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Norte Ciência, vol. 3, n. 1, p. 188-198 (2012) 188 Dalcídio reescreve o Chove Rosa Assis 1 A recente descoberta no espólio literário do escritor, hoje constituindo o acervo Dalcídio Jurandir na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, de um exemplar da primeira edição do romance Chove nos campos de Cachoeira, com o texto inteiramente revisto, corrigido, reestruturado e amplamente emendado pelo Autor, de próprio punho, nos permite afirmar sem qualquer dúvida nem exagero que Dalcídio literalmente reescreveu o Chove. Como é sabido, em 1940 o ainda desconhecido e inédito romancista paraense ganha o 1º prêmio do Concurso de Romances Vecchi-Dom Casmurro, promovido em conjunto respectivamente pela editora e o jornal homônimos, no Rio de Janeiro, com o primeiro e primordial romance que escreveu e que depois se tornaria o romance primígeno da série Extremos Norte: o assim inaugural, premiado e predestinado Chove nos campos de Cachoeira. A premiação lhe concedeu também a imediata publicação, logo no ano seguinte, 1941, pela própria Editora Vecchi. Dalcídio Jurandir publica o seu primeiro romance da série Extremo Norte: Chove nos campos de Cachoeira. A publicação desta obra deu ao Autor o prêmio Dom Casmurro. Somente trinta e cinco anos depois é lançada a segunda edição, aos cuidados da Editora Cátedra (1976), com algumas pequenas correções e alterações feitas pelo Autor. 1 Dra. Em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Projeto VALUNORTE, professora e membro do NDE do Curso de Letras e do Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia – UNAMA; Membro da Academia Paraense de Ciências (APC).

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Dalcídio reescreve o Chove Rosa Assis1

A recente descoberta no espólio literário do escritor, hoje constituindo o acervo

Dalcídio Jurandir na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, de um exemplar

da primeira edição do romance Chove nos campos de Cachoeira, com o texto

inteiramente revisto, corrigido, reestruturado e amplamente emendado pelo Autor, de

próprio punho, nos permite afirmar sem qualquer dúvida nem exagero que Dalcídio

literalmente reescreveu o Chove.

Como é sabido, em 1940 o ainda desconhecido e inédito romancista paraense

ganha o 1º prêmio do Concurso de Romances Vecchi-Dom Casmurro, promovido em

conjunto respectivamente pela editora e o jornal homônimos, no Rio de Janeiro, com o

primeiro e primordial romance que escreveu e que depois se tornaria o romance

primígeno da série Extremos Norte: o assim inaugural, premiado e predestinado Chove

nos campos de Cachoeira. A premiação lhe concedeu também a imediata publicação,

logo no ano seguinte, 1941, pela própria Editora Vecchi.

Dalcídio Jurandir publica o seu primeiro romance da série Extremo Norte:

Chove nos campos de Cachoeira. A publicação desta obra deu ao Autor o prêmio Dom

Casmurro.

Somente trinta e cinco anos depois é lançada a segunda edição, aos cuidados da

Editora Cátedra (1976), com algumas pequenas correções e alterações feitas pelo Autor.

1 Dra. Em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Projeto VALUNORTE, professora e membro do NDE do Curso de Letras e do Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia – UNAMA; Membro da Academia Paraense de Ciências (APC).

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Porém já em 1974, portanto antes mesmo de vir à luz a edição Cátedra, Dalcídio

mostrava-se decepcionado com o texto que iria sair (com base no da primeira edição),

uma vez que este apresentava inúmeras falhas não só revisionais como de mutilação de

passagens inteiras do romance, tornando a narrativa muitas vezes até mesmo

incompreensível2.

Tal decepção pode ser constatada pelo que diz Dalcídio nos excertos de duas

cartas, abaixo transcritos, que ele mandou na época a dois amigos seus, de Belém do

Pará: Maria de Belém Menezes e Cléo Bernardo, respectivamente:

Talvez seja lançada a 2º edição, este ano, do “Chove nos campos de Cachoeira”, embrião de toda a obra longa e inacabada. Não mexi no texto, a não ser esta e aquela palavra, deixo-o como está, bárbaro. (19/01/1974 - o grifo é nosso).

2 Falhas documentadas na Edição Crítica de Chove nos campos de Cachoeira, de Rosa Assis.

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Parece que vai sair a 2ª edição do “Chove nos campos de Cachoeira”. Não mexi no texto, pois se fosse mexer seria um estrago. (29/01/1974 – o grifo é nosso).

Como se vê, e se lê expressamente, Dalcídio em apenas dez dias3 extravasa mais

de uma vez sua insatisfação com o texto da futura segunda edição do Chove, já então no

prelo. Mas nessa ocasião, embora consciente das falhas e defeitos, preferiu não mexer

no texto original (“a não ser esta e aquela palavra), deixando-o como estava (“bárbaro”),

para não ter de fazer “um estrago”, isto é, depreende-se, muitas e tantas modificações

que o tempo necessário para fazê-las seria muito maior e o texto bem outr,

inviabilizando assim a nova edição já no prelo, ou a ser em breve publicada.

Vinte dois anos depois de lançada a referida edição Cátedra (sem maiores

alterações e até novas falhas), portanto já muito depois da morte do Autor, e no afã de

corrigir as falhas e dar ao público um texto corrigido e acurado, a editora EDUNAMA, da

Universidade da Amazônia, publica em Belém a Edição crítica (1998) do Chove, por

nós preparada mediante o cotejo integral e rigoroso das duas primeiras edições, tidas por

nós até então como lições puras, tanto que constituíram o estema de nosso estudo

crítico, porque publicadas em vida do Autor, com a sua supervisão e autorização, o que

nos permitia então, portanto, considerar nelas consistentes por completo e em definitivo,

a linguagem e o pensamento, a letra e o espírito do Autor, com vistas a estabelecermos,

pela minuciosa colação de ambas e mais outros procedimentos críticos adequados, o

texto final acurado daquele romance, a partir daquelas duas lições textuais puras, as

únicas até então conhecidas. Assim, procuramos com base na primeira edição, nosso

texto-fonte, corrigir as falhas reconhecidamente identificadas na segunda edição. Esse

trabalho, elaborado à luz da crítica textual, se fez acompanhar de normas editoriais e de

um aparato histórico-descritivo das edições, bem como de um estudo das variantes

textuais entre ambas.

Agora, no ano de 2009, por feliz coincidência justamente no transcurso do

centenário de nascimento de Dalcidio Jurandir, tendo nós recentemente tomado

conhecimento da existência do mencionado exemplar da primeira edição inteiramente 3 Vide data das correspondências.

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‘emendado’ pelo Autor, com sua própria mão e sua própria letra, resolvemos, com

autorização dos herdeiros do espólio, mandar fotografar todo o livro no próprio acervo

da Casa de Rui Barbosa4, para fazermos, agora sim, em definitivo, um novo estudo e

estabelecimento crítico do texto do Chove. Obtivemos assim, em completo e perfeito

fac símile, o inteiro teor daquele exemplar e suas emendas todas, página a página, como

um documento filológico integral e autêntico, que de fato o é. Com esse material em

mãos, pudemos detidamente analisá-lo e avaliar a extensão e a importância das

alterações aí introduzidas pelo Autor praticamente em todo o texto do romance.(em

torno de 95% das páginas) E, assim sendo e tendo esquadrinhado o material em nossas

mãos,resolvemos também, com grande surpresa e satisfação de nossa parte, tornar

público de imediato, através deste artigo5, o que o nosso exigente e minucioso escritor

quis afinal fazer e realmente fez, à larga e a fundo, com o texto inicial do seu

consagrado Chove, ou seja: não apenas o emendou e modificou amplamente, mas sim

verdadeiramente o reescreveu de próprio punho, ao longo e à margem de um velho

exemplar da primeira edição, conforme ilustramos com diversas fotocópias no artigo da

Revista Asas da Palavra, Unama, já referida em nota.

Antes, porém, de darmos prosseguimento a esta divulgação, queremos deixar aqui

registrado que, de agora em diante, isto é, divulgada esta descoberta e a extensão das

alterações que traz à tona, se alguma nova edição, seja acadêmica ou comercial, do

texto do “novo” Chove, vier a ser feita, essa possível edição precisará entretanto,

necessariamente, fazer-se acompanhar de uma introdução ou apresentação crítica, por

mais simples e resumida que seja, mostrando os procedimentos narrativos e o

comportamento linguístico e estilístico agora adotados pelo escritor em relação ao texto

original do romance, e explicando ou justificando a montagem de páginas ou de

passagens deixadas menos claras ou mesmo complicadas no emaranhado de emendas e

modificações feitas às margens e manuscritas pelo Autor, de modo que os leitores da

eventual reedição do livro (assim refundida e reescrita) possam entender e aproveitar o

que se modificou no novo texto do velho romance. Em outras palavras, doravante não

mais poderão ser reeditados nem o texto da primeira edição (Vecchi), nem o da segunda

4 Para tanto, e com a devida e prestante autorização dos filhos de Dalcídio, contratamos um fotógrafo profissional, competente, sério, cuidadoso, o italiano radicado no Rio de Janeiro, Pedro Mena, para fotografar in loco, e com toda a necessária técnica, o livro inteiro tal como ali conservado. www.menaphotography.com, 5 Revista Asas da Palavra, Unama, número especial comemorativo ao centenário de nascimento de Dalcídio Jurandir, em via de publicação. No portal UNAMA (www.unama.br) há também uma divulgação prévia do mencionado artigo nosso, de caráter informativo-ilustrativo.

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(Cátedra), nem mesmo o da edição crítica (EDUNAMA6 ficando esta válida apenas como

fonte de consulta para o cotejo que faz das duas primeiras edições, inclusive para subsidiar

qualquer nova edição do romance a ser feita com base na última lição integral do texto deixada

pelo Autor no referido exemplar da primeira edição, como já dissemos, por ele inteiramente

revisto e emendado). Pois que, como ensina a Comissão Machado de Assis, na edição

crítica do romance Memórias póstumas de Brás Cubas: – o texto de base, em princípio

tanto pode ser um manuscrito quanto uma das edições em vida. (p.60). E esse texto

reescrito é, indiscutivelmente, a última versão do romance em vida do Autor novo

texto esse, certamente, que Dalcídio gostaria de que viesse a ser publicado como a

verdadeira terceira edição do romance, revista, reestruturada e emendada por ele

mesmo, com sua própria letra, ‘de fio a pavio’, literalmente.

Por conseguinte, feita essa observação necessária e oportuna, doravante só

faremos referência ao mencionado exemplar da edição Vecchi, emendado pelo Autor,

pois foi nele que Dalcídio registrou todas as alterações que decidiu fazer ao texto

original do romance. Senão vejamos, em síntese, algumas das principais modificações

introduzidas.

1. A narrativa inicia à página 13 e se estende até à 387; destas páginas todas, e tantas,

apenas dezenove permaneceram sem qualquer alteração; as demais 368 páginas do

romance foram alteradas em maior ou menor grau, a maioria em grande parte ou em

parcelas significativas, sendo que algumas foram mesmo excluídas ou integralmente

substituídas. Portanto, nessa revisão radical o Autor modificou nada mais nada

menos que 95% do texto original do Chove.

2. Houve também transposição de 3 páginas inteiras de um capítulo para outro, a

saber: as três páginas iniciais do capítulo VII – 30$000, onde andais – e mais a

metade da quarta foram inseridas no final do capítulo VI. Como se pode ver, na

fotocópia à esquerda, há um clipe mostrando o recorte (p. 175); a foto da direita

inicia na metade da página 178, vendo-se inclusive o título do capítulo copiado à

mão. E na foto central aparece o recorte feito pelo Autor para deslocar as partes

referidas acima.

6 Na recomposição do texto do Chove, a partir do referido exemplar emendado pelo Autor, recorremos às páginas dessa Edição Crítica para suprirem as desaparecidas no dito exemplar da Vecchi, conforme mais adiante veremos.

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3. O capítulo XIX, justamente aquele originalmente intitulado Chove nos campos de

Cachoeira e que dera

o título ao romance,

foi excluído como

capítulo autônomo

(excluindo-se

também o respectivo

título) e transposto,

bastante modificado,

para o final do

capítulo XVIII. –

Bem comum cercou

os campos –;

reduzindo-se,

portanto, em 1 (um) capítulo o texto do romance. Para indicar isso, o Autor riscou

inteira e literalmente não só o título como a página inicial daquele capítulo e

continuou a reescrevê-lo à mão, como já o vinha fazendo desde a página anterior.

Agora o livro só tem dezenove capítulos, e não mais vinte como na primeira e

demais publicações existentes.

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4. Houve também substituição, radicalmente, dos antigos títulos de três capítulos:

II – Irene, angústia, solidão

VI – Casa de Seu Cristóvão7 A curadeira e o doente

Funerais do sétimo noivado

XIV – Irene assim é mais amada

Um tiro

5. Alteração da forma verbal no título do capítulo XVII: o

passado dá lugar ao presente; ‘era’ passa a ser ‘é’.

XVII – A saleta era o universo

7 Este foi primeiramente substituído por Ao pé da noiva (depois riscado pelo Autor) e, em seguida, novamente mudado para o que acima aparece.

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6. Substituição, ao longo da narrativa, do nome do personagem Ulisses,

que passa a Lício.

7. Constata-se que, provavelmente, ocorreu o desaparecimento de oito páginas do

exemplar, sendo que o Autor, ao final da página 35, escreveu o número 33, da

mesma sorte que ao final da 39 escreveu 36 e 37. Isto

nos parece indicar que tais páginas (33, 36 e 37) foram

inicialmente assinaladas pelo Autor como a serem

modificadas, mas ele não chegou a alterá-las, como

também não as devolveu para o interior do romance, e

acabaram se perdendo (note-se que o exemplar em causa

apresenta-se bastante danificado, com muitas folhas

soltas, ou presas por clipe). As páginas 40, 41, 44, 45 e 48 são as outras das oito

que também desapareceram, sem que se saiba a razão disso, ou simplesmente se

extraviaram.

8. Houve exclusão dos dois últimos parágrafos da página 345; na 346 ficou

somente o último parágrafo, que todavia foi recortado e deslocado para o início

da folha 347.

A página 348 foi totalmente excluída.

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9. Solto, no interior do exemplar,

há um curto trecho datilografado,

de dois parágrafos, certamente

destinado a ser inserido na

narrativa, mas sem indicação de

onde inseri-lo. Depois de muita

leitura e releitura, análise e

comparação, discutindo inúmeras vezes com o professor e cultor da obra dalcidiana,

Paulo Nunes8 e com o professor Pedro Pinho estudioso leitor de Dalcídio, chegamos

enfim à convicção de que deveriam esses dois parágrafos se inserir na parte inicial do

atual capítulo XIX, (antigo XX), constituindo aí precisamente o terceiro parágrafo deste

capítulo único no qual encontramos consonância de conteúdo e expressão com aquele

novo trecho datilografado (que é aliás, na divagação do personagem Eutanázio, uma

comovida evocação de Irene, protagonista desse capítulo final, tanto que este foi

mantido pelo Autor, porém agora como último capítulo do livro, com o mesmo título

anterior: Irene é o princípio do mundo).

10. . Há três páginas manuscritas facilmente identificadas e inseridas, uma vez

que o Autor riscou a página inicial (271) do capítulo XIII e a reescreveu em papel solto

e a colocou na ordem sucessiva das páginas. Essas três páginas também apresentam

grandes alterações conteudísticas e estilísticas.

8 Aliás, foi Paulo Nunes quem primeiro descobriu, entre nós do Pará, o exemplar reescrito por Dalcídio Jurandir, ao visitar a Fundação Casa de Rui Barbosa, por ocasião da instalação do Instituto Dalcídio Jurandir, quando fotografou duas páginas do Chove com alterações; páginas à mostra dentro de uma montra do acervo dalcidiano. Posteriormente, teve a gentileza de me presentear em fotocópia essas duas páginas, o que muito lhe agradeço pela honestidade, pelo coleguismo e a elegância do gesto.

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Curiosamente, no caso de três páginas específicas (e aqui apenas documentamos uma, a

46, as demais são 34 e 42) Dalcídio as assinalou com riscos superficiais como se

devessem ser eliminadas ou substituídas, mas, em outra ocasião, insere no exemplar as

mesmas páginas, já sem aqueles traços, o que pode denotar uma incerteza de que tais

páginas deveriam ou não ser excluídas ou alteradas, como se vê abaixo:

Outro aspecto importante, no caso, é que assim fica evidenciado que o Autor terá

trabalhado com mais de um exemplar do livro para poder assinalar ou cortar e recortar

trechos a serem deslocados ou transpostos, conforme já antes mostramos.

Como se depreende desta breve informação, são inúmeras e, muitas vezes,

radicais as alterações que Dalcídio Jurandir fez de próprio punho nesse exemplar da

edição Vecchi, num trabalho ao mesmo tempo artesanal e poético, estrutural e

estilístico, tornando a sua narrativa mais fluente, mais enxuta (menos discursiva), mais

peculiar e mais próxima da linguagem falada, da “fala caboca” mesmo, e assim mais

densa, mais forte, e mais natural ou regional, afeiçoando mais e polindo-a em diversos

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aspectos o seu estilo tão pessoal e singular, de escritor marajoara nativo, autêntico,

genuíno, como só ele soube ser.

Não resta, pois, a menor dúvida de que este seria o inteiramente revisto e

aprimorado texto do romance que o Autor gostaria de ter publicado ainda em vida,

como sua versão definitiva. Mas, provavelmente, como os seus demais romances

vieram surgindo e saindo quase que em série, não teve ele tempo nem meios para que

este novo Chove, tão ampla e minuciosamente reescrito, fosse em terceira e tão

modificada edição republicado. Esperemos que o desejo do cioso escritor venha a ser

atendido, com os devidos critérios, cuidados e esmeros que uma tal reedição, e de um

livro tão marcante e importante, não apenas merece mas reclama.

Referências JURANDIR, Dalcídio. Chove nos campos de Cachoeira. Rio de Janeiro, Vecchi, 1941. _______. Edição crítica de Chove nos campos de Cachoeira / Rosa Assis – Belém: UNAMA,1998. Nota: Parte deste trabalho foi aproveitada como Apresentação da nova edição (revista com essas emendas de próprio punho, feitas pelo Autor) do romance Chove nos campos de Cachoeira, recentemente publicada pela Editora 7Letras, Rio de Janeiro, 2011 em parceria editorial com a Casa de Cultura Dalcídio Jurandir.