02 a filha de ferro

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- Por que deveria confiar em você? – Eu rosnei para Ash.

Eu estava completamente consciente de que estava sendo uma idiota, que nós precisávamos cair fora de lá antes que alguém nos visse, mas era como se eu tivesse comido spill-your-guts, e as palavras simplesmente continuavam saindo de enxurrada. – Você esteve mentindo para mim desde o começo. Tudo o que disse, tudo o que fizemos, era tudo uma cena para me trazer para cá. Armou para mim desde o começo.

- Meghan...

- Isto é um jogo que você gosta de jogar? Fazer a estúpida garota humana se apaixonar por você e então rir enquanto arranca o coração dela? Você sabia o que Rowan estava fazendo, e não fez nada para parar isto!

- Claro que não! – Ash rosnou de volta, sua veemência me surpreendendo até o silêncio. – Eu tinha que fazer todos acreditarem que eu não me importava, ou eles iriam rasgá-la ao meio. Emoções são uma fraqueza aqui, Meghan. E a Corte Winter devora os fracos. Eles te machucariam para chegar até mim. Agora, vamos. – Ele me alcançou de novo, e deixei que ele pegasse a minha mão sem protestar. – Vamos sair daqui antes que seja tarde demais.

- Temo que já seja muito tarde. – Falou arrastadamente uma familiar voz falsa, fazendo meu coração parar.

Aviso

Este e-book não tem fins lucrativos. Não pode ser comercializado ou vendido. Todos os direitos pertencem à autora e às empresas que detêm os direitos nacionais e internacionais.

Tradução: Belzinha.

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Também de Julie Kagawa da Harlequin Teen

O REI DE FERRO (Livro um de “The Iron Fey”)

e chegando em fevereiro de 2011, não perca

A RAINHA DE FERRO (Livro 3 de “The Iron Fey”).

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A FILHA DE FERRO (The Iron Daughter)

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JULIE KAGAWA

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Para Nick, minha inspiração.

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ÍNDICE PARTE UM Capítulo Um A Corte Winter ................................................................................................................................................10 Capítulo Dois Uma Declaração .............................................................................................................................................22 Capítulo Três O Cetro das Estações ......................................................................................................................................30 Capítulo Quatro O Roubo ...........................................................................................................................................................39 Capítulo Cinco Irmãos ..............................................................................................................................................................45 Capítulo Seis O Mercado dos Duendes .................................................................................................................................53 Capítulo Sete O Anel ..............................................................................................................................................................62 Capítulo Oito Despedidas e Memórias ..................................................................................................................................72 PARTE DOIS Capítulo Nove A Convocação .................................................................................................................................................79 Capítulo Dez Verdade e Mentiras .........................................................................................................................................85 Capítulo Onze As Sarças .........................................................................................................................................................90 Capítulo Doze Leanansidhe ....................................................................................................................................................97 Capítulo Treze Charles e Barretes Vermelhos .......................................................................................................................109 Capítulo Quatorze Tratamento Real ............................................................................................................................................117 Capítulo Quinze Operação Cetro .............................................................................................................................................129 Capítulo Dezesseis Traidor ..........................................................................................................................................................138 PARTE TRÊS Capítulo Dezessete Escolhas ........................................................................................................................................................143 Capítulo Dezoito Perto do Gelo ................................................................................................................................................150 Capítulo Dezenove Doença ..........................................................................................................................................................154 Capítulo Vinte A Curandeira .................................................................................................................................................163 Capítulo Vinte e Um O Baile de Inverno ........................................................................................................................................174 Capítulo Vinte e Dois A Escolha de Ironhorse .................................................................................................................................184 Capítulo Vinte e Três Campos de Colheita ......................................................................................................................................197 EPÍLOGO Segunda Volta para Casa ..............................................................................................................................208 AGRADECIMENTOS ..................................................................................................................................210

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PARTE UM

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CAPÍTULO UM

A Corte Winter

O Rei de Ferro1 parou atrás de mim, magnífico em sua beleza, o cabelo prateado chicoteando ao redor como uma cascata rebelde. O longo casaco preto ondeou atrás dele, acentuando o pálido rosto angular e a pele translúcida, as veias azul-esverdeadas brilhando acima da superfície. Um raio tremeluziu nas profundezas de seus olhos cor de azeviche, e os tentáculos de aço percorreram a extensão de sua espinha e ombros contraindo-se ao redor dele como um manto de asas, brilhando na luz. Como um anjo vingador, ele flutuou direto para mim, a mão estendida, um triste e carinhoso sorriso em seus lábios.

Caminhei até encontrá-lo, enquanto cabos de ferro envolveram-se gentilmente ao redor de mim, aproximando-me. – Meghan Chase. – Machina murmurou, correndo uma mão pelo meu cabelo. Eu tremi, mantendo minhas mãos nos meus lados enquanto os tentáculos acariciavam minha pele. – Você veio. O que é isto que você quer?

Franzi as sobrancelhas. O que eu queria? Por que eu tinha vindo? – Meu irmão. – Respondi, lembrando-me. – Você sequestrou meu irmão, Ethan, para me atrair para cá. Eu o quero de volta.

- Não. – Machina balançou sua cabeça, aproximando-se. – Você não veio por seu irmão, Meghan Chase. Nem veio pelo príncipe Unseelie que diz amar. Você veio aqui por uma única coisa. Poder.

Minha cabeça latejou e eu tentei recuar, mas os cabos me seguraram rápido. – Não – Murmurei, lutando contra a teia de ferro. – Isto... isto está errado. Não é como aconteceu.

- Mostre-me, então. – Machina abriu seus braços largamente. – Como isto “deveria” acontecer? O que você veio fazer aqui? Mostre-me, Meghan Chase.

- Não!

- Mostre-me!

Alguma coisa vibrou na minha mão: o pulsar da flecha Witchwood. Com um grito, eu ergui meu braço e dirigi a ponta afiada através do peito de Machina, afundando a flecha dentro de seu coração.

Machina cambaleou para trás, dando-me um olhar de horror chocado. Só que não era mais o Machina, mas um príncipe faery2 com cabelo cor de meia-noite e brilhantes olhos prateados. Esguio e perigoso, a silueta toda em preto, sua mão foi à espada no cinturão dele antes que descobrisse que era tarde demais. Ele oscilou, lutando para ficar de pé, e eu sufoquei um grito. 1 No original: Iron King (iron = ferro). Quando as personagens se referirem ao “Machina”, personagem do primeiro livro e que acabou sendo traduzido como “O Rei de Ferro”, a tradução será esta última. 2 Faery/ Faerie: tanto designa o ser imaginário em forma humana e dotado com poderes mágicos (fadas, elfos, duendes, gnomos, etc) e que habita a terra encantada das fadas; quando o próprio reino destes seres. Cada vez que estas palavras aparecerem, permancerão no original, por falta do encontro de correspondente adequado em português.

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- Meghan. – Ash murmurou, uma fina linha de vermelho pingando de sua boca. Suas mãos agarraram a flecha em seu peito enquanto ele caía de joelhos, o pálido olhar fixo suplicando o meu. – Por quê?

Tremendo, ergui minhas mãos e as vi cobertas em reluzente carmesim, riachos correndo pelos meus braços abaixo, pingando no chão. Abaixo da camada escorregadia, coisas serpenteavam em baixo da minha pele, empurrando-se para a superfície, como sanguessugas no sangue. Em algum lugar no fundo da minha mente, eu sabia que deveria estar terrificada, estarrecida, principalmente enojada. Eu não estava. Sentia-me poderosa, poderosa e forte, como se eletricidade surgisse de debaixo da minha pele, como se eu pudesse fazer qualquer coisa que quisesse e ninguém pudesse me parar.

Olhei para baixo, para o príncipe Unseelie e sorri desdenhosamente diante da figura patética. Eu realmente pude amar a tal indivíduo fraco, uma vez?

- Meghan – Ash ajoelhou-se lá, a vida esvaindo-se dele pouco a pouco, até mesmo enquanto ele lutava para agüentar firme. Por um breve momento, admirei sua teimosa tenacidade, mas isto não o salvaria no final. – E quanto a seu irmão? – Ele argumentou. – E sua família? Eles estão esperando que vá para casa.

Cabos de aço desfraldaram-se nas minhas costas e ombros, abrindo-se ao redor de mim como brilhantes asas. Olhando firmemente o príncipe Unseelie abaixo, indefeso diante de mim, dei-lhe um sorriso paciente.

- Eu estou em casa.

Os cabos golpearam para baixo em um borrão prateado, batendo contra o peito do faery e o estacando ao chão. Ash convulsionou-se, sua boca escancarada silenciosamente, antes que sua cabeça pendesse para trás e se quebrasse como cristal no concreto.

Cercada pelos brilhantes restos do príncipe Unseelie, eu joguei minha cabeça para trás e ri, o que se tornou um grito esfarrapado no momento em que acordei, contorcida em mim mesma.

MEU NOME É Meghan Chase.

Tenho estado no palácio dos feéricos Winter3 por um tempo agora. Quanto exatamente? Eu não sei. O tempo não flui certo neste lugar. Enquanto tenho estado presa em Nevernever, o mundo lá fora, o mundo mortal, tem seguido sem mim. Se eu conseguir sair daqui, se eu voltar para casa, provavelmente vou descobrir que cem anos se passaram enquanto estive fora, como Rip Van Winkle4, e minha família e amigos há muito estão mortos.

Eu tentava não pensar nisto muito frequentemente, mas às vezes, não podia fazer nada exceto pensar.

Meu quarto estava frio. Estava sempre frio. Eu estava sempre fria. Nem mesmo as chamas safiras na lareira eram suficientes para expulsar o frio incessante. As paredes e o teto eram feitos de gelo opaco e fumarento, até mesmo o cintilante lustre com milhares de pingentes de gelo. Hoje à noite, eu vesti

3 No original: Winter Court. “Winter” significa “inverno” e, apesar de “Court” também significar “Tribunal”, em face da relação de monarquia envolvendo o contexto, a tradução para “Corte” faz mais sentido. Logo, “Corte de Inverno”. Da mesma forma, “Summer Court” seria “Corte de Verão”. No entanto, como freqüentemente as personagens se autodenominam pertencentes simplesmente à “Summer” ou à “Winter” (às Cortes), ficaria confuso dizer “sou Verão” ou “sou Inverno”; então, as traduções finais ficaram “Corte Summer” e “Corte Winter”. 4 Rip Van Winkle é o personagem principal de um conto tradicional europeu. A versão mais famosa é a do escritor americano Washington Irving (1783-1859). Conta a história de um homem que dormiu tanto que, quando acordou, muitos anos haviam se passado.

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moletom, luvas, um agasalho grosso e um chapéu de lã, mas isto não foi o suficiente. Do lado de fora da minha janela, a cidade subterrânea dos feéricos Winter cintilava com esplendor gélido. Formas escuras saltavam e flutuavam nas sombras, garras intermitentes, dentes e asas. Tremi e olhei fixamente para o céu. O teto da caverna vasta estava longe demais para se ver através da escuridão, mas milhares de luzes minúsculas, bolas de fogo faery ou faeries mesmo, tremeluziam como um cobertor de estrelas.

Houve uma batida na minha porta.

Eu não gritei Entre. Havia aprendido a não fazer tal coisa no passado. Esta era a Corte Unseelie, e convidá-los a entrar em seu quarto era uma ideia muito, muito má. Não podia mantê-los fora completamente, mas os feéricos seguem acima de tudo as regras, e por ordem da rainha deles, não devia ser perturbada a menos que requisitasse.

Deixá-los entrar em meu quarto poderia quase soar tal como uma requisição.

Cruzei o chão, minha respiração se movimentando ao meu redor, e quebrei a porta para abri-la5. Um esquivo gato preto sentava no chão, com seu rabo enrolado ao redor de si mesmo, olhando fixamente acima, para mim, com os olhos amarelos sem piscar. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, sibilou e lançou-se pela fenda, como uma faixa de sombra.

- Ei!

Virei, mas o gato não era mais um gato. Tiaothin, a phouka6, estava parada lá, sorrindo para mim, caninos reluzindo. Claro. Teria que ser a phouka; eles nunca seguiam regras sociais. De fato, eles pareciam ter grande prazer em quebrá-las. Orelhas peludas nasciam do cabelo rastafári dela, contraindo-se esporadicamente. Vestia uma jaqueta espalhafatosa que cintilava com gemas falsas e botões, jeans rasgados e botas de combate. Ao contrário da Corte Seelie, os feéricos Unseelie realmente preferiam roupas “mortais”. Se era um desafio direto à Corte Seelie, ou porque eles queriam se misturar mais com os humanos, eu não tinha certeza.

- O que você quer? – Perguntei cautelosamente. Tiaothin tinha adquirido um interesse entusiástico em mim quando eu fui trazida à corte, a curiosidade insaciável de um phouka, eu suponho. Nós conversamos umas poucas vezes, mas ela não era exatamente o que eu chamaria de uma amiga. O jeito que ela olhava para mim, sem piscar, como se ela estivesse me medindo para a sua próxima refeição, sempre me deixava nervosa.

A phouka sibilou, correndo a língua dela ao longo dos dentes. – Você não está pronta. – Ela disse em sua voz sibilante, olhando por cima de mim cinicamente. – Apresse-se. Apresse-se e se troque. Devemos ir, rápido.

Eu franzi o cenho. Tiaothin sempre tinha sido difícil de entender, saltando de um assunto para o outro tão rápido que era difícil acompanhar. – Ir aonde? – Perguntei, e ela deu risadinhas.

- A rainha. – Tiaothin ronronou, agitando suas orelhas para frente e para trás. – A rainha a convocou.

5 No original: “(...) and I cracked open the door”. “To crack open” é quebrar algo para o abrir. Suponho que, como tudo no palácio está congelado, ela precisou quebrar a porta para conseguir abri-la, ou então, como as coisas ficam frágeis quando congeladas, a porta se quebrou quando ela a abriu. 6 Phooka (irlandês antigo), (também Pooka, Puka, Phouka, Púka, Pwca dentro em galês, Bucca eno idioma da cornuália, pouque em gernesiais, também Glashtyn, Gruagach) é uma criatura de do folclore celta, principalmente na Irlanda e no País de Gales. É um dos milhares de povos fairy (do país das fadas), e, como muitos povos do país das fadas, é respeitado e temido por aqueles que acreditam nele. De acordo com a lenta o phouka é um transmorfo habilidoso, podendo assumir uma enorme variedade de formas horríveis ou agradáveis. Não importa a forma, a pele do phouka é sempre escura. Sua forma mais comum é a de um lustroso cavalo com luminescentes olhos dourados. Pode usar fala humana e é conhecido por dar conselhos e levar as pessoas para longe do perigo. Embora goste de confudir os confusos e às vezes terríveis seres humanos, é considerada uma criatura benevolente.

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Meu estômago retorceu-se em uma bola apertada. Desde que eu vim para a Corte Winter com Ash, tinha estado temendo este momento. Quando tínhamos chegado ao palácio, a rainha me presenteou com um sorriso predatório e me dispensou, dizendo que desejava falar com o filho dela sozinha e que me chamaria logo. Claro, “logo” era um termo relativo em Faery, e eu tinha ficado em estado de tensa antecipação desde então, esperando que Mab se lembrasse de mim.

Aquela também foi a última vez que vi Ash.

Pensar em Ash enviou uma agitação através do meu estômago, lembrando-me o quanto eu tinha mudado. Quando tinha vindo a Faery pela primeira vez, procurando por meu irmão sequestrado, Ash tinha sido o inimigo, o filho frio e perigoso de Mab, Rainha da Corte Unseelie. Quando a guerra ameaçou as cortes, Mab enviou Ash para me capturar, esperando me usar como alavanca contra meu pai, Rei Oberon. Mas, ansiosa por salvar meu irmão, no lugar fiz uma barganha com o príncipe Winter: se ele me ajudasse a resgatar Ethan, retornaria com ele para a Corte Unseelie sem lutar. Naquele ponto, era uma aposta desesperada, precisava de toda ajuda que pudesse conseguir para encarar o Rei de Ferro e salvar meu irmão. Mas em algum lugar naquela maldita terra estéril de poeira e ferro, assistindo a Ash combater o reino que estava envenenando sua verdadeira essência, eu descobri que estava apaixonada por ele.

Ash me obteve, mas quase não sobreviveu de seu combate com Machina. O Rei dos feéricos Iron era insanamente forte, quase invencível. Contra todas as probabilidades, eu consegui derrotar Machina, resgatei meu irmão, e o levei para casa.

Aquela noite, devido ao nosso contrato, Ash veio por mim. Era hora de honrar minha parte da barganha. Deixando minha família para trás mais uma vez, eu o segui para Tir Na Nog, a terra de Winter.

A jornada através de Tir Na Nog foi fria, escura, e aterrorizante. Mesmo com o príncipe Winter do meu lado, Faery ainda era selvagem e inospitaleira, especialmente a humanos. Ash foi o guarda-costas perfeito, perigoso, alerta e protetor, mas parecia distante às vezes, distraído. E quanto mais dentro em Winter íamos, mais ele afastava-se, vedando a si mesmo de mim e do mundo. E ele não me diria por quê.

Na última noite de nossa jornada fomos atacados. Um lobo monstruoso, enviado pelo próprio Oberon, rastreou-nos, intencionando matar Ash e me levar de volta para a Corte Summer. Nós conseguimos escapar, mas Ash foi ferido lutando com a criatura, então nós nos refugiamos em uma caverna de gelo deserta para descansar e fechar as feridas dele.

Ele estava silencioso enquanto eu enrolava uma bandagem improvisada ao redor do braço dele, mas eu podia sentir seus olhos em mim enquanto eu a amarrava. Libertando seu braço, olhei para cima para encontrar seu olhar prateado. Ash piscou vagarosamente, dando-me aquele olhar que significava que ele estava tentando me entender. Aguardei, esperançosa de que finalmente colheria alguma informação sobre seu súbito distanciamento.

- Por que não fugiu? – Ele perguntou suavemente. – Se aquela coisa tivesse me matado, você não teria que voltar para Tir Na Nog. Você estaria livre.

Eu fiz uma carranca para ele.

- Concordei com aquele contrato, igual a você. – Murmurei, amarrando a bandagem com um puxão, mas Ash sequer grunhiu. Zangada agora, olhei para ele, encontrando seus olhos. – O quê, pensou que só porque sou humana iria dar para trás? Sabia no que estava me metendo, e vou suportar minha parte da barganha, não importa o que aconteça. E se você pensa que eu deixaria você com aquele monstro só para não encontrar Mab, então não me conhece.

- É porque você é humana – Ash continuou naquela mesma voz calma, sustentando meu olhar – que perdeu uma oportunidade tática. Um feérico Winter em seu lugar não teria me salvado. Eles não deixariam suas emoções ficarem no caminho. Se for sobreviver na Corte Unseelie, tem que começar a pensar como eles.

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- Bem, eu não sou como eles. – Endireitei-me e dei um passo para trás, tentando ignorar os sentimentos de mágoa e traição, estúpidas lágrimas de raiva pressionando os cantos dos meus olhos. – Não sou uma fada da Winter — sou humana, com sentimentos e emoções humanos. E se você quer que eu me desculpe por isto, pode esquecer. Não posso só trancar meus sentimentos como você pode. Apesar de que na próxima vez que estiver a ponto de ser comido ou morto, acho que não me incomodarei em salvar sua vida.

Girei para me distanciar na mágoa, mas Ash se ergueu com uma rapidez estonteante e segurou meus braços. Enrijeci, apertando meus joelhos e mantendo minhas costas eretas, mas lutar com ele seria inútil. Mesmo ferido e sangrando como estava, ele era muito mais forte do que eu.

- Não sou ingrato. – Murmurou contra minha orelha, fazendo meu estômago agitar-se. – Só quero que entenda. A Corte Winter devora os fracos. É a natureza deles. Eles irão tentar te rasgar ao meio, física e emocionalmente, e não estarei sempre lá para protegê-la.

Estremeci, a raiva derretendo enquanto minhas próprias dúvidas e medos retornaram. Ash suspirou, e senti sua testa tocar a parte de trás do meu cabelo, sua respiração abanando meu pescoço. – Eu não quero fazer isto. – Admitiu em uma baixa e angustiada voz. – Não quero ver o que eles tentarão fazer com você. Uma fada da Summer não dura muito para ter uma chance. Mas fiz um voto de que a traria de volta, e estou preso a esta promessa. – Ele levantou sua cabeça, espremendo meus ombros em um quase doloroso aperto, enquanto sua voz caiu algumas oitavas, tornando-se cruel e fria. – Então, você deve ser tão forte quanto eles. Não pode abaixar a guarda, não importa o que aconteça. Eles irão persuadi-la, com jogos e palavras bonitas, e terão prazer na sua miséria. Não os deixe pegá-la. E não confie em ninguém. – Ele parou, e sua voz ficou ainda mais baixa. – Nem mesmo em mim.

- Sempre confiarei em você. – Sussurrei sem pensar, e suas mãos apertaram ainda mais, virando-me quase selvagemmente para encará-lo.

- Não. – Disse, estreitando seus olhos. – Não irá. Sou seu inimigo, Meghan. Nunca se esqueça disto. Se Mab me disser para matar você na frente da corte inteira, é meu dever obedecer. Se ela ordenar a Rowan ou a Sage que a entalhem vagarosamente, certificando-se que sofra cada segundo disto, é esperado que eu fique parado lá e os deixe fazê-lo. Entende? Meus sentimentos por você não importam na Corte Winter. Summer e Winter sempre estarão em lados opostos, e nada irá mudar isto.

Eu sabia que deveria estar com medo dele. Ele era um príncipe Unseelie apesar de tudo, e tinha basicamente admitido que me mataria se Mab o ordenasse a tanto. Mas ele também admitiu ter sentimentos por mim — sentimentos que não importavam, verdade, mas isto ainda fez meu estômago contorcer-se quando ouvi isto. E talvez eu estivesse sendo ingênua, mas não podia acreditar que Ash voluntariamente me feriria, mesmo na Corte Winter. Não com o jeito com que ele estava me olhando agora, seus olhos prateados confusos e raivosos.

Ele olhou fixamente para mim por um pouco mais, então suspirou. – Você não escutou uma palavra do que eu disse, não é? – Murmurou, fechando seus olhos.

- Não estou com medo. – Falei para ele, o que era uma mentira; eu estava terrificada com Mab e a Corte Unseelie que aguardavam ao fim desta jornada. Mas se Ash estivesse lá, estaria bem.

- Você é exasperadamente teimosa. – Ash murmurou, passando uma mão por seus cabelos. – Não sei como vou protegê-la quando você não tem nenhuma noção de autopreservação.

Aproximei-me dele, colocando uma mão em seu peito, sentindo seu coração bater debaixo de sua camisa. – Confio em você. – Disse, erguendo-me até que nossos rostos estivessem distantes por polegadas, arrastando meus dedos até seu estômago. – Sei que achará um jeito.

A respiração dele ficou presa, e ele me olhou com avidez. – Está brincando com fogo, sabe disto?

- Isto é estranho, considerando que você é um príncipe do ge—... – Não pude ir mais longe,

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uma vez que Ash inclinou-se e me beijou. Enlacei meus braços ao redor de seu pescoço e os dele serpentearam ao redor da minha cintura, e por alguns poucos momentos, o frio não podia me tocar.

NA MANHÃ SEGUINTE, ele voltou a ser distante e indiferente, mal falando comigo não importava o quanto eu o estimulasse. Naquela noite, alcançamos o palácio subterrâneo da Corte Winter, e Mab me dispensou quase imediatamente. Um servo me mostrou os meus aposentos, e sentei em uma sala pequena e fria esperando que Ash me encontrasse novamente.

Ele nunca retornou de sua reunião com a rainha, e depois de muitas horas de espera, eu finalmente me aventurei pelos corredores da Corte Winter, procurando por ele. Foi quando eu achei Tiaothin, ou melhor, ela me achou na biblioteca, brincando de “mantenha-se longe” com um pesadão Jack-in-Irons7, enquanto ele me espreitava entre os corredores. Depois de livrar-se do gigante, ela me informou que o Príncipe Ash não estava mais no palácio, e ninguém tinha a mínima ideia quando ele voltaria.

- Mas este é o Ash. – Ela disse, sorrindo-me do topo de uma estante. – Dificilmente está na corte. Você pega um vislumbre dele e poof! Ele se foi por mais alguns meses.

Por que Ash simplesmente partiria desta forma? Eu me perguntava pela bilionésima vez. Ele poderia ter ao menos falado onde estava indo, e quando estaria de volta. Não tinha que me deixar aguardando.

A menos que ele deliberadamente estivesse me evitando. A menos que tudo o que disse, o beijo que trocamos, as emoções em seus olhos e na voz, não significasse nada para ele. Talvez tudo que tenha feito fosse somente para me trazer para a Corte Winter.

- Você vai se atrasar. – Tiaothin ronronou, sacudindo-me de volta para o presente, observando-me com crescentes olhos de gato. – Mab não gosta de ficar esperando.

- Certo. – Eu disse fracamente, sacudida do meu humor negro. Oops, está bem. Eu tenho uma audiência com a Rainha da Winter Faery. - Só me dê um minuto para me trocar. – Esperei, mas quando Tiaothin não se moveu, fiz uma carranca para ela. - Uh, um pouco de privacidade, por favor?

Tiaothin sibilou, e em um movimento tremente, tornou-se uma peluda cabra preta, que de quatro saltou para fora do quarto. Fechei a porta e encostei-me contra ela, sentindo meu coração fazer um baque no meu peito. Mab queria me ver. A Rainha da Corte Unseelie estava finalmente me convocando. Tremi e empurrei da porta, caminhando até a minha cômoda e o gélido espelho no topo.

Meu reflexo me olhou de volta, levemente distorcido pelas rachaduras no gelo. Algumas vezes eu ainda não me reconhecia. Meu liso cabelo loiro estava quase prateado na escuridão do quarto, e meus olhos pareciam grandes demais para meu rosto. E havia outras coisas, milhares de pequenos detalhes que não podia enumerar, que me diziam que eu não era humana, que eu era algo a ser temido. E claro, havia a diferença mais óbvia. Orelhas pontudas fincadas nos lados da minha cabeça, um lembrete gritante do quão anormal eu era.

Quebrei o contato visual com meu reflexo e olhei para baixo, para minhas roupas. Elas eram quentes e confortáveis, mas eu estava certa que encontrar a Rainha da Corte Unseelie vestida em moletom e um agasalho largo seria uma má idéia.

Ótimo. Devo encontrar a Rainha dos feéricos Winter em cinco minutos. O que visto?

7 Jack-In-Irons é um gigante mítico do folclore de Yorkshire que assombra as estradas solitárias. Ele é coberto de correntes e usa a cabeça de suas vítimas. Empunha uma clave grande, guarnecida com pregos. O nome “Jack” é usado como termo para uma pessoa desconhecida do sexo masculino, como no Brasil se usa “João” ou “Zé” (João-Ninguém ou Zé-Ninguém). Tradução literal: Zé-em-Ferros, João-em-Ferros. Informações: http://encyclopedia.thefreedictionary.com/Jack-In-Irons.

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Fechando meus olhos, tentei reunir o glamour ao meu redor e o moldar sobre minhas roupas. Nada. O grande ímpeto de poder que tinha esboçado enquanto combatia o Rei de Ferro parecia ter se esvaído, tanto que eu não podia elaborar nem mesmo a mais simples ilusão. E não por falta de tentativa. Invocando minhas lições com Grimalkin, um gato faery que encontrei na minha primeira viagem à Nevernever, tinha tentado me tornar invisível, fazer sapatos levitarem e criar fogo faery. Tudo falhou. Eu não podia nem mesmo sentir o glamour mais, apenas sabia que estava ao meu redor. Glamour é abastecido por emoção, e a emoção mais primitiva e passional – ira, luxúria, amor – o mais fácil é fazer uso. Eu ainda não podia acessá-la como costumava. Parecia que voltara a ser a Meghan Chase simples e não-mágica. Com orelhas pontudas.

Isto era estranho; por anos, eu nem tinha sabido que era meio-feérica. Foi só há alguns meses atrás, no meu aniversário de dezesseis anos, que meu melhor amigo Robbie tinha se revelado Robin Goodfellow, o infame Puck de Sonho de Uma Noite de Verão8. Meu irmão mais novo, Ethan, tinha sido sequestrado por faeries e eu precisava resgatá-lo. Oh, por falar nisto, eu era a filha meio-humana do Rei Oberon, Senhor dos feéricos Summer. Custou um pouco me acostumar com isto, tanto o conhecimento que eu era uma meia-faery e que podia usar a magia dos feéricos – glamour faery – quanto trabalhar nos meus próprios feitiços. Não que eu fosse muito boa nisto – Eu era uma droga, para a grande irritação de Grimalkin – mas esta não era a questão. Eu nem mesmo acreditava em faeries na época, mas agora que a minha magia se fora, era como se pedaços de mim estivessem faltando.

Com um suspiro, abri a cômoda e puxei para fora jeans, uma camisa branca e um casaco longo preto, metendo-me dentro delas tão rápido quanto eu podia para evitar congelar até a morte. Por um momento, eu me perguntei se eu poderia vestir alguma coisa extravagante, como um vestido de noite. Depois de um momento, decidi-me contra. Os Unseelie rejeitavam trajes formais. Eu teria uma chance maior de sobreviver se eu tentasse me encaixar.

Quando abri a porta, Tiaothin, não mais uma cabra ou gato, encarou-me e abriu um sorrio dentuço de escárnio. – Por aqui. – Ela chiou, retrocedendo no gélido corredor. Os olhos amarelos dela pareciam flutuar na escuridão. – A rainha aguarda.

EU SEGUI TIAOTHIN pelos corredores escuros e espiralados abaixo, tentando manter meu olhar diretamente à frente. Pelos cantos dos meus olhos, no entanto, eu ainda peguei vislumbres de pesadelos espreitando nas entradas da Corte Unseelie.

Um raquítico espantalho agachava-se atrás de uma porta como uma aranha gigante, o rosto pálido e emaciado olhando fixamente para mim através da rachadura. Um enorme cão de caça negro com olhos brilhantes nos seguiu nos corredores, não fazendo nenhum barulho, até que Tiaothin sibilou para ele e ele fugiu. Dois duendes e um barrete vermelho com dentes de tubarão comprimiam-se em um canto, jogando dados feitos de dentes e minúsculos ossos. Enquanto eu passava, uma discussão eclodiu, os duendes apontando para o barrete vermelho e gritando “Fraude, fraude!” em agudas vozes altas. Eu não olhei para trás, mas um grito ecoou atrás de mim, seguido do som molhado de ossos estalando. Estremeci e segui Tiaothin em torno de uma esquina.

O corredor terminou, abrindo-se em uma grande sala com pingentes de gelo pendendo do teto como lustres brilhantes. Fogo-fátuos9 e globos de fogo faery flutuavam entre eles, enviando cacos de luz

8 Sonho de Uma Noite de Verão (A Midsummer Night Dream). Peça escrita em meados da década de 1590 pelo dramaturgo inglês William Shakeaspere (1564?-1616). 9 No original: “Will-o’ –the wisps”. Fogo-fátuo (ignis fatuus em latim), também chamado de Fogo tolo ou, no interior do Brasil, Fogo corredor ou João-galafoice, é uma luz azulada que pode ser avistada em pântanos, brejos, etc. É a inflamação espontânea do gás dos pântanos (metano), resultante da decomposição de seres vivos: plantas e animais típicos do ambiente. Na crença popular, a chama seria uma alma penada. É possível que aí esteja a explicação para a lenda do boitatá, uma cobra-de-fogo que

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fractal por sobre as paredes e o chão. O chão estava envolto em gelo e névoa, e minha respiração fumegou no ar quando entramos. Colunas gélidas sustentavam o teto, brilhando como cristais translúcidos, e acrescentando deslumbrante matiz confusa de luz e cores em volta da sala. Música primitiva e lúgubre ecoava através da câmara, tocada por um grupo de humanos em um palco lateral. Os olhos dos músicos estavam vidrados, enquanto eles serravam e batiam seus instrumentos, seus corpos assustadoramente magros. Os cabelos caíam longos e lisos, como se não os tivessem cortado por anos. Ainda, não pareciam estar aflitos ou infelizes, tocando seus instrumentos com um fervor parecido com o de zumbis, aparentemente cegos a sua audiência inumana.

Dúzias de feéricos Unseelie circulavam a câmara, cada um uma criatura vinda direto de um pesadelo. Ogros e barretes vermelhos, duendes e spriggans10, kobolds11, phoukas, hobs12 e faeries para os quais eu não tinha um nome, todos vagando para cima e para baixo na escuridão comum.

Rapidamente escaniei a sala, procurando por despenteados cabelos negros e brilhantes olhos azuis. Meu coração tombou. Ele não estava aqui.

No lado mais distante da sala, um trono de gelo pairava no ar, brilhando com um brilho frígido. Sentada naquele trono, sustentada com o poder de uma grande geleira, estava Mab, Rainha da Corte Unseelie.

A Rainha Winter estava deslumbrante, clara e simples. Quando estive na corte de Oberon, tinha-a visto ao lado de sua rival, Titânia, a Rainha Summer, que também era bonita, mas de um jeito socialite maquiavélico de ser. Titânia também mantinha um rancor contra mim por ser filha de Oberon, e tinha tentado me transformar em um veado uma vez, então ela não era minha pessoa favorita. Apesar de serem completamente opostas, as duas rainhas eram insanamente poderosas. Titânia era uma tempestade de verão; linda, mortal e inclinada a fritar algo com um raio, se a irritasse. Mab era o dia mais frio no inverno, onde tudo repousa silencioso e morto, sustentado no medo de que o gelo impiedoso, que antes tinha assassinado o mundo, pudesse matar novamente.

A rainha recostou em sua cadeira, cercada por muitos feéricos da pequena nobreza – os sidhe – vestida em caras roupas modernas, terno branco e listrado Armani novinho em folha. Quando a vi recentemente, na Corte de Oberon, Mab tinha usado um fluido vestido negro que se contorcia como sombras vivas. Hoje, estava vestida de branco: terninho branco, unhas pintadas de opala e sapatos de saltos altos marfim, seu cabelo negro arrumado elegantemente no topo de sua cabeça. Olhos negros profundos, como uma noite sem estrelas, ergueram-se e me viram, e seus pálidos lábios de amora se curvaram em um sorriso lento.

Um frio deslizou pelas minhas costas. Os feéricos se importam pouco com mortais. Humanos são meramente brinquedos a serem usados e descartados. Tanto Seelie quanto Unseelie estão de acordo nisto. Mesmo que eu fosse meio-feérica e filha de Oberon, estava completamente só na corte dos

anda solta pelos campos à noite, assustando as pessoas. Dependendo do lugar onde aparecem, podem ser ligados às fadas, fantasma ou elemental. 10 Spriggan: criatura legendária conhecida da coletânia de faery da Cornuália. Eram grotescamente feios, encontrados em ruínas antigas e túmulos, guardando tesouros enterrados. Também agiam como guarda-costas de fadas. Era dito que também eram ladrões ocupados. Embora geralmente pequenos, tinham a capacidade de inchar a dimensões enormes. Causavam mal a quem os ofendesse. Mandavam tempestades para queimar plantações e roubavam os filhos dos mortais, deixando seus feios changelings no lugar. Há a história de uma mulher que levou a melhor sobre um grupo de spriggans virando a própria roupa do avesso (virar as roupas pode ser tão eficaz quanto água benta ou ferro para espantar faeries) e assim conseguir ficar com o seu tesouro. 11 Kobold ou kobolt são espíritos da mitologia alemã e sobrevivem na cultura moderna dentro do folclore alemão. Apesar de geralmente visíveis, um kobold pode se materializar em um animal, fogo, ser humano ou um objeto comum. As representações mais comuns dos kobold os mostram como humanóides do tamanho de crianças pequenas. Kobolds que vivem em casa de humanos usam roupas de camponeses; aqueles que vivem em minas são curvados e feios; os que vivem em navios fumam cachimbos e usam roupas de marinheiros. 12 Hob: espíritos domésticos do norte da Inglaterra, mais especificamente na fronteira com a Escócia. Podiam viver dentro da casa ou ao ar livre. Diz-se que eles trabalhavam em pátios de fazenda e, portanto, poderiam ser úteis. No entanto, se ofendidos podiam se tornar incômodos. A maneira de se livrar de um hob era lhe dar uma muda de roupa nova. O presente o faria ir embora para sempre. Mas poderia ser impossível se livrar do tipo pior de hobs.

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antigos inimigos do meu pai. Se eu irritasse Mab, não haveria como dizer o que a rainha faria. Talvez me transformar em um coelho branco e incitar duendes sobre mim, apesar disto parecer mais o estilo de Titânia. Tinha a sensação que Mab poderia vir com algo infinitamente mais terrível e distorcido, e isto me deixou muito temerosa.

Tiaothin caminhou lentamente através dos grupos de feéricos Unseelie, que prestaram pouca atenção nela. A maior parte do interesse deles estava direcionada para mim; enquanto eu avançava, meu coração batia com um baque surdo contra minhas costelas. Senti os olhares famintos, os sorrisos impacientes e os olhos na minha nuca, e me concentrei em manter minha cabeça erguida e caminhar confiante. Nada atrai mais os faeries do que o medo. Um nobre sidhe com um rosto que era todo de ângulos pontiagudos capturou meu olhar e sorriu, e meu coração contraiu-se dolorosamente.

A frieza da Rainha Winter crescia mais pronunciada à medida que nos aproximávamos, logo estava tão frio que machucava respirar. Tiaothin alcançou o pé do trono e fez uma reverência. Fiz o mesmo, apesar de que era difícil, mesmo sem meus dentes batendo. Os feéricos Unseelie amontoaram-se atrás de nós, sua respiração e vozes murmurantes fazendo minha pele arrepiar.

- Meghan Chase. – Proferiu a rainha em voz áspera acima da assembleia, fazendo meu cabelo levantar atrás. Tiaothin fugiu furtivamente e desapareceu dentro da multidão, deixando-me verdadeiramente só. – Que bom que se juntou a nós.

- É uma honra estar aqui, minha senhora. – Respondi, usando cada onça13 da minha força de vontade para impedir minha voz de tremer. Um tremor escapou de qualquer forma, e não só pelo frio. Mab sorriu, divertida, e se recostou, observando-me com olhos negros desprovidos de emoção. O silêncio caiu por alguns bateres de coração.

- Então – A rainha bateu suas unhas com um rítmico som de estalido, fazendo me pular –, aqui estamos nós. Você deve pensar que é muito esperta, filha de Oberon.

- S-Sinto muito? – Eu gaguejei, enquanto um punho de gelo apertava meu coração. Isto não estava começando bem, de forma alguma.

- Não sente. – Mab continuou, dando-me um sorriso paciente. – Mas você sentirá. Não se engane quanto a isto. – Ela se inclinou para frente, parecendo completamente inumana, e lutei contra a urgência de fugir gritando da sala do trono. – Eu tenho escutado sobre suas explorações, Meghan Chase. A rainha proferiu em voz áspera, estreitando seus olhos. – Não pensou que eu acharia você? Você induziu um príncipe da Corte Unseelie a seguir você dentro do Reino Iron. O fez lutar contra seus inimigos por você. Prendeu-o a um contrato que quase o matou. Meu garoto precioso, quase perdido para mim para sempre, por causa de você. Como acha que isto me faz sentir? – O sorriso de Mab tornou-se mais predatório, enquanto meu estômago contorceu-se de medo. O que ela poderia fazer para mim? Cerrar-me em gelo? Congelar-me de dentro para fora? Gelar meu sangue de forma que eu nunca pudesse estar quente de novo, não importa o que vestisse ou o quão quente se tornasse? Tremi, mas então me dei conta de uma fraca luz difusa, como ondas de calor, ao redor de mim. Mab estava tingindo o ar com glamour, manipulando minhas emoções e me deixando imaginar o pior destino possível. Ela não tinha que ameaçar ou dizer nada. Eu estava aterrorizando a mim mesma muito bem.

Em um claro momento de distração, perguntei-me se Ash tinha feito o mesmo com as minhas emoções, manipulando-me a me apaixonar por ele. Se Mab podia fazer isto, estava certa de que os filhos dela tinham o mesmo talento. Eram os meus sentimentos por Ash reais, ou algum tipo de glamour tecido?

Não é hora de conjecturar sobre isto, Meghan!

13 Onça: A onça líquida ou fluida (fl. Oz por sua abreviatura no inglês) é uma medida de volume utilizada frequentemente nos países anglo-saxões para indicar o conteúdo de alguns recipientes, como embalagens de líquidos ou mamadeiras. Também é a unidade de medida utilizada pelos barman para a elaboração de coqueteis. A onça líquida britânica é igual a 28,4130625 ml, e a onça líquida estadunidense é igual a 29,5735295625 ml.

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Mab olhava fixamente para mim, medindo minha reação. Ainda tremia de medo, mas uma parte de mim sabia o que a rainha estava fazendo. Se eu perdesse e implorasse por misericórdia, iria acabar presa em um contrato faery antes que soubesse o que estava acontecendo. Promessas são mortalmente sérias entre os feéricos, e eu não ia deixar o braço forte de Mab me levar a pedir por algo que iria instantaneamente lamentar.

Tomei um fôlego discreto para reunir meus pensamentos, então quando respondesse à Rainha dos feéricos Winter, não começaria a balbuciar como uma criança de dois anos.

- Perdoe-me, Rainha Mab. – Disse, escolhendo minhas palavras cuidadosamente. – Não queria fazer nenhum mal à senhora ou aos seus. Precisei que Ash me ajudasse a resgatar meu irmão do Rei de Ferro.

À menção do Rei de Ferro, os feéricos Unseelie atrás de mim agitaram-se e rosnaram, espreitando ao redor cautelosamente. Senti os ofendidos se erguerem, dentes arreganhados e garras expostas. Para faeries normais, ferro era um veneno mortal, drenando a magia deles e queimando seu corpo. Um reino inteiro feito de ferro era horrível e aterrorizante para eles, um líder faery chamado Rei de Ferro era blasfêmia. Por um momento, tive o pensamento satisfatório de que os feéricos Iron tinham se tornado os espantalhos e bichos-papões do mundo faery, e refreei um sorriso vingativo.

- Eu a chamaria de mentirosa, garota – Mab disse calmamente, enquanto os rosnados e murmúrios atrás de mim morriam -, se não tivesse ouvido o mesmo dos próprios lábios de meu filho. Fique certa, os asseclas do Rei de Ferro não são nenhum perigo para nós. Neste instante, Ash e seus irmãos estão vasculhando nosso território atrás destes feéricos Iron. Se as abominações estão dentro de nossas fronteiras, nós os caçaremos e os destruiremos.

Senti um ímpeto de alívio, mas não por causa da declaração de Mab. Ash estava fora. Tinha uma razão para não estar na corte.

- E ainda... – Mab presenteou-me com um olhar que fez meu estômago contorcer-se. – Não consigo exceto imaginar como conseguiu sobreviver. Talvez Summer esteja unida com os feéricos Iron, conspirando com eles contra a Corte Winter. Isto seria terrivelmente divertido, não seria, Meghan Chase?

- Não – Disse suavemente. Em minha mente, vi o Rei de Ferro, recuando enquanto eu direcionava a flecha através do peito dele, e contraí meus punhos para pará-los de tremer. Podia ainda sentir Machina contorcendo-se em dor, sentir algo frio e viperino deslizando em baixo da minha pele. – O Rei de Ferro ia destruir tanto Summer quanto Winter. Ele está morto agora. Eu o matei.

Mab estreitou os olhos à fendas negras. – E quer que acredite que você, uma meio-humana com virtualmente nenhum poder, conseguiu matar o Rei de Ferro?

- Acredite nela. – Uma nova voz soou, fazendo meu estômago contorcer e meu coração pular para a minha garganta. – Eu estava lá. Vi o que aconteceu.

Vozes ergueram-se ao meu redor enquanto as fileiras dos feéricos Unseelie se separaram como ondas. Não consegui me mover. Estava enraizada no lugar, meu coração batendo em meu peito enquanto a forma esguia e perigosa do Príncipe Ash andou a passos largos câmara adentro.

Tremi, e meu estômago começou a dar cambalhotas nervosas. Ash se parecia mais como ele sempre fora, obscuramente belo em preto e cinza, sua pele pálida em contraste agudo com seu cabelo e roupas. A espada dele pendurada ao seu lado, a bainha de um luminoso azul escuro, desprendendo uma aura congelada.

Eu estava tão aliviada em vê-lo. Caminhei direto para ele, sorrindo, só para ser parada por seu olhar frio. Confusa, eu me deparei com um impasse. Talvez ele não me reconhecesse. Encontrei seu olhar firme, esperando que sua expressão derretesse, que me desse um minúsculo sorriso. Isto não aconteceu. Seus olhos congelados me varreram em um breve e desconsiderado olhar, antes que ele

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caminhasse ao redor de mim e continuasse direto até a rainha. Senti uma punhalada de choque e dor; talvez ele estivesse bancando o frio em frente à rainha, mas poderia ao menos ter dito oi. Fiz uma anotação mental de xingá-lo mais tarde quando estivéssemos sozinhos.

- Príncipe Ash. – Mab ronronou, enquanto Ash se abaixava sobre um joelho diante do trono. – Retornou. Seus irmãos estão com você?

Ash ergueu sua cabeça, mas antes que ele pudesse responder, outra voz o interrompeu.

- Nosso irmão mais novo praticamente fugiu de nossa presença na sua pressa em chegar até a senhora, Rainha Mab. – Disse uma voz alta e clara atrás de mim. – Se eu não o conhecesse, pensaria que ele não queria falar com a senhora na nossa frente.

Ash ergueu-se, seu rosto cuidadosamente vazio, enquanto duas figuras a mais caminharam a passos largos câmara adentro, dispersando feéricos como pássaros. Como Ash, eles usavam lâminas longas e finas em seus quadris, e se moviam com a graça fácil da realeza.

O primeiro, aquele que havia falado, assemelhavam-se a Ash na constituição e peso: magro, gracioso e perigoso. Tinha um rosto pontiagudo e magro, e cabelo negro que se arrepiava como espinhas no topo de sua cabeça. Um casaco branco ondeava atrás dele, e um piercing dourado faiscava em uma orelha pontuda. Seu olhar encontrou o meu quando ele passou, olhos azul-gelo brilhando como lascas de diamante, e seus lábios se curvaram em um sorriso preguiçoso.

O segundo irmão era mais alto que seus irmãos, mais esbelto do que magro, seu longo cabelo de corvo amarado para trás em um rabo de cavalo que alcançava sua cintura. Um grande lobo cinza o seguiu, olhos âmbar fendidos e desconfiados. – Rowan. – Mab sorriu para o primeiro príncipe enquanto os dois se inclinavam para ela como Ash havia feito. – Sage. Todos meus garotos, em casa finalmente. Que notícias trazem para mim? Acharam estes feéricos Iron dentro de nossas fronteiras? Trouxeram-me seus pequenos corações venenosos?

- Minha rainha. – Era o mais alto dos três que falou, o irmão mais velho, Sage. – Nós vasculhamos Tir Na Nog de fronteira a fronteira, das Planícies Ice ao Pântano Frozen e para o Mar Broken Glass14. Não achamos nada dos feéricos Iron sobre os quais nosso irmão tem falado.

- Faz pensar se nosso querido irmão Ash não exagerou um pouco. – Rowan falou, sua voz correspondendo ao sorriso afetado em seu rosto. – Dando a impressão de que estas “legiões de feéricos Iron” parecer terem desaparecido no ar.

Ash olhou para Rowan e pareceu aborrecido, mas senti o sangue subindo ao meu rosto.

- Ele está dizendo a verdade. – Eu deixei escapar, e senti cada olho na corte se voltar para mim. – Os feéricos Iron são reais, e ainda estão lá fora. E se vocês não cuidarem deles seriamente, estarão mortos antes que saibam o que está acontecendo.

Rowan sorriu para mim, um meio-sorriso perigoso. – E por que iria a filha meio-sangue de Oberon se importar se a Corte Winter vive ou morre?

- Basta. – A voz de Mab soou áspera através da câmara. Ela ficou de pé e acenou com a mão para a assembleia feérica atrás de nós. – Saiam. Deixem-nos, todos vocês. Falarei com meus filhos a sós.

O grupo dispersou-se, retirando-se furtivamente, saindo como um furacão ou voando e deslizando suavemente da sala do trono. Hesitei, tentando capturar o olhar de Ash, imaginando se eu estaria incluída nesta conversa. Depois de tudo, eu sabia sobre os feéricos Iron, também. Fui bem sucedida em

14 Os nomes originais: “Ice Plains” (Planícies Gelo/de Gelo), Frozen Bog (Pântano Congelado) e Broken Glass Sea (Mar Vidro Quebrado). Soou mais real traduzir apenas os nomes topográficos dos pontos geográficos (planície, pântano e mar) e manter o restante em inglês.

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capturar sua atenção, mas o príncipe Winter me deu um olhar aborrecido e hostil, e estreitou seus olhos.

- Não ouviu a rainha, mestiça? – Ele perguntou friamente, e meu coração se contraiu em uma minúscula bola. Olhei fixamente para ele, boquiaberta, relutante em acreditar que este Ash estava falando comigo, mas ele continuou com desdém rude. – Não é bem-vinda aqui. Saia.

Senti a pontada de lágrimas de fúria, e dei um passo até ele. – Ash...

Seus olhos brilharam enquanto ele me disparava um olhar de pura repugnância. – É Mestre Ash, ou Sua Alteza para você, mestiça. E eu não recordo de ter dado a você permissão de falar comigo. – Ele recuou, dispensando-me em um gesto frio e indiferente. Rowan riu em silêncio, e Mab me observou do topo do trono com um frio e divertido olhar.

Minha garganta se apertou e um dilúvio pressionou atrás dos meus olhos, prestes a explodir. Eu os prendi e mordi meu lábio para manter a inundação reprimida. Não choraria. Não agora, em frente à Mab, Rowan e Sage. Eles estavam esperando por isto; podia ver isto em suas faces enquanto me observavam expectativamente. Não poderia mostrar nenhuma fraqueza na frente da Corte Unseelie se eu quisesse sobreviver.

Especialmente agora que Ash tinha se tornado um dos monstros.

Com muito mais dignidade do que eu poderia reunir, fiz uma reverência à Rainha Mab. – Desculpe então, Vossa Majestade. – Disse, em uma voz que tremeu só um pouco. – Irei deixá-la e a seus filhos em paz.

Mab aquiesceu, e Rowan me deu uma reverência simulada e exagerada. Ash e Sage me ignoraram completamente. Girei meu calcanhar e caminhei para fora da sala do trono com minha cabeça erguida alto, meu coração quebrando-se com cada passo.

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CAPÍTULO DOIS

Uma Declaração

Quando acordei, o quarto estava claro, grãos frios movimentando-se na janela. Meu rosto estava pegajoso e quente, e meu travesseiro estava úmido. Por um momento bem-aventurado, não me lembrei dos eventos da noite passada. Então, como uma onda negra, a memória voltou.

As lágrimas ameaçaram-se de novo, e enterrei minha cabeça debaixo dos cobertores. Eu gastei a maior parte da noite soluçando no meu travesseiro, meu rosto sufocado de modo que meu choro não seria ouvido no corredor por algum feérico.

As palavras cruéis de Ash me esfaquearam no coração. Mesmo agora, mal podia acreditar no jeito que ele agiu na sala do trono, como se eu fosse escória debaixo de suas botas, como se realmente me desprezasse. Estive esperando por ele, ansiando por ele, que voltasse, e agora estes sentimentos estavam retorcidos e presos. Senti-me traída, como se o que nós partilhamos na nossa jornada até o Rei de Ferro fosse só uma farsa, uma tática que o Príncipe de Gelo tinha usado para me trazer para a Corte Unseelie. Ou talvez ele tivesse só ficado cansado de mim e seguiu em frente. Só mais uma lembrança de quão capciosos e insensíveis os feéricos podiam ser.

Naquele momento de total solidão e confusão, eu desejei que Puck estivesse aqui. Puck, com sua atitude descuidada e sorriso contagioso, que sempre sabia o que dizer para me fazer rir novamente. Como um humano, Robie Goodfell tinha sido meu vizinho e melhor amigo; nós compartilhávamos tudo, fazíamos tudo juntos. Claro, Robbie Goodfell se revelou Robin Goodfellow, o infame Puck de Sonho de Uma Noite de Verão, e estava seguindo as ordens de Oberon de me proteger do mundo faery. Ele desobedeceu a seu rei quando me trouxe para dentro de Nevernever em busca de Ethan, e de novo, quando eu fugi da Corte Seelie e Oberon enviou Puck para me trazer de volta. Sua lealdade lhe custou caro quando ele foi finalmente atingido em uma batalha com um dos tenentes de Machina, Vírus, e quase morreu. Fomos forçados a deixá-lo para trás, no fundo de uma árvore dríade, para curar suas feridas, e a culpa desta decisão ainda me consome.

Uma batida veio da minha porta, surpreendendo-me. – Meghaaaan. – surgiu a voz cantada de Tiaothin, a phouka. – Acoooorde. Sei que está aí. Abra a portaaaa.

- Vá embora. – Eu gemi, secando meus olhos. – Não vou sair, ok? Eu não me sinto bem.

Claro, isto só a encorajou mais. As batidas se tornaram arranhões, engastando os meus dentes na borda, e a voz dela ficou mais alta, mais insistente. Sabendo que ela sentaria ali o dia todo, arranhando e relinchando, eu saltei da cama, andei como um furacão através do quarto e puxei a porta.

- O quê? – Rosnei. A phouka piscou, reparando na minha aparência amarrotada, rastros de lágrimas e inchada, nariz escorrendo. Um conhecido sorriso surgiu nos lábios dela, e minha raiva inflamou-se; se ela estava aqui só para me insultar, eu não estava com o humor. Recuando, estava a ponto de bater a porta no seu rosto quando ela se lançou para dentro do quarto e pulou graciosamente em direção a minha

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cama.

- Ei! Maldição, Tiaothin! Saia daqui! – Meus protestos foram ignorados, enquanto a phouka saltava alegremente sobre o colchão, retalhando buracos nos cobertores com suas garras afiadas.

- Meghan está apaixo-onada. – cantou a phouka, fazendo meu coração parar. – Meghan está apaixo-onada. Meghan e Ash, sentados em uma árvore...

- Tiaothin, cale a boca! – Bati a porta e olhei diretamente para ela, fixamente. A phouka deu risadinhas e parou de saltar na minha cama, sentando-se com as pernas cruzadas no travesseiro. Seus olhos verde-ouro cintilavam com travessura.

- Não estou apaixonada por Ash. – Falei para ela, cruzando meus braços sobre meu peito. – Não viu o que ele disse para mim, como se eu fosse lixo? Ash é um bastardo arrogante e sem coração. Eu o odeio.

- Mentirosa. – a phouka retorquiu. – Mentirosa, mentirosa, humana mentirosa. Vi o jeito que olhou para ele quando apareceu. Conheço aquele olhar. Você está ferida. – Tiaothin riu em silêncio, mexendo uma orelha para frente e para trás, enquanto eu sofria. Ela sorriu ironicamente, mostrando todos os seus dentes. – Não é sua culpa, de verdade. Ash simplesmente faz isto com as pessoas. Nenhum maldito mortal pode olhar para ele e não cair de joelhos. Quantos corações você acha que ele já quebrou?

Meu ânimo afundou ainda mais. Tinha pensado que era especial. Pensei que Ash se importava comigo, ao menos um pouco. Agora, descobri que eu provavelmente era só outra garota em uma longa lista de humanas que tinham sido tolas o suficiente para se apaixonar por ele.

Tiaothin se espreguiçou, recostando contra meus travesseiros. – Estou falando estas coisas para que não perca seu tempo perseguindo o impossível. – Ela ronronou, deslizando seus olhos para mim. – Além disto – ela continuou –, Ash ainda é apaixonado por outra pessoa. Tem o sido por um longo, longo tempo. Ele nunca a esqueceu.

- Ariella. – Eu sussurrei.

Ela me olhou surpresa. – Ele falou dela para você? Huh. Bem, então, você já deveria saber que Ash nunca se apaixonaria por uma simples garota meio-humana, não quando Ariella era a mais bela sidhe15 na Corte Winter. Sabe sobre a lei, não sabe?

Não sabia de nenhuma lei, eu realmente não me importava. Tinha a sensação que a phouka queria que eu a perguntasse sobre isto, mas eu não iria ser obrigada. Mas Tiaothin parecia determinada a me dizer de qualquer maneira, e prosseguiu com uma fungadela.

- Você é Summer. – Ela disse desdenhosamente. – Nós somos Winter. É contra a lei que os dois pudessem até estar envolvidos. Não que não tenhamos muito incidentes, mas ocasionalmente alguns feéricos tietes Summer se apaixonam por um Winter, ou vice-e-versa. Todo o tipo de problema aí – Summer e Winter não estão destinados a ficar juntos. Se eles são descobertos, os altos senhores ordenam que eles renunciem a seu amor de uma vez. Se eles se recusam, são banidos para o mundo humano para sempre, de tal modo que poderão continuar seu relacionamento blasfemo fora da vista das cortes... se não forem executados imediatamente.

- Então, você vê – ela terminou, fixando em mim um olhar penetrante -, Ash nunca trairia sua rainha e a corte por uma humana. É melhor se esquecer dele. Talvez ache um garoto humano bobo no mundo mortal, se Mab a deixar ir embora.

15 Sídhe, sìth ou sidh é uma palavra irlandesa e escocesa que se referia inicialmente a colinotas ou montes de terra, os quais se imaginava como o lar de um povo sobrenatural vinculado às fadas e elfos de outras tradições, e posteriormente, a estes próprios habitantes. Dos Sídhe acreditava-se serem os ancestrais, os espíritos da natureza ou as próprias divindades. (Fonte: Wikipédia).

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Mas agora eu estava tão miserável que não conseguiria abrir minha boca sem gritar ou chorar. Bílis subiu à minha garganta, e meus olhos incharam. Tinha que sair dali, longe das verdades brutais de Tiaothin, antes que eu caísse aos pedaços.

Mordendo meus lábios para manter as lágrimas trancadas, girei e fugi para os corredores da Corte Unseelie.

Quase tropecei sobre um duende, que sibilou e rangeu seus dentes para mim, presas pontiagudas brilhando na escuridão. Murmurando uma desculpa, corri para longe. Uma mulher alta em um fantasmagórico vestido branco voava corredor abaixo, os olhos vermelhos e inchados, e eu me desviei por outro corredor para evitá-la.

Precisava sair. Lá fora, no claro e frio ar, estar sozinha só por alguns minutos, antes que eu ficasse louca. Os corredores escuros e as salas lotadas estavam me deixando claustrofóbica. Tiaothin tinha me mostrado o caminho uma vez; um par de grandes portas duplas, uma esculpida para assemelhar-se a um rosto gargalhante, a outra retorcida em um rosnado horrível. Tinha procurado por elas sozinha mas nunca pude encontrá-las. Suspeitava que Mab pôs um feitiço nas portas para escondê-las de mim, ou talvez as próprias portas estavam jogando um jogo bizarro de esconde-esconde – portas faziam isto às vezes em Faeryland. Era exasperante: podia ver a cintilante cidade coberta de neve da janela do meu quarto, mas não conseguia chegar lá.

Escutei um ruído atrás de mim e virei para ver um grupo de barretes-vermelhos descendo o corredor, loucos olhos amarelos brilhantes de raiva e cobiça. Eles não podiam me ver ainda, mas quando vissem, estaria sozinha e desprotegida, muito longe da segurança do meu quarto, e barretes-vermelhos estavam sempre famintos. O medo apertou o meu coração. Apressei-me para um canto...

E lá estavam elas, cruzando um vestíbulo escorregadio de gelo. As portas duplas, com suas faces gargalhante e rosnante, pareciam zombar e ameaçar ao mesmo tempo. Agora que eu finalmente as achei, hesitava. Seria capaz de retornar, uma vez que estivesse fora? Além do palácio estava a retorcida cidade assustadora dos feéricos Winter. Se eu não pudesse voltar, congelaria até a morte, ou pior.

Um grito excitado soou. Os barretes-vermelhos tinham me visto.

Atravessei apressadamente o chão, tentando não deslizar, visto que os azulejos pareciam ser feitos de gelo colorido. Um mordomo, magro como um lápis, em um terno preto, observou-me impassivelmente enquanto me aproximava, seu liso cabelo cinza caindo nos ombros. Grandes olhos redondos, como minúsculos espelhos, fixaram-se em mim sem piscar. Ignorando-o, agarrei a porta com a face gargalhante e empurrei, mas ela não se moveu.

- Saindo, Senhorita Chase? – O mordomo perguntou, inclinando sua lisa cabeça em forma de ovo.

- Só por um momento. – Eu vociferei direto para a porta, que, exasperantemente, continuava rindo para mim. Não pulei ou gritei, o que foi uma experiência muito estranha, mas isto me deixou maluca. – Estarei de volta logo, prometo. – Escutei as gargalhadas de escárnio dos barretes-vermelhos, misturando com o uivo da porta, e dei a ela um chute ressonante. – Maldição, abra, sua coisa estúpida!

O mordomo suspirou. – Está atacando a porta errada, Senhorita Chase. – Ele estendeu a mão e empurrou a porta rosnante, que fez uma carranca para mim enquanto rangia sobre suas dobradiças. – Por favor, seja cuidadosa na sua excursão lá fora. – O mordomo disse cerimoniosamente. – Sua Majestade ficaria muito desgostosa de a senhorita... ahem... fugisse. Não que iria, estou certo. A proteção dela é tudo o que a resguarda de ser congelada, ou devorada.

Um golpe de ar gélido soprou dentro do vestíbulo. A paisagem além estava escura e fria. Lançando o olhar atrás, para os barretes-vermelhos, que me observavam das sombras com brilhantes sorrisos pontudos, tremi e caminhei para a neve.

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Quase voltei para dentro, estava muito frio. Meu fôlego suspendia-se no ar, e os turbilhões de gelo aguilhoavam meu corpo exposto, fazendo-o formigar e queimar. Um prístino pátio congelado estendia-se diante de mim, árvores, flores, estátuas e fontes encasuladas no gelo mais claro. Grandes cristais entalhados, alguns mais altos do que minha cabeça, protejavam-se do chão em intervalos aleatórios, apontando para o céu. Um grupo de feéricos vestidos de branco cintilante sentava-se sobre a aba de uma fonte, longos cabelos azuis ondulando-se nas suas costas. Eles me viram, riram em silêncio atrás de suas mãos e se levantaram. As unhas nas pontas de seus dedos cintilaram azuis na meia-luz.

Eu fui para o outro lado, minhas botas triturando a neve, deixando pegadas fundas atrás. Um tempo depois me perguntaria como poderia nevar no subsolo, mas eu tinha aceitado há muito tempo que as coisas nunca faziam sentido em Faeryland. Realmente não sabia onde estava indo, mas me mover parecia melhor do que ficar parada.

- Onde pensa que vai, mestiça?

Neve rodopiou, aguilhoando minha face e me cegando. Quando a nevasca retrocedeu, estava cercada por quatro garotas feéricas que tinham estado sentadas na fonte. Altas, elegantes, com peles pálidas e cintilantes cabelos cor de cobalto, elas me cercaram como uma matilha de lobos, os lábios completamente congelados e retorcidos em repulsiva zombaria.

- Ooh, Snowberry, você está certa. – Uma dela disse, contorcendo seu nariz como se cheirasse alguma coisa fedorenta. – Ela realmente fede como um porco morto no verão. Não sei como Mab pode agüentar isto.

Cerrando meus punhos, tentei manter minha calma. Eu estava tão sem humor para isto agora. Deus, é tudo como no colegial de novo. Isto nunca terminará? Estas são antigas faeries, pelo amor de São Pedro, e elas estão agindo como as líderes de torcida do meu colégio.

A mais alta da matilha, uma feérica esbelta com listras verde-veneno em seu cabelo azulado, fixou-me com seu olhar estreitado. Um ano atrás, eu teria rido benignamente, assentido e concordado com tudo o que elas dissessem, só para que me deixassem sozinha. As coisas eram diferentes agora. Estas garotas não eram as coisas mais assustadoras que já tinha visto. Nem de longe.

- Posso ajudá-la? – Perguntei na voz mais calma que pude conseguir.

Ela sorriu. Não era um sorriso agradável. – Só estou curiosa para ver como uma mestiça como você se sai falando com Príncipe Ash como uma igual. – Ela fungou, curvando seu lábio em desgosto. – Se eu fosse Mab, teria congelado sua garganta fechada só por olhá-lo.

- Bem, você não é. – Eu disse, encontrando seu olhar. – E uma vez que sou uma convidada aqui, não acho que ela aprovaria seja o que for que esteja planejando fazer comigo. Então, porque não fazemos um favor uma à outra e fingimos que não existimos? Isto resolveria um monte de problemas.

- Você não entende, não é, mestiça? – Snowberry ergueu-se, olhando-me por baixo de seu nariz perfeito. – Olhar para meu príncipe constitui um ato de guerra. Que você realmente tenha falado com ele faz meu estômago revirar-se. Não parece entender que o aborrece, como não poderia deixar, com seu infecto sangue Summer e fedor humano. Temos que fazer alguma coisa sobre isto, não temos?

Meu príncipe? Ela estava falando sobre Ash? Olhei para ela, tentada a dizer alguma coisa estúpida como, Engraçado, ele nunca mencionou você. Ela podia agir como uma mimada e mesquinha garota rica da minha escola, mas o jeito que os olhos dela se escureceram até estarem sem pupilas me lembrou que ela ainda era feérica.

- Então. – Snowberry recuou e me deu um sorriso paternal. – Isto é o que faremos. Você, mestiça, vai me prometer que não vai mais olhar para meu doce Ash, nunca mais. Quebrar esta promessa significa que eu terei que arrancar seus errantes olhos e fazer um colar com eles. Penso que é um bom acordo, não acha?

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O resto das garotas deu risadinhas, e havia uma faminta nota ansiosa no som, como se elas quisessem me comer viva. Poderia ter falado para ela não se preocupar. Poderia ter falado para ela que Ash me odiava e ela não tinha que me assustar para me manter afastada. Eu não falei. Eu me ergui, olhei nos olhos dela, e perguntei – Senão o quê?

O silêncio caiu. Senti o ar se tornar mais frio e abracei a mim mesma pela explosão. Uma parte de mim sabia que isto era estúpido, colhendo uma briga com uma faery. Provavelmente teria o meu bumbum chutado, ou amaldiçoado, ou alguma coisa sórdida. Não ligava. Estava cansada de ser intimidada, cansada de correr para o banheiro para soluçar até meus olhos caírem. Se esta cadela faery queria uma briga, conseguiu. Eu faria o meu justo quinhão de estragos, também.

- Bem, isto não é divertido. – Uma suave voz confiante cortou através do silêncio, um segundo antes que o inferno tivesse se soltado. Nós pulamos quando uma figura esguia vestida inteiramente em branco materializou-se vinda da neve, seu casaco batendo atrás dele. O olhar em seu rosto anguloso brilhou com arrogante divertimento.

- Príncipe Rowan!

O príncipe sorriu, seus olhos azul-gelo estreitados à fendas. – Perdoem-me, garotas. – Ele disse deslizando para o meu lado, fazendo a matilha retroceder alguns passos. – Não pretendia arruinar a festinha de vocês, mas eu preciso pegar emprestada a mestiça por um momento.

Snowberry sorriu para Rowan, todos os traços de ódio se foram em um instante. – Claro, Vossa Alteza. – Ela arrulhou, como se apenas tivesse sido oferecido um presente maravilhoso. – Tudo o que ordenar. Estávamos apenas fazendo companhia a ela.

Quis vomitar, mas Rowan sorriu de volta como se ele acreditasse nela, e a matilha se afastou sem olhar para trás.

O sorriso do príncipe se tornou afetado tão rápido quanto elas tinham ido, e ele me deu um atravessado olhar lúbrico que me fez instantaneamente cautelosa. Ele podia ter me salvado de Snowberry e suas harpias, mas não achava que tinha feito isto por ser cavalheiresco. – Então, você é a meio-sangue de Oberon. – Ele ronronou, confirmando minha suspeita. Os olhos dele esquadrinharam de cima abaixo, e eu me senti horrivelmente exposta, como se ele estivesse me despindo com seu olhar. – Eu vi você no Elysium na última primavera. De alguma forma pensei que fosse... mais alta.

- Desculpe desapontá-lo. – Eu disse friamente.

- Oh, você não está desapontando. – Rowan sorriu, seu olhar vagaroso sobre o meu peito. – Nem um pouco. – Ele riu em silêncio de novo e recuou, gesticulando para que eu o seguisse. – Venha, Princesa. Vamos dar uma caminhada. Quero lhe mostrar uma coisa.

Realmente não queria ir, mas eu não vi nenhuma forma de polidamente repelir um príncipe da Corte Unseelie, especialmente quando ele acabara de me fazer um favor por cuidar da matilha. Então eu o segui para outra parte do pátio, onde estatuetas congeladas desarrumavam a paisagem nevada, fazendo-a misteriosa e surreal. Algumas se erguiam retas e orgulhosas, algumas outras contorcidas em medo miserável, braços e membros jogados para cima para proteger a si mesmas. Olhar para algumas de suas feições, tão reais e vivas, fez-me tremer. A Rainha da Winter tem um senso de estilo arrepiante.

Rowan parou em frente de uma estátua, coberta em uma camada de gelo fumarento, suas feições distinguíveis através do lacre opaco. Com um pulo, percebi que não era uma estátua absolutamente. Um humano olhou de sua prisão de gelo, boca aberta em um grito de terror, a mão lançada diante dele. Seus olhos azuis, arregalados e fixos, olharam para mim abaixo.

Então ele piscou.

Tropecei para trás, um grito agudo alojando-se na minha garganta. O humano piscou de novo, seu olhar aterrorizado implorando pelo meu. Vi seus lábios tremerem, como se ele quisesse dizer

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alguma coisa mas o gelo o rendia imóvel, congelado e indefeso. Perguntei-me como ele podia respirar.

- Brilhante, não é? – Disse Rowan, olhando para a estátua com admiração. – A punição de Mab para aqueles que a desapontam. Eles podem ver, sentir e ouvir tudo o que acontece ao redor deles, então estão completamente conscientes do que está acontecendo com eles. Seus corações batem, seus cérebros funcionam, mas eles não envelhecem. Estão suspensos no tempo para sempre.

- Como eles respiram? – Sussurrei, olhando de volta para o humano boquiaberto.

- Não respiram. – Rowan sorriu afetadamente. – Não podem, é claro. Seus narizes e bocas estão cheios de gelo. Mas eles ainda continuam tentando. É como se estivessem sufocando pela eternidade.

- Isto é horrível!

O príncipe sidhe encolheu os ombros. – Não irrite Mab, é tudo o que posso dizer a você. – Ele voltou o todo o peso de seu olhar sobre mim. – Então, Princesa – ele continuou, acomodando-se na base na estátua. –, diga-me uma coisa, se puder. – Puxando uma maçã do nada, ele a mordeu, sorrindo para mim todo o tempo. – Ouço falar que você e Ash percorreram todo o caminho para o reino do Rei de Ferro e voltaram. Ou é o que ele diz. O que você pensa do meu querido irmãozinho?

Farejei uma intenção oculta e cruzei meus braços. – Por que quer saber?

- Só mantendo a conversa. – Rowan produziu outra maçã e a sacudiu para mim. Eu a apalpei ao pegá-la, e Rowan sorriu. – Não fique tão nervosa. Você daria a uma fadinha um colapso nervoso. Então, o meu irmão foi um completo troll, ou ele se lembrou de suas maneiras?

Eu estava com fome. Meu estômago rosnou, e a maçã caiu fria e fresca na minha mão. Antes que eu me desse conta, tinha dado uma mordida. Suco doce e ácido fluiu para minha boca, com apenas uma pitada de sabor amargo. – Ele foi um perfeito cavalheiro. – Disse com minha boca cheia, minha voz soando estranha em meus ouvidos. – Ajudou-me a resgatar meu irmão do Rei de Ferro. Não poderia ter feito isto sem ele.

Rowan reclinou-se e me deu um sorriso preguiçoso. – Fale mais.

Franzi o cenho diante do sorriso afetado dele. Alguma coisa não estava certa. Por que eu estava falando com ele assim? Tentei calar a boca, reprimindo a minha língua, mas minha boca abriu e as palavras correram para fora por vontade própria.

- Meu irmão Ethan foi roubado pelo Rei de Ferro. – Disse, escutando a mim mesma balbuciar em horror. – Vim para Nevernever para pegá-lo de volta. Quando Ash foi enviado por Mab para me capturar, prendi-o em um contrato comigo, no lugar. Se ele me ajudasse a resgatar Ethan, iria com ele para a Corte Unseelie. Ele concordou em me ajudar, mas quando nós chegamos ao Reino Iron, aquele lugar fez Ash horrivelmente doente, e ele foi capturado pelos Cavaleiros Iron de Machina. Eu me esgueirei para dentro da torre do Rei de Ferro, usei uma flecha mágica para matar Machina, resgatei meu irmão e Ash, e então nós voltamos para cá.

Eu coloquei ambas as mãos sobre minha boca para parar a torrente de palavras, mas o dano já estava feito. Rowan parecia como o gato que acabou de comer o canário.

- Então – ele cantarolou, estreitando seus olhos para mim -, meu irmão deixou-se enganar—por uma fraca meio-sangue—para salvar uma criança mortal e quase mata a si mesmo no processo. Muito impróprio de Ash. Conte-me mais, Princesa.

Mantive minhas mãos em minha boca, sufocando minhas palavras, mesmo quando elas começam a sair de enxurrada. Rowan riu e pulou a base da estatua, olhando fixo diretamente para mim com um sorriso maligno. – Oh, vamos, Princesa, sabe que é inútil resistir. Não há necessidade de fazer isto mais difícil para você mesma.

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Queria dar um soco nele, mas estava com medo que se eu tirasse minhas mãos da boca, iria revelar mais alguma coisa. Rowan continuou vindo, seu sorriso se tornando predatório. Recuei, mas uma onda de vertigem e náusea me varreu por dentro e eu tropecei, lutando para ficar de pé. O príncipe estalou seus dedos, e a neve ao redor dos meus pés viraram gelo, cobrindo minhas botas e me congelando no lugar. Horrorizada, assisti o gelo rastejar além dos meus joelhos, fazendo barulhos agudos quando avançou para o meu peito.

Está frio! Eu tremi violentamente, agulhas minúsculas de dor perfurando meu corpo através das minhas roupas. Engoli em seco, querendo desesperadamente sair dali, mas claro que eu não podia me mover. Meu estômago espremeu-se, e outro assalto de náusea fez minha cabeça girar. Rowan sorriu, recostando-se e me observando lutar.

- Posso fazer isto parar, sabe. – Ele disse, mastigando o resto de sua maçã. – Tudo o que tem que fazer é responder a umas poucas perguntas inocentes, é tudo. Não sei por que está sendo tão difícil, a menos, claro, que você tenha algo a esconder. Quem está tentando proteger, mestiça?

A temperatura estava se tornando insuportável. Meus músculos começaram a convulsionar pelo terrível frio de entorpecer os ossos. Meus braços tremeram, e minhas mãos caíram da minha boca.

- Ash. – Murmurei, mas naquele momento, o gelo me mantendo no lugar se quebrou. Com um som de porcelana se quebrando, ele se estilhaçou em pedaços de cacos cristalinos, brilhando na luz fraca. Eu gemi e cambaleei para trás, livre do abraço gélido, enquanto outra forma esbelta e escura surgiu quase que imperceptivelmente das sombras.

- Ash. – Rowan sorriu quando seu irmão olhou para nós, e meu coração saltou. Por um momento, imaginei que os olhos cinza de Ash estavam estreitados em fúria, mas então ele se aproximou e pareceu o mesmo que tinha sido na noite anterior - frio, distante, ligeiramente aborrecido.

- Que coincidência. - Rowan continuou, ainda sustentando aquele sorriso repugnantemente presunçoso. – Venha e se junte a nós, irmãozinho. Estávamos justamente falando de você.

- O que está fazendo, Rowan? – Ash suspirou, soando mais irritado que qualquer coisa. – Mab nos disse para não aborrecer a mestiça.

- Eu? Aborrecendo-a? – Rowan parecia incrédulo, os olhos azuis alargando-se, o retrato da inocência. – Nunca sou aborrecido. Nós estávamos só tendo uma conversa brilhante. Não estávamos, Princesa? Por que não lhe diz o que você acabou de me dizer?

O olhar prateado de Ash voou ao meu, uma sombra de incerteza cruzando sua face. Meus lábios se abriram por sua própria vontade, e eu coloquei minhas mãos sobre minha boca novamente, parando as palavras antes que elas se derramassem para fora. Encontrando seu olhar, balancei minha cabeça, rogando-lhe com meus olhos.

- Oh, agora vamos, Princesa, não seja tímida. – Rowan ronronou. – Você parecia ter muito a dizer sobre nosso queridíssimo garoto aqui, Ash. Vá em frente e diga a ele.

Eu olhei para Rowan, desejando que pudesse dizer a ele exatamente o que poderia fazer consigo mesmo, mas eu estava me sentindo tão doente e tonta agora, que isto tomou toda a minha concentração para ficar nervosa. O olhar de Ash endureceu-se. Andando a passos largos para longe de mim, ele se abaixou e recolheu alguma coisa da neve, erguendo-a diante dele.

Era a fruta que eu larguei, uma única mordida tomada do pedaço, como a maçã envenenada de Branca de Neve. Só que não era uma maçã agora, mas um grande cogumelo sarapintado, o interior suculento tão branco quanto osso. Meu estômago pesou, apertou-se violentamente, e quase perdi o pedaço que comi.

Ash não disse nada. Olhando para Rowan, ele segurou o cogumelo e ergueu uma sobrancelha. Rowan suspirou.

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- Mab não disse especificamente que nós não podíamos usar spill-your-guts16 – Rowan disse, encolhendo seus ombros magros. – Além disto, acho que você ficaria mais interessado no que nossa princesa Summer tem a dizer sobre você.

- Por que deveria ficar? – Ash atirou o cogumelo, parecendo aborrecido. – Esta conversa não é importante. Fiz a barganha para trazê-la aqui, e agora está feito. Qualquer coisa que disse ou fiz foi no propósito de trazê-la para a corte.

Engoli em seco, minhas mãos caindo do meu rosto, para olhar para ele. Era verdade, então. Ele tinha estado brincando comigo todo o tempo. O que ele me falou no Reino Iron, tudo o que partilhamos, nada daquilo era real. Senti gelo espalhando-se por meu estômago e balancei minha cabeça, tentando apagar o que tinha acabado de ouvir. – Não. – Murmurei, muito baixo para qualquer um ouvir. – Não é verdade. Não pode ser. Ash, conte a ele que está mentindo.

- Mab não se importa como eu fiz isto, uma vez que a meta foi realizada. – Ash continuou, insensível ao meu tormento. – O que é mais do que eu posso dizer de você. – Ele cruzou seus braços e deu de ombros, o retrato da indiferença. – Agora, se nós terminamos por aqui, a mestiça deve retornar para dentro. A rainha não ficará agradecida se ela congelar até a morte.

- Ash. – Sussurrei quando ele retirou-se. – Espere! – Ele nem mesmo olhou para mim. Lágrimas pressionaram-se atrás de meus olhos, e tropecei atrás dele, lutando contra uma onda de tontura. – Ash!

- Eu te amo!

As palavras tombaram para fora de mim. Não queria dizê-las, mas no momento que disse, meu estômago revirou-se com incredulidade e completo horror. Minhas mãos voaram de volta para a minha boca, mas era tarde, tarde demais. Rowan sorriu mais ainda, um sorriso completo de satisfação terrível, como se lhe tivesse sido dado o melhor presente no mundo.

Ash congelou, ainda de costas para mim. Por só um instante, vi suas mãos cerrarem-se nos seus lados.

- Isto é desafortunado para você, não é? – Ele disse, sua voz morta de emoção. – Mas a Corte Summer sempre foi fraca. Por que eu tocaria a filha mestiça de Oberon? Não me faça doente, humana.

Era como se uma mão de gelo mergulhasse dentro do meu corpo, rasgando-me ao meio pelo meu peito. Senti verdadeira dor física lançar-se através de mim. Minhas pernas curvaram-se, e eu caí na neve, cristais de gelo aguilhoando dentro das minhas palmas. Não podia respirar, não podia sequer chorar. Tudo o que eu podia fazer era ficar ajoelhada ali, o frio infiltrando-se através dos meus jeans, ouvindo as palavras de Ash ecoarem pela minha cabeça.

- Oh, isto foi cruel, Ash. – Rowan disse, soando deliciado. – Eu realmente acredito que você quebrou o coração de nossa pobre princesa.

Ash disse alguma coisa mais, alguma coisa que eu não peguei, porque o chão começou a rodopiar abaixo de mim, e outra onda de tontura fez minha cabeça girar. Poderia ter lutado contra isto, mas estava insensível para todo o sentimento, e não me importava no momento. Deixe a escuridão vir, pensei, deixe que me leve embora, antes que ela puxasse um pesado cobertor sobre meus olhos e eu caísse no esquecimento.

16 Traduzindo ao pé da letra, seria: “derrame-suas-tripas” ou “derrame-sua-coragem”.

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CAPÍTULO TRÊS

O Cetro das Estações

Eu fiquei à deriva por algum tempo, nem desperta nem adormecida, pêga em algum lugar entre os dois. Sonhos confusos e semi-esquecidos nadavam por minha imaginação, misturados com a realidade, até que eu não soubesse mais qual era qual. Sonhei com minha família, com Ethan, mamãe e meu padrasto, Luke. Sonhei com eles seguindo sem mim, vagarosamente esquecendo quem eu era, que tenha existido. Formas e vozes flutuavam dentro e fora da minha consciência: Tiaothin dizendo-me para sair dessa de auto-piedade porque ela estava chateada, Rowan falando para a Rainha Mab que ele não tinha nenhuma ideia de que eu reagiria são violentamente a um simples cogumelo, outra voz falando à rainha que eu nunca acordaria. Algumas vezes sonhava que Ash estava no quarto, de pé em um canto ou ao lado da minha cama, só me olhando com brilhantes olhos prateados. Em delírio, devo tê-lo ouvido sussurrar que sentia muito.

- Humanos são criaturas tão frágeis, não são? – Murmurou uma voz uma noite, enquanto eu flutuava para dentro e para fora do estupor. – Um minúsculo bocado de spill-your-guts os envia para dentro de um coma. Patético. – Bufou. – Escutei que esta aqui estava apaixonada pelo Príncipe Ash. Faz você se perguntar o que Mab fará com ela, uma vez que acorde. Ela não está nada pressurosa sobre a ursinha Summer estar toda caidinha por seu filho favorito.

- Bem, ela certamente escolheu um momento inconveniente para bancar a Bela Adormecida – adicionou outra voz -, com o Exchance chegando e tudo mais. – Bufou. – Se ela acordar, Mab deve matá-la pelo aborrecimento. De qualquer jeito, isto será entretenimento. – O som da risada deles esvaneceu-se, e eu flutuei na escuridão.

Uma eternidade passou com poucas distrações. Vozes deslizando por mim, sem importância. Tiaothin repetidamente me cutucando nas costelas, suas garras afiadas extraindo sangue, mas a dor pertencia à outra pessoa. Cenas da minha família: mamãe na varanda com um oficial da polícia, explicando que não tinha uma filha desaparecida; Ethan brincando no meu quarto, que agora era um escritório, repintado e reimobiliado, todos os meus itens pessoais doados.

Havia um palpitar monótono no meu peito enquanto eu o assistia; em outra vida, isto deveria ter sido triste, saudoso, mas eu estava além de sentir qualquer coisa agora e assisti ao meu meio-irmão com curiosidade imparcial. Ele estava falando com um familiar coelhinho de brinquedo, e aquilo me fez franzir o cenho. Aquele coelho não tinha sido destruído?

- Eles a esqueceram. – Murmurou uma voz na escuridão. Uma profunda voz familiar. Virei e encontrei Machina, seus cabos dobrando-se atrás dele, observando-me com um pequeno sorriso em seus lábios. Seu cabelo prateado brilhava na escuridão.

Minha testa franziu. – Você não está aqui. – Murmurei, recuando. – Eu te matei. Você não é real.

- Não, meu amor. – Machina balançou sua cabeça, seu cabelo ondulando suavemente. –

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Você me matou, mas eu ainda estou com você. Sempre estarei com você, agora. Não há como esconder isto. Nós somos um.

Afastei-me, tremendo. – Vá embora. – Disse, recuando dentro da escuridão. O Rei de Ferro observava-me intensamente, mas não prosseguiu. – Você não está aqui. – Eu repeti. – Isto é só um sonho, e você está morto! Deixe-me sozinha. – Virei e fugi dentro da escuridão, até que o brilho suave do Rei de Ferro desapareceu dentro do vazio.

OUTRA ETERNIDADE SE PASSOU, ou talvez só alguns segundos, quando através da confusão e escuridão, senti uma presença perto da cama. Mamãe? Eu me perguntei, uma garotinha novamente. Ou talvez Tiaothin, que veio para me aborrecer novamente. Vá embora, disse para eles, recuando para dentro dos meus sonhos. Não quero ver você. Não quero ver ninguém. Só me deixe sozinha.

- Meghan. – Sussurrou uma voz dolorosamente familiar, puxando-me do vazio. Eu a reconheci imediatamente, só que percebi que era uma farsa da minha imaginação desesperada, porque o dono verdadeiro daquela voz nunca estaria aqui, falando comigo.

Ash?

- Acorde. – Ele murmurou, sua voz profunda cortando através das camadas de escuridão. – Não faça isto. Se você não voltar logo, irá desaparecer e ficar à deriva para sempre. Lute contra isto. Volte para nós.

Não queria acordar. Não havia nada exceto dor esperando por mim no mundo real. Se eu estivesse dormindo, não poderia sentir nada. Se eu estivesse dormindo, não teria que encarar Ash e contemplar o frio em seu rosto quando ele olhava para mim. A escuridão era meu retiro, meu santuário. Aproximei-me da voz de Ash, fundo na confortável escuridão. E, apesar das camadas de sonho e delírio, escutei um soluço silencioso.

- Por favor. – Uma mão apertou a minha, real e sólida, ancorando-me ao presente. – Eu sei o que deve pensar de mim, mas... – A voz quebrou-se, tomou um fôlego esfarrapado. – Não parta. – Sussurrou. – Meghan, não vá. Volte para mim.

Solucei em retorno, e abri os meus olhos.

O quarto estava escuro, vazio. Luz faery filtrava-se através da janela, moldando tudo em azul e prata. Como sempre, o ar estava gelidamente frio. Um sonho, então, pensei, quando a névoa que se retorcia ao redor da minha cabeça por tanto tempo finalmente clareou, deixando-me devastadoramente acordada e alerta. Foi um sonho, afinal.

Um sentimento de traição me encheu. Tinha saído de minha adorada escuridão por nada. Queria recuar, retornar à indiferença onde nada podia me machucar, mas agora que estava acordada, não podia voltar.

Uma dor encheu meu peito, tão aguda que eu gritei alto. É assim que se sente um coração partido? Seria possível morrer de dor? Sempre tinha pensado que as garotas na escola eram muito dramáticas; que elas terminavam com seus namorados, choravam e se remoíam por semanas. Não pensei que precisassem jogar fora tal preocupação exagerada. Mas eu nunca estive apaixonada antes.

O que faria agora? Ash me desprezava. Tudo o que ele tinha dito ou feito era para me trazer para a sua rainha. Ele era um trapaceiro. Ele tinha me usado, para alcançar seus próprios objetivos.

E a parte mais triste, eu ainda o amava.

Pare com isto! Falei para mim mesma, quando as lágrimas ameaçaram mais uma vez. Já

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chega disto! Ash não merece isto. Ele não merece nada. Ele é um faery sem alma que brincou com você a cada passo do caminho, e você caiu como uma idiota. Tomei um profundo fôlego, empurrando as lágrimas de volta, desejando que elas congelassem dentro de mim. Emoções, lágrimas, memórias, qualquer coisa que me fez fraca. Porque se eu fosse jogar na Corte Unseelie, tinha que ser feita de gelo. Não, não gelo. Como ferro. Nada me ferirá novamente, eu pensei, enquanto as lágrimas secavam e minhas emoções murcharam-se em uma bola mirrada. Se os malditos faeries querem jogar sujo, que seja. Posso jogar sujo também.

Atirei as cobertas e fiquei de pé, o ar frio esfaqueando minha pele. Deixe me congelar, não me importo. Meu cabelo estava uma confusão, emaranhado e fraco, minhas roupas amassadas e nojentas. Tirei-as e caminhei até o banheiro para um longo ficar de molho na banheira—o único lugar quente na corte inteira—antes de me vestir em jeans brancos, uma blusa preta presa no pescoço e sem mangas, um longo casaco preto. Quando estava terminando de amarrar minhas botas pretas, Tiaothin entrou no quarto.

Ela piscou, obviamente atônica de me ver de pé, antes de abrir um grande sorriso irônico, as presas brilhando à luz da lua. – Você de pé! – Ela exclamou, pulando e saltando em direção a minha cama. – Você está acordada. Que alívio. Mab tem sido aborrecida e excêntrica desde que você desmaiou. Ela pensou que dormiria para sempre, e então teria que passar um tempo danado explicando sua condição para aos cortesões Seelie, quando eles chegarem para o Exchange.

Franzi meu cenho para ela, e por um momento, uma minúscula faísca de esperança tremeluziu por dentro. – O que é Exchange? – Eu perguntei. Viriam por mim? Oberon finalmente enviou alguém para me resgatar deste buraco infernal?

Tiaothin, naquele jeito franco dela, parecia saber exatamente o que eu estava pensando. – Não se preocupe, mestiça. – Ela fungou, olhando para mim com olhos semicerrados. – Eles não estão vindo por você. Estão aqui para passar o Cetro das Estações. O verão está finalmente acabado, e o inverno está a caminho.

Senti uma pontada de desapontamento e o anulei. Sem fraqueza. Não mostre nada a ela. Dei de ombros e perguntei casualmente. – O que é o Cetro das Estações?

Tiaothin bocejou e se fez confortável na minha cama. – É um talismã mágico que as cortes passam entre elas com a mudança das estações. – Disse, colhendo uma linha solta na minha colcha. – Seis meses no ano, Oberon a conserva, quando a primavera e o verão estão no auge deles, e o inverno está fraco. Então, no equinócio de outono, é passado para a Rainha Mab, para significar a troca no poder entre as cortes. Os cortesões Summer estarão chegando logo, e nós teremos uma enorme festa para celebrar o começo do inverno. Todos em Tir Na Nog estão convidados, e a festa durará por dias. – Ela sorriu ironicamente e pulou no mesmo lugar, as tranças rastafári voando. – É uma coisa boa você acordar quando o fez, mestiça. Esta é uma festa que você não quer perder!

- Lorde Oberon e Lady Titânia estarão aqui?

- Lorde Orelhas Pontudas? – Tiaothin bufou. – Ele é muito importante para ir se favelizando pelas redondezas com seres inferiores Unseelie. Nah, Oberon e sua rainha vaca, Titânia, ficarão em Arcádia onde estão confortáveis. Sorte, também. Aqueles dois pescoços-duros podem realmente arruinar uma boa festa.

Então estaria por mim mesma, afinal. Por mim tudo bem.

A CORTE SUMMER CHEGOU num levante de música e flores, provavelmente em direto desafio à Winter, cujas tradições eu estava começando a odiar. Fiquei de pé com neve até as panturrilhas, a gola do meu casaco peludo voltado para cima contra o frio, assistindo os feéricos Unseelie empilharem-se sobre o pátio. O evento estava tomando lugar no lado de fora, no pátio cheio de gelo e congelado em crepúsculo eterno. Por

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que os feéricos Winter não podiam realizar suas festas na superfície por uma vez? Sentia tanta falta da luz do sol que doía.

Senti uma presença atrás de mim, então escutei um riso abafado em minha orelha. – Estou tão contente que foi capaz de fazer isto pela festa, Princesa. Teria sido terrivelmente aborrecido sem você.

Minha pele arrepiou-se, e esmaguei meu medo quando a respiração de Rowan fez cócegas na minha nuca. – Não perderia isto por nada. – Respondi, mantendo minha voz clara e uniforme. – O que posso fazer por você, Vossa Alteza?

- Oh ho, agora estamos representando a rainha do gelo. Bravo, Princesa, bravo. Que retorno corajoso do seu coração partido. Não é o que esperava de um Summer, contudo. – Ele deslocou-se ao redor de mim de forma que estávamos a polegadas de distância, tão perto que podia ver meu reflexo em seus olhos azul-gelo. – Sabe – ele sussurrou, seu fôlego frio nas minhas bochechas –, posso ajudá-la a esquecê-lo.

Queria desesperadamente recuar, mas mantive meu espaço. Você é ferro, lembrei a mim mesma. Ele não pode machucar você. Você é aço por dentro. – A oferta é apreciada – disse, trocando olhares com o príncipe sidhe -, mas não preciso da sua ajuda. Já o deixei para trás.

- Deixou? – Rowan não soou convencido. – Sabe que ele está bem ali, não sabe? Fingindo que não está nos observando? – Ele sorriu afetadamente e pegou minha mão, pressionando-a em seus lábios. Meu estômago volteou antes que eu pudesse parar aquilo. – Vamos mostrar ao querido Ash o quanto você o deixou para trás. Vamos lá, Princesa. Sabe que você quer.

Eu queria. Queria ferir Ash, fazê-lo sentir ciúmes, fazê-lo passar pela mesma dor que eu tinha passado. E Rowan estava bem ali, oferecendo. Tudo o que tinha que fazer era inclinar-me para frente e encontrar sua sorridente boca afetada. Hesitei. Rowan era deslumbrante; eu poderia fazer pior no departamento de encontros casuais.

- Beije-me. – Rowan sussurrou.

Uma trombeta soou, ecoando sobre o pátio, e o cheiro de rosas encheu o ar. A Corte Seelie estava chegando, para os rosnados e gritos penetrantes dos feéricos Winter.

Pulei, arrancando a mim mesma do torpor induzido por glamour. – Maldição, pare de fazer isto! – Rosnei, arrancando minha mão do sorriso afetado dele e cambaleei para trás. Meu coração bateu contra minha caixa torácica. Deus, eu quase caí desta vez; outro meio segundo e eu teria sido dele. A vergonha coloriu minhas bochechas.

Rowan gargalhou. – Você fica ainda mais atraente quando está enrubescida. – Ele riu em silêncio, saindo do alcance de um tapa. – Até a próxima vez, Princesa. – Com outra reverência burlesca, ele escapuliu.

Olhei ao redor furtivamente, perguntando-me se Ash realmente estava perto e nos observando, como Rowan disse. Apesar de ver Sage e seu enorme lobo aguardando contra um pilar próximo ao trono de Mab, Ash não estava em nenhum lugar à vista.

Dois sátiros caminharam suavemente através dos portões cobertos de sarças do pátio, segurando trompetes pálidos que pareciam feitos de ossos. Eles ergueram os chifres aos lábios e sopraram um assopro agudo, um que deixou a Corte Unseelie uivando. No topo de seu trono de gelo, Mab assistia os procedimentos com um débil sorriso.

- Te peguei! – Sibilou uma voz, e algo me beliscou dolorosamente no traseiro. Gemi, voltando-me para Tiaothin, que riu e se afastou dançando, as tranças rastafári voando. – Você é uma idiota, mestiça. – Ela zombou, quando eu chutei neve nela. Ela se esquivou facilmente. – Rowan é muito bom para você, e ele é experiente. A maioria das pessoas, feéricos e rapazes mortais inclusive, dariam seus dentes para tê-lo para si mesmos por uma noite. Prove-o. Garanto que irá gostar.

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- Não estou interessada. – Vociferei, olhando para ela com olhos semicerrados. Meu bumbum ainda doía, fazendo minhas palavras afiadas. – Estou cheia de jogar com príncipes faery. Eles podem ir para o inferno, pelo que me consta. Preferiria me despir para um grupo de barretes vermelhos.

- Ooh, se você fizer, posso assistir?

Rolei meus olhos e virei de costas quando a Corte Seelie fez sua aparição. Uma fila de cavalos brancos trotou vagarosamente para dentro do pátio, seus cascos flutuando sobre o chão, seus olhos tão azuis quanto o céu de verão. Acima das selas feitas de cascas, ramos e vinhas florescendo, onze cavaleiros olhavam para baixo altivamente, elegantes em suas frondosas armaduras. Atrás dos cavaleiros vieram os porta-estandartes, sátiros e anões carregando as cores da Corte Summer. Então, finalmente, uma elegante carruagem parou, coroada em espinhos e roseiras, e flanqueada por dois trolls de rosto cruel que rosnaram e arreganharam seus dentes para a multidão de feéricos Winter.

Tiaothin fungou. – Eles estão sendo altamente paranóicos este ano. – Ela murmurou, quando um troll deu uma pancada em um duende que se aproximou muito. – Eu pergunto, quem é o nobre alto-e-poderoso, para justificar tais medidas de segurança?

Não respondi, por que minha pele estava arrepiando-se em alarme, apenas não sabia por que, até um momento mais tarde. A carruagem rolou até parar, as portas foram abertas...

E o Rei Oberon, Senhor da Corte Seelie, saiu para a neve.

Os feéricos Unseelie engasgaram e rosnaram, recuando da carruagem, quando o Erlking varreu seu impaciente olhar sobre a multidão. Meu coração bateu no meu peito. Oberon pareceu mais imponente do que nunca: esguio, antigo e poderoso, com seu cabelo prateado caindo em seu peito e seus olhos como folhas pálidas. Ele usava vestes da cor das florestas; marrom, dourado e verde, e uma coroa chifrada repousava em sua fronte.

Atrás de mim, Tiaothin engasgou, achatando suas orelhas. - Oberon? – Rosnou, enquanto eu observava o olhar do Erlking varrer a multidão, buscando meticulosamente. – O que o Lorde Orelhas Pontudas está fazendo aqui?

Não pude responder, porque o olhar penetrante de Oberon finalmente me encontrou. Seus olhos se estreitaram, e eu tremi sobre aquele olhar. A última vez que tinha visto o Erlking, eu tinha me esgueirado da Corte Seelie para encontrar meu irmão. Oberon enviou Puck para me trazer de volta, e eu o convenci a me ajudar ao invés. Depois de nossa rebelião e direta desobediência, imaginava que o rei Seelie não estivesse nem um pouco feliz com nenhum de nós.

Meu estômago retorceu-se e um caroço subiu para minha garganta, quando eu pensei em Puck. Consegui engoli-lo antes que qualquer Unseelie notasse meu ataque de fraqueza, mas as memórias ainda me feriam. Desesperadamente desejei que Puck estivesse ali. Olhei fixamente para a carruagem, esperando que sua esguia forma ruiva viesse saltando para fora, reluzindo aquele sorriso confiante, mas ele não apareceu.

- Lorde Oberon. – Mab disse com uma voz neutra, mas estava claro que ela, também, estava surpresa em ver seu antigo rival. – Isto é uma surpresa. A que devemos a honra de sua visita?

Oberon se aproximou do trono, flanqueado por seus dois guarda-costas trolls. A multidão de feéricos Unseelie separou-se rapidamente diante dele, até que ele parou diante do trono. – Lady Mab. – O Erlking disse, sua voz poderosa ecoando sobre o pátio. – Vim para exigir o retorno de minha filha, Meghan Chase, à Corte Seelie.

Um murmúrio atravessou as filas de feéricos Unseelie, e todos os olhos voltaram-se para mim. Ferro, lembrei a mim mesma. Você é como ferro. Não os deixe assustar você. Saí de trás de Tiaothin e encontrei os supres os olhos hostis frontalmente.

Oberon gesticulou para a carruagem, e os trolls estenderam as mãos para alcançar o

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interior, arrastando para fora dois sidhe Winter pálidos, seus braços amarrados atrás das costas deles com vivas videiras se contorcendo. – Trouxe uma troca, como as regras ditam. – Oberon continuou, enquanto os trolls empurravam os prisioneiros para frente. – Irei os devolver em troca da liberdade de minha filha...

Mab interrompeu. – Temo que se enganou, Lorde Oberon. – Ela disse asperamente, com o menor dos sorrisos. – Sua filha não é uma prisioneira dos Unseelie, mas uma convidada disposta. Ela veio até nós por sua própria vontade, depois de fazer uma barganha com meu filho, para tanto. A garota está presa pelo contrato dela com Príncipe Ash, e você não tem nenhum poder de exigir o retorno dela. Uma barganha foi feita, deve ser honrada por todos.

Oberon enrijeceu, então vagarosamente se virou para mim. Eu engoli em seco enquanto aqueles olhos tão-antigos-quanto-a-floresta perfuravam direto através de mim. – É verdade, filha? – Ele perguntou, e apesar de sua voz suave, ela ecoou em meus ouvidos e fez o chão tremer.

Eu mordi meu lábio e aquiesci. – É verdade. – Sussurrei. Acho que seu lobo de confiança não retornou para te falar esta parte.

O Erlking balançou sua cabeça. – Então, não posso ajudá-la. Garota tola. Você condenou a si mesma ao seu destino. Que assim seja. – Ele deu as costas para mim, um gesto desertado que falou mais alto do que quaisquer palavras, e eu senti como se ele tivesse me socado no estômago. – Minha filha fez sua escolha. – Anunciou. – Vamos acabar com isto.

É isto? Pensei enquanto Oberon caminhava de volta para a carruagem. Você não vai lutar para me libertar, barganhar com Mab pela minha liberdade. Por causa do meu estúpido contrato, vai simplesmente me deixar aqui?

Aparentemente sim. O Erlking não olhou para mim uma segunda vez quando ele alcançou a carruagem e gesticulou para seus trolls. Um deles empurrou os prisioneiros Unseelie de volta para dentro da carruagem, enquanto o outro abriu a porta oposta com um grunhido.

Uma alta faery régia saiu caminhando para a neve. A despeito de seu tamanho, ela parecia tão delicada que poderia quebrar a mais fraca rajada de vento. Seus membros eram feixes de ramos, mantidos juntos com tecidos de capim. Gomos brancos frágeis cresciam do topo da cabeça no lugar de cabelo. Um manto magnífico cobria seus ombros, feito de cada flor sobre o sol: lírios, rosas, tulipas, narcisos, e plantas para as quais eu não tinha um nome. Abelhas e borboletas voavam ao redor dela, e o cheiro de rosas ficou subitamente avassalador.

Ela prosseguiu, e as hordas de feéricos Winter saltaram para trás a sua aproximação, como se ela tivesse alguma doença. No entanto, não era a florida mulher que todos os olhos seguiam, mas o que ela segurava em suas mãos.

Era um cetro, como os que reis e rainhas costumavam carregar, só que este não era simplesmente alguma vareta decorada. Pulsava com um suave brilho âmbar, como se luz do sol se prendesse à madeira viva, derretendo a neve e o gelo onde tocava. O punho longo estava envolto em vinhas, e da cabeça talhada do cetro continuamente brotava flores, insetos, e minúsculas plantas. Deixava um rastro de folhas e pétalas onde a senhora passava, e os feéricos Winter mantiveram distância, rosnando e sibilando.

Ao pé do trono, a senhora ajoelhou-se e ergueu o cetro em ambas as mãos, curvando sua cabeça. Por um momento, Mab não fez nada, simplesmente observando a faery com uma expressão ilegível em sua face. O resto da Corte Winter parecia segurar seu fôlego. Então, com lentidão deliberada, Mab ficou de pé e arrancou o cetro das mãos da mulher. Segurando-o diante dela, a rainha o estudou, então o ergueu para todos verem.

O cetro flamejou, a aura dourada tragada pelo azul gélido. As folhas e flores tremeram e caíram. Abelhas e borboletas rodopiaram sem vida para o chão, suas as asas leves cobertas em gelo. O cetro flamejou uma vez mais e se tornou gelo, enviando prismas cintilantes de luz sobre o pátio.

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A faery ajoelhada diante da rainha estremeceu e então... ela, também, murchou. Suas deslumbrantes vestes secaram, as flores tornando-se pretas e caindo ao chão. Seu cabelo enrolou-se, tornando-se seco e frágil, antes de descamar seu couro cabeludo. Ela lançou-se para frente na neve, contraiu-se uma vez, e tudo ficou silencioso. Enquanto eu assistia em horror, perguntando-me porque ninguém se adiantava para ajudar, o cheiro de rosas se esvaiu, e o cheiro de vegetação apodrecida encheu o pátio.

- Está feito. – Disse Oberon, sua voz cansada. Ergueu sua cabeça e encontrou o olhar de Mab. – O Exchange está completo, até o equinócio de verão. Agora, se você nos der licença, Rainha Mab. Nós devemos retornar a Arcádia.

Mab atirou a ele um olhar que era puramente predatório. – Não ficará, Lorde Oberon? – Ela se lamentou. – Para celebrar conosco?

- Acho que não, senhora. – Se Oberon ficou perturbado pela forma como Mab o olhou, ele não o demonstrou. – O final do verão não é algo que ansiamos. Temo que tenhamos que declinar. Mas, esteja avisada, Rainha Mab, isto ainda não está acabado. De um jeito ou de outro, terei minha filha de volta.

Dei um pulo diante destas palavras. Talvez Oberon tivesse vindo por mim depois de tudo. Mas o olhar de Mab se estreitou, e ela acariciou o punho do cetro.

- Isto soa desconfortavelmente perto de uma ameaça, Erlking.

- Meramente uma promessa, minha senhora. – Com Mab ainda olhando ferozmente para ele, Oberon deliberadamente virou suas costas para a Rainha Winter e caminhou a passos largos para a carruagem. Um troll abriu a porta para ele, e o Erlking entrou sem olhar para trás. O cocheiro sacudiu as rédeas, e a comitiva Summer se foi, ficando menor e menor, até que a escuridão os engoliu.

Mab sorriu.

- O verão acabou. – Ela anunciou em sua voz áspera, erguendo o outro braço como se para abraçar seus expectantes súditos. – O inverno está vindo. Agora, deixemos a Festa começar!

Os Unseelie ficaram frenéticos, uivando, rosnando e gritando dentro da noite. A música começou de algum lugar, selvagem e escura, tambores batendo um rápido ritmo enlouquecido.

EU NÃO ENTREI NA festa. Um, eu não estava no clima, e dois, dançar com os feéricos Winter não parecia tão boa ideia. Especialmente depois que vi um grupo de barretes vermelhos bêbados e com glamour forte pulular em um boggart17 e o rasgar membro por membro. Era como estar na primeira fila de um concerto de roque do inferno. Em geral eu ficava recolhida nas sombras, tentando evitar prestar atenção e pensando se Mab me acharia rude se me retirasse para meu quarto. Olhando para as estátuas congeladas de humanos e feéricos espalhadas por toda a parte no pátio, decidi não arriscar.

Ao menos Rowan estava ausente das celebrações, ou espreitando de algum lugar que não podia ver. Eu tinha estado abraçando a mim mesma para afastar seus avanços toda a noite. Ash também estava misteriosamente ausente, o que era tanto um alívio e quanto um desapontamento. Descobri a mim mesma buscando por ele, vasculhando as sombras e a plebe de feéricos dançarinos, procurando por uma familiar cabeça despenteada ou o esplendor de um olhar prateado.

Pare com isto. Pensei, quando descobri o que estava fazendo. Ele não está aqui. E mesmo se estivesse, o que você faria? Chamá-lo para dançar? Ele tornou perfeitamente claro o que pensa de você.

17 Boggart. Muitas vezes traduzido como “bicho-papão”. No folclore inglês, é um faery doméstico que faz as coisas desaparecerem, azedar o leite, e os cães ficarem mancos. Malévolo sempre, o bicho papão acha a sua família onde quer que ela vá. No norte da Inglaterra havia a crença de que não devia ser dado um nome a ele, pois ele se tornaria incontrolável e destrutivo.

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- Com licença, Princesa.

Por um momento, meu coração saltou diante da suave voz profunda. A voz que poderia tanto ser de Rowan ou Ash, elas soavam muito parecidas. Abraçando a mim mesma, virei, mas não era Ash de pé ali. Felizmente, não era Rowan, tão pouco. Era o outro irmão, o mais velho dos três. Sage.

Maldição, ele é deslumbrante também. O que havia com esta família, que todos os filhos eram tão esdruxulamente atraentes que machucava olhar para eles? Sage tinha a pele pálida de seus irmãos e altas maçãs do rosto, e seus olhos eram lascas de gelo verde, espreitando debaixo de finas sobrancelhas. Longos cabelos pretos ondeavam atrás dele, como uma cascata de tinta. Seu lobo sentava-se a alguns passos de distância, observando-me com inteligentes olhos dourados.

- Príncipe Sage. – Saudei com cautela, preparada para afastar outro assalto. – Posso ajudá-lo com alguma coisa, Vossa Alteza? – Ou só veio para se jogar em mim como Rowan, ou zombar de mim como Ash?

- Quero falar com você. – O príncipe disse sem preâmbulos. – Sozinha. Caminhará comigo um pouco?

Isto me surpreendeu, ainda assim hesitei, cautelosa. – Aonde vamos? – Perguntei.

- À sala do trono. – Sage respondeu, varrendo seu olhar de volta ao palácio. – É meu dever guardar o cetro esta noite, pois somente aqueles com sangue real são admitidos a tocá-lo. Com todo o caos da Festa, é melhor manter o cetro longe das massas. Poderia causar confusão de outra maneira. – Quando eu parei, pensando, ele encolheu um ombro esguio. – Não a forçarei, Princesa. Vir ou não comigo, não faz diferença. Apenas queria falar com você sem Rowan, Ash, ou alguma phouka tentando ouvir por acaso a conversa.

Ele esperou pacientemente enquanto eu pelejei por uma resposta. Poderia recusar, mas não estava certa que queria. Sage parecia direto, quase profissional. Diferente de seus irmãos. Não ficava fazendo nenhuma tentativa para ser encantador, mas não estava sendo condescendente, tampouco, E diferente de Rowan, que transpirava encanto e malícia, ele não estava usando glamour, e acho que isto foi o que finalmente me convenceu.

- Tudo bem. – Decidi, fazendo sinal com a minha mão. – Falarei com você. Mostre o caminho.

Ele ofereceu seu braço, o que me surpreendeu novamente. Depois de um instante de hesitação, o aceitei, e nós nos movemos, seu lobo seguindo-nos silenciosamente atrás de nós.

Ele me levou de volta ao palácio, pelos corredores vazios enfaixados em gelo e sombra. Todos os feéricos Unseelie estavam no lado de fora, dançando pela noite adentro. Meus passos ecoaram alto contra os assoalhos duros; os dele e os do lobo não faziam nenhum som.

- Eu a tenho visto. – Sage murmurou sem olhar para mim. Girou para um canto, tão facilmente que eu tropecei para manter o passo. – Tenho a observado com meu irmão. E quero a alertar, você não deve confiar nele.

Quase ri, a afirmação era tão óbvia. – Qual deles? – Perguntei amargamente.

- Qualquer um deles. – Ele me guiou por outro corredor, um que reconheci. Estávamos próximos da sala do trono agora. Sage seguiu em frente sem abrandar. – Não conhece a inimizade entre Ash e Rowan, quão fundo a rivalidade vai. Especialmente da parte de Rowan. O ciúme que ele sente por nosso irmão mais novo é um veneno sombrio, corroendo-o por dentro, tornando-o amargo e vingativo. Ele nunca perdoou Ash pela morte de Ariella.

Nós entramos na sala do trono em toda a sua frígida beleza gélida. Sage me liberou e caminhou em direção ao trono, seu lobo caminhando suavemente atrás dele. Estremeci, aconchegando-me

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mais fundo dentro do meu casaco. Estava mais frio aqui do que lá fora. – Mas Ash não foi responsável pela morte de Ariella. – Disse, esfregando meus antebraços. – O que... – Parei, não querendo dizer isto em voz alta. Que foi Puck, quem os guiou ao perigo. Quem era responsável pela morte do amor de Ash.

Sage não respondeu. Ele tinha parado a alguns passos atrás do trono de Mab, olhando fixamente alguma coisa no altar diante dele. Um momento depois, descobri que era a fonte do terrível frio na sala. O Cedro das Estações pairando a algumas polegadas acima do altar, lavando o rosto do príncipe em gélida luz azul.

- Bonito, não é? – Ele murmurou, correndo seus dedos sobre o punho congelado. – Todo ano eu o vejo, e ainda nunca cessa de me maravilhar. – Seus olhos brilharam, ele parecia estar em algum tipo de transe. – Algum dia, se Mab ficar cansada de ser rainha, isto será meu para aceitar, para governar com ele. Quando isto acontecer...

Não consegui ouvir o resto, porque naquele momento o lobo soltou um longo rosnado baixo e arreganhou seus dentes.

Sage girou. Em um suave movimento, ele puxou a espada de sua cintura. Olhei fixamente para ela. Era muito parecida com a de Ash, reta e fina, a lâmina desprendendo uma gélida aura azul. Estremeci, relembrando como era agarrar aquele punho, sentir o horrível frio morder pela minha pele. E por um momento, eu estava aterrorizada. Ele vai me matar, por isto me trouxe aqui sozinha. Ele vai me matar afinal.

- Como conseguiram entrar aqui? – Sage sibilou.

Virei. Lá, contra a parede dos fundos, muitas formas escuras desprenderam-se das sombras. Quatro eram magras e esguias, quase emaciadas, suas siluetas nada mais do que arames retorcidos juntos para formar membros e um corpo, parecendo a grandes fantoches enquanto eles deslizaram ao longo do chão, de quatro. Os rosnados do lobo tornaram-se latidos.

Meu coração girou quando outra forma caminhou para dentro da luz, vestido em segmentada armadura de metal, brasonado com uma coroa de arame farpado. Ele usava um elmo, mas o visor estava levantado, mostrando um rosto tão familiar para mim quanto o meu próprio. Não havia como confundir aquela pele pálida, aqueles intensos olhos cinza. O rosto de Ash olhou raivosamente para mim de debaixo do elmo, seus olhos gelados como o céu de inverno.

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CAPÍTULO QUATRO

O Roubo

- Ash? – Sage murmurou em descrença. Balancei minha cabeça mudamente, mas o príncipe não estava olhando para mim.

O cavaleiro piscou, dando a Sage um olhar solene. – Temo que não, Príncipe Sage. – Ele disse e eu estremeci diante do quanto ele soava como o seu sósia. – Seu irmão simplesmente foi o anteprojeto da minha criação.

- Tertius. – Sussurrei, e o doppelgänger18 de Ash me deu um sorriso aflito. A última vez que eu o tinha visto, o cavaleiro do Rei de Ferro estava na torre de Machina, justo antes que ela viesse abaixo. Não podia imaginar como tinha sobrevivido. – O que está fazendo aqui?

O olhar de Tertius encontrou o meu, seus olhos vazios e mortos, parecendo tanto com Ash que isto fez meu coração doer. – Perdoe-me, Princesa. – Ele murmurou, e fez um gesto vasto com o seu braço.

Com gritos agudos como facas roçando-se uma contra a outra, os faeries Iron precipitaram-se sobre mim.

Eram estarrecedoramente rápidos, manchas cinza dando passos rápidos através do chão. Eu tive a imagem absurda de ser emboscada por um enxame de aranhas metálicas, antes que eles estivessem sobre mim. O primeiro atacante saltou e golpeou meu rosto com uma garra retorcida de arame, tão afiada quanto qualquer navalha de barbear.

Encontrei uma cintilante espada azul ao invés, a lâmina gritou de forma estridente em uma saraivada de faíscas, trazendo lágrimas para os meus olhos. Sage jogou para trás um atacante e girou para encontrar o próximo, mergulhando enquanto garras de arame golpearam acima de sua cabeça. O príncipe Winter estendeu uma palma, e uma lança de gelo recortado surgiu do chão, perfurando o feérico Iron. Rápido como um raio, eles se esquivaram, saltando para trás e nos dando tempo para recuar. Agarrando meu pulso, Sage me arrastou para trás do trono.

- Mantenha-se fora do caminho. – Ele ordenou, justamente quando os faeries desceram sobre nós novamente, enxameando sobre a cadeira e deixando profundas rachaduras no gelo. Sage golpeou um, só para fazê-lo saltar para trás. Outro se precipitou de trás, golpeando-o violentamente com garras de aço. O príncipe se esquivou, mas não se moveu rápido o suficiente, e um talho brilhante de sangue coloriu o chão.

Meu estômago contorceu-se enquanto o príncipe cambaleava, balançando sua espada em um círculo desesperado para manter os assassinos para trás. Havia muitos para ele, e eram muito rápidos.

18 Doppelganger: um fantasma que é a réplica de uma pessoa viva e que assombra seu homólogo vivo. Do alemão Doppel – duplo; e Gänger, andarilho, frequentador.

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Freneticamente, olhei ao redor procurando por uma arma, mas apenas vi o cetro, descansando sobre o pedestal perto do trono. Sabendo que provavelmente estava quebrando uma dúzia de regras sagradas, eu me lancei para o cetro e o agarrei por seu punho congelado.

O frio cauterizou as minhas mãos, queimando-as como ácido. Ofeguei e quase o deixei cair, rangendo meus dentes contra a dor. Sage ficou de pé no meio de um turbilhão afiado, desesperadamente tentando mantê-los longe. Vi linhas de vermelho em seu rosto e peito. Tentando ignorar a dor cauterizante, eu corri atrás de um feérico Iron, erguendo o cetro acima da minha cabeça e derrubando-o nas costas do espigado faery.

Ele rodopiou com velocidade cegante. Eu nem mesmo vi o golpe até que ele me pegou da direita para a esquerda pelo do rosto, fazendo luzes explodir atrás dos meus olhos. Eu voei para um canto atrás, golpeando minha cabeça em alguma coisa dura e afundei no chão. O cetro caiu da minha mão e rolou para longe. Atordoada, assisti o faery correr em direção a mim, mas subitamente parou tremendo como SE puxado por cordas invisíveis. Gelo cobriu seu corpo, subindo pelas linhas de junção no arame enquanto o faery agarrava a si mesmo freneticamente. Magros dedos de arame romperam-se, e as debatidas do faery reduziram, antes que se curvasse sobre si mesmo como um gigante inseto e parasse de se mover completamente.

Não tinha o fôlego para gritar. Tentei me afastar da parede, mas tudo girou violentamente e meu estômago deu um solavanco. Escutei passos vindo direito para mim e abri meus olhos para ver Tertius inclinar-se e pegar o Cetro das Estações.

- Não. – Consegui, tentando debater-me com meus pés. O chão oscilou, e eu cambaleei para trás. – O que está fazendo?

Ele me observou com solenes olhos cinzentos. – Seguindo as ordens do meu rei.

- Rei? – Lutei para focar a vista. Tudo parecia estar se movendo em câmara lenta. A poucos passos de distância, Sage e os assassinos lutavam. O lobo tinha suas mandíbulas apertadas ao redor da perna de um faery, e Sage o prensou sem piedade com sua espada. – Você não tem mais um rei. – Falei para Tertius, sentindo-me zonza e entorpecida. – Machina está morto.

- Sim, mas nosso reino perdura. Sigo os comandos do novo Rei Iron. – Tertius murmurou, puxando sua espada. Olhei fixamente para a lâmina de aço, esperando que fosse rápido. – Não carrego nenhuma má intenção contra você, desta vez. Minhas ordens não incluem matá-la. Mas devo obedecer meu senhor.

E com isto, Tertius girou sobre seus calcanhares e marchou para longe, ainda segurando o Cetro das Estações. Ele pulsava azul e branco em suas mãos, cobrindo suas luvas com gelo, mas ele não se atrapalhou. Seu rosto estava escurecido enquanto ele caminhava a largos passos atrás de Sage, ainda preso em batalha com os assassinos. O lobo debulhava sobre o chão em uma poça de sangue, e as respirações de Sage vinham em arfares ásperos enquanto ele lutava sozinho. Em horror, vi o que Tertius ia fazer e gritei alto um alerta.

Muito tarde. Quando Sage cortou viciosamente um dos feéricos Iron, ele não viu Tertius assomar-se atrás dele até que o cavaleiro estivesse bem ali. Finalmente consciente do perigo, Sage rodopiou, girando sua espada, cortando Tertius na cabeça. O cavaleiro rebateu a lâmina lateralmente e, enquanto Sage recuava cambaleando, deu um passo para frente e fincou sua própria espada no peito do príncipe Winter.

O tempo pareceu parar. Sage ficou lá de pé por um momento, um olhar de choque em sua face, olhando fixo para a lâmina em seu peito. Sua própria espada atingiu o chão com um tinido ressoante.

Então Tertius libertou a lâmina com um puxão, e eu ofeguei. Sage desabou no chão, sangue se empoçando em seu peito e escorrendo em direção ao gelo. Os assassinos se esticaram para dar o bote nele, mas Tertius os impediu com sua espada.

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- Basta. Nós temos o que viemos buscar. Vamos embora. – Ele limpou o sangue da espada e a embainhou, seus olhos se movendo para o corpo do assassino congelado. – Busquem seu irmão, rápido. Não podemos deixar nenhuma evidência para trás.

Os feéricos Iron correram para obedecer, levantando o faery morto em direção aos seus ombros, cuidadosamente não tocando o gelo perfurante na sua pele. Eles também juntaram os pedaços no chão. Tertius virou-se para mim, seu olhar gelado, enquanto a escuridão pairava nas bordas da minha vista. – Adeus, Meghan Chase. Espero que não nos encontremos novamente. – Ele girou rapidamente para seguir os assassinos, marchando para fora da minha linha de visão. Virei minha cabeça para segui-los, mas eles já tinham ido embora.

MINHA CABEÇA LATEJOU, e a escuridão ameaçou nos cantos da minha visão; tomei vários profundos fôlegos para trazê-la de volta. Não desmaiaria agora. Gradualmente, a escuridão agitada clareou, e empurrei a mim mesma para a vertical, olhando ao redor. A sala do trono tinha caído silenciosa novamente, exceto pelo bater vagaroso do meu coração, que soava desnaturadamente alto em meus ouvidos. Sangue manchava as paredes e empoçava ao longo do chão, horrivelmente vívido contra o gelo pálido. O altar que tinha segurado o Cetro das Estações jazia vazio e desnudo.

Meu olhar vagou pelos dois corpos ainda na sala comigo. Sage jazia sobre suas costas, sua espada a algumas polegadas da sua mão, olhando para o teto acima, engasgando. A alguns pés de distância, o corpo peludo do lobo, cinza desgrenhado listrado com sangue, jazia amarrotado sobre o gelo.

Mancando, corri até Sage, passando pelo corpo do pobre lobo, esparramado próximo a ele. A mandíbula do lobo boquiabria-se, e uma língua pendia para fora entre os dentes sangrentos. Tinha morrido protegendo seu mestre, e eu me senti mal com o pensamento.

Justo quando alcancei Sage, um estremecimento atravessou o corpo do príncipe. Sua cabeça arcou para trás, a boca boquiabrindo-se, e gelo se arrastou por seus lábios, espalhando-se por seu rosto, por seu peito, e por todo o caminho até seus pés. Ele enrijeceu quando o ar esfriou ao nosso redor, o gelo fazendo agudos sons quebradiços enquanto encerrava o príncipe em um casulo de cristal.

Não. Olhei mais perto, e descobri que o corpo de Sage estava se transformando em gelo. Seus dedos em garras flexionaram, perdendo sua cor, tornando-se duros e claros. Seu polegar abruptamente estalou e se quebrou sobre o chão. Coloquei minhas mãos na minha boca para não gritar. Ou vomitar. Sage teve um último tremor e ficou quieto, uma fria estátua dura onde um corpo vivo tinha estado um momento antes.

O filho mais velho da Corte Winter estava morto.

E foi assim que Tiaothin nos encontrou um instante depois.

Mais tarde, eu não recordaria muito daquele momento, mas lembraria do grito agudo de terror da phouka e da cólera enquanto ela fugia para contar ao resto da corte. Ouvi sua voz estridente ecoando abaixo do corredor, e soube que provavelmente deveria me mover, mas estava fria, atordoada para qualquer sentimento. Não saí do lado do príncipe até que Rowan entrou apressado com um pelotão de guardas, que deram o bote em mim com gritos raivosos. Mãos rudes me agarraram pelos meus ombros e cabelo, lançando-me para longe do corpo de Sage, indiferentes aos meus protestos e gritos de dor. Eu gritei para Rowan para lhe contar o que tinha acontecido, mas ele não estava olhando para mim.

Atrás dele, feéricos Unseelie se amontoavam para dentro da sala, e rugidos de fúria e ultraje encheram a câmara quando viram o príncipe morto. Feérico estavam gritando e chorando, rasgando uns aos outros, exigindo vingança e sangue. Atordoada, entendi que os Unseelie estavam ultrajados pelo assassinato de um príncipe Winter em seu próprio território. Que alguém tinha ousado esgueirar-se e matar

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um deles, bem debaixo de seus narizes. Não havia nenhuma tristeza ou remorso pelo príncipe em si, só fúria e exigências por vingança pela audácia disto. Perguntei-me se ninguém iria verdadeiramente sentir falta do príncipe da Winter.

Rowan caminhou até o corpo de Sage, sua expressão estranhamente vazia enquanto ele olhava fixamente para o corpo de seu irmão abaixo. No meio dos rugidos e gritos dos feéricos ao nosso redor, ele presenteou seu irmão com a curiosidade que se mostraria a um pássaro morto na calçada. Isto fez minha pele se arrepiar.

O silêncio caiu sobre a sala, e o frio desceu como um cobertor branco. Contorci-me dentro do agarre do meu captor e vi Mab parada na entrada, seu olhar intenso sobre o corpo de Sage. Todos recuaram enquanto ela entrava na sala do trono. Poder-se-ia ouvir um alfinete cair enquanto a Rainha caminhava até o corpo de Sage, inclinando-se para tocar seu frio peito congelado. Estremeci, porque a temperatura ainda estava caindo. Até mesmo alguns dos feéricos Winter pareceram desconfortáveis, enquanto novos pingentes de gelo formavam-se sobre o teto e a geada rastejava sobre pele e pêlo. Mab estava silenciosa inclinada sobre Sage, sua expressão ilegível, mas seus lábios de amora se separaram e declamaram uma única palavra. – Oberon.

Então ela gritou, e o mundo se despedaçou. Pingentes de gelo explodiram, voando para fora como estilhaços cristalizados, cobrindo a todos com lascas brilhantes. As paredes e o chão racharam-se, e os feéricos deram gritos agudos enquanto desapareciam dentro dos buracos abertos.

- Oberon! – Mab encolerizou-se novamente, voltando-se com um terrível olhar maníaco em seus olhos. – Ele fez isto! Esta é a sua vingança! Oh, Summer irá pagar! Eles irão pagar até gritarem por misericórdia, mas não encontrarão nenhuma piedade entre a Corte Winter! Retribuiremos este ato hediondo em espécie, meus súditos! Preparem-se para a guerra!

- Não! Minha voz foi afogada nos rugidos que surgiram dos feéricos Unseelie. Girando para fora do aperto do meu captor, eu cambaleei para o meio da sala.

- Rainha Mab. – Arfei, enquanto Mab voltava o peso todo do seu terrível olhar sobre mim. A loucura guerreava com a fúria em seus olhos, e eu recuei em terror. – Por favor, escute-me! Oberon não fez isto! A Corte Summer não matou Sage, foi o Rei Iron. Os feéricos Iron fizeram isto!

- Fique quieta! – Sibilou a rainha, arreganhando seus dentes. – Não escutarei suas tentativas patéticas de proteger sua família miserável, não quando o Rei Summer me ameaçou em minha própria corte. Seu senhor assassinou meu filho, e você ficará em silêncio, ou esquecerei a mim mesma e darei a ele um olho por olho!

- Mas é verdade! – Insisti, apesar de meu cérebro estar me gritando para calar a boca. Olhei ao redor desesperadamente e localizei Rowan, contemplando tudo com um sorriso fraco. Ash me apoiaria, mas Ash, como de costume, não estava aqui quando eu precisava dele. – Rowan, por favor. Ajude-me. Não estou mentindo, você sabe que não.

Ele me presenteou com uma expressão solene, e por um momento, eu realmente pensei que iria me ajudar, antes que um canto de sua boca se curvasse asquerosamente. – Não é bom enganar a rainha, Princesa. – Ele disse, parecendo lúgubre exceto pelo sorriso desdenhoso em seus olhos. – Se estes feéricos Iron fossem a ameaça, nós os teríamos visto agora, não acha?

- Mas eles realmente existem! – Gritei, à beira do pânico agora. – Eu os vi, e eles são a ameaça! – Virei para Mab. – E quanto ao enorme cavalo de ferro cuspidor de fogo que quase matou seu filho? Não acha que é uma ameaça? Chame Ash. – Disse. – Ele estava lá quando lutamos contra Ironhorse e Machina. Ele me apoiaria.

- Basta! – Mab gritou agudamente, voltando-se para mim. – Mestiça, você foi longe demais! Você já passou dos meus limites com um filho, e não tocará outro! Sei que procurou virar meu filho mais novo contra mim com sua declaração blasfêmica de amor, e eu não o permitirei! – Ela apontou uma

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unha manicurada para mim, e uma chama branco-azulada disparou entre nós enquanto eu cambaleava para trás. – Ficará em silêncio, de uma vez por todas!

Alguma coisa agarrou meus pés, segurando-os rápido. Olhei para baixo para ver gelo arrastando-se acima das minhas penas, movendo-se mais rápido do que já tinha visto antes. No espaço de um piscar de olhos, tinha fluído acima da minha cintura e continuava sobre meu estômago e peito. Agulhas de gelo apunhalavam minha pele enquanto eu envolvia meus braços ao redor de mim mesma, justo antes que eles fossem congelados contra meu peito. E ainda, o gelo continuou, arrastando-se pelo meu pescoço, queimando meu queixo. O pânico me apertou quando minha mandíbula inferior foi coberta, e gritei enquanto o gelo fluía para a minha boca. Antes que eu sugasse outro fôlego, cobriu meu nariz, minhas maçãs do rosto, meus olhos, e finalmente alcançou o topo da minha cabeça. Não podia me mover. Não podia respirar. Meus pulmões queimavam por ar, mas minha boca e nariz estavam cheios de gelo. Estava me afogando, sufocando, e sentia minha pele como se ela estivesse sendo descolada pelo frio. Queria perder a consciência, ansiei que a escuridão me levasse, mas apesar de não poder respirar e meus pulmões gritarem por oxigênio, eu não morri.

Além da parede de gelo, tudo quedou em silêncio. Mab parada diante de mim, sua expressão transformada entre o triunfo e o ódio. Ela virou para seus súditos, que a assistiam com olhos cautelosos, como se ela pudesse flagelá-los também.

- Fiquem preparados, meus súditos! – A rainha disse com voz áspera, erguendo seus braços. – A guerra com Summer começa agora!

Outro rugido, e os asseclas da Corte Unseelie dispersaram-se, deixando a sala com roucos gritos de guerra. Mab dispensou-me mais um olhar sobre os seus ombros, seus lábios curvando-se em um rosnado antes partisse. Rowan olhou fixamente para mim um momento mais, riu com sarcasmo, e seguiu sua rainha para fora da sala. O silêncio quedou, e eu estava sozinha, perecendo, mas incapaz de morrer.

Quando você não pode respirar, cada segundo parece uma eternidade. Minha existência inteira se resumiu em tentar tragar o ar para dentro dos meus pulmões. Apesar de que minha cabeça sabia que era impossível, meu corpo não podia entender. Podia sentir meu coração batendo laboriosamente contra minhas costelas; podia sentir o horrendo frio do gelo, selando minha pele. Meu corpo sabia que ainda estava vivo e continuava sua luta para viver.

Não sei por quanto tempo fiquei ali, horas ou somente alguns minutos, quando uma figura sombria esgueirou-se para dentro da sala. Apesar de que ainda podia ver lá fora, o gelo fazia tudo rachado e distorcido, então não poderia dizer quem era. A sombra hesitou na entrada, olhando para mim por um longo momento. Então, rapidamente, deslizou através da sala até parar perto da minha prisão, pousando a mão pálida contra o gelo.

- Meghan. – A voz sussurrou. – Sou eu.

Mesmo em meu delírio faminto de ar, meu coração saltou. Os olhos prateados de Ash espreitaram através da parede que nos separava, tão brilhante e cheio de vida como sempre. O tormento em seu rosto me chocou, como se fosse ele quem estivesse preso e incapaz de respirar.

- Aguente. – Ele murmurou, pressionando sua testa na minha apesar da parede. – Vou tirar você daí. – Ele se afastou, ambas as mãos contra o gelo, e fechou seus olhos. O ar começou a vibrar, um tremor balançou as paredes ao meu redor, e surgiram minúsculas rachaduras como teias de aranha pelo gelo.

Com o som de vidro se quebrando, a prisão desabou, lascas voando para fora, mas de alguma maneira deixando-me incólume. Minhas pernas se curvaram e eu caí, tremendo e tossindo, vomitando água e lascas de gelo. Ash ajoelhou-se ao meu lado e me agarrei a ele, puxando ar em arfadas para dentro dos meus pulmões famintos, sentindo o mundo girar ao meu redor.

De alguma maneira, apesar da corrida vertiginosa do ar, o alívio de ser capaz de respirar novamente, eu notei que Ash estava me segurando também. Seus braços estavam fechados ao redor dos

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meus ombros, pressionando-me contra seu peito, seu queixo repousando conta meu cabelo úmido. Ouvi o rápido pulsar de seu coração, batendo contra minha orelha, e estranhamente, aquilo me acalmou um pouco.

O momento terminou muito rápido. Ash recuou, pendurando seu casaco preto ao redor de meus ombros. Agarrei-o agradecidamente, estremecendo. – Pode andar? – Ele sussurrou, e sua voz estava urgente. – Nós temos que sair daqui, agora.

- A-aonde nós vamos? – Perguntei, meus dentes batendo. Ele não respondeu, somente me levantou, seu olhar intenso dardejando-me sobre cautela. Agarrando meu pulso, ele começou a me guiar para fora da sala.

- Ash – ofeguei -, espere! – Ele não desacelerou. Meus nervos altercaram um aviso. Com toda minha força, parei no meio do chão e arranquei minha mão de seu aperto. Ele girou, os olhos estreitando-se a fendas, e eu me lembrei de todas as coisas que ele tinha dito para Rowan, que tudo o que ele tinha feito foi a serviço de sua rainha. Eu rapidamente me afastei de seu alcance. – Onde está me levando? – Exigi.

Ele olhou impaciente, trespassando seus dedos pelo cabelo em um descaracterístico gesto nervoso. – De volta ao território Seelie. – Ele vociferou, alcançando-me de novo. – Você não pode ficar aqui agora, não quando uma guerra está prestes a começar. Vou te levar em segurança para o seu lado e então terei terminado.

Senti como se ele tivesse me estapeado. Medo e raiva me incendiaram, fazendo-me estúpida, fazendo-me querer feri-lo novamente. – Por que deveria confiar em você? – Eu rosnei para Ash, jogando as palavras para ele como pedras. Eu estava completamente consciente de que estava sendo uma idiota, que nós precisávamos cair fora de lá antes que alguém nos visse, mas era como se eu tivesse comido spill-your-guts de novo, e as palavras simplesmente continuavam saindo de enxurrada. – Você esteve mentindo para mim desde o começo. Tudo o que disse, tudo o que fizemos, era tudo uma cena para me trazer para cá. Armou para mim desde o começo.

- Meghan...

- Cale a boca! Eu te odeio! – Era como uma bola de neve, e tinha o prazer vingativo de ver Ash recuar como se eu o tivesse golpeado. – Você é um talento, sabia? Isto é um jogo que você gosta de jogar? Fazer a estúpida garota humana se apaixonar por você e então rir enquanto arranca o coração dela? Você sabia o que Rowan estava fazendo, e não fez nada para parar isto!

- Claro que não! – Ash rosnou de volta, sua veemência me surpreendendo até o silêncio. – Sabe o que Rowan faria se ele descobrisse... O que nós descobrimos? Sabe o que Mab faria? Eu tinha que fazê-los acreditar que eu não me importava, ou iriam rasgá-la ao meio. – Ele suspirou fracamente, dando-me um olhar solene. - Emoções são uma fraqueza aqui, Meghan. E a Corte Winter devora os fracos. Eles teriam te machucado para chegar até mim. Agora, vamos. – Ele me alcançou de novo, e deixei que ele pegasse a minha mão sem protestar. – Vamos sair daqui antes que seja tarde demais.

- Temo que já seja muito tarde. – Falou arrastadamente uma familiar voz falsa, fazendo meu coração parar. Ash tremeu e parou, empurrando-me para trás dele, enquanto Rowan caminhava para fora da entrada, sorrindo largamente como um gato. – Temo que seu tempo já tenha escoado.

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CAPÍTULO CINCO

Irmãos

- Olá, Ash. – O príncipe mais velho sorriu alegremente, enquanto passeava dentro da sala. Seu olhar fixo encontrou o meu, e ele ergueu uma sardônica sobrancelha. – E o que, posso perguntar, você está fazendo com a mestiça? Poderia ser que esteja realmente a ajudando a escapar? Oh, meu caro, que ideia traiçoeira terrível lhe ocorreu. Estou certo de que Mab ficará muito desapontada com você.

Ash não disse nada, mas sua mão sobre a minha cerrou-se apertada. Rowan riu por entre os dentes, circulando-nos como um tubarão faminto. Ash movia-se com ele, mantendo seu corpo entre mim e Rowan. – Então, irmãozinho – o príncipe mais velho devaneou, adotando uma expressão inquisitiva -, estou curioso. O que o fez arriscar tudo por nossa desobediente princesa aqui? – Ash não disse nada, e Rowan suspirou pesadamente. – Não seja teimoso, irmãozinho. Deve me dizer por bem, antes que Mab o rasgue membro por membro e o expulse de Tir Na Nog. Qual é o preço de tal obediência leal? Um contrato? Uma promessa? O que a rameirazinha está te dando para trair sua corte inteira?

- Nada. – A voz de Ash estava fria, mas eu peguei o menor dos tremores abaixo da superfície. Rowan aparentemente também, por que suas sobrancelhas ergueram-se e ele boquiabriu-se para seu irmão, antes de jogar a cabeça para trás com uma gargalhada selvagem.

- Não posso acreditar nisto! – Rowan arfou, olhando fixamente para Ash em descrença. – Está apaixonado pela ursinha Summer! – Ele parou e, quando Ash não o negou, caiu em uma gargalhada trêmula de novo. – Oh, isto é precioso. Isto é perfeito demais. Pensei que a mestiça fosse uma tola, sujeitando-se pelo inatingível Príncipe de Gelo, mas parece que eu estava errado. Ash, você tem estado escondendo algo de nós.

Ash estremeceu, mas não soltou minha mão. – Estou levando-a de volta para Arcádia. Saia do nosso caminho, Rowan.

Rowan ficou sério imediatamente. – Oh, acho que não, irmãozinho. – Ele sorriu, mas era uma coisa cruel, afiada como a extremidade de uma lâmina. – Quando Mab descobrir, ambos estarão decorando o pátio. Se ela estiver se sentindo misericordiosa, talvez congele vocês dois juntos. Isto seria tragicamente apropriado, não acha?

Eu tremi. O pensamento de retornar para aquele frio, sem ar, vivendo morta, era demais. Não poderia fazer isto; preferiria morrer primeiro. E o pensamento de Ash tendo que permanecer comigo por centenas de anos era ainda mais horripilante. Eu espremi a mão de Ash e pressionei meu rosto contra seu ombro, olhando fixamente para Rowan com todo o valor que eu tinha.

- É claro – Rowan continuou, coçando o lado de seu rosto -, sempre poderia implorar por perdão, arrastar a mestiça até a rainha, e ainda estar nas graças de Mab. De fato – ele prosseguiu, estalando

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seus dedos -, se você for até Mab agora mesmo e devolver a princesa, eu até mesmo manteria minha boca fechada sobre o que eu vi aqui. Ela não ouvirá um pio de mim, prometo.

Ash se tornou uma rocha silenciosa; podia sentir seus músculos se contraindo abaixo de sua pele, a tensão delineando suas costas.

- Vamos, irmãozinho. – Rowan recostou-se contra o batente da porta e cruzou seus braços. – Sei que é melhor assim. Há apenas duas escolhas aqui. Abra mão da princesa, ou morra com ela.

Ash finalmente se moveu, como se estivesse voltando de um transe. – Não. – Ele sussurrou, e eu ouvi a dor em sua voz, enquanto ele chegava a uma decisão terrível. – Existe mais uma.

Soltando minha mão, ele deu um passo deliberado para frente e puxou sua espada. As sobrancelhas de Rowan se ergueram quando Ash apontou sua lâmina para ele, uma névoa fria contorcendo-se ao longo de sua extremidade. Por um momento, houve silêncio absoluto.

- Saia do caminho, Rowan. – Ash rugiu. – Mexa-se, ou eu te matarei.

O rosto de Rowan mudou. Em um instante, foi de arrogante, condescendente e maldosamente presunçoso, para alguma coisa completamente estranha e aterrorizante. Ele afastou-se da arcada, seus olhos brilhando com fome predatória, e vagarosamente puxou sua espada. Ela enviou um gemido áspero ecoando pelo corredor enquanto ficava à vista, a lâmina fina e serrada como as bordas dos dentes de um tubarão.

- Está certo disto, irmãozinho? – Rowan cantarolou, floreando sua arma enquanto caminhava para encontrar Ash. – Vai trair tudo... sua corte, sua rainha, seu próprio sangue... por ela? – Não poderá mudar de ideia uma vez que comece este caminho.

- Meghan. – Ash disse, sua voz tão suave que eu quase não a ouvi. – Mantenha-se afastada. Não tente me ajudar.

- Ash... – Queria dizer alguma coisa. Sabia que deveria parar isto, esta luta entre irmãos, mas ao mesmo tempo sabia que Rowan nunca nos deixaria ir. Ash sabia disto também, e eu podia ver a relutância em seus olhos enquanto ele se fortalecia para a batalha. Ele não queria lutar com seu irmão, mas ele iria... por mim.

Eles encararam um ao outro de cantos opostos da sala gélida, duas estátuas, uma esperando que a outra fizesse o primeiro movimento. Ash tinha tomado uma posição de batalha, sua espada erguida em frente a ele, sua expressão relutante, mas inabalável. Rowan segurava sua lâmina casualmente ao seu lado, a ponta apontando direto para o chão, sorrindo afetadamente para seu oponente. Nenhum deles parecia respirar.

Então Rowan sorriu ironicamente, um predador arreganhando suas presas. – Tudo bem, então. – Ele murmurou, varrendo sua espada em um cegante movimento rápido. – Acho que vou gostar disto.

Investiu contra Ash, sua espada um borrão denteado através do ar. Ash ergueu sua arma, e faíscas gélidas voaram quando as lâminas cantaram uma contra a outra. Rosnando, Rowan cortou viciosamente para seu irmão, avançando com uma série de selvagens golpes na cabeça. Ash bloqueou, mergulhou, e subitamente investiu, apunhalando a garganta de Rowan. Mas Rowan girou graciosamente para o lado, sua espada rebatendo e voltando. Ash rodopiou com uma velocidade inumana, e teria o cortado em dois se o príncipe mais velho não tivesse saltado para trás.

Sorrindo, Rowan ergueu sua arma, e eu arfei. O ponta brilhante estava besuntada de carmesim. – O primeiro sangue para mim, irmãozinho. – Ele zombou, quando uma gota de vermelho começou a pingar do braço que Ash segurava a espada, salpicando o chão. – Ainda há tempo para parar isto. Devolva a princesa e implore pela misericórdia de Mab. E pela minha.

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- Você não tem misericórdia alguma, Rowan. – Ash rosnou, e investiu contra ele novamente.

Desta vez, ambos se moveram tão rapidamente, contorcendo-se, pulando, girando para o lado e golpeando com suas lâminas, que era difícil ver isto como nada além de uma bela dança sincronizada. Em câmera acelerada. Faíscas voavam, e o som de lâminas colidindo ecoava pelas paredes. Sangue aparecia em ambas as espadas, e o vermelho borrifou o chão ao redor dos combatentes, mas eu não podia ver quem tinha a vantagem.

Rowan subitamente bateu na lâmina de Ash de lado, então impulsionou sua mão para fora, enviando lascas dentadas de gelo para o rosto de seu irmão. Ash lançou a si mesmo para trás para evitá-las, caindo no chão e rolando em seus joelhos. Enquanto Rowan abaixava sua espada para seu oponente ajoelhado e eu gritava de medo, Ash mergulhou para o lado, deixando a lâmina perdê-lo por centímetros. Agarrando o braço de Rowan, deixando o impulso de seu irmão levá-lo para frente, Ash girou e o lançou ao chão. A cabeça de Rowan bateu no gelo, e ouvi o fôlego deixar seu corpo em um surpreso whoof. Rápido como uma cobra, Rowan capotou, espada em mão, mas daquela vez, Ash tinha sua lâmina na garganta dele.

Rowan olhou fixamente para seu irmão, seu rosto contorcido em uma máscara de dor e ódio. Ambos estavam ofegando, gotejando sangue de seus inúmeros ferimentos, ainda que o punho de Ash estivesse firme quando ele pressionou a lâmina contra do pescoço de Rowan.

O príncipe mais velho riu por entre os dentes, ergueu sua cabeça e cuspiu no rosto de Ash. – Vá em frente então, irmãozinho. – Ele desafiou, enquanto Ash estremecia, mas não recuou. – Faça. Você traiu sua rainha, postou-se ao lado do inimigo, ergueu uma espada contra seu próprio irmão... Assim você pode adicionar o abate de sua família na lista também. Então pode fugir com a mestiça e viver sua sórdida fantasia. Pergunto-me como Ariella se sentiria, se ela soubesse o quão facilmente foi substituída.

- Não fale sobre ela! – Ash rosnou, erguendo o punho como se ele realmente fosse empurrar a espada pela garganta de Rowan. – Ariella se foi. Não há um dia em que não pense nela, mas ela se foi, e não há nada que eu possa fazer sobre isto. – Ele tomou um profundo fôlego para se acalmar, a ânsia em seu rosto clara para se ver. Um caroço tomou a minha garganta, e eu me virei, piscando as lágrimas de volta. Não importava o quanto eu amasse este sombrio e belo príncipe, nunca poderia me igualar ao que ele já tinha perdido.

Rowan deu um sorriso de escárnio, estreitando seus olhos. – Ariella era boa demais para você. – Ele sibilou, erguendo a si mesmo sobre seus cotovelos. – Se você realmente a amasse, ela ainda estaria aqui.

Ash hesitou, como se golpeado por uma pancada física, e Rowan pesou sua vantagem. – Você nunca viu que coisa boa tinha. – Ele continuou, sentando quando Ash recuou um passo. – Ela está morta por causa de você, por que você não pôde protegê-la. E agora você desgraça a memória dela com esta abominação mestiça.

Pálido, Ash olhou para mim, e eu vi o braço de Rowan mover-se um segundo tarde demais. – Ash! – Gritei, quando o príncipe mais velho saltou e investiu com velocidade aterrorizante. – Cuidado!

Ash já estava se movendo, os reflexos afiados de um lutador de kick boxing, mesmo quando sua mente estava em outro lugar. Saltando para trás, sua espada subiu quando Rowan golpeou-a com uma adaga surgida de lugar nenhum, e a estocada de Rowan o levou direto para a ponta da lâmina de Ash.

Ambos os irmãos congelaram, e eu sufoquei um grito. Por um momento, tudo parou, congelado no tempo. Rowan piscou e olhou abaixo, para a lâmina em seu estômago, seus olhos arregalados e confusos. Ash estava olhando fixamente para sua mão em horror.

Então Rowan cambaleou para trás, derrubando a faca e encostando contra a parede, seus braços ao redor de suas vísceras. Sangue fluía entre as suas mãos, manchando o tecido branco de carmesim.

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– Parabéns... irmãozinho. – Sua voz saiu chocada, apesar de que seus olhos estavam claros quando ele aquiesceu para Ash, ainda congelado em choque. – Você finalmente... conseguiu me matar.

Passos ecoaram no corredor, e exclamações fracas chegaram até a sala do trono. Eu arranquei meus olhos da forma ensanguentada de Rowan e corri para Ash, que ainda esta olhando fixamente para seu irmão com um olhar horrorizado.

- Ash! – Eu agarrei seu braço, arrancando-o de seu transe. – Alguém está vindo!

- Sim, fuja com... sua mestiça, Ash. – Rowan tossiu, uma linha se sangue escorrendo de sua boca. – Antes que Mab chegue... e veja que o seu último filho está morto para ela. Não acho que possa fazer nada mais... para trair a sua corte.

As vozes estavam se tornando mais altas. Ash lançou um último e agonizado olhar a Rowan, então agarrou meu pulso e correu para a porta.

Não me lembro de como fizemos para sair. Ash puxou-me pelo caminho como um louco, correndo por corredores que eu não reconheci. Foi um milagre não esbarrarmos em alguém, porque passos e sons de perseguição ecoavam por toda parte ao nosso redor. Talvez não fosse de todo coincidência, porque Ash parecia saber exatamente onde estava indo. Duas vezes, ele me arrastou até um canto e pressionou seu corpo contra o meu, sussurrando para que eu ficasse quieta e não me movesse. Congelei enquanto um grupo de barretes vermelhos se movia rapidamente, rosnando e acenando facas uns para os outros, mas eles não nos notaram. A segunda vez, uma mulher pálida em um vestido sangrento flutuava, e meu coração bateu tão alto que tinha certeza que ela ouviria, mas ela passou flutuando sem ver.

Fugimos por um frio corredor vazio, com pingentes de gelo brilhando do teto como lustres, tremeluzindo com uma suave luz azul. Ash finalmente me empurrou para uma porta com a silueta de uma árvore branco-esquelética brasonada na frente. A sala além era um pouco pequena e esparsamente decorada com uma alta estante, um aparador feito de escura madeira polida, e uma coleção impressionante de facas na parede. Uma cama simples repousava em um canto, os cobertores puxados firmemente, parecendo como se não tivessem sido usados há décadas. Tudo parecia excepcionalmente limpo, arrumado e espartano, de forma alguma como um quarto de um príncipe.

Ash suspirou e finalmente me soltou, encostando-se contra a parede com sua cabeça para trás. Sangue encharcava sua camisa, deixando manchas escuras contra o material negro, e meu estômago se revirou.

- Devemos limpá-los. – Disse. – Onde você mantém as bandagens? – Ash olhou direto para mim, seus olhos vítreos e vazios. O choque estava causando sérios danos a ele. Sufoquei meu medo e o encarei, tentando soar calma e razoável. – Ash, você tem algum trapo ou toalha por aqui? Alguma coisa para parar o sangramento?

Ele olhou para mim um instante, então balançou a si mesmo e fez sinal para um canto. – Aparador. – Ele murmurou, soando mais fraco do que eu jamais o tinha ouvido. – Há um vidro de unguento na gaveta de cima. Ela o mantinha... para emergências.

Não sabia o que ele queria dizer com aquilo, mas caminhei até o aparador e abri com um puxão a gaveta de cima. Guardava um sortimento de coisas estranhas: flores secas, uma fita de seda azul, uma adaga de vidro com um punho de osso esculpido intricadamente. Vasculhei ao redor e achei um vidro de um creme perfumado a ervas, quase vazio, aninhado sobre um pano velho e manchado de sangue. No canto aninhava-se um rolo do que parecia como uma gaze feita de teias de aranha.

Quando os peguei, uma fina corrente de prata veio com a gaze e deslizou para o chão. Inclinando-me para catá-la, vi dois anéis unidos aos laços, um largo e outro pequeno, e finalmente me caiu a ficha sobre o que Ash disse.

Isto – esta gaveta cheia de coisas esquisitas e sobras – era de Ariella, onde Ash mantinha

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todas as suas memórias dela. A adaga era dela, a fita era dela. Os anéis, requintadamente desenhados com pequenas folhas gravadas em prata e ouro, eram um conjunto.

Recoloquei a corrente e fechei a gaveta, uma batida fria fixando-se no meu estômago. Se eu alguma vez precisei provar que Ash ainda amava Ariella, aqui estava.

Meus olhos arderam, e eu os pisquei raivosamente. Agora não era a hora para um ciumento ataque de cólera. Virei e encontrei Ash me observando, seus olhos baços e sem vida. Tomei um profundo fôlego. – Hã, acho que você terá que tirar sua camisa. – Sussurrei.

Ele concordou, afastando-se da parede, deixando uma nódoa de vermelho. Removendo sua camisa esfarrapada, ele a lançou ao chão e se voltou para mim. Tentei duramente não olhar fixamente para a musculatura esguia do peito, apesar de que minha boca ficou seca e meu rosto queimou em carmesim.

- Devo sentar? – Ele murmurou, ajudando-me muito. Agradecidamente aquiesci. Ele se dirigiu para a cama, ajudando a si mesmo a abaixar-se no colchão com suas costas voltadas para mim. Os ferimentos em seu ombro e costelas escoavam carmesim contra a sua pele pálida.

Você pode fazer isto, Meghan. Cuidadosamente, movi-me atrás dele, estremecendo diante dos longos cortes denteados sobre seu corpo. Havia muito sangue. Eu os alisei cautelosamente, não querendo machucá-lo, mas ele não fez nenhum som. Quando o sangue tinha se ido, mergulhei dois dedos no ungüento e os toquei levemente no corte sobre seus ombros.

Ele fez um pequeno som, como uma exalação de ar, e caiu bruscamente para frente, a cabeça abaixada e o cabelo cobrindo seus olhos. – Não se preocupe em me machucar. – Ele sussurrou sem olhar para cima. – Estou... perfeitamente acostumado a isto.

Aquiesci e apliquei mais ungüento à ferida, abundantemente desta vez. Ele não se esquivou, apesar de seus ombros estarem tensos e rígidos sob os meus dedos; podia sentir a apertada contração dos músculos abaixo das minhas mãos. Perguntei-me se Ariella costumava fazer isto por ele, neste mesmo quarto, remendando-o sempre que ele estava ferido. Julgando pelas cicatrizes pálidas ao longo de suas costas, esta não era a primeira vez que ele tinha sido ferido em uma luta mortal. Ela teria se sentido como eu, zangada e aterrorizada sempre que Ash punha a si mesmo em perigo mortal?

Meus olhos tornaram-se borrados. Tentei piscar, mas era inútil. Recuperando a gaze, a envolvi ao redor do ombro dele, mordendo meu lábio para manter o silêncio enquanto as lágrimas escorriam pelo meu rosto.

- Sinto muito.

Ele não se moveu, e sua voz estava tão suave que eu quase não o ouvi, mas por pouco não deixei cair a gaze. Amarrando-a, não respondi enquanto começava a trabalhar em suas costelas, enrolando as bandagens ao redor de cintura dele. Ash sentou-se perfeitamente ereto, raramente respirando. Uma lágrima caiu do meu queixo para percorrer suas costas, e ele hesitou.

- Meghan?

- Por que está se desculpando? – Minha voz saiu mais trêmula do que eu queria, e engoli dificultosamente. – Já me disse por que estava sendo um bastardo. Tinha que me proteger da sua família e da Corte Winter. Elas são razões perfeitamente boas. – Não que eu esteja amarga ou qualquer coisa assim.

- Eu não queria machucar você. – A voz de Ash ainda estava suave, hesitante. – Pensei que se eu pudesse fazê-la me odiar, seria mais fácil quando você retornasse para seu mundo. – Ele parou, e suas próximas palavras foram quase um sussurro. – O que eu disse no pátio... Rowan iria atormentá-la ainda mais se ele soubesse.

Terminei de enfaixar suas costelas e coloquei as bandagens apertadas ao redor de sua cintura. Meus olhos ainda lagrimejavam, mas elas eram lágrimas diferentes agora. Não perdi a sutil frase:

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quando você retornar para seu mundo. Não se. Quando. Como se ele soubesse que eu voltaria algum dia, e nunca veríamos um ao outro novamente.

Ainda em silêncio, segurei o vidro e o recoloquei no aparador. Não queria encará-lo agora. Não queria pensar que ele poderia ir embora da minha vida para sempre, desaparecendo em um mundo onde não poderia segui-lo.

- Meghan. – Ash se voltou e agarrou minha mão, enviando formigações pelo meu braço acima. Contra minha vontade, olhei para ele. Seu rosto estava desolado, seus olhos implorando por compreensão. – Eu não posso... ter sentimentos por você. – Murmurou, fazendo um buraco no meu coração. – Não do jeito que você quer. Aconteça o que acontecer, Mab ainda é minha rainha, e a Corte Winter é meu lar. O que aconteceu no reino de Machina... – Sua testa franziu, e sua expressão escureceu em dor. – Temos que esquecer aquilo, e seguir em frente. Uma vez que eu a leve aos limites de Arcádia e você estiver a salvo com Oberon, não me verá novamente.

A dor em meu coração se tornou uma corrosão doentia e abrasiva. Olhei fixamente para ele, esperando que retirasse aquilo, falasse-me que estava brincando. Ele retirou sua mão e se ergueu, encarando-me com uma expressão profundamente triste. – Sinto muito. – Murmurou novamente, evitando meus olhos. – É... melhor deste jeito.

- Não. – Balancei minha cabeça enquanto ele se afastava, roçando-me ao passar por mim. Eu girei para segui-lo, buscando por seu braço, e perdendo-o. – Ash, espere...

- Não faça isto mais difícil. – Ele abriu seu guarda roupa e puxou uma camisa cinza, vestindo-a em um único movimento. – Eu... matei Rowan. – Ele fechou seus olhos, encolhendo-se com a lembrança. – Sou um fratricida. Não sobrou nada no meu futuro agora, então fique feliz que não estará por perto para ver o que acontece.

- O que vai fazer?

Ele fez uma careta. – Retornar para a corte. Tentar esquecer. – Estendendo a mão para dentro do roupeiro, ele puxou um longo casaco preto cruzado com correntes prateadas e o jogou sobre seus ombros. – Lançar-me à misericórdia de Mab e esperar que ela não vá me matar.

- Não pode!

Ele me encarou intensamente, o casaco ondeando ao redor dele. Simplesmente assim, ele se tornou algo frio e distante, um mortal faery belo, sobrenatural e inalcançável. – Não se envolva na política dos feéricos, Meghan. – Disse sombriamente, fechando a porta do roupeiro. – Mab me encontrará, não importa o que eu faça ou o quão longe eu fuja. E com a guerra se aproximando, Winter precisará de cada soldado que conseguir. Até que Summer devolva o cetro, Mab será implacável.

Ele se afastou, mas a menção à guerra me lembrou de algo mais. – Cetro. Ash, espere! – Agarrei sua manga, ignorando o jeito como ele ficou perfeitamente imóvel. – Não foi a Corte Summer! – Proferi abruptamente antes que ele pudesse dizer qualquer coisa. – Foram os feéricos Iron. Eu os vi.- Ele franziu a testa, e eu me inclinei para frente, desejando que acreditasse em mim. – Foi Tertius, Ash. Tertius matou Sage.

Ele olhou fixamente para mim, sem expressão, por um momento, e eu segurei minha respiração, observando sua expressão. Ash era o único na Corte Winter que tinha realmente visto os feéricos Iron. Se ele não acreditasse em mim, não tinha chances de convencer ninguém mais.

- Tem certeza? – Ele murmurou depois de alguns segundos. O alívio fluiu em mim, e aquiesci vigorosamente. – Por quê? Por que os feéricos Iron roubariam o cetro? Como sequer conseguiram entrar?

- Não sei. Talvez queiram seu poder? Ou talvez quisessem tomá-lo para começar uma guerra entre as cortes. Aperfeiçoaram-se pelo menos nisto.

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- Tenho que contar à rainha.

- Não! – Eu me movi para impedi-lo, e ele olhou para mim. – Ash, ela não acreditará em você. – Disse desesperadamente. – Eu tentei contar a ela, mas ela me transformou em um pingente de gelo. Está convencida que é feito de Oberon.

- Ela me escutará.

- Tem certeza? Com tudo o que você tem feito? Ela o escutará depois que me salvou e matou Rowan? – A expressão dele escureceu, e eu ignorei a culpa abrindo buracos à faca em meu peito. – Nós temos que ir atrás deles. – Sussurrei, subitamente certa do que tínhamos que fazer. – Temos que achar Tertius e conseguir o cetro de volta. É a única maneira de parar a guerra. Mab terá que acreditar em nós então, certo?

Ash hesitou. Por um momento, ele pareceu terrivelmente incerto, balançado entre eu e a lealdade para com a sua rainha. Ele passou a mão por seu cabelo, e vi a indecisão em seus olhos. Mas antes que ele pudesse responder, um súbito arranhar em sua porta nos fez pular.

Trocamos um olhar. Puxando sua espada e me movendo para trás, Ash caminhou a passos largos para a porta e cautelosamente a quebrou para abri-la. Houve um borrão de pêlos negros, e um gato lançou-se pela abertura. Eu uivei em surpresa.

Ash embainhou sua lâmina. – Tiaothin. – Murmurou, enquanto a phouka mudava a forma felina por sua mais humana. – O que está acontecendo lá fora? O que está havendo?

A phouka sorriu largamente para ele, olhos semicerrados e impacientes. – Os soldados estão por toda a parte. – Ela anunciou, contraindo sua calda. – Eles estão selando todas as portas dentro e fora do palácio, e todos estão procurando por você e pela mestiça. – Ela me dispensou um olhar e riu entre os dentes. – Mab está possessa. Devem ir agora, se vão partir. A guarda de elite está a caminho agora mesmo.

Olhei para Ash, implorando. Ele olhou para mim, então de volta para a porta, sua expressão despedaçada. Então, balançou sua cabeça como se ele não pudesse acreditar que estivesse fazendo aquilo. – Por aqui. – Ele rugiu, abrindo a porta do roupeiro. – Para dentro, agora.

Cruzei o limiar para dentro do pequeno espaço escuro e olhei para Ash. Ele parou no batente, olhando para a dançante phouka no meio do quarto. – Esconda-se depois disto, Tiaothin. – Ele avisou. – Fique fora do caminho de Mab por algum tempo. Entendeu?

A phouka sorriu largamente, a travessura escrita em cada polegada de seu sorriso. – E que graça teria nisto? – Ela disse, mostrando sua língua. Antes que Ash pudesse responder, suas orelhas contraíram-se para trás e ela ergueu sua cabeça. – Eles estão quase aqui. Vão, eu os levarei para longe. Ninguém faz um estardalhaço melhor do que um phouka. – E antes que pudéssemos pará-la, correu para a porta, abriu-a de supetão e se inclinou dentro do corredor. – O príncipe e a mestiça! Eu os vi! Sigam-me!

Nós mergulhamos dentro do roupeiro quando o som de pés calçados com botas passou trovoando pela porta, seguindo Tiaothin enquanto ela os levava para longe. Ash suspirou, passando a mão por seu cabelo. – Phouka idiota. – Murmurou.

- Ela ficará bem?

Ash bufou. – Tiaothin pode cuidar de si mesma melhor que qualquer um que eu conheço. Este é a razão pela qual pedi a ela que mantivesse um olho em você.

Então era por isto que a phouka estava tão interessada. – Não precisava de babá. – Disse, tanto aborrecida quanto excitada que ele tivesse pensado em cuidar de mim, quando não pudesse estar lá.

Ash me ignorou. Pondo a mão na parede, ele fechou seus olhos e murmurou muitas

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palavras estranhas, palavras desconhecidas sob seu fôlego. Um retângulo minúsculo de luz apareceu, e Ash abriu outra porta, banhando o quarto em luz pálida e revelando uma escada congelada mergulhando dentro da escuridão.

- Vamos. – Ele virou-se para mim e estendeu a mão. – Isto nos levará para fora do palácio, mas nós temos que nos apressar antes que ela desapareça.

Atrás de nós, um rugido de descoberta ecoou pelo corredor, enquanto alguma coisa metia sua cabeça no quarto e urrava para seus amigos. Agarrei a mão de Ash, e nós fugimos dentro da escuridão.

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CAPÍTULO SEIS

O Mercado dos Duendes

Eu segui Ash pela escada cintilante abaixo e através de um corredor estreito ornado com gárgulas de olhar estrábico e com tochas azul-tremulantes. Nós não falamos; os únicos sons eram nossos passos ecoando pelas pedras e minha respiração entrecortada. Muitas vezes, o túnel se dividia em direções diferentes, mas Ash sempre escolhia um caminho sem hesitação. Eu estava feliz pelo longo casaco de inverno ao redor dos meus ombros; a temperatura aqui estava glacial, e minha respiração formava nuvens no ar enquanto nós corríamos, escutando os sons da perseguição.

A passagem abruptamente terminou, uma parede sólida de gelo bloqueou nosso caminho. Perguntei-me se nós tínhamos pegado uma entrada errada, mas Ash me soltou e caminhou adiante, posicionando a mão contra o gelo. Com agudos sons quebradiços, ela se partiu debaixo de seus dedos, até que outro túnel se estendesse diante de nós, terminando a céu aberto.

Ash se virou para mim.

- Fique perto. – Ele murmurou, fazendo um gesto rápido com a sua mão. Senti o formigar do glamour enquanto ele se acomodava ao redor de mim como uma capa. – Não fale com ninguém, não faça contato visual, e não atraia nenhuma atenção. Com este glamour, ninguém irá notar você, mas isto se quebrará se você fizer um ruído ou capture o olhar de alguém. Só mantenha sua cabeça abaixada e me siga.

Eu tentei. O problema é que, era muito difícil não notar nada além das paredes do castelo. A linda cidade retorcida dos feéricos Unseelie ergueu-se ao redor de mim, torres espiraladas de gelo e pedra, casas feitas de raízes petrificadas, cavernas com pingentes de gelo pendendo das aberturas como dentes. Segui Ash pelos becos estreitos com olhos espreitando de debaixo das pedras e sombras, pelos túneis que faiscavam com milhões de minúsculos cristais, e abaixo pelas estradas lineadas por árvores cor branco-osso que brilhavam com luminosidade doentia.

E é claro, os Unseelie estavam na rua em massa esta noite. As ruas estavam iluminadas com fogos-fátuos e velas-cadáver19, e enxames de feéricos Winter dançavam, bêbados e rugindo a plenos pulmões, suas vozes ecoando através das pedras. Lembrei da selvagem Festa no pátio, e me dei conta de que os Unseelie ainda estavam celebrando a chegada oficial do inverno.

Nós contornamos as bordas dos grupos, tentando evitar sermos notados, enquanto os feéricos Winter rodopiavam e giravam ao nosso redor. A música soava através da noite, sombria e sedutora, agitando a plebe ao frenesi. Mais de uma vez, a dança se tornou um banho de sangue quando algum 19 Corpses Candles (vela-cadáver) do mesmo fenômeno que gerou o mito do fogo-fátuo. Só que este diz que, quando uma pessoa estivesse prestes a morrer, apareceria uma vela em sua casa e então a vela faria seu caminho até o cemitério da igreja, pelo mesmo caminho que o caixão seguiria uma vez que a morte ocorresse.

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desafortunado faery desaparecia debaixo de uma pilha de foliões e era rasgado ao meio. Estremecendo, eu mantinha minha cabeça baixa e meus olhos nos ombros de Ash, enquanto nós ziguezagueávamos nosso caminho através das multidões.

Ash me agarrou e me puxou para dentro de um beco, seu olhar alertando-me para ficar quieta. Um momento mais tarde, um par de cavaleiros galoparam brandamente dentro da multidão sobre enormes cavalos negros com brilhantes olhos azuis, dispersando os feéricos Winter como uma revoada de pássaros. Os dançarinos rosnaram e sibilaram enquanto saltavam ao lado, e um duende gritou uma vez, quando foi pisoteado debaixo de um cavalo de carva, quedando silente quando um casco quebrou seu crânio.

Os cavaleiros pararam suas montarias com um puxão e encararam a plebe, ignorando os rosnados e insultos arremessados. Eles usavam negras armaduras de couro com espinhos eriçando-se de seus ombros, e os rostos debaixo dos elmos abertos eram afiados e cruéis. Ash remexeu-se do meu lado.

- Aqueles são cavaleiros de Rowan. – Murmurou. – Sua elite Thornguards20. Eles respondem somente a ele e à rainha.

- Por ordem de Sua Majestade, a Rainha Mab – um cavaleiro gritou, sua voz de alguma forma soando sobre a cacofonia da música e das vozes rosnando -, a Corte Winter oficialmente declarou guerra a Oberon e à Corte Summer! Pelo crime do assassinato do Príncipe Sage e pelo roubo do Cetro das Estações, todos os feéricos Summer serão perseguidos e destruídos sem misericórdia!

Os feéricos Winter rugiram, gritando e uivando pela noite adentro. Não era um rugido de raiva, mas mais um de êxtase. Vi barretes vermelhos gargalhando, duendes dançando de alegria, e spriggans sorrindo ironicamente como loucos. Meu estômago pesou. Eles queriam sangue. A Corte Winter vivia para a violência, para a chance de rasgar seus antigos inimigos ao meio sem misericórdia. O cavaleiro deixou-os rugir e aguardou alguns momentos antes de levantar sua mão pedindo silêncio.

- Ainda – ele rugiu, fazendo do caos um murmúrio – fiquem cientes que o Príncipe Ash é agora considerado um traidor e um fugitivo! Ele atacou seu irmão, Príncipe Rowan, ferindo-o gravemente, e fugiu do palácio com a filha mestiça de Oberon. Ambos são considerados extremamente perigosos, por isto fariam bem se ficassem atentos.

Ash arfou. Vi alívio cruzar seu rosto, bem como culpa e preocupação. Rowan ainda estava vivo, apesar de que nossa fuga pela cidade tenha se tornado muito mais perigosa.

- Se os virem, por ordem da Rainha Mab, eles não serão feridos! – Gritou o cavaleiro. – Capturem-nos, ou reportem seus paradeiros para qualquer guarda, e serão amplamente recompensados. Falhar em fazê-lo implica na ira da rainha sobre suas cabeças. Propaguem o dito, porque amanhã nós marcharemos para a guerra!

Os cavaleiros estimularam suas montarias a se mover e se afastaram galopando, em meio aos rugidos da multidão Unseelie. Ash parecia perdido em seus pensamentos, seus olhos estreitados à fendas cinza.

- Rowan não está morto. – Ele exalou, e eu não poderia dizer ser ele estava agradecido pelas notícias ou não. – Ao menos, não ainda. Isto fará as coisas consideravelmente mais difíceis.

- Como conseguiremos sair? – Sussurrei.

Ash franziu o cenho. – Os portões estarão vigiados – ele murmurou, o olhar passando de mim para a rua -, e não confio nos trods21 de sempre se Rowan sabe que estamos aqui. – Parou, pensando,

20 Thornguards: “thorn” é “espinho”, em inglês. Referência à imagem que eles carregam no ombro, usada para diferenciar este grupo de soldados dos demais. 21 Trods: caminhos dos feéricos entre o mundo mortal e Fairyland. Traduzindo-se a palavra do inglês para o português: “caminhos”. Manteve-se no original por facilitar a compreensão imediata, quando o termo aparece, de que se tratam destes portões mágicos. Podem ser árvores, porões, esgotos e todo o tipo de lugar inusitado. Geralmente são guardados por faeries. Para

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então suspirou. – Há um lugar mais que podemos ir.

- Onde fica?

Ele olhou para mim, e subitamente notei o quão próximos estávamos. Nossos rostos estavam somente a polegadas de distância e senti o bater de seu coração acelerar, acompanhando o meu. Rapidamente, ele recuou, e eu afundei minha cabeça, escondendo o meu rosto em chamas.

- Vamos. – Ele sussurrou, e achei que captei um tremor em sua voz. – Nós não estamos longe, mas temos que nos apressar. O Mercado mantém seus próprios horários, e se nós não o alcançarmos a tempo, irá desaparecer.

Um rugido selvagem soou pela escuridão, e nós olhamos de volta à multidão. Os feéricos Winter tinham voltado a sua festa como se nada tivesse acontecido; mas havia um fraco canto desesperado em seus foliões agora, como se a promessa de guerra tivesse somente estimulado seu apetite por sangue. Um par de barretes vermelhos e uma bruxa22 discutiam sobre o corpo do duende morto, e me afastei antes que ficasse doente. Ash tomou minha mão e me puxou para dentro das sombras.

NÓS FUGIMOS PELA cidade, mantendo-nos nas sombras e na escuridão, de alguma forma evitando a plebe na rua. Em um ponto, estivemos perto de tropeçar em um barrete vermelho saindo de um buraco na parede. A criatura rosnou um insulto, mas então seus olhos de conta se abriram em reconhecimento e ao invés ele virou para gritar um alarme. Ash fez um gesto forte, e uma adaga de gelo convergiu dentro da boca aberta da criatura, silenciando-a para sempre.

Alcançamos um pátio circular na orla de um enorme lago subterrâneo, névoa rodopiava na água vindo flutuar junto ao chão. Estandes coloridos e tendas estavam vazios quando passamos, oscilando na brisa como um parque abandonado. Uma enorme árvore branca ficava bem no centro, carregada de frutas que se pareciam com cabeças humanas. Uma porta estreita fora incorporada no tronco grosso, e Ash acelerou seu passo enquanto nos aproximávamos.

- O Mercado é por aqui. – Ele explicou, puxando-me para trás da árvore quando um ogro passou afastando-se pesadamente, seus passos lentos e tediosos. – Agora, escute. Seja lá o que vir lá, não compre nada, não ofereça nada, e não aceite nada, não importa o quanto precise. Os vendedores tentarão fazer um negócio com você... ignore-os. Mantenha-se silenciosa, e mantenha seus olhos em mim. Entendeu?

Aquiesci. Ash abriu a porta estreita com um ranger e me deixou entrar, fechando a porta atrás dele. O interior do tronco brilhava suavemente e tinha um doce cheiro pútrido, como flores decadentes. Procurei por outra porta ou saída ao redor, mas o tronco estava vazio, exceto pela porta pela qual entramos.

- Fique perto. – Ash sussurrou, e ele abriu a porta novamente com um empurrão.

Ruído explodiu através da porta. O pátio circular agora se aglomerava com vida; os estandes transbordavam em mercadorias; música e fogo faery flutuavam pela noite, e feéricos se amontoavam ao redor em grandes números, comprando, falando e regateando com os vendedores. Eu recuei, e Ash me deu um sorriso tranqüilizador.

- Está tudo bem. – Ele disse, conduzindo-me adiante novamente. – No Mercado, ninguém pergunta por que está aqui ou de onde você veio. A única coisa com a qual estão preocupados é com os negócios.

saber mais, ver os outros livros da série, The Iron King (O Rei de Ferro), livro um; e Winter Passage (Passagem de Inverno, pequeno conto entre o livro um e esta história). 22 No original: hag. Mulher velha, feia e rabujenta. O estereótipo da bruxa.

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- É seguro, então? – Perguntei, enquanto um faery com cabeça de lobo espreitava pela multidão, carregando uma corda com mãos decepadas. Ash riu sombriamente.

- Eu não iria tão longe.

Nós nos juntamos à multidão que, apesar dos empurrões, encontrões e insultos rosnados, não prestou nenhuma atenção em nós. Vendedores sobrenaturais ficavam ao lado de seus estandes ou tendas, gritando seus artigos, acenando para os transeuntes com longos dedos ou garras. Um duende verrugoso capturou meu olhar e sorriu, apontando para o seu mostruário de colares feitos de dedos, dentes e ossos. Uma bruxa ondulou uma cabeça enrugada de um porco no meu rosto, enquanto um troll pesadão tentou me entregar algum tipo de carne-em-palito. Cheirava maravilhosamente, até que notei as crocantes cabeças de pássaros e ratos presos nos quibes entre outros pedaços não-identificáveis, e eu me apressei atrás de Ash.

As esquisitices continuavam. Apanhadores de sonhos feitos de seda de aranha e ossos de crianças. Patas de Macaco e Mãos da Glória23. Um estande tinha um mostruário proeminente de corações ainda pulsando, enquanto que uma tenda ao lado oferecia flores de delicado vidro afiado. Em todo o lugar que eu olhasse, via maravilhas, horrores, e o simplesmente estranho. Os vendedores eram incrivelmente persistentes. Se eles te pegavam olhando, saltavam na sua frente, gritando as maravilhas de seus artigos e oferecendo “um acordo que você não poderia recusar”.

- Alguns cachos de seu cabelo. – Gritou um diabinho com rosto de rato, segurando uma maçã dourada. – Fique jovem e bonita para sempre. – Balancei minha cabeça e me apressei.

- Uma memória. – Cantarolou funebremente uma mulher com olhos de corça, ondulando um cintilante amuleto para frente e para trás. – Uma minúscula memória, e seu maior desejo será atendido. – É, certo. Eu tinha feito a coisa com a memória antes, obrigada. Isto não foi agradável.

- Seu primeiro filho. – Alguns poucos deles queriam. – Seu nome. Uma ampola de suas lágrimas. Uma gota de sangue. – Com cada oferta, eu só balançava a cabeça e me apressava atrás de Ash, tecendo meu caminho através das multidões. Algumas vezes, um olhar do Príncipe de Gelo encolhia o mais persistente dos vendedores que nos seguiam pelos corredores ou aferroavam-se a minha manga, mas a maioria das vezes nós simplesmente continuávamos a nos mover.

Perto do lago, uma fileira de docas de madeira flutuava acima da água negro-tinta. Uma encharcada taverna, inclinada nas margens como um sapo inchado. Um duende cambaleou para fora segurando uma caneca, vomitou por toda a calçada, e desmaiou naquilo com seu rosto virado para o céu. Ash passou por cima do corpo gemente e mergulhou nas portas balançantes. Torcendo meu nariz para o descartado duende, eu o segui.

O interior era fumarento e escuro. Mesas maltratadas de madeira estavam espalhadas pela sala, hospedando uma variedade de feéricos de aparência repugnante, de gangues de barretes vermelhos no canto, para o único phouka com cabeça de cabra que me observava com brilhantes olhos amarelos.

Ash deslizou os olhos pela sala, traçando seu caminho para o bar, onde um anão com uma emaranhada barba preta olhou para ele e cuspiu em um copo. – Não devia estar aqui, Príncipe. – Ele rosnou em um tom baixo, limpando a caneca com um trapo sujo. – Rowan tem metade da cidade procurando por você. Mais cedo ou mais tarde, os Thornguards irão aparecer i botar o lugar abaixo se eles acharem que tamo te escondendo.

- Estou procurando por Sweetfinger24, Ash disse em uma voz igualmente baixa, enquanto se aproximava em direção de um baquinho de bar. – Preciso sair de Tir Na Nog, hoje à noite. Sabe onde ele está?

23 Basicamente, a Mão da Glória é uma mão humana seca, retirada de um enforcado, cujos dedos estão posicionados para segurar uma vela. Essa vela, quando acesa dentro de uma casa com o devido encantamento, gera dois efeitos: sua luz só serve para seu portador, e impede que qualquer um dormindo na casa desperte. 24 Sweetfinger. Tradução literal: “Dedo doce”.

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O anão atirou em mim um longo olhar enviesado, seu grosso rosto fechando-se em uma carranca. – Se eu não te conhecesse, Príncipe. – Ele murmurou, polindo o vidro novamente. – Ti acusaria de ser mole. O boato é que é um traidor da Corte Winter, mas eu não ligo pra isto. – Ele abaixou a caneca com uma pancada e encostou-se no balcão. – Só me responda isto. Ela vale a pena?

O rosto de Ash ficou vazio e frio, como uma porta fechando-se com uma batida. – Isto seria considerado um pagamento por achar Sweetfinger? – Ele respondeu em uma voz desprovida de emoção.

O anão bufou. – É. Claro, seja o que for. Mas, quero uma resposta séria, Príncipe.

Ash ficou silencioso por um momento. – Sim. – Ele murmurou, sua voz tão baixa que eu mal a peguei. – Ela vale a pena.

- Sabe que Mab vai ti rasgar ao meio por isto.

- Eu sei.

O anão balançou sua cabeça, dando a Ash um olhar de pena. – Você i sua dama, com seus problemas. – Ele suspirou, botando o copo debaixo do balcão. – Pior do que os sátiros, te digo. Pelo menos, eles são espertos o suficiente para não se apegarem.

O tom de Ash estava gélido. – Pode encontrar-me o Sweetfinger ou não?

- É, eu sei onde ele está. – O anão coçou seu nariz, então pincelou alguma coisa para fora. – Mandarei alguém procurá-lo. Você e sua ursinha Summer podem ficar no andar de cima até que ele apareça.

Ash se afastou do balcão. Seu rosto ainda estava calmamente trancado, dentro daquela máscara sem expressão, quando ele se virou para mim. – Vamos.

Eu saltei para fora do banquinho de bar. – Quem é Sweetfinger? – Atrevi-me enquanto nós caminhávamos de volta pela sala. Ninguém nos parou. Os outros clientes também nos ignoraram ou nos deram distância. O que não era surpreendente; o frio irradiando do príncipe Winter era palpável.

- Ele é um contrabandista. – Ash respondeu, apressando-me para um conjunto de escadas no canto. – Um duende, para ser específico. Ao invés de contrabandear bens, contrabandeia criaturas vivas. Ele deve ser o único que pode nos tirar da cidade. Se nós pudermos pagar o seu preço.

Duendes. Eu estremeci. Minha própria experiência com duendes não tinha sido agradável. Um grupo deles tentou me comer uma vez, na primeira vez em que vim para Nevernever.

No andar de cima, Ash me guiou por um corredor rangente, passando por muitas portas de madeira com estranhos sons vindos além delas, até que chegamos à última. Dentro, um minúsculo quarto nos saudou, com duas camas simples ao longo de paredes opostas e uma tremeluzente lamparina no canto mais afastado. Notei que a lamparina era na verdade em uma caixa circular no topo de um suporte dourado, e a luz fazia barulhos desesperados enquanto voava de um lado para o outro. Ash fechou a porta, e eu ouvi o estalo de uma fechadura antes que ele se recostasse contra ela, parecendo completamente exausto.

Ansiei abraçá-lo. Queria me derreter nele e sentir seus braços ao meu redor, mas suas últimas palavras pendiam entre nós como uma cerca de arame farpado. – Você está bem? – Sussurrei. Ele aquiesceu e correu seus dedos por seu cabelo.

- Durma um pouco. – Ele murmurou. – Não sei se nós teremos outra chance de parar depois desta. Você devia descansar enquanto pode.

- Não estou cansada.

Ele não insistiu no assunto, mas ficou lá me observando com uma cansada expressão de

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tristeza. Devolvi o olhar, desejando que eu pudesse atravessar a distância entre nós, não sabendo como alcançá-lo.

Um silêncio embaraçoso encheu o quarto. Palavras rondaram a ponta da minha língua, esperando para irromperem, mas eu sabia que Ash não queria ouvi-las. Titubeei entre o silêncio e a confissão, sabendo que seria afastada com desprezo, mas ainda querendo tentar. Ash parou silenciosamente, seu olhar vagando pelo quarto. Um par de vezes ele, também, parecia a ponto de dizer alguma coisa, só para se quedar quieto, passando seus dedos através do cabelo. Quando as palavras finalmente vieram, nós dois falamos ao mesmo tempo.

- Ash...

- Meghan, eu...

Alguém bateu na porta, fazendo-nos pular. – Príncipe Ash! – Uma voz chiada gritou do outro lado. – Está aí? Sweetfinger está no andar de baixo, esperando por você.

- Diga a ele que já estou indo. – Ash respondeu, e se desencostou da porta.

- Espere aqui. – Ele me falou. – Aqui deve ser seguro. Tranque a porta e tente descansar um pouco. – Ele abriu a porta, revelando um duende estrábico do outro lado, e fechou a porta atrás dele.

Sentei em uma das camas, que cheirava a cerveja e a palha suja, e olhei fixamente para a porta por um longo tempo.

ENTÃO EU ESTAVA SENDO acordada às sacudidelas. Pisquei na escuridão; alguém tinha posto uma capa preta sobre a caixa de luz e o quarto estava envolto em sombras. O sono fez minhas pálpebras pesadas e desajeitadas, mas eu as abri em fendas para focalizar sobre a forma borrada acima de mim. Ash sentou na borda do colchão, olhos prateados brilhando na escuridão, segurando-me gentilmente pelos ombros.

- Meghan – ele murmurou -, acorde. Está na hora.

A exaustão arrastava-se em mim. Estava mais cansada do que pensei, e meus pensamentos rodopiavam-se obtusos. Vendo que eu estava acordada, Ash começou a se erguer da cama, mas eu deslizei para frente e envolvi meus braços em sua cintura.

- Não. – Murmurei, minha voz ainda grogue com o sono. – Fique.

Ele estremeceu, e suas mãos vieram descansar sobre as minhas. – Você não está facilitando as coisas. – Ele sussurrou dentro da escuridão.

- Eu não ligo. – Pronunciei indistintamente, apertando meu abraço. Ele suspirou e se virou um pouco em meus braços, afastando o cabelo nas minhas bochechas.

- Por que sou tão atraído por você? – Ele murmurou, quase para si mesmo. – Por que é tão difícil esquecer? Pensei... primeiro... que fosse Ariella, a quem você me lembra tanto. Mas não é. – Apesar dele não sorrir, seus olhos clarearam-se em uma matiz. – Você é muito mais teimosa do que ela jamais foi.

Eu funguei. – É o roto falando do esfarrapado. – Sussurrei, e um fraco, minúsculo sorriso finalmente cruzou sua face, antes que sua expressão anuviasse e ele abaixasse sua cabeça, tocando sua fronte na minha.

- O que você quer de mim, Meghan? – Ele perguntou, um tom baixo de angústia oscilando abaixo da superfície. Lágrimas borraram minha visão, todo o medo e mágoa dos últimos dias subindo para a superfície.

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- Só você. – Sussurrei. – Eu só quero você.

Ele fechou seus olhos. – Eu não posso fazer isto.

- Por que não? – Exigi. Seu rosto nadou acima de mim, borrado com as lágrimas, mas eu me recusei a soltá-lo para limpar meus olhos. Meu desespero cresceu. – Quem liga para o que as cortes dizem? – Desafiei. – Nós poderíamos nos encontrar em segredo. Você poderia vir para o meu mundo, ninguém nos veria lá.

Ele balançou sua cabeça. – Mab já sabe. Acha que ela nos deixaria ir embora assim? Viu o quão bem ela reagiu na sala do trono. – Eu funguei, enterrando meu rosto no seu lado, enquanto os dedos dele gentilmente penteavam meu cabelo. Não queria deixá-lo ir. Queria me enrolar nele e ficar lá para sempre.

- Por favor. – Sussurrei desesperadamente, não me importando mais com o orgulho. – Não faça isto. Nós podemos encontrar um caminho entre as cortes. Por favor. – Mordi meu lábio enquanto um tremor o transpassou, e eu o segurei mais apertado. – Eu te amo, Ash.

- Meghan. – A voz de Ash estava atormentada. – Você não... me conhece de todo. Você não sabe o que eu tenho feito... o sangue em minhas mãos, tanto faery quanto mortal. – Ele parou, tomando uma exalação para se recompor. – Quando Ariella morreu, tudo dentro de mim congelou. Era somente caçando... matando... que eu podia sentir alguma coisa novamente. Eu não me importava com nada, nem comigo mesmo. Atirei-me em lutas que eu pensei que perderia, apenas para sentir a dor de um golpe de espada, as garras me rasgando ao meio.

Estremeci e me agarrei a ele, lembrando das cicatrizes transpassando suas costas e ombros. Eu podia imaginá-lo lutando, seus olhos mortos e frios, esperando que alguma coisa finalmente tivesse sorte e o matasse.

- Então você veio – ele murmurou, tocando minhas bochechas úmidas -, e subitamente... eu não sei. Era como se estivesse vendo as coisas pela primeira vez novamente. Quando eu a vi com Puck, o dia que veio para Nevernever...

- O dia que tentou nos matar. – Relembrei-o.

Ele estremeceu, aquiescendo. – Pensei que o destino estivesse pregando uma piada cruel em mim. Aquela garota, que poderia ser a sombra de Ariella, estava na companhia de meu inimigo jurado... isto era demais. Queria matar a vocês dois. – Ele suspirou. – Mas, então eu a encontrei no Elysium, e... – Ele fechou seus olhos. – E tudo o que eu pensava que tinha perdido para sempre retornou. Era enlouquecedor. Pensei em matá-la muitas vezes durante o Elysium, só para parar o que eu sabia que seria minha derrocada. Não queria isto, sentir nada, especialmente com uma garota meio-humana que era a filha do Rei Summer. - Ele bufou pesarosamente, balançando sua cabeça. – Do momento em que pisou em Nevernever, você tem sido minha ruína. Nunca deveria ter concordado com aquele contrato.

Eu puxei uma inspiração. – Por quê?

Ele tirou uma mecha de cabelo da minha bochecha, sua voz mais gentil do que antes.

- Porque não importa o que eu sinta, não posso lutar contra séculos de regras e tradições, e nem você.

- Nós poderíamos tentar…

- Você não conhece as cortes. – Ash continuou suavemente. – Você não esteve em Faery por tempo o suficiente para saber o que poderia acontecer, mas eu sim. Eu o tenho visto, séculos disto. Mesmo se conseguirmos o cetro de volta, mesmo se conseguirmos parar a guerra, nós ainda estaríamos em lados opostos. Nada irá mudar isto, não importa o quanto você deseje que não fosse assim. Não importa o quanto eu deseje que fosse diferente.

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Eu não respondi, muito miserável para fazer um comentário. Sua voz, apesar de cheia de lástima, estava resoluta. Ele tinha se convencido, e eu não mudaria isto. Uma estranha paz assentou-se através de mim, ou talvez meu desespero finalmente cedeu para a resignação. Então, é isto, pensei, enquanto o torpor se estendia por meu corpo, facilitando a dor aguda no meu peito. É assim que é terminar com alguém. Embora eu estivesse certa de que “terminar com alguém” era a expressão errada. Parecia comum e trivial demais para o que estava acontecendo.

- Vamos. – Ash arrancou minhas mãos de sua cintura e se levantou. – Devemos ir. Sweetfinger e eu fizemos um acordo. Ele nos levará para fora da cidade pelos túneis dos duendes que correm abaixo dela. Precisamos nos apressar... os Thronguards de Rowan ainda estão vasculhando as ruas por nós.

- Ash. – Eu disse, lutando para me endireitar. – Espere. Só mais uma coisa, antes de irmos.

Ele franziu o cenho cautelosamente. – O que você quer?

Ergui-me da cama, meu coração batendo surdamente em meu peito. – Beije-me. – Eu sussurrei, e vi suas sobrancelhas arcarem-se em surpresa. – Só mais uma vez – implorei -, e prometo que será a última. Serei capaz de esquecê-lo depois disto. – Uma mentira cabeluda. Mesmo se eu me tornasse uma nonagenária, perdesse minha razão e me esquecesse de tudo mais, a memória do príncipe Winter seria um sinal brilhante que nunca se esvaneceria.

Ele hesitou, incerto, e tentei clarear minha voz. – Última vez, prometo. – Encontrei seu olhar e tentei um sorriso. – É o mínimo que pode fazer. Não tive um término apropriado, sabe.

Ash ainda hesitava, parecendo despedaçado. Seus olhos voaram para a porta, e por um momento pensei que ele iria embora, deixando-me encolhida em uma pilha mortificada. Mas então ele soltou um suspiro silencioso, e seus ombros caíram em resignação.

Encontrando meu olhar, ele deu um passo para frente, puxou-me para seus braços, e roçou seus lábios nos meus.

Acho que o nosso ultimo beijo era para ser rápido e casto, mas depois do primeiro toque de seus lábios, fogo saltou e rugiu através da minha barriga. Meus dedos o aproximaram de um puxão, escavando as suas costas, e os braços dele apertaram-me contra si como se querendo nos fundir. Enlacei meus dedos no seu cabelo e mordisquei seu lábio inferior, fazendo-o gemer. Seus lábios se separaram, e minha língua varreu para dentro para dançar com a dele. Não havia nada de doce ou gentil em nosso último beijo; estava cheio de tristeza e desespero, do conhecimento amargo que nós poderíamos ter tido algo perfeito, mas não era para ser.

Terminou muito rápido. Ash recuou, olhos brilhando, tremendo com desejo e paixão. Nossos corações estavam batendo selvagemente, e os dedos de Ash estavam escavando dolorosamente os meus ombros. – Não me peça isto novamente. – Ele disse com voz áspera, e eu estava muito sem ar para responder.

Ele me soltou e espreitou pela porta sem olhar para trás. Tomei um profundo fôlego, parando as lágrimas que subiam pela minha garganta, e o segui.

Um duende esperava por nós ao pé da escada, sua boca aberta em um sorriso dentuço que mostrava presas faltantes e dentes de ouro. Ele estava enfeitado em jóias: anéis, brincos, colares, até mesmo um piercing de nariz. Um olho vítreo-leitoso brilhou quando ele se virou para mim, roçando suas garras e sorrindo como um satisfeito tubarão.

- Ah, esta é princesa que tornou príncipe traidor. – Ele sibilou, olhando-me de cima abaixo. – E agora eles precisam dos túneis dos duendes para fora da cidade, bom, bom. – Ele gesticulou com a mão incrustada de anéis. – Sem tempo para falar. Nós saímos agora, antes guardas apareçam, perguntam muitas perguntas. Precisa alguma coisa antes ir, príncipe traidor?

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Ash parecia pesaroso, mas balançou sua cabeça. O duende gargalhou, dentes de ouro brilhando na luz escura. – Sim, bom! Sigam-me, então.

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CAPÍTULO SETE

O Anel

Sweetfinger nos levou até uma porta nos fundos da taverna, junto às margens do lago. Passando as docas, o chão estendia-se nitidamente em uma linha costeira estreita de rocha escarpada e pedra. Abraçando a parede de recifes, nós seguimos Sweetfinger até a borda da água, onde dois duendes corpulentos esperavam dentro de um pequeno barco de madeira.

- Rápido, rápido. – Sweetfinger disse, apressando-nos a entrar. Sentamos cautelosamente entre os dois criados duendes, que pegaram os remos quando Sweetfinger nos empurrou na água e saltou para dentro. Enquanto eles remavam para longe da costa, ele virou para nós com um sorriso apologético.

- Túneis duendes não são muito longe daqui. – Ele disse dedilhando um dos anéis. – Somente duendes sabem onde eles estão, e somente duendes são admitidos a vê-los e viver. Costumava ser, o pagamento seria seus adoráveis olhos, mas os tempos mudam. O ponto é, você não duende, você não pode ver nossos túneis secretos. Regras, sabe. Sinto muito.

- Entendi. – Ash murmurou enquanto um duende deslizou ao lado dele e puxou uma venda sobre seus olhos. Pulei quando um pano preto cobriu meus olhos também, mergulhando-me na escuridão.

Nós flutuamos por um longo tempo, os únicos sons sendo o patinhar dos remos na água e os comentários ocasionais de Sweetfinger com os seus bandidos. O corpo de Ash estava tenso contra o meu, feixes contraídos de músculos debaixo de sua pele. O ar tornou-se mais frio, e ouvi o chiado de morcegos em algum lugar acima de nós. O barco chocou e raspou contra rochas, e um desagradável odor rastejou pelo ar, cheirando a estrume e carne estragada. Risadinhas e gargalhadas ecoaram na escuridão, e pés com garras deslizaram sobre as pedras.

Então, os ruídos e cheiros esvaíram-se, e nós flutuamos em silêncio por um tempo. Ouvi Sweetfinger e seus guardas murmurando entre eles, e isto me fez ficar muito nervosa. Finalmente, o barco chocou-se contra chão sólido, e alguém o empurrou para a terra firme.

Arranquei a venda e pisquei na luz opaca. Nós estávamos em uma pequena caverna com um chão pegajoso, ossos e lixo espalhados pelo espaço. À distância, um círculo de luz cintilava convidativamente. Soltei um suspiro de alívio. Tínhamos conseguido.

Sweetfinger olhou lubricamente para nós enquanto Ash me ajudava a sair do barco. – Como prometido. – Ele disse, gesticulando para a saída nos fundos do espaço. – Passagem segura fora da cidade. Agora, acredito príncipe traidor deve-me algo, sim? – Ele ergueu uma garra incrustada de jóias, e Ash deixou cair uma pequena bolsa de couro dentro de sua ansiosa mão.

- Não diga a ninguém que nos viu. – Ash disse enquanto os dois servos duendes empurraram o barco de volta para a água.

- Temo que seja tarde demais para isto, Vossa Alteza. – Surgiu uma voz áspera e grave do

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outro lado da caverna. Nós giramos, a mão de Ash sobre sua espada, enquanto quatro Thornguards entravam no campo de visão, suas botas triturando as pedras.

- Muito inteligente, não ir pelos trods comuns, Ash. – Disse um guarda. Sua armadura era mais espinhosa que as dos outros, as farpas sobre seus ombros eriçando-se como os espinhos de um enorme porco-espinho. – Mab tem a todos eles guardados, mas sabia disto, não sabia? Infelizmente, Rowan já subornara cada contrabandista na cidade à altura que você achou aquele ali. Duendes são uns oportunistas repulsivos, não são?

Furiosa, voltei o olhar para Sweetfinger, mas o barco já estava fora de alcance, Sweetfinger sorrindo para mim da proa.

- Sinto, Princesa. – O duende cacarejou. – A oferta do príncipe foi boa. A oferta do outro príncipe foi melhor. Nada pessoal, sim? – Ele acenou, e o barco flutuou embora, dentro da escuridão. Uma pedra de gelo se assentou no meu estômago, e me virei para os guardas.

Como um, os Thornguards puxaram suas armas. As espadas deles eram espetadas e negras, com longos espinhos correndo pela extensão da lâmina, parecendo com anzóis afiados.

- Fique aí embaixo, Edgebriar. – Ash comandou. Ele não tinha puxado sua espada ainda, mas sua postura estava tensa. – Não quero lutar com você. Pode sair disto e Rowan nunca saberia. Não vamos voltar para a cidade.

- Temo que não tenhamos ordens para levá-los de volta à cidade, ou à Mab. – Edgebriar disse com o mais arreganhado dos sorrisos. – Veja, Rowan sabe que vocês vão atrás do cetro, e ele não pode permitir isto. O novo rei quer a mestiça viva, mas temo que tenhamos que matá-lo, Príncipe. Como Sweetfinger disse, não é nada pessoal.

Por um segundo, eu não soube sobre quem ele estava falando. Então isto me acertou como um soco no estômago. O novo rei. O novo Rei Iron. Eles estavam trabalhando para o Reino Iron. Rowan deve ter deixado Tertius e os homens de arame entrarem no palácio. Ele os deixou matar Sage e tomarem o cetro, e convenceu Mab de que os feéricos Iron não eram uma ameaça!

O rosto de Ash tornou-se vazio com o choque. – Não. – Ele disse, enquanto o sangue drenava-se de seu rosto. – Não, Rowan não nos venderia. Não para eles. O que vocês fizeram?

- Nós não podemos parar o Reino Iron. – Edgebriar continuou, sua voz reservada. – Os caminhos antigos se tornaram obsoletos. Mab não pode nos proteger por mais tempo. É hora de nos aliarmos com o mais poderoso, tornarmo-nos tão grandes quanto eles são. Rowan nos liderará a uma nova era, uma onde não temeremos nada. Nem o toque do ferro, nem o esvanecimento da imaginação humana, nada! Deixe os sangues antigos chafurdarem-se em suas tradições antigas. Eles cairão logo, e nos ergueremos para tomar o seu lugar.

- Rowan nos destruirá. – Ash disse severamente. – Esta guerra só apressa nossa destruição. Se Summer e Winter ficarem juntas, poderemos parar o Reino Iron.

- Por quanto tempo? – Edgebriar exigiu, pontuando suas palavras com uma ondulação selvagem de sua espada. – Os humanos sonham com sua tecnologia, suas grandes visões arrebatadoras, e nos esquecem. Nós não podemos voltar o relógio, mas podemos evoluir para sobreviver. Eu lhes mostrarei o que quero dizer. – Ele tirou sua luva, ergueu sua mão desnuda. Em seu terceiro dedo, um anel de ferro cintilou na luz. O dedo inteiro estava negro e trêmulo, e meu estômago revirou-se enquanto ele balançava seu punho triunfalmente. – Olhem! – Ele exigiu. – Olhem para mim! Não temo o toque do ferro, do progresso. Queima-me agora, mas logo serei capaz de usá-lo livremente, como os humanos. Logo, serei como eles.

- Você está morrendo, Edgebriar. – A voz de Ash estava carregada de horror e pena. – Isto o está matando vagarosamente, e nem mesmo se dá conta disto.

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- Não! Depois da guerra, quando ambos os lados estiverem fracos e sem barreiras, os feéricos Iron arrastarão e destruirão todos os traços do antigo. Não haverá mais Summer ou Winter. Não haverá mais cortes. Haverá apenas o Reino Iron, e aqueles fortes o bastante para ficarem com ele.

Eu olhei para ele. – Rowan deixou os feéricos Iron entrarem no palácio, não deixou? – Sussurrei, e seu olhar febril voltou-se para mim. – Ele os enviou para roubar o cetro, e os deixou matar seu próprio irmão. Como pode trabalhar para tal bastardo? Não consegue ver que ele está usando você?

- Fique quieta, mestiça. – Edgebriar olhou fixamente para mim. – Insulte meu príncipe novamente, e eu cortarei a sua língua e alimentarei meus cães com ela. Rowan é o único que se importa com o futuro de Tir Na Nog.

Ash balançou sua cabeça. – Rowan quer poder, e sacrificaria sua corte inteira para alcançá-lo. Não tem que ser responsável pela insanidade dele, Edgebriar. Deixe-nos passar. Podemos terminar esta guerra, e se Summer ficar conosco, poderemos achar um jeito de negociar com o Reino Iron.

O rosto de Edgebriar não mudou. – Temos ordens, Príncipe Ash. Levaremos a mestiça conosco, mas temo que sua jornada acabe aqui. Rowan deixou muito claro que ele não o queria retornando para Mab, por qualquer motivo. – Ele gesticulou para os cavaleiros atrás dele, e eles começaram a se aproximar. – Minhas desculpas pelo lugar. O tombar de um príncipe deveria ser um grande evento.

Recuei, conhecendo a violência que se seguiria. Pela milionésima vez, tentei desesperadamente fazer alguma coisa com meu glamour; erguer uma raiz para derrubar os cavaleiros, lançar uma bola brilhante de luz para distraí-los, qualquer coisa. Era como bater em uma parede de vidro. Sabia que meu poder estava do outro lado, mas não conseguia acessá-lo.

Ash encarou o aproximar dos cavaleiro calmamente, embora eu pudesse sentir os músculos contraindo-se abaixo de sua pele. – Rowan não me conhece tão bem como ele pensa – ele murmurou, parecendo indiferente às lâminas denteadas se aproximando dele -, de outra forma nunca teria cometido tal engano.

Edgebriar sorriu, olhando lubricamente para Ash detrás do trio de cavaleiros, contentando-se em deixar seus guardas encarregarem-se do príncipe Winter. – E que engano seria este?

- Só há quatro de vocês.

Seu braço açoitou, enviando uma chuva de cacos de gelo nos iminentes Thornguards. Os cavaleiros vacilaram, erguendo seus braços para proteger seus rostos, e Ash investiu no meio deles.

O primeiro sequer teve uma chance. A lâmina de Ash cortou rente ao braço dele, e o faery se dobrou antes mesmo que pudesse erguer sua espada. Onde ele caiu, sua armadura eriçada parecia se desfiar, espraiando-se em minúsculas sarças negras, espinhos contorcendo-se no ar. Em segundos, o corpo do faery transformou-se em um gigante espinheiro, crescendo rente às pedras. Um anel de metal brilhou em um dos ramos.

O roçar de lâminas focou-me na batalha corrente. Não podia ver Edgebriar, mas os outros dois Thornguards empurravam Ash para um canto e o estavam perseguindo sem piedade. Ash desviava e girava, bloqueando os ataques deles, sua lâmina uma mancha azul-esbranquiçada através do ar. Olhei ao redor e peguei uma rocha do tamanho de um punho na beira da água. Talvez não pudesse lançar bolas de fogo, mas aquilo não me impediria de arremessar outras coisas.

Por favor, não acerte Ash, eu pensei, girando para lançá-la.

A primeira pedra bateu nas costas de um cavaleiro, não fazendo nada, mas a segunda golpeou o lado de sua cabeça, fazendo-o recuar só por um momento. Foi o bastante. A lâmina de Ash açoitou, cortando através de seu peito. O cavaleiro dobrou-se sem um ruído, e espinheiros irromperam de seu braço, cobrindo o corpo em um casulo de espinhos.

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Dei um grito de triunfo, mas uma forma escura encheu minha vista. Edgebriar caminhou para fora da invisibilidade e me alcançou com dedos cheios de garras. Tentei me esquivar, mas o Thornguard aferrolhou meu pulso e me arrastou para ele, torcendo meu braço atrás das minhas costas. Enquanto eu ofegava de dor, seu outro braço veio circular minha garganta. Eu me contorci e o chutei, mas só piquei a mim mesma em sua armadura espinhosa, enquanto seu braço apertava e cortava meu ar.

Uma explosão de espinheiros sinalizou o fim do último cavaleiro, e Ash veio caminhando a passos largos através da sebe viva direito para nós, um frio olhar assassino em seus olhos.

- Fique onde está, Príncipe. – Edgebriar cuspiu, e pressionou uma fria adaga negra contra meu pescoço. – Nem um passo a mais, eu arrancarei os lindos olhos dela. O Rei Iron não se importará se estiver um pouco danificada quando chegar até ele.

Ash parou, abaixando sua lâmina, seus olhos nunca deixando o cavaleiro. A chave de pescoço de Edgebriar afrouxou um pouquinho, e eu suguei um fôlego imprescindível, tentando ficar calma. Perto assim, o cavaleiro cheirava a suor e couro, e alguma coisa mais forte, metálica. O anel em sua mão brilhou contra seu dedo enegrecido, enquanto ele segurava a faca apontada para o meu rosto.

- Agora – Edgebriar ofegou, travando olhares com Ash -, quero que ponha sua espada no chão e jure que não nos seguirá. – Quando Ash não se moveu, Edgebriar perfurou a ponta da faca em minha bochecha, só o suficiente para tirar sangue. Ofeguei de dor, e Ash se retesou. – Não pedirei novamente, Vossa Alteza. – Edgebriar rosnou. – Perdeu esta batalha. Abaixe sua espada, e prometa que não nos seguirá.

- Edgebriar. – A voz de Ash estava tão fria quando aço congelado. – Rowan envenenou sua mente, tão certo quanto este ferro está envenenando suas entranhas. Ainda pode sair disto. Deixe-me levar a princesa de volta para Arcádia, e então poderemos alertar Mab sobre o Rei Iron e Rowan.

- É muito tarde. – Edgebriar balançou sua cabeça selvagemente. – Eles já estão vindo. Não pode pará-los, Ash. Ninguém pode. – Ele riu por entre os dentes, uma nota de loucura vindo à superfície, e estreitou seu aperto em meu pescoço. – Todo o exército do rei e todos os homens do rei – ele sussurrou, ondulando a faca em frente aos meus olhos -, vieram a Faery no dia em que ela acabou25.

Tudo bem, basta era basta. Edgebriar tinha perdido; ele tinha percorrido um longo caminho a pé em pouco tempo. Eu tinha que fazer alguma coisa. Mas sem uma arma ou glamour, o que poderia fazer?

Sangue estava gotejando do meu rosto, esvaindo-se em um caminho sobre a minha pele como uma gigante lágrima vermelha. Minha bochecha latejava, e a dor trazia tudo para dentro de um foco mordaz. Em minha mente, vi o anel metálico em branco-incandescente, pulsando com energia. Senti o glamour ao redor dele, mas era diferente de tudo o que tinha sentido antes – frio e sem cor. Isto era... glamour iron? Poderia usá-lo como os feéricos usavam a magia primitiva de sonhos e emoções? O anel tremeluzia, fluido e vivo, ansioso para ser trabalhado. Para ser moldado em alguma coisa nova.

Mais apertado, eu pensei, e o aro de metal respondeu instantaneamente, cortando a pele. Edgebriar estremeceu, parecendo surpreso, e eu o comprimi mais, torcendo o anel tanto que cortou a carne, vertendo sangue. Ele sibilou onde tocou, e Edgebriar rugiu, sacudindo seu braço do meu pescoço como se ele queimasse. Contorci-me de seu agarre e o empurrei para longe.

Ash investiu contra Edgebriar. O Thorguard o viu vindo e no último segundo puxou sua espada, tarde demais. Ash avançou em sua guarda e mergulhou a lâmina através do peito dele, tão profundo que irrompeu nas costas do cavaleiro.

Edgebriar cambaleou e caiu, atingindo a água com um alto chapinhar. Ele olhou fixamente

25 Provável referência a uma cantiga infantil, da coletânea das histórias da Mamãe Ganso, muito conhecida nos EUA. “Humpt Dumpt sat in a wall / Humpt Dumpt had a great fall / All the kings horses and all the kings men / Couldn´t put Humpt together again” (Humpt Dumpt sentou em um muro / Humpt Dumpt teve uma grande queda / Todos os cavalos do rei e todos os homens do rei / Não puderam colocar novamente Humpt no lugar).

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para o sangue em seu peito, então olhou para nós acima, seus olhos vazios e confusos. – Vocês não... entendem. – Ele borbulhou, enquanto Ash olhava abaixo para ele, tristemente. – Nós iríamos ser... como eles. Rowan... nos prometeu. Ele prometeu...

Então seus olhos rolaram em sua cabeça, e trepadeiras espinhosas deslizaram sobre seu corpo, escondendo-o de vista.

Estremeci, dividida entre vomitar e me enterrar em lágrimas. Estranho como todo o meu tempo na Corte Winter ainda não tinha me insensibilizado para o sangue e a morte. Senti o olhar de Ash sobre mim, curioso e cauteloso, como o de um estranho.

- O que você fez a ele?

Balancei minha cabeça. O glamour estranho já estava se esvanecendo, como se nunca tivesse existido. Meu corpo tremeu como resultado do choque e da adrenalina. – Eu não sei.

Ash olhou mais uma vez para o espinheiro, para o anel de ferro pendendo de um galho, e tremeu. – Venha aqui. – Ele suspirou, me puxando para uma rocha larga. – Sente. Deixe-me ver seu rosto.

O corte não era profundo, mais uma ferida de picada do que um talho, apesar de ainda doer pra danar. Ash ajoelhou e o estudou, então rasgou uma tira de sua manga e a mergulhou em uma poça próxima. Quando ele a ergueu para a minha bochecha, instintivamente recuei e tremi, fazendo uma careta. Ele balançou sua cabeça, e um canto de seus lábios se curvaram.

- Eu nem o toquei ainda. Agora aguente firme.

Ele ergueu o trapo, e nossos olhares se encontraram. Ash congelou. Vi uma dúzia de emoções cruzar seu rosto antes que ele suspirasse silenciosamente e muito cuidadosamente pressionasse o pano em minha bochecha.

Eu estava tentada a fechar meus olhos, mas os mantive abertos, observando seu rosto. Tê-lo ali, tê-lo assim perto, valia a dor. Estudei seus olhos, seus lábios, o minúsculo pino prateado em sua orelha, quase escondido por seu cabelo escuro. Memorizei estes pequenos detalhes, selando sua imagem em meu cérebro, querendo relembrar este momento. Apesar de que sua expressão estar fechada e metódica depois do primeiro olhar, seus dedos eram gentis.

- Por que você está olhando para mim?

Sua voz me fez pular. – O quê? Não estou.

- Mentirosa. – Ash tocou minha mão e a pressionou no pano, deixando-a na minha bochecha. – Aqui. O sangramento está parando, mas mantenha a pressão sobre ele um pouco só para se assegurar. – Sua mão se demorou na minha, fria e suave, apesar de ele não encontrar meus olhos. – Sinto muito, Meghan.

- Por quê?

- Por Rowan. Por tudo isto. – Ele se ergueu e caminhou para onde Edgebriar tinha caído. Agora só um arbusto de espinheiro negro marcava o lugar onde ele tinha morrido, e Ash o olhou como se ele pudesse voltar à vida.

- Rowan. – Eu o ouvi murmurar. – O que você está pensando?

Lançando o pano, eu me aproximei dele. – E agora?

Ele ficou quieto por um momento, meditando. O choque da descoberta que seu irmão era responsável pela traição de toda Faery ainda era fresco, como uma ferida que não cicatrizara. Eu podia dizer que ele não queria acreditar nisto. – Nada mudou. – Ele disse afinal, sua voz fria e resoluta. – O cetro ainda está lá, e se Rowan sabe onde está, ele não irá nos dizer. Quando isto acabar, Mab decidirá o que fazer com

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Rowan, mas o cetro vem primeiro.

Muito suavemente, toquei seu braço. – Sinto muito. Ele é um idiota, mas sinto que tivesse que ser ele.

Ele aquiesceu. – Vamos sair daqui.

Quatro cavalos estavam esperando na entrada da caverna; garanhões faery com mantas negro-azeviche, crinas de cores brilhantes, e cintilantes olhos branco-azulados. Seus cascos delgados nem mesmo tocavam o chão enquanto eles pateavam e se remexiam, fitando-nos com misteriosa inteligência.

Ash me ajudou a subir na sela de um, e o cavalo feérico chicoteou sua calda e rolou seus olhos para mim, como que sentindo meu desconforto. Dei a ele um olhar de aviso.

- Não tente nada, cavalo. – Murmurei, e ele contraiu as orelhas para trás, o que não era bom sinal. Ash se aproximou de outra montaria e subiu facilmente na sela, como se tivesse feito isto milhares de vezes.

- Onde estamos indo? – Perguntei, atrapalhando-me com as rédeas, o que fez o cavalo pavonear-se para os lados. Maldição, eu nunca iria me acostumar com isto. – Nós sabemos que Tertius roubou o cetro, Rowan o ajudou a entrar no palácio, e ambos estão trabalhando para o novo Rei Iron...

Meu cavalo subitamente soltou um alto relinchar e se ergueu a uns quarenta e cinco graus, quase me derrubando. Enquanto eu me encolhia e agarrava sua crina, a outra montaria tentou fugir, mas Ash puxou apertadamente uma rédea, e o cavalo girou em círculos frenéticos até se acalmar. Enquanto nossas montarias aquietavam, ainda pateando e lançando suas cabeças, olhamos ao redor à procura da fonte do medo delas. Não tivemos que procurar por muito tempo.

Através das árvores, delineada contra o céu nublado, uma solitária figura à cavalo observava-nos no topo de uma monte nevado. A única árvore parada ao redor dela tinha contorcido seus ramos o mais longe possível da figura, seus ramos curvados e torcidos, mas o cavaleiro não parecia se importar. Enquanto olhávamos fixamente um ao outro, o sol espreitou de trás das nuvens, fazendo cintilar sua armadura de aço.

Um fraco farfalhar metálico flutuou através do vento, como milhares de facas roçando umas nas outras, fazendo meu sangue correr frio. Enquanto o cavaleiro Iron ficava imóvel na colina, um enorme grupo de criaturas com pernas de aranha apareceram ao redor dele. Garras cintilando, membros estremecendo esporadicamente, os feéricos-arame apinharam o topo da colina como imensas aranhas, brilhando no sol.

Ash ficou pálido, e meu coração contraiu-se em horror quando o cavaleiro ergueu a mão em nossa direção, enviando o grupo inteiro a deslizar colina abaixo.

Nós fugimos.

Os garanhões faery devoraram o chão enquanto eles investiam através da floresta, seus cascos não fazendo quase nenhum som na neve. As árvores voavam em uma velocidade assustadora enquanto os cavalos mergulhavam entre troncos e sob toras, relembrando-me da minha primeira cavalgada selvagem através de Faery; quando eu estava fugindo de Ash, ironicamente. Ao menos eu tinha uma sela desta vez. Agarrei-me ao pescoço do cavalo, incapaz de fazer qualquer coisa mais, conduzir ou de outra maneira. Felizmente, Ash parecia saber onde estava indo, e meu cavalo seguiu o seu enquanto fugíamos por sobre o terreno.

Atrás de nós, o deslizar metálico dos feéricos-arame ecoava ao vento, nunca esvanecendo ou ficando para trás.

As árvores caíram, e um aclive íngreme assomou-se sobre nós, rochas entrecortadas cobertas em gelo liso como vidro. Meu estômago revirou-se, imaginando meu cavalo escorregando e

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rolando acima de mim, mas os cascos dos natos garanhões faery Winter levaram-nos colina acima sem hesitação. Era como se eles estivessem correndo por uma parede, e agarrei meu cavalo até que meus braços arderam com fogo líquido.

No topo do elevado, Ash parou sua montaria com um puxão, e meu cavalo parou também, empinando. Braços tremendo no esforço de manter-me em minha sela, eu me ajeitei com cautela.

Ash estava olhando fixamente a encosta, olhos estreitados a fendas. Segui seu olhar, e meu estômago cambaleou. A base da elevação se estendia para dentro de uma queda vertiginosa, rochas denteadas sobressaindo-se como espinhas. Subitamente desejei que soubesse como conduzir meu cavalo, só para instigá-lo para longe da borda.

- Eles estão vindo. – Ash murmurou.

Os feéricos homens-arame fluíram das árvores em um enxame brilhante. Vindo a passos rápidos para a elevação, começaram a escalar, escavando suas garras no gelo enquanto escalavam. Membros de aço brilhando, arrastaram-se pela encosta gelada acima, meramente desacelerando.

- O que são estas coisas? – Ash sussurrou. Ele ergueu seu braço, e o ar ao redor dele cintilou, enquanto uma brilhante lança de gelo formou-se acima de sua cabeça. Com um meneio de sua mão, ele a lançou para baixo da encosta, dentro das fileiras de feéricos se aproximando.

A lança atingiu a um diretamente no rosto, perfurando através do arame e o arrancando da colina. Ele tiniu abaixo da encosta, braços e pernas debatendo-se, mas os outros feéricos saltaram sobre o corpo ou deslizaram ao lado, e continuaram vindo.

Meu cavalo bufou e recuou. Agarrei sua crina enquanto Ash rodopiava seu corcel, seu rosto austero.

- Não podemos ir mais depressa que eles. – Ele anunciou, e eu captei a mais fraca insinuação de medo em sua voz, o que só me fez mais aterrorizada. – Eles são mais rápidos do que nós, e nos alcançarão logo depois de alcançarmos um trod. Temos que fazer uma barreira.

Olhei para baixo, para enxame se aproximando, e minha voz chiou com terror. – Aqui? Agora?

- Não aqui. – Ash balançou sua cabeça e apontou abaixo, para o outro lado da encosta. – Há um forte abandonado nos limites de wyldwood. Ariella e eu o usávamos como uma cabana de caça. Se nós pudermos alcançá-lo, poderemos ter uma chance.

O outro lado da encosta ficava dentro da mesma queda “quebra-pescoço”. Muito, muito à distância, eu vi os topos das árvores cobertos de neve encontrarem a contorcida névoa cinza da wyldwood.

Um corvo nos rodeou, dando um áspero grito quando passou sobre nossas cabeças, enquanto o primeiro dos feéricos-arame arranhou seu caminho para o topo. Ash instigou seu corcel a mover-se, e o meu o seguiu, investindo para a borda da elevação. Gritei quando meu cavalo recolheu suas patas abaixo dele e saltou para dentro do espaço vazio.

Nós caímos pelo que pareceu uma eternidade. Quando finalmente batemos no chão, os cavalos pousaram com apenas um solavanco e imediatamente mergulharam dentro da floresta.

Atrás de nós, os homens-arame choveram da encosta em uma inundação brilhante.

Meu corpo doía e meus braços queimavam de apertar o cavalo por tanto tempo. Cada solavanco enviava uma lança de dor através do meu flanco, e minha respiração vinha em ofegos curtos e agonizantes. Finalmente, irrompemos das árvores para uma clareira coberta de neve. No centro da alameda, uma torres em ruínas erguia-se ao céu em um L invertido e precário, como se pudesse desmoronar a qualquer momento.

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- Vamos! – Ash saltou de sua montaria, ignorando quando ela correu para dentro das árvores. Meu cavalo tentou segui-lo, mas o príncipe agarrou suas rédeas, dando um puxão curto. Eu meio escorreguei, meio caí da sela, e mal tomei um fôlego ofegante antes que Ash estivesse me arrastando através da neve.

Nós corremos até o forte, ouvindo o arranhar das garras atrás de nós. Não ousei olhar para trás. À frente, através das grandes portas de madeira, vi o interior escurecido do lugar. A luz do sol inclinava-se através dos buracos no teto, derramando-se sobre um assoalho estranhamente luminescente. Quando nos aproximamos, eu ofeguei. O chão estava completamente encarpetado com flores brancas em forma de sinos, que brilhavam suavemente na luz opaca. Elas cresciam sobre as paredes e até cobriam a mobília antiga que jazia no lugar: uma mesa de madeira, um armário, algumas camas simples. Tudo estava coberto também de neve e gelo, uma vez que o telhado estava cheio de buracos, mas supus que aquilo não teria incomodado a Ash e a Ariella. Temperaturas congelantes nunca incomodavam os feéricos Winter.

Ash nos arrastou-nos através da abertura, esmagando as flores sob os pés, e atirou seu peso contra as portas. Elas rangeram, relutantes em se mover. Eu me juntei a ele, e juntos, nós forçamos os teimosos portões. Eles se fecharam lentamente, rangendo com a idade e o tempo, e os homens-arame estavam a não mais do que vinte jardas de distância quando finalmente fecharam com uma pancada. Ash derrubou o ferrolho, então pressionou ambas as mãos contra ela envolveu o portal inteiro com gelo. Mal tinha terminado, quando os primeiro golpes agitaram a porta de madeira, ressoando através da câmara. O gelo tremeu e minúsculas rachaduras irradiaram-se através da superfície enquanto mais golpes balançaram o portal. Isto não os seguraria por muito tempo.

Ash puxou sua espada. – Afaste-se. – Ele me falou enquanto a porta sacudia-se novamente. Mais rachaduras apareceram através do gelo. – Ache um lugar para se esconder. Há uma alcova atrás da estátua, junto à parede.

Eu balancei minha cabeça freneticamente, vendo Sage cercado pelos horrendos feéricos-arame, morrendo sobre o assoalho da sala do trono. Não poderia observar Ash ser rasgado ao meio daquele jeito diante dos meus olhos. Ash olhou para trás, para mim, e franziu o cenho.

- Meghan, não há nada que possa fazer. Vá! Eu os segurarei o quanto puder. Vá, agora!

Um grande pedaço caiu da porta, enquanto uma garra contorcida de arame a rasgava. O buraco se alargou, enquanto garras de metal dilaceravam e se agarravam à madeira. O medo levou a melhor sobre mim. Fugi para a estátua em ruínas de algum herói esquecido, lançando-me atrás dela quando o primeiro homem-arame espremeu-se através da rachadura como uma aranha gigante.

Garras cintilando, ele investiu contra Ash, que estava esperando por isto. Sua espada arcou-se através do ar, dividindo o feérico aracnídeo ao meio. Outro deslizou direto para ele, e ele açoitou sua lâmina fatiando um braço fraco. O homem-arame desabou, contorcendo-se nas flores, retalhando as pétalas delicadas como papel.

Mordi minha bochecha, tentando não ficar doente. Mais feéricos vertiam da abertura, enquanto eles reduziam o portal a farrapos. Ash foi forçado a recuar, dando espaço para evitar que os homens-arame o cercassem.

Ouvi um barulho acima de nós, e uma chuva de pedras e gelo caiu no chão. Uma forma metálica subitamente entrou por um buraco no telhado e continuou ao longo do teto, fazendo meu sangue gelar. – Ash, acima de você. – Eu gritei, enquanto mais feéricos arrastavam-se pelas rachaduras. – Eles estão vindo pelo telhado!

Os homens-arame cercaram Ash em um borrão caótico. Mal podia vê-lo através da floresta de garras cortantes. Subitamente ele saltou sobre as cabeças dos feéricos Iron, para pousar em cima da parte quebrada de um pilar. Seu casado estava em tiras, um lado de seu rosto estava coberto em carmesim, e mais sangue pingava de numerosas feridas para as flores abaixo. Os homens-arame reassumiram seu ataque, rastejando pilar acima ou se pendurando do teto. O medo martelou meu peito. Tentei alcançar aquele

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estranho glamour frio, mas bati em vidro novamente. Queria gritar. O que estava errado comigo? Eu tinha derrubado o Rei de Ferro uma vez; onde estava aquele poder agora? Ash iria morrer na minha frente, e eu não poderia fazer nada para parar isto.

Alguma coisa grande e negra chocou-se na porta quebrada, mergulhando em direção à batalha. Gritou quando se chocou com um homem-arame, golpeando-o na coluna, e o resto dos feéricos olhou para cima, surpreso diante da mais nova ameaça. Ele virou-se para pousar no pilar do outro lado de Ash – um corvo negro gigante com olhos verde-esmeralda. Meu coração saltou em meu peito.

Com um áspero grito gargalhante, o pássaro desintegrou-se, desaparecendo em uma rodopiante nuvem negra. Uma nova forma ergueu-se da explosão, sacudindo penas de seu fogoso cabelo vermelho, um largo sorriso familiar espalhando-se através de seu rosto.

- Ei, Princesa. – Puck chamou, escovando penas de suas roupas e olhando para a carnificina ao redor. – Parece que cheguei bem a tempo.

Os feéricos-arame pararam só um momento, piscando para o recém-chegado, então avançaram uma vez mais. Puck puxou uma bola peluda de seu bolso, piscou para mim, e a lançou para as fileiras de feéricos Iron enxameando abaixo dele. Ela bateu no chão, saltou uma vez, e irrompeu em um grande javali negro, que investiu contra os feéricos com um surgido enlouquecido.

Puck lançou a Ash um sorriso zombeteiro: - Você parece como um trigo sarraceno, Príncipe. Sentiu minha falta?

Ash franziu o cenho, perfurando um faery que estava arranhando aos seus pés. – O que está fazendo aqui, Goodfellow? – Ele perguntou friamente, o que só tornou o sorriso irônico de Puck mais largo.

- Resgatando a princesa da Corte Winter, é claro. – Puck olhou para baixo enquanto os feéricos-arame empilhavam-se contra o guinchante javali, rasgando e fatiando. Ele explodiu em uma pilha de penas, e eles recuaram em confusão. – Apesar de parecer que estou salvando seu triste traseiro, também.

- Poderia ter cuidado disto.

- Oh, estou certo. – Puck bramiu um par de adagas curvadas, as lâminas claras como vidro. Seu sorriso se tornou predatório. – Bem, então, devemos lidar com isto? Tente ficar de pé, Vossa Alteza.

- Só fique fora do meu caminho.

Eles saltaram dos seus pilares diretamente para as filas de homens-arame, que instantaneamente enxamearam ao redor deles. De costas um para o outro, Ash e Puck fatiaram seus oponentes com renovado vigor, nenhum cedendo uma polegada agora que o outro estava ali. O tropel de feéricos Iron diluiu-se rapidamente. Através das massas de membros cortantes, capturei vislumbres do rosto de Ash, sério em concentração, e o sorriso vicioso de Puck.

Silenciosamente, os últimos poucos homens-arame irromperam do turbilhão mortal no meio do chão. Sem olhar para trás, eles correram para as paredes, arranhando seu caminho através dos buracos no telhado e se foram.

Puck, sua camisa agora uma confusão de retalhos, embainhou suas adagas e olhou ao redor com um sorriso satisfeito. – Bem, isto foi divertido. – Seu olhar me encontrou, ainda congelada atrás da estátua, e ele balançou sua cabeça. – Uau, recepção gélida, aqui. E pensar que eu voltei dos mortos para isto.

Eu pulei do meu esconderijo, meu coração batendo forte contra as minhas costelas, e corri para ele. Seus braços abriram e me joguei contra o seu peito. Abraçando-o fortemente. Ele era real. Ele estava aqui, não morrendo em uma árvore em algum lugar, deixado para trás e esquecido. – Senti sua falta. – Sussurrei em seu pescoço.

Ele me segurou mais apertado – Sempre voltarei por você. – Ele murmurou, soando tão diferente de si mesmo que eu recuei e olhei para ele. Por um momento, seus olhos verdes ficaram intensos, e

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eu segurei minha respiração diante da emoção latente. Então ele sorriu, e o efeito estava arruinado.

Eu subitamente fiquei consciente de Ash encostado contra o pilar, observando-nos com uma expressão ilegível. Sangue manchava seu rosto, respingando nas flores brancas abaixo dele, e sua espada pendia molemente de sua mão.

Puck seguiu meu olhar, e seu sorriso alargou ainda mais. – Ei, Príncipe – ele saudou -, o boato é que você é um traidor da Corte Winter. Você deixou a wyldwood inteira em polvorosa... dizem que você tentou matar Rowan depois que ele pegou você escapando com a princesa. Claramente, eu perdi algumas coisas.

- As notícias correm rápido. – Ash replicou fracamente. Ele começou a passar a mão sangrenta pelo cabelo, então pensou melhor sobre isto, pendendo-a ao seu lado. – Tem sido uma manhã interessante.

- Para dizer o mínimo. – Puck olhou para os corpos de homens-arame ao redor e torceu seu nariz. – O que diabos são aquelas coisas?

- Feéricos Iron. – Disse. – Eu os tinha visto antes. Eles estavam na sala do trono com Tertius quando ele roubou o cetro.

- O Cetro das Estações? – Puck olhou para mim horrorizado. – Oh, cara. Então é daí que os rumores sobre guerra estão vindo. Perfeito. Devemos poupar tempo e matar um ao outro agora, ou você quer esperar até mais tarde?

- Não comece, Goodfellow. – Ash correspondeu ao olhar de Puck. – Eu não queria isto. E não tenho tempo para uma luta. – Ele suspirou, deliberadamente evitando meu olhar. – De fato, agora que você está aqui, pode fazer a nós dois um favor. Quero que leve Meghan de volta à Corte Summer.

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CAPÍTULO OITO

Despedidas e Memórias

- É só isto? – Puck perguntou, enquanto eu olhava surpresa para Ash, incapaz de acreditar no que tinha acabado de ouvir. Ele ainda não estava olhando para mim, e Puck matraqueava sem notar. – Levá-la de volta para a Corte? Isto é fácil. Eu ia fazer isto de qualquer maneira, gostando você ou não. Vem com a coisa toda de resgate, sabe…

- Sobre o que você está falando? – Eu bradei, fazendo Puck pular. – Pro diabo com voltar para Summer! Nós precisamos pegar o cetro de volta dos feéricos Iron! É a única maneira de parar a guerra.

- Estou consciente disto. – Ash finalmente encontrou meus olhos, e seu olhar estava frio. – Mas isto é problema da Winter. Recuperar o cetro é minha responsabilidade. Quero que você volte para a sua própria Corte, Meghan. Estará a salvo lá. Não pode me ajudar desta vez. Vá para casa.

Mágoa e traição apunhalaram-me no peito. – Você ia me empurrar para Oberon o tempo todo, não ia? – Cuspi para ele. – Seu mentiroso. Pensei que íamos atrás do cetro juntos.

- Eu nunca te disse isto.

Puck olhava de mim para Ash e voltava novamente, parecendo confuso. – Erm, então está dizendo que não quer voltar para casa? – Ele me perguntou. Olhei para ele, e ele deu de ombros. – Uau, então, isto faz o plano inteiro de resgate desmoronar. Quer me jogar um osso aqui, princesa? Eu me sinto um pouco deslocado.

- Temos de ir atrás do cetro. – Falei para Puck, esperando que ele me apoiasse. – Ash não pode fazer isto sozinho. Nós podemos ajudar…

- Não, você não pode. – Ash interrompeu. – Não desta vez. Você não teria utilidade para mim, Meghan, não com a sua magia selada… - Ele se interrompeu, parecendo culpado, e os olhos de Puck se estreitaram.

- Selada? – Puck deu um passo à frente ameaçadoramente. – Você pôs uma amarra nela?

- Eu não. – Ash olhou para ele com a cabeça erguida, desafiante. – Mab a pôs. Quando ela chegou em Winter. Mab estava com medo que o poder dela pudesse ser muito grande, então selou sua magia para proteger a Corte.

Lembrei da parede na qual esbarrava sempre que tentava usar mais do que o mais simples dos glamoures, e meu temperamento se inflamou. Como ela ousou! – E você sabia. – Acusei Ash. – Você sabia sobre o selo, e não se incomodou em me falar?

Ash deu de ombros, impenitente. – Mab nos ordenou a não fazer. Além disto, que

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diferença faria? Eu não posso fazer nada sobre isto.

Virei para Puck, que encarava o príncipe como se ele pudesse atacá-lo logo em seguida. – Pode quebrar isto?

Puck balançou sua cabeça. – Desculpe, Princesa. Só Mab, ou alguém de igual poder, pode remover uma amarra uma vez que tenha sido posta. Que faz suas escolhas Oberon, ou a própria Mab.

- Mais motivos para que deva retornar para Summer. – Ash se afastou do pilar, retraindo-se. Atrás dele, a coluna estava manchada com vermelho.

- Onde está indo? – Perguntei, subitamente com medo que ele caminhasse porta afora e não retornasse.

Ele embainhou sua espada sem olhar para mim. – Há uma nascente a algumas jardas atrás desta torre. – Ele respondeu, caminhando vagarosamente em direção à porta. Senti que estava tentando duramente não mancar. – A menos que qualquer um de vocês objetem, vou me banhar.

- Mas vai voltar, certo?

Ele suspirou. – Não vou a lugar nenhum hoje à noite. – Ele prometeu, e estendeu uma mão em direção a uma parede afastada. – Há um baú com cobertores e suprimentos naquele canto. Fiquem à vontade. Acho que nós todos vamos ter que passar a noite aqui.

O baú guardava muitos acolchoados, uns poucos cantis, uma aljava de flechas, e uma garrafa de um vinho escuro que eu não reconheci e imediatamente pus de lado. Puck foi à procura de lenha e voltou com um braço cheio, mais um galho carregado com estranhas frutas azuis que ele jurou que eram seguras para se comer. Juntos, afastamos flores para fazer uma fogueira, apesar de que eu sentia uma punhalada de culpa cada vez que arrancava uma. Elas era tão bonitas, as pétalas tão finas e delicadas que eram quase transparentes.

- Você está terrivelmente quieta, Princesa. – Puck disse enquanto arrumava a fogueira dentro de um tepee 26. Seus inclinados olhos verdes me jogaram um olhar de conhecimento. – De fato, não disse uma única palavra desde que sua real geleza saiu. O que está errado?

- Oh. – Eu procurei por uma resposta. Sem chance que contaria a Puck sobre meus sentimentos por Ash. Provavelmente o desafiaria para um duelo no momento em que ele entrasse pela porta. – Eu… um… Eu só fiquei estranha, sabe, com todos estes corpos de homens-arame ao redor. É um pouco arrepiante, como se eles pudessem voltar à vida e nos atacar enquanto estamos dormindo.

Ele rolou seus olhos. – Você e sua obsessão por zumbis. Nunca entendi sua fascinação por filmes de terror, especialmente quando eles te surtam tanto.

- Eles não me surtam. – Disse, agradecida pela mudança de assunto.

- Ceeerto, você só dorme com suas luzes acesas para espantar baratas.

Seu comentário me fez sorrir. Não porque ele estava certo, mas porque isto me lembrou de outro tempo, um tempo mais simples, quando tudo com o que eu tinha para me preocupar era dever de casa, escola e me manter atualizada com as últimas tendências de filmes. Quando Robbie Goodfell e eu podíamos sentar no sofá com uma grande bacia de pipoca e assistir a maratona de filmes de Sexta-Feira 13 até o sol nascer.

Perguntei-me o quanto eu tinha perdido no tempo em que estive longe.

26 Tepee: Uma habitação portátil de alguns povos nativos americanos, especialmente na as Grandes Planícies, que consiste de uma estrutura cônica de postes cobertos de peles ou cascas.

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Quando eu não respondi, Puck bufou e balançou sua cabeça. – Bom. Veja isto. – E fez um gesto rápido com sua mão. O ar tremeu, e os corpos contorcidos jazendo ao redor do lugar se transformaram em pilhas de galhos. – Melhor?

Eu aquiesci, apesar de saber que era só uma ilusão. Os feéricos mortos ainda estavam ali, embaixo do glamour faery. Longe dos olhos, longe do coração não funcionava muito bem para mim, mas ao menos impediu de Puck de fazer muitas perguntas difíceis.

Por um momento, de qualquer forma. – Então, Princesa. – Ele começou, uma vez que um agradável fogo crepitava no centro do espaço. Não sabia como ele o tinha começado, mas aprendi a não perguntar tais coisas, no caso de se revelar uma ilusão e eu só pensasse que estava ficando quente. – Parece que eu perdi muito desde que eu me fui. Diga-me tudo.

Eu engoli em seco. – Tudo?

- Claro! – Ele sentou em um acolchoado, encostando-se confortavelmente. – Como, achou Machina? Conseguiu o seu irmão de volta?

- Oh. – Relaxei um pouco e sentei ao lado dele. – É. Ethan está a salvo. Ele está em casa, e aquele estúpido changeling foi embora por bem.

- E sobre Machina?

Mordi o meu lábio. – Ele está morto.

Puck deve ter notado a mudança em minha voz, porque sentou-se ereto e pôs suas mãos ao redor dos meus ombros, puxando-me para perto. Encostei-me nele, sentido seu calor, ficando confortável com sua proximidade. – Estou cheia deste lugar. – Sussurrei, sentindo-me como uma criança pequena, enquanto meus olhos ardiam e as palavras vinham esfiapadas. – Quero ir para casa.

Puck ficou em silencio por um momento, simplesmente me segurando enquanto eu me encostava a ele, lutando contra as lágrimas. – Sabe. – Ele disse finalmente. – Não tenho que levá-la de volta para a Corte Summer. Se você quiser, posso levá-la de volta para o seu mundo. Se você realmente quer ir para casa.

- Oberon me deixaria ir?

- Eu não vejo porque não. Sua magia foi selada. Você seria como uma colegial comum novamente. Mab não a consideraria mais uma ameaça, então os Unseelie provavelmente a deixariam em paz.

Meu coração saltou. Casa. Poderia realmente ir para casa? De volta para mamãe, Luke e Ethan, de volta para a escola, trabalhos de verão e uma vida normal? Sentia falta daquilo, mais do que tinha percebido. Senti um pouco de culpa por enterrar o plano de pegar de volta o cetro, mas a descartei. Ash não me queria por perto. Meu contrato com ele estava acabado, e eu tinha pago minhas dívidas com a Corte Unseelie. Nosso acordo não dizia nada sobre ficar em Winter.

- E quanto a você? – Perguntei, olhando para Puck acima. – Não foi ordenado a me trazer de volta para Summer? Não estará em problemas?

- Oh, eu já estou em águas quentes. – Puck sorriu alegremente. – Não deveria nem mesmo ter deixado você ir atrás do Rei de Ferro, lembra? Oberon vai me arrancar o couro vivo por isto, então eu não posso me afundar mais fundo de verdade.

Seu tom estava suave, mas eu fechei meus olhos, culpa me rasgando ao meio. Parecia que todos com quem eu me importava estavam se ferindo, arriscando muito, só para me proteger. Estava cansada disso, desejei que tivesse minha magia de volta, assim poderia protegê-los em retorno.

- Por quê? – Sussurrei. – Por que você fica em volta? Você e Ash poderiam ter morrido

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hoje.

As batidas do coração de Puck se aceleraram debaixo dos meus dedos. Sua voz, quando surgiu, estava muito suave, quase um sussurro. – Achei que você teria imaginado o porquê a esta altura.

Olhei para cima e encontrei seu rosto a polegadas do meu. O crepúsculo tinha mergulhado o lugar em sombras, apesar do tapete de flores brilharem ainda mais. A luz do fogo dançava dentro dos olhos de Puck enquanto olhávamos um ao outro. Ainda que ele exibisse um minúsculo sorriso torto, não havia nenhum engano na emoção em sua face.

Parei de respirar. Um pequena parte de mim, em algum lugar lá no fundo, estava se regozijando por esta mais nova revelação, apesar de que, eu acho, lá no fundo, sempre tinha suspeitado. Puck me ama, ela sussurrou, excitada. Ele está apaixonado por mim. Eu sabia. Todo o tempo eu sabia.

- Você é um tipo de amarra, sabia? – Puck sussurrou, sorrindo para suavizar suas palavras. – Eu não desafiaria Oberon por mais ninguém. Mas, por você… - Ele se inclinou para frente, tocando sua testa na minha. – Eu voltei dos mortos por você.

Meu coração bateu com um baque surdo. Aquela parte minúscula de mim queria isto. Puck sempre tinha estado lá: seguro, confiável, protetor. Ele era parte da minha Corte, então não havia nenhuma lei estúpida para afastá-lo. Ash se fora, ele já havia tomado sua decisão. Por que não tentar com Puck?

Puck se aproximou, seus lábios pairando uma polegada dos meus. E tudo o que eu podia ver era Ash, paixão em seu rosto, o olhar em seus olhos quando ele me beijou. Culpa corroeu minhas entranhas. Não, minha mente sussurrou, enquanto a respiração de Puck acariciava minha bochecha. Eu não posso agora. Desculpe, Puck.

Afastei-me suavemente, pronta para me desculpar, dizer a ele que eu não poderia logo agora, quando uma sombra apareceu na entrada e Ash entrou.

Ele congelou, delineado contra o céu noturno, as flores moldavam suas feições em um brilho pálido. Seu cabelo estava suavemente úmido, suas roupas foram consertadas, se com glamour ou alguma coisa mais eu não poderia dizer. Por um momento, choque e mágoa transpareceram em seu rosto, e suas mãos fecharam-se em punho ao seu lado. Então, sua expressão fechou, seus olhos tornaram-se vazios e pétreos.

Puck piscou diante da minha expressão e virou enquanto Ash entrava. – Oh, ei, Príncipe. – Ele falou pausadamente, completamente despreocupado. – Esqueci que você estava aqui. Desculpe. – Eu tentei encontrar o olhar de Ash, mostrar a ele que não era o que pensava, mas ele estava estudadamente me ignorando.

- Quero que parta amanhã. – Ash disse em um tom frio e recortado, varrendo o espaço ao redor da fogueira. – Eu quero você fora do meu território, você e a princesa também. De acordo com a lei, poderia matá-lo justo onde você está, por invasão. Se eu vir qualquer um de vocês em Tir Na Nog novamente, não serei tão brando.

- Eita, não suba pelas paredes, Vossa Alteza. – Puck bufou. – Ficaremos felizes em partir, certo, Princesa?

Finalmente captei o olhar de Ash, e meu coração afundou. Ele olhou para mim friamente, sem nenhum traço de calor ou afabilidade em seu rosto. – É. – Eu sussurrei, minha garganta se fechando. Era isto, a última gota. Estava em Faery a tempo o bastante. Era hora de voltar para casa.

Ash começou a mover as pilhas de galhos, na verdade os feéricos Iron mortos, e os despejando do outro lado. Ele trabalhava rápido e silenciosamente, não olhando a nenhum de nós, quase febrilmente em seu desejo de tirá-los. Quando os corpos estavam completamente fora, ele agarrou a garrafa de vinho do baú e se retirou para um canto distante, meditando para o vidro. Sua postura inteira gritava deixe-me em paz, diabos, e apesar de querer ir até ele, mantive-me à distância. Felizmente, Puck não tentou

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me beijar novamente, mas ele nunca estava longe, dando-me pequenos sorrisos secretos, deixando-me saber que ele ainda estava interessado. Não sabia o que fazer. Minha mente estava girando, incapaz de organizar um pensamento. Mais tarde naquela noite, Ash ficou de pé abruptamente e saiu, anunciando que ele iria “patrulhar as redondezas” procurando por feéricos Iron. Observando-o espreitar para fora da porta sem olhar para trás, fiquei dividida entre correr atrás dele e soluçar no ombro de Puck. Ao invés, eu aleguei exaustão e pulei dentro de uma das camas, puxando o cobertor sobre minha cabeça, então eu não tinha que encarar nenhum deles.

FOI DIFÍCIL DORMIR aquela noite. Encolhida sobre os cobertores, escutei o som de Puck roncando e lutei contra as lágrimas.

Não sabia por que estava tão miserável. Amanhã, estaria indo para casa, afinal. Poderia ver mamãe, Luke e Ethan novamente; eu sentia tanta falta deles, até de Luke. Apesar de não ter nenhuma ideia de quanto tempo tinha se passado no mundo real, só o pensamento de retornar para casa deveria me encher de alívio. Mesmo se mamãe e Luke estivessem velhos e grisalhos, e meu irmão de quatro anos estivesse mais velho do que eu, mesmo se tivessem sido centenas de anos e todos os que eu conhecia estivessem…

Eu ofeguei e desviei meus pensamentos daquele caminho, recusando-me a pensar sobre isto. Casa seria o mesmo que sempre tinha sido. Poderia finalmente voltar para a escola, aprender a dirigir, talvez até mesmo ir ao baile este ano. Talvez Puck possa me levar. O pensamento era tão ridículo que eu quase ri alto, engasgando com as lágrimas derramadas. Não importava o quanto eu quisesse uma vida normal, haveria uma parte de mim que ansiava por este mundo, pela magia e maravilhas dele. Ele tinha se infiltrado dentro da minha alma e me mostrado coisas que nunca pensei que existissem. Não poderia ser normal e ignorante novamente, sempre estaria procurando por portas escondidas e figuras nos cantos dos meus olhos. E por certo príncipe sombrio que nunca poderia ser meu.

Devo ter caído no sono, porque a próxima coisa de que me lembro foi abrir os meus olhos, e o espaço estar banhado na nebulosa luz de estrelas. As flores tinham aberto completamente e estavam brilhando como se minúsculas luas se aninhassem entre as pétalas, afastando a escuridão. Mariposas etéreas e borboletas fantasmagóricas flutuavam sobre o tapete, asas delicadas refletindo a luz enquanto elas flutuavam entre os botões. Cuidadosamente, para não acordar Puck, ergui-me e vaguei por entre as flores, respirando o perfume inebriante, maravilhando-me enquanto uma leve mariposa azul pousou no meu polegar, pesando nada. Soprei-a e ela voou direto para uma figura sombria no centro do tapete.

Ash estava no centro do lugar, rodeado por brilhantes flores brancas, olhos fechados enquanto minúsculas luzes rodopiavam ao redor dele. Elas tremeluziam e se aproximavam, emergindo em uma luminescente faery com longo cabelo prateado, suas feições tão adoráveis e perfeitas que minha garganta doeu. Ash abriu seus olhos enquanto ela estendia o braço para ele, suas mãos parando quase tímidas no rosto dele. Saudade brilhou dos olhos dele, e eu estremeci enquanto a espectral faery passava direto através dele, dissolvendo-se em minúsculas luzes.

- Esta é… Ariella? – Eu sussurrei, caminhando atrás dele.

Ash girou, seus olhos alargando-se pela súbita interrupção. Vendo-me, muitas emoções cruzaram seu rosto – choque, raiva, vergonha – antes que ele suspirasse em resignação e se virasse.

- Não. – Ele murmurou, enquanto a fantasmagórica faery aparecia novamente, dançando entre as flores. – Não é. Não do jeito que você pensa.

- O fantasma dela?

Ele balançou sua cabeça, seus olhos nunca deixando o espectro enquanto ela deslizava e rodopiava sobre o tapete brilhante, borboletas flutuando ao redor dela. – Nem mesmo isto. Não há pós-vida

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para nós. Não temos almas com as quais assombrar o mundo. Isto é… só uma memória. – Ele suspirou, sua voz se tornou muito suave. – Ela sempre foi feliz aqui. As flores… lembram.

Eu subitamente entendi. Esta era a memória de Ash de Ariella, perfeita, feliz e cheia de vida, uma ânsia tão grande que lhe deu forma, ao menos por um instante. Ariella não estava aqui. Isto era só um sonho, um eco de um ser há muito partido.

Lágrimas encheram meus olhos e escorreram pelo rosto. A ferida na minha bochecha ardeu onde elas passaram, mas eu não me importei. Tudo o que eu podia ver era a dor de Ash, sua solidão, sua ânsia por alguém que não era eu. Isto estava me partindo ao meio, e não podia dizer nada. Porque eu sabia, de alguma forma, que Ash estava dizendo adeus, para nós duas.

Nós ficamos em silêncio por algum tempo, assistindo a memória de Ariella dançar entre as flores, seu fino cabelo flutuando na brisa enquanto mariposas brilhantes rodopiavam ao redor dela. Eu me perguntei se ela realmente era aquela perfeição, ou se isto era o que Ash se lembrava dela ser.

- Estou indo embora. – Ash disse calmamente, como eu sabia que ele ia. Ele finalmente virou seu rosto para mim, solenemente, lindo, e tão distante quanto as estrelas. – Deixe Goodfellow levá-la para casa. Não é mais seguro aqui.

Minha garganta apertou, meus olhos arderam, e eu tomei um fôlego trêmulo para liberar minha voz. E mesmo que eu já soubesse a resposta, mesmo que minha cabeça estivesse me dizendo para calar a boca, sussurrei: - Não vou ver você novamente, vou?

Ele balançou sua cabeça, uma vez. – Eu não fui bom para você. – Ele murmurou. – Eu sabia das leis, melhor que ninguém. Sabia que isto acabaria… assim. Eu ignorei meu melhor julgamento, e por isto, perdoe-me. – Sua voz não mudou. Ainda estava calma e polida, mas eu senti uma mão gélida apertar meu coração enquanto ele continuava. – Mas, depois de hoje à noite, devemos ser inimigos. Seu pai e minha rainha estarão em guerra. Se eu vir você novamente, deverei matá-la. – Seus olhos estreitaram-se, e sua voz se tornou fria. – Desta vez é verdade, Meghan.

Ele se virou, como se para partir. O brilho das flores fizeram um halo de luz ao redor dele, somente acentuando sua beleza sobrenatural. À distância, Ariella dançava e rodopiava, livre de tristeza, de dor e das provações dos vivos. – Vá para casa, Princesa. – Murmurou o príncipe Unseelie. – Vá para casa e esqueça. Você não pertence a este lugar.

Eu não podia lembrar muito da noite mais tarde, ainda que acredite que envolveu muitos soluços dentro do meu cobertor. Pela manhã, eu caminhei para a neve flutuando do teto, cobrindo o chão com pesado pó branco. As flores tinham desaparecido, e Ash já tinha partido.

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PARTE DOIS

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CAPÍTULO NOVE

A Convocação

Na noite seguinte à partida de Ash, Puck e eu atingimos a fronteira da wyldwood.

- Não falta muito agora, Princesa. – Puck disse, dando-me um sorriso encorajador. À poucas jardas de onde nós paramos, a neve e gelo simplesmente… parava. Além delas, a wyldwood se estendia diante de nós, escura, emaranhada, presa em crepúsculo perpétuo. – Só tem que atravessar a wyldwood para chegar em casa. Estará de volta a sua velha vida aborrecida antes que possa dizer “escola de verão”.

Tentei devolver o sorriso, mas não consegui. Mesmo que meu coração se elevasse diante do pensamento de casa e família, e até escola de verão, senti que estava deixando parte de mim para trás. Ao longo de nossa caminhada, eu continuava a me virar ao redor, esperando ver a forma escura de Ash caminhando a passos largos através da neve atrás de nós, rudemente embaraçado e taciturno, mas lá. Isto não aconteceu. Tir Na Nog permanecia misteriosamente vazia e quieta, enquanto Puck e eu continuamos nossa jornada sozinhos. E enquanto o sol afundava lentamente no céu e as sombras alongavam-se ao nosso redor, eu vagarosamente entendi que Ash não voltaria. Ele realmente tinha ido embora.

Eu tremia no limite das lágrimas, mas as mantive trancadas. Não queria ter que explicar a Puck porque eu estava chorando. Ele já sabia que eu estava perturbada, e continuava tentando me distrair com piadas e um fio constante de perguntas. O que aconteceu depois que nós o deixamos para confrontar Machina? Como achamos o Reino Iron? Como ele era? Respondi o melhor que pude, deixando de fora as partes entre Ash e eu, claro. Puck não precisava de outra razão para odiar o príncipe Winter, e esperançosamente ele nunca descobriria.

Enquanto nos aproximávamos das trevas da wyldwood, alguma coisa se moveu nas sombras a nossa esquerda. Puck girou com velocidade cegante, sacando sua adaga, enquanto uma rodopiante forma tropeçava pelas árvores e desabava a alguns pés de distância. Era uma garota, esguia e graciosa, com uma pele verde-musgo e cabelo como vinhas secas. Uma dríade.

A mulher arbórea tremeu e engasgou, empurrando a si mesma para cima. Sua mão de longos dedos agarrou sua garganta, como se ela estivesse sendo estrangulada. – Ajude… me. – Ela arfou para Puck, seus os olhos marrons alargados de terror. – Minha árvore…

- O que aconteceu com ela? – Puck disse, e a amparou quando ela caiu. Ela vergou contra ele, sua cabeça pendendo sobre os ombros dela. – Ei. – Ele disse, sacudindo-a um pouco. – Fique comigo agora. Onde está sua árvore? Alguém a derrubou?

A dríade arfou por ar. – E-envenenada. – Ela sussurrou, antes que seus olhos rolassem para cima e seu corpo se transformasse em madeira nos braços dele. Com o som de ramos quebrados, a dríade se

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contorceu sobre si mesma até que ela se assemelhasse mais um pouco com um feixe de galhos secos. Assisti a vida da faery desaparecer, lembrando-me do que Ash disse sobre os feéricos e a morte, e me senti terrivelmente, terrivelmente triste. Era isto para ela, então. Ela simplesmente cessou de existir.

Puck suspirou, curvando sua cabeça, e recolheu a dríade sem vida dentro de seus braços. Ela estava magra e frágil agora, frágil como vidro quebrado, mas nenhum ramos se partiu ou quebrou enquanto ele a carregava para longe. Com o máximo de cuidado, ele depositou o corpo no pé de uma árvore gigante, murmurou algumas poucas palavras e se afastou.

Por um momento, nada aconteceu. Então, grandes raízes desfraldaram-se do chão, envolvendo-se ao redor da dríade para puxá-la para dentro da terra. Em segundos, ela tinha desaparecido.

Nós ficamos quietos por um momento, relutantes em quebrar o estado de espírito sombrio. – O que ela quis dizer com envenenada? – Eu finalmente murmurei.

Puck balançou a si mesmo, dando-me um sorriso desprovido de humor. – Vamos descobrir.

NÓS NÃO TIVEMOS que procurar muito. Só a alguns minutos dentro da wyldwood, as árvores se ondulavam à distância, e topamos com um trecho familiar de chão morto no meio da floresta. Um campo inteiro de floresta estava doente e morrendo, árvores contorcidas em estranhas paródias de metal. Postes de metal cresciam para fora do chão, dobrados e tremeluziam erraticamente. Arames agarravam raízes e troncos, asfixiando as árvores e a vegetação como trepadeiras vermelhas e negras. O ar cheirava a cobre e decadência.

- Está se espalhando. – Puck murmurou, segurando sua manga em seu rosto, enquanto a brisa metálica agitava meu cabelo e roupas. – Isto não estava aqui há alguns meses atrás. – Ele se virou para mim. – Pensei que disse que tinha matado o Rei de Ferro.

- Eu matei. Quero dizer, sim, ele está morto. – Desviei o olhar da floresta envenenada, estremecendo. – Mas não significa que o Reino Iron terminou. Tertius me disse que servia a um novo Rei Iron.

Os olhos de Puck se estreitaram. – Outro? Você meio que deixou de mencionar isto antes, Princesa. – Balançando sua cabeça, ele esquadrinhou a área devastada e suspirou. – Outro Rei Iron. Maldição, quantos deles teremos que matar? Eles vão continuar surgindo como ratos?

Eu me contorci ao pensamento de ainda mais um assassinato. Um vento forte sibilou sobre a terra devastada, roçando os galhos das árvores de metal, fazendo-me tremer. Puck tossiu e recuou cambaleando.

- Bem, vamos, Princesa. Não podemos fazer nada sobre isto agora. Vamos levá-la para casa.

Casa. Pensei na minha família, na minha vida normal, tão tangivelmente perto. Pensei em Nevernever, morrendo e desaparecendo pedaço por pedaço. E tomei minha decisão. – Não.

Puck piscou e olhou para trás. – O quê?

- Não posso ir para casa, Puck. – Eu olhei ao redor da envenenada Nevernever, vendo os ecos do reino de Machina agigantando-se sobre tudo. – Olhe para isto. Pessoas estão morrendo. Não posso fechar meus olhos e fingir que não está acontecendo.

- Por que não? – Pisquei, aturdida com sua atitude sem cerimônia. Ele simplesmente sorriu. – Já fez o bastante, Princesa. Acho que merece ir para casa depois de tudo pelo que passou. Diabos, você já

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cuidou de um Rei Iron. Nevernever ficará bem, confie em mim.

- E quanto ao cetro? – Persisti. – E a guerra? Oberon deve saber que Mab está planejando atacá-lo.

Puck encolheu os ombros, parecendo desconfortável. – Já estava planejando contar a ele, Princesa, desde que ele não me transforme em um rato tão logo me veja. E quanto ao cetro, o Príncipe do Gelo já está procurando por ele. Não há muito que possamos fazer, então. – Ao meu protesto, ele balançou a mão alegremente. – A guerra vai começar com ou sem nós, Princesa. Não é nada novo. Winter e Summer sempre se estranharam. Não passa um século em que não haja algum tipo de luta acontecendo. Isto passará, como sempre passa. De alguma maneira, o cetro retornará, e as coisas voltarão ao normal.

Franzi o cenho, lembrando de algo que Mab disse a Oberon na cerimônia. – E quanto ao meu mundo? – Exigi. – Mab disse que haveria uma catástrofe se Summer mativesse o cetro por mais tempo do que deveria. O que acontece se o Rei Iron o toma? As coisas ficarão uma confusão, certo?

Puck coçou sua nuca. – Erm… talvez.

- Talvez, como o quê?

- Você já quis ir esquiar no Deserto Mojave?

Olhei fixamente para ele. – Não podemos deixar isto acontecer, Puck! O que há de errado com você? Não posso acreditar que achou que eu iria simplesmente ignorar isto! – Ele deu de ombros, ainda exasperantemente indiferente, e eu me voltei para o ponto fraco. – Você simplesmente está com medo, não está? Está assustado com os feéricos Iron e não quer se envolver. Não pensei que fosse tão covarde.

- Estou tentando mantê-la segura! – Puck explodiu, rodopiando sobre mim. Seus olhos brilharam febrilmente, e eu tropecei para trás. – Isto não é um jogo, Meghan! A merda está prestes a atingir o ventilador, e você está bem no meio disto, sem conhecer o suficiente para se desviar!

Justificada indignação me inflamou. Eu estava cheia de ser mandada sobre o que fazer, que deveria estar com medo. – Não sou indefesa, Puck! – Atirei de volta. – Não sou nenhuma líder de torcida gritona que você tem que tomar conta como um bebê. Tenho sangue nas minhas mão. Matei algo! E farei isto de novo, se tiver que fazer!

- Sei disto. – Puck rebateu, jogando suas mãos para cima. – Sei que arriscaria tudo para nos proteger, e é isto o que me preocupa. Ainda não sabe o suficiente sobre este mundo para ficar apropriadamente aterrorizada. As coisas vão se tornar confusas há oito dias a partir do domingo, e você fica fazendo olhares amorosos para o inimigo! Escutei o que aconteceu no reino de Machina e sim, isto me assustou pra danar. Eu te amo, maldição. Não vou assistir você ser rasgada ao meio quando tudo der errado.

Meu estômago contorceu-se, tanto pela sua confissão quando pelo o que ele disse sobre mim e Ash. – Você… você sabia? – Eu gaguejei.

Ele me deu um olhar desdenhoso. – Tenho estado por aqui por um longo tempo, Princesa. Dê-me algum crédito. Mesmo um homem cego veria o jeito que olha para ele. Estou adivinhando que alguma coisa aconteceu no reino de Machina, mas uma vez que voltaram, nosso garoto se lembrou que ele não deveria se apaixonar por uma Summer. – Eu enrubesci, e Puck balançou sua cabeça. – Não disse nada porque ele já tinha se convencido a ir embora. Você não devia saber das consequencias, Princesa, mas Ash devia. Ele fez a coisa certa, por mais que eu odeie falar bem dele.

Meu lábio tremeu. Puck bufou, mas me viu oscilar a beija das lágrimas. Sua expressão se suavizou. – Esqueça-o, Meghan. – Ele disse gentilmente. – Ash é indesejável. Mesmo se a lei não fosse a questão, eu lutaria com ele através dos tempos por saber que ele quebraria seu coração.

As lágrimas derramaram-se. – Não posso. – Sussurrei, cedendo ao desespero que tinha me seguido por toda a manhã. Não era justo com Puck, depois de ele ter finalmente confessado que me amava,

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mas eu não conseguia parar. Minha alma gritava alto por Ash, por sua coragem e determinação; pelo jeito que seus olhos descongelavam quando ele olhava para mim, como se eu fosse a única pessoa no mundo; por aquele belo espírito ferido que eu tinha visto debaixo do exterior frio que ele mostrava para o mundo. – Não posso esquecer. Sinto falta dele. Sei que ele é o inimigo, e que quebramos todos os tipos de regras, mas eu não ligo. Sinto tanta falta dele, Puck.

Puck suspirou, quer em simpatia ou irritação, e me puxou para perto. Solucei em seu peito, libertando todas as emoções reprimidas que tinham sido erguidas desde a primeira vez que eu vi Ash na sala do trono. Puck me segurou e acariciou meu cabelo como nos velhos tempos, não dizendo nada, até que as lágrimas finalmente diminuíram e eu funguei contra sua camisa.

- Melhor? – Ele murmurou.

Aquiesci e me afastei, enxugando meus olhos. A dor ainda estava lá, mas era suportável agora. Sabia que seria um longo tempo antes que a dor se fosse, se alguma vez fosse, mas eu sabia no meu coração que tinha dito meu último adeus a Ash. Agora, talvez pudesse deixá-lo ir.

Puck moveu-se atrás de mim e pôs suas mãos sobre meus ombros, inclinando-se perto. – Sei que é muito cedo ainda – ele murmurou em meu cabelo -, mas só para você saber, eu esperarei. Quando estiver pronta, estarei bem aqui. Não esqueça, Princesa.

Pude apenas aquiescer. Puck apertou meus ombros e se afastou, esperando silenciosamente enquanto eu me recompunha. Quando virei novamente, ele tinha voltado a ser o Puck de sempre, sorriso perpétuo engessado em seu rosto, encostado contra uma árvore.

- Bem. – Ele suspirou. – Não acho que eu tenha mudado esta sua mente teimosa, mudei?

- Não, não mudou.

- Estava com medo disto. – Ele saltou para cima de um velho tronco, cruzando seus braços e empertigando sua cabeça. – Bem então, minha maquinante princesa, qual é o plano?

Quis sorrir para ele, mas alguma coisa estava errada. Minhas pernas adormeceram, e senti um estranho um puxão no meu estômago. Senti-me inquieta, como se formigas se arrastassem embaixo da minha pele, e não podia ficar parada ainda que a minha vida dependesse disto. Sem querer, comecei a deslocar-me para longe de Puck, direto para a floresta.

- Princesa? – Puck saltou para baixo, franzindo o cenho. – Você está bem? Tem formigas em suas calças ou alguma coisa assim?

Tinha acabado de abrir minha boca para responder quando alguma forma invisível quase me arrancou de meus pés, e eu gritei ao invés. Puck me alcançou, mas eu saltei para longe sem querer. – O que é isto? – Gritei, enquanto a estranha força puxava-me novamente, apressando-me para as árvores. – Não posso… parar. O que está acontecendo?

Puck agarrou meu braço, segurando-me, e meu estômago pareceu estar sendo rasgado em dois. Gritei, e Puck me soltou, seu rosto branco com o choque.

- É uma Convocação. – Ele disse, correndo atrás de mim enquanto eu andava. – Alguma coisa está te chamando. Você fez uma barganha ou deu de presente alguma coisa pessoal recentemente? Cabelo? Sangue? Um pedaço de roupa?

- Não! – Gritei, agarrando uma vinha para parar a mim mesma. A dor atingiu meus braços, e eu soltei com um gemido. – Não dei nada a ninguém. Como paro isto?

- Você não pode. – Puck trotava ao meu lado, seu olhar intenso e preocupado, mas não fez nenhum movimento para me tocar. – Se alguma coisa está Convocando, você tem que ir. Só fica mais doloroso se você resistir. Não se preocupe, entretanto. – Ele tentou um sorriso alegre. – Estarei bem atrás de

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você.

- Não se preocupe? – Tentei fazer uma careta para ele sobre os meus ombros. – Isto é como Vampiros de Almas27; é claro que estou preocupada! – Mais uma vez, tentei me aferroar a uma árvore, para parar meus pés de valsarem sem minha permissão. Inútil. Meus braços nem mesmo me obedeciam mais. Com um último olhar para Puck, cedi à estranha compulsão e deixei meu corpo me levar.

Caminhei a passos largos pela floresta como se estivesse em uma missão, ignorando tudo exceto os obstáculos maiores. Escalei as rochas e árvores caídas, investi impetuosamente por ravinas abaixo, e caminhei através de espinheiros e sarças, arfando quando elas rasgavam minha pele e minhas roupas. Puck seguia-me bem atrás, seu olhar preocupado em minhas costas, mas ele não me parou uma segunda vez. Minhas pernas queimavam, minha respiração vinha em arfares entrecortados, e meus braços sangravam das dúzias de cortes e arranhões, mas não podia fazer-me parar de voar. E então nós continuamos nossa corrida louca através da floresta, afastando-nos de Tir Na Nog e nos embrenhando mais adentro de território desconhecido.

A noite estava caindo quando o estranho encantamento finalmente desapareceu, e meus pés pararam tão abruptamente que eu caí, arremessando-me para frente e rolando na sujeira. Puck estava atrás de mim instantaneamente, ajudando-me, perguntando se eu estava bem. Não podia responder de primeira. Minhas pernas queimavam, e tudo o que eu podia fazer era sugar o ar para dentro dos meus pulmões famintos e sentir alívio que meu corpo finalmente era meu novamente.

- Onde nós estamos? – Ofeguei tão logo fui capaz.

Parecia que tínhamos caído direito em algum tipo de vila. Lama clara e cabanas de palha jaziam em um solto semicírculo ao redor de uma fogueira, que estava vazia e fria. Ossos, peles de animais e carcaças meio-comidas jaziam espalhadas ao redor, zumbindo com moscas.

- Parece uma vila abandonada de duendes. – Puck murmurou, enquanto eu me encostava contra ele, ainda ofegando. Ele olhou para mim abaixo, desfazendo-se em sorrisos. – Aborreceu alguns duendes recentemente, Princesa?

- O quê? Não. – Limpei suor dos meus olhos e cambaleei sobre uma tora, desmoronando sobre ela com um gemido. – Ao menos, acho que não.

- Aqui está você. – Surgiu uma voz sem corpo, de algum lugar perto da borda as árvores. Eu pulei e olhei ao redor, mas não podia ver o interlocutor. – Você está atrasada. Estava com medo que tivesse se perdido, ou sido comida. Mas, suponho que é só uma humana que não é culpada pela perda da pontualidade.

Meu coração saltou. Conhecia aquela voz! Olhei ao redor avidamente, mas é claro que não pude ver nada, até Puck agarrar meu braço e apontar na direção da borda das árvores. Uma velha tora jazia nas sombras, exatamente fora dos limites da vila, ressaltada pela luz da lua. Em um momento, estava vazia. Então, eu pisquei, ou a luz da lua deslocou-se, e um enorme gato cinza sentava lá, o rabo de escova de limpar garrafas curvado ao redor de suas pernas, fitando-me com preguiçosos olhos dourados.

- Grimalkin!

Grimalkin piscou para mim, parecendo muito como ele sempre pareceu, longo pêlo cinza misturando-se perfeitamente com a luz da lua e sombras. Ele me ignorou enquanto eu corria, completamente absorvido em limpar sua pata dianteira. Eu devia ter arrebatado-o e lhe dado um apertão, se não soubesse que suas garras afiadas iriam transformar meu rosto em hambúrguer e que ele nunca me perdoaria.

Puck sorriu. – Ei, gato. – Ele saudou com um acenar alegre. – Há muito tempo não nos vemos. Acho que você é o responsável pela nossa pequena Marcha Mortal?

27 Filme americano de 1956, do gênero ficção científica. Título original: Invasion of the Body Snatchers.

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O felino bocejou. – Esta é a última vez que ponho uma Convocação sobre um humano. – Ele meditou, erguendo uma pata coçar sua orelha. – Eu poderia ter tirado um cochilo em vez de esperar que você finalmente aparecesse. Por que demorou tanto, humana? Você caminhou?

Eu finalmente me lembrei: Grimalkin tinha me ajudado na busca por meu irmão e, em troca, nós tínhamos concordado que ele poria um chamado em mim: uma vez, no tempo que ele escolhesse, embora, então, não tivesse nenhuma ideia em que aquilo implicava.

- O que está fazendo aqui, Grim? – Perguntei, dividida entre o deleite e a irritação. Estava feliz por vê-lo, claro, mas não estava entusiasmada com a marcha forçada através das florestas infestadas de duendes, só para dizer “oi”. – É melhor ser bom, gato. Seu estúpido feitiço de Convocação poderia ter me matado. O que é que você quer?

Grimalkin virou-se para escovar os traseiros. – Não quero nada de você, humana. – Disse entre lambidas. – Trouxe-a aqui como um favor para alguém mais. Terá que assumir seus negócios com ele. E, se você puder, lembre-o que agora me deve um favor, uma vez que eu gastei uma ótima Convocação em você.

- Sobre o que está falando?

- ELE SE REFERE A MIM, MEGHAN CHASE. – A voz de trovão balançou o chão, e o cheiro de carvão queimado flutuou na brisa. – PEDI A ELE QUE CHAMASSE VOCÊ AQUI.

Alguma coisa saiu do lado de uma cabana, um monstruoso cavalo de ferro enegrecido, com flamejantes olhos vermelhos e chamas ardiam através das frestas em sua barriga. Vapor subia de suas narinas, enquanto ele girava seu rosto para mim, enorme, imponente e aterrorizantemente familiar.

Ironhorse.

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CAPÍTULO DEZ

Verdade e Mentiras

- PARE! – Ironhorse berrou, quando Puck imediatamente puxou sua adaga, empurrando-me para trás dele. – NÃO VIM AQUI PARA LUTAR, ROBIN GOODFELLOW. PONHA SUA ARMA PARA BAIXO E ME ESCUTE.

- Oh, acho que não, Enferrujado. – Puck zombou, enquanto nós começávamos a recuar em direção a borda da vila. – Tenho uma ideia melhor. Você fica aqui até chegarmos a Oberon, que te rasgará ao meio e enterrará seus pedaços tão distantes, que nunca conseguirá se juntar de novo.

Meu coração martelou, tanto de medo quanto de súbita fúria. Ironhorse era um dos tenentes de Machina, enviado para me capturar e me levar para o Reino Iron. Escapamos dele duas vezes antes, uma em Tir Na Nog e uma no Reino Iron, mas Ironhorse tinha um mau hábito de aparecer quando nós menos esperávamos. Certamente eu não esperava ter que fugir dele aqui.

- Maldição, Grim! – Eu me enfureci, lançando ao gato um furioso olhar, enquanto nós recuávamos. Ele piscou para mim calmamente. – Você nos vendeu para eles? Isto é baixo, mesmo para você.

Grimalkin suspirou e deu a Ironhorse um olhar de repreensão. – Eu pensei que você fosse ficar escondido até que eu pudesse explicar as coisas. – Ele disse com um agitar exasperado de seu rabo. – Falei a você que eles reagiriam.

Ironhorse bateu uma pata, enviando uma explosão de sujeira para o ar. – O TEMPO URGE. – Ele lançou, agitando sua cabeça. – NÃO TEMOS O LUXO DE ESPERAR MAIS. MEGHAN CHASE, DEVO FALAR COM VOCÊ. VOCÊ ME OUVIRÁ?

Eu hesitei. Isto era novo. Normalmente, a esta altura, nós estaríamos lutando por nossas vidas. Ironhorse usualmente não era polido. E Grimalkin ainda nos observava calmamente da tora, medindo nossa reação. A curiosidade levou a melhor sobre mim. Pus uma mão no braço de Puck para pará-lo de recuar mais.

- Eu quero falar com ele. – Sussurrei, ignorando seu franzir de cenho. – Ele veio aqui por uma razão, e talvez saiba sobre o cetro. Mantenha um olho nele, certo?

Puck olhou para mim, então encolheu os ombros. – Certo, Princesa. Mas no segundo em que faça um movimento, ele vai estar de cabeça para baixo em uma árvore antes que possa piscar.

Eu apertei o seu braço e caminhei ao redor dele, para encarar Ironhorse. O enorme feérico Iron assomou-se sobre mim, vapor contorcendo-se de sua boca e narinas. – O que você quer?

Eu tinha me esquecido do quão grande Ironhorse era. Não só alto, mas largo. Ele deslocou seu peso, as engrenagens chacoalhando e gemendo, e eu dei um cauteloso passo para trás. Ele talvez não

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fosse nos atacar, mas eu confiava nele na mesma medida em que poderia me afastar, o que não era muito. Também não o tinha perdoado por quase matar Ash da última vez que nos encontramos.

Ironhorse abaixou sua cabeça, no que era quase uma reverência. – OBRIGADO, MEGHAN CHASE. EU A CHAMEI AQUI PORQUE TEMOS UM PROBLEMA EM COMUM. VOCÊ PROCURA O CETRO DAS ESTAÇÕES, ISTO NÃO É CORRETO?

Cruzei meus braços. – O que sabe sobre isto?

- EU SEI ONDE ELE ESTÁ. – Ironhorse continuou, balançando seu rabo com um som tinido. – POSSO AJUDÁ-LA A RECUPERÁ-LO.

Puck gargalhou. – Claro que pode. – Ele zombou, enquanto Ironhorse bufava e balançava suas orelhas. – E tudo o que temos que fazer é segui-lo como cachorrinhos excitados, por todo o caminho até a armadilha. Desculpe, lata, mas nós não somos ingênuos assim.

Ironhorse bufou. – NÃO ZOMBE DE MIM, ROBIN GOODFELLOW. – Ele disse com uma explosão de chamas de suas narinas. – MINHA OFERTA É GENUINA. EU NÃO PROCURO ENGANAR VOCÊS.

- Disparate. – Eu irrompi, cruzando meus braços. Ironhorse piscou para mim, atônito. – Tertius e um monte de assassinos de metal roubaram o cetro e mataram Sage, sabendo que Mab iria culpar Oberon por isto. O novo Rei Iron arquitetou esta guerra. Ele planeja abater todo mundo quando as corte estiverem em seu ponto mais fraco. Por que você iria querer nos ajudar a parar isto?

- PORQUE – Ironhorse bateu uma pata – O NOVO REI IRON É UMA FRAUDE.

Foi a minha vez de piscar para ele. – Uma fraude? O que quer dizer?

O tenente agitou sua cabeça desdenhosamente. – EXATAMENTE O QUE EU DISSE. O REI QUE ATUALMENTE SENTA NO TRONO É UM INTRUSO E UMA FARSA. NÃO SINTO NENHUNA LEALDADE POR ELE. – Ele chicoteou seu rabo e ergueu sua cabeça imperiosamente. – NÃO SOU COMO O IRMÃO DE SANGUE IRON. OS CAVALEIROS FORAM CRIADOS PARA OBEDECER A QUEM QUER QUE SE SENTE SOBRE O TRONO. O SENSO DE DEVER DELES É DETURPADO. EU SEI A VERDADE. E NÃO SERVIREI A ELE.

Olhei para Puck. – O que você pensa sobre isto tudo?

- Eu? – Puck sorriu desdenhosamente e cruzou seus braços. – Eu acho que todos os feéricos Irons deveriam derreter em uma sucata de metal. Não seguiria o Enferrujado aqui se a minha vida dependesse disto.

- Que previsível. – A voz de Grimalkin flutuou de perto dos meus pés. Eu não tinha nem mesmo o ouvido se mover. – Seu preconceito o cega para o que está realmente acontecendo.

- Oh, mesmo? – Eu olhei para ele. – Então por que não nos fala o que está acontecendo, Grim.

Grimalkin bocejou. – Não é óbvio? Quando você matou máquina, os feéricos Iron perderam seu governante. Eles precisavam de alguém para sentar sobre o trono, dar a eles direção. Um falso monarca conclamou ser o Rei Iron requerido por eles, mas nem todos o aceitaram. Agora, os feéricos Iron estão divididos em dois campos, um do lado do falso rei, e outro que deseja derrubá-lo. Ironhorse é parte do segundo. Não é verdade?

- ESTÁ CORRETO.

- Se o falso rei conseguir o cetro, ele se tornará ainda mais poderoso. – Grimalkin continuou, olhando-me sem piscar os olhos dourados. – Se é para ele ser parado, isto deve acontecer antes que o possua. Ironhorse alega conhecer sua localização. Você seria uma tola se não o escutasse.

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- E se ele estiver mentindo?

Ironhorse jogou sua cabeça para cima com uma indignada explosão de chamas. – EU NÃO MINTO. – Ele ressoou, e eu cambaleei para trás diante do calor. – APESAR DO QUE VOCÊ PENSA DE MIM, EU AINDA SOU FEÉRICO, E NENHUM FEÉRICO PODE DIZER UMA INVERDADE.

Piscando, eu olhei para Puck. Eu nunca tinha ouvido aquilo antes, exceto em vagas menções do saber dos faery. – Verdade?

Puck aquiesceu. – Praticamente, Princesa. – Ele lançou um olhar perverso a Ironhorse. – Apesar de que comparar o Enferrujado com um de nós é exagerar um pouco.

- Mas... você falava mentiras o tempo todo, quando era Robbie. Sua vida inteira era uma mentira.

Grimalkin bufou. – Só porque ele não pode mentir, não quer dizer que ele não pode iludir, humana. Robin Goodfellow é um perito em dançar ao redor da verdade.

- Oh, olhe quem está falando. Se você não é um perito em tirar vantagens das pessoas, eu como minha cabeça.

Ironhorse bufou e balançou sua crina. – BASTA. O TEMPO URGE. NÓS NÃO TEMOS TEMPO PARA ARGUMENTAR. MEGHAN CHASE, ACEITARÁ MINHA AJUDA OU NÃO?

Olhei para seus olhos. Sua vazia, rígida máscara me olhou de volta, sem expressão e impassiva. – Vai realmente nos ajudar aqui? – Perguntei. – Quer realmente conseguir o cetro de volta e parar a guerra?

- SIM.

- E, você não vai nos levar para nenhum tipo de armadilha?

- NÃO.

Tomei um profundo fôlego e o soltei novamente. – Estas parecem ser todas as questões que eu posso pensar por agora.

- Aqui vai uma importante. – Puck acrescentou. – Onde está o cetro de qualquer forma, Enferrujado?

Ironhorse soprou uma bufada de vapor nele. – EU NÃO RESPONDEREI A VOCÊ, SANGUE ANTIGO. MINHA BARGANHA É COM A GAROTA.

- É? – O sorriu de Puck se tornou perigoso. – E se eu te partir e te transformar em uma torradeira? Gostaria disto, lata?

- EU GOSTARIA DE VER VOCÊ TENTAR.

- Meninos, por favor! – Isto era tão ruim quanto arbitrar as frequentes festas de ameaça entre Puck e Ash. – Basta de pose e de testosterona. Ironhorse, se vamos fazer isto, precisamos saber onde o cetro está. Não podemos segui-lo cegamente para toda parte.

- Ironhorse sacudiu sua cabeça. – É CLARO, MEGHAN CHASE. – Eu franzi o cenho a sua complacência, mas ele prosseguiu sem parar. – O CETRO DAS ESTAÇÕES FOI LEVADO PARA O REINO MORTAL. ESTÁ SENDO GUARDADO EM UM LUGAR CHAMADO SILICON VALLEY.

- Silicon Valley? Isto é na Califórnia.

- SIM.

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- Por que lá?

- SILICON VALLEY FOI O LUGAR DE NASCIMENTO DE LORDE MACHINA. – Ironhorse disse solenemente. – MUITOS DOS SEUS TENENTES, COMO VIRUS E GLITCH, TAMBÉM VIERAM DESTA ÁREA. É UMA REGIÃO DOS FEÉRICOS IRON, UMA QUE OS SANGUES ANTIGOS – ele olhou para Puck – EVITAM COMPLETAMENTE. É O LUGAR IDEAL PARA ESCONDER O CETRO.

- Você pode dizer isto de novo. – Meditei. Silicon Valley não era só uma cidade, era toda cidade naquela área. – Achar o cetro seria como procurar por uma agulha em um palheiro... em um campo de palheiros.

- EU POSSO ENCONTRÁ-LO. – Ironhorse ergueu sua cabeça, olhando para nós de cima de seu longo nariz. – EU O JURO. QUEREM QUE EU DIGA AS PALAVRAS? MEGHAN CHASE, EU, IRONHORSE, O ÚLTIMO TENENTE DE LORDE MACHINA, LEVAREI-A AO CETRO DAS ESTAÇÕES, E EU PROMETO PROTEJÊ-LA ATÉ QUE ESTEJA EM SUAS PROPRIAS MÃOS. ISTO EU JURO, PELA MINHA HONRA E MEU DEVER PARA COM O VERDADEIRO MONARCA DA CORTE IRON.

Eu inspirei profundamente, e até mesmo Puck pareceu surpreso. Um juramento como aquele significava que o pronunciante estava preso completamente a ele. Ironhorse não estava brincando. Enquanto eu ficava ali ofegando para ele, Puck pegou minha mão e me virou para o lado.

- E quanto a Oberon? – Ele murmurou. – Ele é o único que pode remover o selo. Se vamos vagabundear pela Califórnia, não terá sua magia para protegê-la.

- Não podemos nos preocupar com isto agora. – Eu sacudi sua mão da minha. – O cetro é mais importante. Além disto, é para isto que eu tenho você. – Eu sorri, e me virei para Ironhorse. – Tudo bem, Ironhorse. Temos um trato. Leve-nos até o cetro.

- Finalmente. – Grimalkin parou e se coçou, o rabo de espanador encaracolando sobre suas costas. – Você toma decisões tão devagar quando responde a Convocações, humana. Eu realmente espero que isto não se torne um hábito.

- Espere. Você está vindo também? Por quê?

- Estou chateado. – Grimalkin ondulou seu rabo languidamente. – E você é sempre divertida... exceto quando eu estou esperando pela sua chegada, é claro. Além disto, o tenente e eu temos negócios também.

- Você tem? – Eu esperei, mas ele não elaborou. – Qual é?

Ele fungou e estreitou seus olhos até a metade. – Nada que lhe interesse, humana. E você precisará da minha orientação, se quiser pegar o cetro o mais rápido possível. Acredito que o trod mais próximo para Silicon Valley é através das Sarças28.

As sobrancelhas de Puck se ergueram. – As Sarças? Você está arriscando uma sorte horrível, gato. Por que não tentamos um trod um pouco menos, oh eu não sei... letal? Se nós voltarmos para a direção oposta, podemos usar o trod dos Prados Frost29. Este vai nos levar perto de São Francisco, e poderemos facilmente pedir carona de lá.

Grimalkin balançou sua cabeça. – Se queremos alcançar Silicon Valley, devemos ir pelos espinheiros. Não se preocupe, não os deixarei perdidos. O trod que passa pelos Prados Frost se tornou inacessível. É situado muito próximo a Tir Na Nog.

28 No original: Briars, que significa “sarças” ou “roseiras bravas”. 29 No original: Frost Meadows. “Prados Geados”.

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- Ainda não vejo o problema, gato.

Ironhorse bufou. – OS PRADOS FROST SE TORNARAM CAMPO DE BATALHA, ROBIN GOODFELLOW. – Ele disse, fazendo meu estômago cerrar-se. – WINTER JÁ CORTOU UMA ÁREA GENEROSA DE DESTRUIÇÃO ATRAVÉS DA WYLDWOOD, E ELES ESTÃO AVANÇANDO SOBRE SUMMER ENQUANTO NÓS FALAMOS. HÁ UM GRANDE EXÉRCITO DE UNSEELIES ENTRE NÓS E AQUELE TROD. O CAITH SITH30 ESTÁ CERTO... NÓS NÃO PODEMOS VOLTAR.

- É claro que estou. – Grimalkin concordou. – Nós vamos pelas Sarças.

- Eu não entendo. – Eu disse, enquanto Grim saía trotando com seu rabo no ar, confiante na sua vitória. – O que são as Sarças? Grimalkin? Ei!

Grimalkin olhou para trás, seus olhos duas orbes brilhantes flutuando na escuridão.

- Não estou aqui para bater papo, humana. Se você verdadeiramente quer sua pergunta respondida, pergunte ao seu Puck. Talvez ele seja capaz de suavizar a realidade para você. Eu não seria. – Ele balançou seu rabo, e continuou para as árvores sem olhar para trás.

Olhei para Puck. Ele fez uma careta e me lançou um sorriso desprovido de humor.

- Certo. As Sarças. Só um segundo, Princesa. Ei, Enferrujado – ele chamou, movendo-se para Ironhorse, que torceu suas orelhas -, por que você não caminha na frente de nós, hã? Eu quero seu grande traseiro feio onde eu possa vê-lo.

Ironhorse olhou para ele malignamente, balançou sua cabeça, e andou a passos largos depois do rápido desaparecimento Grimalkin. O faery Iron deixou uma leve pegada de destruição em sua caminhada; galhos contorceram-se para longe dele, plantas secaram e a grama murchou debaixo de seus pés, deixando pegadas queimadas na trilha. Balançando sua cabeça, Puck murmurou alguma coisa muito rude sob sua respiração e seguiu, liderando-nos mais para dentro da wyldwood.

30 Ironhorse está se referindo a Grimalkin. Caith Sith (também Cat Sìth e Cat Sidhe), é uma criatura faery da mitologia céltica, parecido com um enorme gato preto com uma faixa branca em seu peito. Diz a lenda que o gato espectral assombra as Highlands escocesas. Certo folclore sugere que os Caith Sith não eram faeries, mas sim bruxas transformadas.

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CAPÍTULO ONZE

As Sarças.

Mais tarde, depois de uma noite seguindo Grimalkin através da floresta cada vez mais densa, decidi era melhor deixar algumas perguntas sem respostas.

- As Sarças - Puck começou, mantendo um olho cuidadoso sobre Ironhorse, caminhando a nossa frente -, ou Espinheiros31 ou Espinhos32, ou seja lá como você quiser chamá-lo, é um labirinto. Ninguém sabe o quão grande ele realmente é, mas é enorme. Alguns dizem que circula a Nevernever inteira. Há rumores que se você está em wyldwood e começa a caminhar em qualquer direção, eventualmente irá dar de cara com as Sarças. Pode-se achar pedaços crescendo quase em qualquer lugar, da Greatwood ao Venom Swamps33, nas cortes de Arcádia e Tir Na Nog.

- Como a Cerca34. – Murmurei, relembrando do túnel de espinhos na corte de Oberon e a rota de escape espinhosa que Grimalkin tinha usado para nos tirar de Faery. A parede de espinheiros cercando a Corte Seelie tinha se aberto para o gato, revelando um labirinto de túneis nos espinhos, e eu o segui, enquanto ele me levava de volta para o mundo mortal.

Puck aquiesceu. – Este é outro nome para ela. Apesar de que a Cerca é uma versão mais maçante das verdadeiras Sarças. Em Arcádia, a Cerca responde mais ou menos consistentemente, deixando você passar sempre que quiser entrar na corte. Fora de lá, na wyldwood, as Sarças são mais... sádicas.

- Você faz soar como se elas estivessem vivas.

Puck me deu um olhar muito estranho. – Elas estão vivas, Princesa. – Ele me alertou em uma voz baixa. – Não da forma que nós estamos acostumados, mas não as tome levianamente. As Sarças são uma força, uma que não pode ser domada ou entendida, mesmo por Oberon ou Mab. E elas sempre estão famintas. É fácil entrar... sair é a parte copiosa. Não é só isto, mas as coisas que vivem nas Sarças estão sempre famintas, também.

Senti um frio correr por toda a minha espinha. – E nós estamos indo pelas Sarças... por quê?

- Porque as Sarças têm a maior concentração de trods em toda Nevernever. – Puck respondeu. – Existem portas escondidas por toda parte nas Sarças, algumas constantemente mudando, algumas só aparecem em um tempo especial debaixo de circunstâncias especiais. Os rumores são que, dentro das Sarças, há um trod para cada entrada no mundo mortal, de um clube de strip em Los Angeles a

31 Espinheiros: no original, Brambles. 32 Espinhos: no original, Thorns. 33 Traduzidos: Greatwood (Grande Floresta) e Venom Swamps (Pântanos Venenosos). 34 Cerca: Hedge – cerca, cerca viva, barreira, sebe viva.

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algum roupeiro de quarto de criança. Ache a porta certa, e você está livre em casa. – O sorriso alargou-se, e ele balançou sua cabeça. - Mas você tem que chegar a ele primeiro.

A CHUVA SIBILAVA através dos galhos das árvores, uma fria chuva cinza que lavou a cor de tudo o que tocava. Até o ruivo brilhante do cabelo de Puck se tornou embotado e sem cor no dilúvio nebuloso. Ele tinha alisado seus dedos por eles, listrando seu cabelo com vermelho, só para ter a chuva encharcando-o mais uma vez, alvejando embora a cor. Grimalkin estava quase invisível; nem mesmo seus olhos brilhavam na escuridão.

Acima de nós, a parede massiva de espinhos negros erguia-se no ar, gavinhas rangendo e se contorcendo acima. Alguns espinhos eram mais largos do que eu, ondulando acima como espinhas de um ouriço do mar, e a coisa toda se eriçava com misterioso perigo.

Estremeci, mesmo estando perto de Ironhorse e o vapor quente irradiando dele. O feérico Iron fumegava na chuva, cercado por fumaça contorcida, enquanto a água golpeava sua quente pele de metal e se ia chiando. Ironhorse olhou acima da parede de espinhos, esticando seu pescoço para olhar fixamente por ela, erguendo-se como um pequeno gêiser na tempestade.

- Como conseguiremos passar? – Eu me perguntei.

Tão logo as palavras saíram da minha boca, a parede se deslocou. Galhos rangeram e gemeram, enquanto descascavam para revelar um estreito corredor espetado através dos espinhos. Névoa cacheava-se fóra do corredor, e o espaço além estava sufocado em sombra.

Puck cruzou seus braços. – É como se fossemos esperados. – Ele olhou para Grimalkin abaixo, um fantasma cinza na névoa, calmamente limpando suas patas dianteiras. – Tem certeza que pode nos atravessar, gato?

Grimalkin deu a uma pata algumas lambidas a mais, antes de erguer-se. Sacudindo a si mesmo tanto que a água voou para todo lado, ele bocejou, arranhou e trotou para frente sem olhar para trás. – Siga-me e descubra. – Foram suas últimas palavras antes de desaparecer dentro do túnel.

Puck rolou seus olhos. Estendendo sua mão, ele me deu um sorriso encorajador. – Vamos, Princesa. Não quero nos separar aqui. – Eu enganchei em sua mão, e ele curvou seus dedos apertados ao redor dos meus. – Vamos, então. O Enferrujado pode fazer a retaguarda. Desta forma, se somos atacados por trás, não perderemos nada importante.

Eu senti o bufo indignado de Ironhorse quando entramos no túnel, e eu me pressionei mais perto de Puck, enquanto as sombras se fechavam sobre nós como dedos apertados. Ao nosso redor, o corredor pulsava com vida, deslizando, rangendo, desfraldando com fracos sons de assobio. Sussurros e estranhas vozes sussurrantes flutuavam pelo corredor, murmurando palavras que eu não conseguia entender. À medida que avançávamos, o buraco atrás de nós se fechava com um chiado silencioso, prendendo-nos dentro das Sarças.

- Por aqui. – Veio a voz sem corpo de Grimalkin à frente. – Tentem ficar juntos.

As paredes eriçadas do corredor pareciam se apertar sobre nós. Puck não soltou minha mão, mas nós tínhamos que caminhar em fila através do túnel para evitar sermos arranhados. Um par vezes, pensei ver um espinho ou trepadeira realmente se mover em minha direção, como se para picar minha pele ou agarrar minhas roupas. Uma vez, olhei para trás, para Ironhorse, para ver como ele estava passando, mas os espinhos, como o resto de Nevernever, pareciam avessos a tocar o grande feérico Iron, curvando-se para trás dele enquanto passava.

O túnel finalmente se abriu em um pequeno buraco com túneis e caminhos retorcendo-se

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em todas as direções. Em cima, o toldo de espinheiro excluía a luz, tão denso que você não poderia ver o céu além das fendas. Ossos jaziam aqui e ali entre os espinhos, branco-alvejados e brilhando na escuridão. Uma caveira sorriu para mim de um emaranhado de espinheiros, órbitas vazias cravejadas com espinhos. Estremeci e virei meu rosto nos ombros de Puck.

- Onde está Grim? – Sussurrei.

- Aqui. – Grimalkin disse, aparecendo do nada. O gato saltou para o topo de uma grande caveira e fitou a cada um de nós por vez. – Vamos mais fundo dentro das Sarças agora. – Ele declarou em uma voz calma e muito suave. – Diria a vocês o que devemos encarar, mas talvez seja melhor que não o faça. Tentem ficar em silêncio. Não se separem. Não tomem outro caminho. E fiquem longe de quaisquer portas com que cruzem. Estão prontos?

Ergui minha mão. – Como consegue se orientar por este lugar, Grim?

Grimalkin piscou. – Eu sou um gato. – Disse, e desapareceu por um dos túneis.

QUANDO EU TINHA DOZE ANOS, minha escola fez uma viagem ao campo para um labirinto “assombrado” de milho na periferia da cidade, uma semana antes do Halloween. Sentada no ônibus, escutando os meninos vangloriarem-se sobre quem iria encontrar a saída primeiro e as garotas dando risadinhas em seus pequenos grupos, fiz a mim mesma a promessa de que me sairia bem. Lembro de caminhar pelas fileiras de milho sozinha, sentido uma agitação, tanto de medo quanto de excitação, enquanto tentava achar o caminho para o centro e voltar. E lembro-me do sentimento náufrago em minhas vísceras, quando eu descobri que estava perdida, quando descobri que ninguém me ajudaria, que eu estava sozinha.

Isto era dez mil vezes pior.

As Sarças nunca ficavam quietas. Sempre estavam se movendo, arrastando-se, tentando te alcançar dos cantos de seus olhos. Algumas vezes, se você escutasse bem, poderia quase ouvi-las sussurrar o seu nome. Profundamente dentro da escuridão emaranhada, ramos estalavam e galhos farfalhavam como coisas se movessem através dos espinheiros. Nunca consegui uma visão clara, simplesmente vislumbres de formas escuras embaralhando-se no chão. Aquilo me assombrou. Ótimo.

As Sarças continuavam, um labirinto sem fim de espinhos retorcidos e galhos nodosos, movendo-se, estalando e se entendendo para nos alcançar. Enquanto nos aventurávamos para mais fundo, portas, molduras e arcadas começaram a aparecer em intervalos alternados em lugares completamente aleatórios. Uma porta vermelho-esmaecido pendia perigosamente de um galho acima, um manchado 216 brilhando na luz obscura. Uma imunda cabine de banheiro, rachada e descascando tinta verde, ficava perto da borda do caminho, tão envolta em espinhos que seria impossível abrir a porta. Alguma coisa magra e negra deslizou pelo nosso caminho e desapareceu em um armário aberto. Enquanto ele se fechava com um rangido, capturei um vislumbre de um quarto de criança através da moldura, e um berço delineado pela luz da lua, antes que videiras espinhosas retorcerem-se ao redor da porta e a puxassem de volta para as Sarças.

Grimalkin nunca hesitava, liderando-nos sem olhar para trás, passando por portões, portas e coisas aleatórias presas no emaranhado na teia de espinhosos. Um espelho, uma boneca e uma bolsa de golfe vazia pendiam dos galhos enquanto passávamos, como também os incontáveis ossos e algumas vezes esqueletos inteiros que se espalhavam pela trilha. Criaturas estranhas nos observavam das sombras, quase despercebidas, só seus olhos brilhando na escuridão. Pássaros negros com faces humanas empoleiravam-se nos galhos, nos observando silenciosamente enquanto passávamos, como abutres à espera. Em um ponto, Grimalkin empurrou-nos por entre de um túnel lateral, sibilando-nos para ficarmos quietos e não nos movermos. Momentos mais tarde, uma aranha gigante, facilmente do tamanho de um carro, avançou pelos galhos diretamente acima, e eu mordi meu lábio tão forte que senti gosto de sangue. Enorme e lustrosa, com um salpico de vermelho cruzando seu abdômen inchado, parou um momento, com se sentindo que sangue

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quente e fluido estivessem muito perto, esperando pelo mínimo tremor denunciar sua presa.

Seguramos nossas respirações e fingimos sermos pedras.

Por muitos bateres de coração, nós nos agachamos no túnel, sentindo nossos músculos ficarem com cãibras e nossos corações baterem muito alto em nossos peitos. Acima de nós, a aranha ficou perfeitamente quieta também, pacientemente esperando por sua presa ficar aborrecida, assumir que estava a salvo e fazer o primeiro movimento que seria o último. Afinal, alguma coisa farfalhou nos galhos acima, e ela lançou-se para longe, assustadoramente rápido para algo assim grande. O grito de alguma criatura desafortunada perfurou o ar, e então silêncio.

Por uns poucos momentos, depois que a aranha se foi, ninguém ousou se mexer. Finalmente, Grimalkin rastejou para fora, sua cabeça aparecendo cuidadosamente, vasculhando os espinhos.

- Esperem aqui. – Ele nos falou. – Verei se é seguro. – Escorregando dentro das sombras como um fantasma, ele desapareceu.

Eu me verguei sobre meus joelhos, enquanto a adrenalina esvaía-se e meus músculos começavam a tremer, deixando-me fraca e quase hiperventilando. Poderia lidar com duendes, bichos-papões e perversos cavalos comedores de carne, mas assustadoras aranhas gigantes? Foi onde eu decidi descer do bonde.

Puck ajoelhou-se e pôs a mão em meu ombro. – Você está bem, Princesa?

Eu aquiesci, pronta para fazer algum comentário sarcástico sobre o problema de pragas por aqui. Mas então, um dos espinhos se moveu.

Franzindo o cenho, eu me inclinei mais perto, mantendo meus olhos semicerrados. Por um momento, nada aconteceu. Então, o filamento de três polegadas tremeu e se desfraldou em um par de pontudas assas negras, unidas a um minúsculo faery com olhos brilhantes, que olharam com ameaça de um inseto. Seu corpo espigado estava coberto por uma carapaça negro-brilhante. Espigas cresciam de suas sobrancelhas e ombros, e ele agarrava uma lança feita de um espinho em uma minúscula garra. Enquanto olhávamos fixamente um para o outro, o faery repuxou seu lábio, revelando dentes tão afiados quando agulhas, e voou para a meu rosto.

Sacudi-me para trás, golpeando selvagemente, e acertei Puck, levando a ambos a tombar para trás. O faery esquivou-se das minhas mãos ceifadoras, zumbindo ao redor de nós como uma vespa zangada. Eu o vi parar, pairando no ar como um perverso beija-flor, então investir para frente com um grito áspero.

Uma mancha de chama queimou o ar em frente a mim. Senti o golpe de calor sobre meu rosto, trazendo lágrimas aos meus olhos, e o faery desapareceu dentro do fogo. Seu minúsculo corpo carbonizado caiu como pedra no chão, curvando-se, as delicadas asas negras cauterizadas. Retorceu-se como um inseto, então ficou imóvel.

Ironhorse balançou sua cabeça e bufou, parecendo satisfeito, enquanto fumaça retorcia-se de suas narinas. Puck fez uma careta enquanto se erguia, estendendo a mão para me ajudar a levantar.

- Sabe, estou realmente começando a odiar a vida invertebrada das redondezas. – Ele murmurou. – Da próxima vez, lembre-me de trazer uma lata de Off!35

- Você não tinha que matá-lo. – Falei para Ironhorse, tirando a poeira das minhas calças. – Ele tinha três polegadas de altura!

- ELE ATACOU VOCÊ. – Ironhorse soou confuso, empertigando sua cabeça para mim. – ELE CLARAMENTE TINHA INTENÇÕES AGRESSIVAS. MINHA MISSÃO É PROTEGÊ-LA ATÉ

35 Off! é uma marca de inseticida.

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QUE NÓS RECUPEREMOS O CETRO. NÃO PERMITIREI QUE NADA FAÇA MAL A VOCÊ. ESTE É O MEU VOTO SOLENE.

- É, mas não precisa de uma metralhadora para matar uma mosca.

- Humana! – Grimalkin apareceu, saltando, com suas orelhas achatadas em sua cabeça. – Está fazendo barulho demais. Todos vocês estão. Devemos deixar este local, rápido. – Ele olhou ao redor, e o pêlo de suas costas começou a se eriçar. – Já deve ser tarde demais.

- Ironhorse matou este minúsculo faery... – Comecei, mas Grimalkin sibilou para mim.

- Humana idiota! Você acha que aquele era o único? Olhe ao redor de você!

Eu olhei, e meu coração quase parou. Os espinhos ao nosso redor estavam se movendo, centenas e centenas deles, desfraldando-se dentro de minúsculos faeries com pontudos dentes rangentes. O ar se encheu com o som de zumbidos, e milhares de minúsculos olhos negros brilharam através dos espinhos.

- Oh, isto não é bom. – Puck murmurou enquanto o zumbido ficava mais alto, mais frenético. – Eu realmente, realmente queria ter aquele Off!

- Corram! – Cuspiu Grimalkin, e nós corremos.

Os faeries enxamearam ao nosso redor, o zumbido de suas asas vibrando no ar, suas vozes muito agudas guinchando em meus ouvidos. Senti o peso de seus minúsculos corpos na minha pele, um instante antes das ferroadas, e os ceifei selvagemente, tentando expulsá-los. Puck rosnou alguma coisa ininteligível, batendo fortemente neles com suas facas, e Ironhorse soprou chama de sua boca e narinas, rugindo. Faeries carbonizados e desmembrados caíram guinchando do ar, mas dúzias mais zumbiam para tomar seu lugar. Grimalkin, é claro, tinha desaparecido. Nós investimos cegamente por um túnel de espinhos, através dos enxames de vespas-feéricas assassinas, sem nenhuma pista de para onde estávamos indo.

Enquanto eu virava uma esquina, um corpo apareceu bem na minha frente. Não tive tempo para reagir antes que colidisse com ele, e nós dois nos estatelamos.

- Oh! Mas que diabos! – Alguém uivou.

Ceifando faeries, olhei para o rosto da garota, um ano ou dois mais jovem do que eu. Ele era pequena e asiática, com cabelo que parecia como se ela tivesse o cortado com facão, usando um agasalho maltrapilho duas vezes maior. Por um segundo, minha mente ficou vazia com o choque de ver outro humano, até que vi as orelhas peludas espreitando do seu cabelo.

Piscamos uma para a outra por um segundo, antes que o ferrão de uma vespa-assassina faerie me tirasse a mordidas do meu torpor. Ceifando, eu lutei para ficar de pé, enquanto o enxame zumbia ao redor da estranha garota também. Ela uivou e ceifou selvagemente, recuando.

- O que é isto? – Ela sibilou, quando Puck chegou atrás de mim e Ironhorse investiu, soprando fogo. – Quem diabos são vocês, gente? Oh, não importa! Fujam! – Ela passou arremessando-se por nós, olhando para trás uma vez para disparar - Apresse-se, Nelson! – sobre o seu ombro. Eu mal tive tempo para pensar em quem Nelson era, quando uma criança com a constituição de um linebacker36 embarrilou através de nós, de alguma forma desviando de Puck e Ironhorse, e pisando atrás da garota. Capturei um vislumbre de ombros como os de gorila, lamacento cabelo loiro, e pele tão verde quanto água de pântano. Ele apertava uma mochila em seus braços como no futebol e investiu pela trilha sem olhar para trás.

- Quem eram eles? – Perguntei, acima do zumbido do enxame e meu próprio debater

36 Posição de um jogador no futebol americano. Qualquer um dos jogadores defensivos formando uma segunda linha de defesa trás das extremidades e equipamentos.

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frenético.

- Sem tempo. – Puck disse, estapeando um faery sobre seus ombros. – Ow! Maldição, temos que conseguir sair daqui! Vamos!

Nós seguimos pelo caminho novamente, quando um rugido balançou o ar a nossa frente, fazendo o enxame de assassinos feéricos congelar no meio do ar. Ele soou novamente, gutural e selvagem, enquanto alguma coisa chacoalhava a parede de espinhos, vindo direto para nós com o som de madeira estalando. Senti centenas de criaturas nos ramos fugirem por suas vidas.

Os faeries dispersaram-se. Zumbindo em terror, eles desapareciam dentro da cerca, através das rachaduras e minúsculos espaços entre os espinhos. Em segundos, o enxame inteiro tinha desaparecido. Espreitei através dos ramos e vi alguma coisa vindo pela trilha, rasgando através das paredes de espinhos como se ela não estivesse lá. Alguma coisa negra e escamosa, e muito, muito maior do que a aranha.

Isto é o que eu acho que é?

- Ladrãaaao! – Rugiu uma voz profunda e inumana, antes que uma mancha de chamas queimasse através da cerca, soprando uma porção inteira de fogo, fazendo o ar explodir com o calor. Ironhorse relinchou, erguendo-se em alarme. Puck amaldiçoou, agarrou minha mão, e me empurrou de volta pelo caminho pelo qual viemos.

Nós voamos pela trilha atrás da estranha garota e sua companhia de pescoço musculoso, sentindo o calor do fogo do monstro em nossas costas. – Ladrões! – A terrível voz rosnou, permanecendo atrás de nossas calcanhares. – Posso cheirar vocês! Posso sentir suas respirações e escutar seus corações. Devolvam-me o que é meu!

- Grande. – Puck arquejou, enquanto Ironhorse trotava atrás de nós, bramindo que iria me proteger das chamas. – Simplesmente ótimo. Eu odeio aranhas. Eu odeio vespas. Mas, sabe o que eu odeio mais do que tudo isto?

A coisa atrás de nós rugiu, e outro sopro de chamas torrou os galhos acima. Eu estremeci enquanto fugíamos debaixo da chuva de cinzas e ramos flamejantes. – Dragões? – Eu engasguei.

- Lembre-me de matar Grimalkin da próxima vez que o virmos.

A trilha se estreitou, então encolheu a um apertado túnel espinhoso que terminava se retorcendo dentro da escuridão. Inclinando-me e espreitando dentro dele, podia visualizar uma porta no final da toca. E, não podia ter certeza, mas pensei ter visto a porta fechada.

- Acho que vejo a porta! – Chamei, olhando sobre meus ombros. Puck aquiesceu impacientemente.

- Bem, pelo que está esperando, Princesa! Vá!

- Mas e Ironhorse?

- Ele vai ter que se espremer! – Puck me empurrou direto para a abertura, mas eu resisti. – Vamos, Princesa. Não vamos querer ficar no meio disto se Fôlegomortal decidir espirrar sobre nós.

- Não podemos deixá-lo para trás!

- NÃO SE PREOCUPE, PRINCESA. – Ironhorse disse, e eu ofeguei diante dele, não acreditando em meus olhos. Onde um cavalo tinha estado, agora um homem estava diante de mim, negro e corpulento, com um queixo quadrado e punhos do tamanho de presuntos. Ele vestia jeans e camisa preta, que inchava com os músculos abaixo, a pele esticada sobre os tendões de aço. Tranças derramavam-se da parte de cima de sua cabeça como uma crina, e seus olhos ainda queimavam com um intenso brilho vermelho. – VOCÊ NÃO É O ÚNICO COM UM PUNHADO DE TRUQUES DEBAIXO DA MANGA, GOODFELLOW. – Ele disse, um fraco sorriso desdenhoso abaixo de sua voz. – AGORA, VÃO. ESTAREI

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LOGO ATRÁS DE VOCÊS.

Com um horrível som de estalido, a cabeça do dragão elevou-se acima das sarças sobre um longo pescoço viperino, assomando-se a uma altura impossível. Era maior do que eu tinha imaginado, uma longa boca dentuça coberta com cascas preto-esverdeadas, chifres de marfim contorcidos para trás de seu crânio enquadrando o céu. Estranhos olhos vermelho-ouro esquadrinharam o chão impassivamente, brilhando com esperteza e inteligência. – Eu os vejo, ladrõezinhos.

Puck me deu um empurrão, e eu tombei dentro da toca, arranhando minhas mãos e joelhos e furando a mim mesma nos espinhos. Amaldiçoando, eu olhei para cima e vi dois familiares olhos dourados flutuando diante de mim na escuridão.

- Apresse-se, humana. – Grimalkin sibilou, e fugiu pelo buraco.

O túnel parecia encolher-se quanto mais eu avançava, arranhando minhas costas enroscando meu cabelo e roupas enquanto eu seguia Grimalkin, inclinada como um caranguejo. Ouvia Puck e Ironhorse atrás de mim, senti o olhar do dragão às minhas costas, e amaldiçoei quando minha manga enroscou-se em um espinho. Nós estávamos muito devagar! A porta vermelha elevava-se no final do túnel, um farol de luz e segurança, tão longe. Mas enquanto eu me aproximava, vi Grimalkin parado em frente a ela, orelhas achatadas contra seu crânio, sibilando e arreganhando seus dentes.

- Erva daninha. – Ele rosnou, e eu vi um feixe de flores secas amarelas pendendo na porta como minúsculas explosões de sol. – Os feéricos não podem entrar por esta porta. Tire-a, rápido, humana!

- Queimem, ladrõezinhos!

Fogo explodiu pelo túnel abaixo, contorcendo e enroscando em um turbilhão de calor e cólera, apontando direto para nós. Eu arranquei as flores da porta e mergulhei nela, Puck e Ironhorse tombando depois de mim. Chamas estenderam-se acima da minha cabeça, chamuscando minhas costas, enquanto eu jazia ofegando em um frio chão de cimento. Então, a porta fechou com uma batida, cortando o fogo, e nós estávamos presos dentro da escuridão.

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CAPÍTULO DOZE

Leanansidhe

Por alguns momentos, eu fiquei lá no concreto, meu corpo curiosamente quente e frio ao mesmo tempo. Meu pescoço, meus ombros e as costas das minhas pernas queimavam do fogo, que tinha chegado muito perto para ser confortável. Mas minhas bochechas e estômago pressionavam o cimento frio, fazendo-me tremer. De ambos os lados de mim, Puck e Ironhorse esforçaram-se para ficar de pé, com maldições abafadas e gemidos.

- Bem, isto foi divertido. – Puck murmurou, ajudando-me a levantar. – Juro, se nós virmos aquelas duas crianças novamente, vamos ter uma conversinha. Se for roubar de um lagarto de cinquenta pés de altura, cuspidor de fogo e com memória de um elefante, é melhor ter um maldito enigma impressionante, ou esperar até que ele não esteja em casa. E quem diabos pôs erva daninha sobre a porta? Estou me sentindo muito indesejável agora.

Uma lanterna clicou das sombras, cegando-me. Protegendo meus olhos, contei três siluetas no outro lado do holofote. Duas eu reconheci; a minúscula garota com orelhas peludas e o garoto com pele esverdeada que nós encontramos nas Sarças. O último, aquele que segurava a lanterna, era alto e magro, com espesso cabelo negro, um despenteado cavanhaque, e dois chifres estriados curvando-se acima de sua testa. Ele segurava uma cruz na outra mão, erguida diante de sua face como se ele estivesse repelindo um vampiro.

Puck gargalhou. – Odeio ter que dizer isto para você, criança, mas a menos que seja um padre, isto não vai funcionar. Nem vai o sal que você derramou na porta. Não sou pro seu bico, espantalho.

- Malditos faeries. – Cuspiu o garoto-cavanhaque, parecendo pálido. – Como conseguiram entrar aqui? É melhor irem embora agora mesmo, se sabem o que é melhor para vocês. Ela vai arrancar suas tripas e fazer cordas de harpa com elas.

- Bem, há um problema nisto. – Puck continuou com falsa lástima. – Veja, justo fora daquela porta há um réptil muito enfurecido, que está ansioso em nos transformar em espetinho, porque vocês três foram estúpidos o suficiente para roubar de um dragão. – Ele suspirou e balançou sua cabeça de maneira desapontada. – Sabem que dragões nunca esquecem um ladrão, não sabem? Então, o que pegaram?

- Nada que seja da sua conta, faery. – O garoto-cavanhaque lançou de volta. – E talvez eu não fui claro quando disse que não são bem-vindos aqui. – Ele estendeu a mão para o seu bolso e tirou de lá pregos de ferro, segurando-os entre juntas brancas e tremuras. – Talvez um vislumbre de ferro os convença de outra maneira.

Eu dei um passo à frente, lançando a Puck um olhar de advertência antes que ele pudesse se erguer ao desafio. – Fique calmo. – Eu acalmei, erguendo minhas mãos. – Nós não queremos nenhum problema. Só estamos tentando atravessar as Sarças, é tudo.

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- Warren! – Ofegou a garota, olhando fixamente para mim com os olhos arregalados. – É ela!

Todos os olhos cintilaram para mim.

- É você. – Warren soprou. – Você é ela, não é? A mestiça de Oberon. A princesa Summer.

Ironhorse rugiu e se aproximou, fazendo o trio recuar encolhendo-se. Pus a mão em seu peito. – Como me conhecem?

- Ela está procurando por você. Tem metade dos exilados procurando por você...

- Oua, devagar, menino-bode. – Puck ergueu a mão. – Quem é esta extraordinária ela de que você continua a falar?

Warren lançou a ele um olhar que era meio de medo, meio de admiração. – Ela, é claro. A chefe deste lugar. Então... se esta é a filha de Oberon, você deve ser ele, não é? Robin Goodfellow? O Puck? – Puck sorriu, o que fez Warren tragar ruidosamente. Seu pomo de Adão oscilou em sua garganta. – Mas... – Ele olhou para Ironhorse – ela não falou nada sobre ele. Quem é ele?

- Fede. – Ribombou o garoto com pele verde, retorcendo seu lábio para revelar cegantes dentes desiguais. – Cheira como carvão. Como ferro.

As sobrancelhas de Warren ergueram-se. – Oh, droga. Ele é um deles, não é? Um daqueles faeries Iron! Ela não ficará feliz quanto a isto.

- Ele está comigo. – Disse rapidamente, enquanto Ironhorse se erguia. – Ele é seguro, eu prometo a você. E de quem você continua a falar? Quem é esta ela?

- O nome dela é Leanansidhe37. – Warren começou, como se eu fosse uma idiota por não descobrir isto. – Leanansidhe, a Musa Sombria38. A Rainha dos Exilados.

As sobrancelhas de Puck arcaram até seu cabelo.

- Você está brincando. – Ele disse, seu rosto pego entre uma careta e um sorriso desdenhoso. – Então, Leanansidhe imagina a si mesma uma rainha, agora? Oh, Titânia amará isto.

- Quem é Leanansidhe? – Perguntei.

A careta venceu. Ele balançou sua cabeça e virou para mim, seu rosto severo. – É desagradável, Princesa. Uma vez, Leanansidhe foi um dos mais poderosos seres em toda Nevernever. A Musa Sombria, eles a chamavam, porque inspirava muitos grandes artistas, ajudando-os a produzir seus trabalhos mais brilhantes. Deve reconhecer alguns do mortais que ela ajudou... James Dean, Jimi Hendrix, Kurt Cobain.

- De forma alguma.

Puck encolheu os ombros. – Mas, como você deve saber, tal ajuda sempre vem com um preço. Nenhum dos que Leanansidhe inspira vive muito, nunca. Suas vidas são brilhantes, cheias de cor, e muito breves. Algumas vezes, se o artista for particularmente especial, ela o leva de volta para Nevernever para entretê-la pela eternidade. Ou até que ela fique aborrecida. Claro, isto era antes... – Ele parou, dando-me um olhar de soslaio.

- Antes do quê?

37 Do folclere celta, lennán si, Barrow-Lover. É uma bela mulher dos Aos Sí (pessoas do povo das fadas) que tem um amante humano. Os amantes da leannán sídhe, dizem, vivem pouco, mas altamente inspirados. O nome vem das palavras gaélicas para querido, amante ou concubino e o termo para “barrow”, que é um monte de terra ou pedras colocadas sobre um local de enterro. 38 No original: Leanansidhe, the Dark Muse.

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- Titânia a baniu para o reino mortal. – Puck disse rapidamente, como se ele fosse realmente dizer alguma outra coisa. – De acordo com alguns, Leanansidhe estava se tornando muito poderosa, tinha muitos mortais adorando-a, e tinha uma conversa de que ela queria fazer a si mesma uma rainha. Naturalmente, isto fez nossa boa Rainha Summer mais do que um pouco ciumenta, então ela exilou a auto-proclamada Rainha das Musas e selou todos os trods para ela, de forma que Leanansidhe nunca pudesse voltar para Faery. Isto foi há muitos anos atrás, e ninguém a viu ou ouviu falar dela desde então.

- Mas, aparentemente – Puck continuou, olhando para os três adolescentes escutando em arrebatada fascinação. – Leanansidhe tem novos seguidores. Um novo culto mortal pronto a se lançar aos pés dela. – Ele sufocou uma gargalhada. – As sobras devem ser muito magras hoje em dia.

- Ei. – Disse a garota, estreitando seus olhos para ele. – O que isto quer dizer?

- Por que Leanansidhe está procurando por mim? – Perguntei, antes que um desagradável pensamento flutuasse em minha mente. – Você... você não acha que ela quer vingança, pelo o que Titânia fez para ela? – Ótimo. Aquilo era o que eu precisava, outra rainha faery que estava tentando me pegar. Eu devo ter assegurado algum tipo de recorde.

Nós olhamos para Warren, que recuou e ergueu suas mãos. – Ei, cara. Não olhe para mim. Não sei o que ela quer. Só que ela está procurando por você.

- NÓS NÃO PODEMOS IR ATÉ ESTA LEANANSIDHE AGORA. – Ironhorse ressoou, fazendo os adolescentes pularem e o teto chacoalhar. Deus, ele não podia falar discretamente, nem se a sua vida dependesse disto. – NOSSA MISSÃO É URGENTE. DEVEMOS ALCANÇAR A CALIFÓRNIA TÃO LOGO SEJA POSSÍVEL.

- Bem, não vamos para nenhum lugar agora, não com o Fôlegomortal guardando a única saída.

- Venham conosco.

Olhei para cima. Warren tinha falado e estava olhando para mim atentamente. O olhar ansioso em seus olhos me fez desconfortável, como o fez sua súbita mudança de humor. – Venham conosco para Leanansidhe. – Ele urgiu. – Ela pode ajudar. Querem ir para Califórnia? Ela pode levá-los, facilmente...

- Warren. – Disse a garota, agarrando sua manga e o puxando para o lado. – Venha aqui um segundo, sim? Licença um segundo, gente. – Surpreendentemente forte para o tamanho dela, ela o arrastou para um canto. Encolhidos contra a parede, eles sussurravam furiosamente um com o outro, lançando olhares desconfiados para Ironhorse sobre seus ombros.

- O que vamos fazer? – Perguntei. – Devemos esperar até que o dragão deixe de guardar nosso caminho de volta às Sarças? Ou devemos descobrir o que Leanansidhe quer?

- NÃO. – Trovejou Ironhorse, sua voz quicando as paredes. – EU NÃO CONFIO NESTA LEANANSIDHE. É MUITO PERIGOSO.

- Puck?

Ele deu de ombros. – Sob circunstâncias normais, eu concordaria com a torradeira. – Ele disse, ganhando um olhar duro de Ironhorse. – Leanansidhe sempre foi imprevisível, e ela tem poder o suficiente para fazer aquele dragão parecer como um ranzinza Gila monster39. Mas... Eu sempre digo que o inimigo que você conhece é melhor do que o inimigo que você não pode ver.

Aquiesci. – Concordo. Se Leanansidhe está procurando por nós, acho que devemos encontrá-la em nossos próprios termos. De outra maneira, eu só me preocupo com o que ela está mandando atrás de nós.

39 Grande lagarto laranja e preto do sudoeste dos Estados Unidos. Não é perigoso, a menos que molestado.

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- Além disto... – Puck rolou seus olhos. – Acho que temos outro problema.

- Qual é?

- Nosso confiável guia se foi sem se despedir.

Olhei ao redor, mas Grimalkin tinha desaparecido, e não respondeu aos meus chamados sibilados para que ele se mostrasse. As crianças de rua estavam nos observando agora, ansiosas e hesitantes ao mesmo tempo. Suspirei. Não havia como dizer onde Grimalkin estava, ou quando ele retornaria. Realmente, havia só uma opção.

- Então. – Eu dei a eles um sorriso esperançoso. – Quão longe Leanansidhe está?

ACONTECE QUE, nós estávamos na base da mansão dela.

- Então, Leanansidhe os tem para roubar dos dragões? – Perguntei para a garota enquanto caminhávamos pelo corredor obscuramente aceso, tochas tremeluzindo sobre as paredes úmidas de pedra. Fosse o que for que a casa se parecia, a base era enorme. Lembrou-me de um calabouço medieval, completo com portas pesadas, portas levadiças, e gárgulas olhando de esguelha para nós das paredes. Camundongos debandavam sobre o chão, e outras coisas se moviam nas sombras, só que fora de vista.

A garota, Kimi, sorriu para mim. – Leanansidhe tem montes de clientes com gostos muito incomuns. – Ela explicou. Muitos deles são exilados, como ela, que não podem voltar para Nevernever por alguma razão. Ela nos usa... – gesticulou para si mesma e para Nelson – para buscar coisas que ela não pode conseguir por ela mesma, como aquela coisa com o dragão. Aparentemente, um sidhe banido em Nova Iorque está pagando uma fortuna por ovos de dragão verdadeiros.

- Você roubou os ovos dele?

- Só um. – Kimi deu risadinhas diante da minha expressão atordoada. – Então o lagarto estúpido acordou e nós tivemos que reservar este. – Ela deu risadinhas novamente, plainando suas orelhas para baixo. – Não se preocupe, não vamos dizimar a população de dragões. Leanansidhe nos falou para deixar um par para trás.

Puck fez um ruído que pode ter sido apreciação. – E o que vocês, garotos, ganham com isto?

- Quartos e alimentação gratuita. E a reputação que vem com isto. Nós estaríamos nas ruas, do contrário. – Kimi e Nelson trocaram um secreto olhar, mas Warren estava olhando fixo para mim. Ele estava fazendo isto desde que nós saímos para encontrar Leanansidhe, e isto estava me deixando muito desconfortável.

- O pagamento não é ruim, também. – Kimi continuou, alheia ao escrutínio de Warren. – Ao menos, é melhor que a alternativa... ser caçado pelo o que somos, sendo pisados pelos exilados e feéricos que simplesmente acham que o mundo mortal é melhor. Leanansidhe o fez seguro para nós... Você não mexe com os prediletos da rainha. Mesmo as gangues de barretes vermelhos sabem deixar você em paz. Para a maior parte, de qualquer forma.

- Por quê? – Perguntei. – Você são exilados, também, certo? Por que seria diferente para vocês? – Olhei para as orelhas peludas e tufosas dela, para a pele verde-água-de-pântano de Nelson e os chifres de Warren. Não eram humanos, isto é certo. Mas então eu me lembrei de Warren segurando o ferro, seu temeroso malditos faeries, como eles puderam entrar pela porta quanto Grimalkin não pôde. E eu soube o que eles eram antes mesmo que Kimi o dissesse.

- Por que – ela disse alegremente, sacudindo suas orelhas – nós somos mestiços. Sou meio-

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phouka, Nelson, meio-troll, e Warren é parte sátiro. E se há uma coisa que um exilado odeia mais do que o feérico que o baniu, é mestiços como nós.

Eu não tinha pensado nisto antes, apesar fazer sentido. Suspeitei que mestiços como Kimi, Nelson e Warren sofriam muito com isto. Sem a proteção de Oberon, eles tinham sido deixados aos caprichos dos violentos feéricos verdadeiros, que provavelmente faziam a vida muito difícil para eles. Não era surpresa que fizessem um acordo com sua Rainha dos Exilados, em troca de algum grau de proteção. Mesmo se isto significasse roubar ovos de dragões direto de debaixo do dragão.

- Oh, por falar nisto. – Kimi continuou, com um rápido olhar para Ironhorse, retinindo atrás de mim. – Leanansidhe sabe sobre... um... o tipo dele. Eles têm matado montes de exilados ultimamente, e isto está deixando-a louca. Seu “amigo” deveria realmente ser cuidadoso com ela. Não sei como ela reagirá a um feérico Iron em sua sala de estar. Eu a vi ter um acesso por menos.

- Cale a boca, Kimi. – Warren disse abruptamente. Nós tínhamos alcançado o final do corredor, onde uma porta vermelho-brilhante esperava por nós do topo de uma carreira de escadas. – Eu te falei, não é um grande negócio.

Eu franzi o cenho para ele, mas alguma coisa capturou minha atenção. Notas de música flutuavam pelas escadas abaixo, os acordes baixos e ressoantes de um piano ou órgão. A música era sombria e assombrosa, lembrando-me da peça que eu tinha visto há muito tempo atrás, O Fantasma da Ópera. Lembrava de mamãe me arrastando para o teatro, quando a peça chegou a nossa pequena cidade, logo antes que Ethan nascesse. Lembrei-me de pensar que eu teria que sentar lá para três horas de absoluto aborrecimento e tortura, mas do primeiro ressoar de cordas de órgãos, fiquei completamente em transe.

E também me lembrei de mamãe chorando ao longo de muitas das cenas, algo que ela nunca fez, mesmo com os filmes mais tristes. Não pensei em nada disto então, mas parecia um pouco estranho, agora.

Nós avançamos e caminhamos através da porta para dentro de um vestíbulo magnífico, com uma grande escadaria dupla varrendo em direção a um teto abobadado e rimbombante lareira rodeada por sofás de veludo negro. O assoalho de madeira de lei brilhava em vermelho, as paredes eram pintadas em vermelho e preto, e cortinas transparentes cobriam as altas janelas arcadas, próximas aos fundos da sala. Quase todos os cantos vagos nas paredes estavam tomados por pinturas... pinturas à óleo, aquarelas, esboços em preto e branco. A Mona Lisa sorria seu misterioso sorriso na parede mais distante, perto de uma estranha pintura distinta que provavelmente era um Picasso.

A música ecoava através do aposento, cordas sombrias e assombradoras tocadas com tal força que faziam o ar vibrar e meus dentes zunir. Um enorme piano de cauda ficava no canto próximo a lareira, as chamas dançando no reflexo da madeira polida. Debruçado sobre as teclas, uma figura em uma amarrotada camisa branca batia e pontilhava as barras de marfim, os dedos voando.

- Quem...?

- Shh! – Kimi me fez calar com um leve laivo no braço. – Não fale. Ela não gosta disto quando alguém está tocando.

Fiquei em silêncio, estudando o pianista novamente. Cabelo castanho pendia liso e despenteado sobre seus ombros, parecendo como se não tivesse sido lavado há dias. Seus ombros eram largos, apesar de que sua camisa pendia frouxa em uma esguia estrutura óssea que era tão magra que sua espinha pressionava contra sua pele.

O som vibrou com um último acorde vibrante. Enquanto as notas se esvaíam no silêncio descendente sobre o aposento, o homem permaneceu inclinado sobre as teclas. Não podia ver seu rosto, mas achei que seus olhos estivessem fechados, e seus músculos tremiam como se exauridos. Ele parecia estar esperando por alguma coisa. Olhei para os outros, perguntando-me se deveríamos aplaudir.

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Um vagaroso aplauso do topo das escadas. Olhei para cima e vi ninguém mais que Grimalkin, sentado sobre o corrimão com seu rabo ao redor de seus pés, parecendo perfeitamente em casa. Qualquer aborrecimento que eu sentia com seu desaparecimento caiu à vista da companheira dele.

Uma mulher estava na galeria, seu vestido dourado e vermelho ondeando ao seu redor, apesar de que eu estivesse certa de que não havia ninguém lá um segundo atrás. O cabelo ondulado e comprido até a cintura tremeluzia como vertentes de cobre, quase brilhante demais para se olhar, flutuando ao redor de seu rosto como se não pesasse nada. Ela era pálida, alta e magnífica, em cada polegada uma rainha, e senti meu estômago se contrair. Esqueça Arcádia ou Tir Na Nog; estávamos na corte dela agora, jogando pelas suas regras. Perguntei-me se ela esperava que nós nos curvássemos.

- Bravo, Charles. – A voz dela era pura música, feita para dar som à poesia, à toda noção criativa que você já teve. Escutando-a, senti que poderia correr para um palco e fazer as multidões rugirem e gritarem aos meus pés. – Isto foi realmente magnífico. Pode ir agora.

O homem ergueu-se tremulamente, sorrindo como uma criança cujas pinturas a dedo tinham sido elogiadas pela professora. Ele eram mais jovem que o meu padrasto, mas não muito, a insinuação de uma barba ensombrando sua boca e mandíbulas. Quando ele se virou em nossa direção, eu estremeci. Seu rosto e olhos cor de avelã estavam vazios de consciência, tão vazios quanto o céu.

- Pobre bastardo. – Ouvi Puck murmurar. – Ele está aqui já há algum tempo, não está?

O homem piscou para mim, atordoado por um momento, mas então seus olhos se arregalaram. – Você. – Ele murmurou, bamboleando para frente, apontando para mim um dedo. Franzi o cenho. – Conheço você. Não conheço? Não conheço? Quem é você? – Ele franziu o cenho, uma angustiada expressão cruzando seu rosto. – Os ratos sussurram na escuridão. – Ele disse, agarrando seus cabelos. – Eles sussurram. Não posso lembrar seus nomes. Eles me dizem... – Seus olhos estreitaram e arquejou, olhando para mim. Menina de pano, voando ao redor da minha cama. Quem é você? Quem? – Esta última foi um tiro, e ele balançou para frente.

Ironhorse ficou entre nós com um rimbombante rosnado, e o homem saltou para trás, mãos voando para seu rosto. – Não. – Ele sussurrou, encolhendo-se no chão, braços embalando sua cabeça. – Ninguém aqui. Vazio, vazio, vazio. Quem eu sou? Eu não sei. Os ratos me dizem, mas eu esqueço.

- É o bastante. – Leanansidhe flutuou escadas abaixo, seu vestido seguindo atrás dela. Deslizando até o humano, ela o tocou suavemente na cabeça. – Charles, querido, eu tenho convidados agora. – Ela murmurou, enquanto ele olhava para ela acima com olhos lacrimejantes. – Por que não toma um banho, e então poderá tocar para nós no jantar?

Charles fungou. – Menina. – Ele sussurrou, agarrando o cabelo dele. – Em minha cabeça.

- Sim, eu sei, querido. Mas se você não sair, terei que transformá-lo em uma harpa. Vá, agora. Shoo, shoo. – Ela fez pequenos movimentos esvoaçantes com suas mãos, e com um último olhar para mim, o homem saiu a passos largos.

Leanansidhe suspirou e virou para nós, então pareceu notar o trio pela primeira vez. – Ah, aí estão vocês. – Ela sorriu, e suas faces iluminaram-se no brilho da atenção dela. – Conseguiram os ovos, queridos?

Warren pegou a mochila do braço de Nelson e o estendeu. – Nós achamos o ninho, Leanansidhe. Estava exatamente onde disse. Mas o dragão acordou então, e... – Ele abriu o zíper da bolsa, revelando um ovo amarelo-esverdeado do tamanho de uma bola de basquete. – Nós só fomos capazes de pegar um.

- Um? – Leanansidhe franziu o cenho, e sombras caíram sobre o aposento. – Só um? Preciso ao menos de dois, prediletos, ou o acordo está acabado. O antigo Duque de Frostfell disse especificamente um par de ovos. Quantos fazem um par, queridos?

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- D-dois. – Warren gaguejou.

- Bem, então. Diria que ainda tem trabalho a fazer. Vão, agora. Chop-chop. E não voltem sem aqueles ovos!

O trio fugiu sem hesitação, seguindo o humano para fora pela mesma porta. Leanansidhe observou-os irem, então rodopiou para nós com um brilhante sorriso primitivo. – Bem! Aqui estamos finalmente. Quando Grimalkin me falou que estavam vindo, fiquei tão contente. É tão bom finalmente encontrá-la.

Grimalkin desceu as escadas com sua típica indiferença, completamente imperturbável pelos Olhares Mortais vindo de mim e de Puck. Saltando direto para um sofá, ele se sentou e começou a arrumar seu rabo.

- E Puck! – Leanansidhe virou para ele, batendo suas mãos em deleite. – Eu não o tenho visto por uma eternidade, querido. Como está Oberon atualmente? Ainda atormentado por aquele basilisco de esposa?

-Não insulte os basiliscos. – Puck respondeu, sorrindo. Cruzando seus braços, ele olhou ao redor do aposento, movendo-se muito suavemente na minha frente. – Então, Lea, parece que você tem estado ocupada. O que se passa com os malucos e os mestiços? Arquitetando um exército de desajustados?

- Não seja tolo, querido. – Leanansidhe fungou, arrancando uma piteira de um candeeiro. Ela tomou uma tragada e soprou uma nuvem verde-transparente sobre nossas cabeças. Aquilo rodopiou e se retorceu em um dragão fumarento antes de se dissipar no ar. – Meus dias de estratagemas ficaram para trás, agora. Fiz um agradável pequeno reino para mim mesma aqui, e derrubar uma corte é muito tedioso. Entretanto, pediria para não dizer a Titânia que você me encontrou, querido. Se for tagarelar, eu posso ter que arrancar sua língua. – Ela sorriu, examinando uma unha vermelho-sangue, enquanto Puck avançou para mais perto de mim. – Também, Robin querido, não precisa se preocupar em proteger a garota. Não quero o mal dela. Os faery Iron devo desmembrar e enviar seus restos para a Ásia... – Ironhorse endureceu e deu um passo para frente -, mas não tenho intenção de ferir a filha de Oberon. Então relaxe, criança mimada. Não foi por isto que a chamei aqui.

- Ironhorse está comigo. – Disse rapidamente, botando a mão em seu braço antes que ele fizesse alguma coisa estúpida. – Ele não vai ferir nada, eu prometo.

Leanansidhe virou o peso inteiro de seu brilhante olhar safira sobre mim. – Você é muito fofa, sabe disto? Parece muito com o seu pai. Não admira que Titânia não suporte olhar para você. Qual é o seu nome, querida?

- Meghan.

Ela sorriu, perversa e desafiadoramente, avaliando-me. – E o que uma fofura como você vai fazer se eu quiser esta abominação fora da minha casa? É uma amarra muito boa esta que você tem aí, pombinha. Duvido que possa arrancar glamour para acender meu cigarro.

Eu traguei. Isto era um teste. Se eu ia salvar Ironhorse, não podia falhar nele. Fortalecendo a mim mesma, olhei dentro de seus frios olhos azuis, antigos e sem piedade, e suportei seu olhar. – Ironhorse é um dos meus companheiros. – Disse suavemente. – Preciso dele, então não posso deixá-la o machucar. Farei um acordo com você, se é o que isto requer, mas ele fica aqui. Ele não é seu inimigo, e ele não a ferirá ou a ninguém sob sua proteção. Tem minha palavra.

- Eu sei disto, querida. – Leanansidhe continuou a sustentar meu olhar, sorrindo todo o tempo. – Não estou preocupada com o faery Iron me prejudicando. Estou preocupada de não ser capaz de tirar fedor dele do meu tapete. Mas, não importa. – Ela endireitou, libertando-me de seu olhar. – Deu sua palavra, e eu vou cobrar isto de você. Agora, venha querida. Jantar primeiro, então podemos conversar. Oh, por favor fale ao seu favorito iron não tocar nada enquanto estiver aqui. Não o quero dissolvendo o glamour.

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NÓS SEGUIMOS Leanansidhe pelos muitos corredores encarpetados em veludo vermelho e preto, passando por retratos cujos olhos pareciam nos seguir enquanto passávamos. Leanansidhe não parou de falar, uma conversa incessante e sem importância, enquanto ela nos levava através de sua casa, jorrando nomes, lugares e criaturas que eu não reconheci. Mas não pude parar de ouvir o som de sua voz, mesmo se tudo o que ouvia era conversa para boi dormir. Em minha visão periférica, capturei vislumbres de quartos através de portas entreabertas, mergulhados em sombras ou estranhas luzes esvoaçantes. Algumas vezes, achei que os quartos pareciam estranhos, como se houvesse árvores crescendo para fora da porta, ou montes de bosta nadando no ar. Mas a voz de Leanansidhe interrompia minha curiosidade, e eu não podia tirar meus olhos dela, mesmo para um olhar mais de perto.

Entramos em um vasto salão de jantar, onde uma longa mesa tomava a maior parte da parede esquerda, rodeada por cadeiras de vidro e madeira. Candelabros flutuavam por toda a superfície, pairando sobre um banquete que poderia alimentar um exército. Pratos de carne e peixe, frutas frescas e vegetais, minúsculos bolos, doces, garrafas de vinho, e um enorme porco assado com uma maçã em sua boca como prato principal. Exceto pela tremeluzente luz de candelabros, a sala estava negro-azeviche, e eu pude ouvir coisas correndo ao redor, murmurando na escuridão.

Leanansidhe soprou dentro da sala, tracejando fumaça do seu cigarro, e parou na cabeceira da mesa. – Venham, queridos. – Ela chamou, convocando-nos com as costas de sua mãos enluvada. – Parecem famintos. Sentem. Comam. E por favor não sejam tão rudes a ponto de pensar que a comida é feita com glamour ou encantada. Que tipo de anfitriã pensam que sou? – Ela fungou, como se o pensamento realmente a aborrecesse, e nos olhou de dentro das sombras. – Desculpem-me. – Ela pediu, enquanto cautelosamente movia-se pela mesa. – Asseclas? Tenho convidados, e vocês estão me fazendo parecer descortês. Não ficarei satisfeita se minha reputação ficar chamuscada, queridos.

Movimentos nas sombras, murmúrios e conversas baixas, um grupo de homenzinhos entraram na luz. Tive que morder meu lábio para não rir. Eles eram barretes vermelhos, olhos perversos e dentes de tubarão, com seus chapéus manchados do sangue de suas vítimas, mas eles também estavam vestindo combinações de ternos de mordomo com gravatas borboletas rosa. Rabugentos e carrancudos, eles emergiram da escuridão, olhando para todos nós com todo o seu valor. Riam e morram, seus olhos alertavam, mas Puck deu um olhar para eles e começou a rachar. Os barretes vermelhos olharam para ele como se fossem arrancar sua cabeça às mordidas.

Um deles teve um vislumbre de Ironhorse e soltou um chiado penetrante, que fez todos eles pularem para trás. – Ferro! – Ele guinchou, arreganhando suas presas pontiagudas. – É um daqueles fedorentos faeries Iron! Mate-o! Mate-o!

Ironhorse rugiu, e a adaga de Puck cintilou, um sorriso demoníaco estendendo-se por seu rosto diante do pensamento de violência. Os barretes vermelhos avançaram, rosnando e rangendo seus dentes, muito ansiosos. Agarrei uma faca de prata da mesa e pronta a segurei, enquanto os barretes vermelhos investiam. Um deles saltou em direção à mesa, recolhendo suas pernas curtas debaixo dele, para lançar a si mesmo para nós, presas brilhando.

- Isto é o suficiente!

Nós congelamos. Era impossível não o fazer. Mesmo o barrete vermelho sobre a mesa parou, então caíu dentro de uma vasilha de salada de frutas.

Leanansidhe ficou no outro lado da mesa, encarando a todos nós. Seus olhos brilhavam âmbar, seu cabelo açoitando ao redor do rosto dela, estranha e assustadora. Então ela suspirou, soprou seus cabelos para trás e alcançou sua piteira, tomando uma longa tragada. Enquanto ela soprava a fumaça, as coisas voltavam ao normal, incluindo nossa habilidade em nos mover, mas ninguém, nem mesmo todos os barretes vermelhos, tinha algum pensamento agressivo.

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- Bem? – Ela finalmente disse, olhando para os barretes vermelhos como se nada tivesse acontecido. – Pelo que estão esperando, asseclas? Minha cadeira não vai se mover sozinha.

O barrete vermelho maior, um companheiro corpulento com uma espinha de peixe em seu nariz, tremeu e rastejou para frente, puxando a cadeira de Leanansidhe da mesa. Os outros seguiram o companheiro, parecendo que preferiam nos golpear mortalmente com nossos próprios braços, mas puxaram nossas cadeiras sem uma palavra. O que atendia Ironhorse rosnou e arreganhou seus dentes para o faery Iron, então se lançou para longe o mais rápido que pôde.

- Desculpem-me pelos asseclas. – Leanansidhe disse quando estávamos todos sentados. Ela tocou a testa com seus dedos, como se tivesse uma dor de cabeça. – É tão difícil achar bons ajudantes hoje em dia. Vocês não têm nem ideia.

- Achei que os reconheci. – Puck disse, casualmente alcançando uma pêra perto do centro da mesma. – Não é o líder Razor Dan, ou alguma coisa assim? Causou um pouco de rebuliço durante as Guerras dos Duendes, quando eles tentaram vender informações a ambos os lados?

- Negócio desagradável, querido. – Leanansidhe estralou seus dedos duas vezes, e uma fadinha liquefez-se para fora da escuridão, com uma taça de vinho e uma garrafa, subindo em um banquinho para encher seu topo. – Todos sabem que você não engana as tribos de duendes se sabe o que é bom para você. Como cutucar uma vareta em um formigueiro. – Ela sorveu o vinho que a fadinha derramou para ela e suspirou. – Eles vieram até mim por asilo, depois de irritar toda tribo duende em wyldwood, então eu os pus para trabalhar. Esta é a regra aqui, querido. Você fica, você trabalha.

Eu olhei em direção aos barretes vermelhos que se retiraram, sentindo seus olhares cheios de ódio mirando da escuridão. – Mas não está com medo que eles fiquem malucos e comam alguém?

- Não se eles sabem o que é bom para eles, querida. E você não está comendo nada. Coma. – Ela gesticulou para a comida, e subitamente eu descobri o quão faminta estava. Alcancei um prato de minúsculos bolos frios, muito faminta para me importar mais com glamoures e encantamentos. Se eu estava comendo um cogumelo ou um gafanhoto, que fosse. Ignorância é uma benção.

- Enquanto está aqui – Leanansidhe continuou, sorrindo enquanto eu comia -, você deixa todas as vinganças pessoais para trás. Esta é minha outra regra. Posso facilmente recusar refúgio a eles, e então onde ficarão? De volta ao reino mortal, morrendo lentamente ou lutando contras os feéricos Iron que estão gradualmente infestando cada cidade no mundo. Sem ofensas, querido. – Ela adicionou, sorrindo para Ironhorse, implicando exatamente no oposto. Olhando cegamente da mesa, Ironhorse não respondeu. Ele não estava comendo nada, e eu entendi que ou não queria estar em débito com Leanansidhe, ou ele não comia comida comum. Felizmente, Leanansidhe parecia não ter notado. - A maioria escolhe não correr o risco. – Ela prosseguiu, apontando sua piteira em direção onde os barretes vermelhos tinham fugido. – Tome os asseclas, por exemplo. De vez em quando, um botará seu nariz de volta no mundo mortal, conseguirá ser cortado por algum duende mercenário, e virá rastejando de volta para mim. Exilados, mestiços e parias de modo idêntico. Sou a única segurança que eles têm entre Nevernever e o mundo mortal.

- O que pede uma pergunta. – Puck perguntou, quase muito casualmente. – Onde nós estamos, de qualquer forma?

- Ah, criança mimada. – Leanansidhe sorriu para ele, mas era uma coisa ameaçadora, fria e perversa. – Estava me questionando quando você perguntaria isto. E se acha que deveria correr e tagarelar sobre mim a seus mestres, não se incomode. Não tenho feito nada errado. Não quebrei meu exílio. Este é o meu reino, sim, mas Titânia pode relaxar. Ele não está invadindo o dela de nenhuma forma.

- Ok, totalmente fora da questão que eu perguntei. – Puck pausou com uma maçã na mão, erguendo uma sobrancelha. – E acho que estou até mais alarmado agora. Onde estamos, Lea?

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- No Meio40, querido. – Leanansidhe encostou-se, sorvendo seu vinho. – O véu entre Nevernever e o mundo mortal. Seguramente a esta altura você entendeu.

Ambas as sobrancelhas de Puck ergueram-se em direção a seu cabelo. – O Meio? O Meio é cheio de nada, ou então eu assim eu fui levado a acreditar. Aqueles que ficam presos no Meio geralmente ficam loucos em muito pouco tempo.

- Sim, admito, foi difícil trabalhar com isto em princípio. – Leanansidhe ondulou sua mão alegremente. – Mas, chega de falar sobre mim, queridos. Vamos falar sobre vocês. – Ela tomou uma tragada de seu cigarro e soprou um peixe fumarento sobre a mesa. – Por que estavam sapateando aos arredores das Sarças, quando meus ratos de rua os acharam? Pensei que estivessem procurando pelo Cetro das Estações, e vocês certamente não o acharão aqui, queridos. A menos que pensem que Bellatorallix está sentada nele.

Tive um sobressalto. Ironhorse se ergueu, enviando uma taça de uvas ruidosamente ao chão. Fadinhas apareceram de lugar nenhum, correndo para recolher as frutas perdidas enquanto elas rolavam sobre o azulejo. Leanansidhe ergueu uma sobrancelha delgada e tomou outra tragada em seu cigarro, enquanto nos recuperávamos.

- Você soube? – Eu olhei fixamente para ela, enquanto as fadinhas arrumavam a taça sobre mesa novamente e saíam correndo. – Soube sobre o cetro?

- Querida, por favor. –Leanansidhe deu um olhar meio zombador, meio paternalista. – Sei tudo o que acontece entre as cortes. Achei imperdoável estar tão fora do circuito, e é horrivelmente aborrecido aqui, por outro lado. Meus informantes me põe a par de todos os detalhes importantes.

- Espiões, você quer dizer. – Puck disse.

- Que palavra suja, querido. – Leanansidhe fez um som de desaprovação para ele. – E não importa agora. O que importa é o que posso falar para vocês. Sei que o cetro foi roubado debaixo do nariz de Mab, sei que Summer e Winter estão prestes a entrar em uma guerra sangrenta por causa disto, e sei que o cetro não está em Nevernever mas no reino mortal. E... – ela tomou um longo trago de seu cigarro e enviou uma águia planando sobre nossas cabeças -, eu posso ajudá-los a encontrá-lo.

Eu fiquei instantaneamente desconfiada, e poderia dizer que Ironhorse e Puck sentiram o mesmo. – Por quê? – Exigi. – O que está em jogo para você?

Leanansidhe olhou para mim, e uma sombra rastejou dentro da voz dela, fazendo-a sombria e sinistra. – Querida, tenho visto o que tem acontecido no reino mortal. Diferente de Oberon e Mab, que se escondem em suas cortezinhas seguras, conheço a realidade que se pressiona contra nós de cada canto. Os feéricos Iron estão se tornando mais fortes. Estão em todo o lugar: em computadores, rastejando-se para fora das telas de televisão, acumulando-se nas fábricas. Tenho mais exilados sobre meu teto agora, do que tive no século passado. Eles estão apavorados, sem vontade andar no mundo mortal por mais tempo, porque os feéricos Iron os estão partindo ao meio.

Eu estremeci, e Ironhorse tinha se tornado muito quieto. Leanansidhe pausou, e nada podia ser ouvido, exceto o frágil escorregar de coisas invisíveis na escuridão esmagadora.

- Se Summer e Winter entrarem em uma guerra, e os feéricos Iron atacarem, não restará nada. Se os feéricos Iron vencerem, Nevernever se tornará inabitável. Não sei o que isto fará ao Meio, mas estou certa que será igualmente fatal para mim. Então você vê, querida – Leanansidhe disse, tomando um sorvo de seu vinho -, seria vantajoso para mim ajudá-la. E uma vez que eu tenho olhos e ouvidos em qualquer lugar no mundo mortal, seria prudente de sua parte aceitar.

Ironhorse bufou, então falou pela primeira vez. Para o seu crédito, ele tentou manter sua voz baixa, mas mesmo então ela ecoou ao redor da sala. – SUA OFERTA É APRECIADA. – Ele ribombou. – MAS NÓS JÁ SABEMOS ONDE O CETRO ESTÁ LOCALIZADO.

40 No original: The Between.

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- Sabem mesmo? – Leanansidhe lançou a ele um sorriso perverso. – Onde?

- SILICON VALLEY.

- Adorável. Onde em Silicon Valley, criança?

Uma pausa. – EU NÃO...

- E como planejam conseguir o cetro, uma vez que o acharem, querido? Caminhar pela porta da frente?

Ironhorse olhou furioso para ela. – EU ENCONTRAREI UMA MANEIRA.

- Sei. – Leanansidhe deu a ele um olhar desdenhoso. – Bem, deixe-me contar a você o que eu sei sobre Silicon Valley, criança, então a princesa terá uma ideia sobre ao que ela está se opondo. É o terreno de desova dos gremlins. Você sabe, aquele criaturinhas nojentas que se arrastam para fora dos computadores e outras máquinas. Existem literalmente milhares deles por lá, talvez centenas de milhares, como também alguns feéricos Iron muito poderosos, que os transformariam em tripas sangrentas tão logo olhem para vocês. Vá sem nenhum plano, querida, e estará caminhando para uma armadilha mortal. Além disto, você já está muito atrasada. – Leanansidhe estalou seus dedos, segurando seu copo por mais vinho. – Tenho mantido alarmes sobre os movimentos do cetro, desde que ouvi que tinha sido roubado. Ele estava sendo mantido em um grande prédio de escritórios em San Jose, mas meus espiões me contaram que foi movido. Aparentemente, alguém já tentou entrar e roubá-lo de volta, mas não foi igualmente bem sucedido. Agora, o prédio foi limpo, e o cetro se foi.

- Ash. – Sussurrei, olhando para Puck. – Deve ter sido Ash. – Puck olhou em dúvida, então virei para Leanansidhe, um desespero frio se espalhou pelo meu estômago. – O que aconteceu com ele, o que tentou tomar o cetro? Onde está ele agora?

- Não tenho nenhuma ideia, criança. Ash, você disse? Estarei certa em assumir que este é o Ash de Mab, o queridinho da Corte Unseelie?

- Temos que encontrá-lo! – Eu fiquei de pé, fazendo Puck e Ironhorse piscar para mim. – Ele pode estar em problemas. Ele precisa de nossa ajuda. – Virei para Leanansidhe. – Pode conseguir que seus espiões procurem por ele?

- Eu poderia, pombinha. – Leanansidhe girou seu cigarro suavemente. – Mas temo que eu tenha coisas mais importantes a procurar. Estamos atrás do cetro, lembra, querida? O príncipe da Corte Winter, esplêndido que é, terá que esperar.

- Ash está bem, Princesa. – Puck adicionou, dispensando a ideia imediatamente. – Ele pode cuidar de si mesmo.

Eu sentei novamente, ira e preocupação inundando meu cérebro. E se Ash não estivesse bem? E se ele tivesse sido capturado, e eles estivessem torturando ele, como tinham no reino de Machina? E se ele estivesse ferido, jazendo em uma sarjeta em algum lugar, esperando por mim? Fiquei trabalhando tanto em volta de Ash, que mal ouvi o que Puck e Leanansidhe estavam discutindo, e uma pequena parte de mim não se importava.

- O quê está sugerindo, Lea? – Isto veio de Puck.

- Deixem minha gente procurar o vale. Conheço um sluah41 que é simplesmente fabuloso

41 Sluah sidhe ou Sluagh sidhe no folclere irlandês e escocês eram espíritos sem descanso. Algumas vezes eram descritos como pecadores, em geral pessoas cruéis que não eram bem-vindas nem no céu nem no inferno, nem no Outro Mundo, rejeitados também pelas divindades celtas pela própria terra. Seja qual for a crença, são sempre retratados como um elemento perturbador e destrutivo. Eram vistos voando em grupos como bandos de pássaros, vindos do oeste, e eram conhecidos por tentarem entrar na casa de uma pessoa que estivesse morrendo para tentar levar a alma dela consigo. Janelas viradas para o ocidente eram as vezes mantidas fechadas para mantê-los fora.

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em encontrar coisas que não querem ser encontradas. Mandei chamá-lo hoje. No meio-tempo, tenho todos os meus asseclas vasculhando as ruas, mantendo suas cabeças baixas e suas orelhas no chão. Eles retornarão com alguma coisa, eventualmente.

- Eventualmente? – Eu olhei para ela. – O que devemos fazer até lá?

Leanansidhe sorriu e me soprou um coelho de fumaça. – Sugiro que fique confortável, querida.

Não foi uma sugestão.

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CAPÍTULO TREZE

Charles e os Barretes Vermelhos

Eu odeio esperar. Eu odeio ficar sem fazer nada, refrescando minhas canelas até que alguém me dê o sinal verde para me mover. Eu odiei isto enquanto estava na Corte Winter, e certamente não gostava agora, na mansão de Leanansidhe, esperando que completos estranhos me trouxessem uma palavra sobre o cetro desaparecido. Para fazer as coisas piores, não havia relógios em nenhum lugar na mansão e, mais estranho, nenhuma janela para ver o mundo exterior. Também, como a maioria dos faeries, Leanansidhe odiava tecnologia, então claro que isto significava nada de televisão, computadores, telefones, videogames, nada para fazer o tempo passar mais depressa. Nem mesmo um radio, embora os humanos malucos vagando pela mansão frequente e espontaneamente faziam saltar uma música, ou começavam a tocar algum tipo de instrumento, então a casa nunca estava sem barulho. Os poucos exilados feéricos que vi tanto fugiam da minha presença quanto me falavam nervosamente que eu não devia ser perturbada, ordens de Leanansidhe. Sentia-me como um camundongo preso em algum tipo de labirinto bizarro. Adicione minha constante preocupação por Ash, e isto começava a me deixar louca, como a coleção de Leanansidhe de mortais agraciados, mas malucos.

Aparentemente, eu não era a única ficando pirada.

- ISTO É INACEITÁVEL. – Ironhorse anunciou um dia (noite?), enquanto nós vagávamos pela biblioteca, uma sala encarpetada em vermelho com uma lareira de pedra e estantes que se elevavam até o teto. Com uma impressionante coleção de novelas e a maioria das revistas de moda imediatamente disponíveis para mim, consegui me manter entretida durante as longas horas em que nós esperávamos que os espiões de Leanansidhe retornassem com algo. Hoje, eu estava curvada sobre o sofá com as séries The Dark Tower42 de King, mas ficou difícil me concentrar com um inquieto e impaciente faery Iron na mesma sala. Puck tinha desaparecido mais cedo, provavelmente atormentando o pessoal ou entrando em algum tipo de confusão, e Grimalkin estava com Leanansidhe, trocando favores e fofocando, o que me deixou sozinha com Ironhorse, quem estava me dando nos nervos. Ele nunca ficava quieto. Mesmo em um corpo humano, ele agia como um cavalo de corrida volúvel, trotando pela sala e balançando sua cabeça de forma que suas tranças chicoteavam contra seus ombros. Notei que mesmo usando botas, ele ainda deixava marcas chamuscadas em forma de cascos no tapete, antes que o glamour da mansão pudesse suavizá-las novamente.

- PRINCESA. – Ele disse, rodeando o sofá para ajoelhar-se em frente a mim. – NÓS DEVEMOS AGIR LOGO. O CETRO ESTÁ FICANDO MAIS E MAIS LONGE, ENQUANTO NÓS SENTAMOS AQUI E FAZEMOS NADA. COMO PODEMOS CONFIAR NESTA LEANANSIDHE? E SE ELA ESTÁ NOS MANTENDO AQUI PORQUE ELA QUER O CETRO PARA SI MESMA...?

42 A Torre Negra (no original The Dark Tower) é uma série dividida em sete volumes escrita por Stephen King. A série é inspirada no universo imaginário de J.R.R. Tolkien, no poema épico do século XIX "Childe Roland à Torre Negra Chegou", escrito por Robert Browning e repleta de referências à cultura pop, às Lendas Arturianas e ao faroeste. A Torre Negra mistura ficção científica, fantasia e terror numa narrativa que forma um verdadeiro mosaico da cultura popular contemporânea.

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- Shh! Ironhorse, fique quieto! – Eu sibilei, e ele imediatamente ficou quieto, olhando tão contrito quanto seu rosto sem expressão permitia. – Você não pode dizer estas coisas em voz alta. Ela poderia ouvi-lo, ou seus espiões poderiam nos denunciar. Estou muito certa que ela os tem observando cada movimento nosso. – Um rápido olhar ao redor da biblioteca não revelou nada, mas podia ainda sentir olhos em mim, espreitando sem serem vistos de rachaduras e sombras. – Ela já é assim com todos os feéricos Iron. Não dê mais motivos.

- MINHAS DECULPAS, PRINCESA. – Ironhorse balançou sua cabeça. – EU NÃO POSSO TOLERAR ESTA ESPERA. SINTO COMO SE EU DEVESSE ESTAR FAZENDO ALGUMA COISA, MAS EU SOU INÚTIL PARA VOCÊ AQUI.

- Sei como se sente. – Falei para ele, colocando a mão sobre seu volumoso braço. Sua pele era quente ao toque, e os tendões abaixo era sólidos como aço. – Eu quero sair daqui, também. Mas temos que ser pacientes. Puck e Grim estão lá fora... eles nos deixarão saber se qualquer coisa apareça ou se tivermos que partir.

Ele pareceu infeliz, mas aquiesceu. Suspirei em alívio e esperei que os espiões de Leanansidhe achassem alguma coisa logo, antes que Ironhorse começasse a derrubar as paredes.

A porta abriu de um golpe, e nós dois pulamos, mas era só um humano, o mal-vestido tocador de piano que tínhamos visto quando chegamos à mansão. Ele andou a passo lento para dentro da sala, olhos vazios vasculhando o chão, até que focaram em mim. Com um sorriso vazio, ele tropeçou para frente, mas parou quando viu o grande faery Iron ajoelhado diante de mim.

Ironhorse ergueu-se com um rugido, mas eu esmaguei seu braço, estremecendo quando o bíceps duro como rocha machucou minhas juntas. – Está tudo bem. – Eu disse a ele quando me deu um olhar confuso. – Não acho que vá me machucar. Ele parece perfeitamente inofensivo.

Ironhorse deu ao humano um olhar desconfiado e bufou. – SE VOCÊ PRECISAR DE MIM...

- Eu gritarei.

Ele aquiesceu, lançou ao homem um último olhar sombrio, e recuou para o outro lado da sala para nos observar.

Com Ironhorse à distância, o homem pareceu relaxar. Aproximou-se lentamente do sofá e empoleirou-se na borda, olhando para mim curiosamente. Eu sorri para ele por sobre o meu livro. Ele parecia muito mais calmo agora, não tão maluco. Seus olhos estavam claros, apesar de que o jeito que ele olhava para mim, sem piscar, estava fazendo-me um pouco desconfortável.

- Oi. – Eu cumprimentei, contorcendo-me um pouco debaixo daquele implacável olhar. – Você é Charles, não é? Ouvi-o tocar mais cedo. Você é realmente bom.

Ele me deu um confuso franzir de cenho, inclinando sua cabeça. – Você me ouviu... tocar? – Ele murmurou, sua voz surpreendentemente clara e profunda. – Eu não... me lembro disto.

Aquiesci. – No vestíbulo. Quando nós chegamos. Você estava tocando para Leanansidhe e nós ouvimos o final.

- Eu não me lembro. – Ele disse novamente, coçando sua cabeça. – Não me lembro de um monte de coisas. – Piscou e olhou para mim, subitamente contemplativo. – Mas... Eu me lembro de você. Não é estranho?

Eu olhei para Ironhorse, rondando o canto e fingindo não nos escutar. – Há quanto tempo está aqui, Charles?

Ele franziu o cenho, mastigando sua testa. Seu rosto, apesar de marcado e gasto, estava

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curiosamente com ar infantil. – Eu... Eu sempre estive aqui.

- Eles não podem se lembrar de nada. – Grimalkin pipocou dentro da existência sobre as costas do sofá, ondulando seu rabo. Eu me sobressaltei e derrubei meu livro, mas Charles simplesmente olhou para o gato, como se ele tivesse visto coisas mais estranhas. – Ele está aqui a tempo demais. – Grimalkin continuou, sentou-se e curvou seu rabo ao redor de suas pernas. – Isto é o que estar em Faery faz a mortais. Este aqui se esqueceu de tudo sobre sua vida antes. O mesmo com todos os outros mortais vagando por este lugar.

- Oi, bichano. – Murmurou Charles, estendendo a mão em direção a Grimalkin. Grimalkin eriçou-se e se esquivou para o outro lado do sofá.

- Há quantos deles? – Perguntei.

- Humanos? – Grimalkin lambeu uma pata, ainda mantendo um olho cuidadoso sobre Charles. – Não muitos. Uma dúzia ou mais, eu acho. Todos grandes artistas... poetas ou pintores ou outra coisa sem sentido. – Ele fungou e esfregou a pata sobre seu rosto. – É o que mantém este lugar vivo, toda esta energia criativa e glamour. Nem mesmo os barretes vermelhos encostarão um dedo sobre eles.

- Como ela pode os manter aqui? – Perguntei, mas Grimalkin bocejou e se ajeitou sobre as costas do sofá, enterrando seu nariz em seu rabo e fechando seus olhos. Aparentemente, ele tinha parado de responder a perguntas. Eu poderia cutucá-lo, mas ele simplesmente daria um golpe ou desapareceria.

- Aqui estão vocês, queridos. – Leanansidhe entrando rapidamente na sala, arrastando um transparente vestido negro e um xale atrás dela. – Estou tão contente que os encontrei antes de sair. Charles, querido, eu preciso falar com meus convidados agora. Shoo, shoo. – Ela oscilou suas mãos, e com um último olhar para mim, Charles deslizou para fora do sofá e saiu pela porta afora.

- Você está saindo? – Olhei para o seu vestido e bolsa. – Por quê?

- Você viu Puck, querida? – Leanansidhe olhou ao redor da biblioteca, ignorando minha pergunta. – Nós precisamos ter uma conversinha. Cook anda se perguntando por que certos itens do jantar continuam desaparecendo, a governanta está misteriosamente apaixonada por um cabide, e meu mordomo tem caçado camundongos ao redor do vestíbulo toda manhã. – Ela suspirou e beliscou a ponte de seu nariz, fechando seus olhos. – De qualquer forma, querida. Se vir Puck, seja boazinha e fale para ele reverter o glamour sobre a minha pobre governanta, e por favor pare de roubar bolos do forno antes que Cook tenha uma fusão. Estremeço só de pensar no que vou encontrar quando retornar, mas simplesmente eu não posso ficar.

- Aonde está indo?

- Eu? Vou embora para Nashville, querida. Algum jovem compositor brilhante está precisando da minha inspiração. É horrível estar tão bloqueado, mas não se preocupe. Logo, todos estarão apaixonados pelas suas múuuuuusicas. – Ela cantou a última palavra, e eu mordi meu lábio para matar a urgência de dançar. Leanansidhe continuou sem notar. – Também preciso retribuir uma visita de uma bruxa noturna43, ver se ela tem qualquer informação para nós. Estarei de volta em um dia ou dois, no tempo humano. Ciao, querida.

Ela abanou seus dedos para mim e desapareceu em um redemoinho de brilho.

Pisquei e lutei contra a urgência de espirrar.

- O show acabou. – Puck murmurou, aparecendo de detrás de uma estante, como se ele estivesse esperando que ela saísse. Ele cruzou a sala para se empoleirar no braço do sofá, rolando seus olhos. – Ela poderia sair sem todo o faiscamento. Mas então, Lea sempre soube como fazer uma partida.

43 No original: night hag.

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- MAS ELA SE FOI. – Ironhorse precipitou-se, olhando ao redor, como se ele tivesse medo que Leanansidhe realmente estivesse se escondendo atrás de uma das cadeiras da sala, escutando-o. – ELA SE FOI, E NÓS PODEMOS ENCONTRAR UMA SAÍDA DAQUI.

- E fazer o que, exatamente? – Grimalkin ergueu sua cabeça e deu a ele um olhar carrancudo. – Nós ainda não sabemos onde o cetro está. Ficaríamos apenas anunciando nossa presença ao inimigo e diminuindo nossas chances de encontrá-lo.

- Boladepêlo está certo, infelizmente. – Puck suspirou. – Lea não é a mais fácil feérica com quem se fazer um acordo, mas é fiel à sua palavra, e tem a melhor chance de encontrar o cetro. Nós devemos ficar até realmente sabermos onde ele está.

- ENTÃO. – Ironhorse cruzou seus grandes braços, seus olhos latentes em cólera e fúria. – ESTE É O PLANO DO GRANDE ROBIN GOODFELLOW. SENTARMOS AQUI E NÃO FAZER NADA.

- E qual é o seu plano brilhante, Enferrujado? Sair trotando pela cidade e mostrar nossos narizes em cada grande corporação até que o cetro caia em nossas mãos?

- PRINCESA. – Ironhorse virou para mim. – ISTO É TOLICE. POR QUE ESPERAR MAIS AQUI? NÃO QUER ENCONTRAR O CETRO? NÃO QUER ENCONTRAR O PRÍNCIPE ASH...

- Pare bem aí. – Minha voz caiu algumas escalas, e talvez Ironhorse escutou o alerta nela, porque rapidamente calou-se. Fiquei de pé, cerrando meus punhos. – Não ouse trazer Ash para dentro disto. – Sibilei, fazendo-o dar um passo para trás. – Sim, eu quero encontrá-lo... ele está em minha mente todo santo dia. Mas não posso, porque temos que encontrar o cetro primeiro. E mesmo se o cetro não fosse a questão, ainda não poderia fazer nada sobre Ash porque ele não quer ser encontrado. Não por mim. Ele deixou isto perfeitamente claro da última vez que o vi. – Minha garganta começou a se fechar, e eu tomei um fôlego trêmulo para lutar contra isto. – Então, a resposta para a sua pergunta é, sim, eu quero encontrar Ash. Mas não posso. Porque o maldito cetro é mais importante. E não vou fazer besteira só porque você não pode sentar quieto por dois malditos minutos. – Lágrimas brotaram, e eu pisquei raivosamente, consciente que todos os três estavam olhando para mim como se minha cabeça estivesse em chamas. Não poderia dizer o que Ironhorse estava pensando por trás daquela máscara sem expressão, mas Grimalkin parecia aborrecido, e o rosto de Puck estava balançado entre o ciúme e a pena.

O que me irritou ainda mais.

- Meghan – Puck começou, mas eu girei e tempestuosamente sai, antes que eu realmente começasse a berrar. Ele chamou por mim, mas eu o ignorei, jurando que se ele me agarrasse ou ficasse no meu caminho, iria ouvir umas poucas e boas.

- Deixe-a ir. – Ouvi Grimalkin dizer, enquanto eu abria de um golpe a porta. – Ela não te escutaria agora, Goodfellow. Quer somente a ele.

A porta virou atrás de mim, e eu entrei como um furacão pelo corredor abaixo, lutando contra as lágrimas.

Isto não foi justo. Eu estava farta de ser responsável, farta de tomar decisões difíceis porque era a coisa certa a se fazer. Não queria nada mais do que achar Ash e implorar que ele reconsiderasse. Poderíamos ficar juntos; poderíamos achar uma maneira de fazer isto funcionar se tentássemos duro o bastante, fodam-se as consequências. E o cetro.

Os corredores continuavam se estendendo, cada um parecido com o último: estreito, escuro e vermelho. Não sabia aonde estava indo, e não me importava realmente. Só queria fugir de Puck e de Ironhorse, ficar sozinha com meus desejos egoístas por algum tempo. Estátuas, pinturas e instrumentos musicais delineavam os corredores; alguns deles vibraram suavemente enquanto eu passava, tremulações fracas de música pendendo no ar.

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Finalmente, eu afundei ao lado de uma harpa, ignorando um piskie44 que me observava do outro lado do corredor, e enterrei meu rosto em minhas mãos.

Ash. Sinto sua falta.

Meus olhos arderam. Eu os golpeei raivosamente, determinada a não chorar. A harpa zumbiu em minha orelha, soando estranha e complacente. Ociosamente, eu estendi meus dedos através das cordas, e ela liberou uma lúgubre nota tiritante que ecoou pelo corredor.

Outro acorde respondeu, e outro. Ergui minha cabeça e escutei, enquanto os baixos tons suaves de música de piano flutuavam dentro do corredor. A música era sombria, assustadora e estranhamente familiar. Esfregando meus olhos, eu me ergui e a segui pelos corredores contorcidos, passando por instrumentos que zumbiam e acrescentavam suas vozes à melodia.

A música me levou para um par de portas vermelho-escuras com trincos dourados. Além da madeira, parecia soar uma sinfonia em pleno andamento. Cautelosamente, abri as portas empurrando-as e caminhei para dentro de um largo quarto circular.

Ondas de música fluíram sobre mim. O quarto estava repleto de instrumentos: harpas e violoncelos e violinos, juntamente com alguns violões e até um ukelele45. No meio do quarto, Charles sentava-se curvado sobre as teclas de um piano de meia-calda, olhos fechados enquanto seus dedos voavam sobre o instrumento. Ao longo das paredes, outros instrumentos tocavam, seguiam e emprestavam suas notas à melodia, transformando a cacofonia em algo puro e maravilhoso. A música era algo vivo, rodopiando ao redor do quarto, sombria, misteriosa e assustadora, trazendo novas lágrimas aos meus olhos. Afundei em um sofá de veludo vermelho e cedi às minhas emoções turbulentas.

Eu conheço esta canção.

Mas por mais que tentasse, não podia me lembrar de onde. A memória me tencionou, mantendo-me simplesmente fora de alcance, um buraco aberto onde a imagem deveria estar. Mas a melodia, misteriosa e devastadoramente familiar, puxou minhas entranhas, enchendo-me com tristeza e uma percepção escancarada de perda.

Com lágrimas fluindo livremente por minha pele, assisti os magros ombros de Charles erguerem-se e caírem com os acordes, sua cabeça tão baixa que quase tocava as teclas. Não podia ter certeza, mas achei que suas bochechas estavam úmidas, também.

Quando a última nota morreu, nenhum de nós se moveu por muitos bateres de coração. Charles sentado ali, seus dedos repousando nas últimas teclas, respirando dificultosamente. Minha mente ainda estava girando em círculos, tentando se lembrar da melodia. Mas quanto mais sentasse ali, tentando chamá-la de volta, mais longe ela deslizava, desaparecendo dentro das paredes e dos tapetes, até que finalmente só os instrumentos a lembrassem.

Charles finalmente empurrou o assento para trás e ergueu-se, e eu me ergui com ele, sentindo-me fracamente culpada por escutar.

44 Pixies (também Pixy, Pixi, Pizkie, Piskies e Pigsies como às vezes são conhecidos na Cornualha) são criaturas míticas do folclore, considerando particularmente áreas ao redor de Devon e Cornwall, o que sugere alguma origem celta à crença e ao nome. Eles são geralmente representados com orelhas pontudas, e muitas vezes usando uma roupa verde e chapéu pontudo. Às vezes, seus olhos são descritos como sendo apontados para cima às extremidades das têmporas. Estes, no entanto, são as convenções Era Vitoriana e não fazem parte da velha mitologia Pixies são diversamente descritos no folclore e ficção. Dos Pixies diz-se serem invulgarmente belos, embora existam alguns chamados pixies que têm aparências distorcidas e estranhas. Diz-se que um pixie tem algumas características de cabra. Outro é dito ser alegre no caráter. O pixie humilde é uma criatura muito mal compreendida. Muitas vezes confundidos com fadas, duendes e outras criaturas das fadas, são na verdade bem diferentes. Muito dessa confusão é culpa da Disney, que usa os termos de fadas e duende alternadamente. Além do o tipo de pixie, a maioria dos Pixies pode ser descrito como angular, por vezes indiscernível do sexo masculino ou feminino. Faces em forma de coração ou angular, linhas fortes e constituição atarracada especialmente nos tipos de terra ou uma árvore. Delgado e mais efêmero no tipo de ar e água.

45 Ukelele: Instrumento havaiano semelhante ao violão.

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- Isto foi lindo. – Eu disse enquanto ele se virava. Ele piscou, obviamente surpreso de me ver lá, mas não se sobressaltou ou pulou. – Qual era o nome da música?

A pergunta pareceu confundi-lo. Ele franziu o cenho e coçou sua cabeça, enrugando sua testa como se tentando me entender. Então uma expressão pesarosa cruzou seu rosto, e ele encolheu os ombros. – Eu não me lembro.

Senti uma pontada de desapontamento. – Oh.

- Mas... – Ele parou, correndo seus dedos ao longo das teclas de marfim, um distante olhar em seus olhos. – Parece que me lembro que ela era a minha favorita. Há muito tempo atrás, eu acho. – Ele piscou, e seus olhos se focalizaram em mim de novo. – Sabe como é chamada?

Eu balancei minha cabeça.

- Oh. Isto é muito ruim. – Ele suspirou, repuxando um pouco os lábios em desapontamento. – Os ratos disseram que você deveria lembrar.

Ok, agora era hora de sair. Mas antes que eu pudesse fazer minha escapada, a porta se abriu com um rangido, e Warren entrou no quarto.

- Oh, ei, Meghan. – Ele lambeu seus lábios, olhos lançando-se ao redor de um modo nervoso. A mão estava dobrada em sua jaqueta, escondendo-a de vista. – Eu... um... estou procurando por Puck. Ele está aqui?

Alguma coisa nele me repeliu. Movi-me desconfortavelmente e cruzei meus braços. – Não. Acho que ele está na biblioteca com Ironhorse.

- Bom. – Ele entrou mais, puxando sua mão para fora de sua jaqueta. As luzes cintilaram ao longo da barra negra de uma arma enquanto ele erguia o bocal e o apontava para mim. Fiquei rígida com o choque, e Warren olhou por sobre seus ombros. – Ok – ele chamou -, a barra está limpa.

A porta se abriu com um oscilo, e meia dúzia de barretes vermelhos pularam para dentro do quarto atrás dele. Aquele com uma espinha de peixe no nariz, Razor Dan, caminhou para frente e me olhou de soslaio, com uma boca cheia de dentes pontiagudos.

- Tem certeza que é esta, mestiço?

Warren sorriu afetadamente. – Estou certo. – Ele respondeu, nunca tirando a arma ou seus olhos de cima de mim. – O Rei Iron nos recompensará graciosamente por isto, tem minha palavra.

- Bastardo. – Eu sibilei para Warren, fazendo os barretes vermelhos rirem em silêncio. – Traidor. Por que está fazendo isto? Leanansidhe dá tudo a você.

- Oh, vamos lá. – Warren zombou e balançou a cabeça. – Você age como se fosse um choque total que eu queira algo melhor do que isto. – Ele gesticulou ao redor do vestíbulo com sua mão livre. – Ser um assecla no refúgio culto e triste de Leanansidhe não tem exatamente tornado minha vida com objetivo, Princesa. Então estou um pouco amargo, é. Mas o Rei Iron está oferecendo aos mestiços e exilados parte de Nevernever e uma chance de chutar as bundas puros-sangues de todos os filhos da mãe que pisaram em nós, se simplesmente fizermos um minúsculo favor a ele e encontrá-la. E você foi legal o suficiente para cair no meu colo.

- Nunca conseguirá fugir. – Falei para ele desesperadamente. – Puck e Ironhorse virão atrás de mim. E Leanansidhe...

- À altura em que Leanansidhe voltar, teremos partido há muito tempo. – Warren interrompeu. – E o resto da horda de Dan está cuidando de Goodfellow e o monstro de ferro, então eles estão um pouco ocupados no momento. Temo que ninguém esteja vindo em seu resgate, Princesa.

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- Warren. – Explodiu Razor Dan com um olhar impaciente. – Não temos tempo para nos regozijar, seu idiota. Atire no maluco e vamos sair daqui, antes que Leanansidhe volte.

Meu estômago apertou. Warren rolou seus olhos, oscilando o cano da arma para Charles. Charles arfou, parecendo compreender o que estava acontecendo, enquanto Warren dava a ele um encurvado olhar de soslaio.

- Desculpe, Charles. – Ele murmurou, e a arma encheu minha vista, fria, negra e feita de aço. Vi a abertura do cano como o anel de Edgebriar, e senti um zumbido abaixo de minha pele. – Não é nada pessoal. Simplesmente você ficou no caminho.

Mais apertado, eu pensei para o cano da pistola, justo quando Warren puxava o gatilho.

Um rugido envolveu o ar quando a arma explodia na mão de Warren, enviando o meio-sátiro cambaleando para trás. Gritando, ele deixou cair os restos destroçados da arma e apertou sua mão em seu peito, enquanto o cheiro de fumaça e carne queimada enchia o quarto.

Os barretes vermelhos olharam arregalados para Warren, enquanto ele caía sobre os joelhos, gemendo e tremendo sua mão queimada. – Pelo que estão esperando? – Ele gritou para eles, sua voz meio gritada e meio soluçada. – Matem o maluco e peguem a garota!

O barrete vermelho mais próximo de mim rosnou e investiu. Eu tropecei para trás, mas Charles subitamente parou entre nós. Antes que o barrete vermelho pudesse se esquivar, ele agarrou o violoncelo da parede e o esmagou sobre a cabeça do outro. O instrumento soltou um guincho, como se em dor, e o barrete vermelho desabou sobre o chão.

Razor Dan suspirou.

- Tudo bem, rapazes. – Ele rosnou, enquanto eu agarrava a mão de Charles e o puxava para trás do piano. – Todos juntos agora. Peguem-nos!

- PRINCESA!

Atrás deles, a porta se abriu em um estouro com um rugido furioso, e dois barretes vermelhos foram arremessados através do ar, pousando de rosto na parede. A corja girou, seus olhos se arregalando, enquanto Ironhorse embarrilava para eles, ondulando seus enormes punhos e berrando a plenos pulmões. Muitos dos barretes vermelhos saíram voando e o resto o enxameou com gritos sedentos de sangue, mordendo-o em seus braços e pernas. Eles caíram, tremendo em dor, dentes quebrados, bocas escurecidas e em carne viva. Ironhorse continuou a lançá-los longe como se tivesse ficado furioso.

- Ei, Princesa. – Puck apareceu ao meu lado, sorrindo de orelha a orelha. – Grimalkin disse que você estava tendo um problema com barretes vermelhos. Estamos aqui par ajudar, ainda que eu tenha que dizer que o Enferrujado está indo bem sozinho. – Ele mergulhou, enquanto um barrete vermelho voava acima de sua cabeça, pousando com ruidosamente contra a parede. – Terei que me lembrar de mantê-lo por perto. Ele seria muito divertido nas festas, não acha?

O barrete vermelho que Ironhorse jogou contra a parede cambaleou em seus pés, parecendo atordoado. Vendo-nos, ele arreganhou uma boca cheia de dentes quebrados e se tencionou para atacar. Puck sorriu e puxou sua adaga, mas houve uma explosão de luz entre eles, e uma voz ressoante encheu o corredor.

- Congelem todos!

Nós congelamos.

- Bem. – Leanansidhe disse, caminhando a passos largos sobre mim e Puck. – Parece que este jogo foi um sucesso vibrante. Apesar de que, devo dizer, estava esperando ser surpreendida. Torna-se meio chato quando você está certa sobre tudo.

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- L-Leanansidhe – Razor Dan gaguejou, todo o sangue drenado de seu rosto, enquanto ela o presenteava com seu sorriso mais amedrontador. – C-como...? Você deveria estar em Nashville.

- Dan, querido. – Leanansidhe balançou sua cabeça e fez um barulho de desaprovação. – Você realmente pensou que eu estava cega paro que estava acontecendo? Em minha própria casa? Conheço os rumores circulando nas ruas, tolo. Sei que o Rei Iron tem oferecido recompensas pela garota. Tinha o pressentimento que havia um traidor na minha casa, um assim chamado agente do Rei Iron. Que forma melhor de encorajá-lo a se revelar do que deixá-lo sozinho com a princesa e esperar que ele fizesse seu movimento? Seu tipo é tão previsível, querido.

- Nós... – Dan olhou ao redor, para sua gente, claramente procurando por alguém mais a quem culpar. – Não foi nossa ideia, Leanansidhe.

- Oh, eu sei, querido. Vocês são muito lentos para organizar algo como isto. É por isto que eu não vou puni-los.

- Verdade? – Dan relaxou um pouco.

- Verdade? – Eu me surpreendi completamente, olhando para ela. – Mas eles me atacaram! E iam matar Charles! Não vai fazer nada sobre isto?

- Eles estavam somente seguindo seus instintos básicos, criança. – Leanansidhe sorriu para mim. – Não esperava nada menos deles. O que eu realmente quero é o mentor. Por que não fica mais um pouco... Warren.

Nós todos viramos para onde Warren estava tentando esgueirar-se para o corredor sem ser visto. Ele congelou, estremecendo ao som se seu nome, e deu a Leanansidhe um sorriso débil.

- Leanansidhe, eu... eu posso explicar.

- Oh, estou certa que pode, querido. – A voz de Leanansidhe fez meu estômago contorcer-se. – E você vai. Nós vamos ter uma conversinha, e vai me contar tudo o que sabe sobre o Rei Iron e o cetro. Você vai cantar, querido. Cantar como nunca cantou antes, eu prometo.

- Vamos. – Puck me falou, pegando meu cotovelo. – Não quer escutar isto, Princesa, confie em mim. Lea nos dará a informação quando ela a tiver.

- Charles. – Eu disse, e ele virou de Leanansidhe para mim, seus olhos sem expressão e vazios mais uma vez. – Vamos. Vamos sair daqui.

- Moça bonita está faiscando. – Charles murmurou. Eu suspirei.

- É. – Disse tristemente, pegando sua mão. – Ela está.

Com Ironhorse olhando ameaçadoramente e Puck nos liderando no caminho, fugimos do quarto musical e da presença de Leanansidhe, deixando Warren com seu destino.

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CAPÍTULO QUATORZE

Tratamento Real

- Uma corporação de software? – Puck repetiu, a testa vincando. – Realmente. É onde eles tem estado escondendo-o todo este tempo?

- Aparentemente, querido. – Leanansidhe recostou-se em sua cadeira, cruzando suas longas pernas. – Lembre-se, os feéricos Iron não são como nós. Eles não vão ficar zanzando por parques e museus, cantando para as flores. Gostam de lugares de alta tecnologia que atraem os frios mortais calculistas com os quais nos importamos tão pouco.

Troquei um olhar com Puck. Nós tínhamos estado falando sobre aquele estranho glamour frio que eu tinha usado na arma, antes de Leanansidhe chegar. Apesar de estarmos apenas conjeturando, ambos chegamos à conclusão de que tinha sido realmente glamour iron o que eu usei em Warren, e que Leanansidhe, com seu óbvio ódio e desprezo pelos feéricos Iron, definitivamente não deveria saber sobre isto ainda.

Desejei que eu soubesse mais sobre isto. Tinha a sensação que isto nunca tinha acontecido no mundo faery antes, que eu era a primeira, e não havia nenhum expert com quem falar. Por que eu tinha glamour Iron? Por que podia usá-lo algumas vezes e outras não? Perguntas demais, e nenhuma resposta. Suspirei e decidi focar no problema que tinha em mãos, no lugar daquele que eu não tinha esperanças de desvendar ainda.

- Qual é o nome deste lugar? – Perguntei a Leanansidhe, não pontuando que eu era uma daqueles frios mortais calculistas que gostavam de bugigangas, computadores e alta tecnologia. Ainda sentia falta do meu pobre iPod afogado, vítima da travessia de um rio, na primeira vez que eu fui a Faery, e estava sendo o maior período de tempo que eu passado sem televisão. Se eu chegasse a voltar a ter uma vida normal, teria muito em que me atualizar.

Leanansidhe bateu seus dedos contra o apoio de braço, puxando seus lábios absorta. – Oh, como eles o chamam? Todos eles soam igual para mim, querida. – Ela estalou os dedos. – SciCorp, acho que era. Sim, no centro de San Jose. O coração de Silicon Valley.

- Lugar grande. – Murmurei. – Não acho que possamos simplesmente entrar caminhando. Há com certeza câmeras, seguranças e tudo mais.

- Sim, um assalto frontal está condenado a falhar. – Leanansidhe concordou, olhando para Ironhorse, que estava no canto com seus braços cruzados. – E lembrem-se, não é só com mortais que devem se preocupar. Há com certeza feéricos Iron também. Vão ter que ser... mais esquivos.

No canto, Ironhorse ergueu sua cabeça. – QUE TAL UMA DISTRAÇÃO? – Ele ofereceu. – EU PODERIA MANTER A ATENÇÃO DELES EM MIM, ENQUANTO ALGUÉM ENTRA PELOS

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FUNDOS.

- Ou eu poderia tornar Meghan invisível com glamour. – Puck acrescentou.

Grimalkin bocejou de onde ele jazia no sofá. – Será arriscado manter um glamour com todo o ferro e aço dentro. – Ele disse, piscando sonolentamente. – E nós todos sabemos o quão horrivelmente incompetente a humana é quando se trata de glamour, mesmo sem o glamour dela selado.

Joguei um travesseiro nele. Ele me deu um olhar desdém e voltou a dormir.

- Sabemos alguma coisa sobre o prédio? – Perguntei a Leanansidhe. – Diagramas, segurança, este tipo de coisa? – Subitamente me senti uma espião em um filme de ação. A imagem de mim pendendo sobre uma teia de fios de arame, no estilo Missão Impossível, saltou para a minha mente, e eu sufoquei uma risadinha nervosa.

- Desafortunadamente, Warren não tinha muito a dizer sobre o prédio, apesar de que ele realmente queria no final, pobre garoto. – Leanansidhe sorriu, como se revelando uma lembrança carinhosa, e eu estremeci. – Felizmente, meus espiões descobriram tudo o que precisamos saber. Eles dizem que estão mantendo o cetro no andar vinte e nove ponto cinco.

- Vinte e nove ponto cinco? – Eu franzi o cenho. – Como isto funciona?

- Não tenho nenhuma ideia, querida. É só isto o que eles disseram. No entanto... – e ela apresentou uma folha de papel com um floreio – foram capazes de voltar com isto. Aparentemente, é algum tipo de código, usado para se entrar no covil dos faeries Iron. Não puderam resolvê-lo, mas talvez vocês tenham melhor sorte. Temo que eu não tenha cabeça para números, de qualquer modo.

Ela entregou o papel para mim. Puck e Ironhorse se abarrotaram ao redor, e olhamos para ele por vários instantes. Leanansidhe estava certa... definitivamente era parte de um código.

3

13

1113

3113

132113

1…

- Ok, meditei, depois de vários instantes torturando meu cérebro e não vindo com nada. – Então, simplesmente temos que entender isto e então teremos livre acesso. Não parece muito difícil.

- Temo que seja um pouco mais complicado, querida. – Leanansidhe aceitou um copo de vinho de uma fadinha. – Como você disse antes, SciCorp não é um lugar que você possa simplesmente entrar andando. Visitantes não são admitidos além da recepção, e a segurança é razoavelmente forte. Precisa ser um empregado para passar do primeiro andar.

- Bem, e se nós fingirmos ser o jardineiro ou serviço de limpeza, ou alguma coisa assim?

Grimalkin bufou e mudou de posição no sofá. – Precisariam de um cartão de identificação para isto? – Ele disse, acomodando-se confortavelmente no travesseiro que eu tinha jogado nele. – Se o prédio é tão bem guardado, duvido que eles admitam a ralé comum da rua.

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Eu me afundei, franzindo o cenho. – Ele está certo. Precisaríamos de um falso cartão de identificação, ou a identificação de um dos trabalhadores, para conseguir entrar. Não conheço ninguém que possa nos conseguir algo assim.

Leanansidhe sorriu. – Eu conheço. – Ela disse, e estalou seus dedos duas vezes. – Skrae, querido – ela chamou –, viria aqui um momento? Preciso que você encontre uma coisa.

Um piskie espiralou para dentro de vista, asas leves zumbindo. Com três polegadas de altura, ele tinha pele azul-índico e cabelo de dente-de-leão, e vestia nada exceto um sorriso dentes-navalhados enquanto flutuava. Seus olhos, órbitas brancas enormes em seu rosto pontiagudo, fitaram-me curiosamente, até que Leanansidhe bateu suas mãos.

- Skrae, criança, estou bem aqui. Foco, querido. – O piskie me deu uma piscadela e uma remexida sugestiva de quadril, antes de virar sua atenção a Leanansidhe. – Bom. Agora, preste atenção. Tenho uma missão para você. Quero que encontre os ratos de rua46. A meio-phouka e o menino troll, esqueci seus nomes. Fale para eles deixarem os ovos por enquanto, eu tenho outro trabalho para eles. Agora vá, querido. Buzz, buzz. – Ela agitou sua mão, e o piskie silvou para fora de vista.

- Kimi e Nelson. – Eu disse suavemente.

- O quê, querida?

- Estes são seus nomes. Kim e Nelson. Eles estavam com... com Warren, quando nós chegamos. – Lembrei do sorriso endiabrado de Kimi, a expressão estóica de Nelson. – Não acha que eles estão envolvidos com os feéricos Iron, também?

- Não. – Leanansidhe encostou-se, estalando dedos para uma fadinha por vinho. – Eles não sabiam nada da traição de Warren ou a conspiração para sequestrá-la. Ele deixou isto muito claro.

- Oh. Isto é um alívio.

- De outra maneira – Leanansidhe meditou com um olhar distante -, a garota faria um violino adorável. Ou talvez uma lira. O troll é mais um atabaque, acredito. O que acha, querida?

Eu estremeci e esperei que ela estivesse brincando.

KIMI E NELSON apareceram poucas horas depois. Quando eles entraram no vestíbulo, Leanansidhe não desperdiçou nenhum tempo em falhar-lhes o que tinha acontecido com Warren, o que os deixou chocados e com raiva, mas não descrentes. Nenhuma lágrima foi derramada, nenhuma acusação furiosa foi lançada contra ninguém. Kimi fungou um pouco, mas quando Leanansidhe informou-os que tinham um trabalho, ambos recuperaram-se instantaneamente. Eles me impressionaram enquanto crianças muito pragmáticas, acostumadas à escola da vida, o que deixava pouco espaço para autopiedade ou súplicas.

- Então – Kimi disse, caindo pesadamente no sofá, que quase a tragou inteira -, o que quer que façamos?

Leanansidhe sorriu e gesticulou para mim, para que assumisse. – Este é o seu plano, pombinha. Você fala para eles o que precisa.

- Um... certo. – Os dois mestiços olharam para mim expectativamente. Engoli em seco. – Um, bem, ouviram falar sobre uma companhia chamada SciCorp?

Kimi aquiesceu, chutando seu pé. – Claro. Grande corporação que faz softwares, ou

46 No original: streetrats.

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alguma coisa assim. Por quê?

Olhei para Leanansidhe, e ela ondulou seu cigarro para mim encorajadoramente. – Bem, precisamos entrar no prédio e roubar uma coisa. Despercebidos.

O olhos de Kimi arregalaram-se. – É sério?

Aquiesci. – Sim. Mas, precisamos da ajuda de vocês para conseguir passar pelos guardas e a segurança. Especificamente, precisamos de cartões de identificação de um dos trabalhadores, e Leanansidhe disse que vocês devem ser capazes de nos conseguir um. Poderiam fazer isto?

Kimi e Nelson trocaram um olhar, e a meio-phouka virou para mim com um sorriso arteiro. – Sem problema. – Seus olhos brilharam, saboreando o encontro. – Para quando o quer?

- Tão logo seja possível.

- Certo, então. – Kimi contorceu-se para fora do sofá e deu um tapa no grande bíceps de Nelson. – Vamos, garotão. Vamos aterrorizar um humano. Voltamos antes que perceba.

Quando os dois deixaram o vestíbulo, Puck olhou para Leanansidhe. – Tem certeza que estes dois podem cuidar disto? – Ele perguntou, e sorriu maliciosamente. – Quer que os ajude?

- Não, querido. É melhor que não o faça. – Leanansidhe levantou, fumaça verde rodopiando ao redor dela. – Mestiços entram mais fácil em Silicon Valley... eles não atrairão tanta atenção quanto um feérico normal, e eles não tem nossas alergias a todo aquele ferro e aço. Aqueles dois ficarão bem, confie em mim. Agora, então – ela caminhou em minha direção -, venha comigo, minha criança. Temos um grande dia a nossa frente.

Eu olhei para ela nervosamente. – Onde estamos indo?

- Às compras, querida!

- O quê? Agora? Por quê?

Leanansidhe fez um som desaprovação. – Querida, você não pode esperar marchar SciCorp adentro parecendo assim. – Ela reparou no meu jeans e suéter imperiosamente, e fungou. – Isto não grita exatamente “Sou uma profissional de negócios”. Mais como, “Sou uma viciada em lojas de caridade”. Se vamos entrar na SciCorp, precisará de mais do que sorte e glamour. Precisará de uma maquiagem completa.

- Mas estamos correndo contra o tempo. Por que Puck não pode simplesmente me glamourar algumas roupas...

- Querida, querida, querida. – Leanansidhe ondulou sua mão. – Nunca recuse uma chance de ir às compras, criança. Além disto, não ouviu Grimalkin? Mesmo o glamour mais poderoso tem a tendência de se dissolver, se rodeado por aço e ferro. Não queremos que pareça uma trabalhadora de grandes corporações, pombinha, queremos que você seja uma trabalhadora de grandes corporações. – Ela me deu um sorriso indulgente que eu não gostei nem um pouco. – Pense em mim como sua fada-madrinha temporária, querida. Só me deixe pegar minha varinha mágica.

EU SEGUI Leanansidhe por um longo corredor, que nos despejou em uma ensolarada calçada movimentada com pessoas, que não notaram nossa aparição súbita de um beco previamente vazio. Mesmo que o sol estivesse brilhando e o céu estivesse claro, havia um toque gélido no ar, e as pessoas se apressavam pela estrada em agasalhos pesados e casacos, um sinal de que o inverno estava a caminho ou já havia chegado. Enquanto nós passávamos uma máquina de jornal, rapidamente vasculhei a data no canto e ofeguei em sinal de alívio. Cinco meses. Estive presa em Faery cinco meses; um longo tempo com certeza, mas melhor do

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que cinco anos, ou cinco séculos. Ao menos meus pais ainda estavam vivos.

Gastei o resto da tarde sendo arrastada de loja em loja, seguindo Leanansidhe enquanto ela arrancava roupas de cabides e as empurrava para mim, ordenando que as provasse. Quando eu protestei diante dos preços ímpios, ela gargalhou e me lembrou que era minha fada-madrinha temporária hoje, e o que o preço não era uma questão.

Provei ternos femininos primeiro, casacos elegantes e apertados, saias à altura dos joelhos que me fizeram parecer cinco anos mais velha, ao menos Leanansidhe reconheceu. Devo ter provado duas dúzias de estilos diferentes, cores e combinações, antes que Leanansidhe finalmente anunciar que ela gostou de um simples conjunto preto, que se parecia com todo conjunto preto que eu havia provado.

- Então, nós terminamos agora? – Eu me aventurei esperançosamente, enquanto Leanansidhe pedia à balconista da loja para empacotar o conjunto. A faery olhou para mim em surpresa genuína e riu.

- Oh, não, querida. Isto é só um terno. Precisará de sapatos, maquiagem, uma bolsa, e alguns acessórios... não criança, nós só começamos.

- Não pensei que faeries gostassem de ir às compras e comprar coisas. Isto não é um pouco... antinatural?

- É claro que não, querida. Comprar é só outra forma de caçar. Todos os feéricos são caçadores, admitindo eles ou não. Isto está em nossa natureza, criança, não há nada de antinatural.

Isto fez um estranho tipo de sentido.

MAIS LOJAS. Eu perdi a trajetória de todos os lugares que visitamos, os corredores que espreitamos, os cabides sobre os quais nos debruçamos. Leanansidhe era uma faery em uma missão; no segundo em que ela passava pelas portas, todos os vendedores largavam o que estavam fazendo e se reuniam ao redor dela, perguntando se precisava de ajuda, se eles poderiam ser úteis. Eu era invisível ao lado dela; mesmo quando Leanansidhe anunciava que estávamos comprando para mim, os funcionários esqueciam-se que eu existia no segundo que se viraram. Ainda, eles ficavam ansiosos para agradar, trazendo seus melhores sapatos no meu tamanho, mostrando-nos uma atordoante variedade de bolsas que eu nunca usaria, e sugerindo brincos que iriam ressaltar a cor dos meus olhos. (Este também foi o momento em que Leanansidhe descobriu que eu não tinha furado minhas orelhas. Trinta minutos mais tarde, eu sentava com meus lóbulos das orelhas latejando, enquanto um funcionário pressionava algodão nas minhas orelhas e alegremente me falava que o inchaço iria embora em um dia ou dois).

Finalmente, enquanto o sol estava se pondo sobre os prédios, a Rainha das Compras decidiu que tínhamos acabado. Aliviada que o longo dia tinha terminado, eu sentei em uma cadeira, olhando para o estúpido código, chateada por ainda não poder resolvê-lo. Observei Leanansidhe conversar com a funcionária enquanto ela embrulhava e empacotava as mercadorias. Quando ela anunciou a grande soma, eu quase caí do meu assento, mas Leanansidhe sorriu e lhe entregou seu cartão de crédito sem piscar uma vez. Por só um momento, quando a funcionária o devolveu, o cartão pareceu mais um pedaço de casca de árvore, mas Leanansidhe o deixou cair dentro da sua bolsa antes que eu pudesse dar um olhar mais de perto.

- Bem – minha fada-madrinha temporária disse brilhantemente, enquanto nós deixávamos a loja -, nós temos suas roupas, seus sapatos, e seus acessórios. Agora, a diversão de verdade começa.

- O que? – Eu perguntei cansadamente.

- Seu cabelo, minha pombinha. Ele simplesmente... não está bom. – Leanansidhe fez como se fosse colher minhas franjas, mas não pôde sequer obrigar a si mesma tocá-las. – E suas unhas. Elas

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precisam de ajuda. Afortunadamente, já é hora do spa abrir.

- Spa? – Eu olhei para a brilhante bola laranja desaparecendo no horizonte, desejando que pudéssemos ir para casa. – Mas deve ser seis horas em ponto. Não está a maioria dos lugares como este fechado?

- É claro, querida. É quando todos os humanos saem. Não faça tais perguntas idiotas. – Leanansidhe balançou sua cabeça, diante da minha ingenuidade. – Venha, agora. Sei que Ben estará morrendo por conhecer você.

O Natural Earth Salon and Spa estava lotado hoje à noite. Nós passamos por um par de sílfides dando risadinhas no caminho de seixos para o salão. Pequenas e delicadas, com suas asas delineadas delicadamente zumbindo suavemente, elas sorriram para nós enquanto passávamos, os dentes brilhando como facas. Uma sidhe Winter, alta, fria e linda, roçou em nós enquanto passávamos pela porta para dentro da área de espera, deixando um rastro de geada na minha pele e um frio em meus pulmões. Um trio de piskies pousaram em meu cabelo, gargalhando e puxando, até que Leanansidhe lhes deu um olhar e elas zumbiram para fora da porta.

Dentro, a luz estava obscura, as paredes lavadas de pedras naturais, dando ao lugar uma aparência de caverna. Uma fonte de mármore, com peixes e sereias, borbulhava no centro do vestíbulo, enchendo a sala com o agradável som de água corrente. Orquídeas e bambus floridos em vasos naturais, e o ar estava morno e úmido.

- Por que há tantos feéricos aqui? – Perguntei fracamente, enquanto um enorme cão negro trotava na porta dos fundos. – Este é um lugar para exilados? Um salão e spa? Isto é um pouco estranho.

- Não consegue sentir isto, pombinha? O glamour deste lugar? – Leanansidhe se inclinou, gesticulando para as paredes e a fonte. – Alguns lugares no mundo mortal são mais mágicos do que outros, pontos quentes de glamour, se você desejar. Isto nos atrai como mariposas a uma chama... exilados, solitários e feéricos cortesãos igualmente. Além disto, querida... – Leanansidhe endireitou-se com um suspiro. – Mesmo nossa espécie aprecia um pouco de mimo de vez em quando.

Um sátiro loiro e bem-vestido deu as boas-vindas a Leanansidhe com um beijo em ambas as bochechas, antes de se virar para mim com um sorriso atordoante.

- Ah, então esta é a princesa sobre a qual eu ouvi tanto. – Ele irrompeu, pegando minha mão para pressioná-la em seus lábios. – Ela é absolutamente adorável. Mas... – e ele olhou para Leanansidhe -, posso ver o que quer dizer sobre o cabelo dela. E suas unhas. – Ele estremeceu e balançou sua cabeça antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. – Bem, deixe isto comigo. Nós a deixaremos parecendo fabulosa em pouco tempo.

- Faça sua mágica, Ben. – Leanansidhe disse, vagueando para longe em direção à porta dos fundos. – Estarei com Miguel se você precisar de mim, querido. Meghan, cara, só faça o que Ben diz e estará bem. – Ela ondulou sua mão alegremente enquanto passeava pela porta, e se foi.

Ben virou para mim e bateu suas mãos peludas. – Bem, docinho, você está com sorte. Temos o resto da noite reservado para você.

- Verdade? – Não podia evitar soar duvidosa. Eu nunca estive em um desses lugares antes, muito menos em um dirigido completamente por feéricos, e eu não sabia o que esperar. – Quanto tempo pode levar fazer o cabelo?

Ben gargalhou. – Oh, coração, você está me matando. Vamos, agora. Temos muito que fazer.

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AS PRÓXIMAS POUCAS HORAS voaram em um borrão confuso. O pessoal feérico, a maioria sátiros e algumas fadinhas, estavam alarmantemente atenciosos. Eles tiraram minhas roupas e me envolveram em um robe muito branco. Eu fui posta de costas enquanto fadinhas em ternos brancos lambuzaram creme em meu rosto e puseram pepinos sobre os meus olhos, dizendo-me para deitar sem me mover. Depois de uma hora disto, elas me sentaram, e um sátiro fofo chamado Miroku mergulhou minhas mãos em uma bacia morna que cheirava a cacau e grãos de café. Ele massageou minhas mãos com loção antes de meticulosamente lixar, polir e pintar minhas unhas. Então o procedimento todo foi feito em meus pés. Depois disto, eles me levaram embora até o estilista, que ensaboou, aparou e deu estilo ao meu cabelo - com tesouras de bronze, notei – conversando comigo todo o tempo. Isto era estranho. Não direi que não gostei de toda a atenção e paparico, mas me senti um pouco atordoada durante de todo o processo, e um pouco deslocada. Esta não era eu. Eu não era uma princesa ou uma superestrela ou nada especial. Era uma pobre garota criadora de porcos da Louisiana, e não pertencia a aqui.

Estavam adicionando os toques finais da maquiagem nos meus olhos e lábios, quando Leanansidhe entrou passeando pela sala, parecendo tão cheia de si e relaxada que sua pele brilhava. Tinha derramado nela mais glamour humano, e sua beleza etérea encheu a sala, cabelos vermelho-dourados quase cegantes debaixo das luzes artificiais. Ben seguia atrás dela, guinchando sobre como ela parecia radiante.

- Mmm, sim, juro que Miguel é um verdadeiro músico com seus dedos. – Leanansidhe murmurou com um espreguiçar felino, erguendo os braços muito delgados sobre sua cabeça. – Se vocês não precisassem dele tanto, amor, sequestraria-o eu mesma e o levaria para casa. Este tipo de talento é difícil de encontrar, acredite-me. Bem, agora. – Ela exclamou quando me viu. – Olhe para você, querida. Você é uma pessoa completamente diferente. Eu mal a reconheci.

- Ela não está fofa? – Ben acrescentou, irradiando alegria para mim. – Não adora o que eles fizeram com o cabelo dela? Eu adoro luzes, e Patrícia as assenta tão bem.

- Está perfeito. – Leanansidhe aquiesceu, estudando-me com um meio-sorriso que me fez muito desconfortável. – Se eu não a reconheci, ninguém em SciCorp irá, tão pouco.

Queria dizer alguma coisa, mas naquele momento, um odor estranho cortou através do cheiro de perfume, maquiagem e hidratantes, parando-me em uma meia-respiração. Leanansidhe e Ben ofegaram, como o fez cada faery na sala. Um par de fadinhas saíram correndo em terror, e os clientes faery começaram a murmurar e se remexer irrequietos, enquanto o cheiro forasteiro ficava cada vez mais forte. Eu o reconheci, e meu coração acelerou, batendo contra as minhas costelas. Metal. Havia um faery Iron no local.

E então, ele caminhou pela porta adentro.

Meu estômago se revirou, e alguns dos clientes ofegaram. O faery Iron estava vestido em um terno cinza-pombo, e ao que parecia um caro. O cabelo curto preto não ocultava as orelhas pontudas, ou o telefone Bluetooth próximo a sua mandíbula. A pele dele, verde como uma placa de circuito, brilhava com centenas de luzes piscantes, arames e chips de computador. Por trás de espessos óculos de aro fino, seus olhos brilhavam em verde, azul e vermelho.

Liso como vidro, Ben esgueirou-se na minha frente, bloqueando minha visão, mas também me escondendo do olhar do faery. Congelei e tentei ficar o mais invisível quanto possível.

- Bem. – A voz do faery Iron, grossa de zombaria, cortou a sala. – Ninguém vai me convidar a entrar? Dar-me um panfleto? Falar-me sobre seus serviços? Para um negócio de alto escalão, o atendimento deixa muito a desejar.

Por um momento, ninguém se moveu. Então um dos sátiros aproximou-se, tremendo, mas furioso ao mesmo tempo. – Nós não atendemos ao seu tipo aqui.

- Verdade? – O faery pôs a mão em seu peito, fingindo espanto. – Bem, devo dizer, estou meio embaraçado. Por outro lado, provavelmente poderia matar a todos sem nem mesmo pensar nisto, então

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suponho que um pouco de preconceito é aceitável.

Leanansidhe deu um passo à frente, seu cabelo contorcendo-se atrás dela como cobras. – O que você quer, abominação?

- Leanansidhe. – O feérico Iron sorriu. – Você é Leanansidhe, não é? Nós ouvimos falar sobre você, sobre você e sua pequena rede de espiões. O boato é que você sabe a localização da filha de Oberon, a princesa Summer.

- Sei sobre muitas coisas, querido. – Leanansidhe soou completamente aborrecida e desinteressada. – É o meu negócio estar informada, para o meu próprio divertimento e segurança. Não tenho o hábito de envolver-me. Como também não faço um hábito conversar com abominações de ferro. Então, se já terminamos aqui, acho que deveria ir embora.

- Oh, irei embora em breve. – O faery Iron parecia nem um pouco perturbado. – Mas, meu chefe tem uma mensagem para você, e uma oferta. Dê-nos a localização da filha de Oberon, e todos os seus crimes serão anulados, quando tomarmos Nevernever. Poderá ir para casa. Não quer ir para casa, Leanansidhe? – Ele ergueu sua voz, endereçando-a ao resto da assembleia feérica. – E isto vale para todo mestiço e exilado, puro-sangue ou não. Ajudem-nos a achar a princesa Summer, e seu lugar em Nevernever será assegurado. O Rei Iron dá as boas vindas a todos que querem servi-lo.

Ele pausou depois do anúncio, esperando que alguém desse um passo a frente. Ninguém se moveu. Provavelmente porque Leanansidhe, parada no meio da sala, estava lançando algumas vibrações verdadeiramente assustadoras, tremulando as lâmpadas com seu poder. O que foi uma coisa boa, porque todos estavam olhando para ela e não para mim.

O feérico Iron esperou um momento a mais, e quando ninguém se voluntariou a irritar a Rainha dos Exilados, ele deu um passo para trás com um sorriso. – Bem. Se alguém mudar de ideia, é só nos chamar. Estamos em todo o lugar. E viremos por vocês, no final.

Ele girou sobre os calcanhares e saiu, passos tilintando sobre o azulejo. Todos o assistiram sair. Leanansidhe olhou para a porta até que os últimos traços de ferro desaparecessem, então girou para mim.

- A festa acabou, querida. Vamos. Ben, você é um doce e sua assistência hoje é muito apreciada, mas nós realmente precisamos nos apressar.

- Claro, garota. – Ben acenou para nós, enquanto saímos apressadamente. – Traga esta fofura de volta para me ver logo, ok? E boa sorte com a infiltração na megacorporação!

QUANDO NÓS RETORNAMOS para a mansão, achamos Puck e Ironhorse discutindo estratégias com Kimi e Nelson, que tinham retornado de sua missão. Todos os quatro amontoaram-se na mesa da biblioteca, cabeças inclinadas muito próximas, murmurando em vozes baixas. Quando entramos, seguidas de muitos barretes vermelhos carregando nossos pacotes, eles se endireitaram rapidamente, e seus olhos se alargaram. Até os brilhantes olhos de Ironhorse ficaram maiores e redondos quando entramos pela porta.

- Uau, Meghan! – Kimi pulava no lugar, batendo suas mãos. – Você parece fantástica! Adoro o que fez com seu cabelo!

- PRINCESA. – Ironhorse me olhou de cima a baixo, aquiescendo em aprovação. – SINCERAMENTE, VOCÊ ESTÁ UMA VISÃO.

Olhei para Puck, que estava olhando fixamente para mim com assombro. – Um... – Ele balbuciou, enquanto eu quase fiquei em choque com a novidade de que realmente surpreendi Puck sem

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palavras. – Você parece... legal. – Ele murmurou finalmente.

Enrubesci, subitamente consciente de mim mesma.

- Crianças. – Leanansidhe bateu suas mãos, trazendo nossa atenção de volta para ela. – Se vamos recuperar o cetro, precisamos nos mexer rápido. Vocês, ratos de rua. – Ela estalou seus dedos para Kimi e Nelson. – Conseguiram o que os mandei buscar, queridos?

Kimi balançou a cabeça para Nelson, que escavou seu bolso e tirou uma identificação de plástico. O rosto de uma mulher loira de óculos olharam do canto direito, lábios franzidos como se tentando matar a câmera com um olhar. Nelson agitou o cartão para Leanansidhe, que o estudou desdenhosamente.

- Rosalyn Smith. Um pouco velha, mas terá que servir. Bem, então. – Ela virou para o resto de nós. – Amanhã é um grande dia, queridos. Não fiquem levantados até tarde. Encontrá-los-ei no vestíbulo amanhã de manhã. Operação Cetro começa ao amanhecer. Ta! – Ela gesticulou dramaticamente e desapareceu em um rodopio de brilho.

NAQUELA NOITE, eu estava muito nervosa para dormir. Estava deitada na cama, Grimalkin cochilando ao meu lado no travesseiro, tentando entender o código, mas na verdade simplesmente olhando fixamente para os números até meus olhos vidrarem. Continuava visualizando tudo o que poderia sair errado durante a missão, o que era uma lista bastante grande. Em poucas horas, iríamos nos esquivar para dentro da SciCorp usando o crachá de alguma mulher, agarrar o cetro, e sair antes que alguém descobrisse que estávamos lá. Como se pudesse ser assim fácil, como uma caminhada na praia. Como se eles não tivessem o cetro vigiado dia e noite.

Houve uma batida suave na minha porta, e Puck espreitou sua cabeça para dentro.

- Ei, Princesa. Pensei que você poderia querer comer alguma coisa. Importa-se se entrar?

Balancei minha cabeça, e Puck entrou com um prato guarnecido com sanduíches e fatias de maçã. – Aqui. – Ele anunciou, ajeitando-se na cama. – Deveria comer alguma coisa. Tentei fazer alguma coisa melhor, mas Cook me escorraçou da cozinha com um rolo de massa. Não acho que ela está muito afeiçoada a mim. – Ele fungou e desabou ao longo da cama, servindo-se de uma fatia de maçã, enquanto ele se fazia confortável.

- Eu aprecio isto. – Murmurei, catando um sanduíche. Queijo e... mais queijo, melhor do que nada, acho. – Onde está Ironhorse?

- Fora, com os dois ratos de rua, discutindo estratégia. – Puck respondeu, socando uma fatia inteira de mação para dentro de sua boca. – Deveria escutá-los... pensam que estão em um filme de James Bond ou algo assim. – Ele notou que eu estava brincando com um canto do quadrado de papel e se sentou. – Como está indo, Princesa?

Amassei o papel em uma bola e o joguei para o outro lado da sala. Puck piscou. – Um, nada bem, suponho?

- Eu não consigo. – Suspirei, passando minha mãos através dos meus olhos. – Tentei tudo que posso pensar para isto fazer sentido... adição, multiplicando as linhas, divisão... e ainda não consegui. E se não posso descriptografar o código estúpido, não entraremos no andar certo, o que quer dizer que não conseguiremos o cetro, o que quer dizer que todos morrerão por minha causa!

- Ei. – Puck sentou e pôs um braço ao meu redor. – Por que está surtando? Isto não é nada, Princesa. Isto será mamão com açúcar para você. Você é aquela que venceu o Rei de Ferro. Marchou para dentro do coração do território inimigo e lhe chutou o traseiro. Isto não é diferente.

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- Sim, é! – Abaixei meu sanduíche e olhei para ele. – Isto é um mundo de distância! Puck, quando encarei Machina, foi para resgatar Ethan, só o Ethan. Não estou dizendo que ele não era importante... eu morreria para salvá-lo sem pensar. Mas era somente uma pessoa. – Fechei meus olhos e encostei-me no peito de Puck, escutando seu bater de coração por alguns segundos. – Se eu estragar isto – murmurei -, se não conseguir o cetro de volta, todos morrerão. Não só você ou Ironhorse e os outros, mas todos. Faery será aniquilada. Nada de Summer, nada de Winter, nada. Nada exceto os feéricos Iron restarão. Agora vê porque estou um pouco nervosa?

Não mencionei que desejava que Ash estivesse aqui. Que ele foi a principal razão para eu ser corajosa no Reino Iron. Eu senti falta dele, sua calma, inabalável determinação, sua silenciosa autoconfiança.

Puck mexeu-se de forma que ele ficou me encarando, inclinando meu queixo para me olhar completamente. Encontrei seus olhos e vi centenas de emoções se agitando em seu olhar esmeralda.

- Eu estou aqui. – Murmurou, correndo dedos longos pelo meu cabelo. – Não se esqueça disto. Não importa o que aconteça, protegerei você. – Ele se inclinou, descansando sua fronte na minha. Cheirei maçãs em seu fôlego, vi meu próprio reflexo em seus olhos. – Nunca sairei do seu lado, não importa o que nos aconteça. Conte com isto.

Meu coração martelou em meus ouvidos. Sabia que estava de pé, na borda de um vasto precipício, olhando para baixo. Sabia que deveria recuar, que se eu ficasse ali, uma linha seria cruzada, e nós nunca poderíamos voltar.

Eu fechei meus olhos ao invés. E Puck me beijou.

Seus lábios foram hesitantes no começo, roçando suavemente contra os meus, dando-me espaço para recuar. Então eu me pressionei contra ele, ele pôs a palma na parte de trás da minha cabeça e me beijou para valer. Envolvi meus braços ao redor de seu pescoço e o puxei para mais perto, querendo esquecer tudo o que estava acontecendo, afundar a mim mesma em sentimento. Talvez agora a ferida aberta e a solidão iriam embora por algum tempo. Puck empurrou o prato para fora da cama e se inclinou para trás, puxando-me para baixo com ele, seus lábios subitamente em meu pescoço, traçando uma linha de fogo em minha pele.

- Se vão fazer isto, se importariam de não empurrar a cama tanto? – Veio uma voz sarcástica preto da cabeceira. – Talvez vocês pudessem rolar pelo chão.

Corando violentamente, eu olhei para cima. Grimalkin jazia sobre o travesseiro, observando-nos com um olhar estupefato e semicerrado. Puck seguiu meu olhar e soltou um suspiro explosivo.

- Eu já mencionei o quanto odeio gatos?

- Não me culpe, Goodfellow. – Grimalkin piscou, conseguindo soar aborrecido e indignado ao mesmo tempo. – Eu estava cuidando dos meus próprios negócios muito antes que você e a princesa começassem a ter relações como coelhos.

Puck bufou. Rolando em seu estômago, pôs-se para fora da cama e me puxou junto com ele, envolvendo-me em seus braços. Meu rosto flamejava, mas se era dos comentários inoportunos de Grimalkin ou algo mais, não poderia dizer.

- É melhor eu ir. – Puck suspirou, soando relutante. – Falei a Ironhorse que olharia algumas plantas baixas que Kimi conseguiu furtar de algum lugar. – Seu olhar ficou na comida espalhada sobre o chão, sanduíches e fatias de maçã por todo o lado, e ele reprimiu um sorriso encabulado. – Erm, desculpe pela confusão, Princesa. E não se preocupe com o código, vamos descobrir alguma coisa. Tente dormir um pouco, ok? Estaremos bem ali fora.

Ele se inclinou, como que para me beijar, mas eu não podia encontrar seus olhos e olhei

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para longe. Ele parou, então pousou um beijo leve na minha fronte e saiu, fechando a porta atrás dele.

Eu caí na cama, enterrando meu rosto no travesseiro. O que eu tinha feito? Beijei Puck, porque ele estava aqui. Porque eu estava com medo e ansiando por alguém mais. Puck me amava, e eu o tinha beijado por todas as razões erradas. Eu o beijei pensando em Ash. E... eu gostei.

A culpa me corroia. Sentia falta de Ash, e a saudade estava rasgando meu estômago em pedaços, mas também queria que Puck voltasse e me beijasse um pouco mais.

- Estou tão confusa. – Murmurei, virando-me na cama. As rachaduras no teto sorriam afetadamente para mim, e eu grunhi. – O que vou fazer?

- Esperançosamente, atormentar-se em silêncio, então, eu posso conseguir dormir. – Grimalkin disse sem abrir seus olhos. Ele flexionou suas garras, bocejou, e se enterrou mais fundo no travesseiro. – Talvez você possa trabalhar na decifração do código, então poderemos recuperar o cetro. Odiaria por todo este trabalho a perder.

Olhei para ele, mas ele estava certo. E, talvez isto tirasse minha mente de Puck por um tempo. – Quero dizer, não é como se eu estivesse enganando Ash ou nada. – Eu fundamentei, recuperando a bola amarrotada de papel e subindo novamente na cama. – Foi ele quem me chutou e me disse para esquecê-lo. Nós terminamos. Realmente, não tenho certeza se nós tivemos alguma coisa, em primeiro lugar.

Grimalkin não respondeu. Olhei para o código e suspirei de novo, pesadamente, enquanto os número pareciam rastejar através do papel como formigas. – Nunca vou conseguir entender isto, Grim. – Murmurei. – Não há esperança. Você precisaria ser um gênio matemático ou algo assim.

Grimalkin bateu seu rabo e remexeu-se ao redor de forma a ficar de costas para mim. – Tente olhar para o código como um enigma, ao invés de uma questão matemática. – Ele murmurou. – Talvez esteja tentando demais para que encaixe em uma fórmula. Os feéricos Iron ainda são feéricos, apesar de tudo, e enigmas estão em nosso sangue.

Um enigma, huh? Olhei para o papel abaixo novamente e franzi o cenho. Ainda não conseguia entender o código estúpido, não importava o quando olhasse para ele.

3

13

1113

3113

132113

1…

- Grim, eu não...

- Leia-o em voz alta, humana. – Grim soou aborrecido, mas resignado, como se ele soubesse que não conseguiria dormir até me ajudar. – Se você precisa fazer barulho, ao menos tente ser útil.

- Certo. – Murmurei. – Mas não vai ajudar. – Grim não respondeu, então eu comecei a lê-lo do topo. – Três. Um-Três. Um-um-um-três. Três-um-um-três. – Eu parei, franzindo o cenho. Soou diferente, lendo em voz alta. Tentei a terceira linha novamente. – Um-um, um-três.

Um 1. Um três.

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Pisquei. Poderia realmente ser tão simples? Corri pelas linhas restantes, só para ter certeza, e meus olhos arregalaram-se, enquanto tudo se encaixava no lugar. – Eu... eu consegui! Acho. Espere um minuto. – Vasculhei o papel novamente. – Sim, está certo! Não é só um enigma numérico, é um enigma idiomático, também! Você estava certo, Grim! Olhe! – Eu atirei o papel para Grimalkin, que continuou me ignorando, mas eu prossegui de qualquer forma. – Cada uma das linhas descreve a linha anterior. O primeiro número é um três, então a segunda linha trás, Um 3. A próxima linha é Um 1, Um 3, e assim por diante. Então, se este for o caso, a última linha do enigma, e a resposta para o código tem que ser... – Eu contei os números na minha cabeça. - 1-1-1-3-1-2-2-1-1-3. – Senti uma vibração de orgulho e excitação, de alguma maneira sabendo que eu estava certa, e não pude evitar o enorme sorriso que se estendeu sobre meu rosto. – Eu o entendi, Grim! Nós podemos conseguir o cetro afinal!

Grimalkin não respondeu. Seus olhos estavam fechados, e não poderia dizer se ele estava dormindo ou fingindo estar. Considerei procurar Puck e Ironhorse para dividir minha vitória, mas refletindo melhor, vi que não estava certa se queria ver Puck justo agora. Então fiquei na cama, escutando as fadinhas correrem para frente e para trás, limpando as fatias de maçã, enquanto minha mente repassava o beijo de Puck até que a memória estava queimada em meu cérebro. Culpa e excitação me assaltaram em turnos. Um momento, eu estava pronta para arrastar Puck de volta para cá para terminar o que começamos, no próximo, sentia tanta falta de Ash que meu peito doía. Fiquei acordada, ligada demais para dormir, até uma fadinha despontar sua cabeça para me dizer que era de manhã e Leanansidhe estava esperando por mim.

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CAPÍTULO QUINZE

Operação Cetro

A mulher olhou para mim sobre o aro dourado de seus óculos, lábios puxados em um expressão desdenhosa. Ela vestia um terninho preto que se agarrava ao seu corpo, e seu cabelo estava recolhido em um apertado, mas elegante coque, dando a ela um temperamento austero. Sua maquiagem era perfeita, e os longos saltos altos faziam-na parecer mais alta e até mais imponente.

- O que você acha, querida? – Leanansidhe perguntou, soando satisfeita. – Os óculos devem ser um pouco demais, mas nós não queremos correr nenhum risco hoje.

Eu mostrei minha língua para a mulher, que fez o mesmo no reflexo do espelho. – Está perfeito. – Eu disse, atônita. – Eu nem mesmo me reconheci. Pareço com uma advogada ou algo assim.

- Esperançosamente, o suficiente para fazê-la entrar na SciCorp esta tarde. – Leanansidhe murmurou, e todo o pavor e medo que tinha conseguido suprimir por toda a manhã ergueu-se como uma maré negra. Engoli em seco para reprimir a náusea, desejando que não tivesse comido aquela caixa extra de doughnuts em pó que Kimi trouxe para o café da manhã. Eu não pareceria muito profissional se eu vomitasse sobre os meus sapatos caros.

Puck, Kimi, Nelson e Ironhorse estavam no vestíbulo, amontoados ao redor de uma planta baixa, quando nós entramos, eu me balançava atrás de Leanansidhe em meus instáveis saltos. Grimalkin cochilava no topo do piano, seu rabo roçando as teclas, ignorando a nós todos. Vi Leanansidhe olhar em sua direção e estremecer, como se imaginando arranhões na madeira polida.

Puck olhou para mim acima e sorriu. Ele estendeu a mão, e eu cambaleei até ele, agarrando seu braço em busca de apoio. Meus dedos latejavam, e eu me encostei dele, tentando manter o peso fora dos meus pés. Como as mulheres faziam isto, caminhar por aí nestas coisas todo o dia sem arrebentar seus tornozelos?

- Como está indo esta coisa de caminhar? – Puck murmurou de forma que só eu pude ouvir.

- Cale a boca. – Eu esmaguei seu braço. – Ainda estou aprendendo, ok? É como andar por aí em palitos de dente. – Ele riu por entre os dentes, e eu troquei minha atenção para o mapa estendido entre eles. – O que estamos olhando?

- A planta. – Kimi respondeu, parando nas pontas dos pés para se inclinar sobre a mesa. – Esta é a entrada da SciCorp. – A meio-phouka continuou, apontando para uma linha obscura próxima à parte inferior do papel. Eu semicerrei os olhos, mas não podia distingui-lo de todas as outras linhas espalhadas sobre a planta baixa. – De acordo com Warren – Kimi continuou, traçando um dedo sobre outra linha -, o cetro está sendo guardado aqui, entre os andares vinte e nove e trinta.

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- Ainda não entendo como isto é possível. – Murmurei. – como pode um prédio ter um andar entre andares?

- Do mesmo jeito que eu posso ter uma mansão entre o mundo mortal e Nevernever, querida. – Leanansidhe respondeu, olhando para Grimalkin como se ela realmente quisesse escorraçá-lo do piano. – Os feéricos Iron tem o seu horrível glamour, exatamente como nós temos o nosso. Nós transformamos em coelhos, eles comem contas bancárias. Grim, querido, você tem que dormir aí?

- Você, Puck e Ironhorse entrarão aqui – Kimi continuou, batendo o dedo no final da planta. – Passando as portas estará a revista de segurança, que escaneará seu cartão de identificação. Puck e Ironhorse estarão invisíveis aos olhos mortais, então não teremos que nos preocupar com eles sendo vistos.

- E se houver feéricos Iron no primeiro andar? – Puck perguntou.

- Não há. – Kimi respondeu, olhando para ele. – Nelson e eu checamos. Se os feéricos Iron vão para o prédio, não usam as portas da frente.

Aquilo soou sinistro, como se os feéricos Iron pudessem ter portas escondidas ou trods os quais não conhecíamos, mas não havia nada sobre isto agora.

- Uma vez que passem a revista, os elevadores estão aqui. – Kimi continuou, tracejando o caminho com seu dedo antes de nos dar um olhar solene. – E isto é onde as coisas ficam arriscadas. Não sei como vocês conseguirão ir para o andar vinte e nove e meio. Eles devem ter certo botão só para isto com câmeras de vigilância, ou deve haver uma senha, ou terão que pressionar botões em certa sequência. Não tenho nem ideia. Alternativamente, podem pegar as escadas, aqui, mas isto significará escalar trinta andares do nível do chão, com nenhuma garantia que haverá uma entrada para o andar vinte e nove e meio.

- Vamos pensar nisto quando tivermos que fazer. – Puck disse, acenando o assunto para longe. – Então, e quanto ao andar com o cetro? O que podemos esperar?

- Espere um minuto. – Alertei, botando a mão sobre seu peito. – Isto soa terrivelmente arriscado. Não sabemos se podemos até mesmo conseguir entrar no andar vinte e nove? O quanto este plano é bom?

- Vinte e nove ponto cinco. – Puck me corrigiu. – E não é. Bom plano, quero dizer. Mas, olhe por este lado. – Ele sorriu. – Ou nós vamos só com a nossa coragem, ou não vamos de maneira nenhuma. Não há muitas escolhas, Princesa. Mas, não se preocupe. – Ele pôs um braço ao redor dos meus ombros e os apertou. – Você não precisa de um plano. Você tem o Puck, lembra? Sou um expert nisto. E nunca precisei de um plano elaborado para descobrir nada.

Houve um estrépito alto vindo do piano, quando Leanansidhe finalmente convenceu Grimalkin a dormir em outro lugar. Aborrecido, o gato tinha deslizado de seu poleiro e pousado com seu peso inteiro nas teclas, então saltou para o banco. – Não se preocupe, humana. – O gato suspirou, dando a si mesmo uma sacudidela completa. – Vou com vocês também. Com o plano exemplar de Goodfellow, alguém tem que se certificar que entrarão pela porta certa.

- Huh. – Puck bufou e olhou para o felino. – É muito útil vindo de você, gato. O que há nisto para você?

- Grimalkin e eu encontramos uma solução para isto, querido, não se preocupe. – Leanansidhe deu um olhar apressado à planta baixa por sobre os ombros de Puck antes de dispensá-lo com uma fungadela. – Lembrem-se, crianças, quando entrarem no andar onde o cetro está sendo mantido, devem estar preparados para qualquer coisa. Robin, caberá a você e à coisa de ferro proteger a princesa. Estou muito certa de que eles não terão o cetro jazendo por aí, onde qualquer um pode apanhá-lo. Mais provável que existirão guardas, proteções e coisas como estas.

- PROTEGEREI A PRINCESA COM A MINHA VIDA. – Ironhorse ressoou, fazendo Puck fazer uma careta e Kimi escutar atenciosamente. – EU JURO, ENQUANTO AINDA VIVER E

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RESPIRAR, NENHUM MAL ACONTECERÁ A ELA. NÓS RECUPERAREMOS O CETRO, OU MORREREMOS TENTANDO.

- E pessoalmente, preferiria não fazer a coisa de morrer. – Puck adicionou.

Estava a ponto de concordar, quando houve uma comoção no corredor, e um momento mais tarde um humano correu para dentro da sala. Era Charles, o tocador de piano maluco, parecendo mais selvagem e em pânico do que eu nunca o tinha visto, até mesmo mais do que quando nós encaramos os barretes vermelhos. Seus angustiados olhos marrons encontraram os meus e ele investiu adiante, só para ser parado por Ironhorse, parado em frente a mim com um rugido de aviso.

- Ela... ela está partindo? – Charles pareceu completamente desanimado, torcendo as mãos e mordendo o lábio inferior. – Não, não, não. Não pode ir de novo. Não pode desaparecer. Fique.

- Charles. – A voz de Leanansidhe fez o ar tremer, e o pobre homem deu a ela um olhar terrificado. – O que está fazendo aqui? Volte para o seu quarto.

- Está tudo bem, Charles. – Disse rapidamente, enquanto ele parecia à beira das lágrimas. – Não vou embora para sempre. Voltarei, não se preocupe.

Ele parou de torcer suas mãos, endireitou-se, e lançou um olhar certeiro para mim. E só por um momento, eu o vi sem a luz da loucura em seus olhos. O jeito que ele deve ter sido... antes. Jovem. Alto. Bonito, com linhas de gargalhadas ao redor de suas mandíbulas. Um rosto ainda não fatigado. Um que era vagamente familiar.

- Voltará? – Ele murmurou. – Promete?

Aquiesci. – Prometo.

Então Leanansidhe bateu suas mãos, a batida cortante fazendo-nos pular. – Charles, querido. – Ela disse, e era minha imaginação, ou ela soou um pouco nervosa? – Você ouviu a garota. Ela voltará. Agora, porque não acha o outro Charles e acha alguma coisa para tocarem hoje à noite? Vá, agora. Shoo. – Ela ondulou sua mão, e Charles, com um último olhar para mim, cambaleou para fora da sala.

Franzi o cenho para Leanansidhe. – Outro Charles? Há quantos mais?

- Eu chamo todos de Charles, querida. – Leanansidhe deu de ombros. – Sou horrível com nomes, como vocês sem dúvida viram, e machos humanos parecem virtualmente os mesmos para mim. Então eles todos são Charles, por causa da simplicidade.

Grimalkin suspirou e saltou do banco. – Estamos desperdiçando tempo. – Ele anunciou, o rabo de espanador endireitando-se para cima enquanto ele passava trotando. – Se vamos fazer este circo começar, deveríamos ir agora.

- Boa sorte, queridos. – Leanansidhe gritou, enquanto nós seguíamos Grim para fora da sala. – Quando voltarem, devem me dizer tudo sobre isto. Meghan, pombinha, não faça nada que eu não faria.

KIMI E NELSON NOS LEVARAM de volta para o mundo externo. Nós os seguimos através de muitas salas, onde grupos de feéricos e humanos observavam-nos sair, abaixo por um corredor encarpetado em vermelho, então para cima em uma escada longa em espiral que finalmente parou em um alçapão no teto. O alçapão era estranhamente entalhado: redondo, cinza e de aparência pesada. Espiei mais perto e vi que era o fundo de um tampão de bueiro. Quando Nelson o empurrou para cima, para espreitar através dele, a brilhante luz do sol derramou-se através da fenda, e o cheiro de asfalto, alcatrão e gases de escape assaltaram meu nariz. Enquanto o meio-troll vasculhava a rua acima, esperando por uma sinal claro, Kimi virou para mim.

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- Isto é o mais longe que iremos, temo. – A pequena meio-phouka pareceu desapontada, enquanto me entregava um cartão de identidade de plástico em uma fita.

- Vocês não estão vindo?

Ela me deu um sorriso apologético, assentindo para Puck e Ironhorse. – Nah, você tem seus campeões. Esses dois são puros-sangues. Estarão invisíveis para os humanos só em virtude de serem feéricos. Nelson e eu não podemos trabalhar o glamour muito bem, e poderia parecer suspeito se você fosse vista com um par de ratos de rua na cidade. Não se preocupe, contudo. Estamos realmente perto de SciCorp, e daqui pode pegar um táxi ou algo assim. Aqui. – Ela entregou-me uma folha de papel, rabiscado com brilhante tinta verde. – Este é o endereço que está procurando. O trod de volta estará na Fourteenth com a Maple, no segundo bueiro à esquerda. Pegou?

Aquiesci, enquanto meu estômago rodopiava nervosamente. – Peguei.

- Limpo. – Nelson grunhiu, e tirou a tampa de bueiro fora do caminho. Puck escalou primeiro, então me puxou depois dele. Enquanto Ironhorse e Grimalkin arrastavam-se para fora, eu olhava os arredores do meio da rua ativa, uma buzina retumbou, e um brilhante Mustang vermelho guinchou para parar a poucos pés de distância. – Saia da rua, sua vadia maluca! – O motorista berrou da janela, e eu me arrastei para a borda do meio-fio. O motorista partiu, alheio ao corpulento faery Iron que balançou um enorme punho ao exaustor, por pouco o perdendo.

- Você avançou um sinal de qualquer maneira, idiota! – Eu gritei de volta, enquanto Puck e Ironhorse se juntaram a mim na calçada. As pessoas olharam para mim, balançando suas cabeças ou rindo sob seus fôlegos. Eu fiz uma carranca, tentando acalmar meu coração acelerado. Eles não ririam se pudessem ver Ironhorse erguendo-se sobre mim como um guarda-costas protetor, olhando para qualquer um que chegava muito perto.

- Você está bem? – Puck perguntou ansiosamente, ficando tão perto que sua respiração fez cócegas na minha bochecha. Aquiesci, e ele beijou o topo da minha cabeça, fazendo borboletas enxamearem pelo meu estômago. – Não me assuste assim, Princesa.

- Bem, isto foi divertido. – Grimalkin saltou suavemente, direto para a calçada, dando uma amostra do seu time encantador. – Será que estamos prontos para ir, agora? Humana, você sabe para onde estamos indo, correto?

Olhei para o papel abaixo, ainda amarrotado em minha mão. Ela tremeu só um pouco. – Tudo bem se pegarmos um táxi, rapazes?

Puck fez uma cara. – Agora veja, qualquer outra pessoa teria algumas dúvidas sobre andar em uma caixa de metal, mas eu aprendi a lidar. – Ele sorriu. – Todos estes anos que eu peguei o ônibus com você foi uma boa prática. Ainda assim, mantenha as janelas abertas, Princesa.

Achamos um orelhão, e pedimos um táxi. Dez minutos mais tarde, um táxi amarelo brilhante deteve-se, dirigido por um homem barbado mastigando um charuto grosso. Ele se manteve olhando para mim pelo retrovisor e sorrindo, alheio aos dois faeries pressionados em ambos os meus lados, um olhando, outro pendendo sua cabeça para fora da janela. Sentei achatada entre Puck e Ironhorse, com Grim sobre o meu colo e ambas as janelas abertas, enquanto atravessávamos as ruas da cidade. A fumaça do charuto do motorista irritou meu nariz e fez meus olhos lacrimejarem, e Puck parecia positivamente verde.

Finalmente, nós nos detivemos em frente a uma torre cintilante, a luz do sol refletindo-se nas paredes espelhadas enquanto elas se erguiam em direção ao céu. Paguei a corrida de táxi, e nós saímos desordenadamente do carro. Tão logo estávamos fora, Puck começou a tossir. Ele parecia pálido e suado, e meu coração saltou, lembrando de Ash na região desértica dos feéricos Iron. Ironhorse o observou curiosamente, como se fascinado, e Grimalkin sentou para limpar seu rabo.

- Ugh, isto foi desagradável. – Puck murmurou, quando as ásperas explosões finalmente

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pararam. Ele cuspiu na calçada e secou sua boca com as costas de sua mão. – Não sei o que era pior, o táxi ou cheiro vindo do charuto do cara.

- Você ficará bem? – Dei a ele um olhar preocupado, mas ele simplesmente sorriu.

- Nunca estive melhor, Princesa. Então, aqui vamos nós. – Ele ergueu seu pescoço, olhando para a extensão avultante das torres da SciCorp acima. Seus olhos brilharam com familiar travessura. – Vamos deixar que esta festa comece.

MEU CORAÇÃO SE COMPORTOU até que passamos pelas largas portas de vidro. Então ele começou a martelar minhas costelas tão fortemente que pensei que iria quebrar.

- Oh, uau. – Sussurrei, parando para engasgar diante do lobby enorme. Um grande teto abobadado elevava-se sobre nós, talvez oito ou dez lojas, com estranhos desenhos metálicos pendendo de arames, brilhando ao sol. Pessoas em ternos caros se apressavam por nós, sapatos de grife estalando sobre o árido assoalho cinza. Vi câmeras em cada canto, guardas armados pairando de cada catraca dos portões de segurança, e eu tranquei meus joelhos juntos para impedi-los de tremer.

- Firme, Princesa. – Enquanto eu parava lá, ficando de boca aberta como uma idiota, as mãos firmes de Puck vieram repousar sobre os meus ombros. – Você pode fazer isto. Mantenha sua cabeça erguida, suas costas eretas, e não vai doer se zombar de qualquer um que faça contato visual. – Ele apertou meus ombros e inclinou-se perto, sua respiração morna em minha orelha. – Nós estamos bem atrás de você.

Balancei minha cabeça tremulamente para cima e para baixo. Puck apertou meus ombros uma última vez e me soltou. Erguendo meu queixo, tomei um profundo fôlego, endireitei meus ombros e marchei em direção à mesa de segurança.

Um guarda em um uniforme cinza-ardósia me olhou com desinteresse enquanto me aproximava, parecendo o jeito como eu me sentia na aula de álgebra, olhos vidrados e chateados. O homem diante de mim murmurou um rápido “Dia, Ed”, antes de passar seu cartão de identificação debaixo do scanner. A luz vermelha bipou para verde, e o homem passou pela catraca.

Minha vez. Adotando o que eu esperava que fosse uma expressão imperiosa, passeei pelo portão. – Bom dia, Edward. – Cumprimentei, deslizando o crachá de Rosalyn Smith debaixo da luz vermelha tremeluzente. O guarda balançou sua cabeça para cima e para baixo em um sorriso polido, nem mesmo olhando para mim. Há, pensei, triunfante. Isto foi fácil. Temos acesso livre.

Então o escâner soltou um agudo bip de alarme, e meu coração ficou parado.

Ed se levantou, franzindo o cenho. – Desculpe, senhorita. – Ele disse, enquanto o gelo começava a se arrastar pela minha coluna acima. – Mas terei que ver seu crachá.

Puck, Grim e Ironhorse, já no outro lado do portão, olharam para trás medrosamente. Engoli em seco em terror, perguntando-me se deveríamos abandonar o plano agora e dar o fora. O guarda estendia sua mão, esperando, e eu forcei a mim mesma a ficar calma.

- Claro. – Felizmente, minha voz não se quebrou enquanto eu tirava o meu crachá do meu pescoço e o entregava. O guarda o pegou e o segurou diante de seu rosto, estreitando seus olhos. Senti uma dúzia de olhares na minha nuca, e cruzei meus braços, tentando parecer chateada e irritada.

- Desculpe, senhorita Smith. – Ed finalmente olhou para mim. – Mas sabia que seu cartão expirou ontem? Terá que conseguir um novo antes de amanhã.

- Oh. – Alívio floresceu através do meu estômago. Talvez saia dessa, afinal. – Claro. – Murmurei, tentando soar embaraçada. – Venho pretendendo renová-lo, mas sabe o quão ocupado tem sido

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ultimamente. Simplesmente não tenho tido tempo. Cuidarei disto antes que vá embora hoje. Obrigada.

- Sem problema, Senhorita Smith. – Ed me entregou o crachá e bateu seu chapéu. – Tenha uma boa manhã. – Ele pressionou um botão e então acenou para mim.

Apressei-me para as redondezas de uma esquina e desabei contra uma parede, antes que começasse a hiperventilar.

- Nada disto, Princesa. – Puck disse, puxando-me, justo quando um grupo de homens de negócio virava a esquina, falando sobre relatórios, reuniões de equipe e despedir um executivo júnior. Evitei contato visual enquanto eles passavam, mas não prestaram nenhuma atenção em mim.

- A propósito, foi ótima lá atrás. – Puck continuou, enquanto seguíamos nosso caminho pelo brilhante corredor aceso. – Pensei que iria se perder, mas segurou firme. Belo trabalho, Princesa.

Eu sorri.

- Primeiro obstáculo transposto. – Puck continuou alegremente. – Agora, tudo o que temos que fazer é achar o andar vinte e nove ponto cinco, agarrar o cetro, e dar o fora novamente. Estamos a meio caminho de casa.

Fácil para ele dizer. Meu coração tinha se extenuado, e um suor frio ainda estava gotejando pelas costas dos meus joelhos. Estava prestes a dizer isto, quando notei que tínhamos outro problema. – Um, onde está Grimalkin?

Nós olhamos ao redor apressadamente, mas o gato tinha desaparecido. Talvez sua fé no plano tenha sido abalada pela pequena cena no portão, ou talvez ele tenha simplesmente decido ir “pro inferno com isto”, e dado o fora. Não seria a primeira vez.

- POR QUE ELE NOS ABANDONARIA? – Ironhorse questionou, fazendo-me estremecer enquanto sua voz ecoava pelo corredor. Graças aos deuses humanos também não podiam ouvir as vozes dos faeries. – ACHEI QUE O CAITH SIDHE TINHA INTENSÕES HONROSAS. EU NÃO O TINHA JULGADO UM COVERDE.

Puck rosnou. – Você não conhece Grimalkin muito bem, então. – Ele continuou, mas eu não estava certa em concordar. Grimalkin sempre tinha vindo por nós, mesmo quando ele desaparecia sem nenhuma explicação. Apesar de que Ironhorse parecesse aturdido, não parecia preocupado; era mais provável que Grimalkin aparecesse quando menos esperássemos.

- Não importa. – Virei e continuei caminhando. Ironhorse ainda parecia confuso, quase ferido que um aliado pudesse traí-lo assim. Dei a ele o que esperava que fosse um sorriso tranquilizador. – Está certo, Ironhorse. Grim pode cuidar de si mesmo, e ele aparecerá se nós precisarmos dele. Devemos continuar procurando pelo cetro.

- SE VOCÊ DIZ, PRINCESA.

No final do corredor, nós chegamos a um par de elevadores.

- Andar vinte e nove ponto cinco. – Eu meditei, pressionando o botão acima. Alguns segundos se passaram antes que as portas se abrissem com um ding e duas mulheres excitadas passassem por nós sem um segundo olhar. Espiando dentro, eu vasculhei o lugar mas, como esperava, não havia botão 29.5.

Atravessei o limiar da caixa, Ironhorse seguindo as minhas canelas. Uma alegre música de orquestra tocava em um volume silenciado sobre os alto-falantes, e o chão estava encarpetado em vermelho. Puck se apressou para dentro e parou no meio do chão, longe das paredes, braços cruzados apertadamente em seu peito. Ironhorse virou e piscou para mim.

- VOCÊ ESTÁ BEM, GOODFELLOW? – Ele perguntou, sua voz quase trazendo lágrimas

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aos meus olhos, enquanto ecoava dentro do reservado. Puck deu a ele um sorriso assustado.

- Eu? Estou bem. Grande caixa de metal em um grande tubo de metal? Não é um problema. Corra e nos leve para o andar correto, Princesa.

Aquiesci e desdobrei um pedaço de papel do bolso do meu terno, segurando-o sobre a luz. – Bem, é o mesmo que nada. – Murmurei, e comecei a apertar o código nos botões do elevador. 1-1-1-3-1-2-2-1-1-3. Os números acendiam enquanto eram pressionados, tocando um baixo tom, como os teclados de um celular.

Bati o último 3 e recuei, esperando e segurando a respiração. Por um momento, nada aconteceu. A respiração áspera de Ironhorse ecoava pelas paredes de metal, enchendo o reservado com o cheiro de fumaça. Puck tossiu e murmurou alguma coisa por debaixo do fôlego. Comecei a apertar o código novamente, pensando que tinha pressionando um botão errado, quando as portas se fecharam com um farfalhar. As luzes se obscureceram, a música cessou, e um largo botão tremeluziu para dentro da existência, marcado com um 29.5 em negrito.

Troquei um olhar com meus companheiros, que aquiesceram.

- Andar vinte e nove ponto cinco. – Sussurrei, e apertei o botão com meu polegar. – Subindo.

O ELEVADOR PAROU, e as portas abriram com um ding alegre.

Nós espiamos por um longo corredor brilhante, com numerosas portas lineando suas paredes e os azulejos cinza levando a uma única porta no outro lado. Sabia que estávamos no lugar certo. Podia sentir isto no ar, um fraco zumbir, um formigar agudo justo abaixo da minha pele. Fez os cabelos do meu pescoço se levantarem, e era estranhamente familiar. Olhando para Puck e Ironhorse, soube que eles podiam sentir também.

Nós nos movemos lentamente pelo corredor, Puck na frente e Ironhorse fazendo a retaguarda. Ao nosso redor, nossos passos ecoavam no silêncio. Passamos as portas sem hesitação, sabendo que elas eram as erradas. Podia sentir o zumbido ficando maior quanto mais perto chegávamos do final do corredor.

Então, nós estávamos na última porta, e Puck se inclinou contra ela, pondo sua orelha na madeira. Eu não ouço nada, ele balbuciou para nós, e apontou para a fechadura. – Devemos?

Ironhorse aquiesceu, apertando seus grandes punhos. Puck estendeu a mão para baixo e liberou suas adagas, gesticulando para mim com um dedo. Mordendo meu lábio, estendi minha mão e cuidadosamente girei a maçaneta.

A porta balançou para frente com um rangido, e um bafo de ar gélido me atingiu no rosto. Estremeci, resistindo ao impulso de esfregar meus braços enquanto minha respiração se condensava no ar diante de mim. Alguém tinha girado o botão do ar condicionado a algo perto do zero graus; a sala estava um congelador quando caminhamos para dentro.

Um dúzia ou mais de humanos em caros ternos executivos sentavam ao redor de uma longa mesa em forma de U no centro do assoalho. Pelo que parecia, tínhamos interrompido uma reunião de negócios, porque todos eles viraram e olharam para mim com vários graus de aborrecimento e confusão. Ao final da mesa, uma cadeira giratória voltava suas costas para nós, escondendo o palestrante ou chefe executivo ou seja lá pelo que fosse responsável. Subitamente me lembrei de todas as vezes que me esgueirei para dentro da aula atrasada e tive que correr através dos corredores até minha mesa, enquanto todos observavam. Meu rosto queimou, e por um momento, poder-se-ia ouvir um alfinete caindo.

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- Um, desculpe. – Murmurei, recuando. Os engravatados continuaram a olhar para mim. - Desculpe. Sala errada. Nós só... iremos embora.

- Oh, por que você não fica por aqui, minha cara. – A voz zumbida e aguda fez minha pele arrepiar. Na frente da mesa, a figura girou a cadeira para nos encarar, sorrindo. Ela vestia um terno verde-neon, batom azul-radioativo, e brilhantes óculos amarelos sobre um rosto magro e zombeteiro. Seu cabelo, uma miríade de cabos de computador, estava amarrado no topo de sua cabeça em uma imitação colorida de um coque. Ela segurava o cetro em mãos de unhas verdes, como uma rainha observando seus súditos, e meu estômago deu uma sacudidela de reconhecimento.

- VIRUS! – Ironhorse ressoou.

- Não há necessidade de gritar, velho homem. Estou bem aqui. – Vírus pôs seus calcanhares sobre a mesa e nos fitou presunçosamente. – Tenho estado esperado por você, garota. Procurando por isto, é? – Ela ergueu seu braço, e eu ofeguei. O Cetro das Estações pulsava uma estranha luz doentia através dos dedos dela. Vírus arreganhou seus dentes em um sorriso. – Estava esperando a garota e sua turma virem bufando por isto, mas nunca esperei que o honorável Ironhorse se virasse contra nós. Tsk-Tsk. – Ela balançou sua cabeça. – Lealdade é tão superestimada estes dias. Como caíram os valorosos.

- COMO OUSA ME ACUSAR? – Ironhorse avançou, expelindo fumaça de sua boca e narinas. Nós nos apressamos atrás dele. – VOCÊ É A TRAIDORA, QUE SEGUE OS COMANDOS DO FALSO REI. VOCÊ É UMA DOS QUE CAÍRAM.

- Não seja tão melodramático. – Vírus suspirou. – Com sempre, não tem nenhuma ideia do que está realmente acontecendo. Achou que eu quero seguir os sibilos de um monarca obsoleto? Quero ainda menos do que você. Quando ele me pôs a cargo do roubo do cetro, soube que seria o último comando que eu seguiria. Pobre Tertius, acreditando que eu ainda era leal ao seu falso rei. O tolo crédulo me entregou o cetro sem um segundo de hesitação. – Ela sorriu para nós, feroz e cruel. – Agora, eu tenho o Cetro das Estações. Eu tenho o poder. E se o falso rei o quer, terá que tomá-lo de mim pela força.

- Sei. – Eu disse, avançando até parar a alguns pés de distância dela. Ao nosso redor, os homens de ternos continuavam a olhar. – Você quer se tornar a próxima governante. Não tinha nenhuma intenção de dá-lo ao Rei Iron.

- Pode me culpar? – Vírus balançou seus pés para fora da mesa para sorrir para mim. – Quantas vezes você desobedeceu a seu rei porque seus comandos eram um lixo? Goodfellow – ela apontou o cetro para Puck -, quantas vezes o pensamento de se rebelar cruzou a sua mente? Não me fale que tem sido um fiel macaquinho, realizando cada desejo de Oberon, em todos estes anos que o conhece.

- Isto é diferente. – Disse.

- Verdade? – Vírus zombou de mim. – Posso dizer a você, não foi difícil convencer a Rowan. O ódio e o ciúme do garoto foi inspirador. Tudo o que ele precisava era um pequeno empurrão, uma minúscula promessa de poder, e ele traiu tudo o que ele conhecia. Foi ele quem me falou que você estava vindo atrás do cetro, sabe. – Ela bufou. – Claro, as promessas de se tornar imune ao ferro são completamente falsas. Como se milhares de anos de história pudessem ser reescritos ou apagados. Ferro e tecnologia têm sido e sempre serão letais aos feéricos tradicionais. É por isto que somos hereditariamente tão superiores a vocês, sangues-antigos. É por isto que vão cair tão facilmente depois da guerra.

Ironhorse rugiu, a fúria troante de um trem se aproximando. – TOMAREI ESTE CETRO E ENTRONAREI O VERDADEITO REI IRON. – Ele prometeu, dando um amedrontador passo para frente. – VOCÊ O DARÁ PARA MIM AGORA, TRAIDORA. SUAS MARIONETES HUMANAS NÃO SERÃO O SUFICIENTE PARA PROTEGÊ-LA.

- Ah, ah, ah. – Vírus agitou um dedo para ele. – Não tão rápido. Não queria meus zangões aqui em cima porque eles são delicados e meio esponjosos, mas não sou tão estúpida a ponto de ficar desprotegida. – Ela sorriu e olhou ao redor da mesa. – Tudo certo, cavalheiros. Reunião adiada.

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Com isto, todos os humanos sentados nas mesas levantaram, deixando cair glamour como jaquetas descartadas, enchendo o ar com esgarçadas vertentes de ilusão. As fachadas humanas caíram, revelando uma dúzia de faeries em eriçadas armaduras negras, seus rostos doentios e pálidos abaixo de seus elmos. Como um, os Thornguards puxaram suas dentadas espadas negras e as apontaram para nós, encurralando-nos em um anel de aço faery.

Meu estômago revirou-se violentamente, querendo se arrastar para fora da minha garganta e fugir pela porta. Ouvi a exalação de Puck e o bufo consternado de Ironhorse, enquanto ele se aproximava de mim. Vírus riu em silêncio, reclinando-se na cadeira dela.

- Temo que tenha metido seus narizes em uma armadilha, meus caros. – Ela se regozijou, enquanto nós nos retesávamos, prontos para fugir ou lutar. – Oh, mas não queiram se apressar agora. Tenho uma última surpresinha para vocês. – Ela deu risadinhas e estalou seus dedos.

A porta atrás dela se abriu com um rangido, e uma figura sombria caminhou para dentro da sala, parando atrás da cadeira. Desta vez, meu coração caiu nos meus pés e ficou ali.

- Tenho certeza que vocês quatro conhecem uns aos outros. – Vírus disse, enquanto meu mundo se encolhia a um túnel estreito, mantendo tudo mais do lado de fora. – De longe minha maior criação, acredito. Tomou seis Thornguards e quase duas dúzias de zangões para trazê-lo, mas valeu a pena. Irônico, não é? Ele quase levou o cetro na primeira vez, e agora ele fará tudo para mantê-lo aqui.

Não, minha mente sussurrou. Isto não está acontecendo. Não, não, não, não, não.

- Ash - Vírus ronronou, enquanto a figura entrava na luz -, diga olá para nossos convidados.

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CAPÍTULO DEZESSEIS

Traidor

Olhei para Ash em um torpor, dividida entre o alívio que ele estava vivo e um agudo desespero nauseante. Isto não podia ser real, o que estava acontecendo. Tinha entrado em um mundo de pesadelo, onde tudo o que eu amava estava contorcido em algo monstruoso e horrível. Minhas pernas sentiram-se fracas, e tive que me inclinar contra Puck ou teria caído.

Ironhorse bufou. – UMA ILUSÃO. – Ele zombou, olhando para Ash em contemplação. – UM SIMPLES GLAMOUR, NADA MAIS. TENHO VISTO O QUE ACONTECE COM OS SANGUES-ANTIGOS QUE IMPLANTOU SEUS TOLOS BUGS47. FICAM LOUCOS, E ENTÃO MORREM. ESTE NÃO É O PRÍNCIPE WINTER, NÃO MAIS DO QUE ESTES GUARDAS.

- Você acha? – O sorriso de Vírus ficou ainda mais presunçoso. – Bem, se está tão seguro, velho homem, é bem-vindo a tentar pará-lo. Deve ser fácil derrotar um simples guarda, apesar de acreditar que vá achar a tarefa mais difícil do que jamais esperou. – Ela direcionou um sorriso puramente sarcástico para mim. – A princesa sabe, não sabe, minha querida?

Ironhorse virou, uma pergunta em seus olhos, mas não pude tirar meu olhar do guarda-costas de Vírus. – Não é uma ilusão. – Sussurrei. – É realmente ele. – O jeito que meu coração rodopiou ao redor do meu peito provava que isto era real. Dei um passo para frente, ignorando as armas eriçadas dos Thornguards e o olhar afiado do príncipe, cortando-me como uma faca. – Ash – eu sussurrei -, sou eu. Está ferido? Diga alguma coisa.

Ash me fitou vaziamente, nenhum brilho de reconhecimento em seus olhos prateados: nenhuma de raiva, tristeza, nada. – Todos vocês – ele disse em uma voz calma -, morrerão.

Choque e horror lançaram-se através de mim, mantendo-me imóvel. Vírus riu sua odiosa risada zumbida. – É inútil. – Ela zombou. – Ele te escuta, até te reconhece, mas não se lembra de nada de sua vida antiga. Ele está completamente reprogramado, graças ao meu bug. E agora, ele escuta somente a mim.

Olhei mais perto, e meu coração saltou ainda mais. Nas sombras da sala, a face do príncipe estava acinzelada, a pele esticada tão apertada ao longo de seus ossos que rachava em alguns lugares, mostrando feridas abaixo. Suas bochechas estavam ocas; seus olhos, apesar do branco e vazio, estavam brilhando com sofrimento mudo. Reconheci aquele olhar; era o mesmo olhar que Edgebriar tinha nos dado na caverna, equilibrando-se no limite da loucura. – Está o matando. – Sussurrei.

- Bem, somente um pouco.

47 Bug: significa “inseto”. Também é um erro no funcionamento de um software. Optou-se por manter o original. No entanto, em passagem mais adiante, os bugs da personagem Vírus tomam um comportamento mais de inseto, e a expressão será traduzida.

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- Pare isto. – Sibilei, e Vírus arqueou uma sardônica sobrancelha. Meu coração bateu surdamente, mas apertei minhas mandíbulas e continuei. – Por favor. – Implorei, dando um passo para frente. – Deixe-o ir. Deixe-me tomar seu lugar. Eu assinarei um contrato, farei uma barganha, qualquer coisa, se é isto o que quer. Mas tire o bug de sua cabeça e o deixe ir.

- Meghan! – Puck vociferou, e Ironhorse olhou-me em horror. Não me importava. Não podia deixar Ash esvair-se para o nada, como se ele nunca tivesse existido. Imaginei a mim mesma no campo das flores brancas, assistindo ao Ash fantasmagórico e Ariella dançarem na luz da lua, juntos finalmente. Exceto que seria uma mentira. Ash não estaria com seu verdadeiro amor, mesmo na morte. Ele não seria nada.

Vírus riu. – Tanta devoção. – Ela murmurou, erguendo-se de sua cadeira. – Estou muito comovida. Venha cá, Ash. – Ash imediatamente deu um passo ao lado dela, e Vírus pousou uma mão sobre seu peito. – Deveria me parabenizar. – Vírus continuou, fitando o príncipe como um estudante com um projeto de ciências vencedor. – Eu finalmente descobri um jeito de implantar meus bugs no sistema feérico sem matá-los completamente, ou levá-los à loucura nas primeiras poucas horas. No lugar de reescrever seu cérebro – ela afastou o cabelo de Ash, e eu apertei meus punhos trementes, lutando contra a urgência de saltar sobre a mesa e arrancar os olhos dela -, eu assumo o controle de seu sistema nervoso central, aqui. – Os dedos dela caíram na base do crânio dele, acariciando-o. – É bem-vinda para tentar removê-lo, suponho, mas temo que seja fatal para ele. Somente eu posso ordenar meus bugs a voluntariamente deixarem seus hospedeiros. Quanto à sua oferta... – Ela me jogou um sorriso indulgente. – Você tem somente uma coisa que eu quero, e eu a tomarei de você momentaneamente. Não, acho que prefiro meu guarda-costas como ele é, independente do tempo que lhe resta.

Meu coração bateu surdamente. Ele estava tão perto. Podia alcançá-lo sobre a mesa, agarrar sua mão e o puxar para a segurança. – Ash! – Gritei, estendendo minha mão. – Pule, agora! Vamos, você pode lutar contra isto. Por favor... – Minha voz caiu a um sussurro. – Não faça isto. Não nos faça lutar contra você...

Ash olhava direto para frente, não movendo nenhum músculo, e um soluço entrecortado se liberou da minha garganta. Não podia alcançá-lo. Ash estava perdido para nós. O estranho frio do outro lado da mesa tinha tomado seu lugar.

- Bem. – Vírus deu um passo para trás. – Isto está ficando cansativo. Acho que é hora de tomar o que quero de você, minha cara. Ash. – Ela pôs a mão no ombro dele. – Mate a princesa. Mate a todos.

Com um lampejo de luz azul, Ash sacou sua espada e a golpeou ao longo da mesa. Aconteceu tão rápido, nem mesmo tive tempo de gritar antes que a lâmina gélida riscasse abaixo para o meu rosto.

Puck investiu na minha frente e interceptou a lâmina com a sua própria, desviando-a com um chiado e um turbilhão de faíscas. Cambaleei para trás e Puck agarrou minha cintura, arrastando-me para longe, mesmo quando protestei. – Recue! – Ele gritou enquanto os Thornguards saltavam sobre as mesas com um rugido. Olhei para trás e vi Ash saltando graciosamente acima da mesa, seu terrível olhar vazio fixo sobre mim. – Ironhorse, retroceda, há muitos deles!

Com um bramido e um sopro de chamas, Ironhorse empinou em sua verdadeira forma, bafejando fogo e açoitando com seus cascos. Os guardas caíram para trás em choque e Ironhorse atacou, golpeando muitos para os lados e abrindo o caminho para a porta. Enquanto o enorme feérico Iron passava trovejando, Puck me empurrou para a saída. – Vá! – Ele atirou, e rodopiou para bloquear a espada de Ash, que cortava atrás dele.

- Ash, pare com isto! – Gritei, mas o príncipe Winter não me deu nenhuma atenção. Enquanto os Thornguards se fechavam sobre nós novamente, Puck rosnou uma maldição e lançou uma peluda bola negra no meio deles.

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Ela irrompeu em um enlouquecido urso pardo, que empinou com um rugido ressoante, surpreendendo a tudo na sala. Enquanto os Thornguards e Ash viravam em direção a esta nova ameaça, Puck agarrou minha mão e me arrastou para fora da sala.

- Estive guardando aquele, só para o caso de precisar. – Ele arquejou, enquanto Ironhorse bufava com apreciação. – Agora vamos sair daqui.

Fugimos para o elevador. O corredor parecia mais longe agora, as portas de aço deliberadamente mantendo sua distância. Olhei para trás mais uma vez e vi Ash vindo direto em nosso encalço, sua espada irradiando luz branco-azulada através do corredor. A calma gélida sobre seu rosto enviou um raio de medo puro através de mim, e eu desviei meus olhos dele.

Diante de nós, o elevador soou. Um segundo mais tarde, as portas se abriram deslizando, e um esquadrão de Thornguards caminhou para dentro do corredor.

- Oh, você tem que estar brincando comigo. – Puck exclamou enquanto nós parávamos derrapando. Como um, os cavaleiros sacaram suas espadas e marcharam à frente em uníssono, enchendo o corredor com o som de suas botas.

Olhei para trás de nós. Ash estava avançando firmemente também, seus olhos glaciais e aterrorizantes.

Um estalido ecoou através do corredor e miraculosamente, uma das portas laterais se abriu com um oscilo.

- Que previsível. – Grimalkin suspirou, aparecendo na porta. Nós ofegamos para ele, e ele nos fitou com aborrecimento. – Pensei que poderiam precisar de uma segunda saída. Por que sempre sou eu quem pensa nestas coisas?

- Eu beijaria você, gato – Puck disse, enquanto nós nos amontoávamos pela porta -, se não estivéssemos com tanta pressa. E mais, as bolas de pêlo podem ser desagradáveis.

Eu bati a porta e me encostei contra ela, ofegando enquanto nos familiarizávamos com nossos novos arredores. Uma ampla sala branca se estendia diante de nós, cheia com centenas e centenas de cubículos, criando um labirinto de corredores. Um murmúrio baixo vibrava no ar, acompanhado pelo som rítmico do bater de teclas. Humanos sentavam-se em mesas dentro de cada cubículo, vestidos com camisas brancas e calças cinza idênticas, olhando de olhos vidrados para os monitores enquanto eles continuavam digitando.

- Oua. – Puck murmurou, olhando ao redor. – Cubículo dos infernos.

Simultaneamente, os digitares pararam. Cadeiras se arrastaram e grunhiram quando cada humano na sala ficou de pé e, como um, viraram na nossa direção. E, como um, eles abriram suas bocas e falaram.

- Nós te vemos, Meghan Chase. Você não escapará.

Se eu não estivesse coberta com um profundo desespero de entorpecer os ossos, teria ficado aterrorizada. Puck amaldiçoou e puxou sua adaga justo quando um boom balançou a porta atrás de nós. – Parece que estamos de passagem. – Ele murmurou, estreitando seus olhos. – Grimalkin, mova-se! Enferrujado, limpe um caminho para nós!

Grimalkin ricocheteou dentro do labirinto, esquivando-se de pés e tecendo por entre pernas, enquanto as hordas de Zumbis-zangões vacilavam em nossa direção. Ironhorse pateou o azulejo, abaixou sua cabeça e investiu com um rugido. Zangões arremessaram-se nele, socando e arranhando, mas eles ricocheteavam ou eram lançados para o lado, enquanto o furioso feérico Iron corria pela sala. Puck e eu seguimos no seu caminho, saltando sobre corpos caídos, esquivando das mãos que tentavam nos agarrar. Alguém se aferrou ao meu tornozelo uma vez, mas soltei um grito agudo e o chutei na face, derrubando-o

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novamente. Ele caiu agarrado ao meu sapato, e eu rapidamente chutei o outro para fora, correndo descalça pelo corredor.

O labirinto de corredores e cubículos parecia continuar para sempre. Olhei sobre meu ombro e vi a turba de zumbis avançar escalando sobre a paredes dos cubículos, seguindo-nos.

- Maldição - Puck rosnou, seguindo meu olhar -, eles estão vindo rápido. Quanto falta ainda, gato?

- Aqui. – Grimalkin disse, lançando-se ao redor de um cubículo. A sala finalmente terminava com uma grossa parede branca e uma porta no canto, marcada com um sinal de “Saída”. – As escadas de emergência. – Ele explicou enquanto nós corríamos adiante com alívio. – Isto nos levará para o nível da rua. Apressem-se!

Enquanto nós investíamos para a porta, Ash caminhou de fora de um corredor próximo a nós, aparecendo de lugar nenhum. Não havia tempo para pensar ou gritar um alarme. Lancei-me para o lado, atingindo a parede com um solavanco que arrebatou o ar dos meus pulmões.

O tempo pareceu desacelerar. Puck e Ironhorse gritaram alguma coisa de longe. Uma cegante punhalada de dor atingiu meu braço. Quando eu procurei por ela, minha palma veio pegajosa e úmida. Por um segundo, olhei para os meus dedos, não entendendo.

O que aconteceu? Ash tinha... feito isto? Ash me cortou?

Aturdida, eu olhei para dentro dos olhos glaciais do príncipe Unseelie, sua espada erguida para o golpe fatal.

Por só um momento, ele hesitou. Vi a espada oscilar enquanto seu braço tremia, um pestanejar de tormento cruzando seu rosto. Só um momento, antes que a lâmina viesse reluzindo para baixo, mas foi tempo suficiente para Ironhorse precipitar-se contra nós, afastando Ash para longe. Ouvi o horrendo chiar de metal enquanto a lâmina rasgava o lado de Ironhorse e ele cambaleou, quase caindo sobre seus joelhos. Então Puck estava me puxando em pé, gritando para Ironhorse para se mexer, e eu estava sendo arrastada pela porta, gritando para Puck me deixar ir. Ironhorse ergueu-se e nos seguiu, pingando uma grossa substância negra atrás dele, suas respirações sibiladas ecoando pela escada abaixo. Enquanto escapávamos da SciCorp e fugíamos pelas ruas, a última coisa da qual me lembro foi de estar observando a porta fechada atrás de nós nas escadas e vendo o rosto de Ash através da janela, uma única lágrima congelada em sua bochecha.

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PARTE TRÊS

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CAPÍTULO DEZESSETE

Escolhas

Em meu sonho, ele estava ajoelhado na grama morta abaixo de uma grande árvore de ferro, a cabeça inclinada, o cabelo escuro escondendo seu rosto. Ao nosso redor, um turbilhão de névoa cinzenta cobria tudo além de alguns pés de distância, mas eu podia sentir outra presença aqui, um frio ser hostil, assistindo-me com inteligência cruel. Tentei ignorá-la enquanto me aproximava da figura abaixo da árvore. Ele estava sem camisa, sua pele pálida coberta com minúsculos ferimentos vermelhos, como pontos, por sua coluna e cruzando seus ombros.

Pisquei. Por um momento, eu pude ver as brilhantes cordas de arame afundadas em seu corpo, serpenteando e desaparecendo dentro da névoa. Apressei meu passo, mas com cada passo que eu dava, o corpo debaixo da árvore se movia para mais longe. Comecei a correr, tropeçando e derrapando, mas a névoa estava o arrastando para dentro de seu abraço possessivo, reclamando-o para si mesma.

Desesperadamente, chamei por ele. Ele ergueu sua cabeça, e o olhar em seu rosto estava além do desespero. Era completamente de derrota, sem esperança e dor. Seus lábios se moveram sem palavras, então a névoa ao redor enrolou-se ao redor dele e ele estava perdido.

Eu fiquei lá, tremendo, enquanto a bruma ficava escura, e a outra presença pairou dos limites da minha consciência. Enquanto o sonho esvaía-se e eu afundava dentro da inconsciência, pude ainda ver suas palavras finais, balbuciadas para mim em desespero, e elas me gelaram como nada mais.

- Mate-me.

A CONSCIÊNCIA RETORNOU vagarosamente. Eu me arrastei do sono, sentindo-me atordoada e confusa, enquanto o mundo entrava em foco. Felizmente, reconheci os arredores quase imediatamente. A mansão de Leanansidhe: o vestíbulo, se a enorme lareira era qualquer indicação. Jazia em um de seus confortáveis sofás, vestida em uma camisa folgada e desbotada. Alguém tinha tirado meu terno apertado, e claro que eu tinha deixado meus saltos na SciCorp.

- O que aconteceu? – Murmurei, lutando para sentar. Uma cegante labareda de dor apunhalou meu braço e ombros, e ofeguei.

- Calma, Princesa. – Subitamente Puck estava lá, empurrando-me de volta para baixo. – Você perdeu uma boa quantidade de sangue... e isto te deixou tonta. Desmaiou no nosso caminho para cá. Só sente quieta por um minuto.

Olhei para a grossa gaze envolta ao redor do meu braço e ombro, uma mancha fraca rosa aparecendo pela bandagem. Sequer tinha doído até agora.

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Um nó se apertou em meu estômago, enquanto lembranças nebulosas empurravam-se para a superfície. Minha garganta se fechou, e subitamente senti vontade de chorar. Empurrando aqueles sentimentos para longe, tomei um fôlego trêmulo e foquei no presente.

- Onde está Ironhorse? – Exigi. – E Grim? Todos conseguiram sair bem?

- ESTOU BEM, PRINCESA. – Ironhorse, de volta em sua forma mais humana, espreitou-me sobre o sofá. – UM POUCO MENOS DO QUE QUANDO COMEÇAMOS, MAS AINDA VIVO. MEU ÚNICO PESAR É QUE NÃO PUDE PROTEGÊ-LA COMPLETAMENTE.

- Verdade? – A porta se abriu e Leanansidhe entrou na sala, seguida por Grim e duas fadinhas carregando uma bandeja com canecas. – Eu teria mais alguns pesares que isto, querido. Meghan, pombinha, tente beber isto. Pode ajudar.

Lutei para sentar, rangendo meus dentes contra a dor. Puck ajoelhou ao lado do sofá e me ajudou com a posição, então me entregou a caneca que as fadinhas ofereciam. O líquido quente cheirava fortemente a ervas, fazendo meus olhos lacrimejarem. Tomei um gole cauteloso, fiz uma careta, e engoli o resto.

- Kimi e Nelson? – Perguntei, forçando mais da coisa para baixo. Gah, era como beber água de cheiro com água quente, mas podia sentir isto funcionando, enquanto deslizava pela minha garganta abaixo... uma morna sonolência esgueirando-se pelo meu sistema. – Eles estão aqui, também?

Leanansidhe passeou ao redor do sofá, traçando fumaça de sua piteira. – Ainda não chequei, querida, mas estou certa que eles estão bem. São crianças espertas. – Com um floreio, sentou na cadeira oposta e cruzou as pernas, observando-me por cima do cigarro. – Então, antes que isto funcione, pombinha, por que não me conta o que aconteceu lá? Grimalkin me falou alguma coisa, mas ele não estava lá por toda a operação, e eu não posso conseguir uma história coesa deste par – ela balançou seu cigarro para Ironhorse e Puck –, porque eles estão muito ocupados se preocupando com você. Por que não puderam pegar o cetro, querida? O que aconteceu na SciCorp?

As memórias fluíram, e o desespero que eu tinha estado escondendo caiu como um pesado cobertor. – Ash. – Sussurrei, sentindo as lágrimas alfinetarem meus olhos. – Foi Ash. Ela o tem.

- O príncipe?

- Vírus o tem. – Continuei em torpor. – Ela pôs um de seus bugs de controle da mente dentro dele, e ele nos atacou. Ele tentou... tentou nos matar.

- É ele quem protege o cetro. – Puck acrescentou, caindo em uma cadeira. – Ele e cerca de duas dúzias de nojentos Thornguards, e um prédio inteiro de zangõezinhos humanos de Vírus. – Ele balançou sua cabeça. – Já tinha lutado com Ash antes, mas não assim. Sempre que duelávamos, sempre havia uma pequena parte dele, bem no fundo, que não o fazia a sério. Conheço sua real geleza, e sabia que ele não queria me matar realmente, não importava o quanto ele alardeava o contrário. É por isto que nossa pequena contenda tem durado tanto. – Puck bufou e cruzou seus braços, parecendo solene. – A coisa com a qual lutei hoje não era o congelante Príncipe do Gelo que todos nós conhecemos e amamos. Não há nada mais lá. Nem raiva, nem ódio, nem medo. Ele é mais perigoso agora do que ele jamais foi, porque ele não liga se vive ou se morre.

O silêncio caiu. Tudo o que eu podia ouvir era o fraco som de Grimalkin afiando suas garras no sofá. Queria ficar ali e chorar, mas as ervas estavam funcionando, e minha depressão estava cedendo para uma dormente exaustão. – Então – Leanansidhe se aventurou finalmente –, o que vão fazer agora?

Eu enrijeci, lutando contra a sonolência. – Voltaremos. – Murmurei, olhando para Puck e Ironhorse, esperando que eles me apoiassem. – Nós temos. Temos que pegar o cetro e parar a guerra. Não há nenhum outro caminho. – Ambos aquiesceram solenemente, e eu relaxei, agradecida e aliviada que eles me

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seguiriam nisto. – Ao menos sabemos contra o quê estamos lutando agora. – Continuei, agarrando-me a um frágil raio de esperança. – Devemos ter uma chance melhor na segunda vez.

- E o Príncipe Winter? – Leanansidhe perguntou suavemente. – O que vão fazer com ele?

Olhei para ela afiadamente, prestes a dizer a ela que salvaríamos Ash e eu não gostei no que ela estava insinuando, mas Puck me desconcertou.

- Nós temos que matá-lo.

O mundo parou em um grito. Vagarosamente, virei minha cabeça para encarar Puck, incapaz de acreditar no que tinha acabado de ouvir. – Como pôde? – Sussurrei. – Ele era seu amigo. Lutaram lado a lado. E agora quer deitá-lo abaixo como se ele fosse nada!

- Você viu o que ele fez. – Puck encontrou meus olhos, suplicando. – Viu o que ele é agora. Não acho que possa lutar com ele sem me conter. Se ele te atacar novamente...

- Você não quer salvá-lo. – Acusei, inclinando-me para frente. Meu braço latejou, mas eu estava muito irada para me importar. – Você não quer nem mesmo tentar! Está com ciúmes, e sempre o quis fora do caminho!

- Eu nunca disse isto!

- Você não precisou! Posso ver isto em seu rosto!

- ELE ESTÁ MORRENDO, PRINCESA.

As palavras congelaram em minha garganta. Olhei para Ironhorse, silenciosamente suplicando-lhe para estar errado. Ele devolveu o olhar com uma expressão cheia de pena. – Não. – Balancei minha cabeça, lutando contra as lágrimas persistentes que alfinetavam os meus olhos. – Não acreditarei nisto. Deve haver uma maneira de salvá-lo.

- SINTO MUITO, PRINCESA. – Ironhorse arqueou sua cabeça. – EU CONHEÇO SEUS SENTIMENTOS PELO PRÍNCIPE WINTER, E QUERIA QUE PUDESSE DAR A VOCÊ BOAS NOTÍCIAS. MAS NÃO HÁ MANEIRA DE REMOVER PELA FORÇA OS BUGS UMA VEZ QUE TENHAM SIDO IMPLANTADOS. NÃO SEM MATAR O HOSPEDEIRO. – Ele suspirou, e seu tom suavizou, apesar de que não o volume. – GOODFELLOW ESTÁ CERTO. O PRÍNCIPE WINTER É PERIGOSO DEMAIS. SE ELE ATACAR NOVAMENTE, NÃO PODEREMOS NOS CONTER.

- Quanto a Vírus? – Pressionei, relutante em ceder. – Ela é quem controla os bugs. Se nós a pegarmos, talvez sua influência sobre ele vá...

- Mesmo se for o caso – Puck interrompeu -, o bug ainda estaria dentro dele. E com nenhuma forma de tirá-lo, ele ainda chegaria à loucura, ou estaria em tal tormento que seria melhor estar morto. Ash é forte, Princesa, mas esta coisa dentro dele o está matando. Você viu, você ouviu o que Vírus disse. – Sua testa franziu, e sua voz ficou muito suave. – Não acho que ele tenha muito tempo restando.

As lágrimas pressionando atrás dos meus olhos derramaram-se, e eu enterrei meu rosto no travesseiro, mordendo o tecido para me impedir de gritar. Deus, isto não era justo! O que eles queriam de mim? Já não tinham tido o suficiente? Tinha sacrificado tudo – família, casa, uma vida normal – pelo estúpido bem maior. Tinha trabalhado tão duro; estava tentando ser forte e madura sobre tudo, mas agora tinha que assistir enquanto a coisa que eu mais amava era morta na minha frente?

Não podia. Mesmo se fosse impossível, mesmo se Ash me matasse ele mesmo, eu ainda tentaria salvá-lo.

A sala tinha se tornado muito quieta. Espreitei acima e vi que todos exceto Puck tinham saído, deslizando da sala para me deixar chegar a algum termo comigo mesma, e a decisão assomando sobre a minha cabeça, em paz.

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Vendo-me olhar para cima, Puck tentou capturar meu olhar. – Meghan...

Afastei-me, pressionando meu rosto nas almofadas. Ira e ressentimento ferveram; Puck era a última pessoa que queria ver, muito menos falar. Agora mesmo, eu o odiava. – Vá embora, Puck.

Ele suspirou e se ergueu da cadeira, vindo se empoleirar no sofá perto de mim. – Bem, você sabe que isto nunca funciona.

O silêncio estendeu-se entre nós. Senti que Puck queria dizer algo, mas não podia ver como encontrar as palavras certas. O que era estranho, nunca o tinha visto hesitar sobre nada.

- Não deixarei você matá-lo. – Eu finalmente murmurei depois de alguns minutos de silêncio.

Houve uma longa pausa antes que ele respondesse. – Você me pediria para observar você morrer? – Ele murmurou vagarosamente. – Aguentar enquanto ele põe uma espada através do seu coração? Ou, talvez, você quer que eu morra ao invés. Poderia simplesmente me falar para ficar quieto enquanto Ash corta minha cabeça. Isto faria você feliz, Princesa?

- Não seja estúpido! – Mordi o meu lábio em frustração e sentei, estremecendo enquanto a sala girava por um momento. – Não quero que ninguém morra. Mas não posso perdê-lo, Puck. – Minha ira abruptamente escoou-se embora, deixando só um desespero profundo. – Não posso perder você, tão pouco.

Puck pôs seus braços ao meu redor e me puxou para perto, gentilmente de forma que a não magoar meu braço ferido. Depositei minha cabeça em seu peito e fechei meus olhos, desejando que eu fosse normal, que eu não tivesse que tomar estas decisões impossíveis, que tudo estivesse bem novamente. Se desejos fossem cavalos...

- O que quer que eu faça, Princesa? – Puck sussurrou no meu cabelo.

- Se houver qualquer jeito pelo qual possamos salvá-lo...

Ele aquiesceu. – Realmente tentarei não matar sua real geleza se nós nos encontrarmos de novo. Acredite ou não, Princesa, não quero Ash morto, não mais do que você. – Ele fungou. – Bem, talvez um pouco menos do que você. Mas... – E ele recuou para me olhar nos olhos. – Se ele puser você em perigo, não me conterei. Esta é a minha promessa. Não arriscarei perder você, nunca, entendeu?

- É. - Eu sussurrei, fechando meus olhos. Aquilo era tudo o que eu poderia pedir. Salvarei você, pensei, enquanto a sonolência esgueirava-se sobre me e minha mente flutuava. Não importa o que, acharei um jeito de trazer você de volta. Prometo.

Estava quase dormindo, beirando à exaustão que roubava todos os meus pensamento coerentes, quando uma batida de porta me acordou à sacudidas e os braços de Puck se estreitaram ao redor de mim.

- Meghan Chase. – A voz de Kimi cortou através da sala, recortada, monótona e mecânica. Olhei para cima e meu estômago caiu.

Kimi e Nelson pararam ao lado da porta como soldados em sentido, a postura tão estranha para ambos que primeiro não os reconheci. Como um, suas cabeças viraram, e eles me deram um olhar vazio. O mesmo olhar que Ash voltou para mim na SciCorp.

- Oh, não. – Sussurrei. Puck ofegou com o choque.

- Nossa Mestra tem uma mensagem para você, Meghan Chase. – Kimi deu um passo pequeno adiante, movendo-se como um robô. – Parabéns por penetrar na SciCorp e, mais impressionante, sair novamente. Tem a minha admiração. Infelizmente, não posso tê-la andando por aí furiosa, fazendo planos de retornar pelo cetro, como sei que irá. Eu o estarei movendo hoje à noite para um local mais seguro. Se você voltar para a SciCorp, temo que a encontre um tanto vazia. Oh, falando nisto, também estou

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enviando Ash para matar sua família. Eles estão em Louisiana, certo?

Eu traguei o ar, e o sangue se esvaiu do meu rosto. A expressão de Kimi não mudou, mas sua voz se tornou zombeteira. – Então você tem uma escolha agora, minha cara. Voltar pelo cetro, ou correr para casa e tentar parar Ash. É melhor se apressar. Ele provavelmente está a meio caminho para o bayou48 a esta altura.

- Mais uma coisa! – Ela acrescentou enquanto eu saltava para meus pés, a sonolência esquecida. Com o coração batendo, eu olhei para ela. O robô Kimi me deu um sorriso vazio. – Quero que se lembre, isto não é um jogo, Meghan Chase. Se pensa que pode valsar dentro do meu covil e tentar pegar o que me pertence sem repercussões, é melhor pensar novamente. Pessoas se machucarão por causa de você. – Kimi deu um passo para frente e estreitou seus olhos. – Não me ataque, criança. Deixe que isto a lembre do que pode acontecer quando você brinca com as garotas grandes.

Kimi convulsionou, a coluna arcando para trás, a boca aberta em um silencioso grito, enquanto ela se retorcia e rebatia. Um momento mais tarde, Nelson fez o mesmo, membros tremendo selvagemente, antes que ambos caíssem no chão.

Puck estava ao lado de Kimi instantaneamente, rolando-a para cima. Os olhos da pequena meio-phouka estavam abertos, olhando para o vazio no teto, e ela não moveu nem um músculo. Mordi meu lábio, meu coração batendo surdamente. – Eles estão... mortos?

Ele parou um momento antes de se erguer sobre seus pés. – Não. Ao menos, não acho. Eles ainda estão respirando, mas... – Ele franziu o cenho, olhando de soslaio para a expressão sem energia de Kimi. – Acho que seus cérebros tiveram um curto-circuito. Ou os bugs os estão mantendo em algum tipo de coma. – Ele balançou sua cabeça, olhando para mim acima. – Desculpe, Princesa. Não posso fazer nada por eles.

- É claro que não pode, querido. – Leanansidhe entrou agitadamente pela porta, seu rosto uma máscara de porcelana, olhos brilhando verde. – Felizmente, conheço um médico mortal que deve ser capaz de ajudar. Se ele não reviver os ratos de rua, então não há nenhuma esperança para eles. – Ela virou para mim, e tentei não me aninhar com medo debaixo de seu olhar. – Está partindo, presumo?

Aquiesci. – Ash está lá fora. – Disse. – Ele está indo atrás da minha família. Tenho que pará-lo. – Estreitei meus olhos, olhando para ela. – Não tente me manter aqui.

Ela suspirou. – Poderia, querida, mas então você estaria em uma completa confusão e inútil para nós. Se há uma coisa que aprendi sobre humanos, é que eles se tornam absolutamente não-razoáveis quando tem haver com família. – Ela fungou e ondulou sua mão. – Então, vá, querida. Resgate sua mãe, pai e irmão, e supere isto. Minha porta ainda estará aberta quando você voltar. Se ainda estivermos vivos, é isto.

- PRINCESA! – Ironhorse abriu a porta surrando-a, patinando até parar no meio da sala, respirando duro. – VOCÊ ESTÁ FERIDA? O QUE ACONTECEU?

Olhei ao redor procurando meus tênis, estremecendo quando uma brilhante garra de dor arrastou-se pelo meu braço acima. – Vírus enviou Ash para matar minha família. – Disse, caindo sobre meus joelhos para espreitar por debaixo do sofá. – Estou indo pará-lo.

- E QUANTO AO CETRO? – Ele continuou, enquanto eu puxava para fora meus tênis e metia meus pés neles, rangendo meus dentes enquanto meu braço latejava com cada movimento. – NÓS DEVEMOS RECUPERÁ-LO ANTES QUE VÍRUS O TENHA MOVIDO. ELA ESTÁ VULNERÁVEL AGORA E NÃO ESTARÁ NOS ESPERANDO. AGORA É A HORA PARA ATACAR.

- Não. – Senti-me puxada em várias direções ao mesmo tempo, e tentei ficar calma. – Sinto muito, Ironhorse. Sei que temos que pegar o cetro, mas minha família vem primeiro. Sempre. Não espero que entenda isto. 48 Bayou: palavra que indica as proximidades de afluentes de rio.

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- MUTO BEM. – Ironhorse disse, surpreendendo-me. – ENTÃO IREI COM VOCÊ.

Surpresa, olhei para ele acima, mas antes que pudesse responder, Grimalkin me interrompeu.

- Uma ideia singular – O gato meditou, saltando direto para a mesa -, e é exatamente o que Vírus está esperando. Devemos tê-la assustado um pouco para que ela reaja tão dramaticamente. Se abandonarmos a missão agora, podemos nunca mais a achar de novo.

- Ele está certo. – Aquiesci, ignorando a carranca de Ironhorse. – Temos que nos dividir. Ironhorse, fique aqui com Grim. Fique procurando pelo cetro e Vírus. Puck e eu iremos atrás de Ash. Estaremos de volta logo que pudermos.

- EU NÃO GOSTO DE DEIXÁ-LA SOZINHA, PRINCESA. – Ironhorse ergueu sua cabeça de um jeito orgulhoso e teimoso. – JUREI QUE A PROTEGERIA.

- Enquanto estávamos procurando pelo cetro, você protegeu. Mas isto é diferente. – Eu me levantei e encontrei seus flamejantes olhos vermelhos. – Isto é pessoal, Ironhorse. E sua missão sempre foi o cetro. Quero que fique para trás com Grim. Continue procurando por Vírus. – Ele abriu sua boca para argumentar, e eu cuspi as últimas palavras. – É uma ordem.

Ele soprou fumaça de suas narinas como um búfalo furioso e se virou. – COMO DESEJAR, PRINCESA.

A voz dele estava dura, mas não havia tempo para se demorar em sentimentos de culpa. Virei para Puck. – Nós temos que chegar a Louisiana rápido. Como saímos daqui?

Ele olhou para Leanansidhe. – Não teria nenhum trod para Louisiana daqui, teria, Lea?

- Há um para Nova Orleans. – Leanansidhe respondeu, parecendo pensativa. – Eu simplesmente adoro Mardi Gras, querido, apesar de que Mab tende a monopolizar a ribalta todo ano. Típico dela.

- É muito longe. – Tomei um profundo fôlego, sentindo o tempo escorregar para longe de mim. – Não há um trod que seja mais perto? Preciso chegar em casa agora.

- As Sarças. – Puck estalou seus dedos. – Podemos ir através das Sarças. Isto nos levará lá mais rápido.

Leanansidhe piscou. – O que o faz pensar que há um trod para a casa da garota através das Sarças, pombinho?

Puck bufou. – Lea, conheço você. Não pode suportar ficar fora do circuito, lembra? Você deve ter um trod que vai para a casa de Meghan a partir das Sarças, mesmo que não possa usá-lo. Sei que queria manter um olho na filha de Oberon. Senão, que espécie de fofoca você perderia?

Leanansidhe puxou seus lábios, como se tivesse engolido alguma coisa azeda. – Você me pegou aí, querido. Embora você não hesite em esfregar sal na ferida, não é? Suponho que possa deixá-los usar aquele trod, mas me deverão um favor mais tarde, querido. – Leanansidhe arfou e bufou seu cigarro. – Sinto que deveria cobrar alguma coisa por deixá-los entrar em meu maior segredo. Especialmente uma vez que eu não tenho nenhum interesse na família da garota. Que é muito chata, exceto o garotinho... ele tem potencial.

- Feito. – Eu disse. – Tem o nosso favor. Ao menos de mim. Agora, nos deixará usá-lo ou não?

Leanansidhe estalou seus dedos, e Skrae, o piskie, flutuou teto abaixo. – Leve-os para a base dos trods – ela ordenou – e os guie para a porta certa. Vá. – Skrae foi para cima e para baixo uma vez e silvou para o meu ombro, escondendo-se em meu cabelo. – Continuarei a ter meus espiões monitorando a

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SciCorp. – Leanansidhe disse. – Ver se eles podem discernir onde Vírus a está levando. Você deve ir andando, querida.

Eu me endireitei e olhei para Puck, que aquiesceu. – Tudo certo, vamos. Grim, mantenha um olho em Ironhorse, sim? Assegure-se que ele não saia perseguindo o exército sozinho. Estaremos de volta logo. – Balancei minha cabeça, deslocando o piskie encostado no meu pescoço. – Tudo certo, Skrae, leve-nos para fora daqui.

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CAPÍTULO DEZOITO

Perto do Gelo

Nossa viagem de volta através das Sarças foi menos excitante que nossa viagem para dentro. Não vimos nenhum dragão, aranhas ou feéricos vespas-assassinas, apesar de que, francamente, eu poderia ter vagado direto para dentro da colméia deles sem notar. Minha mente estava consumida com Ash e minha família. Realmente ele os... mataria? Os cortaria a sangue frio, invisível e silencioso? O que eu faria então?

Pressionei minha palma no meu rosto, tentando em vão parar as lágrimas. Eu o mataria. Se ele ferisse Ethan ou mamãe de qualquer maneira, poria uma faca em seu coração eu mesma, mesmo se eu estivesse soluçando até meus olhos caírem quando fizesse aquilo. Mesmo se eu ainda o amasse mais do que a vida em si.

Doente de preocupação, lutando contra o desespero que ameaçava me derrubar, eu não vi Puck parar até que topar com ele, e ele me estabilizou sem uma palavra. Alcançamos o fim do túnel, onde uma simples porta de madeira esperava nos espinhos a alguns pés de distância. Mesmo na escuridão emaranhada das Sarças, eu a reconheci. Este era o portão que tinha me levado para dentro de Faery, todos aqueles meses atrás. Isto era onde tudo começou, na porta do roupeiro de Ethan.

A nossa frente, Skrae deu um último zumbido e voou de volta pelo túnel, de volta para Leanansidhe para dar seu relatório, assumi. Não havia volta para mim. Estendi a mão para a maçaneta.

- Espere. – Puck ordenou. Virei, impaciente e aborrecida, quando vi a serenidade em seus olhos. – Está preparada para isto, Princesa? – Ele perguntou suavemente. – Seja lá o que tenha atrás desta porta não é mais Ash. Se vamos salvar sua família, não podemos nos conter agora. Teremos que...

- Eu sei. – Interrompi, não querendo ouvir isto. Meu peito se apertou, e meus olhos começaram a lacrimejar, mas eu atirei as lágrimas para longe. – Eu sei. Vamos... vamos só fazer isto, tudo bem? Eu entenderei quando o vir. – E antes que Puck pudesse dizer qualquer coisa mais, abri a porta de um puxão e caminhei através dela.

O frio me bateu imediatamente, levando meu fôlego embora. Ele se pendurava no ar enquanto eu tremia, olhando ao redor em horror, meu estômago revirando-se tão dolorosamente que me senti nauseada. O quarto de Ethan estava completamente envolvido em gelo. As paredes, o armário, a estante; tudo coberto em uma camada de cristal quase a duas polegadas de espessura, mas tão clara que eu podia ver tudo o que estava preso embaixo. Fora da janela, uma fria noite clara brilhou através do vidro, a luz da lua cintilando sem vida sobre o gelo.

- Oh, cara. – Ouvi Puck sussurrar atrás de mim.

- Onde está Ethan? – Engasguei, correndo até a sua cama. A visão horrorosa dele preso no gelo, incapaz de respirar, fez-me virtualmente doente, e eu quase vomitei com o pensamento. Mas a cama de

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Ethan estava vazia, os acolchoados lisos e ainda silenciosos abaixo da camada congelada.

- Onde está ele? – Sussurrei, próxima ao pânico. Então escutei um ruído fraco vindo de debaixo da cama, um suave choramingar soprado. Caindo sob os meus joelhos, espreitei dentro da fresta, atenta a monstros, bichos-papões e as coisas que se escondiam debaixo da cama. Um pequeno amontoado tremente agitava-se no canto mais afastado, e um rosto pálido olhou para cima para mim.

- Meggie?

- Ethan! – Aliviada além das palavras, alcancei-o debaixo da cama e o puxei para fora, abraçando-o apertado. Ele estava tão frio; ele se agarrou a mim com mãos congeladas, seu corpo de quatro anos de idade tremendo como uma folha.

- Você v-voltou. – Ele sussurrou, enquanto Puck cruzava o quarto e fechava a porta sem fazer barulho. – Rápido! Você tem que s-salvar mamãe e papai.

Meu sangue correu frio. – O que aconteceu? – Perguntei, segurando-o com um braço enquanto abria a porta pela qual entramos. Agora era só um roupeiro normal. Puxei um acolchoado que não estava coberto em gelo e o envolvi em Ethan, sentando-o sobre a cama congelada.

- Ele veio. – Ethan sussurrou, puxando as dobras mais apertado ao seu redor. – A pessoa escura. S-Spider me falou que ele estava vindo. Ele me falou para me e-esconder.

- Spider? Quem é Spider?

- O ho-homem debaixo da c-cama.

- Sei. – Eu franzi o cenho e esfreguei seus dedos dormentes entre os meus. Por que um bicho-papão estaria ajudando a Ethan? – O que aconteceu, então?

- Me escondi, e tudo virou gelo. – Ethan apertou minha mão, os grandes olhos azuis implorando pelos meus. – Meggie, mamãe e papai ainda estão lá fora, com ele! Você tem que salvá-los. Faça-o ir embora!

- Nós iremos. – Prometi. Meu coração começou uma batida irregular em meu peito. Vamos fazer isto direito, Ethan, prometo.

- Ele deveria ficar aqui. – Puck murmurou, espreitando através da fresta da porta. – Cara, parece que a casa inteira está congelada. Ash está aqui, certamente.

Aquiesci. Odiava deixar Ethan, mas não havia maneira de eu querer que meu irmão visse o que viria a seguir. – Espere aqui. – Falei a ele, alisando seu cabelo cacheado. – Fique em seu quarto até que eu venha te buscar. Feche a porta e não saia, não importa o que acontecer, ok?

Ele fungou e se aconchegou ainda mais fundo dentro do acolchoado. Com meu coração na garganta, virei para Puck. – Tudo bem. – Sussurrei. – Vamos achar Ash.

Nós nos apressamos pelas escadas abaixo, Puck na frente, eu me apegando ao corrimão porque os degraus estavam escorregadios e traiçoeiros. A casa estava estranhamente silenciosa, um desconhecido palácio de cristal cintilante, o frio tão agudo que cortou meus pulmões e queimou meus dedos enquanto eles agarravam o corrimão.

Nós alcançamos a sala de visitas, encapuzada em sombras exceto pela luz vinda da porta aberta e da piscante estática da televisão. Delineados contra a tela, as cabeças de mamãe e de Luke estavam visíveis sobre o topo do sofá. Inclinando-se juntos, como se dormindo, eles foram congelados solidamente, encasulados em gelo como tudo o mais. Meu coração parou.

- Mamãe!

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Lancei-me para frente, mas Puck agarrou meu braço, mantendo-me afastada. Rosnando, eu virei para ele, tentando afastá-lo às sacudidas, até que eu vi seu rosto. Seus olhos estavam duros, sua mandíbula se firmou enquanto ele me puxava para trás dele, uma adaga aparecendo em sua mão.

Tremendo, eu olhei dentro da sala de visitas novamente, justo quanto Ash se materializou fóra das sombras em uma parede distante, sacando sua espada enquanto o fazia. Na chocante luz azul, ele parecia terrível, sua pele abria-se rachada ao longo de suas maçãs do rosto e seus olhos afundavam em seu rosto. Havia novas feridas sobre seus braços e mãos, onde a pele tinha escurecido ao longo das rachaduras, parecendo queimada e morta. Seus olhos prateados estavam brilhantes com dor e loucura enquanto nos olhava, cada polegada um assassino, mas não conseguia ficar com medo dele. Havia só aflição agora, uma horrível dor de torcer a alma ao saber que, não importava o que acontecesse, tinha que deixá-lo morrer. Se quisesse salvar minha família, Puck teria que matar Ash. Hoje à noite. Bem aqui na minha sala de visitas. Reprimi um soluço e dei um passo para frente, ignorando Puck enquanto ele tentava me agarrar, meus olhos somente para o príncipe sombrio parado do outro lado da sala.

- Ash. – Sussurrei enquanto seus olhos esvoaçaram para o meu rosto, seguindo cada movimento meu. – Pode me ouvir, afinal? Por favor, dê-nos algo. De outra forma, Puck vai... – Engoli em seco, enquanto ele continuava a me fitar vaziamente. – Ash, não posso te deixar machucar minha família. Mas... eu não quero perder você, tão pouco. – As lágrimas derramaram-se, e eu o encarei desesperadamente. – Por favor, diga-me que você pode lutar contra isto. Por favor...

- Mate-me.

Respirei fundo, olhando fixo para ele. Ele ainda estava duro como pedra, os músculos trabalhando em sua mandíbula, como se ele estivesse lutando para falar. – Eu... não posso lutar contra isto. – Ele rangeu, fechando seus olhos em concentração. Seus braços balançaram, e seu aperto na espada se intensificou. – Você tem que... me matar, Meghan. Eu... não posso parar a mim mesmo...

- Ash...

Seus olhos se abriram, olhando para mim uma vez mais. – Fique longe de mim, agora!

Puck empurrou-me para longe, enquanto Ash saltava através da sala, sua espada descendo em um borrão azul. Eu atingi o chão estremecendo, enquanto o gelo raspava minhas palmas e feria meus joelhos. Com minhas costas contra a parede, observei Puck e Ash lutarem no meio da sala de visitas, sentindo-me morta por dentro e por fora. Não podia salvá-lo. Ash estava perdido para mim agora, e pior, um deles iria morrer. Se Puck vencesse, Ash seria morto. Mas se Ash emergisse vitorioso, eu perderia tudo, incluindo minha própria vida. Acho que deveria estar torcendo por Puck, mas o frio desespero em meu coração me impediu de sentir qualquer coisa.

Enquanto Ash rodopiava para longe com um perigoso golpe ascendente, alguma coisa brilhou abaixo de seu cabelo na base de seu crânio. Cambaleando sobre meus pés, estreitei meus olhos e meus sentidos, olhando fixo para aquilo atentamente. Um minúsculo brilho de frio glamour iron brilhou no topo da coluna de Ash e eu ofeguei. Era isto! O bug, a coisa que o estava controlando e, por fim, matando-o.

Como se pudesse sentir meus pensamentos, Ash rodopiou, seus olhos se estreitando em minha direção. Quando a faca de Puck desceu sobre suas costas, ele girou, rebatendo-a para o lado, e transpassou sua arma adiante. Puck rodopiou desesperadamente, mas não foi o suficiente, e a lâmina gélida mergulhou fundo em seu ombro. Gritei alto, e Puck cambaleou para trás, sangue escuro florindo sobre sua camisa, seu rosto apertado em dor.

Ash investiu contra mim, e eu enrijeci, meu coração martelando em meu peito. Todas aquelas vezes assistindo-o lutar me deram uma ideia do que estava vindo. Enquanto a espada golpeava abaixo para minha cabeça, eu mergulhei para frente, ouvindo o selvagem chink da lâmina contra o gelo. Rolando para longe, olhei para trás, vi a espada vindo e me lancei para o lado, mal evitando o segundo golpe que atingiu o chão, crivando-me com lascas de gelo. Olhei para seu rosto, vi sua mandíbula se apertar e seu braço tremer enquanto encontrava meu olhar. Por meio segundo, a espada vacilou, e ele fechou seus olhos...

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Justo quando Puck se ergueu de lugar nenhum com um rosnado e lançou a adaga no peito dele.

O tempo parou. Um grito se abrigou em minha garganta enquanto Puck e Ash olharam um para o outro, os ombros de Puck agitando-se com fôlegos ou soluços, não poderia dizer. Por um momento, eles pararam lá, presos em um mórbido abraço, até Puck soltar um ruído estrangulado e puxar a si mesmo para longe, arrancando a adaga em um borrifar de carmesim. A espada caiu da mão de Ash, atingindo o chão com um tinir vibrante que ecoou através da casa.

Ash cambaleou para trás, conseguindo ficar em pé por um momento, os braços enrolados ao redor de seu estômago. Ele oscilou, pondo suas costas na parede, enquanto sangue escuro começava a gotejar para o gelo, empoçando-se abaixo dele. Enquanto eu finalmente achava a minha voz e gritava seu nome, Ash ergueu sua cabeça e me deu um fraco sorriso. Então aqueles olhos prateados turvaram-se, como o sol desaparecendo atrás de uma nuvem, e ele desabou sobre o chão.

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CAPÍTULO DEZENOVE

Doença

- Ash!

Eu corri para frente, afastando Puck do caminho. Puck tropeçou para o lado, movendo-se como um sonâmbulo. A adaga ensanguentada caiu molemente de sua mão. Ignorando-o, investi em direção a Ash.

- Fique longe!

Sua voz chegou até mim curta, aguda e desesperada. Ash lutou para ficar sobre seus joelhos, os braços ao redor de seu estômago, estremecendo com engasgos agonizantes. Sangue empoçava ao redor dele enquanto erguia sua cabeça, olhos brilhando com angústia. – Fique longe, Meghan. – Ele rangeu, uma linha de vermelho pingando de sua boca. – Eu poderia ainda... matar você. Deixe-me. – Ele fez uma careta, fechando seus olhos, uma das mãos agarrando seu crânio. – Ainda posso... sentir isto. – Ele disse asperamente, estremecendo. – Está em... choque agora, mas... está ficando forte novamente. – Ele engasgou, apertando seus dentes em dor. – Maldição, Goodfellow. Você poderia ter... feito o serviço completo. Apresse-se e acabe com isto.

- Não! – Gritei, precipitando-me para baixo ao seu lado. Ele se afastou de mim, e eu segurei seu ombro.

Foi como tocar em uma cerca elétrica, sem o choque. Senti uma corrente de forte glamour metálico vindo de Ash, zumbindo em meus ouvidos e vibrando em meus sentidos. Senti algo dentro de mim respondendo, como uma corrente abaixo da minha pele, correndo para cima das pontas dos meus dedos, e subitamente tudo estava muito claro. Se glamour era emoção primitiva e paixão, isto era a ausência deles: lógico, calculista, impassivo. Senti todo o meu medo, pânico e desespero drenar-se, e olhei para Ash com uma nova curiosidade. Isto era um problema, mas como eu iria consertar? Como resolveria esta equação?

- Meghan, fuja. – A voz de Ash estava estrangulada, e aquilo foi todo o alerta que tive antes que seus olhos ficassem vidrados e suas mãos se apressassem ao redor da minha garganta, cortando o meu ar. Engasguei e agarrei seus dedos, olhando para seus olhos vazios enquanto uma afiada voz zumbida ecoava através da minha cabeça.

- Mato você.

Eu engasguei sem ar, lutando para ficar calma, para ficar conectada com aquele frio glamour impassivo zumbindo debaixo da minha pele. Enquanto eu olhava dentro de seus olhos, pude ver o bug, seu olhar cheio de ódio espiando de volta para mim. Pude ver seu redondo corpo na forma de um carrapato, pinçado no topo da espinha de Ash, o parasita metálico que o estava matando. Pude ouvi-lo, sabia que poderia me ouvir também.

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- Meghan! – Puck arrebatou a espada de gelo de onde ela jazia, esquecida, e a ergueu sobre sua cabeça.

- Puck, não. – Minha voz saiu ríspida, mas calma. Lutei por ar senti o aperto de Ash afrouxar minusculamente. Ele fechou seus olhos, quebrando minha conexão com o bug, mas eu ainda podia sentir o glamour iron, zumbindo por todo o meu redor. Ele estava lutando contra seus comando, seu rosto apertado com concentração, suor correndo por sua pele.

- Faça. – Ele falou rispidamente, e eu descobri que ele falava com Puck, não comigo.

- Não! – Encontrei o olhar conflituoso de Puck, vi o balançar da espada enquanto ele a manejava em direção a Ash. – Puck, não! Confie em mim!

Minha visão estava ficando imprecisa. Não tinha muito tempo. Rezando para que Puck hesitasse um pouco mais, virei para Ash, descansando minha palma contra seu peito. – Ash – disse, esperando que minha voz lacerada chegasse até ele –, olhe para mim, por favor.

Primeiro ele não respondeu, seus dedos tremendo enquanto ele lutava contra a compulsão de esmagar minha garganta. Quando ele olhou para cima, a selvagem angústia, horror e tormento em seu rosto era agonizante. Mas, além de seus olhos cheiros de dor, pude ver o parasita, enquanto aquilo apertava seu julgo sobre ele. Minha determinação ergueu-se para encontrá-lo, glamour iron rodopiando ao nosso redor. Moldei o glamour com um comando, e o enviei para acertar o bug metálico.

Deixe-o ir, disse a ele, pondo tanta força nas palavra quanto eu podia.

Ele zumbiu furiosamente e se apertou ainda mais, e Ash gritou em agonia. Seus dedos em minha garganta se apertaram, esmagando minha traquéia e tornando meu mundo vermelho com a dor. Eu verguei, lutando para ficar consciente, vendo a escuridão rastejando ao longo das bordas da minha visão. Não! Eu disse a aquilo. – Eu não perderei para você. Eu não desistirei dele! Deixe-o ir!

O bug sibilou novamente... e afrouxou seu aperto, ainda lutando comigo de qualquer forma. Eu pus minha mão tremente contra o peito de Ash, sobre seu coração, sentindo-o estrondear contra suas costelas. O agarre de Ash se apertou uma vez mais, e o mundo começou a ficar negro. Saia, rosnei com a minha última força. Saia dele, agora!

Uma crepitação e um lampejo de luz, e Ash se convulsionou, afastando-me para longe. Caí contra o chão frio, batendo minha cabeça contra o gelo, a escuridão momentaneamente me cegando. Lutando por ficar consciente, vi um brilho de luz, alguma coisa minúscula e metálica, voar em direção ao teto, e Ash olhando fixo para suas mãos em horror. O metal faiscou flutuando sobre o ar por um momento, então zuniu em direção a mim com um zumbido furioso.

A mão de Puck se lançou, arrebatando o bug do ar, arremessando-o para o chão. Por meio segundo, aquilo jazeu lá brilhando friamente contra o gelo. Então a bota dele o esmagou e afundou o bug no esquecimento.

Eu me debati para ficar de pé, respirando precariamente, esperando que a sala parasse de girar. Puck ajoelhou-se diante de mim, um ombro coberto em sangue, seu corpo inteiro rígido com preocupação.

- Meghan. – Uma de suas mãos alisou minha bochecha, rude e urgente. – Fale comigo. Você está bem?

Aquiesci. – Acho que sim. – Minha voz veio áspera e grossa, e minha garganta queimava como se eu tivesse estado gargarejando com giletes. Algo frio e úmido pingou direto sobre meu joelho. Olhei para cima e vi que o teto estava ficando rachado e derretido. – Onde está Ash?

Puck moveu-se para o lado, parecendo solene. Ash estava afundado contra a parede em um canto, cabeça baixa, uma das mãos cobrindo suas costelas ainda sangrando. Seus olhos estavam abertos,

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olhando para o chão, para o nada. Com o coração em minha garganta, cautelosamente me aproximei e ajoelhei ao seu lado; vi-o se mexer, muito suavemente, para longe de mim.

- Ash. – Minha preocupação por ele, por Ethan, pela minha família, era um nó doloroso em meu estômago. Ansiei por ajudá-lo, mas a imagem de minha mãe e de Luke, congelados no sofá, encheu-me de horror e medo. Se Ash tinha os machucado, se eles estivessem... Eu nunca o perdoaria. – Minha mãe. – Perguntei, olhando para seu rosto. – Meu padrasto. Você... você fez...?

Ele fez um pequeno balanço com sua cabeça, um minúsculo movimento nas sombras. – Não. – Sussurrou sem olhar para mim, sua voz mole e morta. – Estão só... dormindo. Quando o gelo derreter, ficarão bem, com nenhuma memória do que aconteceu.

Alívio brotou de mim, embora curto. Estendi a mão para tocar seu braço, e ele vacilou como se meu toque fosse veneno.

- O que fará comigo agora? – Ele sussurrou.

A sombra de Puck caiu sobre nós. Olhei para trás e o vi segurando a espada de Ash, um severo olhar assustador em seu rosto. Por um segundo, tive medo que Puck o apunhalaria bem ali, mas ele atirou a lâmina aos pés de Ash e se afastou. – Acha que pode caminhar, Príncipe?

Ash aquiesceu sem olhar para cima. Puck puxou-me relutantemente para que eu ficasse de pé e me colocou de lado. – Irei cuidar de Ash, Princesa. – Ele murmurou, erguendo a mão para interromper meu protesto. – Por que não verifica seu irmão antes de irmos?

- Ir? Aonde?

- Diria que Ash precisa de um curandeiro, Princesa. – Puck olhou para o príncipe atrás e fez uma careta. – Sei que eu precisaria, se tivesse tido um inseto de metal preso dentro da minha cabeça. Provavelmente ele se ferrou muito feio. Felizmente, conheço um curandeiro não muito longe daqui, mas devemos ir agora.

Olhei para mamãe e Luke atrás, para a água pingando vagarosamente de suas siluetas congeladas, e a saudade contorceu meu estômago. Sentia falta deles, e quem sabia quando eu os veria novamente. – Não podemos ficar, só um pouquinho?

- O que dirá a eles, Princesa? – Puck me deu um olhar que era simpático e exasperado ao mesmo tempo. – A verdade? Que um príncipe faery congelou o lado de dentro da casa, com ordens de atraí-la para cá e matá-la? – Ele balançou a cabeça, fazendo sentido mesmo que eu o odiasse e a sua lógica quanto a aquele ponto. – Além disso, precisamos levar sua real geleza ao curandeiro, e logo. Confie em mim, é melhor se sua gente nunca saiba que esteve aqui.

Dei a meus pais um último olhar e aquiesci vagarosamente. – Certo. – Suspirei. – Nunca estive aqui. Deixe-me dizer adeus a Ethan, ao menos.

Sentindo-me velha por dentro e fora, retirei-me pelas escadas acima, parando uma vez para olhar para trás. Puck estavam agachado em frente ao príncipe Unseelie, seus lábios movendo-se silenciosamente, mas Ash estava olhando direto para mim, seus olhos brilhando em fendas na escuridão. Mordendo meus lábios, continuei no caminho para o quarto de Ethan.

Achei-o no corredor, espreitando entre os corrimãos, o cobertor ainda envolto sobre seus ombros. – Ethan! – Sibilei, e ele olhou para cima com seus grandes olhos azuis. – O que está fazendo aqui? Falei para ficar em seu quarto.

- Onde está mamãe e papai? – Ele perguntou enquanto eu o pegava no colo, carregando-o de volta ao seu quarto. – Disse para a pessoa má ir embora?

- Eles ficarão bem. – Falei para ele com meu próprio sentimento de alívio. – Ash não os

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machucou, e tão logo o gelo derreta, eles voltarão ao normal. – Embora provavelmente se perguntem por que a casa estaria molhada. O gelo estava derretendo rapidamente, caminhei ao redor de muitas poças enquanto cruzava o corredor até o quarto dele.

Ethan aquiesceu, olhando-me solenemente enquanto eu o acomodava sobre sua cama. – Está indo embora novamente, não está? – Perguntou com naturalidade, apesar de seus lábios tremerem e ele ter fungado, tentando segurar as lágrimas. – Não voltou para ficar comigo.

Suspirei, sentando ao lado dele sobre a cama congelada. – Não ainda. – Murmurei, alisando seu cabelo para trás. – Queria que eu pudesse. Realmente queria, mas... – Ethan fungou, e eu o puxei para mais perto. – Me desculpe. – Sussurrei. – Ainda há algumas coisas que eu tenho que cuidar.

- Não! – Ethan apertou-se em mim, enterrando seu rosto no meu lado. – Você não pode ir embora de novo. Eles não vão te levar de novo. Não vou deixar.

- Ethan...

- Princesssa. – Da escuridão debaixo da cama, alguma coisa agarrou meu tornozelo, garras cavando minha pele. Eu gritei, suspendendo meus pés para cima do colchão, e Ethan soltou um choro assustado.

- Maldito bicho-papão! – Minha garganta ardia com a dor do ataque, fazendo-me ainda mais raivosa. Saltei da cama e espreitei pelo roupeiro de Ethan, agarrando a lanterna ainda mantida no topo. Bichos-papões odiavam luz, e o feixe branco da lanterna podia fazê-los fugir em terror. – Não estou com o humor para isto. – Disse asperamente, agitando o feixe. – Você tem três segundos para sair daí, antes que eu te faça sair.

- Meggie. - Ethan pulou da cama e jogou o acolchoado, pegando minha mão. – Está tudo bem. É só o Spider. Ele é meu amigo.

Olhei para ele, horrorizada. Desde quando bichos-papões fazem amizade com crianças que eles aterrorizam? Não acreditei nisto, mas um suave som de deslizar veio de debaixo da cama, e dois olhos amarelos espiaram acima para mim.

- Não tema, Princesssa. – Ele sussurrou, mantendo um olho cauteloso na lanterna na minha mão. – Estou aqui sob ordensss. Príncipe Asssh nos dissse para observar esssta casssa. Ela essstá sob proteção da Corte Unssselie.

- Ash ordenou isto? Quando?

- Antes que ele viesse cobrar sua barganha, Princesssa. Antes que voltasse com ele para Tir Na Nog. – A coisa deslizou para a borda da fenda, ficando justo fora da luz. – A criança não essstá em perigo – ele disse asperamente -, e nem estão ssseus paisss, apesar de que não saibam que essstamos aqui. Proteger esta casssa e fazer nenhuma travesssura contra aquelesss que aqui vivem, estas são nossas ordensss.

- Ele me conta histórias toda noite. – Ethan disse, olhando para mim acima. – A maioria delas são muito assustadoras, mas eu não me importo. E algumas vezes há um pônei negro no jardim da frente, e um homenzinho no porão. Mas mamãe e papai não os vêem.

Fechei meus olhos. O pensamento de tantos Unseelies rondando minha casa não fez nada para ajudar no meu nervosismo, mesmo se eles estivessem declarando proteger minha família. – Como sabia sobre Ash? – Finalmente perguntei.

- Sssenti o cheiro de feérico Iron vindo, e sssoube que devia proteger o menino, ao menosss. – Spider continuou, abstraído dos meus sentimentos conflituosos. – Puxei-o para debaixo da cama, onde eu o poderia escondê-lo melhor. Imagine minha sssurpresssa quando dessscori que era o próprio Príncipe Asssh, atacando esta casssa. Ele deve ter sssido posssuído, ou talvez fosse um feérico Iron disssfarçado como o príncipe. Mas, segui minhas ordensss, e manti o menino a sssalvo.

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- Bem, estou grata por isto. – Murmurei. Então um pensamento me ocorreu, um que eu quase não tinha perguntado, mas não podia me deixar sozinha. – Meus... meus pais tem... me mencionado? Eles falam sobre mim afinal, ou se perguntam onde eu estou?

- Não sei nada sobre os adultosss, Princesssa.

Isto não importava realmente agora, mas subitamente eu quis saber. Ainda era parte desta família, ou só uma memória a muito esquecida? Como poderia descobrir sem perguntar a mamãe e Luke? Estalei meus dedos. Meu quarto. Tinha deliberadamente o evitado até agora, incerta se eu poderia agüentar vê-lo transformado em um escritório, ou um quarto de visitas, prova de que mamãe tinha me esquecido. Mas com Ethan apertando minha mão, seu cobertor tracejando atrás de nós, eu caminhei pelo corredor para meu quarto e empurrei a porta para abri-la.

Estava exatamente como eu me lembrava, congelado em gelo, familiar e estranho ao mesmo tempo. Um caroço subiu a minha garganta, enquanto eu caminha dentro dele. Nada tinha mudado. Havia meu velho ursinho de pelúcia sentado na minha cama, um presente de aniversário de muito tempo atrás. Meus pôsteres de Naruto49 e Escaflowne50 ainda estavam na parede. Corri meus dedos sobre minha cômoda, vasculhando as fotografias entre a minha espalhada coleção de CDs, agora provavelmente arruinada. Fotos de mim, mamãe e Ethan. Um retrato de família com Luke. Um comigo e Beau, nosso velho pastor alemão, enquanto filhote. E um único pequeno retrato com uma fotografia sobre meu criado-mudo, que eu não reconheci.

Franzindo o cenho, eu o arranquei do gelo e o segurei, olhando para fotografia. Era uma fotografia de mim como uma garotinha, não mais velha do que Ethan, sendo segurada por um homem desconhecido com cabelos curtos castanhos e um sorriso torto.

- Oh, meu Deus. – Sussurrei.

Meus joelhos desabaram, e eu sentei sobre a cama, lodo e água gélida passando através das minhas roupas. Eu mal o senti. Ethan ficou na ponta dos pés para olhar o retrato. – Quem é este? – Ele sussurrou.

Puck apareceu na porta, sua camisa e mãos besuntadas com sangue. – Princesa? Devemos ir. Ash diz que há um tatter-colt51 lá fora que pode nos dar uma carona para o curandeiro. – Ele parou quando viu meu rosto. – O que está errado?

Eu ergui a moldura. – O reconhece?

Puck semicerrou os olhos para a foto, então os alargou. – Diabos. – Murmurou. – É o Charles.

Aquiesci fracamente. – Charles. – Sussurrei, puxando o retrato de volta. – Eu nem mesmo o reconheci. Não sei como não o reconheci... – Parei, lembrando-me de uma velha mulher mexendo na minha cabeça, lançando memórias como folhas, procurando por aquela que queria. Quando fomos pela primeira vez procurar por Ethan e o Rei de Ferro, tínhamos pedido a um antigo Oráculo, vivendo em Nova Orleans, para nos ajudar achar o covil de Machina. O Oráculo concordou em nos ajudar... em troca de uma das minhas memórias. E não tinha dado nenhum pensamento a isto até agora. – Esta foi a troca, não foi? – Perguntei amargamente, olhando para Puck. – O pagamento do Oráculo por nos ajudar. Esta foi a memória que ela tomou.

49 Naruto (em japonês: ナルト?) é uma série de mangá criada por Masashi Kishimoto e serializada na revista semanal Shonen Jump desde 1999. Recebeu uma adaptação para anime em 2002 produzida pelo Studio Pierrot e exibida pela TV Tokyo, seguida de Naruto: Shippūden (Crônicas de um Furacão) em fevereiro de 2007, correspondente à segunda parte do mangá. 50 The Vision Of Escaflowne é um anime de 26 episódios criado pela Sunrise, o mesmo estúdio da série Sweet M. Gundam. Conta a história de uma garota chamada Hitomi que é transportada para o mundo de Gaea, um lugar onde se é possível ver a Terra ao lado da Lua. Ela conhece Van, rei de um pequeno país chamado Fanelia, que possui um raro machine (guymelef) de combate chamada Escaflowne. 51 Parece ser um tipo de cavalo-do-lago.

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Puck não disse nada. Suspirei, olhando para a moldura, então balancei minha cabeça. – Quem é ele? – Perguntei.

- Ele era seu pai. – Puck murmurou. – Ou, ao menos, o homem que você pensava ser seu pai. Antes que você viesse para cá, e sua mãe conhecesse Luke. Ele desapareceu quando você tinha seis anos.

Eu não pude tirar meus olhos da estranha foto, do homem me segurando tão à vontade, ambos sorrindo para a câmera. – Você sabia quem ele era. – Murmurei sem desviar o olhar. – Sabia quem Charles era, não sabia? Todo o tempo em que estivemos em Leanansidhe, você sabia. – Puck não respondeu, e eu finalmente separei meu olhar da foto, olhando para ele. – Por que não me falou?

- E o que teria feito, Princesa? – Puck cruzou seus braços e olhou de volta, impenitente. – Feito uma barganha com Leanansidhe? Arrastado-o para casa novamente, como se nada tivesse acontecido? Acha que sua mãe o aceitaria de volta, sem pensar melhor?

Claro que ela não iria. Ela tinha Luke agora, e Ethan. Nada mudaria, mesmo se eu conseguisse trazer Charles para casa. E a pior parte era, não podia me lembrar por que iria querer.

Minha mente girou. Eu estava me afogando em uma torrente de emoções confusas, sentindo meu mundo cair. O choque da descoberta. Culpa por eu não reconhecer o primeiro marido da minha mãe, o homem que tinha me criado quando criança, e pior, não podia me lembrar de nada sobre ele. Ele era como um estranho na rua. Raiva de Puck. Ele tinha sabido todo o tempo, e deliberadamente me manteve no escuro. Raiva de Leanansidhe. O que diabos ela estava fazendo com o meu pai? Como até mesmo ele chegou lá? E como eu iria conseguir tirá-lo de lá?

Eu queria mesmo o tirar de lá?

- Princesa. – A voz de Puck atravessou meu transe entorpecido. Olhei como que jogando adagas envenenadas nele e ele me deu um sorriso fraco. – Medo. Pode me rasgar em pedaços mais tarde. Sua real geleza não parece tão bem. Temos que levá-lo ao curandeiro, agora.

Ethan fungou e se agarrou à minha perna, seu pequeno corpo apertado com determinação. – Não! – Ele gemeu. – Não, ela não vai. Não!

Olhei para Puck indefesamente, dividida em muitas direções e sentindo que poderia gritar. – Não posso deixá-lo aqui sozinho.

- Ele não estará sozinho, Princesssa. – Veio a voz de Spider de debaixo da minha cama. – Nós o defenderemos com nossas vidasss, como ordenado.

- Pode me prometer isto?

Um sibilo suave. – Como quissser. Nós três da Corte Unseelie, bicho-papão, tatter-colt e cluricaun52, prometemos olhar pelo menino Chassse até que nos seja dito o contrário por Sssua Alteza Príncipe Asssh ou pela própria a Rainha Mab.

Eu ainda não gostava disto, mas era tudo o que poderia fazer por agora. Uma vez que um faery diz a palavras prometo, é um rígido contrato. Ethan, no entanto, gemia e apertava mais forte minha perna. – Não! – Ele gritou novamente, dando vazão a um raro, mas intenso temperamento petulante. – Você não vai embora! Não vai!

Puck suspirou e pousou sua palma gentilmente na cabeça de Ethan, murmurando alguma coisa por debaixo de seu fôlego. Vi uma luz difusa de glamour ir pelo ar, e Ethan caiu contra minha perna, 52 O cluricaun (pronuncia-se /KLU-ra-Kãn/), ou clobhair-ceann na região de O'Kearney, é uma criatura do folclore irlandês muito semelhante ao seu primo, o leprechaun. Há inclusive autores que indiquem que os cluricaun sejam uma "forma diferente" do leprechaun, assumida por este após seu trabalho diário[1] ou em certos momentos do ano. Acredita-se que vivam sempre consumindo bebidas alcoólicas ou bêbados mas, ao contrário dos leprechaun, costumam ser solitários e insociáveis.

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ficando silencioso e com a boca aberta em um meio-grito. Alarmada, o ergui, mas um suave ronco veio de sua boca aberta, e Puck sorriu largamente.

- Realmente tinha que fazer isto? – Disse, embrulhando Ethan no cobertor e carregando-o de volta para seu quarto.

- Bem, era isto ou transformá-lo em um coelho por algumas horas. – Puck estava exasperantemente impenitente enquanto me seguia pelo corredor. – E não acho que seus pais iriam apreciar isto.

Água gélida pingava do teto e corriam cachoeiras pelas paredes abaixo, ensopando brinquedos e animais de pelúcia. – Isto não vai funcionar. – Eu rugi. – Mesmo se ele ficar dormindo, não posso deixá-lo aqui. Ele congelará!

Como se comandado, a porta do roupeiro abriu-se com uma oscilação, morno e escuro e, o mais importante, seco.

- Vamos, Princesa. – Puck urgiu enquanto eu hesitava. – Tome uma decisão aqui. Estamos correndo contra o tempo.

Relutantemente, acomodei o corpinho de Ethan no roupeiro, puxando muitos cobertores para baixo para fazer um ninho ao redor dele. Ele permaneceu em sono profundo, respirando facilmente através de seu nariz e boca, e nem mesmo se mexeu quando eu empilhei os acolchoados ao redor dele.

- É melhor que cuidem bem dele. – Sussurrei para as sombras ao meu redor, sabendo que eles estavam me escutando. Depois de alisar seu cabelo mais uma última vez, puxando as cobertas sobre seus ombros, finalmente me ergui e segui Puck pelas escadas abaixo.

- Espero que Ash não nos desaprove se carregarmos sua carcaça para fora. – Puck murmurou enquanto caminhávamos pelas escadas abaixo, ficando encharcados a cada posso. – Eu o remendei o melhor que pude, mas não acho que ele possa caminhar muito... – Ele se interrompeu quando alcançamos a sala de visitas congelada. A porta da frente rangia suavemente em suas dobradiças, derramando um filete de luz do luar pelo assoalho, e Ash não estava a nenhum lugar à vista.

Eu me lancei através da sala, deslizando sobre o gelo escorregadio, e desatei direto para a varanda. A silueta esguia de Ash estava se movendo silenciosamente pelo jardim, tropeçando a cada poucos metros, um braço ao redor de seu meio. No limite das árvores, escassamente visível dentro das sombras, um pequeno cavalo negro com brilhantes olhos carmesim esperava por ele.

Eu saltei os degraus abaixo e acelerei através do jardim, meu coração batendo em meus ouvidos. – Ash! – Gritei, e investi, agarrando seu braço. Ele se encolheu e tentou me desvencilhar, mas quase caiu com o esforço. – Espere! Onde está indo?

- Atrás do cetro. – Sua voz estava lenta, e ele tentou me empurrar para longe novamente, mas eu me agarrei a ele desesperadamente. – Deixe-me ir, Meghan. Tenho que fazer isto.

- Não, não tem! Não assim. – O desespero ergueu-se como uma onda negra, e eu sufoquei as lágrimas. – O que está pensando? Não pode encarar a todos sozinho. Será morto. – Ele não se moveu, nem mesmo para discordar ou me sacudir para longe, e meu desespero cresceu. – Por que está fazendo isto? – Sussurrei. – Por que não nos deixará te ajudar?

- Meghan, por favor. – Ash soou como se estivesse se agarrando aos últimos fragmentos de sua compostura. – Deixe-me ir. Não posso ficar aqui. Não depois... – Ele estremeceu e respirou irregularmente. – Não depois do que eu fiz.

- Não era você. – Soltando seu braço, eu dei um passo na frente dele, bloqueando seu caminho. Ele não encontrou meus olhos. Fortalecendo-me, fiquei mais perto, achando coragem para gentilmente voltar seu rosto para mim. – Ash, não era você. Não vá se culpando... você não tinha nenhum

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controle sobre isto. Não é culpa de ninguém exceto dela.

Seus olhos prateados estavam assustados. – Isto não desculpa o que eu fiz.

- Não. – Ele se encolheu e tentou me afastar, mas eu o segurei firme. – Mas isto não significa que deve jogar sua vida fora porque se sente culpado. O que isso faria? – Ele me fitou solenemente, sua expressão ilegível, e minha garganta doeu com saudades. Eu ansiei enlaçar meus braços ao redor dele e o abraçar apertado, mas sabia que ele não permitira. – Vírus ainda está lá fora – continuei, sustentando seu olhar -, e agora nós temos uma chance real de conseguir o cetro de volta. Mas temos que fazer isto juntos desta vez. Fechado?

Ele fitou-me solenemente. – Isto é outro contrato?

- Não. – Sussurrei, horrorizada. – Eu não faria aquilo a você novamente. – Ele permaneceu silencioso, olhando para mim, e eu relutantemente o deixei ir, o desespero visceral rasgando meu estômago. – Ash, se você realmente quer ir embora, eu não posso parar você. Mas...

- Eu aceito.

Pisquei para ele. – Aceita? O que...?

- Os termos do nosso contrato. – Ele curvou sua cabeça, sua voz sombria e áustera. – Eu me somarei a vocês até que consigamos o cetro de volta e o devolvermos à Corte Winter. Ficarei com você até estes termos forem cumpridos, isto eu prometo.

- É tudo o que isto é para você? Uma barganha?

- Meghan. – Ele olhou para mim, olhos implorando. – Deixe-me fazer isto. É a única maneira que posso pensar para me reparar com você.

- Mas...

- Então, já acabamos por aqui? – Puck passeou ao meu lado, pondo um braço ao redor dos meus ombros antes que eu o pudesse parar. Ash ofegou, recuando, seus olhos tornando-se frios. Puck olhou para ele passando para o tatter-colt, parado nas árvores, e ergueu uma sobrancelha. – Acho que aquele é nossa carona, então.

O cavalo negro ergueu as orelhas e contorceu seus lábios em um rosnado muito pouco eqüino, arreganhando lisos dentes amarelos para nós. Puck riu em silêncio. – Huh, não acho que seu amigo goste muito de mim, Sua Alteza. Parece que terá que ir montado sozinho até o curandeiro.

- Irei com ele. – Disse rapidamente, dando um passo para fora do abraço casual de Puck. Ele piscou para mim e fez uma careta, enquanto eu o empurrava para o lado. – Ash mal pode se manter sob seus pés. – Sussurrei, equiparando seu olhar. – Alguém tem que ficar com ele. Só quero ter certeza que ele não vai sair por conta própria.

Ele me deu um exasperante sorriso afetado. – Claro, Princesa. Qualquer coisa que disser.

Resisti à urgência de socá-lo. – Só nos leve até o curandeiro, Puck. – Ele rolou seus olhos e saiu a passos largos, olhando para Ash enquanto ele caminhava. Ash o observou sair sem comentários, sua expressão estranhamente sem vida.

Virando para longe, ele cambaleou até o tatter-colt, que inclinou suas pernas dianteiras e ajoelhou-se para ele de forma que pôde empurrar a si mesmo para suas costas com um mal notável gemido. Um pouco nervosamente, aproximei-me do feérico equino, que lançou sua cabeça e chicoteou seu áspero rabo, mas felizmente não investiu ou mordeu. Ele não se ajoelhou para mim, no entanto, e eu tive que escalar para suas costas do jeito difícil, acomodando-me atrás de Ash e envolvendo meus braços ao redor de sua cintura. Por um momento, fechei meus olhos e pousei minha bochecha contra suas costas, contente só de segurá-lo sem medo. Ouvi o bater de seu coração se acelerar, e senti um pequeno tremor percorrê-lo, mas ele

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permaneceu tenso em meus braços, rígido e desconfortável. Um peso de assentou em meu peito, e eu engoli em seco o caroço em minha garganta.

Um grito áspero me fez olhar para cima. Um corvo enorme voou acima de nossas cabeças, tão perto que eu senti o vento de sua passagem tocar meu cabelo. Ele se empoleirou sobre um galho e olhou para nós atrás, os olhos brilhando verdes na escuridão, antes de vociferar outro crocitar e agitar suas asas para dentro das matas tão silenciosamente quanto um fantasma. Virei e observei minha casa ficar menor e menor através dos galhos, até que a floresta se fechou e as árvores a obscureceram completamente.

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CAPÍTULO VINTE

A Curandeira

Nós cavalgamos por um par de horas, enquanto o céu acima de nós se transformava de preto-piche para azul-marinho e para o mais suave tom de rosa. Puck se manteve bem acima de nós, voando de galho em galho até que nós o alcançávamos, então voava para longe novamente. Ele nos levou fundo dentro dos brejos, através de pântanos onde o tatter-colt patinhou por poças à altura da cintura de água barrenta, passando por enormes árvores cobertas de musgo gotejando com trepadeiras. Ash não disse nada enquanto nós viajamos, mas sua cabeça pendia mais e mais baixo quanto mais avançávamos, até que tudo o que eu podia fazer era mantê-lo reto.

Finalmente, quando a última das estrelas se esvanecia no céu, o tatter-colt se direcionou para um grupo de árvores cobertas de trepadeiras para encontrar o corvo empoleirado no topo de uma cabana de aparência rústica no meio do brejo.

Antes que o tatter-colt parasse de se mover, Ash estava escorregando para fora de seu lombo, desabando no chão nevoento. Tão logo ele estava fora, o tatter-colt começou a lançar sua cabeça e pular, até que eu meio deslizei, meio caí de seu lombo para a lama. Bufando, o potro trotou para os arbustos com sua cabeça erguida alto e desapareceu.

Eu me ajoelhei ao lado de Ash, e meu coração se apertou diante de quão pálido ele parecia, as abrasões em seu rosto destacando-se furiosamente contra sua pele pálida. Toquei sua bochecha e gemi, mas ele não abriu os seus olhos.

Puck estava lá subitamente, arrastando Ash para que ficasse de pé, fazendo careta diante da dor de seu próprio ferimento. – Princesa – ele rangeu alto, tomando o peso do príncipe –, vá acordar a curandeira. Diga a ela que temos um príncipe doente pelo ferro em nossas mãos. Mas seja cuidadosa. – Ele sorriu, no seu normal uma vez mais. – Ela pode ser um pouco excêntrica antes que tomar seu café.

Eu escalei os raquíticos degraus de madeira em direção à varanda, que rangeu debaixo dos meus pés. Um grupo de cogumelos, crescendo bem do lado de fora da parede perto da porta, pulsou com uma suave luz laranja, e a própria cabana foi coberta com vários musgos, liquens e cogumelos de diferentes cores. Tomei um profundo fôlego e bati na porta.

Ninguém respondeu imediatamente, então eu bati novamente, mais alto desta vez. – Alô? – Chamei, espiando através de uma poeirenta janela acortinada. Minha garanta esfolada doeu, trazendo lágrimas aos meus olhos, mas eu ergui minha voz outra vez. – Tem alguém aí? Nós precisamos de sua ajuda! Alô?

- Você tem qualquer ideia de que horas são? – Gritou uma voz irritada no outro lado. – Vocês, povo, acham que curandeiros não tem que dormir, é isto? – Passos vacilantes fizeram seu caminho

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até a porta enquanto a voz ainda continuava a murmurar. – De pé toda a noite com um catoblepas53, mas eu consegui qualquer descanso? É claro que não, curandeiros não precisam de descanso. Eles somente precisam beber uma de suas poções especiais e ficam acordados a noite toda, por dias a fim, prontos para pular a cada emergência que venha bater em suas portas às cinco da manhã! – A porta se abriu com um som sibilante, e eu me encontrei olhando para o ar vazio.

- O quê? – Vociferou a voz próxima dos meus pés. Olhei para baixo.

Uma gnomo anciã olhava para mim acima, seu rosto enrugado e murcho como uma nós com uma moita de cabelos brancos desgastados. Mal chegando a dois pés de altura, vestida em um robe uma-vez-branco com minúsculos óculos dourados na ponta de seu nariz, ela me olhou como um urso-anão furioso, olhos negros explodindo com irritação.

Senti uma pontada de reconhecimento. – Sra. ... Sra. Stacy? – Eu disse abruptamente, vendo, por só um momento, minha velha enfermeira da escola. A gnomo piscou para mim, então puxou seus óculos e começou a limpá-los.

- Bem, agora, Srta. Chase. – Ela disse, cimentando meu palpite. – Já faz algum tempo. A última vez que a vi, estava se escondendo em meu escritório, depois daquela brincadeira cruel que aquele garoto aplicou em você na cafeteria.

Eu estremeci com a memória. Aquilo tinha sido o dia mais embaraçoso da minha vida, e não queria pensar sobre isto. – O que está fazendo aqui? – Perguntei, assombrada. A enfermeira bufou e pôs de volta seus óculos no topo de seu nariz.

- Seu pai, Lorde Oberon, fez-me manter um olho em você com o Sr. Goodfellow. – Ela respondeu, olhando acima para mim empertigada. – Se você fosse ferida, eu deveria curar você. Se você visse qualquer coisa estranha, estava lá para ajudá-la a esquecer. Provi Goodfellow com as ervas necessárias e poções que ele precisava para impedi-la de nos ver. – Ela suspirou. – Mas então, você foi perambular por Nevernever para encontrar seu irmão, e tudo se desvendou. Afortunadamente, Oberon me permitiu manter meu trabalho como enfermeira escolar, no caso de você voltar.

Senti uma pequena picada de raiva que esta mulher tivesse me cegado por tanto tempo, mas eu não podia pensar sobre isto agora. – Precisamos de sua ajuda. – Disse, virando-me de forma que ela pudesse ver Puck e Ash vindo direito para a varanda. – Meu amigo foi esfaqueado, mas não só isto, ele está doente pelo ferro e ficando mais fraco. Por favor, pode ajudá-lo?

- Doente pelo ferro? Oh, querida. – A gnomo espreitou através de mim, olhando para os dois garotos feéricos no jardim, e seus olhos ficaram arregalados por trás de seus óculos. – Aquele... aquele é... Príncipe Ash? – Ela engasgou, enquanto o sangue drenava-se de seu rosto. – O filho de Mab? Espera que ajude um príncipe da Winter? Ficou maluca? Eu... não! – Ela recuou pela porta, balançando sua cabeça. – Não, absolutamente não!

A porta começou a fechar, mas eu prendi meu pé no batente, estremecendo enquanto ela esmagava meu pé. – Por favor. – Implorei, abrindo meu caminho através da abertura com os ombros. A enfermeira olhou para mim, repuxando seus lábios, enquanto eu me amontoava no batente. – Por favor, ele pode estar morrendo, e nós não temos nenhum outro lugar para ir.

- Não tenho o hábito de ajudar aos Unseelies, Srta. Chase. – A enfermeira fungou e lutou para fechar a porta, mas não estava me movendo. – Deixe que sua própria gente cuide dele. Estou certa de

53 O catoblepas é um animal mitológico, quadrúpede com uma cabeça grande e pesada, tão pesada que só pode olhar para baixo. Seus olhos são vermelhos e injectados, e ele pode matar somente com o olhar. As suas costas têm escamas que o protegem. Plínio, o Velho, disse que ele vivia na Etiópia. Esta curiosa criatura foi também descrita por Claudio Eliano, Leonardo da Vinci, Topsell e Flaubert. O Padre Manuel Bernardes, fez a seguinte alusão ao monstro: "Vem cá, Catoblepa dos olhos carregados, e focinho derribado sobre a terra, não basta a força de um Deus para os levantares e adora-lo?" (António Feliciano de Castilho, Padre Manoel Bernardes: Excertos, tomo I, Rio de Janeiro, 1865, p. 66). O catoblepas é provavelmente uma visão fantasiosa do gnu ou do pangolim. (Fonte: Wikipédia).

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que a Corte Winter tem sua cota de curandeiros.

- Nós não temos tempo! – A ira inflamou. Ash estava ficando mais fraco. Ele poderia estar morrendo, e com cada segundo, o cetro ficava mais longe. Eu bati meu ombro contra a porta, e ela abriu voando. A enfermeira tropeçou para trás, a mão indo para seu peito, enquanto eu caminhava para dentro da sala. – Sinto muito – falei a ela com a minha melhor voz firme -, mas não estou te dando uma escolha.Você irá ajudar Ash, ou as coisas vão ficar muito desagradáveis em um curto período de tempo.

- Eu não serei intimidada por uma fedelha meio-humana!

Eu me empertiguei e me ergui sobre ela, minha cabeça quase tocando o teto. – Oberon é meu pai, você mesma disse. Considere isto uma ordem da sua princesa. – Quando ela fez uma carranca, seus olhos próximos a afundar dentro das crateras de seu rosto, eu cruzei meus braços e olhei imperiosamente. – Ou, deveria informar meu pai que você se recusou a me ajudar? Que eu vim até você por ajuda, e você me virou as costas? Não acho que ele ficará muito feliz com isto.

- Tudo bem, tudo bem! – Ela ergueu suas mãos. – Não terei nenhuma descanso de outro modo, sei disto agora. Traga o príncipe Winter para dentro. Mas seu pai irá ouvir sobre isto, jovenzinha. – Ela virou e balançou um dedo para mim. – Ele ouvirá sobre isto, e então verá quem será o alvo de sua ira.

Senti uma pequena pontada de culpa por ter que bancar a filhinha do papai, como alguma mimada menina rica, mas ela se esvaiu quando Puck arrastou Ash pelas escadas acima. O príncipe parecia mais espectro do que carne agora, sua pele com um cinza doentio, exceto pelo vermelho furioso das feridas em seu rosto e braços, onde a pele parecia estar descamando dos ossos. Estremeci e meu coração contorceu-se de preocupação.

- Bote ele aqui. – A enfermeira ordenou, direcionando Puck a um pequeno quarto lateral com uma cama baixa. Puck obedeceu, depositando Ash sobre os lençóis antes de desabar em uma cadeira que parecia um enorme cogumelo.

A enfermeira bufou. – Vejo que a princesa o tem nisto também, Robin.

- Não olhe para mim. – Puck sorriu afetadamente e esfregou a mão sobre seu rosto. – Eu fiz o melhor que pude para matar o cara, mas quando a princesa quer alguma coisa, não há como fazê-la mudar de ideia.

Fiz uma carranca para ele. Ele deu de ombros e apresentou um sorriso indefeso, e eu virei para Ash.

- Ugh, ele não só cheira a ferro, ele transpira isto. – A enfermeira murmurou, examinando as feridas no rosto e nos braços dele. – Estas queimaduras não são normais... elas irromperam de dentro para fora. É quase como se ele tivesse alguma coisa de metal dentro dele.

- Ele tinha. – Eu disse calmamente, e a enfermeira estremeceu, esfregando suas mãos. Ela puxou a camisa de Ash para cima, revelando uma camada de gaze que já estava começando a infiltrar sangue em direção ao colchão.

- Ao menos a bandagem foi feita apropriadamente. – Ela meditou. – Muito bom, trabalho limpo. Feito seu, presumo, Goodfellow?

- Qual deles?

- A bandagem, Robin.

- É, este foi meu, também.

A enfermeira suspirou, inclinando-se sobre Ash, estudando os cortes em seu rosto, tirando a gaze para ver o ferimento da adaga. Sua testa se franziu. – Então, deixe-me entender isto direito. – Ela continuou, olhando para Puck. – Você esfaqueou Ash, príncipe da Corte Winter.

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- Culpado como o pecado.

- E, julgando pelas condições de ambos – os olhos dela esvoaçaram para a minha garganta e pelo ombro sangrento de Puck -, estou adivinhando que o príncipe Winter fez isto em vocês, também.

- Certo de novo.

- O que significa que estavam lutando um contra o outro. – Os olhos da enfermeira se estreitaram. – O que significa que ele provavelmente estava tentando matá-los, sim?

- Bem... – Eu balbuciei.

- Então, por que em nome de tudo o que é sagrado quer que eu o cure? Não que não possa – ela acrescentou, erguendo a mão -, mas o que vai impedi-lo de atacar vocês de novo? Ou a mim, já que falamos nisto?

- Ele não irá. – Eu disse calmamente. – Prometo, não irá.

- Está planejando usá-lo como refém, é isto?

- Não! É só que... – Suspirei. – É uma longa história.

- Bem, terá que me contar mais tarde. – A enfermeira suspirou, ficando de pé. – Seu amigo teve muita sorte. – Ela continuou, cruzando a sala para pegar uma botija de porcelana de sua prateleira. – Não sei como não morreu, mas ele é forte, para sobreviver por tanto tempo como ele fez. Deve estar em sofrimento terrível. – Ela voltou para o canto dele, balançando sua cabeça enquanto se ajoelhava ao seu lado. – Posso curar estes ferimentos superficiais, mas não sei o que posso fazer sobre a doença do ferro. Ele terá que se recuperar disto sozinho. É melhor que volte para Tir Na Nog depois disto. Seu corpo irá se livrar da doença mais rápido em sua própria terra.

- Não é realmente uma opção. – Aventurei-me. A enfermeira bufou.

- Então temo que ele fique muito fraco por um longo, longo tempo. – Ela se endireitou e se virou, olhando-nos com suas mãos nos quadris. – Agora preciso trabalhar. Vocês dois, fora. Se estiverem cansados, usem a cama extra no quarto contíguo, mas não perturbem meu outro paciente. O príncipe ficará bem, mas não posso ficar tropeçando sobre vocês a cada poucos passos. Vão indo, agora. Saiam.

Fazendo movimentos de dispensa com suas mãos, ela nos afugentou do quarto e bateu a porta atrás de nós.

MESMO EXAUSTA, eu estava muito preocupada para dormir. Eu perambulei pela pequena cabana da curandeira como um gato irrequieto, checando a porta a cada dez segundos, esperando que se abrisse. Ash estava no outro lado, e não sabia o que estava acontecendo com ele. Estava deixando Puck e o sátiro com a perna quebrada malucos, flutuando de um quarto para o outro, até que Puck ameaçou, só meio-brincando, a lançar um encantamento sobre mim se eu não relaxasse. Ao que eu ameacei, só meio-brincando, que eu o mataria se o fizesse.

Finalmente, a porta se abriu com um rangido e a enfermeira caminhou para fora, manchada de sangue e com os olhos muito cansados, seu cabelo em desordem.

- Ele está bem. – Ela me falou quando eu me apressei, a pergunta na ponta da minha língua. – Como eu disse antes, ainda está fraco da doença do ferro, mas não está mais em perigo. Apesar de que eu devo dizer – e ela me olhou ferozmente -, que o garoto quase quebrou minha cintura quando tentei costurar suas feridas. Miseráveis Unseelies, a única coisa que conhecem é violência.

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- Posso vê-lo?

Ela me olhou sobre seus óculos de aro dourado, e suspirou. – Deveria te dizer não, ele precisa descansar, mas você não me escutará, de qualquer modo. Então sim, você pode vê-lo, mas seja breve. Oh, e Robin – ela disse, curvando um dedo para Puck – uma palavrinha.

Puck me deu uma careta de falso terror e seguiu a enfermeira para fora do quarto. Observei-os sair, então deslizei silenciosamente para dentro do quarto escurecido, fechando a porta atrás de mim.

Movendo-me sobre a cama dele, sentei ao seu lado e estudei seu rosto. Os cortes ainda estavam lá, mas estavam desaparecendo agora, menos severos. Sua camisa tinha sido tirada, e bandagens limpas envolviam seu estômago e dorso. Sua respiração estava lenta e profunda, seu peito subindo e descendo com cada respiração. Estendi a mão e gentilmente a pousei sobre seu coração, querendo tocá-lo, sentir os batimentos de seu coração sob meus dedos. Seu rosto estava pacífico, livre das linhas severas ou preocupações, mas mesmo no sono, parecia um pouco triste.

Ocupada com a observação de seu rosto, não vi seu braço se mover até que dedos fortes se curvaram gentilmente sobre os meus. Meu estômago saltou enquanto eu olhava para baixo, vendo minha mão presa dentro da dele, e olhei de volta para seu rosto. Seus olhos prateados estavam abertos agora, olhando para mim, sua expressão ilegível na escuridão. Minha respiração prendeu-se em minha garganta.

- Oi. – Eu sussurrei, pela falta do que dizer. Ele continuou a me observar, imóvel, e eu continuei com a verboralgia. – Um, a enfermeira disse que vai ficar bem agora. Ficará um pouco doente por causa do ferro, mas ele irá desaparecer com o tempo. – Ele permaneceu em silêncio, seus olhos nunca deixando meu rosto, e minhas bochechas começaram a queimar. Talvez ele só tivesse tido um pesadelo, e eu tinha o assustado por entrar no quarto dele rastejando como um perseguidor. Tinha tido sorte que ele não tivesse quebrado minha cintura como quase tinha feito com a enfermeira. – Desculpe se o acordei. – Murmurei, tentando recuar. – Deixarei você dormir agora.

Seu aperto se intensificou, parando-me. – Fique.

Meu coração disparou. Eu olhei para ele, desejando só poder derreter nele, sentir seus braços ao meu redor. Ele suspirou, e seus olhos se fecharam. – Você estava certa. – Ele murmurou, sua voz quase perdida na escuridão. – Não podia fazer isto sozinho. Deveria ter escutado você em Tir Na Nog.

- Sim, deveria ter. – Sussurrei. – Lembre-se disto, então da próxima vez poderá simplesmente concordar com qualquer coisa que eu diga e ficaremos bem.

Apesar dele não abrir seus olhos, um canto de sua boca se curvou, mesmo que muito suavemente. Era isto que eu estava esperando. Por um momento, as barreiras tinham caído e nós estávamos bem novamente. Apertei sua mão. – Senti sua falta. – Sussurrei.

Queria que ele dissesse Senti sua falta também, mas ele ficou muito imóvel sob minha mão, e meu coração pesou. – Meghan – ele começou, soando desconfortável -, eu... eu ainda não sei se... – Ele parou, abrindo seus olhos. – Nós ainda estamos em lados opostos. – Ele murmurou, sua voz tingida com remorso. – Não mudou, mesmo agora. Contratos a parte, você ainda é considerada minha inimiga. Além disso, pensei que você e Goodfellow...

Balancei minha cabeça. – Puck é... – Eu comecei, e parei. O que ele era? Pensando nele, subitamente entendi que não poderia dizer que era só um amigo. “Só amigos” não beijam uns aos outros em um quarto vazio. “Só amigos” não fariam meu estômago contorcer-se de estranhas formas rodopiantes quando ele entra pela porta. Era isto amor, este estranho, confuso redemoinho de emoção? Não tinha os mesmos intensos sentimentos por Puck que eu tinha por Ash, mas eu senti alguma coisa por ele. Não podia mais negar.

Engoli em seco. – Puck é... – Tentei novamente.

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- É o quê?

Girei. Puck parava na entrada, um sorriso um pouco perigoso em seu rosto, observando-nos com estreitados olhos verdes.

- ... é, está falando com a enfermeira. – Disse fracamente, enquanto Ash soltava minha mão e virava seu rosto para longe. Puck olhou fixo para mim, rígido e desconfortável, como se ele soubesse o que eu estava pensando.

- A enfermeira quer falar com você. – Ele disse afinal, virando-se para fora. – Disse para deixar sua real geleza sozinho então ele poderá dormir. Melhor ir ver o que ela tem para dizer, Princesa, antes que ela comece a atirar sua caneca de café.

Olhei para Ash abaixo, mas seus olhos estavam fechados e ele não estava olhando para mim.

Um pouco apreensiva, eu me aproximei da cozinha, onde a enfermeira sentava em uma mesa com uma caneca fumegante de algo que provavelmente era café, uma vez que o lugar inteiro cheirava a ele. A enfermeira olhou para cima e me indicou a cadeira oposta.

- Sente-se, Srta. Chase.

Eu sentei. Puck se juntou a nós, sentando ruidosamente no assento ao meu lado, mastigando uma maçã que ele tinha pegado quem sabe onde.

- Robin me disse que vocês vão para uma missão perigosa depois disto. – Ela começou, colocando as mãos secas ao redor da caneca, olhando para o café. – Ele não me deu detalhes, mas é por isto que precisa do príncipe Winter saudável, assim ele pode ajudar vocês. Está correto?

Aquiesci.

- O problema é, se for por este plano, é quase certo que você o matará.

Eu me ergui. – Sobre o que está falando?

- Ele está muito doente, Srta. Chase. – Ela olhou por sobre a beirada de sua caneca, fumaça rodopiando sobre seus óculos. – Não estava brincando quando disse que ele estaria fraco. O ferro esteve em seu sistema por muito tempo.

- Não há nada mais que você possa fazer?

- Eu? Não. Ele precisa do glamour de seu próprio reino para se curar, então seu corpo pode livrar-se da doença. Exceto por isto – ela tomou um gole de café -, se pode achar um grande fluxo de emoção humana, em grande quantidades, isto deve ajudá-lo. No mínimo, ele pode começar a se recuperar.

- Montes de glamour? – Pensei um momento. Onde haveria montes de loucas emoções humanas irrestritas? Um concerto ou um clube seria perfeito, mas nós não tínhamos entradas, e eu era menor de idade para a maioria dos clubes. Mas, como Grimalkin tinha me ensinado, isto não era problema quando você pode conjurar dinheiro de folhas e carteira de motorista válida de um cartão Blockbuster. – Puck... acha que pode nos esgueirar para dentro de um clube hoje à noite?

Ele bufou. – Posso nos esgueirar para dentro de qualquer lugar, Princesa. Com quem acha que está falando? – Ele estalou os dedos, sorrindo. – Podemos fazer uma visita ao Blue Chaos novamente, o que seria divertido.

A enfermeira piscou. – Blue Chaos é propriedade de uma sidhe Winter, que emprega barretes vermelhos, e o rumor é que tem um ogro no porão. – Ela suspirou. – Espere. Se insistirem em fazer isto, tenho uma ideia melhor, uma não tão... insana. – Ela parecia pega entre a relutância e a resignação enquanto virava para mim. – O Baile de Inverno é hoje à noite na sua antiga escola, Srta. Chase. Se há um

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lugar que com certeza tem uma superabundância de emoções carregadas de adolescentes cheios de hormônio, seria este.

- O Baile de Inverno? Hoje á noite? – Meu estômago flutuou. Voltar a minha escola significaria encarar meus ex-colegas, e toda a fofoca, rumores e histórias que se seguiriam. Teria que usar um vestido na frente de todos, talvez até dançar, e eles todos ririam, gargalhariam e sussurrariam pelas minhas costas. Pense em uma desculpa, Meghan, rápido. – Como entraremos? Não tenho estado na escolha há uma eternidade, e eles provavelmente estarão monitorando as entradas para se assegurar que somente estudantes participem.

Puck bufou. – Por favor. Quantas destas coisas você acha que eu já burlei? Entradas? – Ele zombou. – Não precisamos de nenhuma entrada podre.

A enfermeira atirou em Puck um olhar aborrecido e virou para mim. – Seus pais pararam as investigações alguns meses atrás, Srta. Chase. – Ela disse solenemente. – Acredito que a desculpa que sua mãe usou foi que você voltou para casa e eles a enviaram para longe, para uma escola nos limites da cidade. Não estou certa sobre o que ela disse ao seu pai...

- Padrasto. – Eu murmurei automaticamente.

- ... mas ninguém está procurando por você já faz algum tempo. – A enfermeira terminou, como se eu não tivesse dito nada. – Sua aparição deverá ser estranha no começo, mas estou certa que Robin pode consertar isto, de forma que passe despercebida. De qualquer forma, eu duvido que qualquer um lembre-se de você.

Eu não estava certa sobre isto. – E quanto ao vestido? – Argumentei, ainda determinada a achar uma fuga. – Não tenho nada para usar.

Desta vez, eu recebi olhares desdenhosos tanto da enfermeira quanto de Puck. – Podemos conseguir um vestido para você, Princesa. – Puck zombou. – Inferno, eu posso te glamourar um vestido feito de diamantes e borboletas, se você quiser.

- Isto é um pouco extravagante, não acha, Robin? – A enfermeira balançou sua cabeça para ele. – Não se preocupe, Srta. Chase. – Ela me falou. – Tenho amigos que podem nos ajudar a este respeito. Terá um lindo vestido para o baile, prometo isto a você.

Bem, este seria um sentimento legal, se eu não estivesse absolutamente aterrorizada. Tentei novamente. – A escola é a quarenta e cinco minutos de distância – apontei -, e eu não tenho uma carteira de motorista. Como chegaremos lá?

- Eu tenho um trod que leva diretamente ao meu escritório na escola. – A enfermeira respondeu, esmagando aquela esperança. – Nós podermos estar lá em segundos, e você não perderá nada.

Maldição. As desculpas estavam acabando rápido. Desesperadamente, joguei minha última carta.

- E quanto a Ash? Deveríamos o remover assim cedo? E se ele não quiser ir?

- Eu irei.

Nós todos nos viramos. Ash parado na entrada, encostado contra o batente, parecendo exausto mas um pouco melhor do que antes. Sua pele tinha perdido a palidez acinzentada, e as feridas através de seu rosto e braços não estavam tão impressionantes. Ele não parecia bem, de qualquer jeito, mas ao menos ele não estava às portas da morte.

Ash firmou um punho na frente de seu rosto, então o deixou cair. – Não posso lutar assim. – Ele disse. – Eu seria uma deficiência, e nossas chances de conseguir o cetro iriam diminuir. Se há uma chance para que eu me livre disto, a tomarei.

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- Tem certeza?

Ele olhou para mim, e um frágil sorriso familiar cruzou seus lábios. – Terei que estar no meu melhor se vou matar coisas por você, certo?

- O que precisa – a enfermeira respondeu, espreitando em direção a ele com um brilho duro como aço em seus olhos – é voltar para a cama. Não gastei as últimas horas costurando você junto novamente para que caia aos pedaços porque se recusou a permanecer deitado. Vá, agora. Volte para a cama!

Ele pareceu vagamente divertido, mas se deixou ser pastoreado de volta para o quarto, e a enfermeira fechou a porta firmemente atrás dele. – Jovens cabeças-de-búfalo. – Ela suspirou. – Acham que são malditamente invencíveis. – Puck riu em silêncio, o que era a coisa errada a se fazer.

Ela deu meia-volta. – Oh, acha que é engraçado, não é, Goodfellow? – Ela vociferou, e Puck estremeceu. – Acontece que eu notei que seu ombro não parece nada bem. De fato, está sangrando por todo o meu chão limpo. Acredito que ele precisa de pontos. Siga-me, por favor.

- É só uma ferida fresca. – Puck disse, e o olhar da enfermeira escureceu. Dando a volta agilmente, ela o agarrou por uma longa orelha e o puxou para fora da cadeira. – Ou! Ei! Ok, ok, eu estou indo, eita!

- Srta. Chase. – A enfermeira vociferou, e eu tremi em atenção. – Enquanto estou consertando este idiota, quero que durma um pouco. Parece exausta. Use a cama vazia no quarto dos pacientes, e diga a Amano que se ele a aborrecer, eu quebrarei sua outra perna. Depois que terminar com Robin, virei com alguma coisa para a sua garganta.

As dúvidas ainda me importunavam, mas eu aquiesci. Achando a cama vazia, deitei, ignorando o sátiro que me convidou a dividir sua “cama mais macia”. Eu só deitarei por um minuto, pensei, virando minhas costas para Amano. Só por um minuto, e então checarei Ash.

- VAMOS LÁ, sua bela adormecida. Temos um baile para comparecer.

Eu acordei, embaraçada e confusa, olhando ao redor com olhos turvos. O quarto estava escuro, candelabros tremeluziam erraticamente, e cogumelos nas paredes brilhavam com uma suave luminosidade amarela. Puck estava de pé sobre mim, sorrindo como sempre, a luz projetando estranhas sombras flutuantes sobre seu rosto.

- Vamos, Princesa. Você dormiu o dia todo e perdeu a diversão. Nossa amável enfermeira trouxe alguns amigos dela para fazer o seu vestido. Eles se recusam a mostrá-lo para mim, é claro, então você tem que marchar até lá e voltar o vestindo.

- Do que você está falando? – Murmurei, antes de me lembrar. O Baile de Inverno! Eu deveria aparecer na minha antiga escola depois de partir por tanto tempo, e encarar todos os meus ex-colegas. Haveria gente apontando, rumores e sussurros às minhas costas, e meu estômago se apertou diante do pensamento.

Mas não havia como voltar atrás agora. Se iríamos pegar o cetro, Ash precisaria se curar, o que significava que eu teria que aguentar a humilhação e simplesmente viver com isto.

Segui Puck para fóra do quarto, onde a enfermeira estava esperando por mim no corredor, um pequeno sorriso satisfeito em seus lábios. – Ah, aí está você, Srta. Chase.

- Como está Ash? – Perguntei antes que ela pudesse dizer qualquer coisa mais. Com um bufar, a enfermeira virou e me chamou a segui-la.

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- O mesmo. – Ela respondeu, liderando-me através do corredor. Nós passamos pelo quarto de Ash, a porta firmemente fechada, e continuamos sem parar. – O tolo teimoso está andando agora, e até mesmo desafiou Robin uma disputa hoje à tarde. Eu os parei, é claro, apesar de que Robin estava simplesmente muito feliz em lutar com ele, o idiota.

- Ei. – Puck disse atrás de nós. – Não fui eu quem propôs. Estava só fazendo um favor pro cara.

A enfermeira girou e fixou nele um olhar verruma. – Você... – Ela começou, então jogou suas mãos para cima. – Vá se aprontar, idiota. Você ficou pairando na porta como um filhote perdido o dia todo. Diga ao príncipe que estaremos partindo tão logo a Srta. Chase esteja pronta. Agora, vá.

Puck recuou, sorrindo, e a enfermeira suspirou. – Aqueles dois. – Ela murmurou. – São melhores amigos ou piores inimigos, não poderia dizer qual. Venha comigo, Srta. Chase.

Ela abriu a porta com um puxão e caminhou através dela, e eu a segui, mergulhando minha cabeça. Entramos em um pequeno quarto com estantes e plantas em vasos circulando as paredes, e um forte cheiro, quase medicinal, enchia o quarto, como se estivesse vagando no jardim herbáceo de alguém. O que, acho, estava. Dois outros gnomos, tão murchos e enrugados quanto a enfermeira, olharam para cima de dois banquinhos de três pernas e acenaram alegremente.

Minha respiração travou. Eles estavam trabalhando em um vestido tão fabuloso que minha mente parou com um cambaleio por um momento. O vestido de cetim azul e longo até o chão pendia de um manequim no centro do quarto, ondulando como a água sobre o sol. O corpete foi bordado com desenhos prateados e fitas brilhantes de luz pura, e um manto azul tinha sido drapejado sobre os ombros nus, tão transparente que era quase invisível. Um diamante cintilante rodeava o pescoço do manequim, enviando prismas de luz fragmentada através das paredes. O traje inteiro era deslumbrante.

Eu engoli em seco. – Isto é... para mim?

Um dos gnomos, um homenzinho com um nariz como uma batata, riu. – Bem, o príncipe certamente não vai usar isto.

- É lindo.

Os gnomos envaideceram-se. – Nossos ancestrais eram sapateiros, mas nós aprendemos a costurar algumas outras coisas, também. Este tecido é mais forte do que o glamour normal, e não irá desgastar se acontecer de você tocar em qualquer coisa feita com ferro. Agora, venha prová-lo.

Ele cabia perfeitamente, deslizando sobre meus ombros como que feito para mim. Captei um brilho de glamour no canto dos meus olhos enquanto eu o vestia, e deliberadamente o ignorei. Se este vestido era feito com folhas, musgo e teia de aranha, eu não queria saber.

Quando eu estava pronta, ergui meus braços e dei um giro para a inspeção. Os gnomos alfaiates bateram palmas como focas felizes, e a enfermeira aquiesceu aprovadoramente.

- Dê uma olhada em si mesma. – Ela murmurou, fazendo um movimento giratório com seu dedo. Eu me virei para ver a mim mesma no espelho inteiro que tinha aparecido de lugar nenhum, e pisquei em surpresa.

Não só o vestido era perfeito, mas meu cabelo estava penteado em complexos cachos, meu rosto suavemente tocado por maquiagem, fazendo-me parecer mais velha do que antes. E, ainda que fosse parte do glamour do vestido ou feito da enfermeira, eu parecia humana novamente, sem as orelhas pontudas e enormes olhos antinaturais. Parecia como uma adolescente normal, pronta para o baile. Ilusão, eu sabia, mas ainda me surpreendia no momento, esta alta e elegante estranha no espelho.

- Os garotos não serão capazes de manter seus olhos distantes dela. – Um gnomo suspirou, e todos os meus medos voltaram correndo. Vestido ideal ou não, eu ainda era eu, a invisível Garota do

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Pântano de Albany High. Nada tinha mudado aquilo.

- Venha. – A enfermeira disse, pondo a mão enrugada em mim. – Está quase na hora.

Voltamos através da porta para a sala central, onde um bonito rapaz em um clássico smoking preto estava esperando por nós. Eu engasguei quando eu vi que era Puck. Seu cabelo carmesim tinha sido espetado, então ele não parecia muito desgrenhado, e seus ombros enchiam a jaqueta que ele usava. Eu não tinha percebido o quão em boa forma ele estava. Seus olhos verdes me esquadrinharam de cima abaixo, muito, muito brevemente antes de retornar ao meu rosto, e ele sorriu. Não provocador ou sarcástico, mas um puro, genuíno sorriso.

- Humph. – Disse a enfermeira, não tão chocada quando eu. – Acho que pode se ajeitar quando quer, Robin.

- Eu tento. – Puck, parecendo muito humano agora, cruzou a sala e alcançou minha mão, deslizando um buquê branco em meu pulso. – Você parece deslumbrante, Princesa.

- Obrigada. – Sussurrei. – Você está bonito, mesmo.

- Nervosa? – Ele perguntou.

Aquiesci. – Um pouco. O que direi se alguém me perguntar onde eu estive? Como explicarei o que tenho feito o ano todo, especialmente depois de chegar marchando como se nada tivesse acontecido? E quanto a você? – Olhei para ele. – Eles não irão se perguntar onde você esteve todo este tempo?

- Não eu. – O sorriso normal de Puck veio cintilando novamente. – Eu estou fora a um tempo muito, muito longo, o suficiente para que qualquer um esqueça que eu sequer estive no colégio. O máximo que terei é um vago reconhecimento, como déjà vu, mas ninguém irá realmente me reconhecer. – Ele deu de ombros. – Uma das regalias de ser eu.

- Sorte sua. – Murmurei.

- Estamos prontos? – A enfermeira perguntou, subitamente aparecendo em seu aspecto humano novamente, uma pequena mulher robusta em um jaleco branco de laboratório, com pele lineada marrom e os mesmos óculos dourados no final de seu nariz. – E se estão se perguntando, sim, estou indo com vocês - ela anunciou, espreitando-nos sobre seus óculos -, só para ter certeza que meu paciente não vai se esforçar tanto a ponto de cair. Então, estamos prontos aqui?

- Ainda estamos esperando por Ash.

- Não mais. – Ela respondeu, olhando sobre meus ombros. Virei lentamente, o coração batendo surdamente contra minhas costelas, não sabendo o que esperar. Por um momento, minha mente ficou completamente vazia.

Eu sonhava com Ash em um smoking, fantasias tolas que cruzavam minha mente com cada vez mais frequência, mas a imagem em minha cabeça estava tão afastada quanto um gato doméstico estava de um jaguar. Seu smoking não era preto, mas um deslumbrante branco imaculado, a jaqueta aberta mostrando um colete branco e uma gravata azul-gelo abaixo. Os botões do punho, o lenço de seda no bolso do paletó e o brilhante brinco em sua orelha era da mesma cor gélida. Tudo mais era branco, mesmo seus sapatos, mas no lugar de parecer fantasmagórico ou apagado, ele enchia a sala com presença, um membro da realeza entre os plebeus. Ele parou na entrada com suas mãos em seus bolsos, a imagem da indiferença, e mesmo como um humano, ele estava muito esplêndido para por em palavras. Seu cabelo negro tinha sido escovado para trás, caindo suavemente ao redor de seu rosto e seus olhos cor de mercúrio, apesar de parecerem pálidos contra todo o branco, cintilavam ainda mais brilhantes que qualquer coisa.

E eles estavam fixos solenemente sobre mim.

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Era incapaz de me mover ou fazer um som. Se meus joelhos já não tivessem ficado presos, teria virado uma poça de azul-acetinado sobre o chão. O olhar de Ash segurava o meu, seus olhos não dispersavam do meu rosto, mas o senti olhando para tudo de mim, tomando-me tão certo quanto Puck tinha verificado o comprimento do meu vestido com um olhar. Não podia parar de olhar de volta. Tudo ao meu redor – barulhos, cores, pessoas – desapareceram dentro do éter, perdendo toda a relevância e significado, até que ficou somente eu e Ash no mundo inteiro.

Então alguém tocou meu cotovelo, e meu coração saltou de volta ao normal

- Ok – Puck disse um pouco alto demais, direcionando-me para longe –, a gangue está toda aqui. Estamos indo para esta festa, ou não?

Ash caminhou ao meu lado. Ele não fez nenhum barulho, mas eu podia sentir sua presença tão seguramente quando a minha própria. Ele não ofereceu seu braço ou fez nenhum movimento para me tocar, mas meus nervos zumbiam e minha pele formigava, só por ele estar ali. Capturei uma insinuação de gelo e o estranho, único, que era unicamente dele, e a memória da nossa primeira dança juntos voltou correndo.

Não me esqueci do sutil olhar que passou entre Ash e Puck, tão pouco. Ash manteve sua expressão cuidadosamente vazia, mas a boca de Puck contorceu-se em um sorriso débil - um dos seus perigosos – e seus olhos se estreitaram uma fração.

A enfermeira deve ter visto também, por que ela bateu as suas mãos vivamente, e eu pulei cerca de três pés no ar. – Posso lembrar a vocês três – ela afirmou em uma voz sem brincadeiras -, que mesmo que isto seja uma festa, estamos lá por uma razão específica. Não estamos lá para acabar com o ponche, seduzir humanos, glamourar a comida, desafiar os machos a uma luta, ou fazer qualquer coisa referente a travessuras. Isto está entendido? – Ela atirou um olhar perfurante a Puck quando disse isto, e ele apontou a si mesmo com um arregalado quem, eu? olhar. Isto não a divertiu. – Eu vou observar vocês. – Ela advertiu, e mesmo que ela mal tivesse quatro pés de altura, cabelos brancos, e fosse enrugada como uma ameixa, ela fez a ameaça soar horrível. – Tentem realmente se comportar.

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CAPÍTULO VINTE E UM

O Baile de Inverno

Era um sentimento estranho, caminhar pelos corredores da minha antiga escola depois de estar fora por tanto tempo. Dúzias de memórias flutuaram pela minha cabeça enquanto nós passávamos por familiares pontos de referência: a sala de aula do Sr. Delany onde eu sentava atrás de Scott Waldron em Literatura Clássica; os banheiros, onde eu tinha gasto um monte de tempo, chorando; a cafeteria, onde Robbie e eu tínhamos sempre comido juntos na última mesa no canto. Tanto tinha mudado desde então. A escola parecia diferente de alguma maneira, menos real do que antes. Ou talvez quem tinha mudado fosse eu.

Cachos de balões azuis e brancos lideravam o caminho para o ginásio, luz e batidas de música vinham da porta dupla e janelas. Meu estômago começou a dar saltos nervosos quanto mais nos aproximávamos, especialmente quando as portas se abriram de um só oscilo e dois estudantes caminharam para fora, de mãos dadas e dando risadinhas. O garoto puxou sua companheira para ele para um longo beijo, com duelar de línguas, antes que eles saíssem e começassem a se arrastar para os fundos do prédio.

- Mmm, cheira a luxúria. – Puck murmurou atrás de mim. A enfermeira bufou.

- Eles não deviam deixar o salão sem supervisão. – Ela rosnou, pondo as mãos sobre seus quadris. – Onde estão os acompanhantes? Suponho que terei que cuidar disto. Vocês três, comportem-se. – Ela se afastou, virtualmente eriçando-se de indignação, seguindo o par ao redor do ginásio e para dentro das sombras.

O campo estava limpo. Engolindo meu nervosismo, olhei atrás para os garotos, para ver se estavam prontos. Puck sorriu para mim, ansioso como sempre, a travessura escrita claramente em seu rosto. Ash me fitou com uma expressão solene. Ele já parecia mais forte, seus olhos brilhavam, os cortes curados a apenas fracas cicatrizes finas ao longo de suas bochechas. Nossos olhares encontraram-se, e a profundeza da emoção latente nele deixou-me sem fôlego.

- Como se sente? – Perguntei, para esconder a ânsia que sabia que devia estar mostrando em meu rosto. – Isto está ajudando, afinal? Está ficando melhor?

Ele sorriu, muito suavemente. – Guarde-me uma dança. – Ele murmurou.

E então nos movemos em direção ao ginásio. A música ficou mais alta e o ruído de vozes ecoou além das paredes. Cada um, Puck e Ash, abriu uma porta empurrando-a, e nós passamos para dentro de outro mundo.

O ginásio tinha sido decorado com mais balões azuis e brancos, papel crepom, e cintilantes flocos de neve de espuma, apesar de que nós nunca víamos neve na Louisiana. Nós passamos a cabine das entradas, com um grupo de adolescentes amontoados ao redor dele, tanto comprando entradas quanto esperando em fila. Ninguém pareceu nos notar enquanto passeávamos por lá, mas meu estômago balançou-

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se enquanto eu capturava um vislumbre de uma figura familiar, sorrindo enquanto ela entregava entradas para outro bem-vestido casal. Angie, a ex-líder de torcida, parava atrás da mesa, sem o nariz de porco que Puck tinha dado a ela no ano passado em uma brincadeira vingativa. Ela parecia perfeitamente feliz, sorrindo e balançando a cabeça afirmativamente, como se fizesse este tipo de trabalho todos os dias. Tentei capturar seu olhar enquanto passávamos, mas sua atenção estava na fila em frente a ela e o momento passou.

Além da cabine de entradas, mesas azuis e brancas enfileiravam-se em um lado da sala; só poucas pessoas sentavam lá, os desafortunados que não tinham conseguido um par mas não queriam perder o baile só porque estavam sozinhos.

Onde eu estaria, pensei, se não tivesse sido puxada para dentro de Faery. Ou, mais provavelmente, não teria estado aqui em primeiro lugar. Estaria em casa, com um filme e meio litro de sorvete.

O outro lado da sala estava um mar de vestidos rodopiantes e smokings. Pares oscilavam com a música, alguns dançando casualmente com seus parceiros, alguns se soldando tão juntos que você precisaria de um pé-de-cabra para afastá-los. Scott Waldron, minha velha paixão súbita, tinha seus braços ao redor de uma loira magra-como-uma-vareta que eu reconheci como uma das líderes de torcida, suas mãos escorregando abaixo da cintura dela para acariciar seu traseiro. Eu os observei dançar, suas mãos vagueando um no outro todo, e não senti nada.

E então os murmúrios começaram, iniciando-se da mesa onde os Sem-par sentavam, espalhando-se para a pista de dança e os cantos da sala. As pessoas começaram a olhar para nós, lançando olhares furtivos sobre os ombros de seus pares, cabeças inclinaram-se baixas para sussurrar umas com as outras. Meu rosto queimou e meus passos vacilaram, querendo bater em apressada retirada da sala para o boxe de banheiro mais próximo. Sr. Delany, meu antigo professor de inglês, olhou de onde parava guardando a tigela de ponche e franziu o cenho. Meu coração deu um baque surdo, e eu virei para Puck em pânico.

- Sr. Delany está vindo em nossa direção! – Sibilei. Puck piscou e olhou sobre o meu ombro.

- Huh, é o velho Delany. Eita, ele está ficando gordo. Ei, lembra a vez que eu pus pó-de-mico em sua peruca? – Ele suspirou sonhadoramente. – Aquele foi um dia bom.

- Puck! – Olhei para ele. – Ajude-me aqui! O que eu digo? Ele sabe que não tenho estado na escola há meses!

- Desculpe-me. – O Sr. Delany disse, bem atrás de mim, e meu coração quase parou. – Esta é... Meghan Chase? – Virei para ele com um sorriso doentio. – É você. Pensei que fosse. – Ele ofegou para mim. – O que está fazendo aqui? Sua mãe nos disse que você estava em um internato no Maine.

Então é onde eu estive todo este tempo. Bela cobertura, mamãe. – Eu estou... uh... em casa para as férias de Natal. – Respondi, dizendo a primeira coisa que me veio à mente. – E eu queria ver minha antiga escola uma vez mais antes de voltar.

O Sr. Delany franziu o cenho. – Mas, as férias de Natal estão muito... – Ele se interrompeu subitamente, um olhar vidrado surgindo sobre seu rosto. – Férias de Natal. – Ele murmurou. – É claro. Que amável da sua parte. Voltará no próximo ano?

- Um. – Pisquei diante de sua súbita mudança de humor. – Não sei. Talvez? Ainda há muitas coisas a fazer.

- Sei. Bem, foi bom vê-la, Meghan. Aproveite a dança.

- Tchau, Sr. Delany.

Enquanto ele vagava de volta em direção à tigela de ponche, eu soltei um suspiro de alívio.

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– Esta foi perto. Belo salvamento, Puck.

- Huh? – Puck franziu o cenho para mim. – O que quer dizer?

- O encantamento? – Abaixei minha voz a um sussurro. – Vamos lá, você não lançou aquilo?

- Não eu, Princesa. Eu estava prestes a transformar sua peruca em um furão, mas então ele ficou todo “olhos-de-sono” antes que pudesse lançar o feitiço nele. – Puck suspirou, olhando para o recuar do professor de inglês com desapontamento. – Pena, realmente. Aquilo iria reviver a festa. Há tanto glamour aqui, é uma vergonha não usá-lo.

Olhei sobre seus ombros. – Ash?

O príncipe Winter deu-me um fraco sorriso. – Sutileza nunca foi o forte de Goodfellow. – Ele murmurou, ignorando a carranca de Puck. – Nós não estamos aqui para causar um tumulto. E as emoções humanas sempre foram fáceis de manipular.

Como as minhas foram? Perguntei-me, enquanto continuávamos a atravessar o chão do ginásio. Você lançou um encanto para manipular minhas emoções, como Rowan tentou fazer? São meus sentimentos por você reais, ou algum tipo de glamour tecido? E eu me importo mesmo se eles são?

Nas mesas, Puck parou em frente de mim e fez uma mesura. – Princesa. – Ele disse formalmente, apesar de seus olhos estarem cintilando enquanto ele erguia a mão. – Dar-me-ia a honra da primeira dança?

- Um. – Por um momento, eu recusei a ideia, à beira de dizer a Puck que eu não sabia dançar. Mas então senti o olhar de Ash, lembrando-me de um bosque enluarado e de rodopiar ao redor da pista de dança com o príncipe Unseelie, enquanto dezenas de faeries nos observavam. Você é sangue de Oberon, sua voz profunda murmurou em minha cabeça. É claro que você sabe dançar.

Além disto, Puck não estava exatamente me dando uma escolha. Tomando minha mão, ele me levou em direção à pista. Olhei para Ash apologeticametne, mas o príncipe tinha se movido para um canto escuro e estava encostado contra a parede, olhando sobre o mar de rostos.

E então nós estávamos dançando.

Puck dançava muito bem, apesar de eu não saber por que isto me surpreendeu. Ele provavelmente tinha montanhas de experiência. Eu tropecei algumas vezes no começo, então fechei meus olhos e imaginei minha primeira dança com Ash. Pare de pensar, Ash tinha me dito naquela noite enquanto rodopiávamos através do assoalho na frente de dúzias de feéricos. A audiência não importa. Os passos não importam. Só feche seus olhos e escute a música. Lembrei aquela dança, o jeito que me senti com ele, e os passos vieram facilmente uma vez mais.

Puck soltou uma suave risada. – Okaaaay. – Ele murmurou enquanto girávamos ao redor da sala. – Parece que me lembro de certo alguém jurando que ela não sabia dançar, de qualquer modo. Obviamente devo ter estado com a irmã gêmea dela, porque estava esperando que você pisasse nos meus dedos dos pés a noite inteira. Têm tomado aulas, Princesa?

- Oh... um. Eu meio que peguei, enquanto estava em Nevernever. – Não é uma mentira de todo.

Enquanto nos movíamos ao redor da pista de dança, captei vislumbres de Ash, parado sozinho no canto com suas mãos em seus bolsos. Estava muito escuro para ver a emoção em seu rosto, mas seu olhar nunca nos deixava. Então Puck me puxou para um rodopio, e eu o perdi de vista por um momento.

A próxima vez que eu olhei para a direção de Ash, ele não estava sozinho. Três garotas, uma delas a loira magra que tinha estado se derretendo para Scott alguns minutos atrás, tinham o

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encurralado e estavam muito obviamente flertando com ele. Sorrindo timidamente, elas se derretiam, lançando seus cabelos e dando a ele olhares mormacentos por debaixo de seus cílios. Minha mão amarrotou a lapela de Puck. Tomou toda a minha força de vontade não investir como um furacão sobre elas e lhes dizer para irem para o inferno, mas que direito eu tinha? Ash não era meu. Eu não tinha nenhuma direito sobre ele.

Além disto, ele iria provavelmente ignorá-las, ou lhe dizer para ir embora. Mas quando eu espreitei o canto novamente, vi Ash sorrindo para as garotas, dolorosamente lindo e charmoso, e meu estômago se irritou. Ele estava flertando com elas.

A canção chegou ao fim e Puck se afastou, franzindo a testa ligeiramente, apesar de ele saber que meu coração não estava mais nisto. Eu ventilei a mim mesma com ambas as mãos, fingindo falta de ar, mas realmente secando as lágrimas que picavam meus olhos. Ash ainda estava lá no canto, rindo de alguma coisa que alguma das garotas tinha dito. Minha garganta fechou-se, e senti meu peito pesado.

- Está ok, Princesa?

Eu arranquei meu olhar de Ash e das garotas, engolindo em seco. – Um pouco quente. – Eu confessei, sorrindo, enquanto nós nos deslocávamos para fora da pista de dança, de volta para as mesas. – E talvez um pouco tonta. – Puck riu, em seu velho eu novamente, e puxou uma cadeira para mim.

- Desculpe, eu simplesmente tenho este efeito nas pessoas. – Eu atingi seu estômago com as costas da minha mão enquanto sentava, e ele sorriu. – Aguente. Vou te conseguir alguma coisa para beber. – Ele desapareceu na multidão, fazendo seu caminho em direção à mesa dos refrescos, na parede oposta. Esperei que ele não fosse batizar o ponche com alguma coisa que transformaria todos em sapos. Suspirando diante do pensamento, eu deixei meu olhar vagar ao redor do ginásio, deliberadamente impedindo-o de dispersar-se para o distante canto.

- Ei. – Um corpo se moveu diante da minha visão, bloqueando minha vista. Um corpo de ombros largos, em um smoking preto perfeitamente talhado. Olhei para cima das vestes, lapelas e gravata borboleta, e encontrei o olhar sorridente de Scott Waldron.

- Oi. – Eu cumprimentei alegremente, enquanto meu estômago dava uma cambalhota. Eu estaria vendo direito? Era Scott Waldron, extraordinário jogador de futebol, falando comigo? Ou era este outro de seus truques, tencionando me embaraçar e humilhar, justo como da última vez? Eu tinha que admitir, ele ainda era muito fofo – ombros largos, cabelo loiro ondulado, sorriso adorável –, mas a memória da cafeteria inteira rugindo com gargalhadas às minhas custas, amorteceu um pouco meu entusiasmo. Ele não me pegaria daquele jeito, nunca mais.

- Uh, oi. – Eu repeti cautelosamente.

- Eu sou Scott. – Ele continuou em um jeito confiante e auto-suficiente de alguém que estava acostumado a ser admirado. – Eu não tinha te visto pela escola antes. Você deve ser de outro lugar, certo? Eu sou o quaterback54 do time de Albany High.

Ele nem mesmo me reconheceu. Não sabia se ficava aliviada ou aborrecida. Ele estaria falando comigo agora se soubesse quem eu era? Ele se lembraria da envergonhada e caipira Garota do Pântano que tivera paixão por ele por dois anos e esperava perto do seu armário todo o dia só para observá-lo passar no corredor? Será que alguma fez se arrependeu da horrível brincadeira que tinha pregado todos aqueles meses atrás?

- Quer dançar? – Ele perguntou, estendendo sua grande mão calejada do futebol.

Olhei em direção à mesa de bebidas para ver que Puck tinha sido encurralado pela enfermeira, que, pela sua expressão meio aborrecida, meio contrita, parecia tê-lo pego fazendo algum tipo de 54 Quarterback (QB) é uma posição do futebol americano. Jogadores de tal posição são membros da equipe ofensiva do time (do qual são líderes) e alinham-se solo atrás da linha central, no meio da linha ofensiva.

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travessura. Provavelmente batizando o ponche, exatamente como eu temia.

Um riso estridente veio do canto que eu não estava olhando, e meu estômago se revirou.

- Claro. – Respondi, pondo minha mão na dele. Se ele ouviu a amargura na minha voz, não transpareceu enquanto caminhávamos para a pista de dança.

Scott pôs suas mãos muito baixo na minha cintura, enquanto oscilávamos com a música, ficando mais perto do que eu realmente estava confortável para ficar, mas não protestei. Aqui estava eu, Meghan Chase, dançando com o estimado Garoto de Ouro de Albany High. Tentei ficar animada; um ano atrás, eu daria qualquer coisa para Scott olhar para mim e sorrir. Tivesse ele me chamado para dançar, eu provavelmente teria desmaiado. Mas agora, sentindo suas mãos em meus quadris, vendo seu rosto a não mais que seis polegadas do meu, pensei somente que Scott parecia muito jovem. Ainda bonito e charmoso, não havia nenhum dúvida quando a isto, mas o sentimento intenso que eu costumava ter sempre que olhava para ele tinha ido embora.

- Então. – Scott murmurou, correndo suas mãos pelas minhas costas acima. Eu me mexi desconfortavelmente, mas ao menos ele não deslizou para a direção oposta. – Eu já mencionei que sou o quaterback do time?

- Você mencionou. – Sorri para ele.

- Oh, certo. – Ele sorriu de volta, envolvendo um cacho de meu cabelo em seu dedo. – Bem, você já viu a algum dos meus jogos?

- Alguns.

- É? Impressionante, não? Acha que temos chance de chegar às Nacionais este ano?

- Eu realmente não sei muito sobre futebol. – Admiti, esperando que ele pegasse a deixa. Aparentemente, isto era a coisa errada para se dizer. Ele imediatamente se lançou em uma explicação completa do esporte, citando todos os jogos que ele tinha ganho, as falhas de seus companheiros de equipe e deficiências, e todos os anos que ele carregou seu time para a vitória. Aquilo levou para seus planos para a universidade, como ele tinha conseguido uma bolsa de estudo pelo Estado de Louisiana, como ele tinha sido votado o Mais Provável para o Sucesso, e seu Mustang novinho em folha que seu pai lhe tinha comprado só porque ele estava tão orgulhoso. Eu congelei um sorriso no meu rosto, fiz barulhos apropriados de apreciação, e tentei não deixar meus olhos revirarem.

- Ei – ele disse finalmente, enquanto eu secretamente esperava que ele estivesse encerrando -, quer sair daqui? Vou encontrar um monte de pessoas na casa de Brody mais tarde... o velho dele está fora da cidade, e vai ter uma festa depois do baile. Quer vir?

Outro choque. Scott estava me convidando para uma festa dos populares, onde haveria bebida, drogas e outras atividades para as quais pais franziriam a testa. Por só um momento, senti uma pontada de mágoa. A única noite na qual eu tinha sido convidada para uma festa seria a noite que eu não poderia ir.

- Não posso. – Falei para ele. – Sinto muito, tenho outros planos para hoje à noite.

Ele se amuou. – Verdade? – Disse, e suas mãos passaram deslizando pelos meus quadris, definitivamente mais longe do que eu ficava confortável. – Não desistiria deles, mesmo por mim?

Eu enrijeci, e ele realmente pareceu pegar a sugestão, deslizando-as de volta para território neutro. – Sinto muito. – Disse novamente. – Mas realmente não posso. Não hoje à noite.

Ele suspirou em mágoa genuína. – Tudo bem, garota misteriosa, quebrou meu coração. – Tomando minha mão, ele a pressionou contra seu peito e me deu um modesto sorriso de menininho. – Mas ao menos me deixe chamá-la este final de semana. Qual é o seu nome?

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E aqui estava.

Eu poderia dizer a ele. Eu poderia dizer a ele e observar seu sorriso desaparecer, enquanto ele descobria a quem tinha estado seduzindo tão seriamente. Observar aquele sorriso convencido se transformar em horror e descrença, e talvez só um pequeno remorso. Queria ver remorso. Ele merecia isto, depois do que tinha feito comigo. Eu só tinha que dizer duas palavras, duas simples palavras, Meghan Chase, e o Garoto de Ouro de Albany High ficaria caído mais baixo que a base dos meus calcanhares.

Tudo o que tinha que fazer era dizer o meu nome.

Eu suspirei, afaguei suavemente seu peito, e sussurrei. – Vamos manter isto um mistério.

- Uh... – O sorriso vacilou, e ele piscou, parecendo tão confuso que eu quase gargalhei alto. – Ok. Mas... como eu entrarei em contato com você? Como vou saber a quem chamar?

- Com licença.

Meu estômago tremulou. Senti o sorriso alongando em meu rosto mesmo antes que tivéssemos nos virado, apesar de eu tentar olhar severa e irada. Foi inútil. Ash estava parado debaixo das luzes obscuras, solene e lindo enquanto ele estendia sua mão para mim. – Posso interromper?

Conhecendo Scott, esperei que ele recusasse, que dissesse ao adversário para recuar. Mas talvez ele ainda estivesse fora de equilíbrio, ou talvez houvesse algo no olhar firme do príncipe que o fez dar um passo para trás. Ainda parecendo um pouco confuso, como se não soubesse o que justo tinha acontecido, perambulou para fora da pista de dança e para o meio da multidão. E eu subitamente tive o pressentimento que seria a última vez que veria Scott Waldron.

Suponho que eu deveria estar feliz, mas tudo o que senti foi o alívio por ele ter ido. Ash sorriu para mim, e esqueci de ficar zangada, esqueci de ser distante, presunçosa e indiferente como planejara. Ao invés, tomei sua mão e o deixei me puxar para perto, acalentada no perfume gelado dele, e fui levada para a nossa primeira dança sob as estrelas, a primeira vez que eu segurei sua mão, olhei dentro de seus olhos, e fiquei completamente perdida.

Dançar com Ash era exatamente como eu me lembrava.

A música era lenta e doce, então nós oscilávamos para frente e para trás, mal nos movendo, mas o olhar em seu rosto, a sensação de sua mão na minha, era tudo dolorosamente familiar. Eu pousei minha cabeça em seu peito e fechei os meus olhos, contente em tocá-lo, de escutar o bater de seu coração. Ele suspirou e descansou seu queixo no topo da minha cabeça, e por um momento, nenhum de nós falou; nós só balançávamos com a música.

Até eu decidir ser uma idiota e abrir a minha boca.

- Então, você parecia estar se divertindo ali atrás. – Eu não pude afastar a acusação da minha voz, mesmo que eu odiasse a mim mesma por soar como uma namorada maluca-possessiva. – Aquelas garotas o acharam muito interessante, suponho. O que vocês estavam conversando?

Ele riu por entre os dentes, enviando um arrepio pela minha espinha. Ele ria tão raramente, e era um profundo, maravilhoso som quando ele o fazia. – Elas me convidaram para uma festa depois do baile. – Ele murmurou, afastando-se para me olhar diretamente. – Eu lhes disse que já estava com alguém, então elas passaram os próximos minutos tentando me convencer a... dar o bolo?... em quem quer que eu estivesse e me juntasse a elas. Foi uma conversa bastante interessante.

- Você poderia simplesmente ter dito a elas para irem embora. – Eu tinha visto aquele frio, não-me-aborreça-ou-eu-te-matarei olhar. Ninguém em seu juízo perfeito continuaria importunando o Príncipe do Gelo uma vez que aquele congelante olhar estava voltado para elas.

- O que não teria sido muito cavalheiresco. – Ash soou divertido. – E estava sendo

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vantajoso para mim tê-las por perto. Havia glamour o suficiente naquele canto para chocar um dragão. Não é por isto que estamos aqui?

- Oh. – Alívio e embaraço coloriram meu rosto. – Certo. É sim. Eu só pensei... não importa. Calarei minha boca agora.

Ash olhou para mim abaixo, inclinando sua cabeça com um olhar intrigado. – Do que exatamente você está me acusando, Meghan Chase?

- Não estava acusando. – Escondi meu rosto em sua camisa, resmungando através do tecido frio. – Eu só pensei... como é fácil manipular emoções humanas... que você, não sei. Deveria encontrar algo mais interessante do que eu.

Uau, aquilo tinha parecido estúpido e psicopatologicamente possessivo. Meu rosto queimou ainda mais. Mantive minha cabeça baixa para que ele não visse minhas bochechas carmesins, e tão pouco eu teria que ver sua reação.

- Ah. – Ash acariciou minha bochecha com as costas de sua mão, capturando um cacho solto de cabelo entre seus dedos. – Eu tenho visto milhares de garotas mortais – ele disse suavemente -, mais do que você poderia até mesmo contar, de todos os cantos do seu mundo. Para mim, elas são sempre as mesmas. – Seu dedos deslizou por baixo do meu queixo, erguendo minha cabeça. – Elas têm visto apenas esta casca exterior, não quem eu realmente sou, por baixo. Você viu. Você tem me visto sem o glamour e ilusões, mesmo aquelas que eu mostro para a minha família, a farsa que eu mantenho para sobreviver. Tem visto quem eu realmente sou, e mesmo assim, você ainda está aqui. – Ele acariciou com seu polegar a minha pele, deixando um rastro de calor gélido. – Você está aqui, e a única dança que eu quero é esta.

Meu coração pulou uma batida. A proximidade dele era esmagadora, seu rosto e lábios somente a polegadas de distancia dos meus. Nós encaramos um ao outro, e pude ver a fome em seus olhos. Estremeci de antecipação, meus lábios doendo por tocar os dele, mas um lampejo de remorso cruzou sua face e ele silenciosamente se afastou, terminando o momento. Suspirando, eu pousei minha cabeça contra sua camisa, meu ser inteiro zumbindo com esperança frustrada, um desapontamento pesado se acomodando em meu peito. Ouvi seu coração batendo contra minha bochecha, e o senti tremer, também.

- Já que estamos no assunto – Ash murmurou depois de alguns minutos dançando em silêncio, enquanto nossos corações e mentes se recompunham -, você nunca respondeu a minha pergunta.

Ele soou descaracteristicamente inseguro. Eu me mexi em seus braços e olhei para cima, encontrando seu olhar. – Que pergunta?

Seus olhos estavam cinza profundo na luz difusa. Glamour tremeluzia ao seu redor, pesando no ar e nos sonhos daqueles que nos rodeavam. Por só um momento, a ilusão de um garoto humano dançando comigo ondulou, revelando um sobrenatural faery com olhos prateados, glamour pulsando dele em ondas. Comparado com os subitamente simples humanos dançando ao nosso redor, sua beleza era quase dolorosa.

- Você o ama?

Minha respiração ficou presa. Por poucos segundos, pensei que ele se referia a Scott, mas claro que isto não estava certo. Havia somente uma pessoa a quem ele poderia estar se referindo. Quase contra a minha vontade, eu olhei para trás de mim, através da multidão oscilante de dançarinos, para onde Puck estava de pé no limite da luz. Seus braços estavam cruzados, e ele estava nos observando com olhos verdes estreitados.

Meu coração pulou uma batida. Recuei, sentindo o olhar de Ash sobre mim, minha mente girando em muitas direções de uma vez. Diga a ele não, ela sussurrou. Diga a ele que Puck é só um amigo. Que você não sente nada por ele.

- Eu não sei. – Sussurrei miseravelmente.

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Ash não disse nada. Eu o ouvi suspirar, e seus braços se apertaram ao meu redor, puxando-nos para mais perto. Ficamos silenciosos novamente, perdidos em nossos próprios pensamentos. Fechei meus olhos, querendo que o tempo congelasse, querendo esquecer sobre o cetro e as cortes faery e fazer esta noite durar para sempre.

Mas é claro, ela terminou muito cedo.

Enquanto os últimos acordes da música tremiam através do chão do ginásio, Ash abaixou sua cabeça, seus lábios roçando minha orelha. – Nós temos companhia. – Ele murmurou, sua respiração fria sobre minha pele. Abri meus olhos e olhei ao redor, espreitando através do glamour pesado procurando por inimigos invisíveis.

Um par de fendidas órbitas douradas olhavam para mim de uma mesa, flutuando no meio do ar sobre o arranjo de mesa florido. Pisquei, e Grimalkin apareceu, o rabo de escova curvado ao redor dele, observando-me. Ninguém mais na sala parecia notar um enorme gato cinza sentado no meio da mesa; eles se moviam ao redor e passavam por ele sem um único olhar.

Puck nos encontrou na borda da pista de dança, indicando que ele tinha visto Grimalkin também. Casualmente, nós caminhamos para a mesa, onde Grimalkin tinha se movido para arrumar uma perna posterior. Ele olhou para cima preguiçosamente enquanto nos aproximávamos.

- Alô, Príncipe. – Ele ronronou, fixando Ash através dos olhos semicerrados. – Legal ver que você não está mau... bem... você sabe. Presumo que está aqui pelo cetro também?

- Entre outras coisas. – A voz de Ash estava fria, fúria rasgava abaixo da superfície, e o ar ao redor dele se tornou gélido. Estremeci. Ele não queria simplesmente o cetro, ele estava procurando por vingança.

- Achou alguma coisa, Grim? – Perguntei, esperando que os outros estudantes não notassem a súbita queda de temperatura. Grimalkin espirrou uma vez e parou, ondulando seu rabo. Seus olhos dourados estavam subitamente sérios.

- Acho melhor verem por si mesmos. – Ele respondeu. Saltando da mesa, deslizou através dos grupos e para fora da porta. Dei um último olhar em torno do ginásio, para meus velhos colegas e professores, sentindo uma pontada de saudade. Eu provavelmente nunca os veria novamente. Então Puck capturou meu olhar com seu sorriso encorajador, e nós seguimos Grimalkin portas afora, para dentro da noite.

No lado de fora, estava um frio cortante. Estremeci em meu vestido, perguntando-me se o humor de Ash poderia se estender ao distrito inteiro. À nossa frente, Grimalkin deslizou em torno de uma esquina como um fantasma peludo, escassamente visível nas sombras. Nós o seguimos pelos corredores, passando por numerosas salas de aula até dentro do estacionamento, onde ele parou na borda de uma calçada, olhando por sobre o asfalto.

- Oh, meu Deus. – Sussurrei. O lote inteiro (pavimento, carros, o velho ônibus na distância) estava coberto com uma camada fina de pó branco que brilhava sob à luz da lua. – Não mesmo. Isto é... neve? – Eu me inclinei e apanhei um punhado do monte branco. Úmido, frio e quebradiço. Não poderia ser nada mais. – O que está acontecendo? Nunca neva aqui.

- O equilíbrio está quebrado. – Ash disse solenemente, olhando ao redor da paisagem estranha. – Winter deveria possuir o poder agora mesmo, mas com o cetro longe, o ciclo natural foi jogado fora. Então vocês têm eventos como este. – Ele gesticulou para o lote nevado do estacionamento. – Só irá piorar, infelizmente.

- Temos que conseguir o cetro de volta. – Eu disse, olhando para Grimalkin abaixo. Ele me olhou de volta calmamente, como se nevar em Louisiana fosse perfeitamente normal. – Grim, você e Ironhorse já acharam alguma coisa?

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O gato fez uma grande demonstração de como lamber sua pata dianteira. – Talvez.

Eu me perguntei se Ash e Puck já sentiram a urgência de estrangulá-lo. Aparentemente, eu não estava arguindo as perguntas certas. – O que você achou? – Puck perguntou, e Grimalkin finalmente olhou para cima.

- Talvez o cetro. Talvez nada. – Ele sacudiu sua pata muitas vezes antes de continuar. – Mas... há um rumor nas ruas de grande encontro de feéricos Iron em uma fábrica no centro de San Jose. Nós a localizamos, e parece abandonada, então talvez Vírus ainda não tenha reunido seu exército.

- Onde esta Ironhorse? – Perguntei.

Ash estreitou seu olhos.

- Eu o deixei na fábrica. – Grimalkin disse. – Ele estava pronto para investir, mas eu o convenci que iria retornar com você e Goodfellow. Ele ainda está lá, por tudo o que eu sei.

- Você o deixou sozinho?

- Não foi isto o que eu acabei de dizer, humana? – Grimalkin estreitou seus olhos para mim, e eu dei aos rapazes um olhar de pânico. – Sugiro que se apressem. – Ele ronronou, olhando o estacionamento lotado. – Não somente Vírus está reunindo um grande exército de feéricos Iron, como não acho que Ironhorse esperará por muito tempo. Ele parecia muito ansioso para investir sozinho.

- Vamos. – Eu disse, olhando para Ash e Puck. – Ash, você está bem para isto? Será capaz de lutar?

Ele me fitou solenemente e fez um gesto rápido com sua mão. Com o glamour feérico longe, o smoking de dissolveu na névoa, como o corpo humano desapareceu, e o príncipe Unseelie tomou seu lugar, seu casaco negro rodopiando ao seu redor.

Olhei de volta para Puck e vi seu smoking substituído por seu normal capuz verde. Ele me deu um rápido exame e sorriu. – Não está exatamente vestida para uma batalha, está, Princesa?

Eu olhei para minhas roupas abaixo, sentindo uma pontada de culpa porque ele provavelmente estaria arruinado antes que a noite terminasse. – Não devo ter tempo para me trocar. – Suspirei.

- Não. – Grimalkin contorceu uma orelha. – Não tem. – Ele balançou sua cabeça e olhou o firmamento. – Que horas são?

- Um... Eu não sei. – Fazia muito tempo que não via um relógio. – Quase meia-noite, eu acho. Por quê?

Ele pareceu sorrir, o que era um pouco estranho. – Basta sentar firmemente, humana. Eles estarão aqui logo.

- Sobre o que você está falando... – Eu me interrompi, enquanto um vento frio cruzava o estacionamento, contorcendo a neve em trubilhões, fazendo-os dançar e cintilar sobre os montes. Os galhos chocalharam, um pranto sobrenatural erguendo-se sobre o vento e as árvores. Estremeci, e vi Ash fechar os seus olhos.

- Chamou Eles, caith sith?

- Eles me devem um favor. – Grimalkin ronronou, enquanto Puck olhava nervosamente para o céu. – Não temos tempo para localizar um trod, e este é o jeito mais rápido de viajar daqui. Lidem com isto.

- O que está acontecendo? – Perguntei, enquanto tanto Ash quanto Puck se aproximavam,

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tensos e protetores. – Quem ele chamou? O que está vindo?

- O Hospedeiro55. – Ash murmurou sombriamente.

- O que... – Mas naquele momento ouvi um grande farfalhar, como milhares de folhas farfalhando no vento. Olhei para cima e vi uma nuvem grossa movendo-se em direção a nós em uma velocidade assustadora, bloqueando o céu e as estrelas.

- Segure firme. – Puck disse, e agarrou minha mão.

Uma massa negra se apressou em nossa direção, gritando com centenas de vozes. Vi dúzias de faces, olhos, bocas abertas, antes que aquilo estivesse sobre nós, e eu me aninhei em medo. Frios, dedos frios me arrebataram, sustentando-me. Meus pés deixaram o chão, e eu fui arremessada em direção ao céu, um grito alojado na garganta. Vento gélido me cercou, agarrando o meu cabelo e roupas, entorpecendo-me de toda a sensação exceto por um pequeno calor onde Puck ainda segurava minha mão. Fechei meus olhos, estreitando meu aperto, enquanto o Hospedeiro nos levava para longe na noite.

55 No original: The Host. Não foi encontrada uma referência precisa. Mas é possível que se refira a várias histórias irlandesas sobre rajadas de vento. Na Irlanda, pensava-se que uma súbita rajada ou golpe de vento, ou ainda um redemoinho, eram causados por fadas. Algumas vezes, o vento seria causado pela passagem de um anfitrião-fada; alternadamente, o vento podia conter o anfitrião. Fazendeiros crédulos faziam o sinal da cruz quando viam o vento chegando, assutados por verem uma coluna de feno se erguer de um lado do campo, enquanto o outro permanecia perfeitamente calmo. Algumas vezes se achava que o vento era a evidência que as fadas estavam ajudando no trabalho da fazenda. Outras vezes, se pensava que o vento seria a fonte de doenças súbitas. O vento fada arrancaria o teto da casa de famílias pobres e deixaria o hospedeiro fada entrar; protegeria os tesouros fadas de ladrões; silenciariam músicos mortais que tocassem música fada; e causariam danos a humanos ou animais, especialmente nos olhos. (Fonte: Dictionary of Celtic Mythology. James Mackillop. Oxford University Press Inc. New York: 2004, p. 204).

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CAPÍTULO VINTE E DOIS

A Escolha de Ironhorse

Não sei por quanto tempo o Hospedeiro nos carregou através do céu, gritando e gemendo em suas vozes sobrenaturais. Não sei se eles tinham trods que os deixavam se mover entre os mundos, se eles poderiam inclinar o espaço e o tempo, ou se na realidade eles só voavam muito rápido. Mas o que deveria ter sido horas pareceu só minutos antes que meus pés atingissem o solo e eu estivesse caindo para frente.

O aperto de Puck em mim se intensificou, parando-me com um puxão antes que eu pudesse tombar. Agarrei-me ao seu braço para recuperar meu equilíbrio, olhando ao redor vertiginosamente.

Nós paramos nos arredores de uma enorme fábrica. Cruzando um estacionamento brilhante, iluminado com linhas retas de postes incandescentes, uma monstruosidade enorme envidraçada, de aço e cimentada que se assomava nos limites do estacionamento. Apesar de o estacionamento estar vazio, o prédio em si não parecia danificado de forma alguma: nenhuma janela quebrada, nenhum grafite manchando os lados. Capturei vislumbres de coisas se movendo ao longo das paredes, raios de luz azul, como pirilampos erráticos. Um momento mais tarde, descobri que era gremlins – centenas, se não milhares deles – vigiando os arredores da fábrica como formigas. As luzes azuis eram o brilho de suas presas, sibilando, guinchando e arregaçando os dentes uns para os outros. Um calafrio me percorreu, e eu tremi.

- Um ninho de gremlins. – Grimalkin meditou, observando o enxame curiosamente. – Leanansidhe disse que os gremlins se reúnem em lugares que tem montes de tecnologia. Faz sentido que Vírus viesse para cá, também.

- Conheço este lugar. – Ash disse subitamente, e nós todos o olhamos. Ele estava olhando fixamente a instalação com um pequeno franzir de cenho em seu rosto. – Lembro de Vírus falando sobre isto quando eu... quando eu estava com ela. – O franzir de cenho ficou mais fundo, e uma sombra rastejou sobre seu rosto. Ele a afastou. – Devia ser um trod para dentro do Reino Iron.

Puck cutucou meu braço e apontou. – Olhe para aquilo.

Segui seu dedo para um letreiro na frente do prédio, uma daquelas placas de mármore com gigantes palavras brilhantes entalhadas nela. – SciCorp Enterprises. – Murmurei, balançando minha cabeça.

- Coincidência? – Puck agitou suas sobrancelhas. – Acho que não.

- Onde está Ironhorse? – Perguntei, olhando ao redor.

- Por aqui. – Grimalkin disse, trotando ao longo do limite do estacionamento. Nós o seguimos, os rapazes ligeiramente desfocados nas bordas, dizendo-me que eles estavam invisíveis para os humanos, e eu em meu muito notável vestido de baile e saltos, que eram, então, muito inúteis para invadir uma fábrica gigante, ou até mesmo caminhar por uma calçada. Ao meu lado, carros passavam zunindo por

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nós na rua; alguns desaceleraram para buzinar para mim ou assobiar, e eu enrubesci. Desejei poder me glamourar invisível, ou ao menos que tivesse tido tempo de me trocar para alguma coisa menos embaraçosa.

Grimalkin nos levou ao redor da fábrica, contornando os limites da calçada, para uma valeta de drenamento que separava um lado do outro. Ao fundo da valeta, água negra oleosa vinda de uma enorme calha, gotejando através das ervas daninhas e grama. Garrafas e latas bagunçavam o chão, brilhando na luz da lua, mas não havia nenhum sinal de Ironhorse.

- Eu o deixei bem aqui. – Grimalkin disse. Olhando ao redor brevemente, ele saltou para uma rocha seca e começou a balançar suas patas, uma por uma. – Aparecemos muito tarde. Parece que nosso amigo impaciente já entrou.

Um bufo profundo cortou o ar antes que eu pudesse entrar em pânico. – O QUÃO TOLO ACHA QUE SOU? – Ironhorse ressoou, abaixando-se para transpor a margem do cano. – HAVIA UMA PATRULHA VINDO, E EU FUI FORÇADO A ME ESCONDER. NÃO QUEBRO AS PROMESSAS QUE FAÇO. – Ele olhou para Grimalkin, mas o gato só bocejou e começou a limpar sua calda.

Ash enrijeceu, e sua mão pousou casualmente no punho de sua espada. Eu não o culpava. Exceto seu breve período com Vírus, a última vez que Ash tinha visto Ironhorse, ele estava nos arrastando para as cadeias de Machina. Claro, Ironhorse estava usando uma forma diferente agora, mas você tinha que somente olhar mais de perto para ver o enorme monstro de ferro negro que espreitava abaixo da superfície.

Direcionei-me para o problema em mãos, não alheia ao olhar sombrio que ele estava recebendo de Ash. – Tem certeza que Vírus está lá? – Perguntei, sutilmente me movendo entre eles. – Então, como vamos entrar, especialmente com os gremlins rastejando todo o prédio?

Ironhorse bufou. – OS GREMLINS NÃO IRÃO NOS IMPORTUNAR, PRINCESA. ELES SÃO CRIATURAS SÍMPLES. GOSTAM DE VIVER PARA O CAOS E DESTRUIÇÃO, MAS SÃO COVARDES E NÃO ATACARAM UM OPONENTE PODEROSO.

- Temo que tenha que discordar. – Ash disse, uma perigosa margem de perigo em sua voz agora. – Você mesmo liderou um exército de gremlins no reino de Machina, ou teria esquecido? Eles não atacam oponentes poderosos? Pareço recordar uma onda deles tentando me rasgar ao meio, nas minas.

- Está certo. – Ecoei, franzindo o cenho. – E quanto à vez que os gremlins me seqüestraram e me arrastaram para encontrá-lo? Não me diga que os gremlins não são perigosos.

- NÃO. – Ironhorse balançou sua cabeça. – DEIXE-ME ESCLARECER. EM AMBAS ÀS VEZES, OS GREMLINS ESTAVAM SOBRE AS ORDENS DE MACHINA. LORDE MACHINA ERA O ÚNICO QUE PODIA CONTROLÁ-LOS, O ÚNICO QUE ELES SEMPRE ESCUTARAM. QUANDO ELE MORREU, ELES RETORNARAM AO SEU ESTADO NORMAL E SELVAGEM. NÃO SÃO NENHUMA AMEAÇA PARA NÓS, AGORA.

- E quanto a Vírus? – Puck perguntou.

- VIRUS OS VÊ COMO BICHOS. MESMO SE ELA PUDESSE CONTROLÁ-LOS, PREFERIRIA DEIXAR SEUS ZANGÕES FAZER O TRABALHO DO QUE PARAR PARA LIDAR COM OS ANIMAIS.

- Bem, isto deveria ser fácil, então. – Puck se desfez em sorrisos. – Nós vamos dar um passeio pela porta da frente, marchar até Vírus, agarrar o cetro, tomar um pouco de chá e salvar o mundo antes do café da manhã. Tolice a minha, pensar que seria difícil.

- O que eu acho que Puck está tentando dizer – eu disse, atirando a Puck um franzir de cenho – é: o que faremos com Vírus quando a acharmos? Ela tem o cetro. Ele não deveria ser poderoso?

- Não se preocupe quanto a isto. – A voz de Ash arrepiou os cabelos da minha nuca. – Cuidarei de Vírus.

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Puck rolou seus olhos. – Muito bem, Príncipe Bem-Disposto, mas há um problema. Nós temos que conseguir entrar primeiro. Como propõe que devamos fazer isto?

- Você é o expert. – Ash olhou para Puck, sua boca contorcida em seu próprio sorriso afetado. – Diga-me você.

Grimalkin suspirou e se ergueu, sua calda chicoteando seus flancos. – A esperança de Nevernever. Ele disse, olhando cada um de nós desdenhosamente. – Esperem aqui. Checarei o lugar.

NÓS NÃO TÍNHAMOS IDO MUITO LONGE quando Puck enrijeceu e Ash se ergueu, sua mão indo para sua espada. – Alguém está vindo. – Ele alertou, e nós subimos na valeta, meu vestido prendendo-se nas ervas daninhas e pedaços afiados de vidro. Patinando no tubo, eu fiz uma careta diante da fria água imunda que encharcou meus sapatos e vestido. A este ritmo, ele não sobreviveria à noite.

Duas figuras passaram marchando por nosso esconderijo, vestidos em familiar armadura negra com espinhos crescendo de seus ombros e costas. O fraco cheiro de carne podre e em putrefação flutuou para dentro do tubo à passagem deles. Eu sufoquei uma tossida e pus minha mão sobre meu nariz.

- Os Thornguards de Rowan. – Ash murmurou severamente, enquanto a dupla se movia. Franzindo o cenho, Puck espreitou por sobre seu ombro.

- Tem ideia de quantos deles estão lá dentro?

- Acho que ao menos alguns pelotões. – Ash respondeu. – Imagino que Rowan queria enviar o seu melhor para tomar o reino.

- Você está certo. – Grimalkin disse, subitamente se materializando ao nosso lado. Ele se empoleirou sobre um bloco cinza, de forma a não tocar na água, mantendo seu rabo reto. – Há muitos Thornguards dentro, junto com muitos feéricos Iron e algumas dúzias de zangões humanos. E gremlins, é claro. A fábrica está formigando com eles, mas ninguém parece prestar muita atenção a eles.

- Viu Vírus ou o cetro? – Perguntei.

- Não. – Grimalkin sentou, curvando seu rabo apertado ao redor de seus pés. – De qualquer maneira, há dois Thornguards na porta dos fundos que não deixam ninguém passar.

À menção do nome de Vírus, Ash estreitou seus olhos. – Podemos abrir nosso caminho lutando?

- Eu não aconselharia. – Grimalkin respondeu. – Parece que alguns deles estão usando armas de ferro... espadas de aço e bestas com flechas de ferro e tal. Só bastaria que um deles desse um tiro bem dado para matar você.

Puck franziu o cenho. – Feéricos usando armas de metal? Acha que Vírus tem todos eles bugados?

- Algo muito pior, eu temo. – O rosto de Ash estava como pedra enquanto ele olhava para a fábrica. – Eu foi forçado a servir. Vírus não me deu uma chance. Os Thornguards estão agindo por conta própria. Como Rowan. Eles querem destruir Nevernever e emtregá-la para os feéricos Iron.

As sobrancelhas de Puck se ergueram. – Diabos? Por quê?

- Por que acham que podem se tornar como Vírus. – Respondi, pensando de novo no que em Edgebriar disse, lembrando no louco olhar condenado em seu olho. – Eles acreditam que é só uma questão de tempo antes que Faery desapareça inteiramente. Então a única forma de sobreviver é se tornar

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como os feéricos Iron. Usam um anel de metal por baixo de suas luvas para provar sua lealdade, e porque eles pensam que isto os fará imunes aos efeitos. Mas só os está matando vagarosamente.

- Huh. Bem, isto é... absolutamente horroroso. – Puck balançou sua cabeça em descrédito. – Temos que entrar lá de alguma maneira, ainda, com armas de ferro ou não. Podemos glamourar nós mesmos para parecer como eles?

- Não o sustentarei contra todo este ferro. – Ash murmurou, meditando.

- Eu devo ter uma ideia melhor. – Grimalkin disse. – Há muitas clarabóias de vidro no teto da fábrica. Poderiam mapear o esquema do prédio daqui, e talvez mesmo vir onde Vírus está.

Aquilo soou como uma grande ideia. Mas... – Como chegaremos lá em cima? – Perguntei, olhando para a agigantada parede de vidro-e-metal da fábrica. – Puck pode voar, e tenho certeza de que Ash pode chegar lá, mas Ironhorse e eu somos um pouco mais presos à terra.

Grimalkin aquiesceu sabiamente. – Normalmente, concordaria. Mas hoje à noite, parece que as Parcas56 estão do nosso lado. Há uma plataforma de limpeza no outro lado do edifício.

MESMO COM a garantia de Ironhorse de que os gremlins não iriam nos aborrecer, nós nos aproximamos com extrema cautela. A lembrança de ser sequestrada pelos gremlins, suas garras afiadas cutucando a minha pele, sua bizarra gargalhada maníaca e vozes zumbidas, ainda estava queimando na minha mente. Um tinha até vivido no meu iPod antes que ele quebrasse, e Machina o tinha usado para se comunicar comigo dentro das fronteiras de Arcádia. Gremlins eram monstrinhos subservientes e perversos, e eu não confiava neles nem um pouco.

Felizmente, nossa sorte parecia se manter enquanto nós fazíamos nosso caminho contornando os fundos da fábrica. Uma plataforma pequena pairava sobre o chão, ligada a sistemas de ampolas que escalavam todo o caminho para cima do teto. A parede era escura, e os gremlins estavam ausentes, ao menos por agora.

Grimalkin saltou facilmente em direção à plataforma de madeira, seguido por Ash e Puck, sendo cuidadoso em não tocar os corrimãos de ferro. Ash me puxou depois dele, e então Ironhorse escalou para abordo. As pranchas de madeira rangeram horrivelmente e se inclinaram no meio, mas felizmente aguentaram firme. Rezei para que a coisa toda não estalasse como uma caixa de fósforos quando estávamos a três andares no ar.

Puck e Ironhorse agarraram uma corda cada um e começaram a puxar a plataforma para cima até o lado do edifício. As escuras paredes espelhadas refletiam um estranho grupo de volta para nós: um gato, dois rapazes elfos, uma garota com um vestido levemente rasgado, e um monstruoso homem negro com brilhantes olhos vermelhos. Contemplei o quão estranha minha vida tinha se tornado, mas fui interrompida por um suave sibilar acima.

Um gremlin agachado sobre as polias próximas do topo do teto, olhos inclinados brilhando na escuridão. Espigado e com os membros longos, com grandes orelhas de morcego, ele lançou-me seu sorriso azul-gilete e soltou um grito zumbido.

Instantaneamente, gremlins começaram a aparecer de todo lugar, arrastando-se para fora das janelas, correndo pelas paredes, enxameando sobre o teto para nos espreitar. Alguns até agarraram-se às 56 No original: The Fates. Em Roma, as Parcas (equivalentes às Moiras na mitologia grega) eram três deusas: Nona (Cloto), Décima (Láquesis) e Morta (Átropos). Determinavam o curso da vida humana, decidindo questões como vida e morte, de maneira que nem Júpiter (Zeus) podia contestar suas decisões. Nona tecia o fio da vida, Décima cuidava de sua extensão e caminho, Morta cortava o fio. Eram também designadas fates, daí o termo fatalidade.

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cordas das polias ou se empoleiravam sobre os corrimãos, olhando fixamente para nós com seu estranho olhar verde. Ash me puxou para perto, sua espada desembainhada para golpear qualquer gremlin que se aventurasse a se aproximar, mas os minúsculos feéricos Iron não fizeram nenhum movimento para atacar. Suas vozes zumbidas encheram o ar, como estática de rádio, e seus sorrisos vívidos nos cercaram com um brilho azul, enquanto continuávamos a nos mover lentamente pela parede, livres.

- O que eles estão fazendo? - Sussurrei, apertando-me contra Ash. Ele me segurou protetoramente com um braço, sua espada entre nós e os gremlins. – Por que estão só olhando fixamente para nós? O que querem? Ironhorse?

O tenente balançou sua cabeça. – EU NÃO SEI, PRINCESA. – Ele respondeu, soando tão confuso quanto eu. – EU NUNCA OS TINHA VISTO AGIR DESTA MANEIRA ANTES.

- Bem, diga a eles para irem embora. Estão me dando arrepios.

Um zumbido começou através dos gremlins que nos cercavam, e o enxame começou a se dispersar. Arrastando-se de volta ao longo das paredes, eles desapareceram através das janelas, apertando-se para dentro das aberturas ou escalando de volta para o telhado. Tão subitamente quanto tinham aparecido, os gremlins desapareceram, e a parede estava escura e silenciosa novamente.

- Ok. – Puck lançou olhares ao nosso redor. – Isto foi... estranho. Alguém liberou repelente de gremlin? Eles simplesmente ficaram chateados?

Ash embainhou sua espada e me soltou. – Talvez os assustamos.

- Talvez. – Eu disse, mas Ironhorse estava olhando fixamente para mim, seus olhos carmesins insondáveis.

Grimalkin reapareceu, coçando suas orelhas como se nada tivesse acontecido. – Não importa agora. – Ele disse, enquanto a plataforma raspava contra o teto. – Eles se foram, e o cetro está perto. – Ele bocejou e piscou para nós. – Bem? Vão simplesmente ficar aí e esperar ele voe para as suas mãos?

Nós nos amontoamos para fora da plataforma, para cima do teto da fábrica. O vento estava forte aqui, puxando o meu cabelo e fazendo meu vestido se agitar como uma vela. Segurei-me em Ash enquanto caminhávamos através do teto. Muito abaixo e ao nosso redor todo, a cidade cintilava como um brilhante tapete de estrelas.

Várias clarabóias de vidro se acomodavam no meio do teto, emitindo um brilho verde-flurescente. Cautelosamente, subi em um e espiei abaixo.

- Lá. – Ash murmurou, apontando para um mezanino a vinte pés ou mais acima do chão, e talvez a trinta abaixo de nós. Através do vidro, pude captar um borrão verde-veneno entre os cinzas escuros e brancos, cercado por muitos faeries em armaduras negras. Vírus caminhou até a borda do beiral e olhou por sobre uma multidão de feéricos reunidos, pronta para um pronunciamento, eu supus. Vi Thornguards, homens-arame e alguns homens de pele verde em terno, juntos com muitos feéricos que eu não reconheci. O cetro pulsava amarelo-esverdeado nas mãos de Vírus enquanto ela o varria acima de sua cabeça, e um abafado rugido surgiu através da multidão.

- Ok, então nós a encontramos. – Puck meditou, pressionando seu nariz contra o vidro. – E parece que ela ainda não reuniu seu exército inteiro, o que é bom. Então, como chegamos até ela?

Ash fez um ruído calmo e se aproximou.

- Vocês não têm. – Murmurou. – Eu irei. – Ele virou seu rosto para mim. – Por tudo o que ela sabe, ainda estou sob seu controle. Se eu puder chegar perto o suficiente para agarrar o centro antes que ela descubra o que está acontecendo...

- Ash, não. Deste jeito é muito perigoso.

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Ele me deu um olhar paciente. – Nada que tentemos será perigoso. Estou disposto a tomar o risco. – Sua mão veio para cima, dedos acariciando o lugar onde Puck tinha o apunhalado. – Eu ainda não estou completamente recuperado. Não serei capaz de lutar tão bem quanto eu normalmente estaria. Felizmente, eu posso enganar Vírus por tempo o suficiente para pegar o cetro dela.

- E então o quê? – Exigi. – Sair lutando? Contra aquelas massas? E Vírus? E se ela souber que você não tem mais o bug? Você não pode esperar... – Eu parei, olhando fixamente para ele, enquanto alguma coisa estalava em minha cabeça. – Isto não é sobre o cetro, é? – Murmurei, e ele desviou o olhar. – É sobre matar Vírus. Está esperando chegar perto o suficiente para apunhalá-la ou cortar a cabeça dela fora ou qualquer coisa assim, e não se importa o que acontece depois.

- O que ela fez comigo foi ruim o suficiente. – Os olhos prateados de Ash brilharam enquanto ele se voltava, frio como a lua acima. – O que ela me fez fazer, nunca perdoarei. Se eu for descoberto, ao menos criarei uma distração grande o suficiente para vocês se esgueirarem e agarrarem o cetro.

- Você poderia morrer!

- Isto não importa agora.

- Importa para mim. – Olhei-o fixamente com horror. Ele realmente queria dizer aquilo. – Ash, não pode ir lá em baixo sozinho. Eu não sei de onde este fatalismo ceifador está vindo, mas pode parar com isto agora mesmo. Não vou perder você de novo.

- ELA ESTÁ CERTA.

Nós olhamos para cima. Ironhorse parava no outro lado do vidro, observando-nos. Seus olhos brilhavam vermelho na escuridão. – ISTO É MUITO PERIGOSO. PARA VOCÊS.

Eu franzi o cenho. – O que você está falando...

- PRINCESA. – Abruptamente, ele fez uma reverência. – TEM SIDO UMA HONRA. SE AS COISAS FOSSEM DIFERENTES, FICARIA FELIZ EM SERVI-LA ATÉ O FINAL DOS TEMPOS. – Ele olhou para Ash e aquiesceu, enquanto subitamente clareou-se para mim o que ele estava sugerindo. – ELA O ESTIMA MUITO, PRÍNCIPE. PROTEJA-A COM A SUA VIDA.

- Ironhorse, não ouse!

Ele se virou e partiu, ignorando meus gritos para que parasse. Meu coração apertou quando ele se aproximou da segunda clarabóia, e assisti, impotente, enquanto ele se encolheu e pulou...

O vidro explodiu quando se chocou contra ele, quebrando-se em um milhão de pedaços cintilantes. Arquejando, olhei através da clarabóia e vi os cacos brilhantes choverem sobre a multidão abaixo. Gritando e rosnando, eles olharam para cima, cobrindo seus olhos e rostos enquanto o enorme cavalo de ferro esmagava-se em seu meio com um boom que balançou o prédio. Rugindo, Ironhorse ergueu-se, explodindo chamas de suas narinas, cascos de aço ceifando em arcos mortais.

O lugar irrompeu em caos. Uma vez que eles se recuperaram do choque, Thornguards e homens-arame surgiram à frente para atacar, lançando-se sobre Ironhorse, rasgando e arranhando.

- Nós temos que chegar lá embaixo! – Gritei, correndo em direção da clarabóia quebrada somente para ter Ash capturando meu braço.

- Não assim. – Ele disse, puxando-me de volta para a janela inteira. – A distração já foi lançada. Não podemos ajudá-lo agora. Nosso alvo é Vírus e o cetro. Deveria ficar aqui, Meghan. Não tem nenhuma magia e...

Eu arranquei meu braço de seu agarre. – Não trará esta desculpa à tona novamente! – Rugi, e ele piscou em surpresa. Olhei para ele. – Lembra o que aconteceu da última vez que foi embora sem mim?

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Ponha isto na sua cabeça teimosa, Ash. Não vou ficar para trás, e ponto final.

Um canto de sua boca se contorceu, só um pouco. – Como desejar, Princesa. – Ele disse, e olhou para Puck, que estava olhando de soslaio para nós dois. – Goodfellow, está pronto?

Puck aquiesceu e saltou em direção à clarabóia. Fiz uma carranca para os dois e escalei em direção ao vidro, ignorando a mão de Puck para me ajudar. – Como espera que cheguemos lá embaixo? – Perguntei, enquanto arrastava a mim mesma para cima. – Ir direto através da janela?

Puck riu em silêncio. – Vidro é uma coisa engraçada, Princesa. Por que você acha que os povos antigos punham sal ao longo dos peitoris para nos manter fora? – Olhei para baixo e vi Vírus diretamente abaixo de nós, atirando e ondulando o cetro acima de sua cabeça, a atenção dela fixada na batalha e em Ironhorse.

Ash saltou em direção à clarabóia, puxando sua espada enquanto o fazia. – Cuide de Meghan. – Ele disse, enquanto o glamour começava a tremeluzir ao redor tanto dele quanto de Puck. – Darei um jeito em Vírus.

- O quê...? – Comecei, mas Puck subitamente me varreu para dentro de seus braços. Estava tão surpresa que não tive tempo para protestar.

- Segure firme, Princesa. – Ele murmurou, enquanto um tremeluzir veio através do ar ao nosso redor, e nós caímos direto através do vidro como se ele não estivesse lá.

Nós despencamos em direção ao beiral, um grito escapando da minha garganta, mas ele foi engolido no caos entre Ironhorse e o resto dos feéricos. Ash caiu em direção à Vírus como um anjo vingador, seu casaco voando ao vento, a espada desembainhada e brilhando enquanto ele a erguia acima de sua cabeça.

No último momento, um dos Thornguards nos arredores de Vírus olhou para cima, e seus olhos ficaram enormes. Sacando sua espada, ele deu um grito de alerta, e espantosamente, Vírus rodopiou e olhou para cima. A lâmina de Ash golpeou para baixo em um borrão de azul e encontrou o Cetro das Estações, enquanto Vírus o varria para cima para bloquear o atacante.

Houve um relâmpago de luz azul e verde, e um horrível guincho ecoou através do lugar e fez cada olho virar para o par sobre o beiral. Faíscas voaram entre a lâmina gélida e o cetro, banhando os rostos dos combatentes em luzes tremulantes. Vírus parecia um tanto chocada de estar encarando seu ex-soldado; a boca de Ash estava apertada com concentração enquanto ele se abatia sobre ela com sua espada.

Puck me pôs no chão – eu nem mesmo me lembrava de ter pousado – e saltou no meio dos Thornguards, enquanto eles corriam para mim com suas espadas sacadas. Sorrindo, ele lançou-se sobre os guardas, adagas relampejando na luz infernal vindo da lâmina de Ash e do centro.

Então Vírus começou a gargalhar.

Senti um surto de frio glamour de ferro, e ela afastou Ash para longe, empurrando-o de volta em um raio verde. Ele se recuperou imediatamente, mas antes que pudesse correr para ela novamente, Vírus recuou, caminhando para o mezanino para voar a vários pés no ar. Seus olhos verdes envenenados me acharam e ela sorriu.

- Bem. – Ela fungou e lançou olhares estupefatos para o caos estendido aos seus pés. Ironhorse, cercado por feéricos Iron, ainda chutava e se encolerizava sobre eles, apesar de que sua luta estava ficando mais fraca. Mais Thornguards vieram correndo escadas acima, mas estes carregavam bestas com flechas de ferro, apontadas direto para nós. Ash e Puck recuaram de forma que ficaram de pé entre mim e os guardas, que tinham nos cercado em um anel negro eriçado.

- Meghan Chase. Você é cheia de surpresas, não é? – Vírus sorriu para mim. – Não tenho ideia de como conseguiu libertar o príncipe Winter do meu bug, mas não importa agora. Os exércitos do

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falso rei estão prontos para marchar sobre Summer e Winter. Uma vez que eles tenham tomado Nevernever e matado os governantes de sangue antigo, será a nossa vez. Devastaremos os exércitos deles e mataremos o falso rei antes que ele tenha uma chance de saborear sua vitória. Então, Nevernever pertencerá a m...

Ela não teve chance de terminar. Ash se aproximou e lançou um turbilhão de adagas de gelo no rosto dela, tomando-a de surpresa. Ela se esquivou, segurando o cetro; houve um raio de luz verde e um surto de poder. Os pingentes de gelo quebraram-se, enterrando-se longe antes que a alcançassem. Com gritos irados, os homens com as bestas liberaram sua munição, mesmo quando Vírus gritou para que eles parassem.

A tempestade mortal de flechas de ferro voou direto para nós. Eu pude senti-las navegando através do ar, estilo Matrix, deixando rasgos distorcidos em seu caminho. Sem pensar, virei e arremessei minha mão. Não pensei em quão maluco isto era, que a tal distância as flechas rasgariam direto através de mim como se eu fosse papel. Que nós todos quase que certamente morreríamos, salpicados pelos dardos mortais que poderiam matar mesmo se não fossem feitas de ferro. Não estava pensando em nada quando girei e gesticulei firmemente, sentindo um surto de eletricidade abaixo da minha pele.

Um rasgo veio através do ar. As flechas voaram para ambos os lados de nós, convergindo para dentro das paredes e silvando por vigas de metal para tinir no chão. Ouvi os feéricos Iron gritarem quando foram atingidos, mas nem uma da meia-dúzia das flechas nos tocou.

- Impossível. – Vírus girou lentamente para me encarar, seu rosto drenado de cor. Ela balançou sua cabeça, como se tentando convencer a si mesma. – Você não pode ser a escolhida. Uma garota humana débil? Você nem mesmo é uma de nós. É um engano, tem que ser!

Não tinha nenhuma ideia sobre o que ela estava falando, mas não parecia importar. Vírus começou sacudir-se em risadas, colocando uma unha pintada de verde em sua boca, sua gargalhada ficando mais e mais alta e histérica, até que ela parou e olhou para mim com arregalados, malucos olhos. – Não! – Ela gritou, fazendo até os Thornguards recuarem. – Isto não está certo! Eu era sua segunda! Seu poder deveria ter sido meu!

Sua boca abriu, boquiabrindo-se impossivelmente larga, e os Thornguards recuaram para longe. Com o coração martelando, pressionei-me mais perto de Ash e Puck, sentindo a ameaçadora resolução de ambos, sua determinação de ir a fundo e lutar não importava o quê. O ar começou a vibrar, um terrível zumbido enchendo o ar, e Vírus jogou sua cabeça para trás. Com o zumbido de um milhão de abelhas, um enorme enxame de insetos de metal57 espiralou acima da boca de Vírus, rodopiando ao seu redor em uma brilhante nuvem frenética.

O sorriso dela estava selvagem enquanto olhava para nós abaixo, estendendo a mão para o centro do tornado zumbido. – Agora, meus queridos – ela disse, mal audível sobre zumbido de um milhão de insetos -, terminaremos este joguinho de uma vez por todas. Teria feito isto quando eu a vi pela primeira vez, mas não tinha ideia que você fosse aquela a quem estava procurando há tanto tempo.

Tudo se tornou muito calmo. O glamour frio ainda zumbia abaixo da minha pele, e eu podia sentir o gosto do metal no ar. Olhei para o enxame e vi milhares de insetos individuais, mas também uma única criatura dividindo uma mente, um objetivo, um propósito.

Uma mente de colméia, pensei impassivamente, não sabendo por que me sentia tão calma. – Controle uma, e você controla a todas.

Vagamente, eu estava consciente que Vírus estava falando, sua voz parecendo vir de muito longe.

- Vão. – Ela gritou, varrendo seu braço em nossa direção. – Rastejem por suas gargantas e

57 São os mesmos bugs de Vírus. Devido ao seu comportamento de enxame durante esta cena, e não de máquina que comprometem a autonomia de um hospedeiro (lembrando vagamente os bugs de computador) achou-se melhor traduzir.

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narinas abaixo, dentro de seus olhos e ouvidos e cada poro aberto. Entoquem-se dentro de seus cérebros e os façam arrancar seus próprios corações!

O Enxame voou em nossa direção, uma nuvem zumbindo. Ash e Puck se pressionaram mais juntos; eu senti um deles tremer mas não podia dizer qual. Um zumbido encheu minhas orelhas enquanto o Enxame se aproximava, cintilando brilhante glamour de ferro, emergindo de uma única enorme entidade.

Uma mente. Uma criatura.

Lancei ambas as minhas mãos para cima, enquanto o Enxame se dirigia à frente para atacar. Pare!

O Enxame se dispersou, rodopiando ao nosso redor, enchendo o ar com seu zumbido ensurdecedor. Mas eles não atacaram. Nós estávamos parados no meio do furacão berrante, insetos de metal zunindo ao nosso redor freneticamente, mas não se deslocaram mais.

Senti o Enxame lutando contra a minha vontade, lutando para ultrapassá-la. Vi o rosto de Vírus, primeiro imóvel com o descrédito, então branco com a fúria. Ela fez um gesto violento, e o Enxame zumbiu raivosamente em resposta. Eu apertei minha sujeição, derramando magia dentro da barreira invisível, moldando o glamour da fábrica. Minha cabeça latejou, e suor correu para os meus olhos, mas eu não podia quebrar minha concentração ou nós seríamos divididos ao meio.

Vírus sorriu asqueirosamente. – Eu tenho subestimado você, Meghan Chase. – Ela disse, erguendo-se mais alto no ar. – Não achei que me forçaria a usar o cetro, mas você vai. Sabe o que isto faz, minha cara? – Ela perguntou, segurando o cetro diante dela. Ash olhou para cima bruscamente. – Isto me tomou uma eternidade para entender, mas eu finalmente consegui. – Ela sorriu, triunfante. – Isto aumenta o poder de quem o detém. Não é interessante? Então, por exemplo, eu poderia fazer meus queridos insetos fazerem isto...

O cetro brilhou um verde doentio, e diante daquela luz, o Enxame começou a mudar. Eles incharam como carrapatos cheios de sangue, tornando-se afiados e pontiagudos, com ferrões longos e enormes garras encurvadas. Agora, eles eram do tamanho do meu punho, um cruzamento horrível entre uma vespa e um escorpião, e suas asas raspavam umas contra as outras como um milhão de facas. E suas mentes mudaram, para alguma coisa mais selvagem, mais visceral e predatória. Quase perdi minha sujeição sobre eles, e o torvelinho se apertou, pressionando-se mais perto de nós, antes que eu recuperasse o controle e os empurrasse para trás.

Zumbindo furiosamente, eles se viraram para qualquer coisa viva que pudessem alcançar, incluindo os guardas ao nosso redor. Os Thornguards gritaram, recuando e arranhando a si mesmos enquanto os insetos metálicos enxameavam sobre eles, mordendo e perfurando, enterrando-se dentro de suas armaduras.

Vírus deu risadinhas loucamente acima. – Matem-nos! – Ela gritou, enquanto muitos insetos mastigavam seu caminho para dentro de suas vítimas, que caíam se debatendo e gritando no chão. Meu estômago pesou, mas não podia olhar para longe por causa do medo de perder o controle sobre o Enxame. Não sabia o que Vírus pensava que estava fazendo até um momento mais tarde, quando os Thornguards se lançaram de pé novamente, vislumbres maníacos em seus olhos.

Erguendo suas espadas, eles golpearam em nossa direção, sangue pingando de seus ferimentos e buracos de suas armaduras, seus olhos vazios de razão. Ash e Puck os encontraram na borda do torvelinho, e o tilintar de armas se juntou ao zumbido metálico do Enxame.

Nós estávamos perdidos. Não poderia aguentar isto para sempre. Minha cabeça latejou tanto que me senti nauseada, e meus braços tremeram violentamente. Podia sentir minha força drenando com o montante de glamour que estava usando para manter o Enxame à margem.

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Fora do canto do meu olho, vi um Thornguard, coberto com insetos, lançar-se para a borda da plataforma e pegar uma besta. Erguendo-a, ele carregou uma flecha de ferro e a girou para mim. Não podia me mover. Se eu me esquivasse, o Enxame se libertaria e nos mataria. Puck e Ash estavam ocupados lutando com os outros guardas e não podiam ajudar. Eu não podia nem mesmo gritar um alarme. Em câmera lenta, observei-o erguer a besta, livre, e mirar.

Mais tarde, lembrei-me de passos tinindo e subindo os degraus só porque eles pareceram muito fora de lugar. Vi Puck rodopiar, sacar sua adaga, elevar-se e se dirigir direto no Thornguard, justo quando ele puxou o gatilho. A adaga convergiu para dentro do peito do guarda, arremessando-o para fora do mezanino, mas era tarde demais. A flecha estava vindo em minha direção, e não poderia fazer nada sobre isto.

Alguma coisa enorme e negra investiu através da minha visão, um segundo antes que a flecha atingisse o alvo. Ironhorse, coberto com insetos e perdendo pedaços de ferro por todo o lugar, cambaleou, lutando desesperadamente para ficar de pé. Ele titubeou em direção à borda do beiral, balançando sua cabeça, enquanto os insetos o enxameavam perversamente. Um casco escorregou para fora da borda, e ele caiu para o lado.

- Não! – Eu gritei.

Com um último bramido desafiador e um sopro de chama, Ironhorse caiu da borda, desaparecendo de vista. Ouvi seu corpo bater no cimento com um estrondo ressoante que ecoou através do prédio, e minha visão ficou branca de fúria.

Arqueei minhas costas, cerrando meus punhos, e glamour correu através de mim, explodindo em uma onda. – VOLTEM! – Rugi para o Enxame, para Vírus, para cada faery Iron no lugar. – Danem-se todos! Voltem, AGORA!

O Enxame voou em todas as direções e cambaleou para trás, dispersando-se para todos os quatro cantos do lugar. Os Thornguards vacilaram e cambalearam para trás; alguns até mesmo caíram da borda do corrimão. Até Vírus tremeu no meio do ar, recuando como se ela tivesse sido socada pelo vento, suas mãos caindo inertes nos seus lados.

Afundei-me no chão, toda a força saindo de mim. Enquanto o Enxame começava a agrupar novamente, zumbindo raivosamente quando enxamearam novamente juntos, e os Thornguards recuperaram seus sentidos. Vírus pôs a mão em sua testa e olhou para mim abaixo, um sorriso presunçoso estendendo-se nos lábios azuis ela.

- Bem, Meghan Chase. Parabéns, você conseguiu me dar uma dor de cabeça latejante. Mas não é o suficiente para... aaaahhhhhh!

Ela estremeceu, lançando suas mãos acima, enquanto Ash arremessava a si mesmo para fora da borda do corrimão e saltava sobre ela, sua espada erguida alto. Ainda gritando, ela tentou levantar o cetro, tarde demais. A lâmina congelada fatiou para baixo, de sua clavícula ao outro lado, cortando-a claramente em duas.

Se eu não estivesse tão tonta, teria vomitado. As metades de Vírus caíram para longe, arames e óleo viscoso derramando de seu corpo decepado enquanto ambos, ela e Ash, caíam para fora de vista.

Os Thornguards espumaram, então caíram como marionetes com as cordas cortadas. Enquanto eu sentava lá, atordoada pelo que tinha acabado de acontecer, Puck me puxou com força para cima e me arrastou para o abrigo de uma viga. Então começou a chover insetos.

O ruído de insetos metálicos me trouxe de volta aos meus sentidos. – Ash. – Murmurei, lutando para me libertar. Puck envolveu seus braços ao meu redor e me segurou contra seu peito. – Eu tenho que ir até ele... ver se ele está bem.

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- Ele está bem, Princesa. – Puck vociferou, apertando seu agarre. – Relaxe. Ele sabe o suficiente para ficar longe da chuva.

Eu cedi. Fechando meus olhos, encostei-me nele, descansando minha cabeça em seu peito, enquanto os insetos tiritavam ao nosso redor como granizo brilhante. Ele me abraçou estreito, murmurando alguma coisa sobre pragas egípcias, mas eu não estava ouvindo. Minha cabeça doía, e ainda estava tentando processar tudo o que tinha acabado de acontecer. Estava tão cansada, mas ao menos tinha acabado. E nós tínhamos sobrevivido.

Ou, a maioria de nós.

- Ironhorse. – Sussurrei, enquanto a chuva de insetos finalmente acabava. Senti Puck tenso. Libertando-me de seus braços, tropecei através do mezanino, tomando cuidado para evitar os insetos mortos e Thornguards, e tateei meu caminho escadas abaixo. Não sabia o que encontraria, mas estava esperançosa. Ironhorse não poderia estar morto. Ele era o mais forte de nós todos. Deveria estar horrivelmente ferido, e teríamos que achar alguém para emendá-lo, mas Ironhorse estava próximo de ser invencível. Ele tinha que ter sobrevivido. Ele tinha.

Eu quase convenci a mim mesma a não me preocupar, quando Ash saiu de debaixo do beiral caminhando e parou aos pés da escada, olhando para mim acima. Sua espada estava embainhada, e em uma de suas mãos, o Cetro das Estações pulsava com uma clara luz azul.

Por um longo momento, olhamos fixamente um para o outro, relutantes em quebrar o silêncio, dar voz ao que ambos estávamos pensando. Perguntei-me se Ash tomaria o cetro e partiria. Nosso contrato estava acabado. Ele tinha aquilo pelo que tinha vindo; não havia mais razão para ficar por perto.

- Então. – Quebrei o silêncio primeiro, tentando dominar o tremor em minha voz, as lágrimas estúpidas que se pressionavam atrás dos meus olhos uma vez mais. – Está partindo agora?

- Logo. – Sua voz estava calma, mas cansada. – Retornarei para Winter, mas achei que deveria prestar meus respeitos aos caídos antes de ir.

Meu estômago despencou. Olhei para trás dele e vi, pela primeira vez, a pilha de destroços de ferro nas sombras do mezanino. Com um ofego, investi pelo resto dos degraus abaixo, passei empurrando Ash, meio correndo meio tropeçando, em direção onde Ironhorse jazia cercado por insetos mortos e os restos fumegantes de Vírus.

- Ironhorse? – Por meio segundo, achei que vi Grimalkin lá, sentado em sua cabeça. Mas eu pisquei as lágrimas e a imagem tinha sumido. Ironhorse jazia de lado, soltando grandes fôlegos ásperos, as chamas em sua barriga queimando baixas. Uma de suas pernas estavam quebrada, e os enormes pedaços de seu corpo tinham sido rasgados. Pistões e engrenagens estavam espalhados ao redor dele como um relógio quebrado.

Ajoelhei-me ao lado da cabeça dele, pondo uma mão tremente sobre seu pescoço. Estava frio, e seus olhos uma vez vermelhos estavam obscuros, tremeluzindo erraticamente. Ao meu toque, ele enrijeceu, mas não ergueu sua cabeça ou olhou para mim. Tinha uma horrível suspeita que ele não pudesse ver nenhum de nós.

- Princesa?

Ouvir sua voz, tão pequena e ofegante, quase me fez me enterrar em lagrimas. – Me desculpe. – Sussurrei, sentindo, sentindo Puck e Ash comprimindo-se atrás de mim, olhando sobre os meus ombros.

- Não. – O vermelho de seus olhos diminuiu para minúsculas alfinetadas, e sua voz caiu para um sussurro. Tive que me esforçar para escutá-lo. – Foi... uma honra... – Ele suspirou uma última vez, enquanto minúsculos pontos de luz tremiam uma, duas vezes - ... minha rainha. – E ele se foi.

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Fechei meus olhos e deixei as lágrimas virem. Por Ironhorse, que nunca tinha vacilado, que nem uma vez comprometeu suas crenças ou convicções. Que tinha sido um inimigo, mas escolheu se tornar um aliado, um guardião e, ultimamente, um amigo. Fiquei ajoelhada no azulejo frio e soluçando, sem embaraço, enquanto Puck e Ash olhavam solenemente, até que os raios fracos do amanhecer começaram a salpicar através das clarabóias quebradas.

- Meghan. – A voz calma de Ash atravessou minha tristeza. – Devemos ir. – Seu tom estava gentil mas inflexível. – O exército do Rei Iron está pronto para marchar. Temos que devolver o cetro. Não resta muito tempo.

Eu me endireitei e sequei meus olhos, amaldiçoando os malditos faeries e sua guerra eterna. Parecia que nunca havia tempo o suficiente. Tempo para dançar, ou conversar, ou rir, ou até mesmo lamentar a passagem de um amigo. Tirando meu corpete, pouseio-o sobre o ombro metálico de Ironhorse, querendo que ele tivesse algo natural e bonito em seu lugar de repouso. Adeus, Ironhorse. Ash estendeu a mão, e o deixei me puxar para cima.

- Para onde agora? – Funguei.

- Os Campos de Colheita58. – Respondeu uma voz familiar, e Grimalkin apareceu, empoleirado a muitos pés de distância sobre uma caixa de papelão. Ele delicadamente golpeou um inseto de metal para fora da superfície, onde ele tilintou no chão, antes de continuar. – Todas as maiores batalhas entre as cortes tem sido lutadas sobre estas planícies. Se eu estivesse procurando pelos exércitos de Summer e de Winter, é aí aonde iria.

- Tem certeza? – Perguntei.

- Eu não disse que tinha certeza, humana. – Grimalkin contorceu o bigode para mim. – Eu só disse que é onde eu procuraria. Além disto, não estou indo com vocês.

De alguma forma, isto não me surpreendeu. – Por que não? Onde está indo desta vez?

- De volta para Leanansidhe. – Grimalkin bocejou e se coçou, arcando seu rabo sobre suas costas. – Agora que terminamos por aqui, informarei a ela que Vírus está morta, e que o cetro está retornando para a Corte Winter. Tenho certeza que ela quererá ouvir sobre seu sucesso. – O gato virou, ondulando seu rabo em despedida. – Até a próxima vez, humana.

- Grim, espere.

Ele parou, olhando para trás sem piscar seus olhos dourados.

- O que Ironhorse te prometeu, que o fez vir junto?

Ele agitou seu rabo. – Não é para você saber, humana. – Respondeu, sua voz baixa e solene. – Talvez descubra, algum dia. Oh, e se realmente ir para os Campos de Colheita, procure por um amigo meu. Ele ainda me deve um favor. Acredito que já o encontrou antes. – E com esta mensagem secreta, ele saltou para fora da caixa e teceu graciosamente por entre as hordas espalhadas de feéricos e insetos de metal. Trotando atrás de uma viga, ele desapareceu.

Olhei para os rapazes. – Como chegaremos aos Campos de Colheita?

Ash ergueu o cetro. Ele latejou com luz azul-gelo, cintilando como se fosse feito de cristal, como eu o tinha visto pela primeira vez em Tir Na Nog. – Usarei o cetro para abrir um trod. – Ele murmurou, afastando-se. – Fiquem atrás.

O cetro chamejou, enchendo o lugar com o frio, fazendo minha respiração fumegar. O ar ao nosso redor brilhou, como se um véu tivesse sido jogado sobre tudo. Um círculo nebuloso se abriu em

58 No original: Reaping Field.

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frente à Ash; além dele, vi árvores, solo e o crepúsculo obscuro da wyldwood.

- Vão. – Ash nos disse, sua voz um pouco tensa.

- Vamos, Princesa. É a nossa parada. – Puck gesticulou para o portal, esperando por mim para atravessar. Virei e lancei um último olhar para o corpo de Ironhorse, jazendo frio sobre o cimento, e pisquei as lágrimas de volta.

Obrigada. Disse a ele silenciosamente, e caminhei através do círculo.

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CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Campos de Colheita

A wyldwood estava em caos. Vento e granizo açoitavam ao meu redor enquanto eu tropeçava para fora do trod, gemendo através dos galhos e me crivando com cacos de gelo. Relâmpagos verdes raiaram acima, golpeando pelas enormes nuvens que se agitavam acima de nós, balançando galhos e mexendo detritos em turbilhões violentos. Pingos de neve, intermediados com a chuva, reuniam-se em montes e montículos, e então se esparramavam com o vento. Uma piskie de pele violeta passou se chocando, pega em uma pirueta selvagem, até que ela desapareceu nas árvores.

- Maldição! – Puck apareceu atrás de mim, o cabelo carmesim voando em todas as direções. Ele tinha que gritar para ser ouvido. – Eles começaram a guerra sem nós. Eu tinha um convite, também.

Ash caminhou através do círculo, que se fechou atrás dele. – Campos de Colheita está perto. – Ele ergueu sua cabeça para o vento, fechando seus olhos, e sua testa franziu. – A luta está também no subsolo. Posso cheirar o sangue. Sigam-me.

Nós nos apressamos através da floresta, Ash na frente nos liderando o caminho, o cetro uma incandescente luz azul-brilhante contra a escuridão da wyldwood. Ao nosso redor, a tempestade assolava e rugia, e trovões soavam acima, balançando o chão. Meus sapatos afundavam na lama, e meu vestido se enroscou em uma dúzia de espinhos e galhos que despedaçaram o tecido e rasgaram o que restou a pedaços.

As árvores ficaram para trás, deixando-nos olhando para uma vasta ravina gélida flanqueada por colinas escarpadas, seus topos desaparecendo dentro das nuvens. Um rio congelado serpenteava seu caminho através do vale rebitado de seixos, contorcendo preguiçosamente ao redor das ruínas de um castelo antigo no centro da planície.

Daqui, os exércitos de Summer e Winter pareciam formigueiros, um enorme borrão caótico de movimento e cor. Rugidos e gritos enchiam o ar, erguendo-se acima do rugido do vento. Filas de soldados batiam-se umas contra as outras de certa forma disciplinada, enquanto outros grupos bordejavam ao longo do campo, ricocheteando de uma luta para outra, alegremente atirando-se para a briga. Formas gigantes arrastavam-se pesadamente através das massas, oscilando e esmagando, e enxames de criaturas aladas atacavam do ar. Era uma bagunça colossal, violenta e maluca, que seria suicídio atravessar.

Eu engoli em seco e olhei para Ash e Puck: - Nós vamos atravessar isto, não vamos?

Ash aquiesceu. – Procurar por Oberon ou Mab. – Ele disse solenemente, vasculhando o campo de batalha. – Eles provavelmente estarão em lados opostos do rio. Tente não se envolver em nada, Goodfellow. Não queremos uma luta... nós só queremos entregar o cetro para a rainha.

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- Não se engane, Príncipe. – Puck sorriu e puxou suas adagas, apontando para Ash com a ponta do dedo. – Você é um traidor, Meghan é a princesa Summer, e eu sou Robin Goodfellow. Estou certo que as filas de Unseelies simplesmente vão nos levar a marchar para dentro.

E então, uma sombra caiu sobre nós, e um sopro de vento quase me derrubou. Ash me afastou, enquanto um enorme lagarto alado pousava bem onde eu estaria, em uma explosão de neve e pedra. A criatura sibilou e guinchou, batendo asas esfarrapadas e despedaçando o chão com duas pernas traseiras com garras. Suas escamas eram de um marrom empoeirado; seus olhos amarelos, perversos e estúpidos. Um longo rabo musculoso rasgou o ar atrás dele, com um perverso filamento brilhante no final. Sibilando, ele caminhou entre mim, Ash e Puck, separando-nos com o seu corpo, contorcendo seu rabo sobre suas costas como um escorpião enorme.

Um cavaleiro sentava entre as lâminas dos ombros da criatura, sua armadura branco-prístina e brilhante, sem um pingo de sangue sobre ela.

- Rowan! – Eu ofeguei.

- Bem, bem. – O príncipe mais velho sorriu afetadamente para mim, das costas de sua montaria réptil. – Aqui estão vocês novamente. A desobediente princesa e nosso príncipe traidor. Não se mova, Ash. – Ele avisou, atirando a seu irmão um olhar sombrio. – Um minúsculo movimento, e Thraxa morderá sua amada mestiça mais rápido do que possa piscar. Você não quer perder outra garota para o veneno de serpe59, quer?

Ash já tinha sacado sua espada, mas diante da ameaça de Rowan ele empalideceu e me lançou um olhar assustado. Vi o desespero em seus olhos, antes que abaixasse sua lâmina e desse um passo para trás.

- Bom garoto. Isto estará acabado logo, não se preocupe. – Rowan ergueu seu punho, e uma dúzia de Thornguards emergiu das árvores, armas em punho, encurralando-nos entre eles e Rowan. – Não deve demorar muito agora. – O príncipe mais velho sorriu. – Uma vez que as cortes terminem de estraçalhar uma a outra em pedaços, os exércitos do Rei Iron os varrerão, e tudo estará acabado.

- Mas primeiro – ele continuou, virando para olhar para Ash. – Precisarei do cetro. Entregue-o, irmãozinho.

Ash enrijeceu, mas antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, Puck deu um passo entre nós, um sorriso perverso estendendo-se por seu rosto. – Venha e o pegue. – Ele desafiou. Rowan olhou de cima e sorriu presunçosamente.

- Robin Goodfellow. – Ele sorriu. – Tenho ouvido tanto sobre você. Você é a razão de Ariella estar morta, não é? – Puck franziu o cenho, mas Rowan continuou sem parar. – Uma pena que Ash não tenha nem mesmo tido sua vingança, mas acredite-me quando eu digo que isto será um prazer. Thraxa. – Ele ordenou, varrendo seu braço desdenhosamente em direção a Puck – Mate.

A serpe sibilou e serpenteou sua cabeça para baixo, arreganhando presas afiadas como agulhas. Foi assustadoramente rápida, como uma víbora, e suas mandíbulas atiraram-se sobre a cabeça de Puck.

Eu ofeguei, mas Puck explodiu em um rodopio de folhas, deixando a serpe piscando e confusa. Enquanto ela recuava, bufando e vasculhando o chão por sua vítima, um enorme corvo negro

59 Serpe, também conhecida pela muito usada designação inglesa wyvern (ou wivern, derivado da palavra francesa wivre, víbora), é todo réptil alado semelhante a um dragão, mas de dimensões distintas, muito encontrado na heráldica medieval. Geralmente as serpes apresentam apenas duas patas (ao contrário dos dragões ocidentais, que sempre possuem quatro), sendo que no lugar das dianteiras estão suas asas, o que a torna similar a uma ave. Diferentemente dos dragões, é muitas vezes tida mais como um ser desprezível do que como sábio. Geralmente não possui habilidades como cuspir fogo, embora às vezes seja retratada fazendo-o. Outra característica que a diferencia de um dragão é a falta ou menor número de escamas, que lhe confere uma aparência mais "lisa". (Fonte: Wikipédia).

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arrebatou-se para fora das árvores, mirando direto no rosto dela. Com um crocitar estridente, o pássaro afundou suas garras no lado da cabeça da serpe e mergulhou seu bico afiado no olho de fenda amarela.

A serpe recuou com um grito, batendo suas asas e balançando sua cabeça, tentando desalojar o pássaro agarrado a ela. Rowan, quase jogado de sua sela, amaldiçoou e sacudiu as rédeas, tentando recuperar o controle, mas a serpe estava em pânico agora, gritando e se debatendo de dor. Eu mergulhei abaixo do monstro e corri para Ash, que me pegou em um quase desesperado abraço, mesmo enquanto ele mantinha seus olhos sobre Rowan. Senti seu coração acelerando abaixo de seu casaco.

O corvo pendurava-se, picando e rasgando, até que ícor negro borrifasse do rosto da serpe e o olho estava estourado, uma confusão sem utilidade. Com um crocitar de triunfo, ele se soltou e se arrebatou de volta para nós, mudando para Puck em uma explosão de folhas. Ele ainda estava rindo enquanto se erguia em seus pés, sacando suas armas com um floreio.

- Matem-nos! – Rowan gritou, enquanto sua montaria decidia que tinha tido o bastante, e saltava para o céu aberto. – Matem a todos e peguem o cetro! Não os deixem arruinar tudo!

- Fique atrás. – Ash me falou, enquanto os Thornguards começaram a avançar, fechando seu meio círculo mortal. Havia muitos deles, parecendo derreterem para fora das árvores e galhos, mais do que eu pensei a princípio. Meus olhos caíram sobre Ash, segurando tanto o cetro quando sua espada em uma postura de dupla armada. Eu poderia simplesmente pegar o cetro e correr? Atirei um olhar rápido para a encosta abaixo, dentro do vale, e meu coração ficou gelado de medo. De jeito nenhum. Não havia maneira de eu conseguir atravessar viva aquela massa agitada.

Um relâmpago tremeluziu, brilhante e estranho, e entre um raio e o próximo, uma criatura branca apareceu na borda da encosta. Primeiro, pensei que fosse um cavalo. Só que era menor e mais gracioso do que qualquer um que eu tivesse visto antes, mais gamo do que equino, com um rabo de leão e cascos divididos que mal tocavam o chão. Seu chifre espiralava para cima, entre suas orelhas, lindo e terrível ao mesmo tempo, destruindo qualquer ideia preconcebida que eu tinha sobre a palavra unicórnio. Ele me fitou com olhos mais antigos que a floresta, e eu senti um tremor de reconhecimento, como uma memória de um sonho, mas então ela se foi.

Grimalkin me enviou. A voz sussurrou em minha cabeça, suave como uma folha passando. Apresse-se, Meghan Chase. Com um balançar de sua cabeça, o unicórnio virou e desapareceu encosta abaixo. Naquele momento, soube o que tinha que fazer.

Aquele encontro inteiro parecia ter passado em um instante. Quando virei de volta para os rapazes, eles ainda estavam esperando pelos Thornguards, que se aproximavam vagarosamente, como se soubessem que nós não iríamos a lugar nenhum. – Ash. – Murmurei, pousando a mão sobre seu braço. – Me dê o cetro.

Ele me atirou um olhar sobre seus ombros. – O quê?

- Eu o entregarei a Mab. Só os segure até que eu consiga cruzar o campo. – Ash olhou fixamente para mim, sua expressão dividida. Fechei minha mão sobre o cetro, rangendo meus dentes quando o frio me queimou como fogo. – Eu posso fazer isto.

- Ei, Príncipe – Puck chamou por sobre seu ombro -, uh, você pode vir a qualquer hora, agora. Quando estiver pronto.

Um grito estridente ecoou sobre o vale, e uma figura escura rolou direto para nós em assas de couro. Rowan tinha voltado.

- Ash! – Os Thornguards estavam quase sobre nós, e Ash ainda segurava o cetro firmemente. Desesperadamente, eu encontrei seus olhos, vi indecisão lá, a dúvida, e o medo que ele estivesse me enviando para a morte. – Ash – sussurrei, e pus minha outra mão sobre a sua -, você tem que confiar em mim.

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Ele estremeceu, aquiesceu uma vez, e soltou seu aperto. Agarrando o cetro, eu recuei, sustentando seu olhar preocupado enquanto os Thornguards ficavam mais perto e a lamúria da serpe ecoou sobre as árvores. – Tenha cuidado. – Ele disse, uma tempestade de emoção naquelas duas palavras simples. Aquiesci sem ar.

- Não falharei. – Prometi.

Os Thornguards atacaram com um rugido. Ash girou em direção a eles, a lâmina reluzindo, enquanto Puck dava um grito estridente de batalha e mergulhava no meio deles. Sentindo o cetro queimar em minhas mãos, virei e fugi pela escarpa abaixo.

O unicórnio esperava no final da colina, quase invisível na névoa, seu chifre mais real que o resto dele. Meu coração bateu surdamente enquanto me aproximava. Mesmo que o unicórnio parasse perfeitamente quieto, observando-me, era como caminhar para um tigre que era domado e amigável, mas ainda um tigre. Ele poderia tanto se ajoelhar e pousar sua cabeça em meu regaço quanto explodir em violência e me perfurar com aquele chifre brilhante. Felizmente ele não fez nenhum dos dois, parou imóvel como uma estátua enquanto eu caminhava para perto o suficiente para ver meu reflexo em seus olhos escuros. O que devo dizer? Tenho que pedir permissão para subir nas costas dele?

Um gemido perfurante rachou o ar acima de nós, e a sombra da serpe passou ao alto. O unicórnio pulou, agitando suas orelhas, tremendo com o esforço de não fugir. Dane-se! Eu não tenho tempo! Enquanto o uivo da serpe soava novamente, levantei-me sem jeito direto para as costas do unicórnio e agarrei sua crina.

Tão logo eu me acomodei, o unicórnio deu um salto fantástico sobre as rochas e pousou na borda do campo gélido, fazendo meu estômago alojar-se em minha garganta. Por um momento, ele hesitou, olhando um lado e outro, tentando achar o caminho mais fácil de entrar. Um cão de caça com olhos vermelhos saltou para nós com um rosnado, a língua pendendo. O unicórnio saltou agilmente para o lado, chicoteando seus cascos. Ouvi um estalo e um ganido, o cão fugiu para dentro das brumas sob três pernas.

- Não há tempo para dar a volta! – Eu gritei, esperando que o unicórnio pudesse me entender. – Mab está no canto mais distante do rio! Nós temos que ir direto para lá!

Um berro soou atrás de nós. Olhei para trás para ver a serpe mergulhar da encosta e planar em direção ao chão, direto para nós. Vi Rowan sobre as costas da serpe, espada sacada, seu olhar furioso fixo em mim, e meu estômago apertou-se em terror. – Vá! – Eu gritei, e com um relincho desesperado, nós nos lançamos para dentro do coração da batalha.

O unicórnio saltou através do caos, esquivando armas, saltando sobre obstáculos, movendo-se com velocidade aterrorizante. Minha mão apertava a crina tão forte que meus braços tremiam; a outra mão queimava com o cetro. Ao nosso redor, feéricos Summer e Winter cortavam e golpeavam uns aos outros, gritando em fúria, dor e simples sanha regozijante por sangue. Capturei vislumbres da batalha enquanto corríamos por ela. Um par de trolls golpeavam clavas de pedra em um enxame de duendes, seus ombros e costas eriçando-se com lanças. Um trio de barretes vermelhos arrastaram uma sílfide lamuriante do ar, ignorando a borda afiada de suas asas de libélula, e a enterraram debaixo de suas facas perfurantes. Cavaleiros Seelies em armaduras verdes e douradas ressoavam suas espadas com os guerreiros Unseelies, seus movimentos tão graciosos que parecia que estavam dançando, mas suas belezas sobrenaturais estavam contorcidas com ódio.

O rugido da serpe soou diretamente acima de nós, e o unicórnio saltou para o lado tão rápido que eu quase caí do meu assento. Vi as garras de gancho da serpe golpear um anão, e o homem barbudo gritou enquanto era partido e erguido no ar, lutando fracamente. A serpe subiu mais, e eu observei com horror enquanto ela jogava o ainda combatente anão nas rochas abaixo. Girando em um círculo preguiçoso, ela veio atrás de nós novamente.

Minha montaria começou a trançar, um padrão zigzagueado frenético que me empurrava de um lado para o outro e me fazia doente de medo. Apertei meus joelhos nos flancos do unicórnio tão forte

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que senti suas costelas através do meu vestido. A serpe ondulou no ar, confusa, então mergulhou com outro grito congelante. Meu garanhão ágil esquivou mais uma vez, mas desta vez a serpe passou tão perto que poderia ter batido em suas garras com as costas da minha mão.

Nós estávamos no meio do campo, ainda em lugar nenhum próximo do rio, então o unicórnio desceu.

A luta estava mais acirrada no cetro do campo de batalha, onde os soldados de ambos os lados se chocavam sobre os mortos e os moribundos. O unicórnio lançou-se entre os grupos, parecendo saber exatamente quando uma brecha iria se abrir, deslizando através dele sem desacelerar. Mas Rowan ainda estava no nosso rastro. Quando o unicórnio se esquivou da passagem da serpe pela terceira vez, um enorme monstro pétreo se ergueu de debaixo da neve, ceifando sua enorme clava em direção a nós. Ela atingiu as patas frontais do unicórnio, e o gracioso animal caiu com um relincho agudo. Voei para fora de suas costas e atingi um banco de neve com pouso que tirou o ar dos meus pulmões.

Atordoada, eu fiquei lá enquanto o mundo girava como um carrossel, tremeluzindo dentro e fora de vista. Figuras borradas e sombreadas encolerizaram-se sobre mim, gritando, mas os sons estavam abafados e distorcidos, vindo de uma grande distância.

A forma branca do unicórnio ergueu-se, dando patadas no ar, golpeando com seu chifre, antes que fosse empurrado para debaixo da massa negra. Eu me ergui com um impulso, chamando-o, mas meus braços tremiam, e eu caí, soluçando em frustração. Mais uma vez, o unicórnio se ergueu, sua pele branca manchada com carmesim, muitas coisas sombrias agarrando-se em suas costas. Eu gritei, arrastando-me para frente desesperadamente, mas com um grito agudo, o unicórnio desapareceu dentro da agitada massa mais uma vez. Desta vez, não ressurgiu.

Enquanto eu ofegava para respirar, lutando contra as lágrimas, alguma coisa úmida e pegajosa pingou direto em meu braço. Olhei para o rosto verrugoso de um duende acima, seus dentes tortos escorregadios com baba enquanto ele sorria para mim, balançando uma língua pálida sobre seus lábios.

- Garota saborosa já morta? – Ele perguntou, cutucando meu braço com a coronha de sua lança.

Eu me levantei balançando. A náusea fluiu através de mim e o chão rodopiou. Concentrei-me em não desmaiar. O duende recuou com um sibilo, então se moveu para frente de novo. Eu olhei freneticamente ao redor procurando uma arma, e vi o cetro, jazendo na neve a alguns pés de distância.

O duende sorriu, erguendo sua lança, então desapareceu debaixo de muitas toneladas de serpe, enquanto o lagarto monstruoso pousava sobre ele com um ressoar que balançou o chão, enviando neve a voar. Rugindo, ela recuou para o bote, e eu me lancei em busca do cetro.

Minha mão se fechou sobre a haste, e um solavanco de eletricidade atingiu meu braço acima. Senti a respiração quente da serpe sobre meu pescoço e rolei de costas, trazendo o cetro para cima. Naquele meio segundo, vi a boquiaberta mandíbula cheia de dentes da serpe encher minha vista inteira, e o cetro em minha mão brilhou, não azul ou verde, mas um puro branco cegante.

Raios dispararam da haste, lançando-se para dentro da boca aberta da serpe. O golpe arremessou a cabeça do lagarto para trás, enchendo o ar com o cheiro de carne queimada. Ao mesmo tempo, senti alguma coisa dentro de mim se quebrar, como um martelo atingindo vidro, quebrando-o em um milhão de pedaços. Som, cor e emoção inundaram minha mente, uma onda engarrafada de glamour vertendo para fora, e eu gritei.

Um pulsar rasgou através do ar, voando em direção ao exterior. Ele bateu nos combatentes mais próximos e continuou, estendendo-se através do campo. Lutando contra a tontura, eu me esforcei para ficar de pé, oscilando como um marinheiro bêbado em um vestido rasgado e imundo. Não pude ver Mab ou Oberon através das sombras indistintas ao meu redor, mas vi centenas de olhos brilhantes, espadas resplandecentes e dentes arreganhados, prontos para me rasgar ao meio. Eu certamente tinha a atenção de

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todos agora.

O cetro pulsava em minha mão. Agarrando o punho, eu o ergui sobre minha cabeça. Uma luz tremeluzente derramou-se sobre a multidão, fazendo-os murmurar e recuar.

- Onde está a Rainha Mab? – Gritei, minha voz débil e fraca, mal se erguendo acima do rosnado do vento. Ninguém respondeu, então eu tentei novamente. – Meu nome é Meghan Chase, filha de Lorde Oberon. Estou aqui para devolver o Cetro das Estações. – Esperei que alguém contasse a Mab rapidamente; não sabia o quanto eu poderia permanecer consciente, muito menos falar em sentenças coerentes na frente da rainha.

Vagarosamente, a multidão se dividiu, e o ar ao nosso redor caiu vários graus, fazendo minha respiração fumegar diante de meu rosto. Mab vinha através da multidão em um enorme cavalo de guerra branco, seu vestido tracejando atrás dela, seu cabelo solto e voando por suas costas. Os cascos do cavalo mal tocavam o chão, e grandes gotas de fumaça levantavam-se de suas narinas, coroando a Rainha Winter em um halo fantasmagórico de névoa. Seus lábios de unhas estavam azuis, seus olhos tão negros quanto uma noite sem estrelas, enquanto ela me espreitava abaixo.

- Meghan Chase. – A voz da Rainha era um sibilo, suas feições perfeitas terrivelmente vazias. Seu olhar esvoaçou para a haste em minha mão, e ela sorriu, fria e perigosa. – Vejo que tem meu cetro. Então, a Corte Summer finalmente está admitindo seu erro?

- Não. – Surgiu uma voz forte, antes que eu pudesse responder. – A Corte Summer não tem nada haver com o roubo do cetro. Foi você quem tirou conclusões precipitadas, Lady Mab.

E Oberon estava lá, passeando através da multidão em um garanhão baio dourado, flanqueado por um esquadrão de cavaleiros elfos. Sua armadura faery brilhava em esmeralda e ouro, brilhantes ligações tecidas em torno de protuberâncias de casca e osso, e um elmo de chifres erguia-se acima de sua cabeça.

Senti um surto de alívio ao vê-lo, mas ele murchou quando o Erlking olhou para mim, seus olhos verdes frios e distantes. – Eu lhe falei antes, Rainha Mab. – Ele disse, falando com Mab, mas ainda olhando para mim. – Não sabia nada disto, nem enviei minha gente para roubar o cetro de você. Começou uma guerra conosco sobre um falso pretexto.

- Assim você diz. – Mab me deu um sorriso predador, fazendo-me sentir como um coelho encurralado. – Mas, parece que a Corte Summer ainda está em falta, Erlking. Pode não ter sabido nada do cetro, mas sua filha admite sua culpa ao tentar devolver o que é meu, esperando talvez, que serei misericordiosa. Isto não está correto, Meghan Chase?

Eu notei as multidões tanto de feéricos Winter quanto de Summer deslocando-se para trás de seus governantes, e desejei que pudesse fazer o mesmo. – Não. – Eu disse abruptamente, sentindo o olhar de ambos os governantes queimando buracos através do meu crânio. – Quero dizer... não, eu não o roubei.

- Mentiras! – Mab saltou de seu cavalo de guerra e avançou em direção a mim. O brilho louco estava de volta, e meu estômago se contraiu em medo. – Você é uma humana imunda, e todos vocês falam mentiras. Você voltou Ash contra mim. Fez com que ele lutasse contra seu próprio irmão. Você fugiu de Tir Na Nog e procurou abrigo com a exilada Leanansidhe. Isto não é verdade, Meghan Chase?

- Sim, mas...

- Você estava na sala do trono quando meu filho foi morto. Por que eles a deixariam viva? Como sobreviveu se a Corte Summer não estava atrás disto tudo?

- Eu lhe falei...

- Se você não roubou o Cetro das Estações, quem roubou?

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- Os feéricos Iron! – Gritei, quando meu temperamento finalmente explodiu. Não era o movimento mais esperto, mas eu estava ferida, tonta, exausta, e ainda podia ver o corpo de Ironhorse, espalhado sem vida no cimento, o unicórnio rasgado ao meio diante dos meus olhos. Depois de tudo o que tínhamos feito, de tudo pelo que tínhamos passado, ter alguma vaca faery me acusando de mentir era a última gota. – Eu não estou mentindo, maldição! – Gritei para ela. – Pare de falar e só me escute! Os feéricos Iron roubaram o cetro de mataram Sage! Eu estava bem ali quando aconteceu! Há um exército deles lá fora, e eles estão se preparando para atacar! Foi por isto que roubaram o cetro! Eles queriam que vocês se matassem uns aos outros antes que viessem e arrasassem a tudo!

Os olhos de Mab ficaram vidrados e aterrorizantes, e ela ergueu sua mão. Entendi que estava morta. Você não grita com uma rainha faery e espera caminhar para longe livre da silva. Mas Oberon finalmente deu um passo à frente, interrompendo Mab antes que ela pudesse me transformar em um picolé. – Espere, Lady Mab. – Ele disse em uma voz baixa. A Rainha Winter virou seu maluco olhar assassino sobre ele, mas ele a encarou calmamente. – Só um momento, por favor. Ela é minha filha, depois de tudo. – Ele me deu um olhar avaliativo. – Meghan Chase, por favor, devolva o cetro para Lady Mab, e nos deixe acabar com isto.

Com prazer. Aproximei-me de Mab e entreguei o cetro com as duas mãos, ansiosa por me livrar da coisa estúpida. Com todo o seu poder, ele pareceu um item um tanto pequeno e trivial, para causar tanto ódio, confusão e morte. Por um momento, a Rainha Winter olhou fixamente para mim, suas feições frias e vazias, fazendo-me suar. Finalmente, e com grande dignidade, ela estendeu as mãos e tomou o cetro, e um grande suspiro de alívio cruzou o campo de batalha. Estava feito. O Cetro das Estações estava de volta a onde pertencia, e a guerra estava acabada.

- Agora, Meghan Chase – Oberon disse enquanto o murmúrio morria -, por que não nos conta tudo o que aconteceu?

Então eu contei, resumindo o melhor que podia. Contei-lhes sobre Tertius roubando o cetro e matando Sage. Contei-lhes sobre os Thornguards, e como eles queriam tornar a si mesmos feéricos Iron. Descrevi Grimalkin nos liderando através das Sarças, e como encontramos Leanansidhe, que concordou em nos ajudar. E finalmente, contei-lhes sobre Vírus, seus planos de invadir Nevernever, e como fomos capazes de localizá-la e pegar o cetro de volta.

Deixei de fora as partes sobre Ironhorse. A despeito de sua ajuda e sacrifício nobre, eles apenas o veriam como o inimigo, e não queria ser acusada de culpa por associação. Quando terminei, um silêncio incrédulo pairou no ar, e por um momento só o vento podia ser ouvido, rugindo sobre as planícies.

- Impossível. – A voz de Mab estava fria, mas tinha perdido o tom maluco, ao menos. Minha entrega do cetro pareceu aplacá-la por enquanto. – Como eles conseguiram entrar no palácio e sair novamente, sem que ninguém os tenha visto?

- Pergunte a Rowan. – Eu atirei de volta, e um murmúrio surgiu através das filas de feéricos aos arredores. – Ele está trabalhando com eles.

Mab ficou absolutamente imóvel. Arrepios ergueram-se ao longo de meus braços, enquanto o gelo começou a arrastar-se sobre o chão, estalando e ondulando, estendendo-se dos pés da Rainha Winter. Quando ela falou, sua voz estava suave, quase um sussurro, mas me assustou mais do que quando ela estava louca e gritando. – O que você disse, mestiça?

Olhei para Oberon, mas ele parecia descrente também. Podia sentir sua paciência e apoio se desgastando; se iria acusar um filho de Mab de traição, seria melhor provar. Do contrário, ele não seria capaz de me proteger por muito mais tempo.

- Rowan está trabalhando com os feéricos Iron. – Repeti, enquanto o gelo se espalhava ao redor de mim, cintilando na neve. – Ele e os Thornguards. Eles... eles querem se tornar como eles, imunes ao ferro. Acham...

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- Basta! – O grito de Mab fez a todos, exceto Oberon, recuarem. – Onde está sua prova, mestiça? Não espera que aceite estas declarações blasfemas sem provas... você é uma humana e pode mentir tão facilmente! Diz que meu filho traiu sua corte e espécie, para se por ao lado destas abominações de ferro que ninguém viu? Muito bem! Mostre-me a prova! – Ela apontou um dedo para mim, os olhos estreitados em triunfo. – Se você não tem nenhuma, é culpada de caluniar a família real, e vou puni-la como quiser!

- Eu não... – Mas os sons de uma luta nos interromperam. As multidões se deslocaram, olhando ao redor, então se afastaram do caminho quando um trio de faeries as atravessou. Ash e Puck, sangrando, rostos solenes e sujos, arrastavam o corpo eriçado de um Thornguard entre eles. Rompendo dentro do círculo, eles jogaram o faery aos pés de Mab.

Arquejando, Puck se endireitou, limpando sangue de sua boca com as costas de sua mão. – Aqui está sua prova.

Oberon ergueu uma sobrancelha. – Goodfellow. – Ele disse, e aquela única palavra enviou arrepios por minha espinha abaixo e fez Puck estremecer. – Qual é o significado disto?

Mab sorriu. – Ash. – Ela ronronou, mas não era um cumprimento amigável. – Que surpresa encontrá-lo aqui, na companhia da garota Summer e de Robin Goodfellow. Cuidaria de adicionar mais à sua lista de crimes?

- Minha rainha. – Ash parou diante de Mab, respirando pesadamente, sua expressão gelada e resignada. – A princesa fala a verdade. Rowan é um traidor para nós. Ele enviou sua guarda de elite para apoiar os exércitos dos feéricos Iron, permitiu-lhe o acesso dentro do palácio, e é responsável pela morte do Príncipe Sage. Se não fosse por Robin Goodfellow e a princesa Summer, o cetro estaria perdido, e os exércitos do Rei Iron nos destruiriam. – Mab estreitou seus olhos, e Ash recuou, gesticulando para o Thornguard. – Se duvida da minha palavra, minha rainha, simplesmente pergunte a ele a verdade. Estou certo que ficaria feliz em contar-lhe tudo.

- Prenda-o. – Puck rosnou, passando por mim furioso. – Ou pode fazer simplesmente isto.

Ele atacou subitamente o guarda, lançando seu joelho no peito armadurado do faery. Os braços do Thornguard subiram para proteger a si mesmo, e Puck agarrou uma das suas luvas, arrancando-a e segurando o punho dele.

O tinido agudo de metal encheu o ar, e o círculo de espectadores curiosos saltou para trás com gritos de horror. A mão inteira do Thornguard estava escurecida e murcha, a pele lascando como cinza. E sobre seu longo dedo corroído, o anel de ferro cintilou brilhantemente contra a carne seca.

- Aí! – Puck vociferou, jogando o braço para baixo e recuando. – Isto é prova o suficiente para você? Cada um destes bastardos usa um daqueles anéis, e isto não é uma declaração de moda. Se quiser mais provas, cheque os espinheiros no topo da colina. Deixamos este aqui vivo para explicar suas ambiçõesinhas a golpe para sua rainha.

Mab virou seu olhar muito frio sobre o Thornguard, que se encolheu de medo e começou a balbuciar.

- Minha rainha, eu posso explicar. Rowan nos ordenou a isto. Estava agindo sob seu comando. Ele nos disse que somente isto nos salvaria. Por favor, eu nunca quis... por favor, não!

Mab gesticulou. Houve um raio de luz azul, e o gelo cobriu o guarda, encasulando-o em cristal congelado. Ele tomou um fôlego para um último grito, mas o gelo se fechou sobre seu rosto e o sufocou. Eu estremeci e olhei para longe.

- Ele me contará tudo mais tarde. – Mab sorriu friamente, falando mais para si mesma do que para nós. – Oh, sim. Ele estará implorando para me contar. – Ela olhou para cima, seus olhos tão terríveis quanto sua voz. – Onde está Rowan?

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Enquanto as multidões começavam a murmurar e olhar ao redor, eu lancei um olhar sobre onde a serpe morta jazia, já sabendo a resposta. Rowan tinha partido. Eles não o achariam em Nevernever, fugira para os feéricos Iron, continuando sua busca para se tornar como eles.

Depois de um longo momento, tornou-se claro que Rowan não estava mais no campo. – Lady Mab. – Oberon disse, aproximando-se. – À luz desta nova revelação, proponho uma trégua temporária. Se o Rei Iron planeja nos atacar, prefiro encontrá-lo com minhas forças fortes e prontas. Falaremos sobre isto mais tarde, mas por agora levarei minha gente de volta a Arcádia. Meghan, Goodfellow. – Ele gesticulou para nós firmemente. – Venham.

Olhei para Ash, e ele me deu um fraco sorriso. Vi alívio em seu rosto. Mas Mab não estava a ponto de me deixar partir ainda. – Não tão rápido, meu caro Oberon. – Ela ronronou, e a presunçosa satisfação em sua voz fez minha pele se arrepiar. – Acredito que está esquecendo algo. As leis de nossa gente se aplicam a sua filha, também. Ela deve responder por virar meu filho contra mim. – Mab apontou o cetro para mim, enquanto murmúrios irados correram a multidão. – Ela deve ser punida por iludi-lo para ajudá-la a escapar de Tir Na Nog.

- Isto não foi decisão de Meghan. – A voz profunda de Ash cortou através do murmúrio. Olhei para ele intensamente e balancei minha cabeça, mas ele me ignorou. – Foi minha. Eu fiz a escolha. Ela não tem nada haver com isto.

Mab virou para ele, e seu olhar se suavizou. Sorrindo, ela encurvou um dedo e ele se aproximou de pronto, nunca hesitando, apesar de suas mãos estarem apertadas em seus lados. – Ash. – Mab lamentou enquanto ele se aproximava. – Meu pobre garoto. Rowan me contou o que aconteceu entre vocês dois, mas eu sei que você teve suas razões. Por que você me trairia?

- Eu a amo.

Suavemente, e sem hesitação, como se ele já tivesse se convencido. Meu coração saltou e soltei um ofego, mas ele ficou perdido no murmúrio de horror e descrença que atravessou a multidão. Sussurros e murmúrios encheram o ar, alguns faeries rosnaram e sibilaram, arreganhando seus dentes, como se quisessem comer Ash, mas mantiveram sua distância da rainha.

Mab não pareceu surpresa, apesar de que o sorriso repuxando seus lábios estivesse tão frio e cruel quando uma lâmina. – Você a ama. A filha mestiça do lorde Summer.

- Sim.

Sofri por ele, meu estômago contorcendo-se dolorosamente. Ele parecia tão desolado lá de pé sozinho, encarando uma rainha maluca e muitos milhares de feéricos irados. Sua voz estava mole e resignada, como se ele tivesse sido empurrado para um canto e tivesse cedido, não se importando o que aconteceria a seguir. Comecei a ir em sua direção, mas Puck agarrou meu braço, seus olhos verdes solenes enquanto ele balançava sua cabeça.

- Ash. – Mab pousou uma palma sobre o peito dele. – Você está confuso. Posso ver isto em seus olhos. Não quer isto, quer? Não depois de Ariella. – Ash não respondeu, e Mab recuou, fitando-o intensamente. – Sabe o que vem depois, não sabe?

Ash aquiesceu uma vez. – Fazer um juramento – ele sussurrou -, nunca a ver novamente, nunca falar com ela novamente, servir a todos os aliados e retornar à Corte Winter.

- Sim. – Mab sussurrou de volta, e um desespero doentio rasgou meu coração. Se Ash falasse estas palavras, estaria acabado. Um faery não podia quebrar uma promessa, mesmo se ele quisesse. – Faça o juramento – Mab continuou -, e tudo estará perdoado. Pode voltar para Tir Na Nog. Retornar ao palácio, e tomar o seu lugar como herdeiro do trono. Sage se foi, e Rowan está morto para mim. – Mab pousou um beijo sobre a bochecha de Ash e recuou. – Você é o último príncipe de Winter. É hora de ir para casa.

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- Eu... – Pela primeira vez, Ash hesitou. Seu olhar encontrou o meu, brilhante e angustiado, implorando perdão. Sufoquei um soluço e me virei para longe, minha garganta doendo com miséria, não querendo ouvir as palavras que o tomariam de mim para sempre.

- Eu não posso.

Silêncio caiu sobre o campo. Puck ofegou; pude sentir o choque dele. Mordendo meu lábio, virei novamente, duramente ousando acreditar. Ash encarava Mab calmamente, a rainha olhando fixo para ele com uma terrível expressão vazia em seu rosto. – Perdoe-me. – Ash murmurou, e ouvi o mais fraco dos tremores abaixo de sua voz. – Mas eu não posso... não irei... abrir mão dela. Não agora, quando acabei de encontrá-la.

Não podia mais aguentar aquilo. Libertando-me de Puck, comecei a ir em direção a Ash. Não poderia deixá-lo fazer isto sozinho. Mas Oberon deu um passo a minha frente, erguendo seu braço, tão irremovível quanto uma montanha. – Não interfira, filha. – Oberon disse em uma voz expressa somente para mim. – Isto é entre o príncipe Winter e sua rainha. Deixe a música chegar ao fim.

Perturbada, eu olhei de volta para Ash. Mab tinha ficado muito quieta, uma bela estátua mortal, o chão abaixo dela coado de gelo. Somente seus lábios se moveram enquanto ela olhava fixamente seu filho, o ar ao redor deles ficando mais frio a cada segundo. – Sabe o que irá acontecer, se você recusar.

Se Ash estava com medo, ele não o mostrou. – Eu sei. - Ele disse em uma voz cansada.

- O mundo deles te comerá. – Mab disse. – Estripando-o pouco a pouco. Fora de Nevernever, não sobreviverá. Mesmo que leve um ano mortal ou mil, você gradualmente desaparecerá, até que simplesmente cesse de existir. – Mab caminhou para mais perto, apontando-me com o cetro. – Ela morrerá, Ash. Ela é apenas humana. Ficará velha, seca e morrerá, e sua alma fugirá para um lugar para onde você não pode seguir. E então, será deixado para vagar no mundo mortal sozinho, até que você mesmo seja apenas uma lembrança. E depois disto – a rainha abriu seu punho vazio –, nada. Para sempre.

Ash não reagiu, mas senti as palavras da rainha me atingirem no estômago. Bile subiu à minha garganta. Como eu podia ser tão cega e estúpida? Grimalkin tinha me dito uma vez que faeries banidos de Nevernever morreriam, que eles desapareciam até que nada restasse. Tiaothin tinha me dito aquilo no palácio Winter, quando eu estava tentando ignorá-la. Tinha sabido todo o tempo, mas me recusava a acreditar. Ou talvez, só não queria me lembrar.

- Esta é sua chance final, Príncipe. – Mab recuou, sua voz dura e fria, como se ela estivesse falando com um estanho. – Dê-me seu voto solene, ou seja condenado ao mundo moral para sempre. Faça sua escolha.

Ash olhou para mim. Vi dor em seus olhos, e um pouco de culpa, mas elas brilharam com uma emoção que me fez ficar sem ar. – Eu já a fiz.

- Que assim seja. – Se a voz de Mab estava fria antes, estava no botão abaixo-de-zero agora. Ela balançou o cetro e, com um ruído agudo, um rasgo apareceu no ar. Como tinta estendendo-se sobre o papel, ele se alargou até um arco denteado. Além do arco, um tremeluzente poste de iluminação brilhava, e a chuva batia na rua, sibilando. O cheiro de alcatrão e asfalto molhado flutuou através da abertura. – Deste dia em diante – Mab estrondou, sua voz arrastando-se sobre o campo -, Príncipe Ash é considerado um traidor e um exilado. Todos os trods estarão fechados para ele, todas as fortificações seguras estarão barradas, e se ele for visto em qualquer lugar de Nevernever, será caçado e morto imediatamente. – Ela olhou para Ash, fúria e desprezo curvando seus lábios. – Você não é meu filho. Saia da minha vista.

Ash recuou. Sem uma palavra, virou e caminhou em direção a arcada, ombros para trás e cabeça erguida. Na borda do trod, ele hesitou, e eu vi uma sombra de medo cruzar seu rosto. Mas então sua expressão endureceu, e ele caminhou através da porta sem olhar para trás.

- Ash, espere!

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Lançando-me ao redor de Oberon, eu me apressei para o trod. Faeries sibilaram e rosnaram, e Puck gritou-me para parar, mas eu os ignorei a todos. Enquanto me aproximava de Mab, seus lábios se curvaram em um sorriso cruel e ela recuou, dando-me um caminho livre para o trod aberto.

- Meghan Chase!

A voz de Oberon estalou com um chicote, e o rugido de um trovão tremeu o solo. Eu parei cambaleando a alguns passos da passagem, tão perto que eu podia ver a rodovia e a rua escura, a linha borrada de casas através da chuva.

A voz do Erlking estava sinistramente calma, e seus olhos brilharam âmbar através da neve que caía suavemente. – As leis do nosso povo são absolutas – Oberon alertou -, Summer e Winter dividem muitas coisas, mas amor não é uma delas. Se fizer esta escolha, filha, os trods nunca se abrirão para você novamente.

Meu estômago caiu. Aqui estava. Oberon me baniria de Nevernever também. Por meio segundo, quase ri no rosto dele. Esta não era minha casa. Não tinha pedido para ser meio-feérica. Nunca quis ser pega nos problemas deles, ou no mundo deles. Deixe-o me exilar, o que me importa?

Não se engane, pensei com um súbito sentimento tolo em minha barriga. Você ama este mundo. Arriscou tudo para salvá-lo. Vai realmente sair andando e esquecer que ele sequer existe?

- Meghan. – Puck deu um passo à frente, implorando. – Não faça isto. Não posso seguir você desta vez. Fique aqui. Comigo.

- Não posso. – Sussurrei. – Sinto muito, Puck. Eu realmente te amo, mas tenho que fazer isto. – Seu rosto nublou-se com dor, e ele se virou para longe. A culpa me apunhalou, mas no final, a escolha sempre tinha estado clara.

- Sinto muito. – Sussurrei de novo para Puck, para Oberon, para todos, e virei novamente para a abertura. Não pertenço a este lugar. Não realmente. É hora de acordar e ir para casa de verdade.

- Tem certeza, Meghan Chase? – A voz de Oberon estava fria, sem remorso. – Caminhe para fora de Faery com ele agora, e nunca voltará.

De alguma maneira, o ultimato fez isto mais fácil

- Então nunca voltarei. – Disse suavemente, e caminhei através do arco, deixando Faery atrás de mim para sempre.

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EPÍLOGO

Segunda Volta Para Casa

Enquanto eu cambaleava pelo trod e direto para a calçada, a chuva me atingiu como um martelo; fria, úmida e confortavelmente desagradável. Como chuva normal. Relâmpagos tremeluziam acima; comuns, relâmpagos brancos que não respondiam aos desejos do humor de um rei faery. Meu vestido se agarrou ao meu corpo; o encharcamento seria o toque final para arruiná-lo completamente, mas eu não me importava. Meu tempo em Faery estava acabado. Nada mais de glamour, comida faery ou truques faery. Estava cheia.

Com uma exceção, é claro.

- Ash! – Chamei, espreitando através da chuva e escuridão, através do brilho dos postes de iluminação que tornavam impossível ver mais do que alguns pés de distância. – Ash, estou aqui! Onde você está?

A rua vazia zombou de mim. Ele não pensou que eu viria atrás dele? Já tinha ido, desaparecendo na chuva sem um olhar para trás, acreditando que estava sozinho no mundo? Lágrimas sufocaram minha voz. – Ash! – Eu gritei, dando alguns passos pela calçada. – Ash!

- Você acordará a todos se continuar berrando desse jeito.

Girei. Ele estava de pé onde o portal tinha estado, mãos nos bolsos, a chuva tamborilando em seus ombros e fazendo seu cabelo cair nos olhos dele. A luz de uma lâmpada caiu ao redor dele, iluminando seu casaco liso, rodeando-o com uma nuvem frágil de luz. Mas para mim, ele nunca pareceu tão real.

- Você veio atrás de mim. – Ele murmurou, soando admirado, incrédulo, e aliviado ao mesmo tempo. Caminhei até ele, sorrindo através das minhas lágrimas.

- Você não achou que deixaria você ir embora sozinho, achou?

- Estava esperando. – Ash deu um passo à frente e me abraçou, puxando-me para perto com alívio desesperado. Deslizei meus braços embaixo de seu casado e o segurei apertado, fechando meus olhos. A chuva caía sobre nós, e um solitário carro passou por nós pela rua, borrifando-nos com água de calha, mas não senti nenhuma urgência de me mover. Enquanto Ash me segurou, eu poderia ficar ali para sempre.

Ele finalmente se afastou, mas não me libertou do círculo de seus braços. – Então. – Ele murmurou, seus olhos prateados perfurando os meus. – O que fazemos agora?

- Eu não sei. – Disse, tremendo, enquanto ele afastava uma mexa de cabelo molhado da minha bochecha. – Acho... Que deveria ir para casa logo. Mamãe e Luke provavelmente estão ficando loucos. E quanto a você?

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Ele se encolheu, um levantar casual de um ombro. – Diga-me você. Quando deixei Nevernever, não tinha nenhum outro plano a não ser estar com você. Se me quer por perto, só diga as palavras.

Meus olhos lacrimejaram. Pensei em Rowan, em Ironhorse, e nos exércitos do falso rei, ainda em marcha. Pensei em Leanansidhe e Charles, presos no Meio. Teria que conseguir libertá-lo algum dia, e confrontar Leanansidhe sobre ela ter roubado meu pai há tanto tempo atrás. Mas por agora, a única coisa que queria estava de pé bem ali, olhando para mim com uma expressão tão aberta e desarmada que achei que meu coração iria saltar para fora do meu peito. – Não parta. – Sussurrei, estreitando meu abraço. – Nunca me deixe novamente. Fique comigo. Para sempre.

O príncipe Winter sorriu, um pequeno, fácil sorriso, e abaixou seus lábios para os meus. – Eu prometo.

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AGRADECIMENTOS

Alguns pensariam que o segundo livro em uma série seria fácil de escrever, agora você terminou o primeiro e pôs toda a coisa em seu lugar. Há, há, há! Não. O segundo livro é simplesmente tão difícil, se não mais, do que o primeiro, e então a lista de pessoas que eu tenho que agradecer não diminuiu nem um pouco. Minha família, é claro, por ser tão apoiadora e sempre acreditar que eu poderia fazer o impossível. Meus novos amigos online: Khy, Sharon, Kristi e Liyana, e todos blogueiros do Y A book da blogosphere, cuja empolgação e amor a este gênero me fez agradecida e sem jeito ao mesmo tempo. Não posso começar a expressar meus agradecimentos pelo que todos eles têm feito. Minha agente, Laurie McLean, que sempre teve tempo para responder minhas perguntas, mesmo que eu tenha soletrado seu nome errado algumas vezes. Natash Wilson e Adam Wilson, o perfeito time de Super Editores, e toda a maravilhosa gente que trabalha duro na Harlequin Teen. Não posso agradecer a você o suficiente. E novamente, devo expressar minha mais profunda e sincera gratidão ao meu marido, Nick, o maior ouvinte de todos os tempos. Não conseguiria fazer isto sem ele.

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ISBN: 978-1-4268-6415-5

THE IRON DAUGHTER

Copyright © 2010 by Julie Kagawa

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This is a work of fiction. Names, characters, places and incidents are either the product of the author’s imagination or are used fictitiously, and any resemblance to actual persons, living or dead, business establishments, events or locales is entirely coincidental.

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