1. adoÇÃo e famÍlia -...

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9 1. ADOÇÃO E FAMÍLIA A palavra adoção vem do latim adoptione, que significa “considerar, olhar para, escolher” (Weber, 1999, p.100). A literatura indica que a adoção vem sendo praticada desde os tempos mais remotos, não sendo, portanto, um traço característico das modernas estruturas sociais. Apesar de pais e filhos adotivos existirem há muito tempo, o tema “adoção” foi sempre um pouco obscuro, visto geralmente como uma questão da intimidade da família (Weber, 1999). Segundo Gomide (1999) a adoção foi tratada tradicionalmente no bojo da filantropia e da assistência social, e até pouco tempo raros eram os estudos sistemáticos sobre o assunto, o que, de acordo com Weber (1999), trouxe como conseqüência a generalização de casos dramáticos e a formação de preconceitos e estereótipos. A literatura internacional sobre adoção começou a se expandir principalmente na década de 1980, quando houve a divulgação de uma série de obras sobre o tema nas áreas de psicologia e psicanálise. A partir da década de 1990 começou a ser produzida também uma literatura nacional sobre adoção, tendo sido discutida e debatida entre técnicos, assistentes sociais, psicólogos e pais adotivos (Abreu, 2002). Atualmente percebe-se uma crescente produção nacional e internacional sobre o tema, com a sistematização de dados obtidos através de pesquisas e experiências profissionais, tendo como foco diferentes aspectos do processo adotivo. 1.1. Adoção: um pouco de história A adoção vem tendo diferentes significados, características e objetivos ao longo da história e em diferentes culturas. O mais antigo conjunto de leis sobre a adoção conhecido está registrado no Código de Hammurabi (1728-1686 a.C.), e reflete a sociedade mesopotâmica do II milênio a.C. Esse Código autorizava uma mulher estéril a cuidar dos filhos nascidos de seu marido com outra mulher escolhida por ela (Cole e Donley, 1990, citados por Weber, 2001). Na Grécia e na Roma antigas a adoção era um instrumento de poder familiar. Como a herança só podia ser deixada para um descendente direto, aqueles que não tivessem filhos poderiam adotar, de modo que o adotado tornava-se um filho legítimo. Assim, a adoção era uma forma de dar ao chefe de família a possibilidade de escolher um sucessor, sendo um último recurso para a família escapar da extinção e perpetuar sua linhagem (Abreu, 2002).

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1. ADOÇÃO E FAMÍLIA

A palavra adoção vem do latim adoptione, que significa “considerar, olhar

para, escolher” (Weber, 1999, p.100). A literatura indica que a adoção vem sendo

praticada desde os tempos mais remotos, não sendo, portanto, um traço

característico das modernas estruturas sociais. Apesar de pais e filhos adotivos

existirem há muito tempo, o tema “adoção” foi sempre um pouco obscuro, visto

geralmente como uma questão da intimidade da família (Weber, 1999).

Segundo Gomide (1999) a adoção foi tratada tradicionalmente no bojo da

filantropia e da assistência social, e até pouco tempo raros eram os estudos

sistemáticos sobre o assunto, o que, de acordo com Weber (1999), trouxe como

conseqüência a generalização de casos dramáticos e a formação de preconceitos e

estereótipos. A literatura internacional sobre adoção começou a se expandir

principalmente na década de 1980, quando houve a divulgação de uma série de

obras sobre o tema nas áreas de psicologia e psicanálise. A partir da década de

1990 começou a ser produzida também uma literatura nacional sobre adoção, tendo

sido discutida e debatida entre técnicos, assistentes sociais, psicólogos e pais

adotivos (Abreu, 2002). Atualmente percebe-se uma crescente produção nacional e

internacional sobre o tema, com a sistematização de dados obtidos através de

pesquisas e experiências profissionais, tendo como foco diferentes aspectos do

processo adotivo.

1.1. Adoção: um pouco de história

A adoção vem tendo diferentes significados, características e objetivos ao

longo da história e em diferentes culturas. O mais antigo conjunto de leis sobre a

adoção conhecido está registrado no Código de Hammurabi (1728-1686 a.C.), e

reflete a sociedade mesopotâmica do II milênio a.C. Esse Código autorizava uma

mulher estéril a cuidar dos filhos nascidos de seu marido com outra mulher escolhida

por ela (Cole e Donley, 1990, citados por Weber, 2001).

Na Grécia e na Roma antigas a adoção era um instrumento de poder familiar.

Como a herança só podia ser deixada para um descendente direto, aqueles que não

tivessem filhos poderiam adotar, de modo que o adotado tornava-se um filho

legítimo. Assim, a adoção era uma forma de dar ao chefe de família a possibilidade

de escolher um sucessor, sendo um último recurso para a família escapar da

extinção e perpetuar sua linhagem (Abreu, 2002).

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Nessa época a adoção também tinha como objetivo atender a um princípio

religioso. Gregos e romanos acreditavam que os mortos exerciam uma grande

influência sobre os vivos, e para que as relações entre mortos e vivos pudessem

ocorrer de maneira conveniente, era realizado pelo chefe de família um culto aos

ancestrais. E como apenas os homens podiam realizar esse culto, a adoção permitia

que a família de um homem sem descendência masculina pudesse perpetuar as

homenagens aos que haviam partido (Abreu, 2002).

Por meio da adoção era possível ainda criar um laço de parentesco entre um

pai e seus filhos ilegítimos, e também possibilitar a ascensão de um indivíduo a uma

posição social superior, como, por exemplo, um plebeu tornar-se patrício (Robert,

1989, citado por Weber, 2001).

A adoção realizada com objetivos políticos também era muito comum na

antigüidade. A adoção permitia que um homem adquirisse a condição de pai de

família, exigida por lei, para ocupação de cargos públicos, e era também uma forma

de continuar a tradição política de uma família. Na história de Roma a adoção teve

um papel importante na formação de dinastias governantes, pois muitos imperadores

e governantes romanos foram adotados ou adotaram (Veyne, 1990; Fulchiron e

Murat, 1988; citados por Weber, 2001).

No direito romano, base inspiradora do direito ocidental, havia três tipos de

adoção: a adrogatio, a adoptio, e a adoção por testamento. Através da adrogatio um

chefe de família podia adotar uma família inteira, de modo que o adotado (ad-

rogado) entrava com toda a sua família para a família do adotante (ad-rogante).

Essa forma de adoção era um ato de direito público, e mexia com a estrutura da

sociedade, pois além de extinguir famílias, ela permitia um ganho de poder dentro da

comunidade por parte de quem adotava. Para que a adrogatio acontecesse o ad-

rogante não podia ter filhos, e nem ser capaz de gerá-los, e era realizada uma

audiência pública, sendo necessário haver o consentimento do ad-rogante, do ad-

rogado e do povo (Abreu, 2002).

A adoptio era um ato de direito privado, e tinha bem menos importância

política, econômica e religiosa que a adrogatio, pois apenas o adotado era

submetido ao pátrio poder do adotante, ficando a família do adotado desvinculada

do ato. Através da adoptio um homem podia adotar meninos ou meninas, de mesma

nacionalidade ou estrangeiros, por meio de escritura em tabelionato, sendo a

transação realizada entre o pai biológico e o adotante, sem necessidade de

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participação e concordância popular. A única condição era que o adotante tinha que

ser pelo menos 18 anos mais velho que o adotado. Essa forma de adoção objetivava

encontrar pessoas capazes de continuar o nome da família, perpetuar o culto aos

ancestrais, ou então dar uma criança a um casal sem filhos (Abreu, 2002).

Segundo Abreu (2002) não se sabe ao certo como funcionava a adoção por

testamento, mas um exemplo desse tipo de adoção é o fato de Júlio César ter

adotado Otávio através de seu testamento, conferindo-lhe o uso do nome e o

privilégio de ser filho de César.

Abreu (2002) afirma que nas sociedades muçulmanas não era (e em algumas

ainda não é) permitida a adoção, pois esta prática social teria sido proibida por Alá.

De acordo com o Corão, “... Dos filhos adotivos de vocês, Ele (Alá) não os fez filhos”

(citado por Abreu, 2002, p.142). Assim, apesar de a lei ter recebido diversas

interpretações nas sociedades muçulmanas, a adoção adquiriu prioritariamente uma

imagem ofensiva e negativa, tanto para quem adota como para quem é adotado.

A literatura indica que durante a Idade Média a adoção entrou em declínio. A

cristianização da Europa gradativamente acabou com o culto aos mortos, e a

necessidade de adotar alguém para que essa função fosse desempenhada perdeu o

sentido. Além disso, os filhos adotivos eram desinteressantes para a Igreja, pois a

sua existência não lhe permitia exercer o direito sobre a herança. A Igreja, que

exerceu grande influência religiosa e política na época, entendia a adoção como

uma forma de legitimar filhos bastardos, e também como um meio de as pessoas

terem filhos para ampará-las na velhice sem ter que recorrer ao matrimônio (Weber,

1999; Abreu, 2002).

Na Idade Média a linhagem passou a estar estreitamente vinculada aos laços

sangüíneos, e a nobreza, que era o fundamento da ordem política e social, era

considerada hereditária. A adoção era contrária ao sistema de feudos presente na

época, no qual eram seguidos de forma estrita os termos de consangüinidade, com o

direito feudal considerando imprópria a convivência entre senhores e rústicos ou

plebeus em uma mesma família. Assim, a ideologia consangüínea da Europa

medieval acomodava muito mal a adoção, de modo que entre 800 e 1800 há um

verdadeiro eclipse das diversas legislações referentes à adoção (Abreu, 2002;

Weber, 1999).

Apesar de não existirem registros precisos sobre adoção na Idade Média,

Ariès (1981) ressalta que nessa época era comum famílias de algumas regiões

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européias enviarem seus filhos para casas de outras famílias. As crianças

permaneciam em suas próprias casas até cerca de 7 anos, depois iam morar na

casa de outras pessoas, onde desempenhavam funções domésticas. Isso tinha

como objetivo a educação e socialização das crianças, pois se entedia que a criança

deveria ser misturada aos adultos para aprender a vida diretamente, através do

contato com eles. Essa era a forma de transmissão dos valores e do conhecimento.

Segundo Ariès (1981), durante a Idade Média a família era uma realidade moral e

social, mais do que sentimental, e somente a partir do século XVII houve uma

mudança considerável em relação ao tratamento da criança. A partir do século XVII

houve uma maior aproximação das crianças com suas famílias, e a família acabou

modificando-se na medida em que começou a se organizar em tono da criança e a

lhe dar uma grande importância. Porém, apesar dessa transformação nas relações

familiares no que se refere à criança ocorrida a partir do século XVII, a prática de

entregar os bebês para serem criados por amas de leite se manteve até o fim do

século XIX, ou seja, até quando o leite animal passou a ser utilizado sem restrições

na alimentação das crianças.

A adoção reapareceu de forma discreta na Europa no final do período

medieval, e em 1804 a adoção como prática prevista pelo direito volta aos códigos

europeus, primeiramente ao Código de Napoleão, no direito francês. Como

Napoleão não tinha filhos, ele fez pressão pessoal para que a adoção entrasse no

Código Civil, pois queria deixar descendência (Abreu, 2002). Porém, nesse período

a adoção apresentava uma regulamentação bastante rígida, sendo utilizada

principalmente para fins de sucessão e de garantia de patrimônio: era permitida

apenas a adoção de maiores (a maioridade ocorria aos 23 anos); o adotado não

pertencia à família do adotante e somente garantia os efeitos de sucessão; o

adotante deveria ter mais de 50 anos, ser estéril e ser pelo menos 15 anos mais

velho que o adotado; uma pessoa com menos de 23 anos poderia ser adotada por

testamento por alguém que a tivesse criado por pelo menos 6 anos antes de morrer;

e a adoção era permitida sem a condição da idade para alguém que tivesse salvado

a vida do adotante (Hauser e Weiller, 1989, citados por Weber, 1999).

Segundo Weber (2001), a partir do Código de Napoleão a adoção começou a

caminhar para um novo rumo, visando não apenas atender os interesses dos

adotantes, mas também os dos adotados, por ocasião da morte dos pais.

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A maioria dos países europeus construiu suas leis baseadas no código

Romano e, posteriormente, no Napoleônico, seguindo os princípios acima descritos.

Isso não aconteceu com a Inglaterra, de modo que a adoção não existiu

juridicamente neste país entre os séculos XVIII e XIX. Apesar disso, existia na

Inglaterra a prática de enviar crianças a famílias substitutas como aprendizes e

trabalhadores domésticos, e nessas famílias as crianças poderiam criar laços

afetivos e definir sua posição social. A maior barreira à introdução da adoção na lei

comum estava em conflito com o princípio da herança, pois as terras só podiam ser

transmitidas a pessoas ligadas por laços de sangue, não podendo ser dadas por

simples vontade do proprietário (Weber, 1999). Devido a isso, somente em 1926 a

adoção foi criada no sistema legal inglês através de um estatuto, e apenas em 1969

um outro estatuto removeu todas as restrições à herança por parte de pessoas

adotadas (Cole e Donley, 1990, citados por Weber, 1999).

A lei norte americana foi derivada das leis inglesas que não previam a

adoção, e as primeiras regulamentações relacionadas às crianças e famílias

substitutas nos Estados Unidos surgiram após a utilização indiscriminada da mão de

obra barata de crianças órfãs e abandonadas. Massachusetts, em 1851, foi o

primeiro estado a criar uma lei destinada a proteger essas crianças, e em 1917 o

estado de Minessota aprovou um código de menores que contemplava a criança

adotada (Pilloti, s/d, citado por Weber, 1999).

Weber (2001) informa que a adoção começou realmente a adquirir um sentido

mais social, voltando-se aos interesses do adotando, após a Primeira Guerra

Mundial, com o grande número de crianças órfãs e abandonadas. Após a Segunda

Guerra Mundial esse interesse público pela adoção foi limitado a crianças pequenas,

e tornou-se evidente uma maior objeção do público em relação à “ilegitimidade” e ao

“sangue mau” trazido pela criança. Segundo Cole e Donley (1990, citados por

Weber, 1999), essas objeções têm relação com o desenvolvimento, na época, de

teorias psicológicas que falavam sobre inteligência hereditária e sobre a

irreversibilidade dos efeitos causados por um desenvolvimento inicial pobre.

Com o início da Segunda Guerra Mundial a legislação francesa, por exemplo,

criou juridicamente a Legitimação Adotiva, por meio da qual a criança abandonada,

órfã ou filha de pais desconhecidos, menores de 5 anos, deixava de pertencer à sua

família de origem e adquiria de modo irrevogável a condição de filho legítimo dos

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adotantes. Em 1966 o sistema legal foi aperfeiçoado e a legitimação adotiva foi

substituída pela adoção plena (Weber, 2001).

A partir do que foi exposto é possível perceber que, em vários países, muitas

das conquistas legislativas em relação à adoção são recentes, tendo ocorrido com

maior ênfase apenas nos séculos XIX e XX. Além disso, muitos desses avanços

foram conquistados tendo como foco o interesse dos adotantes, visando

principalmente dar um descendente àqueles que não tinham condições de tê-lo, seja

para perpetuar a família, por questões de herança, por objetivos políticos, entre

outros. Nota-se que o interesse do adotado só começou a ganhar ênfase a partir do

momento em que as precárias condições de existência de muitas crianças e

adolescentes, provenientes de países em guerra, ou vítimas de abandono, maus

tratos, exploração, entre outros, se tornaram um problema para vários países, e

começaram a ganhar visibilidade em âmbito mundial. A partir daí a adoção começou

a ser vista também como um meio de dar uma família a uma criança ou adolescente

que não a possuía.

1.2. Abandono

Quando se fala em adoção, muitas vezes deve-se levar em conta uma história

precedente de abandono (Rizzini, 1999; Albornoz, 2001). Freire (1991a) afirma que,

embora seja certo que o fenômeno do abandono de crianças sempre é mais intenso

e acentuado na eclosão de grandes catástrofes e crises sociais, é possível perceber

a sua presença constante, em todas as épocas e em praticamente todas as

sociedades, mesmo em momentos sociais de maior estabilidade. Assim, através da

história, verifica-se que o abandono de crianças constitui uma constante

preocupação dos poderes instituídos, que procuraram através de inúmeras medidas,

dar uma resposta adequada à situação aflitiva das crianças.

Desde a antigüidade existem casos de pais que abandonam ou doam seus

filhos, e de pessoas que se interessam em acolher essas crianças. Assim, a

organização social de diferentes culturas buscou maneiras de implementar outros

tipos de relações familiares que não as biológicas, muitas vezes com atos jurídicos

para a criação de laços de parentesco (Weber, 2001).

Alguns povos, como os Bárbaros, os Hebreus e os Egípcios, recolhiam as

crianças sem pais e cuidavam delas como se fossem filhos legítimos. Outros, dentre

eles os Persas, os Assírios, os Gregos e os Romanos, faziam um rígido controle

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demográfico, ficando a cargo do pai ou do Estado o poder de decidir se o recém

nascido viveria, seria jogado à rua ou seria morto. Das crianças que eram jogadas à

rua, algumas eram recolhidas e adotadas por outras pessoas, algumas eram

vendidas e outras morriam (Soulé e col., 1962, citados por Weber, 2001).

Na Roma antiga o direito paterno sobre os filhos era ilimitado, e o pai decidia

se queria ficar com o filho ou se este seria abandonado. As crianças que eram

abandonadas eram deixadas em vias públicas, e aquelas que sobreviviam quase

sempre eram recolhidas por alguém. Porém, esse acolhimento não servia para que

uma família desse um lar a um desamparado, pois as crianças eram recolhidas por

sua força de trabalho eventual, ou ainda para serem vendidas como escravas ou

prostitutas (Abreu, 2002; Weber, 1999).

No tempo do imperador romano Justiniano foram criadas leis de proteção

direta às crianças abandonadas, e criadas instituições para acolhimento e proteção

dos menores sem amparo (Freire, 1991a).

Com a chegada do cristianismo passou a haver uma maior proteção dos

fracos por parte dos cristãos, e as autoridades se viram na obrigação de mudar suas

atitudes e leis em relação às crianças. Constantino, ao final do Império Romano,

reconheceu a religião católica e escreveu a primeira lei contra o infanticídio (Roig e

Ochotorena, 1993, citados por Weber, 1999). No entanto, Weber (1999) afirma que

essa mudança demorou a acontecer na prática, e segundo Ariès (1981), ainda na

Idade Média a criança era reconhecida como uma espécie de adulto em miniatura,

não havendo uma consciência da particularidade infantil. Segundo o autor, o

sentimento de infância tal como o conhecemos na atualidade, ou seja, a consciência

da particularidade infantil que distingue a criança do adulto, não existia na Idade

Média, tendo surgido apenas nos séculos XV, XVI, e com força definitiva no século

XVII.

Freire (1991a) afirma que na Idade Média os grandes senhores davam auxílio

às crianças abandonadas no território sob a sua autoridade mediante proteção e

apoio dado às instituições destinadas a cuidar dos desamparados. No entanto, foi no

seio da Igreja que sempre foram suscitadas e se desenvolveram as iniciativas de

maior destaque a favor das crianças abandonadas. As ordens religiosas femininas,

principalmente, dedicavam-se com freqüência a acolher crianças abandonadas, a

protegê-las e a ensiná-las nas primeiras idades.

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Ao longo da história várias razões de natureza moral ou material acabavam

acarretando inúmeros abortos, infanticídios e nascimentos clandestinos com

posterior abandono do bebê. Durante a Idade Média foi criado um mecanismo social

que buscava solucionar esse problema. Tal mecanismo, denominado Roda dos

Expostos ou Enjeitados, possibilitava a qualquer pessoa abandonar uma criança

sem ser identificada. A Roda, fixada no muro de determinadas instituições, tinha

forma cilíndrica, e em sua abertura externa depositava-se o bebê que seria

abandonado. Girava-se a Roda de modo que a criança fosse parar dentro da

instituição que a acolheria, sem que a pessoa que abandonou pudesse ser vista.

Essa era uma maneira de estimular o expositor a não abandonar o bebê indesejado

nas ruas ou florestas, na tentativa de aumentar as chances de vida da criança. A

Roda dos Expostos existiu em vários países até os séculos XIX e XX, tendo sido

ostensivamente utilizada no século XIX, quando o abandono de crianças atingiu seu

ápice (Weber, 1999).

No século XIX, o advento das idéias liberais trouxe consigo uma nova

concepção de Estado, imprimindo maior responsabilização deste nos problemas da

assistência. A partir daí passou-se a observar um empenho direto dos poderes

públicos na criação de instituições e na organização de sistemas de proteção às

crianças (Freire, 1991a).

Apesar de terem sido criadas medidas contra o abandono de crianças e em

prol do seu bem estar ao longo da história, a criança só adquiriu status de sujeito de

direitos, segundo Weber (1999), no século XX. A Assembléia Geral da Organização

das Nações Unidas (ONU) aprovou nos Estados Unidos, em 1959, a Declaração

Universal dos Direitos da Criança, e 1979 foi considerado o Ano Internacional da

Criança, ano no qual ocorreu um intenso processo de compreensão dos direitos da

infância a partir da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Em 1989, a Convenção

dos Direitos da Criança, que estabelece padrões mínimos legais e morais para a

proteção dos direitos infantis, foi adotada unanimemente pela Assembléia Geral da

ONU.

Freire (1991a) afirma que atualmente são desenvolvidas em diversos países

políticas de combate ao abandono de crianças, através de medidas jurídico-penais e

de programas de proteção e apoio às mães, em especial às mães solteiras, alvo

particular de atenção.

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1.2.1. Abandono no Brasil

Marcílio (1997) registra que o fenômeno de abandonar os filhos é tão antigo

como a história da colonização brasileira. Desde os tempos coloniais são registrados

casos de bebês expostos nas ruas, freqüentemente devorados por animais (Rizzini,

1999, Venâncio, 2004). Venâncio (2004) afirma que nos dois primeiros séculos de

colonização a regra era a “circulação de crianças”, ou seja, o envio das crianças

desamparadas para domicílios de famílias com mais recursos, ou que pelo menos

não vivessem na pobreza extrema. A situação começou a mudar no fim do século

XVII e início do XVIII, pois a descoberta de áreas produtoras de ouro nos sertões

levou ao crescimento de cidades e vilas, e fez aumentar os registros de casos de

bebês deixados nas calçadas, terrenos baldios ou depósitos de lixo. O crescimento

urbano colonial fez com que a prática da “circulação de crianças” ficasse saturada, e

as leis portuguesas mandavam as Câmaras e Santas Casas de Misericórdia acolher

os abandonados. Assim, em 1726 em Salvador foi copiado o modelo europeu da

Roda dos Expostos ou Enjeitados, o dispositivo rotatório que permitia o abandono

anônimo de bebês, sendo expandido esse mecanismo por várias regiões do país. A

Roda dos Expostos existiu até 1950 no Brasil, último país do mundo a aboli-la

(Weber, 2001). Apesar de ser uma alternativa ao infanticídio, esse tipo de sistema

não garantia bons resultados, pois a grande maioria dos bebês falecia nos primeiros

meses de vida. A mortalidade dos expostos da Misericórdia era tão assustadora que

foi alvo de atenção da medicina higienista da época (Lobo, 2003). Os que tinham a

sorte de sobreviver, algumas vezes retornavam à família de origem, por solicitação

dos pais, ou eram apadrinhados, tendo a chance de dispor de uma moradia

permanente, ou ainda se tornavam, na idade adulta, braços para o trabalho forçado

nas milícias e nos navios (Lobo, 2003; Venâncio, 2004).

Assinala Venâncio (2004) que o abandono era uma prática essencialmente

urbana, apesar de a maioria da população brasileira do período colonial ser do meio

rural. Durante o século XVIII o abandono chegou a atingir 25% dos bebês nascidos

em alguns centros urbanos. O ato de abandonar as crianças era raro entre os

escravos, pois todos os filhos de escravos podiam ser vendidos assim que nasciam.

Entre a população livre e pobre rural, o abandono de crianças também era incomum,

pois eles contavam com uma agricultura de subsistência, e os filhos eram mão de

obra valiosa para os que não possuíam escravos.

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No Brasil colonial, a criança algumas vezes era abandonada em função da

morte repentina dos pais, pois não havia na época orfanatos para recém nascidos. A

morte de mulheres no parto era tão comum que se tornou norma que as mulheres

que fossem dar à luz recebessem a extrema unção. Outro motivo para se enjeitar

uma criança era a questão moral, pois quando uma mulher branca solteira ficava

grávida, ela e o filho poderiam ser mortos pelos pais ou irmãos, de modo que a

gravidez e o parto clandestinos, com posterior abandono da criança, era uma

alternativa à condenação amparada na moral patriarcal. A opção de ter o filho e

abandoná-lo muitas vezes se mostrava mais viável que práticas abortivas, pois

apesar de estas existirem no período colonial, elas traziam conseqüências

devastadoras para a saúde feminina – mulheres grávidas tentavam abortar pulando

de lugares elevados ou ingerindo plantas tóxicas –, práticas estas que podiam ser

equiparadas a tentativas de suicídio. A falta de recursos financeiros também levava

ao abandono da criança, ainda mais se esta apresentasse problemas físicos ou

mentais, pois isso significava perigo à sobrevivência econômica familiar (Venâncio,

2004).

Venâncio (2004) afirma que o que provocava inquietação no abandono de

bebês nas calçadas e ruas das cidades não era tanto a violência implícita no gesto,

mas o risco de a criança morrer antes de ser batizada. O batismo era a segurança

de que a criança seria “mais um anjinho no céu” (p.43).

Segundo Rizzini (1999), ao longo dos séculos diversos segmentos ligados à

Igreja, aos grupos filantrópicos e ao Estado manifestaram preocupação em relação

às crianças abandonadas, pois o abandono, particularmente o abandono moral, era

visto como uma das principais causas que conduziriam ao vício e à criminalidade.

Percebia-se a importância de se investir nas crianças enquanto ainda eram

facilmente moldáveis, para transformá-las em indivíduos trabalhadores e úteis para o

progresso do país.

Weber (1999) afirma que quando se trata do abandono de crianças no Brasil

não é possível analisar somente as variáveis psicológicas ou emocionais da pessoa

que abandona, pois existe um conjunto de determinantes históricos, culturais, sociais

e econômicos que devem ser considerados. É preciso referir-se aos contextos

macroeconômicos e às políticas governamentais insuficientes que não conseguem

proteger os amplos setores da população que estão na pobreza extrema.

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No Brasil há pelo menos um século a criança tornou-se objeto de ações que

visavam sua proteção, surgindo leis, medidas e instituições destinadas à sua

assistência (Weber, 1999). Segundo Rizzini (1999) a adoção não constitui uma

solução, mas uma das possibilidades indicadas para aqueles que foram

abandonados. Weber (1999) afirma que a adoção não tem o objetivo de resolver o

problema do abandono, e que o principal combate deve ser contra as condições

históricas, culturais, sociais e econômicas que levam a ele. No entanto essas

medidas não são excludentes e podem ser pensadas simultaneamente.

1.3. Institucionalização

Quando se fala em institucionalização de crianças e adolescentes, de um

modo geral estamos falando de um procedimento que engloba todos os casos em

que crianças e jovens se encontram fora da família e recebendo atendimento

institucional. Assim, podem ser incluídas aí situações de internamento: visando a

privação de liberdade, voltadas para adolescentes em conflito com a lei; destinadas

a tratamentos de casos específicos, de condições físicas ou mentais (por exemplo,

crianças e jovens com patologias ou portadores de deficiências); ou voltadas para

crianças e adolescentes que se encontram em situações consideradas de risco

pessoal e social (abandono, violência doméstica, entre outros), que por algum

motivo não tem condições de permanecer com sua família de origem (Rizzini e

Rizzini, 2004). No presente trabalho será abordada mais especificamente essa

última modalidade de institucionalização.

De acordo com Weber (1999), a institucionalização de crianças e

adolescentes é um dispositivo jurídico-técnico-policial criado com base na

justificativa de abrigar e proteger a criança e o jovem abandonado. Porém a maior

finalidade do internamento tem sido o afastamento dessas crianças e adolescentes

marginalizados do convívio social, servindo mais aos interesses da sociedade.

Trindade (1984) ressalta que, com um regime disciplinar e autoritário, a instituição

surge para atender a criança que tem problema, tendo, dentre outras funções, a de

domesticar a criança, não apenas estabelecendo padrões definidos de conduta, mas

também procurando impedir a ocorrência de qualquer desvio de comportamento que

pudesse afetar a ordem estabelecida. Também Rizzini e Rizzini (2004) ressaltam

que as iniciativas de internamento estiveram prioritariamente entrelaçadas a

objetivos de assistência e controle social de uma população representada

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socialmente como perigosa, e ainda hoje a reclusão continua vigente para as

categorias consideradas ameaçadoras à sociedade.

Weber (2001) afirma que, a partir do século XVII, quando se pensava em

proteção à infância pensava-se em instituições. A partir de meados do século XIX

esse modelo institucional começou a ser questionado, e outras soluções alternativas

começaram a ser pensadas como forma de proteção à infância, com a redução dos

grandes complexos e a construção de unidades de abrigos menores, que mais se

assemelhassem às condições de um ambiente familiar (Arpini, 2003). A

institucionalização de crianças e adolescentes ainda é uma prática presente na

atualidade, e apesar de menos fechado e ameaçador que o modelo tradicional,

Arpini (2003) afirma que o ambiente institucional se manteve sempre denso,

carregado de tristezas e mágoas.

Segundo Rizzini e Rizzini (2004), é possível perceber algumas modificações

no processo histórico das instituições no Brasil. No século XVIII a institucionalização

era do tipo “internato de menores”, e visava principalmente a “educação de crianças

pobres, fossem elas abandonadas, órfãs, indígenas ou negras” (p.15). No século

XIX e XX predominou a idéia de reabilitação dos “menores abandonados e

delinqüentes” (p.15), ou seja, daqueles que representavam um risco para a

sociedade. Rizzini (1999) afirma que durante o século XX as políticas sociais em

relação à infância e juventude pensadas e praticadas no Brasil priorizaram a

internação em instituições fechadas, segregando crianças e jovens e

impossibilitando o convívio familiar e comunitário. Com isso promoveu-se ainda mais

o abandono de crianças, pois apesar de bem nutridas e abrigadas, elas não

encontraram na vida institucional os cuidados pessoais de que necessitavam.

Rizzini e Rizzini (2004) afirmam que a década de 1980 foi marcada por

calorosos debates e articulações em todo o Brasil, e a cultura institucional vigente

por tanto tempo começou a ser questionada. Com o Estatuto da Criança e do

Adolescente, promulgado em 1990, o atendimento institucional sofreu mudanças

significativas, e o abrigo ficou definido como uma medida de caráter provisório e

excepcional de proteção para crianças em situações consideradas de risco pessoal

e social. A mudança da terminologia empregada no ECA, que passou a denominar

as instituições como unidades de abrigo, teve como objetivo rever e recriar diretrizes

e posturas no atendimento à criança e ao adolescente, ou seja, provocar uma

ruptura com práticas de internação anteriormente instauradas e profundamente

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enraizadas. Mas apesar disso, segundo as autoras, a cultura de internamento ainda

hoje resiste em ser alterada, pois não foram criadas alternativas que efetivamente

evitassem a separação de crianças de suas famílias e comunidades.

Rizzini e Rizzini (2004) argumentam que a origem das crianças e

adolescentes abrigados e as causas que os conduzem aos abrigos são semelhantes

as do passado. Atualmente a população atendida pelos abrigos compõe-se de

crianças e adolescentes: órfãos ou em situação de abandono familiar, ou seja, que

não possuem mais qualquer vínculo com sua família de origem ou com parentes que

possam se responsabilizar por seus cuidados; em situação de risco, ou seja, de

adversidade e vulnerabilidade, como em casos de violência, crises familiares ou

catástrofes, e que por esses motivos encontram-se impedidos de retornar ao seu

local de moradia, necessitando permanecer provisoriamente abrigados em outros

locais; ou em situação de pobreza, ou seja, ainda hoje famílias recorrem ao Juizado

e aos abrigos na tentativa de internarem seus filhos, alegando não terem condições

para mantê-los. Apesar das semelhanças com o passado, as autoras afirmam que é

possível observar algumas diferenças no que se refere à população atendida pelos

abrigos hoje em dia, como por exemplo, o fato de predominarem internações de

crianças e adolescentes que se caracterizam por um alto grau de mobilidade, ou

seja, que transitam continuamente entre a casa, as ruas e os abrigos. Essa alta

mobilidade que caracteriza a trajetória dessas crianças e adolescentes, segundo

Rizzini e Rizzini (2004), parece ser provocada por fatores ligados ao contexto de

violência urbana no país, em particular relacionados ao narcotráfico.

De acordo com Arpini (2003), a qualidade do serviço prestado pelas

instituições sempre foi objeto de crítica, e a proposta institucional de abrigo,

proteção, amparo e formação nunca chegou a obter êxito. A instituição criou uma

imagem negativa de seu próprio mundo, pois serviu de cenário para que muitas

repressões, humilhações e violências acontecessem com a população interna,

reproduzindo a mesma relação que a sociedade estabeleceu com essa população

ao abandoná-la e isolá-la.

Arpini (2003) ressalta que a imagem das instituições é semelhante à que se

tem da própria população que as freqüenta, ou seja, uma imagem carente,

abandonada, fracassada, desqualificada. A passagem por uma instituição marca

negativamente a vida de crianças e adolescentes aos olhos da sociedade, e eles

passam a ser vítimas de preconceitos. É como se o simples fato de terem vivenciado

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a situação de abrigo denunciasse que essas crianças e adolescentes não tiveram

uma vida como era esperado, como se estivessem no limite de romper e transgredir.

Não se considera que o fato de estarem em uma instituição muitas vezes não é

resultado de uma ação cometida por eles, mas sim de uma violência social estrutural

ou de abandono e violência praticados por suas famílias.

Arpini (2003) sugere que o fato de a própria instituição estar contagiada pela

ideologia do modelo familiar contribui para que as crianças e adolescentes

internados sejam vítimas de preconceitos. Como a maioria das teorias em Psicologia

aponta para a determinação da família na formação dos indivíduos, isso leva a

pensar que, para as crianças abandonadas ou violentadas, não existiria uma

perspectiva ou uma saída desejável, restando-lhes apenas uma instituição que não

acredita, ela própria, em outra forma satisfatória de uma criança desenvolver-se

saudável e integradamente.

Costa e Caldana (2004) realizaram um estudo sobre a situação de

abrigamento em instituição a partir da perspectiva de uma criança, e afirmaram que

é como se o processo de institucionalização fosse um período caracterizado pela

ausência de uma família, pois não haveria outra família a se pertencer além da de

origem (geralmente localizada antes da institucionalização), ou da família que venha

a adotá-lo (localizada depois da institucionalização). No abrigo esse sentimento de

família parece não prevalecer, talvez pelo caráter de provisoriedade do mesmo e das

poucas possibilidades de um contato mais personalizado com os educadores, ou

seja, com as figuras que poderiam servir de modelo e propiciar um base segura de

desenvolvimento.

Vários autores afirmam que a criança institucionalizada é o protótipo dos

resultados devastadores da ausência de uma vinculação afetiva estável e constante,

e dos prejuízos causados por um ambiente empobrecido e opressivo ao

desenvolvimento infantil (Weber, 1999, Kumamoto, 2001). Kumamoto (2001)

ressalta que a criança abrigada em uma instituição muitas vezes enfrenta a angústia

de uma separação com a família biológica, perdendo as “figuras de apego” e os

referenciais de identificação, e o ambiente institucional não lhe permite a construção

de vínculos substitutos devido à instabilidade das relações interpessoais construídas

ali, comprometendo a socialização da criança. Segundo Albornoz (2001), a troca

constante de cuidadores ou de instituições faz com que a criança viva intensas

sensações de desamparo, abandono e insegurança, o que pode comprometer o seu

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desenvolvimento. Kumamoto (2001) acrescenta que quanto maior o tempo de

privação socioafetiva, maiores serão as dificuldades da criança em adquirir as regras

de comportamento que lhe permitam se adequar a uma família e à sociedade.

Pesquisa realizada por Ebrahim (2001a), comparando grupos que realizaram

adoções de bebês com grupos que realizaram adoções de crianças maiores,

evidenciou que aqueles que optaram pela adoção de bebês apresentaram receios

em adotar crianças provenientes de instituições. Entre os adotantes tardios, 88,9%

não tinham receio em adotar crianças institucionalizadas, 29,3% sentiam-se

preparados para lidar com quaisquer situações e 25% julgavam que o amor supera

todos os obstáculos. O fato de a criança viver em instituições foi definido por 20,8%

da amostra como um elemento de proteção e amparo, e não como um agravante

para a adoção.

Apesar de todas as críticas feitas ao modelo institucional de abrigo para

crianças e adolescentes, Arpini (2003), a partir de uma reflexão sobre a realidade

institucional desses abrigos no Rio Grande do Sul, com base no discurso dos

próprios adolescentes internos, ressalta que esses adolescentes disseram que foi

nas instituições que se sentiram protegidos da violência que viviam em suas

famílias, de modo que mesmo a instituição não sendo desejada, quando ocorreu em

suas vidas não teve a força negativa e destrutiva que se esperava. A autora ressalta

que o período vivido em instituições muitas vezes foi menos traumático e doloroso

para os adolescentes que aquele relativo à vivência familiar, e que, apesar de ser

um lugar de passagem, a instituição pôde ser um local de tranqüilidade e apoio para

os internos, até que suas vidas fossem reestruturadas. É importante ressaltar que a

autora se referiu às instituições remodeladas pelo Estatuto da Criança e do

Adolescente, que não apresentavam as características mais penosas das

tradicionais casas de abrigo de menores. Mas isso não é garantia de que alguns dos

vícios, abusos e violências característicos das instituições totais não se

reproduzissem no novo modelo.

Com esse estudo Arpini (2003) ressalta a importância de repensar, recuperar

e investir no universo institucional, para que ele possa deixar de ser visto apenas

como um lugar de fracasso, passando a ser visto também como um local de

acolhimento, de afeto e proteção, pois muitas vezes esse universo se apresenta

como uma alternativa para um grande grupo de crianças e adolescentes que vivem

situações de violência em suas famílias. Segundo a autora, a instituição não é

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sempre vivida como um mau lugar, assim como a família não é sempre um lugar

privilegiado e protetor.

Segundo Weber (1999), apesar de o internamento de crianças e adolescentes

ser uma medida que deveria ser tomada como recurso extremo e por curto período,

muitas vezes o que ocorre é o abandono dessas crianças e adolescentes nas

instituições, onde acabam passando boa parte de suas vidas. Embora, nos termos

jurídicos, o abandono seja caracterizado pela falta de assistência ou omissão dos

pais, ou quando é destituído dos pais o seu poder familiar1 em virtude de uma

sentença judicial, Weber (1999) considera que quando crianças ou adolescentes são

colocados em um estabelecimento em regime de internato e não são assistidos pela

família, são abandonados, ainda que não o sejam em termos jurídicos.

Weber (1999) afirma que a maioria absoluta das crianças institucionalizadas

são internadas pela própria família, e que a maioria dessas crianças deixadas nas

instituições nunca recebem visitas de seus familiares. Ainda segundo Weber (1999),

apesar de essas crianças estarem esquecidas nas instituições e de não receberem

visitas, somente uma pequena parcela dos pais delas foi destituída do poder familiar,

e apenas as crianças cujos pais foram alvo de tal decisão estão liberadas para

adoção. A maioria das crianças, apesar de estarem abandonadas de fato, não estão

abandonadas de direito, e por isso não estão liberadas para serem adotadas. Um

exemplo disso é o fato de que, em São Paulo, uma mãe que abandona o filho recém

nascido só perde o poder familiar depois de, no mínimo, três meses sem reclamar a

criança (Mendonça e Fernandes, 2004, em reportagem da revista Época de

23/08/04). Segundo Weber (1999), há um descaso das autoridades competentes

(Instituições de Abrigo, Poder Judiciário e Promotoria Pública) em relação à tutela

dessas crianças que estão em instituições, pois elas continuam internadas e

abandonadas por seus familiares, e sem a possibilidade de serem adotadas. Daí

resulta que muitas crianças e adolescentes ficam internados em instituições por um

longo período de tempo, às vezes cerca de 18 anos, enquanto o Estatuto da Criança

e do Adolescente afirma que, mesmo para adolescentes infratores, o período

máximo de internamento deve ser de três anos (Weber, 1999).

1 O termo “poder familiar” passou a ser usado no lugar de “pátrio poder” a partir do novo Código Civil, que

começou a vigorar em janeiro de 2003. Na época do antigo Código Civil, de 1916, quem exercia o poder sobre

os filhos era o pai (por isso o uso do termo “pátrio poder”), e não se falava no poder dos pais (do pai e da mãe).

Mas esta situação mudou, e hoje a responsabilidade sobre os filhos é de ambos os pais (Santos, 2005). O termo

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Com base em dados do IBGE, estima-se que 200 mil crianças e adolescentes

brasileiros não tenham família, estando muitas delas internadas em abrigos

(Mendonça e Fernandes, 2004, em reportagem da revista Época de 23/08/04). No

entanto, apenas 5% das crianças nos abrigos estão disponíveis para adoção. Em

declaração à revista Época (23/08/04), numa reportagem de autoria de Mendonça e

Fernandes (2004), Gabriela Schreiner, diretora executiva do Centro de Capacitação

e Incentivo à Formação de Profissionais (Cecif), afirmou que os abrigos são uma

espécie de colégios internos de crianças carentes. Algumas crianças recebem visitas

regulares de pais ou mães, que os mantém ali por falta de condição financeira.

Outras, que não têm pais, são visitadas por tios ou avós, que não as tiram de lá nem

as disponibilizam para adoção. Há ainda casos de crianças que são abandonadas e

permanecem nos abrigos durante anos, e acabam se deparando com algum parente

justamente quando estão para serem adotadas.

1.4. Adoção no Brasil

Gomide (1999) afirma que a adoção no Brasil foi tratada tradicionalmente

como uma via de mão única, ou seja, buscava-se apenas atender aos anseios de

adotantes. Essa forma de adoção, conhecida na literatura como “Adoção Clássica”,

é geralmente motivada por infertilidade ou por esterilidade2, e elege como adotado o

recém nascido com as mesmas características físicas dos adotantes (a imitar uma

família biológica), visando solucionar a crise desses casamentos sem filhos. A partir

do Estatuto da Criança e do Adolescente passou-se a privilegiar também o adotado,

sendo priorizada a busca de famílias para as crianças e adolescentes que se

encontravam em estado de abandono. Assim, passou a ser enfatizada a “Adoção

Moderna”, que abrange a adoção tardia, inter-racial, de grupos de irmãos, entre

outros, buscando resolver a crise da criança sem família.

De acordo com Becker (2000), o desejo de exercer a parentalidade por parte

de pessoas ou casais sem filhos biológicos muitas vezes é visto como uma

necessidade, ficando de alguma forma implícito um “direito” dessas pessoas de

“pátrio poder” só será usado no decorrer desse trabalho quando o texto se referir períodos em que vigorava o

poder paterno sobre os filhos. 2 No texto “Infertilidade X Esterilidade” (sem autoria), no site http://www.ism.med.br/infertil/infxest.htm,

encontra-se uma diferenciação entre os termos infertilidade e esterilidade. A infertilidade é a incapacidade de um

ou de ambos os cônjuges de gerar gravidez por um período conjugal de no mínimo dois anos, por causas

funcionais ou orgânicas, sem o uso de contraceptivos e com vida sexual normal. A esterilidade refere-se aos

casos em que os recursos terapêuticos não proporcionam cura.

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adotarem uma criança. Desse modo, chega-se a colocar na mesma ordem de valor

o direito da criança a ser criada e educada numa família e o “direito” dos adultos de

“possuírem” os filhos que lhes teriam sido negados pela natureza. Essa percepção

tem sido responsável, segundo Becker (2000), por uma inversão nos procedimentos

da adoção, pois muitas vezes deixou-se de considerar as necessidades das crianças

e passou-se a procurar crianças para satisfazer necessidades de adultos.

Ebrahim (2001) assinala que, atualmente, tem sido bastante difundida uma

“cultura da adoção”, com o objetivo de proporcionar um lar para crianças que não o

tem, sem valorizar demasiadamente características como condições de saúde, cor,

gênero e idade da criança ou adolescente a ser adotado. Porém o maior interesse

no Brasil continua sendo pela adoção de bebês, e enquanto grande quantidade de

crianças maiores continua sem família, os cadastros de candidatos à adoção

pleiteiam crianças pequenas, ficando as crianças maiores à espera de pais, e os

pais a espera de bebês.

No Brasil, a adoção legal, que segundo A. Robert (1989, citada por Weber,

1999) “é a criação jurídica de um laço de filiação entre duas pessoas”, é

regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, e tem como principal

objetivo encontrar uma família para crianças e adolescentes abandonados, tentando

adequar a esse objetivo o interesse de pessoas que querem adotar. Além da adoção

legal, é bastante conhecido também o sistema de adoção que foge à esfera jurídica,

a chamada “adoção à brasileira”, que ocorre quando uma pessoa encontra uma

criança e a registra como seu filho sem passar pelos trâmites legais da adoção.

De acordo com Diniz (1991), a adoção pode ser definida como “... a inserção

num ambiente familiar, de forma definitiva e com aquisição de vínculo jurídico próprio

da filiação, segundo as normas legais em vigor, de uma criança cujos pais morreram

ou são desconhecidos, ou não sendo esse o caso, não podem ou não querem

assumir o desempenho das suas funções parentais, ou são pela autoridade

competente, considerados indignos para tal” (p.67).

Reppold e Hutz (2003) conceituam a adoção como a criação de um

relacionamento afiliativo que envolve aspectos jurídicos, sociais e afetivos que a

diferenciam da filiação biológica. Fu I e Matarazzo (2001) consideraram a adoção

mais uma condição social e psicológica do que judicial, muitas vezes referindo-se à

criança que não vive com os pais biológicos e que é criada por outras pessoas, por

meio ou não de adoção legal, de tutela ou de guarda. Mas essa concepção ampliada

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de adoção deve ser usada com cautela, pois não corresponde ao uso mais comum

do conceito, tanto no contexto jurídico como em outros contextos sociais.

Gagno e Weber (2002) afirmam que muitas vezes se usa o termo “filho de

criação” para se referir a filhos adotivos, mas apesar de os termos “filho de criação”

e “filho adotivo” serem usados indistintamente no senso comum, as autoras afirmam

que a literatura sugere uma distinção entre eles. Na adoção – tanto legal como

informal – a relação de filiação estabelecida é substitutiva à relação dada

biologicamente, ou seja, a mãe biológica é substituída pela adotiva, enquanto nas

famílias de criação a relação de filiação é geralmente aditiva, ou seja, os filhos

“somam mães”, ao invés de uma substituir a outra. O filho de criação dispensa a

preocupação com a evitação de relações com a família de origem, enquanto na

adoção, via de regra, a família adotiva e a família biológica não se conhecem. A

relação de criação, segundo Fonseca (2002a, 2002b) é uma alternativa de

organização de parentesco que não é vista pelos pais biológicos como abandono, e

nem vivida como tal pelas próprias crianças. A autora afirma que os etnólogos

chamam a prática da criação de “circulação de crianças”, por causa do vai e vem de

crianças entre as casas de diversas mães (madrinha, vizinha, etc.), e afirma que

essa prática não deveria ser ignorada nas análises de organização de famílias de

baixa renda no Brasil.

Paralela a pouca distinção no senso comum entre adoção e criação, segundo

Fu I e Matarazzo (2001) existem também outras variações no processo de adoção,

como a distinção entre adoção extrafamiliar, quando a criança é adotada por

pessoas que não têm relação de parentesco com nenhum de seus pais biológicos, e

intrafamiliar, quando a criança está sob cuidados de pessoas que têm relação de

parentesco com pelo menos um dos pais biológicos. Essas autoras afirmam que a

distinção entre os vários tipos de adoção em relação aos adotantes é

freqüentemente citada nos estudos, mas raramente foi investigada a influência

dessas variações no desenvolvimento psicológico dos filhos adotivos.

Conforme Mendonça e Fernandes (2004), em reportagem da revista Época

de 23/08/04, o número de adoções realizadas por brasileiros vem crescendo. Na

cidade do Rio de Janeiro, o volume cresce desde 2000, em especial as adoções de

crianças com mais de 4 anos, que são justamente as mais rejeitadas. De acordo

com a reportagem, a classe média já não vê a adoção apenas como um plano

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secundário, e sim como mais uma das possíveis configurações familiares da

atualidade.

1.4.1. Aspectos legais

De acordo com Abreu (2002), o conhecimento da legislação brasileira, desde

seus primórdios, pode esclarecer como a adoção vem sendo vista entre nós, quais

as funções atribuídas a ela ao longo da história, seu papel social, e o lugar ocupado

por ela nas relações de parentesco. Segundo o autor, esse estudo pode indicar o

que foi progressivamente sacralizado pela visão dominante nas diferentes épocas, e

permitir analisar como aspectos que eram apenas uma das possibilidades de lidar

com a adoção tornaram-se a única maneira de estar conforme a lei.

Costa (1988, citado por Weber, 2001) registra que a adoção introduziu-se no

Brasil a partir das Ordenações Filipinas, e o primeiro dispositivo legal a respeito da

adoção foi a Lei de 22 de setembro de 1828. O autor afirma que eram raras as

referências à adoção nos textos jurídicos até a elaboração do Código Civil de 1916,

e a inclusão da adoção nesse código foi motivo de acirrada polêmica. De acordo

com a Lei 3.071 de 01/01/1916 só os maiores de 50 anos, sem prole legítima,

poderiam adotar; o adotante deveria ser pelo menos 18 anos mais velho que o

adotado; a adoção não poderia ser realizada por duas pessoas, a não ser que

fossem marido e mulher; não poderia ocorrer a adoção sem o consentimento da

pessoa responsável pelo adotando caso ele fosse menor de idade ou interdito; o

adotado, se fosse menor de idade ou interdito, poderia desligar-se da adoção no ano

imediato ao fim da menoridade ou interdição; a adoção poderia ser desfeita quando

conviesse a ambas as partes, ou quando o adotado cometesse ingratidão com o

adotante; o parentesco resultante da adoção era limitado a adotante e adotado; a

adoção continuaria a vigorar mesmo se o adotante viesse a ter filhos naturais, salvo

se ficasse provado que no momento da adoção o filho natural já estivesse

concebido; e com a adoção não seriam extintos os direitos e deveres resultantes do

parentesco natural, com exceção do pátrio poder, que seria transferido do pai natural

para o pai adotivo (Lacerda, 1922, citado por Weber, 2001). Durante a vigência do

Código Civil, quando alguém desejava adotar legalmente uma criança, o

procedimento era ir a um tabelionato e registrar a adoção através de escritura, diante

de testemunhas e do tabelião, de modo que o adotante poderia estar presente ou

mesmo ser representado por um procurador. Esse tipo de adoção ficou conhecido

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pela expressão “dar de papel passado” (Abreu, 2002, p.24). Segundo Weber (2001),

as possibilidades de adoção incluídas no Código Civil de 1916 assemelhavam-se às

do Código Napoleônico, sendo excessivamente rígidas, o que dificultava o seu uso

social. Além disso, Abreu (2002) afirma que, até este momento, a adoção no Brasil

estava situada dentro da esfera das relações privadas e familiares.

Em 1927 foi promulgado o primeiro Código de Menores brasileiro, uma

legislação especialmente voltada para crianças e adolescentes. Weber (2001) afirma

que este Código não trouxe qualquer contribuição para a questão da adoção.

Segundo Santos (2004), o Código de Menores de 1927 elegia como objeto de sua

ação a infância e adolescência abandonada, delinqüente, ou carente, objetivando o

seu controle, e enfatizava a institucionalização como forma de proteção.

Em 1957 foi promulgada uma lei que trouxe importantes contribuições para a

adoção, mas apesar de ter simplificado algumas exigências feitas pelo Código Civil

de 1916, continuou sendo uma lei de difícil uso social (Weber, 2001). As principais

modificações introduzidas pela Lei 3.133 de 08/05/1957 foram: a idade mínima do

adotante foi reduzida de 50 para 30 anos; a diferença de idade exigida entre

adotante e adotado passou de 18 para 16 anos; as pessoas casadas só poderiam

adotar depois de decorridos 5 anos de casamento; e a adoção poderia ocorrer

mesmo se o adotante tivesse filhos legítimos. Em relação à sucessão hereditária, se

o adotado fosse filho único, receberia integralmente a herança; se os adotantes

tivessem filhos naturais após a adoção, o adotado teria direito à metade do que

coubesse a cada filho natural; se os adotantes já tivessem filhos antes da adoção, o

filho adotivo não teria direito à herança (Weber, 2001).

Com a Lei 4.655, de 1965, foi criada no Brasil a Legitimação Adotiva, ou seja,

o filho adotivo passou a ter quase os mesmos direitos e deveres que o filho legítimo,

exceto nos casos de sucessão hereditária em que concorresse com filho legítimo

gerado posteriormente à adoção. A Legitimação Adotiva trouxe como principal

inovação a preocupação com a criança adotiva, visto que essa criança poderia se

tornar filha legítima de quem a adotasse (Weber, 2001). A partir daí passaram a

coexistir duas modalidades de adoção, uma regida pelo Código Civil e a outra regida

pela nova lei. De acordo com a nova legislação o limite máximo de idade da criança

para que pudesse ocorrer a legitimação seria 7 anos, e poderiam ser legitimadas: a

criança abandonada cujos pais fossem desconhecidos, tivessem declarado por

escrito sua intenção de colocá-la para adoção ou tivessem sido destituídos do pátrio

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poder; a criança órfã não reclamada por qualquer parente há mais de um ano; o filho

natural reconhecido apenas pela mãe, impossibilitada de prover sozinha sua criação;

a criança abandonada que estivesse sob os cuidados de uma instituição de

assistência social; e a criança maior de 7 anos que ao completar essa idade

estivesse sob a guarda dos legitimantes, mesmo que estes não preenchessem as

condições exigidas por lei. Poderiam ser legitimantes: os casais com mais de 5 anos

de matrimônio, sem filhos, e com pelo menos um dos cônjuges com idade superior a

30 anos; pessoas viúvas com mais de 35 anos que já estivessem com a criança e

comprovassem integração dessa criança ao lar; e pessoas desquitadas, desde que

a guarda da criança houvesse começado durante o matrimônio, e que houvesse um

acordo quanto à guarda após o término da sociedade conjugal (Chaves, 1966, citado

por Weber, 2001).

Em 1979 foi instituído um novo Código de Menores (Lei 6.697 de 10/10/1979),

que trouxe mais progressos para a questão da adoção. Segundo Weber (2001), com

esse Código passou a haver três procedimentos para a adoção:

A Adoção Simples, regida pelo Código de Menores, que dependeria de

autorização judicial. Era voltada para os então chamados “menores em situação

irregular”, lhes conferindo direitos restritos, e assumindo mais um caráter de

controle social e proteção contra o risco representado por esses “menores”. Essa

adoção deveria ser precedida de estágio de convivência pelo prazo fixado pela

autoridade judiciária (em função da idade do adotando e das peculiaridades do

caso), podendo ser dispensado o estágio de convivência se o adotando tivesse

menos de um ano de idade;

A Adoção Plena, também regida pelo Código de Menores, que veio substituir a

Legitimação Adotiva, criada em 1965, visando especialmente os interesses dos

adotados. Por meio da Adoção Plena era atribuída ao adotado a situação de

filho, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os

impedimentos matrimoniais. Só poderia ser adotada a criança até 7 anos que se

encontrasse em situação irregular, e a criança acima de 7 anos se há época em

que completou essa idade já estivesse sob a guarda dos adotantes. De acordo

com a legislação, a Adoção Plena só seria deferida após período mínimo de um

ano de estágio de convivência, e poderiam adotar: casais, com ao menos um dos

cônjuges com idade superior a 30 anos, e que tivessem mais de 5 anos de

matrimônio – esse prazo seria dispensável se fosse provada a esterilidade de

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pelo menos um dos cônjuges – ; pessoas viúvas se provada integração da

criança em seu lar com estágio de convivência de três anos ainda em vida do

outro cônjuge; e pessoas separadas judicialmente, desde que tivesse havido um

estágio de convivência de três anos na constância da sociedade conjugal, e que

ambos acordassem sobre a guarda da criança. Ainda segundo a legislação, a

sentença concessiva da adoção seria inscrita no Registro Civil, no qual constaria

o nome dos pais adotivos como pais, bem como o nome de seus ascendentes; o

registro original seria cancelado, e nas certidões de registro não poderia constar

observação sobre a origem do ato; a sentença conferiria à criança o nome do

adotante, e a pedido desde o prenome poderia ser modificado; e a adoção plena

era irrevogável, e caso o adotante viesse ter outros filhos, o filho adotivo estaria

equiparado a eles em seus direitos e deveres;

A Adoção do Código Civil, denominada também “adoção tradicional” ou “adoção

civil”, que era feita através de escritura em cartório através de um contrato entre

as partes.

Esse novo Código, contrariamente às leis anteriores, traz algumas

especificações quanto à adoção de crianças brasileiras por estrangeiros. Fica

definido que os estrangeiros só podem realizar a Adoção Simples, ou seja, só

podem adotar crianças em situação irregular, ou então a Adoção do Código Civil

(Abreu, 2002).

A década de 80 foi foco de um novo cenário político e social no país, e foi um

período de calorosos debates e articulações, cujos frutos se materializaram em

importantes avanços, tais como a Constituição Federal de 1988, que passou a incluir

o artigo 227, sobre os direitos da criança. Nesse período ocorreram movimentos

significativos de lutas pelos direitos humanos e de proteção à infância, e logo após a

Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, realizada em 1989, o Brasil

criou uma nova lei específica para crianças e adolescentes, com base no artigo 227

da Constituição, com importantes inovações no que se refere aos direitos e deveres

de crianças e adolescentes, e também em relação à regulamentação para a adoção

(Weber, 1999). Em substituição ao Código de Menores de 1979, em 1990 foi

promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), fruto de uma grande

mobilização da sociedade civil. De acordo com Gomide (1999), quando o ECA foi

aprovado, era notável a carência de textos acadêmicos que pudessem orientar os

técnicos da área social na elaboração das diretrizes políticas e técnicas para o

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atendimento das crianças e adolescentes brasileiros, e isso era motivo de

preocupação. Mas o ECA se mostrou um dos mecanismos legais mais avançados

do mundo de proteção à infância e juventude, apesar de, na prática, suas diretrizes

ainda não terem se efetivado satisfatoriamente, mesmo hoje, após 15 anos de

promulgação.

Desde 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente é a lei que regulamenta

as adoções legais no Brasil. A partir do ECA passaram a existir apenas dois

procedimentos para a adoção: a Adoção Plena, para os menores de 18 anos, que

torna a criança ou adolescente adotado um filho com todos os direitos e deveres, e a

Adoção do Código Civil , que continua a subsistir para os maiores de 18 anos. A

Adoção Simples deixou de existir, pois o ECA passou a enfatizar a teoria da

proteção integral à infância, em lugar da mera proteção ao menor em situação

irregular. Assim, para as crianças e adolescentes toda adoção tornou-se plena e

irrevogável. Com a implantação do ECA o termo menor caiu em desuso, pois ficou

entendido que ele era utilizado para designar de modo preconceituoso as crianças e

adolescentes procedentes de classes sociais mais baixas, desprovidas de cidadania

(Weber, 2001).

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (2001), a adoção atribui a

condição de filho ao adotado, com todos os direitos e deveres, inclusive sucessórios,

sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. O filho

adotivo fica desligado de qualquer vínculo anterior com pais e parentes. O adotante

deve contar com no máximo 18 anos à data do pedido da adoção, a não ser que já

esteja sob a guarda ou tutela dos adotantes. Podem adotar os maiores de 21 anos,

independentemente do estado civil – pessoas solteiras, viúvas, concubinadas e

divorciadas –,e a adoção por ambos os cônjuges poderá ser formalizada desde que

pelo menos um deles tenha completado 21 anos de idade, comprovada a

estabilidade da família. Não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando,

e é necessário haver no mínimo 16 anos de diferença entre o adotante e o adotado.

Ainda de acordo com o ECA é permitida a realização de adoção póstuma,

caso o pretendente à adoção venha a falecer no curso do processo, e a adoção

unilateral, que ocorre quando um dos cônjuges adota o filho do companheiro. É

interessante ressaltar que a adoção unilateral se inicia com um tipo de relação

parental semelhante a de padrasto/madrasta, pois são casos de cônjuges que

adotam filhos da primeira união do outro. Cabe salientar que na literatura (Oliveira,

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2002) se faz uma distinção entre pais adotivos e padrasto ou madrasta. Consideram

pai/mãe adotivo (a) um indivíduo que provê cuidados paternos/maternos a uma

criança que não pertence à sua prole genética, enquanto o padrasto ou a madrasta

é aquele (a) que se ligou a um (a) companheiro (a) com prole dependente já

existente. Ou seja, nos pais adotivos o interesse inicial é um desejo de serem pais,

enquanto o padrasto ou madrasta tem como interesse inicial o cônjuge.

O ECA afirma que a adoção depende do consentimento dos pais ou do

representante legal do adotando, sendo este consentimento dispensado em relação

à criança ou adolescente cujos pais sejam desconhecidos ou tenham sido

destituídos do poder familiar. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a

suspensão ou perda do poder familiar nos casos em que os pais, injustificadamente,

deixarem de cumprir seus deveres de sustentar, ter sob guarda e educar os filhos,

submeterem-nos a abusos e maus tratos, ou, ainda, deixarem de cumprir

determinações judiciais no seu interesse (Becker, 2000). Assim, segundo Becker

(2000), pode-se dizer que a perda do poder familiar será decretada sempre que a

manutenção da criança ou do adolescente junto aos pais representar sério risco ao

seu desenvolvimento, à sua saúde ou até mesmo à sua vida.

É importante ressaltar que, de acordo com o ECA, a falta ou carência de

recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do

poder familiar, e não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da

medida, a criança ou o adolescente deve ser mantido em sua família de origem, a

qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio. Segundo

Becker (2000) é comum ocorrer uma confusão conceitual entre abandono e pobreza.

Costuma-se dizer que existem milhões de crianças abandonadas no Brasil, devido

ao fato de existirem muitas crianças nas ruas ou em abrigos, às vezes passando

fome e sem os cuidados básicos. Porém, a imensa maioria dessas crianças, mesmo

as que estão nas ruas ou recolhidas em abrigos, possuem vínculos familiares, e

estão nessas condições mais por uma questão de pobreza que de abandono. Muitas

vezes o que as leva a essa situação de risco não é a rejeição ou a negligência por

parte dos pais, e sim alternativas, às vezes desesperadas, de sobrevivência. Assim,

não é adequado ver a colocação em família substituta como uma solução para a

pobreza dessa população, visto que o que deveria ser feito, segundo a lei, seria uma

inclusão dessas famílias pobres em programas oficiais de auxílio. Mas essa inserção

em programas oficiais de auxílio, com o objetivo de possibilitar que a família

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biológica tenha condições de ficar com a criança, muitas vezes não acontece. De

acordo com Mariano e Rossetti-Ferreira (2004), em uma pesquisa que objetivou

caracterizar as famílias biológicas envolvidas em processos de adoção de crianças

na Comarca de Ribeirão Preto – SP, muitas famílias biológicas foram destituídas ou

delegaram o poder familiar por motivos associados à pobreza, e não foram

observados, no entanto, registros de inserção dessas famílias em programas de

auxílio (de reinserção no mercado de trabalho, de acesso a melhores condições de

moradia, de profissionalização, entre outros), para que pudessem ficar com os seus

filhos, de acordo com o que é estabelecido pelo ECA. Assim, fica evidente que a

inserção em programas oficiais de auxílio, que muitas vezes não acontece, deve ser

acompanhada por uma luta maior, por melhores condições de vida para toda a

população, com a criação de políticas governamentais que visem garantir condições

de vida adequadas aos amplos setores populacionais que estão na pobreza

extrema.

O ECA determina que, quando a adoção for uma solução viável, ela deve ser

precedida de estágio de convivência, sendo o prazo estabelecido ao arbítrio do

magistrado, de acordo com a necessidade de cada caso. O estágio de convivência

pode ser dispensado se o adotando estiver com menos de um ano de idade, ou se já

estiver sob a companhia do adotante por tempo suficiente para se poder avaliar a

conveniência da constituição do vínculo.

Conforme o Estatuto, sempre que possível a criança ou adolescente deverá

ser previamente ouvido sobre a adoção, e a sua opinião devidamente considerada.

Quando o adotando for maior de 12 anos, é necessário haver o seu consentimento

para que a adoção seja efetivada.

Quanto ao registro relativo ao processo, o ECA estabelece que o vínculo da

adoção constitui-se por sentença judicial e será inscrito no registro civil, constando o

nome dos adotantes como pais. O registro original do adotando será cancelado, e

será feito um novo registro conferindo ao adotado o nome do adotante e, a pedido

deste, poderá ser modificado o prenome. Nenhuma observação sobre a origem do

ato poderá constar nas certidões de registro. A partir do ECA fica proibida a adoção

por procuração, antes prevista pelo Código Civil, não sendo mais possível que um

advogado represente os adotantes no momento da adoção.

O ECA determina que a autoridade judiciária deverá manter em cada juizado

ou foro regional um registro de crianças e adolescentes em condições de serem

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adotados, e outro de pessoas interessadas na adoção. O deferimento da inscrição

será dado após prévia consulta aos órgãos técnicos do Juizado, ouvido o Ministério

Público, e não será deferida a inscrição se o interessado não satisfizer os requisitos

legais, se revelar, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida,

ou não oferecer ambiente familiar adequado. A adoção será deferida quando

apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos. Na

apreciação do pedido de adoção, e também nos demais casos de colocação em

família substituta, será levado em conta o grau de parentesco e a relação de

afinidade ou afetividade entre os envolvidos, a fim de evitar ou minorar as

conseqüências decorrentes da medida.

Nos termos do ECA, a colocação em família substituta estrangeira constitui

medida excepcional, somente admitida na modalidade de adoção. O candidato

estrangeiro deverá comprovar, mediante documento expedido pela autoridade

competente do respectivo domicílio, estar devidamente habilitado à adoção, de

acordo com as leis do seu país, bem como apresentar estudo psicossocial elaborado

por agência especializada no país de origem. A adoção internacional poderá estar

condicionada a estudo prévio e análise de uma Comissão Estadual Judiciária de

Adoção (CEJA), à qual competirá a função de manter um registro centralizado de

interessados estrangeiros na adoção. Antes de consumada a adoção não será

permitida a saída do adotando do território nacional, e em caso de adoção por

estrangeiro residente ou domiciliado fora do país, o estágio de convivência deve ser

cumprido em território nacional, e será de no mínimo 15 dias para crianças menores

de 2 anos, e de no mínimo 30 dias para maiores de 2 anos. Isso, segundo Abreu

(2002), obriga o estrangeiro a passar alguns dias no Brasil sob a observação dos

técnicos do judiciário, onde sua relação com a criança será observada.

Atualmente há um projeto de lei apresentado pelo deputado federal

catarinense João Matos (PMDB) que trata da Lei Nacional da Adoção. Esse projeto,

que está sendo debatido no Congresso Nacional, tem como objetivo acelerar o

processo de adoção nos juizados, que segundo o deputado pode demorar até 10

anos. Entre os pontos mais polêmicos do documento está a determinação de um

prazo para que seja julgada a destituição do poder familiar sobre uma criança

mantida em abrigo, para que ela possa ser declarada apta para adoção. A crítica

que se faz a esse ponto do projeto é que a adoção parece estar sendo apresentada

como uma solução para o abandono de crianças em abrigos, porém muitas dessas

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crianças estão lá não por abandono, e sim por falta de condição financeira das

famílias. Os que defendem o projeto chamam a atenção para a existência de uma

geração de crianças que estão nos abrigos e não podem ser adotadas pois têm

vínculos familiares (Neves, 2005, em reportagem do jornal A Tribuna de 16/01/05).

A partir do que foi exposto nota-se que, assim como em vários outros países

do mundo, a legislação sobre a adoção no Brasil tem um desenvolvimento muito

recente, tendo obtido maiores avanços apenas no século XX. Somente em 1990, ou

seja, há apenas cerca de 15 anos, o ECA equiparou definitivamente os direitos e

deveres dos filhos adotivos aos dos filhos biológicos, tornando a adoção plena e

irrevogável para todas as crianças e adolescentes, e proibindo quaisquer

designações discriminatórias relativas à filiação. Fazendo uma reflexão acerca desse

desenvolvimento legislativo relativamente tardio, percebe-se que no Brasil há um

conjunto de condições que não favorecem que a adoção seja alvo de atenções. A

população de crianças e jovens a ser adotada no país geralmente é proveniente de

classes populacionais economicamente desfavorecidas, e sabe-se que as políticas

governamentais geralmente não são direcionadas a essa parcela da população, e

quando o são, se mostram insuficientes para atender sua demanda. Além disso, se

há tantas crianças e adolescentes desprovidos de famílias e necessitando serem

adotados, isso é indício de que as políticas governamentais não conseguem

proteger os amplos setores da população que estão na pobreza extrema. Assim,

falar de adoção é de certa forma colocar em evidência a insuficiência de políticas

governamentais de amparo e assistência às camadas populares, que não dão

subsídios para que essas pessoas possam ter condições de criar e educar seus

filhos.

1.4.2. Atuação no judiciário

O Estatuto da Criança e do Adolescente aperfeiçoou o tratamento dado à

adoção no Brasil, e trouxe novas diretrizes ao Juiz da Infância e Juventude, criando

demandas inéditas aos profissionais que atuam no Judiciário, dentre eles o

psicólogo (Cassin e Jacquemin, 2001).

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, toda criança ou

adolescente tem direito a ser criado no seio de uma família e, excepcionalmente, em

família substituta, e só pode haver integração em família substituta quando

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esgotados os recursos de manutenção na família natural3. Desse modo, com o

objetivo de garantir os direitos de crianças e adolescentes, quando estes tiverem por

algum motivo sua convivência familiar abalada, são necessárias em primeiro lugar

medidas visando à manutenção dos vínculos com a família natural, e apenas na

impossibilidade de assim proceder, deve-se partir para a colocação em família

substituta, tendo em vista os interesses e direitos das crianças e dos adolescentes

em foco (Becker, 2000).

Conforme o ECA, a colocação em família substituta é uma medida

excepcional, que tem como função assegurar a convivência familiar de crianças e

adolescentes que tiveram esse direito violado, isto é, que foram separadas de seus

pais por motivos judicialmente conhecidos (Becker, 2000). Em geral destacam-se

quatro motivos básicos que podem levar à colocação em família substituta: a morte

dos progenitores, sendo que a criança ficará preferencialmente com membros da

família ampliada (avós, irmãos, tios, entre outros), e apenas na ausência ou

impossibilidade de tais parentes assumirem a criança, torna-se necessária a escolha

de uma família substituta alheia ao círculo consangüíneo; quando mães sozinhas

não desejam ou reconhecem não possuir condições para assumir a criação do filho,

decidindo entregar a criança; quando há perda do poder familiar por parte dos pais;

e quando os pais da criança são desconhecidos, ou se encontram em lugar

ignorado, depois de empreendidos todos os esforços para localizá-los, sem êxito, ou

ainda depois de localizados, ficar comprovado que tinham real e definitiva intenção

de abandonar os filhos, havendo nesses casos a perda do poder familiar (Becker,

2000).

Assim, mais uma vez segundo o ECA, quando os pais biológicos forem

desconhecidos, devem ser esgotados os recursos para que estes sejam

encontrados, antes de se decretar a perda do poder familiar, e de se liberar a criança

para ser colocada em família substituta. Mas, segundo Mariano e Rossetti-Ferreira

(2004), a partir de uma pesquisa que objetivou caracterizar as famílias biológicas

envolvidas em processos de adoção de crianças na Comarca de Ribeirão Preto –

SP, ficou evidenciado que nos processos avaliados, não foram esgotados os

recursos para que os pais biológicos fossem encontrados antes de perderem o

poder familiar. Segundo as autoras, a busca pelos pais biológicos geralmente é

3 O termo “família natural” é usado, no Estatuto da Criança e do Adolescente, para diferenciá-lo do termo

“família substituta” (Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 2001).

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inadequada, pois a intimação é feita pelo Diário Oficial, não levando em conta que

grande porcentagem dessa população é analfabeta, e que uma mínima

porcentagem tem acesso a essa publicação. Assim, segundo as autoras, não se

busca a reinserção da criança nas famílias biológicas, nem o desenvolvimento de

recursos familiares próprios para a manutenção dos filhos. Essa questão nos remete

a outra discussão, feita anteriormente, de que muitas crianças estão esquecidas nas

instituições, não sendo acompanhadas por seus familiares, e não podendo ser

adotadas pois seus pais não foram destituídos do poder familiar. Para que esses

pais possam ser destituídos do poder familiar, é necessário que sejam esgotados os

recursos para que estes sejam encontrados, pois a prioridade, segundo o ECA, é a

manutenção da criança na família de origem. Assim, ou não são empreendidos

esforços na busca da família de origem da criança, e esta permanece na instituição

sem poder ser adotada, ou quando são feitas buscas pelos pais biológicos, muitas

vezes estas se mostram inadequadas, havendo a possibilidade de os pais biológicos

da criança serem destituídos de seu poder familiar sem ficarem sabendo, mesmo

tendo a possibilidade de serem encontrados e, quem sabe, de ficarem com a

criança.

O ECA destaca três modalidades de colocação em família substituta: a

guarda, a tutela e a adoção. A guarda tem o caráter de provisoriedade, e obriga à

prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente,

dando ao seu detentor o direito de se opor a terceiros, inclusive aos pais. Becker

(2000) afirma que, de um modo geral, a guarda é concedida nos casos em que os

requerentes aguardam decisão judicial sobre concessão de tutela e adoção, em

casos de suspensão do poder familiar, enquanto se procede ao atendimento dos

pais biológicos visando à restauração dos vínculos ou à decisão definitiva sobre a

perda do poder familiar, nos casos em que a adoção não se aplica ou é inviável,

entre outros.

A tutela é aplicada geralmente no sentido de encarregar aqueles que

sucedem os pais no exercício do poder familiar, quando este é retirado dos pais por

determinação judicial ou em casos de orfandade, e implica a administração dos bens

e o dever de guarda. A tutela é preferencialmente cedida a pessoas do grupo

familiar (avós, irmãos maiores, tios, entre outros), podendo ser conferida a outros na

ausência ou impossibilidade dos familiares. Diferentemente da guarda, a tutela tem

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caráter definitivo, podendo ser destituída apenas nos casos em que se prevê a

destituição do poder familiar (Becker, 2000).

A adoção, de acordo com Becker (2000), é a forma mais definitiva e radical de

colocação em família substituta, pois a criança se torna um filho com todas as

conseqüências jurídicas e psicossociais que tal situação acarreta. A adoção é

indicada quando a criança é separada definitivamente de seus pais biológicos, e

quando não existem parentes com condições de assumir sua tutela.

Uma pessoa ou casal que tem interesse em adotar uma criança deve se

inscrever no Juizado da Infância e da Juventude da comarca4 de sua residência, e

entregar a documentação necessária, (isso inclui, em geral, documentos pessoais,

além de comprovante de renda e residência, atestado de sanidade física e mental e

“Declaração Nada Consta”, retirada no Fórum, referente aos antecedentes da

pessoa5). É importante ressaltar que o Estatuto da Criança e do Adolescente não

determina a documentação necessária para adoção, podendo esta ficar a critério do

Juizado.

De acordo com o art. 167 do ECA, “a autoridade judiciária, de ofício ou

requerimento das partes ou do Ministério Público, determinará a realização de

estudo social ou se possível, perícia por equipe interprofissional, decidindo sobre a

concessão de guarda provisória, bem como, no caso de adoção, sobre o estágio de

convivência”. Assim sendo, será feito um estudo psicossocial dos requerentes por

uma equipe técnica formada por psicólogo6 e assistente social (geralmente por meio

de entrevistas, mas o procedimento pode variar dependendo do Juizado), estudo

este que tem como objetivo dar ao Juiz e ao Ministério Público um parecer técnico

sobre as condições encontradas. Os psicólogos e assistentes sociais fazem um

estudo sobre os requerentes, seus interesses, e sobre as especificidades de seu

caso, além de fornecer orientação sobre o procedimento legal e os significados da

adoção. Será preenchido um cadastro, com informações sobre a pessoa ou casal,

assim como sobre as características da criança que se deseja adotar (como sexo,

cor de pele, idade e aspectos de saúde). Após feita a avaliação psicológica e social

é emitido um parecer técnico, em forma de laudo, que será anexado ao Processo, o

qual será avaliado pelo Ministério Público e pelo Juiz da Vara da Infância e

4 Divisão judicial de um Estado sob a jurisdição de um juiz de direito (Dicionário Silveira Bueno, 1990, p.159).

5 Informações obtidas no Juizado da Infância e Juventude de Vila Velha – ES.

6 Há comarcas em que não existe o cargo de psicólogo, e nesses casos ou não há psicólogos fazendo parte da

equipe técnica, ou os psicólogos que lá trabalham o fazem em desvio de função ou atuando voluntariamente.

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Juventude, que dará a decisão final sobre o cadastramento ou não dos interessados.

Estando entendido por todos que a pessoa ou casal está apto para adotar uma

criança ou adolescente, esta pessoa ou casal vai entrar numa fila de Cadastro de

Pretendentes à Adoção, e aguardará até que chegue a sua vez de adotar. Quando a

equipe técnica entende que o requerente está inapto para adotar uma criança ou

adolescente, esta não é, necessariamente, uma decisão definitiva, pois o

interessado pode passar por um período de reflexão e orientação, e ser reavaliado

posteriormente. Já os candidatos considerados inidôneos (aqueles que cometeram

faltas ou delitos graves, representando um risco à integridade da criança) têm sua

inscrição indeferida definitivamente (Oliveira, 2002).

Aqueles que entram no Cadastro de Pretendentes à Adoção ficam

aguardando numa fila, em ordem de inscrição, até que chegue sua vez de adotar e

até que haja a disponibilização de uma criança ou adolescente adequada ao seu

interesse. O Juizado deve ter um cadastro de crianças e adolescentes em condições

de serem adotadas, geralmente localizadas em abrigos sociais. Em geral o tempo de

espera pela adoção é longo (às vezes de alguns anos), e isso se deve,

principalmente, ao fato de que as pessoas em geral preferem recém nascidos

brancos, e a maioria das crianças que são disponibilizadas para adoção não são

mais recém nascidas, e geralmente têm a pele identificada como parda ou negra.

Quando houver alguma criança com as características apontadas pelo(s)

interessado(s), estes serão contactados e receberão informações sobre a criança,

sendo convidados a conhecê-la. Se houver um interesse na adoção daquela criança

(o que não é obrigatório, e caso não haja interesse a pessoa continua na fila de

cadastro), será iniciado um estágio de convivência (em alguns casos

desnecessário), e será dado início ao procedimento legal de adoção, que é

finalizado com a sentença do juiz e com o mandado de cancelamento (quando a

criança já foi registrada) e confecção de novo registro civil.

Um outro procedimento para adoção realizado nos Juizados denomina-se

intuitu personae (que no vocabulário jurídico significa “em consideração à pessoa”,

ou “obrigação contraída” 7), também conhecido como “adoção pronta”, e acontece

quando os pais biológicos escolhem a família para a qual desejam entregar seu filho.

Assim, a pessoa ou o casal adotante vai até o juiz, juntamente com os pais

7 Site do acadêmico de Direito, http://www.sadireito.com/web/dicionario/i.asp.

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biológicos e com a criança que lhe foi entregue por estes, e pede que seja iniciado o

processo de adoção dessa criança. Isso acontece porque o ECA, no artigo 166,

garante aos pais a possibilidade de indicar seu desejo de abdicar do poder familiar

em direção a outrem (Abreu, 2002). Nesse tipo de adoção ocorre um contato entre

pais de origem e adotivos, na medida em que são os pais de origem de escolhem

quem irá adotar a criança, mas esse contato não é necessariamente mantido

posteriormente, o que fica a critério dos pais adotivos.

Existem também casos de pessoas que comparecem às Varas da Infância e

da Juventude para legalizarem adoções de crianças ou adolescentes que estão sob

sua responsabilidade há muito tempo, mas não do ponto de vista legal. Muitas vezes

essas crianças ou adolescentes foram entregues pela própria mãe para que

“tomassem conta” de seus filhos, com posterior perda de contato (Oliveira, 2002).

Os casos mais complexos são aqueles em que o bebê é deixado na porta de

uma casa, ou em lugares públicos, e aqueles que o encontram resolvem adotá-lo.

Nesses casos não há um mesmo parâmetro que norteie o trabalho nas diferentes

Varas da Infância e Juventude, mas em geral os juizes dão prioridade aos interesse

das pessoas que já se encontram cadastradas no Juizado, não permitindo que a

criança fique com quem a encontrou, principalmente quando ela é ainda um bebê.

Essa decisão, geralmente, só é repensada quando a criança convive com a pessoa

que a encontrou a tempo suficiente para o estabelecimento de um vínculo afetivo,

principalmente se essa criança não é mais um bebê, e aí esse vínculo deve ser

levado em conta para decidir se a criança fica com quem a encontrou ou vai ser

adotada por uma pessoa ou casal cadastrados.

É importante ressaltar que, qualquer que seja o caso em que há interesse

pela adoção legal, é necessário que seja feito o estudo psicossocial, por equipe

técnica composta por psicólogo e assistente social, tanto do caso como das pessoas

que pretendem adotar.

De acordo com Ebrahim (2000) a colocação de uma criança em um lar

adotivo é uma decisão que deve ser cuidadosamente considerada pelas pessoas

envolvidas com o processo de adoção, dentre eles juízes, assistentes sociais e

psicólogos, e a resolução final da justiça deve ser pautada na probabilidade da

família adotiva satisfazer as necessidades da criança. Segundo Diniz (1991), devido

à complexidade da decisão a favor ou não da adoção, torna-se indispensável três

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tipos de considerações: de ordem jurídica, social e psicológica, sendo às vezes

necessárias considerações de ordem médica.

Todos os casos são decididos em última instância pela autoridade judiciária.

Técnicos e juízes devem avaliar cuidadosamente cada caso, e a solução mais

adequada dependerá da perícia dos atores institucionais envolvidos (Becker, 2000).

Campos e Costa (2004) realizaram investigação acerca da subjetividade

presente nos estudos psicossociais da adoção, e afirmaram que o processo de

estudo psicossocial muitas vezes gera desconforto, temor e ansiedade não só para

as famílias adotantes, mas também para os psicólogos e assistentes sociais que

realizam os estudos e acompanham os casos, pois a responsabilidade pelo “acerto”

da adoção e de ser alguém “juridicamente instituído” para fazer tais avaliações gera

sofrimento para o técnico. As autoras perceberam que há, durante o processo de

avaliação para adoção, uma reflexão dos técnicos a respeito de suas próprias

experiências em família, a partir de determinada classe social e cultural. Ainda

segundo as autoras, os próprios técnicos (psicólogos e assistentes sociais)

reconhecem que há a presença de um aspecto subjetivo da avaliação psicossocial,

e que essa subjetividade no processo pode dar margem a abusos de poder.

Henderson (2000) discute o fato de que muitas pessoas pensam que o

processo adotivo termina quando a criança vai de modo definitivo para a casa dos

pais adotivos, ou com a finalização do procedimento legal. O autor ressalta, no

entanto, que é a partir do início da convivência entre pais e filhos adotivos que

emerge uma série de dúvidas e dificuldades relacionadas à adoção, e que é nesse

momento que um acompanhamento de profissionais que trabalham com adoção se

mostra mais necessário. De acordo com Henderson (2000), muitas agências de

adoção norte americanas têm oferecido um serviço de acompanhamento após a

adoção, com o objetivo de atender às necessidades que vão surgindo relacionadas

ao processo adotivo. Tal acompanhamento após a adoção não é realizado com

freqüência pelos técnicos dos Juizados da Infância e Juventude, em função do

número reduzido de profissionais para atender a toda a demanda judicial.

Geralmente, no Brasil, quem realiza esse trabalho são os Grupos de Apoio à

Adoção, que costumam ser grupos sem fins lucrativos, cujos membros, em grande

maioria pais adotivos, trabalham voluntariamente para divulgar a adoção, prevenir o

abandono, preparar adotantes e acompanhar pais adotivos.

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Algumas críticas são feitas ao sistema oficial de adoção, principalmente em

relação à lentidão do procedimento. De acordo com Weber (1999), tanto as pessoas

que passaram pelo processo como aquelas que nunca entraram num Juizado,

acham que as adoções realizadas através dos Juizados são demoradas e

burocráticas. Oliveira (2002), ressalta que essas críticas não ocorrem sem

fundamento, e ao analisar o trabalho do psicólogo, afirma que na maioria das vezes

a demanda dos casos que ele atende, os prazos estabelecidos institucionalmente, e

a burocracia existente para a marcação dos atendimentos, que é feita através de

intimação, freqüentemente por via postal, impedem a agilização e a conclusão do

caso. Além disso, os psicólogos em geral atendem, além dos casos de adoção,

outros casos como o de crianças e adolescentes que se encontram em situação de

risco, como vitimização física, psicológica e/ou sexual, negligência, abandono,

abrigamento e desabrigamento em instituições sociais, entre outros, o que impede

que este profissional se dedique exclusivamente à agilização dos processos de

adoção.

Diante dessas questões, é fato que um número maior de psicólogos atuando

na área jurídica pode contribuir para a agilização dos casos que demandam o

atendimento desses profissionais. Apesar da reconhecida importância do trabalho do

psicólogo na área da Infância e Juventude, seja nos casos de adoção ou em outros

envolvendo crianças e adolescentes que chegam a essas Varas, percebe-se um

número bastante reduzido de profissionais trabalhando na área, de modo que o

número de psicólogos, geralmente, é bem inferior ao número de profissionais de

outras áreas que compõem a equipe técnica, como por exemplo o de assistentes

sociais. O poder judiciário, apesar de reconhecer publicamente a importância da

atuação do profissional de psicologia na área jurídica, realiza poucos concursos para

o cargo de psicólogo, e quando estes são realizados o número de vagas é

claramente insuficiente. Além disso, em muitas comarcas (como por exemplo em

todas do ES) ainda não existe o cargo de psicólogo, e nessas comarcas ou não há

psicólogos fazendo parte da equipe técnica, ou, quando há psicólogos, estes

trabalham em desvio de função (por exemplo, estão no cargo de comissários mas

trabalham como psicólogos), ou então atuam voluntariamente. Pode-se dizer que a

demanda existente nas áreas jurídicas prova o quanto é necessária a atuação do

profissional de psicologia, mas a inexistência do cargo de psicólogo em muitas

comarcas contribui para que o número desses profissionais em atuação seja

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reduzido, além de desestimular o ingresso de novos profissionais e de acarretar um

sentimento de não reconhecimento profissional nos psicólogos que estão atuando.

Essas questões colocam um dilema para os psicólogos que atuam voluntariamente

ou em desvio de função na área jurídica, pois enquanto houver profissionais

trabalhando nessas condições, dificilmente haverá iniciativas concretas para a

criação do cargo de psicólogo e para a realização de concursos. Mas ao mesmo

tempo, é a partir do momento em que há profissionais atuando diretamente no

judiciário, mesmo que voluntariamente ou em desvio de função, que se evidencia a

necessidade da atuação desse profissional para dar conta das demandas do

judiciário.

Um outro aspecto que deve ser levado em consideração ao se analisar o

número reduzido de psicólogos atuando nas áreas jurídicas é o fato de que a

Psicologia Jurídica, como área de atuação profissional, permite falar em

caracterização muito recente, contando com limitado material bibliográfico, o que faz

com que muitos profissionais não tenham conhecimento das diversas possibilidades

de atuação nesse campo. Para exemplificar o quanto é recente o trabalho do

psicólogo judiciário, Bernardi (2002) afirma que a inserção do psicólogo como

profissional do Poder Judiciário no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo se

deu em 1979, quando dois psicólogos iniciaram atuação voluntária na Vara da

Infância e Juventude, no trato das questões de crianças e adolescentes. Esses

profissionais foram contratados pelo Tribunal em 1981, e só em 1985 ocorreu o

primeiro concurso público para a capital de São Paulo, com a criação de 65 cargos

efetivos, fato que refletiu a busca de uma implementação definitiva da profissão na

área judiciária. Apenas com o ECA as equipes interprofissionais foram consideradas

obrigatórias nas Varas da Infância e Juventude, e a partir daí ocupação desse lugar

de psicólogo judiciário ocorreu como uma experiência nova, de criação de campo de

trabalho. Já no Juizado da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, segundo Teixeira

e Belém (2002), o Núcleo de Psicologia foi criado apenas em 1992, sendo que à

época não havia o cargo de Psicólogo no Poder Judiciário do Estado do Rio de

Janeiro, e foi necessário que se desviasse de função algumas funcionárias com

formação em Psicologia que ocupavam os cargos de Técnica Judiciária e

Comissária da Infância e Juventude para desenvolverem o trabalho.

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1.4.3. Adoções ilegais

As adoções ilegais, ou “adoções à brasileira”, são aquelas que não passam

pela esfera jurídica, ou seja, ocorrem quando uma pessoa encontra uma criança e a

registra num cartório como seu filho biológico, sem passar pelos trâmites legais da

adoção.

Para fazer um registro de nascimento num cartório é necessária a

apresentação do documento de identidade do responsável (pai ou mãe) que for

registrar a criança, certidão de casamento (se os pais forem casados), e um

documento da maternidade onde a criança nasceu, denominado “Declaração de

Nascidos Vivos”, indicando o nome da criança e dos pais biológicos. Se o parto foi

feito em casa, deve-se levar duas testemunhas que atestem o parto domiciliar, as

quais assinarão a documentação de registro. Esse procedimento é realizado para

crianças de até 11 anos, e para crianças acima desta idade o registro só é feito

mediante autorização judicial8. Assim, para uma pessoa registrar ilegalmente uma

criança de até 11 anos, ou seja, registrá-la como seu filho biológico, mesmo a

criança não o sendo, é necessário apenas levar duas testemunhas que declarem

falsamente a ocorrência de parto domiciliar.

A realização de registro civil falso, por exemplo, o de uma criança, pode fazer

com que a pessoa seja objeto de ação civil pública que vise à anulação do ato

jurídico (Abreu, 2002). Além disso, de acordo com o artigo 242 do Código Penal

Brasileiro, é crime “dar parto alheio como próprio, registrar como seu o filho de

outrem, ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando o direito

inerente ao estado civil”, tendo por pena “reclusão, de dois a seis anos”. Porém, de

acordo com o Código Penal, “se o crime é praticado por motivo de reconhecida

nobreza”, a pena é a “detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar

a pena”. Caso seja concedido o perdão judicial, o ato jurídico nem fica registrado, de

modo que o autor não perderia o direito de ser considerado réu primário em um

eventual crime futuro. Ou seja, a adoção ilegal é considerada crime de acordo com a

legislação brasileira, mas a própria lei é permissiva com quem o comete, podendo a

pessoa não sofrer qualquer tipo de penalização. Segundo Abreu (2002), é um crime

privilegiado, pois conta com uma condição atenuante, e acaba sendo incentivado na

ausência da aplicação da lei, pois quem o comete será perdoado. O fato é que

8 Informações obtidas no Cartório Sarlo, com endereço na Avenida Nossa Senhora da Penha, n.º 595, Praia do

Canto, Vitória-ES, em 11/01/2005.

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muitos não conseguem perceber essa prática como um crime, e sim como uma ação

para apressar a adoção, como um ato nobre, caridoso, motivado pelo desejo de

salvar a criança. Assim, as punições do Código Penal acabam não tendo força social

nem jurídica no que se refere às adoções ilegais, e isso tudo parece revelador dos

esquemas de percepção e ação postos em prática pela sociedade brasileira no que

diz respeito ao assunto. Em uma declaração feita à revista Época (23/08/04) sobre

adoções ilegais, numa reportagem de autoria de Mendonça e Fernandes (2004), o

próprio juiz da Primeira Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro afirmou:

“... quem vier aqui (ao Juizado) e confessar esse crime tem a situação regularizada e

o perdão da Justiça” (p.99).

Por outro lado, a legislação é extremamente rígida no que se refere à

prescrição do crime de falsificação de registro civil, pois, segundo o Código Penal, a

prescrição se dá após um período de 10 anos, mas só começa a correr a partir da

data em que o fato se tornou conhecido (artigo 111). Ou seja, o crime não começa a

prescrever antes que uma autoridade tome ciência do caso, o que garante, ao

menos temporalmente, a possibilidade de punição do autor pela justiça.

Abreu (2002) afirma que muitos operadores do direito não conhecem com

exatidão a lei que rege e pune a adoção à brasileira. Juizes e técnicos do juizado

desconhecem este crime e sua tipificação, seus efeitos e mesmo seus detalhes,

como, por exemplo, a particularidade da lei no que se refere à prescrição.

Segundo Fu I e Matarazzo (2001), a prática de adoção sem registro judicial é

um procedimento comum no Brasil. Não se sabe ao certo o número real de

adotantes ilegais no país, talvez devido à característica cultural do povo brasileiro

em diferenciar pouco os procedimentos legal e ilegal da adoção, e também à

despreocupação dos governantes em investir num cadastro que inclua as adoções

ilegais.

De acordo com alguns juízes, estima-se que a proporção varia de 80 a 90%

do total das adoções realizadas no Brasil, o que foi confirmado em alguns debates

entre membros do Judiciário, técnicos e militantes de grupos de apoio à adoção

(Abreu, 2002).

Apesar das incertezas dos números, tudo indica que essa proporção era

maior ainda no passado. Segundo Abreu (2002), antigamente os cartórios não eram

obrigados a exigir um documento da maternidade indicando o nome da criança e da

mãe biológica para que o bebê pudesse ser registrado. As adoções à brasileira se

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realizavam muitas vezes com a cumplicidade dos responsáveis pela execução das

adoções legais, e com a cumplicidade da sociedade. As ilegalidades ocorriam dentro

dos próprios juizados (destruição de documentos, entrega de guarda a pais não

cadastrados, entre outros), com o apoio, a cumplicidade, e mesmo a participação

ativa dos juízes e técnicos do juizado. Além disso, algumas adoções legais (a

Adoção Simples e a regida pelo Código Civil) não garantiam ao filho adotivo os

mesmos direitos do filho legítimo, e após uma adoção legal, no registro de filiação

constava o termo “adotado”, o que era visto com maus olhos pelos pais adotivos pois

era motivo de discriminação. Essas distinções foram abolidas em 1990 com a

entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, o que tenderia a facilitar

o uso da adoção legal e a diminuir as adoções à brasileira. Porém, outros

fenômenos continuam servindo de barreira à adoção legal, como a morosidade da

Justiça, e o fato de esta parecer, tanto para quem doa como para quem adota uma

criança, um poder ineficaz (Abreu, 2002).

Weber (1999) aponta alguns dos motivos que podem levar as pessoas que

querem adotar a romper com o sistema oficial de adoção: as pessoas em geral

acham que as adoções realizadas através dos Juizados são demoradas,

discriminatórias e burocráticas; alguns não confiam nos sistemas legais de adoção,

são imediatistas e não se conformam em ficar na lista de espera no momento em

que decidem adotar; o fato de a adoção ser controlada pelos técnicos do Juizado às

vezes é visto como uma invasão de privacidade; e o tempo estabelecido para a

guarda da criança antes da adoção muitas vezes é visto pelos adotantes como

traumático, porque eles não sabem se ficarão ou não com a criança.

Para as pessoas que resolvem romper com o sistema oficial de adoção

existem os intermediários, que são geralmente mulheres “caridosas” que indicam ou

arranjam bebês para pessoas que querem adotar, profissionais de saúde como

médicos e enfermeiras, e às vezes os próprios serviços assistenciais e judiciais e as

maternidades, que oferecem dinheiro para a mãe biológica para que seu filho seja

inscrito como filho legítimo da pessoa ou casal adotante (Weber, 1999).

De acordo com Abreu (2002), as próprias mães biológicas preferem agir

pessoalmente quando querem entregar um filho para adoção, sem a interferência da

justiça. Parece que o fato de ter um contato pessoal com o mediador ou com os pais

adotivos é mais reconfortante para essas mães do que entregar a criança para o

anonimato e a impessoalidade estatal, dando a sensação de que não entregou o

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filho para qualquer um, de que sabe quem vai criá-lo e de que vão cuidar bem dele.

O Estado, como mediador de adoções, não parece a essas mães uma entidade

suficientemente consistente e confiável para a qual a criança pudesse ser entregue.

1.5. Motivações para a adoção

Reppold e Hutz (2003) argumentam que os fatores que determinam as

motivações para a adoção são um tema bastante polêmico entre pesquisadores da

área, especialmente após a promulgação do artigo 43 do Estatuto da Criança e do

Adolescente, que estabelece que “a adoção será deferida quando apresentar reais

vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos” (2002, p.41). Desde

então são freqüentemente discutidos os critérios referentes à legitimidade das

intenções de pais adotivos.

Reppold e Hutz (2003) afirmam que, em geral, a percepção social sobre o que

leva as pessoas a adotar centra-se em dois pólos antagônicos: o altruísmo

(comportamento pró-social que visa atender as necessidades alheias em detrimento

de benefícios ou interesses particulares) ou o hedonismo (busca da satisfação dos

próprios desejos). Frente à crença de que a adoção implica maior risco pessoal e

social de desajustamento, observa-se que muitas pessoas interpretam a adoção

como um ato de altruísmo e abnegação, sendo muito associada no imaginário social

à caridade e à filantropia. Porém, o fato de as famílias adotantes, em sua maioria,

imporem alguns requisitos sobre os atributos pessoais da criança ou adolescente a

ser adotado evidencia que a aceitação não é incondicional, nem regida pela lógica

de alcançar o interesse do outro em detrimento de seus próprios interesses. Dentre

as motivações consideradas hedonistas estão a busca, na adoção, de uma forma de

suprir o desejo de parentalidade, de atender ao anseio pessoal de ser um cuidador,

de perpetuar algumas tradições familiares através do legado dos filhos, ou de

responder à pressão social que impõe a necessidade de ter filhos. Além disso, pode-

se apontar ainda aquelas motivações hedonistas que centram suas intenções em

uma relação de submissão, gratidão e reconhecimento a ser estabelecida com o

adotado, algumas vezes tendo a adoção o propósito de o filho ajudar nos afazeres

domésticos, na criação dos irmãos menores ou no cuidado e atendimento às

necessidades do adotante no futuro.

Reppold e Hutz (2003), a partir de um estudo com mães adotivas e biológicas

que objetivou investigar algumas características psicossociais de mães adotivas,

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dentre elas motivações à adoção, o nível de julgamento moral e as crenças de locus

de controle (crenças que os sujeitos estabelecem sobre as fontes de controle dos

seus comportamentos), revelaram que as análises não indicaram diferenças

significativas entre o tipo de maternidade (biológica ou por adoção) e as variáveis

investigadas, o que aponta, segundo os autores, para a necessidade de

desmistificar as afirmações do senso comum que indicam uma expectativa de maior

filantropia ou maior hedonismo (extremos considerados importantes fatores

motivacionais para adoção) entre os adotantes.

As pesquisas mostram, segundo Weber (1999), que as pessoas, em sua

maioria, adotam exatamente pelas mesmas razões que levam as pessoas a terem

filhos biológicos: querer uma criança, querer dar e receber amor, querer ter uma

família. Pesquisa realizada por Weber (2003) sobre conceitos e preconceitos acerca

da adoção aponta algumas motivações mais freqüentes para a adoção, dentre elas:

“ajudar a criança”, “satisfazer seu desejo de ser pai/mãe”, “poder escolher o sexo da

criança”, “por gostar de criança”, e “para a criança ajudar nos serviços domésticos”.

Weber (1999) aponta ainda outras motivações, como “não poder ter filhos”, “ajudar

um parente com dificuldades”, “por acaso, quando a criança aparece em suas vidas”,

e ainda “simplesmente por querer adotar”. Essa última motivação sugere que,

embora muitas pessoas que realizam uma adoção passem por um período de

reflexão antes da efetivação do ato, algumas vezes essas pessoas não conseguem

explicitar ou explicar os motivos de seu interesse pela adoção. Isso pode estar

relacionado ao fato de que, numa concepção social, a escolha por ter filhos é vista

como algo “natural”, e muitas vezes não requer qualquer explicação.

Reppold e Hutz (2003) relataram que 60% das participantes de sua pesquisa,

na qual foram investigadas características psicossociais de mães adotivas,

relacionaram adoção a problemas de fertilidade. Os demais motivos citados para a

adoção foram o desejo de maternidade de mulheres solteiras (10%), a importância

social (10%), a perda de um filho (5%) e o acolhimento de um parente (5%).

Cassin e Jacquemin (2001), em pesquisa realizada junto ao Setor de Serviço

Social e Psicologia do Fórum da Comarca de Ribeirão Preto, apontaram algumas

das motivações para adoção consideradas ilegítimas ou inadequadas, dentre elas:

preencher um vazio, satisfazer outra pessoa, salvar o casamento, promessa,

caridade, ter companhia, e substituir afetivamente um filho morto ou uma gravidez

interrompida. De acordo com Reppold e Hutz (2003), alguns pesquisadores afirmam

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que as adoções motivadas pela perda recente de um filho ou parente próximo

implicam potenciais dificuldades de adaptação decorrentes da fragilidade em que os

pais se encontram naquele momento, e o luto a ser elaborado pode ser um

obstáculo para a criação de uma rede de apoio que ajude o filho adotivo a construir

um autoconceito positivo. Reppold e Hutz (2003) apontam ainda outra motivação

considerada inadequada para a adoção, que é a crença de que a inclusão de uma

criança na família aumentaria a probabilidade de fecundação de casais com

problemas de fertilidade. Desse modo a criança ou o adolescente adotivo estaria

sendo visto como um meio e não como um fim, sendo utilizado para diminuir a

ansiedade frente às dificuldades de reprodução e aumentar as chances de

concepção.

Weber (2003), a partir de uma pesquisa realizada com pais e filhos adotivos,

afirma não haver correlações significativas entre motivações para o exercício da

parentalidade adotiva e o sucesso da adoção, pois apesar de muitas das adoções

pesquisadas terem se fundado em motivações consideradas ilegítimas, elas foram

bem sucedidas. Segundo Weber (2003) a maioria absoluta dos pais entrevistados

consideraram muito bom o desempenho escolar do(s) seu(s) filho(s), falaram deles

com características positivas, consideraram ótimo o relacionamento com seu(s)

filho(s), não encontraram dificuldades em sua educação, relataram acreditar que é

possível gostar da mesma maneira de filhos biológicos e adotivos, e aconselhariam

outros casais a adotar.

Segundo Reppold e Hutz (2003), alguns autores afirmam que muitos técnicos

subestimam a capacidade de adaptação dos adotados, contra indicando a adoção

em alguns casos sem oferecer aos postulantes à adoção um espaço para reflexão e

preparação para mudanças. Reppold e Hutz (2003) afirmam que não há consenso

entre os profissionais sobre a associação entre motivações para a adoção e a

qualidade da relação estabelecida entre pais e filhos, o que provavelmente se deve

ao fato de a avaliação de um aspecto isolado da adoção ser pouco efetiva frente à

diversidade de variáveis envolvidas na saúde emocional dos membros de famílias

adotivas.

1.6. Revelação da adoção no âmbito familiar

De acordo com Schettini Filho (1999), a decisão de adotar implica outras

decisões que não poderão ser evitadas ou ignoradas, dentre elas a revelação ou

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não da adoção para o filho. Segundo esse autor há três alternativas possíveis:

revelar oportunamente a origem ao filho; negá-la, construindo uma nova e falsa

história; ou sempre adiar a decisão sobre o assunto. O autor afirma que muitos

aspectos importantes da relação interpessoal entre pais e filhos são influenciados

pela atitude assumida a respeito da origem do filho, e que após a decisão de adotar,

revelar a adoção talvez seja a iniciativa de maior importância e repercussão na

família adotiva.

Vários autores (Piccini, 1986; Schettini Filho, 1999; Weber, 1999; Cassin e

Jacquemin, 2001; Kumamoto, 2001) afirmam que a revelação da adoção para o filho

é fundamental, pois está ligada à formação de sua identidade e de sua história

pessoal, e consequentemente à construção de sua relação com o mundo e com a

vida: “ignorar a questão, a guisa de proteção, é uma atitude que parece ligar,

aproximar e preservar, porém leva ao distanciamento e à deterioração, pois se

fundamenta na negação e no silêncio, propiciando insegurança, desconfiança e

desilusão” (Schettini Filho, 1999 p.15). De acordo com Marin (1991) a criança tem

direito a conhecer e discutir sua história, a participar ativamente do processo

histórico que a determinou e do qual faz parte, sendo um agente nesse processo.

Piccini (1986) ressalta que quando é escolhida a opção de guardar segredos

ou de relatar inverdades sobre a adoção, na tentativa de escamotear eventuais

problemas, outros bem mais graves poderão surgir para os pais e, sobretudo, para a

própria criança. Segundo Oliveira (2002), o segredo pode ser considerado como um

fator estruturante de conflitos psicológicos e desvios, dando à adoção uma condição

apriorística de dificuldade e risco. A partir do relato de três casos verídicos retirados

de prontuários clínicos, Piccini (1986) descreveu algumas conseqüências negativas,

psicológicas e sociais, decorrentes principalmente da insegurança dos pais adotivos

em assumirem-se serenamente como tais, dentre elas dificuldade de relacionamento

entre pais e filhos, falta de confiança nas relações interpessoais, instabilidade

emocional, desenvolvimento de problemas de saúde com fundo emocional, queda

no rendimento escolar do filho, entre outras.

Cassin e Jacquemin (2001) apontam que, apesar de a literatura ser

unanimemente favorável à revelação da adoção para o filho, parece haver

contradições, inclusive legais, no que se refere a essa questão. O Estatuto da

Criança e do Adolescente resulta de uma preocupação pela inclusão e pela

igualdade de direitos a todas as crianças, mas determina que nada conste no

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registro da criança adotada sobre sua verdadeira história. Quando uma criança é

adotada, ela é registrada legalmente pelos pais adotivos, não havendo nenhuma

informação nesse registro que evidencie a adoção. Quando a criança já tem algum

registro antes de ser adotada, com a adoção este registro é anulado com todas as

informações nele contidas, inclusive sobre os pais biológicos dessa criança. Esses

procedimentos se mostram questionáveis, pois se a lei garante iguais direitos aos

filhos adotivos e biológicos, não faz sentido a adoção permanecer oculta, na

clandestinidade, em obediência à lei. Além do mais, isso se mostra contrário às

orientações sugeridas pela literatura no sentido da revelação para o filho de que ele

é adotivo, pois a própria lei se encarrega de apagar todas as informações que

evidenciam a adoção. Mas essa aparente contradição, certamente polêmica, merece

ser relativizada, pois se deve levar em conta que numa sociedade em que há ainda

tantos preconceitos em relação à criança adotiva, talvez o fato de constar no registro

da criança informações que evidenciem a adoção possa ser um fator que

desestimule a procura pela realização de adoções legais, na tentativa de minimizar

os preconceitos e discriminações em relação à criança.

Vários autores (Piccini, 1986; Schettini Filho, 1999; Kumamoto, 2001)

analisaram a atitude de pais adotivos que, de forma completa ou parcial, tentam

manter segredo sobre a origem biológica de seus filhos, e ressaltaram alguns

motivos que podem levar a isso. Uma das finalidades do segredo seria tentar

preservar a vida do filho, diante da estigmatização e da discriminação social ainda

vigentes na sociedade em relação à criança adotada (Piccini, 1986; Schettini Filho,

1999; Kumamoto, 2001). O segredo também pode ser mantido com base na idéia de

que a criança adotada pode ter tido um “passado vergonhoso”, e tocar em épocas

passadas dolorosas poderia magoá-la (Schettini Filho, 1999; Piccini, 1986). O

segredo sobre a adoção serve ainda para proteger pais inférteis das cobranças da

sociedade, a qual impõe às pessoas a obrigatoriedade de gerar filhos para que

sejam consideradas “normais”. A infertilidade pode acarretar um sentimento de

incompletude que se confunde com a idéia de inferioridade, o que pode levar a

mecanismos de fuga como a negação e o segredo (Schettini Filho, 1999). Além

disso, a supervalorização da biologia em nossa sociedade pode levar a crer que o

relacionamento de pais adotivos com seu filho será de segunda categoria, o que

explica o sentimento de inferioridade e até de culpa de certos pais diante da

hipótese de terem que revelar a adoção (Schettini Filho, 1999; Piccini, 1986;

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Kumamoto, 2001). Esse fato, segundo Piccini (1986), pode provocar na criança

sentimentos de insegurança e até de desvalorização dos pais adotivos, pela

ambigüidade e auto-desvalorização nas quais eles próprios se colocam.

Segundo Piccini (1986), outras razões que tornam difícil aos pais adotivos

revelarem a adoção para o filho são: a angústia de serem menos amados por ele e

de terem contra si sua revolta após a revelação; a preocupação de incentivar nele,

involuntariamente, aspirações de reencontrar a família originária; e, quando o filho foi

registrado como sendo legítimo, acrescenta-se o medo de punições legais, ao se

tornar patente a anterior falsa declaração em ato público.

Um outro motivo que pode contribuir para a manutenção do segredo sobre a

adoção foi o que Schettini Filho (1999) denominou como rejeição à diferença: o fato

de o filho adotivo ser diferente dos outros filhos do ponto de vista da formação de

sua história de vida pode ser visto como uma inferioridade ou deficiência, e por isso

a adoção é negada a todo custo. Schettini Filho (1999) afirma que não se pode

negar que o filho adotivo é diferente dos outros filhos do ponto de vista da formação

de sua história de vida, mas isso não deve ser visto como uma inferioridade. Weber

(2004) afirma que a parentalidade biológica e a adotiva tem a mesma importância,

mas a contingência de uma família adotiva traz características especiais que não

devem ser negadas, mas sim assumidas totalmente. Na tentativa de negar as

diferenças, às vezes pais adotivos tentam camuflar a relação adotiva e imitar uma

família biológica. Segundo Ebrahim (2000) a situação da adoção não é

necessariamente um elemento complicador, se as diferenças forem percebidas

como pertinentes a todos os indivíduos. O diferente pode tornar-se fator de

crescimento, mobilizando as pessoas e tirando-as da estagnação que a facilidade da

semelhança pode trazer.

De acordo com Piccini (1986), apesar de a revelação da adoção para a

criança ser geralmente o melhor caminho, não se deve forçar os pais adotivos a

fazer revelações que eles sentem que são impossíveis de serem feitas, pois se

achando obrigados a falar sem estarem convencidos, dificilmente conseguirão

favorecer no filho a elaboração daquilo que eles próprios não elaboraram.

Quanto ao momento em que a revelação sobre a adoção deve ser feita ao

filho, Schettini Filho (1999) afirma que não é possível oferecer uma resposta

padronizada, pois dependerá de fatores ambientais no grupo familiar, da preparação

dos pais para tomarem a iniciativa, e do momento de desenvolvimento de cada

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criança. Mas, apesar de não haver uma resposta padrão, alguns direcionamentos

são importantes. É quase unânime entre os autores a idéia de que é importante que

a adoção seja contada “o mais cedo possível”, o que, tendo em vista a situação

individual de cada criança, segundo Schettini Filho (1999), significa contar entre os 2

ou 3 anos. O autor afirma que essa é uma boa época para se contar a história da

adoção pois a criança não exigirá detalhes, nem questionará a informação, o que

deixará os pais mais à vontade para estabelecerem até que ponto devem falar, ao

mesmo tempo em que se sentirão mais liberados das tensões e do medo da

revelação. Porém esse é um processo que irá se prolongar, e as questões irão

tomando novas formas de acordo com o desenvolvimento da criança, com a

finalidade de preencher os vazios deixados pelas informações resumidas do início.

Segundo Schettini Filho (1999), na medida em que for adiada a decisão de

revelar a adoção para a criança, maiores cuidados deverão ser tomados ao abordar

o assunto, pois a revelação tardia tende a acrescentar dificuldades para pais e filhos.

Em situações em que a revelação ocorre após 5 ou 6 anos de idade, os benefícios

do conhecimento da história podem vir juntos com os prejuízos decorrentes da forma

pela qual ela é interpretada pela criança. Piccini (1986) afirma que, quando a

revelação se dá tardiamente, fica imediatamente evidente que até então os pais não

foram sinceros, e em decorrência disso a confiança do filho neles poderia diminuir,

de modo que a decepção por ter sido enganado durante tanto tempo pode dificultar

a justa avaliação pelo filho de todo o convívio com os pais adotivos. Além disso, pelo

fato de os pais esconderem o ato da adoção, será fácil para a criança concluir que

se trata de algo vergonhoso, condenável ou indigno, pois se não, não se justificaria o

silêncio a respeito da questão.

De acordo com Piccini (1986), quando o filho adotivo traz as primeiras

dúvidas sobre sua vinda, se lhe forem fornecidas imediatamente respostas

esclarecedoras, na medida certa de suas perguntas, ele irá se acostumando a

encarar a sua verdade. Schettini Filho (1999) discorda que os pais devam aguardar

as perguntas dos filhos, pois não parece provável que uma criança bem pequena

tomasse essa iniciativa de fazer esse tipo de questionamento, e se o fizesse, seria

indício de alguma informação ou percepção anterior, o que estaria indicando que os

pais demoraram a falar no assunto. Mas ambos os autores concordam que se os

pais passarem as informações com segurança, empatia e afeto, possibilitarão que a

criança se sinta seguramente aceita e inserida na família.

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Weber (2003), a partir de pesquisa realizada com pais e filhos adotivos,

afirma que a maioria dos filhos adotivos soube de sua condição desde pequenos, e

isso não passou a ser um evento traumático para eles. Isso parece mostrar, segundo

a autora, que uma boa forma de revelar ao filho que ele é adotivo é aos poucos, com

naturalidade, e quando ele ainda é pequeno, pois a pesquisa indica que aqueles que

souberam após os 6 anos de idade foram mais propícios a ter algum tipo de

problema. A maioria absoluta dos filhos adotivos revelou que não conhecia seus pais

biológicos, não tinha informações sobre eles e não tinha desejo de conhecê-los.

Aqueles que conheciam os pais biológicos ou tinham informações sobre eles

afirmaram gostar dessa situação. Além disso, a maioria dos filhos adotivos achava

importante que os pais adotivos soubessem da história da criança adotada para que

pudessem contá-la quando solicitados.

1.7. Entrega do filho para adoção

Mello e Dias (2003) afirmam que existem ainda poucos estudos que se

referem à entrega de um filho para adoção. Segundo Mariano e Rossetti-Ferreira

(2004), em estudos sobre adoções de crianças e adolescentes, as famílias

biológicas raramente são abordadas, e quando é possível obter informação sobre a

família biológica, sabe-se menos sobre os pais do que sobre as mães. Mello e Dias

(2003) ressaltam que a entrega da criança é geralmente feita pela mãe, ficando o pai

omisso nesse processo, muitas vezes por nem saber da gravidez ou por ter

abandonado a companheira e o filho. Costa e Campos (2003) afirmam que, apesar

de em muitos casos realmente não ser possível obter informações sobre o pai

biológico da criança, deve-se levar em conta também que as diferenças culturais em

relação à vivência parental de cada gênero podem levar os profissionais que

trabalham com adoção a priorizarem a obtenção de mais informações sobre as

genitoras do que sobre os genitores.

Weber (1999) aponta que a oferta em relação à adoção em geral constitui-se

numa tríade integrada por pobreza, mãe sem um companheiro estável e baixo nível

sócio-educacional. Em uma pesquisa que objetivou caracterizar as famílias

biológicas envolvidas em processos de adoção de crianças na Comarca de Ribeirão

Preto – SP, Mariano e Rossetti-Ferreira (2004) encontraram que a maioria das mães

biológicas tinha entre 17 e 30 anos, apresentava baixa escolaridade, morava em

bairros populares, e exercia profissões de baixa qualificação (vendedoras

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ambulantes, domésticas, diaristas e/ou faxineiras, donas de casa), ou estava

desempregada. Ficou evidente que a entrega do filho em adoção esteve fortemente

marcada por questões econômicas, surgindo de forma muito clara a associação

entre condição sócio-econômica desfavorável e a doação de filhos. Segundo

Mariano e Rossetti-Ferreira (2004), as famílias biológicas geralmente fazem uso da

rede de apoio social para compartilharem o cuidado dos filhos, e apenas quando

essa rede se esgota, ou seja, quando não é mais possível contar com a colaboração

de outras pessoas, é que encontram a adoção com “alternativa”. De acordo com a

pesquisa, os principais motivos relatados pelos pais (principalmente pelas mães)

para a entrega do filho para adoção foram: não reunir condições materiais para

manter a criança, falta de apoio familiar, falta de apoio do pai da criança, e

problemas de saúde física ou mental com a mãe.

Freundlich (2002) afirma que nos Estado Unidos as pesquisas indicam que

muitas mães que entregam os filhos para adoção são adolescentes solteiras, e que

alguns fatores estão relacionados à decisão dessa mãe de entregar o filho para

adoção, dentre eles a ausência de participação da mãe da adolescente grávida e do

pai biológico da criança na vida da adolescente, e o contato com os possíveis

futuros pais adotivos da criança.

De acordo com Diniz (1991), a decisão de renunciar à criança raramente é

tomada pela mãe antes ou logo após o parto, e por isso são poucos os casos de

doação de bebês recém nascidos para adoção. Segundo o autor isso ocorre devido

a alguns aspectos, dentre eles a ignorância, por parte da mãe, sobre a possibilidade

da adoção, a existência de dificuldades pessoais, e as pressões sociais, pois

dependendo do seu meio ambiente, uma solução desse gênero é vista como

altamente condenável.

Mello e Dias (2003) realizaram um trabalho que procurou investigar como os

indivíduos percebem a pessoa que entrega um filho para adoção e as circunstâncias

que envolvem esse ato. Segundo as autoras, os sujeitos percebem as pessoas

doadoras como incapazes de criar o filho devido à situação financeira, à imaturidade

e à irresponsabilidade, como se para essas pessoas a doação fosse a última

alternativa para o desenvolvimento da criança. Quanto aos motivos que levam à

doação de um filho, percebe-se uma ambivalência entre as respostas, pois enquanto

alguns acham que o motivo seria achar que outra pessoa cuidaria melhor do seu

filho, outros acreditam que é por falta de preocupação com o filho e por excesso de

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egoísmo. Além disso, as pessoas acreditam que a falta de condições financeiras, a

ignorância e a imaturidade dos doadores são aspectos motivadores da doação de

um filho. As pessoas acreditam ainda que as repercussões da doação na vida do

doador são sentimentos de perda, vazio, culpa, remorso, desespero, amargura,

preocupação com o futuro do filho, arrependimento e dúvidas sobre seu ato. De

acordo com Mello e Dias (2003), algumas pessoas não acham que a doação seja

justificável, outras acreditam que a doação só é justificável em casos extremos,

como prostituição, uso de drogas, violência, falta de condições financeiras e risco de

vida por parte dos pais biológicos, e outras ainda acreditam que a doação é

justificável no caso de imaturidade dos pais. Costa e Campos (2003) afirmam que,

muitas vezes, a alegação de falta de condições financeiras e materiais por parte das

genitoras que entregam a criança para adoção parece ser de mais fácil aceitação

por parte das outras pessoas e acarretar uma menor sanção social.

Segundo Mello e Dias (2003), as pessoas vêem alguns pontos positivos na

doação de uma criança, dentre eles a continuidade da vida da criança, a oferta de

cuidados e condições de sobrevivência a ela, e o fato de não ter sido praticado um

aborto. Todos esses aspectos nos remetem ao histórico da adoção, que enfatiza a

prática do infanticídio como forma de os pais se livrarem de crianças indesejáveis.

Além disso, outro ponto positivo destacado foi a possibilidade de fazer outras

pessoas felizes, uma vez que a doação possibilita que as pessoas que não podem

gerar tenham filhos.

1.8. Reencontro com pais biológicos

Hartman (1994, citado por Oliveira, 2002) afirma que o assunto do reencontro

entre filho adotivo e pais biológicos na maioria das vezes é um tabu para os pais

adotivos, os quais temem perder o amor do filho caso o reencontro venha a se

efetivar. Mas estudos têm indicado que se os pais adotivos encararem com

naturalidade o desejo dos filhos de irem em busca de sua origem, e até os

auxiliarem nesta busca, isso pode se tornar um fator de proximidade entre eles.

Hartman (1994, citado por Oliveira, 2002) afirma ainda que em geral os pais

biológicos também desejam ser encontrados, e um exemplo disso é que no estado

de Michigan foi facultado o direito de as mães biológicas deixarem informações para

os filhos entregues por elas para adoção, para se algum dia eles quisessem procurá-

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las, e a partir daí cerca de 98% das mães que doam seus filhos passaram a deixar

informações.

Mello e Dias (2003), no já citado trabalho que investigou como os indivíduos

percebem a pessoa que entrega um filho para adoção e as circunstâncias que

envolvem esse ato, pesquisaram como as pessoas percebem o direito ao reencontro

do doador com o filho. A maioria dos participantes acredita que é um direito da

criança conhecer seus pais biológicos, e outras acreditam que depende do contexto.

Uma minoria acredita que o reencontro deve atender ao interesse dos pais adotivos,

e que só deveria ocorrer em casos extremos, e há pessoas que acreditam que o

reencontro entre pais doadores e filho não deve ser permitido.

Miall e March (2005), a partir de uma pesquisa realizada no Canadá que

objetivou analisar mudanças nas práticas de adoção a partir da opinião da

comunidade, tendo em vista que a opinião popular tem afetado as políticas e

práticas acerca da implementação de novos tipos de famílias adotivas, examinaram

o nível de aprovação da comunidade acerca do encontro entre adultos adotados e

seus pais biológicos (“birth reunions”). Segundo as autoras, a grande maioria dos

participantes (91%) aprovam o encontro entre filhos adotivos adultos e seus pais

biológicos. Foi perguntado ainda se as pessoas eram favoráveis à revelação de

informações de identificação dos pais biológicos aos adultos adotivos, e a grande

maioria afirmou que sim, de modo que 84% acham que essas informações devem

ser reveladas aos adultos adotivos mesmo se for contra a vontade dos pais adotivos,

e 77% acham que essa revelação deve ser feita mesmo se for contra a vontade dos

pais biológicos. Quando foi perguntado se deveriam ser dadas informações de

identificação sobre os filhos adotivos aos pais biológicos, a maioria dos participantes

foi favorável, mesmo que isso ocorresse sem a permissão dos pais adotivos (55%).

Porém, apesar de a maioria ser favorável à liberação de informações sobre os filhos

adotivos aos pais biológicos, a maioria (55%) discorda que isso seja feito sem a

permissão do adulto adotivo envolvido.

Oliveira (2002) afirma que, na tentativa de se igualar a uma família biológica,

a família adotiva muitas vezes tenta negar ou minimizar qualquer situação que

demonstre suas diferenças. Uma das maiores evidências dessa diferença entre

ambas as famílias, segundo a autora, é a existência da família biológica, e por isso

uma ligação entre estas deve ser totalmente inexistente na visão de muitas pessoas.

Essa ausência de ligação entre as famílias biológica e adotiva é uma característica

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da maioria das adoções realizadas no Brasil, as quais são denominadas adoções

fechadas. As adoções fechadas são aquelas em que não há contato entre as

famílias biológica e adotiva da criança, e esta tem sua história de origem “apagada”.

Já as adoções denominadas abertas, praticadas em algumas sociedades ocidentais,

as relações entre as famílias por adoção e de origem permanecem após a entrega

do adotado, seja por meio de um mínimo contato com a presença de um mediador,

até a possibilidade de continuar os contatos mediante correspondência ou visitas.

Nesse caso o adotado tem conhecimento de sua história de vida.

De acordo com Freundlich (2002), as pesquisas que analisam os efeitos das

adoções abertas para a tríade envolvida no processo adotivo (pais biológicos,

criança adotada e pais adotivos) ainda são limitadas, pois a prática desse tipo de

adoção tem um desenvolvimento recente. Os adeptos da adoção aberta enfatizam

os fundamentos éticos dessa modalidade. Oliveira (2002) aponta alguns benefícios

da adoção aberta para a mãe adotiva, para a família adotiva, e para a criança

adotada. Para a mãe adotiva haveria vantagens como a participação ativa na

escolha da família adotante, a possibilidade de apoio financeiro para sua

manutenção e despesas médicas, a manutenção do vínculo com a família adotante

e com a criança, entre outras. Para a família adotiva, as vantagens seriam a

obtenção de informação sobre o entorno biológico e social de seu filho, o alívio do

possível sentimento de culpa que os pais podem experimentar por crerem que estão

se apoderando de alguém que não lhes pertence, o conhecimento das

circunstâncias pelas quais seu filho foi entregue para adoção, ter informações para

poder responder às questões que a criança provavelmente fará, ter uma imagem

concreta da família biológica da criança, o que evitará a formação de fantasias e

imagens distorcidas, entre outras. Para a criança os benefícios são o conhecimento

de sua história de vida, a possibilidade de continuar ligado às suas origens, a

possibilidade de decidir que tipo de contato quer com seus pais de origem, entre

outros.

Algumas críticas feitas à adoção aberta devem ser consideradas, como o fato

de que esse tipo de adoção poderia fazer com que a mãe biológica não encarasse a

entrega da criança para adoção como uma perda, de modo que ela poderia

continuar sentindo a criança como sua, não realizando a doação do ponto de vista

emocional, apesar de tê-lo feito de forma legal. Isso poderia permitir que ela se

sentisse no direito de interferir na criação da criança, e um possível

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descontentamento a respeito dessa criação poderia gerar confusão. A adoção

aberta poderia possibilitar o surgimento de rivalidades entre os pais biológicos e

adotivos, e poderia também dificultar a formação de um apego seguro entre pais

adotivos e a criança, devido à presença dos pais biológicos. Para a criança, a

existência de duas categorias de pais pode ser confusa, principalmente se os pais

adotivos não assumirem claramente o papel de pais psicológicos da criança

(Oliveira, 2002).

Miall e March (2005) afirmam que, apesar de as famílias adotivas e biológicas

envolvidas em uma adoção tradicionalmente não se conhecerem e nem manterem

contato, nas últimas duas décadas a adoção aberta tem ocorrido com mais

freqüência e tem se mostrado viável. Ao analisarem as mudanças nas práticas de

adoção a partir da opinião da comunidade canadense, as autoras investigaram a

aceitação da comunidade em relação a três níveis de contato entre as famílias

biológicas e adotivas: a) a troca de cartões e cartas após a adoção; b) as famílias se

encontrarem antes da adoção e trocarem cartões de cartas após a adoção; e c)

adoção completamente aberta, com um relacionamento face-a-face entre as famílias

adotivas e biológicas após a adoção. Segundo Miall e March (2005), 69% dos

homens e 83% das mulheres aprovaram a troca de cartões e cartas após a adoção;

72% dos homens e 84% das mulheres aprovaram o encontro das famílias antes da

adoção e a posterior troca de cartões e cartas, tendo sido este tipo de contato o que

obteve maior índice de aprovação; e o nível menos aprovado de adoção aberta,

apesar de ainda sim contar com a aprovação da maioria dos participantes, foi aquele

do contato completamente aberto entre pais adotivos e biológicos antes e após a

adoção, tendo sido aprovado por 58% dos homens e 65% das mulheres. Apesar da

grande aceitação percebida em relação aos diversos níveis de contato possíveis em

uma adoção aberta, quando foi perguntado aos participantes se eles aprovavam a

ausência de troca de informações e de contato entre pais adotivos e biológicos

quando os pais adotivos não desejassem manter contato com os pais biológicos da

criança, a grande maioria do participantes (87% dos homens e 83% das mulheres)

afirmou que sim.

1.9. Supervalorização da biologia

Segundo Kumamoto (2001), muitos dos preconceitos em torno da adoção,

como os mitos em torno da herança genética desconhecida da criança adotada, vêm

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de uma supervalorização da contribuição biológica da parentalidade, muito presente

em nossa sociedade. Kumamoto (2001) afirma que o genético e o hereditário fazem

parte da ambição humana de perpetuação, por meio da propagação e da

sobrevivência dos genes através da descendência. Por contrariar a lógica da

biologia, se faz uma associação entre adoção e “transgressão”, visto que a adoção

estaria em oposição aos padrões culturais preestabelecidos.

De acordo com Costa (1991) a adoção muitas vezes é fonte de inquietação e

tensões, pois numa evidente confusão entre sociologia e genética, ela é concebida

como um violar a lógica que preside às representações de parentesco, nas quais

arbitrariamente se associam herança e hereditariedade, isto é, se confundem

atributos sociais com traços biologicamente transmitidos.

Segundo Kumamoto (2001) o relacionamento é o cerne da socialização, e por

isso não basta gerar a criança. O essencial é estabelecer um compromisso afetivo

com ela, para que a relação filial se desenvolva. O estabelecimento e o

fortalecimento dos laços afetivos na família resultam de uma conquista gradual e de

um aprendizado recíproco. Segundo Diniz (1991), a parentalidade e a filiação são

uma função, ou seja, é preciso que tanto os pais como a criança possam viver e

reconhecer essa relação antes de poder designá-la. Costa e Rossetti Ferreira (2004)

afirmam que as vivências de parentalidade e filiação são relacionais e situadas, ou

seja, se definem mutuamente a partir de interações sociais que se dão no cotidiano,

articuladas a contextos dinâmicos, que por vezes exigem reformulações,

reposicionamentos e transformações constantes dos sujeitos envolvidos.

Santos (1988) afirma que a consangüinidade entre pais e filhos pode não

coincidir com uma plena aceitação, assim como a ausência de ligação de sangue

não impede a possibilidade de uma plena aceitação. Segundo a autora, a

culminância da paternidade estará na satisfação que ambas as partes, pais e filhos,

possam experimentar nessa interação, pois para a criança, mais importante do que

ser filha será sentir-se filha.

Segundo Oliveira (2002), para que uma mulher exerça a função materna,

vários pontos devem ser considerados. As condições relacionadas à gestação e ao

parto podem funcionar como facilitadoras ou preparatórias para a formação do

vínculo entre a mãe e o bebê, mas tais condições não são nem necessárias nem

suficientes para a formação de um laço afetivo. A ocorrência desse envolvimento

dependerá de variáveis como o estado psicológico da mãe, seu estado físico, as

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circunstâncias sociais, e também da participação ativa que o bebê apresenta nesse

processo, contribuindo para o estabelecimento do vínculo. Quando as condições são

favoráveis, uma mulher pode aprender a amar qualquer bebê, ao passo que uma

mãe biológica, em condições desfavoráveis, não será capaz de se vincular aos

próprios filhos. Com base nessas afirmações de Oliveira (2002), podemos afirmar

que na verdade todo filho é adotivo, pois como conceber, gestar e dar à luz não

garantem que uma mulher se dedique a cuidar do seu bebê, para que uma pessoa

assuma essa função materna, mesmo a mãe biológica, ela tem que adotar a criança

como seu filho.

Segundo Oliveira (2002), os termos biológico e genético são muito

empregados quando se discute a adoção. Em função dos laços de sangue, a filiação

adotiva é diferenciada da biológica, denominando-se a mulher que gerou de “mãe

biológica” e quem adotou de “mãe adotiva”. Porém, há uma clara confusão, segundo

a autora, entre biologia e genética, sendo incorreto equiparar genético com

biológico, visto que o termo biológico abrange muito mais do que apenas processos

genéticos. Assim, a autora afirma haver um equívoco quando se refere à mulher que

gestou a criança e entregou-a para adoção como sendo a “mãe biológica”, pois “...

os sistemas de cuidados como a alimentação, sono, contatos físicos, enfim, o

ambiente físico e relacional no qual a criança se desenvolve também fazem parte da

biologia, e estes são prestados à criança pela figura do cuidador,

independentemente das ligações genéticas” (p.11). Mas apesar de Oliveira (2002)

enfatizar a inadequação da expressão “mãe biológica” para referir-se à pessoa que

gerou a criança, sendo mais adequada a utilização da expressão “mãe genética”, o

termo “mãe biológica” continuará sendo usado neste trabalho, tendo em vista o seu

amplo reconhecimento social.

1.10. Semelhanças e diferenças entre ter um filho adotivo e ter um filho

biológico

De acordo com Piccini (1986), a supervalorização do aspecto biológico, que

tanto inferioriza as mães adotivas, não raro impossibilitadas de engravidar apesar de

muito quererem, não considera um aspecto da questão: a mãe biológica pode ter

ficado grávida sem o desejar, enquanto a adotante quase sempre é movida pelo

desejo de ficar com a criança.

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Santos (1988) afirma que, talvez, em diferentes culturas e em diferentes

épocas, ter filhos tenha tido diferentes significados para homens e mulheres, mas

em qualquer época e lugar isso sempre demandou cuidados por parte dos pais ou

substitutos. Quanto à decisão de ter um filho, Santos (1988) sugere que os pais

biológicos podem tornar-se pais sem terem tido tal pretensão e sem terem refletido

sobre essa escolha, e desse modo a paternidade poderá criar desde uma situação

de plena aceitação a uma de plena rejeição, algumas vezes evidenciada em casos

de aborto. Já os pais adotivos têm que tomar uma decisão num nível em que não

precisam chegar os pais biológicos, e para adotarem têm que se mostrar muito

desejosos em fazê-lo. Mas isso não quer dizer que os pais adotivos possuam

sempre as melhores motivações e que a plena aceitação do filho adotivo esteja

sempre garantida.

Segundo Alvarenga (1999), é possível perceber algumas especificidades na

filiação adotiva. Quando os pais adotivos são chamados a conhecer uma criança

para adotá-la, as reações são as mais variadas, e vão desde um exame minucioso

do corpo da criança, como se observassem a qualidade de uma mercadoria, até

uma emoção intensa, como se acabassem de sair da sala de parto. Essas reações,

segundo a autora, são difíceis de serem previstas, e vêm confirmar que os pais

adotivos muitas vezes precisam de um tempo maior para reconhecer aquela criança

como seu filho.

Reppold e Hutz (2003) afirmam que as principais diferenças da filiação

adotiva se comparada à biológica são a exposição a um processo avaliativo

realizado para fins de habilitação à adoção (quando a adoção é legal), a

indeterminação temporal da “gestação” adotiva, o possível desconhecimento da

história pregressa do adotado e a excessiva valorização social dos laços

consangüíneos.

1.11. Preconceitos

A adoção no Brasil sempre esteve ligada à clandestinidade, ao segredo e à

falta de informação (Weber, 1999). Apesar das transformações observadas nos

aspectos jurídicos e nas concepções acerca da finalidade social da adoção, Weber

(1999) afirma que há vários preconceitos, mitos e estereótipos cultivados pelo senso

comum em torno da adoção, os quais resultam de um processo histórico. Segundo

pesquisa realizada por Weber (2003) sobre conceitos e preconceitos acerca da

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adoção, boa parte da população acredita que um filho adotivo sempre dá problemas;

que haverá menos problemas se a criança nunca souber que foi adotada; que uma

criança adotada sempre vai sofrer preconceitos e ser tratada de forma diferente

pelos outros; que crianças adotadas com mais de 6 meses de idade seriam mais

difíceis de serem educadas; que crianças adotadas devem ser devolvidas ao

Juizado, ao orfanato ou aos pais biológicos se surgirem problemas; que os pais

biológicos podem requerer a criança assim que desejarem; que é interessante

adotar crianças maiores de 10 anos para ajudarem nos serviços domésticos; e que o

governo deveria realizar um controle de natalidade, pois isso resolveria o problema

das crianças abandonadas nas ruas.

Em relação à consangüinidade, Weber (2003) afirma que em geral as

pessoas consideram que somente os laços de sangue são “fortes e verdadeiros”, e

têm medo de adotar crianças sem saber a origem dos seus pais biológicos, pois a

“marginalidade dos pais poderia ser transmitida geneticamente”. Abreu (2002), ao

falar dos preconceitos oriundos da origem “moral” da criança, afirma que um dos

fantasmas recorrentes é a associação da criança abandonada a uma procedência

imoral, como prostituição, “sexo livre” e irresponsável (praticado por pessoas que

não são capazes de assumir seus filhos), e alcoolismo ou drogadição (estes últimos,

apesar de serem reconhecidos como doenças pela Organização Mundial de Saúde,

muitas vezes ainda são concebidos socialmente como vinculados à imoralidade).

Segundo o autor, para muitas pessoas os aspectos morais são genéticos, e podem

“contaminar” a criança adotada.

Os dados de Weber (2003) mostram ainda que boa parte dos sujeitos acredita

que a adoção existe apenas para satisfazer os desejos e expectativas de casais que

não podem ter filhos, e portanto, quem já possui filhos biológicos não precisa adotar

uma criança; que a morte de um filho natural é motivo suficiente para se adotar uma

criança; e que algumas mulheres só conseguem engravidar depois de terem

adotado, e portanto, a adoção é um bom motivo para se tentar ter filhos biológicos.

É interessante ressaltar que o preconceito em relação à adoção pode ser

visto claramente nas leis, que em geral tentaram proteger os filhos biológicos,

deixando os filhos adotivos como coadjuvantes da família. Em praticamente todos os

tratados jurídicos sobre o assunto, desde o Código Napoleônico, aparece a adoção

como uma “imitação da natureza”, uma relação “fictícia” de paternidade e filiação. No

Brasil foi com a instituição do Código de Menores que houve um certo progresso na

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questão da adoção, mas somente com a Constituição de 1988, e posteriormente, em

1990, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, os direitos dos filhos adotivos

foram equiparados aos dos filhos biológicos, tendo sido proibidas quaisquer

discriminações a respeito da filiação (Weber, 1999).

Reppold e Hutz (2003), num estudo com mães adotivas e biológicas

objetivando investigar algumas características psicossociais de mães adotivas,

analisaram a percepção das mães acerca do apoio social recebido (qualquer forma

de assistência, conforto ou informação provida). Segundo os autores observou-se

uma percepção significativamente menor de apoio recebido por parte das mães

adotivas em relação às biológicas, e nesse mesmo estudo 70% das mães relataram

já ter vivenciado episódios de discriminação em razão da situação adotiva de seus

filhos. Reppold e Hutz (2003) ressaltam que a grande freqüência das situações de

preconceito a que as famílias adotivas são expostas pode justificar o menor apoio

social percebido pelas mães adotantes, e como o apoio recebido é um importante

fator protetivo à adaptação psicológica, pode justificar inclusive alguns casos de

dificuldades de adaptação dos adotados.

Mello e Dias (2003), no trabalho sobre a percepção dos indivíduos acerca da

pessoa que entrega um filho para adoção, investigaram como as pessoas percebem

as repercussões da doação na vida da criança adotada, e a maioria dos

participantes assinalou que elas vão depender da idade da criança. Porém, em

menor freqüência apareceram respostas como sentimentos de vazio e rejeição,

tristeza e baixa auto-estima, o que geraria desajustes emocionais. Embora em

minoria, houve ainda quem afirmasse que a criança entregue para adoção fica

impossibilitada de ser uma pessoa ajustada e feliz, o que revela uma idéia

estereotipada e preconceituosa da criança entregue para adoção.

Weber (1999) afirma que muitas vezes profissionais como psicólogos,

psiquiatras e assistentes sociais, contribuem para reforçar os preconceitos a respeito

da adoção. Segundo Weber (1999), “geralmente quando os profissionais da área

‘psi’ falam de adoção, inevitavelmente anexam ao seu pensamento a questão do

‘luto’. Dizem que junto com a adoção vem o luto pela infertilidade ou esterilidade

para os pais; se apenas um dos membros do casal for estéril, vem o luto pela

renúncia da fertilidade do outro; para a criança vem sempre o luto pela rejeição e

abandono” (p.133). Assim, percebe-se que muitas vezes a adoção é associada a

uma falta, a uma ausência ou incapacidade, como se tivesse a função de preencher

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um vazio. Isso pode ser observado na afirmação de Schettini Filho (1999): “a adoção

está inscrita em um cenário de impossibilidades. É a tentativa de modificar

contingências nas quais as incapacidades interferem na trajetória do

desenvolvimento pessoal” (p.11).

Segundo Weber (1999) é comum ouvir em congressos profissionais que lidam

com a adoção afirmarem que “bebês adotivos são sempre bebês de risco”, ou que “a

perda da mãe natural é sempre insubstituível” (p.76), formando-se desta maneira

uma representação limitada e errônea sobre a associação genérica entre adoção e

fracasso. Di Loreto (1997, citado por Weber, 1999), que trabalha na área da

psiquiatria infantil, afirma que muitas vezes a adoção é caracterizada como doença,

tanto por profissionais como por pais adotivos, como se qualquer dificuldade ou

distúrbio de uma criança adotiva fosse determinada pela adoção. Fu I e Matarazzo

(2001) afirmam que a crença popular de que filhos adotivos são sinônimos de

problemas pode conduzir profissionais da área de saúde mental à tentativa de

encontrar neles uma psicopatologia específica que confirme tal crença, o que seria

absolutamente incorreto.

De acordo com Henderson (2000), o fato é que os terapeutas muitas vezes

não estão preparados para lidar com a adoção ou não têm conhecimentos sobre o

assunto. Sass e Henderson (2000) realizaram um estudo nos Estados Unidos que

investigou o nível de preparação de psicólogos para lidar com a adoção e o nível de

formação profissional relacionada ao tema. A maioria dos entrevistados (51%) se

considerou “razoavelmente preparado” para lidar com adoção, 23% se consideraram

“não muito preparados”, 22% se descreveram como estando “bem preparados” ou

“muito bem preparados”, e 4% relataram não ter qualquer conhecimento sobre

adoção. Dentre os entrevistados, 90% relataram que precisam de mais formação

profissional relacionada à adoção, e 81% informaram ter interesse em aprimorar seu

conhecimento sobre o assunto por meio de cursos no futuro. A maioria dos

psicólogos relatou não ter tido qualquer tipo de curso sobre adoção nem na

graduação (65%), nem na pós graduação (86%). De acordo com a pesquisa,

percebe-se que pouco se aborda o tema adoção durante a formação profissional do

psicólogo nos Estados Unidos, e essa afirmação também é válida para o Brasil. O

estudo sugere que os psicólogos em geral necessitam de maior formação e

conhecimento profissional acerca da adoção e dos efeitos do processo adotivo.

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1.12. Adaptação social e psicológica dos adotados

De acordo com Reppold e Hutz (2002), estudos de diferentes áreas têm se

preocupado em descrever os processos de adaptação psicológica dos indivíduos

perante situações adversas ao desenvolvimento socioafetivo, e alguns

pesquisadores têm considerado a condição de ser adotado como um risco ao

desenvolvimento salutar. Reppold e Hutz (2002) afirmam que algumas pesquisas

indicam que crianças e adolescentes adotados apresentam maior risco de

desenvolver problemas emocionais e comportamentais do que aqueles criados por

sua família biológica, enquanto outras não apontam diferenças de adaptação entre

filhos adotivos e biológicos. Porém, segundo os autores, a maioria dessas

investigações que demonstram uma prevalência de dificuldades de adaptação entre

os adotivos evidencia sérias limitações metodológicas, dentre elas a intencionalidade

e não representatividade das amostras. Assim, a diversidade de resultados sobre a

adaptação psicológica dos adotivos tem dificultado a compreensão do tema.

Estudos realizados em diferentes países demonstram que a proporção de

crianças e adolescentes adotivos atendidos em clínicas psiquiátricas é maior em

relação à verificada nas demais clínicas e na população em geral, o que sugere que,

mesmo sendo benéfica à maioria das crianças e adolescentes adotivos, a condição

de viver num lar substituto parece de alguma forma aumentar a possibilidade de

desenvolvimento de conflitos psicológicos (Fu I e Matarazzo, 2001; Reppold e Hutz,

2002). A partir de um estudo realizado em São Paulo sobre a prevalência de adoção

intra e extrafamiliar em amostras clínica e não-clínica de crianças e adolescentes, Fu

I e Matarazzo (2001) afirmam que a prevalência de adoção na amostra clínica

mostrou-se significativamente superior à encontrada na amostra não-clínica, o que

sugere que crianças e adolescentes vivendo na condição de adotivos comparecem

com maior freqüência aos serviços de saúde mental. Algumas hipóteses podem ser

levantadas para explicar esse resultado, dentre elas a hipersensibilidade dos pais

adotivos em relação às dificuldades de seus filhos, ou seja, os pais adotivos tendem

a ser menos tolerantes ou negligentes, contaminados pela ansiedade de se

mostrarem capazes de criar seus filhos adotivos de forma satisfatória, devido à forte

pressão social que sofrem no papel de adotantes e à vinculação linear que o senso

comum estabelece entre adoção e problemas de adaptação. Assim, os pais adotivos

apresentariam maior preocupação ou mais queixas sobre seus filhos, procurando

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com maior freqüência atendimentos nos serviços de psicologia ou psiquiatria (Fu I e

Matarazzo, 2001; Reppold e Hutz, 2002)

Fu I e Matarazzo (2001) analisaram também as possíveis associações entre

os tipos de adoção – intra e extrafamiliar – e a procura de serviço psiquiátrico na

infância e adolescência, e constataram que a adoção intrafamiliar é mais comum na

população em geral, mas são as crianças adotivas extrafamiliares que mais

procuram as clínicas psiquiátricas. Dentre as hipóteses explicativas para esse fato,

Fu I e Matarazzo (2001) ressaltam que os adotivos intrafamiliares, por serem criados

por parentes, encontrariam no lar um ambiente mais propício ao seu

desenvolvimento emocional, e teriam menor incidência de problemas de

comportamento; além de mencionarem que, devido ao grau de parentesco, a família

adotiva teria maior tolerância em relação aos eventuais distúrbios psíquicos

apresentados pelo filho e, portanto, procuraria ajuda profissional com menos

freqüência.

Apesar de o estudo de Fu I e Matarazzo (2001) ter indicado as adoções

extrafamiliares como possivelmente mais problemáticas, segundo as autoras é a

adoção intrafamiliar que é considerada por diversos autores como sendo mais

problemática, por geralmente envolver situações familiares mais complexas e

motivações para adoção diferentes das observadas nas adoções extrafamiliares. Em

alguns casos a adoção intrafamiliar é determinada por processos judiciais, e os

familiares são obrigados a assumir os cuidados com a criança mesmo que não

estejam motivados. Em outros casos os familiares assumem a responsabilidade

sobre o filho de um parente por motivos religiosos, morais ou sentimentos de culpa

inapropriados, podendo estar semeando assim um campo para futuros conflitos.

Estudos demonstram que a ocorrência de experiências estressantes, como o

acúmulo de perdas, a exposição a julgamentos preconceituosos e os conflitos

familiares, pode promover a diminuição da auto-estima e a emergência de

sentimentos de desamparo e rejeição (Kumamoto, 2001; Reppold e Hutz, 2002).

Reppold e Hutz (2002) ressaltam que algumas situações passíveis de ocorrer na

adoção podem de fato ser estressantes, dentre elas a vivência pré-natal dos

adotados, o rompimento dos vínculos familiares na infância, a história pregressa à

adoção em instituições, o desconhecimento da origem genealógica, as dificuldades

relativas ao processo de revelação da adoção e o estigma social que envolve o

processo adotivo. Porém, os autores afirmam que a falta de apoio percebido para

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superar as perdas e a escassez de oportunidade para formar novos vínculos podem

representar maior risco aos sujeitos.

Reppold e Hutz (2002) afirmam que há alguns fatores que podem dificultar a

adaptação dos adotados, dentre eles as crianças ou adolescentes pensarem que

não serão compreendidas por seus pares não adotivos. Além disso, há a

possibilidade de uma dificuldade de elaboração do luto, devido ao fato de algumas

vezes a perda da família biológica não ser definitiva, como é nos casos de morte

parental. Assim, a possibilidade de aproximação dos pais biológicos poderia

aumentar a ansiedade dos adotados e dificultar seu relacionamento familiar e a

definição de sua identidade. Segundo Reppold e Hutz (2002), alguns autores

afirmam que um outro fator que pode dificultar o desenvolvimento da auto-imagem e

da auto-estima dos adotados é uma eventual troca do prenome na ocasião da

adoção, e que este procedimento não deveria ser legitimado pelo Estatuto da

Criança e do Adolescente. Segundo esses autores essa atitude impõe aos adotados,

especialmente àqueles colocados com mais idade em famílias substitutas, a

tentativa de anulação da sua história pregressa e a necessidade de reconhecer-se

numa nova identidade, o que pode acarretar uma perda de referências para a

criança ou adolescente.

Para Reppold e Hutz (2002), muitas vezes as avaliações psicodiagnósticas

supervalorizam a condição adotiva, e desconsideram a influência de outras variáveis

socioculturais da história do indivíduo, dentre elas a interação familiar, as estratégias

de socialização utilizadas pelos pais, o histórico da adoção, as experiências prévias

e o apoio social. É interessante ressaltar que, em geral, as dificuldades que surgem

em relação ao filho adotivo são atribuídas a causas externas (herança genética),

enquanto os aspectos bem sucedidos do processo adotivo são atribuídos aos

méritos dos próprios pais (Kumamoto 2001).

Reppold e Hutz (2002) ressaltam que os estilos parentais são um fator

moderador da adaptação psicológica de crianças e adolescentes. Os autores

afirmam que os pais adotivos tendem a ser mais indulgentes (ter baixo nível de

controle parental e alto nível de responsividade) e autoritativos (ter alto grau de

monitoramento e aquiescência), o que pode ser compreendido pelo grande

investimento afetivo que em geral caracteriza o processo de adoção. Durante o

processo de habilitação legal dos pais à adoção, muitas famílias são levadas a

refletir sobre suas motivações e expectativas quanto à parentalidade, quanto às

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diferenças entre afiliação adotiva e biológica, e quanto à história precedente da

criança. Assim, pode-se afirmar que a adoção raramente acontece ao acaso, alheia

aos interesses dos membros da família, o que diminui as chances de negligências

dessas famílias. Além disso, o maior índice de indulgência entre famílias adotivas

pode ser decorrente de uma tentativa de compensação das situações adversas

vividas pelos filhos ou fantasiadas pelos pais, dentre elas a exposição a cuidados

inadequados, ambientes hostis, eventuais abusos físicos ou emocionais, e o próprio

afastamento da família biológica. Essa permissividade parental pode ser uma

estratégia, não muito assertiva, de superproteção dos pais, visando a demonstração

de apoio e aceitação do filho no círculo familiar.

Kumamoto (2001) afirma que uma atitude comum do filho durante o período

de adaptação à família adotiva, principalmente em adoções tardias, é a

manifestação de uma oposição desafiante em relação aos pais. Segundo a autora, a

realidade do abandono e a renúncia dos pais biológicos pode gerar na criança o

medo de ser abandonada novamente, e esse medo pode expressar-se através de

atitudes de oposição e desafio em relação aos pais, como forma de testar sua

tolerância.

Uma pesquisa realizada por Ebrahim (2001a), comparando grupos que

realizaram adoções de bebês com grupos que realizaram adoções de crianças

maiores, evidenciou que, quanto à adaptação dos filhos adotivos, 53,3% dos

adotantes tardios afirmaram ter se adaptado à criança entre dias e semanas, 26,7%

admitiram a adaptação dentro de meses, 6,7% levaram anos para concluir a

adaptação, e 13,3% afirmaram que não se adaptaram. Entre os adotantes de bebês,

90% afirmaram a ocorrência da adaptação entre dias e semanas, e 5%

consideraram a adaptação concluída após anos. Esses resultados, segundo a

autora, estão de acordo com a literatura existente, que indica uma maior dificuldade

nas adoções tardias, devido à história de abandono e perdas destas crianças.

Porém, alguns fatores podem auxiliar a família no processo de adaptação e

integração da criança e favorecer um desenrolar positivo da adoção, como a atitude

dos pais adotivos e o apoio de amigos e familiares. O fato é que as conseqüências

da adoção baseiam-se num complexo número de fatores, e não há característica

isolada que possa predizer o resultado do processo adotivo.

Contrariando os mitos e estereótipos ligados à adoção, uma pesquisa

realizada por Santos (1988) sobre a possibilidade de satisfação na adoção,

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avaliando comparativamente alguns aspectos da interação pais-filhos adotivos e

pais-filhos biológicos, indica que se a adoção for adequadamente gestada, as

possibilidades que terão os pais e filhos adotivos de serem felizes serão as mesmas

que têm os pais e filhos biológicos. Esse estudo indicou que as famílias adotivas são

tão cooperativas quanto as famílias biológicas, o que quer dizer também que as

possibilidades de que haja conflitos nas relações dentro dessas famílias são as

mesmas.

Oliveira (2002) afirma que são vários os fatores que podem determinar o

sucesso da adoção, ou seja, a integração da criança adotiva num novo meio familiar,

e que não é fácil isolar esses fatores, visto que eles se tornam interdependentes na

dinâmica do processo de adoção. Dentre esses fatores, a autora cita: as variáveis

referentes aos adotantes, como motivação para adoção, dinâmica familiar, idade,

representação que têm da adoção, como lidam com o fator revelação da adoção

para o filho adotivo, entre outros; variáveis referentes aos pais biológicos, como

estado de saúde, cuidados tomados na gestação e no parto, como pré natal,

convicção ou não para a entrega do filho, entre outros; e variáveis do adotado, como

idade, estado de saúde, etnia, e história pregressa, como por exemplo se foi

institucionalizado e por quanto tempo, se tem histórico de negligência, vitimização,

entre outros.

1.13. Adoções tardias, de crianças pardas e negras, e de crianças com

necessidades especiais

Weber (1999) registra que as ocorrências de adoções tardias, de adoções de

crianças pardas e negras, e de adoções de crianças portadoras de necessidades

especiais não são muito freqüentes no Brasil. A autora afirma que estas são

adoções consideradas necessárias no país, pois envolvem crianças e adolescentes

que carregam o estigma de “crianças inadotáveis”.

Em uma adoção tardia o filho adotado não é mais um bebê, mas uma criança

que já tem uma história de vida. Segundo Ebrahim (2001a), considera-se uma

adoção tardia quando a criança tem idade acima de dois anos. Ebrahim (2000)

afirma que as adoções de crianças maiores são perfeitamente viáveis, e sua

concretização e manutenção dependem, entre outros aspectos, da história da

criança, do fato de a criança desejar ou não a adoção, e das atitudes dos pais

adotivos e daqueles que os cercam. Alvarenga (1999) ressalta que, por já ter

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passado por uma experiência de abandono da qual muitas vezes se lembra, a

criança mais velha será mais ativa no processo adotivo, podendo “adotar” ou não os

pais adotivos como pais.

Ebrahim (2001b) afirma que em geral somente as crianças até três anos

conseguem colocação em famílias brasileiras, e que as crianças consideradas mais

velhas são adotadas por estrangeiros ou permanecem nas instituições. Segundo

dados coletados em São Paulo pelo Centro de Capacitação e Incentivo à Formação

de Profissionais (Cecif), há 36 pretendentes à adoção para cada criança de 0 a 2

anos; 5 pretendentes para cada criança de 2 a 5 anos; 2 crianças de 5 a 7 anos para

cada pretendente; 13 crianças de 7 a 10 anos para cada pretendente; e 66 crianças

com mais de 10 anos para cada pretendente à adoção (Mendonça e Fernandes,

2004, em reportagem da revista Época de 23/08/04).

Segundo Ebrahim (2001b), as pesquisas revelam que a maior parte da

população brasileira apresenta preconceitos quanto à adoção tardia, como o medo

pela dificuldade na educação, apoiado na alegação de que, provavelmente, teriam

dificuldades na educação de uma criança maior, pois estas não aceitariam os

padrões estabelecidos pelos pais por estarem com sua formação social iniciada, o

receio de adotar crianças institucionalizadas pelos maus hábitos que trariam, e a

crença de que crianças que não sabem que são adotivas têm menos problemas, e

por isso deve-se adotar bebês para que se possa esconder delas a adoção.

Segundo Alvarenga (1999), algumas pessoas interessadas na adoção se sentem

ameaçadas com a possibilidade de adotar uma criança marcada por privações e

pela institucionalização, ou com fortes lembranças dos pais biológicos.

De acordo com Ebrahim (2000), alguns autores afirmam que a adoção deve

acontecer o mais cedo possível, pois crianças que sofrem severas privações afetivas

nos primeiros anos de vida são mais passíveis de desenvolverem problemas sociais

e emocionais, e as carências afetivas da primeira infância dificilmente poderiam ser

eliminadas. Costa e Rossetti-Ferreira (2004) ressaltam que o próprio discurso da

Psicologia reforça essa idéia de que os rompimentos de vínculos iniciais deixariam

traumas nas crianças que levariam a conseqüências nefastas em seu

desenvolvimento físico, cognitivo e afetivo. Mas, segundo Ebrahim (2000), esses

discursos são questionáveis, pois há reais possibilidades de adoções tardias serem

bem sucedidas, principalmente se as famílias substitutas proporcionarem um

ambiente adequado para o desenvolvimento ajustado da criança, havendo aceitação

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dessa criança pelos pais. Ainda segundo Ebrahim (2000), vários autores afirmam

não haver relações significativas entre a idade da criança e o sucesso da adoção.

Alvarenga (1999) afirma que, em termos gerais, espera-se daqueles que

acolhem uma criança mais velha maior sensibilidade, maior segurança, e uma

motivação capaz de sustentar as dificuldades que possam vir a surgir. Um estudo

realizado por Ebrahim (2001b) sobre adoção tardia, comparando pais que realizaram

adoções de crianças maiores de dois anos com pais que adotaram bebês,

evidenciou que os adotantes tardios apresentaram idade média mais elevada, níveis

mais elevados de maturidade, de estabilidade emocional e de altruísmo. Os

adotantes tardios apresentaram também nível sócio-econômico superior ao dos

adotantes convencionais (de bebês), o que contrariou os dados obtidos por Weber

(1999), segundo os quais as pessoas de nível sócio-econômico mais baixos fazem

menor número de exigências em relação à criança, adotando com mais freqüência

crianças maiores. De acordo com Ebrahim (2001b), os adotantes tardios

apresentaram ainda maior variação no estado civil (casados, solteiros, viúvos ou

divorciados) e maior presença de filhos biológicos, enquanto os adotantes

convencionais eram casados em quase sua totalidade e sem filhos biológicos.

A partir da pesquisa realizada, Ebrahim (2001b) afirma que os adotantes

tardios adotaram mais por se sensibilizar com a situação de abandono da criança,

enquanto as pessoas que adotaram bebês o fizeram na maior parte das vezes por

não ter os próprios filhos. Segundo a autora, o altruísmo, mais elevado entre os

adotantes tardios, traz uma justificativa para a motivação apresentada por eles, de

uma preocupação em atender as necessidades do outro como mobilizadora das

adoções. Ebrahim (2001b) encontrou ainda relações entre a motivação para a

adoção tardia, o estado civil e a presença ou ausência de filhos biológicos. Os

adotantes tardios foram casais que em sua maioria já tiveram filhos biológicos, e

portanto já vivenciaram a experiência de criar uma criança, não tendo mais

necessidade ou disponibilidade de começar com um bebê; ou pessoas sozinhas,

como solteiros, divorciados e viúvos, que não têm tempo e condições de cuidar de

um recém-nascido, mas querem constituir uma família. Enquanto isso, os adotantes

convencionais eram, em sua maioria, casados e sem filhos biológicos.

De acordo com Ebrahim (2001b), as motivações para as adoções tardias são

beneficiadas pelas características de personalidade dos adotantes, mas esse fato

não impede que outras pessoas com características diferentes adotem crianças

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maiores. Não há a intenção, segundo a autora, de achar que somente pessoas com

níveis elevados de maturidade, estabilidade emocional e altruísmo seriam capazes

de realizar uma adoção tardia com sucesso. O importante, afirma Ebrahim (2001b),

é procurar formas de impulsionar novas adoções, mesmo com pessoas que dispõem

de características diferenciadas, e o desenvolvimento de programas de educação

social poderia contribuir com esse objetivo, visando desenvolver ou aumentar

comportamentos pró-sociais na população.

Segundo Weber (1999), pesquisas sobre adoção realizadas no Brasil

mostram que adoções de crianças pardas e negras são minoria no país. Um estudo

realizado por Weber (2003) sobre desejos e expectativas de pessoas cadastradas

para adoção no Juizado da Infância e da Juventude de Curitiba evidenciou que 67%

dos adotantes colocam como condição principal uma criança branca (nesse estudo,

95% dos adotantes eram brancos), 19% dizem aceitar uma criança “até morena”, ou

seja, preferem uma criança branca mas aceitam uma “morena clara”, e 7% dizem

não ter preferência quanto a cor da criança. Em outra pesquisa realizada com pais

adotivos de todo o Brasil, foi encontrado 31% de pais brancos com filhos adotivos

pardos, e somente 4,5% com filhos negros (Weber, 1999).

Apesar de uma adoção inter-racial ser qualquer uma em que o conjunto das

características físicas da criança adotada é diferente das características dos pais

adotivos, o termo é usado quase que só para as adoções de crianças pardas e

negras, visto que as pessoas interessadas em adotar pela via legal, em maioria

absoluta, são brancas. Weber (1999) afirma que somente 5% dos brasileiros

realizam adoções inter-raciais, sendo essas em sua grande maioria de crianças

pardas, enquanto 44% dos estrangeiros realizam adoções inter-raciais com crianças

pardas e 12% com crianças negras.

De acordo com Freire (1991b), quando a adoção é inter-racial é preciso

prever a incompreensão do meio (família, vizinhos, amigos), pois as diferenças entre

pais e filho são evidentes. Segundo o autor, além dos elementos necessários para

favorecer o desenvolvimento de qualquer criança, a adoção inter-racial deve permitir

o reforço positivo da identidade da criança e de seus atributos culturais.

De acordo com Mendonça e Fernandes (2004), em uma reportagem da

revista Época de 23/08/04, a fixação dos brasileiros em adotar uma criança loura dos

olhos azuis é tanta que isso provoca uma corrida para tentar adotar nos estados do

sul do país, onde há maior número de pessoas com essas características físicas

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devido à nacionalidade dos imigrantes. Em Santa Catarina, no ano de 2000, 80%

dos candidatos eram de outros estados do Brasil. Em Goiânia, as famílias que

insistem em adotar apenas crianças brancas precisam esperar uma fila que durará

cerca de oito anos. Em São Paulo, cerca de 2000 candidatos aguardavam uma

menina branca, de olhos claros, com até um ano de idade.

Na tentativa de combater o preconceito, o juiz da Primeira Vara da Infância e

da Juventude do Rio de Janeiro, Siro Darlan, tomou uma medida polêmica. Desde

junho de 2004 as pessoas que querem adotar pelo Juizado do Rio de Janeiro não

podem mais escolher cor, sexo e idade da criança, medida esta que objetiva

estimular as adoções de crianças pardas e negras, e de crianças mais velhas, que

são justamente a maioria das crianças que estão nos abrigos esperando para serem

adotadas. De acordo com Siro Darlan, “uma criança não é objeto. A situação ideal

seria a criança poder escolher, porque é ela que tem direito a uma família”

(Mendonça e Fernandes, 2004, em reportagem da revista Época de 23/08/04, p.98).

Ebrahim (2000) afirma que não existem pessoas sem desejos, sem

preferências, mas que é possível desmistificar certas idéias errôneas acerca da

adoção, sem impor aos adotantes crianças que eles não são capazes de aceitar e

acolher. Quando os pais adotivos não estão preparados para lidar com o filho, há

uma probabilidade maior de a criança por eles adotada ser rejeitada, particularmente

se a adoção for tardia, de crianças doentes ou deficientes. E para uma criança que

já vivenciou uma história de abandono, correr o risco de ser novamente rejeitada é

uma situação muito grave. Além disso, Diniz (1991) afirma que colocar uma pessoa

que deseja adotar perante um caso que ele provavelmente recusará é uma ato

agressivo por parte do técnico judiciário que o faz, pois essa recusa raramente será

sem conseqüências negativas para a pessoa, ainda mais estando ela numa situação

de dependência do Serviço para poder realizar o desejo de ter um filho.

Egbert e LaMont (2004) investigaram a percepção acerca da preparação dos

pais para a realização da adoção de uma criança considerada de difícil colocação

em família substituta, seja por motivos de idade, cor de pele, pertencimento a grupo

de irmãos, história pregressa (existência de abuso físico ou sexual, negligência, ou

de adoções anteriores mal sucedidas), problemas emocionais ou comportamentais,

ou outros fatores, a partir da perspectiva dos próprios pais que realizaram esse tipo

de adoção. De acordo com as autoras, puderam ser percebidos alguns fatores que

contribuíram para que os pais se sentissem mais preparados para a adoção que

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realizaram, dentre eles o conhecimento da história pregressa da criança, estar ciente

da existência na criança de problemas emocionais ou comportamentais, a existência

de experiência anterior com crianças com características similares à que foi adotada

(ter adotado previamente ou ter contato com outras crianças adotivas, ou com

crianças próximas, como familiares, com as mesmas necessidades), ter mais

experiência de vida e maior potencial de maturidade (aspecto associado pelas

autoras à idade, de modo que quanto mais velhos os pais adotivos, mais preparados

eles se sentiram para a adoção), e ter uma boa relação com a agência de adoção e

receber treinamento e informação adequados, tanto antes como após a adoção.

A partir de pesquisa realizada com pais e filhos adotivos de todo o Brasil,

Weber (2003) constatou que não houve problemas no processo adotivo em função

da cor da pele ou da idade da criança adotada, o que vem questionar a concepção

social mais comum que associa a diferença de cor de pele entre pais e filhos

adotivos ou a idade avançada da criança no momento da adoção como possíveis

fontes de problemas. De acordo com a autora, os casos em que foram relatados

problemas no processo adotiva estavam mais relacionados à revelação tardia da

adoção para a criança adotiva que a outros fatores.

No Brasil, o trabalho de preparação e apoio aos adotantes e famílias adotivas,

especialmente em casos de adoção inter-racial, tardia, e de crianças com

necessidades especiais, tem sido feito pelas Associações e Grupos de Apoio à

Adoção que existem no país, que são em geral grupos sem fins lucrativos, cujos

membros, em grande maioria pais adotivos, trabalham voluntariamente para divulgar

a adoção, prevenir o abandono, preparar adotantes e acompanhar pais adotivos,

encaminhar crianças para adoção e, de um modo geral, conscientizar a população

sobre a adoção. De acordo com Mendonça e Fernandes (2004), em uma reportagem

da revista Época de 23/08/04, o trabalho nos grupos de apoio contribui também para

uma mudança de opinião quanto às características da criança que se deseja adotar.

Um exemplo disso é que, em geral, apenas 4% dos pretendentes entram nos grupos

dispostos a levar para casa uma criança maior de 4 anos, e ao fim dos encontros,

cerca de 20% dos pretendentes já concordam com essa idéia.

Segundo Neves (2005), em reportagem do jornal A Tribuna de 16/01/05, o

aumento do número de artistas brasileiros famosos que optaram por adotar crianças

abandonadas, dentre eles Zeca Pagodinho, Elba Ramalho e Marcello Antony, está

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incentivando a adoção tardia e inter-racial no Brasil, e contribuindo para que haja

mais discussões sobre o assunto, tanto na mídia como na sociedade em geral.

1.14. Adoções internacionais

A maior parte das adoções inter-raciais, tardias e de crianças portadoras de

algum problema de saúde no Brasil são feitas por estrangeiros (Weber, 1999; Abreu,

2002). De acordo com Abreu (2002), percebe-se uma grande disponibilidade dos

estrangeiros para acolher crianças que, entre os brasileiros, dificilmente receberiam

um lar substituto. Segundo o autor, isso pode se dar devido a uma “cultura da

adoção”, pouco desenvolvida no Brasil, mas existente em outros países, que

divulgaria a idéia de encontrar uma família substituta para a criança abandonada,

independentemente da cor, idade, ou da enfermidade trazida pela criança. Uma

outra explicação seria o fato de que os adotantes estrangeiros teriam mais contato

com casais de sua nacionalidade que adotaram crianças consideradas diferentes

(por sua nacionalidade, cor, ou um comprometimento de saúde), e teriam a

possibilidade de perceber que, apesar das diferenças, é possível viver uma história

feliz e bem sucedida. Outros afirmam ainda que, no caso de casais estrangeiros que

adotam no Brasil, estes simplesmente se adaptam às probabilidades existentes nos

abrigos brasileiros, ou seja, na verdade eles têm os mesmos interesses que os

brasileiros, mas como, segundo o ECA, os postulantes estrangeiros seriam a última

opção para uma criança ser adotada, eles acabam não tendo acesso às crianças

mais desejadas. E como a adoção em seus países de origem é muito difícil, devido a

pouca disponibilidade de crianças, os adotantes estrangeiros acabam se adaptando

às possibilidades dos abrigos brasileiros (e de outros países do Terceiro Mundo),

para conseguirem realizar o desejo de serem pais (Abreu, 2002).

Abreu (2002) afirma que o fato de os estrangeiros de Primeiro Mundo

adotarem mais crianças com necessidades especiais que os brasileiros pode ser

explicado pela maior possibilidade de acesso às diferentes especialidades da área

de saúde. Muitas vezes esses países dispõem de um sistema de saúde muito mais

atuante e democrático que o Brasil, e assim, pequenas enfermidades podem sofrer

intervenções cirúrgicas e plásticas muito mais facilmente, sem ônus financeiro para a

família e com probabilidades maiores de sucesso.

Há uma certa divergência entre autores quanto ao período de início das

adoções internacionais. De acordo com Weber (1999), o início das adoções

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internacionais se deu após a Segunda Guerra Mundial, quando crianças órfãs e

abandonadas, provenientes da Europa Central, Itália, Grécia e Japão foram

adotadas nos EUA e Canadá. A adoção internacional teria continuado nos anos 50

com crianças coreanas e nos anos 60 com crianças vietnamitas e de outras regiões

da Ásia. Já Abreu (2002) afirma que a adoção internacional teve seu início nos anos

de 1970. Ela teria aparecido primeiramente na Europa, estando ligada a duas

tragédias humanas do final do Milênio: a de Biafra e a do Vietnã. Nessas

circunstâncias, casais europeus incapacitados de procriar teriam adotado crianças

que escaparam desses eventos e estavam privadas de um lar. O fato é que, de

acordo com ambos os autores, foi um período de eclosão de catástrofes e crises

sociais, quando o fenômeno do abandono de crianças é sempre mais intenso e

acentuado, que propiciou o início das adoções internacionais.

Em 1980, o Vietnã e a Coréia modificaram suas leis limitando a saída de

crianças, e a partir daí as agências internacionais voltaram seus interesses para a

América Latina. Não eram mais crianças de países em conflitos de guerra que

deveriam ser adotadas por casais estrangeiros, mas crianças provenientes de

países onde a miséria, a pobreza e o subdesenvolvimento estavam presentes

(Weber, 1999). Segundo Weber (1999), existe uma demanda importante nos países

desenvolvidos, que possuem uma população que não cresce, e uma oferta nos

países pobres, que têm uma grande quantidade de crianças abandonadas que

vivem em situação de miséria.

De acordo com Abreu (2002), muitos pais adotivos associaram a adoção de

crianças órfãs de países com dificuldades a um gesto humanitário, e a partir daí o

mundo social começou a classificar a adoção internacional como boa (salvação da

criança da fome, da miséria e da guerra). Porém, o tráfico de crianças de países

pobres para potências mundiais também se tornou uma possibilidade, o que

acrescentou um rótulo negativo às adoções internacionais.

Quando começaram a ser realizadas adoções internacionais no Brasil, por

volta dos anos 1970, e até o início dos anos 1990, a mediação entre as crianças a

serem adotadas e os pais adotivos de outros países eram realizadas principalmente

por donas de creches particulares, conhecidas como “cegonhas”, que em geral eram

damas da sociedade, ou pessoas ligadas a grupos religiosos. Essas pessoas tinham

a função de conseguir crianças para serem adotadas por casais estrangeiros, por

meio de contatos pessoais com mães que gostariam de doar seus filhos, ou com

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parentes e amigos dessas mães. As “cegonhas” acabavam se tornando referências

em suas comunidades, sendo procuradas quando alguém queria dar uma criança, e

elas abrigavam as crianças em suas creches particulares até que a adoção fosse

efetivada. Essas adoções não envolviam transações financeiras, e eram imbuídas de

um caráter salvacionista, ou seja, de uma idéia de que a criança adotada estava

sendo retirada da pobreza e da marginalidade para ter uma vida melhor em país

estrangeiro (Abreu, 2002).

A partir da segunda metade da década de 1980 os advogados começam a se

envolver efetivamente com a adoção internacional, atuando principalmente junto às

creches particulares, como parceiros das “cegonhas” na legalização da adoção, ou

às vezes realizando sozinhos todo o processo, desde encontrar a criança para um

casal estrangeiro. Nesse momento a adoção começa a ser vista não só em seu

caráter salvacionista, mas também como um negócio, pois passou a envolver

transações financeiras. Isso contribuiu para a construção de uma visão negativa

sobre a adoção internacional no Brasil, pois a sociedade condenava o envolvimento

de dinheiro em transações que envolviam crianças, pois isso podia ser entendido

como venda. Nesse período intensificam-se as suspeitas de tráfico de crianças para

o exterior, principalmente para a venda de órgãos, o que, segundo Abreu (2002), na

verdade nunca ficou comprovado. Os honorários pagos a um advogado para realizar

uma adoção internacional – que não se sabia ao certo se eram honorários ou

pagamentos pela criança – eram altíssimos, o que fez com que houvesse uma

corrida desses profissionais em busca desse tipo de traballho (Abreu, 2002).

O princípio das adoções internacionais no Brasil, assim como das adoções

realizadas por brasileiros, ocorreu dentro de um espaço social onde a ilegalidade era

a regra, a informalidade era a tônica, e as relações pessoais imperavam. Assim, os

juízes favoráveis à adoção internacional realizavam a transferência de crianças

pobres na direção de famílias mais favorecidas, dando primazia ao interesse dos

adotantes. Quando o juiz não era favorável às adoções internacionais, praticamente

inexistia essa modalidade de adoção em sua comarca. Apesar de tanto as adoções

nacionais como as internacionais serem extremamente marcadas por

irregularidades, as adoções internacionais necessitavam de um caráter de legalidade

que as obrigava a serem transitadas e julgadas diante de um poder público,

produzindo documentação, o que aumentava o risco de que tal produção

denunciasse as irregularidades cometidas. Por outro lado, as adoções realizadas por

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brasileiros suscitavam menos produção de documentos legais, o que propiciava que

suas irregularidades fossem menos evidenciadas. Assim, o grande número de

irregularidades evidenciadas nas adoções internacionais também contribuiu para

que elas passassem a ser mal vistas por brasileiros, aumentando as suspeitas em

relação ao tráfico de crianças (Abreu, 2002).

Com o advento do ECA ficou cada vez mais difícil intermediar a relação entre

mães que doavam seus filhos e os pais estrangeiros que queriam adotar, pois o

Estado se tornou o único mediador responsável pela união de crianças

abandonadas e candidatos a pais adotivos de outros países. Os juízes envolvidos

com adoções internacionais passaram cada vez mais a se guiar pelo ECA,

incorporando-o como parâmetro para suas decisões (Abreu, 2002).

Abreu (2002) afirma que, apesar do grande temor relativo ao tráfico de

crianças e à venda de bebês suscitado pelas adoções internacionais, os adotantes

estrangeiros foram os primeiros a fazer uso recorrente da Justiça no que se refere

aos serviços de adoção no Brasil. Isso porque, para deixar o Brasil, a criança precisa

de um passaporte, e a Polícia Federal só atribui passaportes para a saída de

crianças e adolescentes brasileiros quando a adoção está concluída. Além disso, a

legislação dos países europeus e dos Estados Unidos, que é para onde vão a

maioria das crianças brasileiras, é muito rigorosa no que se refere à adoção de

crianças estrangeiras. Nesses países e em muitos outros, é exigido que os casais

que saem de suas fronteiras para adotar o façam somente depois de receber uma

autorização específica para tal, e para que as crianças entrem no país de origem dos

pais adotivos, elas necessitam sair de seu país de origem com a documentação de

adoção formalmente correta.

Com o Estatuto da Criança e do Adolescente a adoção internacional tornou-

se uma exceção, de modo que uma criança só pode ser adotada por um estrangeiro

se não conseguir ser adotada no Brasil. Segundo Abreu (2002), essa discriminação

em relação à adoção internacional está muito mais associada ao seu caráter

considerado ofensivo para a imagem do Estado brasileiro – uma confirmação de que

o Brasil é incapaz de cuidar de suas crianças – do que ao desrespeito dos

interesses da criança ou à ilegalidade dos trâmites adotivos. Assim, para manter

essa visão negativa da adoção internacional, cria-se uma imagem do fenômeno

como uma prática “perigosa” para as crianças, e uma imagem dos estrangeiros (do

Primeiro Mundo) como aqueles que vêm de fora para nos controlar e explorar. Para

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alguns autores o interesse maior da criança não é permanecer no país de origem, e

sim ser adotada, e sua maior necessidade é de amor e de ter uma família (Abreu,

2002).

De acordo com Victor (2004), em reportagem do jornal A Gazeta de 26/02/04,

havia no estado do Espírito Santo, na época da reportagem, cerca de 60 crianças e

adolescentes que poderiam ser adotados por casais internacionais, sendo que este

número representava mais de 50% das crianças e adolescentes listados para

adoção na Grande Vitória. Nos anos de 2002 e 2003, cerca de 40 crianças e

adolescentes do estado foram doados a casais estrangeiros, sendo estes em sua

maioria da França e da Itália.

Segundo Abreu (2002), em vários países do Primeiro Mundo podem ser

observados grupos de pais adotivos de crianças oriundas do Terceiro Mundo. Esses

grupos geralmente estão direcionados para o país de onde saiu a criança adotada

ou para a sua cidade, e sua função é servir de ajuda aos pais adotivos, apoiar casais

que querem realizar adoções estrangeiras, muitas vezes lhes fornecendo

informações necessárias, e ajudar crianças abandonadas do país de origem dos

filhos adotivos, mandando regularmente dinheiro para projetos de desenvolvimento

no local, arrecadando fundos para serem enviados, ou ainda pagando salários de

funcionários de obras filantrópicas do país de origem das crianças. Alguns desses

grupos recebem inclusive uma autorização de seu país de origem permitindo-lhes

agir como intermediários entre os candidatos a adotantes e as autoridades dos

países de origem das crianças a serem adotadas.

1.15. Adoções especiais

Weber (1999) relata que a procura pela adoção compõe-se geralmente de

casais de classe média e média alta que não podem ter filhos biológicos. Ebrahim

(2001b) afirma que a adoção no Brasil ainda é comumente vista como uma solução

para a infertilidade, o que constitui uma das razões para a adoção maciça de bebês.

Apesar de a procura mais comum pela adoção ocorrer por parte de casais

que não podem ter filhos, Weber (2003) aponta a existência de adoções “especiais”,

ou adoções “fora da média”, no sentido estatístico, que são aquelas feitas por

famílias diferentes do padrão de família tradicional, composto por pai, mãe e filhos.

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São famílias inter-raciais9, famílias reconstituídas, famílias compostas por pais

solteiros, por pais homossexuais, entre outras, as quais, segundo Weber (2003),

devem fazer parte de qualquer análise compreensiva atual que envolva os papéis

parentais em nossa sociedade moderna. As diversas possibilidades de composições

familiares da atualidade levam a novas situações sociais, inclusive no que diz

respeito à adoção, e o desafio é lidar com essa diversidade confrontando mitos e

estereótipos cultivados por longo tempo sobre o que é considerado “normal” ou não.

De acordo com Mendonça e Fernandes (2004), em uma reportagem da

revista Época de 23/08/04, a mentalidade do brasileiro tem se modificado quando se

pensa em adoção, visto que a antiga estrutura familiar do tipo “papai, mamãe e dois

filhos à sua imagem e semelhança” não é mais a regra na sociedade. Segundo a

reportagem, os números do IBGE mostravam que 49% das famílias já não seguiam

esse padrão familiar.

Weber (2003) afirma que pesquisas sobre famílias adotivas não tradicionais

no Brasil são praticamente inexistentes, assim como são poucos os estudos

encontrados na literatura internacional.

Miall e March (2005), no Canadá, realizaram pesquisa que objetivou analisar

mudanças nas práticas de adoção a partir da opinião da comunidade, tendo em vista

que a opinião popular tem afetado as políticas e práticas acerca da implementação

de novos tipos de famílias adotivas. Ao investigarem quais seriam, na opinião da

população, as pessoas mais aceitáveis como potenciais pais adotivos, o casal

heterossexual com união legalizada foi o mais mencionado, com 90% dos homens e

93% das mulheres relatando que uma adoção realizada por eles seria muito

aceitável. Apenas 41% dos homens e 41% das mulheres mencionaram o casal

heterossexual sem união legalizada como sendo muito aceitável para realizar uma

adoção, o que sugere a importância que os participantes dão a um casamento legal

como característica desejável para potenciais pais adotivos. Apesar de o casal

heterossexual tradicional ter sido a categoria de pais adotivos mencionada como

mais aceitável pelos participantes, a partir dessa pesquisa ficou evidenciado que, de

um modo geral, os participantes canadenses se mostraram relativamente abertos a

diferentes tipos de pais adotivos, tendo se mostrado dispostos a considerar como

viáveis formas alternativas de famílias adotivas, como por exemplo as compostas

9 No contexto desse trabalho o termo inter-racial se refere a famílias que combinam cônjuges brancos e pardos,

brancos e negros ou pardos e negros.

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por pais solteiros ou por pares homossexuais. De acordo com as autoras, a idade e

o nível de escolaridade dos participantes estiveram diretamente associados ao grau

de aceitação de formas alternativas de famílias adotivas, de modo que quanto mais

jovens os participantes e quanto maior o seu nível de escolaridade, maior o nível de

aceitação de formas alternativas de famílias adotivas. Outras informações obtidas

nessa pesquisa serão mais bem detalhadas nos dois tópicos a seguir.

1.15.1. Adoção por famílias monoparentais

Sendo uma família monoparental aquela composta por um pai ou uma mãe,

cuidando sozinho (a) de seus filhos, podem ser consideradas famílias monoparentais

aquelas formadas por pessoas solteiras, viúvas ou divorciadas e seus filhos (Levy,

2005).

Segundo Levy (2005), até recentemente a ausência paterna costumava ser

apontada como uma das principais causas de desestruturação familiar, de modo que

a figura paterna praticamente inexistente era com freqüência a explicação

encontrada para justificar a problemática emocional de crianças e adolescentes.

Porém, diante da realidade de uma população na qual cada vez mais a mulher é

provedora do lar, arcando sozinha com a educação dos filhos, essa concepção

passou a ser questionada. No Brasil, a idéia de que uma família monoparental, seja

composta pelo pai ou pela mãe, pode propiciar referências estáveis tanto quanto

uma família tradicional, ganhou força e encontrou apoio no Estatuto da Criança e do

Adolescente, que reconhece o direito à adoção por pessoas solteiras, viúvas ou

divorciadas.

A partir de uma pesquisa realizada com famílias monoparentais adotivas,

Levy (2005) afirma que não houve qualquer prejuízo para as crianças por terem sido

adotadas por uma única pessoa. Mas a autora evidenciou a grande importância de

uma rede de apoio social nos casos de adoção monoparentais, ou seja, de sistemas

e pessoas significativas com as quais a criança possa manter relações afetivas. De

acordo com Levy (2005), esse apoio, dado por familiares, amigos, vizinhos, ou pela

comunidade em geral, é fundamental tanto para a inserção da criança em sua nova

família, como para acolher o adotante e ajudá-lo a elaborar suas incertezas. Os

sistemas de apoio em torno da pessoa que exerce a função materna (que, de acordo

com a autora, não é exclusiva do sexo feminino), impedem o isolamento da díade

cuidador(a)-filho e exercem uma função de socialização. Para Levy (2005), enquanto

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no caso de casais com filhos as funções socializante e interditora podem e devem

ser realizadas por ambos os pais, no caso de famílias monoparentais as redes de

apoio podem funcionar suprindo em parte as funções de socialização e interdição da

figura parental ausente. Além disso, ao contar com a rede social, o adotante oferece

a possibilidade de crescimento e outros modelos de identificação a seu filho.

Owen (1994, citado por Weber, 2003) afirma que existem pesquisas que

trazem tanto argumentos favoráveis quanto desfavoráveis à adoção de crianças por

pais solteiros, mas as evidências de ajustamento de crianças em lares adotivos

monoparentais mostram que essas adoções são viáveis. O autor sugere que existe

um reconhecimento de que a adoção é um processo que não necessariamente

mimetiza uma família na qual existem pai e mãe.

Groze (1991, citado por Weber, 2003) fez uma revisão de literatura sobre

adoções realizadas por pais e mães solteiros, e evidenciou que estas são

geralmente realizadas por mulheres, e que nesses casos são adotadas

freqüentemente crianças mais velhas. Esse autor ressalta que famílias

monoparentais são tão afetivas e viáveis quanto as tradicionais, e que um adulto

solteiro que não está envolvido com as demandas de um relacionamento marital

pode ter maior disponibilidade para um envolvimento mais intenso, necessário para

crianças que tiveram sérios prejuízos em sua história de vida. Por isso o autor

sugere esta forma de família como uma fonte para adoção de crianças com

necessidades especiais, visto que essas crianças teriam maior necessidade de

comprometimento para seus cuidados. Essa sugestão feita pelo autor se mostra

questionável, pois parece relacionar a disponibilidade ou não de uma pessoa para

cuidar de uma criança apenas à existência ou não de um relacionamento marital,

desconsiderando vários outros aspectos da vida dessa pessoa, como, por exemplo,

o envolvimento com o trabalho.

Miall e March (2005), na já citada pesquisa realizada no Canadá que objetivou

analisar mudanças nas práticas de adoção a partir da opinião da comunidade,

investigaram o nível de aceitação da comunidade em geral em relação à realização

de adoções por mulheres e homens solteiros. Apenas 22% dos homens e 27% das

mulheres consideraram muito aceitável a realização de uma adoção por uma mulher

solteira, enquanto 35% dos homens e 32% das mulheres afirmaram que esse tipo de

adoção não seria muito aceitável ou seria inaceitável. Similarmente, apenas 18%

dos homens e 19% das mulheres afirmaram que a adoção por um homem solteiro

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seria muito aceitável, enquanto 45% dos homens e 44% das mulheres afirmaram

que esse tipo de adoção não seria muito aceitável ou seria inaceitável. Assim, a

partir dessa pesquisa é possível perceber que, em relação à realização de uma

adoção por pessoas solteiras, há em geral um maior nível de aceitação quando esta

é realizada por uma mulher solteira, e um maior nível de rejeição quando é realizada

por um homem solteiro.

1.15.2. Adoção por homossexuais

Segundo Weber (2003) deve levar algum tempo para que a adoção por

homossexuais seja discutida de forma sistemática no Brasil, mas essa é uma

questão que não pode mais ser ignorada. Santos e Bruns (2004) afirmam que há

uma escassez de trabalhos sobre as famílias homossexuais, e percebe-se em

relação a elas a existência de preconceito e discriminação nos mais diversos

segmentos e contextos sociais.

De acordo com Santos e Bruns (2004), existem vários mitos acerca da

homossexualidade, dentre eles a associação entre homossexualidade e

promiscuidade, e a crença na incapacidade de pessoas homossexuais criarem filhos

saudáveis, e na possibilidade de elas influenciarem a orientação afetivo-sexual dos

filhos. Segundo as autoras, essas posturas preconceituosas diante da possibilidade

de existência de gays e lésbicas com filhos desvelam marcas da repressão sexual e

da construção bio-psico-sócio-cultural e espiritual da sexualidade que permeiam as

relações sociais.

Para os “casais” homossexuais10 que desejam exercer a parentalidade,

devido à impossibilidade biológica de duas pessoas do mesmo sexo terem um filho

(embora hoje exista grande desenvolvimento de técnicas de fertilização artificiais,

criando algumas alternativas, tal impossibilidade biológica permanece válida), um

dos caminhos seguidos é a adoção (Santos e Bruns, 2004).

Como já foi ressaltado, o Estatuto da Criança e do Adolescente descreve uma

série de características necessárias para que uma pessoa adote uma criança ou

adolescente no Brasil, mas não faz qualquer referência ou restrição à orientação

sexual do candidato à adoção. Assim, uma pessoa solteira, divorciada ou viúva pode

10

Em alguns casos será mantida a expressão “casal” para se referir ao par homossexual, embora não se trate de

um casal stricto sensu.

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adotar, independentemente da orientação sexual, desde que preencha os requisitos

estabelecidos na Lei.

Mas, conforme o ECA, “a adoção por ambos os cônjuges ou concubinos

poderá ser formalizada, desde que um deles tenha completado vinte e um anos de

idade, comprovada a estabilidade da família” (art. 42, §2º). Ou seja, de acordo com a

legislação, duas pessoas só podem adotar conjuntamente se forem casadas ou

viverem em união estável, ou se forem divorciadas ou judicialmente separadas,

desde que o estágio de convivência com a criança tenha se iniciado na constância

da sociedade conjugal (art. 42, §4º). E como legislação brasileira só reconhece a

união estável entre um homem e uma mulher (Constituição Federal, artigo 226, §

3º), fica inviabilizada a adoção de uma criança ou adolescente por duas pessoas do

mesmo sexo, como por exemplo um “casal” homossexual.

Ainda de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção não

será deferida se o candidato revelar, de qualquer modo, incompatibilidade com a

natureza da medida, ou não oferecer ambiente familiar adequado à criança ou ao

adolescente. Além disso, a adoção só será deferida se apresentar reais vantagens

para o adotando. Com base nesses aspectos da legislação, muitos argumentam que

a adoção por pessoas homossexuais não deveria ser permitida, pois acreditam que

não haveria um ambiente familiar adequado à criança ou adolescente. Assim,

percebe-se que o que está em questão não é apenas a restrição legal, mas

principalmente o fato de a adoção por homossexuais ser motivo de grande

preconceito social.

Apesar de a orientação sexual do adotante solteiro, de acordo com a lei, não

interferir no processo de adoção, percebe-se muitas vezes a existência de

preconceitos, por parte dos próprios técnicos do judiciário, em relação à sexualidade

do postulante à adoção. Um exemplo disso é o fato de que, quando um homem

solteiro se interessa em adotar uma criança ou adolescente, o fato de ele declarar

não ter uma companheira muitas vezes faz recair sobre ele uma série de suposições

a respeito de sua sexualidade, levantando-se a hipótese de homossexualismo. A

partir daí o postulante está sujeito a sofrer uma série de preconceitos, que podem

inclusive impossibilitar a conclusão do seu cadastro para adoção.

Atualmente é possível observar muitos preconceito sociais em relação à

adoção por homossexuais, mas alguns acontecimentos vêm mostrar que esses

preconceitos estão sendo questionados. Em 1999 um homem solteiro interessado

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em adotar uma criança pela 1ª Vara da Infância e da Juventude do RJ declarou-se

homossexual e, tendo passado por todo o processo de avaliação psicossocial, teve

aprovado o pedido de inclusão no cadastro de interessados em fazer uma adoção.

Porém, o Ministério Público recorreu argumentando que a união de pessoas do

mesmo sexo poderia prejudicar a criança. Mas o Tribunal de Justiça, em decisão

unânime, manteve a decisão do juiz, permitindo a realização do cadastro do

interessado em adotar (Zero Hora, 05/02/99). No mesmo ano, um professor,

homossexual assumido, conseguiu o direito de adotar uma criança de 9 anos,

também na 1ª Vara da Infância e da Juventude do RJ. O Ministério Público mais

uma vez recorreu, alegando que o convívio com homossexuais poderia prejudicar a

formação da personalidade e do caráter da criança. Mas o Tribunal de Justiça

novamente manteve a decisão do juiz, permitindo a adoção da criança (Bittencourt,

1999, em reportagem do Jornal do Brasil de 07/07/99).

Há alguns anos vem ocorrendo no Brasil uma discussão acerca da aprovação

do projeto da parceria civil para pessoas do mesmo sexo (Projeto de Lei no 1151/95,

de autoria de Marta Suplicy – PT-SP). Atualmente os pares homossexuais não

podem ser beneficiados por herança, não podem declarar renda em conjunto para

comprar imóveis, e estão impedidos de colocar o parceiro como dependente em

planos de saúde ou previdência. Com a aprovação da Parceria Civil Registrada,

todos esses aspectos serão garantidos por meio de contrato lavrado em cartório.

Mas, de acordo com Marta Suplicy (PT-SP), em entrevista a Velloso (1999) numa

reportagem da revista Época de 18/01/99, é preciso deixar claro que a parceria civil

não é um casamento, e sim um contrato que não muda o estado civil da pessoa,

tendo apenas a função de organizar os aspectos legais da vida de homossexuais

que moram juntos. Esse contrato, que beneficiaria também pessoas do mesmo sexo

que não são homossexuais, como por exemplo uma avó e uma neta ou dois irmãos,

dá aos envolvidos direitos semelhantes aos que têm os pares heterossexuais que

não são casados no civil.

Apesar de a aprovação do projeto de parceria civil entre pessoas do mesmo

sexo garantir alguns direitos aos “casais” homossexuais, ele não aborda a questão

da adoção de crianças e adolescentes, não trazendo qualquer alteração no que se

refere à questão. De acordo com Velloso (1999) numa reportagem da revista Época

de 18/01/99, quando foram discutir com Marta Suplicy os itens que gostariam de ver

incluídos no Projeto de Lei, os grupos de homossexuais chegaram a pensar na

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admissão do direito de adoção por pares do mesmo sexo, mas logo que perceberam

que a polêmica seria grande e poderia comprometer a aprovação do projeto,

desistiram da idéia.

Em alguns países existem legislações que regulamentam a união de

homossexuais, e abordam o tema da filiação. Por exemplo, na Dinamarca, na

Noruega e na Suécia a união civil entre pessoas do mesmo sexo é permitida, e os

“casais” homossexuais têm os mesmos direitos dos heterossexuais. Mas nesses

países as leis impedem as cerimônias em igrejas, a adoção de crianças e a

inseminação artificial em “casais” registrados de lésbicas. Na Islândia a união civil

entre homossexuais é legalizada, assim como a custódia conjunta de filhos

biológicos de um dos parceiros. No ano de 2000, a Holanda, que já reconhecia o

registro de associação para pessoas do mesmo sexo desde 1998, se tornou o país

mais liberal do mundo em direitos para homossexuais, ao aprovar o casamento entre

pessoas do mesmo sexo e a adoção de crianças por pares homossexuais, desde

que residam no país, e que as crianças adotadas sejam de nacionalidade

holandesa, para evitar conflitos jurídicos com outros países (O Globo, 19/12/00).

No Brasil, a polêmica sobre a adoção por homossexuais teve destaque na

mídia numa novela de grande audiência, iniciada em 2004, na qual uma médica, que

era homossexual, achou um bebê negro no lixo do hospital, e resolveu tentar adotá-

lo, visto que ela e sua namorada se apaixonaram pelo bebê. De acordo com Pereira

(2003), em reportagem da revista Época de 29/12/03, as restrições à paternidade

dos homossexuais estão começando a ser revistas pela sociedade brasileira, pois,

graças à adoção e à fertilização in vitro, os homossexuais estão trazendo para a

cena moderna mais um modelo de família, denominado “homoparental”.

Santos e Bruns (2004) realizaram investigação objetivando compreender

como homossexuais vivenciam a parentalidade e que significados lhe atribuem, a

partir de entrevistas com pessoas homossexuais com filhos biológicos e/ou adotivos.

Os resultados apontaram a existência de um grande preparo psíquico e

socioeconômico por parte dos homossexuais para a chegada de uma criança.

Segundo as autoras, a divisão de papéis sexuais em famílias homossexuais não

segue o modelo de casal heterossexual tradicional, nas funções de pai e mãe

(atribuídas ao homem e à mulher, respectivamente), sendo as funções parentais

exercidas por ambos. Mas percebe-se a existência de relatos de situações de

preconceito quanto aos papéis sexuais desempenhados. Santos e Bruns (2004)

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ressaltam que parece difícil para a sociedade aceitar, por exemplo, que duas

mulheres que constituem um “casal” e uma família nuclear possam ter suas

identidades de gênero femininas, e que possam exercer efetivamente a

parentalidade. Mas ainda se acredita que, pelo fato de serem mulheres, ainda

possam ser mais bem sucedidas do que um “casal” de homens homossexuais,

devido à idéia de que as mulheres seriam “naturalmente” boas cuidadoras e boas

mães. Segundo as autoras, a crença de que a criança ficaria confusa com o fato de

ter duas mães ou dois pais não foi confirmada na pesquisa, visto que as crianças

formaram vínculos afetivos saudáveis e estáveis com as pessoas que exerceram as

funções parentais.

McIntyre (1994, citado por Weber, 2003), através de análise acerca de pais e

mães homossexuais e o sistema legal de custódia, afirma que pais do mesmo sexo

são tão efetivos quanto casais tradicionais. Ricketts e Achtenberg (1989, citado por

Weber, 2003) realizaram um estudo com casos individuais de adoções por

homossexuais de ambos os sexos e afirmam que a saúde mental e a felicidade

individual dependem da dinâmica de determinada família, e não da maneira como a

família é definida. Patterson (1997, citado por Weber, 2003), avaliando as relações

de pais e mães homossexuais com seus filhos e as evidências da influência dos pais

na identidade sexual, desenvolvimento pessoal e relacionamento social dos filhos

(crianças de 4 a 9 anos), afirma que os níveis de ajustamento maternal, auto-estima,

e desenvolvimento social e pessoal das crianças são compatíveis com os de

crianças criadas por casais tradicionais.

Miall e March (2005), no Canadá, investigaram o nível de aceitação da

comunidade em geral a respeito da realização de uma adoção por “casais”

homossexuais masculinos ou femininos. Os dados dessa pesquisa mostram que a

aprovação social da realização de uma adoção por pares homossexuais em geral é

muito menor que a realização de uma adoção por casais heterossexuais ou por

pessoas solteiras. De acordo com a autoras, 23% das mulheres e 17% dos homens

(significativamente mais mulheres) afirmaram que uma adoção por um “casal” de

lésbicas seria plenamente aceitável, enquanto 58% dos homens e 47% das

mulheres (significativamente mais homens) afirmaram que a realização de uma

adoção por um “casal” de lésbicas não seria muito aceitável ou seria inaceitável. Em

relação à realização de uma adoção por um “casal” de gays, 21% das mulheres e

15% dos homens (significativamente mais mulheres) afirmaram que seria muito

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aceitável, enquanto 61% dos homens e 51% das mulheres (significativamente mais

homens) afirmaram que não seria muito aceitável ou seria inaceitável a realização

de adoção por um “casal” de gays. Percebe-se que em geral as mulheres aceitam

mais a possibilidade de pares homossexuais serem pais adotivos, enquanto os

homens reprovam mais tal situação.

1.16. Algumas questões adicionais sobre família

Becker (2000) afirma que é abundante a literatura contemporânea a respeito

da importância da família para o desenvolvimento de crianças e adolescentes. É fato

que a socialização da criança não acontece apenas na família, sendo realizada

simultaneamente pela escola, pela igreja, pela mídia, além da imensa influência

exercida pelos grupos de pares, constituído por iguais (Romanelli, 2002). Mas,

segundo Kumamoto (2001), não se pode negar que, através de suas práticas

educativas e socializadoras, nas quais a afetividade é o seu elemento constituinte

básico, a família desempenha um importante papel na transmissão dos valores

essenciais à formação do indivíduo.

Kumamoto (2001) afirma que a família, apesar das mudanças observadas nos

últimos anos, ainda continua exercendo notável influência sobre a criança, podendo

suprir as necessidades afetivas e materiais do indivíduo. Ebrahim (2001a) afirma que

as relações entre pais e filhos são essenciais para a formação da personalidade e a

adaptação social do indivíduo, e embora o fato de pertencer a uma família não

assegure um desenvolvimento necessariamente mais adequado, promove condições

que o favorecem.

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, toda criança ou

adolescente tem direito a ser criado no seio de uma família e, excepcionalmente, em

família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de

origem. Desse modo a adoção, que é a forma mais extrema de colocação em família

substituta, tem como objetivo garantir os direitos de crianças e adolescentes, quando

estes tiverem por algum motivo sua convivência familiar abalada. Mas apesar de

afirmar a necessidade da criança de crescer em uma família, a lei não prioriza

nenhum modelo familiar como sendo mais adequado, fazendo restrições apenas

quanto à adoção realizada por duas pessoas do mesmo sexo.

Sabe-se que na nossa sociedade atual coexistem configurações familiares

muito diversas, o que tem levado a novas situações sociais. Apesar da existência

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dessa diversidade, ainda predomina, segundo Berquó (1998), um modelo familiar,

cuja condição de ideal foi construída na modernidade, que é aquele da família

nuclear conjugal composta por pai, mãe e filhos. A forte influência desse modelo

familiar pode ser claramente percebida no trabalho com adoção, visto que a grande

maioria das pessoas que procuram os serviços de adoção são casais que não

podem ter filhos biológicos. Ou seja, a adoção é muitas vezes vista como uma forma

alternativa de construir aquele modelo familiar conjugal e nuclear.

1.16.1. Breve exposição de aspectos históricos

O modelo de família nuclear conjugal desenvolveu-se como ideologia

hegemônica na modernidade. Ao fazer uma análise do desenvolvimento das

relações familiares nas sociedades ocidentais, Ponciano e Féres-Carneiro (2003)

afirmam que antigamente essas relações perdiam-se em meio a uma ampla

comunidade, e incluíam pai, mãe, filhos, parentes, agregados, vizinhos, amigos,

entre outros. As relações familiares eram permeadas por relações comunitárias, de

modo que a família e a sociedade confundiam-se. O indivíduo perdia sua visibilidade

em meio às relações, e a hierarquia ditava as regras familiares. Todos os membros

do grupo familiar deviam obediência e respeito ao pai, que os deveria proteger,

vigiar e corrigir. A concepção de família predominante era a de linhagem,

compreendida como solidariedade estendida a todos os descendentes de um

mesmo ancestral, não levando em conta os valores da coabitação e da intimidade.

No fim do século XVII e início do XVIII ocorreu na Europa uma mudança

social marcante nas características da criança e da família e em sua interação. A

família tornou-se um lugar de afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e

filhos, e passou a se organizar em torno da criança, em função da importância que

passou a ser atribuída à sua educação. A família recolheu-se da rua, da praça, da

vida coletiva em que antes se encontrava, para a intimidade, fazendo desaparecer a

antiga sociabilidade. Assim, paulatinamente através dos séculos, o valor social da

linhagem foi transferindo-se para a família conjugal (Ariès, 1981).

Dessa forma, de acordo com Ponciano e Féres-Carneiro (2003), percebe-se

na modernidade uma mudança na relação entre a família e a comunidade

circundante, de modo que os laços entre os membros da família reforçaram-se. A

família, afastando-se cada vez mais da noção ampla de linhagem, foi se firmando

num modelo nuclear, fundado no biológico, na união heterossexual e na procriação.

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Esse modelo, vinculado ao aburguesamento e à industrialização das grandes

cidades, é pautado ainda na intimidade, na privacidade e no isolamento, tornando-se

fechado à sociabilidade pública.

A partir do século XVIII os jovens começaram a considerar os sentimentos

para a escolha do cônjuge, desvalorizando aspectos exteriores como propriedade e

desejo dos pais. As transformações econômicas, advindas da Revolução Industrial,

permitiram as condições materiais necessárias para uma liberação da escolha

conjugal, que não ameaçava mais o patrimônio familiar. Mas, apenas no século XIX

o casamento por amor foi defendido abertamente (Ponciano e Féres-Carneiro,

2003). Segundo Vaitsman (1994), o desenvolvimento da família conjugal moderna,

fundada no casamento por livre escolha, ocorreu simultaneamente a uma

reformulação dos papéis de homens e mulheres no casamento, criando novos

modelos de comportamentos masculinos e femininos.

Na família nuclear o casal assume maior centralidade, e tem a função de

constituir um núcleo em torno dos filhos. A família assumiu uma função moral e

espiritual, e passou a ser o agente ao qual a sociedade confiou a tarefa de

transmissão da cultura. As crianças, que passaram a ocupar o lugar central nessa

família, são de responsabilidade dos pais, e à mulher coube a tarefa de criar seus

filhos, de ser companheira do seu marido e de executar as tarefas domésticas

(Ponciano e Féres-Carneiro, 2003).

Nos primórdios da industrialização, segundo Vaitsman (1994), muitas

mulheres integraram-se às atividades industriais, mas posteriormente, muitas

empresas que utilizavam a produção doméstica das mulheres foram suplantadas

pela produção fabril, o que significou paulatinamente a substituição do trabalho

feminino pelo masculino. Assim, a industrialização provocou uma queda da

participação feminina na força de trabalho, acarretando um processo de privatização

da mulher no mundo da família. Ao ser privatizado na família, o trabalho doméstico

não remunerado da dona de casa tornou-se invisível, e essa privatização, que

segundo Vaitsman (1994) foi política, cultural e legal, trouxe implicações para o

modo como as mulheres foram se definindo e sendo definidas na ordem moderna

patriarcal. Passou a ser difundido um discurso que se tornou dominante sobre as

características próprias da natureza de cada sexo, de modo que os papéis familiares

eram atribuídos e normalizados segundo o gênero: era da natureza feminina

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realizar-se como mãe e esposa devotada, e da masculina realizar-se como pai,

responsável pela provisão material e moral da família.

As relações familiares, antes reguladas pela hierarquia, passaram a sofrer

intervenção do Estado, em aliança com especialistas da área de saúde. O saber

médico-psicológico passou a prescrever as normas de comportamento de todos os

membros da família, de modo que sua liberdade tornou-se restrita (Ponciano e

Féres-Carneiro, 2003). De acordo com Vaitsman (1994), o relacionamento familiar

começou a modificar-se mediante a difusão de normas da disciplina médico-

higiênica, pois a partir de então o discurso médico passou a exigir a superação da

separação entre sexo e amor, e a integração desses dois elementos dentro do

casamento. A sexualidade e o amor entre homem e mulher no casamento

transformaram-se em normas de saúde.

É interessante ressaltar que, segundo Vaitsman (1994), o padrão de família

conjugal patriarcal na verdade jamais se generalizou no conjunto da sociedade

ocidental, mas se difundiu como ideal de comportamento e papéis sexuais. Segundo

Romanelli (2002), apesar da família nuclear conjugal ter se firmado como modelo

hegemônico na modernidade, as formas de sociabilidade familiar nem sempre se

adequaram inteiramente a esse modelo, pois o modo como as características

modelares se articulavam entre si dependia da camada social e do repertório cultural

das famílias.

A domesticação da mulher fez surgir aspirações de crescimento pessoal

feminino, e a partir dos anos 70 consolida-se o movimento feminista, que foi uma

das principais fontes de questionamento e transformação para a família. O

movimento feminista gerou uma crise do modelo conjugal hegemônico desde o fim

do século XIX, e a partir dos debates advindos desse movimento, uma nova

revolução sexual realizou-se na sociedade, de modo que situações de recasamento

e de “casais” homossexuais passaram a tornar-se visíveis (Ponciano e Féres-

Carneiro, 2003).

O movimento feminista reivindicava relações igualitárias entre homens e

mulheres, e a autoridade patriarcal, até então reforçada pela comunidade, tornou-se

intolerável. Os valores conjugais, antes baseados na fidelidade, na cadeia de

gerações e na responsabilidade perante a comunidade, passam a basear-se

primordialmente na felicidade pessoal, no autodesenvolvimento e no desejo de ser

livre para desenvolver a própria personalidade e realizar as ambições pessoais

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(Ponciano e Féres-Carneiro, 2003). As mulheres, de forma cada vez mais maciça,

foram invadindo os domínios da política, da cultura e das atividades profissionais,

redefinindo a divisão sexual do trabalho e desafiando o modelo patriarcal (Vaitsman,

1994).

Assim, segundo Costa e Rossetti-Ferreira (2004), os movimentos sociais das

décadas de 60 e 70, associados às mudanças no âmbito econômico e tecnológico,

promoveram intensas transformações não apenas no cenário político-econômico

mundial, mas também modificaram as relações entre os gêneros, as relações

familiares, redefinindo papéis sexuais e funções atribuídas aos sexos. As

expressões de masculinidade e feminilidade foram questionadas, repensadas,

ressignificadas e mutuamente configuradas a partir das práticas sociais.

Com a crescente democratização das relações, advindas com a própria

modernização, a família foi contaminada por valores democráticos, baseando-se na

comunicação livre e aberta e no diálogo. A imposição modelar da família nuclear

moderna não pôde mais ser controlada, já que era advogado o direito à livre

escolha. Construiu-se a possibilidade de não se seguir um modelo único, tal qual o

da família conjugal, e passaram a ganhar visibilidade inúmeras formas de

configurações familiares: uniões conjugais sem vínculos legais, famílias

monoparentais (caracterizados pela presença do pai com filhos ou da mãe com

filhos, contando ou não com outros parentes habitando conjuntamente), famílias

compostas por homossexuais e seus filhos, entre outras (Berquó, 1998). Mas,

apesar de o modelo de família nuclear ter sido questionado, as configurações

familiares atuais têm preservado algumas de suas características, como a intimidade

e a privacidade (Ponciano e Féres-Carneiro, 2003).

Assim, na atualidade, a família tende cada vez mais a ser pautada na idéia da

diversidade e da ausência de um parâmetro norteador único. O estabelecimento de

um modelo fixo já não se mantém, pois se estabelece a diversidade como valor

fundamental. No plano teórico, percebe-se uma dificuldade de se buscar uma

definição exclusiva de família, de modo que a literatura refuta a busca de uma

estrutura familiar universal (Ponciano e Féres-Carneiro, 2003).

1.16.2. A família no judiciário

Durante a transição democrática no Brasil, que culminou com a Constituição

Federal de 1988, o modelo proposto para o país era de um Estado social e

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democrático de direito. Na área do direito de família, os dispositivos constitucionais

apresentaram uma verdadeira ruptura com o modelo de família presente até então

no direito brasileiro (Koerner, 2002). Segundo a Constituição de 1988, “a família,

base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (art. 226), sendo esta

proteção estendida a formas não tradicionais de família. Essa legislação considera

como família não só a formada pelo casamento, mas também a união estável entre

homem e mulher (art. 266, inciso 3º), e a formada por qualquer dos pais e seus

descendentes (inciso 4º).

Assim, fundada em princípios constitucionais democráticos e valores

universais, a política da família passa, pois, de um modelo arcaizante/regressivo

para um modelo progressivo, em que o direito se abre à diversidade de costumes, e

não adota mais um modelo familiar único, além de considerar que as relações

familiares não são mais as mesmas (Koerner, 2002).

Porém, apesar de o processo de mudança política, iniciado com a transição

democrática, ter provocado inúmeras transformações na estrutura do direito

brasileiro, segundo Koerner (2002) as instituições do sistema judicial têm se

transformado de forma incompleta e contraditória, tanto em seus aspectos

organizacionais e de procedimentos, como na prática dos profissionais de Direito.

Confirmando essa afirmação de Koerner (2002), no que diz respeito à família,

percebe-se que uma transformação legal no sentido de uma abertura a formas não

tradicionais de família não necessariamente foi acompanhada de uma transformação

na concepção de família de profissionais que atuam na área Direito, prevalecendo

ainda uma valorização daquele modelo de família conjugal nuclear e patriarcal. Esse

aspecto pode ser claramente evidenciado no que diz respeito à adoção, pois apesar

de o Estatuto da Criança e do Adolescente não absolutizar a família conjugal como

único modo de assegurar à criança o direito de viver em uma família, e não priorizar

qualquer modelo de família como mais adequado para acolher uma criança em

adoção, muitos profissionais de serviços técnico-judiciários responsáveis por

selecionar candidatos à adoção continuam priorizando, muitas vezes de forma sutil,

postulantes que se adequam ao modelo de família conjugal nuclear, em detrimento

de outros como pessoas solteiras, separadas e viúvas.

Apesar dos avanços legislativos, essa valorização do modelo de família

conjugal ainda é tão presente em nossa sociedade que muitas vezes os próprios

interessados em adotar que não se adequam a esse modelo acreditam que não

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podem se inscrever para adoção de uma criança pois não seriam considerados uma

família para a criança. Ou então deixam de se inscrever pois acreditam que a

legislação prioriza o modelo conjugal como mais adequado ao desenvolvimento de

uma criança.

Enfim, parece que essa diversidade que caracteriza as relações familiares na

atualidade, tão presentes em nosso cotidiano, não foi completamente assimilada no

que se refere à adoção, pois as práticas se mantém de certa forma atreladas a um

modelo de família conjugal, tanto para os profissionais que atuam junto ao direito

como para a sociedade em geral. Porém, na atualidade, é possível perceber que há

um grande número de pessoas cadastradas para adoção nos juizados que não

correspondem a esse modelo familiar conjugal, e essa grande diversidade de

interesses e de interessados envolvidos em processos de adoção coloca em

questão aquela concepção que se fixa em um modelo, evidenciando a insuficiência

e a precariedade de um trabalho de adoção que prioriza um determinado padrão

familiar como mais adequado para uma criança.

1.17. Objetivos

A partir do que foi exposto é possível perceber que o tema “adoção” engloba

uma série de discussões e uma grande variedade de interesses, e lidar com essa

variedade tem se mostrado um desafio rotineiro. Assim, buscando contribuir para

uma melhor compreensão dos aspectos envolvidos na adoção, e mais

especificamente, da diversidade de interesses e interessados relacionados ao tema,

realizamos a presente pesquisa com pessoas interessadas em adotar crianças e/ou

adolescentes, cadastradas para adoção no Juizado da Infância e da Juventude de

Vila Velha -ES.

Considerando a importância da adoção no contexto brasileiro atual e o

destaque que o tema vem ganhando, o presente estudo objetivou construir um

panorama a respeito das adoções realizadas através do Juizado da Infância e da

Juventude do município de Vila Velha - ES, buscando ressaltar a diversidade de

interesses e de interessados envolvidos no processo de adoção. Relacionam-se aos

objetivos desse trabalho explorar o processo de adoção, as variáveis relativas à

caracterização das pessoas interessadas em adotar, os motivos que as levaram a

querer adotar, suas preferências quanto às características das crianças desejadas,

explorar como a criança pode alterar a vida das pessoas que adotam, o

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posicionamento dos pretendentes sobre a revelação à criança de sua natureza

adotiva, a negociação de casais sobre a adoção, as restrições ou preconceitos

percebidos pelos adotantes em relação ao seu interesse em adotar, entre outros.

Além disso, objetivou-se, a partir dessa análise, apresentar perspectivas de atuação

para profissionais, em especial psicólogos judiciários, que trabalham com adoção, e

contribuir para questionar a adequação de um modelo familiar tradicional para lidar

com uma realidade na qual se apresentam configurações familiares muito variadas.

Acreditamos que, ao abordar a diversidade de aspectos envolvidos na

adoção, estamos contribuindo para a produção de questionamentos de preconceitos

e de concepções tradicionais no que se refere ao tema. A adoção parece ser um

processo que, em razões de questões históricas ligadas a maternidade, a fertilidade,

e a ideais de família, pode ser pensado a partir de estereótipos, e estudos na área

podem contribuir para apontar a inadequação de modelos tradicionais para lidar com

uma realidade que vai além de incompletas e falíveis teorias, além de contribuir para

o aperfeiçoamento do trabalho de profissionais de diversas áreas que lidam direta ou

indiretamente com a adoção. Esperamos ainda que os resultados dessa pesquisa,

na medida em que contribuam para a ampliação do corpo de conhecimentos sobre

adoção, possam gerar subsídios para a implementação de projetos de intervenção e

para a elaboração de políticas públicas.

2. MÉTODO

2.1. Participantes

Participaram da pesquisa homens e mulheres, casados ou não, interessados

em adotar crianças e/ou adolescentes, cadastrados no Juizado da Infância e da

Juventude de Vila Velha - ES. Foram feitas no total 21 entrevistas, com casais

(ambos os cônjuges simultaneamente) ou com pessoas individualmente. Em dois

casos de entrevistas com casais os respectivos cônjuges não puderam comparecer,

de modo que a entrevista foi feita com apenas um deles, que forneceu informações

sobre o casal. Desse modo, o grupo de participantes compôs-se de 12 casais, 2

pessoas casadas que forneceram informações sobre ambos os cônjuges (1 do sexo

feminino e 1 do sexo masculino), 6 pessoas solteiras (4 do sexo feminino e 2 do

sexo masculino) e 1 separada (sexo feminino), perfazendo um total de 33

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participantes (18 do sexo feminino e 15 do sexo masculino). Porém, durante a

apresentação e análise dos dados, serão contabilizados 35 participantes,

englobando as duas pessoas que não puderam comparecer às entrevistas, mas que

foram abordadas indiretamente por meio de seus cônjuges.

A escolha dos participantes não se deu aleatoriamente. Todas as pessoas

cadastradas no Juizado da Infância e da Juventude de Vila Velha passam por um

acompanhamento psicológico grupal (coordenado pela pesquisadora), necessário

para a aprovação do cadastro para adoção neste Juizado. A partir do conhecimento

prévio de todos os casos que passaram pelo acompanhamento grupal, buscou-se

selecionar os participantes de forma a englobar uma diversidade de casos que

ilustrassem diferentes especificidades no que se refere aos vários aspectos da

adoção. Essa forma de seleção contribuiu para a existência de uma grande

variedade de casos com um número relativamente reduzido de participantes. O fato

de o universo dessa pesquisa não possuir características de aleatoriedade reduz o

alcance de generalização dos resultados, mas tal decisão proposital adequa-se aos

objetivos da pesquisa e, ao invés de limitá-la, abriu a possibilidade para a produção

de uma riqueza de informações que dificilmente seria alcançada com outra

estratégia.

2.2. Procedimento e Instrumento

Inicialmente foi feito contado com a autoridade judiciária responsável pelo

Juizado da Infância e da Juventude de Vila Velha – ES, a MM. Juíza Dr. Patrícia

Pereira Neves, e foi solicitada permissão para a realização da pesquisa através do

“Termo de consentimento para a realização de projeto de pesquisa” (anexo I), o qual

foi preenchido em duas vias, ficando uma a cargo da autoridade judiciária e outra a

cargo da pesquisadora.

O contato com os participantes foi feito por meio de telefone, ou

pessoalmente no grupo de adoção. Foi marcado um horário com as pessoas que se

dispuseram a participar, em local de sua preferência.

Foi explicado aos participantes os objetivos da pesquisa e os procedimentos a

serem utilizados, e àqueles que concordaram em participar foi entregue um “Termo

de consentimento para a participação em projeto de pesquisa” (anexo II), termo este

assinado em duas vias, ficando uma a cargo do participante e outra a cargo da

pesquisadora.

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Foi preenchida uma ficha (individual ou referente ao casal – anexos III e IV)

com alguns dados dos participantes, tais como sexo, idade, endereço, escolaridade,

estado civil, profissão, e um registro da cor da pele dos participantes (negro, pardo,

branco, oriental, ou indígena). No caso dos casais, além de solicitadas essas

informações de cada um dos parceiros, foi informado também o tempo de união.

Foi realizada com os participantes uma entrevista apoiada em roteiro semi-

estruturado elaborado previamente. O objetivo foi coletar informações acerca de

vários aspectos da adoção, como o tempo de espera desde a efetuação do cadastro

para adoção, os motivos que os levaram a querer adotar, os eventuais casos de

adoção na família, suas preferências quanto às características das crianças

desejadas, expectativas sobre como a adoção pode alterar suas vidas, o

posicionamento dos pretendentes sobre a revelação à criança de sua condição

adotiva, as restrições ou preconceitos percebidos pelos adotantes em relação ao

seu interesse em adotar, entre outros. O roteiro da entrevista realizada com casais

(anexo V) continha algumas questões adicionais em relação ao roteiro da entrevista

realizada individualmente com os solteiros ou separados (anexo VI), questões estas

referentes à negociação do casal em relação a alguns aspectos da adoção. As

entrevistas foram gravadas, e de cada uma das entrevistas gravadas foram

transcritas as informações relevantes, as quais foram submetidas à análise.

O total de entrevistas realizadas foi de 21 (12 com casais, 2 individuais

referentes ao casal, e 7 individuais com pessoas solteiras ou separadas). Cabe

ressaltar que inicialmente foram realizadas as primeiras 10 entrevistas (7 casais e 3

individuais), com a finalidade principal de testar o instrumento. Essas entrevistas

foram submetidas a análise, e só após a sua conclusão foram realizadas as outras

entrevistas. Em função disso, as 11 últimas entrevistas (5 casais, 2 individuais

referentes ao casal e 4 individuais) foram realizadas quase um ano após as 10

primeiras.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

O Quadro 1 apresenta algumas informações sobre a caracterização dos

participantes da pesquisa.

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Quadro 1 – Caracterização dos participantes.

Entrevistas Sexo Idade Escolaridade Estado Civil Profissão Cor da

pele

Tempo de união

(casais)

Entrevista 1

H 30 Ensino Superior

Completo Casado

Pastor da Igreja Metodista e Professor de

Teologia e Filosofia Branca

5 anos

M 30 Ensino Superior

Completo Casada

Pastora da Igreja Metodista e Jornalista

(assessora nacional de comunicação da Igreja)

Parda

Entrevista 2

H 43 Ensino Superior

Incompleto Solteiro

Missionário religioso (Instituição religiosa

Perfect Liberty) Negra

18 anos

M 50 Ensino Médio

Completo Solteira Dona de casa Branca

Entrevista 3 H 36 Ensino Médio

Completo Solteiro Analista de importação Branca -

Entrevista 4 M 45 Ensino Superior

Completo

Casada (se-parada de

fato) Advogada Branca -

Entrevista 5

H 28 Ensino Funda-

mental Incompleto Casado Cabeleireiro Parda

5 anos e meio

M 24 Ensino Médio

Completo Casada Dona de casa Branca

Entrevista 6

H 42 Ensino Superior

Completo Casado Comerciário Branca

14 anos

M 41 Ensino Médio

Completo Casada Fotógrafa Branca

Entrevista 7 M 43 Ensino Médio

Completo Solteira

Cuidadora da Casa da Criança

Parda -

Entrevista 8

H 30 Ensino Funda-

mental Incompleto Casado Vigilante Branca

5 anos e 4 meses

M 35 Ensino Médio

Incompleto Casada Comerciaria Negra

Entrevista 9

H 35 Ensino Superior

Completo Casado Administrador Branca

7 anos

M 30 Ensino Superior

Completo Casada Administradora Branca

Entrevista 10

H 45 Ensino Médio

Completo Separado Operador de Petróleo Branca

3 anos

M 27 Ensino Médio

Completo Divorciada Dona de casa Branca

Entrevista 11 M 44 Ensino Superior

Incompleto Solteira

Cabeleireira e administra imóveis próprios

Branca -

Entrevista 12

H 34 Ensino Médio

Completo Casado Vendedor atacadista Parda

8 anos

M 34 Ensino Médio

Completo Casada Vendedora atacadista Branca

Entrevista 13

H 42 Ensino Médio

Completo Solteiro Analista Contábil Negra

12 anos

M 41 Ensino Médio

Completo Solteira Dona de casa Parda

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Continuação do Quadro 1 – Caracterização dos participantes.

Entrevistas Sexo Idade Escolaridade Estado Civil Profissão Cor da

pele

Tempo de união

(casais)

Entrevista 14

H 66 Ensino Médio

Completo Viúvo

Aposentado (Conferente de carga e descarga)

Parda

6 anos

M 33 Ensino Médio

Incompleto Solteira Dona de casa Parda

Entrevista 15 M 41 Ensino Superior

Completo Solteira Professora Branca -

Entrevista 16 M 44 Ensino Superior

Completo Solteira

Gerente de importação, exportação e logística

Parda -

Entrevista 17 H 41 Ensino Médio

Completo Solteiro

Assistente de Administração

Branca -

Entrevista 18

H 38 Ensino Superior

Completo Casado Técnico em Mecânica Branca

16 anos

M 37 Ensino Superior

Incompleto Casada

Professora e Proprietária de Creche

Branca

Entrevista 19

H 57 Ensino Médio

Completo Divorciado Aposentado (Metalúrgico) Parda

4 anos

M 41 Ensino Médio

Completo Divorciada Professora Parda

Entrevista 20

H 34 Ensino Superior

Completo Casado

Engenheiro Elétrico e Analista de Logística

Parda

15 anos

M 39 Ensino Médio

Incompleto Casada Dona de casa Branca

Entrevista 21

H 43 Ensino Superior

Completo Casado

Operador de Petróleo e Empresário

Negra

5 anos

M 30 Ensino Médio

Completo Casada Gerente de Vendas Branca

A idade dos participantes variou entre 24 e 66 anos, sendo que 22,86% deles

tinham até 30 anos, 28,57% entre 31 e 40 anos, 42,86% entre 41 e 50 anos, e

5,71% tinham 51 anos ou mais. Resulta uma idade média de 38,66 anos entre os

participantes, sendo 40,25 anos a idade média dos homens entrevistados e 37,31

anos a das mulheres. A idade das mulheres apresenta-se relativamente alta ao se

considerar a faixa etária na qual mais freqüentemente se tem filhos, principalmente o

primeiro filho, o que seria o caso da maioria das participantes (68% delas). Diante

disso podemos considerar, ao menos para esses participantes, que a iniciativa de

realização de uma adoção foi tomada geralmente em um estágio mais avançado da

vida, podendo vários fatores terem contribuído para isso, dentre eles: a espera na

tentativa de ter filhos biológicos; a necessidade de um grande período para refletir

sobre a idéia de realizar uma adoção; a busca por um filho em função de um novo

relacionamento, iniciado em estágio mais avançado da vida, quando a idade impede

uma gestação; no caso das pessoas solteiras, a espera pelo surgimento de um

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relacionamento que gere filhos; entre outros. Um outro aspecto que deve ser

considerado é o fato de que, na atualidade, os brasileiros estão cada vez mais

adiando a decisão de ter filhos e optando por tê-los mais tardiamente, muitas vezes

em função de carreira profissional ou de estabilidade financeira (Carelli, em texto no

site www.pibbca.hpg.ig.com.br/materiais_arquivos/com_filhos. htm).

Quanto à escolaridade dos participantes predomina a condição “Ensino Médio

Completo” (50% dos homens e 57,9% das mulheres). A segunda condição de

escolaridade mais freqüente é “Ensino Superior Completo” (37,5% dos homens e

26,3% das mulheres). O quadro se completa, para os homens, com dois casos de

“Ensino Fundamental Incompleto” (12,5%) e para as mulheres com três casos de

“Ensino Fundamental Completo” (15,8%).

As profissões ou atividades profissionais dos participantes são bastante

variadas. Entre as 19 mulheres, 6 não têm atividade profissional fora de casa,

caracterizando-se como “Dona de casa” (31,6%). Outras 4 (21,1%) atuam em

escolas ou creches. As demais 9 mulheres têm atividades profissionais variadas,

sendo as mais freqüentes ligadas ao comércio. Nenhuma mulher com “Ensino

Superior Completo” está na condição de “Dona de casa”. Não houve caso de mulher

aposentada.

Entre os homens, 6 (37,5%) atuam em prestação de serviços, em três casos

de nível superior. São 4 (25%) os que atuam em atividades ligadas ao comércio e

outros 4 (25%) atuam na indústria. Os 2 restantes (12,5%) exercem atividades

religiosas ( um é pastor da Igreja Metodista e o outro é missionário religioso). Dois

homens já estão na condição de aposentados.

Apesar de não terem sido solicitadas diretamente informações a respeito da

renda familiar dos participantes, os dados sobre escolaridade e profissão indicam

que a maioria deles apresenta nível econômico de classe média, e esses dados

estão de acordo com as informações obtidas por Weber (1999), que sugerem

correlações claras entre o nível cultural e econômico e certos aspectos da adoção.

Weber (1999), a partir de uma pesquisa sobre adoção, afirma que a maioria dos pais

adotivos pertencentes a classes sociais de melhor renda adota através dos Juizados

da Infância e da Juventude, enquanto a maioria dos pais adotivos com nível

econômico menos privilegiado realiza adoções “à brasileira”. Talvez isso esteja

relacionado ao fato de a “condição econômica” ser um dos itens analisados durante

o processo seletivo de candidatos para adoção nos Juizados. Weber (1999) afirma

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que parece haver uma contradição entre o que os Juizados e as pessoas que

passaram pelo processo dizem. Segundo a autora, os juizados afirmam que a

seleção dos candidatos não é feita pelo nível sócio-econômico, mas os candidatos à

adoção dizem que sim, e os dados da pesquisa realizada por Weber (1999) mostram

correlações entre esses aspectos.

Dos 14 casais entrevistados, 9 são casados legalmente e 5 não. O tempo

mínimo de relacionamento foi de 3 anos, sendo que 7 têm entre 3 e 6 anos de

relacionamento, 3 têm entre 7 e 12 anos, e 4 têm entre 13 e 18 anos. Das 7 pessoas

entrevistadas individualmente, 6 são solteiras e 1 é casada, mas separada de fato

há 8 meses.

Em relação à cor da pele, a maioria dos participantes tem a pele branca:

57,14% são brancos, 31,43% são pardos e 11,43% são negros (conforme

classificação realizada pela pesquisadora no instrumento em anexo). Isso está de

acordo com os dados obtidos por Weber (1999), segundo os quais a maioria dos

adotantes no Brasil é composta por pessoas de pele branca, e apenas uma minoria

é negra. Dos 14 casais entrevistados, 8 são inter-raciais e 6 não. Dos casais inter-

raciais, 4 são constituídos de branco com pardo, 3 de branco com negro e 1 de

pardo com negro. Dos casais em que ambos os cônjuges têm a mesma cor de pele,

4 são brancos e 2 são pardos. Foi possível perceber um alto grau de miscigenação

entre os casais, o que, como será visto, está relacionado às preferências quanto à

cor da pele do filho adotivo.

As Tabelas 1a, 1b e 1c apresentam alguns dos principais resultados obtidos

com a pesquisa.

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Tabela 1a – Preferências quanto ao sexo e à cor de pele da criança a ser adotada e outras caracterizações.

Entrevistas Sexo

Tem cadastro apenas em Vila Velha

Interesse inicial em

adotar (só para casais)

Tem casos

de adoção

na família

Não tem preferênci-a quanto ao sexo do filho adotivo

Sexo preferido Não tem

preferênci-a quanto à cor do filho

adotivo

Cor preferida

Menina Menino Branca Parda Negra

Entrevista 1 H

X X X

X X X M X X

Entrevista 2 H

X *

1

X X M *

1 X

Entrevista 3 H X X X X X

Entrevista 4 M X X X X X

Entrevista 5 H

X

X X M X

Entrevista 6 H

X

X X M X X

Entrevista 7 M X X *2

X *2

*2

X *2

Entrevista 8 H

X

X X

X M X X

Entrevista 9 H

X

X X M X X

Entrevista 10 H

X X

X X M X X

Entrevista 11 M X

X

X

Entrevista 12 H

X X X

X X M X

Entrevista 13 H

X X

*3 X *

3 *

3 X *

3

M X

Entrevista 14 H

X

X X X M X

Entrevista 15 M X X X X

Entrevista 16 M X X X X X

Entrevista 17 H X X X X X

Entrevista 18 H

X X

X X M

Entrevista 19 H

X X

X X M X

Entrevista 20 H

X

X X M X X

Entrevista 21 H

X X X

X X M

*1 O interesse partiu do filho (11 anos). Primeiro teve o acordo do pai, e depois da mãe.

*2 Interesse em uma criança específica (menina, branca, 1,2 anos).

*3 Interesse em uma criança específica (menina, parda, 4 anos).

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Tabela 1b – Preferências quanto à idade da criança a ser adotada e outras caracterizações.

Entrevistas Sexo

Não tem preferência

quanto à idade do

filho adotivo

Idade preferida

Já mudou de opinião quanto às preferências das

características do filho adotivo quanto a

Tem filhos bioló-gicos Recém

Nascido Até 1 ano *

4

Entre 1 e 3 anos

*4

Acima de 3

anos *4

Sexo Idade Cor

Entrevista 1 H

X X X

X M

Entrevista 2 H

X X

X X X M

Entrevista 3 H X X

Entrevista 4 M X

X

Entrevista 5 H

X X X M

Entrevista 6 H

X X X M

Entrevista 7 M *2

X *2

Entrevista 8 H

X X X X X M

Entrevista 9 H

X M

Entrevista 10 H

X X

M X

Entrevista 11 M

X X X

Entrevista 12 H

X X X M

Entrevista 13 H

*3 X *

3

M

Entrevista 14 H

X X X X

M

Entrevista 15 M X X X X X X

Entrevista 16 M X X X

X

Entrevista 17 H X X X

Entrevista 18 H

X X M

Entrevista 19 H

X X X

M X

Entrevista 20 H

X X X X M

Entrevista 21 H

X X X M

*2 Interesse em uma criança específica (menina, branca, 1,2 anos).

*3 Interesse em uma criança específica (menina, parda, 4 anos).

*4 Engloba as preferências no interior dessa faixa etária, mas não necessariamente com esses limites.

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Tabela 1c – Caracterização complementar relacionada à adoção e à possibilidade de ter filho biológico.

Entrevistas Sexo

Não pode ter filhos

biológicos ou tem di-ficuldades para tê-los

Pretende ou não

descarta a

possibili-dade de ter filhos

biológicos

Já tem filhos

adotivos (esta

não é a primeira adoção)

Pretende ou não

descarta a possibili-

dade de ter mais filhos adotivos

Acha que com a che-gada do fi-lho adotivo a vida vai

mudar

Terá ajuda de alguém após a adoção

Pretende contar para o

filho que ele é

adotivo

Percebe restrições de pessoas com as quais se relaciona quanto ao

seu interesse em adotar

Entrevista 1 H

X X X X M

Entrevista 2 H

X X X M X

Entrevista 3 H X X X X X X

Entrevista 4 M X X X X

Entrevista 5 H

X X X X M X

Entrevista 6 H

X X X X M X

Entrevista 7 M X X X X X

Entrevista 8 H

X X X X X X M X

Entrevista 9 H

X X X X X M X

Entrevista 10 H

X X X X X X M

Entrevista 11 M X X X X X

Entrevista 12 H

X X X X X X M X

Entrevista 13 H

X

X X M X

Entrevista 14 H

X X X X X M X

Entrevista 15 M X X X X X

Entrevista 16 M X X X X X

Entrevista 17 H X X X X X X

Entrevista 18 H

X X X X X M X

Entrevista 19 H

X

X X X M X

Entrevista 20 H

X X X X X X M X

Entrevista 21 H

X X X M

Em 16 entrevistas os participantes informaram que tinham feito cadastro

apenas no Juizado da Infância e da Juventude de Vila Velha, e em 5 entrevistas que

tinham feito cadastro também em outras localidades (2 em Vitória, 1 na Serra, 1 em

Castelo e 1 em Mantena – MG). O tempo de espera desde que foi feito o cadastro

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no Juizado de Vila Velha variou entre 1 mês e meio e três anos, estando entre 1 mês

e meio e 1 ano em 17 das entrevistas, e entre 1 e 3 anos em 4.

Na época de realização das entrevistas, 2 pessoas solteiras (entrevistas 3 e

17) e 4 casais (entrevistas 9, 10, 13 e 20) já haviam conseguido a adoção de uma

criança. Mas como essas adoções haviam sido realizadas há pouco tempo (no

máximo há dois meses), esses participantes continuaram mostrando-se relevantes

para a pesquisa. Em 5 casos a adoção foi de meninos recém nascidos, e em 1 caso

a adoção foi de uma menina de 4 anos.

Quadro 2 – Informações sobre o processo de adoção.

Entrevistas Município onde tem

cadastro Há quanto tempo tem o cadastro

Já adotou Adotou há

quanto tempo Adotou por meio de qual Juizado

Entrevista 1 Vila Velha 2 anos Não

Entrevista 2 Vila Velha e Vitória 4 meses e 1 mês Não

Entrevista 3 Vila Velha 2 anos Sim 1 mês Vila Velha

Entrevista 4 Vila Velha 2 meses Não

Entrevista 5 Vila Velha e Vitória 5 meses e 1 mês Não *1

Entrevista 6 Vila Velha 6 meses Não

Entrevista 7 Vila Velha 5 meses Não

Entrevista 8 Vila Velha 9 meses Não

Entrevista 9 Vila Velha e Serra 7 meses e 2

semanas Sim 2 semanas Serra

Entrevista 10 Vila Velha 3 anos Sim 2 meses Vila Velha

Entrevista 11 Vila Velha e Mantena –

MG 8 meses e 1 mês Não

Entrevista 12 Vila Velha 1,5 mês Não

Entrevista 13 Vila Velha 2 meses Sim 2 semanas Vila Velha

Entrevista 14 Vila Velha 4 meses Não

Entrevista 15 Vila Velha 1 ano Não

Entrevista 16 Vila Velha 4 meses Não

Entrevista 17 Vila Velha 1,6 ano Sim 2 meses De uma cidade no interior da Bahia *

2

Entrevista 18 Vila Velha 3 meses Não

Entrevista 19 Vila Velha 10 meses Não

Entrevista 20 Vila Velha e Castelo 9 meses e 2 meses Sim 1 mês Vila Velha

Entrevista 21 Vila Velha 1 ano Não

*1 Já escolheram a criança e o processo já está em andamento no Juizado de Vitória

*2 O entrevistado não relatou o nome da cidade.

Dos entrevistados que já haviam adotado quando foram feitas as entrevistas,

4 adotaram pelo Juizado de Vila Velha, sendo que o tempo de espera para

conseguirem a adoção foi, para os vários casos, de 2 anos (entrevista 3), 3 anos

(entrevista 10), 2 meses (entrevista 13) e 9 meses (entrevista 20). Assim, nesses

casos, o tempo de espera das pessoas que adotaram pelo Juizado de Vila Velha

variou de 2 meses a 3 anos, o que indica que o tempo de espera para conseguir

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uma adoção por via de meios legais pode ser longo, apesar de esse tempo variar em

função de alguns aspectos, dentre eles a disponibilidade de participação do

candidato no processo avaliativo e as preferências em relação às características da

criança (cor, idade, e sexo). É interessante ressaltar que no caso da entrevista 13 o

tempo de espera foi curto (2 meses), e isso se deu por alguns fatores. Quando o

casal se interessou pela criança e começou a tentar sua liberação para a adoção,

criou um vínculo afetivo com a menina, o que lhe deu prioridade em sua adoção.

Além disso, o fato de o interesse ter sido em uma criança que não corresponde ao

interesse da maioria dos postulantes à adoção (uma menina parda de 4 anos)

possibilitou que o casal não enfrentasse a dificuldade de ter que competir com

outros interessados.

É importante mencionar que o tempo de espera relatado pelos participantes

desde a realização do cadastro refere-se ao momento em que foi feita a entrevista.

Deve-se lembrar que as primeiras 10 entrevistas foram realizadas quase um ano

antes das outras 11 e, portanto, não é possível chegar a uma conclusão do tipo “o

casal da entrevista 20 passou na frente na fila do cadastro do casal da entrevista 1,

pois na entrevista 20 o tempo de espera foi de 9 meses e eles já adotaram, e na

entrevista 1 é de dois anos e eles não adotaram ainda”. Além disso, para serem

realizadas comparações desse tipo deve-se levar em conta outros fatores, dentre

eles as características da criança que se deseja adotar e a possibilidade de não

aceitação de uma adoção no momento em que foi chamado.

Houve dois casos em que a adoção já havia ocorrido mas não por meio do

Juizado de Vila Velha. Em um deles (entrevista 9) o casal, cujo tempo de espera no

Juizado de Vila Velha foi de 7 meses, adotou por meio do Juizado da Infância e da

Juventude do município da Serra, onde seu tempo de espera foi praticamente nulo.

O casal relatou que foi informado por um amigo que havia uma criança com as

características que eles queriam sob responsabilidade do Juizado da Serra em um

abrigo, e imediatamente eles foram olhar a criança e se cadastrar naquele Juizado

para tentarem a adoção (visto que o cadastro para adoção de uma criança

específica deve ser feito no município do Juizado responsável pela criança). Fizeram

o cadastro no Juizado da Serra e entraram numa fila de cadastros. Porém, como

nenhuma das pessoas cadastradas anteriormente teve interesse em adotar a

criança, eles logo foram chamados e conseguiram adotá-la. No outro caso

(entrevista 17), o homem interessado em adotar, que já havia se cadastrado em Vila

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Velha há cerca de 1,4 anos, recebeu um telefonema de uma amiga que mora no

interior da Bahia, dizendo que havia um menino recém nascido cuja mãe não

poderia criá-lo, e perguntando se ele não tinha interesse em adotá-lo. Apesar de sua

preferência ser por menina, o entrevistado viajou até lá para conhecer o menino e

gostou muito dele, de modo que foi ao Fórum da referida cidade para regularizar a

adoção da criança e depois a trouxe consigo.

Esses dados sugerem que as pessoas que se cadastram num Juizado e têm

um papel participativo em busca do filho adotivo ficam menos tempo na fila de

espera pela adoção do que aqueles que fazem o cadastro e ficam aguardando pelo

Juizado. Um outro dado ainda corrobora essa informação. Um dos casais

entrevistados (entrevista 5) relatou que, após ter feito o cadastro para adoção no

Juizado de Vila Velha, foi procurar o Juizado do município de Vitória para fazer o

cadastro lá também, e logo eles souberam de uma criança sob responsabilidade do

Juizado de Vitória na qual nenhum dos cadastrados naquele município tinha

interesse. Foram visitar a criança no abrigo, se interessaram por ela, e já estão

sendo providenciados os trâmites necessários para a realização da adoção. Apesar

de os técnicos dos Juizados, em geral, se posicionarem contrariamente a uma

participação ativa dos candidatos à adoção (visitas a abrigos, realização de

cadastros em vários municípios), os dados indicam que os candidatos mais ativos

normalmente aguardam menos tempo para conseguirem a adoção.

Dentre aquelas pessoas que não haviam realizado a adoção no momento da

entrevista, o tempo médio de espera até então era de 7,3 meses, tempo este inferior

àquele de 3 dos 4 interessados que conseguiram adotar pelo Juizado de Vila Velha.

Em princípio, esses dados sugerem que a maioria dos participantes que ainda não

adotou provavelmente vai esperar mais algum tempo para conseguir adotar pelo

Juizado de Vila Velha, mas não se deve desconsiderar que o tempo de espera pela

adoção depende de vários aspectos, e por isso não pode ser previsto com precisão.

As motivações relatadas para adoção e suas respectivas freqüências podem

ser vistas na tabela 2. Foram consideradas todas as respostas dadas pelos

entrevistados.

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Tabela 2 – Motivações para adoção.

Motivações % das

respostas

Não poder ter filhos biológicos ou ter dificuldade para tê-los

24%

Ajudar uma criança 16%

Fazer sua parte perante a sociedade 8%

Por ser solteiro (a) 6%

Era um projeto de vida 6%

Ter estabilidade profissional e financeira 4%

Preencher um vazio 4%

Ser apaixonado por criança 4%

Vontade de ser mãe/pai 4%

Querer constituir/aumentar família 4%

Afinidade com uma criança específica 4%

Algo interior levou a isso 2%

Atender ao pedido do primeiro filho 2%

Para escolher o sexo do filho 2%

Teve um sonho sobre adoção 2%

Simplesmente por querer adotar 2%

Querer uma pessoa para cuidar 2%

Ter carinho e amor para dar 2%

Achar bonito o gesto da adoção 2%

Apesar de os dados terem sido obtidos com um conjunto de informantes

selecionados deliberadamente em função da diversidade que exemplificavam, a

motivação mais relatada foi “não poder ter filhos biológicos ou ter dificuldade para tê-

los” (24%), o que está de acordo com outras pesquisas (Reppold e Hutz, 2003;

Cassin e Jacquemin, 2001; Weber, 1999 e 2003) que afirmam que a impossibilidade

de gerar filhos biológicos ainda se constitui o principal motivo para adoção no Brasil.

Não houve relato de casos de infertilidade masculina. Consideradas as 19 mulheres

entrevistadas e levando-se em conta, ao mesmo tempo, as variáveis “ter filho

biológico” e “não poder ter filho biológico”, chega-se ao quadro que se segue (o

número entre parênteses identifica entrevistadas com vida conjugal e o número entre

colchetes e em negrito identifica entrevistadas solteiras ou separadas):

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Quadro 3 – Existência de filhos biológicos x possibilidade de ter filhos biológicos em relação às

mulheres entrevistadas.

Tem Filho Não tem filho

Pode ter filho (1) (10) (21)

3 casos

[7] [11] [15]

3 casos

Não pode ter

filho

(2) (18) (19)

3 casos

(5) (6) (8) (9)

(12) (13) (14) (20)

[4] [16]

10 casos

Não há caso algum de mulher com vida conjugal interessada em adotar e que

possa ter filho, que não tenha filho biológico. Das 14 mulheres com vida conjugal, 11

não podem ou têm dificuldades de ter filhos biológicos (8 delas não têm filhos e

outras 3 têm filhos, embora não possam ter outros). As 5 entrevistadas sem vida

conjugal não têm filhos biológicos, e 3 delas afirmam que poderiam tê-los. Deve ser

registrado, entretanto, que todas 3 têm idades superiores aos 40 anos, o que

implicaria uma primeira gestação envolvendo riscos.

É possível dizer que, no grupo de entrevistadas que participaram do estudo, a

impossibilidade de ter filho biológico foi a principal motivação para a adoção, ainda

que precise ser considerada em articulação com a condição conjugal e com a idade.

As outras motivações mais destacadas são “ajudar uma criança” (16%) e “fazer

sua parte perante a sociedade” (8%). Reppold e Hutz (2003) afirmam que a adoção,

no imaginário social, ainda é muito associada à caridade e à filantropia. Uma

pesquisa realizada por Weber (1999) ressalta que os valores religiosos, como

caridade, pena e amor ao próximo, são apontados como um forte motivador para

adoção, e um estudo realizado por Gatti, Campos e Vargas (1993, citado por

Reppold e Hutz, 2003) constata que a relevância social, associada ao nível de

reflexão social, é um dos principais motivos para a adoção.

Segundo Cassin e Jacquemin (2001) a caridade é uma motivação

considerada ilegítima ou inadequada para a adoção, de forma similar a outras como

preencher um vazio, satisfazer outra pessoa, salvar o casamento, promessa, ter

companhia, e substituir um filho morto ou uma gravidez interrompida. Reppold e

Hutz (2003) afirmam que essas motivações, em decorrência de sua fragilidade,

podem implicar potenciais dificuldades de adaptação para a criança adotiva.

“Preencher um vazio”, motivação considerada inadequada segundo a literatura, foi

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citada pelos participantes em 4% das respostas, e outras motivações citadas que

poderiam ser interpretadas como inadequadas foram “algo interior levou a isso”

(2%), e “teve um sonho sobre adoção” (2%), mas para isso essas motivações

precisariam ser melhor investigadas. É interessante ressaltar que, a partir de uma

pesquisa realizada por Weber (2003), não ficaram evidenciadas correlações

significativas entre motivações para o exercício da parentalidade adotiva e o sucesso

da adoção, pois apesar de muitas das adoções pesquisadas terem se fundado em

motivações consideradas ilegítimas, elas foram bem sucedidas. Essa afirmação

pode ser exemplificada por um relato de um casal entrevistado (entrevista 20), que já

possui uma filha adotiva de 7 anos, e estão realizando a segunda adoção. De

acordo com o casal, quando foi realizada a adoção da primeira filha, o que motivou a

realização da adoção naquele momento foi a perda de um bebê durante a gestação,

mas apesar de a motivação ser considerada inadequada segundo a literatura, a

adoção é considerada pelo casal como muito bem sucedida.

“ Foi assim, né, como eu tinha perdido o neném, a assistente social

ficou sabendo de uma criança dentro do próprio hospital, aí ela

trouxe pra mim... mas aí, é como eu te falei, né, de início eu fiquei

com medo, por eu ter perdido, de achar que ela ia ‘tapar

buraco’...Não, é, eu achava que eu ia sentir assim..., aí quando ela

chegou, sei lá, eu não consegui ver que é só do coração, era como

se fosse minha mesmo” (mulher, casada, 39 anos, que já tem uma

filha adotiva).

Outras motivações relatadas, como “era um projeto de vida” (6%),

“simplesmente por querer adotar” (2%) e “achar bonito o gesto da adoção” (2%),

sugerem que tem havido uma certa mudança na forma como a adoção vem sendo

encarada pela sociedade, sendo não apenas uma segunda opção para quem não

pode ter filhos. Isso está de acordo com uma reportagem da revista Época de

23/08/04, de autoria de Mendonça e Fernandes (2004), na qual, ao relatarem o caso

de um casal que já tinha filhos biológicos e resolveu adotar pois esse era um sonho

antigo, afirmam que a classe média já não vê mais a adoção apenas como um plano

B, pois para muitos isso se apresenta como um projeto de vida.

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“Ter estabilidade profissional e financeira” foi uma motivação apontada em 4%

das respostas, o que está de acordo com a literatura, que sugere que os brasileiros

estão cada vez mais optando por ter uma estabilidade maior na carreira profissional

e financeiramente antes de pensarem em ter filhos, sejam eles biológicos ou

adotivos (Carelli, em texto no site www.pibbca.hpg.ig.com.br/materiais_arquivos/

com_filhos.htm). Foi apontado ainda como motivação “para escolher o sexo do filho”

(2%), que é um aspecto muito interessante pois é uma possibilidade que existe na

adoção e que não se coloca no caso da filiação biológica.

De acordo com dados de Weber (1999), as pessoas, em sua maioria, adotam

exatamente pelas mesmas razões que levam pessoas a terem filhos biológicos:

querer uma criança, querer dar e receber amor, querer ter uma família. Muitas das

motivações relatadas corroboram essa afirmação, dentre elas “ser apaixonado por

criança” (4%), “vontade de ser mãe/pai” (4%), “querer constituir/aumentar família”

(4%), “querer uma pessoa para cuidar” (2%), e “ter carinho e amor para dar” (2%).

A grande diversidade de motivações relatadas está relacionada à variedade

de casos, e algumas motivações são específicas de determinados casos, como por

exemplo “por ser solteiro (a)” (6%), no caso de pessoas solteiras que desejam ter

filhos mas não têm companheiro (a); “atender ao pedido do primeiro filho”, no caso

de um casal que já tem um filho biológico e este sente falta de um (a) irmão (ã); ou

ainda “afinidade com uma criança específica”, no caso de pessoas que tiveram

afinidade com crianças específicas de abrigos e resolveram tentar adotá-las.

É interessante ressaltar que em nenhum caso os entrevistados apontaram

como motivação para adoção a necessidade de assegurar a continuidade do

casamento. A idéia de que ter filhos pode assegurar a permanência de um

relacionamento conjugal em crise é socialmente comum, e mais especificamente no

caso da adoção, a infertilidade de um dos cônjuges poderia ser um motivo para crise

marital, e a adoção ser vista como uma possibilidade de solução. Mas essa

motivação não foi ressaltada por qualquer entrevistado, e um dos possíveis motivos

para isso é o fato de que, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a

estabilidade da união entre o casal é um fator fundamental para que ele consiga a

habilitação para adoção, e declarar a existência de uma crise conjugal e a adoção

como uma possibilidade de solução poderia prejudicar o cadastramento do casal

interessado em adotar.

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Aos casais foi perguntado de quem foi o interesse inicial pela adoção, e 6 dos

14 casais responderam que foi de ambos os cônjuges, 5 responderam que foi da

mulher, e apenas 3 que foi do homem. Nos casos em que o interesse pela adoção

partiu de ambos os cônjuges, 4 casais afirmaram que não podiam ter filhos

biológicos ou tinham dificuldade para tê-los, e apesar de todos esses casais

relatarem um interesse antigo pela adoção, foi a infertilidade ou esterilidade da

mulher que despertou o interesse conjunto pela adoção e a decisão de procurar o

Juizado. Nos 2 casos em que o interesse pela adoção partiu de ambos os cônjuges

e nos quais não havia qualquer problema de fertilidade com o casal, a adoção foi

citada pelos entrevistados como um projeto de vida, tendo havido um interesse pela

adoção desde o início do relacionamento do casal.

Em 100% dos casos em que o interesse pela adoção partiu da mulher, os

casais entrevistados afirmaram haver problemas de infertilidade ou esterilidade com

o casal, sempre por algum distúrbio com a mulher. Isso parece indicar que, em

casos de esterilidade do casal, quando o interesse pela adoção não é algo comum

entre os pares, é mais fácil para a mulher aceitar a adoção do que para o homem, ou

nesses casos, é mais fácil para a pessoa estéril lidar com a possibilidade de adoção.

A possível dificuldade de alguns homens aceitarem a adoção pode estar relacionada

à questão da masculinidade, e do tabu acerca de um homem criar um filho que não

leva a sua herança genética.

“ A princípio só ela (queria adotar) porque eu era, eu não sei se é

essa a palavra, eu era meio egoísta, queria que fosse meu, olhava

assim, outra criança como intrusa né... mas depois creio que Deus

foi trabalhando no meu coração, que eu peguei e comecei a olhar as

criancinhas na rua, comecei é, a pegar amor aos filhos dos outros

com mais facilidade” (homem, 30 anos, casado com uma mulher que

tem dificuldades para engravidar).

É interessante ressaltar que nos 3 casos em que o interesse pela adoção

partiu do homem, todos os casais já tinham tido filhos biológicos, e isso talvez tenha

facilitado um interesse por parte do cônjuge masculino pela adoção. Nos 2 casos em

que o interesse partiu do homem e que foi relatada uma impossibilidade de ter filhos

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por parte da mulher, essa impossibilidade de ter filhos se deu devido à laqueadura

de trompas, ou seja, esses casos se diferenciam da esterilidade feminina que

sempre impossibilitou o casal de ter filhos biológicos. Em um desses casos

(entrevista 2) foi o filho do casal que primeiramente demonstrou interesse na adoção

de uma criança pelos pais, devido ao fato de se sentir sozinho e querer um (a) irmão

(ã) como companhia, e primeiramente ele obteve a concordância do pai, e depois da

mãe. No único caso em que o interesse inicial pela adoção foi do homem e que não

foi relatado qualquer problema de infertilidade, o cônjuge masculino relatou ter tido

vontade de adotar para ajudar uma criança que não tem família, e ao falar disso

para a esposa ela concordou.

O fato de a pessoa ter ou não casos de adoção na família, ou conhecer casos

por meio de amigos, pode ser um fator importante na hora decidir sobre a adoção.

Acredita-se que o sucesso ou não em casos de adoção conhecidos pode afetar

positiva ou negativamente a decisão de adotar. No caso dos entrevistados, 48,57%

afirmaram que têm casos de adoção na família, sendo que desse total 58,82% são

mulheres e 41,18% são homens. Os casos citados de adoção na família (total de

21), em sua maioria, foram casos próximos, sendo primos (1º ou 2º graus) em 38,1%

dos casos, irmãos em 33,33%, tios em 9,52%, e sobrinhos em 4,76% dos casos.

Houve 3 entrevistados (1 casal e 1 homem ) que relataram já possuir filhos adotivos,

e 1 caso em que a própria pessoa entrevistada era filha adotiva.

De todos os casos de adoção na família relatados pelos participantes, a

grande maioria (71,43%) foi considerada positiva, sendo que o principal motivo

destacado para o sucesso da adoção foi a ausência de segredos e a existência de

uma relação clara e aberta, mencionados em 86,66% dos casos avaliados como

positivos. Dentre esses casos de adoção considerados bem sucedidos merece

destaque o caso em que a própria pessoa entrevistada foi adotada (entrevista 11):

“ Eu própria sou adotada... Eu fui adotada por minha tia, mas isso

não tira o fato de que eu fui criada com um casal que não era os

meus pais biológicos. Fui criada assim, sabendo, mas a minha

criação foi totalmente diferente dos meus irmãos. Fui criada como

filha única, adotada mesmo, sabendo que era adotada, então é um

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relacionamento muito bom. Eu considerei que foi uma coisa muito

válida na minha vida, tanto pra mim quanto pra eles. Eu acho que é

uma experiência válida, se bem conduzida. Eu penso que é.”

(mulher, solteira, 44 anos, que relatou ser filha adotiva).

Apenas 28,57% dos casos de adoção na família relatados nas entrevistas

foram considerados negativos por quem os relatou. É interessante ressaltar que

todos os participantes que relataram casos negativos apontaram os motivos pelos

quais, na sua opinião, a adoção não se deu de forma positiva, de modo que o que os

participantes percebem como “erros” nas adoções negativas citadas é tomado por

eles como exemplos daquilo que não deve ser feito numa adoção. Dessa forma, os

casos de adoção considerados negativos não influenciaram negativamente a

decisão de adotar dos participantes, mas ao contrário, serviram como exemplos de

erros que não devem ser cometidos.

“Acho também que a gente enfrenta um pouco a questão de não

saber lidar com os casos que aconteceram porque na minha família

os casos de adoção que houve não foram positivos, da família

conseguir chegar num consenso pacífico, mas eu quando avalio isso

vejo que tem a ver muito mais com a questão de que, ah, não contou

que era adotiva ...” (mulher, casada, 30 anos, que relatou um caso

negativo de adoção na família).

É interessante ressaltar que em um dos casos em que os participantes

relataram já ter filhos adotivos, o entrevistado (entrevista 19), que tem dois filhos

adotivos havidos do primeiro casamento, avaliou essa adoções como não tendo sido

bem sucedidas, e ainda sim resolveu adotar uma outra criança com a atual

companheira. Nesse caso o participante apontou vários aspectos que, segundo ele,

contribuíram para que a adoção de seus filhos não fosse considerada satisfatória, e

também ressaltou esses aspectos como algo que não deve ser repetido na próxima

experiência com adoção. Desse modo, percebe-se que mesmo as experiências

muito próximas de adoção consideradas negativas não influenciaram negativamente

a decisão de adotar dos participantes.

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“...inclusive tenho dois filhos adotivos, é..., na condição de à

brasileira, e..., a experiência pode não ter sido muito boa, em relação

às situações, porque, à brasileira não tem condição de fazer exames

de saúde... Nós tivemos, assim, uma situação referente a

problemas, neurologista, um monte de coisas em relação à pessoa,

e tal... O Marcos11 aconteceu de ser gêmeos, uma pessoa sugeriu

que nós ficássemos com as crianças... A princípio não se sabia que

eram gêmeos, pois não tinha feito exame nem nada... essas

crianças chegaram até a minha casa, só que com dois meses, eles

nasceram sem a flora intestinal, uma não teve condições e

realmente veio a óbito, com dois meses, pra três meses... Aí o

médico perguntou se podia examinar o que faleceu, e eu autorizei, e

aí foi que conseguiu salvar o outro. Aí aconteceu isso primeiro, e daí

pra frente sempre tinha alguma coisinha com ele, né, de saúde.

Quando foi mais na frente, na parte escolar, aí começou a ter

dificuldade com relação à visão, à coordenação motora... Até que ele

começou a ir num neurologista, aí depois a parte psiquiátrica... Hoje

ele está com 25 anos... Quando eu separei ele morou comigo, mas

eu consegui um emprego pra ele, e aí, a mãe vendo que ele estava

trabalhando, manifestou a vontade de ficar com ele, e então ele foi

morar com a mãe... E a outra é Juliana, né, que é uma menina, até

que é uma menina prendada, e tudo mais, hoje está trabalhando e

estudando, mas é uma pessoa que, como se diz, tudo tá bom, aceita

qualquer situação... No meu modo de pensar, a gente não pode ficar

só pensando no bom e no melhor, mas eu realmente tive essas

dificuldades todas, eu só, o que eu tenho interrogação foi por ter

adotado à brasileira, porque se fosse uma situação mais detalhada,

eu poderia ter evitado o problemas de saúde, a situação poderia ter

tomado um outro rumo...Eu até que ajudei a ele desenvolver essa

situação, porque eu, tentando ajudar, eu me apeguei de uma certa

forma que eu piorava talvez mais a situação... Ele estava

superprotegido. E hoje, depois que eu separei, é que eu tô vendo as

11

Todos os nomes mencionados durante o texto são fictícios, para assegurar o anonimato dos participantes.

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coisas mais com a razão... Mas a relação filho/pai, eles são falhos,

mesmo com tudo que eu fiz por eles, hoje eles não dão confiança,

só quando precisam, e tal... A relação pai/filho não é positiva”

(homem, divorciado, 57 anos, que já tem dois filhos adotivos).

Um outro dado interessante é que em 28,57% dos casos de adoção na família

citados pelos participantes não foi mencionada adoção propriamente dita, mas sim o

“pegar para criar”, o que segundo os entrevistados era uma prática muito comum.

Quando a família biológica não tinha condições de cuidar do filho, entregava-o para

outra família criar, não havendo alterações no registro de nascimento da criança. Os

casos relatados pelos participantes confirmam a distinção feita por Gagno e Weber

(2002) entre filhos de criação e filhos adotivos, afirmando que na adoção a relação

de filiação é substitutiva à relação dada biologicamente, enquanto nas famílias de

criação a relação de filiação é geralmente aditiva, não havendo preocupação com a

evitação de relações com a família de origem, e se mostrando uma alternativa de

organização de parentesco que não é vista pelos pais biológicos como abandono, e

nem vivida como tal pelas próprias crianças (questão discutida com exemplos por

Fonseca, 2002a, 2002b).

“Não tenho propriamente dito caso de adoção em si não, eu já tenho

45 anos... Naquela época os meus avós, como os avós de todo

mundo na minha idade apanhavam as crianças, não era adoção,

não existia, as crianças vinham do interior, carente de recursos, e as

pessoas apanhavam como filha mas ajudava no serviço doméstico,

não apanhava pra trabalhar não, isso é verdade, apanhava pra criar,

mas ajudava, porque naquela época não existia a figura da

empregada doméstica... então meus avós, eles tinham esse

costume, assim como Vila Velha inteira... e a Maria foi pega também

com 6 aninhos, e ela foi tratada como minha irmã, então naquela

época se usava dizer assim ‘é minha irmã de criação’. Hoje não se

usa, você não escuta falar ‘minha irmã de criação’, olha que há anos

eu não ouço isso... mas não chocava não, não era para magoar a

pessoa não, era pra distinguir aquela das demais, ela era uma irmã

do coração...” (mulher, separada, 45 anos).

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No caso em que a própria entrevistada é filha adotiva, apesar de ela própria

se referir ao seu caso como sendo uma adoção, é possível perceber que sua

situação se aproxima mais da dos filhos de criação, devido à sua caracterização.

Porém, não foi a falta de condições financeiras que levou seus pais biológicos

entregarem-na para outra família (a da tia), e sim o desejo de sua mãe biológica de

ajudar uma irmã que não podia ter filhos.

“Não, ela (mãe biológica) tinha condições, só que ela, como se diz, a

minha tia não tinha filhos, não tinha, não teve condições... Antes de

mim ela adotou uma criança que morreu. Acho que a mamãe ficou com

pena né, dessa situação e, é..., prometeu uma filha pra ela, quando ela

tivesse, quando ela casasse, isso aí foi solteira ainda. Aí quando ela se

casou ela teve a primeira filha, não deu..., é uma história longa, aí ela

teve quatro filhos homens, e a minha mãe queria igual a mim, queria

uma menina, aí quando eu nasci, já..., já estava subentendido que eu

seria adotada. Nunca foi uma necessidade financeira, foi mais uma

necessidade afetiva que a minha mãe teve de ajudar a irmã... Meu pai

também foi, meu pai biológico foi uma pessoa muito, digamos assim,

honrou, né, o compromisso da minha mãe, porque ele, ele era muito

apegado aos filhos, e cedeu uma filha por necessidade mesmo, assim,

afetiva, de ver o casal de cunhados precisando de adotar, e lá no

interior não é fácil, naquela época não era fácil conseguir uma criança.

Aí me, me deram (risos)... Até hoje mantenho relação. Sei que eles são

meus irmãos, fomos criados assim, muito próximos, eu sabendo, eu

fazendo as minhas escolhas, porque eu tinha é... eu tive oportunidade

de escolher, graças a Deus... De ficar com uma família ou outra, eu

poderia... foi me dada essa possibilidade de escolha, com 9 anos, os

meus pais biológicos mudaram dessa cidade que a gente morava,

então a família reuniu e perguntou com quem eu queria ficar realmente,

que até então tudo o que tinha sido feito poderia ser desfeito. E eu

escolhi ficar com meus pais adotivos, porque eu acho que o laço... de

você criar um ser humano, ele é muito forte, ele não se quebra com

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facilidade, aí eu escolhi ficar com eles. ” (mulher, 44 anos, que é filha

adotiva).

Em relação às preferências quanto às características do filho adotivo, foram

abordadas mais especificamente sexo, idade e cor de pele. É importante ressaltar

que em duas entrevistas (7 e 13) os participantes afirmaram ter interesse na adoção

de crianças específicas, e portanto as características apontadas por eles como

preferidas foram as características daquelas crianças que eles desejavam adotar

(entrevista 7: menina, 1,2 anos, branca; entrevista 13: menina, parda, 4 anos). Mas

esses dados não inviabilizam que as respostas desses participantes entrem na

análise. O sexo preferido pelos participantes e os motivos dessa preferência estão

especificadas no quadro 4 a seguir, de modo que as entrevistas omitidas no quadro

foram aquelas em que não houve preferência pelo sexo da criança.

Quadro 4 – Sexo preferido pelos participantes e os motivos dessa preferência.

Entrevistas Sexo Sexo preferido Motivos *

Entrevista 2 H

Menina Por vontade do filho, pois ele não quer dividir os brinquedos com

uma criança do mesmo sexo. Na família do marido não tem meninas. M

Entrevista 3 H Menino Acha que por ser um homem solteiro, será mais fácil criar um

menino.

Entrevista 4 M Menina Depois de uma experiência numa creche, percebeu que tem mais

afinidade com o comportamento de meninas.

Entrevista 6 H

Menina Sempre sonharam em ter uma menina. M

Entrevista 7 M Menina Afinidade com uma criança específica.

Entrevista 10 H

Menino Porque não tem meninos na família, já que ambos

(separadamente) já tem filhas meninas. M

Entrevista 11 M Menina Acha que por ser uma mulher solteira, será mais fácil criar uma

menina.

Entrevista 13 H

Menina Afinidade com uma criança específica. M

Entrevista 15 M Menina Acha que por ser uma mulher solteira, será mais fácil criar uma

menina.

Entrevista 16 M Menina Tem mais afinidade com meninas.

Entrevista 17 H Menina Por vontade da mãe dele, pois ela adotou uma menina e

considerou a adoção bem sucedida. Dizem que menina é mais fácil de educar.

Entrevista 18 H

Menino Por vontade dos filhos do casal. M

Entrevista 19 H

Menina Porque ela só tem filhos homens. M

Entrevista 21 H

Menina Para fazer companhia para a filha do casal. M

* O número total de respostas foi 16.

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Quanto ao sexo do filho adotivo, os entrevistados apontaram ter preferências

em 14 das 21 entrevistas, enquanto em 7 entrevistas foi afirmado não haver

preferências. Todas as entrevistas em que foi afirmado não haver preferências

quanto ao sexo do filho adotivo foram realizadas com casais. Em 5 desses casos a

criança adotiva seria o primeiro filho do casal (em 1 desses casos o homem já tinha

filhos de um casamento anterior, mas era o primeiro filho dele com a atual

companheira), e por isso os cônjuges optaram por não escolher o sexo da criança.

Em 1 caso a mulher estava grávida de uma menina, e em 1 caso o casal já tinha

uma filha adotiva, e mesmo assim esses casais preferiram não escolher o sexo do

próximo filho. Nesse grupo em que não houve preferências quanto ao sexo do filho

adotivo, em apenas um caso (entrevista 8) o casal resolveu não ter preferências pois

eles discordavam quanto ao sexo preferido, pois ele preferia menino e ela menina.

Em todas as outras respostas a essa questão não houve discordância entre os

cônjuges.

Algumas falas dos participantes evidenciam que a opção por não escolher o

sexo da criança guarda similaridade com o que ocorre no processo de gestação,

visto que não é possível escolher o sexo da criança quando se tem um filho

biológico. Desse modo, assim como durante a gestação, os postulantes à adoção

vivem a expectativa da incerteza, de não saber qual será o sexo do filho.

“Não temos preferência por sexo, o que Deus mandar tá bom... é

bom que a gente fica na expectativa (risos)” (mulher, casada, 24

anos).

“Não importa se é menino ou menina, nem o filho genético não se

pode escolher... então não pode ficar escolhendo muito” (homem,

casado, 34 anos).

Nas entrevistas nas quais houve preferência quanto ao sexo do filho adotivo,

50% foram realizadas com casais e 50% com os solteiros ou separados. Em 78,57%

dos casos foi relatado que a preferência era por meninas e em 21,43% por meninos.

Nota-se, assim, uma preferência muito maior pelo sexo feminino, tal como relatado

em várias outras investigações. Àqueles que responderam ter preferências por um

determinado sexo, foi solicitado que falassem sobre os motivos dessa preferência.

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Entre os adotantes solteiros ou separados a justificativa mais freqüente para a

escolha do sexo da criança relacionava-se ao seu próprio sexo (será mais fácil por

ter aquele sexo, tem mais afinidade). Isso ocorreu em 5 dos 7 casos. Em um caso o

interesse estava relacionado à afinidade com uma criança específica com a qual

havia estabelecido contato (criança do mesmo sexo que a adotante). No caso

restante, um homem declarou preferência por menina por vontade da mãe dele.

Entre os 7 casais adotantes que manifestaram preferências por sexo do

adotado, 5 preferiram adotar meninas. Esses 5 casais apresentaram 6 razões

distintas para a preferência: vontade do filho que não queria dividir brinquedos,

inexistência de meninas na família do marido, a mulher só tem filho homem, para

fazer companhia à filha, sempre sonharam com menina, afinidade com criança

específica. Nos 2 casos de preferência por meninos estava em pauta o fato de os

cônjuges (separadamente) já terem filhas e a vontade dos outros filhos do casal.

Percebe-se que algumas das motivações apresentadas para a preferência pelo

sexo do filho adotivo foram muito particulares a cada caso. Em geral as motivações

apontadas para preferência por meninas ou meninos foram similares, e apenas um

motivo citado – “dizem que menina é mais fácil de criar”– apontou uma diferenciação

entre os sexos. De acordo com Abreu (2002), no Brasil o sexo masculino parece

associar-se a dificuldades no que se refere à educação, o que não acontece em

outros países, como por exemplo na França. Costa e Campos (2003) afirmam que a

maior procura pelo sexo feminino no Brasil está relacionada a estereótipos culturais

de gênero, que relacionam o sexo feminino à docilidade, beleza e domesticidade.

Essa idéia de que “a menina é mais fácil de criar do que menino”, presente na

sociedade brasileira, foi ganhando força historicamente na medida em que era

afirmada uma diferença biológica entre os sexos, na qual a mulher seria dotada de

docilidade e sentimento, qualidades estas negadas ao homem pela "natureza".

Assim, buscou-se manter uma simbologia da mulher como sendo dotada de

fragilidade e emoções, como sendo mais fácil de lidar e educar, e do homem como

sendo dotado de força e razão, com uma “natureza” forte que não o tornava

submisso aos outros. Essas diferenças socialmente construídas acabaram sendo

consideradas naturais, inscritas no biológico, e passaram a ocultar relações de

poder, marcadas pela dominação masculina, que mantiveram a separação e a

hierarquização entre homens e mulheres (Sousa e Altmann, 1999).

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Nenhum dos adotantes (englobando casais e solteiros) alterou sua preferência

quanto ao sexo do filho adotivo durante o período de espera pela concretização da

adoção.

A preferência pela cor de pele do filho adotivo dos participantes e os motivos

dessa preferência estão especificadas no quadro 5 a seguir, de modo que as

entrevistas omitidas no quadro foram aquelas em que não houve preferência pela

cor de pele da criança.

Quadro 5 – Cor de pele preferida pelos participantes e os motivos dessa preferência.

Entrevistas Sexo Cor da pele preferida Motivos

Entrevista 1 H

Branca ou Parda Querem que a criança seja parecida com eles, para evitar

comentários desagradáveis. M

Entrevista 3 H Branca ou Parda Quer que a criança seja parecida com ele, para evitar problemas.

Entrevista 4 M Branca ou Parda Quer que a criança seja parecida com ela.

Entrevista 6 H

Branca Querem que a criança seja parecida com eles, para se adaptar

melhor à família, e para evitar que a criança tenha que ficar dando explicações. M

Entrevista 7 M Branca Afinidade com uma criança específica.

Entrevista 9 H

Branca Querem que a criança seja parecida com eles, para evitar

preconceitos, evitar que as pessoas façam comentários e que a criança faça perguntas antes do momento certo. M

Entrevista 10 H

Branca Querem que a criança seja parecida com eles. M

Entrevista 13 H

Parda Afinidade com uma criança específica. M

Entrevista 14 H

Branca ou Parda Querem que a criança seja parecida com eles, para evitar

comentários do tipo “eles não são seus pais”. M

Entrevista 15 M Branca ou Parda Quer que a criança seja parecida com ela, pois tem medo de não

saber lidar com a diferença.

Entrevista 16 M Branca ou Parda Quer que a criança seja parecida com ela, pois não está preparada

para lidar com a diferença.

Entrevista 17 H Branca ou Parda Quer que a criança seja parecida com ele, para não ter que ficar

dando explicações.

Entrevista 19 H

Parda Querem que a criança seja parecida com eles. M

Entrevista 21 H

Negra Querem que a criança seja parecida com a filha biológica do casal,

que é negra. Acham que é mais difícil que uma criança negra consiga ser adotada. M

Quanto à cor do filho adotivo, em 66,66% das entrevistas foi afirmado haver

preferências, e em 33,33% não. Nos casais, os cônjuges estiveram sempre de

acordo em suas opiniões. Em 7 entrevistas foi relatada mais de uma cor preferida, e

portanto foram consideradas todas as respostas dadas. Quando houve preferência

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pela cor, a preferida foi branca, em 78,57% das entrevistas, seguindo-se a

preferência pela cor parda em 64,28% das entrevistas, e pela cor negra em apenas

1 entrevista (7,14%). Tais dados, de forma geral, estão de acordo com os dados

obtidos por Weber (1999) em condições similares, num estudo realizado com

pessoas cadastradas para adoção no Juizado da Infância e da Juventude de

Curitiba, segundo os quais a maioria absoluta dos adotantes coloca como condição

principal uma criança branca, alguns aceitam uma criança “até morena”, e raramente

é feita a opção por uma criança negra. Quando não há preferências pela cor de pele

pode-se admitir que há aceitação de crianças negras. Em outras palavras, quando

há preferência pela cor do filho adotivo, essa preferência não costuma ser por uma

criança negra, e sim por crianças brancas (na maioria dos casos) ou pardas. A

criança negra, na grande maioria das vezes, só não está excluída da preferência dos

adotantes quando estes afirmam não ter preferências quanto à cor do filho adotivo.

É interessante ressaltar, então, que em 7 entrevistas (33,33%) foi afirmada a

inexistência de preferências quanto à cor de pele do filho adotivo, e como foi

ressaltado, nesses casos a criança negra é aceita pelos postulantes à adoção.

Como já foi visto, dos casos em que foi relatada preferência pela cor de pele da

criança, houve um de preferência por criança negra (entrevista 21). A partir disso,

pode-se dizer que, no total de 21 entrevistas, em 8 (38,1%) há a possibilidade de

adoção de crianças negras, o que é um percentual relativamente alto se comparado

a outras pesquisas, como a de Weber (1999), que indica que apenas cerca de 7%

dos postulantes à adoção se mostram abertos à adoção de uma criança negra. É

preciso cautela com tal comparação, entretanto, uma vez que o número de

participantes da presente pesquisa é pequeno e eles foram escolhidos sem qualquer

preocupação com a aleatoriedade.

O único casal que relatou preferência por uma criança de cor negra é

interracial (ele negro, ela branca) e argumentou com o fato de o casal ter uma filha

biológica negra, e querer que a criança adotada seja parecida com a filha biológica,

e também com a realidade de a criança negra ter muito menos chances de ser

adotada se comparada às crianças brancas e pardas. Em 2 outros casos (14,28%)

em que foram apontadas preferências pela cor do filho adotivo o interesse é pela

adoção de uma criança específica, o que explica as preferências pela cor das

crianças. Nos demais casos (78,57%) em que os entrevistados relataram ter

preferências quanto à cor da criança, a motivação para essa preferência é querer

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que a criança seja parecida com o(s) adotante(s), e as justificativas para isso são:

“evitar que as pessoas façam comentários” (citado em 3 entrevistas), “evitar que a

criança ou os pais tenham que ficar dando explicações” (2), “medo de não saber

lidar com a diferença” (2), “evitar problemas” (1), “para a criança se adaptar melhor à

família (1), “minimizar o preconceito” (1), e “evitar que a criança questione antes do

tempo” (1). De fato, Weber (1999) afirma que uma pessoa que decide adotar uma

criança cujas características raciais ou de cor de pele sejam diferentes das suas,

tem grande probabilidade de enfrentar preconceitos em dobro no Brasil – pela

adoção e pela diferença racial. Weber (1999) afirma ainda que esse desejo de que o

filho adotivo se pareça com os pais pode expressar também uma necessidade de a

família adotiva imitar a família biológica, na qual as características genéticas dos

pais são transmitidas aos filhos, e portanto, estes são razoavelmente parecidos com

os pais biológicos. Já de acordo com Abreu (2002), essa opção dos adotantes de

que a criança se pareça com eles tem por objetivo facilitar a identificação dos pais

adotivos com os filhos. Segundo o autor os pais buscam, através da adoção,

reproduzir socialmente sua continuidade e semelhança, o que ocupa no imaginário

social um lugar central na reprodução. Costa e Campos (2003) afirmam que é muito

comum, nos estudos psicossociais de adoção, os adotantes ressaltarem com

orgulho a semelhança dos filhos consigo próprios ou com outros membros da

família, pois ressaltar essas semelhanças parece consolidar um vínculo de

parentalidade que poderia estar ameaçado de não existir em função da ausência de

ligação biológica.

“A idéia da gente é que sejam parecidas com a gente, é pra ela se...

não por nós, pra que ela se adapte melhor, é, à família” (mulher,

casada, 41 anos).

“ eu acho que mais pela sociedade mesmo, pra gente não ter que...

pra diminuir bastante os problemas que a gente viria a enfrentar

mais tarde. Não que fosse escondido, e que isso vai ser omitido,

não... a questão da adoção tá, até pra criança. Mas é que eu acho

que ficaria mais fácil, eu acho que seguindo o mesmo biotipo, não

sei, eu acho que tem uma coisa assim, acho que nas outras

pessoas...” (homem, solteiro, 36 anos).

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Os dados obtidos a partir da comparação da cor da pele dos participantes que

relataram ter preferências quanto a cor de pele do filho adotivo, com as preferências

apontadas por eles, podem ser visualizados no quadro 6 a seguir.

Quadro 6 – Comparação da cor da pele dos participantes que apontaram preferências pela cor da

pele do filho adotivo com as preferências relatadas por eles.

Entrevistas Sexo Cor da Pele

dos participantes

Preferência pela cor da pele do filho adotivo

Entrevista 1 H Branca

Branca ou Parda M Parda

Entrevista 3 H Branca Branca ou Parda

Entrevista 4 M Branca Branca ou Parda

Entrevista 6 H Branca

Branca M Branca

Entrevista 7 M Parda Branca

Entrevista 9 H Branca

Branca M Branca

Entrevista 10 H Branca

Branca M Branca

Entrevista 13 H Negra

Parda M Parda

Entrevista 14 H Parda

Branca ou Parda M Parda

Entrevista 15 M Branca Branca ou Parda

Entrevista 16 M Parda Branca ou Parda

Entrevista 17 H Branca Branca ou Parda

Entrevista 19 H Parda

Parda M Parda

Entrevista 21 H Negra

Negra M Branca

Pode-se perceber que, em geral, os entrevistados tiveram preferências por

crianças de cor de pele semelhante à própria cor, com uma certa tolerância à

diferença. No caso dos casais, preferir uma criança da própria cor significa preferir

uma criança da cor de pelo menos um dos cônjuges, visto que uma proximidade

entre a cor da criança e a cor de pelo menos um dos pais adotivos significa que

aquele casal teria plenas condições de gerar um filho biológico com a cor de pele

daquela criança adotiva. Nas entrevistas com casais não houve discordância entre

os cônjuges quanto à preferência pela cor de pele do filhos adotivo. Apenas em um

caso (entrevista 7) a cor da criança não se assemelha à da pessoa adotante, e este

é um dos 2 casos em que a adoção é motivada por afinidade com uma criança

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específica, e, portanto, a cor de pele da criança não teve influência direta sobre a

decisão de adotar.

Os dados sobre as preferências de cor de pele podem ser observados mais

detalhadamente na tabela 3, a seguir, que compara a cor da pele dos participantes,

individualmente, com as preferências relatadas por eles quanto à cor do filho

adotivo.

Tabela 3 – Comparação da cor da pele dos participantes individualmente com as preferências

relatadas por eles quanto à cor do filhos adotivo.

Cor da pele Participantes (%) Preferência dos participantes (individualmente)

pela cor da pele do filho adotivo (%)*

Branca 54,54% 72,72%

Parda 36,36% 59,09%

Negra 9,10% 9,10%

* Pôde ser dada mais de uma resposta.

Fazendo uma análise individual de todos os participantes que apontaram

preferências quanto à cor de pele do filho adotivo, dos 22 entrevistados, 54,54% têm

a pele branca, 36,36% têm a pele parda e 9,10% têm a pele negra. Em relação à

preferência desses entrevistados, em que cada participante pôde dar mais de uma

resposta, percebe-se que 72,72% deles apontam como preferência uma criança

branca, e 59,09% apontam como preferência uma criança parda, o que indica que

não só as pessoas de pele branca preferem ou aceitam adotar crianças brancas, e

também que a adoção de crianças pardas é preferida ou aceita por alguns adotantes

de pele branca.

Com base nos dados, é possível perceber que há uma certa tolerância quanto

à diferença de cor entre adotantes e adotados, mas tal tolerância tem um limite claro,

visto que crianças de pele negra raramente são apontadas como preferidas. Parece

que, tanto para pessoas brancas como para pessoas pardas, a única situação em

que o filho adotivo realmente será diferente dos pais é quando ele for negro. Uma

das entrevistadas ressaltou que o filho adotivo não precisava ser tão semelhante a

ela, mas ela não queria que fosse muito diferente.

“A questão da cor, me foi perguntado. Parda, pode ser, branca, pode

ser, morena, também pode ser, a única restrição que eu fiz foi negro,

negro, aquele negro mesmo, isso aí eu fiz restrição sim, uma vez

que me é possível escolher, né, eu fiz essa opção. Porque a minha

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pele é muito branca, eu acho que destoa muito. Veja bem, o negro

mesmo, aquele que, como a gente até brinca, chega a ser azul, o

pardo não, é normal, não tem nada a ver, pode até ter o cabelo

crespo sim, não tem problema, mas eu acho que aquele negro que

chega brilhar, eu acho que destoa de mim, se eu tivesse uma cor

mais escura, eu não teria restrição não, te digo sinceramente, mas é

uma coisa... é seu filho, é um impacto eu acho que até pra mim,

sabe” (mulher, separada, 45 anos).

Como a adoção, na maior parte dos casos, não é realizada por uma

única pessoa, pode ser revelador considerar a informação sobre cor de pele

em conjunto com a condição conjugal e a cor de pele do cônjuge. Isso é feito

a seguir (tabela 4), tomando-se como base as mulheres casadas e solteiras,

somando-se a elas os dois homens solteiros.

Tabela 4– Comparação da cor da pele dos participantes com as preferências relatadas por eles

quanto à cor de pele do filho adotivo.

Mulheres Aceita criança branca* Aceita criança parda* Aceita criança negra*

Branca casada com branco (4) 4 1 1

Branca casada com pardo (3) 3 3 3

Branca casada com negro (2) 1 1 2

Parda casada com branco (1) 1 1

Parda casada com pardo (2) 1 2

Parda casada com negro (1) 1

Negra casada com branco (1) 1 1 1

Branca solteira (3) 3 3 1

Parda solteira (2) 2 1

Homem branco solteiro (2) 2 2

Total 18 16 8

* Pôde ser dada mais de uma resposta.

As informações da tabela 4 indicam que entre as 19 mulheres adotantes que

participaram do estudo apenas uma é negra, e entre os 16 homens três são negros.

Não houve caso algum de casal com ambos os cônjuges negros. Tal quadro de

baixa incidência de pessoas negras tem relação óbvia com os dados constantes da

tabela 4, mas certamente é insuficiente para explicá-los no todo. O que se percebe

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no exame da tabela acima é uma clara rejeição da criança negra. Consideradas as

21 oportunidades de adoção que estão em jogo, a criança branca é aceita em 18

casos, a criança parda em 16 casos, e a criança negra em apenas 8.

Em relação aos casais, em quase todos os casos a preferência da cor de pele

da criança adotiva é semelhante à cor de pele de pelo menos um dos cônjuges.

Quase todos apontaram como preferências uma criança parecida com um dos

membros do casal, visto que, como foi ressaltado, a proximidade entre a cor da

criança e a cor de pelo menos um dos pais adotivos sinaliza (para o próprio casal e

para as demais pessoas com que interage) plenas condições de ter sido gerado um

filho biológico com a cor de pele daquela criança adotiva. A mesma configuração

pode ser observada no caso de adotantes solteiros: a criança com cor de pele igual

a de suas próprias peles sempre está indicada como preferência (uma única

exceção foi constatada, a da entrevista 7, mas envolve interesse em uma criança

específica).

É possível afirmar, portanto, que nas adoções realizadas por casais, quando os

cônjuges dizem que querem uma criança parecida com eles, está sendo levada em

conta a cor de pele de ambos os cônjuges, de modo que cada cônjuge sempre leva

em consideração a cor de pele do outro na hora de fazer a escolha pela preferência

de cor de pele da criança.

Das entrevistas nas quais foi afirmado não haver preferências quanto à cor do

filho adotivo (total de 7), 1 foi realizada com uma pessoa solteira de cor de pele

branca, 1 com um casal no qual ambos os cônjuges são brancos, e 5 foram

realizadas com casais interraciais, sendo que em 3 casos um dos cônjuges é branco

e o outro pardo, e em 2 casos um dos cônjuges é branco e o outro é negro. Assim,

pode-se pensar que, pelo menos para os casais de brancos com negros, o fato de

não ter preferência em relação à cor do filho adotivo ainda está de acordo com o

argumento de querer que os filhos adotivos sejam parecidos com os pais, visto que

qualquer que seja a cor da criança haverá uma proximidade entre a sua cor e a cor

de pelo menos um dos pais adotivos, ou seja, aquele casal teria plenas condições

de gerar um filho biológico com a cor de pele daquela criança adotiva.

“Pode ser moreninho também, não, porque na minha família, da

minha mãe, tem gente... tem uns moreninhos e tem branquinhos

também, na dele é só branquinhos, mas na minha tem branco e

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moreno, e pretinho também... a cor não importa não”(mulher negra,

35 anos, casada com homem branco).

Em duas das entrevistas realizadas as pessoas relataram uma certa

dificuldade em se definir a cor de pele de alguém, pois duas pessoas diferentes

podem ter dificuldades para chegar a um acordo quanto a cor de uma pessoa. Um

casal, que tem preferência por criança branca ou parda, relatou que foi chamado

pelo Juizado para conhecer uma criança parda, e quando eles chegaram ao abrigo

avaliaram a criança como sendo negra, e não a adotaram.

“Nós fomos ver a Kátia ... Nós colocamos que a gente quer uma

criança de pele branca, até parda, e aí foi a confusão, porque

quando nós chegamos, a Kátia para nós ela não era parda, para nós

ela era negra mesmo, né, então a gente pegou e ligou e disse assim

‘olha, se a Kátia para nós é parda a gente até muda, coloca de cor

branca’, porque diz que não existe a morena ou moreno, né,... O

problema é a definição do que é isso, porque é complicado... e aí vai

ter que ser na hora de olhar mesmo, de estar com a criança. O

pardo vai até aonde pra nós e até aonde começa o negro, é a gente

que vai definir isso, é muito difícil e até constrangedor...” (homem,

casado, 30 anos).

Um dado interessante é que em uma das entrevistas realizadas foi apontada

a necessidade de haver maior incentivo às famílias negras para a adoção. A maioria

das pessoas que adotam são brancas ou pardas, e procuram crianças parecidas

consigo mesmas (também brancas ou pardas). Como a maioria das crianças

disponíveis para adoção são negras, uma entrevistada afirmou que seria

interessante que famílias negras fossem incentivadas a adotar, para que houvesse

proximidade na aparência entre essas crianças e seus pais adotivos. Mas é preciso

levar em conta que, provavelmente, as pessoas negras adotam pouco no Brasil pois

na população de baixa renda do país o negro está super-representado, em função

de vários aspectos sócio-histórico-políticos. Além disso, essa é uma alternativa que

não contribui para o questionamento de preconceitos sociais. Afirmando a

necessidade de o filho ser parecido com os pais adotivos, essa alternativa afirma a

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necessidade de se “camuflar” a família adotiva, como se ela fosse menos legítima

que a família biológica. Essa alternativa também reforça a distinção e o preconceito

racial, na medida em que enfatiza a semelhança de cor de pele como algo

imprescindível, indo contra o direito à igualdade independentemente da cor. Assim

essa medida não contribui para o questionamento desses preconceitos, e na

tentativa de evitar a discriminação, acaba reforçando-a.

Os dados apresentados anteriormente na tabela 1b revelam que apenas dois

casais mudaram de opinião quanto à preferência pela cor de pele do filho adotivo.

Em ambos os casos o casal é composto por um cônjuge branco e um negro e a

mudança de opinião ocorreu no sentido de ampliação da aceitação, ou seja, durante

o processo as restrições quanto à cor de pele desapareceram. Em ambos os casos

havia restrição inicial a crianças negras. De qualquer forma, o princípio da

similaridade de cor de pele entre filho e um dos pais não é quebrado, uma vez que

estão envolvidos casais interraciais branco/negro. Uma adotante solteira também

mudou de opinião quanto à cor de pele do filho adotivo. Trata-se de mulher branca

que não tinha restrições e que, durante o processo, apresentou restrições a crianças

negras. Tal caso (entrevista 15) será comentado com mais detalhes adiante.

Em relação à idade do filho adotivo, todos os entrevistados afirmaram ter

preferências. As idades preferidas e os motivos da preferência estão especificadas

no quadro 7 a seguir.

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Quadro 7 – Idade preferida pelos participantes e os motivos dessa preferência.

Entrevistas Sexo Idade preferida Motivos *

Entrevista 1 H

0-2 anos Ela está grávida, e não queria que os filhos biológico e adotivo

tivessem uma distância grande de idade. M

Entrevista 2 H

1-5 anos Não quer ter o trabalho que exige um bebê. Não quer que o filho vá direto para a escola pois quer ter um tempo para ficar com ele em

casa. M

Entrevista 3 H 0-1 ano Para a criança se acostumar com ele desde bebê, pois assim a

proximidade fica maior.

Entrevista 4 M 3-8 anos Não quer ter o trabalho que exige um bebê. Quer uma criança que

já saiba falar. Quer pegar uma fase infantil, por isso não quer adolescente.

Entrevista 5 H

0-1,5 ano Querem curtir a fase de bebê. Querem que a criança se acostume

com eles desde pequena. M

Entrevista 6 H

0-8 meses Querem curtir a fase de bebê. M

Entrevista 7 M 1,2 ano Afinidade com uma criança específica.

Entrevista 8 H

0-3 anos Querem curtir a fase de bebê. Acham que um bebê dá para educar

do jeito deles, pois ainda não tem opinião formada. M

Entrevista 9 H

Recém nascido Querem passar por todas as etapas da criança. M

Entrevista 10 H

Recém nascido Querem que a criança se acostume com eles desde nova. Acham

que um bebê dá para educar do jeito deles. M

Entrevista 11 M 0-2 anos Para educar do jeito deles, passar os valores, pois acima disso fica

mais marcada pelas experiências, fica mais difícil corrigir.

Entrevista 12 H

0-2 anos Querem passar por todas as fases da criança. Para educar do jeito deles, pois acham que a personalidade é formada até os 7 anos. M

Entrevista 13 H

4 anos Afinidade com uma criança específica. M

Entrevista 14 H

0-2 anos Para educar do jeito deles. M

Entrevista 15 M 0-4 anos Para educar do jeito deles.

Entrevista 16 M 0-3 anos Por que nunca teve a experiência, gostaria de passar por todas as

fases.

Entrevista 17 H 0-2 anos Para educar do seu jeito. Para a criança se acostumar desde

pequena, pois isso aumenta a proximidade.

Entrevista 18 H

Recém nascido Por opção dos filhos do casal. M

Entrevista 19 H

0-6 meses Acham mais fácil a criança se acostumar com eles. M

Entrevista 20 H

0-4 anos Gostam de curtir a fase de bebê. Para manter uma compatibilidade

de idade com a filha. M

Entrevista 21

H

2-4 anos

Não têm muito tempo para cuidar de um bebezinho. Querem a criança já andando e falando, pois é melhor para se lidar. Para

educar do jeito deles, pois acreditam que é a fase que mais marca a criança.

M

* O número total de respostas foi 32.

É interessante perceber que todos os entrevistados, sem exceção, apontaram

preferências em relação à idade da criança que eles pretendem adotar. Nas

entrevistas com casais, não houve discordância entre os cônjuges quanto à idade

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preferida. Nota-se, a partir do quadro acima, que em 3 entrevistas menciona-se a

exigência de que a criança seja recém nascida, e em mais 13 casos a criança recém

nascida está entre a preferência dos entrevistados – o que totaliza 16 casos

(76,19%) de preferência por crianças recém nascidas. Nesses casos em que o

recém nascido faz parte da preferência dos entrevistados, há preferência por criança

entre 0 e 1 ano em 6 casos; por crianças entre 0 e 1,5 ano em 1 caso; entre 0 e 2

anos em 5 casos; entre 0 e 3 anos em 2 casos; e entre 0 e 4 anos em 2 casos. Das

pessoas que não apontaram como preferência um recém nascido, em 2 casos o

interesse é pela adoção de crianças específicas, as quais possuem 1,2 e 4 anos, e

em 3 casos as pessoas apontaram como preferência outros limites de idade: de 1 a

5 anos, na entrevista 2, de 3 a 8 anos na entrevista 4, e de 2 a 4 anos na entrevista

21. Não houve caso de preferência por criança com idade acima de 8 anos, nem por

adoção de adolescentes. Na tabela 5 a seguir é possível visualizar a porcentagem

de participantes de acordo com a faixa etária preferida.

Tabela 5 – Porcentagem de participantes por faixa etária preferida.

Faixa etária preferida * % de participantes

Inferior a 1 ano 76,19%

Entre 1 e 2 anos 57,14%

Entre 2,1 e 3 anos 28,57%

Entre 3,1 e 4 anos 28,57%

Entre 4,1 e 5 anos 9,52%

Entre 5,1 e 8 anos 4,76%

Acima de 8 anos 0%

* Engloba as preferências no interior dessa faixa etária,

mas não necessariamente com esses limites.

Do total de entrevistas, em 76,19% a preferência engloba crianças com idade

inferior a 1 ano, e apenas em 4,76% a preferência engloba crianças entre 5,1 e 8

anos, não tendo havido preferência por crianças acima de 8 anos. É possível

perceber que, quanto maior a idade da criança, menos ela é preferida pelos

participantes para ser adotada. Isso está de acordo com a literatura existente

(Weber, 1999; Ebrahim, 2000, 2001a, 2001b; Mendonça e Fernandes, 2004),

segundo a qual quanto maior a idade da criança disponível para adoção, mais difícil

é que ela entre na preferência dos interessados em adotar, e portanto, mais difícil é

que ela seja adotada.

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Vários foram os motivos relatados para a preferência de idade da criança, e

esses motivos variaram de acordo com a faixa etária preferida. Um dado importante

que pôde ser percebido a partir dos motivos apontados para a preferência de idade

é que muitos dos entrevistados afirmam que querem bebês, mas varia muito a idade

da criança que os entrevistados consideram como sendo um bebê. Por exemplo, na

entrevista 19 os participantes consideram um bebê uma criança de até 6 meses; na

entrevista 12, uma criança de até 2 anos; e nas entrevistas 8 e 16 é considerado

bebê uma criança de até três anos. Assim, todos esses entrevistados apontaram

motivos pelos quais gostariam de adotar bebês, mas a idade da criança considerada

por eles como sendo um bebê variou de entrevistado para entrevistado.

Dentre as motivações relatadas (total de 32), a mais ressaltada por aqueles

que querem bebês (variando aí a idade que consideram ser a de um bebê) foi

“querer educar do seu jeito” (25% das respostas). De acordo com Abreu (2002), a

preferência por crianças pequenas muitas vezes está relacionada à essa idéia que

os adotantes têm do papel da educação que podem dar à criança, educação esta

capaz de paliar “os problemas genéticos” dos quais a criança seja eventualmente

portadora. Ou seja, quanto mais cedo a criança chegar, mais o adotante terá

oportunidade de moldá-la. Outras motivações citadas por aqueles que querem

bebês foram: “querer que a criança se acostume com eles desde pequena” (15,62%

das respostas), “querer curtir a fase de bebê”(12,5%), “querer passar por todas as

etapas da criança” (9,37%), e por opção dos filhos já existentes (3,12%).

Dentre os motivos relatados por aqueles que afirmaram que não querem

bebês, os motivos ressaltados para o limite inferior de idade foram “não querer ter

trabalho com um bebê” (9,37% das respostas), e “querer que a criança já saiba

falar/andar” (6,25%), e para o limite superior de idade foram “não querer que o filho

vá direto para a escola” (3,12%) e “querer passar por uma fase infantil” (3,12%).

Além dessas, outras motivações ressaltadas para a preferência da idade do filho

adotivo foram “querer que os filhos biológico e adotivo tenham idades próximas”

(6,25%), “ter afinidade com uma criança específica” (6,25%).

Analisando todas as preferências em relação às características do filho

adotivo, pode-se dizer que os dados estão de acordo com a literatura. Segundo

Weber (1999), o perfil das crianças preferidas no Brasil é: menina, branca e recém

nascida.

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Apesar de não terem sido feitas indagações diretas sobre a saúde do filho

adotivo, em 6 entrevistas esse aspecto foi mencionado: em 5 entrevistas as pessoas

relataram a necessidade de que a criança fosse saudável (pela dificuldade de cuidar

por ser solteira(o) em 2 casos, por falta de condições emocionais em 2 casos, e por

falta de condições financeiras em 1 caso), e em 1 entrevista o fato de a criança ter a

saúde comprometida não se mostrou um obstáculo para a adoção. Um outro dado

curioso é que em 2 entrevistas foi relatado que, se houvesse oportunidade, os

entrevistados adotariam gêmeos, sendo o interesse por um casal em um caso, e por

duas meninas no outro.

A partir do que foi exposto pode-se perceber que ambos os cônjuges de todos

os casais entrevistados relataram ter a mesma preferência quanto a todas as

características do filho adotivo, havendo um único caso em que foi necessária certa

negociação para chegar a um consenso – ela preferia menina e ele menino, então

optaram por não ter preferências quanto ao sexo da criança.

Um resumo das mudanças de preferências por determinadas características do

filho adotivo durante o período de espera pela adoção de uma criança pode ser visto

no quadro 8. Tal quadro inclui apenas as 6 entrevistas nas quais ocorreram relatos

de mudança de preferências.

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Quadro 8 – Mudanças nas preferências das características do filho adotivo durante o processo de

adoção.

Entrevistas

Mudanças na preferência das características do filho adotivo

Sexo Cor da pele Idade

Antes Depois Antes Depois Antes Depois

Entrevista 2 Branca ou

Parda

Não tem mais preferência por

cor de pele 0-2 anos 1-5 anos

Entrevista 4 2,5-4 anos 3-8 anos

Entrevista 6 0-3 meses 0-8 meses

Entrevista 8 Branca ou

Parda

Não tem mais preferência por

cor de pele 0-2 anos 0-3 anos

Entrevista 15

Não tinha preferência por cor de

pele

Branca ou Parda

Recém nascido

0-4 anos

Entrevista 16 0-1 ano 0-3 anos

Em nenhuma das entrevistas foi relatada mudança na preferência pelo sexo do

filho adotivo, em 3 delas foram relatadas mudanças na preferência pela cor de pele,

e em todas as 6 ocorreram mudanças na preferência pela idade. Dentre os motivos

apontados para essa alteração (foram consideradas todas as respostas dadas, num

total de 7), destacam-se “a participação no grupo de discussão sobre adoção no

Juizado da Infância e da Juventude de Vila Velha” (5 casos), “a visita feita a

abrigos”(1 caso), e “a conversa com amigos sobre adoção” (1 caso). É interessante

notar que o tempo de espera de um candidato à adoção costuma variar de acordo

com as características da criança que ele quer, sendo que os itens “idade” e “cor de

pele” influenciam muito mais o tempo de espera do que o item “sexo”. Em geral, no

que se refere à preferência dos pais, quanto mais nova é a criança, e quanto mais

clara é a cor da sua pele, mais difícil é a adoção (pela indisponibilidade de crianças),

e por isso maior é o tempo de espera dos candidatos. Assim, quase todas as

alterações relatadas pelos participantes, tanto em relação a cor de pele como em

relação à idade, se deram no sentido de ampliar as possibilidades de adoção e

também de diminuir o tempo de espera pela criança.

“A idade eu mudei, depois que eu participei desse encontro... de

psicologia, essas discussões,. Eu vim pra cá, te confesso, com uma

idéia errada, de achar que a gente tinha que pegar uma criança,

tanto que eu fiz inscrição de 2 anos e meio até 3 anos e meio... eu te

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confesso que tinha essa mentalidade sim, que a criança, que eu

tinha que apanhar menor para eu colocar do meu jeitinho... e depois

com o tempo eu fui aprendendo que não é isso, que você pode

pegar uma criança maior que ela tá sempre aprendendo...” (mulher,

separada, 45 anos).

“O que eu acho é que a nossa visão diante de adoção, diante de

uma criança no abrigo, mudou e muito... A gente tinha uma noção

assim, de que é, uma criança maior fosse, é, não tivesse uma

receptividade, fosse uma criança que de uma certa forma rejeitasse

até as pessoas que fossem no abrigo, alguma coisa assim. E

quando nós chegamos lá, nós fomos fazer uma atividade e eles, do

adolescente até o menorzinho, né, uma receptividade, uma

participação, uma coisa impressionante... Eu não quero bebê... tem

uma fila enorme, por favor, dessa fila eu não quero participar mais.

De 1 a 5 anos eu tô super feliz...” (mulher, casada, 50 anos).

Segundo Costa e Rossetti-Ferreira (2004), uma das especificidades

interessantes do tornar-se pai e mãe por vias de adoção é o fato de que a pessoa ou

casal são colocados numa posição em que podem fazer escolhas iniciais sobre a

criança desejada (cor, sexo, idade, entre outros), escolhas estas que não ocorrem

num processo de filiação biológica. Entretanto essa pessoa ou casal é ao mesmo

tempo enredada num processo em que de certa forma passa a ser escolhida pelas

“circunstâncias”, tendo que levar em consideração, por exemplo, o tempo de espera

para a adoção, as características físicas das crianças disponíveis, entre outros

aspectos. Essas circunstâncias podem ir modificando a maternidade/paternidade

inicialmente idealizada, e as escolhas vão se modificando de modo a se adequar a

uma maternidade/paternidade possível. Esse aspecto pôde ser observado entre os

entrevistados, pois estes fizeram alterações em relação às características preferidas

do filho adotivo no sentido de adequar o seu desejo de ser pai/mãe às possibilidades

reais de adoção, levando em conta as circunstâncias que interferem na agilização do

processo adotivo.

De todas as mudanças citadas quanto às preferências por características do

filho adotivo, apenas uma se deu no sentido de reduzir as possibilidades de adoção,

que foi a já mencionada mudança em relação à cor de pele na entrevista 15, pois

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antes a entrevistada não tinha preferência por cor de pele, e depois ela passou a

preferir apenas crianças brancas ou pardas, fazendo restrição à criança negra.

Segundo a participante, ela mudou de opinião pois ouviu de amigos casos de

pessoas que adotaram crianças de cor de pele diferente da própria e tiveram

problemas com isso. A partir disso a entrevistada ficou com medo de não saber lidar

com uma grande diferença de cor de pele entre ela (que é branca) e a criança, e

passou a fazer restrição quanto à adoção de uma criança negra.

Em relação ao medo de adotar uma criança de cor de pele diferente da própria

cor, é interessante ressaltar o relato do casal (entrevista 20) que já possui uma filha

adotiva de 7 anos, filha essa que tem a pele mais escura que a dos pais adotivos.

“Nós não fizemos restrição no cadastro ... apesar de que com a

Luzia, ela é um pouco mais amorenada, né, um pouco mais

“jambinho”, principalmente quando vai à praia no verão então,

nossa, ela fica super morena. E a gente viu que ela se sentia

incomodada com isso, ela sempre questionou: “porque que eu sou

tão morena assim e vocês são tão branquelos?”, “porque que eu sou

tão morena assim e as minhas priminhas não são?”. Então a gente

viu algum questionamento, e algum sofrimento talvez, por conta

dessa diferença, por parte dela, né. E a gente explica, não filha, mas

a sua pele é linda, veja, a gente tem que passar aqui um monte de

óleo pra ficar na cor que você tá e você já fica assim natural (risos).

Hoje ela não tem mais esse problema não, mas ela teve.” (homem,

34 anos, que já possui uma filha adotiva)

Apesar de o casal (entrevista 20) ter percebido um questionamento por parte

da filha adotiva quanto à diferença de cor de pele entre ela e os pais adotivos, estes

não encararam esse fato como uma dificuldade, e trataram o assunto com

naturalidade. O casal relata que atualmente isso não é mais um problema para filha,

e que esse é um tipo de obstáculo que pode ser facilmente superado. Esse casal

está tentando a segunda adoção, e continua não tendo preferências quanto à cor de

pele do filho que será adotado.

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Em 4 entrevistas (todas com casais) foi relatado que os cônjuges têm filhos

biológicos conjuntamente12, sendo que em 3 casos o casal já possui um filho

(entrevistas 1, 2 e 21), e em 1 caso o casal já possui dois filhos (entrevista 18). Em 2

entrevistas (ambas com casais) foi relatado que os cônjuges têm filhos biológicos,

mas separadamente, sendo que em um desses casos cada cônjuge tem um filho

(entrevista 10), e no outro caso um cônjuge tem um filho e o outro dois. Há ainda

uma entrevista com um casal (14) em que foi relatado que apenas um dos cônjuges

tem dois filhos biológicos (teve três, mas um veio a falecer). Nessas 7 entrevistas em

que foi relatado que os participantes já têm filhos biológicos (4 conjuntamente, 2

separadamente e um caso em que apenas um dos cônjuges tem filhos biológicos), 4

casais relataram que não podem mais ter filhos biológicos, e 3 casais relataram que

ainda podem ter filhos biológicos.

Em 14 entrevistas (11 casais e 3 indivíduos) foi relatada uma dificuldade ou

impossibilidade de ter filhos biológicos, e em todos os casos essa impossibilidade

relaciona-se à mulher, apesar de os motivos serem variados: idade avançada,

problemas no sistema reprodutivo, ou outros distúrbios de saúde que dificultam ou

impossibilitam uma gravidez. Em 7 entrevistas (3 casais e 4 solteiros) não foi

relatada qualquer dificuldade em ter filhos biológicos.

De acordo com Abreu (2002), o que as pessoas interessadas em ter filhos

buscam antes de tudo é um filho biológico. Quando fracassam as tentativas de

reprodução por meios naturais, o primeiro passo (havendo condições econômicas) é

a busca de técnicas de reprodução assistida, ou seja, a busca de técnicas médicas

de ajuda à procriação. Segundo o autor, a grande maioria dos adotantes que têm

problemas de fertilidade realizam contato com o médico para tentar solucionar o

problema. No Brasil, como o custo das técnicas médicas de fertilização é alto,

apenas as pessoas mais abastadas tem condições de fazer uso delas. Somente

quando essas técnicas também não dão o resultado esperado é que as pessoas

orientam seu olhar para uma criança de outra seqüência biológica. Por isso,

segundo Abreu (2002), é durante o contato com a medicina que se decide pela

adoção. Costa e Rossetti-Ferreira (2004), ao investigar como casais constróem e

ressignificam sentidos de maternidade e paternidade ao se tornarem pais adotivos,

analisam um caso em que o casal, extremamente desejoso em ter um filho, ao se

12

A entrevista 1 foi realizada com um casal em que a mulher estava grávida de 8 meses do primeiro filho, e

como estava muito próximo de ela ter o bebê, este casal foi analisado como já tendo um filho biológico.

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deparar com a infertilidade, busca primeiramente tentar resolver esse problema, e só

quando isso se mostra inviável é que se coloca a possibilidade de adoção. Segundo

as autoras, desde o casamento há uma associação de idéias no sentido de que

“quem casa quer filhos para constituir família” (casamento → filhos → família). Mas

quando o casal se depara com a infertilidade, e com o fato de ter que realizar

exames e tratamentos, novos sentidos são associados ao eixo anterior da

concepção de constituição de família, de modo que a associação passa a ser

casamento → infertilidade → adoção → filhos → família.

Apesar de não ter sido feita nenhuma investigação direta sobre esse assunto

na presente pesquisa, das 14 entrevistas nas quais foi relatado algum problema de

fertilidade, em 7 casos (entrevistas 5, 6, 8, 9, 12, 14 e 20), todos casais, os

informantes relataram que procuraram algum tipo de auxílio médico na tentativa de

ter filhos biológicos antes de se inscreverem no Juizado para adotar uma criança.

Não é possível dizer ao certo o quanto, em tempo e dinheiro, cada um desses casais

investiu na tentativa de ter um filho biológico, mas alguns deles relataram que

tentaram tratamentos por mais de dois anos, outros relataram que pararam de tentar

por falta de condições financeiras, e outros relataram ainda que, apesar de

procurarem informações médicas, não realizaram qualquer tipo de tratamento

também por falta de condições financeiras. Um dado interessante é que, dos 7

casais que procuraram auxílio médico para tentar ter um filho biológico antes de se

inscreverem no Juizado para adoção de uma criança, 4 relataram que já tinham

interesse em adotar mesmo antes de saberem que não poderiam ter filhos

biológicos. Assim, apesar de ser muito comum essa idéia de que a adoção seria

uma última tentativa para se ter um filho, após o fracasso de técnicas médicas de

fertilização, percebe-se a partir dos relatos que, entre os entrevistados, essa não foi

a concepção predominante. Mas Costa e Rossetti-Ferreira (2004) afirmam que essa

idéia, já existente para o casal antes da descoberta da infertilidade, de realizar uma

adoção, está muitas vezes ligada a sentimentos de filantropia e altruísmo, e só a

partir do momento em que o casal realmente se depara com a infertilidade é que

essa idéia é ressignificada, passando a ser sentida como a possibilidade concreta de

realização da maternidade/paternidade e de construção de sua família.

É possível perceber que, do total de entrevistas realizadas, em 33,33% foi

relatado que ambos ou pelo menos um dos cônjuges têm filhos biológicos, e em

33,33% não foi relatada qualquer dificuldade em ter filhos biológicos. Esses são

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dados relevantes num grupo de adotantes, visto que, como já foi ressaltado, em

geral a idéia que se tem socialmente é a de que a adoção é uma forma de atender

aos anseios daqueles que não têm filhos biológicos ou que não podem tê-los. Assim,

percebe-se que, atualmente, além de a adoção ser vista como uma forma de

resolver o problema de quem não pode ter filhos, concepção social mais comum,

estão emergindo também outras concepções sobre o tema, de modo que a adoção

vem se mostrando como uma possibilidade de atender a outros determinantes, tanto

pessoais como sociais. Os dados obtidos por Costa e Campos (2003), a partir de um

levantamento estatísticos sobre famílias adotantes no Distrito Federal nos anos de

1998 e 1999, também colocam em questão essa concepção de que a adoção é uma

forma de compensar a impossibilidade de ter filhos biológicos, pois foi constatado

que, entre os casais interessados em adotar, mais da metade possuía filhos

biológicos em comum. Segundo as autoras, o momento do ciclo de vida da família

pode influenciar na decisão pela adoção, pois em famílias cujos filhos estejam na

fase da adolescência ou no início da vida adulta pode haver uma maior

disponibilidade para realização de uma adoção. Esse aspecto pôde ser observado

em alguns casos na presente pesquisa, pois das 7 entrevistas em que os

participantes relataram já possuir filhos biológicos, em 4 delas (2 casais com filhos

conjuntamente, 2 com filhos separadamente e um caso em que apenas um dos

cônjuges tem filhos biológicos) esses filhos já estão na adolescência ou na fase

adulta.

Fazendo uma análise comparativa das motivações para adoção relatadas pelos

entrevistados que não podem ter filhos biológicos e pelos entrevistados que podem

ter filhos biológicos, levando em conta o fato de eles já terem tido ou não filhos

biológicos, percebe-se que há uma diferença entre as principais motivações

apontadas por esses grupos de participantes. Dentre aqueles que atualmente não

podem ter filhos biológicos, tanto para aqueles que já têm filhos como para aqueles

que não os têm, a principal motivação relatada é “não poder ter filhos biológicos”,

sendo essa motivação ressaltada por 100% daqueles que já têm filhos biológicos, e

por 70% daqueles que não os têm. Dentre aqueles que podem ter filhos biológicos, a

motivação mais ressaltada por aqueles que já têm filhos biológicos é “ajudar uma

criança” (em 100% dos casos), e a motivação mais ressaltada por aqueles que não

têm filhos biológicos é “vontade de ser pai/mãe” (em 50% dos casos).

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Em 7 entrevistas os informantes relataram que não está descartada a

possibilidade de ainda terem filhos biológicos, sendo que 3 casos são de pessoas

que podem ter filhos biológicos (2 solteiros e 1 casal), e 4 de pessoas que estão

encontrando dificuldades para ter filhos biológicos, e não sabem se terão

possibilidade de tê-los (todos casais). Dois desses casais que pretendem ter filhos

biológicos mas têm dificuldades para tê-los (entrevistas 8 e 12) relataram acreditar

que após a adoção as chances de a mulher engravidar serão maiores, pois já

ouviram falar que depois que adota a mulher fica menos ansiosa para ter um filho, o

que aumenta as chances de uma gravidez. Apesar de terem ressaltado esse

aspecto, nenhum desses casais apontou-o como motivação para a adoção. Weber

(2003), em uma pesquisa sobre conceitos e preconceitos acerca da adoção, afirma

que essa concepção de que algumas mulheres só conseguem engravidar depois de

terem adotado e, portanto, que a adoção seria um bom motivo para se tentar ter

filhos biológicos, é uma idéia sem fundamento e preconceituosa, pois dessa forma a

adoção é vista como um meio de conseguir um filho biológico posteriormente, e não

como um fim, ou seja, como o próprio modo de ter um filho.

Quando foi perguntado aos entrevistados se pretendiam ter outros filhos

adotivos após a efetivação da adoção atual, em 15 entrevistas foi afirmado que sim,

ou seja, grande parte dos informantes dessa pesquisa pretendem realizar uma

segunda adoção. É importante ressaltar que 71,43% daqueles que afirmaram que

não descartam a possibilidade de terem filhos biológicos colocam essas duas

possibilidades como interdependentes – ter filhos biológicos ou ter filhos adotivos.

Um dado interessante é que em 20% das entrevistas nas quais os entrevistados

afirmaram querer ter mais filhos adotivos, houve uma maior flexibilidade quanto à

preferência pela idade do segundo filho adotivo. Eles afirmam que gostariam de

poder passar pela experiência de cuidar de um bebê na primeira adoção, não

fazendo mais questão disso na segunda adoção.

“A minha idéia é, depois que eu conheci a casa de passagem do

IBES, eu, assim, gostei da idéia de pegar uma menina maior, então

até 7 anos. Seria a segunda adoção... Mas antes eu gostaria de

passar aquela fase de mãe, de bebê... a fraldinha, a chupetinha, até

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143

acordar de noite, eu acho que tudo faz parte” (mulher, casada, 41

anos).

Do total de entrevistados, um casal (entrevista 20) e uma pessoa

individualmente (o cônjuge masculino da entrevista 19) relataram que já possuem

filhos adotivos, sendo esta a segunda adoção para o casal da entrevista 20, e a

terceira para o homem da entrevista 19. Em ambos os casos as adoções anteriores

foram de bebês recém nascidos, e é possível perceber que em um caso (entrevista

20) há atualmente uma abertura maior quanto à preferência da idade do filho – na

primeira adoção o casal preferia um recém nascido, e agora apontaram como

preferência uma criança de 0 a 4 anos –, e no outro caso (entrevista 19) não é

possível perceber uma grande ampliação da faixa etária preferida do filho adotivo (a

preferência atual é por um bebê de até 6 meses). Assim, enquanto para alguns uma

única experiência de adoção de bebês é suficiente, ficando então aberta a

possibilidade de futuras adoções de crianças maiores, para outros há sempre a

necessidade de que a adoção seja de um bebê. Essa escolha pode estar

relacionada a aspectos como as experiências anteriores com adoção ou com

crianças de pessoas próximas, e a crença ou não de que há uma idade apropriada

para que a educação da criança seja realizada. Para os cônjuges da entrevista 20 a

segunda adoção não precisa ser de um bebê pois eles já passaram por essa

experiência, e na entrevista 19, o cônjuge masculino já teve a experiência de ter

filhos adotivos, mas a sua companheira não, e a preferência pela idade da criança

(até 6 meses) se dá pelo fato de o casal acreditar que assim é mais fácil de a criança

se acostumar com eles.

Em 95,24% dos casos os entrevistados acreditam que com a chegada do filho

adotivo a vida vai mudar muito. Desse total, 33,33% acreditam que a mudança

ocorrerá devido à chegada de mais uma pessoa em casa, em alguns casos bebê e

em outros não. As mudanças apontadas pelos entrevistados (pôde ser dada mais de

uma resposta) referem-se a: “dinâmica do trabalho” (38,09% das entrevistas),

“rotina” (28,57%), “organização de tempo/horários” (23,81%), “fim do sentimento de

liberdade” (23,81%), “ordem da casa” (19,05%), “alimentação” (14,28%), “mais lazer”

(9,52%), “maior responsabilidade” (9,52%), “rotina de sono” (9,52%) e “mudança na

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144

visão de mundo” (4,76%). É interessante ressaltar que, apesar de não ter sido feito

qualquer questionamento a esse respeito, 57,14% dos entrevistados ressaltaram

que as mudanças serão no sentido de melhorar a vida. Apenas em uma entrevista

(entrevista 21) os participantes acreditam que com a chegada do filho adotivo a vida

não vai mudar, pois o casal já tem uma filha biológica com 4 anos, e a faixa etária

escolhida da criança adotiva é muito próxima (de 2 a 4 anos). Assim, o casal

acredita que a chegada de uma criança mais ou menos da idade da filha que já

possui não vai alterar sua vida. Àqueles que já haviam adotado quando foram

realizadas as entrevistas (total de 6) foi perguntado se eles imaginavam que a vida ia

mudar após a adoção, e como eles estão percebendo essas mudanças depois de

terem adotado, e 66,66% responderam que as mudanças estão ocorrendo de

acordo com o esperado, enquanto 33,33% responderam que as mudanças estão

sendo maiores do que as expectativas que tiveram.

Foi perguntado aos entrevistados se eles teriam a ajuda de alguém após a

adoção, e em 76,19% das entrevistas a resposta foi positiva. A ajuda esperada é

aquela dos próprios pais (avós das crianças) em 57,14% das entrevistas, irmãos em

14,28%, outros familiares em 28,57%, empregada doméstica em 28,57%, babá em

23,81%, amigos em 23,81%, creche em 9,52%, vizinhos em 4,76%, padrinhos em

4,76%, e pessoas da comunidade em 4,76% das entrevistas. Não há qualquer razão

para interpretar esse quadro do tipo de ajuda que se espera obter como tendo algum

elemento específico relacionado à adoção. Em outras palavras, os mesmos tipos de

ajuda podem ser esperados por quem está próximo de ter filho biológico. No caso de

adotantes solteiros e separados, essa ajuda ganha uma dimensão mais essencial,

conforme ressalta Levy (2005). Segundo essa autora, a rede de apoio social é

fundamental no caso de adoções monoparentais, pois contribui para a inserção da

criança em sua nova família, ajuda o adotante a se sentir acolhido e a elaborar suas

incertezas, impede o isolamento da díade cuidador(a)-filho, exerce uma função de

socialização e oferece outros modelos de identificação ao filho adotivo. Apesar da

evidência da importância da ajuda de outras pessoas após a adoção, em especial

nos casos de famílias monoparentais, nem todos os entrevistados que compõem

esse tipo de família pretendem contar com ela: todos os adotantes solteiros

afirmaram que contarão com a ajuda de outras pessoas após a adoção, mas a

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145

entrevistada separada (entrevista 4) afirmou não pretender contar com qualquer

ajuda. É interessante ressaltar ainda que, no caso da mulher, a decisão de ter um

filho sozinha pode ocorrer mesmo no caso de filho biológico, não sendo, portanto,

uma ocorrência limitada ao âmbito da adoção. Àqueles que já haviam adotado foi

perguntado se a ajuda que estão recebendo era a esperada, e todos afirmaram que

sim.

Todos os entrevistados relataram pretender contar para o filho que ele é

adotivo, e foi perguntado se já haviam pensado em como fazer isso. As respostas

podem ser vistas no quadro 9 a seguir.

Quadro 9 – Como contar para o filho que ele é adotivo.

Entrevistas Sexo Como pretendem contar para o filho que ele é adotivo?

Entrevista 1

H Não tem uma data certa. Quando ele tiver consciência. O filho biológico vai ter fotos de gravidez que o adotivo não vai ter. Da maneira mais natural possível. A medida que as questões forem surgindo. Se necessário, solicitarão ajuda de

um psicólogo. M

Entrevista 2 H Naturalmente. Ter um filho biológico e não contar para o outro que ele é

adotivo é uma covardia. Acham que existe um momento próprio, mas não sabem qual é. M

Entrevista 3 H

Vai contar para evitar problemas, porque é o certo, mas não gosta da idéia. No seu caso julga que tem que contar pois como é solteiro, se não contar vai ter que inventar uma história. Não pensou em como vai contar, mas vai descobrir

uma forma.

Entrevista 4 M É fundamental contar. Vai contando à medida que for crescendo, e pedirá

ajuda psicológica para orientá-la como contar.

Entrevista 5 H Pretendem contar desde pequeno, com muito amor. Pretendem contar com a

ajuda de um profissional, tendo um acompanhamento tanto para eles como para a criança. M

Entrevista 6 H

Vão contar a partir do momento que a criança começar a entender as coisas. Não pensaram em como, mas de forma bem natural. Pretendem solicitar um psicólogo para auxiliá-los em como fazer. A experiência de outras pessoas

pode ajudar. M

Entrevista 7 M Não pretende trabalhar com mentiras, e não sente insegurança para falar.

Pretende falar na idade certa, com muita naturalidade. A religião pode ajudar.

Entrevista 8 H Vão solicitar acompanhamento de um profissional, pois não sabem como vão

falar. Acham que ir falando no dia a dia, que não nasceu da barriga. Mas não sabem em que idade falar e como a criança vai reagir. M

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146

Continuação do Quadro 9 – Como contar para o filho que ele é adotivo

Entrevistas Sexo Como pretendem contar para o filho que ele é adotivo?

Entrevista 9

H

Não gostam da idéia de contar, apesar de acreditarem que têm que contar. Pretendem contar logo no início. Já estão com o bebê, e ela já fala com ele que é adotivo, pois acredita que a criança, apesar de não assimilar, grava

tudo, e depois vai buscando as informações. Quer que chegue uma idade na qual não precise estar falando, mas que a criança já compreenda com a maior naturalidade possível. Não vai haver um dia, mas a medida que for crescendo

ele já vai sabendo. Pretendem utilizar livros de histórias e filmes infantis.

M

Entrevista 10 H

Vão esperar a oportunidade de contar, pois acham que vai surgir. M

Entrevista 11 M Não pensou em como fazer. Tem que ir contanto desde pequeno, para a

criança não ter um ‘choque’ quando sentar para conversar. A própria experiência como filha adotiva vai ajudar.

Entrevista 12 H A partir do momento que a criança começar a entender as coisas. Vão solicitar

ajuda psicológica. M

Entrevista 13 H Como esse caso é de interesse por uma criança específica de 4 anos, ela já

sabe que é adotiva. M

Entrevista 14 H

Desde cedo. Quando a criança tiver condição de entender. M

Entrevista 15 M Pretende começar a falar desde que a criança chegar, independente da idade

que tenha.

Entrevista 16 M A partir do momento que puder entender. Responder à medida que a criança

for perguntando. Tentar contar naturalmente.

Entrevista 17 H Pretende contar desde pequeno, mas não pensou em como fazer. Pretende

procurar orientação de um psicólogo.

Entrevista 18 H Desde que a criança chegar em casa. Não de uma só vez, mas ir conversando

com a criança. Ir contando historinhas à medida que a criança for crescendo. M

Entrevista 19 H Tem que contar, apesar de ser difícil. Desde pequena, contando algumas

histórias. M

Entrevista 20

H Desde que começar a falar, bem no nível da criança, por meio de historinhas. Da fantasia eles vão evoluindo para a realidade, até que a criança consiga enxergar a realidade completa. Foi assim que fizeram com a primeira filha

adotiva, e pretendem repetir a experiência, pois deu certo. M

Entrevista 21 H Não sabem como vão fazer, mas acreditam que têm que respeitar o

Desenvolvimento da criança, pois cada criança é única. Pretendem procurar um psicólogo, para ver a idade ideal, e se há literatura infantil a esse respeito.

M

É possível perceber que algumas idéias são comuns quando se pergunta aos

entrevistados se já pensaram em como contar para o filho que ele é adotivo.

Primeiramente, há uma concepção de que a revelação para a criança de que ela é

adotiva tem que ocorrer com naturalidade, ou seja, não deve ser algo impactante

para a criança. Essa idéia de “contar com naturalidade” foi ressaltada pelos

informantes em 6 entrevistas. Enquanto em algumas entrevistas foi ressaltado que

não há um momento específico adequado para a revelação da adoção para a

criança (“não existe um momento certo para a revelação” em 2 entrevistas, “será no

dia a dia” em uma outra, e “pretendem ir conversando com a criança” em mais uma),

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outros entrevistados acreditam que há um momento próprio (1 entrevista), uma

oportunidade adequada (1 entrevista), ou uma idade certa (1 entrevista), apesar de

não saberem exatamente quando será.

Outra concepção predominante é a de que a revelação deve ser feita o

quanto antes, seja nas primeiras etapas da vida da criança, ou então logo que a

criança for adotada: alguns ressaltam que pretendem contar para a criança “desde

pequena” (4 entrevistas), “desde que chegar em casa” (2), “logo no início” (1) e

“desde cedo” (1). Outros informantes, apesar de se manterem na posição de que a

revelação da adoção para a criança deve ser feita enquanto ela ainda é pequena,

apontam a necessidade de a criança ter um nível de desenvolvimento apropriado

para que esse processo se inicie. Assim, alguns afirmam que vão começar a revelar

a adoção “quando a criança começar a entender as coisas” (4 entrevistas), “à

medida que ela for crescendo” (3), “quando ela tiver consciência” (1) e “desde que

começar a falar” (1). A literatura (Piccini, 1986; Schettini Filho, 1999; Weber, 1999,

2001 e 2003) sugere que é importante que a adoção seja contada “o mais cedo

possível”, para evitar uma possível revolta do filho adotivo em função de um

sentimento de ter sido enganado. Um entrevistado ressaltou a importância de que a

revelação seja feita de acordo com o desenvolvimento da criança, pois cada criança

é única, e essa informação está de acordo com a literatura (Schettini Filho, 1999),

que afirma que não é possível oferecer uma resposta padronizada para o momento

adequado da revelação, pois esse momento dependerá, dentre outros fatores, do

desenvolvimento de cada criança. É interessante ressaltar que em um caso

(entrevista 9) uma entrevistada, ao pensar em como contar para o filho que ele é

adotivo, relata como pensa aspectos do processo de desenvolvimento cognitivo da

criança, e tenta adequar a isso a maneira de contar sobre a adoção.

Dois participantes ressaltaram que pretendem ir contando ao filho que ele é

adotivo à medida que as questões forem surgindo, ou seja, à medida que a criança

for perguntando. Não há na literatura um consenso em relação a esse aspecto.

Piccini (1986) acredita quando o filho adotivo traz as primeiras dúvidas sobre sua

vinda, se lhe forem fornecidas respostas esclarecedoras, na medida certa de suas

perguntas, ele irá se acostumando a encarar a sua verdade. Já Schettini Filho (1999)

discorda que os pais devam aguardar as perguntas dos filhos, pois não parece

provável que uma criança bem pequena tomasse essa iniciativa de fazer esse tipo

de questionamento, e se o fizesse, seria indício de alguma informação ou percepção

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anterior, o que estaria indicando que os pais demoraram a falar no assunto. Mas

ambos os autores concordam que se os pais passarem as informações com

segurança, empatia e afeto, possibilitarão que a criança se sinta seguramente aceita

e inserida na família.

Em 6 entrevistas os informante relataram que ainda não pensaram em como

revelar a adoção para o filho, e não sabem como o farão. Em 3 entrevistas foi

explicitada a dificuldade de contar para o filho que ele é adotivo, de modo que os

participantes afirmaram que, apesar de pretenderem revelar a adoção, não gostam

muito dessa idéia. Segundo Costa e Campos (2003), devido à freqüente associação

entre adoção e problemas no imaginário social, muitas vezes as famílias adotivas

optam por revelar a adoção para a criança mais por medo de que algo saia errado

do que por acreditar ser um direito da criança conhecer sua história de origem. É

interessante ressaltar que em um caso (entrevista 13) em que a adoção foi realizada

recentemente a criança tem 4 anos e, portanto, ela já sabe que é adotiva, de modo

que os pais já não precisarão passar por essa situação de revelar a adoção para a

criança.

Em 8 entrevistas os participantes relataram que pretendem solicitar um

psicólogo para ajudá-los na hora de contar para o filho que ele é adotivo. Esses

dados parecem indicar que alguns entrevistados vêem a forma de contar para o filho

que ele é adotivo como algo possivelmente problemático para eles e para o filho

adotivo, apesar de terem o desejo de que isso se dê de modo natural. Assim,

mesmo aqueles que resolvem adotar, os quais muitas vezes supõe-se que devido a

essa decisão estão muito menos presos a idéias pré-concebidas em relação à

adoção, não estão imunes a certos estereótipos sociais, o que é evidenciado, por

exemplo, no mal estar relatado por alguns entrevistados em ter que contar para o

filho que ele é adotivo, e no fato de relatarem antecipadamente que pretendem

contar com a ajuda de um profissional, como se a situação de adoção fosse em si

mesma passível de problemas.

“... desde novinho a gente pretende já tá fazendo um

acompanhamento, porque é interessante né, vai abrindo a

mentezinha dele, e a psicóloga também ajuda, mas com muito amor

né, a gente vai dizer pra ele”(homem, casado, 28 anos)

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É interessante ressaltar que em 5 entrevistas os informantes relataram que

pretendem utilizar histórias ou filmes infantis que abordam a adoção, como um meio

auxiliar para revelar a adoção para o filho. Parece que essa é uma forma de tentar

buscar uma linguagem apropriada para falar do assunto com crianças pequenas,

dada a insegurança revelada por muitos pais sobre como fazer a revelação da

adoção para o filho.

As especificidades de algumas situações se mostram interessantes. Dois

casais com filhos biológicos relataram que no caso de quem tem filhos biológicos a

necessidade de contar para o filho adotivo sobre a sua condição de adotado se torna

muito maior, pois o filho biológico tem algumas coisas, como por exemplo fotos da

gravidez, que o filho adotivo não vai ter. Um homem solteiro explicitou o fato de ele

não gostar da idéia de contar para o filho que ele é adotivo, mas ressaltou a

necessidade de fazê-lo pois no seu caso não contar sobre a adoção envolve

necessariamente a invenção de uma outra história, sobre uma determinada mãe que

não existiu.

Alguns entrevistados ressaltaram aspectos que, de algum modo, poderão

ajudar ou influenciar positivamente os pais na revelação da adoção para o filho,

dentre eles a religião (citada em 1 entrevista), a experiência de outras pessoas (1

entrevista), a experiência como filha adotiva, no caso da entrevistada que é adotada

(entrevista 11) e a experiência com a filha adotiva, no caso do casal que já possui

uma filha adotiva (entrevista 20). Nesse último caso é interessante explicitar o relato

dos pais de como foi a revelação da adoção para a filha:

“Olha, por exemplo, com a Luzia, desde que ela começou a

aprender a falar, a conversar, assim, bem no nível dela mesmo, a

gente já contava historinha, da criança que é gerada na barriguinha,

e outra que é gerada no coraçãozinho, e nessa linguagem a gente

foi evoluindo para a realidade, até que ela conseguiu enxergar a

realidade completa, né, de forma que não fosse duro para ela, mas

ela não podia ficar, assim, ela não podia ser enganada, eu não

acredito nisso, sabe, que você possa construir uma relação

verdadeira em cima de uma mentira, ela tem direito de saber”

(homem, 34 anos, que já tem uma filha adotiva).

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É interessante notar que, na presente investigação, nenhum adotante (casal

ou solteiro) arriscou mencionar com alguma precisão a idade que a criança deve ter

para que eles decidam informá-la sobre a realidade da adoção. Como foi possível

perceber, em geral as pessoas que adotam apresentam dúvidas quanto ao momento

adequado de revelar a adoção para a criança, e mesmo que os pais tenham a

pretensão de contar sobre a adoção o mais cedo possível, como sugere a literatura,

essas dúvidas quanto ao momento adequado podem acabar levando a um

adiamento constante da revelação, de modo que quando os pais perceberem já

pode ter passado tempo suficiente para a criança ter crescido sem saber sobre sua

condição de adotiva. Nesse sentido, apesar da evidente particularidade de cada

caso, a delimitação de uma certa idade da criança para que ocorra a revelação

poderia servir de parâmetro para os pais adotivos, e contribuir para que eles tenham

uma informação mais concreta e segura a respeito de quanto revelar a adoção para

a criança, evitando assim um adiamento que poderia ser prejudicial para a relação

entre pais e filhos. Alguns autores sugerem certos limites de idade para a revelação

da adoção para a criança. Schettini Filho (1999) afirma que, tendo em vista a

situação individual de cada criança, revelar a adoção o mais cedo possível significa

contar quando a criança tiver entre os 2 ou 3 anos, e essa seria uma boa época pois

a criança não questionaria a informação nem exigiria detalhes, o que deixaria os

pais mais liberados das tensões e do medo da revelação. Ainda segundo o autor,

quando a revelação ocorre após 5 ou 6 anos de idade, os benefícios do

conhecimento da história podem vir associados aos prejuízos decorrentes da forma

pela qual ela é interpretada pela criança. Segundo Weber (2003), a partir de

pesquisa realizada com pais e filhos adotivos, quando os filhos adotivos souberam

de sua condição desde pequenos eles não encararam a revelação como um evento

traumático, mas aqueles que souberam após os 6 anos de idade se lembravam do

momento com uma certa angústia. A partir desses dados, é possível estabelecer um

direcionamento a respeito da idade da criança para a revelação da adoção (a partir

dos 2 ou 3 de idade, e no máximo até os 5 ou 6 anos), e poderia ser interessante

que os técnicos do juizado que realizam avaliações psicossociais transmitissem essa

informação para os postulantes à adoção, para evitar um adiamento prejudicial

dessa revelação.

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Finalmente, foi perguntado aos entrevistados se eles percebem restrições das

pessoas com as quais se relacionam em relação ao seu interesse em adotar. Em 5

entrevistas os informantes afirmaram não perceber restrição alguma (entrevistas 4,

5, 6, 13 e 16), e nas outras 16 entrevistas os participantes afirmaram perceber

restrições dos outros em relação ao seu interesse em adotar. Nota-se que o número

de pessoas que não percebe qualquer tipo de restrição quando fala do seu interesse

em adotar foi relativamente pequeno (23,8%), e isso indica que, infelizmente, ainda

há muitos preconceitos em relação à adoção, visto que muitas vezes as pessoas se

posicionam contrariamente a essa prática. As respostas das pessoas que afirmaram

perceber restrições das outras pessoas quanto ao seu interesse em adotar podem

ser visualizadas no quadro 10 a seguir:

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Quadro 10 – Tipos de restrições quanto ao interesse em adotar percebidas e pessoas que as

manifestam.

Entrevistas Sexo Percebe

restrições de quem

Que restrições

Entrevista 1 H

Familiares Quem pode ter filhos biológicos não precisa adotar. Não sabem de onde

vem a criança. M

Entrevista 2 H

Uma amiga A amiga teve uma experiência negativa, e diz para eles tomarem o caso

dela como exemplo. Vão ter problemas. M

Entrevista 3 H Familiares e amigos

Restrição quanto a ter um filho, e não quanto à adoção. Dizem que ele vai arranjar problemas, pois acham que a pessoa solteira vive numa paz, sem

problemas.

Entrevista 7 M No

trabalho e da Justiça

Quem trabalha como cuidadora não pode se apegar às crianças e querer adotá-las.

Entrevista 8 H Familiares

e amigos Filho dá trabalho, ainda mais adotivo. As pessoas ficam contado casos de

adoção que não deram certo. Não sabem a procedência da criança. M

Entrevista 9 H

Amigos As pessoas ficam curiosas para saber por que adotaram, como isso fosse

uma indicação certa de que eles têm problemas. M

Entrevista 10 H

Familiares Não sabe quem são os pais. Vai dar trabalho. M

Entrevista 11 H

Amigos Vai arrumar encrenca. Não conhece a índole da criança, sua origem

genética. M

Entrevista 12 H

Amigos Vai dar trabalho. Quando os pais são ruins a criança já nasce com genes

ruins. As pessoas relatam casos de adoção que não deram certo. M

Entrevista 14 H

Amigos Falam que são doidos. Vai dar trabalho. Pode ter uma genética ruim. M

Entrevista 15 M Amigos Restrição quanto a ter um filho, e não quanto à adoção. Falam que é louca,

que criança dá trabalho.

Entrevista 17 H Amigos Restrição quanto a ter um filho, e não quanto à adoção. Vai sair do grupo

de amigos, deixar de sair e passar a ficar só em casa como o filho.

Entrevista 18 H

Familiares Já tem dois filhos biológicos, não precisam adotar. Vão ter que dividir as

coisas das crianças. Não conhecem a família de origem da criança. M

Entrevista 19 H

Amigos Falam que são doidos. Vão procurar problemas. As pessoas relatam casos

negativos de adoção. M

Entrevista 20 H

Amigos Vão criar filho dos outros. Pode ser gente ruim. Acham que eles são

coitados que não puderam ter filhos. M

Entrevista 21 H

Familiares Medo de que pegassem uma criança ruim. M

As restrições percebidas vêm de amigos (11 casos), de familiares (6), de

pessoas do trabalho (1) e da Justiça (1), esses dois últimos casos estando

relacionados entre si. É interessante ressaltar que em 3 casos (entrevistas 3, 15 e

17) as restrições foram apontadas em relação ao fato de o(a) entrevistado(a) querer

ter um filho, e não de esse filho ser adotivo. Todos esses casos foram de entrevistas

com pessoas solteiras, e as restrições percebidas foram: “vai arranjar problemas,

pois a pessoa solteira vive numa paz, sem problemas” (1 caso), “dizem que é louca,

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pois criança dá trabalho” (1 caso), e “vai sair do grupo de amigos, deixar de sair e

passar a ficar só em casa como o filho” (1 caso).

Dentre as restrições que se referem à adoção, as mais citadas foram as que

se relacionam ao desconhecimento da origem genética da criança (9 casos –

entrevistas 1, 8, 10, 11, 12, 14, 18, 20 e 21), sendo que em 4 desses casos se fala

explicitamente da crença de que se os pais forem pessoas “ruins”, isso será

transmitido geneticamente para a criança, que será então portadora de “genes

ruins”. Em 1 entrevista (20) os informantes relataram como restrição percebida o

comentário “vocês vão criar filho dos outros”, comentário este que evidencia uma

concepção exclusivamente genética de parentalidade, como se a adoção não

estabelecesse uma relação de filiação entre a criança e os pais que a adotaram.

Uma outra forma de restrição percebida pelos participantes é o relato de casos

negativos de adoção por parte das outras pessoas, sendo isso entendido como uma

forma de desencorajá-los a adotar (4 casos – entrevistas 2, 8, 12 e 19).

Alguns participantes relataram que, quando falam do seu interesse em adotar

para as outras pessoas, algumas dizem que eles “vão ter problemas” com a criança

adotiva (3 casos – entrevistas 2, 11 e 19), ou que o filho adotivo “vai dar trabalho” (4

casos – entrevistas 8, 10, 12 e 14), ou ainda que os adotantes “são doidos” (2 casos

– entrevistas 14 e 19). Segundo Abreu (2002), muitas concepções negativas são

produzidas e mantidas pela sociedade em relação à adoção, dentre elas a noção de

problema: uma criança que pode trazer problema, e que é oriunda de problemas

reprodutivos. Assim, a criança sinaliza com a possibilidade de conflitos na

adolescência: fugir, querer os pais biológicos, ter recebido uma carga genética que a

predisponha ao alcoolismo ao à prostituição (que é de onde se originam, numa visão

fantasmagórica, os abandonados), entre outros.

Alguns participantes que não podem ter filhos biológicos relataram que

algumas pessoas parecem entender a opção pela adoção como uma indicação certa

de que o casal tem algum problema de fertilidade (1 caso – entrevista 9), ou que eles

são “coitados” que não puderam ter filhos (1 caso – entrevista 20), e isso é

entendido pelos participantes como uma restrição. Um outro tipo de restrição que se

baseia em concepção semelhante, percebida exclusivamente por pessoas que

podem ter filhos biológicos ou que já tiveram filhos biológicos, refere-se à crença de

que quem pode ter ou já tem filhos biológicos não precisa adotar uma criança (2

casos – entrevistas 1 e 18), e nesses casos a adoção seria injustificável. Em 1

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entrevista (18), com participantes que já têm filhos biológicos, uma restrição

percebida foi o fato de que eles “terão que dividir as coisas dos filhos biológicos com

o filho adotivo”, o que deixa subentendida uma preferência pelas crianças que são

filhas biológicas do casal.

Há ainda um caso específico (entrevista 7) em que a pessoa trabalha num

abrigo, como cuidadora de crianças, e os responsáveis pelos abrigos não admitem

que uma cuidadora se apegue a uma criança a ponto de querer adotá-la. A Justiça

também se posiciona contrariamente à adoção por parte de pessoas que trabalham

em abrigos, pois uma cuidadora não poderia se apegar mais a uma criança que a

outra, pois isso comprometeria o seu cuidado igualitário com todas as crianças. A

entrevistada, que se apegou muito a uma menina do abrigo e resolveu tentar adotá-

la, se sente muito prejudicada com essa restrição, e relata a sua indignação por

tentarem impedi-la de dar uma família a uma criança que precisa.

“Eu estou passando por uma situação muito difícil... A Fernanda é

um dos casos da Casa da Criança que foi enviado pelo Juizado.

Quando as profissionais são admitidas na casa eles preparam elas

para não misturar o profissional com o pessoal, para não se apegar.

Mas não tem como. Eu comecei a trabalhar lá na casa num dia e a

Fernanda chegou no outro, com menos de um quilo de peso, e ela

olhou para mim e deu um sorriso. Foi amor à primeira vista. Comecei

a cuidar dessa criança... dessa e de todas as outras. A Fernanda

nasceu prematura, e ainda é uma criança pequena que ainda

precisa desenvolver o físico. Ela nasceu com um problema

respiratório, de cardiopatia, e ainda toma alguns remédios

controlados. Aí, pouco tempo depois que ela chegou, ela foi

internada em estado grave, ficou entubada, teve parada respiratória,

voltou a viver com choque elétrico, e eu acompanhei tudo, como se

fosse a mãe. Eu adotei essa criança desde esse momento. Eu

briguei pela vida dela no hospital, pedindo transferência, sabe, foi

fortalecendo o vínculo... eu cuidei dessa criança na pior hora da sua

vida. E o Mário (responsável pela casa de abrigo) não admite, diz

que não pode se apegar, e ameaça de demissão. É uma pressão

psicológica, e dá vontade de sair do serviço... isso é um ato

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desumano. A menina já me chama de mãe, é uma relação de mãe e

filha. Se eu não adotar essa criança vai ser um filho tirado da mãe. A

própria justiça não admite que o profissional que trabalhe com

crianças se apegue. Tem que ter um monte de robôs para cuidar

dessas crianças, não pode ser gente”(mulher, 43 anos, cuidadora da

Casa da Criança, interessada em adotar uma criança específica).

Esse caso coloca em questão a impossibilidade de se impedir que seres

humanos se apeguem afetivamente a outros, principalmente nesse caso tão

específico, em que adultos cuidam de crianças desamparadas, que muitas vezes

não têm família e encontram-se com problemas de saúde. A partir do relato da

entrevistada, parece que as autoridades vêem a necessidade de haver um certo

vínculo entre as pessoas que trabalham nas casas e as crianças, para que possa

haver uma relação de cuidado, mas esse vínculo afetivo não pode ultrapassar um

certo limite, a partir do qual o trabalho de cuidar igualmente de todas as crianças

possa ser prejudicado. Ora, tentar delimitar a possibilidade de existência e do grau

de vínculo afetivo entre seres humanos, ainda mais em uma situação tão específica

como esta, parece tarefa impossível. Por isso a entrevistada afirma: “tem que ter um

monte de robôs para cuidar dessas crianças, não pode ser gente”.

Apesar de muitas terem sido as restrições percebidas pelos participantes em

relação ao seu interesse em adotar, um entrevistado (entrevista 20) relatou um

acontecimento positivo na empresa onde trabalha, relacionado com a adoção. Esse

entrevistado está com o seu segundo filho adotivo há um mês, e gostaria de incluí-lo

no plano de saúde da empresa na qual trabalha. Mas nos casos de adoção, os pais

adotivos só conseguem a inclusão em qualquer plano de saúde quando fica pronta

toda a documentação da adoção da criança, o que geralmente demora muito tempo,

às vezes mais de um ano. Enquanto isso todos os atendimentos médicos ou exames

que a criança necessite devem ser feitos em locais de atendimento público ou serem

pagos particularmente. O entrevistado relatou uma conquista em relação a esse

aspecto.

“Esse episódio a que ela está se referindo é o seguinte, porque para

inclusão nos benefícios do plano de saúde né, você tem que

primeiro ter já os papéis. Como tá rolando aí e esses processos

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geralmente são demorados mesmo né, enquanto isso a criança ia

ficar descoberta. Eu me impus, e consegui. É o primeiro caso na

Companhia que antes de ter esses papéis ele vão fazer a inclusão,

entendeu, então... Às vezes é até por falta de informação. Eu fui lá

conversar como o pessoal do benefício e eles me disseram ‘Olha, é

o primeiro caso, e a gente não sabia como lidar com isso, a gente

tem aqui umas regras que têm que ser seguidas’, né , e eu consegui.

Hoje vai tá sendo incluso o Miguel, mesmo sem a papelada ainda. É

um progresso, é um progresso... Essa empresa está inclusive

abrindo a mente para esta questão, que no último acordo coletivo

um dos itens lá dos benefícios que os empregados ganharam é

apoio das assistentes sociais da empresa e do departamento jurídico

nos processos de adoção. Isso é um progresso imenso” (homem, 34

anos, está realizando a segunda adoção).

Esse relato evidencia que, apesar dos muitos obstáculos sociais ainda

existentes, é possível perceber alguns movimentos favoráveis e de incentivo à

adoção, não apenas de cidadãos comuns e instituições voltadas para esse fim, mas

também de empresas privadas, que estão levando em conta a importância da

adoção na sociedade atual, e dando subsídios aos funcionários de desejam realizá-

la. Isso mostra que conquistas como esta são possíveis, e que a ampliação de uma

discussão social sobre a adoção pode contribuir para a desmistificação de mitos e

preconceitos existentes sobre o tema.

A partir das análises realizadas, percebe-se que os dados coletados

evidenciaram uma grande diversidade de informações, e as possibilidades de

análise se mostraram muito amplas. A riqueza dos dados foi proporcionada pelas

particularidades dos casos, que trouxeram uma grande variedade de informações

em um universo pequeno de participantes.

4. COMENTÁRIOS FINAIS

Os comentários finais serão iniciados com a apresentação de um diagrama

que pretende resumir e organizar cronologicamente os principais passos da trajetória

implicada na adoção legal e os fatores e ela relacionados, de modo que esses

passos, em sua maior parte, foram considerados na presente investigação.

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É fato que o universo dessa pesquisa não possui características de

aleatoriedade, o que reduz o alcance de generalização dos resultados. Porém tal

decisão foi proposital aos objetivos da pesquisa, e ao invés de limitá-la, produziu

uma grande riqueza de informações. O interesse esteve focado na diversidade de

casos envolvidos no processo de adoção e na emergência de suas especificidades,

e os resultados, em se tratando de um universo numericamente pequeno,

produziram uma grande variedade de dados, contribuindo para a ampliação do

corpo de conhecimentos sobre a adoção.

Como foi ressaltado, Santos (1988) afirma que, quanto à decisão de ter um

filho, os pais adotivos têm que tomar uma decisão num nível em que não precisam

chegar, necessariamente, os pais biológicos, pois para adotarem têm que levar

adiante uma série de providências e escolhas iniciais, enquanto os pais biológicos

podem tornar-se pais sem terem tido tal pretensão e sem terem refletido sobre essa

escolha. Os resultados da pesquisa parecem corroborar as afirmações de Santos

(1988), pois indicam que os pais adotivos têm que refletir a respeito de uma série de

questões que muitas vezes não se colocam aos pais biológicos, ou pelo menos não

se colocam da mesma forma, o que pode contribuir para que eles tenham que refletir

com mais cuidado e durante mais tempo a respeito da decisão de ter um filho. A

pessoa que resolve adotar, se tem companheiro(a), geralmente discute o assunto

com ele(a) antes de tomar a decisão, pensa em como vai adotar (se por meios legais

ou não), quais as características da criança que deseja, se vai contar ou não para a

criança que é adotiva, e muitas vezes tem que lidar com o preconceito das outras

pessoas em relação à sua decisão. Se a adoção é feita por meios legais, via Juizado

da Infância e da Juventude, o adotante geralmente passa por uma avaliação que lhe

coloca outras questões, como que aspectos estão motivando a adoção, se há

condições financeiras e psicológicas para que a adoção se efetive, além do tempo

de espera para a adoção, em geral, ser longo, o que permite que haja um maior

período de reflexão até a efetivação da maternidade/paternidade. Além disso, os

pais adotivos têm a possibilidade de experimentar um estágio de convivência com a

criança ou adolescente antes que se efetive a adoção, o que permite uma

experiência de ensaio e erro que não se coloca aos pais biológicos. Assim, os dados

sugerem que os pais adotivos parecem passar por uma reflexão maior, antes de ter

um filho, em comparação a muitos pais biológicos.

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Apesar de a procura mais comum pela adoção ocorrer por parte de casais

que não podem ter filhos, como indica a literatura, as pesquisas têm mostrado que a

existência de adoções feitas por famílias diferentes do padrão de família tradicional,

como, por exemplo, famílias compostas por mães desacompanhadas, pais

desacompanhados, pares homossexuais, famílias inter-raciais, famílias

recompostas, entre outras, merece especial destaque no contexto atual. O fato de a

família nuclear conjugal ter se tornado hegemônica fez com que vigorasse a

tendência a ver qualquer desvio desse modelo como problemático. No entanto, as

dinâmicas familiares ditas "alternativas", apesar de não se encaixarem no modelo

ainda dominante de família, são cada vez mais freqüentes e gozam de legitimidade

social, de modo que a compreensão da vida familiar no Brasil contemporâneo exige

que sejam consideradas, além do padrão hegemônico, tais dinâmicas alternativas.

Essas várias possibilidades de composições familiares levam a novas situações

sociais, inclusive no que diz respeito à adoção, e o desafio é lidar com essa

diversidade confrontando mitos e estereótipos sobre o que é considerado “normal”

ou “desviante”. No que se refere ao trabalho de profissionais que lidam com a

adoção, a análise dessa diversidade aponta a inadequação de modelos tradicionais

para lidar com uma realidade ainda não contemplada inteiramente pelas formulações

teóricas relacionadas à família, e uma prática que não considere as várias

possibilidades de composição familiar como legítimas corre o risco de se mostrar

limitada.

Os resultados dessa pesquisa também contribuem para a reflexão acerca dos

critérios referentes à legitimidade das intenções de pais adotivos. De acordo com o

Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção só será deferida se fundar-se em

motivos legítimos (art. 43, p.41). Segundo a Revista Brasileira de Crescimento e

Desenvolvimento Humano (2001), que apresenta comentários sobre os artigos do

ECA, o termo “motivos legítimos” refere-se ao fato de a adoção não poder ser usada

para satisfazer outros interesses e objetivos que não a proteção dos direitos das

crianças e adolescentes, não sendo considerados motivos legítimos, por exemplo,

todos aqueles ligados a interesses de exploração e de uso da adoção para

satisfação exclusiva dos adotantes. Porém, como na própria lei não são

estabelecidos os critérios de legitimidade, muitas vezes essa tarefa fica a cargo dos

profissionais que trabalham com a adoção, que passam a estabelecer seus próprios

critérios de legitimidade para considerar um postulante à adoção apto ou inapto. A

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partir disso, percebe-se que uma atuação presa a modelos tradicionais pode

privilegiar critérios de legitimidade bastante restritos, não condizentes com a

diversidade presente na sociedade contemporânea. Assim, os resultados da

pesquisa, na medida em que evidenciam a grande diversidade de aspectos

envolvidos na adoção, apontam para a necessidade de uma ampliação dos critérios

de legitimidade das motivações de pais adotivos.

Como afirma Oliveira (2002), não podemos perder de vista que a avaliação

psicológica dos pretendentes à adoção resume-se a uma visão pontual, precisa,

feita em um momento determinado, uma vez que o profissional tem um prazo para

realizar sua tarefa. Quando trabalhamos na avaliação dos postulantes à adoção,

temos apenas uma avaliação das possibilidades que essas pessoas apresentam

para desempenhar seus papéis parentais, seus desejos e suas motivações, visto

que as figuras parentais e filiais são interdependentes, e não se pode desconsiderar

o papel ativo que as crianças exercem nos ajustes das interações. Um outro aspecto

que deve ser levado em conta é que a avaliação psicológica dos pretendentes à

adoção é uma intervenção imposta pela autoridade judicial, de modo que a

participação dos interessados independe de sua vontade, o que pode comprometer

a eficácia do trabalho. Assim, acreditamos que devem ser consideradas as

limitações do trabalho de avaliação psicológica dos postulantes à adoção, o qual

deve ser repensado visando sua flexibilização e agilização. Acreditamos ainda que,

mais que um trabalho de avaliação psicológica, o trabalho com os futuros pais

adotivos deve ser de preparo e a orientação, no sentido de dar suporte ao grupo

familiar, de orientá-lo quanto ao processo de adoção e, principalmente, de abrir

espaço para a discussão dos tabus que envolvem a adoção. De acordo com

Ebrahim (2001a), esse trabalho pode ser decisivo para que haja mudanças nas

próprias formulações dos pedidos dos adotantes, sendo talvez capazes de alterar o

quadro atual de um desejo generalizado por crianças brancas e recém nascidas.

É importante ressaltar que o fato de a pesquisa ter sido realizada por

psicóloga que atua diretamente no setor de adoção do Juizado da Infância e da

Juventude de Vila Velha contribuiu para a produção das informações, de maneira

que a vivência profissional, longe de manter-se distante numa suposta e inatingível

neutralidade, enriqueceu a apresentação dos dados e seu tratamento com

elementos da própria experiência. O risco de distorção na manifestação de algumas

idéias, pelo receio dos entrevistados de que isso pudesse afetar a decisão final

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sobre adoção certamente existe, já que a pesquisadora tem um papel como

profissional em tal decisão. Por outro lado é evidente a dificuldade de encontrar

formas seguras de eliminar riscos desse tipo em qualquer investigação. Vale a pena

ressaltar o fato de que em todos os 21 casos incluídos na investigação, apesar de

terem sido incluídos por critério de diversidade, fica claro que não há razões

evidentes ou facilmente detectáveis para não autorizar a adoção. Em verdade, isso é

o que, de fato, aconteceu, mostrando que a ampliação dos horizontes técnicos e

jurídicos dos profissionais que atuam no processo decisório sobre adoção está se

consolidando.

Apesar de o número de pesquisas realizadas sobre adoção no Brasil ser

crescente, mostra-se necessária uma maior sistematização dos conhecimentos que

vêm sendo produzidos cotidianamente na prática profissional. Como afirmam Cassin

e Jacquemin (2001), o trabalho com adoção apresenta uma complexidade peculiar,

considerando-se aspectos culturais que permeiam o fenômeno, os mitos, a visão

social que se tem dessa prática e seus determinantes sócio-históricos na realidade

brasileira. Essa pesquisa visou contribuir para uma reflexão sobre a prática do

psicólogo frente às questões da adoção no contexto brasileiro, evidenciando a

necessidade de novos referenciais, atitudes e conceitos, a importância de não

perder de vista a abrangência da realidade, e de manter um olhar crítico sobre as

relações e dispositivos que permeiam sua atuação profissional. A atuação do

psicólogo judiciário, de um modo geral, fica restrita à perícia técnica, atrelado ao uso

de testes psicológicos e entrevistas para elaboração de laudos, com o objetivo de

auxiliar as decisões tomadas em juízo. Como afirma Koerner (2002), essa

participação no processo se dedica à produção de uma verdade, baseada na

competência técnica especializada, e essa concepção de produção de verdade é

especialmente inadequada para os profissionais das ciências humanas, como os

psicólogos. No que se refere à adoção o trabalho não é diferente, porém evidencia-

se cada vez mais a necessidade de se retirar o foco das atribuições da perícia e

colocá-las num patamar mais amplo que inclua a possibilidade de transformação das

posturas dos profissionais e dos interessados frente à adoção. Não podemos

desconsiderar, como ressalta Oliveira (2002), que o trabalho no Judiciário significa

um trabalho numa Instituição que lhe impõe certas normas e a sua cultura

institucional. Mas acreditamos que o psicólogo judiciário, assim como os outros

profissionais que lidam com a justiça, conscientes das relações de poder que

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permeiam seu trabalho, podem tornar-se agentes de mudança, podendo contribuir

para um processo de revisão de conceitos, valores e outros paradigmas.

Uma providência de grande interesse envolveria a divulgação ampla e

detalhada dos vários aspectos, experiências e inovações envolvidos no processo de

adoção, de forma a sinalizar claramente, para toda a sociedade, que tal processo é

cada vez mais acessível e menos preconceituoso. Alguns segmentos da população

não têm informações sobre como agir e que providências tomar até mesmo no caso

de filiação biológica – sendo evidente que tal desinformação é muito maior quando

está em jogo a adoção.

Um diagrama que sistematiza a trajetória implicada na adoção legal e

identifica fatores relacionados a ela, como o que apresentamos na abertura desses

comentários finais, pode ser a base para planejamento de divulgação que vise

ampliar conhecimentos, aumentar interesse e reduzir preconceitos. A maior

evidência de que a atuação do conjunto de profissionais envolvidos no processo de

adoção conseguiu implantar e difundir mudanças em tal processo se daria com o

aumento do contingente de interessados em adotar legalmente com uma visão mais

aberta e menos estereotipada sobre adoção, e com a incorporação a tal contingente

de pessoas e casais que hoje avaliam tal pretensão como inviável, por isso não se

candidatando.

Seria evidência relevante, também, a redução de adoções ilegais – não por

repressão, mas sim pela existência de mecanismos que contribuíssem no sentido de

facilitar a legalização de adoções decididas em circunstâncias que exigiram urgência

ou em circunstâncias de forte apelo emocional.

É claro que, do ponto de vista da organização de uma sociedade justa e

eqüitativa, a evidência mais almejada deve ser a da inexistência de crianças

abandonadas, mas essa é uma questão fundamental que escapa ao âmbito da

presente investigação.