a filha do carrasco

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CRIANÇAS SÃO BRUTALMENTE ASSASINADAS, E APENAS O CARRASCO PARECE CAPAZ DE SOLUCIONAR ESSE TERRÍVEL MISTÉRIO. Jacob Kuisl sabe como ninguém distinguir um inocente de um culpado. Carrasco de uma pequena cidade da Baviera, está acostumado a torturar criminosos, em busca de confissão, e a executá-los, sempre que necessário. Mas sua capacidade de julgamento é colocada em prova quando a velha parteira da cidade é acusada de crimes horrendos. O carrasco acredita em sua inocência e terá que lidar com segredos outrora muito bem guardados, envolvendo as mais tradicionais – e poderosas – famílias da cidade, numa verdadeira corrida contra o tempo.

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Afilha do carrasco

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Romance histórico

Oliver Pötzsch

sãO PaulO, 2013

Afilha do carrasco

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Die HenkerstochterCopyright © 2008 by Ullstein Buchverlage GmbH, Berlim

Copyright © 2013 by Novo Século Ltda.

All rights reserved.

2013

IMPRESSO NO BRASIL

PRINTED IN BRAZIL

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À NOVO SÉCULO EDITORA LTDA

CEA – Centro Empresarial Araguaia II

Alameda Araguaia 2190 – 11º Andar

Bloco A – Conjunto 1111

CEP 06455-000 – Alphaville Industrial, Barueri – SP

Tel. (11) 2321-5080

www.novoseculo.com.br

[email protected]

Coordenação Editorial:

Tradução:

Preparação:

Diagramação:

Revisão:

Capa:

Mateus Duque Erthal

Marcelo V. S. Moreira

Equipe Novo Século

Luciana Inhan

Equipe Novo Século

Monalisa Morato

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Pötzsch, OliverA filha do carrasco : romance histórico /

Oliver Pötzsch ; [tradução Marcelo V. S.Moreira]. -- Barueri, SP : Novo Século Editora,2013.

Título original: Die Henkerstochter

1. Ficção hitórica alemã I. Título.

CDD-83012-11541

Índices para catálogo sistemático: 1. Romance histórico : literatura alemã 830

textO de acOrdO cOm as nOrmas dO nOvO acOrdO OrtOgráficO da língua POrtuguesa (decretO legislativO nº 54, de 1995)

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Em memória de Fritz Kuisl

Para Niklas e Lily, no outro extremo da linhagem.

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JakOb kuisl, carrasco de Schongau

simOn frOnwieser, filho do médico da cidade

magdalena kuisl, filha do carrasco

anna maria kuisl, esposa do carrasco

Os gêmeOs kuisl, Georg e Barbara

bOnifaz frOnwieser, médico da cidade

martha stechlin, parteiraJOsef grimmer, boleeiro geOrg riegg, boleeiro kOnrad weber, pároco da

cidade katharina daubenberger,

parteira de Peiting resl, criada na estalagem “A

estrela dourada”

martin hueber, boleeiro de Augsburgo

franz strasser, taverneiro de Altenstadt

clemens kratz, merceeiro agathe kratz, esposa do

merceeiro maria schreevOgl, esposa de

membro do Conselho da Cidade

cOnde wOlf dietrich vOn sandizell, procurador real

Os membros do Conselho da Cidade JOhann lechner, escrivão karl semer, Primeiro Prefeito e

proprietário da estalagem “A estrela dourada”

matthias augustin, membro do Conselho Interno

matthias hOlzhOfer, PrefeitoJOhann Püchner, Prefeito

Dramatis Personae

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wilhelm hardenberg, comendador do Hospital do Espírito Santo

JakOb schreevOgl, oleiro e testemunha do processo

michael berchthOldt, padeiro e testemunha do processo

geOrg augustin, boleeiro e testemunha do processo

As crianças sOPhie dangler, órfã, sob a

tutela do tecelão Andreas Dangler

antOn kratz, órfão, sob a tutela do merceeiro Clemens Kratz

clara schreevOgl, órfã, sob a tutela do conselheiro Jakob Schreevogl

JOhannes strasser, órfão, sob a tutela do taverneiro de Altenstadt, Franz Strasser

Peter grimmer, filho de Josef Grimmer, órfão de mãe

Os mercenários christian braunschweiger,

andré PirkhOfer, hans hOhenleitner, christOPh hOlzaPfel

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Vista Da ciDaDe De schongau

Igreja de Nossa Senhora da Assunção

Ballenhaus e propriedade de Semer

Casa da parteira

Margem do rio e armazém

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Xilo

grav

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de A

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Wil

helm

Ert

l, 16

90.

Igreja de Nossa Senhora da Assunção

Torre da prisãoCastelo (atrás da Igreja de São Sebastião) Casa do médico

Curtumes Casa do carrasco

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Prólogo

Schongau, 12 de outubro de 1624.

O doze de outubro estava um bom dia para matar. Chove-ra a semana toda, mas naquela sexta-feira após a quer-messe, o bom Deus concedeu uma trégua. O sol raiou e, apesar do início do outono, trouxe calor à paróquia. Do

alto da cidade ouviam-se barulho e risos: estrondos ribombavam, guizos tilintavam, em algum lugar tocava-se uma rabeca. O cheiro de pães assados na banha e peixes fritos espalhou-se pelo ar, pene-trando até mesmo os fétidos curtumes. Seria uma bela execução.

Num cômodo inundado pela luz, Jakob Kuisl tentava acordar o pai. Por duas vezes, o guarda viera buscá-lo. Dessa vez, porém, estava disposto a não sair de lá sem ele. A cabeça do carrasco de Schongau repousava sobre a mesa; os cabelos longos e desgrenha-dos estavam mergulhados em uma poça de cerveja e aguardente. Às vezes roncava e mexia-se durante o sono.

Jakob inclinou a cabeça bem próxima do ouvido de seu pai. Sen-tiu o cheiro de álcool e suor. Suor de medo. Seu pai tinha sempre esse cheiro antes das execuções. Logo após a sentença, ele, que em outras ocasiões não era de beber muito, tornava-se um beberrão,

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evitava a comida e passava a quase não mais falar. À noite, costuma-va acordar aos gritos e molhado de suor. Nos últimos dois dias, foi praticamente impossível falar com ele. Sua esposa, Katharina, sabia disso e, por isso, partiu com as crianças para a casa da cunhada. Apenas Jakob ficou, pois, afinal, era o filho mais velho e, portanto, era o valete de seu pai.

– Precisamos ir! O guarda está à espera!Primeiro, Jakob sussurrou, elevando a voz aos poucos. Por vezes

gritou. Até que, por fim, o colosso roncador começou a se mover. Johannes Kuisl fitou seu filho com olhos vermelhos; sua pele tinha

a cor de um pão velho e seco; em sua barba preta e desgrenhada, pen-diam os restos da sopa de cevada da noite anterior. Passou os dedos longos e curvos, quase em forma de garras, pelo rosto. Pôs-se, então, de pé, com seus quase dois metros de altura. O corpo robusto vacilou e, por um momento, quase tombou para frente. Não tombou, pois en-controu um apoio. Espreguiçou-se.

Jakob estendeu a seu pai o paletó manchado, a grande gola de couro para os ombros e as luvas. O homem corpulento vestiu-se sem pressa e afastou o cabelo de sua testa. Dirigiu-se, então, sem pronunciar uma palavra, até a parede do outro lado do cômodo. Lá, entre o velho banco da cozinha e o canto em que estavam o crucifixo e as rosas secas, apoiava-se a espada. Ela media bem dois braços de comprimento, com um guarda-mão curto, sem ponta, e uma lâmina que, de tão afiada, poderia cortar um fio de cabe-lo. Seu pai amolava-a regularmente. Ela se iluminou à luz do sol, como se tivesse sido forjada no dia anterior. Não era possível dizer há quantos anos fora forjada. Antes de Johannes Kuisl, pertencera a seu sogro, Jörg Abriel e, antes dele, a seu pai e a seu avô. Um dia ela seria de Jakob.

O guarda estava à espera em frente à casa. A cada instante, o homenzinho franzino virava a cabeça em direção aos muros da ci-

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dade. Eles estavam atrasados. Provavelmente os primeiros que lá chegaram já estavam impacientes.

– Termine de aprontar a carroça, Jakob. A voz de seu pai soou calma e grave. Os gritos e soluços daquela

noite haviam desaparecido como num passe de mágica. Quando Johannes Kuisl atravessou a estreita porta da casa com

sua corpulenta figura, o guarda afastou-se e fez o sinal da cruz. O carrasco não era bem visto no local. Não à toa, viera morar fora dos muros da cidade, junto aos curtumes. Na taverna, o gigantesco homem tomava seu vinho em silêncio, sozinho, em uma mesa só para si. Andando pelas ruas, as pessoas evitavam seu olhar; dizia--se que trazia má sorte, principalmente nos dias de execução. As luvas de couro que usava naquele dia seriam queimadas depois de feito o serviço.

O carrasco sentou-se sobre o banco ao lado da casa e desfrutou do sol do meio-dia. Quem o via assim não poderia crer que, ainda há uma hora, ele murmurara em delírio. Johannes Kuisl era tido como um bom carrasco: rápido, forte, sem hesitação. Ninguém além de sua família sabia o quanto bebia antes das execuções. Agora, contu-do, tinha os olhos fechados, como se ouvisse uma melodia qualquer, vinda de longe. Ainda se ouvia o barulho da cidade. Música, risos, em algum lugar não muito distante um melro cantava. A espada es-tava apoiada ao banco como uma bengala.

– Não se esqueça das cordas! – gritou o carrasco a seu filho, sem abrir os olhos.

No estábulo ao lado da casa, Jakob refreou o tordilho decrépito e atrelou-o à carroça. No dia anterior, ele havia esfregado o coche de duas rodas. Em vão, como depois teve que reconhecer. A sujeira e as manchas de sangue entranharam-se na madeira. Nos piores pontos, Jakob cobriu-as com um pouco de palha. Assim, a carroça estava pronta para o grande dia.

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Com doze anos, o filho do carrasco já havia testemunhado algu-mas execuções, dois enforcamentos e o afogamento de uma ladra, condenada três vezes. Em seu primeiro enforcamento, ele já tinha seis anos. Jakob ainda se lembrava bem do ladrão de rua a se con-torcer por quase um quarto de hora. A multidão jubilou-se, e o pai voltou nessa noite com um pedaço especialmente grande de carne de cordeiro. Após as execuções, as coisas entre os Kuisls iam espe-cialmente bem.

Jakob pegou algumas cordas do baú no estábulo e empacotou--as junto com as correntes, uma tenaz enferrujada e os panos de linho usados para depois limpar o sangue. Jogou então o saco dentro da carroça e conduziu o cavalo branco, já refreado, para a frente da casa. Seu pai subiu na carroça e sentou-se de pernas cruzadas sobre o piso de madeira. Sua espada repousava em sua coxa robusta. O guarda cavalgou apressado à frente, contente em estar fora da linha de alcance do carrasco.

– Vamos, agora! – exclamou Johannes Kuisl. Jakob puxou as rédeas, e a carroça começou a se mover aos ran-

gidos. Enquanto o tordilho trotava vagarosamente pela larga via que le-

vava à cidade alta, o filho fitava continuamente para trás, para o seu pai. Jakob sempre teve respeito pelo trabalho de sua família. Mesmo quando as pessoas não viam honra alguma nele, Jakob não conse-guia encontrar razões para se envergonhar. Rameiras e charlatões, esses sim não tinham honra. Mas seu pai tinha uma profissão dura e honrada, que precisava de muita experiência. Jakob aprendeu com ele o difícil ofício da morte.

Se ele tivesse sorte e o príncipe-eleitor assim o permitisse, ele faria o teste para mestre em alguns anos. Uma decapitação perfei-tamente artesanal e executada de acordo. Jakob nunca vira algo as-sim. Era muito importante que prestasse muita atenção.

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Enquanto isso, a carroça adentrou a cidade por uma rua estreita e íngreme e chegou à Praça do Mercado. Por todo lado, em frente às re-sidências mais ricas da cidade, foram construídas barracas e tendas. Meninas cobertas de sujeira vendiam nozes torradas e pequenos pães cheirosos. Em um canto instalou-se um grupo de músicos e acrobatas que equilibravam bolas e cantavam versos de escárnio à infanticida. Ainda que a próxima feira fosse acontecer apenas no final de outubro, notícias da execução se espalharam pelas aldeias vizinhas. As pesso-as ali trocavam mexericos, comiam e compravam guloseimas, a fim de festejar o espetáculo sangrento, a grande atração.

Jakob observava de sua boleia as pessoas que miravam a carrua-gem do carrasco, ora com ares de zombaria, ora com estupefação. Não havia ali muito a se ver, pois a praça já havia se esvaziado. A maior parte do povo de Schongau já havia se apressado para junto do patíbulo, no lado de fora dos muros da cidade, para conquistar os melhores lugares. A execução deveria acontecer ao badalar das doze horas, e até então faltava nem meia hora.

Quando a carroça com o algoz adentrou as vias pavimentadas, a música cessou. Alguém gritou: “Então, carrasco! Sua lâmina está bem afiada? Talvez se case hoje com ela!”. A multidão urrava. Havia em Schongau a tradição de que o carrasco poderia poupar a vida de uma delinquente, desde que a tomasse em matrimônio. Contudo, Johannes Kuisl já tinha uma esposa. E Katharina Kuisl não era das mais queridas. Como filha do famigerado algoz Jörg Abriel, chama-vam-na Filha do Sangue ou Esposa de Satã.

A carroça deslizou pela Praça do Mercado, passou pela casa do Conselho e parou rente aos muros da cidade. Uma torre alta, de três andares, erguia-se ali; as paredes externas estavam cobertas de fu-ligem, as janelas eram pequenas como balestreiros, com grades à frente. O carrasco colocou sua espada sobre os ombros e desceu da carroça. Pai e filho cruzaram, então, o portal de pedras, chegando

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ao gélido interior da prisão. Uma escadaria estreita, com degraus gastos, conduzia aos calabouços. Ali havia um corredor escuro, do qual emergiam, à direita e à esquerda, portas pesadas, guarnecidas de ferro. Na altura da cabeça foram embutidas grades minúsculas. Através de uma delas, à esquerda, ouvia-se um gemido quase in-fantil e os murmúrios de um pároco. Os trechos de um discurso em latim penetraram os ouvidos de Jakob.

Assim que o guarda abriu a porta, o ar encheu-se de um cheiro ignóbil. Urina, excrementos, suor. Quase sem se dar conta, o filho do carrasco prendeu a respiração.

Lá dentro, os gemidos da mulher converteram-se em um urro agudo e lamurioso. A infanticida sabia que esse era o fim. Também a ladainha do padre adensou-se. A prece e a gritaria convergiam-se em um barulho infernal.

– Dominus pascit me et nihil mihi deerit ... Outros guardas apressaram-se em arrastar todos para a luz do

dia. Elisabeth Clement fora uma bela mulher, com cabelos loiros

até os ombros, olhos sorridentes e uma boca pontuda, que parecia sempre trazer um sorriso sarcástico. Jakob já a vira algumas vezes com as outras criadas lavando roupa no rio Lech. Agora, os guar-das cortaram-lhe o cabelo, o rosto estava pálido e cavado. Ela vestia um simples cilício acinzentado, coberto por manchas de sujeira. Os ossos dos ombros espetavam-lhe tanto a roupa como a pele. Estava magra demais, como se nem tivesse tocado a sempre farta última refeição, concedida aos condenados por três dias e tradicionalmente doada pelo estalajadeiro Karl Semer.

Elisabeth Clement fora a criada da família Rösselbauer. Sua be-leza fizera dela a preferida entre os criados. Eles a cercavam como mariposas em volta da luz, dando-lhe presentinhos, esperando--a ante a porta da casa. Sr. Rösselbauer praguejava, mas de nada

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adiantava. Por vezes, assim diziam, um ou outro a levava a rolar no feno, longe das vistas dos demais.

A segunda criada havia encontrado a criança morta atrás do ce-leiro, enterrada em um buraco no chão; a cova ainda estava fresca. Elisabeth não resistiu à tortura e logo cedeu. De quem era a criança, ela não podia ou não queria dizer. Mas as mulheres da cidade fofo-cavam e mexericavam. A beleza de Elisabeth tornara-se seu infortú-nio, e isso apaziguava a mente de algumas burguesinhas feias, pois, assim, o mundo teria novamente voltado a seu eixo.

Agora, Elisabeth berrava seu medo para o mundo, debatendo-se violentamente quando os três guardas arrancaram-na de seu bura-co. Eles tentaram amarrá-la, mas ela sempre se libertava deles como um peixe escorregadio.

Então, algo estranho aconteceu: o carrasco pôs-se à frente e co-locou suas duas mãos sobre os ombros dela. Quase com ternura, o homenzarrão curvou-se para a moça delgada e sussurrou algo em seu ouvido. Apenas Jakob estava perto o bastante para entender o que dizia.

– Não sentirá dor alguma, Lis. Eu prometo, não sentirá dor.A moça, então, cessou a gritaria. Ainda tremia-lhe o corpo todo,

mas ao menos deixou que lhe prendessem as mãos. Os guardas fita-ram o algoz com uma mistura de admiração e medo. Pareceu-lhes como se Johannes Kuisl tivesse enfeitiçado a moça.

Por fim, levaram-na para fora, onde muitos cidadãos de Schongau já aguardavam ansiosamente a pobre pecadora. Ouviam-se sussurros e murmúrios, alguns faziam o sinal da cruz ou uma breve oração. No alto da torre da igreja começou a tocar o sino, um som alto e agudo, movido pelo vento sobre a cidade. Não havia mais troças; com exce-ção do badalar do sino, o silêncio reinava no lugar. Elisabeth Clement fora um deles. Agora a multidão olhava-a embasbacada, como se ela fosse um animal selvagem que tivesse sido capturado.

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Johannes Kuisl içou a moça, ainda trêmula, para dentro da car-roça e sussurrou novamente em seu ouvido. Estendeu-lhe, então, uma garrafinha. Ante a hesitação de Elisabeth, tomou de súbito a cabeça da moça em suas mãos, segurou-a para trás e verteu o líqui-do em sua boca. Tudo passou tão rápido que apenas poucos dentre os espectadores entenderam o que estava acontecendo. Os olhos de Elisabeth ficaram vidrados. Ela se arrastou até um canto da carroça e deitou-se sobre o chão. Sua respiração foi ficando mais tranquila, o tremor cessou. A bebida dos Kuisls era conhecida em Schongau. Uma graça que ele, contudo, não concedia a todo condenado. Dez anos antes, o assassino e ladrão de dízimo Peter Hausmeir senti-ra cada pancada, enquanto Kuisl quebrara-lhe os ossos. Amarrado sobre a roda, ele gritou ainda por muito tempo, até que o carrasco finalmente espedaçara sua nuca com um último golpe.

Segundo a regra, os condenados deveriam andar com seus pró-prios pés rumo ao patíbulo ou, quando muito, eram envolvidos em uma pele de animal e arrastados até lá por um cavalo. A experiência do carrasco dizia, porém, que infanticidas condenadas não pode-riam mais andar. Para entorpecê-las, elas recebiam, no dia de sua execução, três litros de vinho; a infusão do carrasco servia como prevenção. Na maior parte dos casos, as moças eram cordeirinhos cambaleantes que precisavam ser trazidas para o abatedouro. Por isso, Johannes Kuisl levava sempre a carroça. Além disso, ela era um meio de evitar que uns e outros matassem a moça com uma pancada.

Dessa vez, o carrasco conduziu ele mesmo a carroça, com seu filho Jakob a seu lado. A multidão observava o veículo estarrecida, cercava-o, obrigando-os a se deslocar vagarosamente. Ao longo do caminho, um padre franciscano subiu à carroça para rezar um rosá-rio pela moça. O coche seguiu bem devagar em torno do Ballenhaus e parou, enfim, ao lado norte do prédio. Jakob avistou o ferreiro com

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o abrasador em mãos. Mãos fortes e calejadas bombeavam ar com o fole sobre as brasas, a fim de que a tenaz inflamasse, vermelha como sangue fresco.

Como uma marionete, dois guardas ergueram Elisabeth. Seus olhos fitavam o vazio. Quando o carrasco deu uma apertadela no braço direito da moça com uma tenaz, ela deu um berro curto e alto. Depois, pareceu novamente transportada a um outro mundo. Havia silvos e fumaça. Jakob inalou o cheiro de carne queimada. Embora seu pai tivesse lhe alertado sobre o procedimento, ele lutava contra a náusea.

Mais três vezes a carroça parou em cada um dos demais cantos do Ballenhaus e o procedimento se repetiu. Elisabeth foi beliscada ainda mais uma vez no braço esquerdo, uma vez no seio esquerdo e outra no seio direito. Mas graças à infusão, as dores mantiveram-se no limite do suportável.

Elisabeth começou a cantarolar uma singela canção infantil, acariciando o ventre e sorrindo: “Dorme, criancinha, dorme...”

Seguiram, então, para fora dos muros da cidade, atravessando o Portão da Corte. Já ao longe conseguiam ver o estrado. Um cam-po recoberto de gramas, com alguns pontos cobertos de terra, pos-to entre as lavouras e a floresta sem fim. Toda a cidade e também habitantes dos vilarejos da cercania já se reuniam ao redor. Para os membros do conselho foram trazidos bancos e cadeiras. O povo concentrava-se nas fileiras logo atrás e passavam o tempo a mexe-ricar e a comer guloseimas. No centro, erguia-se o patíbulo, uma plataforma murada, de sete pés de altura, para a qual fora erguida uma escada de madeira.

Enquanto a carroça adentrava o pátio, a multidão se dividia. Curiosas, as pessoas tentavam lançar um olhar para a infanticida deitada sobre o chão do veículo.

– Ela deve se levantar. Levantem-na! Carrasco, mostre-a a nós!

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O povo estava visivelmente enfurecido. Muitos lá esperavam desde a aurora e no entanto não podiam nem ver a criminosa. Logo, começaram a se lançar pedras e frutos podres. O frade franciscano encolheu-se, protegendo sua batina marrom, mas não pôde evitar que algumas maçãs acertassem-no nas costas. Os guardas afasta-ram a multidão reunida em torno da carroça como se fosse um ser gigantesco prestes a engolir o seu conteúdo.

Com calma, Johannes Kuisl conduziu o carro até o estrado. Lá aguardavam os membros do Conselho e o procurador Michael Hirschmann. Como principal representante do príncipe-eleitor, o próprio Hirschmann dera a sentença, duas semanas antes. Agora, fitou a moça novamente, olhando bem fundo em seus olhos. O velho homem conhecia Elisabeth desde que ela ainda era uma garotinha.

– Lis, minha menina, o que você fez? – Nada. Não fiz nada, Excelência. – Elisabeth Clement fitava o

procurador com olhos mortos, sem deixar de acariciar o ventre. – Isso apenas o bom Deus poderá dizer – murmurou Hirschmann. Sob o sinal do procurador, o carrasco conduziu a infanticida

pelos oito degraus até o patíbulo. Jakob seguiu-os. Por duas vezes Elisabeth tropeçou, até, enfim, dar seus últimos passos. Lá já es-peravam outro frade franciscano e o arauto da cidade. Jakob mi-rou para baixo, para o campo. Ele viu centenas de rostos curiosos, de bocas e olhos escancarados. Os membros do Conselho tomaram seus assentos. Da cidade, propagava-se novamente o som do sino. Tudo estava à espera.

O carrasco pressionou o corpo de Elisabeth Clement suavemente para baixo, pondo-a de joelhos. Em seguida, vendou os seus olhos com um dos panos de linho que trouxe. Um tremor suave percorreu o corpo dela, e ela murmurou uma prece.

– Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres...

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O arauto limpou a garganta e começou, então, a proclamar nova-mente o veredito. Jakob ouvia o discurso como se fosse um sussurro vindo de longe.

– ... que volte a Deus de todo coração e tenha uma morte miseri-cordiosa e feliz...

Seu pai deu-lhe um breve empurrão para o lado. – Segure-a ereta para mim – sussurrou o pai tão baixo quanto

possível para não atrapalhar o discurso. – O quê? – Mantenha os ombros e a cabeça dela erguidos, para que eu lhe

dê um golpe certeiro. Ou a Lis tombará.De fato, o tronco da acusada começava a se inclinar para fren-

te. Jakob estava desnorteado. Até então, havia apenas testemunha-do as execuções. Seu pai nunca antes lhe pedira assistência. Mas já não havia mais tempo para hesitações. Jakob segurou Elisabeth Clement por seus cabelos curtos e ergueu a cabeça. Ela gemeu. Sen-tindo os cabelos entre seus dedos, o filho do carrasco esticou seus braços para que o pai tivesse espaço suficiente. A arte era acertar exatamente entre duas vértebras com um único golpe, dado com as duas mãos na espada. Um piscar de olhos, um suspiro, e estaria aca-bado. Porém, apenas quando feito da forma certa.

– Deus tenha piedade de sua alma...O arauto havia chegado ao fim. Ele segurou um bastão fino e pre-

to sobre Elisabeth Clement e quebrou-o. O estalar da madeira pôde ser ouvido por todo o pátio.

O procurador acenou a Johannes Kuisl. O carrasco pegou sua espada e ergueu-a.

Nesse momento, Jakob sentiu os cabelos da moça escaparem de seus dedos molhados de suor. Ainda assim, conseguiu manter a ca-beça de Elisabeth Clement erguida. De súbito, porém, ela tombou para frente como um saco de grãos. Jakob viu a espada de seu pai

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zunir, mas em vez de acertar o pescoço, a lâmina acertou a cabeça,

na altura dos ouvidos. Elisabeth Clement contorceu-se sobre o chão

do patíbulo e pôs-se a gritar em plenos pulmões. De sua têmpora

brotara uma ferida profunda e, em uma poça de sangue, Jakob viu

metade de uma orelha.

A venda escorregou do rosto da moça. Com olhos arregalados

de pavor, ela olhou para o carrasco, que mantinha a espada sobre

a sua cabeça. A multidão gritou de horror. Jakob sentiu uma mão

erguendo-o pelo pescoço, como se fosse estrangulá-lo.

Seu pai empurrou-o para longe e ergueu novamente a espa-

da. Entretanto, quando a brandiu novamente sobre ela, Elisabeth

Clement rolou para o lado. Dessa vez, a lâmina acertou seu ombro e

penetrou a clavícula. Sangue jorrou da ferida e respingou no carras-

co, no valete e no horrorizado frade.

Apoiada sobre quatro membros, Elisabeth Clement arrastou-se

em direção à borda do patíbulo. A maior parte dos cidadãos assistiu

ao espetáculo horrorizada, mas também havia aqueles que gritavam

de excitação. Alguns lançaram pedras sobre o carrasco. O povo de-

testava quando o homem com a espada errava.

Johannes Kuisl quis terminar logo aquilo. Ele se colocou nova-

mente ao lado da mulher agonizante e ergueu a espada uma terceira

vez. Dessa vez, acertou-a em cheio entre a terceira e a quarta vérte-

bras. As lamúrias cessaram abruptamente. A cabeça, contudo, não

se desprendeu: ainda pendurada por tendões e carne, apenas com o

golpe seguinte separou-se por completo do restante do corpo.

A cabeça rolou pelo estrado de madeira e parou bem em frente a

Jakob. O filho do carrasco por pouco não desmaiou. Por fim, foi aco-

metido pelo enjoo, caindo sobre seus joelhos e expelindo pela boca a

cerveja aguada e o mingau de aveia daquela manhã. Ele vomitou até

restar apenas a bílis verde. Como se ouvisse o som através de uma

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parede, escutou o grito das pessoas, o esbravejar dos membros do Conselho e o ofegar do pai ao seu lado.

– Dorme, criancinha, dorme... Um pouco antes de um abençoado desmaio, Jakob Kuisl tomou

uma decisão. Ele nunca seguiria os passos do pai: nunca em sua vida ele se tornaria um carrasco.

Então caiu sobre a poça de sangue.

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