02-sobre a luz

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Architectura sine luce nulla architectura est Sobre a luz 15 A luz é matéria e material (Da materialidade da LUZ) Quando o arquitecto descobre, finalmente, que a LUZé o tema central da Arquitectura, então começa a entender algo, começa a ser um verdadeiro arquitecto. A LUZnão é algo vago, difuso, que se toma por adquirido porque está sempre presente. Não é em vão que o sol nasce para todos, todos os dias. Sim, a LUZé, com ou sem teoria corpuscular. algo concreto, preciso, contínuo, material. Matéria mensurável e quantificável, como tão bem sabem os físicos e parecem ignorar os arquitectos. A LUZ, tal como a GRAVIDADE,é algo inevitável. Felizmente inevitável porque, definitiva- mente, a Arquitectura avança ao longo da História graças a essas duas realidades primitivas: LUZ e GRAVIDADE.Osarquitectos deveriam ter sempre consigo a BÚSSOLA(direcção e inclinação da LUZ)e o FOTOMETRO (quantidade de LUZ),do mesmo modo que utilizam sempre a fita métrica, o nível e o prumo. Ese a luta para vencer, para convencer a GRAVIDADEcontinua aser um diálogo do qual nasce a Arquitectura, é a procura da LUZ,o seu diálogo com ela, que eleva esse mesmo diálogo ao seu nível mais sublime. Descobrimos então, com uma precisa coincidência, que a LUZé verdadeira- mente a única capaz de vencer e convencer a GRAVIDADE.Eassim, quando o arquitecto aplica os artifícios adequados ao sol, à LUZ,esta, atravessando o espaço definido por estruturas mais ou menos pesadas, que precisam de estar ligadas ao solo para transmitir a força primitiva da GRAVIDADE,quebra o feitiço e faz com que esse espaço flutue, levite, voe. Santa Sofia, o Panteão ou Ronchamp são provas tangíveis desta poderosa realidade. Poderiamos então considerar agora que a chave está no entendimento profundo da LUZ como matéria, como material, material moderno? Não deveríamos perceber que chegou o

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Page 1: 02-Sobre a Luz

Architectura sine luce nulla architectura estSobre a luz

15

A luz é matéria e material (Da materialidade da LUZ)

Quando o arquitecto descobre, finalmente, que a LUZé o tema central da Arquitectura, entãocomeça a entender algo, começa a ser um verdadeiro arquitecto.

A LUZnão é algo vago, difuso, que se toma por adquirido porque está sempre presente. Não

é em vão que o sol nasce para todos, todos os dias.

Sim, a LUZé, com ou sem teoria corpuscular. algo concreto, preciso, contínuo, material.Matéria mensurável e quantificável, como tão bem sabem os físicos e parecem ignorar os

arquitectos.

A LUZ, tal como a GRAVIDADE,é algo inevitável. Felizmente inevitável porque, definitiva-

mente, a Arquitectura avança ao longo da História graças a essasduas realidades primitivas: LUZe GRAVIDADE.Osarquitectos deveriam ter sempre consigo a BÚSSOLA(direcção e inclinação daLUZ)e o FOTOMETRO(quantidade de LUZ),do mesmo modo que utilizam sempre a fita métrica,

o nível e o prumo.

Ese a luta para vencer, para convencer a GRAVIDADEcontinua a ser um diálogo do qual nascea Arquitectura, é a procura da LUZ,o seu diálogo com ela, que eleva esse mesmo diálogo ao seunível mais sublime. Descobrimos então, com uma precisa coincidência, que a LUZé verdadeira-

mente a única capaz de vencer e convencer a GRAVIDADE.Eassim, quando o arquitecto aplicaos artifícios adequados ao sol, à LUZ,esta, atravessando o espaço definido por estruturas mais

ou menos pesadas, que precisam de estar ligadas ao solo para transmitir a força primitiva daGRAVIDADE,quebra o feitiço e faz com que esse espaço flutue, levite, voe. Santa Sofia, oPanteão ou Ronchamp são provas tangíveis desta poderosa realidade.

Poderiamos então considerar agora que a chave está no entendimento profundo da LUZ

como matéria, como material, material moderno? Não deveríamos perceber que chegou o

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16 momento na História da Arquitectura, tremendo e emocionante momento, em que devemos

enfrentar a LUZ?Faça-se LUZ!Efez-se LUZ.O primeiro material criado, o mais eterno e univer-

sal dos materiais, surge assim como o material central para construir, CRIARo espaço. Oespaço

no seu mais moderno entendimento. Oarquitecto volta assim a reconhecer-se, uma vez mais,

como CRIADOR.Como dominador do mundo da LUZ.

Sine tuce nulla!!De como a LUZ é o tema central da Arquitectura)

Quando proponho este axioma, Archítectura sine Luce NULLAArchítectura est, quero dizerque nada, nenhuma arquitectura, é possível sem a LUZ.Sem ela, teríamos apenas meras cons-truções. Faltaria um material imprescindível.

Se me pedissem algumas receitas para destruir a Arquitectura, sugeriria que se tapasse o

óculo do Panteào. ou se fechassem as fendas que iluminam a capela de LaTourette.

Se o novo presidente do município de Roma, para que não entrassem chuva nem frio no

Panteão, decidisse tapar o óculo de quase nove metros de diâmetro que o coroa, muitas coisas

aconteceriam ... ou deixariam de acontecer. A sua construção exemplar não se alteraria. Nem asua perfeita composição. Nem a sua função uníversal deixaria de ser possível. Nem o seu con-

texto, a Roma antiga, se daria conta (pelo menos na primeira noitel. Apenas a mais maravilhosa

armadilha jamais feita pelo homem à LUZdo Sol, e na qual o astro-rei cai gozosamente todos eem cada um dos dias, teria sido eliminada. OSol começaria a chorar e, com ele, a Arquitectura(pois os dois são mais do que simples amigos).

Se, no convento de LaTourette, algum frade dominicano novo tapasse as fendas e as aber-

turas, raras mas precisas, da capela-rnor do convento em busca de maior concentração, muitascoisas aconteceriam também ... ou deixariam de acontecer. A robustez da sua construção não sealteraria. A sua composição livre permaneceria incólume. As suas funções sublimes poderiam

continuar, um pouco mais "concentradas", talvez à luz das velas. Em seu redor nada se alteraria.

Ou seria necessário muito tempo até que isso acontecesse. Apenas a inquietante quietude das

pombas que, deixando de voar, pousariam sobre o edifício, acabaria por denunciar aos cam-poneses o sacrilégio ali consumado. Oespaço, mais do que concentrado, tornar-se-ia tenebroso.

E os frades compru"::;.1suas gargantas. Or..:s:3I

Lorenzo Bemi~exacto da LUZ.mu:::: s=riMinuciosas e ~matéria que se

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ecer-se. uma vez mais,

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apenas meras cons-

c ::o_:;;eririaque se tapasse o•...- :::e la Tourette.

-- não se alteraria. Nem aível. Nem o seu con-

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m ele, a Arquitectura

- as fendas e as aber-- - concentração, muitas

- :ãsua construção não se

sublimes poderiam3C.... ~ or nada se alteraria.

ietante quietude dasdenunciar aos carn-

ar-se-ia tenebroso.

E os frades comprovariam, assustados, que o canto gregoriano, luminoso, se negava a sair desuas gargantas. Omosteiro, e com ele a Arquitectura, teriam entrado na noite escura.

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Eassim, tapando o óculo do Panteão e as aberturas da Capela de LaTourette, teríamos con-

seguido pôr em causa a Arquitectura e, com ela, a História. E o Sol não quereria voltar a sair-

para quê? Eisque a Arquitectura, sem a LUZ,ainda é menos que nada.

As tabelas da luz (Do controlo exacto da LUZ)

Lorenzo Bernini, mago incontestável da LUZ, tinha construído umas tabelas para o cálculoexacto da LUZ,muito semelhantes às que se utilizam actualmente para o cálculo das estruturas.

Minuciosas e precisas. Bem sabia o mestre que a LUZ,quantificável e qualificável como toda amatéria que se preze, podia ser controlada de modo científico .

Lamentavelmente, no regresso da sua extenuante e estéril viajem a Paris aquando da cons-trução do Louvre, o seu filho Paolo,jovem e distraído, perdeu-as. No dia 20 de Outubro de 1665,saindo aliviado da cidade da LUZque tão maio tratara, Bernini verificou, horrorizado, que lhe fal-tavam aquelas tabelas - mais valiosas para ele do que as próprias tábuas da Lei. A procura resul-tou inútil. Chantelou, cronista rigoroso e exigente dessa viagem francesa, omitiria no seu feliz

relato todo este infeliz acidente.

Sabe-se que Le Corbusier, passados tantos anos, conseguiu adquirir num livreiro alfarrabistade Paris algumas das páginas chave do precioso manuscrito. E soube usá-lo astutamente. Eassim pôde, também ele, controlar a LUZcom precisa precisão.

É que a LUZé algo mais que um sentimento. Ainda que seja capaz de remover os sentimen-

tos dos homens e nos faça estremecer no nosso interior mais íntimo.

A LUZé quantificável e qualificável. Sejacom as tabelas de Bernini ou de LeCorbusier. Sejacoma bússola, ascartas solares ou o fotómetro. Sejacom maquetas à escala, ou com os perfeitíssimosprogramas de computador quejá estão no mercado. É possível controlar, domar e dominar a LUZ.

Tendo o homem como medida, pois é para ele, para o homem, que criamos aArquitectura.

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18 Uma prova de fogo (Dos diferentes tipos de LUZ)

Existem muitos tipos de LUZ,alguns dos quais iremos abordar agora. Segundo a sua direcção,'LUZHORIZONTAL,LUZVERTICALe LUZDIAGONAL.Segundo asua qualidade, LUZSÓLIDAe LUZDIFUSA.

Os antigos não podiam receber a LUZvinda de cima, aquilo a que eu chamo a LUZVERTICAL,porque se perfurassem o plano superior, deixariam entrar a água, o vento, o frio e a neve. Eeles

não arriscariam a morte para conseguir aquela LUZ.Somente os deuses, imortais, se atreveram

a fazê-lo no Panteão. E Adriano, em sua honra e por suas mãos, ergueu aquela Arquitecturasublime. Premonição dos resultados da LUZVERTICAL.

Assim, ao longo da História da Arquitectura, a LUZtem sido sempre HORIZONTAL.captada ho-

rizontalmente perfurando, como era lógico, o plano vertical - a parede. Como os raios de Sol

que caiem sobre nós são diagonais, grande parte da História da Arquitectura pode ser vistacomo uma tentativa para transformar a LUZ HORIZONTALou DIAGONAL numa LUZ que pareçaVERTICAL.

Foi isso que fez o Gótico, naquilo que deve ser entendido não apenas como um desejo deobter uma maior quantidade de LUZ, mas também e fundamentalmente o de conseçuír umaLUZqualitativamente mais vertical, neste caso, DIAGONAL.

Da mesma maneira, muitas das intervenções do Barroco com a LUZdevem ser vistas comouma tentativa para converter a LUZcaptada horizontalmente, desviando-a com mecanismosengenhosos, em LUZque parecesse, e o fosse por reflexão, algumas vezes, LUZVERTICAL.Com

um maior grau de verticalidade do que o Gótico havia conseguido. O esplendoroso Trans-

parente barroco de Narciso Tomé na belíssima catedral gótica de Toledo é uma lição magistralsobre este resultado.

O tipo de LUZ,HORIZONTAL,VERTICALou DIAGONALdepende da posição do SOLrelativamenteaos planos que definem os espaços tensionados por essa LUZ.A LUZ HORIZONTALé oroduzlda

pelos raios de SOLque penetram através de perfurações no plano vertical. A LUZVERTICALresul-

ta da entrada dos mesmos raios em aberturas feitas no plano horizontal superior. A LUZDIAGO-NAL quando esses raios atravessam tanto o plano vertical como o plano horizontal.

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, o frio e a neve. Eeles, imortais, se atreverameu aquela Arquitectura

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Assim, compreende-se que não tenha sido possível obter a LUZVERTICALem espaços cli-maticamente controlados antes do aparecimento do vidro plano de grandes dimensões.Quando se tornou possível construir o plano superior horizontal perfurado e envidraçado, foi

s também possível introduzir essa LUZVERTICAL.Esta é uma das chaves do Movimento Moderno,

.da Arquitectura contemporânea, no seu entendimento da LUZ.

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Com várias luzes em simultâneo(Da combinação de diferentes tipos de LUZnum só espaço)

Tal como Edison mais tarde inventaria a luz eléctrica (como é difícil contudo saber usá-Ia

bemn Bernini, mestre máximo da LUZ, inventou algo tão simples, mas tão genial, como a tucealia Bernina. Utilizando várias fontes visíveis de LUZ,criava ~iro um ambiente de base comLUZDIFUSA.homogénea, geralmente vinda do Norte, com a qual iluminava e dava claridade ao

espaço. De seguida, depois de o centrar geometricamente com as formas, zásí. rompia num- ----ponto concreto ocultando a fonte aos olhos do espectador, produzindo um cilindro de LUZSÓLIDAuuce gettadal que surgia como protagonista daquele espaço. O contraste, contrapon-- --- -- - ---to entre os dois tipos de LUZ,tensionando endiabradamente aquele espaço, produzia um efeitoarquitectónico surpreendente. Exemplo paradigmático desta operação é a 'gre.ia.de..S.anLAn=-

.9rea ai Quirinale. A LUZSÓLIDAem visível movimento, dancando sobre uma invisível LUZDIFUSA>

em tranquila quietude.

A LUZ, tal como o vinho, para além de ter muitos tipos e matizes, não permite excessos. Acombinação em excesso de diversos tipos de LUZnum mesmo espaço, tal como o vinho, anulaa possível qualidade do resultado.

A combinação adequada de diferentes tipos de LUZtem, se os conhecermos bem, possibili-dades infinitas em Arquitectura. Bem o sabiam Bernini e LeCorbusier, Antemio de Tralles e Alvar

Aalto, Adriano ou mesmo Tadao Ando.

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20 Finale (De como a LUZ é o motel

Definitivamente, não é a LUZa razão de ser da Arquitectura? Não é a História da Arquitectura

a história da procura, do entendimento e do dominio da LUZ?

Não é o Romãnico um diálogo entre as sombras das paredes e a LUZSÓLIDAque penetra,como um punhal. no seu interior?

Não é o Gótico uma exaltação da LUZque inflama os incríveis espaços em chamas ascen-

dentes?

Não é o Barroco uma alquimia de LUZde onde irrompe, sobre uma mistura sábia de luzesdifusas, a LUZcerta capaz de produzir nos seus espaços inebriantes vibrações?

Não é, finalmente, o MOVIMENTOMODERNO,deitadas abaixo as paredes, uma inundação de

LUZtal que ainda estamos a tentar controlá-Ia? Não será o nosso tempo um tempo em quetemos ao nosso alcance todos os meios para, finalmente, dominar a LUZ?

Oaprofundamento e a reflexão sobre a LUZe as suas infinitas matizes deve ser o eixo central

da Arquitectura no futuro. Se as intuições de Paxton e a habilidade de Soane foram o prelúdio

das descobertas de te Corbusier e da investigação de Tadao Ando, resta ainda um vasto e riquis-simo caminho a percorrer. A LUZé o Mote.

Quando nas minhas obras consigo que os homens sintam o compasso do tempo que marcaa N;rtureza, harmonizando os espaços com a LUZ,marcando-os com a passagemdO"?ol, então__ ==----. - 'r _creio que isto a que chamamos Arquitectura vale a pena.