04_06_2011 1a. pensar_et_especial tabloide_9

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9 Pensar Fale com o editor: José Roberto Santos Neves - [email protected] A GAZETA Vitória (ES), 04 de junho de 2011 VANGUARDA. Cenas de “O segredo de seus olhos”, de Juan José Campanella, e de “A menina santa”, de Lucrecia Martel: projeção internacional para um cinema em ascensão CINEMA. Jornalista e pesquisadora analisa a nova e talentosa safra da ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- produção argentina, marcada pelo apuro técnico e roteiros delicados ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- O segredo dos hermanos os anos 90, a Argentina assistiu a sua economia afundar em meio à hiperinflação, ao desemprego e à instabilidade política. Mas a grave crise econô- mica que desestruturou a socieda- de portenha gerou ao menos um fi- lho brilhante: o chamado Novo Ci- nema Argentino. A exemplo do tango, que conver- teu em rigorosa estética a melanco- lia portenha por meio de uma série de movimentos corporais, o Novo Cinema Argentino se apega ao apu- ro técnico dos movimentos de câ- merapararevelarroteirosdelicados e diretamente mergulhados nos costumes da sociedade. Nos princi- pais festivais de cinema do mundo, setornaramfrequentesosnomesde LucreciaMartel,PabloTrapero,Da- niel Burman, Juan José Campanella, Marcelo Piñeyro, entre outros. Es- ses nomes representam produções muito diferentes entre si, mas tra- zem o traço contemporâneo que congrega temas herdados do con- texto político-econômico do país: o indivíduo, o núcleo familiar, a ques- tão da identidade e a classe média. Há uma motivação existencia- lista no Novo Cinema Argentino. A preocupação é filmar sutilezas que representem signos da identi- dade de um país devastado pela crise. Em “O pântano”, longa de es- treia de Martel, pode-se enxergar, por meio de uma cena que mostra o debater de uma vaca atolada na lama, todo um sentimento de im- potência de uma classe média es- vaziada de ação. A crítica social fica resguardada pela subjetividade; a real crise está no personagem, como o Ariel de Daniel Burman, em “Esperando o Messias” (2000), “O abraço parti- do” (2004) e “As leis de família” (2006). Há aqui um interesse em fazer um retrato do país comenta- do pelas escolhas individuais. Em uma inevitável comparação com o cinema contemporâneo bra- sileiro – que passou pela mesma se- ca cinematográfica que o país vizi- nho nos anos 90 – há que se notar que a produção argentina evoluiu se recuperando muito mais rápido (ou ao menos em maior escala). Se no Brasil, o Cinema da Retomada iniciou um movimento que viria desencadear a era Globo Filmes co- mo a mais bem-sucedida da nossa cinematografia, na Argentina fo- ram os estímulos do Instituto Na- cional de Cinema e Artes Audiovi- suais (INCAA), junto a uma multi- A NOVA GERAÇÃO DE CINEASTAS ARGENTINOS Carolina Ruas é jornalista, pesquisadora de cinema e trabalha com produção cultural na coordenação da comunicação do Fora do Eixo-ES. carolina.ruasp@ gmail.com N plicação de escolas de cinema, os responsáveis pelo surgimento des- sa geração que acumula prêmios. Com a criação de uma lei que co- bra taxa sobre a bilheteria dos cine- mas, a venda de DVDs e a publici- dade da TV, foi instituído um mode- lo de fomento à produção nacional que hoje conta com uma rede de sa- las de exibição, além das leis de in- centivos e cotas de tela. A produção saltou de 24 filmes lançados em 1997, para 69 só em 2004, sendo que mais dametadedosdiretoressãoestrean- tes recém-saídos da universidade. O resultado dessas políticas são filmes e diretores premiados nos principais festivais do mundo, co- mo “O Segredo de seus olhos” (2009), que rendeu o Oscar de Me- lhor Filme Estrangeiro em 2010 para Juan José Campanella. Enquanto na Argentina o foco está no cotidiano do indivíduo, o ci- nema brasileiro (com exceções) tentacomporumpaineldasocieda- de em torno de uma teoria moral: o crime organizado, a polícia, a favela são temas de produções que que- rem demonstrar um quadro, mas só alcançam um julgamento moral de um ângulo distanciado da questão. Para o Novo Cinema Argentino, opersonagemcriaocontexto;noci- nema brasileiro, o contexto cria o personagem. E enquanto o especta- dordecinemaformaispersonagem do que contexto, os portenhos con- tinuam uns passos à frente. Daniel Burman (foto). Um dos mais jovens representantes do novo cinema argentino, também é dos mais reconhecidos internacionalmente. Os filmes de Burman como “O abraço partido” (2004) e “Ninho vazio” (2008), entre outros, versam sobre o sentimento familiar em diversas instâncias. Lucrecia Martel. Martel surge para o cinema argentino e internacional revelando a natureza da sociedade argentina. O premiado filme de estreia, “O pântano” (2001), é um tratado sobre as relações de classe do país, espelhando o vazio do núcleo familliar de uma classe média em crise. Os costumes da sociedade portenha voltam a ser explorados em “A menina santa” (2004) e “A mulher sem cabeça” (2008). Juan José Campanella. Com “O segredo de seus olhos” (2009), Juan José Campanella ganhou um Oscar e ficou internacionalmente conhecido por um melodrama bem dosado com elementos de humor e policial. Antes, porém, ele dirigiu “O filho da noiva” (2001), outro sucesso do cinema argentino que foca nas relações interpessoais para refletir sentimentos universais em época de crise. Pablo Trapero. Pablo Trapero costuma fazer cinema com histórias acessíveis e universais e ao mesmo tempo traz uma profunda melancolia. “Família rodante” (2004) faz esse retrato com precisão, utilizando atores amadores em uma viagem que revela as fissuras do relacionamento familiar. Vale destacar ainda “Mundo Grua” (1999) e “Leonera” (2008).

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VANGUARDA. Cenasde“Osegredodeseusolhos”,deJuanJoséCampanella,ede“Ameninasanta”,deLucreciaMartel:projeçãointernacionalparaumcinemaemascensão AGAZETAVitória(ES),04dejunhode2011 ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Falecomoeditor: José[email protected]

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9PensarFale com o editor:José Roberto Santos Neves - [email protected] A GAZETA Vitória (ES), 04 de junho de 2011

VANGUARDA. Cenas de “O segredo de seus olhos”, de Juan José Campanella, e de “A menina santa”, de Lucrecia Martel: projeção internacional para um cinema em ascensão

CINEMA. Jornalista e pesquisadora analisa a nova e talentosa safra da----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

produção argentina, marcada pelo apuro técnico e roteiros delicados----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

O segredo dos hermanos

os anos 90, a Argentinaassistiu a sua economia

afundar em meio à hiperinflação,ao desemprego e à instabilidadepolítica. Mas a grave crise econô-mica que desestruturou a socieda-deportenhagerouaomenosumfi-lho brilhante: o chamado Novo Ci-nema Argentino.

Aexemplodotango,queconver-teuemrigorosaestéticaamelanco-lia portenha por meio de uma sériede movimentos corporais, o NovoCinemaArgentinoseapegaaoapu-ro técnico dos movimentos de câ-merapararevelarroteirosdelicadose diretamente mergulhados noscostumesdasociedade.Nosprinci-pais festivais de cinema do mundo,setornaramfrequentesosnomesdeLucreciaMartel,PabloTrapero,Da-nielBurman,JuanJoséCampanella,Marcelo Piñeyro, entre outros. Es-ses nomes representam produçõesmuito diferentes entre si, mas tra-zem o traço contemporâneo quecongrega temas herdados do con-texto político-econômico do país: oindivíduo,onúcleofamiliar,aques-tão da identidade e a classe média.

Há uma motivação existencia-lista no Novo Cinema Argentino.A preocupação é filmar sutilezasquerepresentemsignosda identi-dade de um país devastado pelacrise.Em“Opântano”,longadees-treia de Martel, pode-se enxergar,por meio de uma cena que mostrao debater de uma vaca atolada na

lama, todo um sentimento de im-potência de uma classe média es-vaziada de ação.

Acríticasocial ficaresguardadapela subjetividade; a real crise estáno personagem, como o Ariel deDaniel Burman, em “Esperando oMessias” (2000), “O abraço parti-do” (2004) e “As leis de família”(2006). Há aqui um interesse emfazer um retrato do país comenta-do pelas escolhas individuais.

Em uma inevitável comparaçãocomocinemacontemporâneobra-

sileiro–quepassoupelamesmase-ca cinematográfica que o país vizi-nho nos anos 90 – há que se notarque a produção argentina evoluiuse recuperando muito mais rápido(ou ao menos em maior escala). Seno Brasil, o Cinema da Retomadainiciou um movimento que viriadesencadearaeraGloboFilmesco-mo a mais bem-sucedida da nossacinematografia, na Argentina fo-ram os estímulos do Instituto Na-cional de Cinema e Artes Audiovi-suais (INCAA), junto a uma multi-

A NOVA GERAÇÃO DE CINEASTAS ARGENTINOS

Carolina Ruasé jornalista,pesquisadora decinema e trabalhacom produçãocultural nacoordenação dacomunicação doFora do [email protected]

N plicação de escolas de cinema, osresponsáveis pelo surgimento des-sa geração que acumula prêmios.

Comacriaçãodeumaleiqueco-bra taxa sobre a bilheteria dos cine-mas, a venda de DVDs e a publici-dadedaTV,foiinstituídoummode-lo de fomento à produção nacionalquehojecontacomumarededesa-las de exibição, além das leis de in-centivos e cotas de tela. A produçãosaltoude24filmeslançadosem1997,para 69 só em 2004, sendo que maisdametadedosdiretoressãoestrean-tes recém-saídos da universidade.

Oresultadodessaspolíticassãofilmes e diretores premiados nosprincipais festivais do mundo, co-mo “O Segredo de seus olhos”(2009),querendeuoOscardeMe-lhor Filme Estrangeiro em 2010para Juan José Campanella.

Enquanto na Argentina o focoestánocotidianodoindivíduo,oci-nema brasileiro (com exceções)tentacomporumpaineldasocieda-de em torno de uma teoria moral: ocrimeorganizado,apolícia, a favelasão temas de produções que que-remdemonstrarumquadro,massóalcançam um julgamento moral deum ângulo distanciado da questão.

Para o Novo Cinema Argentino,opersonagemcriaocontexto;noci-nema brasileiro, o contexto cria opersonagem.Eenquantooespecta-dordecinemaformaispersonagemdoquecontexto,osportenhoscon-tinuam uns passos à frente.

Daniel Burman (foto). Um dos maisjovens representantes do novo cinemaargentino, também é dos maisreconhecidos internacionalmente. Osfilmes de Burman como “O abraçopartido” (2004) e “Ninho vazio” (2008),entre outros, versam sobre o sentimentofamiliar em diversas instâncias.

Lucrecia Martel. Martel surge para ocinema argentino e internacional revelando anatureza da sociedade argentina. O premiadofilme de estreia, “O pântano” (2001), é umtratado sobre as relações de classe do país,espelhando o vazio do núcleo familliar de umaclasse média em crise. Os costumes dasociedade portenha voltam a ser exploradosem “A menina santa” (2004) e “A mulher semcabeça” (2008).

Juan José Campanella. Com “O segredode seus olhos” (2009), Juan José Campanellaganhou um Oscar e ficou internacionalmente

conhecido por um melodrama bem dosadocom elementos de humor e policial. Antes,porém, ele dirigiu “O filho da noiva” (2001),outro sucesso do cinema argentino que focanas relações interpessoais para refletirsentimentos universais em época de crise.Pablo Trapero. Pablo Trapero costuma fazercinema com histórias acessíveis e universais eao mesmo tempo traz uma profundamelancolia. “Família rodante” (2004) faz esseretrato com precisão, utilizando atoresamadores em uma viagem que revela asfissuras do relacionamento familiar. Valedestacar ainda “Mundo Grua” (1999) e“Leonera” (2008).

Documento:Terceiro_04_06_2011 1a. PENSAR_ET_Especial Tabloide_9.PS;Página:1;Formato:(277.64 x 315.74 mm);Chapa:Composto;Data:03 de Jun de 2011 13:48:52