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Maputo, 26 de Janeiro, 2020 Número 3 Português BOLETIM SOBRE DIREITOS HUMANOS N o próximo dia 7 de Fevereiro de 2020, Moçambique vai assinalar a passagem de quatro meses após o assassinato bárbaro, à luz do dia, do Defensor de Direitos Humanos, Anastácio Matavele, na área eleitoral, em Gaza. O assassinato do activista e defensor dos Diretos Humanos foi protagonizado por cinco agentes da Polícia da República de Moçambique, nomeada- mente Euclídio Mapulasse, Edson Silica, Agapito Matavele (foragido), Nóbrega Chaúque e Martins Williamo, estes dois últimos morreram no acidente de viação após o cometimento do crime hediondo. A operação foi coordenada por dois comandantes de igual número de subunidades da Polícia, desig- nadamente Tudelo Guirrugo, do Grupo de Opera- ções Especiais, e Alfredo Macuácua, da Unidade de Intervenção Rápida. A viatura usada no crime é de Henriques Machava, actual Presidente do Con- selho Autárquico de Chibuto e membro sénior do partido Frelimo. Num comunicado emitido no dia seguinte ao assassinato, o Comando Geral da Polícia reconhe- ceu que “o homicídio qualificado (foi) perpetrado por 05 indivíduos, sendo 04 agentes da Polícia da República de Moçambique, afectos à subunidade de Intervenção Rápida-Gaza, em serviço no Grupo Operativo Especial e um civil, todos devidamente identificados nos autos” e ordenou a suspensão imediata dos dois comandantes daquelas subuni- dades e criou a comissão do inquérito para escla- recer o caso num prazo de 15 dias. Até hoje, quase quatro meses depois, os resultados do inquérito ainda não foram tornados públicos. No referido comunicado do Comando Geral, no- tou-se tentativa de omitir o nome de Agapito Ma- tavele, comandante do pelotão que assassinou o CRIME DE ESTADO EM GAZA Assassinato do Activista e Defensor dos Direitos Humanos, Anastácio Matavele, por Agentes da Polícia da República de Moçambique* cidadão Anastácio Matavele. O comando conside- ra Agapito Matavele como um cidadão civil e não agente da polícia, porque pretendia justificar que aquele assassinato foi eventualmente ajuste de con- ta ou um crime comum envolvendo agentes da po- lícia, sob coordenação de um civil. Ou seja, preten- diam dar a ideia de que este não é crime do Estado.

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Page 1: BOLETIM SOBRE DIREITOS HUMANOSeleicoes.cddmoz.org/wp-content/uploads/2020/02/Assassinato_do... · à luz do dia, do Defensor de Direitos Humanos, Anastácio Matavele, na área eleitoral,

Maputo, 26 de Janeiro, 2020 Número 3 Português

BOLETIM SOBRE DIREITOS HUMANOS

No próximo dia 7 de Fevereiro de 2020, Moçambique vai assinalar a passagem de quatro meses após o assassinato bárbaro,

à luz do dia, do Defensor de Direitos Humanos, Anastácio Matavele, na área eleitoral, em Gaza. O assassinato do activista e defensor dos Diretos Humanos foi protagonizado por cinco agentes da Polícia da República de Moçambique, nomeada-mente Euclídio Mapulasse, Edson Silica, Agapito Matavele (foragido), Nóbrega Chaúque e Martins Williamo, estes dois últimos morreram no acidente de viação após o cometimento do crime hediondo. A operação foi coordenada por dois comandantes de igual número de subunidades da Polícia, desig-nadamente Tudelo Guirrugo, do Grupo de Opera-ções Especiais, e Alfredo Macuácua, da Unidade de Intervenção Rápida. A viatura usada no crime é de Henriques Machava, actual Presidente do Con-selho Autárquico de Chibuto e membro sénior do partido Frelimo.

Num comunicado emitido no dia seguinte ao assassinato, o Comando Geral da Polícia reconhe-ceu que “o homicídio qualificado (foi) perpetrado por 05 indivíduos, sendo 04 agentes da Polícia da República de Moçambique, afectos à subunidade de Intervenção Rápida-Gaza, em serviço no Grupo Operativo Especial e um civil, todos devidamente identificados nos autos” e ordenou a suspensão imediata dos dois comandantes daquelas subuni-dades e criou a comissão do inquérito para escla-recer o caso num prazo de 15 dias. Até hoje, quase quatro meses depois, os resultados do inquérito ainda não foram tornados públicos.

No referido comunicado do Comando Geral, no-tou-se tentativa de omitir o nome de Agapito Ma-tavele, comandante do pelotão que assassinou o

CRIME DE ESTADO EM GAZA

Assassinato do Activista e Defensor dos Direitos Humanos, Anastácio Matavele, por Agentes da Polícia da República de Moçambique*

cidadão Anastácio Matavele. O comando conside-ra Agapito Matavele como um cidadão civil e não agente da polícia, porque pretendia justificar que aquele assassinato foi eventualmente ajuste de con-ta ou um crime comum envolvendo agentes da po-lícia, sob coordenação de um civil. Ou seja, preten-diam dar a ideia de que este não é crime do Estado.

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Decisão do assassinato e os envolvidos

a operação visando o assassinato de Anastácio Matavele foi preparada com o mínimo de porme-nor porque não podia falhar. Os atiradores da força de elite escolhidos a dedo para a missão “estavam a receber pressão” de pessoas até agora não iden-tificadas nos autos da acusação do processo de querela nº 78/19.

A decisão foi tomada no dia 19 de Setembro de 2019, numa reunião em que estiveram os cinco ati-radores e os seus respectivos comandantes, e mais um representante do Estado ao nível da província de Gaza, cujo nome ainda não foi possível apurar. Era a pessoa que dava senhas de combustível aos agentes para abastecer a viatura do crime. No mes-mo dia 19 de Setembro, o líder da operação, Aga-pito Matavele, ora foragido, deu orientações ao Euclídio Mapulasse, Edson Silica, Nóbrega Chaú-que e Martins Wiliamo para “não fazerem turnos, porque tinham uma missão”.

A missão era assassinar Anastácio Matavele. A partir daquele dia, Euclídio Mapulasse e Edson Silica receberam a missão expressa de “seguir os passos” de Anastácio Matavele, enquanto se es-perava pela chegada da viatura que seria usada para o atentado contra o activista social e defensor dos Direitos Humanos. Ou seja, deviam controlar os movimentos de Anastácio Matavele, para facili-

tar a operação, logo que a viatura, propriedade de Henriques Machava, presidente do município de Chibuto, chegasse às suas mãos.

Segundo a acusação provisória do Ministério Pú-blico remetida ao tribunal, foram realizados vários encontros preparatórios até à consumação do cri-me. Uma das reuniões aconteceu no dia 05 de Ou-tubro no Bar Xirico, bem próximo ao cruzamento da Praia de Xai-Xai. O encontro, convocado tele-fonicamente por Agapito Matavele, destinava-se a delinear a estratégia do assassinato de Anastácio Matavele, após ter falhado o seu rapto, no dia 23 de Setembro.

No encontro no Bar Xirico, estava o comandante do Grupo de Operações Especiais (GOE), Tudelo Guirrugo, que comunicou ao grupo a “boa nova”: “a viatura que seria usada na missão estava dispo-nível”. Estavam criadas as condições para a elimi-nação física de Anastácio Matavele. Para isso, fo-ram destacados Nóbrega Chaúque e Edson Silica para irem receber a viatura, perto da Escola Secun-dária Joaquim Chissano. Receberam as chaves de pessoas não identificadas na acusação.

No dia 06 de Outubro, Tudelo Guirrugo, Edson Silica, Agapito Matavele, Martins Wiliamo, Nóbre-ga Chaúque e Euclídio Mapulasse realizaram o úl-timo encontro, antes do assassinato do activista e

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defensor dos Direitos Humanos, que viria a aconte-cer 24 horas depois.

Os primeiros cinco elementos do grupo foram à casa de Euclídio Mapulasse para um encontro. No entanto, este não se encontrava na residência. O grupo deixou uma mensagem com um vizinho, para lhe comunicar que deveria se juntar ao pe-lotão ainda naquele dia, no Mercado Central, na baixa da cidade de Xai-Xai. Dito e feito. Logo que recebeu a informação, Euclídio Mapulasse apa-nhou transporte público (vulgo chapa) para o local do encontro. Quando chegou juntou-se ao grupo na viatura usada para a prática do crime e iniciou a marcha em direcção ao cruzamento da praia de Xai-Xai.

No local, Tudelo Guirrugo, comandante do Gru-po de Operações Especiais, terá ordenado, antes de descer da viatura, a Agapito Matavele, chefe do pelotão, para dar orientações aos outros operacio-nais sobre os detalhes da missão, que consistia em disparar contra Anastácio Matavele.

Os agentes tinham orientações claras de “dispa-rar para as pernas da vítima, para a impedir de an-dar’’ e não propriamente de o assassinar, tal como veio a acontecer.

O grupo tinha a informação de que Anastácio Matavele iria viajar para Maputo no dia 07 de Ou-tubro. Por isso, nesse dia, pelas 04:00 de manhã, Edson Silica, conduzindo a viatura usada para a prática do crime - um Toyota Marx X, com matrícu-la ADE 127 MC, pertencente ao edil do Chibuto, Henriques Machava - e munido de arma de fogo, dirigiu-se às residências dos seus colegas Euclídio Mapulasse, Agapito Matavele, Nóbrega Chaúque e Martins Wiliamo, para os recolher.

Já completo, o grupo seguiu para o Motel Concha, uma instância turística antiga e famosa, localizada na zona alta da cidade, junto à Estrada Nacional Número 1, para onde iriam montar uma embosca-da, uma vez que Anastácio Matavele passaria por ali quando fosse a Maputo. Porque o tempo ia pas-sando e a vítima não aparecia, os cinco seguem em direcção à Praia de Xai-Xai. Eles descobriram que a viatura de Anastácio Matavele estava estacionada no “Salgadinhos da Mamã Argentina”, nome dado ao edifício localizado junto à estrada que vai à praia de Xai-Xai. Anastácio Matavele estava no interior do edifício a orientar a cerimónia de abertura de formação de observadores da sociedade civil, para

a observação eleitoral em Gaza. O pelotão esperou pela vítima, numa paragem próxima ao edifício.

Quando eram 11 horas, Anastácio Matavele reti-rou-se da sala e meteu-se na sua viatura em direc-ção à baixa cidade de Xai-Xai. O grupo dos cinco seguiu-o. Os atiradores colocaram a sua viatura, na altura conduzida por Edson Silica, lado a lado com a da vítima. Imediatamente, o comandante do pe-lotão, Agapito Matavele, deu ordens para os outros dispararem. Foram disparados cerca de 10 tiros que atingiram a vítima em diversas partes do corpo.

Anastácio Matavele foi declarado óbito 30 minu-tos depois do baleamento, por volta das 11.30 ho-ras. Os laudos médicos revelam que ele teve morte violenta como consequência das lesões sofridas através de projécteis disparados. O corpo apresen-tava sinais com múltiplas lesões traumáticas pro-duzidas por disparos de projéctil de uma arma de fogo que, a parte anatómica atingida, e a intensi-dade das lesões, conclui-se que a intenção era de matar, pois, as lesões descritas são de carácter vital e que a etiologia médico-legal é homicídio.

Os operacionais retiraram-se do local do crime à alta velocidade em direcção a Chongoene, onde se localiza o seu quartel. Só que, para o seu azar, Nó-brega Chaúque e Martins Wiliamo morreram tam-bém de forma violenta, porque a viatura em que se faziam transportar despistou-se, embateu em três carros e capotou, a menos de 1 km do local onde assassinaram Anastácio Matavele. Edson Silica foi ferido e capturado.

Agapito Matavele pôs-se em fuga levando duas armas de fogo que tinham sido levantados por ele do arsenal do comando da UIR. As três armas fo-ram devolvidos ao quartel por Tudelo Guirrugo e Januário Rungo (Chefe do Estado Maior da UIR). Este último, por sua vez, orientou Justino Muchan-ga, responsável pelo armazém de armamentos, a assinar o livro de registo e controlo de armas, como prova de que as armas deram entrada no armazém.

Durante a fuga, Agapito Matavel comunicava-se telefonicamente com Tudelo Guirugo. Aliás, Tude-lo Guirugo sempre se comunicava com Nóbrega Chaúque, Agapito Matavele e Edson Silica sobre a operação Anastácio Matavel. Consta que foi Tude-lo Guirugo, sob orientação de Alfredo Macuácua, comandante da UIR (também detido), quem fez a selecção da equipa que iria cumpriar a missão de assassinar Matavele.

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Armas retirados do quartel

as armas para a concretização da operação foram levantados pelos cinco agentes, nomeadamente Euclídio Mapulasse, Nóbrega Chaúque, Agapi-to Matavele, Martins Wiliamo e Edson Silica. Por exemplo, no dia 19 de Setembro, data em que se decidiu que Anastácio Matavele devia ser assas-sinado, Euclídio Mapulasse, Nóbrega Chaúque, Agapito Matavele foram levantar igual número de armas de fogo, com as seguintes referências:

AO32550, AO36035 e AO37535, respectivamen-te. No dia 24 de Setembro, mais dois agentes, nomeadamente Martins Wiliamo e Edson Silica, foram levantar igual número de armas. Trata-se de armas com os seguinte registos, respectivamente: AO36000 e AO36614.

No dia seguinte, 25 de Setembro, Agapito Mata-vele reforçou o grupo com mais uma arma de fogo: uma AK47, com registo 3724571.

Promessas de promoção cumpridas

os agentes assassinos de Anastácio Matavele não foram prometido dinheiro pela missão. Foram pro-metido promoção nas carreiras. De facto, dois me-ses e 20 dias depois de concretizada a operações, três dos cinco agentes que balearam Matavele vi-ram suas promessas concretizadas. Foram promo-vidos a 27 de Dezembro de 2019.

Edson Silica, ora detido, a aguardar pelo julga-mento, foi promovido ao cargo de Sub-Inspector da Polícia, enquanto Euclídio Mapulasse (também na cadeia) e Agapito Matavele, ainda foragido, fo-ram elevados às categorias de Sargentos da Polícia, conforme Despachos nº6412/GCG/2019 e nº6447/GCG/2019, todos assinados a 27 de Dezembro pelo

Comandante Geral da Polícia, Bernardino Rafael. No primeiro despacho, Bernardino Rafael atribui

“a patente de Sub-Inspector da Polícia, na Escala Média, com efeitos imediatos (...) a Edson Cassiano de Lacerda Silica”, o nº5 da lista da Província de Gaza, com o código 09851485. Edson Silica era o condutor da viatura usada para assassinar Anastá-cio Matavele.

No segundo despacho, o Comandante Geral da Polícia atribuiu “a patente de Sargento da Polícia, na Escala Média, com efeitos imediatos (...) a Aga-pito Alberto Matavele e Euclídio Eugénio Mapulas-se, nº2 com código 12862529, e nº7 com código 09861562 da lista de Gaza, respectivamente.

Conclusão

ficou provado que os cinco agentes assassinaram Anastácio Matavele numa operação coordenada dentro das instituições do Estado. Igualmente, fi-cou provado que todas as armas usadas foram retiradas do arsenal da Polícia em Gaza. Houve encontros de preparação do assassinato superior-mente coordenados pelos comandantes e com en-volvimento de algumas pessoas ligadas ao Estado, tal como Henriques Machava e Ricardo Manganhe, edil do Chibuto e seu subordinado, respectivamen-te, suspostos donos da viatura.

Em vez de responsabilizá-los, os agentes envol-vidos foram promovidos a escalões superiores da Polícia da República de Moçambique, três meses

após a concretização do assassinato, o que vem provar que, de facto, este acto foi superiormente planificado ao nível do Estado. Portanto um crime de Estado.

Passados quatro meses após o crime, a justiça moçambicana não está a fazer o suficiente para jul-gar e condenar os assassinos, incluindo o ressarci-mento da família da vítima.

Neste contexto, o assassinato de Anastácio Ma-tavele é um assunto que deve ser levado aos me-canismos internacionais de defesa de direitos hu-manos de modo que o Estado Moçambicano seja responsabilizado pelos actos dos seus agentes.

*Investigação do Savana

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Andereço: Rua Eça de Queiroz, nº 45, Bairro da Coop, Cidade de Maputo – Mozambique

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