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Capítulo 3 Filtração Glomerular Antonio Carlos Seguro e Luis Yu DETERMINANTES DA FILTRAÇÃO GLOMERULAR FILTRAÇÃO GLOMERULAR POR NEFRO REGULAÇÃO HORMONAL DA FILTRAÇÃO GLOMERULAR PERMEABILIDADE SELETIVA GLOMERULAR Os rins recebem normalmente 20% do débito cardíaco, o que representa um fluxo sanguíneo de 1.000 a 1.200 ml/ min para um homem de 70-75 kg. Este alto fluxo é ainda mais significativo se considerado pelo peso dos rins, cerca de 300 gramas. Assim, o fluxo sanguíneo por grama de rim é de cerca de 4 ml/min, um fluxo 5 a 50 vezes maior que em outros órgãos. Este sangue que atinge o rim passa ini- cialmente pelos glomérulos, onde cerca de 20% do plasma é filtrado, totalizando uma taxa de filtração glomerular de 120 ml/min ou 170 litros/dia. Os estudos de micropunção mostraram que o líquido filtrado tem composição iônica e de substâncias cristalóides (glicose, aminoácidos etc.) idên- tica ao plasma, porém sem a presença de elementos figu- rados do sangue (hemácias, leucócitos, plaquetas) e com quantidades mínimas de proteínas e macromoléculas, constituindo-se, portanto, em um ultrafiltrado do plasma. DETERMINANTES DA FILTRAÇÃO GLOMERULAR A passagem de água e moléculas através do capilar glo- merular é governada pelas mesmas forças que atuam em qualquer outro capilar do organismo. Tomando-se um determinado ponto do capilar glome- rular, o ritmo de ultrafiltração (Jv) neste local é dado pela equação: Jv K (P ) HIPERFILTRAÇÃO GLOMERULAR MEDIDA DA FILTRACÃO GLOMERULAR BIBLIOGRAFIA SELECIONADA ENDEREÇO RELEVANTE NA INTERNET onde K é o coeficiente de permeabilidade hidráulica do capilar glomerular; P é a diferença entre a pressão hidros- tática do capilar glomerular (Pcg) e a pressão hidrostática do fluido da cápsula de Bowman, que é igual à pressão intratubular (PT); é a diferença entre a pressão oncóti- ca do capilar glomerular (cg), que é uma força que se opõe à ultrafiltração, e a pressão oncótica do fluido da cápsula de Bowman, esta última igual a zero, uma vez que este flui- do é um ultrafiltrado, portanto, isento de proteínas. Assim, a equação pode ser estendida para: Jv K (Pcg PT cg), onde Pcg PT cg é igual à pressão de ultrafiltração (Puf). Com a descoberta de uma raça mutante de ratos Wistar (ratos Wistar de Munique), que apresentam glomérulos na superfície renal, portanto, acessíveis à micropunção, foi possível fazer medidas diretas da pressão capilar glome- rular e estimar todos os determinantes da ultrafiltração. Desta forma, a pressão capilar glomerular, em condi- ções de hidropenia, tem um valor de 45 mmHg e se man- tém praticamente constante ao longo do capilar glomeru- lar. A pressão intratubular é em torno de 10 mmHg. A pressão oncótica no início do capilar glomerular é de 20 mmHg, sendo igual à pressão oncótica da artéria renal. À medida que vai havendo saída de água ao longo do capi- lar glomerular, aumenta a concentração de proteína intra- capilar, traduzindo-se por uma pressão oncótica mais ele- vada (Fig. 3.1). A determinação direta da pressão oncóti-

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Page 1: 03 - Filtração glomerular

Capítulo

3Filtração Glomerular

Antonio Carlos Seguro e Luis Yu

DETERMINANTES DA FILTRAÇÃO GLOMERULAR

FILTRAÇÃO GLOMERULAR POR NEFRO

REGULAÇÃO HORMONAL DA FILTRAÇÃO GLOMERULAR

PERMEABILIDADE SELETIVA GLOMERULAR

Os rins recebem normalmente 20% do débito cardíaco,o que representa um fluxo sanguíneo de 1.000 a 1.200 ml/min para um homem de 70-75 kg. Este alto fluxo é aindamais significativo se considerado pelo peso dos rins, cercade 300 gramas. Assim, o fluxo sanguíneo por grama de rimé de cerca de 4 ml/min, um fluxo 5 a 50 vezes maior queem outros órgãos. Este sangue que atinge o rim passa ini-cialmente pelos glomérulos, onde cerca de 20% do plasmaé filtrado, totalizando uma taxa de filtração glomerular de120 ml/min ou 170 litros/dia. Os estudos de micropunçãomostraram que o líquido filtrado tem composição iônica ede substâncias cristalóides (glicose, aminoácidos etc.) idên-tica ao plasma, porém sem a presença de elementos figu-rados do sangue (hemácias, leucócitos, plaquetas) e comquantidades mínimas de proteínas e macromoléculas,constituindo-se, portanto, em um ultrafiltrado do plasma.

DETERMINANTES DAFILTRAÇÃO GLOMERULAR

A passagem de água e moléculas através do capilar glo-merular é governada pelas mesmas forças que atuam emqualquer outro capilar do organismo.

Tomando-se um determinado ponto do capilar glome-rular, o ritmo de ultrafiltração (Jv) neste local é dado pelaequação:

Jv � K (�P � ��)

HIPERFILTRAÇÃO GLOMERULAR

MEDIDA DA FILTRACÃO GLOMERULAR

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

ENDEREÇO RELEVANTE NA INTERNET

onde K é o coeficiente de permeabilidade hidráulica docapilar glomerular; �P é a diferença entre a pressão hidros-tática do capilar glomerular (Pcg) e a pressão hidrostáticado fluido da cápsula de Bowman, que é igual à pressãointratubular (PT); �� é a diferença entre a pressão oncóti-ca do capilar glomerular (�cg), que é uma força que se opõeà ultrafiltração, e a pressão oncótica do fluido da cápsulade Bowman, esta última igual a zero, uma vez que este flui-do é um ultrafiltrado, portanto, isento de proteínas. Assim,a equação pode ser estendida para:

Jv � K (Pcg � PT � �cg),

onde Pcg � PT � �cg é igual à pressão de ultrafiltração(Puf).

Com a descoberta de uma raça mutante de ratos Wistar(ratos Wistar de Munique), que apresentam glomérulos nasuperfície renal, portanto, acessíveis à micropunção, foipossível fazer medidas diretas da pressão capilar glome-rular e estimar todos os determinantes da ultrafiltração.

Desta forma, a pressão capilar glomerular, em condi-ções de hidropenia, tem um valor de 45 mmHg e se man-tém praticamente constante ao longo do capilar glomeru-lar. A pressão intratubular é em torno de 10 mmHg. Apressão oncótica no início do capilar glomerular é de 20mmHg, sendo igual à pressão oncótica da artéria renal. Àmedida que vai havendo saída de água ao longo do capi-lar glomerular, aumenta a concentração de proteína intra-capilar, traduzindo-se por uma pressão oncótica mais ele-vada (Fig. 3.1). A determinação direta da pressão oncóti-

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capítulo 3 31

ca do capilar glomerular ao nível da arteríola eferente,através de ultramicrométodo, revela uma pressão em tor-no de 35 mmHg.

A pressão de ultrafiltração pode, então, ser calculada emdois pontos:

Puf no início do capilar glomerular � 45 mmHg �10 mmHg � 20 mmHg � 15 mmHg.

Puf no fim do capilar glomerular � 45 mmHg � 10mmHg � 35 mmHg � 0 mmHg.

A esta condição observada em ratos e macacos, em quea pressão de ultrafiltração chega a zero no fim do capilarglomerular, chama-se de equilíbrio de pressão de filtração.

A pressão de filtração, nesta condição de equilíbrio, nãopode ser calculada, pois poderia ser 0 em qualquer ponto

intermediário do capilar glomerular. A Fig. 3.2 mostra duasdas infinitas possibilidades de valores da Puf na condiçãode equilíbrio.

Pontos-chave:

• A pressão capilar glomerular é uma forçaque favorece a filtração glomerular

• A pressão intratubular e a pressão oncóticado capilar glomerular são forças que seopõem à filtração

• A filtração glomerular depende dapermeabilidade do capilar glomerular

FILTRAÇÃO GLOMERULARPOR NEFRO

Considerando-se a filtração glomerular de um únicoglomérulo (RFGn), pode-se escrever:

RFGn � Kf � Puf

onde Kf, o coeficiente de permeabilidade glomerular, é igualao produto de k e S, sendo k o coeficiente de permeabilida-de hidráulica do capilar glomerular, anteriormente descri-to, e S é a área, ou superfície filtrante de todo o glomérulo.

Vários estudos mostraram que a filtração glomerularpor nefro nos ratos Wistar é altamente dependente do flu-xo plasmático glomerular, isto é, o aumento do fluxo plas-mático glomerular leva ao aumento da filtração glomeru-lar por aumento da pressão de ultrafiltração, deslocandoo ponto de equilíbrio para mais próximo do fim do capilarglomerular, como, por exemplo, na Fig. 3.2, levando dacondição A para a condição B.

Através de infusões endovenosas isoncóticas de plasmaem ratos, pode-se aumentar o fluxo plasmático glomeru-lar a níveis três vezes maiores que o normal, até um pontoem que a pressão oncótica não se iguala à pressão hidros-

Fig. 3.1 Determinantes da pressão de ultrafiltração. Representa-ção esquemática de um capilar glomerular. Pcg é a pressão hi-drostática do capilar glomerular, constante ao longo de toda suaextensão. Pt é a pressão intratubular e �cg é a pressão oncóticadas proteínas do capilar glomerular, que aumenta progressiva-mente ao longo do capilar, à medida que a água vai sendo filtra-da, concentrando-se as proteínas.

Fig. 3.2 Equilíbrio da pressão de filtração. Em abscissa está representada a distância do capilar glomerular. Zero corresponde aoinício do capilar, e 1, ao fim. Em ordenadas, os valores de pressão em mmHg. A diferença de pressão hidrostática (∆p) é praticamen-te constante ao longo do capilar. A diferença de pressão oncótica (∆π) aumenta progressivamente. A pressão de ultrafiltração (Puf)é representada pela área entre as duas curvas. Os gráficos A e B representam duas das infinitas possibilidades de valores de Puf emcondição de equilíbrio de filtração. Em ambas (A e B), �� se iguala a �P antes do fim do capilar glomerular.

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tática no fim do capilar glomerular, como pode ser vistona Fig. 3.3.

Nesta condição, denominada de desequilíbrio de pres-são de filtração, induzida no rato, porém encontrada nor-malmente no cão, pode-se calcular a Puf e, conseqüente-mente, o Kf.

Valores calculados de Kf são da ordem de 0,08 nl/s �mmHg. Tomando-se uma superfície média (S) de 0,0019 cm2

do glomérulo do rato, obtém-se um coeficiente de permea-bilidade hidráulica (k) em torno de 42,1 nl/(s � mmHg � cm2)para o capilar glomerular, coeficiente este 10 a 100 vezesmaior que qualquer outro capilar do organismo, o que per-mite ao capilar glomerular manter um alto ritmo de filtra-ção, apesar de uma pressão de ultrafiltração baixa.

Pontos-chave:

• A filtração glomerular depende docoeficiente de permeabilidade glomerular(k), da superfície da membrana filtrante eda pressão de ultrafiltração

• O Kf é o produto do coeficiente depermeabilidade glomerular e a área filtrante

• A permeabilidade do capilar glomerular é10 a 100 vezes maior do que a de qualqueroutro capilar do organismo

• A filtração glomerular por nefro dependediretamente do fluxo plasmático glomerular

REGULAÇÃO HORMONAL DAFILTRAÇÃO GLOMERULAR

Alterações da perfusão vascular são em última análisemediadas pelas células musculares lisas através de contra-

ção ou relaxamento, ocasionando modificações do diâme-tro dos vasos e da resistência vascular. Toda a vasculaturaestá alinhada sobre uma camada contínua de células en-doteliais que previnem a ocorrência de trombose intravas-cular e atuam como barreira na difusão de solutos e flui-dos através dos capilares. As células endoteliais são uni-dades metabólicas dinâmicas que possuem receptores eenzimas acopladas às suas membranas. Estas enzimas for-mam ou degradam substâncias vasoativas circulantescomo a angiotensina II (enzima de conversão), bradicini-na (cininase II), adeninonucleotídeos (nucleotidases) e en-dotelina (metalopeptidase). Estas células participam dire-tamente dos mecanismos contráteis e dilatadores atravésda resposta a vários estímulos, e também formando e libe-rando substâncias vasoativas. Entre os fatores relaxadoresencontram-se o fator relaxador do endotélio (EDRF), iden-tificado como o óxido nítrico e a prostaciclina; e entre osfatores contráteis, destacam-se a endotelina, tromboxane,angiotensina II e os radicais livres de oxigênio.

Além dos efeitos vasculares, a angiotensina II e o hor-mônio antidiurético, in vitro, ligam-se às células mesangi-ais, causando contração destas células, pois elas possuemmicrofilamentos intracelulares contráteis. É possível queestes hormônios, in vivo, provoquem contração das célu-las mesangiais, causando diminuição da superfície glome-rular filtrante (S) e conseqüente redução do Kf e da pró-pria filtração glomerular.

Outros hormônios, como o hormônio da paratireóide ea prostaglandina E2, não agem diretamente sobre a célulamesangial, porém aumentam, via AMP cíclico, a sínteselocal de angiotensina II. Desta forma, o paratormônio podereduzir a filtração glomerular por diminuição do Kf. Aprostaglandina E2, apesar de aumentar o fluxo plasmáticoglomerular, não altera a filtração glomerular devido à di-minuição do Kf, efeito este devido à liberação local de an-giotensina II induzida pela prostaglandina.

Os hormônios glicocorticóides no homem aumentam afiltração glomerular. Estudos em ratos Wistar mostraramque esta ação dos glicocorticóides se faz seletivamente poraumento do fluxo plasmático renal. O fator atrial natriuré-tico promove vasodilatação renal com aumento do fluxoplasmático glomerular e conseqüente aumento da filtraçãoglomerular.

O óxido nítrico é produzido pelas células mesangiais e éimportante na manutenção do fluxo plasmático renal e dafiltração glomerular. O bloqueio da síntese de óxido nítricoaumenta a resistência das arteríolas aferente e eferente ediminui o Kf, causando queda da filtração glomerular. Afiltração glomerular diminui com a infusão de endotelina-1. A endotelina-1 contrai a célula mesangial, diminuindo oKf, e aumenta proporcionalmente as resistências das arterí-olas aferente e eferente, reduzindo o fluxo plasmático renalsem alterar a pressão capilar glomerular.

Existem, portanto, várias evidências de que os hormô-nios têm um papel importante na regulação da filtração

Fig. 3.3 Desequilíbrio da pressão de filtração. Nesta condição,como vemos, �� não se iguala a ∆P no fim do capilar glomeru-lar, podendo-se calcular um único valor da pressão de ultrafil-tração (Puf), correspondente à área entre as duas curvas.

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capítulo 3 33

glomerular e podem também estar envolvidos nas altera-ções da filtração glomerular, observados em condiçõespatológicas ou induzidas por drogas.

O uso crônico da gentamicina induz queda da filtraçãoglomerular. Estudos com ratos Wistar mostraram que estaqueda ocorre principalmente devido à redução do Kf, efeitoeste que pode ser atenuado por ingestão de dieta rica emsal, ou pela administração crônica de captopril, situaçõesestas que diminuem a geração de angiotensina II, sugerin-do um papel deste hormônio na insuficiência renal agudanefrotóxica causada por aminoglicosídeos. A ciclosporinadiminui a filtração glomerular por nefro devido ao aumen-to das resistências das arteríolas aferente e eferente comdiminuição do fluxo plasmático glomerular e do Kf.

Em modelos experimentais de obstrução renal parcial,demonstrou-se que a filtração glomerular por nefro pou-co se altera, embora ocorra queda do Kf, e esta é contraba-lançada por aumento do gradiente de pressão hidrostáti-ca (∆P). Entretanto, se a síntese de prostaglandina for ini-bida pela indometacina, os valores da filtração glomeru-lar por nefro no rim parcialmente obstruído caem intensa-mente, sugerindo que durante a obstrução ureteral parci-al o efeito vasodilatador da prostaglandina antagoniza oefeito vasoconstritor simultâneo, provavelmente da angi-otensina II.

Experimentalmente, tem sido demonstrado que nas le-sões glomerulares primárias há mediação da angiotensi-na II. O aminonucleosídeo puromicina, quando adminis-trado em ratos, causa proteinúria, acompanhada por que-da da filtração glomerular devido principalmente à dimi-nuição do Kf, que pode ser parcialmente revertida pelainfusão de um antagonista da angiotensina II (saralasina).

Em resumo, a filtração glomerular é regulada por umasérie de substâncias vasoativas sistêmicas ou localmentesintetizadas pelas células glomerulares, incluindo-se ascélulas endoteliais e musculares lisas. A célula mesangialpode ser o alvo destas substâncias devido à sua capacida-

de de contração, com conseqüente redução da área filtran-te (S) e do Kf. Estes mecanismos reguladores podem estarafetados e contribuir para a queda da filtração glomerularobservada em doenças renais.

PERMEABILIDADE SELETIVAGLOMERULAR

Os capilares glomerulares permitem a passagem livrede pequenas moléculas como a água, uréia, sódio, clore-tos e glicose; mas não permitem a passagem de moléculasmaiores como eritrócitos ou proteínas plasmáticas. O ca-pilar glomerular comporta-se como uma membrana filtran-te contendo canais aquosos localizados entre as células e amembrana basal do capilar glomerular. Além destes com-ponentes, as células epiteliais com seus podócitos tambémfazem parte desta barreira filtrante. Estima-se que o diâ-metro desses canais varie entre 75 e 100 Å devido à per-meabilidade seletiva que eles apresentam.

Vários estudos foram feitos, tanto no homem como emanimais, para se estudar a permeabilidade seletiva do ca-pilar glomerular. A maioria destes estudos foram feitosutilizando-se macromoléculas, como o dextran, uma subs-tância homogênea quanto à estrutura química e formamolecular, porém encontrado em tamanhos diferentes, osquais podem ser utilizados para o estudo da permeabili-dade glomerular.

O dextran, uma vez filtrado, não é reabsorvido nem se-cretado pelos túbulos renais. Pode-se comparar o clearan-ce do dextran com o clearance de inulina, molécula peque-na que é filtrada pelo rim, cuja concentração no fluido dacápsula de Bowman é a mesma do plasma, e também nãoé reabsorvida nem secretada pelos túbulos. Desta forma, arazão entre o clearance do dextran e o clearance de inulina éuma medida indireta da permeabilidade seletiva. Esta ra-zão pode variar de 0 (zero), quando determinada molécu-la de dextran não é filtrada pelo rim, até 1 (um), quando amolécula atravessa livremente o filtro glomerular, como ainulina.

A Fig. 3.4 mostra a variação do clearance fracional dedextran em função do raio da molécula.

Verifica-se que não ocorre qualquer restrição à passa-gem de dextran com raio molecular até 20 Å (clearance fra-cional igual a 1). A partir deste valor, à medida que se au-menta o raio molecular, a molécula vai sendo menos fil-trada pelo rim até se tornar impermeável (raio de 42 Å).

Estes dados não explicam por que uma molécula comoa albumina, de raio molecular de aproximadamente 36 Å,não é filtrada pelo rim, visto que uma molécula de dextrande mesmo raio ainda atravessa o filtro glomerular.

Outros estudos mostraram que a permeabilidade glo-merular não depende só do tamanho da molécula, mastambém da forma, flexibilidade, e especialmente da carga

Pontos-chave:

• A angiotensina II e o hormônioantidiurético promovem contração dascélulas mesangiais e redução do Kf

• A endotelina-1 e o bloqueio do óxido nítricodiminuem o Kf

• O fator atrial natriurético aumenta o fluxoplasmático glomerular

• Os glicocorticóides aumentam o fluxoplasmático glomerular

• A gentamicina diminui o Kf• A ciclosporina diminui o fluxo plasmático

glomerular e o Kf

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elétrica. A Fig. 3.5 mostra as medidas do clearance fracio-nal de dextran sulfato, portanto, com cargas negativas, emanimais normais. Verifica-se que para moléculas de 18 Åde raio molecular ocorre certa restrição à filtração, queaumenta mais acentuadamente do que demonstrado nafigura anterior, tornando-se impermeável para moléculasde 36 Å. Entende-se, então, o fato de a albumina ser pouco

filtrada, já que se trata de uma molécula aniônica, isto é,carregada com cargas negativas como o dextran sulfato.

Esta maior barreira às moléculas aniônicas ocorre devi-do à presença de glicoproteínas carregadas negativamen-te, as sialoproteínas, que revestem todos os componentesdo capilar glomerular, especialmente o endotélio, membra-na basal e os podócitos.

Este conhecimento é de grande importância na compre-ensão da proteinúria maciça, que ocorre na síndrome ne-frótica. Vários estudos mostraram que a perda das cargasnegativas da membrana glomerular pode ser a causa daproteinúria em algumas formas de glomerulonefrites.

Na mesma Fig. 3.5, observando-se a curva do clearancefracional de dextran sulfato em ratos com nefrite por soronefrotóxico, constata-se maior clearance fracional de dex-tran sulfato para qualquer raio molecular nos animaisnefríticos quando comparados aos normais, sugerindo queas cargas negativas do filtro glomerular nos animaisnefríticos podem estar diminuídas.

Além disto, cátions polivalentes, como as protaminas,podem produzir alterações estruturais nos podócitos, se-melhantes às observadas na síndrome nefrótica de lesõesmínimas. É interessante notar que estas alterações produ-zidas pelas protaminas podem ser revertidas ou normali-zadas experimentalmente pela administração de um âni-on polivalente, como a heparina.

Embora não haja um modelo definitivo quanto à natu-reza da barreira filtrante glomerular, muitos admitem queo endotélio atua como um filtro grosseiro que separa ascélulas e controla o acesso ao filtro principal, a membranabasal. O epitélio se constitui em uma barreira adicionalimportante, podendo fagocitar macromoléculas que ultra-passarem a membrana basal. E finalmente, as células me-sangiais que envolvem as alças capilares podem influen-

Fig. 3.5 Nesta figura está representado o clearance fracional dedextran sulfato (carregado com cargas negativas) em função doraio molecular, em ratos normais (�) e ratos com nefrite por soronefrotóxico — NSN — (�). Como vemos, nos ratos normais exis-te uma maior restrição à filtração de moléculas aniônicas, quan-do comparados ao dextran neutro (Fig. 3.4). Os animais com ne-frite por soro nefrotóxico apresentam um maior clearance fracio-nal de dextran aniônico do que os normais para qualquer raio mo-lecular. (Adaptado de Brenner, B.M.)

Fig. 3.4 Em abscissa está representado o raio mo-lecular e em ordenada o clearance fracional de dex-tran neutro (sem cargas elétricas). Como vemos,não existe qualquer restrição à filtração de molé-culas com menos de 20 Å de raio. À medida queaumenta o tamanho da molécula, esta vai sendomenos filtrada até se tornar impermeável com 42Å de raio. Por esta figura, vemos que moléculasde raio de 36 Å ainda seriam parcialmente filtra-das (clearance fracional � 0,2). (Adaptado deBrenner, B.M.)

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capítulo 3 35

ciar o fluxo plasmático e conseqüentemente a filtração glo-merular devido às suas propriedades contráteis.

Pontos-chave:

• A permeabilidade seletiva da barreiraglomerular depende do tamanho, da formae especialmente da carga da molécula

• A albumina tem raio molecular de 32 Å e émuito pouco filtrada por se tratar demolécula aniônica

• Nas glomerulonefrites a perda das cargasnegativas da membrana glomerularaumenta a filtração de proteínas

HIPERFILTRAÇÃOGLOMERULAR

A redução da massa renal, cirúrgica ou por lesão doparênquima renal, induz aumento da filtração glomerulardos nefros remanescentes, principalmente devido ao au-mento do fluxo plasmático glomerular e do gradiente depressão hidrostática (∆P). O aumento da filtração glome-rular por nefro é tanto maior, quanto maior a redução damassa renal.

A hiperfiltração glomerular é também observada emcrianças e adultos jovens com diabetes mellitus e parece con-tribuir com o início e a manutenção da glomerulopatia fre-qüentemente encontrada na doença. Estudos em ratos comdiabetes induzido pela administração de estreptozocinmostraram que estes animais apresentam aumento da fil-tração glomerular devido ao aumento do fluxo plasmáti-co e da pressão capilar glomerular.

Outro fator que pode levar ao aumento da filtração glo-merular é a ingestão protéica. Ratos mantidos em dieta com35% de proteínas apresentam filtração glomerular 70%maior que animais mantidos com apenas 6% de proteínasna dieta. Este efeito parece ser devido à vasodilatação re-nal induzida pelas proteínas ou aminoácidos. Há evidên-cias recentes sugerindo que este efeito seja mediado vialiberação de óxido nítrico.

Vários estudos sugerem que a hiperfiltração leva, aolongo do tempo, à lesão glomerular com aumento da per-meabilidade glomerular às macromoléculas aniônicas, re-sultando no aparecimento de proteinúria. Este aumento deproteínas no mesângio serve como estímulo para a proli-feração das células mesangiais e maior produção de ma-triz mesangial, causando a glomeruloesclerose. A esclero-se glomerular reduz ainda mais o número de nefros funci-onantes, com conseqüente maior redução de massa renal,conduzindo a uma progressão inexorável para a insufici-ência renal crônica terminal.

Tem sido demonstrado que a redução da ingesta pro-téica retarda a deterioração da função renal nestas condi-ções, assim como a hiperfiltração do diabetes pode sernormalizada com um tratamento adequado com insulina.

Pontos-chave:

• Na redução de massa renal, no diabetesmellitus e no aumento da ingestão protéicaocorre hiperfiltração glomerular

• O aumento do fluxo plasmático glomerulare da pressão capilar glomerular são osresponsáveis pelo aumento da filtraçãoglomerular por nefro

MEDIDA DA FILTRAÇÃOGLOMERULAR

A quantidade de plasma filtrado por minuto pode serdeterminada pela depuração plasmática de alguma subs-tância livre no plasma, que não esteja ligada às proteínasplasmáticas, com diâmetro menor que 75 Å, sem cargaselétricas e que passe prontamente pela membrana capilarglomerular. Além disso, não deve ser reabsorvida, secre-tada ou metabolizada pelos túbulos renais. Uma destassubstâncias é a inulina, que possui um diâmetro aproxima-do de 30 Å. Assim, a filtração glomerular pode ser avalia-da pela medida da depuração ou clearance da inulina. Estamedida é feita após infusão endovenosa contínua de inu-lina, envolvendo as seguintes etapas, conforme o exemploabaixo em seres humanos:

1) Medida do fluxo urinário (V) em ml/min: 1,0 ml/min2) Medida da concentração urinária de inulina (Uin): 60 mg/

ml3) Cálculo da quantidade de inulina excretada por mi-

nuto:

Uin � V � 60 mg/ml � 1,0 ml/min � 60 mg/min

Uma vez que toda a inulina alcançou os rins por filtra-ção e não foi secretada, reabsorvida ou metabolizada pe-los túbulos renais e a concentração plasmática de inulina(Pin) medida foi de 0,5 mg/ml, pode-se afirmar que 120ml de plasma foram filtrados por minuto para haver umaexcreção urinária (Uin � V) de 60 mg/min, ou seja:

60 mg/min � 5 mg/ml � 60 mg/min � 1 ml/0,5 mg �120 ml/min

Desta forma, em 1 minuto, 120 ml de plasma e os solu-tos foram separados por ultrafiltração do sangue e dasproteínas plasmáticas. Esta medida da filtração glomeru-lar é o clearance de inulina, cuja fórmula é esta:

Cin � Uin � V/Pin

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36 Filtração Glomerular

O resultado é expresso em ml/min/1,73 m2 de superfí-cie corpórea, significando o volume de plasma no qual todaa inulina é retirada em 1 minuto.

O clearance de inulina é muito utilizado para estudosexperimentais e clínicos, porém é pouco utilizado na prá-tica médica diária devido à necessidade de infusão plas-mática contínua da inulina. Por esta razão, geralmente uti-liza-se o clearance de creatinina, que é uma substância en-dógena e não necessita de infusão venosa, para avaliaçãorotineira da filtração glomerular.

A creatinina não é um marcador ideal da filtração glo-merular, pois existe uma pequena secreção tubular destasubstância. Como outras substâncias endógenas do plas-ma interferem com a dosagem sérica de creatinina supe-restimando sua concentração plasmática, estes dois efeitoscontrários acabam se compensando, o que faz com que oclearance de creatinina seja uma medida bastante razoávelda filtração glomerular na clínica, exceto em pacientes comfiltração glomerular muito baixa, situação na qual a secre-ção tubular de creatinina aumenta muito.

Mais recentemente um outro composto endógeno, acistatina C, tem-se mostrado promissor como marcadorda filtração glomerular. A cistatina C é produzida portodas as células nucleadas e seu ritmo de produção é cons-tante. A cistatina C é livremente filtrada pelo gloméruloe primariamente catabolizada pelos túbulos, de tal formaque como molécula intacta não é reabsorvida nem secre-

tada pelos túbulos. Os níveis plasmáticos da cistatina Cjá aumentam quando a filtração glomerular cai para 88ml/min/1,73 m2, sugerindo que a medida da cistatina Csérica pode ser importante na clínica para se detectar ainsuficiência renal inicial que acontece em uma série dedoenças renais para as quais um tratamento precoce écrítico.

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

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