aqui, ele analisa a

própria retórica de Dubois, suas críticas depreciativas, insultos irônicos e linguagem

chula. O ex-padre descreve os argumentos retóricos do líder barnabita com o

objetivo de desconstruir sua retórica. A resposta de Victor Coelho mostra Dubois

como sendo mais um padre que faz uma ―agitada azafama‖ por estar ―receoso com

a penetração do verdadeiro sentimento cristão no coração do povo‖, referindo-se a

uma possível adesão de pessoas ao protestantismo. Essa possível ―penetração do

verdadeiro sentimento cristão‖ no coração do povo é vista como algo positivo que

libertará o país do ―El Dourado do Clero‖. Mais uma vez, o catolicismo sendo posto

como uma fé que explora as pessoas para enriquecer o próprio clero católico, e

pondo o protestantismo como sendo o verdadeiro cristianismo, e que salvaria o povo

do engodo católico.

As defesas contra as possíveis argumentações de Dubois contra ele são

várias:

Affirma que fui processado por exercício ilegal de medicina...E‘ outra mentira insustentável, já lancei um repto em São Paulo pela imprensa, para que os meus pérfidos caluniadores demonstrassem quando e onde fui processado: e ninguém aceitou o repto que os cobria de vergonha perante a sociedade como covardes e mentirosos. Quem pôde dar créditos a homens para os quais a fins quaisquer que justificam os meios. Diz que fui seduzido pelos dollars... Que dollars? Nunca tive

264

FOLHA DO NORTE. ―Sempre os mesmos - Dubois em scena‖. Belém, 24/01/1920.

166

um, nem em transito, pela minha mão. Nunca recebi um tostão, nem indirectamente de procedência americana. Quem procurou seduzir-me e attrair-me foi o clero romanista, e não o protestantismo. A 23 de agosto p ... p...ameaçado em documento público pelo vigário geral daqui, foi-me dado o praso geral de 50 dias para voltar ao clero romano, e o vigário geral ainda fazia e aconselhava preços a Virgem do Carmo para que este clero da capina do papa voltasse ao quintal do mesmo papa. E documento publico, reproduzido em quasi toda a imprensa. Eu repeli com dignidade a insinuação. Entre o ouro da egreja romana e a pobreza protestante, optei por esta. Não me vendi. Hoje percebo as 300 mensaes. Na ultima freguesia em que fui vigário, em Santa Rita, no centro da capital, ganhava 1: 800:000 por mez... onde está a venalidade, a seducção do ouro? ―Era zeloso, trapalhão e desequilibrado‖ Sabem porque? Porque dei queixa ao seu cardeal Arcoverde, dos escândalos e da vida leviana e‘ molte do Padre Dubois em Santa Cruz, e o sr cardeal, verificando a nulidade daquele padre moceiro, fel-o substituir com enorme vantagem, pelo padre Leopoldo, também barnabita. E elle, também saiu dali para o celebre collegio onde adquiriu ainda maior celebridade... foi este o desequilíbrio e a trapalhada.265

Muitas das supostas acusações feitas por padre Dubois pareciam ser

propagadas por outros veículos de imprensa Brasil afora, e Dubois também as

utilizou para criticar o ex-padre nas acusações em que ele foi processado pelo

exercício ilegal da medicina, ou que recebia dinheiro de norte-americanos; ou, ainda,

que em seus tempos de padre ele era ―trapalhão e desequilibrado‖. Dubois

continuou com o seu discurso em que não apenas os dogmas do protestantismo

eram questionados, mas os próprios líderes religiosos eram difamados.

Especialmente em relação à acusação de ―sedução aos dollares‖ nós retomaremos

a ela no capítulo seguinte. O que por hora podemos extrair dessa fonte é que Victor

Coelho, em seu texto resposta, ressalta a diferença entre padres e pastores com

relação à arrecadação e sustento de suas igrejas, e defende que ser vigário era

muito mais lucrativo do que ser protestante. O sacrifício de sua mudança ao

protestantismo não era apenas a perseguição, mas um grito de recusa aos altos

ganhos financeiros que os clérigos supostamente teriam. O ex-padre afirma que

escolheu viver na ―pobreza protestante‖.

O pastor batista continua não apenas se defendendo, mas atacando o

catolicismo e especialmente padre Dubois, dizendo que o fato dele ser ―atrapalhado‖

se devia ao fato de que ele, Victor Coelho, quando ainda era padre, ter denunciado

265

FOLHA DO NORTE. ―Sempre os mesmos - Dubois em scena‖. Belém, 24/01/1920.

167

―os escândalos e a vida leviana‖ de Dubois. Ele não entra em detalhes da tal

denúncia, mas logo se refere ao padre como ―moceiro‖, indicando, desde aí e no

continuar de sua narrativa, possíveis casos de ―quebra da batina‖ envolvendo padres

católicos. E continua dizendo que padre Dubois, ―sem abandonar a egreja romana,

andava cercado de moelinhas da Santa Cruz‖266,e mostra também a acusação de

um outro padre barnabita, Julio, que foi ―acusado de quebrar o voto de celibato no

filho de um oficial do exército, alluno do collegio do catette teve que embarcar às

pressas fugido, no primeiro vapor para o Pará‖267. Victor Coelho passa a falar

desses escândalos envolvendo Dubois e outros padres barnabitas, em que votos de

celibato estavam sendo quebrados, e escândalos outros que envolviam até mesmo

casos de padres com jovens colegiais.

Assim o ex-padre ia procurando expor a hipocrisia da Igreja Católica ao

afirmar que, ―no entanto, por e apesar de todas essas capidizes em ambos os sexos,

elle ainda não se julga imcompatibilizado com a sua veste azarenta, negra como a

perversidade da sua pena caluniadora‖268.

Mesmo com casos como esse ocorrendo, de relacionamentos de padres

com homens e mulheres, a Igreja Católica continuava a considerá-los como padres,

e eles próprios continuavam a se julgar no direito de difamar outrem.

Logo Victor Coelho continua:

[...] Trate pois, o sr dubois de defender o dogma da sua egreja anti-chistã, em vez de se meter a caluniador gaiato como outros tantos dos seus pares. Olhe as miseráveis mazelas clericaes desse Brasil a fora, e não fale tão alto assim e tão confiante moralidade da egreja romana. Quem tem telhado de vidro não atira pedras no do vizinho, principalmente quando o dele é resistente. A egreja que, durante 4 seculos teve monopólio da educação do povo brasileiro e que ao lado da egreja rural deixou [...] centenas de jecas-tatu anaphalbetos, supeticiosos, mentirosos, vingativos, inteiramente submissos ao padre, essa egreja passe de largo, dê logar a luz do evangelho.269

Nesse momento, Victor Coelho ataca diretamente a Igreja Católica, dizendo

que ―mazelas clericais‖ como aquelas ocorrem em todo o país, e que seria preferível

266

FOLHA DO NORTE. ―Sempre os mesmos - Dubois em scena‖. Belém, 24/01/1920. 267

Ibidem. 268

Ibidem. 269

Ibidem.

168

que Dubois defendesse os dogmas da sua igreja em vez de atacar as

personalidades protestantes. O pastor batista intitula o catolicismo como uma igreja

anticristã, e diz que ela precisa dar lugar à ―luz do evangelho‖, e assim faz uso do

mesmo expediente que o catolicismo se vale, apresenta o catolicismo como

anticristão e o protestantismo como a verdadeira religião cristã.

A nota do jornal ―Folha do Norte‖ nos revela um pouco da mentalidade do

jornal:

O dr Victor Coelho de Almeida, em carta que endereçou a FOLHA, solicitou-nos a publicação do artigo acima, em que este defende as acusações que lhe fez, por este jornal, o brilhante colaborador, padre Dubois. Sendo norma tradicional da FOLHA condecer aos seus colaboradores a mais ampla liberdade de opinião, e tratando-se, sobretudo, de um acto de legitima defesa, não podíamos sem grave lesão ao critério deste jornal deixar de dar guarida ao artigo do dr Victor Coelho de Almeida, cuja publicação, não significa, da nossa parte, intuito de melindrar os sentimentos de nosso prezado e distinto collaborador, padre Dubois.270

Como o próprio jornal nos informa, era característica do periódico dar

espaço para direito de resposta a alguém que se sentiu difamado por algum dos

colunistas do jornal. O pastor Victor Coelho teve essa oportunidade, mas, ainda

assim, a matéria foi tão enfática nas críticas a padre Dubois que ele tomou a

inciativa de fazer essa nota para enfatizar que a opinião do pastor não corresponde

com a opinião do jornal. Chamado-o sempre de ―prezado e distinto colaborador”.

Notamos o quanto padre Dubois era estimado pelo jornal, tanto pelo espaço que ele

tinha ali quanto pelas suas colunas fixas. Mas, ainda assim, o embate entre católicos

e protestantes conseguia repercutir na grande imprensa a ponto de protestantes

também ganharem espaço de publicação.

Os embates entre católicos e protestantes eram constantes. Eram

questionados os principais dogmas, crenças, símbolos de fé e liderança.

Selecionamos, por hora, alguns desses embates para mostrar como as tensões se

davam, e seus mais recorrentes argumentos. Por mais que saibamos que embates

entre católicos e protestantes já existem desde a fundação do protestantismo, para

além de dogmas estamos falando de religiões que tinham seus próprios veículos de

imprensa, espaços nos grandes veículos de comunicação e, especialmente, de um

270

FOLHA DO NORTE. ―Sempre os mesmos - Dubois em scena‖. Belém, 24/01/1920.

169

catolicismo que se mantinha hegemônico na sociedade brasileira e de um

protestantismo que buscava alargar seu campo religioso, isso tudo em um período

republicano que legitimou a separação da Igreja Católica do estado brasileiro.

Assim, no conflito entre católicos e protestantes, a primeira vertente cristã

possuía uma grande vantagem, pois detinha melhor estrutura, a ponto de ter

veículos de imprensa com maiores tiragens. Conseguia mais espaço na grande

imprensa por ter contato com os principais jornalistas da cidade, e era a religião

hegemônica. A população, das mais diferentes classes sociais, era em sua maioria

católica.

Desses conflitos que mostramos, podemos tirar algumas conclusões para

além das que já discutimos. Católicos e protestantes até então discutiam em um

campo letrado, fosse por meio da imprensa confessional, da grande imprensa ou na

publicações de livros. Atingiam portanto um público que dominava o letramento, O

debate apologético feito entre católicos e protestantes tinha pouco alcance entre os

populares, o público alcançado era minoritário na sociedade, mas eram sem dúvida

os detentores de maior poder aquisitivo, político e social. Para essas religiões era

importante dialogar e principalmente cooptar esses leitores para aderirem as suas

respectivas religiões. O próprio padre Dubois ao mostrar em seu livro como o

católico popular interpreta a bíblia protestante, já traçava uma linha de separação

entre ele e o seu público, os protestantes e o típico popular paraense.

Isso não quer dizer que a mentalidade católica e protestante, de certa forma,

não reverberasse entre os populares. Não esqueçamos que ainda que a Igreja

Católica fosse diversificada e polissêmica o discurso da imprensa católica e dos

livros publicados também influenciavam na mentalidade de outras lideranças dentro

do catolicismo, especialmente acerca da importância da Igreja Católica como a

detentora da interpretação bíblica, do saber e da autoridade do sacerdócio.

Não apenas católicos tinham esse discurso em seus veículos de

comunicação, como já dito aqui, mas os protestantes traziam discursos

semelhantes. Victor Coelho é um exemplo dos que punham o protestantismo como a

verdadeira religião e o catolicismo como uma religião anticristã, dizendo também que

os padres católicos influenciavam os populares a terem uma fé pouco autônoma, na

qual o clero católico era autoridade e o uso da Bíblia, como um copilado de livros

que poderia ser interpretado livremente pelo fiel, era determinantemente condenado.

170

E é justamente o tema da autonomia do fiel e da autoridade da igreja que

revelam os embates por trás desses dois dogmas tão significativos de católicos e

protestantes: o ―uso da bíblia‖ e a ―devoção mariana‖. O protestantismo, ao defender

o livre uso das escrituras, afirmava que o fiel ao fazer essa análise veria que a

devoção mariana, tão praticada pelos católicos, especialmente em Belém do Pará,

era inverídica; por outro lado, os católicos defendiam a devoção mariana

respaldados não apenas em uma interpretação bíblica que favorecia o dogma, mas

na tradição da igreja que também o legitimava.

Através dos discursos presentes nas tensões entre católicos e protestantes,

notamos que para além de discordâncias dogmáticas também havia representações

de poder, e a autonomia do leigo era considerado um tipo de ação libertadora para o

protestante, diante de um possível ataque do catolicismo ao bolso do seu fiel. Ler a

bíblia faria com que o fiel católico percebesse as tais heresias católicas e pararia de

financiá-la. Do outro lado, havia um catolicismo que, em seu discurso

antiprotestante, tinha como principal contra-argumento atacar a autonomia do leigo,

as alegações de que o fiel não consegue usufruir a Bíblia como deveria, que a

autonomia do leigo resulta em seitas dissidentes e fanáticas (como o

protestantismo), sempre no esforço de construir um discurso de legitimação do

catolicismo como a verdadeira religião, a única capacitada a guiar o fiel em sua

prática de fé.

Esse fenômeno de contestação da autoridade religiosa, frente à autonomia

do leigo que normalmente é enfatizada por uma religião minoritária, é explicado por

Bourdieu:

As ideologias religiosas (e até mesmo as secularizadas) denominadas heréticas (situadas em estados muito diversos do campo religioso) no sentido de que tendem a contestar a ordem religiosa que a ―hierarquia‖ eclesiástica visa manter, apresentam tantos temas invariantes (por exemplo, recusa da graça institucional, prédica dos leigos e sacerdócio universal, autogestão direta das empresas de salvação, os eclesiásticos ―permanentes‖ sendo considerados meros ―servidores‖ da comunidade e mais ―liberdade de consciência‖, ou seja, direito de cada individuo à autodeterminação religiosa em nome da igualdade de qualificações religiosas, etc) porque têm sempre por princípio gerador uma contestação mais ou menos radical da hierarquia sacerdotal que pode exacerbar-se mediante uma denúncia do arbitrário, de uma autoridade religiosa que não esteja fundada na santidade de seus detentores, podendo

171

inclusive chegar a uma condenação radical do monopólio eclesiástico enquanto tal.271

Bourdieu constantemente analisa o fenômeno da autoridade sacerdotal de

religiões que mantêm o monopólio religioso de uma sociedade com relação a outros

movimentos religiosos que surgem e servem como um contraponto a essa

religiosidade majoritária. Essas religiões minoritárias são consideradas ―heréticas‖,

―seitas‖, e para a religião ―herética‖ se contrapor à religião considerava ―ortodoxa‖,

uma das reivindicações é a contestação da autoridade eclesiástica da religião

majoritária, somados a outros valores e reivindicação como a recusa da graça

institucional, a maior participação dos leigos e a ideia de liberdade de consciência,

dando uma autonomia maior ao leigo e diminuindo todo o mercado religioso da

religião majoritária.

Selecionamos algumas fontes para entendermos como os conflitos entre

católicos e protestantes se estabeleceram no período republicano em Belém, quais

os sujeitos envolvidos e em quais períodos. Veremos casos específicos, entendendo

a questão a partir de uma perspectiva mais ampla, de outros campos que o embate

se travava, na perspectiva de que estamos lidando com embates onde havia uma

minoria protestante envolvida com querelas contra uma Igreja Católica hegemônica

no país, e que no Pará contava com um catolicismo fervoroso e praticante,

envolvendo todas as classes sociais.

3.2 ―MATEM O MISSIONÁRIO‖: EMBATES E TENSÕES ENTRE CATÓLICOS E

PENTECOSTAIS NO PARÁ

Abordamos no capítulo anterior o surgimento de um outro movimento que

brotou como uma vertente do protestantismo: o movimento pentecostal. Esse

segmento religioso cresceu de forma tão rápida na cidade que não passou

despercebido aos olhos de parte do clero católico, ou ao menos do clero que

possuía maior poder de comunicação em veículos de imprensa. Além disso,

notamos que tal movimento chamou a atenção de populares, protestantes e

autoridades políticas. Assim como o seu rápido crescimento, a reação de grupos

contrários ao pentecostalismo gerou um embate religioso diferenciado se

271

BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013, p.46

172

compararmos a outras vertentes protestantes, como analisaremos no decorrer do

capítulo.

3.2.1 “Da violência simbólica à física”: tensões e conflitos entre católicos e

pentecostais

A maior parte de conversões ao pentecostalismo eram de pessoas que

anteriormente haviam comungado a fé católica. Muitas dessas conversões Vingren

relatava em seu diário. Em um deles, destacamos o de uma católica que aderiu à fé

pentecostal, e, a partir daí, Vingren passou a perceber um público ao qual o

pentecostalismo se comunicava com maior eficácia:

Quando os parentes católicos observam a vida justa dos crentes e a alegria que eles tem em Deus, e quando os ouvem falar em línguas, profetizar e cantar hinos espirituais, e falar com sabedoria, ficam completamente convencidos da realidade do poder de Deus. Quando, por exemplo, ouvem os seus próprios parentes falarem em novos idiomas, apesar de muitos deles serem analfabetos, reconhecem tudo isso vem de Deus. (grifo nosso)272

Já tratamos aqui da ―Glossolália‖, o ―falar em línguas‖, como a

representação de uma significativa característica sobrenatural do pentecostalismo.

Através do trecho destacado, podemos entender que essa era uma singularidade

que potencializava o diálogo que o pentecostalismo desejava manter com o

paraense popular, além do atrativo moral para a conversão de católicos, como ―pela

vida justa dos crentes‖. Essa conversão que enfatizava uma mudança de

comportamento já era retratada por protestantes históricos. O pentecostalismo ia

mais adiante, pois católicos visualizavam ―seus próprios parentes falarem em outros

idiomas, apesar de muitos serem analfabetos‖.

O pentecostalismo propunha uma nova forma de assimilação da fé que ia

além de uma mudança comportamental, ou a exigência de uma boa assimilação do

conteúdo bíblico, mas trazia manifestações sobrenaturais, como o ―falar em outras

línguas‖, e isso era um tipo de experiência válida para o fiel se tornar pentecostal,

fazendo com que pessoas analfabetas, que tinham dificuldade de ter o entendimento

do conteúdo bíblico que o protestantismo exigia, conseguissem aderir ao

272

VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961, p.56.

173

pentecostalismo. Os pentecostais trouxeram ao protestantismo um elemento místico

como símbolo religioso, muito mais palpável ao povo.

Há um interessante relato de Daniel Berg em suas memórias; trata de sua

visita a uma mulher enferma em uma região próxima à cidade de Belém. Logo no

início da sua viagem missionária a outras regiões do Pará, após algumas

caminhadas tentando distribuir bíblias em diversas casas e sendo rejeitado em

todas, Berg conta que ―estavam prevenidos contra mim e contra as doutrinas que eu

anunciava. Certamente os padres já haviam mandado isso‖273. Após entrar em uma

vila a dois quilômetros de distância de onde estava, chegou em uma casa onde

encontrou uma senhora idosa enferma com o ―rosto marcado pelas muitas horas de

trabalho‖:

A enferma tinha as mãos cruzadas sobre o peito e o olhar fixo em um

objeto entre as velas. Quando me aproximei, percebi que ela olhava para a

imagem de uma santa, a qual todos dirigiam suas orações como último recurso e

refúgio. Naquela hora pedi a Deus que me desse palavras de conforto. Assim

que acabei de orar em espírito, ouvi a minha própria voz dizer: -não te disse que

se creres verás a glória de Deus? Essa doença não é para a morte, mas para a

glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja glorificado”. A enferma moveu

a cabeça e olhou-me cheia de curiosidade. Uma jovem que estava ajoelhada

rezando com um rosário entre as mãos também olhou meio assustada, e parou

de rezar quando ouviu a minha voz. [...] Ajoelhei-me do lado da cama, à

cabeceira da enferma, e perguntei-lhe se ela tinha fé em Deus e em seu filho

Jesus Cristo. Quando ela acenou afirmativamente, disse-lhe que Jesus se

encontrava diretamente no quarto e estava pronto para ajuda-la. A única coisa

que ela precisava fazer era crer nele. Ela respondeu: - Temos orado a santa – e

apontou para a imagem – mas parece que ela não tem tempo para ouvir.

Aproveitando as palavras da enferma, sugeri então que nos dirigíssemos

diretamente a Jesus. [...] se ela cresse em Jesus podia estar certa de que ele a

libertaria e a perdoaria, pois foi para isso que o filho de Deus morreu na cruz.

Insisti com a enferma que a única coisa que ela deveria fazer era crer nessas

verdades, para ser inteiramente liberta. – Isso parece ser coisa maravilhosa e

fácil – respondeu a enferma – Será possível chegar a Jesus tão facilmente? –

Sim, é possível – respondi. A enferma então pediu aos filhos que orassem por

273

BERG, Daniel. O enviado de Deus: memórias de Daniel Berg. São Paulo, 1959, p.86.

174

ela. Aconselhei-a que também orasse, pois Jesus gosta de ouvir nossa voz. Ela

cruzou os braços, agradeceu a Deus e pediu-lhe que a ajudasse a participar de

sua graça. Após aquela oração, a enferma declarou que não estava mais com

medo de morrer e manifestou o desejo de continuar na terra para contar aos

seus parentes a maravilhosa e simples verdade que agora conhecera. [...] No dia

anterior, o padre havia estado lá, mas agira de forma diferente[...] Colocou a

imagem de Maria o mais perto possível da enferma, e após ordenar quais as

orações que eles deviam fazer, retirou-se. [...] Porém, naquela hora, depois de

terem visto como nós havíamos procedido ali, e a alegria e a esperança que

haviam inundado o coração da enferma, estavam convencidos de que havia

alguma coisa melhor que a tradição. Havia fé verdadeira e pessoal em Jesus

Cristo. [...] A senhora idosa, por quem eu orei naquele dia, viveu ainda durante

algum tempo. Ela usou esse tempo para ganhar almas para o Reino de Deus.

Muitos de seus parentes se converteram, e mais tarde foi estabelecida uma

Assembleia de Deus naquele local.274

Acreditamos ser importante a transcrição desse episódio relatado por Daniel

Berg, já que resume diversas características diferenciadas do movimento

pentecostal apresentadas no decorrer da pesquisa. Berg, um leigo, foi até a casa de

uma senhora idosa católica, enferma, provavelmente uma típica mulher paraense

pertencente à classe popular, já que era uma casa ―em uma vila‖, afastada não

apenas do centro, um pouco distante até mesmo do marco territorial do município.

Uma senhora que deveria ter uma rotina de trabalho intensa antes de se tornar

enferma, por ter ―o rosto marcado por muitas horas de trabalho‖, mostrando um

público popular que recorrentemente era alvo da fé pentecostal.

Nesse relato, notamos os elementos significativos para a expansão do

pentecostalismo naquele momento, eram eles: ―Cura/ Gênero/ Sacerdócio Universal/

Leigo‖. Berg procurou desconstruir o dogma do catolicismo de intercessão dos

santos e enfocou em um sacerdócio exclusivo, pertencente a Jesus Cristo. Isso

mostra a forte religiosidade protestante presente no movimento pentecostal do

período. Após crer na mensagem de Berg, essa idosa passou a viver por mais

tempo, e aí podemos entender também que houve uma cura, mesmo que descrita

de forma não tão miraculosa como em outros relatos que vimos no capítulo anterior.

274

Relato de Daniel Berg, referente às páginas 89 e 90 de seu diário. BERG, Daniel. O enviado de Deus: memórias de Daniel Berg. São Paulo, 1959.

175

A personagem por fim se tornou uma leiga que durante o restante de sua vida ―usou

esse tempo para ganhar almas para o Reino de Deus‖, e muitos parentes seus se

converteram e fundaram uma igreja da Assembleia de Deus ali.

O movimento pentecostal enfatizava como prática de fé questões como a da

cura ou do ―falar em outras linguas‖, elementos que trazem consigo um ―poder‖ de

efetuar ―milagres‖. Homens e mulheres que já tinham em seu imaginário social essas

obras místicas e sobrenaturais existentes no catolicismo popular paraense, tendo

como principais canalizadores desse ―poder‖ os santos e a figura de Maria,

perceberam também no movimento pentecostal esse imaginário religioso sendo

efetuado como prática de fé como nenhum outro protestante enfatizara até o

momento.

A partir disso, trabalhamos com a ideia de que o movimento pentecostal, de

todas as outras denominações protestantes, foi o que melhor conseguiu comunicar

sua fé ao paraense popular hegemonicamente católico. Demonstrar a prática dessa

fé e convencer o povo que a divindade propagada pelo pentecostalismo era

poderosa e eficaz se comparada ao catolicismo, a ponto de enfrentar até mesmo um

simbolismo de crença tão forte para a região como a devoção mariana, traz sentido

à análise de Weber quando explica a rotatividade dos fiéis quando são atraídos por

uma divindade, quando a nova demonstra mais poder que a divindade de adoração

atual do fiel.

A questão mais simples, a de se cabe tentar influenciar determinado deus ou demônio mediante a coação e súplica é, em primeiro lugar, somente uma questão de resultado. Assim como o mago tem de provar seu carisma, o deus tem de provar seu poder.275

Em casos como este, o pentecostalismo traz consigo uma divindade que

demonstra tais eficácias na sua intervenção sobrenatural e providencia divina na

vida das pessoas com as quais seus fieis mantêm contato. Na batalha interna entre

275

No livro ―Economia e Sociedade II‖ Weber analisa diversas religiões e faz introduções a uma sociologia da religião. Dentre as diversas comparações e pontos em comum que encontra nas várias religiões mundiais, ele percebe que a devoção de fiéis a uma divindade muitas vezes é mantida quando essa devoção manifesta seu poder de alguma forma. Quando essa divindade deixa de ser eficaz aos seus adoradores, é constantemente trocada por uma outra que mostra mais poder, mais eficácia que a anterior. Há aqui um diferencial fenomenológico com o Deus Javeh, pois ao estudar a literatura judaica Weber nota que mesmo nas vezes em que Javeh deixa de ser um Deus provedor, ainda assim parte de seu povo mantêm a fidelidade a ele, mesmo com as constâncias desobediências de seus fiéis. WEBER, Max. Economia e Sociedade II. Brasília: UnB, 2004.

176

as várias vertentes cristãs, o pentecostalismo ganhava terreno, provando seu poder

diante da racionalidade protestante e do catolicismo popular representado pelos

santos e a Virgem de Nazaré.

É evidente que essa explosiva conversão de católicos ao pentecostalismo,

assim como a de alguns protestantes, gerou uma reação contrária de ambas as

vertentes religiosas ao movimento pentecostal, promovendo conflitos que foram da

violência simbólica à física, com ameaças de morte e prisões.

Já citamos a fala de Dubois com relação ao próprio movimento pentecostal,

ao analisarmos a matéria ―Cartas a um jovem moço‖, no qual ele dizia que ―as

demais egrejolas não suportam a seita pentecostal que é, apesar dos pesares, a que

mais se expande no meio dos tolos e dos grulhas‖.276 Algo notável aqui foi o padre

perceber o quão rápido o movimento crescia, referindo-se ao pentecostalismo como

a ―seita‖ que ―mais se expande‖, o que mostra que tal crescimento causava

desconforto, inclusive entre as outras igrejas protestantes que ―não suportavam‖

aquela explosão social do pentecostalismo.

Em ―O biblismo‖, padre Dubois, após tecer severas críticas ao

protestantismo e aos males que ele poderia causar com sua livre interpretação das

escrituras, dá como exemplo de malefício o grupo do qual se tomou conhecimento

em setembro de 1913, denominado ―os missionários da fé‖:

Como exemplo de fanatismo protestante, podemos citar os missionários da fé que, em setembro de 1913, refugiam na vila Têta, em Belém do Pará. ―acreditamos‖, disseram os iniciados ao repórter do Correio de Belém, ―na manifestação dos apóstolos, razão porque fazemos nossas sessões onde. Sob a inspiração do espírito santo, os nossos irmãos de fé podem falar todas as línguas proferindo belas orações cheias de ensinamento e de conforto... comunicamo-nos com Jesus e os Apóstolos‖. Temos aqui uma repetição macaqueada do Pentecostes.277

Em páginas anteriores do livro, Dubois ressalta que essa ―Vila teta‖ era um

local próximo do Ver-o-peso, onde os protestantes vendiam as suas bíblias. Poderia

ser esse um local de ―referência‖ para o protestantismo se alojar e propagar sua fé,

já que ali era uma região portuária e de comércio, onde havia uma grande circulação

276

A PALAVRA. Belém, 1923. 277

DUBOIS, Pe. Florencio. O Biblismo. Rio de Janeiro, 1921.

177

de pessoas, moradores locais e viajantes. Os pentecostais provavelmente conviviam

entre os protestantes e faziam parte desse cenário local.

Para Dubois, o movimento pentecostal era considerado como o maior

exemplo de erro que o protestantismo poderia chegar com a livre interpretação das

escrituras. Era o ápice do ―fanatismo protestante‖. Uma denominação que chegou ao

ponto de ―macaquear pentecostes‖. Se o protestantismo histórico era herético e

fanático para Dubois, o movimento pentecostal era pior, era a vertente protestante

que representava o máximo do fanatismo.

Esse repórter que entrevistou os pentecostais para o jornal ―Correio de

Belém‖ provavelmente publicou o artigo descrito por Gunnar Vingren, onde conta

sobre um redator que procurou escrever sobre o movimento pentecostal em um

jornal no mesmo período da entrevista mencionada por Dubois, em 1913.

Naquele tempo escreviam muitos artigos contra os crentes, mas havia também jornais que nos defendiam. As ondas de discussão eram bem altas. Um dia o redactor de um jornal de Belém veio a nossa igreja para pesquisar o assunto. Porém, para a alegria de todos nós, o redator nos defendeu contra o que nos criticavam. Entre outras coisas, o redator escreveu: Os que pertencem a essa missão de fé Apostólica [era o nome da igreja naquele tempo] só permitem manifestações com o Espírito Santo. Não tem nenhum contato com espíritos de falecidos.278

Gunnar Vingren ressalta aqui um acontecimento que já constatamos em

páginas anteriores: a alta intensidade da briga entre católicos e protestantes.

Discussões que iam além dos jornais tradicionais e ganhavam espaço na grande

imprensa também. Nessas tensões entre essas duas vertentes, os pentecostais

parecem também ter sido citados e até mesmo confundidos com espíritas. Embora,

isso não fosse totalmente estranho, dado o seu diferencial a partir da experiência

com o Espírito Santo, o chamado ―falar em outras línguas‖. Porém, aparentemente,

pela narrativa de Vingren e mesmo pelos trechos da matéria publicados pelo próprio

padre Dubois, a forma como o jornalista retratou o movimento pentecostal em seu

início, a ―missão de fé apostólica‖, foi desassociando o pentecostalismo do

espiritismo e se mostrando mais favorável ao movimento.

278

VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961.

178

Apesar de percebermos embates de católicos ao movimento pentecostal

também na imprensa, e o reconhecimento da imprensa católica diante do rápido

crescimento do movimento durante o período que abordamos, não vimos grandes

ênfases aos pentecostais nos periódicos católicos ou em livros publicados, como o

―O biblismo‖, de Dubois, da mesma forma que notamos ocorrer com os protestantes

históricos.

Apesar da imprensa católica aparentemente demonstrar amenidade no

ataque aos pentecostais, percebemos, contraditoriamente, que na narrativa

missionária de Gunnar Vingren, além dos pentecostais não serem aceitos também

pelo catolicismo, as tensões entre católicos ocorriam por agressões morais e até

físicas, dado os relatos de perseguições ainda mais frequentes e violentas advindas

do catolicismo. Vingren mostra em seu diário que o movimento pentecostal sofria

constantes difamações de protestantes; vimos algumas delas no capítulo anterior.

Mas, quando referenciava os católicos, dizia que sofriam difamações morais e até

ameaças de morte, em que muitas vezes só escapavam por ―milagres de Deus‖.279

As perseguições de católicos a pentecostais faziam constantemente parte da

narrativa de Vingren. Em seu diário, relata perseguições de católicos e protestantes

aos pentecostais, sempre enfatizando bem mais a perseguição católica, muitas

vezes os chamando de ―inimigos‖. Enquanto Vingren revelava que os protestantes

os perseguiam a partir de difamações em veículos de imprensa e em folhetos, como

dito acima, os católicos tinham formas de perseguição bem mais violenta. O primeiro

relato de Vingren mostra uma perseguição ocorrida cerca de um ano após a sua

expulsão da igreja batista.

No dia 14 de Abril batizei mais três novos convertidos. Nessa oportunidade, uma grande multidão de inimigos da obra de Deus dirigiu-se para o local do batismo. Estavam armados de facas e laços e queriam impedir o nosso batismo. Foi debaixo de muitas ameaças e sobretudo acobertados pelo poder de

279

Percebemos em seu diário e em muitas biografias e trabalhos a respeito de Berg e Vingren, assim como a outros ícones cristãos, e até mesmo na biografia de Eurico Nelson a que tivemos acesso, a ênfase em seus feitos ―heroicos‖ como missionários que desbravavam terras desconhecidas para proclamar o Evangelho. Essa construção de heróis, principalmente daqueles que fundam grandes denominações no cristianismo, Gedeon Alencar as trabalha a partir da ideia do ―mito fundante‖, em que é necessário se construir uma imagem de fundador como ―herói‖, um ―semideus‖. Como historiadores, precisamos analisar fatos e acontecimentos através das fontes e da historiografia, de forma a que nos deem um melhor embasamento sobre esses ―fundadores‖. VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961.

179

Deus que realizamos o batismo. Só por um milagre a minha vida foi salva naquela oportunidade! Louvado seja o Senhor!280

Uma narrativa de A. P. Franklin sobre o movimento pentecostal em seu

início, na América do Sul, conta esse mesmo tipo de acontecimento, mas com um

melhor detalhamento em sua descrição. Conta sobre um dia em que os membros do

movimento pentecostal realizaram seus primeiros batismos nas águas, e que já

havia um tempo os realizavam em segredo, dessa vez resolveram divulgar horário e

local, e ―isto deu tempo para que os inimigos preparassem algo para atrapalhar a

cerimonia‖281.

[...] centenas de homens se aproximaram do local do Batismo, pensando que com violência poderiam impedir o ato sagrado. O líder deles caminhava à frente carregando uma cruz. Os poucos crentes que estavam reunidos compreenderam o perigo naquele momento, e temeram que houvesse derramamento de sangue. Vingren procurou ler a bíblia, mas foi impedido. Tentou ler outra vez, mas o líder empunhou uma faca e se preparou para lançar-se contra Vingren. Porém, a irmã Celina interpôs-se então entre esse católico e o irmão Vingren, salvando a vida deste. Um outro católico, um homem velho gritou então: ―Chega! Deixem que eles realizem a cerimonha‖. Mas o líder do grupo continuou no seu firme propósito de impedir o batismo. Vingren disse aos inimigos: ―eu faço somente o que Jesus quer!‖ [...] Enquanto Vingren os batizava, os inimigos gritavam: Miseráveis, comida de tigres, matem o missionário.282

Aqui nós já notamos que Franklin deixa claro que esses ―inimigos‖ que

cercaram os pentecostais no batismo eram católicos. Seja através da referência ao

líder, que carregava uma cruz, ou relatando sobre o homem que ameaçou esfaquear

Vingren e o outro que interrompeu a ameaça com um grito; eram todos católicos. No

prosseguir da narrativa, bem próximo a esses fatos, Vingren conta outro momento

em que estava doente e ―os inimigos da obra de Deus nos perseguiram muito

durante aqueles dias‖, e que ―certa noite, apedrejaram a casa onde estávamos

reunidos‖ e ―noutra noite planejaram matar-me e queimar a casa‖283. A narrativa de

Vingren revelava tensões entre pentecostais e católicos bem mais violentas do que

280

VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961, p.43. 281

Trecho retirado do livro ―O diário do pioneiro Gunnar Vingren‖, onde se publicou partes do diário de Gunnar Vingren e relatos de pessoas próximas a ele, como a sua esposa Frida Vingren e o pastor Franklin. Ibidem. 282

Ibidem, p.43. 283

Ibidem, p.45.

180

qualquer relato de violências contra protestantes. Contra os pentecostais as

ameaças eram constantes e não apenas as difamações verbais eram feitas, mas

havia ameaças inclusive de morte, que por muito pouco não eram concretizadas.

Se o lado místico da Assembleia de Deus fez com que a religião se

proliferasse entre os paraenses, o catolicismo, aparentemente, também mostrou

uma forte reação a essa denominação. Ficam algumas indagações: a vertente

católica que perseguia os assembleianos era a mesma denominação barnabita que

confrontava as outras denominações protestantes? E por que a pouca menção da

imprensa católica a uma vertente acatólica que crescia mais do que qualquer outra

denominação protestante em contraste com essa violenta opressão de católicos em

diversos relatos do diário de Vingren?

A Igreja Católica é diversificada, polissêmica, há diversas ordens e

monastérios. E quando se torna hegemônica em uma sociedade, tende a se

pluralizar para atender o maior número possível de grupos sociais. Há diversas

manifestações religiosas católicas nas seus mais diferentes esferas sociais, em que

a instituição se procura manter em unidade mas que, segundo Portelli,

[...] na realidade uma multidão de religiões distintas, frequentemente contraditórias: há um catolicismo dos camponeses, um catolicismo dos pequenos burgueses e dos operários urbanos, um catolicismo das mulheres e um catolicismo dos intelectuais, também estes variados e desconexos.284

O catolicismo místico, popular, do leigo, é característico do povo paraense

nesse período, inclusive da religiosidade brasileira como um todo. Geralmente é o

leigo quem produz os elementos mágicos da religiosidade católica. ―É muito raro que

clérigos, num dado momento, comecem a exercer a magia coletiva. São os leigos

que o fazem.‖285

Outros segmentos do cristianismo - especialmente o catolicismo, pela manutenção do ritual e das práticas populares mais acessíveis, em decorrência de uma manipulação mais objetiva do simbólico, permitindo uma maior intimidade com o sagrado - mostram uma abertura mais acentuada para o misticismo. O misticismo não é prática de intelectuais, mas de

284

PORTELLI, Hugues. Gramsci e a questão religiosa. São Paulo: Edições Paulinas, 1984, p.25. 285

MENDONÇA, Antônio Gouveia. Introdução ao protestantismo no Brasil. In: Idem. Protestantismo no Brasil: marginalização social e misticismo pentecostal. São Paulo: Loyola, 1990, p.241.

181

pessoas simples, dos não-intelectuais, dos ―pobres de espírito‖. [...] Ora, ressalvados alguns letrados e ricos, o misticismo, ou melhor dizendo, a tendência mística, costuma surgir entre as camadas despossuídas.286

A briga entre católicos e protestantes que ocorria nos jornais era em caráter,

na maioria das vezes, polemista e apologeta, envolvendo questões dogmáticas e

políticas acerca das quais os pentecostais inicialmente não se preocuparam em se

posicionar. Com seu racionalismo, sua consolidada teologia e ortodoxia, o

protestante não conseguiu comunicar sua crença ao religioso, pois para o autor ―o

protestante mais estuda do que crê, está mais para verdades do que para

crenças‖287. Em uma cidade onde ―64,9% da população era constituída de

analfabetos‖288, era difícil para o paraense assimilar a fé protestante que consistia

em leitura bíblica, somada a livros e folhetos de Lutero, Calvino e teólogos do

protestantismo de seu tempo.

Apesar disso, como vimos no capítulo anterior, os pentecostais, assim como

os protestantes, tinham a Bíblia como a sua regra de fé e prática. Até mesmo os

seus dons sobrenaturais advindos do Espírito Santo eram baseados no livro de Atos

dos Apóstolos, um livro legitimado pelos protestantes como verdadeiro e canônico. A

própria ideia de ―batismo com o Espírito Santo‖ fora retirado do livro. Contudo, essas

manifestações religiosas dos pentecostais não ganharam apreço dos protestantes

desde o início do movimento até os anos subsequentes.

Por mais que enfatizassem as experiências religiosas místicas e mágicas,

como o catolicismo popular paraense, o movimento pentecostal manteve muitos

dogmas do protestantismo histórico que, diferentemente de outras manifestações

religiosas, naquele momento não dialogaram ou se hibridizaram com o catolicismo.

Vingren nos relata as lutas dos ―servos do Senhor‖ contra ―A mentira e superstição

que o povo aprendeu desde criança dos sacerdotes católicos‖.

O servo do Senhor tem de lutar muito contra toda a mentira e toda superstição que o povo aprendeu desde criança dos sacerdotes católicos. Algumas dessas mentiras são: ―A bíblia

286

MENDONÇA, Antônio Gouveia. Introdução ao protestantismo no Brasil. In: Idem. Protestantismo no Brasil: marginalização social e misticismo pentecostal. São Paulo: Loyola, 1990, p.241. 287

Ibidem, p.246. 288

GOUDINHO, Liliane Cavalcante. A palavra que vivifica e salva contra o mal da palavra que mata: imprensa católica em Belém (1910-1930). Tese (Doutorado em História), PUC-SP, São Paulo, 2014, p.63.

182

dos protestantes é falsa‖; ―Salvação só se consegue pela santa igreja católica‖; ―A virgem Maria é a mãe de Deus, deve ser adorada e é também intercessora junto ao seu filho Jesus‖; ―os santos devem ser adorados porque eles também intercedem por nós‖. ―A bíblia, dizem os padres, só pode ser compreendida pelos sacerdotes e não pode ser compreendida pelo povo, salvação só se consegue por intermédio dos santos e por meio das boas obras que fazem [...] Os que não vão a missa e não obedecem os dogmas católicos são do Diabo. Mesmo que sejam as mais puras, santas e justas do mundo. Se alguém lê a bíblia protestante, só por isso irá para o inferno.‖289

Assim como os protestantes, os pentecostais também viam os católicos

como detentores de uma fé falsa, supersticiosa e idolatra. A interseção dos santos, a

devoção a Maria, a Igreja Católica como único meio de salvação, e a autoridade dos

sacerdotes eram dogmas rejeitados veementemente pelo pentecostalismo. O que

notamos aqui, novamente, é o antagonismo entre a autoridade sacerdotal católica e

a autonomia do leigo, que poderia ter livre acesso e interpretação das escrituras e

ainda ter experiências de fé sobrenaturais como as descritas na Bíblia.

Os pentecostais, assim como as outras denominações protestantes, também

consideravam a bíblia protestante como regra de fé e prática, e diziam que todos

deveriam ter acesso a essa fé (conflitando com a ideia da autoridade sacerdotal

católica na interpretação das escrituras), valorizando um sacerdócio universal dos

crentes, como afirmavam os protestantes. Os pentecostais também acreditavam que

a bíblia protestante era a verdadeira e defendiam o livre uso e interpretação das

escrituras. As próprias experiências com o Espírito Santo eram baseadas em

passagens da Bíblia. Independentemente de terem características mais místicas e

sobrenaturais como os católicos, a interpretação da Bíblia e a autonomia do leigo

eram características pentecostais que faziam com que se aproximassem e até

mesmo se denominassem, também, como protestantes.

O elemento místico existente nessas duas vertentes religiosas não serviu

como uma relação de diálogo, mas de conflito. Já é uma prática milenar do

catolicismo, desde sua fusão com o Império Romano, dialogar com movimentos

cristãos que divergissem de seus principais dogmas, quando não conseguem

acoplar o movimento como mais uma vertente do catolicismo institucional.

289

VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961, p.58.

183

Bourdieu nos ajuda a refletir sobre a dinâmica religiosa entre o catolicismo

como religião hegemônica, visto que o que os ameaçava em sua estrutura

eclesiástica sofria perseguição.

[...] a contestação profética (ou herética) da igreja ameaça a própria existência da instituição eclesiástica no momento em que põe em questão não apenas a aptidão do corpo sacerdotal para cumprir sua função declarada (em nome de recusa da ―graça institucional‖), mas também a razão de ser do sacerdócio [...]. Assim, quando as relações de força são favoráveis à Igreja, a consolidação dessa depende da supressão do profeta (ou da seita) por meio da violência física ou simbólica.290

O que notamos é um embate de católicos e pentecostais, que

diferentemente dos embates com os protestantes ocorria em outro campo, mas que

também tomava dimensões que iam além da imprensa e de toda uma teologia

baseada em uma cultura letrada. Porém, havia um forte uso do discurso religioso

oral e testemunhal, que, por mais que a Bíblia não fosse ignorada e continuasse

sendo valorizada, não era uma valorização das escrituras por dogmas existentes em

sua mensagem escrita, mas pela tentativa de vivência das experiências espirituais

sobrenaturais narradas em diversos livros e epístolas bíblicas. Os pentecostais

procuravam efetuá-las na prática de sua fé, de forma que esse movimento sofreu

perseguições e travou embates com as duas principais vertentes religiosas cristãs

vigentes, mas também presenciou uma grande adesão de muitos católicos e

protestantes a esse movimento.

3.2.2 “Delegado pune os crentes”: catolicismo, protestantismo e Estado

Além da intensa perseguição feita aos pentecostais pelos ―inimigos da obra

de Deus‖, há casos peculiares onde a narrativa nos leva a analisar essas

perseguições a partir de uma ótica mais ampla, indo além do aspecto puramente

religioso, revelando outras esferas, como por exemplo a interferência do Estado na

prática religiosa. Um exemplo que acreditamos ser de grande relevância para

abordar esse tema é o episódio narrado por Berg, quando ele é confrontado por um

delegado no interior do Pará.

290

BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013, p.62.

184

Daniel Berg era um líder pentecostal ativo, praticante de forte proselitismo

religioso, pregando a fé pentecostal na cidade e nos interiores do estado. É

interessante analisarmos a sua chegada à cidade de Bragança, onde, depois de um

tempo em que ele proclamava sua fé, e, segundo conta, havia um grande número de

pessoas aderindo ao pentecostalismo. Eis que na cidade aconteceu que:

Enquanto o trabalho do Senhor se estendia por toda parte, os inimigos maquinavam perseguições, especialmente contra mim. Certo dia, o dono da casa onde eu estava voltou ensanguentado, com o rosto inchado e as roupas rasgadas. Não sabia explicar o que acontecera porque estava muito escuro. A única coisa que sabia era que fora atacado por muitos homens armados de paus. Levamos o ferido à presença do delegado de Polícia. Depois de ouvir a vítima, o delegado disse-me que ele tivera sorte, pois poderia ter sido pior, e de fato pior aconteceria se ele e outros crentes não deixassem aquelas fantasias e voltassem à igreja católica. Nesse caso, tudo terminaria bem. Quando ouvimos aquelas palavras do delegado, entendemos que a igreja católica estava por trás dos acontecimentos e que o delegado estava ao lado dos inimigos da causa de Cristo. Nós não havíamos transgredido a lei. A autoridade local, ao dar cobertura aos transgressores, transformara-se em ditadora da lei, quando deveria ser responsável pelo seu cumprimento.291

Ao contrário das outras perseguições narradas por Berg e Vingren, nesta o

líder pentecostal conta um caso de violência física real, que foi além da ameaça. O

homem pentecostal que hospedava Daniel Berg em sua casa foi ferido por homens

armados de paus. Mas a diferenciação não se esgotava por aí. Berg foi prestar

queixa ao delegado, e além da autoridade não punir os agressores, aparentemente

deu razão a eles e culpabilizou os pentecostais, dizendo que deixassem as

―fantasias‖ e se voltassem para o catolicismo. Berg acusa o delegado de estar aliado

aos ―inimigos‖, no caso os católicos.

O acontecimento aqui vai além das difamações e ameaças de morte. Daniel

Berg relata a sensação de desamparo que sente do próprio Estado com relação a

sua segurança. Entende perfeitamente que ―não havia transgredido a lei‖, e que as

autoridades locais se transformaram em ―ditadores da lei‖, agindo em prol da igreja

que o perseguia.

291

BERG, Daniel. O enviado de Deus: memórias de Daniel Berg. São Paulo, 1959, p.129.

185

O papel que o delegado adquire na narrativa de Daniel Berg é bem

interessante, ele é retratado como um dos seus ―opositores‖ que mais ocupa espaço

em suas ―memórias‖. Quando o seu diário é publicado, desde a primeira publicação

em 1951 até a mais recente, há divisões em capítulos e percebemos a aparição do

delegado em três desses capítulos, sendo que há um capítulo dedicado apenas às

perseguições do delegado, intitulado ―delegado pune os crentes‖.

No continuar da narrativa, Daniel Berg mostra que a perseguição do

delegado, para além de religiosa, era política.

O delegado estava preocupado, sem dúvida, com o futuro de sua carreira política. Ele sentia que cada novo membro da igreja era um voto a menos nas urnas a seu favor. Comparada com o total da população do distrito, a igreja ainda não era tão grande. Por essa razão ele resolveu ficar do lado dos agressores, pelo menos até que a igreja crescesse um pouco e tivesse maior influência. Enquanto isso, os líderes católicos não se mostravam satisfeitos com os resultados da perseguição, apesar dos muitos esforços para nos atingir.292

O número de pentecostais no interior de Bragança, local onde essas

possíveis perseguições estavam acontecendo, não ultrapassava o número de

católicos. Por mais que os pentecostais tivessem crescido na região, eles ainda

eram minoritários. Todavia, segundo a narrativa, o delegado reagiu de acordo com o

crescimento constante do movimento pentecostal que possivelmente ocorria ali, e

deixou evidente que se o movimento continuasse a crescer ele perderia influência

entre os católicos locais. O delegado ainda se sentia influente por ter a Igreja

Católica como aliada política, de forma que defender os pentecostais agredidos por

católicos seria ir contra uma instituição ainda poderosa na cidade, e que era sua

possível grande aliada para adquirir poder político e estatal.

Daí para frente, o delegado é citado por Berg diversas vezes, e por sua vez

enviou militares para vigiarem seus cultos.293 O delegado ordenou certa vez que

todos os crentes do culto fossem à delegacia.294 Contudo, sem um motivo que

pudesse ser minimamente uma suspeita de crime, os mandou ir ao cemitério ―limpar

o campo dos mortos‖295. Logo após esses episódios, para além do desamparo do

292

BERG, Daniel. O enviado de Deus: memórias de Daniel Berg. São Paulo, 1959, p.133. 293

Ibidem, p.134. 294

Ibidem, p.135. 295

Ibidem, p.136.

186

delegado, nos dias que se seguiam, Berg continua a relatar outras perseguições

sofridas e a feitas a outros pentecostais de Bragança. Cita que ―ajuntaram-se

cinquenta homens para me matar‖296. Depois de terem escapado, esses homens

―arrombaram as portas das casas e agrediram os membros da igreja‖297, fazendo

com que Berg mais uma vez levasse os pentecostais feridos às autoridades locais e

tendo recepção muito semelhante à anterior.

[...] ouvimos como resposta, que tivemos muita sorte por não ter acontecido coisa pior, compreendemos então que estavam do lado dos perseguidores, que pertenciam à mesma horda corrupta e que não tomariam qualquer providencia para fazer justiça.298

Dessa vez ele fala de forma mais genérica, não sabemos se Daniel Berg se

referia ao mesmo delegado que o perseguiu, ou se faz menção a outras autoridades

locais que também não o ajudaram e se colocaram do lado dos católicos

agressores, como o delegado. Independentemente disso, o que o pioneiro

pentecostal narra aqui vai além de uma perseguição entre católicos e protestantes a

nível religioso, assim como também vai além das violências físicas e simbólicas

sofridas. O que está sendo tratado aqui é que ele se sente diante de um catolicismo

atrelado ao Estado, não pela via legal, mas porque suas autoridades que

representavam o Estado naquela região eram ligadas à Igreja Católica, fosse por

convicção religiosa, política ou ambas somadas. Enquanto esse tipo de tensão e

confronto ocorria, os pentecostais cresciam rapidamente na região, uma

religiosidade acatólica cara a cara com um catolicismo que ia além da questão

religiosa, mas que tinha como pares, ainda que extraoficialmente, as autoridades

políticas.

Algo que é importante ressaltar, seja nos ditos de Daniel Berg ou Gunnar

Vingren, é o ar triunfalista em suas narrativas. Vale observar que todos os ataques

partiam de ―inimigos‖ que eram ―vencidos‖ por eles, sempre ―guiados pelo Espírito

Santo‖ para isso. Nos diários há uma constante heroização dos missionários em

vivenciar adversidades e superá-las por meio do poder sobrenatural do Espírito

Santo, se assemelhando inclusive às vivências dos apóstolos descritas no livro de

296

BERG, Daniel. O enviado de Deus: memórias de Daniel Berg. São Paulo, 1959, p.141. 297

Ibidem. 298

Ibidem, p.142.

187

Atos. Tal postura ufanista convida a analisarmos com cautela e criticismo os fatos

narrados.

Contudo, o nosso principal foco não recai sobre a discussão da veracidade

dos fatos narrados. Nos cabe entender quais são os elementos simbólicos locais

que Vingren e Berg elegem para si na construção de suas narrativas missionárias.

Nos casos analisados, nota-se o catolicismo como um significativo elemento de

antagonismo, de uma religião hegemônica que os persegue e ataca com toda sorte

de violências, simbólicas e físicas, e revela um poder que abrange até mesmo o

aparelho estatal. Uma igreja atrelada ao Estado pro alianças políticas. Assim, essa

narrativa missionária na qual os católicos ocupam o papel de perseguidores ganha

uma dimensão para além da religiosa, mostrando um catolicismo altamente

vinculado ao Estado em algumas regiões do Pará. Os seus perseguidores iam além

do católico leigo popular e das lideranças católicas locais, mas dos próprios

representantes do Estado que eram aliados da Igreja.

Gunnar Vingren, de estada no interior do Maranhão, também relata um caso

de perseguição aos ―crentes‖ da região:

Depois de algum tempo, surgiu em Guatipurá uma grande perseguição contra os crentes. Eles foram espancados até correr sangue, e depois foram levados a prisão. As autoridades diziam: ―Vejamos que tipo de religião eles têm‖. O comissário sabia que era contra a Constituição do país perseguir os crentes e prendê-los. Mas ele queria prova-los para ver se os irmãos ficariam zangados por aquela injustiça. Quando chegaram na prisão, os crentes começaram a orar e a louvar a Deus. E o povo se reuniu na frente da cadeia para escutá-los. Ali mesmo Jesus batizou um desses crentes com o Espírito Santo. O comissário também tinha dito ―agora veremos se Jesus vem e lhes dá pão!‖. Sem saber desse comentário, um dos soldados lhes trouxe pão. Após concluírem que não valia a pena manter presas pessoas que cantavam dentro da própria prisão, as autoridades deixaram os crentes voltar para suas casas, e disseram: ―vocês tem uma religião que nós não temos e não entendemos‖.299

Assim como no episódio narrado por Daniel Berg, aqui também ocorre um

fenômeno semelhante. Os pentecostais foram perseguidos a ponto de sofrerem

violência física. E, mais uma vez, além de não receberem o amparo das autoridades,

foram perseguidos por elas. Por fim, os ―crentes feridos‖ acabaram presos.

299

VINGREN, Ivan. O diário do pioneiro Gunnar Vingren. Rio de Janeiro, 1961, p.55.

188

Assim como Daniel Berg, Gunnar Vingren faz questão de retratar a

consciência que ele tinha com relação à lei. Conhecia a Constituição brasileira

vigente, e sabia que prender os pentecostais era ilegal, mas que o comissário,

mesmo sabendo da ilegalidade do seu ato, os prendeu. Vingren evoca o Código

Penal e a liberdade religiosa protegida constitucionalmente à luz da lei do período

republicano como elemento de amparo que poderia ser usado a seu favor. O

interessante ao analisarmos a narrativa missionária de Gunnar Vingren é que ele

tinha consciência que havia uma constituição que os protegia, e que ela em diversos

momentos não era aplicada.

Nesse particular momento histórico, onde havia no Brasil uma aparente

legitimidade da liberdade religiosa, Daniel Berg e Gunnar Vingren contam que essa

jurisdição nem sempre era aplicada no Norte do país. E não apenas isso, essa

perseguição por parte dos católicos, fosse do leigo, das autoridades católicas e das

próprias autoridades políticas, era um instrumento de denúncia misturado a um

discurso triunfalista no qual, mesmo com adversidades como o enfrentamento da

maior religião do país e dos aparelhos estatais, o pentecostalismo continuava

triunfando e crescendo no Norte e no resto do país.

Independentemente de serem meras narrativas, assim como os veículos de

imprensa os diários não devem ser desacreditados, embora sejam cautelosamente

analisados pelos pesquisadores, devemos perceber, no cruzar das informações, se

eles têm coerência com a conjuntura vivida no período em que foram escritos. E

pelo que já vimos no decorrer da pesquisa, fica claro que a Igreja Católica, mesmo

deixando de ser a religião oficial, ainda detinha poder e influência no Estado através

de sua hegemonia social no país, especialmente no Norte. Um poder que ia além da

esfera religiosa, alcançando também o poder do Estado, como a narrativa dos dois

missionários pentecostais explicita.

O comissário revela um espanto que também é a reação de outros diversos

católicos e protestantes: ―Vocês têm uma religião que nós não temos e não

entendemos‖. Os católicos e protestantes locais estavam diante de um movimento

religioso novo, uma vertente protestante que evocava uma religiosidade

experiencialista e mística, um usufruto do Espírito Santo diferenciado que não se

encaixava na dogmática católica tampouco na protestante. Para além disso,

católicos, protestantes e os próprios pentecostais percebem que esse era um

movimento que se expandia rapidamente, e tal expansão de um novo movimento

189

religioso, ainda que com diversas permanências de práticas de fé do seu movimento

base, esbarra em um estranhamento de seu próprio movimento de origem, onde

suas experiências sobrenaturais são tratadas como patológicas e demoníacas.

Além disso, eles se depararam com uma hegemonia católica que

permanecia presente na mentalidade social da maioria da população local,

percebendo também um atrelamento da Igreja Católica ao Estado, ainda que

tivessem consciência de que no estado republicano a Igreja Católica era,

oficialmente, separada do Estado. Esse atrelamento não oficial entre Igreja e Estado

será objeto de análise pormenorizada no próximo capítulo

190

CAPÍTULO IV – “O APOLOGISTA CHRISTÃO”:

A SEPARAÇÃO ENTRE IGREJA E ESTADO E A PRISÃO DE JUSTUS NELSON

Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum.300

4.1 ―A SEPARAÇÃO ENTRE IGREJA E ESTADO‖

Acredito que para melhor retratar esses conflitos entre católicos e

protestantes diante de uma sociedade hegemonicamente católica, para além do que

já foi dito, seria interessante entender casos como o da prisão de Justus Nelson.

Casos como esse nos revelam essa nova conjuntura social que o período

republicano trouxe, na qual esses conflitos acabavam por ser influenciados por esse

novo modelo político que representava o fim do Império e o surgimento da república

brasileira. Para nos ajudar a refletir sobre esse caso, nos embasaremos em diversos

trabalhos teóricos e historiográficos, mas principalmente nas matérias do jornal ―O

Apologista Christão Brazileiro‖.

O pastor metodista era um sujeito ativo de seu tempo, não apenas no

aspecto do proselitismo religioso com relação a sua denominação, mas também do

político. A partir de Justus Nelson, podemos analisar as particularidades da

República em casos onde a separação entre Igreja Católica e Estado estava sendo

refletidas nas discussões públicas. A abordagem de temas como partido

republicano, casamento civil e separação entre Igreja e Estado eram comuns no

jornal ―O Apologista Christão Brazileiro‖.

A temática do casamento civil, em específico, é, entre outros temas,

interessante para entendermos como a conjuntura política no período republicano

havia mudado e como os protestantes se posicionavam com relação a isso, e como

eles influenciavam ou eram influenciados pelo novo modelo político que ali se

instaurava. Na República, se legitimaram os casamentos entre homens e mulheres

pela via jurídica. Não necessariamente vinculados à Igreja Católica. Podendo ser,

inclusive, feitos numa cerimônia religiosa de celebração por outras religiões, modelo

300

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Artigo 72, § 3º. Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao91.htm>.

191

que também seria legitimado pelo Estado. Essa era uma decisão havia muito tempo

desejada por protestantes no Império, assim como outros setores da sociedade.

Discussões sobre o casamento civil, de fato, não se iniciaram no Brasil

república. Debates envolvendo políticas públicas sobre esse tema existiam desde o

período imperial. O parlamento brasileiro já discutia referendos que procurassem

legitimar alguns tipos de matrimônios que não fossem ligados à Igreja Católica. O

casamento legítimo pelo Estado era aquele realizado em uma cerimônia religiosa

católica e dentro de uma igreja. Sendo assim, houve algumas discussões sobre a

legitimidade do casamento de imigrantes que vinham ao Brasil e não eram católicos.

Mesmo ainda no período no qual o Estado era vinculado à Igreja, e em meio

a fortes pressões do catolicismo para que a legitimação do casamento civil não

acontecesse, houve alguns casos relatados pela autora como um breve período de

legalidade da cerimônia civil nos anos de 1861 a 1865. Ela relata a batalha jurídica

que se deu em 1857, pelas mãos do ministro da justiça, Nabuco de Araújo, em

legitimar o casamento civil, usando o argumento que seria ―illusoria a intolerância

religiosa se essas pessoas não forem respeitadas quanto aos direitos civis‖.

Independentemente dos recursos e argumentos proferidos, autoridades vinculadas à

Suprema Corte e à Santa Sé sempre se mostravam contrárias às iniciativas

favoráveis ao casamento civil, pois ―para elas o único que poderia legitimar

moralmente os domínios familiares era o religioso; qualquer outro não passaria de vil

amasiamento‖301.

Apesar dessas e de outras diversas tentativas, e de alguns projetos de lei

que procuravam amparar casos específicos de matrimônios entre não cristãos, a

legitimidade do casamento civil entrou em vigor somente no período republicano.

Ainda assim, com as constantes resistências da Igreja Católica em aceitá-lo como

um matrimônio legitimamente cristão.

Logo, o casamento civil além de ser um novo parecer jurídico na constituição

republicana de 1890, também era motivo de querelas entre católicos e protestantes

desde o período imperial. Na República, com a legalização do casamento civil,

301

COSTA, Heliane Monteiro da. Tensões entre metodistas e Igreja Católica, Belém (1890-1925). Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião), UEPA, Belém, 2013, p.30. Em sua dissertação de mestrado sobre Justus Nelson, faz uma breve análise sobre as discussões do casamento civil no período imperial e republicano. Para trabalhar esse assunto, também nos utilizamos de outras fontes como: SANTOS, Ana Gabriela da Silva. O casamento na implantação do registro civil brasileiro (1874-1916). Anais do I Encontro de pós-graduandos da Sociedade Brasileira de Estudos do Oitocentos. Niterói, 2016, p.01-23.

192

percebemos em Belém a continuidade das discussões entre católicos e protestantes

a partir de posicionamentos como o de Justus Nelson.

Ipojucan Dias Campos, em sua tese sobre casamentos, famílias e relações

conjugais em Belém, nos anos de 1916 a 1940, ao analisar uma relação de desquite

na cidade, o juiz Maurício Cordovil Pinto procurava descrever positivamente o

casamento civil como sendo ―importante para a sociedade, para a moral, para os

bons costumes‖302. No decorrer da declaração, o juiz diz que ―em Belém, os

protestantes fazem verdadeiras festas pela victória do casamento civil e ao contrario

dos catholicos, não compreendem este consórcio como mancebia‖.303

Daí já podemos perceber uma questão interessante, independentemente de

percebermos a hegemonia do catolicismo no país, especialmente em Belém, havia

cidadãos que tinham pensamentos contrários ao discurso oficial do catolicismo

vigente. Juiz Cordovil era católico, mas ainda assim apoiava o casamento civil. Além

disso, citava a reação dos próprios protestantes como um argumento favorável para

a legitimação do caso. O juiz era favorável à interpretação protestante de

matrimônio, usando-a como exemplo positivo para a forma como o casamento civil

deveria ser visto, fazendo com que essa opinião fosse, inclusive, argumento para

dar ganho de causa à mulher que pediu o desquite, Joanna Cavalcante

Albuquerque. Seguindo por essa ideia o autor diz:

Tomando como base o ponto de vista do juiz, tudo indica que, ao contrário do desconforto dos católicos, os protestantes ampliaram pausadamente a sua influência e o enlace civil – em virtude das escalas de poder, jamais significou para eles modelo desprezível. Do item anterior pode-se inferir que as ações da igreja católica influenciavam as pessoas; mas nenhuma força é suficientemente vigorosa para envolver a todos e, diante do civil, é evidente a existência de posicionamentos diferentes, como o dos protestantes.304

A partir desse panorama histórico, já podemos entender melhor o

posicionamento de Justus Nelson sobre o casamento civil, que constantemente

expunha em seu jornal, ―O Apologista Christão Brazileiro‖, o assunto, e sempre

302

CAMPOS, Ipojucan Dias. Para além da tradição: casamentos, famílias e relações conjugais em Belém nas décadas iniciais do século XX (1916/1940). Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p.58. 303

Ibidem, p.59.

304 Ibidem.

193

questionava os jornais católicos que atacavam a legalidade do casamento fora do

viés católico.

Matérias como ―O casamento civil‖, publicada no periódico dirigido por

Justus Nelson, nos ajudam a elucidar melhor o posicionamento do jornal diante do

tema:

A semana religiosa, como era de se esperar, ataca ferozmente a nova lei do casamento civil. Na edição de domingo passado, o seu argumento principal basea-se na premissa de que o casamento é um sacramento. Para provar que é sacramento cita a autoridade de Pio IX no parágrafo seguinte: ―É um dogma de ‗fé‘‖, diz o santo padre Pio IX. ―que o matrimonio foi elevado pelo nosso Senhor Jesus Christo á dignidade de sacramento, e é ponto de doutrina que o sacramento não é uma qualidade accidental, accrescentada ao contracto, mas que elle é da essencia mesma do matrimonio; de sorte que a união conjugal entre os Christãos não é legítima senão no sacramento, fora do qual só há um mero concubinato. Este paragrapho é citado de uma carta ao rei de Sardenha 1852‖ D‘ella seguem algumas conclusões, um pouco espantosas! Por exemplo: se sem o casamento só há um mero concubinato, e se antes de Jesus Christo não houve sacramento de matrimônio, então não se póde deixar de concluir que todas as uniões conjugais antes de Jesus Christo eram mero concubinato. Segue-se que a Virgem Maria mesma, a ―immaculada‖ era também filha do concubinato. Mas porque é que cita o Pio IX para provar que Jesus Christo ―eleveu o matrimonio a dignidade de sacramento‖? Porque não se cita as palavras de Jesus Christo? Porque não nos dá a passagem do evangelho em que este ―sacramento‖ foi instituído? É porque na bíblia inteira não existe uma só passagem que se possa provar que o matrimonio seja sacramento? Não contestamos, mas antes affirmamos a santidade do matrimonio; porém, essa santidade não depende do latim do padre; vem do próprio Deus que nos creou. O que contestamos é a falsidade do dogma romano, que declara que Jesus Christo instituiusse o sacramento do casamento. O casamento civil tem toda a santidade perante Deus que tem a qualquer outro, e a pessoa que violar a santidade do casamento civil fica com a mesma condenação divina que se o seu casamento fosse feito com todas as formalidades romanas.305

O jornal católico ―A semana religiosa‖ que, como vimos anteriormente,

constantemente entrava em atritos com Justus Nelson, fez certa vez uma matéria

sobre o casamento civil na qual reprovava esse tipo de matrimônio. Um de seus

argumentos contrários foi registrado por Justus Nelson, nele o jornal se utilizava das

305

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―O casamento civil‖. Belém, 1890.

194

declarações do Papa Pio IX para defender o casamento como um sacramento da

Igreja, e, por isso, só deveria ser legítimo se a cerimônia fosse feita num rito religioso

católico, senão seria mero ―concubinato‖.

O jornal católico mantém a argumentação padrão, procurando mostrar a

opinião de algum papa, seja atual ou antigo, para lançar sua argumentação que

consiste em: o dogma defendido encontra autoridade através da autoridade do

sacerdote, da autoridade da Igreja ou da tradição histórica católica. Justus Nelson,

como forma de contrapor essa afirmação, se utiliza da arguição mais típica entre os

protestantes, a de colocar a Bíblia como autoridade máxima para contra-argumentar

os dogmas do cristianismo. Para Justus Nelson, não havia nenhuma passagem

bíblica que determinasse o casamento como sacramento, de forma que procurou

deslegitimar a palavra do Papa ou dos padres como autoridades para legitimarem

esse dogma. Justus Nelson não economiza seu jeito jocoso ao dizer que o ―latim‖ do

padre, que fazia parte da cerimônia religiosa católica, tinha menos validade para

legitimar o casamento, que o próprio Deus, reiterando a mentalidade protestante de

autonomia do leigo, na qual o fiel detinha acesso direto a Deus sem precisar da

intercessão do sacerdote religioso católico, inclusive para casamentos.

A força do argumento aqui vai além da tentativa de mostrar a contradição do

argumento católico, mas de contradizer seus principais ícones de suas crenças, a

autoridade do Papa e a Virgem Maria, posta como ―Imacullada‖, assim, entre aspas,

mostrando o deboche e o descrédito de Justus Nelson diante da crença católica de

ter sido Maria uma mulher virgem e sem pecado.

O artigo prossegue.

Outro paragrapho citado pela Semana Religiosa vem de Montesquieu- Espírito das Leis, e diz ―Tudo quanto respeito ao caracter do casamento, a sua forma, a sua maneira de o contrahir, a fecundidade que procura... tudo isto é do domínio da religião‖ Então, não haverá fecundidade se tivermos o casamento civil? Ou se houver, será differente da fecundidade do casamento eclesiástico? Como é que os celibatários vão fiscalizar a fecundidade de suas ovelhas? A resposta verdadeira dessas perguntas se encontra no confessionário. É ahi que os padres, por meio de perguntas innocentes, se encarregam de saber tudo o que há de mais sagrado da vida e do leito conjugal. Se alguém duvidar, leia o livro intitulado O padre, a mulher e o confessionário pelo ex padre Chiniquy. Ahi encontrará (em latim) horrores, que num jornal não se pode publicar, mas que nas vésperas das núpcias se segredam nos

195

ouvidos das noivas para prepara-las para o sacramento, e depois para fiscalizar a sua fecundidade J.H.N.306

Justus Nelson reitera sua difamação às autoridades católicas com sua

maneira jocosa e sarcástica de tecer críticas. Utilizando da literatura de um ex-padre,

insinua que os padres têm a prática de fiscalizar a vida sexual dos fiéis católicos a

partir de perguntas tendenciosas nos confessionários. É uma continuidade da

desqualificação ao catolicismo a partir de seus principais simbolismos: os

sacerdotes, que representam a igreja, e a autoridade religiosa que eles possuem.

Aqui o artigo acrescenta um elemento discursivo inédito se comparado aos

outros que já havíamos visto, para além dos atritos sobre dogmas religiosos. Ao

inserir Montesquieu no debate, o jornal ―A semana religiosa‖ quis mostrar que a

defesa do casamento como sacramento era defendido não apenas pela tradição

católica, mas por um dos principais teóricos que embasaram o modelo republicano

ocidental. Ao citar trechos da obra ―O espírito das leis‖ está inaugurada uma

argumentação que não era baseada nos dogmas católicos ou em sua tradição, mas

em teoria política e jurídica. O casamento civil era uma causa onde as querelas

entre católicos e protestantes ganhavam uma proporção acima de seus dogmas,

pois estavam diante de uma ação legitimada pelo Estado, e para defendê-lo ou

combatê-lo, as argumentações também se mesclavam com teorias políticas e

jurídicas.

O casamento civil é um exemplo de como, agora, os debates entre católicos

e protestantes estavam se adaptando a uma nova conjuntura. Tudo era posto diante

de um novo cenário político, de uma nova constituição, que, em diversas cláusulas

como esta, era contrária aos dogmas católicos e favoreciam ideais protestantes. A

legalização do casamento civil, além de facilitar a legitimidade do matrimônio entre

acatólicos, também mostrava o quanto o cenário político havia mudado. Essas e

outras leis efetuadas na constituição de 1890 eram consequências da própria

separação entre Igreja e Estado, que surgiu junto com a República. Daqui podemos

entender a importância que o jornal dava ao referido assunto, recorrente nas

publicações do jornal. Refletimos, aqui, não apenas a mudança política que ocorria

no Brasil, mas a própria relevância dela para católicos e protestantes, e onde suas

306

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―O casamento civil‖. Belém, 1890.

196

dinâmicas religiosas eram afetadas com as mudanças nas estruturas de estado no

período republicano.

Pelo que analisamos no segundo capítulo, no período imperial, mesmo com

uma certa tolerância ao protestantismo no Brasil, a religião ainda era ilegal, e uma

estratégia de muitos protestantes para manter seus cultos era se relacionar com

cidadãos de forte expressão política e econômica. Contudo, mesmo com esses

subterfúgios e com a admiração de diversos intelectuais e até do próprio imperador,

o catolicismo, à luz da lei, continuava sendo a religião oficial do estado e o

protestantismo, assim como outras religiões, permaneciam na ilegalidade.

No Brasil, a ideia de progresso aliou, no fim do Império, liberais e

positivistas, ajudando a solidificar uma ideia liberal conhecida como ―o espírito da

civilização moderna‖, que, segundo Mendonça, pode ser resumido em:

[...] deseo de secularizaçon progressiva de lá sociedad; la promocion de las massas em perjuicio de las elites jeráquicas; la liberación de los espiritus com respecto a la autoridade, em nombre del progresso científico; la separacion de la Iglesia y del Estado, y la concepcion evolutiva de la sociedad.307

Os termos ―moderno‖, ―modernidade‖ e ―progresso‖ são percebidos aqui

como características positivas e que se baseiam em um sentido de ―evolução‖, como

se espaços, hábitos, leis, infraestrutura e costumes que tivessem essas adjetivações

fossem se tornando gradativamente melhores na perspectiva de um tempo linear.

Os liberais apresentavam a nação norte-americana como um modelo ideal de nação,

e seus conceitos de secularização, cientificismo e separação Igreja – Estado como

caminhos para a nação se tornar um ―estado-nação ideal‖.

As discussões para se implantar o modelo republicano eram intensas em

períodos anteriores, a ponto de, por alguns momentos, os militantes republicanos

arquitetarem planos até maiores de conquista do Estado. Nas década de 1870 e

1880 eles planejavam até mesmo conspirações armadas contra a Monarquia, depois

307

MENDONÇA, Antônio Gouveia. La cuestión religiosa y la incursión del protestantismo en Brasil durante el siglo XIX: reflexiones e hipótesis. In: BASTIAN, Jean Pierre (Comp.). Protestantes, liberales y francmasones: sociedades de ideas y modernidad en América Latina, siglo XIX. México: Fondo de Cultura Económica, 1990, p.68.

197

de diversas tentativas anteriores para derrubar o regime monárquico por vias

legais.308

A luta por separação da Igreja Católica e do Estado era uma das principais

bandeiras de luta do protestantismo no decorrer do Império, batalha que só teve fim

no período republicano. Quando Rui Barbosa, católico que fazia parte do grupo

maçônico que militava pela República, escreveu os decretos que, entre eles,

legitimavam a separação da Igreja do Estado, como retrata o autor:

La gran lucha por la separacion de la Iglesia y del Estado, y por todos os direchos civiles de los no catholicos llegaba a su fin com el auge de la República. Rui Barbosa personamente, redactó los decretos e estabeleceo uma serie de cuestiones (entre ellas separacion entre iglesia y el Estado e lá secularizacion dos cemitérios).309

Ao analisarmos as duas constituições, notamos uma clara diferença no

código penal no que se refere à relação do Estado com a religião. No período

imperial, a constituição legitimava a religião católica como a ―religião do império‖,

quando todas as religiões, juridicamente, ganham a liberdade religiosa de culto

público:

Constituição Politica do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1824) [...] Art 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior ao Templo.310

Decreto n. 119, de 7 de janeiro de 1890 Art 1. E‘ prohibido á autoridade federal, assim como á dos Esados federados, expelir leis, regulamentos, ou actos administraticos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear diferenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento por motivos de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.

308

David Vieira Gueiros trata sobre as alianças entre grupos minoritários no período imperial, como protestantes, maçons e republicanos. GUEIROS, David Vieira. Liberalismo, maçonaria y protestantismo em Brasil. In: BASTIAN, Jean Pierre. Protestantes, liberales y francmasones. México: Fondo de Cultura Económica, 1990. 309

Ibidem, p.65. 310

BRASIL. Constituição Politica do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro, 25 de março de 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>.

198

Art 2. A todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou públicos, que interessem o exercício desde decreto. Art 3. A liberdade aqui constituída abrange não só os indivíduos nos actos individuais, sinão também as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados, cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder público.311

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891) [...] Art 72. [...] § 3 Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum.312

A diferença entre as constituições do Império e da República com relação ao

papel do Estado diante da religião é clara: no Império vemos expresso juridicamente

o que percebemos no capítulo anterior na historiografia protestante brasileira. As

religiões não católicas poderiam exercer apenas o culto privado, o culto público era

ilegal, ―sem forma alguma exterior ao templo‖; no período republicano, há toda uma

preocupação com relação a uma liberdade religiosa, liberdade de culto público e a

não intervenção do Estado na dinâmica religiosa das mais diferentes religiões.

Com essa percepção da separação da Igreja e do Estado nos regimes

democráticos, percebemos como as reflexões de Chantal Mouffe nos ajudam a

entender esse fenômeno. Segundo a autora,

[...] a democracia liberal é a expressão de valores específicos que informam a maneira como ela estabelece um modo de ordenamento das relações sociais. É este novo ordenamento simbólico que constitui sua especificidade como um regime distinto. Como uma nova forma política da sociedade, a democracia pluralista liberal se caracteriza por certo número de separações cruciais: entre o público e o privado, entre Igreja e Estado; entre lei civil e lei religiosa. São essas separações que possibilitam a emergência da sociedade civil como domínio

311

BRASIL. Decreto n. 119, de 7 de janeiro de 1890. Prohibe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em materia religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providências. Rio de Janeiro, 7 de janeiro de 1890. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-119-a-7-janeiro-1890-497484-publicacaooriginal-1-pe.html>. 312

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm>.

199

distinto. Ademais, a noção liberal de estado secular não apenas implica a distinção entre Igreja e Estado, mas também a concepção da Igreja como associação voluntária.313

Justus Nelson, em 1890, era um sujeito ativo diante dessa discussão, que

acabou resultando no Código Civil registrado em 1891, que dá plena liberdade para

todas as confissões religiosas exercerem seu culto, não apenas em suas casas,

mais publicamente, construindo seus templos e podendo acumular bens para dar

prosseguimento à sua dinâmica religiosa não católica. Justus Nelson, como

protestante, participava de forma aguerrida desses debates, publicando diversas

matérias sobre o tema e afirmando seu posicionamento no jornal. Através dele,

podemos ter uma ideia de parte das discussões religiosas que ocorriam na cidade.

Justus Nelson fazia questão de destacar esse fenômeno político nas matérias do

seu jornal:

Acabamos de receber um importante monographo sobre o assumpto que mais interessa grande parte de nossa nação- a completa igualdade perante a lei de todas as formas de crenças e de cultos. Em seguida reproduzimos os últimos parágrafos: A separação da egreja e do estado, e o estabelecimento de todos os cultos no mesmo pé de igualdade, nenhuma injustiça trata para a Egreja de Roma. Ella ficará gozando da mais completa acção, assim como os outros cultos ficaram com igual direito. Ninguém ousará desacatal-a em seu culto; ninguém apedrejará os seus templos; todas as suas festividades terão a mesma garantia que hoje.314

Justus Nelson fala da separação de Igreja católica e Estado como um

assunto que interessa não apenas a protestantes, mas a grande parte da nação. O

que mostra também que o público de alcance desejado pelo pastor, ao menos nessa

matéria, vai além de seu próprio rebanho, além dos fiéis de sua crença. Isso é

importante para notar a própria postura do jornal, se posicionando como um veículo

importante de informação não apenas para protestantes, mas para toda a sociedade

brasileira.

Quando se trata desse assunto, Justus Nelson sempre deixa claro que a

Igreja Católica não perderá direitos. Apesar do tom agora já menos jocoso e mais

313

MOUFFE, Chantal. Religião, democracia liberal e cidadania. In: BURITY, Joanildo; MACHADO, Maria das Dores (Orgs.). Os votos de Deus: evangélicos, política e eleições. Recife: Massangana, 2006, p.20. 314

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―A separação do Estado e da Egreja‖. Belém, 01/02/1890.

200

informativo, ainda notamos uma leve ironia na mensagem, ao dizer que quando a

Igreja deixar de ser a religião oficial do Estado não haverá desacato à igreja sem

apedrejamento de seus templos, provavelmente ironizando ao retratar, nas

entrelinhas, aquilo que muitos protestantes passavam: desacato e ameaças a sua

integridade física.

O tema ―separação entre Igreja e Estado‖ era importante para o jornal, a

ponto de se tornar inclusive uma coluna. Outros textos com essa temática foram

feitos com essa mesma titulação no ano de 1890. Em outra matéria, Justus Nelson

menciona a importância da referida separação até para a própria Igreja Católica.

A separação da egreja com suas consequências, o casamento civil, etc, em vez de ser uma medida de perseguição, uma medida vexatória, nas condições em que se achava a egreja brasileira, podemos dizer, sem medo de séria contestação, que foi um acto reclamado pela opinião pública e que trouxe somente vantagens para ambas as sociedades. Com effeito, qual o estado da Egreja Brazileira no tempo da monarchia? Era simplesmente lastimoso e se tendia cada vez mais a anullar-se completamente. Ella não tinha a liberdade precisa pois ahi estavam o direito do padroado, com todo o cortejo de suas regalias, com o recurso a coroa, o beneplácito, etc. Sob o pretexto de proteção, achava-se a egreja sujeita a liderança do Estado e quando os bispos, fieis ao seu dever, queriam fazer cumprir as leis da egreja ou executar as bulas e os Papas, não o podiam fazer sem o beneplácito régio, sob pena de serem arrastados para a prisão. Ainda está na memória de todos a prisão do sábio bispo do Pará e do de Olinda, prisão realizada n‘esses bons tempos em que a Egreja era subordinada ao estado.315

Essa matéria publicada no jornal ―O Apologista Christão Brazileiro‖ não foi

escrita por Justus Nelson, mas tirada do Jornal Republicano Brasileiro. O

interessante é o jornal selecionar uma matéria que alardeava as vantagens para a

própria Igreja Católica com a separação da Igreja e do Estado. Isso mostra que ele

não apenas se preocupava com a temática, mas buscava até apoio de grupos que,

em muitos momentos, eram antagônicos a sua fé, no caso os fiéis católicos.

A matéria retrata a separação entre Igreja e Estado como uma medida

aclamada pela opinião pública, onde a própria Igreja Católica não tinha liberdade

para cumprir as leis da igreja, executar as bulas papais – se elas fossem contrárias

às leis do Estado. Como exemplo, o texto retrata a prisão do ―sábio bispo do Pará e

315

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―Separação entre Igreja e Estado‖. Belém, 1890.

201

de Olinda‖, provavelmente se referindo a Dom Macedo Costa e sua prisão no

maranhão.

Das duas últimas matérias que abordamos, como já dito, os textos tinham

um estilo de escrita menos ácido e irônico que outros temas. Parecia ser uma nova

forma escolhida por Justus Nelson para informar a importância da separação da

Igreja e do Estado, até para os próprios católicos. Provavelmente, nesse assunto, o

pastor metodista pretendia ter a simpatia do clero católico, tentando convencer que a

causa era importante para todos e não se deveria fazer querelas em torno dela.

Na matéria ―A separação‖, notamos o apontamento de diversos temas

recorrentes que o jornal publicava, como a separação entre Igreja e Estado, o

casamento civil e a devoção mariana:

Mez de Maria: findou-se o mez da mariolatria mas não a mariolatria. Nos púlpitos dessa capital, o clero aproveitou-se da concurrencia para explicar a carta pastoral episcopal da maneira que isso lhe foi encomendado. Bradarão os padres contra a separação da igreja do estado e contra o casamento civil. Uma pessoa de confiança nos diz em uma dessas noites de culto matriolatro, o vigário da igreja da trindade, tratando de casamento civil avisou às moças que senão se casarem pelo rito catholico, os seus filhos não serão baptizados pelo clero catholico em nome da santíssima trindade, nem seriam considerados filhos legítimos, e quando os trouxessem para receber o baptismo, os paes casados só civilmente, devião esperar que no registro de lançasse o nome do filho como filho natural do casamento civil, baptizado em nome do Escrivão juiz de paes fulano de tal. Tambem se ameaça a longa lista de horrores que a um devoto da igreja romana parecem tão medonhos; mas que ao resto do mundo, não são senão fabulas- a negação pela igreja da absolvição, os sacramentos da igreja, a sepultura em terra benta, e missas para tirar lhes as almas do purgatório.316

Nessa matéria, Justus Nelson diz que nas missas os padres falavam de

assuntos como separação Igreja e Estado e casamento civil. Possivelmente, essa

era uma discussão que também atravessava o campo católico, e era discutida até

mesmo dentro do templo religioso. Segundo o pastor, havia ameaças de padres de

não batizarem os filhos das mulheres que efetuassem o casamento civil, além de

outras crenças propagadas que o pastor define como fábulas, como ―os

sacramentos da igreja, sepultura em terra benta, missas para tirar as almas do

316

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―A separação‖. Belém, 31/05/1890.

202

purgatório‖. Aqui, mais uma vez, religioso e político se misturam, tanto nas possíveis

atitudes dos padres em usar do espaço das igrejas para opinar sobre as questões

políticas do momento, quanto de Justus Nelson, que em seu jornal defende

constantemente a separação entre Igreja e Estado e o casamento civil. Nessa

matéria, em especial, há uma tentativa de desqualificação do catolicismo, de

denunciá-lo como uma igreja que coage seus fiéis em crenças que, para ele, são

mitológicas e mentirosas, reconhecidas em todo o mundo como tal, menos na região

em que ele presencia isso.

Pela frequência do jornal a abordar esse assunto, notamos o interesse de

Justus Nelson em defender a legitimação da separação entre igreja e estado. Esta

causa era usada contra os católicos como a luta para a concretização de um objetivo

político, mas também para deslegitimar a Igreja Católica como a religião oficial e

conseguir, assim, maior liberdade religiosa para a fé protestante. Justus Nelson

ataca os acontecimentos locais, confronta a fé e prática católica paraense, expõe as

suas particularidades e as denuncia como sendo heréticas.

Por mais que a separação entre Igreja Católica e Estado tenha sido

legitimada em 1891 no plano jurídico, dando liberdade religiosa para grupos como os

protestantes exercerem livremente sua fé na esfera pública e privada, o discurso do

jornal ―O Apologista Christão Brazileiro‖, semelhantemente às narrativas do

movimento pentecostal, nos faz entender que, por mais que o protestantismo fosse

algo juridicamente legalizado, na prática as tensões entre católicos e protestantes

continuaram se desdobrando em embates que iam além da arena religiosa,

englobando até mesmo a estrutura do Estado de forma a coibir as práticas religiosas

de protestantes.

4.2 ―O ULTRAJE À RELIGIÃO CATÓLICA‖: A PRISÃO DE JUSTUS NELSON

Apesar das tensões entre Justus Nelson e o catolicismo vigente já terem

sido construídas anos antes, o estopim para que ele fosse denunciado e preso se

baseou em dois artigos de sua autoria publicados em 1892, um ano depois do

código penal de 1891 sobre separação entre Igreja e Estado ser estabelecido na

república.

203

O Bispo do Pará affirma ser Maria, mãe de Jesus, padroeira do Pará, isto é, da diocese do Pará que compreende os dois estados de Pará e Amazonas – A amazonia. Ora, queremos saber se é facto histórico ou não essa proteção mariana na Amazonia. A religião christã é uma religião de factos históricos, Jesus Christo nasceu, viveu, foi crucificado, ressuscitou, e provou a sua ressurreição por meio de muitas testemunhas oculares incapazes de enganar-se. Agora procura impingir á amazonia uma religião ou um culto mariano, por ser Maria protectora das plagas amazônicas. Compete ao Sr Bispo declarar os factos históricos sobre os quaes se basea a sua afirmação. 1. Desde que data ficou Maria sendo padroeira da Amazonia? Inaugurou se a sua protecção antes da descoberta do rio Amazonas por Vicente Piçon, no ano 1500, ou depois? 2. Se foi antes seria ella padroeira de selvagens e pagãos? 3. Se foi depois de 1500 que innaugurou-se a protecção mariana no valle do Amazonas, em que anno foi? 4. A sua escolha foi por acclamação, ou por eleição popular, ou foi ela mesma que escolheu este valle desprezando as regiões de Maranhão, de Ceará, de Piauhy, etc? 5. Se foi por aclamação ou eleição popular, a quem communicou ella a sua acceitação do titulo da padroeira? 6. Se foi por acclamação ou eleição popular, a quem communicou ella a sua acceitação do titulo de padroeira? 7. Se ella mesma escolheu este território, despresando os outros Estados para o sul por intermédio de quem communicou ella essa noticia aos mundanos d‘aqui? Convidamos o Sr Bispo para responder ou pessoalmente ou por intermédio de pessoa da sua confiança authorisada, a esses quesitos. E compromettemo-nos a publicar a sua resposta se for convenientemente redigida quanto á linguagem, pondo á sua disposição até duas columnas da nossa folha. Se não responder até o fim do mez corrente (Mez de Maria), julgamos ter razão em considerar essa padroeiragem mariana da Amazônia como simplesmente uma fabula para engodar aos ignorantes.317

Quando Justus Nelson desafia o bispo a provar com fatos históricos que

Maria seria a padroeira da Amazônia, mais uma vez ele usa o argumento de pedir

uma prova material e racional da crença mariana paraense, mostrando o

racionalismo protestante frente ao misticismo católico. O desafio também serve

como enfrentamento a uma autoridade católica que, como já vimos, também é um

símbolo significativo para o catolicismo, procurando, assim, desconstruí-la. Fora

isso, a afirmação do marianismo local ser ―uma fábula para engodar os ignorantes‖

passa uma mensagem dualística, o protestantismo como uma fé culta, racional e

verdadeira, e o catolicismo local como religiosidade ignorante e falsa.

317

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―A Padroeira‖. Belém, 01/07/1892.

204

Outro artigo publicado no jornal e que também serviu como material de

acusação foi a matéria ―A cathedral do Pará‖.

Afinal estão concluídas as obras de concerto e embellezamento da Cathedral do Pará. Está marcado o dia 1 do corrente mez de Maio, data d‘esta folha a reabertura d‘esse edifício Promettem a assistência dos bispos do Ceará e do Maranhão. Escolheu-se o dia 1 de Maio para a reabertura por ser Maio o ―mez de Maria‖ e ser ella chamada ―padroeira d‘esta diocese‖. A cathedral foi preparada especialmente com vistas ao culto mariano. É de esperar que as ceremonias da reabertura deem grande impulso á idolatria mariana. Que sempre importa o desprezo e o abatimento da religião christã. Da adoração da Virgem para a das virgens é passo curto. Não é de admirar que esses celibatários coroados sejam propagandistas tão acirrados da novíssima religião de Maria.318

Nessa matéria, a narrativa é ainda mais depreciativa, retratando a Catedral

do Pará como um espaço que seria utilizado para uma devoção a Maria que, para o

pastor, era idólatra e uma prática de ―desprezo e abatimento da religião cristã‖. A

utilização de um termo como esse nos mostra que as devoções a Maria, para Justus

Nelson, não deveriam ser classificadas nem como cristianismo, e sim mas como

uma ―novíssima religião de Maria‖, algo não cristão, uma religião herética.

Levando em consideração o peso que era para os paraenses a figura de

Maria e sua religiosidade devocional, como vimos no primeiro capítulo, já

conseguimos supor o quanto Justus Nelson atingia a religiosidade de toda uma

região.

O bispo católico ao qual Justus Nelson direcionava o desafio nunca chegou

a responder as provocações. Em contrapartida, Justus Nelson foi denunciado pelo

próprio promotor de justiça do estado, que se apoiou no Artigo 185 do Código Penal,

como o próprio Alex Seabra cita, através do parecer do juiz substituto, Dr Olívio

Filho.

O 2 promotor Público da capital, usando das atribuições que lhe são conferidas pela lei, vem perante vós denunciar do cidadão Americano, Justus H. Nelson, residente n‘esta capital pelo facto seguinte: ―Com o fim de estabelecer propaganda evangélica, tem publicado o denunciado n‘esta cidade, acerca de três annos, um jornal com o titulo ‗Apologista Christão Brazileiro‘ depois de fazer as declarações de direito na

318

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―A cathedral do Pará‖. Belém, 01/05/1892.

205

intendência de Belém. Este jornal, porém, longe de fazer uma propaganda séria, como se compreende que tivesse valor, e é garantido pelo pacto constitucional e mais leis da República, procura por todos os meios ridicularisar e ultrajar a religião catholica Apostólica Romana‖ […] Não procuramos, denunciando Justus H. Nelson, tolher a quem quer que seja o direito de livre manifestação do pensamento, não, o nosso fim como órgão do Ministério público é fazer respeitar a lei, punindo áqueles que abusando de tão nobre quanto sagrado direito, tornam-se criminosos em face do Código Penal da República. [...] o denunciado tornou-se criminoso, abriga-se á toga da justiça pedindo a punição do delinquente em desagravo do direito social ofendido. Justus H. Nelson, ultrajando como tem feito a fé dogmática e tradicional da família paraense, está sujeito as penas do art 185 do Código Penal da República, grau máximo, por concorrer a circumstancia agravante do 2 art 39 do mesmo Codigo. (grifo nosso)319

O promotor se utilizou do Artigo 185 para embasar sua acusação. Este artigo

foi introduzido no Código Penal em 1890. No capítulo III do Código Penal, acerca de

crimes contra o livre exercícios dos cultos, reza o Artigo 185 que “Ultrajar qualquer

confissão religiosa vilipendiando acto ou objeto de seu culto, desacarando ou

profanando seus symbolos publicamente. Pena – de prisão por um a seis mezes”.320

O promotor se baseou nesse artigo para mostrar que Justus Nelson não

cumpriu a lei, e considerou que o pastor metodista ultrajou ―a fé dogmática e

tradicional da família paraense‖. É importante destacarmos essa fala do promotor

para notarmos que ele acusa Justus Nelson de ultrajar não apenas uma instituição

religiosa, mas a crença tradicional de toda a sociedade paraense. Vale reparar que a

inciativa da denúncia surgiu de um promotor da região, e não de um membro do

clero católico local. Justus Nelson estava sendo denunciado por uma autoridade de

estado que reconheceu as matérias publicadas pelo jornal metodista como

ofensivas. Se Justus Nelson estava atacando uma ―fé tradicional paraense‖, então

era aquela uma crença na qual o próprio promotor parecia comungar.

319

SANTOS, Alex Seabra. O protestantismo metodista em Belém: buscando determinações de sua efetivação (1880-1896). Monografia (Graduação em História), UFPA, Belém - PA, 2000. Além da fonte abordada, há outra pesquisa feita em Belém do Pará que gostaria de destacar para análise: a dissertação de mestrado ―Tensões entre metodistas e Igreja Católica, Belém‖, de Heliane Monteiro da Costa, onde a prisão de Justus Nelson também aparece como temática de análise pela autora. COSTA, Heliane Monteiro da. Tensões entre metodistas e Igreja Católica, Belém (1890-1925). Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião), UEPA, Belém, 2013. 320

BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Codigo Penal. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1890. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html>.

206

A resposta de Justus Nelson a esta acusação foi publicada no jornal ―O

Apologista Christão Brazileiro‖ na mesma data afirmando que ―Nego achar-me

incurso n’este artigo.” A partir daí, Justus Nelson se defende, procurando se utilizar

do dicionário Caldas Aulete para pormenorizar conceitos apresentados na lei como

―Simbolos‖ e ―Vílipendio‖.

A palavra ―Symbolo‖ segundo o Diccionario Contemporaneo de Aulete, no sentido theologico significa ―Signal exterior de um sacramento.‖ Nas publicações minhas, citadas na denuncia, não se trata nem de longe de ―signal exterior de sacramento‖ Portanto, se houvesse infracção do art 185 citado, seria a minha offensa limitada á primeira parte do artigo: ―Ultrajar qualquer confissão religiosa, vilipendiando acto ou objecto de seu culto‖ Deve-se notar que o único ultraje comtemplado n‘esta phrase é o vilipendiar. Recorrendo de novo ao Diccionario de Aulete, encontra-se a seguinte definição: VILIPENDIAR- Tratar com vilipendio, com muito desprezo; tratar como vil ou desprezível; ter ou considerar como vil ou desprezível. Apregoar como vil ou digno de desprezo‖ A questão não é se a minha publicação offendeu ou não os sentimentos religiosos dos leitores catholicos romanos. Qualquer oposição ou discussão de dogmas é prohibida pela igreja romana e é altamente offensiva a todos os fieis d‘esta igreja. A questão é simplesmente se as minhas publicações citadas vilipendiaram ou não acto ou objeto do seu culto.321

Essa linha argumentativa da defesa, de se utilizar do significado das

palavras da lei, mostrando que há contradições na acusação por não condizerem

com as ações feitas pelo acusado, somam-se ao raciocínio construído pelo pastor

metodista de entender que ele não vilipendiou nenhum objeto de culto, porque suas

afirmações eram factuais. Ele supunha que havia um culto mariano idolátrico no

Pará correspondendo a uma figura mariana que não correspondia com a Maria

descrita nas escrituras. Grande parte da defesa de Justus Nelson será por essa

linha de raciocínio.

O único ―objecto‖ de seu culto mencionado e especificado, é a Virgem Maria: e os únicos ―actos‖ mencionados são [a] as cerimonias da reabertura da cathedral [b] a adoração da Virgem e [c] a adoração das virgens. A única coisa offensiva citada a respeito das ceremonias da reabertura da cathedral é que era de esperar que dessem grande impulso ao culto de Maria. Os motivos d‘essa esperança são patentes e reconhecidos, entre os quaes primam o dia escolhido (1º do

321

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Belém, 01/07/1892.

207

mez de Maria) e a proeminência dada á Padroeira do Pará, assim chamada em diversas partes do programma de reabertura e depois. A esse culto de Maria chamei de ―idolatria mariana‖ E talvez que seja este termo assim applicado que causasse a offensa, estou convencido de que alguns não gostaram d‘esse termo. Comtudo, os desgostosos pessoaes não são da questão. Vejamos se é vilipendio ou não: Aulete, já citado, diz: IDOLATRIA - adoração dos ídolos. ―Também diz: IDOLO - figura, estatua ou imagem representativa de alguma divindade, e que é o objeto de um culto.‖ Ora, no Pará não faltam figuras, estatuas e imagens que se dizem representar a Virgem Maria, mãe de Jesus Christo. Também não falta quem chama a Maria, ―Rainha do Ceu‖, ―Mãe de Deus‖ e ―Divina Mãe de Deus‖ E ninguém pode negar que aqui no Pará, tanto a Virgem Maria como as suas figuras, estatuas e imagens são objetos de culto. Ora, segundo Aulete, essas figuras, estatuas e imagens são ―Idolos‖ e o seu culto é idolatria. Já assisti a um sermão na própria cathedral, no qual o sacerdote procunciou muitas vezes os nomes de Deus e da Virgem Maria. Todas as vezes que elle pronunciou o nome ou qualquer titulo de Maria, elle suspendeu o chapéu peculiar que trazia na cabeça, mas ao contrario nunca fez isso quando pronunciava o nome de Deus. É notório que não existe no Pará culto mais ardente nem mais popular do que o culto que se dedica á imagem que se intitula “Nossa Senhora de Nazareth” É n’esse sentido que empreguei o termo “idolatria mariana”.322

É notório que Justus Nelson se utiliza de práticas religiosas do catolicismo

local para comprovar sua tese de que o que ocorria na região era considerado

idolatria pela própria definição do termo. Aqui, Justus Nelson enfoca uma fé

localizada, com características próprias e específicas, que as classifica como

idólatras. Desde as matérias já publicadas por ele, ―A Cathedral‖ e ―A padroeira do

Pará‖, a desconstrução não é apenas à devoção mariana, mas ao marianismo que

ele percebia presente no estado, onde sua concentração se dava na capital,

justamente onde ele estava exercendo seu ministério.

No decorrer da defesa, Justus Nelson ainda diz que:

Quanto á Virgem Maria, creio que foi milagrosa a conceição do seu Filho primogênito, Jesus Christo, nosso único Salvador; e também creio que nunca houve mulher n‘este mundo mais pura nem mais honrada por Deus do que foi Maria, mãe de Jesus. Também creio firmemente que ella já se acha na presença de Deus com todos os mais remidos do Senhor Jesus Christo, que já faleceram. Portanto, me seria impossível vilipendiar á Virgem Maria. E creio que não é ―vilipendiar‖ chamar ao culto das suas figuras, estatuas e imagens pelo mesmo nome que se lhe dá

322

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Belém, 01/07/1892.

208

no Diccionario Contemporaneo de Aulete. Apenas peço ao Sr Juiz que leia atentamente o artigo referido, considerando-o como uma indagação scientifica sobre as bases históricas do assumpto tratado. Nas sete perguntas dirigidas ao Rvd. Bispo do Pará, não se póde deparar a mínima falta de seriedade. A religião Christã é uma religião histórica- uma religião de factos, baseada na história scientificamente apurada pelas indagações dos seus amigos e dosque a ella se oppõem. Ora, se a Virgem Maria é protectora especial da Amazonia, é forçosamente facto historico. E factos históricos precisam de evidencia para serem acreditados. Nas sete perguntas referidas, eu seriamente indaguei o que existe na historia (não da Grecia nem da Babylonia, mas sim da Amazonia – não nos tempos prehistoricos, mas sim n‘estes últimos quatro seculos) que sustente a asserção historica de ser a Virgem Maria ―padroeira‖ d‘esta região. [...] Que os defensores das tradições amazônicas sejam tão sérios como são as sete perguntas, e o mundo há de lucrar muito. Assim, repillo a acusação de falta de seriedade nas minhas discussões jornalísticas.

O que Justus Nelson deixa claro é que ele não estava ―vilipendiando‖ a fé

católica, ou Maria, mais sim, especificamente, as imagens que eram feitas e que a

representavam. Para sua defesa, Justus Nelson fazia questão de separar a Virgem

Maria descrita nos evangelhos das imagens de Maria que eram instrumento de

devoção do catolicismo paraense, e que para ele não correspondiam àquela que

seria a ―verdadeira Maria‖.

Nesse compilado de trechos dá para entender que Justus Nelson continua a

se utilizar de um elemento retórico usado diversas vezes para trazer à tona

aparentes contradições da religião católica. Ele não desmente as afirmações

contrárias à religiosidade que condena, mas apresenta as possíveis contradições

entre o artigo citado e sua mensagem, mostrando que em nenhum momento feriu a

fé católica em sua base, mas os erros que condenava no catolicismo local, e que,

segundo ele, eram condenados até mesmo pela própria religião católica. Há aqui um

choque de conceitos. As noções estrangeiras de catolicismo não estavam

correspondendo às particularidades das dinâmicas religiosas do catolicismo local

com o qual o pastor se deparava. Justus Nelson era um estrangeiro em terra

estranha. Um protestante norte-americano com valores próprios de sua região, que

combatia um catolicismo de um fervoroso marianismo representado pela Virgem de

Nazaré, um catolicismo com características próprias, com simbolismos específicos

que ele procurava decifrar e combater na medida do possível.

209

Outra questão interessante desse caso foi a mobilização que gerou, as

testemunhas que foram arroladas, como exemplo o jurista Samuel Wallace

MacDowell, que além de jurista e advogado era conselheiro de estado na época do

Império, e que foi chamado como testemunha para a segunda audiência do

processo, ocasião em que declara que:

Desde o regime antigo na monarchia em que, apesar da religião oficial do Estado, houve sempre no império a mais plena liberdade para todos os cultos dissidentes, a lei garantia as analyses razoáveis dos princípios e usos religiosos; com maioria de razão no regime actual que o de verdadeira separação da Igreja e do Estado; mas entre essa garantia e a que se arroga o acusado para ultrajar o culto aliáis da maioria dos cidadãos brasileiros há um abysmo que não lhe é lícito affrontar.323

Samuel Wallace MacDowell, no período imperial, mesmo com as outras

religiões não católicas não sendo amparadas legalmente pelo Código Penal para

atuarem sem restrições jurídicas, entendia que havia uma certa razoabilidade

dessas religiões praticarem seus cultos sem grandes opressões do Estado. Porém,

mesmo diante da separação entre Igreja e Estado realizada no período republicano,

ainda existe um ―abismo que não é lícito afrontar‖, abismo que foi afrontado por

Justus Nelson. É como se o jurista argumentasse haver um limite, e estabelecesse

uma ―linha moral‖ entre a liberdade religiosa concedida aos não católicos e o

discurso realizado por eles que caracterizaria o ultraje à religião católica, e que

deveria receber punição. Para além disso, Samuel Wallace é categórico em agravar

mais ainda a situação de Justus Nelson, reiterando que a religião ultrajada é a da

―maioria dos cidadãos brasileiros.‖

Com isso, se evidencia um debate que vai além de ―católicos x

protestantes‖, mas acerca de até que ponto se poderia tolerar a liberdade religiosa e

o ultraje à religião alheia. Essa profundidade do assunto foi, inclusive, percebida pelo

advogado de defesa de Justus Nelson, Diogo Holanda, que demonstrou em seu

parecer a tentativa de achar um ―limite‖ entre o ultraje ilegal e a liberdade de

pensamento. Caso Justus Nelson viesse a ser condenado pela interpretação do

Artigo 185, poderia haver um ferimento desse princípio, destacado pelo advogado

como um ―libérrimo dogma‖ consagrado por ―todos os povos cultos‖. Era um tipo de

323

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Belém, 01/07/1892.

210

valor que, para o jurista, ia além do religioso e poderia ferir o valor moral da

liberdade de expressão:

Está envolvido n‘este processo o princípio da livre manifestação do pensamento, principio tanto mais respeitável, quando se trata de matéria religiosa, devemos, portanto, ser cautelosos na interpretação do artigo 185 de nosso código, que deve ser tão restrita quanto seja necessário para não padecer duvida de que não foi offendido esse libérrimo dogma consagrado pela legislação de todos os povos cultos [...] Creio estar suficientemente provado que o presente processo só é movido por um espírito mal entendido de seita religiosa e não tem nenhum fundamento jurídico.324

Vale ressaltar um adendo de Alex Seabra dos Santos, em que afirma, que

diversos advogados se ofereceram para serem defensores de Justus Nelson. O que

podemos notar era que o pastor metodista também tinha simpatizantes de sua

causa, mesmo entre não protestantes e entre pessoas de certo renome social, a

ponto de ser procurado por juristas. Provavelmente, os temas separação Igreja –

Estado e liberdade de expressão já eram debatidos não apenas entre religiosos,

mas entre intelectuais e juristas do período. Justus Nelson era um sujeito que estava

inserido em uma conjuntura maior de debate político, que envolvia questões

delicadas a serem discutidas em uma sociedade que estava iniciando seu período

republicano e o papel da religião nesse novo estado, as liberdades de expressão e

matrimônio, os novos papéis da Igreja e do Estado na sociedade.325

Não é à toa que a ideia de liberdade de pensamento era um dos principais

argumentos dos defensores assim como dos acusadores de Justus Nelson, como

notamos nas palavras do segundo promotor público, Américo Chaves:

Não procuramos, denunciando Justus H. Nelson, tolher a quem quer que seja o direito de livre manifestação do pensamento, não, o nosso fim como órgão do Ministério Público é fazer respeitar a lei punindo áquelles que, buscando de tão nobre

324

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Belém, 01/07/1892. 325

Alex Seabra dos Santos e Heliane da Costa detalham um pouco melhor as questões da prisão, reiterando que diversos advogados juristas não protestantes se interessaram em ser defensores de Justus Nelson, mas nem eles e nem as fontes nos dão indícios do critério que Justus Nelson usou para escolher Diogo Holanda como seu defensor. SANTOS, Alex Seabra. O protestantismo metodista em Belém: buscando determinações de sua efetivação (1880-1896). Monografia (Graduação em História), UFPA, Belém - PA, 2000. COSTA, Heliane Monteiro da. Tensões entre metodistas e Igreja Católica, Belém (1890-1925). Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião), UEPA, Belém, 2013.

211

quanto sagrado direito, tornam-se criminosos em face do Código penal da república.326

Há aqui um temor do promotor de acusação e uma ênfase do advogado de

defesa em pautar a questão da liberdade de expressão como um dos principais

temas a serem discutidos no julgamento. A discussão sai do campo teológico e entra

numa seara jurídica onde acusação e defesa procuram entender o limiar entre

liberdade de manifestação de pensamento e ultraje ao culto alheio. A liberdade

religiosa era algo novo na Constituição, mas a liberdade de pensamento já estava

presente desde a Constituição de 1824, do período monárquico, como um direito já

consolidado havia tempo no corpo jurídico brasileiro e um valor caro à tradição

liberal, conceito que acompanhou o período monárquico e influenciou fortemente o

regime democrático.

O apelo à liberdade de pensamento também nos remete à aliança entre

liberais e protestantes, construída de forma histórica. A discussão para o início da

ideia de ―liberdade religiosa‖ é o período da Reforma Protestante, no qual o

movimento restaura dogmas cristãos a partir da valorização de uma ideia presente

desde o cristianismo primitivo, onde o homem era tido como imago dei (a imagem de

Deus), e por isso teria uma relação direta com Deus como individuo, de forma que o

discurso do empoderamento do indivíduo, seja clérigo ou leigo, trazia dependurada a

ideia de liberdade de consciência e liberdade religiosa que o liberalismo acataria um

século mais tarde, modelo no qual a vida humana deveria ser valorizada e o Homem

deveria ser livre para crer naquilo que acreditasse, independentemente do que o

pensamento majoritário determinasse. Tais conceitos seriam essenciais, e a partir

deles os ideais ocidentais de laicidade viriam a ser embasados. Com liberdade de

consciência e de crença, o Homem teria o direito de discordar da religiosidade

vigente sem receber punição do Estado, e assim teria autonomia de livre-pensar.327

O debate desse conceito prossegue sendo discutido pelos iluministas no

século XVII. Desta maneira conseguimos perceber diversos estados ocidentais

procurando aplicar esse princípio das mais diferentes formas, especialmente através

do liberalismo, ideal nascido para ser combatido diante dos abusos de poder dos

monarcas absolutistas, Assim, o liberalismo procurava garantir os direitos do

326

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Belém, 01/07/1892. 327

CHEHOUD, Heloísa Sanches Querino. Liberdade religiosa e laicidade: evolução histórica e análise constitucional. Dissertação (Mestrado em Direito), PUC-SP, São Paulo, 2010, p.35.

212

indivíduo diante de um Estado soberano, e possuía uma moral racionalizada e

terrena, na qual o êxito do indivíduo se daria no próprio mundo vigente e seria

alcançado por meio de um espírito empreendedor na busca por lucro e sucesso

econômico.

Eis uma proposta terrena de felicidade se comparada à felicidade eterna do

reino metafísico celestial proposta pelo cristianismo, seja católico ou protestante.

Apesar das ideias secularizadas, o liberalismo é retratado como ―filho de um

movimento religioso‖, e que ―sem a libertação espiritual advinda da Reforma, o

pensamento liberal não teria se desenvolvido‖328. Notamos a absolvição das ideias

de liberdade de consciência do liberalismo sendo retiradas diretamente do

movimento da Reforma, o que revertia inclusive a proposta que o liberalismo tinha

para a relação entre religião e estado.

Nosso proposito é sublinhar a importância que revestiu para o liberalismo a separação entre a religião e a moral social. Essa ruptura, que é incontestavelmente obra do racionalismo, levou o pensamento liberal a considerar que a religião é uma questão privada entre o individuo e o seu Deus ou a sua Igreja. Naturalmente, o homem pode subordinar a sua conduta social à sua consciência religiosa, mas trata-se duma atitude que só a ele diz respeito. Inversamente, desde que a moral social se encontra separada da religião, as Igrejas devem abster-se de intervir no plano temporal na organização das relações sociais: O seu domínio é a salvação individual, e não é tarefa sua construir ou reformar a sociedade. As luzes da fé e as da razão não iluminam o mesmo mundo.329

Aqui, o racionalismo presente no pensamento liberal não condena a

religiosidade, mas condena a relação da religião com a esfera pública e a mantém

apenas na esfera privada, ou restringida ao foro íntimo, garantindo a liberdade de

consciência de cada fiel. Ao pôr a religião como um problema exclusivamente

privado, o liberalismo tenta apresentar o poder público como sendo uma esfera

indiferente à religiosidade.330 A aliança entre Justus Nelson e grupos políticos

liberais republicanos envolvia sua identificação com os valores que esses grupos

carregavam, incluindo a ideia de liberdade de pensamento, ideia cerne do

protestantismo e que a defesa de Justus Nelson se apropriava dela constantemente.

328

CHEHOUD, Heloísa Sanches Querino. Liberdade religiosa e laicidade: evolução histórica e análise constitucional. Dissertação (Mestrado em Direito), PUC-SP, São Paulo, 2010, p.36 329

Burdeau, 1979, p.101. Apud: Ibidem, p.36. 330

Ibidem.

213

De início, o juiz de primeira instância absolveu Justus Nelson, e utilizou

como argumentação o conflito histórico entre católicos e protestantes e a ideia da

proteção à liberdade de manifestação de pensamento.

[...] como já sabemos, Justus Nelson, de início, foi inocentado, mas, em segunda instancia foi condenado para cumprir uma pena média de 4 meses e 3 dias de prisão, como o próprio Justus Nelson relata em sua última publicação. Que já entre essas duas religiões o mesmo fundo de religiosidade, aceitando ambas como um dogma a divindade de Jesus e autenticidade dos textos Evangelicos, como pensa o edurido Eduardo Hartmann em sua obra ―A religião do futuro‖ onde classifica aquella como heterônoma e esta como autônoma; mas que, comtudo, diferem as mesmas religiões entre si sobre o modo de interpretar o Evangelho e d‘ahi a continua e interminável controvérsia da veracidade e autenticidade d‘aqueles textos evangélicos que o Catholicismo confere á Igreja o poder infalível e absoluto de interpretar, legislando em matéria de crenças, e o protestantismo admite-os como verídicos recusando á Igreja aquelle poder e autoridade de interpretal-as, permitindo o direito de Analyse á liberdade (individual) da consciência, que tendo o Christianismo como principio ethico fundamental- a obediência á vontade divina é esse principio também seguido pelo protestantismo; mas Que, comtudo é ainda a diferença entre as duas religiões profundíssima, como affirma Julio de Mattos, porquanto, ao dizer de Hartmann – ―no Catholicismo, a Igreja interpõe a sua mediação entre Deus e o homem e por meio do Papa e do confessor fornece a solução divida dos problemas Moraes, e o principio protestante supprime a instancia intermdiaria e coloca em presença um do outro, o homem e Deus, manifestando na Escriptura a sua vontade‖ […] Que a condenação do accusado seria por motivo de religião, porquanto é como Ministro da Igreja Evangelica, propagador dos princípios methodistas protestantes, que elle foi denunciado, o que ao que parece seria uma lesão do pacto fundamental da Republica, e ao Decreto No 119 A. de 7 de Janeiro de 1890 que concedeu a todas as confissões religiosas igual faculdade de exercerem o seu culto e regerem-se segundo a sua fe e que prohibe a qualquer autoridade vedar qualquer religião, importando, por isso, a condemnação do denunciado em um óbice oposto ao culto protestante e lesão ao direito […]331

O juiz se utiliza do ideal da liberdade de pensamento como determinante

para inocentar Justus Nelson. Em sua decisão, pesou o momento político. O juiz

ressalta que condenar Justus Nelson por expressar seu pensamento seria ―uma

lesão ao pacto fundamental da república‖, relembrando o decreto que permitia

331

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Belém, 01/07/1892.

214

religiões acatólicas de se apropriarem dos mesmos direitos do catolicismo vigente. O

momento político, aqui, era marcado pelo início do período republicano, e seu corpo

jurídico conseguia dar ferramentas aos protestantes para que pudessem proferir sua

fé de forma legal, sem sofrer sanções. Defender a manifestação de pensamento e a

liberdade religiosa protestante, era, para o juiz, consolidar o pacto jurídico que o

período republicano trazia consigo: a liberdade religiosa e a liberdade de

pensamento individual.

Apesar disso, vemos que o promotor recorre, e no continuar do processo o

pastor metodista é condenado pela Procuradoria Geral da República.

[...] considerando que o denunciado villipendiou acto e objecto do culto da religião catholica e desacatou os seus symbolos como se evidencia dos períodos acima transcriptos; [...] Considerando que o denunciado não póde prevalecer-se da disposição do art. 179 do cit. Cod, para, á pretexto de propaganda religiosa, lançar o ridículo sobre a imagem da Virgem Maria e sobre as cerimonias do culto especial de veneração (hyperdulia e não idolatria) que lhe tributam os catholicos, pois a propaganda permitida pela lei (mesmo no tempo em que a religião catholica era official) é a que se faz por meio da analyse razoável dos princípios e usos religiosos, o que de nenhum modo se pode confundir com a linguagem usada pelo denunciado no aludido periodico; Considerando que a disposição do art. 185 do Cod. Pen, seria inexquivel se podesse ser interpretada como interpretou o juiz a quo: Considerando que essa disposição é uma garantia para toda e qualquer confissão religiosa, e de sua confrontação com o art. 179 resulta que apenas é prohibido o ultraje e não a analyse razoável dos princípios e usos religiosos, a qual nunca abala e menos prejudica a verdade […].

Na acusação e condenação em segunda instância, a ideia de liberdade de

pensamento e a questão da República são as principais pautas da ação

condenatória. Uma decisão judicial que se difere da anterior. Mas há aqui uma

tentativa do procurador em, mesmo não expondo de forma direta no debate a ideia

da liberdade religiosa, procurar contrariar o juiz ao dizer que ele não está

favorecendo a Igreja Católica, mas sim aplicando a lei que protegeria, não apenas o

catolicismo, mas todas as religiões. Ao mesmo tempo, ele refere que Justus Nelson

―lança ao ridículo a imagem da Virgem Maria‖, mostrando que, em seu

entendimento, questionar sobre a veracidade da devoção mariana à Virgem de

Nazaré era ridicularizar a simbologia católica da Virgem Maria. O procurador

215

entende e aplica a pena em grau médio, como Justus Nelson registra em seu jornal

―O Apologista Christão Brazileiro‖, em 1925:

Resultou a minha condenação em gráo médio, com pena de 4 meses, 3 dias e 12 horas de prisão em cadeia pública, São José. Foi a primeira, a única e a derradeira vez que teve ou terá a aparição [...] No Pará, e em todo o Brazil como também no extrangeiro encontrou uma severa repreensão a noticia de repressão Jesuítica a liberdade de pensamento.332

Justus Nelson ao dizer que houve uma repercussão nacional e até

internacional em torno do caso, reflete uma ação que fez ao relatar o caso de sua

condenação ao consul americano, que enviou uma nota de volta, na qual, entre

outras argumentações, dizia:

Peço que me releveis eu dizer-vos que eu pessoalmente não tenho paciência com o fanatismo de pessoa alguma, que na propaganda dos princípios de fé de qualquer seita se torna odioso aos membros de uma seita contraria por meio das suas expressões vis, e descommedidas (quer sejam da tribuna quer pela imprensa); comtudo me compete dizer que embora taes couzas me sejam muito abhorrecidas, não sou capaz de imaginar como é, que n‘uma República livre, ‗na qual, por meio de uma disposição Constitucional, a igreja se acha completa e absolutamente separada do Estado, e na qual a mais plena liberdade de manifestação de opinião é garantida a todos os homens sem distincção de raça, seita, estado social ou condição previa de servidão, - como é que as expressões feitas pelos membros de uma seita, contra a fé religiosa de outra possam ser consideradas legalmente como uma offensa tal contra o Estado que venha a ser assumpto de inquérito perante o tribunal criminal do Estado.333

As palavras do consul americano revelam uma indignação que mostra uma

aparente contradição do regime republicano brasileiro. Em uma República onde a

Igreja era juridicamente separada do Estado, há inquéritos denunciando pessoas de

ofenderem a Igreja Católica. Contudo, analisando o caso como um todo, podemos

fazer mais alguns acréscimos. Há pessoas nesse período sendo condenadas pelo

tribunal criminal do Estado, por ofensas à Igreja Católica e sendo denunciadas não

pelo clero, mas por autoridades jurídicas da região. A república brasileira imaginada

pelo consul era um regime em que a liberdade de manifestação de pensamento

332

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Belém, 1925. 333

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. Belém, 1892.

216

fosse plena, e que raças e religiosidades fossem tratadas como iguais perante a lei.

De certa forma, a república brasileira trazia consigo, como analisamos nesse

capítulo, um código penal que apontava para isso, mas a aplicabilidade desse

código pelos aplicadores da lei parecia estar privilegiando a religião majoritária, o

catolicismo vigente.

Com isso, precisamos apontar uma reflexão mais profunda, entender como

que a separação entre Igreja e Estado ocorrida no período republicano, em muitos

casos da vivência cotidiana, não era aplicada na prática, sendo o catolicismo uma

religião que mantinha privilégios.

Apesar das políticas de separação entre Igreja e Estado no Brasil, nas

primeiras décadas da República, aproximadamente 95% da população era

católica.334 Esses ideais nacionalistas, republicanos e laicos não modificaram a

estrutura religiosa de forma abrupta. Na verdade, não apenas o Brasil, mas o

ocidente continuou hegemonicamente cristão, seja de linha católica ou protestante,

mesmo nos países considerados ―laicos‖. Até mesmo a França manteve a maior

parte da população católica, ainda que aplicando uma laicidade conflituosa com a

religiosidade vigente. O Brasil, no decorrer do século XX, é considerado um dos

países mais religiosos do ocidente. O que notamos aqui são ideais secularizados

circulando em uma sociedade ainda profundamente religiosa. Especialmente o

Brasil, onde a maioria esmagadora da população era católica.

Ao analisarmos o processo de implantação da separação entre Igreja e

Estado no Brasil, notamos que ela se diferencia de outros modelos de implantação

de separação ocorridos no ocidente. Se tomarmos o estado francês como exemplo,

onde após as tentativas de separação entre Igreja e Estado serem feitas a partir de

diversas tensões após a Revolução Francesa, com políticas que expressavam uma

agressiva rejeição à religião vigente, mesmo a república brasileira buscando

inspiração francesa, o fenômeno da relação Igreja e Estado no Brasil se difere.

Notamos que o modelo civil de separação entre Igreja e Estado tem similaridades

com o modelo norte-americano, um modelo laico de um país hegemonicamente

protestante, onde não se valorizava não uma ―descristianização‖335 como ocorreu na

334

O primeiro censo brasileiro no período republicano a quantificar o número de religiosos no Brasil foi em 1940, onde este apurou que 95,2% eram católicos. 335

O termo ―descristianização‖ é utilizado por Fernando Catroga em seu livro ―Entre deuses de césares: Secularização, laicidade e religião civil‖, no qual, ao analisar o processo de laicidade francês, mostra que os intelectuais franceses iniciaram uma campanha de separação entre Igreja e

217

França, mas de uma religião que permanecia na mentalidade de seu povo e era

importante para o desenvolvimento da nação. Mesmo os norte-americanos não

possuindo uma nação oficial, a crença majoritária protestante interferia diretamente

nas decisões do Estado.

Diferentemente de países como a França, os norte-americanos EUA

procuraram conciliar a sua sociedade, em que predominava a religiosidade

protestante, com um estado formado por ideais iluministas e deístas.336

A primeira emenda constitucional relacionada à separação entre Igreja e

Estado foi realizada pelos Estados Unidos, país predominantemente protestante.

Menos de uma década depois de sua separação oficial com o Reino Unido, eles

registram na construção da constituição americana que ―a liberdade religiosa foi

garantida na primeira emenda, em duas cláusulas, a do livre exercício da religião e a

da separação entre Igreja e Estado e confissão religiosa‖337. Mas aqui,

diferentemente da França, há uma contínua predominância cristã, especialmente a

protestante, na qual ―o cristianismo reina pois sem obstáculos, segundo o

testemunho de todos‖338. Na obra ―A democracia da América‖, Alexis de Tocqueville

nos mostra que a ideia de separação entre Igreja e Estado era uma unanimidade

entre as autoridades religiosas339, e que ―a religião nunca se envolve diretamente no

governo da sociedade‖340. Todavia, o próprio prestígio que o cristianismo tem diante

da sociedade norte-americana faz com que essa exerça influência direta no Estado,

como registrado pelo próprio Toqueville:

Nos Estados Unidos, quando um homem político ataca uma seita, não é uma razão para que os partidários dessa seita não o apoiem; mas se ele ataca todas as seitas juntas, todos o evitam e ele fica só. Quando eu estava na América, uma testemunha se apresentou ao tribunal do condado de Chester

Estado a partir da Revolução Francesa que perdurou no decorrer dos séculos, embuída de um forte ―anti-clericalismo‖ que, no desenvolver da ideia, o autor conta que após alguns anos os laicistas franceses já estavam defendendo uma descristianização em que nenhum elemento simbólico ou ideal que relevasse uma cosmovisão cristã é aceito entre instituições de Estado. Ele esmiúça essa ideia no capítulo ―Anatemizações da modernidade‖ e em ―Clericalismo, anticlericalismo, descristianização‖, nas páginas 286 e 304, respectivamente. CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra, Portugal: Almedina, 2010. 336

Ibidem, p.157. 337

CHEHOUD, Heloísa Sanches Querino. Liberdade religiosa e laicidade: evolução histórica e análise constitucional. Dissertação (Mestrado em Direito), PUC-SP, São Paulo, 2010, p.39. 338

TOQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p.343. 339

Ibidem, p.146. 340

Ibidem, p.144.

218

(Estado de Nova York) e declarou que não acreditava em Deus e na imortalidade da alma. O presidente do júri recusou-se a receber seu juramento, considerando-se que, disse ele, a testemunha destruíra previamente toda a fé que se podia dar em suas palavras. Os jornais relataram o fato sem comentário.341

Seja na forma da construção política do estado norte-americano, desde a

sua organização republicana, na eleição de seus representantes políticos e

autoridades estatais ou até mesmo na aplicabilidade de suas leis, ela sempre era

baseada em um ethos cristão protestante, no qual liberdade religiosa e

protestantismo caminham juntos e são indissociáveis entre si. A religiosidade é tão

importante na escolha de suas autoridades políticas que há grande impossibilidade

de um candidato agnóstico ou ateu se tornar uma autoridade política de autograu

como um presidente da república, por exemplo. Isso é fato se analisarmos os

próprios rituais e juramentos que um candidato precisa exercer (o compromisso de

governar uma nação abençoada por Deus), assim como pela própria população que

parte da premissa que seu modelo republicano é ―abençoado por Deus‖ e, portanto,

precisa ser gerido por um líder que comungue a mesma fé da nação.

A diferença é que, enquanto os Estados Unidos eram majoritariamente

protestantes, no Brasil o protestantismo era minoritário, sendo a nação brasileira

hegemonicamente católica. Mas notamos um fenômeno semelhante aqui: uma

democracia que estava sendo construída sobre um país majoritariamente católico,

no qual a maior parte da sociedade, incluindo autoridades de estado, tinham o

catolicismo como seu principal dogma de fé. Um catolicismo, como já dissemos,

sincrético, polissêmico e que atingia as diferentes classes populares e influenciava

diretamente na democracia e na própria aplicabilidade das leis que surgiram após a

Constituição.

Esse fenômeno político e religioso era algo reconhecido até pelos

legisladores constitucionalistas. Rui Barbosa procurava, ao trabalhar a constituição

republicana em princípios religiosos, se assemelhar mais à constituição norte-

americana que ao princípio constitucional francês.

341

TOQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p.345.

219

[...] o constitucionalismo americano repele essa uniformidade ateia, cuja superstição professa a República no Brasil, e que não estava decerto nos intuitos dos seus fundadores. Desde 1876 que eu escrevia e pregava contra o consórcio da Igreja com o Estado; mas nunca o fiz em nome da irreligião: sempre, em nome da liberdade. […] Foi sob esse pensamento que adotamos a Constituição de 1891. Tínhamos, então, os olhos fitos nos Estados Unidos; e o que os Estados Unidos nos mostravam, era a liberdade religiosa, não a liberdade materialista. Naquele país a incredulidade possui também o seu grupo, que advoga a tributação dos cultos, a supressão dos capelães, a abolição de todos os serviços religiosos custeados pelo Tesouro, a extinção do juramento, a substituição, nas leis, da moral cristã pela moral natural. Mas esse programa, formulado ali há trinta anos, definha enquistado na seita que o concebeu. "Nós somos um povo cristão", diz o juiz Kent, um dos patriarcas da jurisprudência americana, "e a nossa moralidade política está profundamente enxertada no cristianismo". […] Na República norte-americana a superfície moral do país estava mais ou menos igualmente dividida entre uma variedade notável de confissões religiosas. No Brasil o catolicismo era a religião geral; o protestantismo, o deísmo, o positivismo, o ateísmo, exceções circunscritas. De modo que, enquanto nos Estados Unidos a igualdade religiosa constituía uma necessidade sentida, mais ou menos, no mesmo grau, por todas as comunhões, entre nós ela representava tão somente aspirações da minoria. A liberdade de cultos veio satisfazer, em boa justiça, à condição opressiva dessas dissidências maltratadas pela exclusão oficial, mas não invertê-la contra a consciência da maioria. […]342

Rui Barbosa, como um dos constitucionalistas, procurou aplicar no Brasil

uma moralidade política atrelada ao cristianismo semelhante ao regime norte-

americano, menosprezando as correntes de pensamento que flertavam com o

ateísmo para fazerem parte da constituição republicana. O jurista reconhece uma

maioria da população de religiosidade católica, e a liberdade religiosa procura

minimizar os conflitos que grupos acatólicos minoritários tinham, mas reconhecia

que o regime continuaria respeitando a ―consciência da maioria‖.

O que podemos notar ao analisar essas discussões sobre a relação entre

Igreja e Estado, e analisando especialmente o caso de Justus Nelson, é que durante

a história ocidental, por mais o catolicismo fosse desvinculado do Estado, na prática

a religião continua exercendo poder através do Estado. A separação entre Igreja e

Estado não impedia a mistura entre religião e política. As sociedades ainda que

juridicamente tenham adotado para si a separação oficial entre as religiosidades

342

Apud: LEITE, Fábio Carvalho. O laicismo e outros exageros sobre a Primeira República no Brasil. Religião & Sociedade. Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, 2011.

220

presentes e o Estado, na prática notamos um Estado ainda fortemente influenciado

pela religiosidade local, e isso se explica na própria ideia do que seria um ―Estado‖,

como uma instituição que tem como função a fixação de regras e sua execução.343

Essas ―regras‖ se tornam um modelo jurídico que se constrói a partir dos próprios

valores presentes naquela sociedade. Se a mentalidade social e os valores morais

constituídos são influenciados pela religiosidade hegemônica, tanto o corpo jurídico

como a aplicabilidade do Estado para essas leis terá intervenção religiosa, e casos

como o de Justus Nelson explicitam claramente esse fenômeno. ―O Estado não tem

religião, mas o povo que é a razão para a existência de um Estado, tem‖344.

A relação entre religião e Estado no Brasil, apesar do rompimento formal e constitucional desde 1891, ainda permanece na memória e na cultura do país. A continuidade dessa relação não pode ser vista, necessariamente, como irregular, porque o ser humano é, em sua essência, um ser religioso, que acredita em Deus tanto por causa de mistérios encobertos como por causa de mistérios descobertos. Nesse contexto, é impossível separar total e absolutamente o poder político do poder religioso. A teoria da separação entre Religião e Estado é, portanto, uma utopia.345

A própria ideia de separação entre Igreja e Estado, como vimos, é fruto de

países ocidentais hegemonicamente cristãos; porém, o que notamos é que, como no

caso de Justus Nelson, o próprio cristianismo vigente em cada região declarada

―separada do Estado‖ acaba ultrapassando a barreira jurídica e obtendo vantagens

diante do Estado laico e republicano. Ainda notamos a mesma relação entre religião

e Estado presente nas sociedades modernas do final do século XIX e início do XX,

especialmente no Brasil com sua predominância religiosa, mas também em várias

das demais sociedades hegemonicamente religiosas no decorrer da história.

Compactuamos, com isso, que a separação entre religião e Estado se

mostra utópica, como nos apresenta Jacintho Sousa. Para entender melhor o porquê

a separação de Igreja e Estado diversas vezes falha na prática cotidiana, e por que

essa teoria é utópica, vale citar Bourdieu novamente: ―Assim, quando as relações de

força são favoráveis à Igreja, a consolidação dessa depende da supressão do

profeta (ou da seita) por meio da violência física ou simbólica‖, justamente o que

343

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2007. 344

SOUZA, Jacintho de. Separação entre religião e Estado no Brasil: utopia constitucional? Tese (Doutorado em Direito, Estado e Sociedade), PUC-SP, São Paulo, 2009, p.318. 345

Ibidem, p.289.

221

vimos no embate entre católicos e protestantes e católicos e pentecostais. No

julgamento de Justus Nelson, notamos novamente a supressão do profeta contrário

à religião hegemônica, como aponta Bourdieu, mas nesse caso Justus Nelson

atacou diretamente um símbolo do catolicismo local, ferindo um valor social presente

não apenas ao clero, mas as autoridades de estado que pertenciam a essa religião.

Eis o porquê a questão do símbolo é discutida nesse julgamento.

A ideia de Símbolo está bastante presente na pesquisa, e também é um

conceito discutido no próprio julgamento. Há uma variedade de discussões

envolvendo diversos autores sobre o conceito de ―Símbolo‖, e, por isso, poucas são

as conclusões sobre o assunto. Rodrigo Franklin nos mostra as visões de alguns

autores que discutem o tema. O autor apresenta as ideias de ―Lótman‖, que retrata o

símbolo como um objeto que aponta para outro objeto, em que o ―conteúdo para

qual o símbolo aponta seria algo que, em dada cultura, teria um valor maior do que o

símbolo em si. O símbolo aponta para algo maior que si mesmo‖346.

Verena Kast, levanta algo semelhante. Segundo a autora, o símbolo é como

um sinal de reconhecimento, um sinal materializável de uma ideia invisível e

idealizada. Pode ser um anel que simboliza uma aliança de casamento ou a cor azul

representando a paz. O símbolo se manifesta através de iconografias, sinais, e

pessoas atribuem a ele significado. Os autores aqui convergem na ideia de que o

símbolo representa um significado que permeia um objeto. Por trás de determinados

artefatos, há um poderoso significado social.

A partir dessa análise, podemos contextualizar, para a nossa pesquisa, em

que símbolos aparecem constantemente para mostrar significados diante de um

grupo de pessoas, que são eles também os nomes de ruas e o próprio Monumento à

República construído no centro da praça, em Belém, indicando um novo tempo

advindo do regime republicano. Assim como a basílica de Nazaré, construída em um

período semelhante, que traz a grandiosidade da Igreja Católica frente ao

Monumento à República; e a própria Virgem de Nazaré, a figura mais importante do

imaginário católico paraense que dá força simbólica à basílica, ao Círio e a outros

elementos da religiosidade católica. A imagem da Virgem de Nazaré possui um

346

SOUSA, Rodrigo Franklin de. Símbolos, memória e a semiótica da cultura: a religião entre a estrutura e o texto. Estudos de Religião. São Bernardo do Campo - SP, v. 29, n. 1, 2015, p.73. KAST, Verena. A dinâmica dos símbolos. São Paulo: Loyola, 1997.

222

significado em certa medida oculto que remete à própria reencarnação de Maria,

mãe de Jesus.

As sociedades registradas pela história sempre tiveram uma religiosidade

que as norteava, muitas distintas entre si, mas que influenciavam a dinâmica social

de cada grupo. ―Segundo Franklin, esses fenômenos religiosos se concretizarão por

meio de símbolos, textos e da interação dinâmica entre expressões simbólicas

religiosas e todos os discursos que circulam na cultura‖

Para Pierre Bourdieu, a religião atua com um princípio de estrutura simbólica

que constrói a experiência do fiel a partir da imposição de verdades indiscutíveis e

legitimadas pelo ―efeito de consagração‖, em que se consagra um discurso e um

grupo de pessoas que são os porta vozes desse discurso, transpassando uma

narrativa de verdades, normas e comportamentos retratados como absolutos, em

que o fiel precisa exercê-los para alcançar a ética ideal que aquela religião defende.

Toda essa estrutura de significados presentes na religião dá mais força aos

símbolos, especialmente com as práticas e representações que consagram os

elementos religiosos. Os símbolos religiosos, para Bourdieu, estão dialogando

constantemente com o discurso religioso, sendo que o discurso carrega de

significado o símbolo.347

Vale acrescentar aqui outra perspectiva de Bourdieu que nos faz entender

melhor a diferença de valorização das simbologias religiosas: a diferença do sistema

de consagração das religiões dominantes. Enquanto majoritária, determinada

religião detém um poder de consagração mais amplo por permear diferentes classes

sociais, e a sua legitimação, enquanto religião verdadeira, ―não pode realizar-se sem

que antes esteja especificada em função dos interesses religiosos ligados às

diferentes posições na estrutura social‖348.

A força que um símbolo vinculado a uma divindade possuí também é

retratado pelo autor Mário Ferreira dos Santos na sua obra ―Tratado de Simbólica‖,

que mostra a relação entre símbolo e religião.

A inteligência humana participa de uma inteligência superior divina, que está em estado absoluto. O símbolo, portanto, indica com a sua formalidade em estado limitado, a referência a uma forma de estado superior ou absoluto. Por isso, o símbolo é hierarquicamente inferior ao simbolizado.

347

BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013, p.46. 348

Ibidem, p.48.

223

Exemplifiquemos: o touro revela força e potência. A divindade é força, é potência, e, desse modo, o touro poderá simbolizar a divindade, como vemos em diversas religiões, como o culto a Mitra, por exemplo. Por sua vez, o touro pode simbolizar o sol, e este à divindade. Há assim uma ascenção hierárquica do símbolo para o simbolizado, que, por sua vez, é símbolo do simbolizado superior.349

Pelas análises de Bourdieu e Mário Ferreira dos Santos, estamos apontando

os símbolos religiosos como ícones que representam algo superior a eles mesmos.

Ao analisar as simbologias religiosas, estamos lidando com iconografias que

representam seres metafísicos, superiores e divinos, dando assim um significado

muito mais poderoso àquele símbolo. Quando notamos a interpretação dos

paraenses à imagem da Virgem de Nazaré, percebemos o quanto a ela é atribuído

um significado de divindade, representando Maria, a mãe de Jesus Cristo. Macular

esse símbolo equivale a profanar essa divindade metafísica, superior à

materialidade visível e tão iconizada pelos paraenses.

Acreditamos que isso pode ser um diferencial se compararmos dois artefatos

simbólicos importantes para católicos e protestantes no Pará, a imagem da Virgem

de Nazaré e a Bíblia. A Bíblia, por mais que seja um livro sagrado também para o

catolicismo, não tem para estes uma historicidade dogmática a ponto do catolicismo

construir em torno dela um efeito de consagração como ocorreu com a imagem da

Virgem de Nazaré no Pará, que era constantemente associada à ideia de divindade;

o catolicismo, além de ser uma religião hegemônica da sociedade paraense, do

iletrado ao intelectual, do pobre ao abastado, traz uma crença une a Virgem de

Nazaré como um ser divino. A Bíblia, por mais que fosse um elemento do

catolicismo paraense, não é um artefato protagonista para uma sociedade de

maioria católica como a imagem de santos. Ferir a Bíblia como um artefato simbólico

não causa um efeito social na região, como macular a imagem da Virgem. A

maculação de um símbolo religioso tão significativo para a religião dominante no

Pará leva toda uma estrutura social, influenciada por essa religiosidade, a uma

reação de revolta e desejo de punição ao seu maculador.

O caso de Justus Nelson (assim como o caso de Gunnar Vingren e Daniel

Berg, e suas respectivas violências e prisões) nos mostra que essas tensões entre

católicos e protestantes no período republicano vão além de uma briga puramente

349

SANTOS, Mário Ferreira. Tratado de Simbólica. São Paulo: É Realizações, 2007, p.68.

224

religiosa, mas de um protestantismo minoritário contra um catolicismo ainda

fortemente presente na sociedade. Mesmo com a separação oficial da Igreja

Católica com o estado no Brasil República, o posicionamento do Estado em diversos

momentos convergia com a cosmovisão hegemônica católica ainda fortemente

presente na cidade, principalmente por meio da devoção mariana representada pela

figura da Virgem de Nazaré.

Percebemos que os embates entre católicos e protestantes, presentes no

país desde o período imperial, no período republicano em Belém ganhavam novos

atores, posicionamentos e diferenciações, onde notamos ineditismos, como

periódicos protestantes locais, novos movimentos que surgiam, que provocavam

embates de um catolicismo particularizado da cidade, além de fortemente presente

na mentalidade local e ainda fortemente atrelado ao Estado através de sua

hegemonia em Belém. E do outro, um protestantismo que procura se expandir e

consolidar como religiosidade, como um grupo contra-hegemônico, continuando os

seus proselitismos religiosos, suas novas dinâmicas e discursos religiosos em

jornais locais; uma fé mais mística que dialogava melhor com o católico popular

paraense, promovendo não apenas sua expansão, como uma resistência dos

católicos mais intensa e diferenciada.

Acreditamos que a maior diferenciação desses embates se dava pelo

momento político que o país vivia, em que as ideias de um Estado separado de uma

religião oficial, trazida desde o Império e concretizadas no período republicano,

trazem questões ainda mais profundas que querelas religiosas isoladas, como a

liberdade de pensamento, os direitos civis, o papel do Estado diante da expressão

de fé de cada indivíduo. São questões que a República carrega e que se mesclam

ao posicionamento religioso de católicos e protestantes. O protestantismo, como

grupo minoritário, agora tinha uma liberdade religiosa e direitos civis que

juridicamente lhe eram negados no Império, e que procuram se valer desses direitos

para reforçar seu próprio proselitismo religioso, e eis o motivo do posicionamento

deles ser tão favorável à República.

Por outro lado, vimos que, por mais que não houvesse um atrelamento

oficial da Igreja Católica com o Estado, essa mescla entre ambos continuava a

ocorrer em diversos casos, pois esse fenômeno estava além da questão

institucional, visto que muitas das autoridades políticas ainda eram católicas e se

identificavam com o catolicismo se apropriando de seus símbolos, e, assim, se

225

utilizavam de muitas instituições estatais como um aparelho político para coibir

certas práticas e discursos protestantes que ferissem suas crenças, mostrando que

o poder da Igreja Católica ia muito além de leis oficiais, mas se atrelava fortemente a

toda uma hegemonia de pensamento do catolicismo que ainda perdurava no país,

especialmente no Pará. Como nos afirma Chantal: ――Falar de separação entre Igreja

e Estado, portanto, é uma coisa; outra é falar de separação entre religião e política‖.

E tanto este quanto o próximo capítulo nos evidenciarão claramente essa fala.

226

CAPÍTULO V – CRISTIANISMO E REPÚBLICA:

A DISPUTA PELA “RELIGIÃO NACIONAL”

O Estado deve impor-se a si mesmo, sem precisar para o seu prestígio, de religião alguma, senão de uma lei justa e boa que olhe para todo o cidadão, sem distinção, sem parcialidade, como filho do mesmo torrão estremecido como um rebento da mesma pátria abençoada, esperando de cada um o cumprimento de seus deveres cívicos [...] De igual modo a igreja, seja ela católica romana ou evangélica, ou mesmo qualquer outro crédo, deverá impor-se pelo seu valor moral sem precisar do prestígio oficial, tendo deante de si um terreno franco, em uma atmosfera livre, para manifestar ao povo os seus princípios e agir de acordo que não ofenda a moral pública e as leis do paiz. ―Dae a cezar o que é de cezar e a Deus o que é de Deus‖. [...]350

Até então, nós abordamos as principais vertentes cristãs que se

estruturaram no país presentes desde o período colonial, e que seguiram durante o

período imperial republicano. Detalhamos um pouco sobre a consolidação de

católicos e protestantes na sociedade paraense, enfocando a cidade de Belém do

Pará.

Vimos um catolicismo europeu que se instaurava na Amazônia como a

religião oficial da sociedade. Um fenômeno que ocorreu no país inteiro, mas, ainda

assim, no Pará teve certas particularidades, em especial seu misticismo aflorado e a

forte devoção mariana, tendo como principal símbolo a Virgem de Nazaré e toda a

religiosidade presente em torno dela, desde devoções a festividades.

Também falamos de um protestantismo que procurava crescer no país como

grupo minoritário, buscando se associar a elites imperiais da corte no período

imperial, grupos políticos e pessoas poderosas para tentar consolidar e expandir sua

religião em um estado onde a religião oficial era o catolicismo. Atuava sempre como

um grupo contra-hegemônico, procurando professar o protestantismo como a

verdadeira religião e o catolicismo como uma religião apostata. No Pará, figuras

como Justus Nelson, Eurico Nelson, Antônio Teixeira Gueiros, Gunnar Vingren e

Daniel Berg foram, através de suas respectivas denominações, fortemente

expressivas para consolidar o minoritário movimento protestante na cidade.

350

NORTE EVANGÉLICO. Garanhus, 1925.

227

Retratamos as constantes tensões entre essas duas vertentes religiosas. No

campo religioso, havia embates que ocupavam as páginas dos periódicos

confessionais, e também os periódicos da chamada grande imprensa. Notamos

embates que iam da violência simbólica à física, envolvendo desde uma

desconstrução de seus principais simbolismos religiosos até agressões físicas e

prisões.

No decorrer da pesquisa, notamos a associação do catolicismo e

protestantismo ao Estado, especialmente ao novo estado republicano agora

consolidado. Com uma nova constituição, trazendo um Código Penal que busca

promover a liberdade religiosa, fazendo com que protestantes se valessem dessa lei

para se consolidar como religiosidade; notamos que o catolicismo ainda possuía

uma poderosa influência em meio a autoridades de estado locais, ainda que não

fosse mais a religião oficial do país.

Nesse capítulo, mostraremos como nesse novo momento político do país,

em um estado republicano e sem uma igreja oficial, católicos e protestantes com

seus discursos de hegemonia procuravam mostrar quais seriam seus papéis sociais

se estivessem atrelados ao Estado, como cada uma traria benefícios a nação, desde

a preservação na unidade nacional até sua prosperidade econômica, levando o país

a níveis de países desenvolvidos. Notamos, assim, que essas duas religiosidades

travavam uma disputa pelo título de religiões nacionais, construindo projetos de

hegemonia em seus veículos de imprensa, mostrando uma disputa que já se

encaminhava para além das questões religiosas, mas alicerçadas em projetos de

poder. Por mais que houvesse uma separação entre Igreja e Estado, ainda havia um

constante discurso conectivo entre religião e política.

5.1 ―A RAINHA DAS NAÇÕES‖: O CATOLICISMO E A REPRESENTAÇÃO DA

IGREJA COMO REDENTORA SOCIAL DA EUROPA

No decorrer dos capítulos, vimos o quanto a Igreja Católica se

autorrepresentava como uma instituição que detinha e propagava a verdadeira

religião, o canal de salvação espiritual para a humanidade. Ao analisarmos o

decorrer das matérias do jornal ―A Palavra‖, também percebemos o catolicismo se

autoproclamando como uma religiosidade que promove a prosperidade econômica e

social para as nações, e avisando que o inverso pode ocorre quando a fé católica é

228

abandonada, crises econômicas e regimes totalitários surgem. Como exemplo temos

a matéria ―A Europa está sofrendo o castigo de sua apostasia‖, na qual o autor

aborda a Europa como sendo ―A parte do mundo mais beneficiada pelo

Cristianismo‖, mostrando supostas qualidades e benefícios que o catolicismo

instituiu no continente:

A quem muito se dá a quem pede, disse Jesus Christo. A Europa foi a parte do mundo mais beneficiada pelo Christianismo e por isso deveria ser a primeira a zelar a honra e glória de Deus. A defender o interesse da Egreja e a salvação eterna dessas almas. S. Pedro assentou em Roma a sua carreira pontifícia, fazendo desta cidade o centro da christandade e ali se veneram suas sagradas relíquias. Foi dali que a Egreja mandou os primeiros pregoeiros do evangelho, levar a luz de Christo e com ela a civilização aos povos mergulhados nas trevas do paganismo, corroídos de vícios, sentados nas sombras da morte. Foi a egreja que fundou as escolas, os asylos, academias, onde a par das sciencias, das artes, da agricultura, se cultivava a virtude, regenerando os costumes, ensinando os homens a amarem-se. Foi da Europa que sahiram os grandes sábios, os intemeratos navegadores, os grandes heroes e os grandes santos. Os bárbaros do norte invadem cheios de furor, o império romano, mas a Egreja chama-os para junto de si e senta-os a mesa da civilização Christã. Foi da Europa, que partiram os seminários para o mundo, á conquista do mundo para Christo. Levando a luz brilhante do evangelho para os confins da terra e fazendo-a a rainha das nações. Porém, vieram os tempos modernos e homens exaltados, já aborrecidos como os hebreus no deserto, do maná celeste, apeteceram de novo as cebolas do Egypto, principiaram a mormurar contra Moyses, isto é, contra Christo e sua egreja.351

Quando avaliamos os elogios feitos a essa Europa cristianizada e sua

missão cumprida de levar o cristianismo aos povos bárbaros, não notamos apenas

que havia referências a uma missão salvífica no âmbito espiritual feita pelos

católicos aos povos pagãos, mas eles também levavam a ―civilização‖ a esses

povos, aqui taxados como incivilizados. Assim, o catolicismo é posto como a própria

instituição que transformou a Europa em um continente ―civilizado‖, atribuindo à

Igreja méritos como fundar escolas, asilos, academias e grandes instituições.

No decorrer da matéria, o jornal vai narrando a forma de apostasia que

surgiu com os ―tempos modernos‖, falando sobre a Revolução Francesa, o

351

A PALAVRA. ―A Europa está sofrendo o castigo de sua apostasia‖. Belém, 03/02/1938.

229

patriotismo e a instituição do divórcio. Sendo que o início dessa apostasia teria sido

a adesão de parte da Europa ao protestantismo:

E que faz Deus? Mandou-lhes cordonizes e serpentes venenosas, contra as quaes estão luctando sem resultado. Ahi está a serpente de bronze, a Cruz do salvador, mas elles a não querem fitar. Revoltados contra a egreja, onde se conserva o maná celeste, inventaram o protestantismo, veio a revolução franceza de 1789 e foram queimadas as egrejas, os conventos e massacrados sacerdotes, religiosos, profanados os sacrários e em Paris, em logar da virgem foi adorada uma prostituta. As nações da Europa divorciaram-se da Egreja e de Christo, (grifo nosso) roubaram os bens destinados aos pobres, ás missões, ao culto divino; fecharam os seminários, profanaram a família, com o chamado casamento civil, instituíram o divorcio, expulsaram Christo das escolas e prohibiram de falar as creanças o nome de Deus, materializaram o militarismo, collocaram a frente das nações homens descrentes sem consciência, sem dignidade, sem honra, sem patriotismo e sem vergonha, os quaes continuam sendo os parasitas e o flagelo dos povos. Assim corresponderam quase todas as nações da Europa aos benefícios recebidos do céu. A russia e a Hespania são dois mares de sangue derramados com inaudito furor, uma crueldade como não há outra na história. O que succederá? O futuro só a Deus pertence, mas a Europa está a beira de um vulcão, minada nos seus alicerces, anarchisada, enraivecida contra Deus e o seu Christo. Bem póde de um momento para o outro, uma faísca, pegar o fogo a esse montão de palha, e os homens devorarem-se como feras no circo. E não haverá remédio para tão grandes males? Há, é voltarem as nações a Christo, de quem se divorciaram. Estarão dispostos a faze-lo? Ou continuarão na sua apostasia? E‘ certo que muitos homens perante a catrastophe imminente estão abrindo os olhos, porém outros continuam na sua cegueira. Ai da Europa, ai do mundo, se Deus abre a sua divina mão e entrega os homens ao furor de suas paixões. ―Jesus é o caminho, a verdade e a vida‖ fora dElle não há felicidade, porque não há amor.352

Pouco é dito sobre o protestantismo nessa matéria, mas daí já notamos ele

sendo responsabilizado como o iniciador da derrocada, pois ―inventaram o

protestantismo, veio a revolução francesa...‖. O protestantismo é retratado como um

marco histórico inicial, não apenas para um abalo do catolicismo europeu, mas

consequentemente como o início do decorrer de outros males que a Europa sofreu

em seus períodos posteriores.

352

A PALAVRA. Belém, 03/02/1938.

230

A Igreja Católica se mostra como a representante da manutenção do bem

comum da Europa, aquela que criou e sustenta a ordem e a prosperidade Europeia.

O texto é construído em forma de alerta, um chamado ao arrependimento, a Europa

precisaria se arrepender de sua ―apostasia‖ representada pela religião protestante,

pelos ideais da Revolução Francesa e das autoridades políticas não cristãs. Se o

catolicismo era a ordem e a prosperidade, os ideais acatólicos eram o caos e a

morte. Incorporá-los ao continente era correr o risco de sofrer a ira de Deus e perder

toda a prosperidade conquistada até o presente momento.

Essa representação da Igreja Católica como a redentora e salvadora da

Europa é uma representação recorrente no decorrer das matérias do jornal católico

―A Palavra‖. O texto desenha a igreja como um verdadeiro baluarte da civilização

ocidental, a propagadora do cristianismo que levava as pessoas à ―luz do mundo‖

remetendo a salvação espiritual e civilizacional desses povos.

A matéria “O compadrio dos protestantes, atheus e jacobinos” nos revela um

pouco mais sobre a associação que o jornal fazia ao catolicismo na Europa, assim

como a representação que fazia ao protestantismo:

Repararam alguma vez a sympathia dos jacobinos pelo protestantismo? Um exemplo entre mil: na obra da laicisação o finado Combes feriu as escolas catholicas, nunca as protestantes. Bem ao contrário, teve como auxiliares certos huguenotes como Pécaut, Fernando Buísson, Révillau, Monod, e outros próceres da Bíblia. Outro exemplo: A Communa de Paris, nascida em 1870 do papae Atheismo, fuzilou o Arcebispo com uma dúzia de padres, mas não perturbou a digestão de nenhum predicante. Essa atitude tiveram os buiças de Lisboa em 1910 e tem actualmente os extremistas de Hespanha: enquanto os convenctos são vitimas de saques e incendios as casas do culto bíblico permanecem inclumes. Mais um exemplo para findarmos essa enumeração: O kulturkampf de Bismark que aprisionou os bispos e padres, numa hora de desvario, jamais mexeu com os clericais Lutheranos.353

Percebe-se claramente a construção do protestantismo feita pelo jornal

como sendo uma ―seita‖ associada a grupos sociais que perseguem o catolicismo,

não só moralmente como fisicamente, destruindo suas instituições e matando

clérigos em alguns períodos da história. Um discurso que procura mostrar a

periculosidade do protestantismo, um tipo de ―inimigo‖ que se associa a outros

353

A PALAVRA. Belém, 25/10/1931.

231

inimigos que perseguem violentamente a Igreja Católica. Atrelando assim o

protestantismo a um discurso belicista, no qual os protestantes são inimigos da fé,

historicamente violentos, perseguindo os cristãos fisicamente. Este era um

argumento retórico que vimos constantemente no terceiro capítulo, mas agora o

jornal se utiliza de fatos históricos ocorridos na França para mostrar como os

protestantes são danosos não apenas à Igreja, mas que se utiliza da França como

um terreno de estudos e testes para lançar novo ataque: que o protestantismo é

uma fé violenta, que se alia a revolucionários e grupos sociais danosos à sociedade

em geral.

No mais, o texto continua:

[...] A pseudo-reforma matou a fé golpes de facão no dogma chistão, matou a moral com a dispensa das boas obras; matou a disciplina e a jerarchia com a pullulação das seitas; matou o culto com o local dos oratórios em salas de clubs; e matou a sciencia e o livre exame, que nivela o nescio com o sabio. O protestantismo morreu com a parte religiosa, pelo menos o protestantismo impingido aos brasileiros. E‘ foco de anticlericalismo, onde ensinam a debicar padres, a insultar cacholicos, a baixar ritos e a impugnar pontos de fé. ―Em Belém vemos a maçonaria, a espiritança e a theosophistaria às ordens do biblioclerical Teixeira Gueiros, na campanha que visa expulsar das escolas e do Corcovado o Chisto.‖ [...]

Ainda seguindo a representação do catolicismo que o jornal ―A Palavra‖

retrata, há aqui uma construção de antagonismo. Se a Igreja Católica gera ―vida‖

entre as nações, o protestantismo gera ―morte‖. Mata a disciplina, o culto, a ciência,

a religiosidade e a fé. Vários predicados que o catolicismo revoga para si, como

seus atributos para alavancar a Europa, mostra o quanto o protestantismo seria uma

religião que a mortificaria.

Não era apenas a aliança de ateus e protestantes que a matéria

apresentava, mas a obra de ―laicização‖ que ocorreu na França. Mostrava a

laicidade francesa, especialmente na terceira república, encabeçada por Combes,

como um momento político de grande agressão ao catolicismo, essa constante

associação de revolucionários jacobinos ateus e protestantes como grupos

expressivos no processo de laicidade no país e no ataque direto ao catolicismo.

Se analisarmos até os últimos anos de publicação do jornal, notaremos que

há uma continuidade na representação do catolicismo como uma religião verdadeira

232

e baluarte das nações ocidentais, enquanto o protestantismo seria o inverso. A

matéria ―Luthero, Kant, Nietzche, Hitler: Egocentrismo em matéria de religião, de

filosofia, de ética e de política‖ continua nessa ideia de como o protestantismo é uma

religião que prejudica a Europa enquanto continente. Dessa vez, a matéria procura

fazer uma linha histórica de como a Alemanha, nação berço do protestantismo,

fazendo uma progressão histórica à luz das ideias que predominaram por lá a partir

da reforma protestante, comparando com filósofos como Kant e Nietzche e, por fim,

o estadista totalitário alemão, Hitler.

Não sei se alguém fez um paralelismo entre os quatro grupos germânicos cujos nomes encimam esse artigo. O certo é que vigora entre eles uma certa afinidade espiritual, oriunda duma mórbida hipertrofia do eu. 1º Luthero - proclama o princípio do ―livre exame‖ em matéria de religião: o que eu julgo divinamente revelado, o que eu julgo revelado, isso é para mim, fonte e norma de fé. Fora com a norma objeticva do magistério eclesiástico! A norma da minha fé sou eu mesmo, é a minha inspiração individual. Com a introdução desse subjetivismo religioso no organismo cristão, estava inoculado no corpo no protestantismo o germen da dissolução dogmática. E a história de cinco séculos provou o perigoso e funesto de semelhante egocentricidade em matéria de dogma e moral: centenas de seitas protestantes independentes, cada qual com seu credo particular. 2º Aparece Kant e aplica o princípio do subjetivismo de Luthero a partir de sua subjetivação científica; a norma da verdade sou eu; o que eu tenho por verdadeiro, isto é verdadeiro. O mundo externo não passa de uma produção do eu pensante, e ninguém é verdadeiro nesse sentido. Ninguém sabe se esse mundo existe independente da minha atividade intelectual. [...] 3º Aparece Nietzche, estuda o subjetivismo dogmático de Luthero, e o individualismo filosófico de Kant, e aplica ao principio da ética — e eis que surge a moral egocentrica, a moral autônoma, a ética independente! Licito é aquilo que me convem. A bitola da moral sou eu mesmo. O legislador do bem e do mal está dentro de mim, e não fora ou acima de mim. Viva a independência da ética. 4º Hitler não é o homem de teorias, é o homem da ação. Não lhe sobram lazeres para especular sobre problemas religiosos, filosóficos ou éticos. Para êle, viver é lutar, E talvez sem saber ou querer, aplicou o principio subjetivista dos ilustres patrícios ao terreno da política nacional e internacional e Triunphou o direito da força, sobre a força do direito...O estado é tudo - a pessoa não passa duma peça num grande organismo estatal. A roda ou alavanca imprestável ou gasta ou é eliminada e substituída por outra melhor. A peça não tem direitos próprios. Só tem uma obrigação de funcionar direito. Não vale como parte de si, apenas como parte do todo, o estado é tudo - e a personificação do Estado chama-se Adolf Hitler. As fronteiras

233

geográficas dos países são barreiras imaginárias. A única fronteira real é determinada pelo sangue. Onde quer que circule sangue ariano, alí estará a Alemanha. E se alguém a exemplo do Nazareno perguntasse ao Fueher ―onde está o reino (reich)? ―Poderia responder: ―O reino está dentro de vós. Circula nos nossos glóbulos vermelhos e brancos do nosso sangue ariano‖. Neste racismo individualista, chegou a culminar o egocentrismo germânico de todos os séculos, traço característico que vai como um fio vermelho através de toda a história espiritual da Alemanha. Luthero, Kant, Nietzsche, estendem seus túmulos as mãos descanardas, e executando o clássico gesto, exclamam: ―Heil Hitler‖.354

Semelhantemente as outras matérias, talvez apresentando maiores

evidências, notamos novamente a construção da imagem do protestantismo como

uma religião que, quando absolvida por países europeus, leva a males sociais

graves a ponto de gerar regimes totalitários. Seria esta uma religião que gera males

não só para o cristianismo, mas para toda a humanidade. Na matéria, notamos que

o autor procura trabalhar um paralelo entre Lutero, Kant, Nietzsche e Hitler,

associando-os, defendendo a teoria de que, a partir do protestantismo, se

desencadearam correntes de pensamentos que perpetuaram, séculos mais tarde,

em regimes totalitários como o nazismo.

A começar pelo ―livre exame‖ que o jornal diz ser proposto pelo

protestantismo, não analisaremos de forma pormenorizada a coerência ou

incoerência dessa lógica, ou a veracidade de suas hipóteses, mas procuraremos ver

aqui como a matéria procura se utilizar de uma retórica bem embasada, se utilizando

de elementos históricos para mostrar que o protestantismo foi o primeiro causador

da quebra de uma cosmovisão católica na Alemanha, e a partir de doutrinas como o

livre exame, teria base sólida para construir ideais subjetivistas, de moral relativa,

onde Hitler foi o derradeiro monstro, a materialização do mal, o homem que pôs

essas ideias em prática. O protestantismo é, portanto, uma ―seita‖ que segundo o

articulista produziu um dos maiores males humanos dos últimos séculos, o

nazismo.355

354

A PALAVRA. Belém, 10/09/1938. 355

Apesar disso, vale ressaltar que a matéria é de 1938, um ano antes do início da II Guerra Mundial. Apesar da crítica ao nazismo feita pelo jornal na época, esse regime político, apesar de já ter suas críticas e apontamentos de seu autoritarismo desde 1933, ainda não é conhecido de forma tão negativa como viria a ser mundialmente após 1945 com o fim da II Guerra e a revelação para o mundo dos campos de concentração e do genocídio que marcaria o séc. XX.

234

Há uma tendência do jornal de sempre relacionar a religião com o bem-estar

social de uma nação, em matérias nas quais o catolicismo seria sempre um

elemento fundamental para a concretização do bem comum, e as religiões e

doutrinas que se contrapõem a ele, e são absolvidas por nações, causadoras do

caos social, a ponto de, no limite, produzir figuras como o próprio Hitler. O

protestantismo para o jornal era representado como essa religião culpada da maioria

dos males gerados na Europa que ocorria no período em que o jornal circulou.

Os ataques do jornal aos protestantes continuam, mas nas diversas matérias

presentes na imprensa havia uma similaridade de discursos relacionados, uma

construção social que quer desenhar o protestantismo como uma religião aliada de

inimigos do catolicismo, verdadeiro berço para o surgimento de filosofias

anticatólicas e regimes totalitários. O protestantismo seria, assim, o bode expiatório

sobre o qual eram depositados todos os males, o iniciador das desordens e

calamidades sociais surgidas após seu aparecimento.

Em contraponto, há um outro tipo de representação social que o jornal

estava construindo a partir da análise da Europa, atribuindo ao catolicismo uma

função que ia além da religiosa, que o elevava ao status de uma religião responsável

por manter a ordem social. Uma fusão entre religião e sociedade na qual o

catolicismo se legitimava como a verdadeira religião. Um dos indícios se dava na

demonstração de como a Europa seria influenciada positivamente por absorver a fé

católica, diferentemente do que ocorre com o protestantismo, onde, segundo esse

discurso, das vezes em que a Europa optou por abandonar os católicos e aderir a fé

protestante, filosofias errôneas, regimes totalitários, fome e miséria assolaram (e

assolariam) ainda mais o continente católico. Nota-se um discurso que mescla

religião e sociedade, na qual a primeira definiria a prosperidade ou derrocada social

de um povo.

A Europa é utilizada pelo jornal como um elemento para a sua

argumentação retórica, onde o catolicismo como igreja verdadeira era o baluarte de

sua sustentação e prosperidade. A Europa católica é um argumento retórico utilizado

para mostrar como a sociedade e o Estado, atrelados ao catolicismo, conseguem

uma redenção não apenas no plano celestial, mas ainda aqui, neste mundo, vivendo

em reinos terrenos prósperos e de paz como os países Europeus que se mantinham

fiéis ao catolicismo.

235

5.2 ―OS PROTESTANTES DO BRASIL SÃO ANTIPATRIOTAS‖: A

REPRESENTAÇÃO SOCIAL DO CATOLICISMO COMO REDENTOR NACIONAL

No período republicano, notamos a mudança de representação do jornal

católico ―A Palavra‖ diante do novo cenário nacional. Havia agora a ideia da

nacionalidade presente em diversas matérias do periódico; constantemente se

discutia sobre o Brasil enquanto nação e como o catolicismo se encaixava nessa

construção de nação brasileira. Eram constantes as matérias em que o jornal

mostrava os católicos como o ―elo‖ que segurava a unidade nacional. Contudo, o

mais interessante dessas matérias era que a maior parte delas mostravam o

protestantismo a partir de uma ótica negativa.

Antes de entrarmos nesses questionamos, vamos refletir como o periódico

―A Palavra‖ retratava parte do discurso católico que circulava em Belém sobre o

momento político que a Igreja vivia, especialmente pela forma como descrevia o

período republicano e a separação entre Igreja e Estado no Brasil.

Na matéria ―A República‖, podemos ter uma ideia do posicionamento do

jornal no período. Publicada por Andrade Pinheiro, percebe-se que a matéria

ocupava uma posição de destaque no jornal, o maior texto da terceira página, com

uma diagramação semelhante a do editorial, o que demonstra o objetivo do jornal

em eleger essa matéria como a mais relevante e chamar a atenção do leitor.

A matéria começa fazendo uma análise epistemológica da própria palavra

―república‖. Mostra o estadista romano Cícero, tratando a ―Res pública‖ como o

melhor governo que o Império poderia ter. Uma afirmação que posteriormente vem

acompanhada de um parecer negativo, dizendo que ―houve este grande pensador a

dita de não assistir ás crueldade dos Cezares que, no império, com requintada

desumanidade, trucidaram os christãos‖356.

Há uma narrativa, utilizada pelo articulista, elogiando em uns momentos e

criticando em outros, ou pondo em dúvida a eficácia do regime republicano.

Diferentemente do regime monarquista brasileiro, em que o mesmo articulista tece

elogios, dizendo que ―os impérios de D Pedro I e D Pedro II, cheios de grandes

feitos, dentre os quaes avulta a unidade nacional‖, tinham os ―aplausos da nação

inteira‖. Tal representação sempre positiva do regime imperial contrasta com o seu

356

A PALAVRA. Belém, 16/11/1922.

236

posicionamento relacionado ao regime republicano, em que dúvidas e

questionamentos de sua origem procuram provocar no leitor um questionamento

diante de aprovações a esse novo regime político.

Agora, porém o Brasil é república, e da república brasileira é que nos cumpre occupar, neste grande e festivo dia. Como se fez a república do Brasil? O que de facto ninguém discute e todos aplaudem, que todos engrandecem e ninguém pergunta como foi que se originou? Como foi que se fez?357

Todavia, mesmo mostrando o regime republicano com essas constantes

incógnitas e dubiedades, por fim a matéria termina com um elogio à República no

Brasil, especialmente na forma como a Igreja Católica recebe reconhecimento.

No ponto de vista religioso, a fé catholica dos brasileiros tem imensamente progredido, sem a maior coação das instituições vigentes. O grande, o esthupendo facto do Congresso eucarístico, e sobretudo na procissão do Chisto-Hostia, que marcará uma data tão estupenda e memorável na religião dos brasileiros, nos dizem com uma inteligência irretoquivel, que a nação brasileira é essencialmente religiosa e catholica, e que sobre a forma que nos governa, a mesma nação brasileira tem a mais plena liberdade de praticar a sua religião, e o que mais nos consola é que os mesmos governos estadual e federal, sem as preocupações descabidas se, agindo assim, ferem ou não o estado constitucional. Bem haja a república crendo em Deus e em Jesus Christo, e acatando a liberdade dos que também creem em Christo e professam a sua admirável doutrina. Não precisamos fazer aqui praça de fé republicana: Mas podemos afrontamente dizer, A Pátria antes de tudo, pela democracia, na fé, na paz, na ordem, na justiça. Viva, portanto, o dia 16 de novembro.358

Nessa mescla entre elogios e ressalvas, o interessante na matéria é que o

mais longo elogio feito à República foi justamente o que registramos no trecho

acima, no qual o apoio e validação do articulista ao regime republicano se dá

justamente graças à liberdade concedida à Igreja Católica de continuar suas práticas

religiosas conforme desejar, com autonomia para realizar grandes congressos e

reconhecimento de autoridades políticas constituídas de que o país é

majoritariamente católico, incluindo até mesmo alguns representantes de Estado.

357

A PALAVRA. Belém, 16/11/1922. 358

Ibidem.

237

Há nas entrelinhas da matéria elementos que revelam outras nuances do

momento político vivido no início da República. A separação entre Igreja Católica e

Estado surgida com o regime republicano não agradou a Igreja Católica de início, e

este se tornou um dos principais temas de embate entre católicos e protestantes no

final do Império e início do período republicano. Após algumas décadas da

República já estabelecida, a aceitação, ainda que com ressalvas, se deveu ao fato

da Igreja Católica não ter perdido seus privilégios. A matéria revela que autoridades

representantes do estado republicano reconhecem a importância do catolicismo,

sendo que muitas dessas autoridades fazem suas declarações de fé como católicas,

ou reconhecem que estão em um país de maioria católica. Assim, na mudança do

Império para a República, o novo regime não se tornou um freio, mas um elemento

colaborativo para a manutenção dos privilégios do catolicismo. Há um tom de

concordância com uma sutil ameaça. Enquanto o regime republicano continuar

reconhecendo e mantendo os privilégios da Igreja, sem ―coagi-la‖, terá seu apoio e

também comemorará o ―15 de novembro‖; do contrário, o apoio será quebrado.

A recorrente afirmação do periódico é que a nação é essencialmente

católica, e as autoridades republicanas precisavam reconhecer isso para

executarem uma boa gestão.

Esse discurso católico de apoio ao catolicismo após um período anterior de

rejeição reflete uma conjuntura histórica que percebemos ainda na transição do final

do Império para o início da República. De início, ainda no período imperial, havia um

importante embate entre grande parte das lideranças católicas e os republicanos. A

Igreja Católica era vista por liberais e positivistas como ―atrasada‖, uma aliada da

monarquia que não representava o ―progresso‖. Porém, após a proclamação da

República, a Igreja procurou se aproximar do novo regime que surgia. O Vaticano

reconheceu o regime republicano em 1890, e, no ano de 1891, entre as diversas leis

presentes no código civil que garantiam a separação oficial da Igreja Católica do

Estado, os seus bens não foram confiscados e as ordens e congregações puderam

continuar funcionando normalmente.359

O discurso da Igreja Católica após o período republicano variou entre uma

―distância respeitosa‖ e combativa para manter os princípios católicos nas leis, o que

mostra a tentativa de, ainda no período republicano, se fazer presente no Estado.

359

OLIVEIRA, Lucia Lippi. A questão nacional na Primeira República. Brasília: Brasiliense, 1990, p.162-163.

238

Mas a maior característica da Igreja Católica foi potencializar um discurso que dizia

que ela ―colaborava com a ordem diante dos movimentos de contestação que

começavam a questionar o status quo reinante‖360.

Lucia Lippi, ao estudar a ideia de nacionalismo nas primeiras décadas da

República, diz que a Igreja passa a adotar um discurso conciliador entre Igreja e

República, mostrando-se dona de uma religiosidade que seria o principal pilar da

unidade política que o nacionalismo exigia. Para isso, Lippi analisa os discursos de

Julio Maria nas imprensas católicas circulantes, no qual ele afirmava que

A descoberta do Brasil e sua ocupação pelo rei de Portugal não ocorreram por acaso, e sim foram frutos da vontade divina. Assim, o ―ideal da pátria brasileira sem a fé católica é um absurdo histórico‖, a crença e a fé constituem o ―princípio de vida‖, a ―alma da nação‖. Foi a unidade religiosa que produziu a unidade política.361

A autora também destaca que:

Em relação a questão da nação estamos ainda dentro da visão de Julio Maria. Nossa pátria, nossas tradições caracterizam o Brasil como ―terra de Santa Cruz‖. Catolicismo e nacionalismo são aqui sinônimos. Todas as esferas de ação humana estão subordinadas à nacionalidade que está plantada sobre o catolicismo.362

Temos aqui uma tentativa de discurso entre duas correntes de pensamento,

uma que revela um discurso simbiótico entre catolicismo e nacionalismo.

Então, tanto por essa quanto pela análise de outras matérias do jornal, não

notamos apenas uma aceitação do catolicismo com relação ao regime republicano,

também há uma renovação da construção social do catolicismo, que procura se

colocar, mesmo em um regime político onde a Igreja Católica deixa de ser atrelada

ao Estado no ponto de vista jurídico, como necessitada ainda do reconhecimento

pelo regime como a principal religião brasileira, e, no decorrer das matérias, o

catolicismo ainda se mostra como uma religião essencial para a nação. Assim,

entendemos o porquê a ideia de ―patriotismo‖ e ―catolicismo‖ passam a ser dois

elementos discursivos que serão constantemente conectados pelo jornal. ―A nação

360

OLIVEIRA, Lucia Lippi. A questão nacional na Primeira República. Brasília: Brasiliense, 1990. 361

Ibidem, p.165. 362

Ibidem, p.172.

239

brasileira é católica‖, essa será a tônica-chave das matérias do periódico a partir de

então.

No decorrer de nossas análises, percebemos que as matérias onde mais

notamos o discurso da Igreja Católica mostrando-se como sendo essencial ao

Estado, ao regime republicano ou a nação, ocorre justamente a partir de um

contraponto ao protestantismo. Como exemplo da matéria ―Desnacionalização‖:

E‘ ingente as atividades dos biblistas americanos, em alguns Estados. Seus intuitos são claros: Desnacionalizar o Brazil, quebrando o mais forte elo que o faz a maior nação sul-americana- A unidade religiosa. E‘ Obra pois de patriotismo combater a infiltração americana pela bíblia.363

A partir de matérias como essa, notamos uma representação de católicos e

protestantes que passa a ser recorrente no jornal. Há constantes acusações dos

protestantes ―desnacionalizarem‖ o Brasil. O protestantismo será, no jornal,

constantemente associado a uma religião norte-americanizada, e os missionários

protestantes como agentes infiltrados dos Estados Unidos com o objetivo de destruir

a nação brasileira. Aqui, a ―unidade religiosa‖, representada pelo catolicismo, é

descrita como um grande ―elo‖ da nação. Destruir o catolicismo é tido como uma

estratégia norte-americana de dominação, e o protestantismo seria uma ―infiltração

americana pela Bíblia‖, que deveria ser combatida. Há no periódico uma mensagem

de instrução, incentivando o seu leitor ao combate do protestantismo, e construindo

essa ação com um reforço positivo, afirmando que esse combate era um dever

patriótico.

A matéria ―Os protestantes do Brasil são Anti-Patriotas‖, nos dá um melhor

entendimento dessas acusações.

Os intuitos muito claros do protestantismo norte-americano não permitem mais dúvidas a respeito. A religião é nas mãos dos imperialistas yankees um meio de conquista da América Latina. Hontem, elles começavam a ―proteger‖ Haiti, Panamá, e o próprio México. Depois os caribenhos norte-americanos estavam nos terrirórios extrangeiros como na própria pátria para garantir o desejo dos patriotas. No Brasil as cousas seguem na mesma marcha. Aliais, somos um país próprio para attrair a ―amizade‖ de ambiciosos... Temos, porém, na unidade nacional um poderoso elemento de resistência. Mas essa

363

A PALAVRA. ―Desnacionalização‖. Belém, 24/02/1921.

240

unidade nacional é, de si, fortalecida, garantida, pela unidade da fé. Ora, não dá para quebrar a unidade da fé ou diminuir, ou anular a unidade nacional. Isto já foi precisamente compreendido pelos nossos ―amigos‖ que querem a America para os americanos... As intenções segundo o proseytanismo protestante americano entre nós estão muito claras. Há na America do Norte milhões de pagãos, de racionalistas, de Atheus, e 20 milhões de catholicos: Os pasthores protestantes abrazados de zelo pela salvação dos brasileiros não cuidam dos seus irmãos e vêm cuidar de nós, porque? Porque encaminhar para o Brasil milhares e milhares de dollars, fundar collegios, distribuir bíblias falsas, tantos folhetos insultuosos ao Brasil, aos brasileiros, ao clero e aos catholicos, gastar aqui tantos dinheiros, quando lá os templos estão vazios, os vícios grassando e a moral decaindo, será interesse? Quem não vê as intenções que movem o ―zelo‖ dos missionários, do dollar e do imperialismo?364

Para além dessa questão, é interessante notarmos como o jornal constrói a

ideia de catolicismo nessa situação, representando-o como a fé que promove a

unidade nacional, essencial para a própria manutenção da pátria.

Essa era uma forma de mostrar que se o regime republicano não reconhecer

o catolicismo como a principal fé da nação haveria desunião, quebrando a

resistência para o imperialismo norte-americano enfim dominar o país. O catolicismo

fortaleceria a nação contra essa ―invasão yankee‖. Um discurso messiânico, no qual

o catolicismo seria a única fé que conseguiria fazer com que os país resistisse diante

do mal imperialista que estava por trás da fé protestante no país.

Notamos algumas questões, primeiramente o catolicismo tinha consciência

do seu alcance e hegemonia. Republicanos, liberais, positivistas, protestantes,

espíritas ou qualquer outro grupo social acatólico não tinha o alcance que o

catolicismo possuía. Era a única corrente de pensamento que alcançava o país

inteiro, nas mais diferentes regiões, e nas mais diversas classes sociais. O discurso

católico legitimava a Igreja como a única a conseguir promover essa unidade, por

entender que era a principal instituição religiosa a estar presente no imaginário

religioso dos brasileiros. A partir daí, agregava para sí o discurso nacionalista

republicano. O catolicismo é acoplado ao conceito de nação para transmitir um

convincente discurso de legitimação e para ser reconhecido como uma religião

nacional.

364

A PALAVRA. ―Os protestantes do Brasil são Anti-Patriotas‖. Belém, 08/11/1931.

241

No continuar dessa linha de raciocínio, temos a matéria ―Combate ao

protestantismo‖:

O combate que todo o brasileiro deve mover incansavelmente a seita dos mensageiros do dollar não é um dever imposto pela fé: é um dever do patriotismo. O ministro protestante é um dever dissolvente, deletério, anti-patriótico. Dividindo a fé catholica de nosso povo, quer acima de tudo, enfraquecer a unidade nacional. O resto é fácil... Ahi está o exemplo do Mexico e da America Central! Bem haja, pois, todo aquele que move guerra ao protestantismo Brasil, máxime no Brasil. Merece, por isto, todo o nosso apoio o sr Cremilde Aguiar que acaba de fundar no Rio. (Rua São José, 39, 2º andar) a Liga de combate ao protestantismo cujos objeticvos já estão indicados no próprio nome. Essa liga que terá um número ilimitado de sócios está merecendo a adhesão de todos os bons catholicos, e mesmo dos não-catholicos que amem a sua pátria. Para pertencer a Liga de combate ao protestantismo, basta enviar o nome, profissão e residência (com firma reconhecida), ao presidente, dispondo-se a combater a praga Lutherana. Que os catholicos saibam cumprir o seu dever diante de tão funesto inimigo.365

Essa é uma matéria que, assim como outras, foi publicada em outro estado

e o conteúdo também circulou nos jornais católicos de Belém do Pará. A matéria

procura convocar não apenas os católicos devotos para esse combate, mas se

dirige também a ―todo o brasileiro‖, e que isso não é apenas uma questão de fé, mas

é ―dever do patriotismo‖. Mais uma vez a ideia de ―católico‖ e ―brasileiro‖ sendo

atreladas ao discurso, a proteção e defesa do catolicismo sendo postas como

interesse nacional, e que o catolicismo é essencial para o Brasil enquanto nação.

O protestantismo posto como um ―inimigo‖ do catolicismo, faz com que as

críticas feitas a ele não sejam apenas na questão religiosa (―uma seita‖), mas como

uma ameaça nacional, um perigo para todos os brasileiros. Essa ideia do catolicismo

brasileiro como uma fé necessária para a unidade nacional, e o protestantismo como

um uma religiosidade que objetivava destruí-la visando uma dominação norte-

americana, será um dos principais discursos do conflito entre essas duas vertentes

cristãs nos veículos de imprensa.

Aqui, semelhantemente à matéria ―a bíblia dos protestantes em penca‖,

mostrada no capítulo anterior, o jornal mais uma vez se posiciona como um agente

mobilizador diante de seus leitores, mas dessa vez a ideia não está em destruir a

365

A PALAVRA. ―Combate ao protestantismo‖. Belém, 25/10/1931.

242

bíblia protestante apenas, mas todo o protestantismo que se infiltra no país. Com um

composto narrativo a mais, onde o combate aos protestantes não é um problema

apenas dos católicos, mas de toda a nação.

Há algo muito claro nessas matérias analisadas, a apropriação da ideia de

nação pelo catolicismo, apesar de haver uma separação oficial entre Igreja Católica

e Estado. O catolicismo consegue mostrar-se como uma religião imprescindível para

o Brasil republicano que desponta, a religiosidade que promove uma união nacional,

como um pilar de sustentação da República. Ser contrário ao catolicismo, seria ir

contra toda a nação e o novo modelo republicano seria insustentável. Com essa

nova roupagem discursiva, a Igreja Católica mantém o seu discurso messiânico

atrelado ao novo momento político que vinha com o Brasil República. Mesmo que

separada juridicamente do Estado, era necessário estruturar seus discursos para

manter sua hegemonia diante de uma sociedade ainda majoritariamente católica.

O protestantismo, movimento religioso historicamente antagônico ao

católico, também ganha uma nova reconstrução social pela imprensa católica. Agora

ele não era apenas uma ―seita herética‖, mas uma religiosidade norte-americana,

utilizada pelos Estados Unidos como instrumento de dominação da nação brasileira.

Destruir a igreja católica seria uma forma de destruir a nação e o protestantismo

seria o agente dessa destruição; fosse por meio de exemplos europeus ou do

próprio cotidiano brasileiro, a imprensa católica se utilizava de suas construções

sociais para vender a ideia do catolicismo como a religiosidade que sustenta a

nação a protege de seus inimigos, e mesmo separada do Estado precisa ser

reconhecida por ele e pela sociedade como a principal religião nacional.

5.3 ―A REPÚBLICA CHRISTA‖: PROTESTANTISMO E POLÍTICA

Se entre os católicos, a República era absorvida com ressalvas apesar da

nítida aceitação; para os protestantes, o republicanismo era exaltado e tido como o

regime político ideal. Nos veículos de imprensa como o jornal ―O Apologista Christão

Brazileiro‖, por exemplo, notamos uma articulação de seu dono, o pastor metodista

Justus Nelson, com o próprio partido republicano local. Apesar de uma declaração

de isenção do jornal, havia constantes parabenizações ao partido republicano

criado.

243

Em nosso programa estampado no primeiro número do Apologista, declaramos a nossa independência de todos os partidos e bem assim, as convicções que nos tornam republicano. Esta nossa independência não nos priva de sentir o mais vivo interesse nos movimentos de partido cujo programma encerra mais ou menos aproximadamente as nossas ideas politicas. Exeussado é dizer que as suas idèas theologicas ou antes anti-theologicas, se acham o mais longe possível das nossas convicções. Não obstante esta divergência, ao partido republicano d‘este estado, que effectuou a sua organização definitiva no dia 20 do corrente, desejamos um futuro cheio de trabalhos, de sacriphicios, de triumphos, ao bem do nosso povo. Ao publico o partido já deu mais um valiosíssimo penhor do seu futuro, elegendo ao Dr José Paes de Carvalho para presidente do seu directório. E‘ com pesar que notamos a recusa do dr Henrique Americo de Santa Rosa de fazer parte do directorio. Esperamos a reforma dessa sua decisão. Outro tanto não podemos dizer da retirada de alguns nomes do partido, cuja presença contribuía a fraqueza e não à força das lutas philanthopicas.366

Justus Nelson ressalta que, desde o primeiro jornal publicado, ele já tinha

tomado um posicionamento político. Mesmo não possuindo uma vinculação direta

com os partidos, o jornal se posicionava como republicano e muitas ideias do partido

sincronizavam com os ideais do jornal. Havia um apoio de Justus Nelson ao partido

que se formava no estado, a ponto do pastor ter até a preocupação de informar os

pormenores do partido, mostrando quem fora eleito como presidente dos

republicanos: o doutor José Paes de Carvalho. Há uma comemoração tanto por

essa eleição quanto pela retirada de outros nomes, mostrando que o jornal

acompanhava e se posicionava diante dos trâmites internos do partido, instruindo

aos seus leitores qual a melhor posição do partido nos interesses dos protestantes.

Apesar dos acompanhamentos minuciosos e críticas de Justus Nelson a

alguns membros do partido, no geral havia uma clara aprovação ao regime

republicano e uma intenção de declarar essa aprovação aos seus leitores. Informar

a eles o que acontecia no partido era tão importante para o jornal quanto tratar de

assuntos religiosos da fé protestante, como estudos bíblicos e discussões de

doutrinas internas do protestantismo. Nesse jornal, a política ocupava um espaço

considerável, revelando o elevado grau de importância que o líder metodista

destinava ao assunto.

366

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―O partido republicano‖. Belém, 25/01/1890.

244

Já vimos, no segundo capítulo, que Justus Nelson também tinha espaços de

divulgação de seus cultos e casamentos acatólicos no jornal ―O Democrata‖,

periódico republicano de conteúdo político, o que mais uma vez corrobora o que

dizemos. Justus Nelson procurava ter relações próximas com políticos republicanos

e utilizava da imprensa para a propagação de suas preferências políticas.

Contudo, além de opinar sobre a política republicana local, Justus Nelson

costumava discutir ideias políticas que estavam sendo debatidas a nível nacional e

mundial. Ao analisar a matéria ―Separação do estado e da igreja‖, notamos um

melhor detalhamento do posicionamento político do jornal. Após prestigiar a ideia de

que a Igreja e o Estado se separaram, a matéria ressalta que a Igreja Católica ―ficará

gozando da mais plena liberdade de ação‖367, e terão, junto com outros cultos

religiosos, iguais direitos relacionados à liberdade de culto. Com isso, Justus Nelson

desafia a Igreja Católica a não ser contrária a medida tomada pelo regime e, nas

entrelinhas, vai construíndo a sua ideia de República.

A matéria retrata que ―cada religião deve manter-se às custas de seus

próprios fieis‖ e que estes ―não queiram que os cofres do estado que contêm só o

suor dos que trabalham, satisfaçam essa despeza vaidosa e inteiramente

desnecessária‖. Essa ação é apresentada pela matéria como uma ―tyrannia que a

república não deve de modo nenhum tolerar por mais tempo”. Ao mostrar tal

contribuição financeira do Estado e essa ação da Igreja como uma tirania, o jornal se

posiciona como uma forma de cobrança para o regime republicano não tolerar mais

essa prática. O autor da matéria se mostra confiante para cobrar do estado

republicano essa atitude com relação ao catolicismo, mostrando a própria confiança

do jornal com a República.

No decorrer a matéria segue comparando este caso com outras repúblicas:

Se no Brazil o culto de estado fosse também sustentado por um imposto diretamente para este fim, Já há muito tempo teria havido séria resistência ao pagamento; mas como a despeza do culto saho da receita geral da nação, não tem apparecido ainda esta dificuldade entre nós. Os Catholicos brazileiros devem agora mostrar os seus sentimentos de justiça e fraternidade para com os seus concidadãos que não participam das mesmas idéias religiosas; não devem oppor-se a que lhes conceda iguaes prerrogativas, para haver em sua pátria

367

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―Separação do estado e da igreja‖. Belém, 01/02/1890.

245

verdadeira igualdade de direitos; não devem exigir que eles contribuam constrangidos para o sustento de um culto em que não crêem para haver verdadeira fraternidade; não devem violentar-lhes a consciência para haver liberdade. [...] Os catholicos patriotas devem ser os primeiros a contribuir largamente para a manutenção de seu culto, não só para alliviarem o estado de um ônus tão pesado, mas também para mostrarem que teem fé em sua religião. [...] Nos Estados Unidos, a republica não gasta nem um real com a religião. [...] La existem igrejas catholicas; la existem muitos outros cultos que teem bonitos templos e sumptuosas cathedeaes, mas todas essas crenças são sustentadas pelos fieis que d’elles participam, todos tem os mesmos direitos perante a lei. (grifo nosso) [...] E porque não deverá haver, a mesma justiça no Brazil? Acaso queremos ficar neste ponto inferiores à grande republica da América do Norte? De nenhum modo! Já que soubemos fazer uma revolução tão admirável que espantará até os povos mais civilisados, não deixemos essa gloriosa reforma imperfeita ou defeituosa. (grifo nosso) Apresentemos essa obra completa aos olhos do Universo, desligando a igreja do estado, e dando a todos os cultos religiosos as mesmas garantias da lei, e então haverá no Brasil verdadeira, liberdade, igualdade e fraternidade.368

Há nessa matéria um direcionamento ao público católico, dessa vez não

com tanta jocosidade como é natural de outros textos de Justus Nelson já

observados, mas agora de forma mais pedagógica, procurando falar diretamente a

um público mais abrangente, direcionando a mensagem principalmente aos

―católicos brasileiros‖, que deveriam colaborar para haver em ―sua pátria‖ a

―verdadeira igualdade de direitos‖. A ideia era fazê-los refletir como a separação total

entre Igreja e Estado seria boa para a nação brasileira, e os católicos, como bons

patriotas, deveriam apoiar essa política.

Para falar com esse público mais abrangente, o pastor metodista elege uma

chave conectiva que serve como ponte de linguagem para esse público amplo, o

patriotismo, que aqui é mostrado metodista como positivo, como um ideal moral a

ser seguido. A separação entre Igreja e Estado era uma característica do estado

republicano, e, portanto, da pátria brasileira. Desaprovar tal medida seria ir contra a

própria nação brasileira e um retrocesso para o país.

As comparações são referentes a repúblicas ocidentais específicas de

países desenvolvidos, como a Inglaterra e os Estados Unidos, nações republicanas

368

O APOLOGISTA CHRISTÃO BRAZILEIRO. ―Separação do estado e da igreja‖. Belém, 01/02/1890.

246

de hegemonia protestante, países apresentados pela matéria como bons exemplos

de prática republicana, especialmente na questão da separação entre Igreja e

Estado, desde a resistência dos ―quakers‖ com relação ao imposto que a Igreja

Anglicana cobrava na Inglaterra, ou mesmo os Estados Unidos que não cobravam

―Um real com a religião‖. Há na matéria a construção dessas repúblicas como

modelo republicano ideal, e o Brasil seguindo esse modelo de laicidade do Estado

faria a nação brasileira tão grande quanto elas. O autor exorta que o Brasil não pode

ser, nesse aspecto, inferior à ―grande república da América do Norte‖, e se

apequenará se não praticar uma efetiva separação entre Igreja e Estado.

Há nessa separação um elemento de luta do protestantismo brasileiro,

incluindo os líderes protestantes que estavam em Belém do Pará. Contudo, tanto o

modelo de laicidade quanto o de república eram sempre comparados aos de países

desenvolvidos, especialmente os de viés protestante, como Inglaterra e Estados

Unidos. Quando algo sobre o Brasil é apresentado, sempre há a comparação com

esses países como parâmetros para como a república brasileira deveria se espelhar.

No Jornal Batista, jornal de circulação nacional distribuído em Belém pelas

lideranças batistas, vemos uma representação semelhante da República referente

ao protestantismo. Alguns colunistas retratavam recorrentemente sobre o período

republicano e os acontecimentos envolvendo religião e República diante da sua

própria conjuntura, como na matéria ―Christã, jamais ultramontana‖, publicada pelo

―O Jornal Batista‖ por Virgilio de Lemos:

Numa de suas conferencias catholicas, realizada na Cathedral, depois de dissertar largamente sobre a necessidade da crença em Deus, perorou o sr. Dr. Julio Maria com esse dilemma: ―OU A REPUBLICA COM JESUS CHRISTO, OU JESUS CHRISTO SEM ELA‖ [...] Jamais, Jamais! Cristã, sim, é e quer ser a República. Ultramontana... isso nunca. Se o Jesus de quem falaes, é o doce e mansueto nazareno que, com o poder do exemplo, levado ao supremo sacrifício, arrancou a humanidade do ―polo do ódio‖, para transporta-la para o ―polo do amor‖; se o Jesus de que nos falaes é o grande, incomparável e sublime moralista, cuja doutrina sempiterna apezar das maculas do dogmatismo medieval, lançou definitivamente as bases Moraes da civilização moderna [...] Se o vosso Jesus é esse que não carece de estatuas de mármore de bronze ou de ouro – essa fortaleza dos fracos – porque tem a sua imagem gravada em todas as retinas e em todos os corações, sim, se é esse o vosso Jesus, nós somos christãos, chistã é a república, a quem ameaçaes inutilmente. Christã é a república do Brazil, [...] O nosso caminho é o caminho estrellado por S. Paulo, o grande

247

apóstolo; nunca, porém, o caminho subterrâneo de Torquemada, o réprobo. O nosso caminho é o caminho da livre América, nunca jamais o torvo caminho de Isabel...a catholica das Hespanhas. Christã sim; jamais ultramontana!369

O autor da matéria concorda em querer uma república cristã, mas ―não

Ultramontana‖. O jornal também deseja uma República na qual o cristianismo

prevaleça, mas o reconhecimento do que seria uma ―república cristã‖ passa pelo

critério da introdução de um cristianismo protestante – e não católico.

A comparação de mostrar que o caminho que o autor prefere seguir é de

uma ―Livre América‖, em vez de um caminho ―turvo‖ como a Espanha comandada

pela rainha católica Isabel, vale como um comparativo semelhante ao de Justus

Nelson, em que há a sugestão da ―Livre América‖ como o melhor ―caminho‖,

mostrando o modelo norte-americano como um modelo republicano ideal para o

Brasil.

Essa opinião se torna ainda mais nítida em outra matéria publicada pelo

chamada ―Carta aberta ao padre Julio Maria‖:

Mas, perguntamos a vós, dr Julio Maria, porque os povos protestantes incontestavelmente, visivelmente progridem em quaisquer dos ramos da actividade humana, tocando á méta da grandeza material e moral, e os catholicos, apathicos, frouxos, inertes, conservam-se, dormindo o somno da fraqueza, no deleitar embriagante e saudoso do passado? [...] Nos Estados Unidos, dizei-nos o que é a população catholica, em verdade, porque só podereis affirmar a opinião valorosa de Tocqueville. São os Catholicos que ocupam plano superior e digno nas artes, indústria e commercio, letras no Canará? Não. Portugal, estacional e a Hespanha, meia-morta, embevecidos, contemplam as florias de outr‘ora. A França, do seu thono glorioso ouve a gritaria da população e, mais do que estes assomos, tem o escalar das grimpas do poder pelo ultramontanismo. Confrontae o que ella foi em 1700 e o que é hoje [...] Lançae as vistas sobre estes paizes catholicos e depois nos dizei se o nosso caro e extremoso Brazil pode ser feliz e prospero, avassalado, como o é, pelo romanismo? Não o é, não poderá ser, porque a religião de formulas e ritos já passou da época, não contem os ímpetos, não domina os homens. O povo precisa urgentemente de outro instrucção religiosa, segundo um escritor, além do nada: procissões grotestas, santos coloridos, velas accesas, ramos, agua benta, jejuns. Essas práticas não edificam. Nada conseguem e por

369

O JORNAL BAPTISTA. ―Christã, jamais ultramontana‖. Manaus, 10/09/1901.

248

isso abandonemol-as unicamente pela moral – a palavra divina – o Christianismo puro.370

Aqui o autor é direto, procura mostrar o protestantismo como a melhor

religião a ser abraçada pelo país. A matéria mostra que o Brasil não será um país

próspero se a sua principal religião for o catolicismo. Para a nação prosperar, faz-se

necessário que ela abrace o ―christianismo puro‖, o protestantismo. O jornal mostra

que um catolicismo majoritário em uma nação é a causa de atraso social,

diferentemente do protestantismo que, quando se torna majoritário, leva a nação ao

progresso.

A ideia era justamente essa, uma mudança. Por mais que os protestantes

lutassem por uma separação da Igreja católica do Estado, tanto católicos quanto

protestantes não brigavam por um estado ateu, ou mesmo neutro, o estado deveria

continuar a se inclinar para o lado do cristianismo. As discussões eram em torno de

sobre qual cristianismo o estado se debruçaria: o catolicismo ou o protestantismo.

Então, assim como vimos nos outros tópicos sobre o catolicismo, também o

percebemos em discursos protestantes, representações da sua religiosidade como

um instrumento redentivo não apenas para o indivíduo, mas para toda a sociedade

brasileira. Se o discurso do catolicismo era que ele seria a religião que traria para a

nação brasileira republicana a unidade nacional necessária para preservar a nação,

inclusive para não ser dominada por imperialistas, como os norte-americanos, na

representação protestante o catolicismo brasileiro significaria o atraso e o

protestantismo seria a religião que faria a nação prosperar, assim como eram

prósperas as nações de maioria protestante pertencentes a essa conjuntura,

exemplo de Inglaterra, e, principalmente, os Estados Unidos. O protestantismo seria

a religião do progresso.

Notamos que esse discurso continuou no decorrer da república, pois quase

20 anos depois disso ainda havia representações semelhantes desse jornal com

relação a católicos e protestantes. Na matéria ―A unidade nacional‖, escrita n‘O

Jornal Batista, vemos esse tipo de ideia:

Os mentores da egreja de Roma não se cansam de proclamar a todos os ventos que impedir a invasão das corporações evangélicas é fazer obra de patriotismo porque é defender o

370

O JORNAL BAPTISTA. ―Carta aberta ao padre Julio Maria‖. Manaus, 10/09/1901.

249

catolicismo, é defender a unidade nacional! A verdade, porém, é que não há maior inimigo de todas as nacionalidades do que seja o catolicismo que por séculos manteve a Italia retalhada. Foi elle o maior inimigo da sua unificação, e continua sendo o maior estorvo do seu progresso. No decorrer da guerra, pro um tris, elle não a fez desaparecer do mappa da Europa. O desastre de Caporetto foi obra sua, auxiliada apenas pelos socialistas visionários.371

Outra semelhança dos protestantes com relação aos católicos em sua

retórica é a desqualificação do outro a partir de exemplos europeus. Há uma

tentativa de desconstrução da opinião católica com relação a sua argumentação de

ser a detentora da unidade nacional brasileira, ou de sua religiosidade fazer

prosperar nações ocidentais, mostrando, através de exemplos como a Itália, que o

catolicismo é uma religião que ao invés de unir separa nações, dando a ele a culpa

de haver uma Itália ―retalhada‖, e que foi o maior ―inimigo‖ da sua ―reunificação‖ e o

―estorvo do seu progresso‖. O catolicismo é assim mostrado como uma religiosidade

que divide países e os impede de progredir nos aspectos econômicos e sociais. Se

há entre os católicos uma dicotomia de se mostrarem como salvadores nacionais de

uma nação republicana que precisa se manter unida, pondo os protestantes como

invasores e dominadores de território, há entre os protestantes um discurso de

representantes do progresso, capazes de impulsionar a nação a ponto de fazê-la tão

próspera quanto os Estados Unidos.

Nesse aspecto, as discussões entre católicos e protestantes que circulavam

em Belém nos veículos de imprensa ganham um viés político, que por parte do

protestantismo defendia o regime republicano, em que a principal pauta era a

separação da Igreja Católica do Estado, sempre tomando como exemplo países

republicanos desenvolvidos de hegemonia protestante. Esse é um tipo de laicidade

a partir da qual não se briga por um estado neutro, mas sim por um estado cristão,

visionando um possível país protestante como sendo o modelo ideal de república a

ser seguido.

Nessas tentativas do protestantismo arvorar-se como sendo a religião

nacional ideal, há também a apropriação de símbolos significativos do período

republicano que são vinculados a esse discurso. No jornal presbiteriano ―Norte

Evangélico‖ notamos essa abordagem diferenciada, em que o jornal procura mostrar

371

O JORNAL BAPTISTA. ―A unidade nacional‖. 01/01/1920.

250

positivamente o período republicano a partir de seus ícones, especialmente através

de pessoas, datas e monumentos. Um exemplo é a matéria ―Ruy Barbosa‖, a seguir.

É morto Ruy Barbosa! O expoente máximo da raça latina, o ―orgulho da espécie humana‖, o homem astro é morto. Nunca houve quem fosse tão aphoteseado em vida e tão glorificado na morte como a este ser humano que acaba de demandar as regiões eternas. Jurista incomparável, orador inimitável, patriota, sem igual, defensor dos fracos, sem competidor, inimigo de tyranias sem igual, apostolo de direito, gigante e águia, eram os títulos com quem os mimoseavam. Durante quase coenquenta anos a luz do seu saber envolveu não só a grande Patria Brasileira, como se projectou em mil recantos de regiões longincuas. Dos sábios conceitos que se jorraram de seu cérebro predestinado abeberou-se meia humanidade.[...] Quando a o nosso caro Brasil o nosso monstro Jesuistico extendeu as suas garras e a Egreja dos papas empolgou o nosso rei, invadiu todas as repartições, subjulgou todos os poderes, devassou todas as attribuições, e pouco a pouco, ia asphixiando todas as energias pátrias, como soe acontecer com a hydra tem a sua toca. Foi Ruy quem decepou-lhe os tentáculos, espefaçou-lhe as garras e esmigalhou-lhe os dentes escrevendo essa obra monumental ―O Papa e o Concilio‖, o maior libello jamais visto ou escripto contra a Egreja Romana. Nella, o grande mestre poe as claras os planos sinistros da Grande Apostata, e depois de chama-la de ―Religião Athea‖ denuncia-a como ―a mais nefanda e a mais funesta de todas as políticas‖ Foi Ruy Barbosa o batalhador incansável da lucta da separação entre Egreja e Estado, o carmatelo endrado da monarchia ultramontana, o paladino indômito do ideal republicano. Foi Ruy o autor da mais libérrima das constituições, onde para orgulho de um povo livre e grande, ressalta a liberdade de culto e de consciência.372

Dentre os diversos elogios a sua trajetória política e intelectual, há o foco

para os embates dele com o catolicismo vigente. Ruy Barbosa é apresentado como

um homem perseguido pela Igreja Católica, e também mostra seus ataques a ela,

onde, segundo a matéria, ele chegava até mesmo a usar termos como ―religião

ateia‖ para definir a Igreja. Pela matéria, notamos que há uma representação do Ruy

Barbosa como um intelectual perseguido pelo catolicismo e avesso a ele. Vale

lembrar que Ruy Barbosa era um intelectual católico, mesmo que no decorrer de

372

NORTE EVANGÉLICO. ―Ruy Barbosa‖. Garanhuns, 22/03/1923.

251

algumas de suas obras ele demonstrasse apreço ao protestantismo. Ele se manteve

católico até o fim de sua vida.373

Mas a matéria constrói uma narrativa em que Ruy Barbosa é mostrado com

antagonismos ao catolicismo vigente bem semelhantes àqueles dos protestantes,

como um Ruy Barbosa ―protestantizado‖. A matéria também ressalta suas pautas

políticas, expondo-o como um lutador pela separação da Igreja Católica e do Estado

e um defensor do regime republicano, sendo crítico à monarquia ―ultramontana‖, de

grande influência católica.

A biografia de Ruy Barbosa é utilizada como um elemento discursivo, por ser

ele um dos percursores da república brasileira, a ponto de ser aquele que, como

visto no capítulo anterior, foi um dos formadores da constituição republicana e o

autor de um dos projetos de lei que legitimava a separação oficial da Igreja Católica

do Estado Republicano brasileiro. De fato, essa valorização do jornal à figura desse

intelectual brasileiro tinha sua razão de ser. Revelava tanto um apoio ao regime

republicano, como uma tentativa de legitimar suas principais figuras como pessoas

bem vistas e até aliadas ao protestantismo, ainda que fossem de diferentes

religiosidades.

Na matéria ―Liberdade religiosa‖, o jornal Norte Evangélico afirma que:

[...] Este facto vem mais uma vez reafirmar eloquentemente o conceito já emitido por estadistas ilustres [...] homens da envergadura de Ruy Barbosa, Wilson, Herriot, Benjamin Constant, Saldanha, Marinho, entre outros que taes, de ser prejudicial tanto ao Estado quanto a religião seja ela qual for, em manter a relação oficial.374

Daí notamos que há, pelo jornal Norte Evangélico, não apenas um apoio à

República, mas também ao catolicismo, e há uma tentativa de associação de

elementos discursivos da República com o protestantismo, onde se procura associar

pessoas, datas e ideais republicanos à religiosidade protestante, construindo não

apenas uma defesa ao regime republicano, mas procurando atrelar o republicanismo

ao imaginário protestante e vice-versa, absorvendo seus símbolos e ideais, para

fazer a leitura da República a partir de uma cosmovisão protestante.

373

Há algumas citações de Ruy Barbosa elogiando o protestantismo em suas obras. Todas elas estão disponíveis em: FUNDAÇÃO CASA RUI BARBOSA. Disponível em: <http://www. casaruibarbosa.gov.br>. 374

NORTE EVANGÉLICO. ―Liberdade religiosa‖. Garanhuns, 1925.

252

Como outro exemplo, temos algumas das matérias que já analisamos

trechos em capítulos anteriores, como as matérias ―Da Amazônia‖ e a matéria ―De

Belém‖ publicada no mesmo ano.

[...] Quinze de agosto O anno passado, celebrando o centenário da Independência Nacional, realizaram as egrejas evangélicas desta capital um culto ao ar livre, ao pé da estatua da República, que foi um dos dias de glória da egreja do evangelho do Pará.(grifo nosso) Este anno, ao festejar todo o estado, a 15 de agosto, a adhesão do Pará a independência nacional, celebrou a egreja Presbyteriana um culto em sua séde, perante elevada assistência, que desdobrou para as galerias do edifício. Occupou a tribuna da pregação o illustre missionário da Chistian Aliance Missionary Society, revd Clark que, excellente doutrinador e theologo proficiente transmittiu a egreja e aos incrédulos, forte e poderosa mensagem do evangelho. [...] A sete de setembro, realizaremos um culto especial, levantando nova collecta, para os mesmos fins acima referidos. E, assim, nos grandes dias de festa nacional, fraternizaremos com a alegria cívica de todos os brasileiros, pregando-lhes a velha história do Christo crucificado.375 (grifo nosso)

―De Belém 1923‖ No dia 7 realizou se na sede da egreja o culto festivo com que a mesma solemnizou a passagem da data da independência. O culto desse dia foi animador, com uma assistência compacta e numerosíssima que fez transportar o nosso vasto salão da Avenida da Independência. A sessão as egreja deliberou solemnizar com cultos especiaes, doravante, todas as grandes datas nacionais (grifo nosso) no fim das quaes realizará collectas extraordinárias destinadas a aquizição do nosso futuro templo. A collecta do dia 7, comquanto que seja do dia 15 de agosto, rendeu 90.000.376

Na matéria ―Da Amazônia‖, como vimos no segundo capítulo, é apresentada

uma linguagem semelhante a uma ata, na qual os missionários descrevem o

cotidiano da Igreja do Norte, nos apresentando uma descrição da rotina da igreja

presbiteriana implantada em Belém do Pará. O que chama a atenção nesse trecho

destacado são os cultos feitos pelos presbiterianos na cidade. Em datas de ―festas

nacionais‖ havia cultos especiais, fosse dentro de templos ou mesmo ao ―ar livre‖.

No centenário da independência nacional, não apenas a igreja presbiteriana, mas

375

NORTE EVANGÉLICO. ―Da Amazônia‖. Garanhuns, 10/10/1923. 376

NORTE EVANGÉLICO. ―De Belém‖. Garanhuns, 1923.

253

outras ―igrejas evangélicas‖ realizaram um culto protestante a céu aberto, na Praça

da República. Fazer atividades específicas nessas datas eram entendidos como

momentos especiais, quando se mesclava a ―alegria cívica de todos os brasileiros‖

com a pregação do ―Cristo crucificado‖.

Uma outra constatação na análise da matéria mencionada era o local

escolhido para se fazer um culto ao ar livre, A ―estátua da República‖. Falamos do

Monumento à República, analisado do primeiro capítulo como uma forte simbologia

do regime republicano na cidade. Se para a Igreja Católica o Monumento à

República, nas primeiras décadas do século XX, pôde simbolizar uma possível

concorrência com a mentalidade católica, para os protestantes, o monumento, assim

como as datas cívicas, eram tratadas não apenas com aprovação, mas incluídos

como elemento de culto, como uma incorporação da religiosidade protestante, um

elemento discursivo da sua fé. A ―alegria cívica‖ é celebrada pelo protestantismo e

faz parte de sua ritualística cultural.

Vale ressaltar uma característica da igreja presbiteriana nesse período. Seus

líderes já eram uma geração de presbiterianos brasileiros que estavam vivendo em

uma pátria republicana. Embora muitos desses fossem frutos de uma geração

anterior de missionários norte-americanos, notamos que, desde o fim do Império, há

essa aprovação dos protestantes pela República, como uma incorporação da

república brasileira pelos protestantes que já estavam no Brasil. Encontramos entre

as lideranças protestantes locais da primeira república tanto a legitimação desta,

pela articulação política, como fazia Justus Nelson, como a incorporação de seus

elementos simbólicos, como os presbiterianos faziam a partir de seus cultos e de

suas representações sociais pelo jornal Norte Evangélico.

Por fim, a matéria ―Liberdade religiosa‖ anuncia a oficialidade da separação

entre a Igreja Católica do Estado em países como o Chile. Ao citar este país como

exemplo a matéria diz que

O Estado deve impor-se a si mesmo, sem precisar para o seu prestígio, de religião alguma, senão de uma lei justa e boa que olhe para todo o cidadão, sem distinção, sem parcialidade, como filho do mesmo torrão estremecido como um rebento da mesma pátria abençoada, esperando de cada um o cumprimento de seus deveres cívicos[...] De igual modo a igreja, seja ela católica romana ou evangélica, ou mesmo qualquer outro crédo, deverá impor-se pelo seu valor moral sem precisar do prestígio oficial, tendo deante de si um terreno

254

franco, em uma atmosfera livre, para manifestar ao povo os seus princípios e agir de acordo que não ofenda a moral pública e as leis do paiz. ―Dae a cezar o que é de cezar e a Deus o que é de Deus‖. [...] Que vemos nessa declaração imorredoura de Jesus Christo, o fundador do cristianismo? Não será por ventura que a Igreja e o Estado deverão ter os seus próprios lugares bem distintos? O Brazil, que possui uma constituição modelo, tem a primazia de ser um dos países mais liberaes da américa, e isto decorre certamente do fato de haver plena liberdade de consciência e o direito que todos gozam igualmente perante a lei. Seja protestante, católico, espírita, teosofista, ateu, positivista ou judeu. [...]377

Aqui notamos o que vimos percebendo nas matérias anteriores,

especialmente as do jornal ―Norte Evangélico‖: a constante defesa do jornal pela

separação entre a Igreja e Estado. Mas o interessante dessa matéria é entender

como a denominação presbiteriana retrata a forma com que a religiosidade deve se

destacar na nação. Primeiramente, de forma autônoma do Estado, defendendo

direitos igualitários a todas as religiosidades ou ideais, incluindo até mesmo ateus e

positivistas. Também notamos o respeito às diversas religiões e ideais, caminhando

distante do discurso protestante, que rezava que o protestantismo deveria se

destacar diante de outras religiões ou ideais, não por uma imposição do Estado, mas

por ―impor-se pelo seu valor moral sem precisar do prestígio oficial‖. O papel do

Estado, para o protestantismo, e em especial para os presbiterianos, era que o

Estado garantisse a sua liberdade religiosa ―em uma atmosfera livre, para manifestar

ao povo os seus princípios e agir de acordo que não ofenda a moral pública e as leis

do paiz‖.

A interesse pela separação de Igreja e Estado é praticamente unânime nos

discursos dos protestantes que circulavam em Belém do Pará, seja pelos jornais que

tinham circulação nacional, como o ―Jornal Batista‖, ou aqueles de circulação mais

localizada, como o jornal ―O Apologista Christão Brazileiro‖ e o ―Norte Evangélico‖.

Sobre este último, entendemos tratar-se de um jornal diferenciado com relação ao

de Justus Nelson, não necessariamente por serem de denominações diferentes

(embora a diferença entre metodistas e presbiterianos precise ser levada em conta),

mas sim porque havia no jornal Norte Evangélico uma maior participação de

brasileiros se comparado aos outros dois jornais citados e pelo fato de o Norte

Evangélico ter nascido em uma temporalidade em que a República já estava

377

NORTE EVANGÉLICO. ―Liberdade religiosa‖. Garanhuns, 1925.

255

consolidada. Assim, notamos maiores elogios ao Brasil e à sua valorização como

pátria, uma defesa maior da república brasileira já consolidada em comparação a

países latino-americanos no que tange os exemplos políticos e religiosos, além da

adição de pensadores brasileiros que defenderam a República, como os vários

teóricos citados nessa matéria, e na matéria sobre Ruy Barbosa, que analisamos

anteriormente.

Os jornais ―Norte Evangélico‖, o ―Jornal ―Batista‖ e ―O Apologista Christão

Brazileiro‖ procurava mostrar o catolicismo como o aposto do protestantismo, muitas

vezes respondendo às acusações dos católicos que os acusavam de ser uma

religião invasora norte-americana que objetivava dominar a nação brasileira. Vemos

que havia embates nacionais com relação a esses temas, e que veículos de

imprensa protestantes que circulavam no norte do país, como o jornal ―Norte

Evangélico‖, absolviam essas temáticas e procuravam expô-las ao seu público; no

caso, os protestantes das regiões do Norte e Nordeste.

Um exemplo é a matéria ―Falso nacionalismo‖, retirada do jornal ―D‘O

Combate‖, assinada pelo ―dr. Lauresto‖, o pseudônimo do médico missionário da

Igreja Presbiteriana Independente, Nícolas Soares do Couto.378

Esse nacionalismo que por ahi corre mundo contra as instituições de origem norte-americana- a Fundação Rockffeler, e Makenzie College e a Associação Chistã de moços e outras, não representa realmente o receio de um suposto imperialismo norte-americano: ele representa apenas um disfarce do clericalismo, que é um grande inimigo de tudo o que significa progresso, independente de caráter da liberdade de pensamento. Essa corrente de manifestações pseudo-nacionalistas, que são, no fundo, clericaes, [...] Ella vem de longe; Ella representa a luta do clericalismo contra o protestantismo, que ella considera a luta do clericalismo contra o protestantismo, que elle considera em seu grande e principal inimigo; e secundariamente, contra todas as doutrinas e crenças liberaes e acatholicas como a maçonaria, o

378

Não sabemos se essa matéria foi retirada do jornal Anarquista ―O combate‖ que circulava em São Paulo nas primeiras décadas do séc XX, ou se havia um outro jornal chamado ―D‘O combate‖, a respeito do qual não achamos documentação histórica ou material historiográfico que o analisasse. Independentemente disso, o próprio jornal ―Norte Evangélico‖ diz que a matéria foi retirada desse veículo e que, aparentemente, era um veículo de comunicação não confessional, não vinculado a nenhuma instituição religiosa. ―O dr. Lauresto‖ era o protestante Nicolas Soares do Couto, um médico missionário presbiteriano que teve um forte posicionamento contra a maçonaria e a favor da cisão da Igreja Presbiteriana, sendo, após o cisma, membro da Igreja Presbiteriana Independente que constantemente publicava matérias no jornal presbiteriano ―O Estandarte‖. NORTE EVANGÉLICO. ―Falso nacionalismo‖. Garanhuns, 20/01/1923.

256

positivismo, o espiritismo, e etc. Em assumptos scientíficos, sociaes ou políticos, que nada tem com a religião, em vez de se limitarem ao debate de ideias e factos, como seria natural, aproveitam a menor oportunidade- e até sem motivo- para revelarem as segundas intenções, e fim occulto da supposta campanha nacionalista- e ahi vem logo as taes ―infiltrações espirituais‖, ―infiltração religiosa‖, o ―terrível imperialismo‖, o ―poder do dollar americano sobre as consciências brasileiras‖, e outras queijandas tolices de fundo clerical. Que a imprensa clerical e os titulares papaes, de batina e sem batina, assim procedam se comprehende, estão no seu papel, pois a mentalidade catholica não compreehende um nacionalismo, que não seja nacionalismo catholico romano. Más, nós, que somos liberaes, que nos gabamos de ser acatholicos, que nos dizemos isentos de sectarismo odiento, que queremos ser justos e imparciaes, que, afinal, somos republicanos, de acção, e de palavra, enxergamos o nacionalismo por esse prisma estreito e odioso, é extranhavel, é odioso, é incrível! Nacionalismo, que em vez de procurar unir e irmanar todos os brasileiros no mesmo amor e devotamento a Pátria, sem distincção de crenças e de côres – procura desunir, procura separae irmãos, procura atirar uns contra os outros, por causa de religião ou de côr- é um falso nacionalismo e os seus pregoeiros devem ser condenados pela opinião publica. O nacionalismo verdadeiro não é privilégio de religião alguma, o patriotismo é de todas as religiões. [...] Não julgamos os outros que divergem de nossas opiniões religiosas por um prisma de um falso nacionalismo.379

Pela própria presença de um articulista da Igreja Presbiteriana

Independente, uma vertente que surgiu diante do ―racha‖ da Igreja Presbiteriana do

Brasil por esta não aceitar o vínculo entre presbiterianos e maçons, notamos que o

jornal desconsidera essas diferenças e constantemente abre espaço para as

matérias do ―dr. Lauresto‖, grande defensor do racha entre da Igreja Presbiteriana,

mas que, na imprensa ligada à Igreja Presbiteriana do Brasil, que circulava na região

norte do país, tinha espaço para propagar as suas matérias sobre política e religião,

especialmente as com a tônica de confronto com o catolicismo.

A mensagem que a matéria nos passa é que se o catolicismo promove um

falso nacionalismo, a sugestão que o jornal passa é que há um ―nacionalismo

verdadeiro‖ ao qual o protestantismo é favorável. Um nacionalismo que melhor

integra as pessoas, promove liberdade para que as diversas religiões e ideais

políticos possam propagar suas ideias no país. Um nacionalismo diferenciado, que

consegue integrar os diferentes pensamentos não católicos e consegue ser tolerante

379

NORTE EVANGÉLICO. ―Falso nacionalismo‖. Garanhuns, 20/01/1923.

257

com o próprio catolicismo. Um nacionalismo que ―não julga os outros pelas

diferenças religiosas‖.

O interessante na matéria é o fraco viés estritamente religioso protestante, e

o expressivo viés político do texto associado ao religioso. Há uma defesa da

liberdade religiosa ao mostrar que o verdadeiro nacionalismo se refere a uma ideia

que privilegia ―todas as religiões‖ e não apenas o catolicismo. Segundo a matéria, o

nacionalismo católico é separatista, e não une os vários brasileiros pertencentes à

pátria. Há aqui um discurso agregador, que defende um modelo nacionalista que

não exclua outras religiões e ideais como o ―liberalismo, o positivismo e o

espiritismo‖

Não há uma proposta de adesão religiosa na matéria, há aqui uma disputa

religiosa por um conceito de nação, e o jornal procura por intermédio desse texto

propor que o conceito protestante de nacionalismo é melhor que o do catolicismo.

Para criar pontes de linguagem com o seu interlocutor, o autor se coloca como um

brasileiro, que sente atingidos aqueles pertencentes à mesma pátria que ele, sejam

católicos, protestantes ou qualquer outra religiosidade ou ideal político. Há um

projeto de nação sendo proposto e um outro projeto nacional sendo criticado. E

notamos no jornal ―Norte Evangélico‖ a preocupação de selecionar matérias com

esse conteúdo, matérias que promovessem um sentimento nacionalista que atrairia

o protestantismo para se unir a ele.

Vemos isso em outra matéria do mesmo articulista, ―A infiltração americana‖.

Nela o jornal procura atentar seu público para uma ―campanha de

desnacionalização‖ que ocorria no país; segundo o autor, era feita por líderes

católicos para deslegitimar o protestantismo. Como argumento, a matéria chama a

atenção para mostrar que ―ninguem observou qualquer alarma ou qualquer

campanha contra a infiltração franceza que mais que qualquer, desnacionaliza a

nossa mocidade, dos collegios, dos quarteis‖380. Há, segundo o jornal, uma

indignação seletiva entre os jornais por influência católica, na qual países europeus

de maioria católica intervêm em instituições brasileiras e pouco é dito sobre essa

intervenção, mostrando a ―campanha de desnacionalização‖ como uma influêencia

católica que apontava apenas os países protestantes do exterior como sendo os

difusores da chamada ―desnacionalização‖, e ignorando os países católicos.

380

NORTE EVANGÉLICO. ―A infiltração americana‖. Garanhuns, 11/05/1923.

258

Diante dessa possível incoerência apontada na matéria, o jornal continua a

discorrer sobre o assunto:

Previnam-se os nossos compatriotas, aqui, e os nossos irmãos de além-mar. Contra essas ciladas a sua boa fé; não se deixem levar por essas accusações, injustas e mentirosas. Patriotas sinceros e verdadeiros nacionalistas são os protestantes: elles os são, por patriotismo innato e por obrigação de sua fé religiosa. Elles não tem chefe espiritual extrangeiro e residindo do extrangeiro ao qual devam submissão cega, obediência e adoração, elles sim, adoram a pátria, a família e a Deus. E só querem a salvação da pátria, acima de tudo, como poderiam ser desnacionalizadores?!... Aqui e no extrangeiro, no Brasil e em Portugal, são os cidadãos mais respeitadores as autoridades constituídas. Deixem, pois, os que não estão a par das circumstancias, de mal julgar os que são victimas apenas do zelo religioso clerical; e fiquem prevenidos de que, quando surgirem novamente accusações do mesmo calibre, o que está em jogo não é nada mais, nada menos, do que o clericalismo na guerra surda e constante que move contra o seu grande inimigo. É pois, uma questão religiosa, não é uma questão de nacionalismo. Dr. Lauresto381

Dizer que as acusações como injustas e mentirosas é uma tentativa do autor

de mostrar o nacionalismo como uma característica inata do protestantismo, como

se já estivesse incluído na própria religiosidade protestante as sustentações de um

ideal nacionalista brasileiro, além de pôr os protestantes como um grupo que almeja

verdadeiramente a salvação da pátria. O protestantismo se vende como um agente

messiânico não apenas da salvação do fiel, mas da pátria como um todo.

Construíndo o protestantismo como uma religião verdadeiramente patriótica, seja no

Brasil ou no estrangeiro. Patriotismo, segundo o jornal, é algo inato ao

protestantismo, caminha junto aos seus dogmas. Semelhantemente ao discurso

católico, há uma mescla entre a ideia de ―pátria‖, ―nação‖ e ―protestantismo‖. Um

patriotismo que estaria no DNA da religiosidade protestante.

Ainda assim, notamos que, diferentemente dos católicos, a ideia de pátria e

nação tinha um exemplo externo como um modelo ideal para os protestantes: países

como Estados Unidos e Inglaterra. Os protestantes não se configuravam como uma

religiosidade que traria a ―unidade nacional‖, como faziam os católicos. O seu

modelo salvacionista se construía na declaração de ser o protestantismo uma

381

NORTE EVANGÉLICO. ―A infiltração americana‖. Garanhuns, 11/05/1923..

259

religião do progresso, o Brasil era um país atrasado que precisava progredir, e

apenas o protestantismo alavancaria o país, trazendo a prosperidade necessária

para chegar ao nível de países de maioria protestante, como os Norte-americanos.

O próprio jornal ―Norte Evangélico‖ em seu editorial chamado ―nova época‖,

publicado em 1925, diz que a ―alta missão‖ do jornal seria ―disseminar a doutrina de

Cristo [...], a luz do conhecimento das sagradas escripturas, a educação da família e

do verdadeiro patriotismo‖. Alardear essa representação social do ―verdadeiro

patriotismo‖ era uma missão tão importante para o jornal quanto falar de Jesus

Cristo e das sagradas escrituras, uma missão que fazia parte da ―Nova época‖, uma

época na qual, para além do aspecto religioso, havia uma nova ideia de nação e que

o protestantismo procurava se mesclar a ela, mostrado constantemente como uma

religião para a nação, que, se incorporada, seria a redentora do país.

5.4 ―O CRISTO REDENTOR E O ENSINO LEIGO‖: CATOLICISMO,

PROTESTANTISMO E ESTADO REPUBLICANO

Dentre as representações de católicos e protestantes em sua disputa para

serem reconhecidas como religiões nacionais, é interessante notar como algumas

discussões mais pontuais de fatos ocorridos no país, como a construção da imagem

do Cristo Redentor ou as instituições de ensino no país, foram algumas temáticas

que surgiram no meio de tais discussões e que são interessantes de serem

retratadas para analisarmos como católicos e protestantes viam na prática seu

projeto de poder, entendendo as particularidades dessa discussão no Brasil e como

esses discursos circulavam em Belém do Pará.

Para o catolicismo a sua consolidação como religião nacional tinha como um

dos legitimadores o uso das imagens, já para o protestantismo as questões eram

mais abstratas; as áreas mais debatidas para eles eram a liberdade de consciência,

e, tangenciando esse tema, havia uma temática que constantemente ressurgia nas

matérias do jornal ―Norte Evangélico‖, uma forma de ensino defendida pelo

protestantismo, o chamado ―ensino leigo‖. Esse assunto nos jornais se encaixava a

partir do tema mais abrangente que seria a ideia da separação entre Igreja e Estado.

Esse será o primeiro jornal que se utilizará do termo ―laicidade‖ para se referir a essa

separação.

260

Essa é uma das questões que achamos interessante analisarmos e que se

ligam a toda essa conjuntura e defesa da liberdade religiosa, de consciência e da

separação entre a Igreja e o Estado, ou mesmo uma das formas de entender melhor

a dinâmica política e religiosa do protestantismo.

Com relação aos debates que o jornal ―Norte Evangélico‖ trazia, muito

importante era a questão do ensino. A matéria ―Collegios protestantes‖ começa

criticando um jornal ―clerical‖; o periódico intitulado ―A Tribuna‖ dizia que os colégios

protestantes eram ―um grande mal social‖, e, segundo a matéria, a denuncia teria

sido feita porque alguns colégios estavam ensinando as doutrinas de Lutero e

Calvino.

Nada menos justificado do que [...] mor contra estabelecimentos de instrucção no Brasil, país que ainda há uma porcentagem tão elevada de analfabetos que ainda causa vergonha ao brasileiro menos sensível, depois de quatro séculos sobre o domínio da instrucção catholico-romana. Opinar contra estabelecimentos de instrucção no nosso paiz é declarar-se adepto da ignorância, amigo das trevas e propugnador do analphabetismo seja qual for o pretexto pregado para manter tão odiosa [...] Quem ignora que são os países protestantes que primam pelo amadurecimento de todos os ramos do amadurecimento humano, e que [...] é a instrução se acha adiantada oferecendo a menor contagem de analphabetos. Na Suíça, na Allemanha, nos [...] e nos Estados Unidos que aprendem os melhores métodos de ensino e é por isso que a pedagogia tem feito admiráveis avanços. Entretanto, é nesses países que a chamada doutrina de Luthero prevalecem. Ainda há quem quer ter seu filho bem instruído envia-o a Allemanha, Estados Unidos, etc, mas os escrevedores (sic) do ―A tribuna‖ descobriram que não se deve deixar que alguém se matricule em um collegio protestante‖ [...] pode a inveja e a hipocrysia [...] A inveja porque tem os methodos de ensino protestante [...] grande vantagem aos dos collegios dirigidos por padres e freiras. Nos primeiros, os alumnos aprendem as matérias ensinadas com o mais admirável proveito; nos últimos porém a inferioridade é tão patente que os paes de alunos preferem os primeiros.382

Os críticos ao sistema de ensino protestante, que a matéria define como

sendo os católicos, são descritos como ―adepto da ignorância, amigo das trevas e

propugnador do analfabetismo‖. O antagonismo promovido pelo jornal se dá quando

os críticos do ensino protestante são vistos como os ignorantes e que jogam o Brasil

em um ―período de trevas‖, e o ensino protestante seria o método pedagógico que

382

NORTE EVANGÉLICO. ―Collegios protestantes‖. Garanhuns, 29/04/1925.

261

faria seus alunos a se instruírem, e, caso seu método de ensino fosse incorporado

no país, seria a alavanca para o próprio país se desenvolver como os países de

elevado nível econômico e de maioria protestante, como os citados pela matéria. O

catolicismo é descrito como a religião que traz um ensino atrasado e ineficaz,

enquanto o protestantismo tem a melhor metodologia de ensino, e que traz a

prosperidade.

No segundo capítulo, discutimos um pouco sobre a cosmovisão protestante

no país, sobre o Destino Manifesto e como missionários protestantes do final do

século XIX vinham ao Brasil com a mentalidade de redenção, não apenas no âmbito

religioso, mas também econômico e social, possuindo os Estados Unidos como

modelo ideal de nação. Matérias como essas nos fazem entender como essa visão

foi se estruturando no período republicano, como se discutia isso no dia a dia em um

modelo republicano já instaurado e como os protestantes articulavam seus discursos

para construir um projeto de nação na república brasileira já consolidada,

especialmente em um ramo tão caro para eles como a educação.

Na matéria ―O estado leigo e o ensino religioso‖, havia uma resposta à

queixa de parte da Igreja Católica com relação ao ensino laico nas escolas públicas,

onde elas não poderiam mais ter uma forma de ensino com uma cosmovisão

católica, mas sim ―neutra‖. A Igreja Católica supostamente estava se queixando de

que o Estado estava cedendo à pressão de uma minoria de pessoas pertencentes a

diversos grupos minoritários, entre os quais os protestantes. A argumentação

católica se utilizava de ideais republicanos para validar a ocupação de seus

espaços, trazendo para si a ideia de ―liberdade de consciência‖, argumentando que

os católicos estavam perdendo terreno para a manifestação da sua fé nos espaços

públicos, e que isso era contrário aos princípios da própria laicidade do Estado, além

de atingir a fé da maioria da população, que era católica. Com isso, no Paraná, se

discutiu uma emenda constitucional para declarar nas escolas que, ainda que

houvesse liberdade para outras religiões, que fosse lembrado nas aulas que a

principal religião era a católica. Um dos trechos da emenda reza que há no ensino

laico ―um sectarismo violento‖ e que ―constituem programma mínimo reivindicações

consciência catholica. Nação está a exigir como justa reparação todo o passado

histórico‖. Essas discussões no Paraná provocaram uma reação do jornal ―Norte

Evangélico‖, e a matéria ―O estado leigo e o ensino religioso‖ foi feita como uma

262

pequena coluna do jornal, produzindo alguns artigos para discutir essas questões e

responder esses questionamentos da Igreja.

[...] Evidentes os intuitos ultramontanos da emenda oriunda do Estado onde os brasileiros ilustres foram condenados a prisão e multa, por haverem protestado contra o que lhe afigurou como o artigo 12 da constituição, não podiam os evangélicos deixar de unir suas voses aos brados dos que pedem a igualdade de culto perante a lei, a laicidade do ensino das escolas públicas e rebatem, como ameaça sorrateira á neutralidade religiosa da república, a impertinente declaração constitucional de que a religião catholica é da quase totalidade dos brasileiros [...] Num regimen democrata de liberdade, igualdade e fraternidade; numa comunhão fraternal de todos por um e um por todos; num governo do povo pelo e para o povo, onde todos os homens são irmãos e todos os cultos são eguaes perante a lei, não se admittem privilégios sob o rude pretexto da grandeza numérica dos indivíduos. [...] As religiões tem suas casas de ensino a quem devem sustentar com seus próprios recursos, e nellas que seus respectivos adeptos devem receber o seu pão espiritual de que tenham fome. Invadir a casa neutra do Estado leigo para ahi instalar recursos sectários, é que se não compadecem com a verdadeira liberdade assegurada por um pacto legal fomentador da ordem social que, por certo, será alterada no dia em que vigorarem as emendas do porta voz do Paraná. [...] De facto, venha a declaração pedida, e a permissão tão declaradamente pleiteada e iremos assistir as scenas mais degradantes de intolerância as escolas públicas. A minoria acatholica será impiedosamente desbancada pela maioria intolerante que dirá: ―Sou a religião dos brasileiros, reconhecida como tal pela constituição; para fora daqui quem não se submeter ao meu ensino‖.383

A polêmica envolvendo o ensino religioso facultativo nas escolas públicas

parece ter envolvido diversos setores da sociedade no período, muitos grupos

sociais eram contrários a essa medida, e, segundo o jornal, os protestantes estavam

se juntando a eles. Não havia uma definição de quais os grupos que estavam sendo

contrários ao ensino religioso, mas a matéria nos dá indicativos como sendo grupos

que ―bradam‖ a favor da ―igualdade de culto‖, da ―laicidade do ensino das escolas

públicas‖ e contra a uma declaração constitucional em que afirma que ―a religião

católica é a religião da quase totalidade dos brasileiros‖. Ou seja, eram pessoas que

defendiam um modelo de laicidade de estado mostrando que a luta pela laicidade

era abrangente, indo além do protestantismo.

383

NORTE EVANGÉLICO. ―O estado leigo e o ensino religioso‖. Garanhuns, 16/09/1925.

263

Mas é interessante a queixa retratada na matéria. Há uma acusação em que

se afirma que os católicos se aproveitavam da sua maior posição numérica para ter

privilégios do Estado. Há a tentativa dos católicos de terem o ensino religioso

facultativo nos colégios públicos, que, pelo que podemos entender na matéria,

seriam conteúdos com uma cosmovisão católica de ensino. Uma das alegações era

justamente pelo fato dos católicos serem uma religião maioritária na nação, e, assim,

de acordo com a própria dinâmica democrática que privilegia a maioria da

população, teriam o direito de obter espaço nas instituições públicas de ensino, pois

isso seria de interesse da maioria da população que partilhava da mesma fé.

A briga dos protestantes era pela autonomia religiosa, em que cada religião

pudesse construir suas próprias instituições de ensino, com seus próprios recursos.

As instituições estatais deveriam permanecer laicas, sem nenhuma vinculação a

nenhuma religiosidade. Abrir esse espaço para a religião católica, segundo a

matéria, faria com que se assistisse ―as scenas mais degradantes de intolerância as

escolas públicas‖, nas quais uma ―minoria acatholica será impiedosamente

desbancada pela maioria intolerante‖. Para os protestantes, a República deve ser

um estado onde ―todos os homens são irmãos e todos os cultos são iguais perante a

lei, não se admitem privilégios sob o rude pretexto da grandeza numérica dos

indivíduos‖.384

Para desconstruir o discurso do direito do catolicismo ter seus privilégios

assegurados pelo estado por ser maioria, o protestantismo evoca o discurso da

igualdade que o regime republicano traz por assegurar igualdade religiosa na própria

constituição republicana.

Se a República assegura a vontade do povo como soberana, o catolicismo

usaria tal brecha jurídica para manter seus privilégios como religião oficial da nação

e usar de sua hegemonia para continuar tendo privilégios do Estado. Assim como os

protestantes, se utilizando da jurisdição republicana que assegura igualdade

religiosa entre todas as religiões, os católicos se utilizariam dessa nova jurisdição

para recorrer quando o catolicismo procurasse manter seus privilégios de estado.

Notamos que os discursos polarizadores nesses casos se modificam. Enquanto o

catolicismo evocava para si privilégios de estado através da ideia de ter a maioria da

384

NORTE EVANGÉLICO. ―O estado leigo e o ensino religioso‖. Garanhuns, 16/09/1925.

264

população como católica, o protestantismo trazia para o debate para a igualdade de

direitos religiosos garantida pela constituição republicana.

Posteriormente, a matéria faz a comparação entre a situação que acontece

aqui, com o que ocorre nos Estados Unidos:

[...] Nos Estados Unidos, onde, como se sabe, o povo é libérrimo, os catholicos deixam em alguns logares de mandar seus filhos ás escolas públicas, alegando que os pastores protestantes vão a essas escolas e ah (sic) leem e commentam perante os alumnos trechos da bíblia. Não convindo aos catholicos receber o ensino protestante, nem a seus paes, em sensível minoria, manda para seus filhos um professor de seu credo, desertam os catholicos das escolas públicas. Deante disso, os catholicos estão pedindo a rigorosa observância da laicidade do ensino, o que importa na retirada dos pastores protestantes nas escolas officiaes: E a maioria protestante tem acolhido com sympathia o pedido da minoria catholica e já nalgumas escolas publicas não é mais facultativo o ensino religioso. Lá na livre américa protestante, pedem os catholicos a proibição do ensino religioso facultativo nas escolas leigas – em nome da liberdade de consciência e da igualdade de cultos perante a lei, porque já são minoria. Cá no Brasil catholico, onde se derribam templos e se matam pastores protestantes, em nome da mesma liberdade, da mesma egualdade, pedem o ensino religioso facultativo das escolas públicas, porque são a quase totalitade dos brasileiros... [...]385

Mais uma vez há a prática de mostrar os Estados Unidos como um modelo

ideal de nação. Nessa matéria, ela é descrita como uma nação que respeita os

grupos religiosos minoritários, representados pelo próprio catolicismo norte-

americano, que traz respeito com relação à ―liberdade de consciência e a igualdade

de cultos perante a lei‖ mesmo diante do público católico minoritário. O termo

utilizado para descrever a nação como ―Lá na livre América protestante‖, já procura

mostrar o diferencial de uma nação majoritariamente protestante, com relação a

outra de maioria católica. ―No Brasil catholico, se dirribam templos e matam pastores

protestantes‖ e é essa mesma religiosidade que está pedindo o ensino religioso

facultativo nas escolas públicas em nome da ―maioria‖. Os Estados Unidos se diziam

a ―América protestante‖, uma nação de verdadeira liberdade e tolerância, por outro

lado o ―Brasil católico‖ é descrito como uma nação de intolerância, perseguição e

caos.

385

NORTE EVANGÉLICO. ―O estado leigo e o ensino religioso‖. Garanhuns, 16/09/1925.

265

Na segunda matéria, ―O estado leigo e o ensino religioso II‖, publicada na

edição posterior do jornal, temos:

E‘ a constituição órgão sectário das proclamações religiosas? Não por certo! Em seu caracter neutro, perante as livres manifestações da fé religiosa, a constituição, como pacto legal da communhão brasileira, na imparcialidade de seus dictames, assegura a todos os brasileiros o direito de livremente proclamar, dentro da própria ordem, a sua fé religiosa. Mas a própria constituição- que não é propriedade ou porta voz de um credo particular de maioria ou minoria – Não faz, não deve fazer nenhuma proclamação de fé parcial, mas acatar e garantir o direito de quem quiser proclamar tão alto quanto lhe aprouver a sua fé religiosa. E‘ assim na Inglaterra, onde a Egreja Anglicana, elevada nas pompas reaes do culto officializado e meio romanizado, não tem a vida expansiva e espiritual das egrejas evangélicas que repelem os valores do legalismo secular. Foi assim na egreja dos primeiros séculos, quando ella apertou na mão sanguentada do imperador Constantino. Cresceu no século, mas definhou na fé. A torrente caudalosa e turva do mundo paganizado começou a toldar a limpidez da verdade apostólica, até que, no século XVI rompeu, dentro dela, o movimento restaurador que foi a reforma. [...] O papismo, entretanto, como encarnação viva dessa evolução multi-secular para a dominação política não compreende o Estado senão subordinado da Egreja. Examinemos a questão. Quaes as relações naturaes e licitas que devem existir entre egreja e estado, antes da prometida volta de Christo ao mundo? Que e Estado? Que é Egreja? O estado, no conceito de luminares no saber jurídico ―é a organização do poder público constituído ou a colectividade abstracta de uma nação politicamente organizada. Na escructura a comunidade ela é o principio de unidade e de ordem.‖ [...] No conceito ultramontano, esse princípio de ordem e unidade, essa colectividade ab-tracta deve subordinar-se a orientação da egreja romana e, mesmo sem alma imortal, deve prestar culto a divindade como o entende o poder espiritual superior que o papado diz perpetuar. Dahi a tentativa ultramontana de proclamar constitucionalmente, como religião, da quase totalidade dos brasileiros a catholica romana, e a permissão do ensino religioso nas escolas do Estado.386

Nessa matéria o autor já trabalha questões um pouco mais amplas, nela ele

vai discutir sobre o conceito de Igreja, de Estado, conta um pouco da história da

Igreja e discute a sua relação com o Estado em alguns momentos específicos.

Ao longo do argumentos, constrói um eixo argumentativo para demonstrar

que o ideal é a Igreja separada do Estado, mostra que a igreja oficial da Inglaterra, A

386

NORTE EVANGÉLICO. ―O estado leigo e o ensino religioso II‖. Garanhuns, 23/09/1925.

266

anglicana, definida pelo autor como ―meio romanizada‖, por ser oficializada como a

principal religião inglesa perdeu sua ―vida expansiva e espiritual‖ e se secularizou,

despertando apenas no século XVI com a Reforma Protestante que libertou a Igreja

do paganismo. Assim como no período da igreja primitiva, onde a Igreja ao se aliar

ao Estado Romano no período de Constantino ―definhou na fé‖.

A relação entre Igreja e Estado é uma das preocupações da matéria, o autor

mostra as relações lícitas e ilícitas entre Igreja e Estado, situação na qual o Estado

―é a organização do poder público constituído ou a colectividade abstracta de uma

nação politicamente organizada‖. A Igreja Católica procura adquirir uma função

social de uma instituição que deve estar acima desse estado, e que essa

―coletividade abstracta‖ deve obedecer às orientações da Igreja por esta ser

espiritualmente superior àquela, e toda a sua defesa ao ensino religioso no Estado e

o reconhecimento constitucional do catolicismo como religião majoritária era devido

a essa mentalidade católica.

O protestantismo defende o Estado como uma instituição que representa

essa ―colectividade abstracta‖, mas como uma coletividade mortal, e que, por isso,

não deve necessariamente obedecer à Igreja, que deveria ser representante de

almas imortais. Para a matéria, o Estado deve apenas garantir a ordem social e a

Igreja deve, com autonomia, ser a propagadora da parte espiritual sem que o Estado

se submeta a ela. No discurso protestante, o Estado ganha uma autonomia maior do

que teria na perspectiva católica.

Na última matéria sobre esse tema, para além dos assuntos já recorrentes,

há, novamente, o retrato do catolicismo como um agente de caos social.

Essa discussão continua na matéria ―O Estado Leigo e o ensino religioso III‖:

Advogasse a intromissão do ensino catholico nas escolas leigas, alegando-se a necessidade de sancar pela educação moral o ambiente da pátria, onde além do jogo, a impureza, o alcoolismo, putrefazem o ambiente nacional- a hypocrisia, a deslealdade, a subserviência, a mentira pública e particular, o cangaceirismo e mil crimes e vícios que estão matando em suas fontes, as energias moças da Pátria ―fadadas para as grandezas‖. [...] Por outro lado, esquecem os que pretendem salvar o caracter nacional como catecismo das escolas públicas o facto histórico e irrefutável da decadência moral a que chegou a sociedade brasileira sob o regimem do ensino catholico nas escolas públicas no tempo do império.387

387

NORTE EVANGÉLICO. ―O estado leigo e o ensino religioso II‖. Garanhuns, 30/09/1925.

267

Para além da alegação do catolicismo ser a religião maioritária do país, uma

outra questão que os católicos trazem, segundo a matéria, é que os valores

propagados pelo ensino religioso nas escolas públicas seriam importantes para

sanar os vícios existentes no Brasil. A moralidade católica precisaria ser passada

através da educação para moralizar o país, e sem ela a sociedade brasileira se

entregaria aos vícios ilícitos.

Como questionamento desses argumentos, os protestantes atestam que

historicamente a sociedade brasileira vivia uma decadência moral no período do

Império, época em que o catolicismo era o responsável pela educação nas escolas

públicas. Mais uma vez, a relação do catolicismo, por ser uma religião ―apóstata‖,

era responsável pela decadência da nação. As causas defendidas pelo

protestantismo, como escolas públicas sem a intervenção do Estado, o regime

republicano, já eram melhores políticas públicas para o desenvolvimento da nação.

Deixar a educação nas mãos do catolicismo novamente representava um atraso que

traria novamente uma decadência moral para a nação, como supostamente era no

período imperial.

A educação e as instituições educacionais se mostram como um espaço de

disputa nesse período republicano, área na qual o protestantismo procura ser

exemplo por meio de suas instituições de ensino próprias. Havia uma visão de

redenção aí; se o Brasil adotasse o modelo educacional protestante seria uma

nação próspera como a norte-americana, a partir da representação social de suas

instituições como as que tinham os melhores métodos de ensino. E na defesa de um

ensino público laico, no qual não deveria ser permitido uma intervenção católica no

saber, havia uma tentativa de se diminuir os espaços do catolicismo e procurar

alargar os espaços da minoria protestante que procurava trabalhar não apenas em

seu proselitismo religioso, mas em um projeto de nação em que a educação

pudesse ser um instrumento para uma mudança na mentalidade econômica e social

do Brasil.

Já citamos o termo ―laico‖ em outros momentos da pesquisa, geralmente

vinculamos esse termo ao tema da separação entre Igreja e Estado. Entretanto,

como notamos na matéria, esse termo passou a surgir nas matérias com maior

frequência algumas décadas após a consolidação do período republicano e no

momento em que se falava sobre educação, então nos parece importante

268

entendermos melhor a historicidade do termo e a etimologia da palavra, para

aplicarmos à conjuntura que estamos analisando.

O termo laico começa a ser utilizado em países como França e Inglaterra no

final do século XVIII e se populariza apenas posteriormente em outras regiões da

Europa. Apesar disso, a etimologia da palavra é antiga, remonta à ideia de ―laos‖

dos gregos, simbolizando um outro significado de ―povo‖ (diferente do ―pólis‖) e que

na Idade Média se tornou o termo usado pelos leigos para diferenciar as pessoas

que não estavam ligadas à Igreja como liderança, o ―clero‖.388

Após o século XVIII, o uso da palavra ―laico‖ e suas derivações foram

apropriadas como alusão às ideias de democracia e progresso presentes na época,

e variavam à medida que esses processos políticos se perpetuavam em cada nação,

especialmente no início do século XX. O conceito de laicidade variava de nação para

nação, sendo utilizado como a tentativa de promover um estado neutro com relação

às crenças religiosas vigentes na nação (como ocorre em alguns países europeus e

nos Estados Unidos), assim como também era um termo utilizado para propor um

modelo anticlerical católico, como o ocorrido na França.389

Como já vimos, desde a Revolução Francesa muitos regimes republicanos

ocidentais procuraram substituir a religião católica por outros simbolismos, como as

festas cívicas para substituir os festejos católicos e os ícones dos santos por

monumentos de revolucionários. Nessa tentativa de substituição, vemos na

Revolução Francesa, por exemplo, a própria educação, antes controlada pelo

catolicismo, se tornando inteiramente estatal. E foi a partir dessas tentativas de

substituição de símbolos católicos por ideais secularizados, especialmente no ramo

da educação, que o termo ―laico‖ começou a ser utilizado, principalmente nos

assuntos que tratavam da substituição dos estudos confessionais católicos pela

educação estatal.

No Brasil, as discussões sobre a educação laica permearam a primeira

república, como as próprias fontes nos mostram e a historiografia corrobora. A

educação laica é discutida desde a fundação da República com a separação entre

Igreja e Estado, mas especialmente em 1920 vemos um debate em que há uma

polarização entre educadores. Surgiram como atores privilegiados os educadores

388

CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: secularização, laicidade e religião civil. Coimbra, Portugal: Almedina, 2010, p.285. 389

Ibidem, p.297.

269

comumente identificados pela historiografia como ―escolanovistas‖ – ou ainda como

―renovadores‖ ou ―liberais‖ que defendiam uma educação laica, religiosamente

neutra, conflitando com os interesses dos chamados ―educadores católicos‖.

O artigo ―Educação escolar na Primeira República: memória, história e

perspectivas de pesquisa‖ mostra que o ensino religioso foi defendido como um

elemento central a ser restabelecido na escola pública projetada pelos educadores

católicos, e o ensino religioso era, por outro lado, combatido pela maioria dos

educadores identificados como escolanovistas, propositores, ao contrário, de uma

escola pública laica, ―religiosamente neutra‖.390

O trabalho de César Romero Amaral Vieira fala das exaltações da elite

republicana ao ensino protestante norte-americano. O autor utiliza-se de falas

icônicas como as de Tavares Bastos dizendo para ―imitarmos a América‖, pois é

uma ―escola moderna, a escola sem espírito de seita, a escola comum, a escola

mista, a escola livre, é a obra original da democracia do novo mundo‖.391 Embora o

autor parafraseie Mendonça, lembrando que essa elite republicana ―em grande parte

liberal, não estavam interessadas na ―religião‖ protestante, mas na educação que os

missionários ofereciam‖, era uma elite republicana que admirava e defendia a fé

protestante, mas não seguia seus dogmas e preceitos.

Há uma convergência de ideias entre parte da elite republicana com os

protestantes sobre a questão da educação, visto que os protestantes também eram

contrários a diversos métodos de ensinos feitos pela tradição católica, como o

princípio da ―liberdade de religião nas escolas e contra a obrigatoriedade do ensino

religioso nas escolas públicas‖392.

A educação era o local onde católicos, protestantes, republicanos,

positivistas, liberais e outros grupos religiosos e políticos acreditavam ser o principal

campo para a formação da mentalidade de uma sociedade. A disputa para conseguir

espaços na área educacional no período republicano visava procurar o melhor

método de ―formar as almas‖ dos cidadãos de determinada sociedade. Pelo o que se

pôde extrair do discurso protestante (muito semelhante ao discurso republicano da

390

SCHUELER, Alessandra Frota Martinez; MAGALDI, Maria Bandeira de Mello. Educação escolar na Primeira República: memória, história e perspectivas. Tempo. Rio de Janeiro, v. 13, n. 26, 2009, p.48. 391

VIEIRA, César Romeiro Amaral. Contribuição protestante à reforma da educação pública paulista. Comunicações. Piracicaba - SP, v. 9, n. 1, 2002, p.08. 392

Ibidem, p.11.

270

laicidade), ele procura tirar dos católicos mais essa esfera de poder, além do

objetivo missionário evidente de promover uma educação protestante no país.

Para além da pauta educacional, nos diversos assuntos onde o

protestantismo evoca a laicidade do Estado, há aqui a tentativa de promover dois

valores que servem para a sua própria proteção enquanto movimento religioso:

―liberdade‖ e ―igualdade‖. A relação dos protestantes com o Estado se dá na medida

em que eles cobram sua liberdade de culto, e a questão da igualdade era uma luta

dos protestantes por disporem de mesmos privilégios e proteções estatais que o

catolicismo – ainda que os protestantes nesse período representassem entre 1 a 2%

da população nacional, diante da esmagadora maioria católica.

É interessante analisar as pautas que católicos e protestantes trazem para o

debate no período republicano. O protestantismo entendia que embora houvesse a

constituição que igualava os direitos das religiosidades, existiam privilégios que o

estado fornecia apenas aos católicos. Privilégios esses que os próprios católicos

consideravam como legítimos, por serem membros da religião majoritária,

escondendo-se, assim, atrás do valor republicano da soberania popular. Há uma

disputa de poder, onde os protestantes constantemente perdem, mesmo estando em

um regime que, juridicamente, os privilegia comparado ao regime anterior. Ainda

assim, são esmagados pela maioria católica, embora após o período republicano

tenham entrado numa reta de crescimento constante que avançou no decorrer do

século XX.

A ideia da laicidade do Estado era um tema discutido no ocidente dos

séculos XIX e XX. Cada país interpretou a laicidade a partir de sua conjuntura social

e assim tivemos diferentes modelos de estado laico pelo mundo. No Brasil, notamos

que a Igreja Católica, mesmo separada do Estado, manteve muitos de seus

privilégios como religião majoritária, e buscava constantemente angariar outros, se

encaixando na nova política apresentada pelo regime republicano. Ainda que a

constituição garantisse a liberdade religiosa e a separação da Igreja Católica do

Estado, na prática, a mentalidade social ainda era católica e isso se refletia nas

atuações do Estado, além de ser aceita pela grande maioria dos indivíduos na

nação, devido à continuidade da hegemonia católica presente nas sociedades. Eis

os motivos de constantemente a Igreja Católica associar, através dos discursos da

imprensa, a ideia do catolicismo vinculada à unidade nacional, por ser ela a única

religiosidade que consegue estar presente no Norte e no Sul do país, sendo

271

inclusive mais incorporada pelos brasileiros que os próprios ideais republicanos. Daí

o discurso católico constantemente reiterado: a República, por mais que fosse laica,

deveria continuar a tratar os católicos como principal religião. Caso não fizesse,

poderia ser o fim da nação.

Entre os protestantes, havia a contínua tentativa de desqualificação do

catolicismo, a educação católica do Brasil era mais uma temática para legitimar o

discurso protestante do catolicismo majoritário brasileiro ser o responsável por todos

os males e atrasos da nação no aspecto econômico e social. O catolicismo seria o

responsável pelo atraso enquanto o protestantismo seria o progresso certo,

conforme o modelo norte-americano, o exemplo máximo do sucesso dessa

religiosidade. Se o Brasil fosse majoritariamente protestante, não haveria não

apenas uma salvação ―espiritual‖ diante de uma religião apóstata, mas uma

redenção nos campos econômico, social, educacional e político. O Brasil seria, ao

fim e ao cabo, uma nação próspera em todos esses aspectos, partícipes da

salvação terrena, chegando ao patamar nacional estadounidense.

Não notamos necessariamente que as tensões entre católicos e protestantes

se davam por um total reconhecimento jurídico, pela aparente ambição de ambas

em se tornar a religião oficial da nação. Porém, fica claro que havia uma disputa

para a conquista desse posto. Essas principais vertentes religiosas amoldaram seus

discursos e suas dinâmicas religiosas para se vincularem ao novo regime. Nota-se

que no Brasil, mesmo em um estado juridicamente laico, havia uma nação que

continuava profundamente religiosa e majoritariamente cristã. Suas principais

vertentes do cristianismo procuravam permanecer na estrutura estatal e adquirir o

reconhecimento do Estado para assim obter privilégios diante das demais. A adesão

da sociedade a elas causaria não apenas uma redenção espiritual, mas também

terrena, conferindo a nação prosperidade e progresso. Tais discussões chegavam

na sociedade e no Estado e tinham efeito na estrutura jurídica, mostrando que um

estado de fato religiosamente neutro, como se prometia como ideal ocidental de

estado laico, nunca ocorreu. Por detrás da ideia de laicidade havia uma sociedade

predominantemente religiosa e que influenciava nas decisões do Estado, nem que

fosse para brigar pela sua própria laicidade em vista de promover maior liberdade

religiosa.

O cristianismo, em especial, nas suas mais variadas vertentes, possui seu

diferencial quando se relaciona com a política, pois traz em sua base um caráter

272

salvacionista e missionário. Quando incorporada por uma sociedade, o cristianismo,

seja qual for, sempre procura promover esse salvacionismo que ultrapassa a

barreira da espiritualidade e emerge na materialidade do cotidiano, procurando, a

partir de seus projetos de hegemonia, ser salvífico também nos aspectos

econômicos, sociais e educacionais – todos bastante terrenos. Assim, uma república

vinculada ao cristianismo tem prosperidades terrenas, por isso essa deve ser a

religião majoritária em todos os país em que está

Bertrand Clercq corrobora com a ideia de que no cristianismo a salvação

não é oferecida pela política, há a diferenciação retratada por outros autores já

citados, sobre a ―Cidade de Deus‖ e a ―Cidade dos Homens‖, mas apesar desse

fenômeno próprio do cristianismo ele não é uma religião apolítica, e a salvação não

está desvinculada do aspecto político:

Noutras palavras, o crente não pode descuidar a política por saber que ―a figura deste mundo passa‖, visto que a felicidade definitiva que ele espera é a salvação desse mundo, pelo qual também é responsável. A promessa de salvação reveste-se assim duma importância fundamental. É um imperativo de alcance crítico e libertador em relação à situação política existente; é um convite traduzir esta salvação as condições históricas atuais. Se os cristãos vivem realmente das promessas de Cristo, vivem permanentemente em discórdia com tudo aquilo que contradiz essas promessas. Neste sentido, eles são ―estrangeiros‖ e estão sempre ―noutro lado‖. Nunca se identificam com nenhuma situação. Não que eles fujam do mundo ou dele se desinteressem, mas a sua tarefa é transformá-lo [...] no sentido das promessas de Cristo que devem conservar vivo na consciência do mundo.393

Católicos e protestantes são grupos religiosos politicamente ativos em seus

discursos. Promovem uma política salvacionista onde é necessária uma mudança

primária na mentalidade social, que pede que o mundo tenha a consciência de que o

cristianismo é a principal religião a ser reconhecida pela sociedade. Assim, o

discurso dessas vertentes é que o modelo político republicano tenha a religião cristã

como base e que os novos modelos políticos as favoreçam. Católicos e protestantes

vendem suas crenças como agentes transformadores de nações, e a disputa

religiosa entre católicos e protestantes a nível político segue sempre essa lógica em

ambas as vertentes, que sempre se apresentam como as soluções salvíficas para a

393

CLERQ, Bertrand J. de. Religion, ideologia y politica. Salamanca: Sigueme, 1971.

273

prosperidade do país, e assim devem ser reconhecidas como as verdadeiras

religiões nacionais. Em A cidade dos homens, católicos e protestantes mostram-se

como partícipes das religiões transformadoras da nação brasileira, nos mostrando

uma disputa religiosa que põe em jogo qual realmente deve ser reconhecida como a

salvadora da pátria.

O artigo ―A modernidade do Cristo Redentor‖, escrito por Emerson Giumbelli,

conta que o monumento ao Cristo Redentor foi proposto exatamente para expressar

que o Brasil era essencialmente um país católico. Ainda que o regime republicano,

como já ressaltamos, não proclamasse uma religião em específica como oficial, as

lideranças católicas argumentavam a seu favor como religião majoritária, e que isso

legitimaria o reconhecimento social do Brasil como país católico. Um exemplo é a

Pastoral de 1890, que já reclamava direitos para o catolicismo em virtude do

―princípio, tão proclamado pelo liberalismo moderno, da soberania do número‖. A

construção do Cristo Redentor já era um debate que ocorria desde o fim do Império

nos tempos da princesa Isabel, e que se alongou durante a primeira república até

chegar a data de sua inauguração, em 1931.394

O anúncio do Cristo Redentor e as opiniões a seu respeito ganhavam

espaço na grande imprensa paraense. Algumas matérias sobre o assunto circularam

no jornal ―Folha do Norte‖, informando as etapas do planejamento para a construção

da estátua do Cristo, escritas por articulistas que em geral possuíam uma visão

positiva sobre o tema, normalmente em sintonia com a opinião dos intelectuais

católicos. Como exemplo, temos a matéria ―Ad lucem‖ publicada pelo jornal em

1931, escrita por Jeremias Paraense.

Evoca-se esse assumpto de tamanha magnitude á vista da imperceptível quão grandiosa recordação do Redemtor, erigida no cume do Corcovado, tendo aos seus pés a alma christã do Brasil. Acontecimento social de tão excelente importância, traduz que a nossa pátria querida afronta a Egreja Catholica, e tanto assim, que a vossa santidade Pio XI nomeara, pela primeira vez na américa, um legado <a latere>, personificado no eminente cardeal D. Leme para representar a sua majestade de Summo Pontíficie Romano, nas imponentes homenagens prestadas pelo povo brasileiro a Christo-rei. E hoje, o dia de perenes alegrias para a alma paraense, o dia de seu mais indomável e mais heroico sentimento religioso, exteriorizado em sinceros e piedosos louvores a Virgem

394

GIUMBELLI, Emmerson. A modernidade do Cristo Redentor. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 51, n. 1, p.75-105, 2008, p.84.

274

Nazarena, Mãe de Jesus, é de crer-se que as graças do divino filho se distendam do cimo do corcovado. Um raio de luz vivificadora até este céo equatorial. Gasalhador deste rincão amado, onde reina a Excelsa Virgem de Nazareth, divina progenitora do redemptor. Ali, por entre as nuvens diáfanas [...] Christo Salvador livrará o Brasil de todos os males, aqui, por entre um côro de anjos, Maria de Nazareh, embalada pelo murmúrio das preces piedosas de seus súditos, protegerá o Pará contra todos os infortúnios. [...] Effectivamente, enquanto milhares de brasileiros rendiam o seu tributo de piedade ao redemptor, entronizado no coração da pátria, não se arreleçaram os falsos profetas de vestir a pelle de ovelha [...] a máxima cautela a ao entrestar-se o proselitismo protestante, e, especialmente o Lutheranismo e o Calvinismo. (grifo nosso)395

Jeremias Paraense exalta a iniciativa como sendo de ―tamanha magnitude‖,

um grandioso feito, um legado da Igreja deixado aos brasileiros, idealizando a Igreja

Católica como uma instituição piedosa, ainda que a pátria diversas vezes tenha feito

―Afronta a igreja‖, o Papa Pio XI, mesmo assim, escolhe o Brasil para ser a nação

eleita a receber a estátua do Cristo.

O articulista procura dialogar e comparar o acontecimento da construção do

Cristo Redentor, com a própria religiosidade paraense. A inauguração da imagem do

Cristo Redentor acontecia em momento semelhante ao da romaria da Virgem de

Nazaré, e assim como o Cristo redentor traria a proteção ao Brasil o ―livrando de

todos os males‖, a Virgem de Nazaré ―livraria o Pará de todos os seus infortúnios‖.

Aí estava sugerida e quase forçada uma conexão entre esses dois simbolismos do

catolicismo, e a pena do escritor prossegue poetizando que ―um raio de luz

vivificador‖ saiu do Rio de Janeiro, do Cristo, e chegou até o céu protegido pela

Virgem de Nazaré.

Não sabemos discernir até que ponto o autor vai entre a metáfora e a

realidade de sua mentalidade religiosa, mas o texto deixa clara a conexão que ele se

esforça para criar entre a religiosidade católica simbolizada pelo Redentor e pelo

potente simbolismo da Virgem de Nazaré no Pará.

O Corcovado é representado pelo jornal como simbologia da ―Alma Cristã do

Brasil‖. Ter esse grande monumento como representação mostra o quanto o jornal

quer passar a mensagem de que, apesar de alguns grupos serem contrários ao

catolicismo, e a República ter a Igreja Católica oficialmente separada do Estado, a

395

FOLHA DO NORTE. ―Ad lucem‖. Belém, 1931.

275

sociedade brasileira tinha uma ―alma católica‖, seja pelo reconhecimento e devoção

à figura de Cristo no Corcovado ou pela da Virgem de Nazaré no Pará.

E assim como o autor exalta a construção do Cristo Redentor, há a

costumeira crítica negativa ao protestantismo, os ―falsos profetas‖ que se mostraram

contrários à construção da estátua no Corcovado. O texto sugere que os leitores

tenham ―cautela‖ com relação aos protestantes, especialmente os de linha Luterana

e Calvinista – e aqui leia-se cautela como um prudente afastamento dos perigosos

protestantes.

Notamos o quanto a construção da imagem do Cristo Redentor é

significativa e ganhava espaço na grande imprensa local, sempre com um parecer

favorável a seu respeito. Ao mesmo tempo, os posicionamentos contrários à

construção da estátua do Cristo eram desqualificados, especialmente os vindos de

protestantes, mostrando ser esse mais um motivo de conflito entre as duas vertentes

religiosas.

Na matéria publicada no jornal ―Folha do Norte‖, padre Dubois responde a

uma suposta crítica do presbiteriano Antônio Teixeira Gueiros com relação à estátua

do Cristo redentor que seria construída no Rio de Janeiro. Notemos que essa

matéria saiu em um jornal de grande imprensa em que o padre tinha bastante

espaço. Como já comentado no capítulo anterior, era costume desse jornal abrir

espaço para a crítica de Dubois aos protestantes. A matéria ―O Chisto no Corcovado

- explicações a um pastor‖ se divide em duas respostas de Dubois a Gueiros,

apresentadas a seguir.

O Chisto no corcovado commeteu uma falta de caridade, com o pertubar o gnomio do reverendo Teixeira Gueiros. O primeiro pesadelo do clérigo biblista veiu dos quatrocentos contos que, nos governos idos, o parlamento brasileiro votou para o monumento. Injustificados são os subsídios officiaes quando rumam para a Egreja catholica. Outro galo canta, toda a vez que beneficiou a A. C. M.396, o hospital evangélico, ou o collegio Mackenzie, até em belo horizonte os methodistas possuem um vasto terreno que, de mão beijada, lhes foi dado, pelo saudoso doutor João Pinheiro, no tempo em que, se usarmos a phase do senhor evangélico, ―a votação de verbas para qualquer fim era feira com a maior desenvoltura e sem discernimento nenhum‖. Como não vive de dollars, a egreja não recusa alguns mil reis que, vez por outra, o governo lhe ofereça, para construcções religiosas ou casas de caridade. A

396

Associação Cristã de Moços.

276

ser menos nervoso, o senhor Gueiros não caberia na insomnia por tão vulgar motivo.397

O padre responde a uma suposta queixa do pastor referente à construção do

Cristo Redentor. Embora o parlamento brasileiro tenha aprovado a construção do

monumento e o financiado, esse financiamento de quatrocentos contos, como diz a

matéria, era considerado por Teixeira Gueiros como ―infundado‖. O padre procura

lembrar que as instituições protestantes também têm suas fontes de financiamento,

mesmo que aparentemente não sejam financiamentos estatais, mas que vinham de

pessoas vinculadas a países norte-americanos, e aproveita para fortalecer o

discurso de desqualificação do protestantismo, dizendo que os protestantes eram

financiados pelos ―dollares‖ norte-americanos, já os católicos, por não terem tão

poderosos financiadores, não podiam recusar ―alguns mil reis que vez ou outra eram

oferecidos pelo governo‖ e destinados a construções e casas de caridade.

O que o pastor aparentemente se queixa (e o padre admite e legitima) é a

ligação entre Igreja e Estado ainda existir no período republicano, que financia a

Igreja Católica sendo que ela não está mais vinculada oficialmente ao Estado como

no período imperial. O fato é que a verba destinada à construção da estátua do

Cristo Redentor no Rio de Janeiro era um exemplo do forte vínculo da Igreja Católica

com o Estado, que se mantinha na República, denunciado agora pelo pastor.

Essa matéria nos ajuda a sintetizar muito do que já foi discutido até aqui. Há

um estado republicano que continua hegemonicamente católico, no qual grande

parte das decisões do Estado favoreciam a Igreja. O catolicismo tinha poder estatal

e grande espaço também na própria imprensa não confessional, que propagava

seus feitos de forma positiva. Ainda assim, havia uma tentativa de readaptação do

catolicismo ao novo regime republicano que se consolidava nas primeiras décadas

do século XX, em que este, por meio de novos discursos e dinâmicas religiosas, se

ressignificava; e a construção da estátua do Cristo Redentor era uma dessas

ressignificações. A imagem é a expressão iconográfica da religiosidade católica,

mas para além disso ela era aliada a um elemento discursivo validador oriundo da

imprensa: a construção do Cristo Redentor como sendo um símbolo de redenção da

nação; uma nação católica protegida por seu Cristo.

397

FOLHA DO NORTE. ―O Chisto no Corcovado - explicações a um pastor‖. Belém, 1931.

277

A imprensa fazia o papel de validadora e legitimadora desse discurso. Se,

como tratamos no primeiro capítulo, havia uma ―formação das almas‖, na qual o

monumento era um instrumento para a formação de mentalidades, o Cristo Redentor

era, no discurso católico paraense, ao lado da Virgem de Nazaré, o redentor da

sociedade.

Jascintho Sousa, chegou a tratar em sua tese sobre a reação nacional dos

protestantes diante da construção do Corcovado, que era descrito como idolatria, já

que o monumento era uma imagem. O autor percebe o posicionamento protestante

ao analisar uma matéria publicada no Jornal Batista, em 1923, intitulada ―O Ídolo do

Corcovado‖:

Os que tiveram a infeliz ideia de erigir o monumento a Cristo Redentor, não tiveram a intenção de honrar a Cristo, mas sim a de engrandecer o catolicismo romano. Se tivesse querido honrar a Cristo, procurariam erigir-lhe um monumento não no corcovado, mas em cada coração. No coração é que Cristo quer reinar. Eles, porém, pretendem honrar a Cristo, desonrando-o, fazendo aquilo que ele terminantemente proibiu- fazendo-lhe uma imagem. Finalmente este monumento a Christo redentor, veio a por a prova o catholicismo do nosso povo. Consta que o monumento está orçado em 1.500 contos. […] Pois quinze milhões de catholicos, entre os quaes há muitos ricos e até archimillionários, não podem, voluntaria, espontaneamente, levantar 1500 contos[?] […] Sem passar por cima da Constituição para forçar as portas do thesouro nacional e dos thesouros municipaes.398

Mas não era apenas o discurso religioso a ser evocado pelos protestantes,

havia também o apelo ao princípio da separação da Igreja e do Estado devido à

subvenção do Estado para a construção do monumento. O jornal acusa os católicos

de conseguirem privilégios do Estado na esfera municipal e federal para a

construção do monumento. Há um inconformismo com uma prática de benefícios do

Estado para o catolicismo vigente que os protestantes acusam de inconstitucional.

O protestantismo continuava a se posicionar em contraposição total ao

discurso católico. O financiamento do estado brasileiro era, para Dubois, normal e

natural, e até mesmo necessário. Um discurso que se alinha ao que vem sendo

mostrado até aqui. Uma Igreja Católica que construía uma representação social de

si como a (ainda) igreja oficial, e que, por isso, era legítimo que tivesse o

398

O JORNAL BAPTISTA. ―O Ídolo do Corcovado‖. 13/09/1923.

278

financiamento do Estado. Uma naturalização no discurso e na prática de um

atrelamento do catolicismo com o estado brasileiro.

O maior e mais duradouro jornal da primeira república no Norte do país, a

―Folha do Norte‖, tinha forte apreço pela Igreja Católica, dando espaço para os seus

líderes e defendendo também a vinculação desta com o estado. Há nesse discurso

um relevante exemplo de embate local entre católicos e protestantes, e era por meio

da simbologia das imagens, reconhecidas pela maior parte dos brasileiros e

paraenses locais, que o catolicismo procurava cada vez mais se legitimar como a

principal religião da nação.

Questões como o ensino religioso e a construção do Redentor,

semelhantemente a outras discussões feitas nos capítulos anteriores, nos fazem

refletir como a separação entre igreja e Estado no Brasil, na prática, continuou

debaixo de um guarda-chuva católico, visto que a mentalidade católica majoritária

ainda influenciava o Estado nas leis e em sua aplicabilidade. O protestantismo,

ainda possuindo parte da elite republicana ao seu lado e um código penal brasileiro

que garantia os mesmos direitos do catolicismo, na verdade se limitava a travar

batalhas pontuais acerca de temas como a liberdade religiosa, o ensino laico e as

denúncias de ajuda do Estado em empreendimentos vinculados ao catolicismo,

contendas que pouquíssimas vezes vencia.

Durante a primeira república, católicos e protestantes discutiam sobre

diversas pautas políticas, mas ficou claro, analisando os temas, que protestantes se

apegavam a travar batalhas menores, se aliando a outros grupos minoritários e

lutando por causas pontuais, para assim de certa forma resistir à grande vantagem

que o catolicismo ainda possuía com o Estado.

Com isso, reiteramos aquilo que já discutimos e que nos afirma Chantal

Mouffe: ―Falar de separação entre Igreja e Estado, portanto, é uma coisa; outra é

falar de separação entre religião e política‖.399 Fica claro, nessa fala, que o poder da

Igreja Católica ia muito além das leis, o fato é que havia uma hegemonia de

pensamento católico que ainda perdurava no país e especialmente no Pará.

O cristianismo, desde a antiguidade até o período em que adotamos como

recorte temporal, traz em seu dogma primário a separação entre Igreja e Estado.

399

MOUFFE, Chantal. Religião, democracia liberal e cidadania. In: BURITY, Joanildo; MACHADO, Maria das Dores (Orgs.). Os votos de Deus: evangélicos, política e eleições. Recife: Massangana, 2006, p.25.

279

―Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus‖, disse o próprio Cristo

segundo a Bíblia – seja a católica ou a protestante.

Há, na lógica cristã, como descreve Agostinho de Hipona, duas cidades que

mostram um significado religioso inédito: ―a história mundial é o velho afrontamento

entre as civitas. A cidade celeste e a cidade terrena, entre o reino celestial de Cristo

e o reino do mal‖, este último representado pelos reinos terrenos. Esses novos

dogmas trazidos pelo cristianismo com relação ao reino terreno e reino celestial são

retratados por René Rémond como ―o germe da laicidade‖400, e que continuará

presente na história do ocidente que vai se tornando hegemonicamente cristão, e é

a partir daí que ideais que visam a ideia de separação entre Igreja e Estado

começaram a germinar e se desenvolver no decorrer da história da sociedade

ocidental.

Rousseau, seguindo esse entendimento da natureza do cristianismo, retrata

que os homens da antiguidade tinham reis que também eram deuses, sendo comum

reinos teológicos. Segundo ele, ―Jesus chegou para estabelecer na terra um reino

espiritual, que separando o sistema teológico do sistema político fez com que o

Estado deixasse de ser uno e causasse as divisões internas que jamais deixaram de

agitar os cristãos‖401. O cristianismo, diferente das outras religiosidades, diferencia

claramente a cidade ―temporal‖ e a ―celestial‖. Para o filósofo, essas cidades, mesmo

dialogando algumas vezes, em geral possuem sistemas diferentes e em grande

parte antagônicos. Essa distinção entre dois reinos já nos revela dogmas

separatistas da religião com a noção de estado terreno vigente, incluídos na religião

cristã em sua base primitiva e em sua teologia posterior.

Ainda segundo Rousseau, mesmo que os reis de países majoritariamente

cristãos tentassem unificar novamente o controle do Estado à religiosidade, em

contraponto ―O espírito do cristianismo sempre venceu. O culto sagrado sempre […]

se tornou independente do Soberano e sem ligação necessária com o corpo do

Estado‖.402

Já Bernard afirma que os cristãos são os estrangeiros na ―cidade dos

homens‖. São embaixadores do reino celestial e necessários para conservar no

mundo a consciência de transformá-lo ao deixar as pessoas conscientes da

400

RÉMOND, René (Org.). As grandes descobertas do cristianismo. Rio de Janeiro: Loyola, 2005, p.96. 401

ROUSSEAU, Jean Jaques. O contrato social. São Paulo: Skala, 2008, p.172. 402

Ibidem, p.173.

280

perspectiva cristã de mundo. Se há políticas públicas efetuadas pelo Soberano

contrárias a essa ―consciência cristã‖, deve haver, por parte desses cristãos, uma

ação interventória para que o Soberano possa adequar sua política à consciência do

cristianismo.

A disputa religiosa que ocorria no Norte do país, protestantes brigando com

os católicos para serem reconhecidos como a verdadeira religião nacional, reflete

um fenômeno que ocorria semelhantemente no restante do Brasil e que perpassa a

história do cristianismo no ocidente: a batalha para saber quem é afinal o

cristianismo verdadeiro e genuíno, que ocuparia o lugar de soberania legitimada pelo

Estado.

O fenômeno que ocorre no país, e mais precisamente na região Norte, é o

fato de um grupo cristão minoritário, representado pelo protestantismo, procurar

travar uma disputa religiosa em um país republicano laico, mas com um Estado

fortemente influenciado pela religião majoritária representada pelo catolicismo, que

tinha seu posto de soberania garantida por estar em um país de ―alma católica‖.

281

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Notamos que o cristianismo, mesmo com a efetiva separação entre Igreja e

Estado, na prática não sofreu separação entre religião e política. Os discursos

proselitistas das vertentes cristãs abordadas constantemente evocam também um

discurso político, expresso especialmente por uma disputa religiosa entre católicos e

protestantes para serem reconhecidos como religiões nacionais. A ideia de laicidade

e de República não aplacou essas vertentes religiosas de procurarem seu espaço

dentro das instituições estatais, de alargarem o seu campo de influência entre a

sociedade e de disputarem também entre si um campo de influência política.

Talvez a realidade das discussões sobre religião e política, tanto em Belém

do Pará como no restante do Brasil (e no ocidente como um todo), deve partir

também desse questionamento. Por mais que não houvesse mais uma relação entre

Igreja e Estado, ainda assim se mantinha uma relação entre religião e política.

Católicos e protestantes ao batalharem entre si para serem reconhecidas como a

principal religião nacional, não lutavam apenas por um reconhecimento do Estado,

mas por um reconhecimento da sociedade. Ambas as religiões percebiam que a

sociedade era profundamente religiosa, mesmo estando em um regime político que

procurava separar a religião do Estado, e a partir daí tratavam de tecer seu

proselitismo para atingir essa sociedade.

A separação entre Igreja e Estado no ocidente sempre foi obrigada a se

deparar com esse cenário: tentar instituir um estado religiosamente neutro e

secularizado, em uma sociedade de indivíduos predominantemente cristãos. Por

isso, na prática, esse ideal nunca se concretizou como proposto. A religião sempre

influenciou fortemente a política nas esferas macro e micro, especialmente

considerando que a maior parte dos indivíduos que influenciam na estrutura do

Estado são profundamente religiosos.

Ao nos depararmos com esse fenômeno religioso da separação entre Igreja

e Estado também nos deparamos com outras questões tão complexas quanto, como

o secularismo ocidental, a ideia de laicidade e as nuances de interpretação de cada

país acerca da ―separação entre Igreja e Estado‖. Em relação a esta última questão,

há uma diferença clara de como esse fenômeno religioso e político ocorreu nos

diferentes países ocidentais, seja nos Estados Unidos, França, Itália, Chile ou Brasil.

Assim como outros ideais importados, cada país incorpora esse ideal de forma

282

particularizada, se adequando as suas próprias dinâmicas sociais. No Brasil não foi

diferente. Neste trabalho, tentamos fomentar o debate de como essa separação se

dá na prática em um país como o Brasil, em que, no período em que a medida foi

efetivada, a grande maioria da população era católica. Notamos que, assim como no

restante do ocidente, muito do que se pensou do ideal de laicidade não se

concretizava na prática por aqui. A religião majoritária continuou sendo privilegiada e

procurava se adequar no novo cenário político para manter o poder que já usufruia

anteriormente enquanto ainda era religião oficial.

Apesar disso, esse novo momento político ajudou na rearticulação de outros

grupos religiosos acatólicos minoritários. Nesta pesquisa resolvemos enfatizar os

protestantes, que no início do período republicano representavam pouco mais de 1%

da população, mas que ainda assim conseguiam se articular melhor enquanto

movimento religioso, trazendo também para si um proselitismo político que mostrava

os benefícios sociais de ter uma sociedade predominantemente protestante. Sua

luta política maior não era por uma sociedade laica, mas por uma sociedade

predominantemente protestante que andasse lado a lado com as políticas de

Estado.

Aqui é interessante destacar o diferencial deste trabalho. Abrimos mão da

habitual escolha da Academia pela análise do campo político e religioso a partir de

uma perspectiva ―Centro-Sul‖, e optamos por analisar esse fenômeno à luz de fontes

documentais que circulavam na região Norte do Brasil, de forma que pudemos

debater essas questões a partir de acontecimentos e discussões que ocorriam

nessa localidade. No período avaliado, temos a construção de monumentos que

expressavam a religiosidade predominante, jornais das mais diversas vertentes

cristãs em circulação, construção de templos católicos e protestantes, reformas de

eventos e construção de catedrais para consolidar ainda mais a forte devoção

mariana existente em Belém do Pára pela Virgem de Nazaré; líderes expressivos

surgindo, fossem católicos ou protestantes. Fosse padre Dubois, Antônio Gueiros ou

Justus Nelson. Lideranças religiosas que procuravam se colocar como sujeitos

sociais ativos na cidade, se informando de acontecimentos locais e nacionais, e

utilizando seus veículos de imprensa para passar às massas suas opiniões sobre

religião e política. Daí temos um embate entre católicos e protestantes que envolvia

violências físicas e simbólicas, gerando difamações, agressões físicas e prisões,

reflexo do que acontecia no restante do país, com particularidades locais, fazendo

283

com que a pesquisa contribua para a historiografia local e nacional, e para o

entendimento pleno desse fenômeno.

Retratamos o surgimento do movimento pentecostal, como ele rapidamente

cresceu na região e, posteriormente, no resto do território brasileiro, mostrando sua

relevância na história das religiões no Brasil, considerando que foi e é o movimento

religioso acatólico que mais cresceu na história do país. Procuramos ser

contributivos no debate para estimular a reflexão sobre como o pentecostalismo

cresceu, especialmente por sua dinâmica religiosa dialogar com o católico leigo

popular. Vimos que esse tema era muito rico, e poderíamos aprofundá-lo ainda

mais, porém preferimos limitá-lo às discussões aqui apresentadas para que o tema

específico do pentecostalismo não ocupasse um espaço que ofuscasse o nosso

objeto de estudo. Já lemos obras sobre o pentecostalismo em suas primeiras

décadas no Brasil, entretanto, desde a década de 1990, não vemos trabalhos sobre

a relação do pentecostalismo com a cidade de Belém do Pará em seus primeiros

anos. Acredito que os pesquisadores que se interessarem em pesquisar sobre esse

tema, poderão elaborar uma pesquisa contributiva tanto para a historiografia

paraense, quanto para um movimento tão relevante no Brasil nos dias de hoje.

Das denominações que pesquisei, vimos um número considerável de fontes

e pouco material historiográfico para trabalharmos, foi a presbiteriana. Acredito que

o motivo disso é que o jornal que circulava na região Norte e Nordeste do país, o

―Norte Evangélico‖, não estar disponível no arquivo público do estado, e tampouco

foi digitalizado, como ocorreu com o ―Jornal Batista‖. Assim, por mais que lideranças

como Antônio Teixeira Gueiros tenham sido expressivas entre os protestantes, não

encontramos trabalhos sobre elas, visto que grande parte das documentações sobre

essas personalidades estejam presentes apenas no arquivo presbiteriano em São

Paulo. Teixeira Gueiros também teve espaço na grande imprensa, mas nesses

quatro anos de pesquisa não conseguimos encontrar suas matérias, apenas as de

seus adversários falando sobre ele, como padre Dubois. Incentivo a futuros

pesquisadores que se interessem pelo tema do protestantismo que pesquisem sobre

esse pastor presbiteriano, especialmente porque em um período posterior ao que

abordei, ele começa a se envolver diretamente no campo político, fazendo com que

a sua família se tornasse politicamente influente na região até os dias de hoje.

284

Discussões sobre a separação entre Igreja e Estado, laicidade e

secularização são temas que tocamos na pesquisa, com a consciência clara de que

passamos longe de esgotá-los. Muito se debate sobre essas temáticas em outras

áreas do conhecimento, mas são poucos os historiadores que sobre elas se

debruçam para uma análise histórica aprofundada.

Discussões sobre a separação entre Igreja e Estado, Laicidade,

secularização, são temas que tocamos na pesquisa, com a consciência clara de que

passamos longe de esgotá-los. Muito se debate sobre essas temáticas em outras

áreas do conhecimento, mas são poucos os historiadores que se debruçam em

retratar uma análise histórica sobre esses temas. Sobre como a separação entre

igreja e Estado foi sendo debatida no Brasil no decorrer de sua história. Procuramos

dar uma pequena contribuição ao tema ―Religião e política‖, com a consciência de

que um tema tão abrangente, complexo e atual não se encerra por aqui, e por isso,

incentivamos a nós mesmos e a outros pesquisadores da área de história a também

se debruçarem nesse tema e contribuírem para a historiografia brasileira nessa área.

Hoje temos um quadro político e religioso consideravelmente distinto da

primeira república. Um aumento expressivo das chamadas igrejas evangélicas: um

termo que designa as denominações protestantes e pentecostais. O pentecostalismo

continuou a se expandir desde o período que abordamos e hoje corresponde a 85%

das denominações evangélicas atuais, sendo a maior denominação o

pentecostalismo assembleiano surgido no Norte do país no período em que

abordamos. A expansão das igrejas evangélicas chegou ao ponto de ganhar força

política, elegendo uma bancada que ocupa hoje cerca de 15% do congresso

republicano nacional. Com isso, concluímos que a fé racionalizada e letrada do

protestantismo histórico não conseguiu fazer frente ao catolicismo enraizado da

população, e que o pentecostalismo, com seu convite a experiência sobrenatural,

conseguiu ser a maior frente contrária a hegemonia católica presente por aqui desde

o período colonial, ganhando uma força política e um atrelamento ao Estado que o

protestantismo histórico nunca conseguiu alcançar.

Refletir sobre os caminhos tomados por protestantes e pentecostais do

período em que estudamos até o presente momento poderá contribuir para

entendermos melhor sobre a religiosidade brasileira e os movimentos políticos e

religiosos de nossa sociedade atual.

285

REFERÊNCIAS

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