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Norte Ciência, vol. 2, n. 1, p. 70-73 (2011) 70 A SETA DO TEMPO IRREVERSIVEL 1 Sergio Mascarenhas Membro Emérito da Academia Paraense de Ciências Parte 1 As ciências em geral e a Física em particular, também têm um processo de evolução. Isto acontece através da quebra de paradigmas, que são conceitos fundamentais, sedimentados até culturalmente. São, portanto, muito fortes e sólidos. Mudá-los é difícil e, como veremos, até perigoso para os cientistas que tentam mudá-los! Parece incrível, mas posso citar dois exemplos famosos ambos de físicos, em duas épocas distintas, separadas por séculos: Galileu Galilei e Ludwig Boltzman. Galileu quebrou o paradigma aristotélico e religioso ao mesmo tempo, que duravam há dois mil e quinhentos anos! E isso com apenas dois experimentos relativamente simples. O primeiro foi o da famosa Torre de Pisa, quando demonstrou que corpos de massas diferentes caiam ao mesmo tempo. Aristóteles dizia que os de maior massa cairiam mais rapidamente. No segundo, Galileu com sua luneta, mostrou que os céus não eram estáticos, fixos e que, em torno do planeta Júpiter existem satélites que se movem como a Lua em torno da Terra. Além disso, a Lua apresenta saliências montanhosas e vales, tudo muito semelhante à própria Terra! Para completar, afirmou que o Sol e não a Terra era o Centro do Sistema Planetário. Ora, estas visões eram heréticas, pois a poderosa Igreja Católica havia desde Santo Agostinho e São Thomaz de Aquino, adotado as doutrinas de Aristóteles (450 AC) como absolutas, isto é como dogmas da própria Igreja. Os achados de Galileu foram, portanto, considerados heréticos. Foi condenado pela Inquisição e perseguido impiedosamente. Séculos 1 Palestra dada na FAPEMIG, em Belo Horizonte, em 2010. Manteve-se a estrutura original do texto em duas partes apresentadas aqui em seqüência sob o mesmo título.

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Page 1: 05 A Seta do Tempo - aparaciencias.org · A SETA DO TEMPO IRREVERSIVEL1 Sergio Mascarenhas Membro Emérito da Academia Paraense de Ciências Parte 1 ... resto é história e muito

Norte Ciência, vol. 2, n. 1, p. 70-73 (2011)

70

A SETA DO TEMPO IRREVERSIVEL1

Sergio Mascarenhas Membro Emérito da Academia Paraense de Ciências

Parte 1

As ciências em geral e a Física em particular, também têm um processo de evolução.

Isto acontece através da quebra de paradigmas, que são conceitos fundamentais, sedimentados

até culturalmente. São, portanto, muito fortes e sólidos. Mudá-los é difícil e, como veremos, até

perigoso para os cientistas que tentam mudá-los! Parece incrível, mas posso citar dois exemplos

famosos ambos de físicos, em duas épocas distintas, separadas por séculos: Galileu Galilei e

Ludwig Boltzman.

Galileu quebrou o paradigma aristotélico e religioso ao mesmo tempo, que duravam há

dois mil e quinhentos anos! E isso com apenas dois experimentos relativamente simples. O

primeiro foi o da famosa Torre de Pisa, quando demonstrou que corpos de massas diferentes

caiam ao mesmo tempo. Aristóteles dizia que os de maior massa cairiam mais rapidamente. No

segundo, Galileu com sua luneta, mostrou que os céus não eram estáticos, fixos e que, em torno

do planeta Júpiter existem satélites que se movem como a Lua em torno da Terra.

Além disso, a Lua apresenta saliências montanhosas e vales, tudo muito semelhante à

própria Terra! Para completar, afirmou que o Sol e não a Terra era o Centro do Sistema

Planetário. Ora, estas visões eram heréticas, pois a poderosa Igreja Católica havia desde Santo

Agostinho e São Thomaz de Aquino, adotado as doutrinas de Aristóteles (450 AC) como

absolutas, isto é como dogmas da própria Igreja. Os achados de Galileu foram, portanto,

considerados heréticos. Foi condenado pela Inquisição e perseguido impiedosamente. Séculos

1 Palestra dada na FAPEMIG, em Belo Horizonte, em 2010. Manteve-se a estrutura original do texto em duas partes apresentadas aqui em seqüência sob o mesmo título.

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depois, outro cientista, Ludwig Boltzman, mostrou que o tempo, parâmetro fundamental para o

entendimento da natureza não é reversível, a seta do tempo tem uma direção privilegiada do

passado para o futuro! Essa é outra quebra de paradigma, desta vez, atingiu a própria

comunidade científica ancorada nas leis de Newton que, expressas matematicamente, implicam

na reversibilidade do tempo. Nas equações de Newton mudando-se menos t (-t) por mais t (+t)

não mudam sua validade e soluções, sendo, pois, reversíveis e equivalentes em relação à

variável tempo (t).

Passado e futuro de acordo com Newton, são simétricos. Determinismo total! Boltzman,

em fins do século XIX, pagou alto preço pela sua visão avançada por negar o paradigma

newtoniano. Acabou por suicidar-se, enforcando-se numa cidadezinha balneária, Duino, perto

de Trieste no Adriático, para onde tinha ido tentar sair da depressão que o abalara. Veio o

século XX e duas outras quebras de paradigmas ocorreram com a Teoria da Relatividade e com

a Mecânica Quântica. Mas, ambas as teorias com equações também simétricas em relação ao

tempo! Isto é substituindo-se menos t (-t) e mais t (+t) dão as mesmas soluções. A visão mais

correta veio no fim do séc. XX quando dois grandes cientistas, Lars Onsager e Ilya Prigogine,

mostraram que fora do equilíbrio térmico, o tempo é irreversível! Os dois nobelistas, a meu ver,

iluminaram o cenário da Natureza, com uma luz mais intensa de conhecimento do que as de

Newton, Einstein e Planck, criadores do determinismo, da relatividade e da teoria quântica.

Prigogine em particular, mostrou que a irreversibilidade da seta do tempo leva a conceitos ainda

mais amplos dos chamados sistemas complexos, de muitas partículas e enorme número de

variáveis, que será assunto de próxima crônica. Na ilustração minha e do Alfonso, represento as

duas grandes personalidades, Newton e Prigogine, com meu símbolo predileto do deus Janus,

bifronte, que mira o passado e o futuro, mas desta vez coroado pela seta assimétrica do tempo.

Termino esta crônica, ilustrando como a arte, através, por exemplo, de um gênio da literatura,

pode por suas intuições criativas, perceber com seu discurso mais livre, paralelo ao discurso

rigoroso da ciência, prever e já sentir esta quebra de paradigma da seta do tempo. Deixo que fale

Camões, pela tríade final de seu famoso soneto 311, sobre o tempo:

“co tempo tudo anda e tudo para;

Mas só aquele tempo que é passado

Co o tempo não se faz tempo presente”

Incrível, não é mesmo?! Juntar ciência e arte, a meu ver, aumenta a beleza de ambas!

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Parte II

Na minha crônica anterior, faltaram para maior entendimento do leitor leigo, algumas explicações,

que passo agora a expor, de maneira bem intuitiva e, portanto, sem muito rigor. O cronista que

escreve para cientistas não se preocupa muito com os conceitos elementares. Mas se a crônica é para

atingir um público alvo mais amplo, a exposição é mais difícil e requer flexibilidade no rigor. É o

que vou tentar, com algumas perguntas bem básicas, tipo dialógicas: Pergunta: O que é equilíbrio

térmico e porque tem a ver com o conceito de tempo? Resposta: Pense num líquido como água por

ex. numa panela de água sobre o fogão. Consideremos primeiramente o fogo apagado, temperatura

ambiente de uns 25 oC. Na panela, as moléculas da água estão se movendo para todos os lados e

direções. Mas nem todas têm a mesma velocidade. Entretanto as mais rápidas se chocando com as

mais lentas, acabam por criar uma velocidade média que corresponde à uma energia média que o

físico chama de energia média de movimento ou cinética. Se a água é aquecida obviamente esta

energia média aumenta. Porém nem todas as moléculas têm a mesma energia, algumas ainda estão

lentas, outras mais velozes, mas para cada temperatura há uma energia média. Com a temperatura da

panela constante acaba-se por ter o que se chama equilíbrio térmico, caracterizado pela tal energia

média e agora o ponto crucial quanto a conceito físico: uma distribuição de velocidades em torno da

média que é o que caracteriza o equilíbrio térmico. É provável que algumas moléculas estejam com

energia maior e estas podem até escapar do líquido e “voar” para fora, constituindo o que se chama

pressão de vapor acima do líquido. Se fosse álcool poder-se-ia até sentir o cheiro dessas moléculas

mais rápidas. Elas estão fora do equilíbrio! Se há muitas que saem e a temperatura do banho é alta,

diz-se que o novo sistema está fora do equilíbrio: moléculas voando por todos os lados, choques e

até encontros de muitas moléculas velozes que podem em certos casos até formarem novas

moléculas, pois as energias podem ser grandes a ponto de quebrá-las, provocando reações químicas

ou até fenômenos físicos novos não existentes no equilíbrio térmico. Os físicos e químicos falam

então em flutuações fora do equilíbrio, não linearidades e até na possibilidade de auto-organização

causadas por estas flutuações! Isto é fora do equilíbrio vale tudo até aparecimento de novos efeitos

espetaculares como figuras num líquido com duas componentes (pense em moléculas azuis e

vermelhas) que nunca se pensou que poderiam ser formadas, que começam a se auto-organizar! E

agora o máximo de ousadia: seria possível criar vida com estas flutuações?! Vida afinal é auto-

organização, porque não? Basta que entre as moléculas da tal flutuação fora do banho térmico haja

alguma auto-replicadora como o famoso RNA ou DNA e que os encontros nas flutuações durem um

tempo suficiente para elas reagirem! E pronto: eis uma reação em cadeia formada, auto-replicante e

podendo criar outras que por sua vez também entrem na dança, dança da vida, da reprodução, de

uma mensagem que se mantém e se multiplica. Bem se as moléculas rápidas voltassem ao banho

nada disso poderia acontecer. Portanto é fora do equilíbrio que ocorre a mágica das flutuações

levando à auto-organização. Pergunta – Mas o que tem o tempo a ver com tudo isso? Resposta –

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No fundo quando se tem milhões, bilhões, trilhões de partículas, moléculas a coisa muda, pois entra

a estatística da distribuição de energias, posições, velocidades e outras grandezas. É aí que entra o

conceito de irreversibilidade e, portanto, do tempo assimétrico. Vamos pensar numa pedra que cai

por efeito da gravidade. Bate numa mesa e transfere energia para as moléculas da mesa. Mas a pedra

transfere energia para bilhões, trilhões de moléculas da mesa. Agora a pergunta chave, fundamental:

qual a probabilidade da pedra subir à altura de onde foi solta? Alguém já viu uma pedra subir após

cair? A resposta é nunca se viu! Por quê? Porque para a pedra subir precisaria ganhar de novo a

energia que perdeu e isso significaria que todas as moléculas da mesa que se aqueceram,

COMBINASSEM de voltar ao mesmo tempo, retornando em suas trajetórias e se chocando contra a

pedra, com perfeita sincronização, empurrando-a para cima! Qual a probabilidade disso acontecer?

Praticamente nula, estatisticamente nunca ocorreu experimento em que a pedra subisse! Só se fosse

um milagre! Milagres não ocorrem na física, pois senão não haveria leis da física e a natureza seria

também um outro milagre: o do enigma absoluto! Não haveria ciência. Em suma quando se transfere

energia em calor (agitação térmica de muitas moléculas) o fenômeno inverso calor em energia não é

igualmente provável. Este é o famoso Segundo Principio da Termodinâmica, explicado

estatisticamente, que é a sua própria natureza. Daí nasce a origem da irreversibilidade do tempo! É

estatística, os fenômenos e as leis que os descrevem matematicamente, equações, não podem ser

simétricas em relação ao passado e futuro, pois senão não descrevem coisas tão elementares como a

pedra que cai e não volta sozinha ou para fechar ousadamente, nem a própria origem da auto-

organizarão e portanto da própria vida! O que Lars Onsager e Illya Prigogine fizeram e pelo que

receberam o Premio Nobel, foi exatamente escrever as leis da Termodinâmica fora do equilíbrio. O

resto é história e muito mais complexo para continuar nesta crônica. Mas prometo que outras virão

sobre o assunto e que têm a ver não apenas com física e química, mas também com sistemas

complexos, como biologia, finanças, ciências sociais e até filosofia da ciência e suas bases que é a

epistemologia ou teoria da natureza do próprio conhecimento. Aguardem...