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    PROMETEUSFILOSOFIA EM REVISTA

    Ano 2 - no.3 Janeiro-Junho/ 2009 ISSN 1807-3042

    CRTICA DA ARROGNCIA PURA:A FILOSOFIA MAIS PERTO DA PURA RETRICA QUE DA CINCIA DURA

    Alberto OlivaDoutor em Filosofia e professor do IFCS/UFRJ

    Resumo: O conhecimento cientfico tem ficado a meio caminho entre a episteme - ou a veram &certam scientiam postulada por Descartes - e a doxa. Entre os cientistas cada vez maior oreconhecimento de que mesmo que a verdade tenha sido alcanada no se tem como saberenquanto a pesquisa prosseguir. Na aparncia, a filosofia em alguns autores e em determinadosmomentos de sua histria explicativamente mais pretensiosa que em outros. A tese que defendemos

    a de que, no fundo, a hybrisexplicativa o trao distintivo dos Grandes Sistemas Filosficos. Aconscincia metacientfica da falibilidade no tem contribudo para diminuir a arrognciaexplicativa da maioria das filosofias. E se a soberba intelectual tem sido maior no tratamento dasquestes que fomentam disputationesseculares porque difcil, ou qui impossvel, se chegar a umamodalidade (objetiva) de conhecimento sobre os Lebensproblemen. Para piorar, no panoramafilosfico contemporneo a busca do conhecimento provado tem sido substituda com freqnciapela arrogncia do retorismo, isto , pelo discurso vazio que tenta se fazer passar por boa filosofia.

    Palavras-chave: explicao; justificao epistmica; significado cognitivo; retrica

    Abstract: Scientific knowledge has been half way between episteme - or the veram & certam

    scientiam such as postulated by Descartes - and doxa. Among the scientists is increasing therecognition that even if the truth has been achieved nobody can know it while research is going on.In appearance, the philosophy is in some authors and in certain moments of its history explanatorilymore pretentious than in others. The thesis that we advocate is that, at heart, explanatory hybris is thehallmark of the Great Philosophical Systems. The awareness of the metascientific fallibility has nothelped to reduce the explanatory arrogance of most of philosophies. In addition, if the intellectualarrogance has been greater in the treatment of the issues that fuel secular disputationesis because it isdifficult, or perhaps impossible, to arrive at a (objective) mode of knowledge about the so-calledLebensproblemen. To make matters worse, the contemporary philosophical landscape shows that thepursuit of proven knowledge has been often replaced by the arrogance of rhetorism, that is, theempty discourse that simulates to be good philosophy.

    Key-words: explanation; epistemic justification; cognitive meaning; rhetoric.

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    H maior perigo em comprar conhecimento do que em comprar comida e bebida.(Plato)

    S a obscuridade se presta defesa da absurdidade.(Leibniz)

    1. Do Maravilhamento Necessidade de Conhecer

    Como Plato (1965, p. 207) fizera no Teeteto, Aristteles (1948, 982b) sublinha que aadmirao a fora primeira que desencadeia a reflexo filosfica. No fosse perturbada

    pelo assombro diante do grandioso e ameaador espetculo da natureza, pela curiosidadesobre as esferas celestiais e pelo desejo de decifrar a si mesma, a espcie humanaprovavelmente teria se dedicado elaborao de um saber meramente de subsistncia. Ohomem despenderia muito menos energia na busca de conhecimento se dele no precisassepara sobreviver.

    Alm do desafio de controlar as foras cegas da natureza, o ser humano anseia seconhecer, identificar os fatores que o fazem ser o que . Em busca da decifrao de simesmo almeja desvendar os mecanismos que tornam possvel sua inteligncia, os que regemsua vontade e os que suscitam seus desejos e interesses. A falta de utilidade prtica dasespeculaes e a ausncia de resultados consensualmente endossados no tm sidosuficientes para travar a expanso da filosofia porque o homem um animal que, ao no se

    contentar com a resoluo de quebra-cabeas localizados, busca desvendar os porqusgerais.

    No houvesse o fantasma da dor a rondar seu corpo e sua alma e no tivesseconscincia de sua finitude e incompletude no fosse um problema para si mesmo - talvezo homem no sentisse tanta necessidade de se conhecer, de especular sobre sua existncia eexplicar os intrincados enredos da natureza. A vida possivelmente seria pura fruio,jorrante gozo pelas cascatas dos sentidos. No se sentisse provocado a explicar tanto o queest fora quanto a compreender o que est dentro de si, o homem seria levado a empregarmenos esforo fsico e energia mental na produo de teorias filosficas e sociais quechegam a resultados muitas vezes questionveis e quase sempre questionados.

    No passa de trusmo afirmar que se o homem no tivesse tido a ventura e acapacidade de desencadear o processo de busca sistemtica do chamado conhecimentoproposicional o know thatpor oposio ao know how - a histria (social) da humanidadeno teria a riqueza que hoje ostenta. Talvez s existisse a histria natural, visto que o existirhumano se reduziria ao congnito - mera reiterao das predisposies e dos instintos. Talvezsequer tivesse chegado at aqui a espcie humana. Se num primeiro momento as necessidadese as urgncias de sobrevivncia foram decisivas para que fosse iniciada a aventura intelectualda espcie humana, numa segunda etapa as motivaes mais eminentemente terico-especulativas tornaram possveis formas de investigao complexas como a filosofia.

    Assim como a identidade pessoal, as aes humanas derivam em boa parte dascrenas professadas. Os fatos que num primeiro momento precipitam a busca de idias passam

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    num segundo momento a ser afetados por elas. O problemtico que os rumos dados vidaindividual ou social resultam do endosso de crenas que na maioria dos casos se mostramdesprovidas de bons fundamentos. A maioria das pessoas vive em consonncia com crenasque no foram conscientemente escolhidas. Ou que pelo menos no foram refletidamenteadotadas. Quer isso dizer que sua aceitao no se deu com base em (slidas) razes. Quandoalgum adota uma metafsica ou uma religio passa a perfilhar crenas que contribuem deforma decisiva para a assuno de determinadas atitudes diante da vida. E atitudes podem serassociadas preferncia por determinados padres de comportamento.

    O homem o nico ente que pode tomar a existncia de tudo, e sua prpria, comoum quebra-cabea e assim buscar para ela uma explicao imanente ou transcendente,materialista ou espiritualista etc. Ao abraar um desses ismos,o homem fica refm de seusesquemas de categorizao e conceituao da realidade. fato que a busca deconhecimento torna inevitvel ir alm dos fatos da experincia imediata. S que isso no justificativa para se criarem mirabolantes especulaes. O preo para se procurar apreender

    o eventual sentido da existncia humana para alm da explicao do ser das coisas- nodeve ser o vale-tudo metodolgico. A intratabilidade lgico-emprica dos problemas da vida- os referentes ao sentido do ser e existir do homem - e a dificuldade, ou impossibilidade, de seencontrarem sentidos nas coisas no mundo no justificam o retorismo e oespeculativismo.

    2. Vastas Pretenses Cognitivas, Dbeis Justificaes Lgico-empricas

    Do to apeiron ao Dasein, passando pelo Esprito Absoluto, os filsofos se apresentamcomo semideuses da inteligncia, como decodificadores dos cdigos genticos da Totalidade.

    Parecem se considerar Champollions - detentores da pedra de Roseta do Pensamento Puro -aptos a decifrar os hierglifos da Realidade. A arrogncia cognitiva fica explcita quando afilosofia elabora teorias substantivas, ou de primeira ordem, que ambicionam ser o alfa e omega da explicao da Realidade. Sem qualquer constrangimento epistmico, o metafsicoespeculativo postula conhecer, por meio de meros exerccios de linguagem, as essnciassubjacentes ao cambiante espetculo do mundo.

    Da arrogncia terica o filsofo vai para a praxiolgica quando assume o papel delder espiritual capaz de ensinar a uma entorpecida humanidade o que fazer para se livrardas sombras do esprito e dos grilhes mundanos e marchar rumo Terra Prometida. Almde terem uma agenda negativa devotada a desmontar falsas crenas e de se acreditaremcapazes de elaborar teorias em perfeita correspondncia com o que a realidade tem de

    essencial, os sistemas filosficos demirgicos propem o casamento do Conhecimento coma Revoluo: a transformao total da sociedade luz de um modelo considerado expressoda Verdade e da Justia.

    Em torno de pares como ser/ente, uno/mltiplo, absoluto/relativo, sujeito/objeto,razo/observao, estrutura/processo, natureza/conveno, iluso/realidade,essncia/aparncia, certo/errado, bem/mal etc. se escreveram as grandes obras da filosofia. H

    vises para os mais variados gostos intelectuais. A variedade de imagens de homem e vises demundo estimula a adoo de determinadas formas de vida(Cf. Wittgenstein, 1968, 226). Porisso reduzir um sistema de idias abstruso e semanticamente nebuloso a uma teia de equvocoslgico-conceituais perder de vista sua capacidade de sugerir ao homem modos de ver que

    desguam em modos de ser. A indefinida coexistncia entre sistemas de idias excludentes -7

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    decorrente de a filosofia ser, aristotelicamente falando, mais um logos semantikos que umlogos apophantikos- no configura apenas incomensurabilidade entre vises de mundo, mastambm a expresso ou proposio de distintos modos de viver.

    Independentemente de como se a concebe, a filosofia prenhe de conseqnciasprtico-vivenciais em razo de propor com seus ismos modos e modelos de acesso realidade pessoal, social e natural. Mesmo a filosofia que se devota a questes conceituais,ou de segunda ordem, exerce influncia, ainda que bem menos direta, sobre os modos de

    viver. Dentre os distintos estilos de empreendimento interpretativo levados a cabo pelaFilosofia tm maior impacto vivencial os que pretendem prover explicaes sobre o Todo; osque estipulam padres fundamentais de vida moral pela criao de uma metafsica quedefine o que o homem, qual seu lugar no mundo e como deve se comportar; e os queelaboram teorias voltadas para a descoberta ou construo de sentidos para fatos e vivncias(Cf. Hanfling, 1996; Klemke, 2000).

    Tendo em vista que cada Escola filosfica adota seu modelo epistemolgico, seu

    inventrio ontolgico e seu quadro axiolgico, acreditamos ser procustiano emitir juzossobre a filosofia como um todo. Como abriga escolas antagnicas, inevitvel que filosofiafalte um projeto cognitivo unitrio. Talvez em respeito profuso de teorias e visesexcludentes que se aninham na Filosofia se devesse falar de filosofias. Mesmo ostentandomais identidade interrogativa que convergncia responsiva, as filosofias possuem vriostraos importantes compartilhados. S que nem o mesmo as disputationes entre elascontribuem para a filosofia ser praticada com esprito falibilista.

    A noo de progresso cumulativo pouco se aplica filosofia em virtude dedificilmente uma nova teoria poder ser vista como um aprofundamento ou uma extensodas antecessoras. Na filosofia, conceitos vetustos so empregados sem gerar a impresso de

    anacronismo. Por no jogar quase nada fora, a filosofia que produz teorias de primeiraordem ecologicamente correta: recicla o tempo todo conceitos simulando ajust-los acontextos problemticos pretensamente novos.

    Pode-se dividir esquematicamente a Tradio Filosfica em trs grandes perodosidentificando em todos eles alguma forma de hybris explicativa. O primeiro, que vai daFilosofia Antiga (iniciada no sculo VII A. C) at o final do Pensamento Medieval (sculo XIV), marcado pelo interesse central na ontologia, pela questo do Ser. Guardadas as diferenas,os pensadores devotados constelao de problemas ontolgico-metafsicos almejamdeterminar o que , tal qual ; isto , o que existe, para alm das aparncias, em si e por si. Oconhecimento que perseguem tem a meta ambiciosa de revelar em que consiste aRealidade, de desvendar sua natureza ltima, sua essncia. Esse tipo de filosofia o mais

    pretensioso em termos explicativos e o que menos resultados tem conseguido obter. Em quepese a importncia das questes ontolgicas e metafsicas, hoje parece diminuto o potencialde respond-las de forma substantivamente inovadora.

    O segundo perodo se caracteriza por uma ruptura com o primeiro e marca osurgimento da Filosofia Moderna. Nele desponta como central a problemtica doconhecimento e a tendncia ntida tanto em Bacon quanto em Descartes - a desqualificaros procedimentos metodolgicos, sobretudo os calcados na silogstica, anteriormenteadotados. O que se pode conhecer e como justificar o que se supe conhecer passam a seras questes decisivas. A resposta que a elas dada define o tratamento que pode serdispensado ao estudo do ser e da estrutura da realidade. Se no possvel conhecer o Ser

    enquanto Ser como se no existisse. Se como acreditam os empiristas modernos s a8

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    casca exterior do Ser o phaenomenon - acessvel aos sentidos, disso decorre que noso cognoscveis, mesmo que existam, seus determinantes ocultos. Nesse caso, o que faz oSer ser o que no se inobservvel - passvel de conhecimento. Sendo assim, o motepoderia ser: o Ser apenas e to-somente o que se pode (sobre ele) conhecer.

    A despeito de toda a nfase que se passa a dar gnosiologia, prevalece na filosofiamoderna representada pela escola racionalista a pretenso justificacionista de se chegar auma forma demonstrativamente certa de conhecimento. Alguns dos corifeus doracionalismo moderno exibem uma excessiva confiana nos poderes da razo de proverperfeita justificao para o que propem como conhecimento. Para Descartes (1970, p. 5), oque apenas provvel sequer tem como se candidatar a ter valor cognitivo. Spinoza (1952,p. 219-22) declara que da natureza da Razo perceber as coisas verdadeiramente comoso em si mesmas, no como contingentes, mas como necessrias. E arremata: danatureza da Razo perceber as coisas [sub species aeternitatis] como possuindo certoaspecto de eternidade.

    Mesmo quando mostra excessiva confiana na experincia, o empirismo se afasta dojustificacionismo ao reconhecer que sobre ela no h como alcanar algo com o estatuto de

    proven knowledge. H por isso menos soberba intelectual no empirismo. Com Bacon (1952,p. 110) entra em cena a retrica experiencialista luz da qual a filosofia clssica passa a serdepreciada por sua tendncia a produzir antecipatio mentis. O autntico conhecimento, ainterpretatio naturae, resulta do registro acurado de fatos e da adoo de procedimentosinferenciais indutivos que se afastam da inductio quae procedit per enumerationem simplicempor destacarem o papel da contra-evidncia (major est vis instantiae negativae). E a atenoespecial devotada ao caso negativocria um freio importante arrogncia explicativa.

    O terceiro perodo, j na filosofia contempornea, representa a transio que

    desloca a prioridade investigativa da teoria do conhecimento para a filosofia da linguagem,do plano epistmico para o sinttico-semntico. Passa a prevalecer a questo lgico-lingstica sobre a gnosiolgica. A questo que podemos conhecer? substituda pela queindaga que podemos com sentido dizer? O mote do linguistic turnpoderia ser: o Ser oque se pode com sentido sobre ele dizer.

    A produo de significado (cognitivo), precedida pelo descarte do meaningless ouunsinnig, passa a ser vista como condio de possibilidade para o conhecimento, j que estes pode ser alcanado por meio de uma linguagem logicamente confivel. Mesmo sendocorreto sublinhar que as lnguas naturais tm sua parcela de responsabilidade na formaodas vazias especulaes metafsicas, incorre em uma forma de hybris metaconceitual olinguisticismo que sustenta ser possvel fazer desvanecerem-se os problemas filosficos por

    meio da estrita anlise da linguagem.Dissecada pelo Empirismo Lgico (Cf. Carnap, 1966, p. 60-81) com a lupa rigorosa da

    lgica que a surpreende carente de contedo emprico e refm das deficincias lgicas dasintaxe das lnguas naturais, a filosofia (especulativa) desqualificada como projeto cognitivo.Suas grandiloqentes construes sobre o Visvel e Invisvel, o Todo e as partes, o Ser e o no-ser, os particulares e o Universal, seriam pseudodescritivas e pseudoexplicativas merosmalabarismos verbais fomentados pela frouxido lgica da sintaxe das lnguas naturais.

    Este tipo de diagnstico duplamente arrogante: condena a filosofia sem abrir mo defilosofar. Isto porque a anlise crtica da linguagem em que so vazadas as teorias filosficas uma forma de filosofar, mesmo quando se diz puramente lgica. At quando de modo

    autofgico decreta seu prprio fim, sua impossibilidade de ser conhecimento (de primeira9

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    ordem), a filosofia conserva sua arrogncia originria de ser um conhecimento (de segundaordem) final. No ltimo pargrafo do AnEnquiry concerning Human UnderstandingHume(1952, p. 509) prope que se lance s chamas o que no raciocnio formal ou experimental.Os empiristas lgicos e Wittgenstein - tanto o do Tractatusquanto o das Untersuchungen seguem as pegadas humeanas quando optam pela arrogncia filosfica de tipo negativo: aargumentao que destri a filosofia como projeto cognitivo ela mesma filosofia. comose para ser boa filosofia a filosofia precisasse desqualificar a si mesma. O importante seria eladar a ltima palavra sobre si mesma.

    Na aparncia, a filosofia em alguns autores e em determinados momentos de suahistria explicativamente mais pretensiosa que em outros. A tese que defendemos a deque, no fundo, a hybris explicativa a tnica de seu evolver. Se no seu alvorecer parecenatural a filosofia apresentar-se como capaz de prover a explicao geral de tudo, no sepode dizer que nos sculos seguintes o mpeto oniexplicativo amainou de modosignificativo. A humildade epistmica rara e no se pode sequer dizer que se faz presente

    nos momentos em que a filosofia conduz a si mesma para o cadafalso. Contrariando a duraassertividade do ltimo pargrafo do An Enquiry, Hume (1998, p. 152) salienta que nadapode ser mais contrrio filosofia que ser positivo ou dogmtico sobre qualquer assunto. Earremata: estou convencido de que nos casos em que se mostram mais seguros e arrogantesesto os homens comumente mais errados, j que do espao para as paixes deixando delado a deliberao apropriada e a dvida, que so as nicas capazes de evitar que secometam as mais grosseiras absurdidades.

    O conhecimento cientfico tem ficado a meio caminho entre a episteme, ou a veram& certam scientiam postulada por Descartes (1950, p. 76), e a doxa platnicas. Entre oscientistas cada vez maior o reconhecimento de que mesmo que a verdade tenha sido

    alcanada no se tem como saber enquanto a pesquisa prosseguir. A teoria da relatividadede Einstein pode ser uma explicao definitiva, pode ser a expresso da verdade sobre osfenmenos aos quais se aplica; s que a nenhum cientista dado saber isso. Enquanto fortestada sempre haver a possibilidade de se encontrar evidncia relevante contra ela.

    A conscincia metacientfica da falibilidade no tem contribudo para diminuir aarrogncia explicativa da maioria das filosofias. E se a soberba intelectual tem sido maior notratamento das questes que fomentam querelas seculares porque difcil, ou quiimpossvel, se chegar a uma modalidade (objetiva) de conhecimento sobre determinados temase problemas. Para piorar, no panorama filosfico contemporneo a busca do conhecimento

    provado tem sido substituda com freqncia pela arrogncia do retorismo, pelaengabelao discursiva. Sinal da crise intelectual de nosso tempo o discurso filosfico

    vazio ser o mais pretensioso. Em parte, o fato de a arrogncia intelectual ser encontrada ondemenos se justificaria resulta de algumas reas do saber serem mais modos de o homem darsentido ao que pensa e faz que construtoras de embasadas explicaes de fatos.

    Os modos escolhidos pelas pessoas para viverem e vivenciarem a realidade noresultam de clculos ou testes. Derivam de vises, quase sempre impressionistas, fornecidaspor metafsicas, religies, obras literrias ou simplesmente pelo senso comum. Por isso semostram vulnerveis s manipulaes dos sacerdotes das palavras que, por meio dogongorismo especulativo, ludibriam a audincia promovendo catarses lingsticas sobreassuntos refratrios a abordagens objetivas. As teorias da filosofia e das cincias humanas esociais que fazem mais sucesso so as que cativam os leitores misturando razo e emoo,

    objetivo e subjetivo, o aparentemente comprovado e o cavilosamente ideologizado. Quanto10

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    mais uma pesquisa se esmera em ser metodologicamente sustentvel menos apelo (emotivo)encerra.

    Quando se trata de lidar com os chamados problemas da vida, os Lebensproblemecomo os denomina Wittgenstein, no h como empregar tratamento objetivista. Passa a serforte a tendncia a se discorrer livremente sobre eles. As mais instigantes questes sobre acondio humana, as coisas do corao e os dilemas existenciais do homem, acabamenfrentadas sem a ajuda das tcnicas de pesquisa desenvolvidas pelas vrias cincias. Temcarradas de razo Wittgenstein (1971, 6.52. p.187), quando assinala que ficamos com aimpresso de que mesmo que todas as possveis questes cientficas fossem respondidasnossos problemas da vidapermaneceriam intocados. Como observa Pascal (1913, p. 4), huma clara oposio entre os que julgam com base nos sentimentos, e no compreendemem que se fundam e fundamentam as coisas da razo, e os que julgam com base nosprincpios e no compreendem nada das coisas do sentimento. S que simplesmentemisturar o sprit de gometrie com o sprit de finesse no contribui para um melhor

    entendimento nem das coisas da razo e nem das coisas do sentimento.Sendo as teorias da filosofia especulativa epistemicamente frgeis, o que faz com

    que sejam to facilmente endossadas como genunas explicaes? Em que pese a cincia virhistoricamente absorvendo problemas que um dia receberam tratamento filosfico, asquestes mais momentosas da vida pessoal e social no so enfrentadas por teorias passveisde controle emprico. Isso faz avanar o achismo dos pseudo-intelectuais e a oratriaarrebatada das Grandes Teorias e das Causas Redentoras. Fora dos setores nos quais asrelaes intelectuais entre os homens so regidas por imperativos de (profi)cincia, tendema prevalecer as emoes/paixes ideologicamente retorizadas.

    O trabalho intelectual na atualidade se desenvolve nos seguintes trs grandes

    domnios: o das cincias formais (voltado para a demonstrao), o das cincias factuais(voltado para a confirmao ou refutao emprica) e o da retrica humano-social(dedicado persuaso). marcante o papel da retrica nos campos da filosofia, literatura ereligio. Em dissonncia com a pretenso da filosofia de ser uma forma de cognio,algumas de suas vertentes se dedicam a persuadir desprezando os requisitos basilares darazo e os usos logicamente cuidadosos da linguagem. As cincias humanas e sociaistendem a ser saberes hbridos na medida em que abrigam tanto rebentos retoristas quantoboa pesquisa emprica. Em seu interior forte a propenso a lidar com assuntosexistencialmente inquietantes e comunitariamente relevantes invocando cuidadosmetodolgicos bsicos apenas para contrabandear preferncias ideolgicas.

    Fora das cincias naturais e formais, levar algum a acreditar em alguma coisa

    costuma depender mais de afinidade ideolgica e de convergncia afetivo-emotiva que daqualidade lgica da argumentao e da quantidade e qualidade da evidncia empricarecolhida. Induzir uma pessoa a pensar de um modo para lev-la a fazer determinada coisa conseqncia, num bom nmero de casos, de t-la simplesmente persuadido; de t-la feitoabraar determinado tipo de crena sem prover (boas) razes para tanto. Subsistenitidamente um fosso entre as cincias emprico-formais e os campos do saber queconstroem discursos nos quais se misturam de forma nebulosa retrica, ideologia edesmesurada ambio explicativa.

    A tricotomia formal, empricoe retrico vista como artificial pelos que adotam ovale-tudo epistemolgico; seriam os saberes indiferenciveis em termos de valor cognitivo.

    O socioconstrutivismo, a sociologia cognitiva da cincia, ao apregoar que toda (a) produo11

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    intelectual - o racional e o irracional, o verdadeiro e o falso - pode ser socialmente explicada(Cf. Bloor, 1991) se torna um apoio indireto ao especulativismo e ao retorismo. Ainda quesem o desejar, refora a viso, hoje em voga, de que nenhuma modalidade de pesquisa temcomo se sobressair como metodologicamente mais confivel. Se no possvel diferenciarepistemicamente os saberes, inevitvel que se transfira para a retrica o poder que a partir dacincia moderna foi conferido matemtica e ao mtodo emprico.

    No se pode negar que, no fundo, todas as questes, naturais ou sociais, acabamfazendo parte do que genericamente se pode qualificar de cincia do homem que , comobem a caracteriza Hume (1969, p. 43), o nico fundamento slido para as outras cincias.

    As diferenas entre o emprico, o formal e o retrico correspondem no s a diferentesformas de (pretenso) conhecimento, mas tambm a modos de o homem tentar dar sentido sua experincia histrico-vivencial global.

    Desde suas origens pr-socrticas, a filosofia substantiva acalenta a pretenso deelaborar, por meio apenas do pensamento puro, Teorias Totais da Realidade. Das regras do

    mtodo s teses metafsicas, passando pelas discusses ontolgicas, quase nada produzconsenso em filosofia. Na verdade, o fogo cruzado da polmica pouco intercmbio crticoefetivo promove entre as teorias filosficas. Na falta de um critrio de cognitividade, assimreconhecido e acatado por todas as Escolas, pode um filsofo reputar explicao embasada oque no passa de delrio especulativo retoricamente disfarado. Diante desse quadro, emalguns de seus mais lcidos momentos a filosofia se transforma em metafilosofia preocupadaem determinar se as questes filosficas so genunas e se as respostas dadas a elas geram defactoconhecimento.

    No tem uma filosofia justificativa para forjar seu prprio mtodo, tratar as questesclssicas como se fossem suas e julgar as diferenas com as outras luz de seus prprios

    pressupostos como se tudo isso no redundasse em intratvel incomensurabilidade entre ela eas alteridades. A incomensurabilidade evidencia que no preciso entronizar oexperimentalismo para reconhecer a infertilidade de muito do que se faz em filosofia. Opecado mortal do especulativismo no a falta de resultados prticos e sim o de usar retricasespeciosas para ocultar o vazio descritivo e o autismo explicativo. Passados sculos, cadaescola de filosfica continua avaliando de modo solipsista os conflitos interpretativos quemantm com as demais. Como se vises excludentes pudessem coexistir indefinidamente semhaver necessidade de compar-las objetivamente de modo a se optar justificadamente por umadelas. Como se a diaphonia, a contraposio explicativa, se dissipasse por meio da decretaoda isostheneia, da eqipolncia das razes. Como se a performance retrica superior fossesuficiente para justificar o endosso a uma delas.

    A falta de universalidade metodolgica leva ao enclausuramento, ao ismo auto-subsistente, sem que isso diminua a fora psicossocial da filosofia. A confuso conceitual e opoder explicativo nulo s prosperam porque, gerando a iluso de conhecimento, promovem aassuno de atitudes diante do mundo e da vida. O discurso desprovido de valor cognitivo queexplora significados expressivos tem enorme impacto psico-existencial por contribuir, entreoutras coisas, para estetizar, moralizar, ou simplesmente verbalizar, o desconhecimento que setem sobre quase tudo e sobre o Todo. A falta de vitalidade explicativa no impede que afilosofia, semelhana da religio e da arte, tenha o poder de formar conscincias ocupandoos vcuos explicativos deixados pela cincia.

    Mesmo no havendo a inteno de levar gua para o moinho dos que absolutizam as

    cincias formais e naturais, no se pode deixar de reconhecer que a insubmisso a critrios12

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    epistmicos rigorosos faz com que o debate filosfico degenere em pelejas puramente verbais.Quando posies antagnicas no tm como ser objetivamente avaliadas, a controvrsia setorna endmica. No se deve por isso confundir pluralismo explicativo, diversidade de ticaspassvel de arbitragem em termos de mritos relativos, com improfcuas disputas inconclusivas.

    O Princpio da Proliferao, da variao e multiplicao de perspectivas, salutar epode contribuir para o avano do conhecimento. Mas as polmicas que se arrastamindefinidamente impedem o progresso cognitivo por se desenrolarem de modos queinviabilizam a comparao objetiva que torna possvel a superao de resultados. O fato deinsightsmetafsico-filosficos eventualmente terem o poder heurstico, como sustenta Popper(1978, p. 187-8), de sugerir caminhos para a pesquisa emprica no lhes confere valor intrnseco.No sendo conhecimento, acabam confinados funo subserviente de inspirara produo deconhecimento.

    Tentar saber o que a realidade como abord-la, o que nela destacar e comohierarquizar suas formas de manifestao gera inevitavelmente discusses filosficas. No h

    como defender esta ou aquela forma de acesso realidade por exemplo, realista ou idealista recorrendo apenas a proposies empiricamente comprovveis. Pode-se chamar demetafsico o sistema de idias por meio do qual se define o tipo de abordagem que se faz dosfatos dispersos e fragmentrios que constituem o mundo. Optar por reduzir a realidade aoconjunto de suas aparncias ou, a contrariu sensu, identific-la com essncias abscnditas levaa modos excludentes de problematizar o que nela ocorre, de se posicionar diante dela e de secomportar nela.

    Determinar, por exemplo, o que no mundo existe por si mesmo, o que existe comoefeito de alguma coisa, o que particular finito e fugidio, o que eterno na sua universalidadeauto-subsistente, no tem como deixar de desencadear densas controvrsias. O problemtico

    no se ter como super-las. O que a verdade? Como distinguir a conduta certa da errada?Existe Deus? O que a natureza? Os eventos que se desenrolam no universo so expresses depropsitos csmicos ocultos ou apenas os efeitos inexorveis de foras naturais? Qual a relaoentre os fenmenos fsicos e os mentais? O que define uma sociedade justa e como a elachegar? Como arbitrar divergncias axiolgicas e como justificar a preferncia pordeterminadas atitudes morais? So absolutas as diferenas entre bem e mal? Fica o estudiosocondenado a um crcere conceitual ou lingstico quando adere a um sistema de idias? Deque tipo de liberdade pode desfrutar o homem? A que tipo de coero institucional deve sesubmeter para que a ordem social seja possvel? Sofre o homem a ao de determinismos queo impedem de ser um ente responsvel?

    O fato de essas e uma srie de outras questes no terem como ser respondidas

    recorrendo-se s tcnicas tpicas da pesquisa emprica adotadas pelas cincias maduras noautoriza o vale-tudo epistemolgico. A impossibilidade de se alcanarem respostas objetivas euniversais para elas no as condena a receber tratamento puramente retrico. Como noocorrem em filosofia destruies criativasque decretam a obsolescncia explicativa das teorias,tudo pode ser sempre retomado em outras bases. Nada h de anacrnico em algum hoje sedizer, por exemplo, platnico. Sempre que conseguiram se apropriar de problemas durantemuito tempo enfrentados pela filosofia especulativa, as cincias produziram exitosos resultadosexplicativos. S que nem todo desafio intelectual admite tratamento cientfico.

    O panorama da cultura contempornea est contaminado por um tipo dearrogncia intelectual que se revela ainda mais deletrio que o clssico ao substituir a

    imperiosidade da justificao epistmica pela liberdade da manipulao retrica. Se a teoria13

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    sobejamente testada e confirmada leva o pesquisador a ter a humildade socrtica dereconhecer que a qualquer momento algo pode surgir contra ela, como pode o filsofoespeculativo com empfia se apresentar como tendo conquistado a verdade e a certeza?

    Ainda pior a irresponsabilidade metodolgica do retorismo filosfico que supe possveldesvendar o complexo funcionamento da Realidade, ou de algumas de suas subtotalidades,por meio da livre associao de palavras.

    Por encararem o conhecimento como sendo edificado contra o senso comum, emtotal ruptura com ele, as filosofias racionalistas e idealistas so as que mais cometem o pecadoda soberba intelectual. Ambas tendem a pensar que se uma teoria for epistemicamente

    validada no estar sujeita a revises. Tirante os poucos falibilistas e os dedicados atividadede anlise conceitual, a luta filosfica se trava entre os que ingloriamente perseguem Certezas e

    Verdades e os cnicos que ardilosamente se devotam a apresentar como conhecimento o queno passa de prestidigitao verbal.

    J est mais do que na hora de a filosofia renunciar a alcanar um tipo de

    conhecimento supra ou transemprico. Teorias generalistas de primeira ordem que no tmcomo ser contrastadas com qualquer estado da realidade so destitudas de valor explicativo.No o que pensa, por exemplo, Hegel quando, em defesa da dialtica, considera amatemtica um sistema defeituoso de conhecimento por nela prevalecer o ponto de vistapuramente quantitativo - e desastrosa sua influncia sobre a filosofia. Adotando a Histriacomo modelo, Hegel (1969, 737; 2004) nela busca inspirao para defender a tese de que arealidade contraditria. Em sua opinio, quantidade e mensurao no so essenciais em

    virtude de no ser possvel medir pensamentos ou pesar idias. Para o idealismo hegeliano noh como confrontar o pensamento com a realidade por ser a realidade pensamento. E paraculminar, Hegel apregoa no que a verdade sobreo todo, um holismo defensvel, e sim que a

    verdade o Todo - um holismo que indistingue o epistemolgico do ontolgico.Talvez at para no dar a impresso de perda de abrangncia explicativa emcomparao com as religies e os mitos, a filosofia especulativa nasceu holista. Faz todosentido os pr-socrticos se devotarem busca da arch, do principio primeiro e fundamentala partir do qual todas as coisas se originaram. S que holismos como o de Hegel soepistemicamente refratrios a controles metodolgicos rigorosos. Combinam arrogncia eimpotncia explicativas. Na era da cincia a indigncia explicativa das Grandes TeoriasEspeculativas disfarada por meio de cativantes metforas sobre a condio humana. A

    Alegoria da Caverna de Plato prope um tipo de dualismo entre essncia e aparncia que, emdiferentes verses, se tornou recorrente no pensamento ocidental. O filsofo o arquelogoque escava, construindo conceitos por meio dos quais atravessa as camadas da iluso, at

    encontrar a Caverna e resgatar a espcie humana que l vive aprisionada. Ou o oftalmologistaque prescreve as lentes com as quais a humanidade logra enxergar o mundo comoefetivamente .

    3.A Alegoria da Caverna como Cnone Metafsico

    Na histria da filosofia ocidental a desmesurada ambio explicativa fica sempreaqum da capacidade de justificao epistmica. A filosofia nasce da constatao, entreoutras, de que as aparncias, o que se oferece observao imediata, podem se revelarenganosas. E da passa para a desqualificao geral e inapelvel do senso comum. Apegar-se

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    ao registro imediato das coisas estaria sempre errado, equivaleria a deixar de apreend-lascomo so para alm do que parecem ser.

    inegvel, como ressalta Descartes nas Mditations, que primeira vista, o solparece estar perto de ns e, no entanto, est longe. Parece pequeno e grande. As primeirasimpresses que formamos da Terra mostram que podemos incorrer em erros banais derepresentao: parece plana, mas redonda. Parece imvel, mas gira em torno de si e dosol. A vida social tambm geradora de obviedades enganosas. Para alguns, parececooperativa quando conflituosa e vice-versa. A filosofia especulativa se aproveita dessetipo de constatao para defender a contraposio entre completa ilusoe conhecimentoindefectvel. Isso a leva a propor teses chocantes como, por exemplo, a dos eleatas de que omovimento no existe.

    J em suas primeiras erupes as especulaes metafsicas no s aspiram a ser aVerdade sobre a Realidade como colocam de modo completo e inapelvel sob suspeitatodas as explicaes que derivem do verpor suporem que no alcanam o Ser. Pressupem

    que do que se v nada o que parece ser. O queo senso comum toma por realidade seriasua superfcie especiosa de aparncias. Por pensar a realidade baseando-se no que constata,o senso comum acusado de s produzir erros sistmicos de apreenso, categorizao econceituao.

    Os externalistas advogam que o pensar comum se engana quando se crautnomo, quando no se percebe determinado por fatores - poltico-econmicos ou sociaisem geral - extrnsecos a ele. As razes apresentadas pelo agente para sua conduta no so ascausas que efetivamente a determinam. Em sntese, a maioria das Grandes Filosofias exibepropenso a decretar que nada como (a)parecenem no mundo exterior dos objetos e nemno universo interior dos sujeitos. Chega a filosofia ao paroxismo da arrogncia quando

    desqualifica tudo para se credenciar a tudo explicar.A formulao de uma Teoria da Suspeio as pessoas no agem com base nosmotivos alegados e de uma Teoria da Iluso a realidade no o que parece ser demandam a elaborao de uma Filosofia capaz de apreender e explicar o serdo que estdentro e fora do homem. Talvez o sucesso das filosofias da suspeio e da iluso independentemente de se propostas separadas ou juntas - possa ser creditado ao fato demagicamente apontarem para poderes ocultos unificadores como explananspara o que seoferece de modo disperso e fragmentrio observao. At um materialista como Marx(1906) opera o tempo todo, tanto nas obras de juventude quanto em Das Kapital, com opressuposto de que a cincia seria suprflua se a essncia e a aparncia coincidissem. Asfilosofias mais influentes so as que propem Grandiloqentes Denncias Generalistas

    contra as Iluses Totais da Conscincia, as que se concedem o poder de conhecer a Verdadedesqualificando globalmente os modos comuns de pensar como redes de equvocossistmicos.

    O fato de no se ter como apreender de modo naturalista o que a realidade em si sem a mediao de molduras lingstico-conceituais contribui para a proposio de variadasontologias. comum se tomar alguma categoria de entidade - como os simplespostulados napassagem conhecida como Sonho de Scrates do Teetetode Plato (1965, p. 301-2) - comobsica ou fundamental. Ou como encarnao maior da Realidade ou do que a realidade temde essencial, reputando as demais entidades ilusrias, irreais ou menos reais. No planomental se apregoa que a conscincia se engana: suas aes no so determinadas pelos mveis

    que ela identifica como seus. E que at por auto-engano, a conscincia se v tomando decises15

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    que supe frutos de escolhas conscientes, mas que so resultados da atuao de foras sobre asquais no tem controle. Nesse tipo de esquema metafsico - que contrape o suposto e oefetivo, o aparente e o real - incumbe ao filsofo descobrir como se forma a teia de iluses ecomo possvel desvencilhar-se dela. Ao desnudar as iluses de realidade geradas peloscenrios fabricados, a filosofia desmonta o Teatro de Sombras. E para coroar esse pico dainteligncia, a filosofia mostra como deve ser dar o acesso Realidade.

    As teorias que tm se mostrado mais influentes pintam o homem como refm deforas que ultrapassam sua (boa) conscincia. No fundo, o ocidente filosfico nunca se livroudo domnio espiritual da Alegoria da Caverna de Plato (1952, 514a-515a), a mais bela peafilosfico-literria at hoje produzida. Nas filosofias que mais tm impactado os modos de ser epensar do homem recorrente a idia de que os grilhes materiais e simblicos so sistmicos.O pressuposto compartilhado de que a camada magmtica das foras determinantes no acessvel pela observao. Para alm de todas as iluses, natural ou artificialmente criadas, preciso buscar o que existe em si e por si mesmo, a essncia recndita que explica a epiderme

    visvel. S que essa sempre admirada tese de que os fatores ocultos provocam os efeitostangveis nunca foi minimamente comprovada. O que esse tipo de filosofia no fundo estatui que no h conhecimento do parecer, s do Ser. O autoconhecimento no existe; o que setoma por tal a (auto)conscincia alienada iludida e equivocada sobre si mesma. E o grave que a visibilidade diretamente acessvel se presta a esconder a determinao oculta.

    Freud destaca os enredos especiosos criados pela conscincia para lidar com o que lheescapa, com os mecanismos que a fazem ser diferente do que pensa ser. No fim da XVIII de suasConferncias Introdutrias, Freud (1922) declara que a nsia do homem por grandeza estagora sofrendo o terceiro e mais rude golpe desferido pela pesquisa psicolgica atualempenhada em provar ao ego de cada um de ns no ser ele sequer o dono de sua prpria

    casa; e que deve se contentar com as gastas sobras de informao sobre o que estacontecendo inconscientemente em sua prpria mente. Sendo assim, nem senhor de suamente o homem. Como observa Campbell (1990, p. 2), desde Freud e Jung temos perdido aconfiana na capacidade das explicaes racionais que damos de nossas motivaes e aes,de nossos projetos e compreenses, de revelar o que est realmente acontecendo. Nada,segundo essa perspectiva, influenciaria menos a conduta que as idias, que os produtos darazo.

    Para Marx (1904, p. 11-2), o autoconhecimento, o puro conhecimento de si, tambmno tem como ser alcanado: no a conscincia dos homens que determina seu ser; suaexistncia social que inversamente determina sua conscincia. S um Robinson Crusotentaria ter ou descobrir uma identidade pessoal independente da rede econmico-social da

    qual parte. S existe, no fundo, o conhecimento do processo histrico-social. A libertao seconquista contra a alienao que impede o sujeito de se perceber como membro -ontologicamente determinado - de uma classe social que lhe define o ser e o agir.

    Os exemplos de Marx e Freud indicam que o conhecimento, a superao dodesconhecimento de si, precisa partir de um desmascaramento das iluses referendado poruma explicao de como se formam e de como pode se dar sua eliminao. Isso significa queconfinado sua compreenso de sua existncia - sem a ajuda do conhecimento filosfico,sociolgico, psicolgico, econmico o homem est condenado a viver sob o domnio defantasmas que ele mesmo cria sobre sua condio. S por meio da Anlise ou fazendo aRevoluo pode se libertar dos grilhes simblicos ou materiais. Tudo isso, na verdade,

    parfrase do Mito da Caverna.16

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    A racionalidade no o que pensa espontaneamente o sujeito sobre si mesmo, sobresua conscincia e sua insero social. Como o homem permanentemente arrastado peloengano racionalizado, s conhecimento o que tem capacidade de furar a nvoa que recobreo Lebenswelt(o mundo da vida) para chegar explicao pela identificao dos determinantesocultos. Quando associado a interesses de classe, o erro visto como ideologicamentemotivado por ser causado pela (e para a) dominao poltico-econmica. E quando fruto dedeterminaes inconscientes representa o mascaramento que esconde o sujeito de si mesmo.

    Um erro pontual e especfico pode ser conjunturalmente flagrado e eliminado. J ailuso fomentada, por exemplo, por ignorar algum que sua identidade pessoal epifenmeno de sua situao de classe ou que sua conscincia desconhece os recalques que oinconsciente a faz ter no um equivoco circunstancial ou local; no tem como ser superadapela conscincia - por suas foras desassistidas - que vtima dela. Para o marxismo, o nicomeio de efetivamente se arrancar o vu da iluso do homem a revoluo que pe fim explorao. O nico procedimento capaz de diminuir o auto-engano da conscincia o

    processo de anlise conduzido luz do conhecimento psicanaltico.Defendemos a tese de que nas erupes mais pretensiosas da filosofia e das cincias

    sociais no ocidente pode-se encontrar a Alegoria da Caverna como substrato metafsico. Noque tem de explicativamente mais ambicioso, a filosofia ocidental reverbera o esquema depensamento presente no Mito da Caverna. O intelectual confere a si mesmo a capacidadeespecial, quase divina, de apreender o que escapa ao comum dos mortais: as gaiolas invisveis,o erro sistmico, a obnubilao coletiva, a iluso generalizada. S ele se d conta de que o quese toma por realidade nada mais que sua expresso externa fantasmagrica. E s ele sabeindicar como pode o homem se libertar dessa enganosa realidade.

    Ora, se a Caverna o crcere completo da conscincia, gerador de erros sistmicos

    totais, como seria possvel identific-la? Sendo o espao natural onde o homem vive, e nouma temporria locao na qual foi aprisionado, como perceber sua existncia, como saberque dentro dela so produzidas apenas representaes enganosas? Como se livrar da Cavernase nela que o homem naturalmente vive? preciso ter presente que a Caverna no apenasum modo (equivocado) de ver (as coisas) antes de tudo um modo enganoso de viver. Nofundo, se confunde com a realidade, com os modos de perceb-la, que subsiste no universo dasrelaes interpessoais.

    Existe arrogncia intelectual maior que a do pensamento que se considera capaz dedesvendar a existncia da Caverna das Iluses, do Crcere Total, na qual se desenrola o ver e o(con)viver dos homens? Na sua soberba inexcedvel o filsofo se credencia no s a detectar osmecanismos que no interior da Caverna geram a iluso permanente, mas tambm a aviar a

    frmula da libertao dos prisioneiros, que, por acaso, somos todos ns. Eis como se alcana opice da arrogncia especulativa: 1) a sobre-humana descoberta da Caverna das Iluses; 2) aconstatao de que o homem vive l como um prisioneiro sem assim se perceber; 3) aidentificao dos mecanismos responsveis pelas vises (especiosas) das coisas em seu interior;4) a denncia do mundo ilusrio, dos esquemas perceptuais por ele originados, que escraviza aconscincia; 5) a indicao da sada, do caminho da libertao.

    Constatar, explicar, denunciar e libertar: eis o que a filosofia se apresenta capaz defazer para impedir que o homem continue refm das sombras que o impedem de ver arealidade tal qual . A filosofia se aproxima um pouco da oniscincia e da onipotncia ao seconsiderar capaz de desmascarar o no-ser tomado por ser, de apreender o Ser e de libertar o

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    homem das teias invisveis que o enredam. H muito de religioso, de salvacionista, nesse tipode arrogncia filosfica.

    A despeito das dvidas que gera quanto sua capacidade de produzir alguma formade cognio, o esquema filosfico inaugurado pela Alegoria da Caverna acabou se tornandouma espcie de compulso repetio na metafsica especulativa. Est subjacente aosesquemas explicativos globais dos pensadores que se mostraram mais influentes no sculo20. Os sistemas filosficos que mais tm seduzido so os que decretam o fim do erro, dahistria e do mal. O sonho da conquista da Verdade Total sobre a Realidade aspira a afastarpara sempre o questionamento dubitativo, a desarmar a armadilha do erro, a banir o mal e ainjustia e a dissolver a cerrao que veda o acesso do pensar Realidade.

    A pretenso de algumas filosofias especulativas de chegar Verdade pressupe quepara alm dos espetculos cambiantes que a realidade encena se esconde a Realidade. E comosupem que a Verdade libertadora, encaram a identificao dos grilhes simblicos, e aexplicao de sua formao, como o que torna possvel a destruio das algemas de ferro.

    um tipo de filosofia que seduz por muito prometer: do conhecimento perfeito libertaopessoal e coletiva, passando pela conscincia transparente a si. E como bnus exime osindivduos de carne e osso suas decises e aes - pelas mazelas do mundo. Algo maior,sistmico, os ofusca e oprime e s uma apreenso dos determinantes estruturais,principalmente econmicos, ou uma terapia que alcance os subterrneos do psiquismo podeacabar com as fantasmagorias que levam aos encarceramentos materiais ou simblicos.

    As filosofias que sonharam com o fim da Histria entendido como o completodesaparecimento das iluses, a realizao da verdade no mundo ou fora dele - so herdeirasdo Mito da Caverna. A pretenso de inaugurar uma era de perfeito equilbrio, de prevalncia douniversal pela subordinao funcional e estrutural dos interesses particulares ao ideal do bem

    comum repete o esquema de pensamento que vincula a verdade libertao. Ao apreender arealidade qua tale, o homem se livra das fantasmagorias intelectuais e materiais que cria sobreela. E a conquista da verdade lhe permite realizar o Ideal no real. Pode existir roteiro filosficomais emotivamente cativante e mais cognitivamente simplista e pretensioso?

    Na falta de controles empricos, acaba a postulao de essncias recnditas edeterminaes ocultas quase sempre levando criao de teorias mirabolantes. A filosofiajamais disps de um mtodo que a credenciasse a produzir teorias que atravessem as diferentescamadas da realidade, furando os vrios vus das aparncias, para chegar plena e definitivacoincidncia com a Realidade, com o que nela h de invariante e/ou eterno. A anliseconceitual do discurso filosfico especulativo pode levar concluso de que as iluses deapreenso da realidadepor ele denunciadas nos modos comuns de ver so produtos de iluses

    de linguagemdo denunciante.Por no se contentar em identificar, compreender e ensinar a superar erros e jugos

    localizados, a filosofia especulativa aponta para as dominaes completas e as iluses totais. AsPrises Globais do Pensamento tm semelhanas de famlia com as instituies totais deGoffman (1961). Mas se a Caverna constitutiva do estar do homem no mundo, como seria aohomem possvel saber que est dentro dela? Como poderia saber-se iludido dentro dela,mape-la, entender como sua percepo funciona em seu interior e se dar conta de que vive seenganando? Sendo ela sua morada, como lograria o homem perceber que sombra o que nela

    v? E mais ainda: enquanto l estivesse no haveria como deixar de tomar por realidade o queno passa de fantasmagoria. Em termos evolucionistas cabe indagar se pode uma espcie

    enxergar seu habitat natural de modo totalmente equivocado sem correr o risco de sucumbir.18

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    Uma coisa ficar merc das foras adversas especficas na realidade na qual se vive, outrabem diferente no poder contar sequer com o instinto como guia primrio, j que tambmele faz parte do processo de iluso generalizada.

    Para poder contrapor a Realidade s fantasmagorias da Caverna, e lograr mostrar issoao homem comum, o filsofo precisa poder, j no ponto de partida, intuir a existncia daPriso para depois poder localiz-la e investigar o que ela e como as coisas se passam emseu interior. No tem como procurar, sem serendipidade, algo que alm de no saber o que no sabe se existe. Alm do mais, necessita estar ao menos parcialmente fora dela, conhecerainda que de modo nebuloso e parcial sua natureza, para poder dar incio ao processo de suarigorosa dissecao crtica.

    Caso faa parte da natureza do ser do homem comum viver na Caverna no temcomo deixar de ficar completamente condicionado s condies de existncia nela presentes.

    A filosofia proposta como um artifcio da inteligncia capaz de localiz-la e tirar o homem dedentro dela. Como no tem o homem comum como se dar conta de que tudo ali especioso

    por sempre tomar por realidade o que nela desfila como sombra o conhecimento que osalvar totalmente exterior a ele. No tem como se formar com base em vivncias. Serprovido pelos construtos filosficos apartados do mundo da vida. Sendo seu modo de perceberas coisas determinado por sua insero na Caverna ou seria na Sociedade? no tem comosaber que vive nela iludido. No tem como se aperceber de quo precrios so seus registrosperceptuais na situao em que nela vive. Mesmo porque precisaria (se) ver fora da Cavernapara se perceber seu refm. O homem no tem como se dar conta do que independentemente de se fruto do erro ou da iluso se incorpora a seu ser como seconstitusse sua natureza.

    O fascnio exercido pela filosofia especulativa deriva de se apresentar como capaz no

    s de apreender determinaes ocultas, totais, como de prescrever o modo de super-las; suaarrogncia se expressa como poder de identificar algemas ocultas e de produzir o ferramentalpara destru-las. Sendo assim, acima do saber instrumental da cincia se situaria o saber dafilosofia que emancipa o homem dos jugos simblicos e materiais. Psicanaliticamente falando,a filosofia especulativa pode ter inventado a Caverna para criar um esquema de pensamentoque se aplica a objetos e sujeitos com a promessa de explicar os primeiros e libertar ossegundos. A metafsica pode ter concebido uma entidade aprisionadora fictcia para seapresentar como capaz de conhec-la e de libertar os que ela diz que l vivem. Sendo assim, alibertao metafsica a libertao da prpria metafsica.

    Se a iluso denunciada man-made, fruto de uma elaborao (histrica) humana, eno de determinantes naturais, poderia no ter se formado. E se produto da mente humana, o

    que fez com que se formasse? Se a razo filosfica liberta o homem de si mesmo, de fices queo transformam em ttere de si mesmo, ento a Caverna uma metfora de como ele forjarealidades que o oprimem e menos de como destruir as aparncias naturais para que o Serpossa ser visto como .

    Se o exlio na Caverna visto como histrico, como o para Marx, pode o filsofo seapresentar como provedor do conhecimento cuja aplicao tem o condo de promover areestruturao radical da vida social, a inaugurao de uma Nova Histria. Marx discpulo dePlato: sabe onde est a Caverna, conseguiu fazer seu mapa detalhado e se prope no apenasa ensinar aos homens sua geografia como tambm a lider-los no processo de libertao delese de destruio da Caverna com as dinamites da revoluo. A transio do capitalismo para o

    socialismo significa, para Marx, o fim da pr-histria, a passagem da falta de controle do19

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    homem sobre si, da alienao, para o desenvolvimento plenamente consciente dahumanidade.

    Se for eterno ou intemporal o aprisionamento na teia das iluses, como o paraShopenhauer (1962), o viver depreciado como uma inutilidade marcada por sofrimento edor. Se, como prega Plato, a Realidade um mundo diferente daquele no qual vivemos umMundo de Idias totalmente apartado deste - o crucial passa a ser saber como ir, por meio dadialtica ascensional, de um para o outro.

    Ainda que sejam mais rentveis por suas aplicaes, as construes intelectuais que selegitimam pela racionalidade instrumental - pelo controle preditivo de alguns tipos defenmeno so muito menos atraentes que as catrticas retricas religiosas, filosficas ouliterrias. Com sua enorme capacidade de plasmar conscincias, forjam discursos queinvocam intangveis existncias, essncias e transcendncias para guiar as conscinciassugerindo-lhes modos de pensar. O uso expressivo que fazem da linguagem pode lhes dar opoder de exorcizar fantasmas mentais que se tornam reais.

    O ser humano se defronta com problemas pessoais e sociais diante dos quais lhe cmodo acreditar na pregao de que refm de um sistema de iluses e dominaes doqual pode se libertar pelo pensamento crtico ou pela prxis revolucionria ou pelacombinao de ambos. As filosofias que adaptam o Modelo da Alegoria da Caverna elaborammetforas sobre a condio humana que proporcionam o placebo da catarse verbal. O modelofilosfico que articula pensamento-denncia e prxis libertadora tem sido proposto em

    vrias verses. Seu sucesso se deve, entre outras causas, ao fato de gerar a impresso deprover uma completa compreenso do que o homem tem de essencial. E se estiver criandouma meta-iluso em nome do combate a uma iluso real e estrutural?

    O aprisionamento da alma na Caverna das Iluses demanda um extenso e penoso

    processo que vai da tomada de conscincia da servido ao herico e sofrido pico dalibertao. Independentemente de se esse processo se d no plano individual ou social,pode-se dizer que de Plato a Freud, passando por Marx, a busca de conhecimento umaatividade que s atinge seu objetivo maior quando destri iluses sistmicas. interessantenotar que o retrato pessimista da condio (de aprisionamento) em que se encontra ohomem compensado pelo otimismo com que se acena para sua parcial ou total redeno.

    As foras que produzem a cegueira, a iluso e a dominao o sensvel para Plato, oinconsciente para Freud e o modo de produo capitalista para Marx podem ser colocadassob total controle, como em Plato e Marx, ou parcialmente domesticadas como em Freud.

    As sombras do sensvel podem ser vencidas pelo inteligvel, a explorao capitalista peloigualitarismo comunista e as pulses do inconsciente podem se tornar ao menos

    parcialmente acessveis conscincia.O grande sucesso alcanado pelas filosofias arrogantes deriva de prometerem a

    destruio dos mecanismos sistmicos geradores das contrafaes simblicas e de seusefeitos materiais; de prometerem a libertao dos indivduos de algemas que no soconstrudas ou colocadas por eles mesmos. As filosofias que atribuem todos os males domundo a engrenagens de um Sistema - ou de um subsistema como, por exemplo, oeconmico levam o ser humano a pensar que para ser muito melhor do que tem sido noprecisa passar por profundas reformas internas por ele protagonizadas. Pode inclusivedelegar a misso ao lder carismtico, vanguarda revolucionria ou a seu analista. Nessecaso, a proposta inicial de libertao baseada no saber pode desaguar na pura e simples

    subjugao ao poder camuflado com pseudo-saber.20

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    Se nem mesmo os avanos da cincia moderna lograram esvaziar a influncia doesquema de pensamento centrado na oposio iluso/realidade, modelarmente encarnadopela Alegoria da Caverna, porque as metodologias objetivistas no se aplicam aosproblemas da vida. Depois de Galileu a cincia foi crescentemente se especializando, seconfinando resoluo depuzzles, e os grandes temas da existncia humana continuaram nasmos da religio e da metafsica. S que a importncia vital dos assuntos metafsico-existenciaistem servido para preservar o poder psicossocial da filosofia especulativa. A crise intelectual denosso tempo conseqncia de as grandes questes humanas darem fama a SistemasFilosficos e Teorias Sociais que incorrem nas prestidigitaes do retorismo.

    4. A Filosofia: De Denunciante a Denunciada

    A despeito de se mostrarem explicativamente pretensiosas, as proposies dafilosofia especulativa so normalmente pseudodeclarativas: tm a forma das declarativas,

    parecem fazer referncia a estados da realidade sem que de fato o faam, parecem poder serverdadeiras ou falsas sem que existam as evidncias possveis que permitiriam a elas atribuirvalores-de-verdade. No texto tpico da metafsica especulativa a funo referencial dalinguagem s aparentemente cumprida; no fundo, predomina a funo expressivalastreada na criao de significados emotivos.

    Mesmo quando nada asseveram de contrastvel com a realidade, os enunciadosfilosficos substantivos expressam apesar de nominalmente se reportarem a coisas - maisestados do sujeito que fatos sobre os objetos. Ajudam a entender mais quem os produz equem os aceita o que, por exemplo, os motiva - que a realidade supostamente referida. Daseu sucesso. Mais que conhecer, a metafsica fala do Ser para fazer o homem ser de

    determinados modos. Por mais que na maioria dos casos no chegue a cognies, ametafsica prope vises que sugerem posicionamentos diante da vida. Ainda queexplicativamente nulos, os grandes sistemas de idias se destacam por definirem modosgerais de percepo da realidade.

    No tratamento dos assuntos humanos em geral, e especialmente nos que semostram mais suscetveis de politizao, estetizaoou moralizao, a capacidade retricase revela mais decisiva que a argumentao lgica e a evidncia emprica. comum ateorizao destituda de valor cognitivo, principalmente a que faz a confuso de linguagemparecer compreenso profunda, deter um poder psicossocial proporcional iluso deconhecimento que gera. Mais que buscar genunas explicaes, plasmar e direcionar asconscincias pela retrica o objetivo do poder intelectual perseguido por uma linhagem de

    pensadores que vai dos sofistas aos ps-modernistas, passando pelas diferentes estirpes derelativistas. Em tempos de retorismo no apenas os juzos sobre o belo e o bom sorelativizados, mas tambm os sobre a cognio (Cf. Boghossian, 2006).

    Ao assumir desde suas origens a funo de denunciante dos modos comuns depensar, o saber filosfico se tornou intelectual e politicamente poderoso. A despeito dasdebilidades epistemolgicas de suas teorias substantivas, a filosofia raramente se declarousocraticamente incapaz de gerar conhecimentopositivo. Tampouco procurou ser modestaem suas pretenses explicativas. Poucos foram os pensadores que adotaram posio crticadiante da desmesurada ambio da filosofia de conquistar verdades e certezas por meio darazo pura. E poucos reconhecem que boa parte dos modos de fazer filosofia est sujeita a

    passar da condio de denunciante de denunciada. Os que ousam fazer isso procuram21

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    mostrar que mais que erradas ou falsas as teorias filosficas consagradas a desmascarariluses podem ser desnudadas como compostas de proposies destitudas de significado(cognitivo). Podem, in extremis, se revelar incapazes, como afirma Schlick (1960, p. 86), atde comunicar alguma coisa: o que o empirista diz ao metafsico no o que voc diz falso, mas o que voc diz nada consegue asseverar. No o contradiz, mas diz eu no ocompreendo.

    A despeito de compatveis com qualquer estado de coisas, as teses da metafsicaespeculativa atuam sobre os estados dos sujeitospela inoculao de esquemas de percepo darealidade. Quando esto em questo as coisas humanas, mesmo as proposies desprovidas designificado (cognitivo) so significantes em termos psicossociais. Em tempos de cincia dura,estribada no experimental e no quantitativo, e de discursos qualitativos e valorativos sobre osaflitivos e momentosos temas humanos, a questo fundamental determinar o peso do papelcumprido respectivamente pelas regras inferenciais da lgica, pelas evidncias empricas e pelaretrica no desencadeamento de aes. Cabendo em muitos casos, como na matana

    ideolgica do sculo 20, julgar eticamente as filosofias pelas conseqncias que provocam.A modstia intelectual resultante da conscincia das limitaes da razo e da

    precariedade dos procedimentos de justificao no tem o mesmo apelo (psicossocial) doesquema de pensamento que se diz capaz de libertar o homem de suas prises internas eexternas. Na modelagem da ao humana a verbalizao racionalizada de emoes esentimentos mais poderosa que a cognitividade. Textos sobre o ser e viver do homem queficam na fronteira entre a filosofia e a literatura so mais influentes, em termos psicossociais,que teorias cientficas que sobrevivem a testes e resolvempuzzlesespecficos. Por essa razo, errado supor que a arrogncia intelectual sempre se confunde com a pretenso deconquista da Verdade. Atualmente sua forma mais comum a do fetichismo verbal ou do

    teorismo ventoso que no se deixa afetar pelo que e pelo que ocorre no mundo.A arrogncia intelectual se faz mais fortemente presente nas derivaes metafsicas daAlegoria da Caverna que se dizem produtoras do conhecimento certo, construdo contra osenso comum, que liberta o homem dos simulacros que o assombram e escravizam. Afilosofia platnica a expresso maior da pretenso de se chegar Explicao Totalpropiciadora da libertao espiritual do homem. Mas enquanto o platonismo desqualifica omundo sensvel como um teatro de sombras sobre o qual nada se logra conhecer - e seconsidera capaz de apontar o caminho, e ensinar a trilh-lo, que leva ao transcendenteMundo das Idias - a pregao ps-modernista nada mais faz que propor a substituio doMundo das Idias pelo Mundo das Palavras. Pensadores srios no podem acreditar que teias

    verbais sem significado (cognitivo) so uma alternativa hipostasiao das Idias em um

    Mundo auto-subsistente.A atual crise intelectual conseqncia de o abismo entre as cincias, empricas e

    formais, e o exoterismo no ser preenchido por um saber filosfico que dispense tratamentoconfivel a seus problemas, principalmente os atinentes ao significado da existnciahumana. A despeito de seus extraordinrios avanos, a cincia no tem autoridade paradecretar a inutilidade e a obsolescncia da filosofia. Para faz-lo, precisaria ter competnciapara destrinar ela mesma as questes da filosofia. Mas o fato de no ser possvel aplicarabordagens objetivistas a determinadas constelaes de problemas no legitima o retorismo,o contrabando de componentes emotivos e ideolgicos pelas fronteiras do discurso vazio.

    Por no impor uma e apenas uma leitura, o texto aberto permite que o leitor dele

    extraia o que se mostra afinado com suas expectativas e predisposies; pode o simpatizante22

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    de certas obras filosficas apreender, sem lograr nada aprender, o que lhe apraz. No huma e apenas uma compreenso do Sein und Zeit e do Ltre et le Neant que possa serimposta como a certa. Espanta que na filosofia especulativa teses contrrias e contraditriasconvivam sem que surja o clamor por arbitragem epistemolgica. Como se, longe decolocarem um desafio epistemolgico, a diversidade e a multiplicidade de ticas fossemapenas a expresso e a assuno de diferentes atitudes diante da existncia.

    Nas mos de bons escritores, a frouxido sinttica das lnguas naturais propicia ocativante exerccio (pseudo)literrio da filosofia. S que assim cultivada, a filosofia tem derenunciar a erguer pretenses de verdade para suas asseres. A literatura no precisa sesubmeter a cancelas metodolgicas para que suas obras encerrem valor esttico, mas para serconhecimento a filosofia no tem como evit-las. Como a boa literatura no e no temobrigao de s-lo conhecimento stricto sensu, a filosofia ao se fundir com ela passa a ser umhbrido sem cognitividade.

    No cabe atribuir ao cientificismo a inspirao das crticas dirigidas filosofia e sim

    tendncia a reduzi-la, fora dos crculos da filosofia analtica, a especiosos jogos verbais. Oproferimento de falsidades no pernicioso em razo de poderem a qualquer momento seridentificadas; sem falar que sua superao costuma fazer o conhecimento avanar. J oscontorcionismos retricos prestam um desservio ao saber ao simularem conquistar verdades eser confundidos com douta profundidade. Preocupam-se apenas em tornar atraente o dizerdeixando de submet-lo a qualquer controle lgico ou a qualquer crivo emprico.

    Afirma Schopenhauer que no passam de brincalhes ou fanfarres, para no dizercharlates, esses pensadores que se consideram capazes de conhecer as razes primeiras eltimas de tudo quanto existe, de identificar a natureza do Ser primordial e absoluto.Concordando com essa avaliao, como qualificar os que simulam conhecer alguma coisa

    por meio de malabarismos retricos? O esbulho do retorismo costuma ser pouco percebidoporque os assuntos humanos propiciam a formulao de teorias que conseguem secolocar margem de controles metodolgicos primrios. Impotentes para conhecer objetos,o especulativismo e o retorismo se voltam para a direo dos sujeitos.

    A parte da filosofia que enveredou pelo retorismo o fez por ter optado pelo niilismoepistmico. A que fez autocrtica preferiu se dedicar anlise conceitual. Um terceiro segmentoprops que a filosofia optasse pelo suicdio com ataraxia. Com empfia negativa a filosofiaproclama seu prprio fim. Seu ato final de arrogncia a decretao do fim de sua histria.Nada desbancou a filosofia, nenhum campo do saber a superou; a ela coube proclamar seuprprio fim. Filosoficamente conduzida, a anlise da linguagem, encarregada de identificar asfontes das enfermidades epistmicas do filosofar, a palavra final da filosofia sobre si mesma e

    sobre suas questes e resolues.Para os vrios filsofos que propuseram a eutansia da filosofia o ltimo ato da

    filosofia o grande final do enredo filosfico - seria ela mesma demonstrar que no temcondies de continuar a existir sem criar esbulho intelectual. Os que a supem morta, seapresentam como capazes de levar a cabo sua autopsia epistmica; os mais moderadoscontinuam defendendo sua existncia s que sugerindo duras profilaxias que a reduzem anlise conceitual. Entulhada de vises e concepes, a filosofia precisa diuturnamente fazerum balano sobre si mesma para remover os dejetos explicativos e os equvocos que elafomenta sobre si mesma. Ela a nica capaz de dissolver os pseudoproblemas que ela mesmagera. Mais que uma produo de doutrinas, de teorias sobre o mundo, a filosofia uma

    atividade dedicada formulao, e a tentativas de resoluo, de questes de segunda ordem.23

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    Mesmo quando nada lhe cabe dizer, pode muito bem mostrara existncia do inefvel o dasMystichewittgensteiniano - e propor o silncio sbio diante dele...

    5) A Dissecao sem fim: Interpretar Preciso, Conhecer, noPor ser difcil comparar teorias filosficas, estabelecendo mritos relativos, tem

    crescido o nmero de praticantes de uma neo-escolstica dedicada a exegeses cada vez maismicroscpicas do pensamento de grandes filsofos. A dificuldade de fazer contribuiesoriginais depois do Milagre da Filosofia Grega e das inmeras parfrases ao longo dossculos - tanta que a maioria dos profissionais da filosofia se devota a minuciososexerccios hermenuticos sobre passagens fundamentais das obras de grandes pensadores.H um nmero impressionante de livros e artigos tentando introduzir uma nova leitura,contrria viso tradicional, de um filsofo consagrado. Esforam-se para mostrar queaquilo que o grande filsofo quis efetivamente dizer envolve conhecer minudncias s

    apreensveis por especialistas que dedicam toda uma vida obra dele. Ora, se textosfilosficos merecem re-interpretaes ao longo do tempo menos porque foram mal lidos emais porque esto embebidos de multivocidade. A equivocidade suscita os maisapaixonados e espiralados exerccios hermenuticos dos interpretativistas.

    No mundo acadmico visto como sinal de scholarshipconhecer a fundo um autorou um ismo. No sendo capaz de gerar conhecimento sobre segmentos especficos darealidade, uma sada para o filsofo tem sido se apresentar como profundo conhecedor deoutro filsofo. Montaigne (1948, Livro III, p. 316-7) com propriedade assinala que maistrabalhoso interpretar as interpretaes que interpretar a prpria coisa; mais livros soescritos sobre livros do que sobre qualquer outro assunto; contentamo-nos em glosar uns aos

    outros. De Montaigne aos dias de hoje, a tendncia ao (meta)interpretativismo s tem feitoaumentar e o principal sintoma da atual falta generalizada de originalidade.Tendo vivido em uma poca em que a reconstruo do pensamento do grande

    filsofo j era uma obsesso, Montaigne de forma custica aponta o excesso decomentadores e a escassez de autores: o principal e mais famoso saber de nossos sculosno consiste em saber entender os sbios? No esse o fim comum e ltimo de nossosestudos? ferina sua observao de que nossas opinies sustentam-se mutuamente, de talforma que uma serve de degrau outra, outra e assim sucessivamente (...) e quem sobemais alto atinge freqentemente mais reputao que mrito, pois no fez seno subir umtimo sobre as costas de quem vem logo abaixo.

    Todos esses comentrios se aplicam de forma modelar ao que ocorre na cultura

    (acadmica) contempornea. Fazer exegese da exegese da exegese equivale a praticar umahermenutica que poucas vezes escapa da esterilidade. Lamentavelmente, essa tendncia aoanatomismo, necropsia das idias, tem tambm tomado conta da bibliografia filosficabrasileira. O emprego retorista do jargo filosfico disputa espao com as interminveisexegeses do pensamento dos grandes filsofos. muito mais fcil brincar com as palavras emuito mais seguro comentar as filigranas de textos consagrados que se aventurar, comdiminuta chance de sucesso, pelo caminho pedregoso do filosofar inovador. No Brasil, algunsprofissionais da filosofia, imitando pseudopenseursfranceses, adoram se proteger da instvel esurpreendente realidade com blblbl pomposo; supem possvel compensar a falta decriatividade com verbalismo ou comentarismo. Passam a vida toda dissecando a obra

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    grandiosa, por exemplo, de Plato, Aristteles, Descartes, Kant e Hegel por incapacidade deelaborar seu prprio arroz-com-feijo filosfico.

    Pode ter valor heurstico releruma grande obra, mas mais importante que saber oque um autor clssico da filosofia quis efetivamente dizer, depois de j ter sidoexaustivamente analisado, formular novos conceitos, fazer com que uma idia fertilizeoutra; s isso faz o conhecimento avanar. Por subsistir incomensurabilidade entre ascorrentes filosficas, o comentarismo uma forma de esconder o enclausuramento, o exlioem um sistema de pensamento. Com isso, deixa de se colocar o desafio do intercmbiocrtico que, no fundo, o mecanismo mais eficiente para se identificar objetivamente as

    virtudes e os defeitos conceituais e explicativos de cada escola de pensamento.Hoje, a filosofia no tem como se apresentar como a rainha das cincias. J no lhe cabe

    mais produzir teorias unificadoras sobre as diversas explicaes alcanadas em domniosespecficos da pesquisa cientfica; no tem como se propor a chegar a concluses gerais sobreos resultados especficos que elas obtm. Da uma das formas mais profcuas de filosofar,

    reflexo da modstia epistmica, ser a que d nfase, no melhor estilo kantiano, investigaodas condies de possibilidade de coisas como o conhecimento, a moralidade, a sociabilidade,o belo etc. Alm de se devotar percuciente anlise conceitual, o desafio da boa filosofia refletir, por meio de metateorias, sobre a natureza da cincia, da arte, da moral, da sociedade,da poltica, da religio etc. Diante dos avanos da cincia deve a filosofia evitar assumir posturasaudosista e passadista a favor da razo contemplativa. E mais ainda repelir, contra os neo-sofistas, a logomaquia.

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