a filha do silencio - morris west

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Em A FILHA DO SILÊNCIO, um crime aparentemente frio e incompreensível é cometido em plena luz do sol em uma aldeia na Toscana, na Itália. A assassina vai a julgamento. É aí que vem á luz uma conspiração de silêncio feita por várias pessoas, todas ligadas a outro crime, cometido 16 anos antes. Morris West não brilha apenas por relatar o trâmites legais de um julgamento extremamente complicado, mas também por entremear com maestria os dramas pessoais do advogado de defesa e dos membros de sua família.

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    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel.

    http://lelivros.infohttp://lelivros.infohttp://lelivros.infohttp://lelivros.info/parceiros/

  • SinopseO prefeito de uma aldeia da Toscana assassinado a tiros em pleno dia por uma jovem

    de 24 anos que presa, processada e julgada por homicdio premeditado. O julgamento seconverte na denncia do morto e dos vivos que, h muito, se haviam unido numa conspiraode silncio.

  • Alta vendetta d'alto silenzio figlia.

    ALFIERI, La Congiura de Pazzi, Ato I, Cena 1

    (A grande vingana filha de grande silncio.)

  • 1ERA UM MEIO-DIA resplendente, em pleno vero, nos vales do altiplano da Toscana:

    uma hora letrgica, uma estao de p e langor, de linho esbrugado e de andorinhas nosrestolhais de trigo, de vinhos novos a sazonar no pas dos deuses mais antigos. Era uma horade toques de sinos ondulantes no ar seco, tranquilos sobre os tmulos de santos j mortos e osfeudos de mercenrios esquecidos. Havia em tudo um convite obscuridade e s venezianascerradas pois quem, seno os ces e os americanos, exporia sua cabea insensata ao meio-dia, a um sol de agosto? Na aldeia de San Stefano ecoavam pela praa as primeiras badaladasdo angelus. O sineiro era velho, e dbil a msica de seus toques.

    A aldeia estava sonolenta e saciada, devido boa colheita, de Modo que os ltimosmomentos de sua vida matinal eram tambm silenciosos.

    Um velho deteve-se, persignou-se e permaneceu de cabea baixa, enquanto as trplicesbadaladas soavam no branco campanrio. Um sujeito atarracado, de avental branco, tendodobrado no brao um guardanapo axadrezado, achava-se porta do restaurante, a esgravataros dentes com um palito de fsforo. Um policial com cara de mula deu um passo para fora desua porta, lanou um olhar de esguelha, preguiosamente, pela praa, cuspiu, coou-se etornou a voltar para o seu vinho e o seu queijo.

    A gua caa, indolentemente, das bocas de fatigados golfinhos e espalhava-se pela rasabacia da fonte, enquanto um menino escanifrado brincava com um barquinho de papel. Umcarvoeiro empurrava o seu carrinho de mo por sobre os paraleleppedos. O carro estavacheio de pequenos feixes de gravetos e de sacos marrons contendo carvo. Uma garotinhaachava-se empoleirada sobre eles, os cabelos desgrenhados, ar srio, como um diabrete dosbosques. Uma mulher descala, com um beb sobre o quadril, saiu da casa de vinhos e dirigiu-se a um beco situado na outra extremidade da piazza.

    Cinco milhas alm, as torres e os velhos telhados do casario de Siena erguiam-se,brumosos e mgicos, contra um cu cor de cobre.

    Era um quadro plcido, curiosamente antigo, esparsamente povoado, com sua animaoligada ao lento pulsar da vida campestre.

    Ali, o tempo flua preguiosamente como a fonte, e a nica mudana que se processavaera a mutao cclica dos sculos e das estaes.

    Aquilo, compreendia-se, era um enclave tribal, onde a tradio era mais importante doque o progresso, onde os costumes constituam nove dcimos da lei e onde os amores antigoseram alimentados to persistentemente quanto os antigos dios e as emaranhadas lealdades desangue e servido.

    Havia um caminho de acesso e outro de sada, um conduzindo a Arezzo, o outro aSiena, mas seu trfego era pequeno e circunscrito em certas estaes do ano. As estradas deturismo e de comrcio haviam sempre passado ao largo de San Stefano. As granjas do valeeram pequenas e ciosamente reservadas para seus proprietrios camponeses, de modo que osimigrantes no eram bem acolhidos. Os que se iam eram os irrequietos, os desarraigados ou osambiciosos, e a aldeia sentia-se feliz de ver-se livre deles.

    Antes que se extinguissem os ltimos ecos dos sinos, a praa j estava vazia.

  • Fecharam-se postigos, correram-se cortinas. O p tornou a assentar nas fendas do empedradoirregular, o barquinho de papel flutuava sem leme em torno da fonte, e o canto das cigarraserguia-se, estrepitoso e montono, dos campos adjacentes. Terminara o primeiro perodo dodia. A paz ou o que passava por paz desceu sobre a aldeia.

    *Decorridos, talvez, dez minutos, o sineiro saiu da igreja um frade idoso, vestindoum hbito empoeirado de So Francisco, uma tonsura branca na cabea e um rosto corado,sulcado de rugas, como uma ma de inverno. Deteve-se um momento sombra do prtico, aenxugar a testa com um leno vermelho; depois, lanou o capuz sobre a cabea e atravessou apraa, as sandlias a bater nas pedras crestadas.

    Mal havia dado uma dzia de passos, uma cena pouco comum f-lo parar. Um txi comchapa de Siena entrou na piazza e deteve-se diante do restaurante. Uma mulher desceu, pagouao chofer e ficou a observar o automvel que se afastava, at perd-lo de vista.

    Era jovem; no teria mais de vinte e cinco anos. Seu trajo distinguia-a como criaturacitadina: tailleur, blusa branca, sapatos elegantes, uma bolsa dependurada do ombro por umaala de couro.

    Tinha o rosto plido, calmo e singularmente belo, como o de uma madona de cera. Napraa deserta, ensolarada, parecia indecisa e vagamente solitria.

    Permaneceu um momento parada, a olhar a praa, como se procurasse orientar-se numterritrio que lhe fora antes familiar; depois, com passos firmes, confiantes, dirigiu-se a umacasa situada entre a adega e a padaria, e tocou a sineta. Abriu-lhe a porta uma matrona trajadade bombazina preta, com um avental branco atado cintura.

    Trocaram algumas palavras e a robusta mulher fez um gesto, convidando-a a entrar. Eladeclinou do convite e a matrona afastou-se, deixando a porta aberta. A moa ficou espera,procurando algo na bolsa, enquanto o frade a observava, curioso como qualquer camponsdiante de um estranho.

    No tardou talvez trinta segundos para que o homem surgisse porta um sujeito alto,corpulento, em mangas de camisa, cabelos grisalhos, rosto plido e enrugado, um guardanapoenfiado no peitilho da camisa. Mastigava ainda um bocado de alimento e, luz clara do sol, ofrade pde ver um ligeiro fio de molho a escorrer-lhe pelo canto da boca. Olhou a jovem semqualquer sinal de que a houvesse reconhecido, e fez-lhe uma pergunta.

    Foi ento que ela o baleou no peito.O impacto f-lo girar sobre si mesmo e apoiar-se ombreira da porta e, num

    momento horrvel de perplexidade, o frade viu a jovem dar mais quatro vezes ao gatilho e,depois, afastar-se, caminhando, sem pressa, em direo delegacia de polcia. Os estampidosecoavam ainda pela piazza quando o frade se ps a correr, cambaleante, a tropear naspedras, a fim de ministrar a absolvio final a um homem que j havia entregue sua alma aoSenhor.

    Cinco milhas alm, em Siena, o Dr. Alberto Ascolini posava para um retrato umexerccio frvolo, uma iluso de imortalidade a que se submetia com ironia.

    Era um homem alto, de sessenta e cinco anos, de rosto rosado e enrgico, e uma juba decabelos alvos como neve a cair-lhe, em intencional desordem, sobre o colarinho. Trajava umcostume e uma gravata de seda, presa por um alfinete de brilhantes. Tanto a roupa como agravata eram impecavelmente talhadas, mas deliberadamente fora de moda, como se a velhice

  • e uma animao incongruente constitussem os seus nicos cabedais. Parecia um ator umator muito bem sucedido mas era, na realidade, advogado, um dos mais brilhantesadvogados de Roma.

    A pintora era uma jovem esguia, morena, de pouco menos de trinta anos, olhos cor deavel, sorriso franco e expressivo, mos 8 9 elegantes. Chamava-se Ninette Lachaise. Seuapartamento era um alto sto que dava para os telhados da velha cidade, voltado para ocampanrio da Vergine Assunta. De um lado, havia um atelier meticulosamente limpo e bemarranjado, no outro, ficava a sua habitao, mobiliada com respingos de artesanatoprovinciano, polida e cintilante, a revelar o cuidado de uma dona de casa gaulesa. Seusquadros eram uma indicao de seu carter: cheios de luz, parcos de detalhes, estilizados mas,no obstante, amplos em seus movimentos, uma continuao linear da primitiva tradiotoscana adaptada linguagem do sculo vinte.

    Trabalhava agora com carvo, fazendo uma srie de esboos rpidos, enquanto o seumodelo, sentado meio sombra, meio luz, lhe contava histrias escandalosas dos tribunaisromanos. Era uma exibio de virtuosismo, de ambas as partes. Os casos que o velho contavaeram cheios de extravagante esprito, de malcia inteligente e de astuciosa licenciosidade. Osesboos da jovem eram ansiosos e perceptivos, dando a impresso de que uma dzia dehomens viviam dentro da pele suave e rosada daquele inteligentssimo charlato.

    Ascolini observava-a com olhos astutos e afetuosos e, ao terminar de contar suashistrias, sorriu, dizendo-lhe com falsa emoo: Quando estou em sua companhia, Ninette,lamento a minha perdida juventude.

    Se nada mais tem a lamentar, dottore, respondeu ela, com suave ironia ento um homem feliz.

    Que outra coisa h para se lamentar, minha cara, seno as loucuras que se incapazde cometer? Talvez as consequncias daquelas que a gente j cometeu.

    Oh, oh, Ninette! exclamou Ascolini, agitando suas mos eloquentes e rindosecamente. Nada de sermes esta manh, por favor! Este o comeo de minhas frias ... eeu a procurei para me distrair.

    No, dottore respondeu ela, com seu ar grave, continuando a desenhar com traosfirmes, rpidos. Eu o conheo h muito tempo e demasiado bem. Quando vem c tomar umaxcara de caf ou convidar-me a almoar no Sordello, porque est satisfeito com o mundo.Quando me encarrega de um trabalho como este, ou paga demasiado bem minhas paisagens, porque tem problemas na cabea. Oferece-me um estipndio para resolv-los. Como sabe,esse um mau hbito... um mau hbito que no lhe faz justia.

    O rosto liso, vigoroso, do advogado, anuviou-se por um momento. Depois, esboou umfalso sorriso: isso? No obstante, voc aceita o estipndio, Ninette. Por que Vendo-lheos meus quadros, dottore, no a minha simpatia. Esta, o senhor a tem de graa.

    Voc me torna humilde, Ninette disse, mordaz, o velho. Nada o torna humilde, dottore volveu ela, incisiva. E a que comeam todas as

    suas dificuldades ... com Valria, com Carlo, consigo prprio. Veja! ajuntou,acrescentando um ltimo trao gil tela, e voltando-se para ele, estendeu-lhe a mo. Aspalavras j esto ditas; no precisa mais posar. Venha ver seu retrato.

  • Conduziu-o ao cavalete e ficou ao seu lado, segurando-lhe a mo, enquanto eleexaminava o desenho. O velho permaneceu longo tempo em silncio; depois, sem sinal degracejo, indagou: Estas so todas as minhas faces, Ninette? No; so somente as que osenhor me revela.

    E julga que existam outras? Sei que devem existir. O senhor um homemdemasiado heterogneo, dottore, demasiado fascinante em cada variedade.

    E qual delas o verdadeiro Ascolini? Todas elas e nenhuma delas. Interprete-as, filha. Esta aqui? O grande advogado, o nobre causdico que domina todos os tribunais em

    Roma. Modifica-se um pouco, como v. Aqui, o querido dos salons, o ser de esprito que fazenrubescer os homens e roerem-se de cimes as mulheres, quando lhes sussurra algo aosouvidos complacentes. Aquela ali? Um momento passado no Sordello: Ascolini tomandovinho com os estudantes de direito, e pensando que desejaria ter tido um filho. Ali, converte-se no jogador de xadrez, movendo as pessoas como se fossem pees, desprezando-se a siprprio mais do que as despreza a elas. Na face seguinte, h uma lembrana... da juventudetalvez ou de um velho amor. E, por ltimo, o grande advogado tal como poderia ter sido, seum sacerdote rural no o arrancasse de um fosso e no lhe desvendasse o mundo: umcampons com uma carga de gravetos s costas, tendo nos olhos a monotonia de toda uma vida...

    demais observou, sem meias palavras, o velho. Vindo de uma criatura tojovem, isso demais e extremamente assustador. Como que sabe tudo isso, Ninette? Comoconsegue ver tantos segredos?

    Ela fitou-o, um momento, com olhos sombrios, penalizados. Depois, abanou a cabea. Isso no so segredos, dottore. Ns somos aquilo que fazemos. Est escrito em nossosrostos para que o mundo o leia. Quanto ao que se refere a mim? Sou, aqui, uma estrangeira.Vim da Frana como os velhos soldados aventurosos, a fim de saquear as riquezas do sul.Vendo meus quadros ... e aguardo algum a quem possa entregar-me com confiana. Sei o que a gente procurar amor e estreitar nos braos apenas uma iluso. O senhor tem sido bondosopara comigo, revelando-me mais de sua pessoa do que imagina. No raro, pergunto a mimmesma a razo disso.

    simplssimo! exclamou ele, tendo em sua rica voz de ator uma inflexodissonante. Se eu fosse vinte anos mais moo, Ninette, pediria que se casasse comigo.

    Se eu fosse vinte anos mais velha, dottore respondeu-lhe ela, docemente talvez aceitasse o seu pedido... e o senhor depois me odiaria por isso.

    Eu jamais poderia odi-la, minha cara. O senhor odeia tudo aquilo que possui, dottore. Ama somente aquilo que no pode

    obter. Voc hoje est brutal, Ninette. Existem coisas que devem ser enfrentadas, no acha? Suponho que sim.Ele soltou-lhe a mo e dirigiu-se janela, onde ficou a observar o sol derramar-se

  • sobre o topo dos telhados da velha cidade. Sua alta estatura parecia curvada e diminuda, e oseu rosto, imponente, tornou-se angustiado, macilento, como se a idade o houvesse apanhadodesprevenido. A jovem observava-o, tomada de sbita piedade pelos seus dilemas. Decorridoum momento, indagou, em voz baixa: Trata-se de Valria, no?

    E de Carlo. Fale-me de Valria. No faz ainda dois dias que chegamos de Roma e ela j comeou um caso amoroso

    com Basilio Lazzaro. Houve outros casos, dottore. O senhor os encorajava. Por que razo deveria este

    preocup-lo? Porque para mim a vida j vai bastante adiantada, Ninette! Porque queronetos em minha casa e uma promessa de continuidade, e porque esse tal Lazzaro um patifeque acabar por destru-la.

    Eu sei disse, baixinho, Ninette Lachaise. Se sei! J sabem disso em Siena? Duvido. Mas, certa vez, eu mesma estive apaixonada por Lazzaro; ele foi a minha grandeiluso.

    Lamento-o, filha. No deve lament-lo por mim... mas pelo senhor e por Valria.E por Carlo tambm, claro. Ele j sabe? No o creio.

    Mas soube a respeito dos outros9 Penso que sim.O senhor ria daquilo, lembro-me bem, dottore. Fez at um gracejo acerca de sua filha

    enganar um marido tolo. Disse que ela seguia os passos do pai... Sentia-se orgulhoso de suasconquistas e de sua esperteza.

    Ele um idiota disse, com amargura, Ascolini. Um jovem idiota e sentimentalque nem sabia a quantas andava. Merecia uma lio.

    E agora? Agora, fala em deixar-me e em abrir o seu prprio escritrio deadvocacia.

    E o senhor no est de acordo? Claro que no! Ele demasiado jovem,demasiado inexperiente. Destruir sua carreira, antes que ela esteja sequer comeada.

    O senhor destruiu o casamento dele, dottore; por que deveria, agora, preocupar-secom a sua carreira? No me preocupo, mas que isso envolve o futuro de minha filha, e ofuturo de seus filhos, se tiverem filhos.

    O senhor est mentindo, dottore disse, com tristeza, Ninette Lachaise. Estmentindo para mim. Est mentindo para si prprio.

    Surpreendentemente, o velho advogado riu e abriu os braos num gesto de desesperoquase cmico: Claro que estou mentindo! Sei da verdade melhor do que voc, filha. Crieium mundo minha prpria maneira, e j no gosto mais de seu aspecto, de modo que precisode algum que o destrua sobre a minha prpria cabea e me faa comer os pedaos.

    E no ser, talvez, o que Carlo est procurando fazer agora? Carlo? explodiuAscolini, desdenhoso. Ele tem muito de menino para poder controlar sua prpria esposa.Como pode ele competir com um touro velho e manhoso como eu? Nada me agradaria mais doque se ele me fizesse engolir minhas prprias asneiras, mas ele demasiado cavalheiro parafaz-lo... Vamos! ~ ajuntou, afastando o assunto com um alar de ombros e aproximando-sedela, para tomar-lhe as mos nas suas. Esquea tudo isto e volte para a sua pintura, minhaquerida. No somos dignos de ajuda... nenhum de ns! Mas h uma coisa...

  • O que, dottore? Voc vai hoje jantar conosco, na villa. No... por favor! exclamou Ninette, numa recusa incisiva e enftica. Como bem sabe, tenho prazer de acolh-lo aqui em qualquer momento, mas mantenha-me longe de sua famlia. Eles no pertencem aomeu crculo de amigos; nem eu ao deles.

    No o fao por mim, mas por voc. H algum l que quero que voc conhea. Quem? Um meu hspede. Chama-se Peter Landon. mdico e veio da Austrlia,

    via Londres. Um pas brbaro, segundo me dizem, dottore, cheio de animais estranhos e de

    gigantes em mangas de camisa.Ascolini riu: Quando voc conhecer esse tal Landon, talvez se convena mais disso.

    Ao entrar numa sala, ele a ocupa toda com a sua pessoa. Quando fala, parece rude edemasiado seguro de si mesmo, para que a gente o ache corts. Depois, a gente percebe queele est falando toscano puro, que o que ele diz tem bastante sentido, e que teve uma vida maisvariada do que a sua ou do que a minha. H, tambm, um certo vigor nele, bem como, pensoeu, algo de insatisfeito. Tocou-lhe o rosto com a mo num gesto afetuoso.

    Ele poderia ser bom para voc, minha cara.Ela enrubesceu e afastou-se um pouco: O senhor est se tornando casamenteiro,

    dottore? Gosto mais de voc do que supe, Ninette respondeu ele, srio. Gostaria dev-la feliz. Por favor, v jantar conosco.

    Muito bem, dottore, irei. Mas, antes, quero que me prometa uma coisa. O que voc quiser, filha. Prometa que no representar nenhuma comdia comigo, como costuma fazer com

    sua prpria famlia. Eu jamais poderia perdo-lo. Eu tambm jamais me perdoaria. Acredite, Ninette.Tomou-lhe o rosto em suas velhas mos e beijou-lhe de leve a testa. Depois, retirou-se

    e ela ficou longo tempo a fitar, por cima dos telhados da cidade, as encostas das colinasda Toscana, onde, o vinho adoado pelo sangue de antigos sacrifcios e os ciprestes nascemda concavidade dos olhos de prncipes mortos.

    Na Villa Ascolini, empoleirada na encosta de um monte, sobre a aldeia de San Sfefano,Valria Rienzi dormitava, atrs das venezianas fechadas. No ouvira o badalar dos sinos, nemos tiros, nem o eco do tumulto que se seguiu. Os nicos sons que penetravam em seu quartoeram o canto das cigarras, o rudo da tesoura de umjardineiro, e a msica plangente, dbil, queCarlo estava tocando no salone.

    Ela no pensara em morte naquele meio-dia estival. O pulsar de seu sangue erademasiado forte para que ela pensasse em coisa assim to lgubre e irrelevante. Bastava-lhedobrar na cama o corpo esguio, repuxar o peignoir de seda de encontro pele, para quesentisse a doura e a comicho da vida. Na verdade, estava pensando no amor, que elaconsiderava uma diverso agradvel, embora passageira, e nocasamento, que reconheciacomo sendo uma coisa permanente, embora ocasionalmente enfadonha.

    Casamento, para ela, significava Carlo Rienzi, o seu belo marido um tanto infantil, quetocava, embaixo, o seu triste piano. Significava discrio, propriedade pblica, cuidadomatronal pela carreira do marido. Significava uma renncia liberdade, um dispndio de

  • ternura que ela raramente sentia, exigncias de um corpo que Carlo jamais soubera despertar,exacerbao de um esprito demasiado Vivaz e voluntarioso para que pudesse ajustar-se aotemperamento melanclico e hesitante do marido. Casamento significava Roma e retidoromana jantares de cerimnia e cocktais oferecidos aos que entregavam polpudas causasjudiciais a seu pai e a seu inexperiente genro.

    O amor, na contextura de umas frias de vero na Toscana, significava Baslio Lazzaro,o solteiro moreno, ardente, que no fazia segredo de sua predileo por esposas jovens. Oamor era um antdoto contra o tdio, uma afirmao de independncia. Uma saborosa piadapara compartilhar com um pai compreensivo, um aguilho com que atormentar um maridodemasiado jovem, convertendo-o condio de homem.

    Aos trinta anos, Valria Rienzi estava em situao de dar um balano nas bnosrecebidas: boa sade, bonita, sem filhos, um marido inalevel, um amante insistente, um paique tudo via, tudo compreendia e tudo perdoava com cnica indulgncia.

    Era aquela uma meditao agradvel, ali na clida, ntima penumbra de seu quarto,onde faurios e drades pintados se divertiam no teto. Havia msica, cuja tristeza de modoalgum a afetava. Havia a promessa de um vero inteiro de divertimentos e, se Basilio semostrasse por demais exigente, l estava o visitante, Peter Landon.

    Ela ainda no o avaliara bem, mas havia tempo de sobra para iniciar aquele sujeito doNovo Mundo nos divertimentos sardnicos, tortuosos, do Velho Continente.

    No obstante... no obstante... havia um ondular desassossegado no lago de Narciso correntes sombrias movendo-se sob os nenfares. Havia nela modificaes que nem elaprpria compreendia bem: uma sensao de vazio, uma necessidade de rumo, algo que aimpelia a novos e mais ardentes encontros, um vago temor e, s vezes, um pungente pesar.Houve tempo em que a conspirao existente entre ela e o pai lhe asseguravam absolviomesmo para as suas maiores loucuras. Agora, porm, j no havia absolvio, mas algo assimcomo uma perversa tolerncia, como se ele se sentisse menos desapontado por ela do que porsi prprio.

    Agora, o pai j no ocultava o desejo de que ela assentasse e tivesse filhos. Oproblema, porm, que ele no tinha respeito algum por Carlo, no sabendo, por outro lado,ensinar-lhe, a ela, sua filha, uma maneira de restaurar o respeito por si prpria. O que ele,agora, exigia, era uma nova conspirao: uma unio sem amor, que trouxesse amor a um velhoepicurista que, durante toda a vida fingira desprezar o amor. Era pedir demais em troca de topouco. Pouqussimo para ela, muitssimo para ele e, para Carlo, uma decepo a mais.

    Houve-um tempo em que Carlo lhe suplicara amor que lhe pedira filhos. Trocaria,ento, os ltimos fiapos de seu orgulho por um beijo, por um momento de intimidade. Masagora, no. Tornara-se, naqueles ltimos meses, mais adulto, mais frio, menos dependente,mais absorto no planejamento de sua prpria vida.

    Contara-lhe uma parte de seus planos. Estava resolvido a deixar o escritrio deAscolini e abrir sua prpria banca de advocacia. Feito isso, dar-lhe-la um lar prprio, umacasa separada da do pai. E depois? Era esse depois que a preocupava, quando ela tivesse deficar s, sem apoio, sem absolvio, sujeita ao veredicto de um marido enganado e determinao de seus prprios desejos turbulentos.

    A que estava o n do problema. Que que a gente buscava tanto, a ponto de essa

  • busca constituir um sofrimento para a carne? De que que se tinha tanta necessidade, a pontode se estar Disposto a renunciar a tudo o mais para alcan-lo? Vinte e quatro horas antes, elaouvira a mesma pergunta dos lbios pouco prometedores de Baslio Lazzaro.

    Estava de p, completamente vestida, com as luvas e a bolsa na mo, porta do quartode Baslio, a observ-lo, enquanto ele abotoava a camisa sobre o peito forte e trigueiro.Notara a tranquilidade satisfeita de seus movimentos, a vivaz indiferena pela sua presena, eindagara, queixosamente: Mas, Basilio... por que ter de ser sempre assim? Assimcomo? perguntou Lazzaro, irritadamente, enquanto apanhava a gravata.

    Quando nos encontramos, como se fosse a ouverfure de uma pera. Quando nosamamos, tudo drama e msica. Quando partimos... como se estivssemos pegando um txi.

    O rosto belo e moreno de Lazzaro contraiu-se, com ar de espanto. Que que voc esperava, cara? A coisa assim mesmo.Depois que se toma o vinho, a garrafa se esvazia. Terminada a pera, no se fica

    espera de que venham limpar o teatro. A gente j se divertiu. E vai para casa e espera que hajaoutra representao.

    E isso tudo? Que mais poder haver, cara? Pergunto-lhe: que mais? Aquilo eraum perfeito enigma, a que ela jamais encontrara uma resposta adequada. Meditava ainda sobreisso, quando o relgio de bronze dourado marcou meio-dia e quinze; dispunha ainda de tempopara banhar-se e vestir-se para o almoo.

    A praa de San Stefano formigava de gente. Toda a aldeia sara rua, crianas evelhos, aglomerando-se porta do morto, papagueando ao redor da fonte, interrogando opolicial apalermado que montava guarda porta da delegacia. Nada havia de turbulento namaneira pela qual o povo se conduzia; nada havia de hostil em sua atitude. Eram apenasespectadores, metidos por curiosidade num melodrama de tteres.

    Da janela de seu escritrio, o sargento Fiorello observava-os com olhos sagazes,profissionais. At ali, tudo bem. Estavam excitados, mas ordeiros, movendo-se pela praacomo carneiros num redil. No havia perigo de violncia imediata. Dentro de uma hora, osdetetives de Siena chegariam e tomariam conta do caso. A famlia do homem assassinadoachava-se mergulhada em sua dor. Ele podia ficar tranquilo e cuidar de sua prisioneira.

    Esta estava afundada numa cadeira, a cabea pendida, o corpo sacudido por tremoresconvulsivos. Abrandou-se, ao fit-la, o rosto magro, coriceo, de Fiorello, que, decorrido uminstante, despejou um pouco de conhaque numa xcara de barro e a levou aos lbios da moa.No primeiro gole, ela engasgou; depois, sorveu-o lentamente. Decorrido um momento, ostremores cessaram, e Fiorello ofereceu-lhe um cigarro. Ela recusou, agradecendo com vozmorta, sem inflexo: No, obrigada. Estou melhor, agora.

    Tenho de fazer-lhe umas perguntas. Sabe disso? Para um homem to rude, o tomcom que lhe falou era estranhamente delicado. A moa fez um aceno com a cabea,indiferente.

    Sei. Como se chama? O senhor j o sabe: Anna Albertini. Chamava-me antes Anna

    Moschetti. A quem pertence esta arma?Apanhou a arma e estendeu-lha na palma da mo. Ela

  • no titubeou nem desviou o olhar; respondeu simplesmente: A meu marido. Precisamos comunicar-nos com ele. Onde se encontra ele? Em Florena, Vicolo degli Angelotti, nmero dezesseis. Tem telefone? No. Ele sabe onde voc se encontra? No.Tinha os olhos vtreos; estava sentada ereta na cadeira, plida e rgida como uma

    catalptica. Sua voz tinha algo de metlico, de cerimonioso, como a de uma criatura que seachasse sob narcose.

    Fiorello hesitou um momento; depois, fez-lhe outra pergunta: Por que fez isso,Anna?

    Pela primeira vez, um leve sinal de vida assomou aos olhos e voz da moa: o senhorsabe o porqu. No importa a maneira pela qual eu diga, ou o senhor o escreva. O senhor sabeo porqu.

    Diga-me uma outra coisa, Anna. Por que escolheu esta ocasio? Por que no fez issoum ms atrs, ou cinco anos antes? Por que no esperou mais tempo?

    E isso importa?Fiorello manuseava distraidamente a pistola que matara Gianbattista Belloni. Sua voz

    tambm adquiriu um tom meditativo, reflexivo como se tambm ele estivesse a reviveracontecimentos distantes daquele lugar e daquele momento.

    No, no importa. Dentro em pouco, voc ser levada daqui.Ser julgada, condenada e mandada, por vinte anos, para uma priso, por haver

    assassinado um homem a sangue-frio. apenas uma pergunta para encher o tempo. O tempo... repetiu ela, apoderando-se dessa palavra como se fosse um talism,

    uma chave para os mistrios de toda uma existncia. No foi a mesma coisa que olhar paraos ponteiros de um relgio ou arrancar as folhas de um calendrio. Foi como ...

    como caminhar por uma estrada... sempre a mesma estrada ...sempre na mesma direo. De repente, a estrada terminou... aqui em San Stefano,

    porta da casa de Belloni. O senhor compreende, no verdade? Compreendo.Mas a compreenso chegara tarde demais e ele o sabia. Com dezesseis anos de

    atraso. A estrada completara um crculo perfeito e, agora, como a sua prisioneira, eledeparava com marcos que julgaraj transpostos e esquecidos. Deps a arma sobre a mesa eapanhou um cigarro. Ao acend-lo, viu que suas mos tremiam. Envergonhado, levantou-se eps-se a preparar um prato de po, queijo e azeitonas; depois, encheu um copo de vinho ecolocou a modesta refeio diante de Anna Albertini. E disse, spero: Quando a levarempara Siena, voc ser de novo interrogada, talvez durante muitas horas. Por isso, deveriaprocurar comer.

    No tenho fome, obrigada.Sabia que ela estava num estado de choque, mas sua passividade no deixava,

    desarrazoadamente, de irrit-lo. Santa Me de Deus! explodiu. Ento no compreende? H um homem morto

    logo a ao lado. Voc o matou. Ele o prefeito desta cidade, e h a fora uma multido que a

  • faria em pedaos, se algum proferisse uma nica palavra. Quando os rapazes de roupa pretachegarem de Siena, iro frit-la como um peixe numa panela.

    Estou procurando ajud-la, mas no posso obrig-la a comer. Por que razo est procurando ajudar-me? No havia malcia na pergunta, mas

    apenas a vaga e plcida curiosidade dos enfermos. Fiorello conhecia demasiado bem aresposta, mas de modo algum poderia d-la. Voltou-se e dirigiu-se janela, enquanto a moapetiscava o alimento, vaga e pattica, como um pssaro que se v engaiolado pela primeiravez.

    Houve, ento, uma agitao na rua. O pequeno frade deixara a casa do morto ecaminhava, apressado, na direo da delegacia.

    O povo comprimia-se em torno dele, puxava-lhe o hbito, assediava-o com perguntas,mas ele afastava a todos com um gesto, dirigindo-se, trpego, sem flego, para o escritrio deFiorello.

    Ao deparar com a moa, deteve-se, de sbito, e seus olhos se encheram de impotenteslgrimas de velho. Fiorello perguntou-lhe, sem meias palavras: O senhor a conhece, no?Frei Bonifcio respondeu com um aceno fatigado de cabea: Creio que o imaginei desde oprimeiro momento, quando a vi na praa. Eu deveria ter esperado que tudo isto acontecesse.Mas j faz tanto tempo! ...

    Dezesseis anos. E agora a bomba explode! Ela precisa de ajuda.Fiorello deu de ombros e estendeu os braos, num gesto de desespero: Mas que

    ajuda pode haver? um caso j liquidado. Vendetta. Assassinato premeditado. A pena devinte anos.

    Ela precisa de assistncia Jurdica. O Estado a fornece aos rus sem recursos. Isso no basta. Ela precisa do melhor

    defensor que possamos encontrar. E quem pagar, mesmo que se descubra algum que queira aceitar uma causa

    perdida? A famlia Ascolini est passando o vero na villa. O velho um dos grandesadvogados criminais. Posso, ao menos, pedir-lhe que se interesse pelo caso. Seno ele, talvezo genro.

    Por que deveriam interessar-se pelo caso? Ascolini nasceu aqui na regio. Deve sentiralguma dedicao pelos seus compatrcios.

    Dedicao! exclamou Fiorello, acentuando a palavra com um riso gutural. Atmesmo entre ns existe hoje to pouca dedicao... Por que deveramos esperar dedicao porparte dos signori? Durante um momento, dir-se-ia que o modesto sacerdote aceitaria aquelaproposio familiar. Sua face descaiu, os ombros encurvaram-se-lhe. De repente, porm, umaideia o assaltou e, quando se voltou de novo para Fiorello, seu olhar era duro.

    Desejo fazer-lhe uma pergunta, meu amigo disse tranquilamente. QuandoAnna for levada a julgamento, o senhor prestar depoimento?

    De acordo com as provas respondeu, seco, Fiorello. Que mais poderia fazer? E quanto ao passado? E quanto ao comeo deste caso monstruoso? No tomarei conhecimento, padre. Sou pago para manter a paz e no para

  • reescrever histria antiga. essa a sua ltima palavra? Tem de ser disse Fiorello, mal-humorado. No posso esconder-me num

    claustro, como o senhor, padre. No posso dar-me ao luxo de ficar batendo no peito e fazernovenas para Santa Catarina, quando as coisas no saem como desejo. Este o meu mundo.Essa gente que est l fora a minha gente. Tenho de viver no meio dela, da melhor maneirapossvel. Esta aqui... ajuntou, fazendo um gesto brusco em direo da moa uma causaperdida, por mais que procuremos fazer. De qualquer modo, creio que agora compete Igrejaajud-la.

    Escoavam-se os segundos, enquanto os dois homens se achavam frente a frente, osacerdote e o policial, cada qual entregue ao seu prprio caminho, cada qual envolvido nasconsequncias de uma histria comum, enquanto Anna Albertini, sentada a um passo dedistncia, lambiscava em seu prato, indiferente e distante como uma habitante da lua. Sbito,sem proferir qualquer outra palavra, o velho frade afastou-se uns passos, apanhou o telefone epediu uma ligao para a Villa Ascolini.

    Na quietude do meio-dia, no salone, Carlo Rienzi tocava Chopin para o visitante, PeterLandon. Formavam, ambos, um par curioso: o corpulento australiano com seu rosto arguto,sardento, o punho vigoroso em torno do fomilho do cachimbo; o italiano, esguio, plido,incongruentemente belo, lbios sensitivos e olhos de sonhador, com um toque de mistrio einsatisfao.

    A composio era um dos primeiros noturnos, terno, lmpido, plangente, e Rienziinterpretava-o com simplicidade e fidelidade. As notas caam puras como gotas de gua; asfrases eram plasmadas com amor e compreenso e no com intencional brilhantismo oufalso sentimento. Aquela era a verdadeira disciplina da arte: a submisso do executante aotalento do compositor, a subordinao da emoo pessoal quilo que o mestre, morto haviamuito, registrara.

    Landon observava-o com olho clnico, astuto, e pensava em quo jovem era ele, quovulnervel, e quo estranhamente se achava ligado sua fria e civilizada esposa e ao velho ebrilhante advogado que era o seu mestre em direito.

    Contudo, no era inteiramente jovem, nem completamente livre de cicatrizes. Suasmos eram fortes, mas continham-se sobre os teclados. Havia rugas em sua testa e incipientesps-de-galinha no canto de seus olhos. Tinha pouco mais de trinta anos. Era casado. Devia jter sofrido o seu quinho nas exaes da vida. Tocava Chopin como algum quecompreendesse as frustraes do amor.

    Quanto ao prprio Landon, a msica despertava-lhe ecos de uma insatisfao ntima.Homem do Novo Mundo, adotara sem esforo as maneiras urbanas do Velho Continente.Ambicioso, abandonara a promissora profisso, em seu prprio pas, a fim de escalar asarriscadas encostas da reputao em Londres. Rebelde por natureza, disciplinara sua lngua eseu temperamento, acomodando-se aos estratagemas da profisso mais invejosa do mundo, nacidade mais invejosa do planeta. Conseguira, habilmente, chegar aos coquetis de pessoaspreeminentes e, agora, mediante diligncia, talento e diplomacia, estava j estabelecido comoconsultor em psiquiatria e em psicopatologia criminal.

    Era j muito para um homem de pouco menos de quarenta anos, mas achava-se ainda a

  • dois passos do permetro privativo dos grandes. Dois passos, mas, no obstante, aquele erao salto mais difcil de todos. Fazia-se mister um trampolim para execut-lo; umcaso oportuno,um afortunado encontro com algum que necessitasse de seus conselhos, um momento deinspirao em suas pesquisas.

    At ento, fugira-lhe tal oportunidade, e ele mergulhara, a pouco e pouco, na frustraoe na acerba insatisfao daqueles que so sempre desafiados dentro dos limites de seu talento.Aquilo era uma espcie de crise, e ele era bastante atilado para reconhec-lo. Havia umperodo crtico em todas as carreiras uma fase de ressentimento, indeciso e perigo. Muitospolticos desafortunados haviam perdido um asserto no Gabinete por lhes ter faltado pacinciaou discrio. Muitos eruditos brilhantes eram preteridos em suas profisses por terem-semostrado um tanto bruscos com seus superiores. Na hermtica fraternidade da AssociaoMdica Britnica, um homem precisava engolir seu orgulho e cultivar a benevolncia de seusamigos.

    E quando algum se aventurava na nova cincia do esprito, precisava serdiligentemente condescendente com os seus colegas de bisturi e do estetoscpio. E, se essealgum era um estrangeiro, precisava ser duplamente cuidadoso, duplamente dependente dasqualidades de sua prpria atuao e da validez de suas prprias pesquisas.

    De modo que ele preferira para si prprio uma estratgia: a retirada. Preferira passaraquele ano de licena entre os especialistas da Europa; trs meses com Dalilin, em Estocolmo,praticando em instituies dedicadas aos criminalmente insanos; uma temporada comGutmann, em Viena, estudando a natureza da responsabilidade e, agora, umas breves frias emcompanhia de Ascolini, famoso pelo seu emprego do testemunho mdico-legal.

    E depois? Tambm ele tinha aquele problema do depois, pois que enfrentava agoraum novo aspecto da crise: o tdio da meia idade. Quanto deveria um homem pagar pelarealizao de sua ambio? E, uma vez que houvesse pago, quando poderia desfrut-la...

    e com quem? A msica triste, antiga, zombava dele, com suas descries de esperanasperdidas, amores mortos e o clamor de triunfOs esquecidos.

    Houve um momento longo, sincopado, enquanto as ltimas notas se extinguiam; depois,Rienzi girou sobre o assento e fitou-o de frente: Bem, a est, Peter! Voc teve a suamsica! Agora, dinheiro sobre a mesa! Chegou o momento de pagar o msico.

    Landon tirou o cachimbo da boca e sorriu: Qual o preo? Um conselho. Um conselho profissional. Acerca de qu? Acerca de mim. Faz j uma semana que voc est aqui.Agrada-me pensar que nos tornamos amigos. Voc conhece alguns de meus problemas.

    E bastante perspicaz para imaginar o resto. Abriu os braos, num gesto sbito de splica: Estou num beco sem sada, Peter! Sou casado, num pas em que no existe divrcio.

    Amo minha mulher, que no me ama. Trabalho para um homem a quem admirograndemente ... e que no tem por mim o mnimo respeito, como se eu fosse o mais modestoempregado de seu escritrio. O que devo fazer? Que h comigo? Voc o psiquiatra! Voc o sujeito que sonda os coraes de seus pacientes. Leia o que se passa em minha vida e na deAscolini.

  • Landon franziu o sobrolho e tornou a enfiar o cachimbo na boca. O instinto profissionaladvertia-o contra intimidades assim to intempestivas. Dispunha de uma dzia de evasivaspara desencorajar tais confidncias. Mas o sofrimento do homem era patente, e sua solido,em sua prpria casa, estranhamente comovente. Ademais, Landon passara ali, em casa de seusogro, mais tempo do que o justificava a cortesia e sentia-se tocado de desconhecidagratido.

    Hesitou um momento e, depois, disse, pensando as palavras: Voc no pode terambas as coisas ao mesmo tempo, Carlo. Se deseja um psiquiatra embora eu no creia quevoc o deseje deve consultar um de seus prprios compatriotas. Pelo menos, tero umalinguagem e um conjunto de smbolos em comum. Se quer desabafar com um amigo, isso diferente. Riu, secamente, entredentes. Ademais, isso constitui, em geral, uma receitamelhor. Mas, se voc o disser aos meus pacientes, estarei falido dentro de uma semana.

    Chame a isto um desabafo, se quiser respondeu Rienzi, com seu ar meditativo,melanclico. Mas no v que estou metido numa armadilha, como um esquilo encerradonuma gaiola?

    Pelo casamento? No. Por Ascolini. No gosta dele?Rienzi hesitou um momento e, ao responder, havia um mundo de cansao em sua voz:

    Admiro-o muitssimo. Ele possui talento singularmente multiforme e excelente advogado. Mas? Mas creio que o vejo demais. Trabalho em seu escritrio. Minha mulher e eu

    moramos em sua casa. E sinto-me oprimido por sua eterna juventude.Era uma frase esquisita, mas Landon a compreendeu. Recordou rapidamente o primeiro

    coquetel a que comparecera no apartamento de Ascolini, em Roma, quando pai e filha tocarampara o seu pequeno mas seleto grupo de convidados, enquanto Carlo Rienzi andava de um ladopara outro, no terrao banhado de luar. Sentia-se favoravelmente inclinado para aquele jovem-velho, de boca demasiado sensitiva e mos controladas de artista. Perguntou-lhe, em vozbaixa: E voc precisa morar com ele?

    Dizem-me que sim respondeu Rienzi com suave amargura. Dizem-me que lhedevo obrigaes. Que lhe devo a minha carreira. Hoje, na Itlia a advocacia uma profissoem que h gente demais, e o patrocnio de um grande homem uma coisa rara de se encontrar.Sou-lhe devedor tambm por minha esposa. E ela, por sua vez, est em dbito para com ele,sendo filha nica de um pai que lhe deu amor, segurana e a promessa de uma rica herana.

    E Ascolini exige pagamento? De ns ambos respondeu Carlo, encolhendo de leve os ombros num gesto de

    derrota. De mim, exige lealdade e submisso a seus planos quanto minha carreira. Deminha esposa, uma... uma espcie de conspirao, em que a juventude dela dedicada mais aele do que a mim.

    E o que sua esposa acha disso? Valria uma mulher singular disse, sem hesitao, Rienzi. Compreende o

    que dever, a devoo filial e o pagamento de dvidas. Alm disso, gosta muitssimo do pai e

  • encontra grande prazer em sua companhia. Mais do que na sua?Carlo sorriu, ao ouvir tal aquele seu sorriso vago, infantil, que constitua muito de

    seu charme. Ele tem a oferecer muito mais do que eu, Peter respondeu, em voz baixa. Eu no sei interpretar o mundo com a segurana com que ele a faz. No sou ousado nem bemsucedido, embora gostasse de s-lo. Amo minha esposa, mas receio que ela necessite menosde mim do que eu dela.

    O tempo poder modificar isso. Duvido disse, peremptrio, Rienzi. H outras pessoas envolvidas nesta

    conspirao. Outros homens? Vrios. Mas eles me preocupam menos do que a minha prpria deficincia como

    marido. Levantou-se e dirigiu-se porta envidraada que dava para o terrao. Que talse caminhssemos um pouco? mais ntimo l fora.

    Permaneceram algum tempo em silncio, a caminhar por uma alameda de ciprestes,atravs de cujos troncos, verdes, viam o cu e os campos que se estendiam numa policromiade oliveiras escuras, vinhedos verdes, terras de pousio trigueiras e milharais sacudidos pelovento. Cinicamente, Landon pensava que o tempo operava suas transformaes de mododemasiado lento e que, para Carlo Rienzi, havia necessidade de remdios mais rpidos.Receitou-os, sem meias palavras: Se sua esposa lhe pe cornos, no h necessidade de quevoc os use. Devolva-a ao pai e arranje uma separao judicial. Se no gosta de seu empregoou de seu patro, mude de vida. V cavar fossos, se for preciso, mas liberte-se j!

    Pergunto a mim mesmo respondeu, com desolado humor, Rienzi por que serque so sempre os sentimentalistas os que tm as respostas engatilhadas? Eu esperava outracoisa de voc, Peter. Voc um profissional. Deveria compreender melhor do que os outrosas aberraes do amor e da posse... por que razo a esperana ainda constitui, no raro, umlao mais forte do que a conquista compartilhada.

    Landon enrubesceu. e deu-lhe uma resposta mordaz: Se algum gosta de se coar,no nos agradecer se curarmos a sua comicho.

    Mas, para cur-lo, ser preciso dilacerar-lhe o corao? Decepar-lhe a cabea,para que aprenda a raciocinar?

    De modo algum. Procura-se ajud-lo a atingir maturidade suficiente para que possaescolher o seu prprio remdio. Ou, ento, se no houver remdio, a suportar sua aflio comdignidade.

    Mal as proferiu, arrependeu-se de suas palavras, orgulhando-se de uma tolerncia queno possua, envergonhando-se de uma rispidez adquirida no exerccio de sua profisso.Aquele era o castigo da ambio: no poder um homem revelar simpatia por algum sem quese sentisse humilhado. Aquela, a ironia do amor-prprio: no poder sentir piedade pelo queno sofrera em sua prpria carne o beijo dado mas no retribudo, a paixo liberalizadamas no correspondida.

    A resposta pacfica de Rienzi foi a mais amarga das censuras. Se me faltadignidade, Peter, no deve censurar-me demais. Mesmo o ator mais medocre pode fazer opapel de rei. Mas preciso um grande ator para, mesmo usando cornos, fazer a plateia chorar.

  • Se no me rebelei at hoje, porque me faltou oportunidade, e no coragem. No to fcilcomo voc pensa, resolver os dilemas da lealdade e do amor. Mas estou planejando umarevoluo, creia-me! Sei, melhor do que voc, que a minha nica esperana, quanto a Valria, derrotar Ascolini em seu prprio terreno... destruir a lenda que ele criou para ela, e queconstitui a fonte de seu poder sobre Valria. Estranho, no mesmo? Para impor-me comoamante, preciso firmar-me antes como advogado. Preciso de uma causa, Peter; apenas de umaboa causa. Mas onde com os diabos encontr-la?

    Antes que Landon tivesse tempo de articular uma resposta ou uma desculpa, um criadoveio chamar Rienzi ao telefone e o mdico de almas. ficou a meditar sobre os problemas doamor numa velha terra em que as paixes seguem por canais tortuosos e a juventude carregasobre as costas cinco mil anos de histria violenta.

    Landon alegrou-se de ficar s. Homem devotado mecnica do xito, achavademasiado molesto o excesso de companhia, sendo que um nmero demasiado grande deimpresses novas lhe parecia um fardo para a imaginao. Precisava restaurar um tanto asforas, antes de entregar-se, naquela tarde, aos seus inteligentssimos mas exigentes anfitries.

    Carlo Rienzi era um sujeito atraente, e no se podia encarar sem simpatia os seusdilemas e indecises mas o problema de todas as amizades, na Itlia, era esperarem os outrosque a gente se envolvesse nos assuntos alheios, que se tomasse este ou aquele partido, esmonas questes mais triviais ou importantes, que se interessasse por todas as tristezas e secorasse diante de todas as indiscries. Se no se tivesse cuidado, a gente se esgotava comouma bolsa liberalmente aberta, esvaziada e deixada de lado, enquanto os amigos seentregavam tumultuosamente ao amor ou piedade.

    Era um alvio, pois poder-se ficar sozinho e desfrutar de um simples prazer de turista,qual fosse o de, ali do jardim, apreciar a paisagem.

    O primeiro impacto era de tirar o flego: um ar vivo e palpitante, que superava ostransportes do corao e do esprito; Colinas ao nvel dos olhos, hirtas, tendo por fundo o cu,empedachadas de pinheiros e castanheiros, escabrosas de velhos rochedos e de Runas decastelos de guelfos e gibelinos; um falco a pairar muito alto, no cu azul; escuros pinheiros agalgar as encostas, como lanceiros em marcha.

    Apesar de toda a sua crosta de ambio e egosmo, Landon no era um: homem vulgar.No se pode palmilhar os secretos caminhos do esprito humano sem que se possua um certotalento que nos permita maravilhar-nos diante de certas coisas, uma graa mnima que nospermite sentir compaixo por nossos semelhantes, e um pequeno vu de lgrimas para umhomem que se encontra nas garras do terror da descontinuidade. Lgrimas assomavam-lhe aosolhos, naquele momento, ante o sbito prodgio daquela velha terra, povoada, em pleno meio-dia, de fantasmas.

    Aquele era o verdadeiro clima do misticismo, selvagem, mas, no obstante, terno;suave no tamanho da terra, mas, no obstante, spero nos vestgios de antigos e sangrentosconflitos.

    Ali, o pequeno Irmo Francisco, num enlace maravilhoso, uniu-se Senhora Pobreza.Ali chegaram os mercenrios de Barbarroxa: lanceiros da Inglaterra, arqueiros de Florena,bandidos da Albnia, heterogneos mas terrveis no massacre de Montalcino. O rei-poeta de

  • Luxemburgo, Henrique, o das canes de amor, morrera ali, sob aqueles ciprestes. No montede Malmarenda, onde se erguiam quatro rvores, teve lugar aquela monstruosa festa das festas,que terminou na carnificina dos Tolomei e dos Salimbeni. E, debaixo dos velhos telhados deSiena, Madona Catarina revelou a doce substncia de seu esprito: A Caridade no se buscapor si mesma... mas por Deus. As almas deveriam unir-se e transformar-se pela Caridade.Devemos encontrar, entre espinhos, perfume de rosas prestes a desabrochar. Aquela era umaterra de paradoxos, um campo de fuso, de contradies histricas: beleza e terror, xtaseespiritual e grosseira crueldade, ignorncia medieval e o frio iluminismo da era doirracionalismo. Seu povo, tambm, era um complexo de muitas raas: antigos etruscos,germano-lombardos e mercenrios, vindos s Deus sabe de onde. Santos medievais,humanistas florentinos, astrlogos rabes, todos contriburam para a sua herana. Seusmercados negociavam desde a Provena at o Bltico, e estudantes de todas as partes domundo vinham ouvir as prelees de Aldo Brandini sobre a anatomia do corpo humano.

    Para Landon, aquela era uma estranha viso processional em parte, paisagem e, emparte, escavao de antigas lembranas; mas, depois daquele desfile, sentia-se um pouquinhomais compreensivo, um pouquinho mais tolerante para com aquela gente ardente e complicada,de cuja mesa participara. No havia necessidade de que participasse da maldio que elesimpunham a si prprios. Podia perdo-los... contanto que no precisasse viver entre eles.

    Sentiu o perpassar de um perfume e um rudo de passos e, passado um momento,Valria Rienzi estava ao seu lado, na alameda.

    Trajava elegante vestido de vero. Tinha os ps nus metidos em sandlias de courodourado e os cabelos atados nuca com uma fita de seda. Parecia plida, pensou ele. Haviasombras em torno de seus olhos e um vago sinal de cansao em seus lbios; mas sua pele eraclara como mbar e ela o saudou com um sorriso.

    a primeira vez, Peter, que o vejo assim. Assim como? Desprevenido, descuidado. Quase como um menino a assistir, na praa, a uma

    Pulcinlla.Landon sentiu-se enrubescer, mas sorriu e procurou afastar, com um alar de ombros

    casual, o comentrio: Desculpe-me. No percebi que parecia... descuidado. No pretendos-lo, asseguro-lhe. Devo parecer-lhe um sujeito muito caturra.

    Tudo, menos caturra, Peter respondeu ela e, como se fosse a coisa mais naturaldo mundo, enlaou a mo na dele e ps-se a caminhar a seu lado. Pelo contrrio, voc umhomem bastante provocador. Provocador e, talvez, tambm um tanto assustador.

    Ele j se divertira, em sua vida, com demasiadas mulheres, para que no reconhecesseaquele simples lance; mas sua vaidade se sentiu lisonjeada, e ele resolveu ir um pouco maisalm. Indagou, com ar de inocncia: Assustador? No compreendo.

    Voc to realizado... to controlado. Vive de voc para voc. Assemelha-se, sobmuitos aspectos, a meu pai. Compreende to bem as coisas que, dir-se-ia, os outros nada tm aoferecer-lhe. Vocs ambos encaram a vida como se ela fosse um banquete. Sentam-se, comeme, depois, levantam-se satisfeitos, e seguem adiante. Oxal eu pudesse ser assim! Pois eudiria que voc o tem sido com bastante xito.

    Lanou o golpe de leve, como um esgrimista que iniciasse uma competio esportiva.

  • Para sua surpresa, ela franziu o sobrolho e respondeu, sria: Eu sei. Fao-o muito bem.Mas a coisa no real, percebeu? Ajo como uma aluna que recita uma lio que j sabe decor. Meu pai um bom professor. E Baslio tambm.

    Baslio? Um homem com quem venho me encontrando ultimamente.Ele faz da irresponsabilidade uma arte.O terreno, afinal de contas, no era assim to conhecido. Landon achou que talvez fosse

    sensato abandonar aquele jogo, antes que o mesmo fosse levado a srio. Dissecanhestramente: Fala-se demais acerca da arte de viver. Segundo minha experincia,consiste ela, principalmente, em artifcio: ps, cosmticos e mscaras de carnaval.

    E o que est por baixo disso? Homens e mulheres. De que espcie? De todas as espcies... quase todos eles solitrios.Mal disse isso, percebeu que cometera um erro. Aquilo era o comeo de todos os casos

    amorosos: a primeira intimidade, a fenda na cota de malha que desnudava o corao,deixando-o exposto lmina. E a lmina surgiu, tateante, mais rpida do que ele imaginara.

    Foi isso que li em seu rosto, no foi, Peter? Voc se sentia solitrio. Voc comoaquela ave l no alto...livre, com o mundo todo sob as asas...e, no obstante, se sentiasolitrio.

    Apertou os dedos na palma da mo de Landon; ele sentiu-lhe o calor do corpo aomesmo tempo que o envolvia o perfume de Valria.

    Eu tambm me sinto s ajuntou ela.Ele era mdico e compreendia os empregos da dor. Com tudo o que possui, Valria? indagou friamente.Com seu pai, com Carlo... e com Basilio, lanado de contrapeso? Estava preparado

    para enfrentar-lhe a ira e at mesmo uma bofetada na boca; mas ela apenas desvencilhou-sedele e respondeu com glido desdm: Eu esperava outra coisa de voc, Peter. S porquelhe seguro a mo e lhe digo uma pequena verdade a meu respeito, voc me encara como se eufosse uma prostituta? No fao segredo de meus atos nem das pessoas de quem gosto. Masvoc... voc deve sentir grande desprezo por si prprio. -Tenho pena da mulher que procuream-lo.

    Depois, como se sua vergonha no bastasse, Carlo surgiu no meio do caminho,dizendo-lhes com glacial polidez: Vocs tero de desculpar-me por eu no estar presente hora do almoo. Houve alguma complicao na aldeia. Pediram minha ajuda. No sei a quehoras estarei de volta.

    No esperou resposta, deixando-os rapidamente, atores hostis num palco vazio, semscript, ponto ou qualquer soluo previsvel para seus conflitos. Desajeitado como umcolegial, Landon gaguejou uma desculpa.

    No sei o que possa dizer-lhe para pedir que me perdoe.Posso... posso apenas procurar explicar. Em meu trabalho, a gente adquire maus

    hbitos. Fica-se sentado como um padre confessor a -ouvir misrias alheias. As vezes, a gente

  • se sente assim um pouco como Deus num tribunal supremo. Eis a o problema. O outroproblema que o paciente sempre procura converter o seu psiquiatra em algo diferente: numpai, numa me, num amante. um sintoma de enfermidade. Chamamos a isso transferncia.Adotamos certas defesas contra isso...uma espcie de brutalidade clnica. O diabo que, svezes, empregamos essa mesma arma contra pessoas que no so, de modo algum, nossospacientes. uma espcie de covardia.

    E voc tem razo, ao dizer que me desprezo por isso. Sinto muito, Valria.Ela ficou um momento sem responder, recostada a uma urna.de pedra, a arrancar as ptalas de uma glicnia e a esparram-las junto de seus ps.

    Tinha o rosto voltado para o outro lado, de modo que ele no podia ver-lhe os olhos; mas, aovirar-se para ele, sua voz era intencionalmente cinzenta: Somos todos covardes, nosomos, Peter? Somos todos brutais, quando algum toca na pequena pstula de medo quetemos em nosso ntimo. Sou brutal com Carlo, sei disso. Mas ele, sua prpria maneira,tambm brutal comigo. Mesmo meu pai, que esplndido como um velho leo, cria umpurgatrio para aqueles a quem ama. No obstante, somos necessrios uns aos outros. Semningum a quem possamos ferir, s poderemos ferir a ns prprios e eis a o derradeiroterror. Mas at quando poderemos viver assim, sem que nos destruamos mutuamente?

    No sei respondeu, sombrio, Peter Landon, perguntando a si prprio, naquelemesmo momento, at que ponto um homem poderia suportar os aguilhes da ambio, at ondepoderia subir sozinho, antes de mergulhar no desencanto e no desespero.

  • 2A DELEGACIA, em San Stefano, estava abafada de fumaa de cigarros e de cheiro de

    azedo de vinho e queijo aldeo. O sargento Fiorello achava-se ostensivamente sentado parte,copiando um depoimento. Frei Bonifcio permanecia de p, a mexer em seu cinto, enquantoCarlo Rienzi explicava algo a Anna Albertini: Frei Bonfcio contou-me por alto suahistria, Anna. Estou ansioso por ajud-la. Mas, primeiro, h certas coisas que voc precisacompreender. Sua voz tinha o tom expositivo e paciente de um mestre-escola a ensinar umaluno obtuso. Voc deve compreender, por exemplo, que um advogado no um mgico.Ele no pode provar que o preto branco. No pode agitar uma varinha e fazer com quedesapaream ascoisas que aconteceram. No pode ressuscitar gente que morreu. S o quepode fazer contribuir com o seu conhecimento da lei e com a voz, a fim de defend-la notribunal. Alm disso, um advogado tem de ser aceito pelo seu cliente.

    E preciso que este concorde em contratar seus servios. Estou sendo claro? Talvezfosse apenas uma iluso, mas dir-se-ia que, por um momento, o fantasma de um sorrisocontraiu os lbios plidos da moa.

    No tive muita educao respondeu ela, gravemente mas sei alguma coisa acercade advogados. O senhor no precisa tratar-me como se eu fosse uma criana.

    Rienzi enrubesceu e mordeu o lbio. Sentia-se demasiado jovem e excessivamentecanhestro. Mas recomps-se e prosseguiu, com mais firmeza: Ento deve compreender oque fez... e saber quais so as consequncias.

    Anna Albertini, em sua atitude plcida, indiferente, fez com a cabea um sinalafirmativo: Oh, certamente! Sempre soube o que iria acontecer. Isso no me preocupa.

    No a preocupa agora, mas ir preocup-la depois quando estiver no tribunal aouvir a sentena. Quando eles a levarem embora e voc se vir com roupa de presidiria,fechada atrs das grades.

    No me importa onde eles me ponham... no me importa. Agora estou livre...compreende?...e feliz.

    Pela primeira vez, o velho frade entrou na discusso. Anna, minha filha disse ele, com brandura hoje foi um dia estranho e terrvel.

    Voc no poder saber como se sentir amanh. De qualquer modo, quer voc o queira ouno, o tribunal far com que tenha um advogado. Acho melhor que tenha a seu lado algum quese interesse um pouco por voc, como aqui o Dr. Rienzi...

    No tenho dinheiro algum com que pag-lo. O dinheiro ser providenciado. Ento creio que est bem.Rienzi, chocado ante aquela indiferena, disse irritado: Precisamos de algo mais

    formal do que isso. Quer fazer o favor de dizer ao sargento Fiorello que me aceita como seurepresentante legal? Digo, se assim o deseja.

    J ouvi disse Fiorello, sorrindo, entredentes. Anotarei aqui. Mas acho que osenhor est perdendo tempo.

    Isso que no compreendo comentou Anna, com estranha simplicidade. Sei

  • que nada podem fazer por mim. Por que razo, pois, o senhor e Frei Bonifcio esto tendotodo esse trabalho?

    Estou procurando saldar uma dvida respondeu, em voz baixa, o frade.Carlo Rienzi juntou suas anotaes, meteu-as no bolso e levantou-se.- Voc ser levada para Siena, onde ser instaurado o processo, Anna disse,

    rpido. Depois, ficar na cadeia da cidade, ou talvez a mandem para a casa correcional demulheres, em San Gimignano. Onde quer que voc se encontre, irei v-la amanh. Procure noficar muito assustada.

    No estou assustada afirmou Anna Albertini. Creio que esta noite dormireisem pesadelos.

    Deus a guarde, filha disse Frei Bonifcio ao retirar-se, fazendo o sinal da cruzsobre a cabea da jovem.

    Rienzi j estava junto porta, falando com Fiorello. Quando comear a preparar a defesa, gostaria de vir aqui falar com o senhor,

    sargento.Sinto muito, mas no ser Possvel respondeu Fiorello, com frio ar profissional. Serei convocado pela Promotoria Pblica.

    Ento falaremos no Tribunal concluiu, lacnico Rienzi, saindo, seguido pelofrade, para a praa ensolarada, cheia de murmrios.

    A multido abria alas passagem de ambos, Todos os fitavam, apontavam-nos esussurravam entre si como se fossem monstros de circo, at que desapareceram nas friassombras confessionais da Igreja de San Stefano.

    O almoo, na Villa Ascolini, foi um torneio de trs participantes, dominado pelorutilante esprito do velho advogado. A ausncia de Carlo foi aceita com indiferena e, supsLandon, com certo alvio.

    A desgraa ocorrida na aldeia no mereceu seno um gesto de desaprovao. NemAscolin, nem Valria perguntaram de que se tratava, mas quando Landon insistiu com eles arespeito, Ascolini fez-lhe uma preleo irnica acerca dos vestgios do sistema feudal aindaexistentes.

    Vivemos a maior parte do ano em Roma, mas a propriedade da vila nos convertepor definio na famlia Patronal, Quando voltamos para c, pagamos uma espcie de tributopelo nosso domnio. s vezes, um pedido de novas contribuies para a igreja ou para oconvento. Outras vezes, patrocinamos os estudos de algum estudante mais ou menos brilhante.Ocasionalmente, somos convidados a servir de rbitro em alguma disputa local... que ,provavelmente, o que aconteceu hoje. Mas, quaisquer que sejam as circunstncias, o princpio o mesmo: os senhores pagam um tributo ao populacho pelo privilgio de sobreviver; oshumildes servem-se dos senhores, para que estes os defendam de uma democracia na qual noconfiam e de uma burocracia que desprezam, um ajuste razovel. Sorveu delicadamente oseu vinho e acrescentou, aps breve reflexo: Alegra-me que Carlo comece a assumir a suaparte nesse tributo.

    Valria sorriu, com ar de tolerncia, e deu umas palmadinhas no brao do hspede: No lhe d ateno, Peter. Ele um velho malicioso, Landon sorriu e ps-se a descascar umPssego, o rosto rosado de Ascolini tinha uma expresso de perfeita inocncia, privilgio dos velhos testar a tmpera dos jovens. Ademais, alimento grandes esperanas

  • quanto ao futuro de meu genro. umjovem de singular talento e instruo. Seus olhosjovens, astutos, observaram Landon por cima doaro dos culos. Espero que ele o estejatratando devidamente.

    Melhor do que mereo respondeu Landon, contente por Ascolini haver mudadode assunto. Levou-me ontem, de automvel, a Arezzo.

    Ascolini fez com a cabea um gesto de aprovao. Uma nobre cidade, meu amigo. Demasiado negligenciada pelos turistas. A cidade de

    Petrarca e de Aretino. Esboou um sorriso, satisfeito. O senhor um estudioso dealmas, Dr. Landon.

    Eis aqui uma parbola para o senhor: o grande amante e o grande libertino surgem domesmo solo; o poeta erudito e o poeta satrico a garatujar palavras obscenas nos mesmosedifcios pblicos; os sonetos a Laura e os Sonetti Lussuriosi. Certamente j os leu, no? LiPetrarca respondeu, com um sorriso, Landon. Hoje em dia j no reimprimem Aretino.

    Emprestar-lhe-ei um exemplar volveu Ascolini, com um gesto eloquente de mo. Trata-se de um clssico escatolgico que no pode deixar de interessar a um psiquiatra.Enquanto aqui estiver, peo-lhe que use a biblioteca. No muito grande, mas talvez possaach-la interessante e curiosa.

    muita amabilidade de sua parte. No sabia que o senhor era bibliffio. Papai uma dzia de homens condensada num s comentou, secamente, Valria.Novamente Ascolini riu, vivaz, entredentes Coleciono experincia, Sr. Landon,

    como antes colecionava mulheres, que so a chave da experincia. Mas agora j estou muitovelho para isso. De modo que possuo livros, tm ou outro quadro e o drama indireto doDireito.

    O senhor um homem afortunado, dottore.Ascolini fitou-o com olhos vivos, irnicos: A juventude que a poca afortunada,

    meu caro Landon.A maior fortuna da velhice uma sabedoria que nos permita avaliar o que nos restou: o

    sumo do vinho, a riqueza da recordao, a plenitude da razo. Uma coisa que tenho procuradoexplicar a Carlo e aqui minha filha que melhor a gente ser uma rvore que crescetranquilamente ao sol do que o macaco que sobe atabalhoadamente procura do fruto.

    Pergunto a mim mesmo disse, com afetada inocncia, Landon se o senhor sesentiu sempre contente de ser a rvore, dottore.

    Vejo que no me enganei a seu respeito, meu amigo. O senhor lida h muito tempocom o Direito, para que se deixe enganar pelos truques de um velho advogado. Claro que nemsempre isso me satisfez: quanto mais alto o fruto, tanto mais depressa eu queria subir. Mas ofato permanece o mesmo. melhor ser-se a rvore que o macaco. Mas como consegue meteruma velha verdade numa cabea jovem? No procuro faz-lo respondeu Landon, comcerta mordacidade. As cabeas jovens foram feitas para bater de encontro a paredes. Masquase todas conseguem sobreviver.

    Surpreendentemente, Ascolini fez com a cabea um sinal de assentimento,acrescentando, com ar de pesar: O senhor tem razo, sem dvida. Receio ter-me metidodemais na vida desses jovens. Eles nem sempre compreendem o afeto que lhes tenho.

  • O que no compreendemos, papai interveio Valria, a voz alta e vibrante comouma corda de violino e o que voc tampouco compreende, o preo que exige por isso.

    Ao levantar-se, a manga de seu vestido esbarrou em seu copo, de modo que o cristal seespatifou no cho, fazendo com que o rubro vinho se espalhasse pelo lajeado cinzento. Landonentregou-se, com meticuloso cuidado, ao resto de seu pssego, at que o velho o desafiou comsardnico humor : No se constranja, meu amigo. No procure fazer o papel de anglo-saxo urbano com gente como ns. assim que ns somos.

    assim que temos vivido h mil anos. Fazemos grandes quadros de nossasdepravaes e grandes peras de nossas tragdias mais sangrentas. O senhor um estudiosodo drama humano. Tem assento em camarote. Se somos felizes em exibir nossas loucuras, osenhor tem todo o direito de aplaudir a comdia. Vamos, meu caro amigo...

    Permita que lhe sirva um conhaque. E, se lhe for difcil perdoar, lembre-se de que souum campons que se valeu da advocacia para Converter-se em gentleman.

    No havia como resistir a tal urbanidade e, apesar de. si prprio, Landon sentiu-seencantado, tornando a rir. Mas, mais tarde, ao estender-se sobre a grande cama florentina, afim de dedicar-se ao ritual da sesta, viu-se procurando escrever a sua prpria verso dacrnica Rienzi.

    O velho advogado era um personagem demasiado complexo para que pudesse serdefinido tomando-se por base o esnobismo um tanto ingnuo de uma sociedade ainda feudal.Poderia ser um campnio, com a astcia e a rude ambio de um campons, mas noeranenhum mendigo a cavalo. Talvez tivesse sido forjado de matria tosca, mas era duro como ogranito e polido pelas disciplinas de um mundo superpovoado. Sua carreira se baseava nasloucuras de outros homens e paixes demasiado ignbeis t-lo-lam destrudo havia muito.Landon sentiu que o Dr. Ascolini possua muito maior estatura do que Carlo ou Valria seriamcapazes de admitir. Podia imaginar o velho entregue a um forte amor, ao dio, ou a umaperverso desses sentimentos, mas no lhe era possvel julg-lo mesquinho.

    E Valria? Tambm ela lhe causara uma impresso diferente da que Carlo lhetransmitira. Via-a como uma espcie de princesa intransigente, meio desperta para o amor,mas no obstante, ainda acorrentada tirnica magia da infncia. Para Carlo, havia ainda umacerta inocncia em Valria, apesar de seus casos amorosos.

    Mas Landon lembrou-se das jovens que Lippo Lippi usava para pintar suas virgens eseus anjos jovens de rostos suaves, olhos lmpidos e a recordao de mil e uma noites emseus lbios. Era um pensamento desagradvel, mas no podia livrar-se dele. Quando aprofisso de um homem o obrigava a sentar-se junto de um div de confisses e a encarar asmulheres calculadamente, aprendia, s vezes penosamente, que a inocncia era coisa rara epossua muitos disfarces. Valria talvez no fosse depravada, mas era inclinada, sem dvida,a outras satisfaes que no as que lhe eram proporcionadas por um marido jovem e incerto.Landon via-a maternal, mas sem filhos; fria, mas no insensvel; no dominada pelo pai, masapoiada, como ele, em reservas ntimas, de modo que precisava menos dos outros que outrasmulheres, mas que poderia dar muito mais, se o estado de esprito e o momento fossempropcios.

    Ps-se a pensar, languidamente, quais poderiam ser esse estado de esprito, esse

  • momento e viu-se a fitar o poo de seu prprio vazio.Tudo o que via naquela gente, ele o havia evitado em sua prpria vida: marido

    enganado, crueldade, o prurido da carne, o medo de perder aquilo que se podia apenas fingirpossuir, a tirania vampiresca da velhice, a pervertida rendio da juventude. Estabelecerapara si um objetivo limitado, e estava agora quase a ponto de alcanlo. Divertira-se commulheres, mas jamais se entregara a elas. Preservara a tica de uma arte de curar, ao usar essaarte para o seu prprio progresso. Tinha dinheiro, posio, lazer. No estava sujeito nem auma esposa, nem a uma amante. Era livre, disciplinado e vazio do vinho da vida que aquelesoutros dissipavam com to ardente indiscrio.

    De repente, sentiu-se como se eles fossem os ricos, e ele apenas o mendigo parado emseu porto e perguntou a si mesmo, como os mendigos decerto fazem, se seu estmago teriacapacidade para suportar um banquete, mesmo que um banquete lhe fosse oferecido.

    Quando o calor da tarde escorria como lava sobre a terra numa hora em quecamponeses e burgueses se ocultavam como toupeiras, fugindo ao sol Ninette Lachaisemeteu tintas e telas em seu velho automvel e rumou para o campo.

    Era uma peregrinao de artista, quase to penosa como a que era empreendida pelasirmandades religiosas de outros tempos. A terra estava quente como um rescaldo; as estradaseram um inferno de poeira; os montes, calcinados, concentravam o calor e difundiamno emondas abrasadoras pelas baixadas onde as vinhas definhavam, os crregos secavam e osramos das oliveiras pendiam, lnguidos, no ar parado. O gado desistira de pastar e achava~sereunido sob esparsas sombras, os olhos vtreos, as lnguas sedentas pendentes da boca. Asraras criaturas humanas, apanhadas de surpresa pelos caminhos ou no amanho da terra,pareciam encolhidas e ressecadas como gnomos que palmilhassem uma paisagem lunar. Porsobre tudo isso se estendia o penetrante milagre da luz: o deslumbramento do cu para asbandas do sul, o alvo cintilar de estuques e dos afloramentos de tufos, sombras bronzeadas nasfendas das montanhas, reluzir de lagos, ocre de todos os telhados, lampejar de joias em asasde pssaros e no voo de acrdios. E a estava a justificao daquela peregrinao: a speranovidade do aspecto das coisas, a sbita dilatao do espao, a separao entre massa econtorno, de modo que a gente via atravs dos ossos da criao e tinha um vislumbre damacia articulao de suas partes.

    Para Ninette Lachaise havia ainda outras justificativas. Cada peregrinao era, pordefinio, uma disciplina para o esprito, uma tentao do desconhecido e um passo emdireo do inatingvel.

    Chegara quatro anos antes, em fuga, quela cidade, chamada, por seus devotos, o Lardas Almas. Fugira de uma casa, em Paris, dominada por uma me doente e por um pai idoso,cuja recreao era lamentar as glrias extintas da vida militar. Fugira da esterilidade dosateliers de ps-guerra e de uma juventude que era um prenncio de velhice. Duas coisastinham acontecido subitamente: sua pintura explodira em surpreendente maturidade e, umasemana aps sua primeira exposio, mergulhara de ponta cabea num caso amoroso comBaslio Lazzaro.

    Indiferente como um touro, Baslio Lazzaro era dado a aventuras desse gnero, e aligao entre ambos durou seis tempestuosos meses. Separaram-se sem pesar e ela,magoada mas desperta, ficou sabendo que era capaz de paixo, embora duvidasse que viesse a

  • entregar-se de novo de maneira to completa. Aprendera, ainda, outra coisa: que aquela erauma terra de homens, e que no havia salvao para uma mulher em amores promscuos ouirrefletidos. De modo que fez das disciplinas da arte uma disciplina tambm para a carne,embora aguardasse, quase sempre cautelosamente, o momento de um encontro afortunado.

    Mas no bastava esperar inconscientemente a promessa de amor dos contos de fadas, oPrncipe Encantado e o viveram felizes para sempre. Em sua natureza e em sua situao,havia elementos que ela ainda no percebia bem. At onde seu talento poderia conduzi-la?Quando poderia ela desafiar a lenda da incapacidade da mulher para as grandes criaes daarte? De que grau de igualdade necessitaria ela para sobreviver, aps os primeiros estmulosdo galanteio e da intimidade sexual? Por que motivo se sentia atrada por homens comoAscolini os cnicos e os experientes e por que razo desconfiava dos jovens que eramtodo ardor, mas que se mostravam to mal dotados de compreenso? Qual a vantagem de fixarvises de beleza para deleite dos outros, enquanto que os verdes anos se dissipavam nasolido do outono? Desde a visita de Ascolini, todas essas indagaes e dezenas de outrashaviam adquirido perfeita nitidez, como os penhascos e as fortificaes ameadas dos montestoscanos. Era um sinal de sua inquietude o haver ela aceito o convite para jantar na villa, emcompanhia de Valria, que desempenhava agora o papel de amante de Baslio Lazzaro, e deum estrangeiro desconhecido, que lhe estava sendo apresentado como simples objeto deexame.

    De repente, porm, a comicidade da situao apoderou-se dela, e ps-se a rir umriso claro, livre, que ressoou pelo vale, espantando as cabras e fazendo com que uma cotoviaalasse voo, fendendo o ar tremeluzente.

    Na biblioteca da villa, Alberto Ascolini, advogado e ator, representava umareconciliao com a filha. Era uma cena que representara muitas vezes e seu papel tinha aptina de uma longa prtica. Estava recostado ao consolo da lareira, elegante, impertigado,impressionante, tendo na mo uma taa de conhaque e um leve sorriso de conspirao acontrair-lhe os cantos da boca. Valria achava enrodilhada em sua poltrona, o queixo apoiadona mo, sentada os ps, como uma menina. Ascolini encolheu eloquentemente os ombros edisse: Filha, voc no deve mostrar-se demasiado ressentida. Sou velho bode perverso,que ri de seus prprios gracejos. Mas eu a amo ternamente. No fcil para um homem ser, aomesmo tempo, pai e me de uma menina. Conheo meus malogros melhor do que voc.

    Mas isso de eu vender o meu amor... novo para mim. E penoso, tambm. Acho quevoc deveria explicar-se um pouco melhor.

    Valria Rienzi abanou a cabea: Voc no est no tribunal, papai. No ocuparei olugar das testemunhas.

    Talvez no, minha filha respondeu ele, sereno, revelando apenas um leve ar detristeza. Mas voc me ps no banco dos rus. No acha que tenho o direito de ouvir aacusao? De que modo fao com que voc pague o amor que lhe dedico? Voc recebe umaparte de tudo o que fao.

    Recebo? Recebo? exclamou o velho, franzindo, perplexo, a nobre testa epassando a mo pela cabeleira branca. Voc... faz com que eu parea um cobrador deimpostos. Cuido de voc... claro! Interessa-me a sua felicidade ... Mas isso constitui, acaso,

  • uma exigncia? Acaso j lhe neguei alguma coisa, mesmo o direito de ser jovem e tola?Pela primeira vez, ela inclinou a cabea para fit-lo meio hostil, meio splice: Mas

    ento no v que a metade de tudo isso foi sempre em seu benefcio? Carlo? Ele foi, primeiro,criao sua. Voc o preparou e me entregou como um pnei de estimao, mas conservousempre uma mo na rdea. Os outros? Foram, tambm, criao sua... divertimentos para anoiva infeliz, cavalieri sirventi proporcionados pelo pai indulgente. Eram romancesdestinados a relembrar sua prpria mocidade.

    Mas voc os aceitou, minha querida. E mostrou-se grata, como bem recordo. Voc tambm me ensinou isso respondeu ela, num assomo de amargura.

    Agradea os doces, como uma boa menina... Mas quando eu mesma quis tomar algo ... comoBasilio... ali, ento, a coisa foi diferente!

    Pela primeira vez, o rosto rosado, brilhante, de Ascolini, revelou sinais de clera: Lazzaro um patife! No companhia para uma mulher de estirpe!

    Estirpe, papai? Qual a sua estirpe? Voc era filho de campons. Casou pobre elamentou do feito, quando adquiriu reputao. Voc desprezava minha me e ficou contentequando ela morreu. E eu? Sabe o que eu deveria ser? O modelo da mulher que voc quis, masjamais conseguiu. Sabe por que razo voc jamais tornou a casar? Para que ningum jamaispudesse rivalizar com voc. Para que pudesse sempre desdenhar daquilo de que tinhanecessidade e possuir o que amava.

    Amor? repetiu Ascolini, com frio desdm. Fale-me acerca de amor, Valria.Ser que voc amou Carlo? Ou Sebastan? Ou aquele sul-americano, ou o filho do grego cujodinheiro lhe saa at pelas orelhas? Ou ser que o encontrou, no cio, num apartamento deterceiro andar, com esse tal Lazzaro? Ela agora chorava, a cabea enterrada nas mos, e elejulgou que ganhara a partida.

    Voc e eu no devemos ferir-nos, minha filha disse docemente. Devemos serhonestos e dizer que o que temos entre ns o que de melhor conhecemos do amor. Para mim,, dentre todas as coisas que conheo, a mais valiosa. Para voc, haver mais, muito mais,pois que o mundo ainda novo para voc. Mesmo com Carlo poder haver algo, mas preciso que voc d, ao menos, a metade dos passos nesse sentido. Ele um rapaz, e vocuma mulher, rica de experincia. Mas voc, como mulher, deve comear a preparar-se para terum lar e filhos. Dentro de um ou dois anos, eu talvez me aposente, e Carlo, naturalmente,ficar com o meu escritrio de advocacia. Vocs tero, ento, uma situao segura. E devehaver filhos, com quem vocs possam desfrutar dela. O tempo dos gafanhotos chegar tambmpara voc, minha querida, como j chegou para mim. ento que voc necessitar dospequenos.

    Lentamente, ela se ergueu na poltrona e lanou-lhe ao rosto a pergunta brutal: E aquem pertencero eles, papai? A Carlo? A mim? Ou a voc? Dito isto, afastou-serapidamente, deixando-o sozinho na biblioteca abobadada, com dois mil anos de sabedorianas estantes e sem remdio algum contra o inverno e a desiluso.

    Havia uma lenda, em San Stefano, segundo a qual o Irmozinho Francisco construra l,com suas prprias mos, a primeira capela.

    Os afrescos da igreja celebravam o acontecimento e, nos claustros dos frades, havia umjardim, com um relicrio em que se via o Poverello de braos estendidos, a dar as boas-

  • vindas s aves que vinham banhar-se no aqurio que tinha a seus ps. O ar fresco, a luz tnue,os nicos rudos que ouviam eram os da gua no tanque e os ps com sandlias a caminhar aolongo das colunatas. Ali, sentado num banco de pedra, Carlo Rienzi ouviu a confisso de FreiBonifcio.

    Era, aquela, uma experincia purificadora, como a de observarse um homem a ler suaprimeira acusao num tribunal ou a ouvir um mdico fazer o diagnstico de seu prprio malincurvel. o velho tinha o rosto macilento, encovado, e os ombros caldos, como se carregassepesado fardo. Enquanto fazia sua penosa exposio, seus dedos, nodosos, atavam e desatavama corda que lhe servia de cinto.

    Eu j lhe disse antes, meu filho, que o que aconteceu hoje foi o ltimo captulo deuma histria muito longa. I-J muita gente envolvida nela. Eu sou uma delas. Cada um de nstem uma parte da culpa do que hoje ocorreu.

    Rienzi ergueu a mo, num gesto de advertncia. Detenhamo-nos aqui um instante, padre. Permita-me que lhe fale um pouco acerca

    da lei. Cometeu-se aqui, hoje, um assassinato.A primeira vista, foi um ato de vingana premeditado, motivado por uma injustia

    praticada, h muitos anos, contra Anna Albertini. No h dvida quanto ao ato, ascircunstncias Ou o motivo. A acusao tem em mos um caso nitidamente definido. A defesapossui apenas dois argumentos: insanidade mental ou atenuao da pena. Se dissermos que aacusada insana, teremos de prov-lo mediante testemunho psiquitrico, e o caso da moadificilmente ser melhor do que se ela sofrer a pena normal por assassinato. Se pedirmosdiminuio da pena, temos de escolher entre duas razes: provocao ou enfermidade mentalparcial. Um tribunal no um confessionrio.

    A lei aceita de maneira limitada a culpa moral de um ato. Interessa-se Pelaresponsabilidade, mas na ordem social, no na ordem moral.

    Sorriu e estendeu as mos, num gesto de splica. Li suas conferncias, padre.Perdoe-me mas desta vez nossos papis esto trocados.

    Pelo bem de minha cliente, o senhor no deve conduzir-me a coisas Irrelevantes.O velho digeriu lentamente o sentido de tais palavras; depois, fez com a cabea um

    gesto de aquiescncia. Todo ato de violncia, meu filho, uma espcie de loucura, duvido que o senhor

    encontre em Anna Albertini uma criatra legalmente insana. Quanto diminuio da pena,acho que posso ajud-lo embora no saiba de que modo o senhor poderia usar o que eu lhedisser. Deteve-se um momento e prosseguiu, lentamente: H duas verses dessa histria. Aprimeira a que ser apresentada no tribunal, pois que fiz parte do registro oficial. Asegunda... interrompeu-se e ficou longo momento mudo, fitando as costas de suas mosnodosas, sardentas. Conheo a segunda verso, mas no posso revel-la, pois que a fiqueisabendo, pela primeira vez, debaixo do selo do confessionrio. Posso apenas dizer-lhe queexiste e que o senhor ter de descobri-la por si prprio. Se poder prov-la, coisa queconstitui outro problema. E, mesmo assim, duvido que possa ter qualquer valia num tribunal. Sua voz tremeu e seus olhos se encheram das lgrimas remelosas da velhice. A justia,meu filho! Quantas vezes no ela anulada pelo prprio processo e por aqueles que deviam

  • preserv-la! O senhor viu Anna hoje. Tem vinte e quatro anos. A ltima vez que a vi, faz jdezesseis anos... uma criana de oito anos a colocar flores no tmulo de sua me e a gravar,com um pedao de lata, uma inscrio na parede do cemitrio. A inscrio ainda l est.Mostr-la-ei depois.

    Apesar de toda a sua indiferena profissional e de suas prprias preocupaes ntimas,Rienzi comoveu-se ante a pattica situao do velho. Ele prprio era um homem familiarizadocom a culpa; familiarizado, tambm, com a impotncia do homem em extirp-la. Eis umatragdia da condio humana: cada um de nossos atos, por mais simples que seja, contingente de outro gesto passado e lana no futuro uma ramada de consequncias. Talvezpossa expiar-se o pecado, conceder-se perdo, mas as consequncias se estendem, como oencrespar das guas numa lagoa infinita, como correntes que se movem eternamente num marsombrio.

    Rienzi insistiu, delicadamente, com o frade: E a histria oficial, padre, quando que comea? Onde est escrita? Quem a conta?

    Todos em San Stefano. O registro consta dos arquivos do sargento Fiorello,confirmado pelo depoimento de meia dzia de pessoas. Comea no ltimo ano da guerra,quando os alemes dominavam esta regio, e Giaribattista Belloni era lder do bando deguerrilheiros que agia nos montes. Foi, como sabe, uma poca de confuso, desconfiana econflitos sangrentos. Anna vivia na aldeia em companhia da me, Agnese Moschetti, que eraviva de um homem morto na campanha da Lbia. Durante algum tempo, um pequenodestacamento de alemes esteve aquartelado na aldeia, sendo que alguns se aboletaram nacasa de Agnese Moschetti. Quando os alemes se foram, ela foi acusada de ter-se associado aeles, revelando-lhes os movimentos dos guerrilheiros e os nomes de alguns deles. Foi julgadapor uma corte marcial sumria, composta de guerrilheiros, que a declarou culpada e acondenou morte perante um esquadro de fuzilamento. Giaribattista Befioni presidiu aojulgamento e assinou a ordem de execuo. Depois do armistcio, os trmites da corte marcialforam autenticados e arquivados nos cadastros policiais da aldeia. Poucos anos mais tarde,Belloni foi eleito prefeito da aldeia e condecorado com medalha de ouro pelo Presidente, poratos de bravura a servio da ptria...

    Interrompeu-se e enxugou os lbios, como para suprimir um gosto desagradvel. E que diz o processo de Anna Albertini? indagou Rienzi. Tomou conhecimento de sua existncia respondeu, secamente, o velho. E do

    fato de haver ela sido entregue aos cuidados de Frei Bonifcio, da Ordem dos FradesMenores, que a enviou para Florena, aos cuidados de parentes.

    Onde se encontrava ela, quando sua me foi julgada e executada? O processo no se refere a isso. Mas o senhor sabe? Sei, mas sob o sigilo da confisso. E a prpria Anna jamais lhe contou? Desde a morte da me at hoje jamais ouvi uma nica palavra de seus lbios. Como

    tampouco o ouviu qualquer outra pessoa da aldeia. Junto sepultura da me ela nem sequerchorou.

    Hoje ela casada. Sabe alguma coisa a respeito de seu marido?

  • Nada. A polcia, naturalmente, mandou busc-lo. E outros parentes? Conheci a tia que a levou para Florena. Mas no sei sequer se ela ainda vive.

    Seus ombros arquearam-se mais, numa atitude de desalento. Isso j faz dezesseis anos, meufilho. Dezesseis anos...

    O senhor me disse que ela escreveu alguma coisa na parede do cemitrio. Ser queeu podia ver, por favor? Certamente.

    Conduziu Rienzi, atravs dos claustros circulares, at uma porta rangente situada aosfundos, que dava para o campo santo cercado de muros, onde querubins de mrmore, colunasem espirais e enfezadas perptuas prestavam seu mudo testemunho mortalidade. A Sepulturade Agnese Moschetti era assinalada apenas por uma pedra tosca, que registrava somente adata de seu nascimento, a data de sua morte e a derradeira e pattica inscrio: Requiescat inpace.

    A menos de um passo da lpide, ambos ficaram de ccoras junto ao muro em runas docemitrio, a fim de ler, junto ao cho, a dolorosa inscrio infantil: Befioni, um dia eu omatarei.

    Rienzi ficou a fitar longamente a inscrio; depois indagou, vivamente: Algummais viu isto?

    Quem poder sab-lo? respondeu o velho, encolhendo os ombros, num gestoimpotente.

    Est a h tantos anos! Se isto for apresentado ao tribunal disse Rienzi, em voz baixa estaremos

    liquidados mesmo antes de comear. Arranje-me um macete e um cinzel...depressa! As trs emeia da tarde, Landon despertou de uma inquieta modorra e encontrou Carlo Rienzi sentadoem sua poltrona, a fumar um cigarro e a folhear uma revista com soturno desinteresse. Tinhaos sapatos empoeirados e a camisa amarfanhada. Seu rosto parecia contrado e fatigado.Exps a Landon, com telegrfica brevidade, o que ocorrera em San Stefano e terminou,olhando-o de esguelha, com as seguintes palavras: A tem voc o que ocorreu, Peter. Odado est lanado. Aceitei a causa.. Encontrei um par de associados dispostos a agir comigo ea apoiar-me nos tribunais de Siena. Eis a, pois, a minha primeira causa.

    Voc j falou com sua esposa ou com Ascolini? Ainda no respondeu, com um sorrisinho enviesado. J tive muitas emoes, por

    ora. Deixarei essa comunicao para depois do jantar. Ademais, queria primeiro falar comvoc. Poderia fazer-me um favor?

    Que espcie de favor? Profissional. Gostaria de t-lo, de maneira informal, como conselheiro psiquitrico.

    Gostaria que voc visse a moa, fizesse seu diagnstico e, depois, indicasse um possvelemprego de um testemunho mdico.

    Isso no fcil respondeu Landon, franzindo, com ar de dvida, o sobrolho. Suscita questes de tica, de polidez profissional e, mesmo, de minha prpria situao perantea lei.

    E se lhe assegurassem que uma consulta informal no constituiria nenhuma

  • transgresso? Ento eu pensaria no caso. Mas, de qualquer maneira, ficaria ainda devendo a seu

    sogro uma explicao. Afinal de contas, sou seu hspede. Podia esperar at que eu falasse com ele? Certamente. Mas h algo que eu gostaria de perguntar-lhe, Carlo. Hesitou um

    momento e depois fez-lhe a pergunta nua e crua: Por que este caso? Ao que parece, asdesvantagens esto todas contra voc. a sua primeira causa e h pouqussimasprobabilidades de que voc a ganhe.

    O rosto de Rienzi afrouxou, abrindo-se num sorriso esplndido, infantil; depois, ele setornou novamente srio.

    . uma pergunta justa, Peter, e procurarei respond-la, como j o fiz para mim. umaingenuidade pensar-se que, na advocacia, a preeminncia se baseie somente em vitrias. Acausa perdida , no raro, mais vantajosa do que a causa segura. Nova luz sobre anflijorniasclssicas, aplicaes controversas de princpios aceitos, uma estratgia que se aproveita doperene paradoxo existente entre legalidade e injustia eis a os fundamentos da reputaoem advocacia. Como v, o mesmo que ocorre na medicina. Quem adquire maior nomeada...o sujeito que cura uma clica causada por mas verdes ou aquele que, numa massagem de dezsegundos, faz reviver um corao que entrou em colapso? No existe cura para a morte, meucaro Peter, mas h uma grande arte em seu adiamento. Em direito, h uma arte correlata,quanto inspirao, e nisso se baseiam as grandes carreiras..A. de Ascolini, por exemplo. E,assim o espero, a minha.

    Landon sentiu-se chocado pelo frio cinismo da exposio. No podia acreditar queaquele fosse o nostlgico poeta que tocara Chopin, o amante magoado cujo mundo explodiradiante de seu rosto. Seus lbios pareciam jovens demais para que pudessem ter articuladoaquele argumento; seu corao demasiado jovem para que pudesse ter-se rendido a uma toglida ambio. No obstante, com toda justia, Landon teve de concordar com ele. Carloestava disposto a vencer Ascolini, em seu prprio terreno, aquele estreito campo de luta ondeo direito se define por contradio como um instrumento de preceitos ou um instrumento dejustia. Carlo Rienzi s podia combater dentro dos termos tradicionais, despojando-se dosentimento como se despojara das vestes comuns, envolvendo-se no hbito negro e desumanodo inquisidor.

    Landon, porm, estava comprometido pela amizade, e precisava saber at que pontoRienzi compreendia a sua situao. De modo que o enfrentou de novo, asperamente, com umanova pergunta: Voc compreende o que est dizendo, Carlo? Voc se comprometeu comuma cliente... baseado apenas na esperana. No uma grande esperana, talvez, mas, dequalquer modo, uma esperana. uma relao pessoal que vai muito alm do formalismo.

    No, Peter! exclamou Rienzi, rpido e enftico. Baseia-se nica eexclusivamente no formalismo. No posso formar um juzo moral quanto ao estado da alma deminha cliente. No possoentregar-me simpatia ou ao sentimentalismo, quanto ao que ela serefere. Minha funo despertar tal simpatia nos outros, conseguir julgamento favorvel porparte dos outros, inclinar todos os dispositivos legais a favor dela. Eis o que se pode exigir demim.

    No posso admitir quaisquer outras exigncias. No sou sacerdot