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Somanlu Revista de Estudos Amazônicos ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

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SomanluRevista de Estudos Amazônicos

ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

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Editora da Universidade Federal do AmazonasRua Coronel Sérgio Pessoa, 147

Praça dos Remédios, CentroCEP 69000-5030 Manaus – Amazonas – Brasil

Telefax: (0xx) 92 3305-5410 E-mail: [email protected]

Universidade Federal do AmazonasInstituto de Ciências Humanas e Letras

Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGSCAAv. Rodrigo Octavio Jordão Ramos, 3.000/Campus Universitário – ICHL

CEP 69077-000 Manaus – Amazonas – BrasilFone/Fax: 055 92 3647-4381/3647-4380

www.ufam.edu.br / www.ppgsca.ufam.edu.brE-mail: [email protected]

Copyright © 2009 Universidade Federal do Amazonas

SOMANLU – Revista de estudos amazônicos

Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas.(somanlu é um herói mítico da Amazônia criado pelo escritor Abguar Bastos)E-mail: [email protected]

ReitoR

Hidembergue Ordozgoith da Frota

PRó-ReitoR de Pesquisa e Pós-GRaduação

Prof. Dr. Abraham Moisés Cohen

diRetoR do instituto de ciências Humanas e letRas

Prof. Dr. Ricardo José Batista Nogueira

cooRdenação do PRoGRama de Pós-GRaduação sociedade e cultuRa na amazônia

Prof.ª Dr.ª Iraildes Caldas TorresProf. Dr. João Bosco Ladislau de AndradeProf. Dr. Antônio Carlos WitkoskiProf.ª Dr.ª Márcia Eliane Souza e MelloElias Brasilino de Sousa (Representante discente)

conselHo editoRial

Alfredo Wagner Berno de Almeida (Ufam-CNPq)Anamaria Fadul (USP)Boaventura de Souza Santos (Univ. Coimbra)Claude Imbert (Ècole Normale Supérieuse de Paris)Edgard de Assis Carvalho (PUC-SP)Edna Maria Ramos de Castro (UFPA)Flávio dos Santos Gomes (UFRJ)José Damião Rodrigues (Univ. Açores)José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS)Júlio Cezar Melatti (UnB)Keila Grimberg (UFF)Márcio Ferreira da Silva (USP)Márcio Souza (escritor)Milton Hatoum (escritor)

Neide Esterci (UFRJ)Octavio Ianni (in memoriam)Renato Athias (UFPE)

comissão editoRial

Prof. Dr. Narciso Júlio Freire Lobo (in memoriam)Prof.ª Dr.ª Selda Vale da CostaProf. Dr. Antônio Carlos Witkoski

diRetoRa da editoRa da univeRsidade FedeRal do amazonas

Prof.ª Dr.ª Iraildes Caldas Torres cooRdenadoRa de Revistas

Prof.ª Dayse Enne Botelho

atualização da caPa (detalHe/imaGem cedida PoR Rui macHado)

Lo-Ammi Santos

PRojeto GRáFico (miolo)Verônica Gomes

editoRação eletRônica

Lo-Ammi Santos

elaboRação e Revisão de abstRacts

Prof. Dr. Paulo Renan Gomes da Silva

Revisão de PoRtuGuês

Mateus Coimbra de Oliveira

Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Ano 1, n. 1 (2000 - ). --- Manaus: Edua, 2000 - v.: il.; 17 x 24 cm.

Semestral

Até 2002 publicação anual e vinculada ao PPG Natureza e Cultura na Amazônia.Interrompida em 2001.

ISSN 15118-4765

1. Cultura Amazônica 2. Amazônia – Sociologia 3. Amazônia – Antropologia I. Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia.

CDU 316.722(811)

A exatidão das informações, conceitos e opiniões são de exclusiva responsabilidade dos autores

Impressa em dezembro de 2009

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Apresentação

Artigos

Interações espaciais em uma cidade média no meio do mundo: o caso de Macapá (AP) Jadson Luís Rebelo Porto, Emmanuel Raimundo Costa Santos, Maria Luiza

de Castro, Carlos Rinaldo Nogueira Martins e Lúcia Aparecida Furlan

A imagem da cidade: cotidiano, sonhos e utopias dos moradores do Cacau Pirêra-Iranduba (AM)Hamida Pereira e Iraildes Caldas Torres

“Metamorfose ambulante”: uma viagem de ônibus como rito de passagem Rodrigo Pollari Rodrigues e Sérgio Ivan Gil Braga

O gasoduto Coari-Manaus e as perspectivas de desenvolvimento para o interior do Amazonas: algumas recomendaçõesIsaque dos Santos Sousa

A legislação brasileira na tutela dos conhecimentos tradicionais de popula-ções de Benjamin Constant (AM)Carolini Guedes Barros da Silveira

Nos caminhos da linguagem: a profícua relação entre história e literatura Arcângelo da Silva Ferreira

Sumário

5

9

25

43

75

95

119

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“Os sapatinhos vermelhos” em Hans Andersen e em Caio F. AbreuDaniele de Oliveira Dias e Fernanda de Sousa Silva

A Família Lopes e a Inquisição no Brasil Colonial QuinhentistaEmãnuel Luiz Souza e Silva

resenha

Terras, Florestas e Águas de Trabalho. A tríade da vida camponesa na várzea amazônica Aldenor da Silva Ferreir

Entrevista

“O Brasil não conhece o Brasil, o Brasil não conhece a Amazônia”Edna Castro e Wilson Nogueira

Documento

O Jornalismo de outrora no Amazonas – 1939: Um ensaio de curiosi-dades.Raul de Azevedo

Defesas

Projetos de pesquisa

Números editados

Normas para apresentação de trabalho

139

153

175

185

195

211

215

223

237

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APrESENTAÇÃo

Em março de 2008, os alunos da primeira turma de doutorandos do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia iniciaram suas atividades acadêmicas. O memorável evento coincide com a deflagração de algumas mudanças na política editorial da SOMANLU – Revista de Estudos Amazônicos. Após a renovação de seu Conselho Editorial, a revista se abre para outros Programas de Pós-Graduação. A apresentação gráfica permanece a mesma dos últimos números, mas, além de trabalhos focados em temas amazô-nicos, serão publicados artigos, resenhas e entrevistas desenvolvidos em torno de questões de interesse geral. Com isso, estamos procurando intensificar o aspecto multidisciplinar da publicação. O que não muda, também, é o objetivo de oferecer ao leitor o acesso a trabalhos acadêmicos originais, resultantes de investigações rigorosas e problematizadoras do mundo atual.

Este número traz nove artigos. Três deles são dedicados ao estudo da imagem e da paisagem urbana. Cenas de uma urbanização que, na Amazônia, se vive, se faz e se modifica pelo avanço da modernidade. Rasgando a floresta e atravessando aldeias, vilas e cidades, o gasoduto Coari-Manaus, novo ícone de nosso tempo, suscita, por onde passa, inquietações sobre o impacto ambiental, a geração de energia, a geração de empregos, a violência, enfim: as perdas e os ganhos de sua inevitável presença.

Ao lado das discussões em torno da urbanização e do desenvolvimento, trazemos um relevante artigo sobre a legislação que pode assegurar aos povos indígenas o direito sobre os conhecimentos tradicionais de sua cultura. Em se-guida, apresentamos um artigo dedicado ao diálogo entre a história e a literatura. A linguagem também se encontra como questão privilegiada nos dois trabalhos que fecham a sessão de artigos. De ensinamento moral e religioso, o conto infantil se transforma, no curso da história, em narrativa de uma experiência de liberdade. A experiência de uma família de cristãos novos nos dá a pensar o que podem nos dizer sobre a genealogia da moral, na sociedade brasileira, alguns documentos que, nos arquivos do Estado e da Igreja, ainda aguardam

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a quebra do silêncio que se faz em torno das origens de nossos preconceitos. Na sessão seguinte, apresentamos a entrevista de Edna Castro ao

sociólogo e doutorando do PPGSCA, Wilson Nogueira. Discute-se, aí, o grande número de problemas, nos âmbitos das políticas públicas e de ciência e tecnologia, gerados pela falta de conhecimentos sobre a Amazônia. Globalizada e pós-moderna, a região ainda se ressente das seqüelas causadas pelas interpretações colonialistas que continuam a ter força mesmo entre intelectuais. Como romper essa contradição? Algumas pistas dessa resposta foram lançadas na resenha do livro de Antônio Carlos Witkoski, publicada logo após a entrevista da eminente socióloga.

Na sessão de documentos, prestamos homenagem a Raul de Azevedo, jornalista, escritor e político maranhense que viveu e atuou no Amazonas no final do século XIX e na primeira metade do século XX. Em artigo datado de 1939, o autor, um dos fundadores da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, descreve o que foi o jornalismo em nosso Estado no período áureo da borracha. Recuperado pelo Professor Narciso Júlio Lobo Freire, o texto nos mostra que, embora atingida pela moda das poliantéias que assolou o país, a imprensa amazonense daquela época foi palco de embates políticos e intelectuais decisivos para a determinação dos rumos de nossa modernidade.

Todas as edições da revistas estão sendo disponibilizadas gratuitamente no sítio eletrônico do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura da Universidade Federal do Amazonas.

Os Editores

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Artigos

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interações espaciais em uma cidade média no meio do mundo: o caso de macapá (AP)

Jadson Luís Rebelo Porto* Emmanuel Raimundo Costa Santo**

Maria Luiza de Castro***Carlos Rinaldo Nogueira Martins****

Lúcia Aparecida Furlan*****

resumo

As discussões sobre cidade média no cenário amazônico ainda são reduzidas. Os primeiros debates sobre cidades médias no Brasil (década de 1970) adotaram como elemento definidor de classificação do porte médio apenas o parâmetro demográfico. Contudo, novos estudos buscam identificar o papel funcional dessas cidades na rede urbana. Desse modo, a cidade assumiu o papel de ser elemento de mediação entre as políticas de desenvolvimento pensadas para a região e a re-socialização da população migrante. O Estado do Amapá encontra-se na fronteira setentrional amazônica e possui 16 municípios, sendo que mais de 80% da população estadual encontra-se nas cidades de Macapá e Santana. Este trabalho objetiva analisar dentre os diversos aspectos das dinâmicas urbanas amapaenses, aquelas que são sugeridas pelas políticas públicas de ordenamento territorial e as transformações socioespaciais urbanas de Macapá, a partir dos seguintes enfoques: o geoeconômico, ao analisar os setores econômicos atuantes

* Geógrafo. Doutor em Economia. Docente do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNIFAP. e-mail: [email protected]

** Doutorando em Geografia – UNESP – Presidente Prudente. Professor de Geografia Humana da UNIFAP.*** Arquiteta. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido. UFPA /

Núcleo de Altos Estudos Amazônicos. Professora da Universidade Federal do Amapá. e-mail: [email protected]**** Enfermeiro. Mestre em Desenvolvimento Regional pela UNIFAP. Professor de Administração Aplicada à

Enfermagem da UNIFAP. e-mail: [email protected].***** Economista Doméstica. Discente do Curso de Especialização em Gestão Urbana da UNIFAP. e-mail:

[email protected]

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no seu espaço urbano e seus reflexos na sua organização espacial dentro do Estado do Amapá; o geopolítico, ao estudar a importância da cidade na defesa da fronteira amazônica; e o sociogeográfico, ao se analisar as transformações espaciais e os seus reflexos nas estruturas sociais amapaenses. Do ponto de vista regional, o debate sobre as cidades médias guarda especificidades que precisam ser entendidas e explicadas, a partir de questões como: Quais foram os impactos dos ajustes espaciais em Macapá à medida que próteses e sistemas de engenharias foram implantados em seu território? Quais fatores foram definidores para que se constituísse Macapá como cidade média?

Palavras-chave: Amapá. Cidades Médias. Faixa de Fronteira.

Abstract

The discussions on the subject of medium cities into the Amazonian scene are still limited. In Brazil, the first debates on medium cities (decade of 1970) have adopted the demographic parameter alone, as a defining element for the classification of a medium size. However, new studies have sought to identify the functional role of these cities in the urban network. Thus, the city has acquired a new role as a mediating element between the development policies generated for the region and the re-socialization of the migrant population. The State of Amapá is in the northern Amazon region border and has 16 municipalities, with over 80% of its population living in the cities of Macapá and Santana. Departing from different aspects of the urban dynamics in the state, this work aims at analyzing those suggested by the public policies of land use, as well as the urban socio-spatial transformations of Macapá, using the following approaches: the geo-economic one, when looking over the economic sectors active in the urban space and their reflexes in the spatial organization within the State of Amapá; the geopolitical one, when studying the importance of the city in protecting the Amazon frontier; and the socio-geographic one, when analyzing the spatial

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changes and their repercussions on social structures of Amapá. From the regional point of view, the debate on the medium cities holds specificities that must be understood and explained, departing from issues such as: What were the impacts of the space adjustments in Macapá as systems engineering and prostheses were implanted in its territory? Which factors were defining for the constitution of Macapá as a medium city?

Keywords: Amapá. Medium Cities. Regional Border.

introdução

O tema cidade média necessita de maiores discussões no cenário brasileiro; dos reduzidos estudos, a maioria das análises são reflexões do eixo centro sul, cujas características do processo de urbanização são completamente distintas do cenário amazônico, tais como: o controle da terra, a política de migração induzida e financiada pelo Estado e o incentivo a grandes empreendimentos.

Poucos trabalhos foram tecidos sobre o tema cidade média na Amazônia. No Estado do Amapá há duas cidades que poderiam ser pensadas como cidades médias de acordo com as suas características demográficas: Macapá (380 mil habitantes) a capital do Estado; e Santana (101 mil habitantes, segundo a contagem de 2006, embora a contagem de 2007 indique 92 mil), distantes apenas 16 km uma da outra. Este Estado encontra-se na fronteira setentrional amazônica e mais de 70% de seu espaço possui algum tipo de restrição de uso devido à implantação de Unidades de Conservação e Reservas Indígenas. Possui 16 municípios, sendo que mais de 80% da população estadual encontra-se naquelas duas cidades.

Este trabalho objetiva analisar, dentre os diversos aspectos das dinâmicas urbanas amapaenses, aquelas que são sugeridas pelas políticas públicas de ordenamento territorial e as transformações socioespaciais urbanas de Macapá, a partir dos seguintes enfoques: o geoeconômico, ao analisar os setores econômicos

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atuantes no seu espaço urbano e seus reflexos na sua organização espacial dentro do Estado do Amapá; o geopolítico, ao estudar a importância da cidade na defesa da fronteira amazônica; e o sociogeográfico, ao se analisar as transformações espaciais e os seus reflexos nas estruturas sociais amapaenses.

Do ponto de vista regional, o debate sobre as cidades médias guarda especificidades que precisam ser entendidas e explicadas, a partir de questões como: Quais foram os impactos dos ajustes espaciais em Macapá à medida que próteses e sistemas de engenharias foram implantados em seu território? Quais fatores foram definidores para que se constituísse Macapá como cidade média?

Cidades médias: reflexões e angústias

Vários autores têm discutido o tema cidade média no cenário brasileiro (SPOSITO, 2001; PONTES, 2001; ANDRADE; SERRA, 2001; AMORIM FILHO; RIGOTTI, 2002; BESSA, 2005 a e b; SPOSITO et al. 2006). Contudo, no que tange este debate para a escala amazônica, reduzidas são as obras divulgadas, dentre elas se destaca Pereira (2004). Os primeiros debates sobre cidades médias no Brasil (década de 1970) adotaram como elemento definidor de classificação do porte médio apenas o parâmetro demográfico. Contudo, novos estudos buscam identificar o papel funcional dessas cidades na rede urbana, tais como: distanciamento de áreas metropolitanas, situação geográfica favorável, capacidade de retenção da população migrante e estrutura para ofertar bens e serviços.

Ao observar tais considerações para o contexto amazônico, outros fatores também colaboraram para o desenvolvimento da sua fronteira urbana, como o controle da terra, a política de migração induzida e financiada pelo Estado e o incentivo a grandes empreendimentos. Desse modo, a cidade assumiu o papel de ser elemento de mediação entre as políticas de desenvolvimento pensadas para

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a região e a ressocialização da população migrante – a força de trabalho móvel, característica desse tipo de fronteira (BECKER, 1987).

Por outro lado, estudos mais recentes indicam novas tendências, não presentes nas décadas anteriores (PEREIRA, 2004). De um lado, o reforço da metrópole dispersa ou “metropolização”, como conceitua Trindade Jr (1998); de outro lado, a proliferação de pequenas cidades, a ocorrência de company towns (OLIVEIRA, 2000; TRINDADE JR., 2002) e o crescimento dinâmico de novos núcleos urbanos – as cidades médias.

Sobre cidade média na Amazônia, destaca as reflexões feitas por Pereira (2004), quando analisou o caso de Santarém (PA). Para este trabalho, reflexões semelhantes serão avaliadas para o caso amapaense. Contudo, diferentemente do caso santareno, no Estado do Amapá há duas cidades que poderiam ser pensadas como cidades médias de acordo com as suas características demográficas: Macapá e Santana.

Vários fatores devem ser levados em consideração ao se pensar a cidade média, tais como: a função da cidade, a interação espacial, a dimensão demográfica, a qualidade das ofertas de serviços, dentre outros.

Para o caso amapaense, torna-se mais complexa a reflexão, pois a sua conectividade com as outras regiões brasileiras não se efetiva via terrestre, mas sim via fluvial ou aérea. Com isso, a importância de Macapá e Santana para o seu contexto sub-regional, principalmente para o norte da América do Sul é imenso. O porto de Santana, por exemplo, é capaz de receber embarcações de calado acima de 11,5 m, semelhante aos principais portos brasileiros e superior aos de Belém e da Guiana Francesa (CASTRO; PORTO, 2007).

Com isso, a interação espacial do espaço amapaense e o do norte da América do Sul a partir de Macapá/Santana significa ampliar as dinâmicas territoriais que esses dois municípios possuem. Pelo Município de Santana se tem a interação em volume mediante a sua recepção de produtos nas escalas regional e global a

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partir de seu porto; Macapá, por sua vez, ocorre pela velocidade (aeroporto) e pela distribuição (comércio atacadista).

Neste sentido, Macapá e Santana se configuram como cidades médias, não somente pelo contexto demográfico (embora o IBGE registrasse em Santana 92 mil habitantes), mas também pela funcionalidade e pela interação que esses dois municípios possuem para esta parcela da margem esquerda da foz do rio Amazonas.

Formação do espaço amapaense

O Estado do Amapá é um dos entes federativos autônomos mais recentes do Brasil (juntamente com Roraima e Tocantins, transformados em estados pela Constituição Brasileira de 1988) e apresenta-se em um processo de construção de sua organização e ordenamento espacial. Sua origem como integrante da federação brasileira é decorrente de sua criação como Território Federal (1943). A ocupação de seu espaço no século XX foi estimulada pela exploração de suas matérias primas (minérios, madeira) de grandes projetos (ICOMI, na exploração do manganês; Complexo Industrial do Jari, na fabricação de celulose e exploração do caulim; AMCEL, na silvicultura de pinhos e eucaliptos para celulose) e apoiadas por políticas públicas do Governo Federal (PORTO, 2003).

Desmembrado do vizinho Estado do Pará, no século XX aconteceram várias reestruturações territoriais, refletindo em suas redelimitações municipais e redefinições territoriais do/no espaço amapaense, as quais foram resultantes de preocupações diversas tais como: geopolítica, devido à fronteira com a Guiana Francesa (Amapá e Oiapoque); atração de companhias de mineração, grandes fazendas de gado e silvicultura (Santana, Laranjal do Jari, Pedra Branca do Amapari, Serra do Navio, Porto Grande e Vitória do Jari); pela exploração aurífera (Calçoene); pela construção da Hidrelétrica de Coaracy Nunes (Ferreira

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Gomes) e de reivindicações de poder local, o que resultou no processo de municipalização do território (Tartarugalzinho, Cutias, Itaubal, e Pracuúba).

Segundo Porto (2003, p. 109-178), três períodos econômicos indicam as ações dos setores privados e públicos na aplicação de investimentos, e que repercutiram no aumento do movimento migratório, na sua urbanização e na sua reorganização espacial. Esses períodos são: gênese, estruturação produtiva e organização espacial (1943-1974); planejamento estatal e diversificação produtiva (1975-1987); estadualização e sustentabilidade econômica (após 1988).

No primeiro período ocorre a formação e estruturação das atividades econômicas e a organização espacial amapaense. Sob a propaganda de defesa nacional, foi ocupada a área lindeira com a criação de uma nova Unidade Federativa sui generis denominada de Território Federal. Neste período foram criadas diretrizes políticas e administrativas desses entes federativos, implantadas infra-estruturas e estimuladas atividades econômicas pelo Governo Federal, principalmente no setor do extrativismo mineral.

No segundo, tentou-se incluir os Territórios Federais na fase do planejamento regional, mas o que se viu na prática foi uma série de intenções elaboradas pelos seus dirigentes, a fim de responder às imposições do Decreto-Lei n. 411/69 e garantir o dinamismo político, jurídico e econômico próprios, apesar de continuarem vinculados às decisões do Governo Central, como se fossem departamentos do Ministério do Interior (PORTO, 2003; PORTO; BIANCHETTI, 2005).

Quanto ao terceiro, as transformações pelas quais o Amapá vem passando desde a Constituição de 1988 abrangem os âmbitos político, econômico e político-administrativo no Amapá (PORTO, 2003). Com a estadualização, as expectativas criadas pelas novas relações deste novo Estado com o federalismo brasileiro estimularam reflexões sobre sua nova realidade em um período de crise federativa, buscando ainda alternativas econômicas para seu sustento, preocupando-se com a proteção ao seu patrimônio natural e com sua comunidade autóctone. Diversos

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fatores devem ser considerados para se analisar as dinâmicas que influenciaram na organização do espaço amapaense, dentre os quais se destacam: a conectividade com as escalas regional e global (LIMA; PORTO, 2007); a influência institucional governamental (PORTO, 2003; 2005), a instalação de unidades de conservação (BRITO, 2003; PORTO, 2006), a questão fundiária (LIMA, 2004); a reinvenção do uso do território, com a retomada do potencial mineral com a inserção de novas tecnologias em áreas já exploradas; dentre outros.

O primeiro foi estimulado pela construção de vias de comunicação (ferrovia e rodovias) ligando Macapá/Santana ao interior do Estado, bem como a instalação de uma área portuária que conectou este espaço com o cenário global, inserindo o Amapá no circuito superior da economia exposto por Santos (2003; 2004).

O segundo é demonstrado pela construção do espaço amapaense, cuja magnitude do Estado (CHELALA, 2007) é expressa nas relações econômicas internas amapaenses e nas constantes redefinições políticas que as propostas de gestão do seu espaço, seja com Território Federal, seja como Estado. Porto (2003) expõe que as principais atividades econômicas executadas no espaço amapaense foram transformadas em diplomas legais (Decretos ou Decretos-lei), cujo final do texto orienta para o “cumpra-se”. Ou seja, houve uma decretização do desenvolvimento e não a sua efetivação.

O terceiro é um fator limitante de uso do espaço, pois tira as terras do mercado, mas não seus recursos naturais. Como fator de restrição de uso, não resta alternativa à população que não seja a ocupação da periferia urbana de Macapá e/ou Santana, onde se localizam os principais serviços urbanos do Estado.

O quarto é reflexo de sua origem como Território Federal. Enquanto terras federais, não há como geri-las nas escalas estadual e municipal. Considerando que mais de 80% das terras amapaenses são federais (sob a jurisdição do INCRA,

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IBAMA, FUNAI), a regularização fundiária é inviável, causando, com isso, ocupações irregulares em seu espaço.

O quinto refere-se à retomada de espaços que haviam sido desconectados, como os casos dos municípios de Serra do Navio e Pedra Branca do Amapari1.

A instalação de próteses e sistemas de engenharia no espaço e a formação

urbana amapaense

A instalação de próteses2 no espaço amapaense vem desde o período colonial. A própria colonização deste espaço impôs novos ritmos às dinâmicas espaciais pré-existentes e aos seus moradores, seja pelo modelo de exploração dos produtos naturais amazônicos, pela sua ocupação e modelos de defesa (construção de fortes), pelo modelo administrativo de seu território (povoados, vilas, cidades, Capitanias, Províncias, Estados, Territórios Federais), seja pelo domínio territorial com demarcações fronteiriças acordadas em tratados internacionais em processos de conquista e compras de terras de países vizinhos (Acre).

Porto et al. (2007) identificam alguns modelos de próteses para o caso amapaense, tais como: próteses jurídicas, institucionais, administrativas e tecnológicas. Essas próteses só podem ser entendidas mediante a sua inserção na dinâmica de ajustes espaciais que, no caso amapaense, foram implantados e estimulados pelo uso de redes e a sua mobilidade no espaço amapaense, os quais foram estimulados pela instalação de sistemas de engenharia e redes de próteses tecnológicas neste espaço.

Segundo esses autores (op. cit., p. 11) “essa dinâmica está diretamente ligada aos movimentos de criação destruidora que se manifestaram pela atuação desses fatores e suas influências sobre a expansão e mobilidade informacional no espaço amapaense”. Como exemplos desse sistema de engenharia têm-se: o setor energético, estradas, ferrovias, hidrelétrica, porto. Com a criação da rede de

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próteses, tornou-se possível a inclusão de sistemas de engenharia, cujo processo de construção estimulou não somente o processo de migração, mas também a diversificação das atividades produtivas, principalmente na exploração mineral, com elevada participação do capital internacional.

Com a instalação dessas próteses, ajustes deveriam ser realizados para o melhor funcionamento e atuação daquelas. Por “ajustes espaciais” entendem-se as adaptações que são efetivadas no espaço, visando à garantia da instalação, existência, fluidez, manifestação e reprodução do capital. Ao analisar o espaço amapaense sob os enfoques de ajustes espaciais, magnitude do estado e o uso do território, Porto et al. (2007) sugerem que foram construídos condicionantes espaciais neste ente federativo. As condições criadas/construídas garantiram a criação, o planejamento, a organização e a instalação de mecanismos proporcionadores da (des)construção espacial, a fim de atender aos interesses e objetivos externos ao ritmo e vivência locais.

Com a configuração das redes informacionais no espaço amapaense, ocasionadas pela ação dos fixos e fluxos, este espaço passa por uma nova configuração territorial, seja esta ocasionada pelo ganho de próteses tecnológicas ou pelas construções de redes de circulação e comunicação os quais são modeladores do território (RAFFESTIN, 1981, p. 204). Estes são inseparáveis dos modos de produção e que asseguram a constante reformatação do espaço urbano.

Neste sentido, a nova configuração territorial do espaço amapaense, alavancado pela criação/construção de condições (PORTO, 2007), pela ação dos ajustes espaciais (COUTO et al., 2006), e pela mobilidade antrópica, torna necessária a ampliação e revisão da principal área transformada: a urbana. Seja pela acessibilidade dos serviços prestados pelos sistemas de engenharias instalados, seja pela velocidade que as transformações espaciais exercem sobre o social. Com isso, há a possibilidade de desenvolvimento, valorização e produção de novos territórios.

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Jadson Luís Rebelo Porto / Emmanuel Raimundo Costa Santos Maria Luiza de Castro / Carlos Rinaldo Nogueira Martins / Lúcia Aparecida Furlan

Considerações finais

A partir das considerações acima descritas e ao resgatar as questões orientadoras deste trabalho, quanto aos fatores definidores para que se constituísse Macapá como cidade média, foram percebidas as seguintes observações:

1) As transformações espaciais existentes no Amapá foram concentradas na sua região central (Macapá, Santana, Ferreira Gomes, Porto Grande, Pedra Branca do Amapari), sendo que, em Macapá e Santana, a dinâmica é mais intensa devido à posição de centro administrativo e econômico do Amapá. A concentração urbana amapaense nos municípios de Macapá e Santana foi decorrente dos seguintes fatores: Os principais processos produtivos instalados no espaço amapaense foram instalados nesses municípios; em Macapá concentraram-se as principais relações políticas, pois nesta cidade encontra-se toda a máquina administrativa estadual. Com isso, Macapá não é somente centro administrativo estadual, mas também centro econômico;

2) No aspecto demográfico, Macapá, com mais de 350 mil habitantes, atende às classificações do IBGE (entre 100 mil e 500 mil habitantes);

3) A partir do enfoque das interações espaciais não se pode pensar Macapá isoladamente de Santana, pois, a interação do espaço amapaense nos contextos regional e global significa ampliar as dinâmicas territoriais que esses dois municípios possuem. Pelo Município de Santana se tem a interação em volume mediante a sua recepção de produtos nas escalas regional e global a partir de seu porto; Macapá, por sua vez, ocorre pela velocidade (aeroporto) e pela distribuição (comércio atacadista).

No que se refere à manifestação dos impactos dos ajustes espaciais em Macapá à medida que próteses e sistemas de engenharias foram implantados em seu território, vislumbra-se o seguinte:

1) A ocupação deste espaço impôs novos ritmos às dinâmicas espaciais preexistentes e aos seus moradores, seja pelo modelo de exploração dos produtos

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naturais amazônicos, pela sua ocupação e modelos de defesa, pelo modelo administrativo de seu território, seja pelo domínio territorial com demarcações fronteiriças acordadas em tratados internacionais em processos de conquista e compras de terras de países vizinhos;

2) A implantação de sistemas de engenharias criaram também movimentos de criação destruidora que se manifestaram pela atuação desses fatores e suas influências sobre a expansão e mobilidade informacional no espaço amapaense;

3) Com a instalação dessas próteses, ajustes deveriam ser realizados para o melhor funcionamento e atuação daquelas que garantiram a criação, o planejamento, a organização e a instalação de mecanismos proporcionadores da (des)construção espacial, a fim de atender aos interesses e objetivos externos ao ritmo e vivência locais.

Notas1 Serra do Navio nasceu como um canteiro de obras, crescendo para alojamento de funcionários da Indústria e Comércio de Minérios S/A (ICOMI), até a sua consolidação como cidade-empresa (Company Town), e sua municipalização (1992) ocorreu faltando 10 anos para a conclusão do contrato da ICOMI com o Amapá. Localiza-se a 190 km a noroeste da capital amapaense; possui atualmente elevada dependência do Governo Estadual quanto ao Fundo de Participação dos Municípios, pois o seu principal setor econômico, a mineração industrial, concluiu suas atividades, encerrando-as em 1997. O Município de Pedra Branca do Amapari é vizinho à Serra do Navio e possui um potencial minerálico que atraiu os investimentos das empresas de mineração Anglo-América (2004) e da MMX (2005). Para as explorações do ouro e manganês por essas empresas, respectivamente, aproveitam toda a infra-estrutura instalada pela ICOMI, que exerceu suas atividades no período de 1957-1997.2 Segundo Porto et al. (2007), próteses são “atos elaborados externamente e implantados localmente os quais impõem novos ritmos ao meio primitivo. Essas

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próteses podem ser de vários modelos e que transformam e reconfiguram um espaço já existente”.

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A imagem da cidade: cotidiano, sonhos e utopias dos

moradores do Cacau Pirêra-iranduba (Am)1

Hamida Pereira2

Iraildes Caldas Torres

resumo

Este artigo apresenta algumas imagens positivas e negativas que os moradores do Cacau Pirêra, distrito do município do Iranduba, têm da cidade de Manaus, com destaque para o modo pelo qual a cidade vem influenciando algumas mudanças nos modos de vida dos moradores do Cacau Pirêra.

Palavras-chave: Cidade. Imaginário. Cacau Pirêra/Iranduba (AM).

Abstract

This article presents some positive and negative images on the city of Manaus, that the residents of Cacau Pirêra, district of the city of Iranduba, have on the City of Manaus, with special reference to the way the city has been influencing some changes in the lifestyles of residents of Cacau Pirêra.

Keywords: City. Way of thinking. Cacau Pirêra/Iranduba (AM).

1 Este texto foi produzido a partir da coleta de dados que subsidiou a dissertação intitulada Fronteiras da Vida: o tradicional e o moderno no Cacau Pirêra, defendida em 2006 por Hamida Pereira no Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

2 Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela UFAM, especialista em Fundamentos Metodológicos da Pesquisa pela UFAM e graduada em Serviço Social pela mesma universidade. E-mail: [email protected]

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A vida na Amazônia tem particularidades que jamais podem ser compreendidas apenas sob a lógica moderna de pensamento. O Cacau Pirêra é uma pequena amostra dessa imensa e complexa realidade amazônica. Povo guerreiro que não desanima, diante das dificuldades encontradas no caminho, os moradores do Cacau Pirêra se distinguem por uma esperança desmedida em dias melhores, mesmo quando o cotidiano parece duro e perverso. Os sonhos e as utopias dos moradores alimentam um futuro repleto de coisas boas para a vida individual e coletiva e para o distrito enquanto espaço geográfico, político e econômico.

O Cacau Pirêra é um distrito do município de Iranduba, que se distancia de Manaus por aproximadamente 30 minutos de travessia de balsa pelas águas do rio Negro. O distrito é um local de fluxo contínuo de cargas e passageiros, que vêm para a capital do Amazonas e que vão para os municípios de Iranduba, Novo Airão, Manacapuru etc.

Não só pela posição geográfica, mas também pela dinâmica da vida e configuração socioespacial, pode-se afirmar que o Cacau Pirêra encontra-se numa zona fronteiriça. Localizado nas proximidades da cidade de Manaus, o Cacau Pirêra não deve ser compreendido apenas como uma fronteira geográfica situada entre o rural e o urbano. Deve ser compreendido, sobretudo, como uma fronteira cultural, onde hábitos tradicionais e modernos se entrelaçam e se espraiam na vida e no imaginário dos seus moradores.

Desde o surgimento do Cacau Pirêra enquanto colônia agrícola, ocorrido em meados do século XX1, o estilo de vida dos moradores sofre os impactos da urbanidade. O moderno e o urbano redefinem as formas de pensar, de agir, de falar, de construir as casas, de trabalhar, as crenças entre outros hábitos e costumes, dando outros significados ao cotidiano e aos sonhos dos moradores.

As atividades de trabalho e de subsistência, como a agricultura e a pesca, vêm deixando de ocupar lugar de destaque no mundo do trabalho da localidade, abrindo espaço para outras ocupações que anteriormente eram mais comuns

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Hamida Pereira

no espaço urbano que no rural. No distrito, o trabalho assalariado nas olarias, nas plantações e nas casas de família, tornou-se a principal alternativa para aqueles que pouco a pouco têm parado de praticar a agricultura e a pesca. Ou-tra forma de trabalho muito vista na localidade é a venda de frutas, verduras e peixes na feira e no comércio local.

A proximidade do distrito Cacau Pirêra em relação à cidade de Manaus é um fator importante para análise das transformações em curso na localidade. O distrito recebe intensamente os impactos do ritmo frenético da cidade, o que influencia não só as práticas de organização da vida social e o surgimento de um estilo de vida diferenciado, mas também modifica o imaginário dos residentes locais.

A cidade de Manaus pode ser avistada do porto do Cacau Pirêra. A cidade ocupa lugar de destaque no imaginário social dos moradores. Imaginário social, empregado aqui, nos termos de Le Goff (1994), como algo que vai além da simples representação mental, envolvendo a imagem, o símbolo, o significado e a história. Segundo este autor, o imaginário é coletivo e histórico e revela, com minúcias, os acontecimentos do presente e do passado e as perspectivas para o futuro.

O imaginário, enquanto produção para além das representações mentais, envolve a arte, a literatura, a fantasia, o simbólico, o ideológico. Carvalho (1999) considera que a imaginação não é fixa e permite o sonho e o devaneio, ultrapassando a realidade. No Cacau Pirêra, a cidade é símbolo do progresso e do desenvolvimento, é vista como o lugar do sucesso e prosperidade onde muitas pessoas encontram emprego, educação, saúde e habitação de qualidade superior às existentes no distrito. A cidade suscita um conjunto de expectativas aos moradores desta localidade.

Durante a pesquisa de campo, na qual foi realizado levantamento de dados junto aos moradores através de entrevistas com aqueles mais antigos, de questionários com os residentes dos flutuantes e de um diário de campo utilizado

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para registrar conversas informais e acontecimentos relevantes ao objetivo da pesquisa, foi possível perceber que Manaus ocupa um lugar de referência no imaginário dos habitantes locais. Maria Madalena, uma das moradoras mais antigas entrevistadas durante a pesquisa, afirmou que “Manaus tem várias facilidades, é mais fácil para arrumar emprego e nas áreas da saúde, educação, esporte e lazer, existe mais recursos disponíveis para a população” (MARIA MADALENA, pesquisa de campo/entrevista, 2005).

Para muitos moradores, principalmente para os mais jovens e aqueles que têm menos tempo de residência no local, o fato de morarem próximo à capital do Estado do Amazonas e poderem se deslocar para a cidade sem grandes dificuldades é umas das principais vantagens de se viver no Cacau Pirêra. Isto pôde ser constatado durante a aplicação dos questionários, os quais tiveram como público-alvo os moradores dos flutuantes, que em sua maioria são migrantes recentes e que estão na localidade há cerca de 30 anos. é importante registrar que foram investigados 10% do universo de 108 flutuantes, dos quais todos afirmaram que vêm à cidade regularmente, ou melhor, pelo menos duas vezes por semana, seja para fazer compras, visitar parentes ou trabalhar.

A cidade de Manaus faz parte da vida dos moradores do Cacau Pirêra. Manaus é descrita como extensão territorial do distrito, sendo mais constantes as idas à cidade do que à sede do município de Iranduba. Observe no discurso de um dos moradores que a referência de cidade é feita a Manaus e não ao Iranduba: “eu me sinto mais perto de Manaus é só pegar a balsa que você já está aqui em Manaus. No Iranduba, você pega o ônibus e está lá também, mas eu acho melhor vir para Manaus, eu acho mais próximo” (MARIA ESPERANçA, pesquisa de campo/entrevista, 2005).

Os moradores dos flutuantes, quando questionados se se sentiam mais próximos de Manaus ou do Iranduba, 60% informaram que se sentem mais próximos da cidade de Manaus que do município de Iranduba. Merece destaque o comentário da moradora Maria Ednelza que considera que “Manaus é mais

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perto e mais barato para chegar lá, porque a balsa é de graça e o ônibus para o Iranduba é pago e caro” (pesquisa de campo, 2005)

A proximidade da capital produz no imaginário social de alguns moradores esse sentimento de pertencimento ao meio urbano, o que afeta não só as ações cotidianas como também tudo aquilo que compõe o estilo de vida e o imaginário. Manaus é exposta pelos moradores como o local mais próximo do distrito e onde se podem encontrar os recursos que faltam no local de moradia. O deslocamento para a capital é visto como solução para muitos problemas vivenciados no distrito, o que nem sempre corresponde à realidade uma vez que em Manaus também há desemprego e problemas nas áreas da saúde, educação etc.

Como foi visto na fala de alguns moradores do Cacau Pirêra, a cidade constitui-se no espaço mais facilitado para ter acesso aos bens e serviços públicos e privados. é na cidade que a vida se realiza plenamente. A imagem da cidade repousa sobre o belo, onde impera a felicidade e a realização. é o que revela uma moradora do distrito: “a vida na cidade é melhor por causa da beleza e da facilidade de se conseguir ter as coisas” (MARIA LUCIELE, Pesquisa de campo, 2005).

A cidade, na fala destes moradores, assume uma referência positiva, na medida em que é descrita como possuidora de uma infra-estrutura que é deficitária no distrito. Nessa mesma linha de pensamento, outra moradora considera que “a vida na cidade é melhor do que no interior, pois tem hospital e água encanada. Na cidade é também mais fácil fazer compras porque é mais barato” (FRANCISCA DOURADO, pesquisa de campo, 2005).

A imagem da cidade de Manaus na fala dos moradores se assemelha a uma das cidades imaginárias descritas por Marco Pólo, nas viagens diplomáticas feitas a mando do imperador Kublai Kan. Na obra As cidades invisíveis, Ítalo Calvino descreve uma variedade de cidades distintas, umas perfeitas, outras nem tanto. A realidade de cada cidade é repleta de mistérios e descobertas que podem se

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revelar ou não para os sujeitos de fora, ou melhor, para os estrangeiros que visitam cada uma das cidades.

A imagem que se faz de um lugar nem sempre corresponde à realidade existente nele; muitas vezes essa realidade depende de quem a vê: “a cidade de quem passa sem entrar é uma; outra para quem é aprisionado e não sai mais dali” (CALVINO, 1990, p.115). Para Calvino (1990), as cidades invisíveis são criações que agregam o real e o irreal, podendo conter ilusões e fantasias. A percepção que os moradores investigados têm da cidade de Manaus salienta as facilidades do comércio, a boa infra-estrutura, entre outros equipamentos sociais, ou seja, aquilo que não existe ou que funciona mais precariamente no Distrito Cacau Pirêra.

Note-se que a vida no espaço fronteiriço também é fortemente orientada pelos padrões da urbanidade; o moderno representa o novo, ao passo que o tradicional é visto como símbolo do atraso. O estilo de vida autóctone vem tornando-se sinônimo de atraso cultural. As tradições soam como algo ultrapassado, provinciano, que “puxa” para trás. é por esse motivo que devemos ter cautela no emprego do termo tradicional, para não ser compreendido como sinônimo de atrasado. Lefebvre (2001, p. 69) diz que “a vida urbana penetra na vida camponesa despojando-a de elementos tradicionais”. Isto é, a urbanidade incide forças violentas sobre a tradição, fazendo com que esta última se mescle com costumes modernos.

Para Lefebvre (1991), o cotidiano moderno sai do plano espontâneo para o semiplanejado, sob forte influência do modo como é organizada a economia capitalista e a sociedade de consumo no contexto urbano. As mudanças ocorridas no Cacau Pirêra se dão em diversas dimensões. Um dos moradores mais antigos, que foi entrevistado durante a pesquisa de campo, relembra com saudades os tempos passados: “os vizinhos se davam bem, viviam em harmonia. Naquela época era outro modo de viver. Às vezes tinha festa, tinha um barracão que a gente fazia festa uma vez por mês. Vinha a orquestra de Manaus e fazia a festa

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Hamida Pereira

aí. Ah, tinha também um time de futebol” (ANTONINO MIGUEL, pesquisa de campo/entrevista, 2005). Antonino Miguel é um agricultor de 79 anos, que se radicou no Cacau Pirêra desde muito jovem, ainda na época da colônia agrícola, casou-se com uma migrante japonesa e constituiu família na localidade.

A vida caminhava em outra direção, as relações de amizade e de solidariedade eram mais fortes e a confraternização dessas pessoas era freqüente e menos impessoal do que nos tempos atuais. O cotidiano era mais compartilhado entre os moradores do Cacau Pirêra. Havia mais proximidade, companheirismo e cumplicidade entre os habitantes locais.

A modernidade atua modificando os costumes do passado. Os meios de comunicação são alguns dos canais que a modernidade utiliza para fixar os padrões que devem ser usados, consumidos e adotados pela população. é relevante destacar, por exemplo, que em todas as casas visitadas no Cacau Pirêra, há pelo menos um veículo de comunicação: rádio, televisão ou telefone, sendo isto uma forma de favorecer a domesticação das tradições pela modernidade. Morin (2003) sustenta a idéia de que o capitalismo é fortalecido por uma fabulosa expansão da informática e da informação que invade todos os setores da vida humana.

Nessa medida, é comum observar no distrito padrões de comportamento semelhantes aos vistos na cidade de Manaus. A moda chega pela televisão e aos poucos ganha espaço nas ruas do distrito. A linguagem também se modifica bastante, bem como os hábitos de um modo mais geral, tais como as formas de trabalho e de lazer.

Manaus, símbolo do urbano e do moderno, não desperta só aspirações positivas na população que reside no Cacau Pirêra, parece constituir-se também numa teia confusa, composta de sentimentos diversos: medo, ansiedade, desejo etc. é o que observamos na fala de um dos sujeitos ouvidos: “eu acho a vida na cidade muito perigosa. A cidade é boa por um lado e por outro não. Lá eu estou no meio de estranhos. Aqui os meus vizinhos todos me acompanham”

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(EDNéIA CARDOSO, pesquisa de campo, 2005). Fica claro nesta fala que a moradora, mesmo reconhecendo as potencialidades da cidade de Manaus, prefere residir no distrito em razão de sua ligação afetiva com o local e dos laços de solidariedade com os vizinhos e amigos.

Os moradores do Cacau Pirêra apreciam a cidade de Manaus tendo em mente sua arquitetura moderna constituída por muitos prédios, shopping centers, equipamentos sociais, acesso aos bens e serviços, como escolas, hospitais e comércio, mas percebem também o lado ruim da vida na cidade, como, por exemplo, a violência, a marginalidade, a poluição etc.

A fala da moradora Ednéia é reveladora nesse sentido: “Manaus é bonita de longe, mas a gente não pode viver direito. é muito perigoso. O meu esposo teve que parar de estudar porque foi agredido três vezes e, foi por isso, que nós viemos para cá” (pesquisa de campo, 2005). é interessante destacar que esta moradora reside há apenas quatro anos em um flutuante nas proximidades do porto. Ela e sua família saíram da cidade de Manaus para residir definitivamente no distrito Cacau Pirêra em busca de levar uma vida mais tranqüila longe da violência.

No imaginário dos moradores, a cidade de Manaus apresenta impressões difusas: se, por um lado, é o local ideal para se viver, pois nela estão os equipamentos de saúde, educação, comércio, habitação e transporte de qualidade superior aos que existem no Cacau Pirêra; por outro lado, é também espaço de violência, de marginalidade entre outros perigos.

Durante a pesquisa de campo ficou explícita a visão conflituosa que os moradores do Cacau Pirêra têm em relação à cidade de Manaus. é possível observar este dado na fala de vários moradores como vimos até aqui. Além da criminalidade, há também, no argumento dos moradores, a preocupação com a questão do emprego e da obtenção de renda em dinheiro no âmbito urbano. Uma moradora afirma que “além da agitação e da violência, a cidade também é ruim pela falta de oportunidade, tudo que você precisa para sobreviver depende

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Hamida Pereira

do dinheiro. Aqui não, a gente pesca, faz um bico e vive” (MARIA INEzILA, pesquisa de campo, 2005).

Confirma-se aqui a idéia de Bourdieu (1979, p. 54) sobre um dos principais aspectos da transição da economia tradicional para a economia do mundo moderno, que é o aparecimento da necessidade absoluta e universal de uma renda em dinheiro como condição sine qua non para a vida. é por isso que o trabalho ocupa posição central no mundo moderno, relegando ao segundo plano as outras realizações da vida.

A necessidade de se ter dinheiro é uma das características da modernidade que já se tornou uma constante no distrito Cacau Pirêra. Como muitas famílias deixaram de praticar as atividades de subsistência, o dinheiro é a única forma de viabilizar os produtos necessários à manutenção da vida. E para se ter acesso ao dinheiro, os moradores adentram no mercado formal e informal de trabalho, seja nas fábricas de tijolos, seja como vendedor ambulante, entre outras formas de trabalho.

Para Carlos (1997), a vida nas cidades, principalmente nas grandes metrópoles, é marcada pela supremacia do objeto sobre as relações humanas. Para essa autora, a cidade moderna não deixa de ser uma grande vitrina de mercadorias, de onde as pessoas vêm e aonde vão sem deixar rastros de amizade e solidariedade. Neste meio, o homem tem seu potencial criativo reduzido drasticamente e passa a ser visto como consumidor de mercadorias, as quais cada vez mais têm um tempo de uso menor. é para esta situação que a autora emprega o termo “nova urbanidade”.

A nova urbanidade é um fenômeno que pode ser visualizado também em áreas fronteiriças que são amplamente afetadas pela dinâmica da vida citadina, como é o caso do distrito Cacau Pirêra. Os moradores dessa localidade apresentam características de consumo bem parecidas com as dos moradores de áreas urbanas. A exemplo disso, pode-se destacar o seguinte dado revelado na pesquisa: os moradores dos flutuantes, quando questionados sobre o principal

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motivo que os levam a ir à capital, 50% dos mesmos informaram que se deslocam até a cidade pelo menos uma vez por semana para fazer compras. Compras estas que envolvem desde gêneros de primeira necessidade até mesmo roupas, calçados e eletroeletrônicos.

Para Carlos (1997), o sistema capitalista se caracteriza pela criação de mercadorias, as quais assumem posição de destaque nas relações sociais. As mercadorias ou objetos intermedeiam as relações entre as pessoas e reforçam ainda mais o individualismo na sociedade capitalista. A tecnologia e a informação acabam por criar um abismo entre as pessoas, comprometendo cada vez mais essas relações. O emudecer das pessoas diante da televisão é o maior exemplo disso. E a maior contradição está justamente no fato de que a tecnologia deveria aproximar as pessoas e não afastá-las. Nos interiores amazônicos, o costume de ficar na frente das casas à noitinha é pouco a pouco substituído pelo acompanhamento das novelas das grandes emissoras, que emudecem não só a família, mas a vizinhança.

O reino dos objetos cria necessidades a todo instante e reforça cada vez uma sociedade de consumo. O mundo moderno é movido pelas mercadorias. é o mundo do ter e não do ser, onde “o poder social é mais do que nunca mediado pelo poder sobre as coisas que são dotadas de prestígio e poder, o que produz uma hierarquia de objetos paralelamente ou imbricada à hierarquia social” (CARLOS, 1997, p. 208). Ou seja, o poder sobre os objetos determina as relações sociais. é um mundo de interesses, onde quem determina é quem possui mais dinheiro e, conseqüentemente, mais mercadorias.

Segundo Carlos (1997), a cidade é o local dos conflitos. É o palco da vida moderna, lugar que encanta e que deslumbra, mas ao mesmo tempo desencanta e frustra. A contradição se dá em diversos níveis, seja na economia, na política, na sociedade ou na cultura.

Na fala dos sujeitos da pesquisa, a cidade é revelada sob a ótica da contradição, pois ao mesmo tempo em que é idealizada como o local para viver

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com conforto e praticidade, também são apontados os aspectos negativos da violência e do risco de vida presentes no meio urbano. A cidade comporta um emaranhado de relações complexas, podendo se concluir que a cidade constitui-se no espaço por excelência dos conflitos, crises e superações.

De acordo com Oliveira (2000a), a cidade não é apenas aquilo que se mostra nas aparências, é o espaço do vivido, que contém vida e história construídas no cotidiano, a partir de uma dimensão de espaço e de tempo. é no cotidiano que os homens constroem os espaços urbanos e estruturam a vida. A vida é a história em movimento, movimento de ir e vir, de imitar e de criar, de resistir e de ceder, enfim, de encantar e de desencantar.

Os encantos da vida no Cacau Pirêra podem passar despercebidos, principalmente para os que são de fora, mas para os moradores locais o sentido de viver no distrito está na simplicidade da vida, na amizade com os vizinhos, na modéstia e na tranqüilidade que ainda resiste na localidade. Um dos moradores mais antigos da localidade considera que o distrito é um excelente lugar para morar: “eu amo esse lugar, eu gosto muito daqui, não penso em sair daqui nunca, aqui é uma tranqüilidade, uma paz, todo mundo se conhece e não perigo” (ALCIMAR DUARTE, pesquisa de campo/entrevista, 2005)

Todos os argumentos do morador podem parecer irrelevantes para os que já foram domesticados pela lógica da vida moderna, mas ainda têm muito valor para os que não foram, ou mesmo para aqueles que estão na fronteira do tradicional e do moderno, como é o caso dos habitantes do Cacau Pirêra.

Rubens Pimentel, um dos moradores mais antigos do distrito, chegou na década de 1950, ainda nos tempos de colônia agrícola federal, afirma que o Cacau Pirêra é o melhor lugar do mundo para se viver e que não trocaria a localidade nem mesmo pela sua terra natal. Nascido no Espírito Santo, Rubens diz que não possui nenhuma intenção de retornar para sua terra e declara seu amor pelo Cacau Pirêra: “o Estado do Amazonas é a terra mais querida do mundo, mas o

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melhor lugar daqui chama-se Cacau Pirêra. O Amazonas é lindo e o Cacau Pirêra completou a minha existência” (pesquisa de campo/entrevista, 2005).

A vinculação com o lugar é decorrente de muitos anos de experiências de vida no espaço amazônico, estabelecendo relações com o trabalho na terra, na água e na floresta. A vida dura nas áreas rurais da Amazônia exige muita determinação e conhecimento das particularidades regionais para sobreviver a cada dia. Rubens veio para o Cacau Pirêra como funcionário do INCRA e depois pediu exoneração para trabalhar como agricultor e trabalha até os dias atuais na agricultura. Ele radicou-se no Cacau Pirêra desde muito jovem, formando sua família e criando seus filhos neste lugar.

Hoje, nos altos dos 61 anos, fala dos filhos e de sua história com orgulho de um guerreiro: “eu cheguei aqui solteiro com menos de 20 anos. Aqui tudo para mim foi bom. Aqui eu arrumei esposa e filhos. Todos eles vivem trabalhando comigo, todos os meus filhos têm o segundo grau, mas acharam que deviam continuar puxando enxada comigo”.

Rubens Pimentel é um exemplo de vida, história e memória do Distrito Cacau Pirêra. Apaixonado pelo local onde vive, Rubens expõe as impressões negativas que tem da cidade, deixando claro que não se sente bem quando precisa se deslocar até Manaus:

Já tem dois anos que eu não vou a Manaus. Eu não gosto de movimento, de barulho. Eu acordo e durmo cedo. Eu não tenho nada para fazer em Manaus, se eu for lá eu perco meu dia. Eu não agüento aquele barulho, aquele mormaço, aquela fedentina de diesel (RUBENS PIMENTEL, entrevista/2005).

A imagem que o informante faz da cidade salienta apenas os aspectos negativos da capital, o que se deve ao nível de afeto que nutre pelo local onde vive. A vida simples do interior amazônico é sinônimo de realização para os povos tradicionais. A energia que dá vigor e sentido à vida vem da relação com a terra, com a água e com a floresta.

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A vida na Amazônia só pode ser compreendida a partir da interação entre homem e meio natural. A relação visceral que os homens amazônicos possuem com a natureza é a chave para o entendimento dos estilos de vida na Amazônia. O homem amazônico constrói seus modos de vida a partir das intensas e íntimas relações que mantém com os diversos elementos da natureza, basicamente: terra, água e floresta (WITKOSKI, 2006). Nessa inter-relação entre homem-terra-água-floresta a vida é vivida, produzida e reproduzida com sentido e encantamento.

O encanto pela vida concentra-se na plenitude em que se vive. A vida é vivida intensamente com sabedoria e imenso respeito à natureza. O homem amazônico traz, de experiências secularmente aprendidas, o desapego à matéria e a tudo mais que dilacera sua integridade e desvirtua seu encanto pela vida.

Nas comunidades tradicionais, o bem-estar coletivo se sobrepõe ao individual dando provas de que, ao invés de atraso cultural, vive-se em “avanço cultural” em relação à sociedade capitalista. A essência da vida é eivada por ideias que apontam para o bem-estar da coletividade.

Para compreendermos o significado e a importância do sonho e da utopia na vida dos moradores do Cacau Pirêra, recorreremos a Cioran (1994), que considera a utopia como uma espécie de sonho que divaga entre a ingenuidade e a loucura, e que se caracteriza pela imaginação da felicidade plena. A utopia nutre a alma de esperanças pela vida. é o alimento da vida. “A vida sem utopia se torna irrespirável, para a multidão pelo menos, sob pena de petrificar-se. O mundo necessita de um delírio novo” (CIORAN, 1994, p.22).

O sonho de uma vida melhor longe das dificuldades permeia o imaginário de vários moradores conhecidos durante a pesquisa de campo. Mesmo aqueles que apreciam a vida simples na localidade, sonham também com melhorias para o lugar. Apesar do apego às tradições, muitos moradores com os quais tivemos contato durante a pesquisa de campo nos falam que gostariam de ver o Cacau Pirêra mais urbanizado e mais moderno. Uma das moradoras entrevistadas reconhece que as mudanças ocorridas foram intensas, mas que elas precisam

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continuar ocorrendo para o bem do distrito: “muita coisa ainda precisa mudar, precisamos refazer o Cacau. Precisa vir o asfalto, a água de qualidade, um porto fixo e possivelmente a ponte que ligue a gente a Manaus” (MARIA MADALENA, entrevista/2005).

A vontade de mudança está relacionada à superação das dificuldades pelas quais passa a população do distrito. As ruas improvisadas e precárias, a falta d’água constante e a mobilidade obrigatória do porto durante a vazante e a seca são apenas alguns dos problemas enfrentados coletivamente pelos moradores.

No cotidiano, a vida se realiza em suas múltiplas dimensões. As lutas, as resistências e as inovações se movimentam nesse espaço, dando sentido e expressão à vida. Segundo Lefebvre (1991), o cotidiano abarca a sobrevivência e a não-sobrevivência, ou seja, a vida e a morte, a dor e a alegria, a esperança e o desespero. é um espaço plural e de muitas contradições.

O cotidiano é composto pelos fragmentos da vida vivida que juntos formam a história. Tempo, espaço e homens são responsáveis pela dinâmica da vida em qualquer lugar do mundo. E a vida só é construída nesta dinâmica dos acontecimentos cotidianos.

é a partir das relações humanas construídas no espaço e no tempo que a vida assume significado. Tempo e espaço são categorias importantes para a compreensão do cotidiano porque delimitam as condições sociais, econômicas, políticas e culturais do mesmo. O cotidiano não é só o lugar da rotina e do repetitivo; é também o lugar do novo. é o local privilegiado para colocar em prática os sonhos e as utopias.

O cotidiano, em Lefebvre (1991, p. 31), é a seqüência de vida prática que envolve os acontecimentos reais: “o cotidiano é o humilde e o sólido, aquilo que vai por si mesmo, aquilo cujas partes e fragmentos se encadeiam num emprego de tempo”.

O cotidiano contém os processos que dão origem à configuração do espaço, seja ele urbano ou não. Oliveira (2003) considera que o cotidiano está

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no vivido delimitado no espaço e no tempo histórico. E nesse cotidiano está a possibilidade de transformação da realidade, ou seja, de realização dos sonhos e utopias.

O cotidiano é vida em movimento e essa movimentação é densa de transformações. A sociedade se metamorfoseia e com ela o cotidiano simultaneamente. Retomando Lefebvre (1991), ele destaca que o cotidiano não é cumulativo, mas sempre resguarda algo do passado ou mesmo as conseqüências deste. No Cacau Pirêra, o cotidiano se modificou bastante ao longo dos anos, mas é possível verificar resquícios de hábitos e costumes dos tempos passados presentes ainda hoje na vida dos moradores da localidade.

A agricultura, a pesca e caça ainda praticada por alguns moradores é uma maneira de manter laços com o passado. O cotidiano dos moradores é permeado por contribuições de épocas passadas. O conhecimento do solo, das espécies mais cultiváveis, do fluxo das águas e do clima mais apropriado para a plantação são alguns dos saberes tradicionais que estão presentes nos tempos atuais na vida dos povos tradicionais amazônicos.

Há no cotidiano e na configuração do espaço inúmeras evidências da tensão entre o tradicional e o moderno. A continuidade do uso das canoas para a pesca e para a locomoção é um importante sinal de resistência e preservação dos hábitos tradicionais amazônicos. A domesticação dos estilos de vida tradicionais no Cacau Pirêra não se dá por completo, pois as tradições são fortes e insistem em aparecer onde e quando se menos espera.

é importante registrar as mudanças na mentalidade dos moradores, que ao se depararem com situações tipicamente urbanas, percebem-se como cidadãos com direito não só à cidade, mas à cidadania no sentido lato. A politização é um processo lento, que se dá articulado às condições de vida e de organização da população. A tomada de consciência e a resistência não ocorrem por acaso, são determinadas pela realidade socioeconômica, política e cultural das pessoas. Como bem afirma Oliveira (2000, p. 31) “a resistência não é uma dádiva,

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pressupõe de um lado que as pessoas tenham condições de sobrevivência, e de outro, que se contraponham ao que lhe é imposto sem perder a capacidade de indignação e de revolta”.

A indignação e o descontentamento são elementos presentes na fala dos habitantes do Cacau Pirêra: “eu acho que os governantes, os vereadores e os prefeitos deveriam olhar mais para o Cacau porque nós somos meio esquecidos por eles. Eles ficam lá para o Iranduba e esquecem da gente aqui” (MARIA ESPERANçA, pesquisa de campo/entrevista, 2005).

Há entre a maioria dos habitantes uma insatisfação pelo fato do Cacau Pirêra permanecer ligado ao município de Iranduba. A população se queixa da falta de atenção ao distrito e alguns acreditam que, se o distrito passasse a ser um município, isto daria melhores condições de vida aos seus moradores. Uma moradora aponta para esses horizontes: “esperamos e temos fé em Deus que um dia nós passaremos a município, porque hoje nós já temos como engatinhar como município. Além do Cacau Pirêra ser perto de Manaus, nós temos tudo” (MARIA MADALENA, pesquisa de campo/entrevista, 2005).

O sonho de tornar o Cacau Pirêra um município já existe individualmente nas aspirações de alguns moradores entrevistados. O que ainda não há é a consciência coletiva caminhando nesse sentido. Talvez daqui a algum tempo isso se torne realidade porque o sonho e a utopia são os alimentos da vida como afirmamos anteriormente. O sonho de hoje pode tornar o amanhã diferente.

Nas fronteiras da vida, os homens amazônicos sonham um futuro melhor sem tantas adversidades. No Cacau Pirêra, esse sonho está atrelado a melhores condições de vida e de trabalho, longe da violência, da marginalidade e da miséria. O futuro ideal para os moradores dessa fronteira amazônica é uma mistura entre as vantagens advindas com a modernidade e a manutenção de hábitos tradicionais, que fazem da vida um espetáculo de realizações. Nota

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1 O surgimento do Cacau Pirêra está associado aos projetos federais de ocupação e desenvolvimento da Amazônia. Pensado para ser um pólo agrícola de suporte e abastecimento da capital do Estado do Amazonas, o Cacau Pirêra foi fundado em 1946 como Colônia Agrícola Nacional do Amazonas (CANA), por iniciativa do Ministério da Agricultura. Foi mais intensamente ocupado no decorrer dos anos de 1950, quando uma grande quantidade de colonos japoneses foi alocada nas suas terras. Naquela época, o distrito era uma das colônias de exploração do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que ainda não tinha essa denominação.

referências

BOURDIEU, P. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo: Perspectiva, 1979.

CALVINO, I. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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CARVALHO, E. de A. A complexidade do Imaginário. Leituras da Amazônia: revista internacional de arte e cultura, publicação do Instituto de Ciências Humanas e Letras: Mestrado de Letras e Natureza e Cultura na Amazônia, da Universidade do Amazonas e Universidade Stendhal-Grenoble 3 – CRELIT. Ano 1, n. 1 (abril, 1988 / fevereiro, 1999). Manaus: Editora Valer, 1999.

CIORAN, E. M. História e utopia. Tradução de José Thomas Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

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__________________. Manaus de 1920 a 1967: a cidade doce e dura em excesso. Manaus: Valer/Governo do Estado do Amazonas/Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2003.

WITKOSKI, A. C. Terra, floresta e água: os camponeses amazônicos e as formas de uso de seus recursos naturais. Manaus: Edua, 2006. (Série: Amazônia: A terra e o homem).

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“metamorfose ambulante”: uma viagem de ônibus como rito de passagem

Rodrigo Pollari Rodrigues1

Sérgio Ivan Gil Braga2

É chato chegarA um objetivo num instante

Eu quero viverNessa metamorfose ambulante

Raul Seixas e Paulo Coelho

resumo

Este artigo configura-se como um texto etnográfico sobre uma viagem de ônibus da linha “678”, em Manaus, retratando as relações de sociabilidade, sobretudo de conversa, das pessoas que se deslocam de bairros populares desta cidade, daqueles que tomam o ônibus no bairro Jorge Teixeira e adjacências, zona Leste, para um domingo de lazer, na praia da Ponta Negra, local de residências de segmentos sociais mais abastados. A conversa foi analisada enquanto “dádiva de palavras” (CAILLé, p. 2002), com ênfase no comportamento ritualístico dos sujeitos em viagem, apreendida aqui como “rito de passagem” (VAN GENNEP, p. 2008).

1 Graduando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Graduando em Direito na Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Auxiliar de pesquisa no Projeto “Festas Religiosas e Populares na Amazônia: cultura popular, patrimônio imaterial e cidades” (2008–2010), coordenado pelo Prof. Dr. Sérgio Ivan Gil Braga, com financiamento da FAPEAM. Membro do Grupo de Pesquisa “Cultura Popular, Identidades e Meio Ambiente na Amazônia”, cadastrado no CNPq e certificado pela UFAM. Bolsista de iniciação científica do CNPq (2007 – 2009).

2 Professor do Departamento de Antropologia, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFAM). Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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Palavras-chave: Antropologia urbana. Sociabilidade. Manaus.

Abstract

It´s an ethnographic text about a bus ride route “678”, in Manaus. The text portraits the people´s relations of sociability, above all conversations, who travel by bus from popular neighborhoods of the cities, especially Jorge Teixeira, East zone, for a leisurely Sunday on the Ponta Negra beach, a place where wealthy social groups live. The conversations were analyzed herewith as “gift of words” (CAILLé, p. 2002), emphasizing the people´s ritualistic behavior. The bus ride was looked at here as a “rite of passage” (VAN GENNEP, p. 2008).

Keywords: Urban anthropology. Sociability. Manaus.

uma viagem, no sentido antropológico do termo

Mary Douglas, em seu livro Pureza e Perigo (1991), refere-se às proibições que os hebreus cativos do império faraônico vivenciaram em sua cruzada de fé e exílio em direção à “terra prometida”, a ”terra sem males”, de fruição e respeito mútuo, também fundada na bem aventurança espiritual. O Êxodo, do Antigo Testamento, documenta esta façanha e constitui material para interpretação antropológica da autora, sugerindo a idéia de ‘viagem’ e tudo o que uma caminhada como esta pode envolver. Nesta viagem, a autora interpreta as várias proibições, expressas no livro bíblico do Levítico, como a de abster-se de relações sexuais, sob pena de os viajantes se tornarem impuros; proibições alimentares, como se abster de carne de porco, entre outras mais. Observa-se que os migrantes encontram–se sob um conjunto de prescrições que visam assegurar as condições físicas e morais da “travessia”, na qual se é pessoa, individualizada, mas também coletividade, sujeita aos anseios e regras de uma maioria.

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Não seria muito distante visualizar esta situação antropológica descrita por Mary Douglas (1991) entre aqueles que se deslocam de ônibus no contexto da cidade, posto que realizam uma viagem no sentido estrito do termo. Este é o nosso propósito neste texto: interpretar comportamentos culturais que seriam próprios dos passageiros de uma viagem de ônibus como o “678”, que leva trabalhadores e outras categorias de sujeitos de bairros populares da cidade, em um domingo, para a Ponta Negra e sua praia, entendida aqui como a “terra prometida”, onde todos são “banhistas” e cidadãos que, somente em virtude do ônibus, têm condições de adquirir seu direito à praia e, por conseguinte, à cidade.

uma viagem de ônibus à Ponta Negra

A viagem tem início no bairro Jorge Teixeira1, mais especificamente na avenida Camapuã, onde fica situado o Terminal 4 (T-4). Os terminais em Manaus são plataformas de integração, sistema que permite ao usuário pegar vários ônibus “pagando um” somente, o de origem. Assim, os terminais são fechados. Quem se encontra no interior do terminal já efetuou o pagamento da tarifa2, seja no próprio terminal, ou então em algum outro ponto de embarque. Dentro do terminal, os embarques são realizados por onde, normalmente, se desembarca, de forma que não há que se passar pela catraca, como acontece no decorrer da viagem. Estima-se que a viagem de alguns passageiros presentes nesta plataforma já havia começado em outros bairros.

Estamos em um domingo, pela manhã, aproximadamente dez horas, hora em que a freqüência de passageiros indo para a Ponta Negra é maior, pois em grande parte dos casos se quer aproveitar o final de semana para acordar um pouco mais tarde que o de costume. A linha de ônibus que constitui nosso referencial empírico de observação, o “678”, que tem no T-4 seu ponto inicial, é aguardada na plataforma de embarque com ansiedade. Próximo ao espaço destinado ao estacionamento do ônibus e posterior embarque de passageiros, vê-se a formação de uma fila, garantindo a quem se preocupou em chegar com antecedência e

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agüentou com paciência a espera, o direito à prioridade de acesso ao ônibus e poder, quem sabe, “ir sentado”. Porém outras pessoas preferem arriscar “ir em pé” a ficar na fila. Estes se sentam em bancos próximos à plataforma. Observa-se ansiedade nas pessoas e pouca conversa. Quando conversam, é a respeito do ônibus e de sua demora, na maioria das vezes em tom de reclamação.

Há um momento de tensão a mais na espera, quando aparece um ônibus ao longe, no qual se deposita a esperança de ser o aguardado, e quando frustrada [a expectativa], a tensão se dissipa e cede espaço novamente a comentários e reclamações referentes à demora do ônibus. A ansiedade dura toda a espera, e quando finalmente o “678” surge, mostrando o número de identificação, observam-se manifestações de alívio, comentários e suspiros.

O embarque é outro momento de tensão. Já aliviados com a chegada do “678”, os jovens que preferiram ficar sentados nos bancos do terminal, rapidamente, se posicionam próximos à porta de entrada do ônibus, aguardando uma oportunidade para “furar” a fila. Quando um finalmente consegue seu intento, as pessoas que se encontram na fila protestam verbalmente, condenando a atitude e por fim chamam a atenção do motorista e do cobrador, para que os mesmos “botem ordem” na situação. De fato, a fila por si mesma é algo que inspira dúvidas, pois o motorista do ônibus “expresso” quando abre simultaneamente as duas portas, para o acesso dos passageiros, visando a um embarque mais rápido, contribui para certa desorganização no acesso ao ônibus.

Quando o “678” sai do T4 (Jorge Teixeira) rumo à Ponta Negra, após o embarque, recebe lotação máxima de passageiros no T5, tornando as condições de observação antropológica mais favoráveis no interior do ônibus, em especial nos comentários proferidos pelos passageiros, não raro reclamando das condições de transporte e superlotação do “678”. Os procedimentos de embarque são semelhantes àqueles já descritos anteriormente, acrescentando-se que, também no T5, localizado no início da Avenida Grande Circular no bairro São José, o “678” recebe passageiros vindos de outros bairros da zona leste.

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Os “carros”, nome pelos quais os veículos são chamados pelos cobradores e motoristas, que servem à linha “678”, são de dois tipos: o “normal”, composto de um carro só, com embarque por trás e desembarque pela frente; e o “articulado”, também conhecido como “sanfonado”, “minhocão” e “expresso”, com o mesmo sentido de embarque, composto de dois carros que se juntam por uma articulação em forma de “sanfona”. A maioria dos assentos, como no caso do tipo normal, está voltada para a frente, mas, no caso do “articulado”, alguns estão voltados para a parte de trás do veículo, o que força as pessoas a ficarem se olhando, o que lhes causa um certo incômodo. As nossas observações no interior do ônibus referem-se ao “expresso”, posto que somente este tipo de ônibus funciona aos domingos, na medida em que o “carro normal”, com menos assentos que o “expresso”, não daria conta do número de passageiros que durante todo o domingo vão e voltam da Ponta Negra.

No curso da viagem, quando os passageiros têm que passar pela catraca, estes preferem fazê-lo logo após o embarque, a fim de conseguir algum assento vago e, se não o obtiverem, aguardar um lugar “vazio”, também motivo de cobiça e disputa, no caso, por exemplo, de alguém desembarcar no decorrer da viagem.3

Assim que passam pela catraca, ou por uma das portas dianteiras do coletivo, no caso de embarque realizado no terminal, os passageiros que vão se acomodando, sentados ou não, sentem-se mais à vontade, inclusive para conversar entre seus pares, já que a ida à Ponta Negra está garantida. A conversa também pode ser entabulada por ocasião do embarque ou desembarque do coletivo. Estas e outras situações, inclusive as mencionadas anteriormente, poderiam ser “lidas” na perspectiva da teoria social dos ritos, enquanto formas características de comportamentos ritualizados pelos homens.

De acordo com Van Gennep (2008), há três estados em ritos de passagem, decompostos quando submetidos à análise: separação, margem e agregação. Identificamos a mobilidade dos passageiros no interior do ônibus a cada um desses estados. O “antes de passar pela catraca” se constituiria em rito de

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separação, expressos em discussões e reclamações, também buscando abandonar momentaneamente um contexto de trabalho ou de vizinhança de bairro.

Ao passar pela catraca, o usuário encontra-se em um momento de liminaridade4, ou de margem, que estabelece a passagem entre o fora e o efetivamente dentro do ônibus. Neste momento são requeridas ao passageiro diferentes provações face ao cobrador, “dono da passagem”: o dinheiro referente à tarifa ou, quem sabe, educação, simpatia, quando porventura não se tem o valor e se quer entrar sem pagar nada, “pulando a catraca”. Arruaceiro tem que ficar atrás, ou fora do ônibus. Assim, o passageiro que teve acesso à parte posterior do coletivo, quando passou pela catraca, sente-se à vontade para gozar dos prazeres de sua nova condição, a de passageiro, de cidadão.

Assim, identificamos o espaço interno do ônibus como um todo social que pode ser estruturalmente dividido em três partes que correspondem aos três estágios dos ritos de passagem propostos por Van Gennep (2008), a saber: “antes da catraca” (separação), “ao passar pela catraca” (liminaridade) e “após a catraca” (agregação). Por outro lado, podemos identificar a viagem propriamente dita como um outro todo social mais amplo e abrangente; por conseguinte, passível de uma estruturação análoga, na qual o ônibus torna-se o referencial de liminaridade e não mais a catraca, na medida em que ele representa a passagem da casa para a praia. Como bem lembra Marcel Mauss (1981, p. 414), é como se “as coisas fossem concebidas numa série de círculos concêntricos ao indivíduo: os mais afastados, os que correspondem aos gêneros ou situações mais gerais, são os que correspondem às coisas que o tocam menos; estas tornam-se-lhe menos indiferentes na medida em que se aproximam dele”. Em outras palavras, há no viajante a idéia geral do deslocamento de ônibus da casa à praia e vice-versa. Esta situação é vivida, inconscientemente, com toda a intensidade no microcosmo do ônibus que, em linhas gerais, reproduz no espaço interno ansiedade, educação, entre outros comportamentos que buscamos apreender nas condutas ritualísticas sugeridas por Van Gennep (2008).

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Para este mesmo autor, o embarque para uma viagem constitui passagem ritualizada pelos homens, pois nesse momento o viajante assumiria uma nova condição, assim como no momento do desembarque. Passada uma hora desde que saímos, chegamos ao “fim” da viagem e os passageiros se amontoam na parte da frente do ônibus ao lado do motorista, a fim de “competir” para “sair primeiro”. Há na extensão da praia da Ponta Negra quatro “paradas de ônibus”, onde os passageiros desembarcam. é comum, e motivo de discussões, algumas pessoas, as quais só descerão dois ou três pontos adiante, “empatarem”, por ansiedade e medo de perder o ponto, a passagem de pessoas que irão desembarcar imediatamente.

Embora sejam visíveis as discussões, o desembarque feito de forma educada ainda é o mais freqüente, como se percebe nos pedidos de “licença” e no recorrente agradecimento ao motorista pela viagem antes de “descer”: “obrigado, motorista!”, “valeu, motora!”, entre outras expressões. Por mais que tais situações se constituam “separação”, na qual há o abandono de uma condição anterior, a de passageiro, se deseja que tal separação ocorra da melhor forma possível, pois o viajante provavelmente busca também adquirir prestígio pessoal entre aqueles que se mantêm no ônibus, e entre aqueles que o estão acompanhando nessa nova condição, sobretudo, de “banhista”, entre outras. Passada a condição de liminaridade da porta de saída do ônibus, se tem o momento de pós-liminaridade, ou de agregação, que pressupõe aceitação de tais categorias de pessoas entre os outros ex-passageiros. Assim, mesmo os comentários se alternando entre grosserias e palavras de ordem, nunca é bom começar um domingo na praia com discórdias, até porque se pode encontrar, ao longo do dia na praia, algum desafeto resultante de situações indesejáveis no ônibus.

A ansiedade do desembarque, a vontade de ser o primeiro e a discordância de quem é ameaçado de ficar para trás, provavelmente explicam a disputa que se trava no momento do desembarque, quando a viagem de ônibus que termina abre concomitantemente um novo ciclo ritualístico, que constitui diferentes

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“viagens” ou trajetórias percorridas pelos sujeitos na praia. Mesmo que um dia na praia represente uma curta viagem, algumas horas de prazer, o que distingue os sujeitos são os diferentes “projetos” de vida, formas que escolheram para aproveitar o seu dia de domingo. é provável que esta expectativa que se encontra no desembarque gere um certo controle social entre os próprios indivíduos, já que a figura do cobrador e do motorista ficou para trás no momento da catraca e no desembarque na praia.

A Ponta Negra

A Ponta Negra é um bairro que surgiu em função de sua praia, situada na zona oeste da cidade, banhada pelo Rio Negro. Antes dos anos 60 do século passado, somente se tinha acesso à praia por meio de barcos; porém, a partir desta década, uma estrada foi aberta, ligando o centro à Ponta Negra. Esta estrada apresentava no início pouca segurança, tanto por não dispor de iluminação como também por não ser asfaltada. Sua situação melhorou com seu asfaltamento, a que se seguiu a inserção de unidades residenciais, como o Jardim Europa, nos anos 70. A Ponta Negra, desde esse tempo, é local de reunião de várias categorias de pessoas de Manaus, principalmente nos meses mais quentes da cidade (agosto, setembro e outubro), quando as praias estão “maiores” com o recuo das águas do Rio Negro, e o clima se torna mais propício para práticas recreativas. Isso se tornou mais constante após o processo de modernização e requalificação urbana da área, que lhe deu sua configuração atual (JORNAL DO COMéRCIO, 2007).

Hoje, a Ponta Negra é um complexo de lazer onde se concentram múltiplas atividades e equipamentos urbanos voltados ao esporte, caminhadas, freqüência aos bares, praia, além de espaço destinado a grandes eventos: ano novo, com a queima de fogos na praia, já tradição na cidade; a parada gay que tem edição todo ano e traz para a Ponta Negra número considerável de trios elétricos, que tocam todos os estilos de música, apoiada por várias lideranças e pessoas de influencia local; o dia do rock, 13 de julho, no qual grupos musicais do estilo

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rock demonstram suas aptidões musicais para o público; o aniversário da cidade, no dia 24 de outubro, com shows de artistas locais e nacionais, espetáculos dramáticos, dentre outras atividades financiadas pelo poder público. Há também competições esportivas, de ciclismo e corridas pedestres realizadas na Estrada da Ponta Negra, de motociclismo, na praia, e de futebol e voleibol, nas quadras de areia.

Porém, a Ponta Negra não é um lugar somente orientado para o lazer. Conta com prédios de alto padrão que, em geral, têm vista para a praia e para o Rio Negro, o que a torna um dos metros quadrados mais caros da cidade. A Ponta Negra, então, é um espaço tanto de lazer quanto de residências, o que cria certa tensão entre os “moradores” e os “visitantes”. é constante ouvir de moradores sua insatisfação com o que ocorre na Ponta Negra aos finais de semana, como barulho, engarrafamento, falta de segurança, embora nunca tenham “descido” nessas ocasiões. Mas não são esses moradores que nos interessam, pelo menos neste momento, e sim os “visitantes”, os “viajantes” do “678”. Cada categoria de pessoas que desembarca na Ponta Negra, como jovens, famílias, dentre outros, escolhe na diversidade de equipamentos que o espaço agrega aquele que lhe interessa.

A praia é o lugar preferido dos jovens, assim como os bares da “parte baixa”, conhecidos como inferninhos; as músicas mais tocadas são o brega e o forró. A maioria dos bares recebe o nome de seu “dono” (Vera´s bar; Angelo´s bar; Bar do Chiquinho etc.), onde se observa o consumo de cerveja e outras bebidas alcoólicas, mas também a possibilidade para o almoço, com “pratos” a preços populares, inclusive com a permissão do comerciante para repetir as guarnições, ou seja, arroz, farofa, vinagrete. A carne é servida apenas uma vez, como frango ou carne assada, ou carne de panela.

Nos bares do calçadão superior, da “parte alta”, as músicas mais tocadas são a MPB e toadas de boi-bumbá, incluindo nesta última performances de figurantes e dançarinos apresentando um espetáculo reduzido dos bois-bumbás

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de Parintins. Neste caso, as apresentações são realizadas à noite. A alimentação aqui é mais cara em comparação aos bares da parte baixa, posto que um jantar para duas pessoas pode custar em média quatro vezes mais. As bebidas alcoólicas também são mais caras do que as dos bares do calçadão inferior.

Pela manhã, é comum encontrar no calçadão pessoas que fazem caminhadas, tanto moradores quanto visitantes. Estes últimos utilizam-se preferencialmente de automóvel particular, embora aos finais de semana o público aumente com moradores de outros bairros que igualmente se ocupam de tais atividades. Aproveita-se também para apreciar a paisagem do Rio Negro. Acrescente-se que este é um dos poucos momentos em que se vêem os “moradores” fazendo uso dos equipamentos da Ponta Negra. Outra ocupação que merece destaque é a chamada “feira de artesanato” organizada pela Prefeitura aos finais de semana, que, além de barracas orientadas para a venda de produtos manufaturados, conta com algumas barracas de alimentação.

As famílias visitantes usufruem a praia, o parquinho e os restaurantes, ou consomem a própria comida que trazem de casa, pois um dia de praia deve ser aproveitado ao máximo na beira do rio. Na época de inverno, com a subida das águas, de dezembro a junho, a praia propriamente dita fica reduzida às imediações do Hotel Tropical, uma “prainha” improvisada em uma rampa cimentada usada outrora pela Associação Amazonense de Remo para o desenvolvimento de suas atividades, hoje transferidas para outro local da praia. As pessoas pegam sol e tomam banho de rio, mas muita gente não gosta, embora as alternativas fiquem reduzidas, posto que ouviram dizer que o hotel despeja dejetos sanitários no Rio Negro. Ainda assim, grupos costumam fazer rodas de capoeira e com instrumentos musicais tocam vários ritmos, como pagode, funk, entre outros.

Um desses grupos, ao som das músicas, joga capoeira no que sobrou de areia da praia. A música e a capoeira, que no início faziam parte apenas da atividade do grupo, acabam socializando os demais, que acompanham o grupo cantando as músicas e, às vezes, ensaiam um pouco de capoeira. O grupo ganha

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visibilidade, e um rapaz se permite mandar “beijinhos” para outro rapaz que está tocando pandeiro. Este acha engraçado e começa a conversar com o primeiro, simulando uma voz feminina, dizendo, porém, que não estava interessado na sua proposta.

Seu Raimundo5, vendedor do famoso “queijinho” (queijo coalho, cortado em cubos e espetados por um espeto de madeira assado em um “forninho” portátil), trabalha há 18 anos na Ponta Negra e relata, lembrando um pouco do passado do lugar, que “isso tudo aqui era só barranco, primeiro vieram esses bares daqui de baixo e depois os lá de cima”. Uma das principais reclamações e reivindicações dele é a respeito da sujeira encontrada na orla, além dos matos que crescem na praia, dando um aspecto de abandono ao local, termina se perguntando: “o que os turistas vão pensar?”.

Seu Joaquim, permissionário de um dos bares mais curiosos do calçadão inferior, que é também um “mercadinho”, vende de tudo, desde pasta de dente até produtos não perecíveis como feijão, arroz, quando perguntado a respeito do “mercadinho”, responde que começou o negócio depois que surgiu a demanda por esse tipo de produto, tanto pelas pessoas da praia quanto das pessoas que moram em comunidades vizinhas. Em suas palavras: “o pessoal compra tudo aqui”.

Mas, afinal, o que motiva essas pessoas a saírem dos seus bairros de origem, e em um ônibus, lotado como o “678”, vivenciarem um domingo na Ponta Negra?

Ônibus: menor/melhor distância entre dois pontos

Segundo Lévi-Strauss (1993, p. 290), o morador atual de uma metrópole qualquer levaria horas para “encontrar a paz nos campos e bosques”, posto que muitos deles moram em bairros distantes, com infra-estrutura precária, inclusive de equipamentos urbanos orientados ao lazer. Nesse sentido, um fim-de-semana

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implicaria buscar outros lugares para fruição na cidade, em direção a locais de lazer, em busca da natureza e outros motivos mais, que representem um desconto do cotidiano, que não encontram em seus bairros de origem. De fato, com o crescimento e expansão urbana das grandes cidades, as distâncias dos bairros em relação aos pontos ou centralidades de lazer, tornam-se cada vez maiores, o que dificulta a mobilidade das pessoas entre esses diferentes pontos.

Esta mobilidade que ocorre dentro da cidade, com sujeitos oriundos de diferentes bairros, entre os quais provavelmente muitos de origem no meio rural, em busca de ocupações mais favoráveis e prazerosas, mesmo que de modo efêmero, poderia ser comparada, enquanto propósitos, à idéia de migração do campo para cidade, enquanto passagem de uma situação desfavorável para uma mais favorável, como atesta Durhan (1973, p. 112). Quando indagando o motivo das migrações, encontra como resposta recorrente a idéia da melhoria de vida, ou na linguagem de seus informantes: “pra melhorar de vida”. Não seria forçoso ampliar essa idéia inserida em um contexto de migração, para um contexto de mobilidade interna na cidade. Assim, se visualizaria de um deslocamento realizado por residentes de bairros periféricos – com pouca infra-estrutura, fruto de uma urbanização de pouco ou nulo planejamento e, por conseguinte, com poucas áreas livres de lazer – para áreas ditas nobres da cidade, marcadas pelas belezas naturais e também por intervenções urbanas do poder público que direcionam seus usos para o lazer, uma “mudança de vida”, mesmo que efêmera, circunstancial, no âmbito da cidade, num dia de domingo. De fato, o que motiva tal deslocamento que é longo e cansativo, é justamente a idéia de melhoria de uma situação desfavorável em um primeiro momento para uma favorável no segundo momento, no que diz respeito ao lazer.

Segundo Vasconcellos (2001), a mobilidade aumenta de acordo com a renda, principalmente pelo uso do automóvel privado, enquanto o transporte coletivo público é utilizado principalmente pelas pessoas de baixa renda. De fato, as pessoas de baixa renda não têm condições de adquirir um carro, e as distâncias

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dos bairros em relação aos pontos ou centralidades de lazer continuam existindo, demandando de forma absoluta o transporte coletivo tanto para as atividades cotidianas como para o lazer dos finais de semana e feriados. Dessa forma, o ônibus se constitui em um meio que contribuiria para o exercício da cidadania e mobilidade para as classes mais populares que não dispõem de recursos para adquirir um automóvel, facilitando assim que os mesmos não fiquem “presos a um equipamento cultural precário” (DURHAN, 1973), pelo menos no que diz respeito ao lazer, facultando aos “viajantes” o seu direito à cidade. Em outras palavras, trata-se de “ampliar um universo de vivências sociais” no contexto da cidade (DURHAN, 1973).

Acrescente-se que entendemos o espaço interno do ônibus para além de sua importância funcional imediata, ou seja, como um espaço culturalmente construído pelos sujeitos que fazem uso dele. Os sujeitos em questão, percebidos enquanto “viajantes”, estão em constante mobilidade, de acordo é claro com suas possibilidades, mas de forma geral estão procurando passar de uma situação menos para uma mais favorável. Nos termos de Roberto Da Matta (1997), o ideal é poder sentir-se em “casa”, inclusive no espaço público. E no domingo, dia destinado ao desconto do cotidiano, descansar, festejar, refrescar a cabeça, sair de casa torna-se uma opção de lazer, uma vez que não há sequer áreas livres de lazer, quem dirá uma praia, para realizar atividades que seriam próprias de um domingo. A Ponta Negra, segundo um informante, “é a única praia que dá pra ir de ônibus”.

A viagem de volta

As pessoas começam a retornar por volta das quatro e cinco horas da tarde. Seguem um dos trajetos que ligam o calçadão inferior ao superior, onde fica a principal parada de ônibus. Apesar de este ser o horário de pico, até o dia seguinte há pessoas aguardando os ônibus a fim de voltar para casa. Pela

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grande concentração nas paradas no horário de pico, as pessoas se acomodam ou incomodam nas filas conforme vão chegando às paradas, o que deixa aquelas enormes, chegando até a dar voltas no calçadão, o que atrapalha a passagem dos demais transeuntes. Para as famílias que trazem filhos pequenos é preferível retornar antes das quatro horas. Este momento, última etapa da jornada de lazer, o momento da volta para casa depois de festejar, nadar, se refrescar, brincar, conversar, a tensão é notável nos rostos das pessoas.

Os sujeitos estão muito alterados tanto pelo excesso do consumo de bebidas alcoólicas, quanto pelo cansaço, que aumenta deveras a vontade de voltar para casa e aproveitar as últimas horas que se tem de descanso no conforto do lar, pois como se sabe, no dia seguinte, segunda, há de se trabalhar.

Os ônibus, nesse horário, não atrasam. O que dificulta o embarque é a quantidade de pessoas e as constantes discussões e brigas que ocorrem, contribuindo para os atrasos. Geralmente são embarcados dois ônibus por vez, de linhas diferentes, enquanto os outros aguardam para poder estacionar e pegar seus passageiros. Os passageiros se organizam em filas correspondentes aos seus ônibus. A maior fila sem dúvida é a do “678”, enquanto as menores são as dos ônibus que vão para o Centro, como o “120”, “011”, “012”, nos quais ainda se tem chance de seguir viagem sentado, mesmo nessas horas. Enquanto se espera o ônibus, conversa-se, como se fosse um prolongamento da sociabilidade que se viveu no contexto da praia. Os comportamentos corporais evidenciam-se na sensualidade dos corpos molhados, suados e ainda sujos pela areia, ao mesmo tempo em que os rostos deixam transparecer o desgaste do dia na praia. São freqüentes, no “empurra-empurra” da fila, os corpos se tocarem insinuando situações sexuais.

Quando o “678” consegue estacionar, suspiros de alívio são substituídos pela excitação. Alguns jovens que estavam aguardando o ônibus no fim da fila rapidamente se posicionam para “furar”. As pessoas da fila advertem o guarda que controla o embarque e desembarque: “seu guarda, olha o furão”. Em algumas

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situações, os guardas se utilizam da própria força policial, principalmente com os mais embriagados, quando tentam furar a fila ou destituir de alguma forma a ordem das “coisas”. Indivíduos embriagados tentam entrar com garrafas plásticas ainda contendo restos de “gammi”6, que são recolhidas pelos guardas e os respectivos líquidos derramados no meio-fio. Assim, as pessoas, meio que tropeçando umas nas outras, buscam conseguir um lugar senão sentadas, pelo menos o mais perto da saída.

Porém, há vezes em que a viagem de volta se mostra agradável. Mas isso só acontece com as viagens que ocorrem depois do período de pico. Como em uma vez em que presenciamos um grupo de jovens que, na volta, se apropriaram do espaço interno do ônibus cantando músicas em coro. As músicas eram em sua maioria pagode, cujas letras faziam referência a amores mal correspondidos, que eram modificadas ao longo da viagem ganhando um teor mais sexual. O clima durante a viagem era de alegria e as pessoas não pareciam incomodadas com a cantoria, embora algumas pessoas se mantivessem indiferentes, como que em “evitação”. A situação só se tornou crítica quando o ônibus passou pelo Amazonas Shopping Center, cerca de um terço da viagem, e embarcaram passageiros que já entravam olhando de “cara feia” para as pessoas que tinham vindo cantando desde a praia. A atitude das pessoas do Shopping é de censura, o que indica certa intolerância com aqueles que vêm da praia, pois encontram-se “bem vestidos” e “arrumados” e a descontração e informalidade no interior do ônibus, a princípio, lhes ocasionam certa repulsa. Nesta ocasião, alguns garotos provenientes do Shopping, com vistas a constranger o grupo de cantores, comentam em voz alta: “isso aqui não é Samba Manaus7, não!”.

Entende-se, que as pessoas que se deslocam de suas casas em direção à Ponta Negra, de um modo geral, buscam estabelecer relações de sociabilidade num contexto de lazer, ou no dizer de uma freqüentadora, “a gente vem pra trocar... trocar conversa”.

As conversas no interior do ônibus

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As conversas englobam todos os tipos de assuntos. Há uma certa dificuldade para ouvir aquilo que está sendo dito, por conta das próprias condições físicas de observação ou porque muitas pessoas conversam ao mesmo tempo, próximas ou distantes de um observador atento. Mas em todas elas evidenciam-se contornos de uma “conversa popular”, no sentido de Bakhtin (2008), na qual adquire importância o “riso”, a “ironia”, gestos “grotescos”, alusão a um “baixo corporal”, inclusive insinuando situações sexuais. é o que se pode notar em algumas situações observadas que sugerem tais comportamentos estereotipados no interior do ônibus.

Tanto do ponto de vista metodológico quanto etnográfico, consideramos o espaço interno do ônibus como um espaço culturalmente construído por sujeitos que o habitam, mesmo que de modo efêmero. Edward T. Hall (1977) sugere quatro formas de comportamento socialmente construídas pelos sujeitos urbanos. O autor emprega o termo “proxêmica” para se referir à abordagem antropológica do espaço, a partir de formas de relacionamentos estabelecidas entre as pessoas, ou seja: distância íntima, pessoal, social e pública.

Para Hall (1977) a “distancia íntima” é aquela marcada pela intimidade, no qual o contato físico é algo constante, ou senão passível dessa constância, e as relações entre as pessoas são estabelecidas de forma muito próxima. Tal distância é percebida no contexto de conversas íntimas principalmente entre os namorados, que preferem sentar-se “um do ladinho do outro”, e ficam muito chateados quando não conseguem sentar juntos. Às vezes, quando há um só lugar vago no ônibus, o rapaz dá preferência do assento à moça, que obedecendo às regras da boa educação tem como resposta à gentileza do rapaz segurar o que o mesmo porventura traz às mãos, como uma sacola, uma mochila, onde estão acondicionadas comidas, toalhas, e demais apetrechos que serão utilizados na praia. Em outras situações, dependendo da intensidade do contato entre eles, pode se configurar ao olhar tanto dos freqüentadores quanto do cobrador e

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motorista, algo que supostamente interfira na conduta ou decoro interno do ônibus.

Uma segunda distância social identificada seria a “distância pessoal”, na qual se nota uma relação de proximidade entre as pessoas, sem haver necessariamente contato físico. Trata-se de distância existente na conversa entre amigos ou afins, cujo tom de voz não precisa ser alterado e as individualidades não se confundem. No interior do ônibus, nem sempre a distância pessoal implica em proximidade dos corpos. O que, não raro, faz esta proximidade confundir-se com o que Hall (1977) convencionou chamar de distância “social”, que diz respeito a uma distância maior, quando a convivência com estranhos às vezes torna-se uma realidade, em meio a amigos ou afins, em que diferentes grupos de pessoas e sujeitos são quase que forçados a uma convivência mais ampla, posto que aqui estaríamos nos referindo a uma outra apreensão dos encontros e espaços culturalmente construídos pelo homem, o que o mesmo autor entende por distância “pública”, marcada pela impessoalidade, comum a todos, desde que a individualidade desapareça na multidão, e não se tenha o envolvimento característico das outras “distâncias” acima referidas.

O que se pode observar durante as viagens e, por excelência, constitui o nosso material etnográfico mais significativo de análise neste texto são os comentários e conversas em um tom de voz audível para quem se encontra relativamente próximo dos sujeitos. Conversas para serem ouvidas também por um público que está além dos próprios interlocutores. Nestes casos, ouvem-se comentários sobre o trabalho, as deficiências do transporte, razões ou motivos para conhecer alguém, enfim, um universo de situações entremeadas por risos, ironias, próprias da cultura popular, conforme os casos que apresentamos a seguir.

Um grupo de cinco amigos, quatro deles sentados e um em pé, um deles, avistando uma casa, comenta: “conheço uma puta do peitão deste cabaré!”. O comentário obteve ressonância nos sorrisos dos colegas. A conversa segue e o

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assunto recorrente é o trabalho na construção civil8. Eles também conversam sobre suas respectivas conquistas como no exemplo dado acima. O grupo de jovens seria o que um dos cobradores entrevistados chama de pessoas “educadas”, pois se preocuparam quando uma moça passou pela catraca com um bebê de colo, e rapidamente um deles se levantou e ofereceu seu assento a ela. Em outras palavras, obedeceu às regras que disciplinam o uso do espaço interno do ônibus.

Logo depois do acontecido, cruzam a catraca três garotas um pouco mais jovens que os garotos anteriormente mencionados, e as mesmas não passam despercebidas por eles, aliás, nada passa despercebido por eles, já que enquanto conversam estão atentos a tudo que acontece no ônibus, em especial à catraca, com se ali fosse uma cortina por onde saem as modelos que irão desfilar na passarela, que, no caso, seria o corredor do ônibus. Começa o flerte entre os jovens: “amor à primeira vista”, diz um dos garotos. Outro garoto, João9, diz cutucando o amigo: “dá lugar pra elas”. Este último se levanta e cede lugar a uma das garotas, que acha graça da iniciativa e da conversa dos meninos. O que se levantou, esperando que os amigos fizessem o mesmo, em tom de recomendação e ironia, pergunta: “Tu é cavalo ou é ‘cavaleiro’?” Demonstra, assim, preocupação com o sexo oposto, parte de um processo de sedução. De acordo com Geertz (1978, p. 286), esta situação indicaria através do discurso do garoto a separação entre dois mundos, o dos seres humanos (cultura) e o da animalidade (natureza), ou seja, João distingue perante as moças sua qualidade de “cavaleiro” (ser humano educado seguindo as regras mínimas de conduta social) em detrimento do amigo, que, ao negar ceder o lugar para elas, foi logo taxado: “é um cavalo!”.

Situação análoga a essa, envolvendo jovens e uma provável obrigação moral de ceder os lugares para pessoas que necessitam de uma atenção especial, é o caso de um homem que estava com um bebê de colo e não havia lugar vago para sentar com seu filho. Os dois se posicionam ao lado de dois jovens sentados. Os jovens se vêem em um dilema, ceder ou não o lugar. Um deles fala: “dá lugar

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pra ele, tu é novo ainda!”. Depois de uma certa tensão entre os dois, um deles cede lugar ao pai e filho. O dilema relatado demonstra a dificuldade de abrir mão de uma situação confortável, estar sentado, perante uma obrigação de ordem moral.

Em outra situação, duas senhoras entram no interior do ônibus, no terminal 5, com lotação máxima e passam a conversar entre si. Ambas se encontram em pé e têm diante de si dois jovens rapazes sentados no banco do ônibus. As conversas são proferidas de forma que quem se encontra em bancos próximos consegue ouvir sobre o que se fala, ou seja, negócios pessoais, conhecimento sobre as linhas de ônibus que servem ao terminal 5, do bairro São José, problemas decorrentes do transporte urbano, sobretudo o fato de em um domingo, às 11:00 da manhã, o coletivo encontrar-se completamente lotado. Uma diz para a outra: “cada vez lotando mais, bora tentar ir rasgando por aí!”. A idéia, aqui, é chegar mais próximo da porta de desembarque, já que as duas passageiras, aparentemente, desembarcariam antes do terminal da Ponta Negra. Em certo momento, a conversa se dirige para os dois rapazes, uma delas, a mais falante, diz o seguinte: “vocês que são jovens, podiam deixar duas velhinhas sentar... dois gatos novos sentados [...] tudo bem?”. Os jovens não demonstram maior interesse pela conversa e comentam sobre alguém que vêem passar na calçada, durante a viagem: “é a irmã dela, né?. Provavelmente alguma pessoa conhecida e uma certa surpresa em encontrar tal pessoa no caminho.

Mas as duas senhoras, ditas “velhinhas”, não desistem da conquista ou talvez de um lugar para sentar: “dá o lugar pra gente, olha, eu to operada!”; “dá o lugar pra gente, vocês já sentaram bastante, vocês não querem levantar não?”. As duas senhoras acabam desembarcando na praça do Eldorado, a meio caminho da Ponta Negra, e o que fica, é um largo sorriso para os rapazes e acenos das velhinhas, já fora do ônibus. Um deles comenta: “será que ela não quer cuidar do meu filho, não? Ficamos imaginando o que significa a vida pessoal de cada um e como tais trajetórias de vida se encontram, de forma fragmentária,

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em tais acontecimentos do cotidiano. Mas uma coisa é certa, as conversas são estabelecidas para serem ouvidas não somente pelos interlocutores, mas por quem se encontra próximo e, freqüentemente, em tom irônico e motivo de riso, traços característicos da cultura popular urbana.

Outro caso foi o de um rapaz que, depois de quase perder o “ponto”, o local de desembarque, próximo à praia da Ponta Negra, por causa da quantidade de pessoas que se encontravam na sua frente reclamou que os mesmos o estavam empatando, e teve de ouvir um desaforo de um dos “empatadores”: “tá achando ruim, pega um táxi”. Contrariado com o desaforo, responde em tom de ironia: “só se tua mãe pagar”. Esta situação já representaria motivo para brigas, mas outras situações não tão agressivas dão o tom de que a descida do ônibus sugere um rito de passagem, no sentido de Van Gennep (2008), ou seja, trata-se agora de abandonar a condição de passageiro e adquirir a condição de, no caso, “banhista”. Lembremos que a porta de desembarque, aqui, assume importância semelhante à catraca do cobrador, momento em que os sujeitos são postos à prova, sobretudo por sua educação e civilidade.

Por fim, temos o exemplo de uma moça que se manifestou publicamente sobre um suposto desrespeito praticado por um rapaz que estava ao seu lado, acusando-o de ter pegado em suas nádegas. O rapaz nega e, ao mesmo tempo, fala que se ela estava incomodada, que se sentasse, pois havia um assento vago próximo a ela. A moça se negou a sentar, dizendo publicamente: “quero ver se ele tenta de novo”.

De uma forma geral, o que percebemos nestes cinco casos é que apesar de serem dirigidas para uma única pessoa, ou grupo determinado de pessoas, as conversas são entabuladas em tom audível, como se o objetivo fosse mesmo trazer algo de cunho íntimo ao conhecimento do público. Dessa forma, tais conversas ganham contorno de representações teatrais, nas quais há personagens principais e coadjuvantes que contracenam em um palco, o ônibus, sob o olhar atento de um público, os demais passageiros. São ritualizações que visam

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reforçar determinadas regras, tais como a de oferecer assento aos portadores de necessidades especiais, ou às supostas “velhinhas”, ou quem sabe às pessoas com quem se deseja ampliar relações sociais, como também o desejo de se posicionar com certa antecedência perto à saída para que o desembarque se realize de forma mais rápida, ou ainda, como evitar um contato íntimo com alguém que mal se conhece. Assim, apesar das semelhanças ou divergências de propósitos que agrupam as pessoas, teatralizadas em ritos, o que conta para efeitos de análise, é que tais conversas têm contextos, atores, público e script diferenciado.

A conversa e a elaboração da face

Alain Caillé (2002) nos oferece uma visão interessante das conversas entre interlocutores, no qual as mesmas poderiam ser vistas para além de ritos de interação como assim definia Erving Goffman (1967), mas também como relações de troca, no sentido de Marcel Mauss (2003). Neste último caso, enquanto contratos que pressupõem três instâncias básicas que resultam em obrigações de dar, receber e retribuir. Aqui, as prestações não seriam pecuniárias ou materiais, mas fundamentadas em palavras, gentilezas verbais etc. Em conversa, os interlocutores estariam preocupados em oferecer entre si o maior número de palavras, esperariam um bom retorno em relação a elas e palavras recíprocas em retribuição, com o objetivo de mostrar-se perante os outros como um bom “doador de palavras”, um bom “orador”.

Porém, tal atributo não deve ser alcançado em detrimento dos outros. Para Goffman (1999), os ritos de interação se dariam pelo intenso “controle de informações” que visariam a proteger a “face”, ou seja, a manifestação pública do “eu”, tanto do emissor como também do receptor. Tal proteção seria comparada pelo autor aos cultos religiosos negativos explicitados por Durkheim (1989) em As formas elementares de vida religiosa, que “não prescrevem ao fiel a realização de prestações efetivas, mas limitam-se a proibir-lhe determinadas maneiras de agir” (DURKHEIM, 1989, p. 364), ou seja, são baseados em proibições de ações que

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porventura viriam a trazer impurezas à deidade. Assim, os ritos de interação baseados no controle da informação culminariam na construção de uma “face negativa”, ou seja, em uma face construída através de certas proibições que visariam a não macular a deidade sagrada que é o “eu”, cuja exteriorização é a “face”. Em uma conversa todos os interlocutores se preocupariam em preservar a própria “face” e a “face” dos outros, pois o próprio sucesso da mesma dependeria disso.

O “equilíbrio ritual”, portanto, dependeria de dádivas e contra-dádivas, e poderia ser quebrado, quando por algum motivo um desses elementos deixa de figurar na conversa, causando um “mal-entendido” ou uma “indiscrição”, nas palavras de Lévi-Strauss (1993). O mal-entendido seria uma carência de comunicação com outrem, e a “indiscrição” seria justamente o excesso de comunicação com outrem, comunicação essa que deveria ser controlada como antes já se disse.

Quebrado o equilíbrio por algum dos conversadores há chance para a retratação que também ocorre enquanto reciprocidade, na qual se oferece a ao outro a possibilidade de reinterpretar algo mal dito e espera-se a aceitação de tal retratação. Mas para que isso aconteça é necessário um elemento que daria início ao processo ritual, que impediria que o grupo entrasse em estado de impureza, de profanação do “eu” dos interlocutores. Nas palavras de Goffman (1967), um “processo de correção” da face. Esse elemento é o da “intimação”, ou seja, de dar ciência ao ofensor de sua responsabilidade e assim oferecer-se para a coerção devida. Não oferecida a “intimação” ou negada a mesma pelo agressor, ele pode, então, se ver como apto a praticar outras transgressões, como “um benefício para sua própria face”, em detrimento da dos outros.

Abre-se espaço, então, para o “enfrentamento”, ao invés da manutenção de um equilíbrio. Como em um duelo ou em uma arena de combates, há testemunhas, há público, há platéia. E é com vistas a essa platéia que a honra faz sentido. A honra é aqui vista como a “transgressão do domínio do interdito

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dos outros” e é ela que transforma o que seria uma tentativa de restauração de uma “face negativa”, marcada pelas proibições de mácula desta face, desta apresentação do “eu”, em uma “face positiva”, que avançaria ativamente contra tais proibições, profanando a face alheia, para sacralizar a do profanador, visto no final do “duelo”, do “combate”, como o grande vencedor, aquele que melhor ostentou agonisticamente o seu repertório de palavras, o seu “vocabulário”.

Tendo em vista o exposto, voltemos aos cinco casos oferecidos anteriormente, que apesar de constituírem excertos de conversas, nos ajudariam a ver como se daria a face-work (GOFFMAN, 1967), ou seja, a construção da face, ou ainda “tudo que uma pessoa empreende para que suas ações [ou omissões] não levem alguém – e ela mesma – a perder a face” (GOFFMAN, apud CAILLé: 2002, 118) conjugada com o sistema de dávidas e contradádivas propostas por Mauss (2003).

O primeiro caso apresentado tem como protagonista a figura intitulada João, que contracena com seus amigos, cuja atenção se dirige a um grupo de meninas. Depois de oferecer o seu assento para uma das moças, João, vendo que seu amigo sentado não havia feito o mesmo para uma das meninas, oferece a ele um “dom de solicitação”: “dá lugar pra elas!”. Caso fosse aceito e retribuído, teria construído perante as meninas a “face” do grupo, uma imagem boa a respeito do mesmo. Não é o que acontece. O amigo não aceita e, com isso, ofende o grupo. João, preocupado com a “face” do grupo e consigo mesmo, oferece ao amigo a possibilidade de retratação, ou seja, uma “intimação”, uma provocação: “tu é cavalo ou cavaleiro?” A provocação ganha contornos de uma separação simbólica do amigo em um universo dividido entre cavaleiros e cavalos. Negada a intimação pelo amigo, João, ainda preocupado com a manutenção da “face” do grupo (cavaleiros), exclui verbalmente o amigo, delega a ele, por fim, a alcunha de animal, como alguém fora da cultura: “tu é um cavalo!”.

O segundo caso apresentado é o de dois amigos que contracenam, um supostamente mais velho e outro mais novo. Um pai e seu filho de colo

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se posicionam ao lado dos dois amigos que estão sentados. O “mais velho”, vendo que seu amigo que estava diretamente ao lado do pai não tinha ainda oferecido o assento a este último, comenta em tom de voz audível: “dá lugar para ele, tu é novo ainda!”. O “mais velho”, vendo que o “mais novo”, ao não oferecer o assento, poderia estar colocando em xeque a “face” dos dois, oferece a oportunidade de redenção, a “intimação”, que é aproveitada pelo segundo, que a aceita, e depois de refletir sobre os prós e contras de tal ato, decide retribuir oferecendo o assento ao pai e seu filho. Nota-se que, para não pôr em risco sua própria “face”, o “mais velho” antecipa tanto ao amigo quanto à platéia que a obrigação de ceder o assento não era dele e sim do “mais novo”; enquanto a dele, como “mais velho” seria a de adverti-lo quanto a isso.

O terceiro caso nos mostra duas senhoras que, apresentando-se como “velhinhas”, oferecem a dois jovens uma “intimação” com ares de “dom de solicitação”: “vocês que são jovens, podiam deixar duas velhinhas sentar [...] dois gatos novos sentados [...] tudo bem?” Nota-se que, ao mesmo tempo em que se cobra uma suposta obrigatoriedade da cessão do assento para elas, por serem “velhinhas”, uma delas os chama de gatos como em uma paquera. De fato, há aí uma ambigüidade no discurso, na medida em que não se sabe ao certo o que elas realmente desejam, se o assento dos “gatos”, se os próprios, ou talvez os dois de uma vez. A “intimação” / “dom de solicitação” não obteve o resultado desejado, na medida em que as mesmas foram ignoradas. Não satisfeitas elas insistem na “intimação”, trazendo à tona outro atributo que daria a elas o direito ao assento: “dá o lugar pra gente, olha, eu to operada!”. Novamente, o silêncio foi a resposta. Tais “faces” construídas pelas supostas “velhinhas” não obtiveram o êxito esperado, se fosse um dos apresentados acima, provavelmente pelo tom irônico com que foram construídas, que não deram a legitimidade necessária para tal êxito. Mas, por outro lado, se o que se queria era arrancar o riso da platéia que as estava assistindo, não há dúvidas que alcançaram seu intento.

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No quarto caso temos um rapaz que está querendo desembarcar, mas não consegue, pois há um número grande de pessoas à sua frente impedindo-o de passar. Frente a isso, pede para o motorista aguardar, pois ainda não havia conseguido passar, ao mesmo tempo em que reclama em voz alta para que as pessoas lhe dêem passagem, pois provavelmente pensa ser uma regra implícita do próprio ônibus que as pessoas ofereçam passagem a quem está prestes a descer. Entendendo que tal “pedido” não tem “cabimento”, pois para si a regra consiste em posicionar-se previamente próximo à porta de saída de forma que o desembarque se dê rapidamente, um outro rapaz, no anonimato da multidão que o protege defendendo a “face” do grupo ultrajado pela reclamação e a sua própria, age de forma a atingir a “face” do primeiro rapaz, que vira então seu adversário de combate verbal, grita: “tá achando ruim, pega um táxi!”. Tal comentário, assim como o comentário do primeiro caso restitui a “face” do grupo que separa não mais homens de animais, mas agora pobre de rico, quem anda de ônibus e quem anda de táxi. No caso, “quem anda de ônibus”, é “safo”, é trabalhador, sabe das dificuldades da vida e não lamenta o seu destino, que, apesar de todas as adversidades, é digno, como todos aqueles que se preocupam em posicionar-se próximo à saída na hora de descer. Quem anda de táxi, no caso, seria supostamente o contrário, não é “safo”, vive no conforto, pouco afeito ao trabalho, alguém de vida fácil, que tem dinheiro.

Por último, temos o caso da moça que foi supostamente assediada por um dos passageiros que estava próximo a ela. O assédio, por si só, pode ser identificado como um mecanismo ritual de construção de uma “face positiva”, na medida em que se configura em “transgressão do domínio do interdito do outro”, ou seja, as proibições relativas ao corpo da mulher, nesse caso, foram extrapoladas, foram invadidas. O suposto assediador poderia com seu ato estar defendendo tanto a sua própria “face”, o assédio seria, então, algo que a sociedade espera de um “macho” de verdade como ele pensa que é, como também poderia estar em “jogo” a “face” do grupo, porque o seu ato poderia ser

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interpretado como uma “intimação” oferecida à moça para retratar-se, por estar vestida “indevidamente”. A moça não aceitou a “intimação”, a princípio por pensá-la um desrespeito, algo que “sujaria” sua “face”. Com vistas a defendê-la, anuncia perante a “platéia” o acontecido, esperando de um lado o seu apoio e uma possível retratação do assediador. Assim, o anúncio ganha contornos de também “intimação”. Não houve apoio por parte da “platéia” à moça, o que reforça a idéia de que o assédio pode ser visto como uma “intimação”, que visaria restaurar ao equilíbrio ritual do grupo no interior do ônibus, ameaçado naquele momento pela moça. O que houve foi nova “intimação”, um convite para a mesma sentar-se, visto que havia um assento vago logo ao seu lado. Para as pessoas presentes no ônibus, o melhor a ser feito por alguém que já estava “errada” desde o começo era sentar-se e encerrar a discussão, ou seja, retirar-se da contenda antes que a mesma acabasse mal. A moça, não satisfeita, não aceita a nova “intimação”, pois retirar-se significaria reconhecer o “erro”, perder a honra, a dignidade e, assim, permanece em pé, proferindo outro comentário em forma de desafio: “quero ver se ele tenta de novo”.

Como percebemos nos casos analisados, os passageiros observam regras de convivência social, mas não sem ironizar as mesmas, como nos enunciados em que tais regras são reforçadas verbalmente. Nos discursos relatados há dificuldade para se precisar o que está por trás de cada palavra dita: o que realmente está em jogo nessas conversas? A construção de uma “face” do grupo conjuntamente com a dos interlocutores, ou uma construção da “face” do indivíduo que profere as palavras? A obediência às regras e seu reforço ou o questionamento da mesma por meio da ironia e do riso?

Conclusões

Jean Dekindt (apud RIVIéRE, 1997, p. 310-311), referindo-se a uma viagem de metrô ou de ônibus, reconhece na “entrada” e na “saída” da rede de

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transporte não apenas “atos simplesmente funcionais e técnicos, mas também simbólicos”, expressos nas condutas rituais dos sujeitos. Arnold van Gennep (2008, p. 41), sendo mais específico, reconhece que “o embarque e o desembarque, o ato de montar na carruagem ou na liteira, de montar a cavalo para sair de viagem ou desmontar do mesmo etc., vão freqüentemente acompanhados por ritos de separação ao partir e agregação ao voltar”.

Nesse sentido, o passageiro do “678”, durante a viagem, enquanto não chega à Ponta Negra, ainda não abandonou, a despeito do rito de separação, por completo sua condição inicial que diz respeito ao contexto doméstico em que estava inserido, como também aproveita este ínterim para se preparar para o novo contexto que tão logo estará fazendo parte. Assim, o espaço interno do ônibus, funciona como uma fronteira entre dois mundos, o mundo da casa, doméstico, e o mundo da praia, público, sugerindo o que Antonio Augusto Arantes (1997, p. 260) convencionou chamar de “guerra dos lugares”. Segundo ele, “os lugares sociais assim construídos não estão simplesmente justapostos uns aos outros como se formassem um grande mosaico”. Acrescenta, também, que, para este autor, os lugares sociais “sobrepõem-se e, entrecruzam-se de um modo complexo, formam zonas simbólicas de transição, onde os sujeitos e os cenários da sua interação desenvolvem atributos análogos aos que Victor Turner (1974) conceituou como liminares”.

Aqui vemos o ônibus mais como um espaço liminar do que um não-lugar (AUGé, p. 2004). Segundo este autor, o “usuário do não-lugar deve sempre provar sua inocência”, o que faz com atributos impessoais, não dispondo nem da conversa para tal, “as palavras aqui quase não funcionam mais”. Tal distinção entre espaço liminar e não-lugar se dá pela importância da conversa durante as viagens no primeiro caso e na quase ausência da mesma no segundo. A conversa é apresentada enquanto “dádiva de palavras” (CAILLé, p. 2004). Representa, sobretudo, estratégias individuais e coletivas que têm o objetivo de provar a qualidade de bom cidadão que será transferida, posteriormente, do espaço do

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ônibus ao espaço da praia. A prova da “inocência” é dada ao cobrador e ao motorista, mas, sobretudo, aos demais passageiros, utilizando-se de atributos pessoais, como cordialidade, honra e caráter.

Por outro lado, tais provas, que constituem regras formais ou informais, de comportamento, que dariam àquele que as observasse o estatuto de pessoa “educada”, e por isso titular de um direito à praia, ao mesmo tempo são postas em xeque através do riso e da ironia. As regras são obedecidas ritualisticamente, mas de forma sempre caricata, estereotipada, como se todos estivessem participando de um teatro cômico, no qual há diferentes vozes falando através dos protagonistas, vozes que apontam para diversas direções, vários significados possíveis.

Conforme vimos anteriormente, segundo Victor Turner (1974, p. 117) “os atributos da liminaridade, ou de pessoas liminares são necessariamente ambíguos”. Mary Douglas (1991) toma como sinônimos “ambigüidade” e “anomalia” no uso prático destes termos , embora reconheça que em seu estrito sentido não o são. Para esta autora, anomalia seria algo que não “se insere em uma dada série e um dado conjunto”. Ambigüidade, por sua vez, “caracteriza enunciados que podem ser interpretados de duas maneiras”. Ambos os conceitos se aproximam, por designarem situações cuja classificação é difícil ou problemática, que por suas características não conseguimos encaixá-los em nossos modelos pré-construídos, ou seja, não podemos colocá-los “em ordem”, como percebemos nas conversas dos passageiros do “678”. Mas esta aparente “falta de ordem” presente na ambigüidade das manifestações populares, ao mesmo tempo, que instiga e oferece “perigo”, é o que confere a elas seu caráter poético, permitindo “enriquecer o sentido ou chamar atenção sobre outros níveis de existência” (DOUGLAS, 1991, p. 55). E é essa poética que permite que os sujeitos de cultura popular possam repetir expressões do domínio público, entre tantas, tais como: “nós é pobre, mas se diverte” e “nós é pobre, mas é limpinho”, ou

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seja, divertem-se e preservam-se, conformam-se e resistem, permitem e proíbem simultaneamente.

Bakhtin (2008) oferece-nos a figura do grotesco, para se referir à ambigüidade, no seu caso, à ambivalência: “a imagem grotesca caracterizaria um fenômeno em estado de transição de metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução” (BAKHTIN, 2008, p. 21-22). O que nos faz pensar nos passageiros, durante a viagem no “678”, como estivessem vivendo uma metamorfose, enquanto metáfora dos processos sociais que ali se desenvolvem, ainda que restritos ao espaço do ônibus, comparável a um “casulo”, buscando, sobretudo, mobilidade e liberdade, tanto física quanto mental e sentimental.

Nossos passageiros seriam “metamorfose ambulante”, como diriam Raul Seixas e Paulo Coelho na famosa canção.

Notas

1 Manaus consta de 56 bairros, o Jorge Teixeira é um deles. Está localizado na zona Leste e dista cerca de uma hora do centro da cidade. Os bairros novos que surgiram em Manaus, nas últimas décadas, por conta de processo intenso de crescimento populacional e em função da dinâmica de expansão urbana da própria cidade, abrigaram tanto migrantes como naturais, que buscaram outras alternativas de moradia além do centro da cidade. Por outro lado, a ocupação do solo urbano processou-se de forma desordenada deixando poucas áreas livres, que ao longo das últimas décadas tornaram-se cada vez mais disputadas e reduzidas.2 A tarifa aos domingos corresponde à metade do valor cobrado nos demais dias da semana, o que facilita a mobilidade de passageiros, que aproveitam esse dia para atividades destinadas, sobretudo, ao lazer.

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3 Há poucos lugares disponíveis antes da catraca. No caso do “expresso’, há apenas um banco com dois lugares disponíveis e o espaço é muito reduzido.4 O sentido antropológico de liminaridade que utilizamos neste texto tem como referência o antropólogo Victor W. Turner (1974), enquanto um contexto de indefinição de papéis sociais onde se é tudo e nada ao mesmo tempo, desde que se possa provar diante de outras pessoas uma condição social e assumir uma identidade pessoal de fato. Por exemplo, a condição liminar de “vestibulando” e posteriormente a identidade de universitário; no caso deste texto, a condição liminar de passageiro e quem sabe de pessoa, com nome, posição social etc. Desde que se permita assumir, portanto, uma nova condição social perante outras pessoas.5 Para preservar a identidade dos informantes preferimos utilizar nomes fictícios.6 Bebida alcoólica, preparada com cachaça e suco em pó solúvel. 7 Evento de samba que ocorre anualmente em Manaus, reunindo cantores de abrangência local e nacional, com significativa freqüência da população local.8 A partir de observação rotineira, feita fora do contexto do trabalho de campo, percebe-se que muitos dos homens que “pegam o 678” nos dias de semana trabalham na construção civil nos novos empreendimentos imobiliários da Ponta Negra.9 O nome João utilizado para o garoto é fictício, com o propósito de identificá-lo na relação assumida com o grupo de amigos e, neste último caso, com a conversa travada com outro colega.

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o gasoduto Coari-manaus e as perspectivas de desenvolvimento para o interior do Amazonas: algumas

recomendações*

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resumo

O artigo discute como o gasoduto Coari-Manaus pode auxiliar no desenvolvimento do interior do Amazonas, a partir das potencialidades identificadas nos municípios na sua área de influência. As discussões são sobre Iranduba e Manacapuru pela proximidade e influência que ambos recebem da capital. Assim, recomendam-se algumas ações fundamentais para o desenvolvimento social e ambiental nesses municípios.

Palavras-Chave: Planejamento Urbano-Regional. Desenvolvimento. Gasoduto Coari-Manaus.

Abstract

The article discusses how the Coari-Manaus gas pipeline can help in developing the State of Amazonas rural area by using the potentialities identified in the surrounding areas under its influence. The discussions involve Iranduba and Manacapuru due to the proximity and the influence that the capital has over

* Elaborado a partir da Dissertação de Mestrado “Potenciais impactos do gasoduto Coari-Manaus no município de Manacapuru – AM”. Florianópolis, 2007. Com orientação do Prof. Dr. Carlos Loch. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM.

**Geógrafo, Mestre em Arquitetura e Urbanismo, Pesquisador Visitante no Instituto Leônidas e Maria Deane – ILMD/FIOCRUz.

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both of them. Thus, some effective actions are recommended for the social and environmental development of these municipal districts.

Keywords: Urban Regional Planning. Development. Coari-Manaus Gas Pipeline.

introdução

O Estado do Amazonas possui o segundo maior contingente populacional da região Norte, conforme números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Em 2005 sua população total já ultrapassava os 3,2 milhões de habitantes, mas devido sua expressiva extensão territorial de 1,5 milhões de km2, sua densidade demográfica é de apenas 1,79 hab/ km2. Aproximadamente 75% da população vivem nas cidades, especialmente em Manaus, que concentra o poder econômico-industrial da Região Norte brasileira.

O desenvolvimento econômico e social no Estado do Amazonas tem sido promovido pela presença da zona Fraca de Manaus – zFM. Este modelo, implantado pelo Governo Federal, na década de 1960, caracteriza-se pela isenção fiscal, o que atrai a instalação de indústrias diversas na região. Os objetivos eram de viabilizar uma base econômica na Amazônia Ocidental, promover melhor integração produtiva e social dessa região com o país e garantir a soberania nacional sobre suas fronteiras, conforme muito divulgado durante o Governo Militar.

Com a zona Franca foram criados em Manaus um distrito agropecuário, um distrito comercial (no centro da cidade) e um distrito industrial, mas apenas este último permanece com sucesso. A Superintendência da zona Franca de Manaus – SUFRAMA, autarquia ligada ao Ministério do Desenvolvimento e Comércio Exterior – MDIC e que administra esse importante pólo industrial do país, realiza feiras expositivas periodicamente que demonstram o potencial

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tecnológico e de mão-de-obra disponível no Amazonas; essa feira tem atraído investidores brasileiros e de outras nacionalidades.

Apesar do sucesso ao longo destes mais de 40 anos, a zona Franca de Manaus não promoveu o desenvolvimento nos municípios interioranos; como prova disto tem-se uma elevada concentração populacional e conseqüentemente do comércio e serviços na cidade de Manaus, o que gera centralização econômica, política e social, enquanto os demais municípios do Estado permanecem com baixos índices de desenvolvimento. A falta de energia elétrica é o principal problema dentre as dificuldades encontradas.

Não se pode desconsiderar que a zona Franca de Manaus também tem contribuído para a preservação das florestas no interior do Estado, como explica Berta Becker (2005, p. 83); como conseqüência tem-se a concentração de toda força produtiva apenas na capital, Manaus. Isso, por um lado, até poderia ser positivo; por outro lado, transformou a região em refém da renovação das licenças de funcionamento da zona Franca. Daí a importância e necessidade de se pensar o desenvolvimento no interior do Estado, a partir de suas potencialidades endógenas.

Na discussão sobre o desenvolvimento de uma região é imprescindível conhecer as condições existentes, ou seja, é necessário reconhecer o meio técnico, científico e informacional, conforme expressa Milton Santos (2008). No caso do Amazonas, a pouca infra-estrutura nos municípios do interior tem influenciado no baixo desenvolvimento ou nas condições para que ele ocorra. A instalação de redes de serviços, por sua vez, especialmente de energia elétrica, esbarra diante do isolamento das localidades, isto é, da baixa densidade demográfica, característica inerente ao interior do Estado. Tal condição inibe possíveis empreendimentos e dificulta até mesmo melhorias infra-estruturais (POzzOBON; LIMA, 2005).

Neste sentido, a ação do Governo Militar de incentivar o povoamento da Amazônia estaria correta? Seria a melhor alternativa? Os imigrantes estariam prontos a se adaptarem às condições ambientais na/da região? Como essa política

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subsistiria se perdurasse na atual conjuntura dos movimentos ecológicos contra o desmatamento e pela preservação da floresta? Diante destas questões, as quais não serão esgotadas neste texto, questiona-se ainda como o desenvolvimento social, econômico e ambiental pode se dar no interior amazonense? Incentivar e investir nas potencialidades regionais são as melhores alternativas latentes.

Energia elétrica para desenvolver as potencialidades regionais

A energia elétrica no Estado do Amazonas é uma das mais caras do Brasil, pois ela é gerada em sistemas isolados1, normalmente abastecidos com óleo diesel (ROSA, 2007, p. 56), o que encarece e dificulta os empreendimentos de quase toda natureza.

Com a descoberta de petróleo e gás na região de Urucu, a crença de que o interior do Estado venha a se desenvolver tem sido muito forte, pois a mudança da fonte energética para uma matriz de menor custo operacional pode atrair diversos empreendimentos, contribuindo para desenvolvimento econômico local-regional; entretanto primeiramente é fundamental fazer com que o gás chegue aos centros urbanos, onde estão instalados os principais consumidores de eletricidade.

Conforme Camargo et al. (2004, p. 318) a geração e distribuição de energia elétrica para uma cidade ou região são fundamentais para o desenvolvimento. No Brasil, por exemplo, as regiões Sudeste e Sul do país destacam-se no cenário nacional, não apenas economicamente, mas nas diferentes áreas, seja na política, nas artes, na educação, na concentração industrial. Seria coincidência a densa rede de energia nesses Estados?

José Goldemberg (2000, p. 91-93) também concorda com essa interpretação de que a energia é um ingrediente essencial para o desenvolvimento, entretanto, adverte: a maioria dos equipamentos e processos utilizados nos dias de hoje nos setores de transporte, industrial e residencial foi desenvolvida numa época de energia abundante e barata e quando as preocupações ambientais ou não

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existiam ou eram pouco compreendidas. Nesse sentido, ao refletir sobre os processos e projetos de desenvolvimento do interior do Amazonas, atenta-se para as questões da energia elétrica e das preocupações com o meio ambiente na área em estudo.

Assim, com a construção do gasoduto Coari-Manaus busca-se atender pelos menos três prerrogativas: a primeira é levar o gás aos centros consumidores, sendo Manaus o principal deles; a segunda prerrogativa diz respeito a uma questão fundamental, que é a redução da degradação ambiental quando comparada ao sistema atual de termelétricas abastecidas com óleo diesel; uma terceira prerrogativa, muito ligada à anterior, trata da melhoria da qualidade do sistema de geração de energia elétrica sem, no entanto, torná-lo em preços inacessíveis.

O trajeto por onde se instalou o gasoduto pode ser visualizado na figura 1. Os municípios abrangidos pela obra são: Coari, Codajás, Anori, Anamã, Caapiranga, Manacapuru, Iranduba e Manaus.

Figura 1 – Área de influência do gasoduto Coari-Manaus. Imagem LANDSAT-7/ETM+,

2003. Organização do Autor.

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A área considerada de influência direta abrange uma faixa de 10 km, sendo 5 km de cada lado do gasoduto. No caso do município de Manacapuru, o Plano Diretor Municipal, aprovado em 2007, sugere a criação de uma faixa de preservação ambiental ao longo da margem da obra, atenuando-se os impactos ambientais admitidos e propiciados pela construção e implantação da obra. Estas mudanças não podem ser compreendidas como estritamente ao meio natural, daí a necessidade de discutir o empreendimento quanto à sua contribuição para o desenvolvimento, no sentido amplo deste termo.

Neste sentido, entende-se que a construção do gasoduto deve significar não apenas o levar energia para o interior do Amazonas, o que por si já é um significativo avanço, mas também propiciar o desenvolvimento em âmbito regional – local, sobretudo nos municípios localizados na sua área de influência. Mas, para que isto aconteça, são necessários alguns investimentos conforme as potencialidades dos municípios, levando essencialmente a infra-estrutura, como se discute adiante.

O orçamento da União para o ano de 2007 revelou haver consenso sobre a necessidade de se investir na oferta de energia elétrica como um dos principais caminhos para permitir o crescimento econômico da Região Norte brasileira. Conforme noticiado pelo jornal Diário do Amazonas, em novembro de 2006, “a maior parte dos investimentos para a Região concentra-se no setor de produção de energia [...] dos R$ 7,7 bilhões destinados à Região Norte, está prevista uma verba de R$ 800 milhões para o custeio e investimentos na Eletronorte”. O gasoduto Coari-Manaus é a principal destas obras que, enquanto matriz energética, seu objetivo primário é a geração de energia de baixo custo, o que possibilita a implantação de indústrias ou quaisquer outros empreendimentos nos lugares situados ao longo de seu percurso.

Além dos recursos financeiros investidos, conta-se ainda com a alta tecnologia e a presença da mão-de-obra especializada que se instala na região. Oportunamente, as administrações locais, em parceria com a Petrobras – empresa

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responsável pela exploração e distribuição de gás e petróleo – devem elaborar e apresentar um plano de investimentos e de fomento aos potenciais investidores. O Plano Diretor Municipal, um dos instrumentos legais obrigatórios para municípios inseridos na área de influência de empreendimentos com significativo impacto ambiental, deve orientar os investimentos e o desenvolvimento urbano e rural do município. O Estatuto da Cidade estabelece também que o planejamento municipal deve ser elaborado com ampla participação popular.

O planejamento e a gestão participativa, desenvolvidos com o devido rigor democrático e técnico, são uma importante alternativa para racionalizar o uso dos recursos disponíveis e evitar equívocos já experimentados na exploração das riquezas existentes na região. A economia amazonense, até o início do século XX, foi baseada no extrativismo vegetal, com a exploração do látex, e viveu seu apogeu com o ciclo da borracha2. Houve grandes investimentos na vida econômica e sociocultural na região; o Teatro Amazonas é o símbolo maior desse momento histórico social. Contudo, as glórias adquiridas não foram capazes de impulsionar o desenvolvimento intra-regional, possivelmente porque se tratava apenas da retirada de um recurso, sem programar sua utilização na região.

A atividade mineral no Estado do Amazonas ainda é irrelevante, a exploração de metálicos é praticamente restrita à mina de cassiterita (estanho) e columbita-tantalita (nióbio e tântalo) do Pitinga, operada pela Mineração Taboca do Grupo Paranapanema. Conforme dados do Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, em 2001 o Estado teve uma movimentação financeira na ordem de R$ 84 milhões, enquanto que o Estado do Pará movimentou R$ 6,6 bilhões no mesmo período.

A importância do gasoduto Coari-Manaus também é compreendida pelo fato de que o processo de exploração de petróleo e dos seus derivados possui algumas características que o torna diferenciado de outros projetos pensados e implantados no Amazonas, os quais visavam à exportação dos bens e recursos

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naturais. O petróleo e o gás extraído serão utilizados/consumidos na própria região.

Em termos de preocupações ecológicas, pode-se dizer que houve um avanço em relação aos primeiros grandes projetos, porém, a falta de consenso entre a política de desenvolvimento econômico e a política de preservação ambiental têm como resultado o caráter focal, restrito à maximização dos objetivos econômicos imediatos dos projetos. Trata-se, portanto, de uma cultura ecológica instrumental e limitada, sem referência à globalidade dos sistemas ambientais afetados. (POzzOBON; LIMA, 2005, p. 66).

As mudanças socioespaciais, em função do processo da implantação de um gasoduto no interior do Amazonas, já puderam ser experienciadas, como avaliou Cáuper (2000), no município de Coari. Entretanto, as transformações que ocorrerão nos municípios do interior amazonense, sob influência direta do empreendimento, dependem também da reação preparada pelos agentes produtores locais, ou seja, os impactos ambiental, econômico e, especialmente, social dar-se-ão mediante a capacidade dos gestores locais receberem tais modificações, da capacidade de absorção dos impactos advindos, sejam eles positivos ou negativos.

Como se afirmou acima, a distribuição de energia numa dada região pode contribuir para seu desenvolvimento, pois, onde há uma rede de energia elétrica, haverá mais indústrias, possivelmente poder haver mais ofertas de emprego, o que atrai novos moradores e assim, necessitando de maior infra-estrutura social (CAMARGO et al. 2004). Portanto, de maneira paradoxal, os impactos sociais e ambientais dar-se-ão com maior intensidade, como acontece nas grandes cidades do Brasil, as quais em algum momento-espaço fazem lembrar a antiga Manchester industrial, descrita no texto de Engels (1987).

Ao pensar o pleno desenvolvimento acima referido, é essencial considerar também as condições de moradias para os novos habitantes que haverão de se instalar nas cidades em busca das melhorias preconizadas.

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Significados e expectativas do gasoduto Coari-manaus

O gasoduto Coari-Manaus previsto para funcionar a partir de fevereiro de 20083 terá a capacidade para escoar cerca de 5,5 milhões de metros cúbicos de gás natural por dia. O produto será destinado ao abastecimento de usinas termelétricas convertidas de óleo para gás e para atendimento às residências, às indústrias e à frota de veículos, especialmente táxis4 de Manaus.

Segundo informações disponibilizadas pela Petrobras, em Urucu, município de Coari-AM, está a maior Unidade de Processamento de Gás Natural do Brasil – UPGN do Brasil. Sua produção média de gás natural é de 10,36 mil metros cúbicos por dia. O processamento de Gás Liquefeito de Petróleo – GLP, por exemplo, supera 1,5 mil toneladas diárias, quantia esta equivalente a 115 mil botijas de 13 kg e tem abastecido os Estados do Pará, Amazonas, Rondônia, Maranhão, Tocantins, Acre, Amapá e parte do Nordeste.

Em matéria publicada no Jornal do Comércio (Manaus), no dia 5 de junho de 2006, o geólogo Daniel Borges Nava, então superintendente do Serviço Geológico do Brasil, afirmou que as reservas minerais, de óleo e de gás do Amazonas podem atender o país por 80 anos. Segundo ele, o contingente está concentrado em Urucu-Juruá, na Bacia do Solimões e, no município de Silves, a 283 km de Manaus.

Todas estas reservas somadas estão acima de 80 bilhões de m³. Se tivéssemos o gasoduto, poderíamos atender o Brasil em mais de 80 anos, considerando que o consumo interno atual é de 1 bilhão/ano”, explica o superintendente. [...] Segundo Nava, não falta conhecimento tecnológico nem de matéria-prima. O problema é levar a produção mineral até o mercado, esforço este que está sendo realizado em conjunto com o governo do Estado e a Petrobras.

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A exploração do gás natural da bacia petrolífera de Urucu, tendo como mercado consumidor a capital e mais algumas cidades do interior, constitui-se numa via oportuna para o desenvolvimento do interior amazonense. Mas, para tanto, torna-se necessário atentar à melhor maneira de como isso será explorado, de que forma serão distribuídos os bônus e os ônus naquelas localidades por onde passa o gasoduto.

Para a sociedade local, isto é, para aquelas pessoas que moram na área de influência, sua preocupação maior quanto às possíveis transformações sociais decorrentes da implantação da obra é saber quanto e como suas condições de vida poderão ser melhoradas a partir do empreendimento. Esse sentimento reflete o quão carentes de melhorias infra-estruturais se encontram estas localidades. Com isso, entende-se que o desenvolvimento carece da instalação e funcionamento de boas escolas, de mudanças na saúde coletiva, da geração de renda e valorização cultural por meio do incentivo à criatividade pessoal-local, do respeito ao meio ambiente e, assim, das melhorias na qualidade de vida.

É evidente que a filosofia de desenvolvimento de quaisquer investimentos aplicados deve estar à altura da realidade socioeconômica local e regional, e isto implica que nem sempre se podem aplicar as mesmas concepções de desenvolvimento experimentadas noutras regiões do país.

Quanto ao setor de transportes, acredita-se que este também poderá ganhar novos horizontes com a utilização do Gás Natural Veicular – GNV, com a redução de custo e maior rendimento para os proprietários, e estes valores precisam ser repassados aos clientes e usuários do sistema de transportes e, em se tratando do interior do Estado, especialmente às embarcações regionais.

Conforme informou, via correio eletrônico, Paulo César de Oliveira Lima – engenheiro mecânico da PETROBRAS, “a utilização do GNV Puro nas embarcações ainda não é viável por questões de tecnologia e logística para abastecimento”, no entanto, a empresa tem apoiado “o projeto de um navio para transporte de passageiros e automóveis com tecnologia bi-combustível

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(gás natural + óleo diesel)”. Lamentavelmente, não se percebeu até o momento nenhum projeto ou movimentação para que as embarcações no Amazonas passem por adaptações a fim de se utilizarem deste combustível também.

No Amazonas, uma especificidade regional atrai a atenção dos especialistas: o setor fluvial. Como os rios substituem as estradas, está sendo estudada a conversão de motores de grandes embar-cações para uso do GNV. Atualmente estão registradas no estado 32.423 embarcações. (PETROBRAS, 2005, p. 7).

Em realidade, as condições do transporte fluvial no Amazonas não têm recebido a devida atenção das autoridades políticas ou dos gestores técnicos. A construção, usos e manutenção das mesmas parecem não ter fiscalização por parte dos setores competentes. A precariedade do sistema somente é discutida quando acontecem grandes acidentes, vitimando dezenas de pessoas.

Considerar as condições físico-geográficas, as ações políticas e atentar, sobretudo, às especificidades do território é fundamental para quaisquer programas ou propostas de desenvolvimento de uma região. Também não há como dissociar o ambiental do social, pois o meio ambiente é o resultado dessa constante inter-relação.

O meio ambiente é o produto da interação entre os homens e a natureza e da intervenção entre os próprios homens, em espaços e tempos concretos e com dimensões históricas e cul-turais específicas que expressam também o significado político e econômico das mudanças que se pretende induzir ou sustar (RATTNER, 1992, p. 63).

Os atores sociais envolvidos no processo de implantação do gasoduto e de outros empreendimentos que o mesmo possa atrair precisam estar sensibilizados ao fato de que o uso extensivo dos recursos naturais, especialmente se não há manejo, é extremamente nocivo ao ambiente. Atenta-se para isto porque, infelizmente, o discurso oficial e burocrático projeta o desenvolvimento sustentável numa dimensão essencialmente ecológica, como adverte Freitas

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(2003), deslocando-o da tessitura social. No limite, quando ele imprime historicidade a esta noção, refere-se às gerações futuras. é preciso que haja uma linguagem sistêmica e integradora que articule os processos da natureza com a cultura nas escalas espaciais e temporais.

Apesar de tudo, algumas expectativas de melhorias nas cidades poderão se concretizar quando os ramais de gás para os municípios na área de influência direta do gasoduto estiverem concluídos e as usinas termelétricas para geração de energia elétrica estiverem em pleno funcionamento. Os ramais para cada cidade representam um investimento de R$ 70 milhões e foram previstos no estudo para a aprovação do Relatório de Impacto Ambiental do empreendimento.

Paralelamente aos ramais também se planeja implantar uma rede de fibra ótica, interligando com alta tecnologia de informação as cidades na área de influência do empreendimento. Caso isto se concretize, certamente será um salto tecnológico que criará diversas oportunidades aos moradores das cidades na área de influência, como a possibilidade da instalação de outras redes de serviços tais como educação à distância, atendimento médico, acesso à internet e à telefonia de alto desempenho.

Portanto, a expectativa é do aumento do consumo de energia, mas também de uma melhoria do bem-estar da população local, por meio dos serviços que serão gerados pela energia elétrica disponibilizada, como explica Goldemberg (2005, p. 215): “o propósito para o qual os serviços energéticos são alocados é que determina, em última análise, o nível de desenvolvimento econômico atingido”.

Potencialidades dos municípios da área de influência – exemplo de

manacapuru

A condição físico-geográfica dos municípios localizados na área de influência situa-os todos de maneira similar, quando se observa numa escala

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pequena; localizados em terrenos de várzea, banhados pelo rio Solimões e alguns de seus afluentes, mas basta uma aproximação, aumentando a escala de análise, para verificar as dessemelhanças, ou melhor, a diversidade entre os lugares alcançados pelo gasoduto. A proximidade de um centro produtor, a exploração de algum recurso natural, como a argila, tem possibilitado transformações econômicas, sociais e demográficas, como se verifica nas cidades de Iranduba e Manacapuru.

Neste segundo município, a impressão que se teve em muitos dos lugares visitados foi a de que há diversas potencialidades para o desenvolvimento local que podem ser trabalhadas, mas em todos os casos um dos elementos inibidores são as condições de infra-estrutura existentes, isto é, sistema de transportes, abastecimento d’água, energia elétrica, escolas e atendimento em saúde.

Na maioria das cinqüenta comunidades de Manacapuru, se poderia incentivar e conceber cooperativas visando ao beneficiamento da fibra de juta, para a confecção de produtos artesanais, beneficiamento do pescado e dos frutos regionais (açaí, cupuaçu), pois normalmente estes produtos são vendidos na sua forma in natura, sem antes agregar valor.

No caso do pescado, conforme Gonçalves e Batista (2008, p. 144), a viabilidade do setor de recursos pesqueiros pode se iniciar com a criação de mecanismos de gerenciamento das atividades com a cumplicidade dos usuários. Portanto, o ideal é que para cada setor os gerenciadores estejam integrados a todo o sistema de produção ou beneficiamento. Estas atitudes, para além de aumentar a margem de lucro na comercialização dos produtos, beneficiariam os trabalhadores rurais moradores nas comunidades de onde se extraem os produtos com a geração de empregos.

Também se observou em campo que o município de Manacapuru possui um rico potencial para a produção de farinha de mandioca, mas muitas comunidades sequer têm forno para torrar a massa. No Amazonas, independente da estação do ano, a mandioca é a principal fonte da dieta cabocla (ADAMS et al.

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2005); por isso, mais uma vez se enfatiza a necessidade de melhorar as condições de produção nessas localidades e, evidentemente, buscar parceiros a quem será destinada essa produção que, por sua vez, precisa ter boa qualidade do produto e melhores condições no sistema de transportes.

Conforme dados da Secretaria de Estado da Produção Rural – SEPROR, a demanda por farinha de mandioca no Amazonas é de oito mil toneladas por mês; desse total, sete mil toneladas são para o Distrito Industrial e o restante abastece o setor de alimentação. Entretanto, as empresas do Pólo Industrial de Manaus – PIM compram fécula de mandioca do Estado do Paraná. Ora, as razões para essa atitude podem ser diversas; entretanto, é inaceitável que seja pelo simples fato dos produtores locais não oferecerem o produto em quantidade e qualidade conforme a demanda. Sendo as razões de ordem infra-estrutural, como transportes e energia, este quadro precisa ser urgentemente mudado.

Nos municípios de Iranduba e Manacapuru, concentra-se um dos principais pólos do setor oleiro-cerâmico da Região Norte brasileira. As muitas olarias desta área poderão ser beneficiadas com a utilização do gás natural no abastecimento dos fornos, condição esta que, inclusive, pode reduzir a extração de madeiras usadas como lenhas e contribuir na preservação do meio ambiente. Neste caso, os impactos ambientais causados pelo setor oleiro se concentrariam na retirada de argila, atividade esta carente de um plano de manejo urgente, haja vista as muitas valas encontradas à beira da Rodovia Manuel Urbano – estrada que liga Manaus a Manacapuru. O gás natural nessa região será muito importante no setor industrial já existente, mas também outros setores precisam ser incentivados.

Considerações finais

O desenvolvimento do interior amazonense passa pela compreensão da realidade socioeconômica local, pela identificação da capacidade de absorção ou recebimento das transformações advindas com os empreendimentos previstos

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e almejados. Estas ações poderão contribuir na eficácia das políticas públicas e de gestão a serem implantadas; contudo, somente ocorrerão mudanças positivas mediante algumas iniciativas expostas a seguir:

Incentivar a instalação de pequenas indústrias que busquem agregar valor aos produtos regionais, dando prioridade às frentes pioneiras locais, como o beneficiamento do açaí, do cupuaçu, da castanha e da juta a fim de consolidar as iniciativas existentes. Um caminho possível é a organização de cooperativas de trabalhadores. Também é fundamental organizar e disponibilizar, possivelmente em pólos de desenvolvimento, serviços do sistema público, conforme as demandas sociais identificadas; refere-se a postos de saúde, escolas, postos bancários, postos policiais etc.

A prefeitura e a câmara de vereadores precisam traçar planos para a atração de investimentos; devem buscar parcerias com agências de fomentos com vistas à concessão de créditos aos pequenos produtores locais. Em realidade, é necessário ainda que haja capacitações até mesmo para as lideranças (vereadores, presidentes de associações, secretários) sobre a captação de recursos, submissão e aprovação de projetos nos diversos órgãos financiadores de projetos sociais. Muitas vezes se tem a idéia, os editais estão abertos, os recursos estão lá, porém ninguém conhece os trâmites legais para captação do recurso e liberação das verbas.

Outro ponto importante para o pleno desenvolvimento no interior do Amazonas diz respeito à qualificação profissional dos trabalhadores, pois, sem isto, os mesmos não serão admitidos nos diferentes empregos que possam vir a ser criados; não assumirão as distintas ocupações que as empresas possam precisar. Sem a devida preparação, até estariam inseridos no processo produtivo, porém, apenas como mão-de-obra não-qualificada.

A qualificação profissional da mão-de-obra local precisa atender a demandas de baixa, média e alta escolaridade, isto é, não basta treinar cozinheiros, copeiros e lavadeiras de roupas, mas devem ter cursos capacitando mecânicos, técnicos

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em distintas especialidades e profissionais graduados com nível superior, ou seja, deve-se investir na formação nos níveis médio e superior, por meio de parcerias com as escolas técnicas e instituições de ensino superior a fim de oferecer cursos profissionalizantes visando preparar a sociedade para os investimentos futuros.

Os cursos e treinamentos a serem realizados precisam ter, dentre outros objetivos, a padronização dos serviços urbanos, público ou particular, como em restaurantes, hotéis, escolas e atendimento ao turista; afinal, o desenvolvimento de uma cidade pode ser refletido na qualidade dos serviços oferecidos aos seus visitantes e especialmente aos moradores.

Com relação às cavas para a retirada de argila para uso nas olarias, nos municípios de Iranduba e Manacapuru, podem ser aproveitadas na piscicultura, desde que se façam as devidas adaptações. Por exemplo: o aprofundamento e tamanho necessário para implantação dos tanques, pois, na maioria dos locais de onde se retira a argila, as escavações são apenas de um metro de profundidade. Recomenda-se, ainda, que os órgãos de gestão ambiental do município possam monitorar a construção desses tanques bem como gerenciar os espaços destinados à retirada de argila, evitando-se a exploração indiscriminada de áreas.

Outro horizonte se aproxima: a construção da ponte sobre o rio Negro mudará completamente o processo de reprodução social e espacial de Manacapuru e Iranduba; diante disso, o investimento em pesquisas humanas e sociais é também indispensável para o desenvolvimento da região. Seus resultados podem auxiliar as tomadas de decisões, apontando caminhos a serem seguidos e evitando-se cometer graves erros do passado.

Notas

1 A geração de energia elétrica em sistemas isolados é subsidiada pela União através da Conta de Consumo de Combustível Fosseis – CCC. Este imposto

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representa R$ 3,3 bilhões por ano; o mesmo é pago por todos os consumidores de energia no país.2 O ciclo da borracha constituiu uma parte importante da história econômica e social do Brasil, estando relacionado com a extração e comercialização da borracha. Este ciclo teve o seu centro na região amazônica, proporcionando grande expansão na colonização, atraindo riqueza e causando transformações culturais e sociais, além de dar grande impulso às cidades de Manaus, Porto Velho e, principalmente, à cidade de Belém, até hoje maiores centros e capitais de seus Estados: Amazonas, Rondônia e Pará, respectivamente. O ciclo da borracha viveu seu auge entre 1879 a 1912, tendo depois experimentado uma sobrevida entre 1942 a 1945.3 Este prazo foi previsto antes do início das obras, em junho de 2006. Depois disso, já houve mudanças no cronograma de execução, como abril de 2008, mas também não foi cumprido.4 Em Manaus, já tem táxis funcionando a gás, porém são apenas alguns, que fazem parte de um programa experimental, cujo objetivo é realmente disponibilizar esse tipo de combustível a todos os consumidores.

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A legislação brasileira na tutela dos conhecimentos tradicionais de populações de Benjamin Constant (Am)

Carolini Guedes Barros da Silveira*

resumo

Com o dilema internacional formado, de um lado, pelos países detentores de tecnologia, apoiados nos dispositivos do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (TRIPS), para garantir que os recursos genéticos sejam considerados patrimônio comum da humanidade e, de outro, pelos países de origem de recursos genéticos, agarrados à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), baseada no princípio de soberania dos Estados para explorar seus próprios recursos, o Direito torna-se de fundamental importância na intermediação de interesses tão antagônicos. Com a ratificação da CDB em 1994 e a edição da Medida Provisória nº 2.186-16 em 2001, o Brasil regulamentou questões que envolvem o conhecimento tradicional associado ao recurso genético. Mas será que essa legislação mantém correspondência com os interesses das populações tradicionais? Com o intuito de analisar a aplicabilidade da legislação brasileira que regulamenta o acesso ao conhecimento tradicional associado ao recurso genético em duas populações indígenas localizadas no município de Benjamin Constant (AM), autodenominadas Aldeia Kokama Nova Aliança, de etnia Kokama, e Comunidade Indígena Novo Paraíso, de etnia Tikuna, utilizamos como base teórica desta pesquisa o conceito sociológico de Direito desenvolvido por Bourdieu (1989) e como sustentabilidade lógica a abordagem sistêmica de Morin (2002), tendo sido empregada a metodologia estudo de caso.

* Mestra do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, área de concentração Política de Gestão Ambiental, orientada pela Drª Sandra do Nascimento Noda, cuja dissertação foi defendida no dia 21/08/2007; funcionária pública estadual; e-mail: [email protected], telefone 9116-5947.

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A legislação brasileira na tutela dos conhecimentos tradicionais...

Palavras-chave: Lei. População tradicional. Recurso genético. Conhecimento tradicional associado.

Abstract

With the international dilemma formed, on the one hand, the countries, holders of technology, supported by the provisions of the Agreement on the Rights of Intellectual Properties Related to Trade in order to guarantee that the genetic resources be considered common heritage of mankind and, on the other hand, the countries, holders of genetic resources, grounded on the Convention on Biological Diversity, based on the sovereignty principle of the State to explore its own resources, Law becomes fundamentally important in the intermediation of such antagonistic interests. With the ratification of the Convention of Biological Diversity in 1994 and the edition of the legislation MP nº 2.186-16 in 2001, Brazil regulated affairs that involve the traditional knowledge related to genetic resource. But will this legislation take into account the interests of traditional populations? With the aim to analyse the applicability of Brazilian legislation which regulates the acess to traditional knowledge related to genetic resource of two native populations who inhabit the surroundings of Benjamin Constant city, in Amazonas, Brazil, one denominated Aldeia Kokama, of Kokama ethnic group, and the other Native community of Novo Paraíso, of Ticuna ethnic group. This research founded on the Sociological concept of Law, developed by Bourdieu (1989), and as logical sustainability the systemic abordage of Morin (2002), and employing the case study methodology.

Keywords: Legislation. Traditional population. Genetic resource. Traditional associated knowledge.

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introdução

O presente artigo, cujo tema é o conhecimento tradicional associado ao recurso genético, propõe-se a analisar a legislação brasileira que tutela tal assunto, representada pela Medida Provisória nº 2.186-16, de 2001, sob a perspectiva de duas populações indígenas localizadas no município de Benjamin Constant, região do Alto Solimões do Estado do Amazonas, autodenominadas Aldeia Kokama Nova Aliança, de etnia Kokama, e Comunidade Indígena Novo Paraíso, de etnia Tikuna, visto a relevância do tema para a sobrevivência dessas culturas.

1. Fundamentação teórica: o direito como instrumento regulador de

conflitos sociais

O Direito é um poderoso instrumento criado pelo ser humano com o objetivo de regular os conflitos advindos das relações sociais.

Nesse sentido, Bourdieu (1989) nos mostra três visões distintas do Direito. A primeira, chamada de visão internalista, concentra suas forças no formalismo, onde é afirmada a autonomia absoluta da forma jurídica em relação ao mundo social, e no instrumentalismo, concebendo o Direito como um reflexo ou um utensílio a serviço dos dominantes (BOURDIEU, 1989, p. 209).

Diferentemente, numa visão externalista, Bourdieu (1989, p. 210) afirma que o Direito é um reflexo direto das relações de força existentes, em que se exprimem as determinações econômicas e, em particular, os interesses dos dominantes – um instrumento de dominação. Verificamos que é uma concepção marxista, onde o Direito é apenas um meio utilizado por uma classe dominante para legitimar seus interesses econômicos.

Nessa linha de raciocínio sobre o Direito, Bourdieu (1989, p. 211) dá sua contribuição no sentido de demonstrar que ambas as visões (internalista e externalista) ignoram a existência de um universo social relativamente independente em relação às pressões externas, no interior do qual se produz e

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se exerce a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legítima cujo monopólio pertence ao Estado e que se pode combinar com o exercício da força física.

é dessa maneira, ou seja, de acordo com o que resolvemos chamar de um conceito sociológico de Direito desenvolvido por Bourdieu (1989), que a presente pesquisa está estruturada teoricamente, com a consideração de um grupo humano relativamente independente das pressões de cunho legislativo de origem estatal onde, muitas vezes, se visualizam normas internas próprias e somente reconhecidas nesse meio.

2. Estratégia metodológica

2.1 área de estudo

2.1.1 Localização geográfica

De acordo com características físicas semelhantes, podemos destacar do Estado do Amazonas a região do Alto Solimões, assim chamada em razão de localizar-se na parte alta das águas barrentas do rio Solimões, a qual é composta por sete municípios, totalizando uma área de 131.620,05 km², conforme mostra a figura 1.

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Figura 1. Localização e descrição da região do Alto Solimões no Estado do Amazonas.FONTE: modificado do Plano de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável, 2003, p. 11.

O município de Benjamin Constant pertence ao Estado do Amazonas, distante da capital Manaus 1.118 km, em linha reta, e 1.621 km, por via fluvial, sendo um dos municípios integrantes da região do Alto Solimões, cuja área territorial totaliza 8.704,71 km² (Plano de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável, 2003, p. 3 e 21), de acordo com a figura 2.

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Benjamin Constant

Figura 2. Localização do município de Benjamin Constant (AM) e foto da entrada da sede do município. FONTE: mapa modificado do Plano de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável, 2003, p. 11, e foto da autora, 2006.

Especificamente, no município de Benjamin Constant, estão localizadas as duas populações selecionadas para os estudos de campo, sendo elas chamadas: Novo Paraíso e Nova Aliança.

Novo Paraíso encontra-se na Ilha do Bom Intento, situada na confluência do rio Javari com o rio Solimões. Limita-se ao norte com o Paraná do Mauá, a leste com o rio Solimões e ao sul e a oeste com o rio Javari. Situa-se a 7,0 km, em linha reta, do porto de Benjamin Constant, e tem como coordenadas geográficas 4°19’30”S e 69°59’04”W.

Nova Aliança está localizada em terra firma à margem direita do rio Solimões, nas coordenadas geográficas 4º21’00”S e 69º36’27”. Fica a uma

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distância de 46,7 km em linha reta do porto da cidade de Benjamin Constant, levando cerca de uma hora para completar o percurso em voadeira.

A figura 3, a seguir, detalha a localização da sede do município de Benjamin Constant, como também, das populações Novo Paraíso e Nova Aliança.

1 2

Figura 3. Localização da sede do município de Benjamin Constant (AM), bem como das populações Novo Paraíso e Nova Aliança.

2.1.2 Características físicas

Novo Paraíso, justamente por estar situada numa ilha, chamada Ilha do Bom Intento, encontra-se num ambiente amazônico de várzea, enquanto Nova Aliança está localizada em um ecossistema, também amazônico, mas de terra firme.

2.1.3 Características populacionais

Novo Paraíso foi fundada no dia 17 de maio de 1980, sendo formada por um povo indígena de origem Ticuna, seguidores da religião Ordem Cruzada Católica Apostólica Evangélica. Totaliza 57 pessoas, distribuídas em 11 famílias e possui uma estrutura hierárquica composta pelo Cacique, Primeiro Capitão, Segundo Capitão, Professor, Agente de Saúde, Diretor Religioso e Tesoureiro.

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A Ilha do Bom Intento, onde a Comunidade Indígena Novo Paraíso é um dos grupos humanos que a ocupa, já é uma reserva indígena reconhecida pelo governo brasileiro.

Nova Aliança tem sua origem no ano de 1980, composta por um povo indígena Kokama de nacionalidade peruana, pertencentes à Missão Ordem Cruzada Católica Apostólica e Evangélica. Totaliza 220 pessoas, distribuídas em aproximadamente 47 famílias. A estrutura social hierárquica não se mostra de maneira muito rígida, sendo organizada da seguinte maneira: o Cacique, que é eleito pelo grupo; Diretor de Igreja; Sacerdote; Agente de Saúde; Presidente da Associação de Agricultores; Primeiro Capitão e Segundo Capitão, ambos encarregados da organização dos trabalhos, e um único Professor. A área onde se situa a população de Nova Aliança já foi identificada e delimitada, mas ainda não foi demarcada pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

2.1.4 Características econômicas

Quanto ao sistema de produção, as populações em estudo apresentam características semelhantes, onde a geração de produtos depende, fundamental-mente, da quantidade de força de trabalho familiar. As atividades são praticadas em ambientes pouco modificados sendo os sistemas de produção os que envol-vem o manejo agroflorestal.

2.2 Preceito teórico: abordagem sistêmica

A base lógica de sustentabilidade desta pesquisa foi a abordagem sistêmica de Morin (2002). Opondo-se à visão holística, que reporta a uma idéia simplificada e reducionista do todo, Morin (2002) visualiza a teoria dos sistemas na sua generalidade.

Nesse sentido, sistema é um paradigma que considera o complexo das relações entre o todo e as partes, desenvolvendo um macroconceito composto

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por três vértices indissolúveis, onde introduz, além do sistema, dois outros termos capitais: o de interação, que exprime o conjunto das relações, ações e retroações que se efetuam e se tecem num sistema, e o de organização, que exprime o caráter construtivo dessas interações e segue o princípio sistêmico-organizacional, que trabalha com as idéias de ordem e desordem.

Em sendo o ambiente reconhecidamente um assunto complexo, visto envolver múltiplas vertentes das mais diversas áreas do conhecimento, ou seja, várias partes integrantes de um todo, nada mais adequado que tratá-lo na visão sistêmica do Morin (2002).

3.3 Procedimentos de estudo

3.3.1 método: estudo de caso

O método escolhido para o desenvolvimento deste trabalho foi o estudo de caso. Dentre as variações do estudo de caso como estratégia de pesquisa, foi definido o estudo de multi-caso, com a identificação de dois casos específicos: a Medida Provisória nº 2.186-16, de 2001, que regulamenta o acesso ao conhecimento tradicional associado ao recurso genético, e os dois grupos humanos indígenas, localizados no município de Benjamin Constant, no Estado do Amazonas.

Segundo Robert Yin (2005), os casos devem ser estudados de acordo com fontes de evidência. Para nosso primeiro caso, as fontes de evidência utilizadas foram a documental e os registros em arquivos. Para nosso segundo caso, além das já citadas fontes, foi utilizado mapeamento das redes de relações sociais, observação direta, diário de campo e entrevista com roteiro prévio realizada com grupos focais divididos por gênero e idade (homens, mulheres e jovens).

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2.3.2 Conceitos-chave

Para alcançar os objetivos da pesquisa, esta foi estruturada fixando conceitos básicos com base no material bibliográfico selecionado, tais como:

•Lei: “preceito normativo, socialmente obrigatório, imposto coercitivamente pelo poder político, que, representando os interesses da classe dominante, tem a função de elaborá-la” (CARREIRO, 1976, p. 297).

•População tradicional: termo de difícil conceituação, mas relativamente aceito como sendo grupos humanos culturalmente diferenciados que historicamente reproduzem seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base em modos de cooperação social e formas específicas de relações com a natureza, caracterizados tradicionalmente pelo manejo sustentado do ambiente. Sendo assim, percebe-se que essa noção se refere tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos. Chegamos a essa delimitação de população tradicional de acordo com a obra de DIEGUES e ARRUDA (2000, p. 22).

•Recurso genético: adotamos o conceito legal de recurso genético estabelecido pela Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) como o material genético de valor real ou potencial, sendo material genético todo material de origem vegetal, animal, microbiana ou outra que contenha unidades funcionais de hereditariedade. Vale ressaltar que a Medida Provisória nº 2.186-16, ou seja, ato monocrático adotado pelo Presidente da República que tem força de lei (LENzA, 2005, p. 293), ao invés de repetir a expressão recurso genético, emprega o termo patrimônio genético, muito criticado pela conotação capitalista e tradicionalmente individualista que a palavra patrimônio carrega em si, indicando sentido diverso ao recurso.

•Conhecimento tradicional associado: informação ou prática desenvolvida por indivíduos ou grupos constituintes de populações

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tradicionais associada a recurso genético, englobando o detalhado conhecimento que esses grupos humanos possuem dos ambientes que os rodeiam, variando suas tecnologias de acordo com os diferentes ecossistemas amazônicos. Assim, dominam os rios, as várzeas e as matas, extraindo alimentos, fibras, plantas medicinais, tinturas, materiais de construção.

3. Análise e interpretação dos resultados

3.1 Primeiro caso: a legislação brasileira que tutela o conhecimento

tradicional associado ao recurso genético

3.1.1 Constituição Federal de 1988

Fazendo uma relação entre o conhecimento tradicional associado ao recurso genético e a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05/10/1988, não podemos deixar de citar dois dispositivos: o §1º, inciso II, do artigo 225, o qual prevê a preservação da diversidade e integridade do recurso genético de nosso país, bem como estipula a fiscalização de entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético, e o §4º do mesmo artigo, onde insere a Floresta Amazônica brasileira no rol do patrimônio nacional e como tal deve ser utilizada de forma a preservar seus recursos naturais.

Ao ler tais dispositivos, constata-se que, pelo menos principiologicamente, está assegurada a conservação1 da Floresta Amazônica, assegurando-se sua diversidade e integridade por intermédio da fiscalização de entidades dedicadas à manipulação de material genético.

Em outro local, a Constituição Federal de 1988 dedica um capítulo aos indígenas, reconhecendo suas culturas e suas terras. Aliás, a preocupação maior da Constituição é com a demarcação das terras indígenas, em razão do maior número de artigos que tratam do assunto.

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Além dos índios, a Constituição Federal de 1988 adota regime jurídico diferenciado aos quilombolas, garantindo o tombamento de todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos (art. 216, §5º).

Assim sendo, verifica-se que em nenhum momento nossa Constituição refere-se às expressões populações tradicionais (utilizada por escritores) ou comunidades locais (utilizada pela legislação infraconstitucional), assegurando direitos especiais somente às populações indígenas e aos quilombolas, assim considerados.

Uma consideração importante que tanto Diegues e Arruda (2000) quanto Santilli (2005) fazem, apesar de utilizarem motivos distintos, é de que no universo maior das populações tradicionais distinguem-se povos indígenas de não indígenas. Os primeiros autores (2000, p. 16) tomam por base o fato de que, em torno do termo populações indígenas, existe um certo consenso, com o reconhecimento de uma continuidade sociocultural, histórica e identitária, distinta de outros grupos tradicionais, como caiçaras, jangadeiros, caboclos e ribeirinhos amazônicos, sertanejos e vaqueiros, caipiras, açorianos, varjeiros, pantaneiros, quilombolas, pastoreios, pescadores, babaçueiros, sitiantes e praieiros. Já Juliana Santilli (2005, p. 80), a partir de uma leitura sistêmica da Constituição Federal de 1988, identifica um peculiar regime jurídico conferido aos povos indígenas e aos quilombolas, distinto dos outros grupos de populações tradicionais.

3.1.2 Convenção sobre diversidade biológica – CDB

A partir das concepções socioambientais, foi assinada, na ECO-92, a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), a qual foi aprovada pelo Congresso Nacional brasileiro, por intermédio do Decreto Legislativo nº 2, de 1994, e tem como objetivos a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos (art. 1º, da CDB).

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A Convenção, em seu artigo 3º, estabelece como princípio a soberania dos Estados na exploração de seus próprios recursos segundo suas políticas ambientais, o que garante a países como o Brasil a sua independência internacional perante questões ambientais, desde que, com suas atitudes, não cause dano ao ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional.

Apesar de países como os Estados Unidos não terem assinado a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) e, talvez, aí esteja a sua não aplicação integral até a presente data, a Convenção não deixa de ser um avanço e, até mesmo, uma vitória, para os países de origem de recursos genéticos como o Brasil, pois, principiologicamente, estabelece garantias para as populações tradicionais (art. 8º, alínea “j”) no que tange ao acesso aos recursos genéticos, com a previsão de institutos como o consentimento prévio fundamentado (art. 15, número 5) e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios (art. 15, número 7).

De acordo com a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), o consentimento prévio informado “é a exigência de que as comunidades locais e indígenas sejam consultadas para dar o seu consentimento voluntário antes que uma pessoa, instituição ou empresa tenha acesso a conhecimentos tradicionais ou recursos genéticos dentro de seu território” (FIRESTONE, 2003, p. 24). Mas, para tanto, esses povos precisam ser devidamente informados sobre os riscos e os benefícios desse acesso.

Após o consentimento prévio informado e, conforme o caso, fica assegurado às comunidades locais e indígenas o compartilhamento de forma justa e eqüitativa dos resultados provenientes do acesso aos recursos genéticos, bem como dos benefícios derivados de sua utilização comercial ou de outra natureza.

Também, nesse sentido, a Convenção reconhece, em seu art. 16, que tanto o acesso à tecnologia quanto sua transferência entre os países contratantes são elementos essenciais para a realização dos objetivos estabelecidos na Convenção.

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Mas a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) não regulamenta somente direitos. Também estipulou deveres para os países signatários, no que se refere à elaboração de legislação pátria no sentido de viabilizar as premissas previstas daquele documento.

3.1.3 Legislação infraconstitucional

Deixando de lado as discussões acerca da legalidade de uma medida provisória estar regulamentando tais assuntos, o inevitável é que a MP nº 2.186-16 é o atual diploma legal brasileiro que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a produção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização.

Em seu art. 8º, a MP nº 2.186-16 assegura a proteção ao conhecimento tradicional associado ao recurso genético das comunidades locais e indígenas, contra a utilização e exploração ilícita e outras ações lesivas ou não autorizadas pelo governo brasileiro. Dessa forma, o Brasil reconhece expressamente o direito desses povos para decidir sobre o uso de seus conhecimentos.

Nesse sentido, é garantido às comunidades locais e indígenas o direito de:1. Ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas

as publicações, utilizações, explorações e divulgações (art. 9º, inciso I);2. Impedir terceiros não autorizados de utilizar, realizar testes, pesquisas

ou exploração relacionados ao conhecimento tradicional associado bem como de divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que integram ou constituem conhecimento tradicional associado (art. 9º, inciso II, alíneas “a” e “b”);

3. Perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado, cujos direitos são de sua titularidade, a qual será coletiva.

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3.2 Segundo caso: Nova Aliança e Novo Paraíso

3.2.1 Atores sociais e rede de relacionamentos

Em Nova Aliança e Novo Paraíso, a vida é baseada nas relações de parentesco. Essa realidade é mais sensível em Novo Paraíso. Por ser uma população menor em número de integrantes, foi constatado que todos os grupos familiares, aqui considerados conforme cada moradia, possuem em maior ou menor grau uma relação de parentesco.

Nova Aliança constitui uma população com maior número de integrantes, possuindo um maior número de grupos familiares. Por isso, a relação de parentesco, apesar de expressiva, não é unânime. No entanto, mesmo assim, todos se conhecem e de uma maneira ou de outra estão integrados.

Em ambas, há duas características marcantes: o compartilhar dos alimentos e o manejo conjunto dos recursos produtivos do ambiente conhecido.

As relações de trabalho são muito estreitas nas populações estudadas. Apesar de cada grupo familiar ter sua roça e trabalhar em prol da família, o trabalho conjunto é uma prática importante. Todos os integrantes reúnem-se uma vez na semana (em Novo Paraíso) ou duas vezes no mês (em Nova Aliança) para se dedicarem ao trabalho em roças comuns a todos.

A vida dessas populações, no que tange às redes parentais e econômicas, transmite uma relação de coletividade, de senso comum, que facilita o compartilhamento de conhecimentos e nos obriga a ter um raciocínio integrado para garantir direitos a tais grupos sociais, realidade esta que difere das sociedades de mercado excessivamente individualistas. Portanto, não podemos aplicar instrumentos frutos de uma situação social e econômica tipicamente capitalista para grupos humanos que possuem outro estilo de vida.

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3.2.2 recurso genético

Por conviverem diariamente com um ambiente natural pouco modificado, em uma zona da Floresta Amazônica de alta concentração de biodiversidade que é o Alto Solimões2, os integrantes de Nova Aliança e Novo Paraíso demonstram ter um grande conhecimento sobre os recursos genéticos que os cercam.

Além da grande quantidade de espécies conhecidas, tanto da flora quanto da fauna, o que mais impressiona são as diversas utilidades aplicadas aos recursos genéticos bem como os elementos usados e misturas realizadas.

A título de exemplificação, podemos citar a banana: largamente usada na alimentação, mas também utilizada como remédio. De acordo com um entrevistado de Nova Aliança, para a cura do câncer é aconselhado tomar a seguinte mistura: corta-se o tronco da banana maçã, retira-se a água acumulada e cozinha-se com o casco queimado do jabuti e o carvão da pedra espuma. Já a mistura da água do tronco da banana guariba com o mel de abelha, a flor e a folha do maracujá do igapó, serve para tuberculose. Não podemos deixar de citar que a folha seca da bananeira serve para pasto.

3.2.3 Conhecimento tradicional associado

Em razão de uma vivência muito próxima e extremamente dependente dos recursos genéticos que a Floresta Amazônica oferece, esses grupos humanos desenvolvem um conhecimento apuradíssimo sobre esses recursos, desenvolvendo alimentos, pesticidas, remédios, a partir de uma união entre recurso genético e conhecimento.

O que se observa é que nessas populações, sobretudo indígenas, o conhecimento de uma maneira geral ainda é passado de geração em geração de maneira oral, não havendo registros escritos, o que leva a uma maior valorização das pessoas idosas. Não que eles não saibam escrever, muitos já sabem, mas não possuem o costume da escrita, como acontece com as sociedades ocidentais.

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3.3 relacionando os casos

3.3.1 A relação das populações com o direito e com as normas jurídicas

Para determinarmos que espécie de relação existe entre as populações tradicionais selecionadas e o Direito, representado por suas normas jurídicas, verificamos que em Novo Paraíso todos acham que o Brasil é estruturado num conjunto de normas jurídicas, mas poucos, dentre os homens, são os que possuem um pequeno conhecimento das leis, como se evidencia no gráfico 1 abaixo.

Gráfico1.Conhecimento sobre as leis dos participantes de Novo Paraíso, 2006.

Já em Nova Aliança, identificamos que algumas pessoas, incluindo todas as mulheres, desconhecem a existência de leis, obtendo cem por cento de respostas negativas quanto ao conhecimento dessas leis, de acordo com o gráfico 2 abaixo.

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Gráfico2.Conhecimento sobre as leis dos participantes de Nova Aliança, 2006.

Com esses dados, caracterizamos a relação das populações tradicionais, em especial indígenas, da região do Estado do Amazonas denominada Alto Solimões, representadas nesse estudo por Nova Aliança e Novo Paraíso, com as leis brasileiras como quase inexistente.

3.3.2 A noção sobre a legislação que tutela o conhecimento tradicional

associado

Até por uma questão de lógica, quando constatamos a fraquíssima relação desses grupos humanos com a legislação brasileira como um todo, é que não foi surpresa a identificação in locu de que 100% das pessoas de Nova Aliança e de Novo Paraíso não conheciam e, em razão do desconhecimento, não estabelecem nenhuma relação com a Medida Provisória nº 2.186-16 de 2002.

3.3.3 Considerações sobre os instrumentos previstos na legislação sobre

o conhecimento tradicional associado

Repassada a informação sobre os institutos do consentimento prévio e da repartição de benefícios, Nova Aliança e Novo Paraíso fizeram suas considerações no sentido de concordar com tais instrumentos.

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No que se refere ao consentimento prévio, os grupos de homens, mulheres e jovens de Nova Aliança e Novo Paraíso consideraram correta sua aplicação não fazendo maiores elucubrações sobre o assunto. No entanto, quanto à repartição de benefícios, os grupos, além de concordarem com o instituto, fizeram considerações no sentido de exigirem uma maior efetividade da lei, garantindo de fato o dinheiro para a população tradicional.

3.3.4 Afinal, onde está o erro na tutela brasileira sobre o conhecimento

tradicional associado?

Fazendo uma análise da tutela brasileira sobre o conhecimento tradicional associado, verificou-se que tanto Nova Aliança como Novo Paraíso concordaram que o problema não está na lei em si, ou seja, no que as leis garantem.

Nova Aliança destacou dois erros fundamentais: a falta de discernimento ou compreensão das leis e o não cumprimento das mesmas. Já Novo Paraíso, além do destacado, acrescentou o fraco contato que tem com as instituições governamentais (Funai, Ibama, Polícia Federal), ou seja, a comunidade não sente a efetiva presença do governo.

Considerações finais

Diante de todo o exposto, optamos por fazer nossas considerações finais focando três partes principais, são elas:

1. A legislação brasileira que tutela o conhecimento tradicional associado ao recurso genético;

2. As populações tradicionais de Nova Aliança e de Novo Paraíso;3. E, finalmente, a aplicabilidade da legislação brasileira sobre conhecimento

tradicional associado às populações de Nova Aliança e Novo Paraíso.Com relação à legislação brasileira que tutela o conhecimento tradicional

associado ao recurso genético, considerando a Convenção sobre Diversidade

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Biológica e a Medida Provisória nº 2.186-16, basicamente evidenciamos dois problemas: um, de cunho conceitual, ou seja, a imprecisão dos termos utilizados representa um verdadeiro obstáculo para que os direitos sejam de fato assegurados; e, outro, de cunho executivo, ou seja, a legislação prevê o direito, mas não garante a sua aplicação.

Quanto à imprecisão conceitual podemos citar vários pontos, começando pelo termo “comunidades locais”, utilizado pela MP nº 2.186-16. No que tange às populações indígenas, sua determinação é facilitada pelo sistema jurídico que se construiu acerca desses grupos humanos, os quais possuem um arcabouço legislativo próprio que os garantem, bem como um órgão executor que os tutelam – a Funai. Já com relação às “comunidades locais” não se observa a mesma estrutura. Ao contrário, não há precisão legal sobre seu conceito, o que impossibilita a garantia de seus direitos.

No que tange à executividade dos direitos previstos na legislação, o Brasil deixa a desejar no sentido de não conseguir estruturar órgãos executores que de fato consigam garantir a aplicação dos direitos previstos na legislação às comunidades indígenas e locais, não havendo acompanhamento desses grupos humanos para prepará-los e informá-los de assuntos do seu interesse.

Refletindo sobre Nova Aliança e Novo Paraíso, a vida nessas populações no que se refere às redes parentais e econômicas, transmite uma relação de coletividade, de senso comum, que facilita o compartilhamento de conhecimentos e nos obriga a ter um raciocínio integrado para garantir direitos a tais grupos sociais, realidade esta que difere das sociedades de mercado excessivamente individualistas. Portanto, não podemos aplicar instrumentos frutos de uma situação social e econômica tipicamente capitalista para grupos humanos que possuem outro estilo de vida.

Por conviverem diariamente num ambiente natural pouco modificado, em uma zona da Floresta Amazônica de alta concentração de biodiversidade, que é o Alto Solimões, os integrantes de Nova Aliança e Novo Paraíso demonstram

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ter um grande conhecimento sobre os recursos genéticos que os cercam. Além da grande quantidade de espécies conhecidas, tanto da flora quanto da fauna, o que mais impressiona são as diversas utilidades aplicadas aos recursos genéticos, bem como os elementos usados e misturas realizadas.

Em razão de uma vivência muito próxima e extremamente dependente dos recursos genéticos que a Floresta Amazônica oferece, esses grupos humanos desenvolvem um conhecimento apuradíssimo sobre esses recursos, desenvolvendo alimentos, pesticidas, remédios, a partir de uma união entre recurso genético e conhecimento. Foi observado que o conhecimento de uma maneira geral ainda é passado de geração em geração de maneira oral, não havendo registros escritos, o que leva a uma maior valorização das pessoas idosas da comunidade. Não que eles não saibam escrever, muitos já o sabem, mas não possuem o costume da escrita como acontece com as sociedades ocidentais.

Quanto à aplicabilidade da legislação brasileira sobre conhecimento tradicional associado às populações de Nova Aliança e Novo Paraíso, podemos afirmar que são assegurados na legislação os direitos às comunidades locais e indígenas, mas não há uma preparação desses povos nesse sentido. Em razão da falta de informação, as populações não sabem como pôr em prática os direitos assegurados a elas na lei.

Em conseqüência, caracterizamos a relação das populações tradicionais, em especial indígenas, da região do Estado do Amazonas denominada Alto Solimões, representadas nesse estudo por Nova Aliança e Novo Paraíso, com as normas jurídicas como sendo quase inexistente.

Até por uma questão de lógica quando constatamos a fraquíssima relação desses grupos humanos com a legislação brasileira como um todo, é que não foi surpresa a identificação in locu de que 100% das pessoas de Nova Aliança e de Novo Paraíso não conheciam e, em razão do desconhecimento, não estabelecem nenhuma relação com a Medida Provisória nº 2.186-16 de 2002.

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Como obtivemos resposta negativa quanto ao conhecimento da Medida Provisória nº 2.186-16 por parte dos integrantes de Nova Aliança e de Novo Paraíso, obviamente que a informação sobre os institutos do consentimento prévio e da repartição de benefícios ficou prejudicada, o que nos levou a fazer uma breve explanação sobre tais institutos.

No que se refere ao consentimento prévio, os grupos de homens, mulheres e jovens, de Nova Aliança e de Novo Paraíso, consideraram correta sua aplicação não fazendo maiores comentários sobre o assunto. No entanto, quanto à repartição de benefícios os grupos além de concordarem com o instituto fizeram considerações no sentido de exigirem uma maior efetividade da lei, garantindo de fato o dinheiro para a população tradicional.

Fazendo uma análise sobre a tutela brasileira sobre o conhecimento tradicional associado, verificou-se que tanto Nova Aliança como Novo Paraíso concordaram que o problema não está na lei em si, ou seja, no que as leis garantem.

Nova Aliança destacou dois erros fundamentais: a falta de discernimento ou compreensão das leis e o não cumprimento das mesmas. Já Novo Paraíso além do destacado, acrescentou o fraco contato que tem com as instituições governamentais (Funai, Ibama, Polícia Federal), ou seja, a comunidade não sente a efetiva presença do governo.

Nesse sentido, cobram um efetivo e constante acompanhamento do governo, de maneira que incluam as populações indígenas e tradicionais em suas políticas públicas, acreditando realmente que a lei espelhe as reivindicações desses grupos humanos.

A análise da legislação brasileira que regulamenta o acesso ao conhecimento tradicional associado ao recurso genético e das populações indígenas de Nova Aliança e de Novo Paraíso demonstrou correspondência entre ambas, mas com a triste constatação de negativa de aplicabilidade da legislação a esses povos,

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Carolini Guedes Barros da Silveira

ocasionada principalmente pela falta de informação que evidenciaram quanto aos direitos assegurados a eles e pela falta de efetividade governamental.

Notas

1 Apesar da CF/88 exaltar a palavra preservação, a qual tem o sentido de intocabilidade dos recursos, tecnicamente a palavra correta para o sentido a que ela quer expressar é conservação, visto significar a utilização racional dos recursos, sem extirpá-los de nosso planeta.2 A biodiversidade é maior quanto mais próximo da Cordilheira dos Andes, onde o terreno é diariamente erodido formando as águas barrentas do rio Solimões.

referências

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A legislação brasileira na tutela dos conhecimentos tradicionais...

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Nos caminhos da linguagem: a profícua relação entre História e Literatura*

Arcângelo da Silva Ferreira**

Para Elisangela

resumo

Este artigo trata da relação interdisciplinar entre História e Literatura. Primeiro, em uma perspectiva historiográfica. Depois, se apropriando da literatura como fonte de história, através da análise do conto “A Revolta” do escritor amazonense Arthur Engrácio.

Palavras-chave: História. Literatura. Arthur Engrácio.

Abstract

This article treats the interdisciplinary relation between History and Literature. First in a historical/graphical perspective. After appropriating of a source of History, through the analysis of the story “the Revolt” by Amazon Arthur Engrácio.

Keiwords: History. Literature. Arthur Engrácio.

* Este texto é adaptado de minha dissertação de mestrado Na vaga claridade do luar (2006). Agradeço as sugestões e colaboração do Prof. Dr. Marcos Frederico Krüger no que tange à Literatura do Amazonas. Outrossim, à FAPEAM

pela bolsa de estudos. ** Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (ICHL-UFAM). Professor de História no Uninorte. arcasferreira@

hotmail.com. (92)99765900 (92)36317874.

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Nos caminhos da linguagem: a profícua relação entre História e Literatura

introdução

Todos sabemos que, devido à influência das Ciências Naturais à historiografia, a partir do século XIX, a relação entre História e Literatura se tornou divergente. O historiador alemão Leopold Von Ranke formulando a concepção cientificista da história, negou, por um lado, a subjetividade do historiador e, por outro, toda e qualquer aproximação da História com as Ciências Humanas. A objetividade dos documentos e a obsessão pela história política deram o tom do que se convencionou chamar de “Revolução copernicana da História”.

Entretanto, outros historiadores vivendo no mesmo contexto, como por exemplo, Jules Michelet e Jakob Burckhardt, se contrapuseram à concepção rankeana da história. Para além das amarras da perspectiva política, o primeiro enfatizou os movimentos das classes subalternas. O segundo buscou compreensão da sociedade através do estudo de três ângulos interligados, isto é, o Estado, a Religião e a Cultura (BURKE, 1992, p. 18-19). Ambos trouxeram à tona a história da sociedade, que tinha como escopo as leis, o comércio, a moral, os costumes. Esses historiadores lançando mão de uma ampla noção de documento, como por exemplo, a oralidade e a literatura inovaram a escrita da história. No entanto, a concepção cientificista da história, nascida no seio das academias, acabaria por deixar no ostracismo Michelet e Burckhardt, historiadores que produziam seus conhecimentos fora do mundo acadêmico. Contudo, no início do século XX, a história da sociedade acima indicada estimulou o advento da história social trazida pelos Annales. O que ficou às sombras por muito tempo ganhou vazão através da história nova.

Tudo que dissemos nos parágrafos precedentes é mote para o que pretendemos construir neste artigo: apresentar um esboço da relação entre História e Literatura em dois atos. No primeiro, recorrendo à historiografia contemporânea. No segundo, utilizando a literatura como fonte de história. Então, vamos a eles.

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História e Literatura

Ao contrário de Ranke, Marc Bloch e Lucien Febvre, fundadores dos Annales, propunham uma história fundada nas inúmeras manifestações humanas. Não negando as possibilidades da história dos acontecimentos, porém, através de uma perspectiva totalizante. Bloch, principalmente, talvez tenha sido o primeiro a defender a proposta teórico-metodológica amalgamada nos estudos voltados ao mesmo tempo para a análise estrutural e para a narrativa dos acontecimentos. O que pode ser abstraído de suas assertivas, por exemplo, quando assevera: “Cumpre utilizar uma linguagem finíssima, uma cor adequada ao tom verbal, para traduzir bem os factos humanos” (BLOCH, 1987, p. 29). Já Fernand Braudel acabou por privilegiar as análises estruturais das sociedades. Sua influência foi tão representativa que chegou novamente a esconder, de certa forma, a tendência historiográfica voltada à narrativa. Mas, mesmo subsumida ela resistiu ao tempo, pois toda história pautada no texto necessita da narrativa. Com efeito, “de alguns anos pra cá tem havido sinais de que a narrativa histórica, em um sentido bem estrito, está realizando outro retorno” (BURK, op. cit., p. 328-329). Senão vejamos o que afirma George Duby (1986, p. 7, 11 e 12):

[...] fomos descobrindo que a objetividade do documento his-tórico é um mito, que toda história é escrita por um homem e que quando esse homem é um bom historiador põe na sua escrita muito de si próprio; [...] o que ele enuncia, quando escreve história, é o seu próprio sonho; [...] o que é o acontecimento? é alguma coisa que existe porque se fala dele.

Esse retorno à narrativa histórica trouxe à tona questionamentos sobre a escrita da história através da pertinente pergunta: seria a história arte ou ciência? Vários historiadores puseram-se a defender o estatuto de arte à história.

Peter Gay, estudando os estilos de historiadores do século XIX, defende que a História é arte e ciência, e “o estilo é arte da ciência do historiador” (GAY,

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1990, p. 196). Desta forma, percebemos que, mesmo no auge da concepção cientificista da história, esta não abandona sua profícua afeição pela literatura. Nessa linha, comparando literatos e historiadores, observa que ambos procuram dizer a verdade, pois não estão avessos à pesquisa. Por isso, segundo ele, os grandes escritores da humanidade utilizaram a ficção para também falar de detalhes verdadeiros (Idem, p. 172).

Nesse sentido, Paul Veine, em Como se escreve a história (1982), afirma que a função do historiador iguala-se à do romancista, pois para construir a história começa elencando fatos que posteriormente serão enredados.

Para Roland Barthes (1988), o conhecimento histórico é composto de signo e discurso, onde o historiador usando de tempos verbais no pretérito estabelece condições de possibilidades para dar voz autônoma à história, dissimulando o sujeito que a produz.

Foucault considerado por alguns como um dos precursores da nova história cultural (O’BRIEN, 2001), constrói seu pensamento influenciado pela arte literária. Para ele, como sua obra está voltada para questões históricas dos séculos XIX e XX através de temas contemporâneos, não haveria sentido em se reportar à filosofia, pois ela encontra-se confinada em espaços instituídos de ensino, tornou-se ofício de professor universitário, perdeu sua autonomia. Ao contrário do mundo clássico, na atualidade a filosofia não delineia mais as atividades, a percepção e a sensibilidade. No entanto, isso é suscetível à arte literária. Ora, através da literatura de Hölderlin e Artaud, Sade e Bataille, Mallarmé e Blanchot, podemos encontrar, respectivamente, o problema da loucura, da sexualidade e da linguagem: as escolhas originais de Michel Foucault (FOUCAULT, 2002, p. 202).

Hayden White, procurando demonstrar que por trás do discurso histórico há sempre um modo topológico a ser observado, isto é, um modelo poético e/ou lingüístico, que acompanha estilisticamente o discurso histórico, afirma que o trabalho do historiador é simultaneamente poético, científico e filosófico.

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Desse modo, os historiadores, ao se debruçarem para escrever a história, lançam mão de discursos estilísticos marcados por enredos e tropos retóricos. Nesse sentido, é possível, segundo White, observar através da historiografia a evolução do pensamento e nele, portanto, a história da filosofia. Assim, para White toda história de uma forma ou de outra será urdida (WITE, 1995, p. 23).

Em O texto histórico como artefato literário e As ficções da representação factual (1994), White observa o trabalho do historiador através da análise sobre a escrita da história. Para ele, quando o historiador se encontra diante de um conjunto grotesco de experiências referentes à sua documentação, logo surge a necessidade de classificá-lo. Para tanto o historiador verifica qual a modalidade das relações que pode trazer certa unidade a este conjunto de experiências. Se as relações entre os elementos do conjunto forem semelhantes, ele utiliza o estilo metafórico para tecer a narrativa. Por outro lado, se as relações forem contrastantes o estilo será metonímico. Nesse sentido, White defende que as narrativas históricas são ficções verbais. Suas formas resultam muito mais da habilidade em manipular os documentos, os quais são sempre marcados por uma carga provisória, assim como da capacidade imaginativa do historiador. Por isso, as narrativas têm mais em comum com as formas literárias. As formas científicas, portanto, são questionadas por White.

O historiador pós-moderno supracitado quer aproximar ao máximo as fronteiras entre História e Literatura. Ou seja, “se há um elemento do histórico em toda poesia, há um elemento da poesia em cada relato histórico do mundo” (WITE, 1994, p. 114). E apesar de ser julgado, por uns, como alguém que nega à História competência para produzir um discurso verdadeiro sobre o real (VAINFAS, 2002, p.145), outros o vêem como aquele que ajudou os historiadores a observar que a área fronteiriça entre fato e ficção há muito esteve aberta (BURKE, op. cit., p.177).

Portanto, essa compatibilidade, ao lado desse conflito entre fato e ficção é uma discussão que a historiografia contemporânea trouxe novamente à baila.

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Mas, sem dúvida, a literatura tornou-se um documento a mais no processo da produção do conhecimento histórico. Concordamos com a historiadora Mary Del Priore (2005, p. 228) quando afirma:

Nossos colegas literários, egressos de uma disciplina precisa, que possui discurso e método próprio, intervieram sobre alguns pontos nevrálgicos da documentação [...], a colaboração resul-tante de pesquisas transversais resultou na importação pontual de conceitos ou mesmo na comparação de discursos – o literário e o histórico.

A revolta, alegoria política de uma época

Conforme afirmamos linhas acima, lançaremos mão da análise do conto do escritor amazonense Arthur Engrácio como fonte de história. Antes, porém, é necessário verificarmos o tempo da urdidura do conto.

No Amazonas, pelo menos até a segunda metade dos anos 1950, predominavam os projetos administrativos voltados para a economia conservadora, na qual Álvaro Botelho Maia destacava-se como figura emblemática. Com apoio de Getúlio Vargas, ele tentou reerguer a economia extrativista. Porém, no jogo dos interesses internacionais e nacionais, presenciou a crise da economia gomífera na sua segunda fase (SANTOS, 1997, p. 139).

Economicamente, a produção extrativista da borracha, reacendida durante a II Guerra Mundial, entra em colapso antes mesmo do seu término. Mas, por outro lado, grandes projetos econômicos são implementados na Amazônia, trazendo, assim, novas perspectivas para o desenvolvimento do estado. Politicamente, o Amazonas é contagiado pela ideologia dos governos populistas. O populismo ganha espaço no Amazonas nas eleições de outubro de 1954, quando Plínio Coelho vence um pleito eleitoral disputado com os candidatos Rui Araújo, seu principal opositor, e Gama Filho. Foi eleito governador para um mandato que perdurou de 1955 a 1959. Costumava propalar pelos meios impressos que

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devia sua vitória “aos trabalhadores que, agindo como cabos eleitorais, em seus escritórios e oficinas, estaleiros e embarcações, fizeram-me conhecido no Amazonas” (cf. O Jornal, 30/10/1955, p. 1). Assim, consolidava-se no cenário político amazonense uma outra geração, defensora do nacionalismo e próxima, através de um jogo sutil das massas populares (SOUzA, 2002. p.173).

Nessa medida, Plínio voltou parte de sua administração para a construção de obras públicas. O Conjunto Kubitschek, por exemplo, realizado em parceria com o Governo Federal em homenagem ao presidente da República, o qual participou da inauguração, foi uma de suas realizações quase sempre direcionadas ao funcionalismo público. No entanto, de acordo com alguns jornais, nesse contexto “o povo está passando fome e amargando toda sorte de miséria, notadamente o que vive nos bairros pobres de Manaus” (cf. O JORNAL, 18/10/1955, p.1). Na mesma linha, noticiava-se a falta de produtos de primeira necessidade como carne verde, peixe, legumes, frutas e cereais (cf. O JORNAL, 08/11/1955, p. 7).

Antes de terminar seu mandato, Plínio indica para a prefeitura seu mais novo filho político, Gilberto Mestrinho. Este assumiu em 29 de setembro de 1956, ficando até 10 de julho de 1958. Nesse mesmo ano, candidatou-se ao governo do Estado do Amazonas, tendo sido eleito para um mandato que perdurou até 1962. Para tanto, contou além do apoio de Plínio, com o de João Goulart, vice-presidente da República e líder do trabalhismo nacional, que veio a Manaus para mobilizar a campanha conhecida como “Cruzadas das Execuções Trabalhistas”.

Na esteira de seu antecessor, Gilberto Mestrinho também implementou políticas direcionadas às propostas do trabalhismo, previstas antes mesmo de ser eleito, quando disse: “tenho fé no futuro do Amazonas e confiança no discernimento do povo de minha terra e certeza de que o Governo Trabalhista de Plínio Coelho está correspondendo, plenamente, aos desejos da coletividade amazonense” (cf. O JORNAL, 22/10/1957, p. 1). Nos anos 1960, o governador, com apenas trinta anos de idade, era tido como um jovem progressista

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(ANDRADE, 1995, p. 27). é dele o projeto “Novo Amazonas”, que visava salvaguardar as atividades extrativistas, mas, principalmente o “embelezamento” urbanístico da cidade. Com ele “a ideologia da classe média toma forma definida e o estado cai novamente no delírio” (SOUzA, 2002, op., cit. p. 175). Assim, sob a égide de seu governo, por um lado, Manaus recebeu de volta iluminação elétrica, ruas com asfalto, obras de fachada. Por outro, aguçaram-se os problemas sócio-econômicos de toda ordem, principalmente através da urbanização desenfreada. Plínio Coelho e Gilberto Mestrinho foram, pois, os representantes do trabalhismo no período 1954-1964. Objetivavam o crescimento econômico do Amazonas sob a égide do desenvolvimentismo executado, em nível nacional, pelos governos democráticos populistas, dos quais Juscelino Kubitschek e João Goulart foram referências maiores.

Acompanhando o ritmo histórico, os movimentos culturais também se fizeram presentes. Cinema, teatro e literatura são algumas das manifestações mais evidentes neste contexto.

No que tange ao teatro, dois grupos se destacam: o Teatro Escola Amazonense de Amadores (1944-1967) e o TUA – Teatro Universitário do Amazonas (1960-1969) (VALE/ AzANCOTH, 1999).

O Teatro Escola Universitário do Amazonas, por exemplo, fundado por Ediney Azoncoth, Virgílio Barbosa e Félix Valois Coelho Jr., sustentado pelas entidades estudantis, foi o primeiro a considerar com maior vigor o teatro como instrumento cênico e político. Após 1964, torna-se um dos representantes do Movimento Cultural Universitário. Contrapondo-se ao regime militar, tinha na direção a antiga Faculdade de Filosofia. Apostando na força da arte teatral, o grupo deslocava-se pelos bairros de Manaus. Mercê deste posicionamento, conseguiu em pouco tempo expandir-se. Representou o Estado do Amazonas em festivais nacionais. (SOUzA, 2002, op. cit. p. 252).

Além do teatro como opção de lazer, a população divertia-se de outras formas, ora com “O Circo Mágico ‘Berth Mart’, que está sendo levantado na área

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vizinha à Capitania dos Portos, realizará à noite de amanhã a sua estréia nesta capital.” (Cf. A GAzETA, quarta-feira 10 de junho de 1964, primeira página); ou freqüentando “O embalo na boite ‘Vogue’ [...] programa bom nos fins de semana. O ‘Iê-Iê-Iê’ toma conta do salão a todos contagiando com seu ritmo frenético e rebolativo.” (Cf. A CRÍTICA, segunda-feira 13 de maio de 1968, quinta página). Ou ainda prestigiando “Waldik Soriano, o cantor mais popular em todo Norte do Brasil, [que] estará se apresentando hoje às 20:30 h [...] no Cine Vitória” (Cf. A CRÍTICA, sexta-feira 12 de janeiro de 1968, segunda página). Outrossim, a freqüência nos bailes de carnaval, muitas vezes patrocinada pelo governo do Estado.

Também durante as décadas de 50 e 60 em Manaus as casas cinematográficas ficavam lotadas e os cineclubes eram bastante efervescentes. É sabido, inclusive, que o cinema foi responsável pela construção de uma geografia de mobilização sociocultural na cidade, ponto de encontro dos eventos culturais, tendo como referência a Praça Heliodoro Balbi. Ademais, nesta Praça surgiu o Clube da Madrugada, movimento literário que, na esteira da Geração de 45, a partir de 1954, imprimiu tons modernos à arte amazonense (FERREIRA, 2006).

Depois de, grosso modo, esboçarmos uma breve descrição do contexto histórico no qual a escrituração do conto está inserida é o momento de iniciarmos a caminhada no perigoso terreno da linguagem literária. Amigo leitor vamos, agora, ao conto de Arthur Engrácio.

Em 1960, foi lançado o livro de contos Histórias de submundo, do escritor amazonense e sócio do Clube da Madrugada Arthur Engrácio, nascido em Manicoré, rio Madeira, Amazonas, em 16 de abril de 1927. Fez seus estudos em Manaus onde iniciou o curso de Direito não chegando a concluí-lo. Foi funcionário público. Foi detentor de vários prêmios literários e jornalísticos. Publicou em diversos jornais do Brasil, inclusive, no Suplemento Literário de Minas Gerais. Seu conto “A Vingança do boto” foi traduzido para o inglês. Pertenceu a União

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Brasileira de Escritores do Amazonas (UBE) e a Cooperativa dos Escritores do Amazonas – Coopea.

De acordo com alguns críticos da literatura local, a obra referida acima inaugura a prosa regionalista moderna no Amazonas. A denúncia social marca os doze contos de Engrácio. A problemática emerge do cotidiano de suas personagens e gira em torno de circunstâncias humilhantes, como a fome, a miséria, as injustiças.

Como corpus de nossa análise, escolhemos o conto “A Revolta”. Dois são os motivos para a escolha. Primeiro porque, analisando a prática discursiva de Engrácio, sugerimos um possível diálogo de seu texto com a Historiografia Brasileira dos anos de 1950-60. Depois, procuramos verificar o caráter político desta narrativa de ficção. Para tanto, é necessário irmos esboçando o conto, paralelo a sua análise.

Ambientada na selva amazônica à época da produção da borracha a narrativa inicia com a alegria de caboclos em festa, bem longe do barracão, residência do “cachaço gordo do coronel Euzébio, homem mau, senhor de braço e cutelo, que de há muito lhes vinha perseguindo, roubando-lhes, inclusive, as criações, os momentos de sossego, a paz enfim” (ENGRÁCIO, 2005, p. 32). Os seringueiros, felizes, planejam a morte do patrão. Ora, “seria aquela a sua noite de vingança, de liberdade. Por isso é que bebiam e cantavam àquela hora avançada” (Ibid., p. 32). Chico Pantoja, homem forte, festivo, carismático e persuasivo, e o destemido Manduca, ambos líderes dos caboclos, representam a imagem dos protagonistas que carregam nos ombros o peso das misérias biopsíquicas e das injustiças sociais. O sentimento de vingança mobiliza os caboclos através de um plano, o qual parece perfeito. O narrador, por um instante e para que tudo desse certo, desenha o coronel paradoxalmente embebido de compaixão, surpreendendo até mesmo a personagem encarregada de entrar no barracão àquela hora. Assim, após ter ouvido o algoz autorizar o guarda-livros a lhe

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vender fiado uma estearina, porque, usando de subterfúgios, afirmara que “meu fio tá se acabando [...],

Manduca surpreendeu-se com a atitude do coronel. Tão mau que era, proceder daquela maneira? Estaria mesmo adivinhando o seu fim? Pois não era o homem que dava gritos e estrilos quando caboclo ia falar de fiado?” (Ibid., p. 33).

Após ter cumprido parte de sua tarefa, Manduca partiu para chamar os outros caboclos. Para a concretização do plano, os seringueiros teriam que seguir até o barracão. A partir desta cena, eles aparecem como uma massa sobrepujada pela violência e pelo sentimento de vingança. zeferino, personagem que simboliza a proporção que havia tomado o movimento, por exemplo, foi picado por uma serpente, mas sem nenhuma hesitação cortou um dos dedos para que o deslocamento não atrasasse, pois “o tempo é ouro. Contornando pântanos e transpondo caídas entrelaçadas de língua-de-onça e tiririca, o bando ganhava terreno” (Ibid., p. 36).

Notamos que, para descrever a luta social do interiorano, Engrácio utiliza a poética da violência dada à necessidade do seu relato, o que é verossímil (KRÜGER, 2001, p. 17). Outrossim, em sua prosa de ficção “o interiorano deixa de ser [...] mero adorno, para se tornar agente e protagonista de sua história” (TELLES, 2005, p. 32). Entretanto, percebemos que o escritor se atém a conceitos negativos, visto que a revolta metaforicamente se reveste de toda a selvageria que a ambiência proporciona. Nessa medida, descrevendo o movimento dos caboclos, o narrador ora os pinta como um bando de caitetus assanhados, ora como uma horda selvagem.

Nesse ponto chamamos a atenção do leitor para nosso primeiro problema. Em outros termos, o matiz com o qual Engrácio representa seus caboclos está embebido de uma limitada concepção de História. Para apresentar uma discussão mais detalhada, aproveitamos a descrição do perfil psicológico do protagonista Manduca feita pelo narrador criado por Engrácio:

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Pulsava-lhe nas veias o sangue índio dos seus avós: – o sentimento de vingança lhe era inato. Ele, como todos os da sua raça, não sabem perdoar aos que lhes fazem mal. Aparentemente dóceis, são, na realidade, autênticas feras. A humilhação para o caboclo é como o cautério; tem força de vergasta. E como os grandes rios de sua terra, que têm capacidade para comportar grandes massas d’água, mas que um dia, dada a impetuosidade da enchente, fazem transbordar essa água – assim ele pode suportar anos de martírio, porém, em dado momento, tal como as aluviões, o seu ódio extravasado é capaz de derrubar as maiores barreiras, e levar tudo de vencida. É questão de circunstância. (Ibid., p. 35).

Os grifos são nossos. Com eles chamamos a atenção do leitor para a ambigüidade da narrativa. Ora, se por um lado o plano do enunciado apresenta suas personagens politicamente organizadas, por outro, de certa forma, anula essa representação colocando o inato sentimento de vingança como motor da revolta e, por extensão, da história. Este cociente conotativo emerge do chão histórico no qual o enredo foi construído. Em outras palavras, Engrácio reproduz o pensamento social dos intelectuais brasileiros de tendência socialista dos anos 1950-60. A heterogeneidade étnico-social (cf. SADER; PAOLI, 1986, p. 49), a coisificação (cf. CHALHOUB, 1990, p. 42; REIS, 1999, 248) e a “’propensão inata’ das massas à revolta” (cf. PINHEIRO, 1993/1994, p. 188) eram obstáculos históricos para a coerente mobilização social das classes populares, na interpretação desses pensadores. Para eles, caso a mobilização ocorresse, isso seria através de uma questão de circunstância geralmente marcada pela rebeldia e/ou pelo crime, alternativas relacionadas ao determinante psicológico das “raças” que compunham as classes populares, com destaque para o negro e para o nativo. Em outros termos, a estrutura narrativa em questão vaza influências de uma vertente que se convencionou chamar de marxismo vulgar (cf. HOBSBAWM, 1998, p. 159-60). Nessa medida, percebemos o envolvimento de Engrácio no seio desse campo intelectual.

Com isso, como verificamos através do conto “A Revolta”, as indagações de Engrácio no que concerne às transformações que estavam ocorrendo no

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Amazonas? Este outro problema nos remete a uma digressão necessária ao nosso raciocínio.

Através da perspectiva interdisciplinar, a crítica literária mostra aos historiadores “o papel ativo da linguagem, dos textos e das estruturas narrativas na criação e descrição da realidade histórica” (KRAMER, 2001, p.131-32). Por isso, o estudo da história é intrínseco ao estudo da linguagem, pois visualiza o texto como uma rede de resistência, fugindo das amarras de seu imperialismo: a arte pela arte. Outrossim, do seu contextualismo relativo: a arte como reflexo mecânico da realidade social. Nessa medida, e para resolver o problema supra, argumentamos que existe uma latente relação dialogal da narrativa de ficção “A Revolta” com o tempo histórico de sua urdidura. Isto pode ser visualizado através de dois elementos simbólicos.

Primeiro, o fogo. No plano do enunciado o enredo se estrutura nele. Senão vejamos:

Na festa: toda confabulação da revolta se faz ao redor da fogueira. No plano da luta: Manduca, à procura de uma estearina, consegue estudar o ambiente. Quando ele retorna do barracão ao encontro dos caboclos reunidos na selva, traz “o riso de contentamento nos lábios, na mão direita uma estearina” (Ibid., p. 32). Veja o leitor que, guardadas as devidas proporções, podemos relacionar esta imagem àquela construída por ésquilo. Assim como Prometeu rouba o fogo de zeus para dar aos homens, Manduca, ao ir buscar a estearina na casa de Euzébio, traz também informações valiosíssimas aos ribeirinhos, dando luz ao movimento de revolta e libertação. Na trajetória até o barracão: são as tochas nas mãos dos caboclos que lhes indicam o melhor alcance de seus objetivos. Na revolta: o fogo das tochas é usado para destruir o barracão, o qual simboliza todos os males daquela vida que os caboclos levavam. No desfecho: a narrativa, pelo fogo, retorna à cena inicial, quando o narrador afirma que “tochas eram lançadas, e as chamas em pouco tempo dominavam o alvo, formando uma fogueira colossal” (Ibid., p. 37). Em suma, o enredo começa com a luz do fogo da pequena fogueira no qual

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nasceu o sonho de liberdade e termina com a mesma luz, agora simbolizando a sensação de liberdade em proporção incomensurável.

Por sinal, o fogo, como elemento de catarse, fora antes usados em dois romances de tese marxista. O primeiro é Terra de ninguém, de Francisco Galvão, publicado na década de 1920. Tal como em “A Revolta”, os trabalhadores, devidamente organizados, se rebelam contra um patrão perverso: “Archotes fantásticos entre as clareiras iluminavam rostos desfigurados destilando ódio. Era a avalanche, a enxurrada humana” (p. 171). Embora o barracão não tenha sido incendiado (o que não diminui a importância do elemento fogo), ocorre a morte do coronel.

O outro romance é A Selva, do português Ferreira de Castro, lançado em 1930. Nesse caso, o incêndio do barracão foi motivado por uma revolta individual, a do ex-escravo Tiago. Quem toma consciência da necessidade de uma nova organização social é o exilado Alberto, antigo militante monarquista em Portugal. Nesse livro, o fogo simboliza o final de um período de opressão: o a era da borracha.

Com Engrácio, o fogo está no início, no meio e no fim de seu enredo. Representa a ruptura de um tempo marcado pela opressão para um devir em liberdade. É o fogo que destrói o barracão e mata o coronel Euzébio. O fim desta personagem no plano do enunciado é outro indício para apresentarmos a relação dialógica entre o discurso literário, inerente ao conto, com o tempo histórico em que ele foi escrito. Isso ficará mais claro se recorrermos novamente ao narrador de “A Revolta”, quando descreve o coronel Euzébio.

Deitava-se numa rede ampla, de varandas rendadas, sob a qual trazia sempre um vidro de sedativo para o coração velho e aba-tido de cardíaco. Longe se encontrava de acreditar que aqueles caboclos “pé-de-bicho” tivessem coragem para armar-lhe um ataque. O espírito de tirano estava para ele como a luz para o sol. Por isso não lhe passava pela mente, nem de leve, a possibilidade de uma vingança por parte daqueles homens que trazia sob os seus tacões de senhor feudal como autênticos escravos. Sim, era

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ele o senhor absoluto dali, cansava-se de dizer. E quem ousaria ir de encontro ao seu poderio? (Ibid., p. 36).

A imagem supra nos remete a dois historiadores. Primeiro, Sandra Pesavento (2000, p. 44-45), que, refletindo sobre o problema fronteiriço entre História e Literatura, afirma que, “sem dúvida, o valor da literatura não está em conferir os dados do real com o texto de ficção e assim a sua verdade. Sua estratégia é falar daquele real pela via do simbólico”. Depois, Sidney Chalhoub, que, através da obra de Machado de Assis: historiador constrói uma reflexão histórica tendo como corpus de análise o romance Helena, ambientado no tempo saquarema. Para o historiador, tomando-se a literatura como fonte de história, faz-se mister um problema de cunho metodológico: qual a relação entre o tempo do discurso no qual está balizada a obra literária com o tempo em que o autor escreveu sua obra? Segundo Chalhoub, Machado vivenciou os embates que se deram no campo político nos idos do século XIX, acerca da aprovação da Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871. O escritor foi Diretor da Agricultura do Ministério da Agricultura, da segunda metade dos anos 1870 até o final de 1880. Helena (publicado pela primeira vez em 1876) deve ser lido observando-se o tempo do autor, para percebermos o poder dialogal do discurso narrativo com as circunstâncias sociais e políticas de uma época que começava a dar os primeiros passos rumo à ruptura do sistema senhorial. Em suma, abordar o “tempo saquarema” através de Helena, o romance, construindo uma Helena, a personagem, sutilmente contestadora da ordem de valores era, segundo Chalhoub, uma maneira encontrada por Machado de Assis para questionar seu tempo, portanto, o tempo do sujeito social, funcionário público.

Assim, usando as palavras desses historiadores, nosso argumento é que Arthur Engrácio utilizou a via do simbólico para dizer de um período no qual ele estava vivendo. Quando apresenta os determinantes psicológicos e o tipo físico do coronel, o contista configura o tempo da urdidura do texto literário. Na esteira de Chalhoub, afirmamos que o tempo do autor dialoga com o tempo

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da narrativa de ficção, pois o choque entre os caboclos e o coronel simboliza, no plano do enunciado, o processo transitório que estava ocorrendo no plano histórico. Através da caracterização da figura do coronel Euzébio, Engrácio está retratando o final de um período exaurido e em processo de decadência, marcado pela estagnação econômica. O coronel representa as facções que se perpetuavam no poder por muitos anos. Parece absoluto, porém, já indicava a decadência. Retrata o estado velho, abatido, cardíaco e politicamente fragilizado das oligarquias da borracha. Do mesmo modo, a revolta dos caboclos suscita o momento histórico que chegaria para mudar o cenário político no Amazonas, trazendo, dessa forma, gradativas transformações.

Em suma, Arthur Engrácio, vivendo os acontecimentos em voga no momento da publicação do conto, expressa em sua literatura as mudanças políticas que estavam ocorrendo no Amazonas nos 1950-60.

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“os Sapatinhos Vermelhos” em Hans Andersen e em Caio F. Abreu

Daniele de Oliveira Dias*

Fernanda de Sousa Silva**

resumo

Este artigo pretende analisar os textos “Os Sapatinhos Vermelhos”, o de Hans Andersen e o de Caio Abreu. Primeiro abordaremos os símbolos encontrados dentro de cada narrativa, individualmente, depois faremos uma análise dos pontos que os separam, pois, apesar do mesmo título, e de Caio Abreu ter usado como mote, na construção de seu conto, um trecho da fábula de Andersen, há muita diferença na abordagem dos temas.

Palavras-chave: Literatura. Simbologia. Existencialismo.

Abstract

This article aims to analyze the texts “Os Sapatinhos Vermelhos”, from Hans Andersen and from Caio Abreu. First we will broach the symbols found within each narrative, individually, then we will make an analysis of points separating them, because, despite the same title and Caio Abreu have used as motto, in the building of its tale, an exerpt of Andersen’s fable, there is much difference in approaching the themes.

Keywords: Literature. Symbology. Existentialism.

* Graduanda em Letras, Língua Portuguesa (UFAM). e-mail: [email protected]; ** Graduanda em Letras, Língua Portuguesa (UFAM).e-mail: [email protected]

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“Os Sapatinhos Vermelhos” em Hans Andersen e em Caio F. Abreu

introdução

Caio Fernando Loureiro de Abreu, nasceu em 12 de setembro de 1948 em Santiago (RS), foi jornalista, e escritor brasileiro. Apontado como um dos expoentes de sua geração, sua obra, escrita num estilo simples, bem pessoal, e desenvolvida acima dos convencionalismos de qualquer ordem, com uma linguagem fora dos padrões normais, fala de sexo, medo, morte e, principalmente, ora com delicadeza, ora com agressividade, de angustiante solidão. Apresenta uma visão dramática do mundo moderno conseguindo mostrar sob outras perspectivas fatos do cotidiano, além de ser um dos mais emblemáticos escritores brasileiros. De suas obras destacam-se os contos e, dentre eles, escolhemos para a análise “Os Sapatinhos Vermelhos”. Esse conto é uma adaptação de uma fábula infantil do dinamarquês Hans Christian Andersen – autor de, entre outras, O Patinho Feio e A Pequena Sereia –, que tem o mesmo nome e, para entendermos melhor o conto adaptado de Caio F. Abreu, veremos um pouco do que trata a história de Andersen.

1 Andersen e os Sapatinhos Vermelhos

Tudo leva a crer que, para entender em profundidade os contos de Andersen, é preciso lê-los com um olhar adulto, de preferência com o olhar de alguém que vê para além das aparências, das significações mais imediatas. O tom nostálgico predomina na maior parte dos seus contos, alimentados na realidade cotidiana da sua época, na qual impera a injustiça social e o egoísmo, pois este é percebido nas atitudes de seus personagens, já que têm amor excessivo ao bem próprio sem consideração aos interesses alheios.

“Sapatinhos Vermelhos” é uma fábula, criada no século XIX, sobre uma menina que só tinha um sapato de madeira que usava no inverno. Após sua mãe falecer, é adotada por uma velha senhora que compra roupas e sapatos, mas ao ver uma princesa com um sapato vermelho, a menina deseja ter um igual. Ao

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encomendar um sapato para o seu batismo e ir tirar a medida dos pés, encontrou, dentre os pares que estavam na vitrine, um que era igual ao da princesa. A menina, aproveitando-se da pouca visão da velha, adquiriu o sapato, pois ela não deixaria que os usasse naquela ocasião, principalmente para ir à igreja. Ela só pensava nos sapatos e, quando a velha descobriu que os sapatos eram vermelhos, proibiu-a de usá-los: ela deveria usar os pretos, mas não obedeceu e continuou com os vermelhos. De vez em quando, aparecia-lhe um velho soldado de barbas vermelhas que sempre elogiava os sapatos, dizendo que era para ela se segurar quando dançasse. A velha adoece e, mesmo assim, ela resolve ir a um baile; a partir disso, não consegue mais parar de dançar, tampouco ter controle sobre os pés, que fazem o que querem e a levam por vários lugares. Um anjo lhe aparece e diz que ela está condenada a dançar até a exaustão e, quando as outras crianças a vissem, teriam medo dela e isso lhe serviria de lição. Um dia dançou diante de uma porta que conhecia bem, ouvindo, do interior, o som de um hino, e vê um caixão coberto de flores que estava sendo conduzido para fora. Soube, então, que a velha senhora tinha morrido; entretanto, não conseguia parar de dançar. Dançava dia e noite, até que resolveu ir atrás do carrasco que morava na floresta para pedir que lhe cortasse os pés. Apoiada numa muleta, pois usava pés de madeira feitos pelo carrasco, foi até a igreja para se redimir de seu pecado. Passa a ser perseguida pelos sapatos e vai morar com a família do pároco, mostra-se trabalhadora e sempre ouve, atentamente, o pároco ler a Bíblia. Num domingo, quando todos vão à igreja, a menina fica em casa e, ao orar, vê o mesmo anjo que a amaldiçoara, agora com um ramo coberto de rosas nas mãos e, onde ele tocava, o espaço se abria ou nascia uma estrela, o coração da menina estava tão ensolarado, tão cheio de paz e de alegria, que se partiu. Sua alma voou ao céu pela escada do sol e ninguém mais falou sobre os sapatinhos vermelhos.

Inveja e vaidade são os temas centrais do texto. O final, característico em Andersen, não é feliz. E porque o final nem sempre é feliz, aproxima-se, muitas vezes, mais da tragédia grega do que do típico conto de fadas, pois a tragédia

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inspira “pena e temor, opera a catarse própria dessas emoções”. (ARISTóTELES, 1981, p. 24), que são observados também nesse texto, porque se fosse um típico conto de fadas, segundo a visão do senso comum, poderia haver a restituição de seus pés e ela não teria morrido, já que nesses contos a magia se faz presente.

Há a presença de valores sociais, tais como: valorização do indivíduo por suas qualidades próprias e não por seus privilégios ou atributos sociais; ânsia de expansão do eu, pela necessidade do conhecimento de novos horizontes e da aceitação do eu pelo outro; crença na superioridade das coisas naturais em relação às artificiais; incentivo à fraternidade e à caridade cristãs, à resignação e à paciência com as duras provas da vida (muito forte nas características do texto analisado); valorização da obediência, da pureza, da modéstia, da paciência, do recato, da submissão, da religiosidade como virtudes básicas. E esses valores “mostram à sociedade as injustiças que estão na base da sociedade, mas ao mesmo tempo, oferecem o caminho para neutralizá-las: a fé religiosa” (COELHO, 2003, p. 25).

O sapato está relacionado ao complexo de poder simbolizando uma posição de afirmação do ego, o que podemos ver com clareza na história, ao usar os sapatos em ocasiões inadequadas só porque ele parecia com os da princesa e chamavam muita atenção, o que prova que ela queria afirmar o próprio ego, também pode ter outra simbologia, o prenúncio da morte e, por o estar usando, acaba tendo o fim trágico. A cor vermelha, muitas vezes, associada ao pecado, está, aqui, relacionada ao pecado da vaidade, ao amor narcísico pela fama e ao sucesso. Como todo pecado, mereceria uma punição a qual, no caso da menina, foi, além da amputação dos pés, a própria morte, sendo que entra, aqui, uma nova significação para a morte, que seria a purificação da menina, a redenção de seus pecados, já que o anjo foi buscá-la, e ela foi para o céu. Há, também, uma presença muito simbólica no texto, a do velho soldado, que pode representar o prenúncio do que está por vir, além de ser a representação da própria vaidade, pois a barba dele é vermelha com a mesma caracterização do vermelho do sapato,

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além do mais, o velho fica a todo momento exaltando a beleza dos sapatos e fazendo com que a menina se envaideça ainda mais, o que, por outro lado, nos levaria a afirmar que ele é a própria representação do diabo, pois assim como Satanás tentou Eva, através da serpente, atiçando nela a vontade de comer o fruto proibido, o velho alimentava na menina o desejo de continuar a usar os sapatos; a barba, mencionada toda vez que se fala do velho, é um símbolo de virilidade, o que é afirmado por se tratar de um soldado, e sabedoria, uma vez que só os homens a possuem e num determinado período cultural, os sábios deixavam suas barbas crescerem, então ele sabia do que estava falando quando repetia aquela frase para a menina. Um outro personagem que tem um valor simbólico e que seria o oposto do velho é o anjo, que representa a justiça de Deus contra o pecado e o perdão para eles, se forem reconhecidos. Depois de ter os pés cortados, a menina ganha pés feitos de madeira, pelo carrasco. No Catolicismo, a madeira, freqüentemente associada à cruz, pode representar totalidade do paraíso, abrigo, um berço ou um caixão, o que já indicaria o fim trágico da história, representa, entre outras coisas, que se está adquirindo uma grande quantidade de conhecimentos enriquecedores, ou seja, sua escala de valores está mudando por completo, como acontece com ela, pois é depois disso que se transforma em uma nova menina, obediente e fiel a Deus.

Apesar de ser uma história infantil, a pessoa que a lê não deve ser, de todo, ingênua, pois há nuances extra-textuais que requerem outros conhecimentos.

2 Caio F. Abreu e os Sapatinhos Vermelhos

A narrativa de Caio Fernando Abreu vai realizando-se permeada por uma impossibilidade: narrativa que corrói a estabilidade de seu conteúdo, já que abriga em si mesma o germe da contradição.

Em “Os Sapatinhos Vermelhos”, de Caio F. Abreu, a história, dividida em três partes, é de uma mulher que, abandonada pelo seu amante, decide vingar-se dele.

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Na primeira parte, a mulher, chamada Adelina, fica remoendo todos os sentimentos de angústia pelo fato de ter sido abandonada. Ela, na sala de seu apartamento, lembra todas as vezes que fez as vontades dele, que cinco anos eram muito tempo para quem estava perto de completar quarenta anos. Ele, que usava um terno cinza, era casado e agora decidira pôr fim a essa relação, mas ela não tinha nada, nem filhos, nem marido, nem herança e ainda morava de aluguel e cinco anos eram muito para quem não tem nada. “Precisava apressar-se, antes que a quinta virasse Sexta-Feira Santa e os pecados começassem a pulular na memória como macacos engaiolados” (ABREU, 2006, p. 66). Decidiu que não iria mais chorar e, com a cabeça baixa, contemplou seus pés nus. Uns pés pequenos, quase de criança, unhas sem pintura, afundados no tapetinho amarelo em frente à penteadeira. Foi então que se lembrou dos sapatinhos, aqueles que tinham sido presente dele, de seu amante. Escancarou portas e gavetas de todos os armários e cômodas, à procura dos sapatos, até encontrá-los na terceira gaveta do armário embrulhados em papel de seda azul-clarinho. Eram lindos, mais lindos do que podia lembrar. Mais lindos do que tinha tentado expressar quando protestou, comedida e comovida – “mas são tão [...] tão ousados, meu bem, não têm nada a ver comigo” (ABREU, 2006, p. 67). Eram vermelhos – mais que vermelhos: rubros, escarlates, sanguíneos. Quase cedeu ao impulso de calçá-los imediatamente, mas sabia instintivamente que teria primeiro que cumprir um ritual. Logo após cumpri-lo, arrumada dos pés à cabeça, foi que sentou outra vez na penteadeira para calçar os sapatinhos vermelhos. Olhou-se no espelho de corpo inteiro do corredor. Gostou do que viu. Saiu de casa.

Na segunda parte, ela encontra-se em um bar e vê três homens em outra mesa, desses, o negro é o primeiro a se aproximar, ele pergunta o que ela está fazendo ali, ela curva-se para que ele acenda o cigarro, mas ela acaba acendendo sozinha. Por baixo da mesa, o negro avançou o joelho entre as coxas dela. Ela cedeu um pouco, pelo menos até sentir o calor aumentando. Mas preferiu cruzar as pernas. Que não era assim, tão fácil. Entretanto ela olha para os amigos dele e

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pede para que ele os chame para sentarem com eles. Falava como a dublagem de um filme. Uma mulher movia o corpo e a boca: ela falava. O negro os chamou, eram dois: o moço dourado com jeito de tenista e o outro baixo e forte. Quando perguntaram seu nome, ela mentiu dizendo que se chamava Gilda, mas mentia só em parte, contou para o espelhinho, porque de certa forma sempre fora inteiramente Gilda. Beberam e dançaram juntos até que o mais baixo falou “–quero foder você, rosnou: pra que essa frescura toda? Foi quando ela levantou a perna, apoiando o pé na borda da cadeira, que todos viram o sapato vermelho. Tinham chegado ao ponto. O ponto vivo, o ponto quente” (ABREU, 2006, p. 71). Ela decidiu levá-los para o apartamento dela e, apesar do uísque, saiu pisando firme nos sapatos vermelhos, os três atrás. Os sapatos vermelhos eram a única coisa colorida daquela rua.

Na terceira parte, dentro do apartamento dela, mais precisamente, no quarto, começam a despir-se, mas eles pedem a ela que tire tudo, menos os sapatos. Tirou tudo, jogando para os lados. Menos a meia de seda negra, com costura atrás, e os sapatinhos vermelhos. Nua, jogou-se na colcha rosa, as pernas abertas. Eles cercaram lentos, jogando as zorbas sobre o crepe negro. E assim, fizeram de todos os jeitos: quatro, cinco vezes. Não era mais Gilda, nem Adelina, nem nada. Era um corpo sem nome, varado de prazer, coberto de marcas de dentes e unhas, completamente satisfeita. E vingada. Depois que se foram, passando um pouco do meio-dia, limpou os sapatos e disse que a culpa tinha sido do néon, aquelas luzes em frente à boate, foi o néon maligno da Sexta-Feira Santa, quando o diabo se solta porque Cristo está morto pregado na cruz. Acordou no Sábado de Aleluia, a campainha tocou, ela, completamente nua, a não ser pela meia e pelos sapatos, atendeu a porta, e lá estava ele, com o terno cinza, uma dúzia de rosas vermelhas e um ovo de páscoa nas mãos, ela pediu para que ele fosse embora, tinha acabado. Ele ainda tentou falar alguma coisa, até ver as marcas no corpo dela, sentir o cheiro da bebida e da orgia e pela primeira, única e última vez ele a chamou muitas vezes de puta, puta vadia, puta escrota, depravada e pervertida.

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Jogou o ovo e as rosas vermelhas na cara dela e foi embora para sempre. Só então ela sentou para tirar os sapatos. Na carne dos tornozelos inchados, as pulseiras tinham deixado lanhos fundos. Havia ferimentos espalhados sobre os dedos. Na segunda, ao ir trabalhar, com um vestido marrom e de gola, todos queriam saber por que ela estava com dificuldade de andar, então ela respondeu que era por causa do sapato novo que estava um pouco apertado, nada mais. Os ferimentos doíam quando ameaçava chover, e, ela, mesmo assim, não conseguia ceder à vontade de usá-los, mas quase sempre o impulso de calçá-los era mais forte. Só pensou em jogá-los fora quando as varizes começaram a engrossar, escalando as coxas.

Como podemos observar, há, também, muita simbologia no texto, o que veremos agora para, posteriormente, analisarmos com maior precisão os dois textos. O sapato, dentre sua representação, pode estar relacionado ao complexo de poder evocando uma posição de afirmação do ego. Pode, ainda, representar o órgão sexual feminino por revestir o pé, que é um conhecido símbolo fálico. Uma vez que escravos andavam descalços, o uso dos sapatos também pode simbolizar liberdade. Tudo isso se aplica a esse conto, pois quando a mulher coloca os sapatos, muda completamente, torna-se extremamente sensual e atrai, para ela, três homens de uma só vez. Vemos, aqui, a representação do sapato como o órgão sexual feminino, tanto é que ao irem para a cama, os homens imploram para que ela não tire os sapatos, porque os pés simbolizam o falo e, como homens queriam toda a feminilidade que ela pudesse oferecer, mantem-na com os sapatos. Quanto à cor vermelha, evoca não só o pecado da luxúria, mas a vitalidade que essa prática traz, a sensualidade, o poder sexual, é uma cor exaltante. é uma cor essencialmente quente, transbordante de vida e de agitação. Parece que, ao colocar os sapatos vermelhos, ela ganha coragem para fazer tudo o que queria e, apesar de seus quase quarenta anos, atrai olhares e faz coisas que exigem muita vitalidade. O vermelho, assim como o amarelo (dourado) que é muito presente no texto, tem uma relação com o fogo, sendo que este simboliza,

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por suas chamas, a ação fecundante e iluminadora. Mas ele apresenta, também, um aspecto negativo: obscurece e sufoca, por causa da fumaça; queima, devora e destrói – o fogo das paixões, do castigo e da guerra. Com essa relação, do vermelho e amarelo com o fogo, podemos afirmar que Adelina só externa essa ação fecundante quando calça o sapato vermelho e quando o tenista – de cor dourada e ainda vestindo uma camisa amarela – chama a atenção dela, além de ser a cor do tapete em que estão os seus pés quando ela tem a idéia de calçar os sapatos, o que reflete a idéia de iluminação causada pelo fogo. Quanto ao aspecto negativo, ela, ao calçar os sapatos, não consegue perceber o que está fazendo, tanto é que, depois de tirá-los, diz que a culpa é do néon e do diabo, mostrando que a fumaça do fogo pode sufocar e obscurecer a visão de uma situação, além de destruir, queimar e devorar a antiga Adelina, que passou a nomear-se Gilda, como a personagem, vivida pela atriz Rita Hayworth, do famoso filme intitulado “Gilda”, ela(s) representam as mulheres que, saindo das fronteiras do ‘lar’, arriscam-se a experiências sexuais-vivenciais que se amparam em vários riscos. Há, também, a presença da cor cinza, personificada no amante que só usa terno cinza, gravata um pouco mais clara e sapatos um pouco mais escuros. O cinza representa aquilo que resta após a extinção do fogo. Evoca a nulidade ligada à vida humana e, por causa da sua precariedade, está relacionada à morte. Quando Adelina está perto do amante, é como se ele consolidasse a nulidade da vida dela, já que ela sempre fazia as vontades dele, além de representar a morte dos desejos que estavam dentro dela. Como a mulher descobriu que poderia “viver”, não quis mais saber do amante, pois longe dele, e com os sapatos vermelhos, ela poderia libertar seus desejos.

Outra cor que percebemos no fim do texto é o marrom, a cor de um vestido que ela usa para ir trabalhar, simboliza a degradação, pois quando chega ao trabalho todos perguntam por que ela está andando com dificuldade, mentindo, diz que é porque os sapatos estão apertados; entretanto, a verdade é que seus pés estavam cheios de ferimentos por causa dos sapatos vermelhos.

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Ela não conseguia resistir à tentação de usá-los, mesmo com todas as feridas, o que mostra a degradação a que ela chegou. “Por sua delicadeza, o tornozelo revela numa mulher possibilidades de refinamento e habilidade nas relações sexuais” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1999, p. 888) e para os chineses ele evoca certas partes mais íntimas do corpo da mulher. Já que o tornozelo dela estava com muitos ferimentos e mesmo assim ela continuava usando os sapatos, infere-se que não importava a dor que sentia ao usá-los e sim o poder sobre os homens. Seus tornozelos são uma metáfora do que ela se tornou em suas relações sexuais e do que suas partes íntimas começaram a representar. O número três também merece destaque como símbolo: “é um número perfeito, a expressão da totalidade, da conclusão: nada lhe pode ser acrescentado” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1999, p. 899). Ele está presente tanto na estrutura do texto, dividido em três partes, quanto diluído no próprio enredo, por exemplo, a quantidade de homens com quem ela manteve relações sexuais e o fato de o sapato estar guardado na terceira gaveta da penteadeira. Isso conota que ela se sentiu completamente satisfeita, como se ela estivesse completa.

3 os Sapatinhos Vermelhos: Caio Abreu x Hans Andersen

Nosso principal foco, aqui, não é apenas expor os significados dos símbolos encontrados nas duas histórias, mas fazer uma comparação temática entre o que separa o texto de Andersen do texto de Caio.

No texto de Andersen, percebemos a presença da religiosidade, de um Deus que pune o pecado se você fizer a escolha errada. Há a possibilidade de fazer a sua própria vontade, mas terá que prestar contas a Deus, que pode lhe punir, mostrando que a essência precede a existência, o contrário do que diz a teoria existencialista de Sartre, que veremos em Caio Abreu. Já que existe Deus, e há que se adequar as escolhas ao que está dentro de sua lei, a quebra destas, causa sofrimento e atrai o mal, então, o tema do texto é puramente moral: “o salário do

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pecado é a morte” (Rm 6, 23); ao desobedecer a Deus, o homem ganha para si a morte, não apenas física, mas em todos os aspectos. E, além dessa religiosidade, há uma denúncia social, pois a sociedade valorizava o que a pessoa tinha e não o que ela era, fazendo, inclusive, a própria pessoa se submeter a essa ideologia como aconteceu com a menina do texto de Andersen.

Em Caio, há a presença da religiosidade, mas para ironizar o fato de que o homem pode fazer o que quiser. A religiosidade não passa de limites estabelecidos pelo próprio homem, é ele quem decide o que faz e não é punido por nenhum Deus, pois este não existe: “o homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo” (PAIVA, 1990, p. 85). Vemos, aqui, uma abordagem existencialista, teoria de Jean-Paul Sartre, que afirma que o homem pode determinar o seu futuro, pode escolher, mas essa escolha lhe causará angústia1, pois, se não há um Deus para jogar a culpa pelos próprios erros, ele é o único responsável por sua vida. Este é o tema central do conto de Caio, pois, como já vimos, opõe-se ao tema encontrado em Andersen. A idéia central de todo pensamento existencialista é de que a existência precede a essência. Não existe nenhum Deus que tenha planejado o homem e, portanto, não existe nenhuma natureza humana fixa a que o homem deva respeitar. O homem está totalmente livre, é o único responsável pelo que faz de si mesmo. O fato de que a mulher não é punida pelo seu “pecado” confirma essa teoria e, quando ela tem que escolher entre continuar com os sapatos, representação do pecado, ou não, ela coloca a culpa no néon, agindo de má fé, “quem mente e se desculpa declarando: nem toda gente faz assim, é alguém não está à vontade com sua consciência; porque o fato de mentir implica um valor universal atribuído à mentira. Ainda quando a disfarcemos, a angústia aparece.” (PAIVA, p. 89, 1990). Entretanto ela se sente bem com o que faz e é isso o que importa para ela, mas essa liberdade e responsabilidade é fonte de angústia, pois não há nenhum Deus e, portanto, nenhum plano divino que determine o que deve acontecer, não há nenhum determinismo. O homem é livre. Não pode desculpar sua ação dizendo que está forçado por circunstâncias

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ou movido pela paixão ou determinado de alguma maneira a fazer o que ele faz. A preocupação é com o sentido ou o objetivo das vidas humanas, mais que com verdades científicas ou metafísicas sobre o universo. Assim, a experiência interior ou subjetiva é considerada mais importante do que a verdade “objetiva”, um fundamento igual ao da filosofia oriental. Para a Adelina, a verdade não estava no exterior, não importava o que era pecado ou não, ela é quem decidia, dentro dela, ou seja, subjetivamente, a sua própria verdade, se aquilo lhe fazia bem, essa era a única verdade. Essa sua liberdade explora outro sentimento: o egoísmo que

de acordo com sua natureza, é sem limites: o homem quer conservar incondicionalmente sua existência, a quer incondi-cionalmente livre da dor à qual também pertence toda penúria e privação, quer a maior soma possível de bem-estar, quer todo o gozo de que é capaz e procura, ainda, desenvolver em si outras aptidões de gozo. Tudo o que se opõe ao esforço de seu egoísmo excita sua má vontade, ira e ódio; procurará aniquilá-lo como a seu inimigo. Quer, o quanto possível, desfrutar tudo, ter tudo. Porém, como isto é impossível, quer, pelo menos, dominar tudo (SCHOPENHAUER, 2001, p. 121).

Em relação às questões de moralidade sexual encontradas no texto percebemos que a atitude de Adelina é totalmente imoral segundo os preceitos da sociedade. “As nossas funcções, quando orientadas de accôrdo com o fim phsysiologico a que se destinam, nenhuma immoralidade encerram” (sic) (ALBUQUERQUE, 1930, p. 15), entretanto se a pessoa ultrapassa o necessário, transformando essa função em agente excessivo de prazer, a torna nociva ao organismo, como se depreende da história, pois ela ultrapassa os seus limites, até ali.

Portanto, vimos que Andersen e Caio a partir do mesmo objeto, o sapato, exploram de modos diferentes suas várias significações. Em Andersen, o conteúdo é moral-religioso, já em Caio há um fundo moral sob outra perspectiva com ênfase na liberdade dos indivíduos como a sua propriedade humana

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distintiva mais importante, da qual não pode fugir. O homem se faz em sua própria existência.

Nota1 Segundo a teoria existencialista, quando o homem passa a ser o que escolheu, ele não poderá “escapar ao sentimento da sua total e profunda responsabilidade” (PAIVA, p. 88, 1990), por isso o sentimento de angústia.

referências

ABNT. NBR 6028: resumos. Rio de Janeiro: ABNT, 1990.

ABREU, C. F. Caio 3 D: o essencial da década de 1980. Porto Alegre: Agir, 2006.

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ARISTóTELES; H.ORáCIO; LONGINO. A Poética clássica. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1988.

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CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.

COELHO, N. N. O Conto de fadas: símbolos mitos arquétipos. São Paulo: DCL, 2003.

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PAIVA, V. P. O pensamento vivo de Sartre. São Paulo: Martin Claret, 1990.

SCHERMANN, E. z. O Gozo En-cena: sobre o masoquismo e a mulher. São Paulo: Ed. Escuta, 2003.

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“Os Sapatinhos Vermelhos” em Hans Andersen e em Caio F. Abreu

SCHOPENHAUER, A. Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Caio_Fernando_Abreu#column-one#column-one>

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Hans_Chistian_Andersen#column-one>

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A família Lopes e a inquisição no Brasil Colonial Quinhentista

Emãnuel Luiz Souza e Silva*

resumo

Este artigo tem como objetivo analisar a família de cristãos-novos, de Mestre Afonso e Maria Lopes, que viveu na Capitania da Bahia no final do século XVI. Este período foi marcado pelo envio da Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (1591-1595). O grupo familiar foi vítima de inúmeras denúncias de criptojudaísmo, que o colocou como alvo potencial da repressão inquisitorial, representada pelo então Visitador Heitor Furtado de Mendonça. A partir desta Visitação podemos observar o rol de culpas atribuídas e confessadas por este núcleo familiar, as relações sociais entre cristãos-novos e cristãos-velhos na sociedade baiana colonial e a ação da Inquisição Lisboeta em terras de além-mar.

Palavras-chave: Inquisição. Criptojudaísmo. Cristãos-novos. Brasil Colonial.

Abstract

This article aims to analyse the of Family Christian-new, from Mestre Afonso and Maria Lopes, who Lived in Bahia Captaincy in the end of the sixteenth century. This period was marked by the sending of the First Visitation of the Holy Office to parts of Brazil (1591-1595). The family group was the victim of numerous accusations of crypto-judaism, which posed as a potential target of inquisitorial repression, represented by then visitor Heitor Furtado de Mendonça. From this

* Mestrando em História – Universidade Estadual de Feira de Santana. Membro do Centro de Pesquisa da Religião (CPR). Email: [email protected]. Tel: (71)88336252. Agradeço à FAPESB – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia, pela bolsa de estudos concedida.

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A família Lopes e a Inquisição no Brasil Colonial Quinhentista

Visitation we can see the list of assigned blame and admitted by the family, social relations between Christians and Christian-new-old colonial in Bahia society and action of the Inquisition by Lisbon of land over seas.

Keywords: Inquisition. Crypto-judaism. New Christians. Colonial Brazil.

referenciais Passados: os Cristãos-novos em Portugal

Na Península Ibérica, antes da instalação do Santo Ofício, habitavam grupos étnicos diversos. Além dos espanhóis e portugueses cristãos, também viviam aí, participando da sociedade destes países árabes, judeus e mouros. Os judeus em Portugal desempenhavam diversas funções na sociedade e interferiam significativamente na vida administrativa do país e na sua economia, onde alcançavam “posições de prestígio, tanto na área política como na econômico-financeira.” (NOVINSKY, 1996, p. 24). Eles foram médicos, filósofos, professores, astrônomos, tendo um padrão de vida comparável ao da aristocracia.

Como conseqüência da reconquista espanhola ocorreu a ordem, por parte dos soberanos católicos da Espanha, Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela, para expulsarem os judeus que não quisessem se converter ao catolicismo. Este fato ocasionou, assim, a fuga em massa de milhares de famílias que cruzaram as fronteiras daquele território em busca da liberdade religiosa. Esta posição monárquica baseou-se na fundamentação de que somente poderia haver uma centralização real consistente com a unidade de fé. Neste ínterim aumentou-se o rigor sobre a religião. Grande parte destes judeus partiram da Espanha para Portugal, onde ainda existia uma relativa harmonia entre estes e os portugueses, se comparado ao país vizinho:

no que diz respeito às relações entre judeus e cristãos, podemos dizer que em Portugal [...] a religião não impediu nem prejudi-cou seriamente os contactos mútuos, as inter-relações grupais, sendo mesmo considerável o número de casamentos mistos. O povo não levava muito a sério as proibições dos representantes

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da igreja e os monarcas portugueses foram muitas vezes recri-minados de Roma por favorecerem aos judeus. ( NOVINSKY, 1992, p. 27.)

Cinco anos depois da ordem imposta pelos reis espanhóis para expulsão dos judeus não convertidos de sua terra, o rei português D. Manuel, o Venturoso, também impôs a conversão forçada em seu reino, proibindo as livres crenças e demarcando um prazo para a expulsão. Porém diferentemente do ocorrido na Espanha, os seguidores de Moisés foram proibidos de sair de Portugal. Assim, estes foram forçados à conversão e também à permanência em solo português.

Os que não conseguiram fugir de Portugal, e permaneceram neste território, foram convertidos à força e passaram a ser tratados como cristãos-novos. Esta expressão se tornou sinônimo de algo impuro, infecto, indigno, de pouca confiança. Eram vistos como os responsáveis pelas crises econômicas, as pestes, manifestações da natureza, entre outros aspectos sociais, cotidianos. Considerados cristãos fictícios, judeus batizados à força, sem apego à Igreja (SALVADOR, 1969, p. XX.), mesmo aqueles que, a partir de então, abraçaram aquela nova religião.

Em Portugal, no ano de 1536, a Inquisição recebeu autorização para funcionar. Por razões divergentes entre esse país e a Cúria Romana, o Tribunal só foi realmente estabelecido 11 anos depois (PIERONI, 2003, p. 34.) com a Bula do Papa Paulo III Meditatio Cordis. Naquele novo contexto, o cotidiano e a convivência entre cristãos-novos e velhos passou a ser caracterizada por uma intensa perseguição, tão implacável quanto na Espanha.

A partir da primeira metade do século XVI, um número crescente de cristãos-novos, além de buscarem novas possibilidades econômicas, passaram a desembarcar em solo brasileiro à procura de um local distante da metrópole onde tivessem maior liberdade religiosa. A América portuguesa foi então o local escolhido pela maioria destes cristãos-novos que saíram de Portugal, acreditando ser no Brasil mais difícil uma perseguição tão violenta quanto na metrópole.

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A família Lopes e a Inquisição no Brasil Colonial Quinhentista

Atribuíam essa “possibilidade de paz” à distância e ao fato de ser a colônia “recém descoberta”.

Assim começou a chegada de milhares de cristãos-novos ao Brasil, localizando-se em áreas estratégicas da colônia, tanto nas capitanias de Pernambuco quanto nas da Bahia, locais preferenciais para os que chegavam da metrópole. Além de serem as mais habitadas e desbravadas naquele período, aí se instalaram as capitanias mais prósperas e a sede do governo português no Brasil, atingindo o interesse da maioria da população.

Os cristãos-novos, uma vez na colônia, influenciaram na economia e tiveram uma relação com os cristãos-velhos de cordialidade e solidariedade, tendo-se em vista as dificuldades de convivência em solo colonial. Desempenharam funções importantes no desenvolvimento e crescimento da colônia portuguesa, até o momento em que a Inquisição enviou a sua Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil dando fim a um relativo período de paz neste território.

os Cristãos-Novos na Sociedade Baiana

Para entendermos as relações entre cristãos-novos e velhos na sociedade colonial do final do século XVI, devemos contextualizar esta relação dentro de características particulares que compõem a população, a religião, religiosidade, a economia e as práticas culturais destes sujeitos históricos que compartilharam as dificuldades do início da colonização e ocupação do solo. A partir daí, poderemos analisar a família cristã-nova de Maria Lopes e Mestre Afonso e a Primeira Visitação do Santo Ofício em terras brasileiras, que os perseguiu.

Na Capitania da Bahia, a cidade de Salvador foi fundada poucos anos após a instalação do Santo Ofício em Portugal, quando, em 1549, chegou em terras coloniais o primeiro Governador Geral do Brasil, Tomé de Souza. Junto com ele também veio o padre jesuíta Manuel da Nóbrega com a missão de trazer o cristianismo para as terras recém-colonizadas e converter a população nativa e/ou recém-desembarcada.

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No período de administração dos três primeiros Governos Gerais, que abrangeu de 1549 a 1572, uma política efetiva de dominação do gentio e de demarcação de territórios foi implantada. A expansão populacional portuguesa passou a avançar da costa para os sertões, de forma gradativa e concomitante ao genocídio de milhares de índios que foram obrigados a ceder seu espaço territorial e cultural a um novo padrão de convivência imposto pela Igreja e pelo Estado. Este projeto começou no governo de Tomé de Souza e teve o seu ápice com o terceiro Governador Geral, Mem de Sá.

Assim, com este artifício expansionista, os portugueses continuaram a sua campanha de dominação e submissão dos ameríndios. Estes gentios que antes tinham seus costumes, suas adorações, seu cotidiano de tarefas e suas escolhas, se viram pressionados a obedecer a regras e em pouco tempo desfazer-se de todo o seu passado em prol de valores, costumes e de uma religião que não lhes era familiar, tudo isso em beneficio do desenvolvimento colonial.

Os cristãos-novos estavam presentes em todos os momentos desta ocupação, acompanhando os processos de expansão territorial e auxiliando no desenvolvimento da colônia. Tem-se a presença, desde a descoberta, de um cristão-novo na frota de Pedro álvares Cabral “um homem chamado Gaspar da Gama.” (WIzNITER, 1966, p. 2).

Neste contexto eles chegaram gradativamente, ocupando com os cristãos-velhos o território e superando as dificuldades existentes neste primeiro momento de colonização. Foram desbravadores do sertão, lavradores, mestres de açúcar, soldados, ajudando nas mais variadas atividades o desenvolvimento da Capitania. Sobre esta migração podemos observar: “Os cristãos novos chegam pouco a pouco, continuando um movimento migratório iniciado em princípios do século XVI, e que a partir da segunda metade se tornou mais intenso”(NOVINSKY, 1992, p. 57).

A população colonial, em sua maioria, estava concentrada neste primeiro século de colonização no litoral, devido à maior facilidade para a comunicação

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com a metrópole e ao pequeno avanço da penetração para os sertões. Quanto à composição social dessa população que habitava a colônia, parte dela era composta por degredados, pessoas indesejáveis na metrópole que eram enviadas à colônia para pagarem por algum crime, sendo ele moral, civil ou contra a fé (PIERONI, 2000, p. 11-12).

O caráter do degredo variava entre provisório ou permanente. Sendo provisórios, os degredados e a sociedade portuguesa viam o Brasil como um purgatório, onde este pecador e/ou infrator vinha pagar suas penas e posteriormente poderia voltar à metrópole.Variavam geralmente de 3 a 10 anos.

Houve inúmeros casos de cristãos-novos que foram degredados para o Brasil, por continuarem a praticar sua antiga fé, por crimes morais e/ou civis. Um caso de condenação por criptojudaísmo foi o de Fernão Dias, um negociante, natural e residente em Lamengo, Portugal, filho de Gabriel Dias e Micia Gomes, ambos cristãos-novos. Ele foi acusado na Inquisição de Lisboa por judaísmo, também contando contra ele a prisão de seu pai e sua tia pela Inquisição de Coimbra. Acabou sendo preso em 1578 e degredado para o Brasil por três anos. (PIERONI, 2003, p.139).

O açúcar neste momento histórico passou a ter grande importância econômica na colônia e seus produtores ocupavam o lugar dos “homens bons”. A partir de 1570, quando, no recôncavo baiano, o cultivo da cana começou a se expandir, o açúcar foi ocupando os primeiros lugares na pauta das exportações brasileiras, influenciando na formação da sociedade e na administração do governo no Brasil, que se voltou a uma produção cada vez mais consistente deste produto (SCHAWRTz, 1979, p. 79). Devido a este crescimento na produção do açúcar foi que se intensificou a utilização de mão-de-obra escrava, sendo efetuado pelos negros vindos, em sua maioria de Angola e da costa oeste da áfrica.

Ser senhor de engenho na Bahia no final do século XVI representava ter prestígio e poder, pois ele detinha a produção do açúcar e a propriedade dos

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escravos, sinônimos de poderio e riqueza. Assim, o papel do senhor de engenho se destacava pela grandiosidade e influência, este que “era dono do seu engenho, da sua capela, dos seus escravos, da sua família.” (CALMON, 1937, p. 79).

Dentro deste contexto, pode-se afirmar que muitos cristãos-novos que viviam na Bahia, naquele período, eram senhores de engenho. Podemos observar, então, um dos papéis sociais ocupados por este grupo na colônia. Sobre a importância desta condição: “A condição de senhor de engenho já conferia ao cristão-novo como ao velho uma posição de relevo, semelhante à do fidalgo” (NOVINSKY, 1992, p. 59).

Um caso conhecido destes sujeitos sociais, constatado nas Confissões e Denunciações da Primeira Visitação do Santo Ofício à Bahia foi o da família Antunes, dona de um engenho no recôncavo baiano, em Matoim. O patriarca da família já havia morrido, porém foi alvo de muitas denúncias. Ele construiu seu engenho e era homem de posses, bem relacionado com a elite e o poder local, prova disto é que todas as suas filhas, mesmo sendo cristãs-novas se casaram com cristãos-velhos de posses.

Uma prova da integração dos cristãos-novos na sociedade baiana foram os casamentos mistos. Na Primeira Visitação do Santo Ofício se percebe um número considerável de pessoas que se denominavam 1/2 cristãs-novas devido a estas relações. Um caso para exemplificar é o de Clara Fernandes, que era filha de Antonio Peneiro, cristão-novo, e de Gracia Dias, cristã-velha. Clara Fernandes foi casada com Manuel Fernandes, cristão-velho (VAINFAS, 1997, p. 83).

Sobre essas posições ocupadas por cristãos-novos na sociedade baiana Stuart Schwartz complementa que “Na Bahia, os cristãos-novos se integraram bem na população e na vida econômica da capitania; participavam não só dos aspectos comerciais, mas também dos agrícolas e da produção de açúcar.” (SCHWARTz, 1979, p. 87). Eles também tiveram postos na governança e na administração: foram vereadores, juízes ordinários, meirinhos, solicitadores,

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além das profissões liberais como médicos, advogados, entre outros cargos. (NOVINSKY, 1992, p. 60).

Sobre a religião na colônia, esta se caracterizou pela superficialidade, apesar de ser predominante e interferir significativamente na vida da sociedade baiana. O catolicismo se fazia valer no espaço colonial para legitimar a conquista. Muitos aspectos cotidianos de convivência eram determinados pelo poder eclesiástico: as relações matrimoniais, as relações familiares, o papel da mulher e do homem na sociedade, as normas da vida sexual, as relações de sociabilidade através das festividades e das missas dominicais, enfim uma gama de possibilidades fazia com que a Igreja interferisse diretamente na vida da população baiana.

Através destas Denunciações e Confissões da Bahia, se descortina o cotidiano dos cristãos-novos, com a permanência de certos costumes judaicos, que foram denunciados por vizinhos, parentes e amigos destes sujeitos sociais. Também as suas confissões revelam aspectos de uma tradição que mesmo proibida e discriminada persistia em muitos lares dos considerados “impuros de sangue”.

As práticas costumeiras que continuaram na colônia e podem ser observadas com mais freqüência através da documentação inquisitorial foram: a utilização de roupas limpas aos sábados, mandar vazar fora a água de casa quando alguém morria, fazer juramento judaico: “pelo mundo que tem a alma de meu pai” (VAINFAS, 1997, p. 132); guardar os sábados e mandar trabalhar nos dias santos. Outros costumes acompanhavam estes sujeitos e faziam com que eles não perdessem totalmente as ligações com a sua antiga religião, mesmo realizando estas tradições às escondidas e tendo que adaptá-las ao interior de suas casas, em lugares reservados, onde pudessem realizá-los sem constrangimentos.

Muitos também utilizavam o interior de suas moradas para se vingarem da religião que os oprimia, através de blasfêmias, do açoite às imagens de santos católicos, colocando-as em lugares inapropriados como: debaixo da cama ou no

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local onde faziam suas necessidades corpóreas. Essas eram as mais comuns entre outras manifestações de revolta.

O cristão-novo álvaro Sanches foi se confessar por ter maltratado o desenho de Nossa Senhora (VAINFAS, 1997, p. 100). A cristã-nova Clara Fernandes foi denunciada por ter mandado fazer um crucifixo de prata e depois de recebê-lo, colocou em uma almofada, sobre a qual ela se sentava (MENDONçA, 1925, p. 269). Ela também foi denunciada por açoitar um crucifixo (MENDONÇA, 1925, p. 285). Porém, havia também cristãos-novos que viviam de acordo com a sua nova realidade religiosa: iam às missas, tinham oratório em casa, rezavam de acordo com a fé católica, se benziam, seguiam à risca os ensinamentos dos padres e conversavam sobre a sua nova religião. Alguns deles confessaram para o Visitador outros delitos contra a fé, que não estavam submetidos ao judaísmo.

Esta denominação cristão-novo era vista com depreciação na colônia, onde também impunha sua condição de “inferioridade”. A primeira pessoa a denunciar, no dia 29 de julho de 1591, na mesa, perante o Visitador, foi João Serrão. Neste primeiro momento se denominou cristão-velho inteiro, porém no dia 22 de agosto ele compareceu novamente ao Santo Ofício, para se confessar e disse que havia mentido sobre ser cristão-velho, na verdade era cristão-novo inteiro, revelando, assim, uma convivência não tão harmoniosa quanto se pensa entre cristãos-novos e velhos na Bahia. Sobre ser cristão-velho ele afirmou:

e dise aver nome como ditto he e ser cristão velho de todas as partes natural de Bragança filho de Francisco de Chaves e de Clara Seram casado com Constança de Pina, lavrador de idade de quarenta annos pouco mais ou menos, morador em Tasue-pina freguesia de Nosa Senhora do Socoro. (MENDONçA, 1925, p. 237).

Já em sua confissão no dia 22 de agosto, disse que:

elle he cristão novo inteiro filho de Francisco de Chaves cristão novo alfaiate e de sua molher Clara Seram cristan nova [...] e isto fizera por elle estar casado nesta cidade com huma molher

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cristã velha de gente limpa e abastada e elle ser tido por todos cristão velho... avido em boa conta e honrado. (MENDONçA, 1935, p. 43.).

Assim podemos observar um pouco da vida cotidiana e costumes da população baiana no final do século XVI: suas sociabilidades e as características da cidade de Salvador e da Capitania da Bahia. Observamos também o comportamento dos cristãos-novos, que se adaptavam a esta nova realidade colonial integrando-se a esta sociedade que então se formava pouco antes da chegada do visitador Heitor Furtado de Mendonça e de sua comitiva em uma Visitação Inquisitorial à Bahia. Sobre a integração dos cristãos-novos na sociedade baiana:

miscigenou-se com a população nativa, criou raízes profundas na nova terra, integrando-se plenamente na organização social e política local. Esta organização, ao mesmo tempo permitiu a integração e acomodação do cristão-novo, sofreu reciproca-mente, deste, profunda influência. (NOVINSKY, 1992, p. 58).

A Visitação durou dois anos e desestruturou, pelo menos temporariamente, laços de amizade e familiares, além da incessante busca pelos criptojudaizantes que estavam pondo em risco a supremacia religiosa da Igreja Católica.

A Visitação do Santo ofício à Bahia

Quando a Inquisição veio ao Brasil, no final do século XVI, muitos cristãos-novos já haviam sido denunciados e presos pelo Santo Ofício na metrópole. Vários Autos de Fé aconteceram e muitas pessoas foram condenadas à fogueira. Em Portugal, este número cresceu consideravelmente tendo, entre os principais acusados e punidos, os que ainda praticavam o judaísmo, mesmo às escondidas.

Esta perseguição e as punições do Tribunal causaram a fuga de muitos cristãos-novos para o Brasil. Um exemplo, dentre muitos, é o de Pedro Homem, descendente de judeus que veio à colônia e foi morador na casa do seu parente

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Tristão Ribeiro. Passou alguns anos na Bahia, depois voltou para Portugal. Em 1591 veio novamente a estas terras, porém houve denúncias que diziam que este saiu de Portugal fugido da Santa Inquisição, pois sua irmã havia sido presa pelo Tribunal. (MENDONçA, 1925, p. 415).

Durante meio século aproximadamente, estes sujeitos sociais viveram em relativa harmonia com os cristãos-velhos superando as adversidades e adaptando as suas vidas ao cotidiano e às novas condições que a vida na colônia proporcio-nava. Este ambiente começou a se desestruturar quando o arquiduque Alberto da áustria, que em 1586 era vice-rei de Portugal, foi constituído inquisidor geral dos reinos e senhorios portugueses (MENDONçA, 1935, p. V). Já com esta titulação “ordenou a primeira visitação do Santo Officio às partes do Brasil.” (MENDONçA, 1935,p. 5). No dia 26 de março de 1591, Heitor Furtado de Mendonça foi nomeado visitador e lhe foi determinado que a sua visitação abrangesse os bispados de Cabo Verde, São Tomé, Brasil e a administração de S. Vicente ou Rio de Janeiro.(MENDONçA, 1935, p. 5).

A Primeira Visitação objetivava a busca de sujeitos sociais que de alguma maneira pudessem atrapalhar o controle moral e religioso imposto pela Igreja Católica. Além dos cristãos-novos, havia também as pessoas que cometiam cri-mes sexuais, como a sodomia, o bestialismo, enfim, as relações que não seguis-sem o padrão estipulado pelo catolicismo. As práticas mágicas e a feitiçaria, os blasfemos, os que praticavam o luteranismo, todos estes “delitos” eram punidos pelo Santo Ofício.

Heitor Furtado de Mendonça, nesta Visitação, recebeu muitas confissões e denúncias de cristãos-novos judaizantes e de uma certa abusão indígena chamada Santidade. Os mais denunciados foram os integrantes da família de Heitor Antunes, em Matoim, acusados de manterem uma sinagoga de judeus, e Fernão Cabral de Taíde, responsável por abrigar a idolatria indígena.

Dentro desta possibilidade que a documentação inquisitorial disponível traz, buscamos analisar mais profundamente um grupo de cristãos-novos que

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também foi denunciado nesta Primeira Visitação: a família de Mestre Afonso e de Maria Lopes. A partir daí compreendemos como foi a visitação, como se realizavam as denúncias e confissões, como esta família reagiu à presença do Santo Ofício; se eles eram judeus convertidos ou realmente criptojudaizantes, seu cotidiano familiar, as sua práticas e como este grupo estava inserido na sociedade baiana colonial.

A família de Afonso Mendes e Maria Lopes nunca foi alvo de um estudo aprofundado e específico, porém, citados em alguns trabalhos em abordagem geral. Este grupo familiar é bastante extenso e permitirá, através das suas minuciosas confissões e das denúncias a eles feitas, adentrarmos no seu cotidiano e reconstituirmos, mesmo que não seja de forma plena e absoluta, a história dessas pessoas que viveram, se instalaram e influenciaram a sociedade colonial baiana.

A chegada dos primeiros integrantes desta família ocorreu a partir da segunda metade do século XVI. Afonso Mendes havia sido nomeado cirurgião-mor do Brasil e aportou em terras brasileiras em 28 de dezembro de 1557. Sobre a sua família pouco se conhece pela documentação das Visitações, somente que ele era cristão-novo. Viajou na mesma nau que trouxe o governador Mem de Sá e Heitor Antunes, patriarca da família Antunes. Posteriormente, a família foi ocupando diversas localidades da Bahia. Nas beiras do Paraguaçu, capitania de Porto Seguro, capitania de Ilhéus, em Paripe, mas a maioria era residente em Salvador.

A convivência desta família com a sociedade baiana era relativamente harmoniosa, até a chegada do Santo Ofício na Bahia. Maria Lopes era lavadeira e mantinha relações com um grande número de pessoas. Este convívio pode ser confirmado pela presença de cristãos-velhos que freqüentavam a casa de mestre Afonso, como por exemplo, Beatriz da Silva, que passou alguns dias em sua casa. (MENDONÇA, 1925, p. 540); as filhas de Diogo Sorilha: Maria

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Sorilha e Antônia Fogaça, que eram amigas de Branca de Leão e se visitavam (MENDONçA, 1925, p. 242).

Eles também mantinham relações com cristãos-novos fora de seu núcleo familiar como a matriarca da família Antunes, Ana Roiz, com quem Maria Lopes manteve amizade durante um certo tempo. Muitos dos que os denunciaram eram amigos ou freqüentavam as suas casas, com quem mantinham estreitas relações.

Interessante registrar que esta família não entrava em conflito com a religião católica de forma aberta, pois seus integrantes freqüentavam as igrejas, assistiam às missas, tinham imagens de santos, oratórios, cruzes em suas casas e realizavam grande parte das obrigações religiosas que uma família católica colonial deveria realizar. Eles, porém, não ficaram completamente submissos às imposições do catolicismo e sempre encontraram uma maneira de extravasar as suas vontades interiores e a suas revoltas, deixando viva, mesmo de forma escamoteada, a sua verdadeira religião.

Sobre a presença de membros desta família no cotidiano religioso da colônia, temos alguns exemplos: No mesmo ano em que a Visitação chegou na Bahia, três ou quatro meses antes, álvaro Pacheco estava ouvindo uma missa no dia de Nossa Senhora da Ajuda, na Igreja da Sé. O capelão cantou uma epístola e passou do interior da igreja em direção à saída, neste momento ele comentou com o cristão velho Gaspar Dias, sentado ao seu lado “como aquelle vai contente parecendo-lhe que disse alguma cousa”. (MENDONçA, 1925, p. 245).

Aquela frase causou grande espanto, por ser cristão-novo e dizer que a epístola da missa não era nada. Por isso foi denunciado a Heitor Furtado (MENDONçA, 1925, p. 245). Sua irmã, Ana de Oliveira também foi denunciada ao Santo Ofício por se comportar mal quando ia à igreja. Sempre procurava alguém para conversar na hora da missa e não rezava, brincando com as contas na mão. Também foi denunciada por ficar:

inquieta e com pouca reverencia a deos falando com todas fol-gando com as contas sem rezar nada por ellas e lhe lembra que

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duas vezes se não alevantou ao Evangelho, e se ficou assentada a elle sendo sã e bem disposta e que isto escandalizou a ella de-nunciante por ella ser cristã nova. (MENDONçA, 1925, p. 377)

Podemos observar algumas práticas desta família que foram registradas pela Visitação do Santo Ofício à Bahia. Maria Lopes, por exemplo, foi se confessar no dia 3 de agosto de 1591, e já havia sido denunciada.1 No primeiro dia apresentou as seguintes culpas: em casa, quando mandava matar uma galinha, a degolava e, às vezes em que assava um carneiro ou porco para comer, tirava a gordura; cozinhava as carnes também com azeite. Todas estas formas de preparo eram cerimônias judaicas.

Durante a confissão o Visitador tentou, através de seus métodos intimidadores, fazer com que ela confessasse mais, afirmando que aquelas práticas eram conhecidas como judaicas e, como era cristã-nova, melhor seria dizer a verdade, pois “está em tempo de graça no qual merecera larga misericórdia da Santa Igreja” (VAINFAS, 1997, p. 33). Porém, Maria Lopes persistiu e afirmou que não tinha intenção de ofender a Deus e que era boa cristã.

Dias depois, foi se confessar novamente, o que pode demonstrar duas posturas: ou o medo de uma punição por parte do Visitador pelas suas práticas e por ter como antecedente acusatório a sua descendência judaica, ou a tentativa de mostrar que verdadeiramente tinha abraçado o catolicismo em detrimento da religião judaica, e com as suas confissões colaborar efetivamente com o representante da Igreja Católica naquele momento.

Outros membros desta família também foram se confessar perante Heitor Furtado de Mendonça: Diogo Afonso, filho de Maria Lopes, foi o único que se confessou por pecados que não envolviam práticas judaicas. Compareceu à mesa para contar sobre suas aventuras amorosas com Fernão Campo, tendo cometido ajuntamento carnal e efetuado o pecado da sodomia. (VAINFAS, 1997, 268). Também se confessaram Antônia de Oliveira e Catarina Mendes, irmã de Maria Lopes.

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Com relação às denúncias, podemos observar que a família em evidência foi alvo de inúmeras, perfazendo um total de aproximadamente 20% das 212 denunciações registradas pelo Visitador. Tivemos, entre os membros deste grupo familiar denunciados por esta Visitação: Branca de Leão, Maria Lopes, álvaro Pacheco, Mestre Afonso, Salvador da Maia, Catarina Mendes, Leonor da Rosa, Gaspar Dias da Vidigueira, Antonio Serrão, Antonio Lopes Ulhoa, Diogo Lopes Ulhoa, Antônia de Oliveira, Diogo Afonso, Fernão Lopes, Branca Rodrigues, Violante Rodrigues, dentre os quais alguns já haviam morrido na época da Visita, mas nem por isso deixaram de ser lembrados no momento da denúncia. Interessante notar que o único membro da família que denunciou foi Pero Fernandes, marido de Antonia de Oliveira, e o fez contra um parente, álvaro Pacheco.

Através desta denúncia, percebemos que os laços familiares começaram a se quebrar, salientando, mais uma vez, a força que o catolicismo tinha no final do século XVI: um membro da família denunciando o outro, como se assim se excluísse do grupo familiar e também mantivesse afastada a sua mulher de qualquer tipo de culpa, em detrimento dos demais. As denúncias variavam entre, práticas judaizantes e as “descortesias” feitas a imagens de santos católicos, realizadas através de açoites e blasfêmias. Ocorreram também algumas práticas que escandalizaram a população, por isso eram conhecidas, como quando se encontrou um retábulo enterrado na antiga propriedade da família, não se sabe de que imagem.

Sobre Maria Lopes pesaram as culpas de não trabalhar aos sábados (MENDONçA, 1925, p. 323), ter uma imagem dentro de uma almofada, na qual mandava que as moças se sentassem quando iam a sua casa (MENDONçA, 1925, p. 410). Ela também foi acusada de açoitar um crucifixo (MENDONÇA, 1925, p. 547).

Mestre Afonso também foi bastante denunciado. As culpas principais foram: ter um crucifixo e açoitá-lo nas sextas-feiras (MENDONÇA, 1925,

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p. 489), comer carne em dia que a igreja defende, não trabalhar aos sábados (MENDONÇA, 1925, p. 487), fazer descortesias a um crucifixo do menino Jesus quando estava dentro de casa. (MENDONçA, 1925, p. 487).

Considerações finais.

Ao término da Visitação à Capitania da Bahia, o visitador havia se deparado com algumas culpas já conhecidas pela sua experiência na metrópole, mas também com particularidades de uma colônia recém-descoberta, composta por uma população heterogênea. Muitas pessoas foram até à mesa do Santo Ofício para acusarem desvios das mais variadas qualificações, muitos dos quais não competiam ao jugo do Tribunal. Assim o Visitador foi obrigado a julgar também o que desconhecia como as culpas da Santidade de Jaguaripe.

Sobre as persistências e continuidades que o Santo Ofício havia trazido à população baiana:

na Bahia tudo voltaria a ser como antes, exceto pelos ressenti-mentos que a passagem do visitador havia deixado na sociedade local. Maridos haviam denunciado esposas, e vice-versa; filhos haviam delatado seus pais e avós [...] O Santo Ofício deixara, em seu rastro, a marca de sua ação deletéria e a memória de seus autos-de-fé [...] Ressentimentos e medos à parte, a vida colonial baiana retomou o seu cotidiano monótono (VAINFAS, 1995, p. 211.).

Através desta documentação inquisitorial disponível nas confissões e denunciações da Bahia, tivemos a oportunidade de resgatar a história e a trajetória de uma família do final do século XVI e revelarmos os seus costumes, o seu cotidiano e as suas relações sociais em conexão com a sociedade baiana daquele período. Isto se deve às possibilidades que estes documentos nos propiciam. Assim conseguimos trazer à tona um grupo familiar que, sem os registros deixados por essa Visitação, não poderia ter sido objeto de um estudo histórico.

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Percebemos na documentação que quase todos os membros da família foram denunciados, contrastando com o número de confissões – foram apenas quatro: Maria Lopes, Antônia de Oliveira, Catarina Mendes e Diogo Afonso. Somente um deste grupo denunciou e, mesmo assim, foi ao Visitador para acusar seu parente: álvaro Pacheco, que foi denunciado por Pero Fernandes. Também se evidenciou quem eram as pessoas que as denunciavam, seu grau de aproximação com estes membros e por que foram alvos de tantas denúncias. Para este estudo não foram utilizadas as denúncias e confissões contra esta família que constam na Visitação do Santo Ofício em Pernambuco (1593-1595). Somente foram levados em consideração à analise os casos ocorridos na Capitania da Bahia.

A chegada da Inquisição ao Brasil, que escolheu a Bahia para inaugurar suas atividades na colônia, procurou, além de outros motivos, conter os cristãos-novos que ainda estivessem praticando a sua antiga religião, revelando assim o poder da Igreja Católica. Através dos trabalhos realizados pelo Santo Ofício em solo baiano, buscamos analisar uma importante família de cristãos novos e como esta reagiu à presença desta Visitação.

Algumas respostas podem ser encontradas no término deste trabalho. Esta família, por ser composta, em sua maioria absoluta, de cristãos-novos, enfrentou o preconceito que esta condição lhe trazia, naquele contexto histórico. Sobre esta família e as punições ou processos instaurados contra membros deste grupo, sabemos que foram processados: Antonia de Oliveira, filha de Ana Rodrigues, Salvador da Maia, marido de Catarina Gomes, Mestre Roque, tio de Maria Lopes, Duarte Serrão, filho de Antonio Serrão e Catarina Mendes, e André Lopes Ulhoa, já na segunda Visitação. A partir destes processos também podemos ter uma noção das tramas e infortúnios desta família, que conheceu a força repressora da ação inquisitorial nas terras brasílicas no final do século XVI.

Através da esteriotipação que estes sujeitos sofriam, considerados impuros de sangue e pecadores, as denúncias revelam uma população extremamente

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excludente. A sociedade baiana e as autoridades lusas, que tinham como respaldo o Edital da Fé e o Monitório da Inquisição, iniciaram uma repulsa a estes descendentes de judeus, denunciando-os, desestruturando suas famílias, rompendo antigos laços de amizade que mantinham, em prol de um padrão de comportamento estipulado pela Igreja Católica e a Metrópole portuguesa. Nota1 No primeiro dia, 29 de julho, das atividades inquisitoriais na cidade.

referências

CALMON, P. História social do Brasil: espírito da sociedade colonial. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1937. Tomo I.MENDONçA, H. F. de. Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil: Confissões da Bahia – 1591-1592. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1935._______. Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil: Denunciações da Bahia – 1591- 1593. São Paulo, Paulo Prado, 1925.NOVINSKY, A. Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1996._______. Cristãos-Novos na Bahia: A Inquisição. São Paulo: Perspectiva, 1992.PIERONI, G. Banidos: a Inquisição e a lista dos cristãos-novos condenados a viver no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.PIERONI, Geraldo. (2000). Vadios e Ciganos, Heréticos e Bruxas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.SALVADOR, J. G. Cristãos-novos, Jesuítas e Inquisição: aspectos de sua atuação nas capitanias do Sul. (1530-1680). São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1969.SCHWARTz, S. B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.VAINFAS, R. A Heresia dos Índios: Catolicismo e Rebeldia no Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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Emãnuel Luiz Souza e Silva

_______. (org). Santo Ofício da Inquisição de Lisboa: confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.WIzNITzER, A. Os Judeus no Brasil colonial. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1966.

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Terras, Florestas e águas de Trabalho. A tríade da vida camponesa na várzea amazônica

Aldenor da Silva Ferreira**

O livro de Antonio Carlos Witkoski, Terras, florestas e águas de trabalho: os camponeses amazônicos e as formas de uso de seus recursos naturais, contribui, de forma objetiva para a compreensão de um modo de vida que é marcado por um conjunto de singularidades – o campesinato amazônico. O livro, composto de quatro capítulos, expõe as formas de ocupação da Amazônia bem como sua formação social e desenvolvimento inserindo nesse processo o camponês amazônico como sujeito social criando sua própria existência. Para tanto, utiliza referenciais teóricos importantes no estudo do campesinato tais como, Alexander Chayanov (1974), Eric Wolf (1970), Afrânio Raul Garcia Júnior (1983) etc.; além das inestimáveis contribuições de Karl Marx.

Outro aspecto importante da obra é a capacidade do autor de realizar aquilo que Pierre Bourdieu (1989) nomeia reconversão do olhar, ou seja, construir um novo olhar a um objeto já abordado por outros estudiosos da Amazônia, no caso, o modo de vida dos camponeses varzeanos, tratados regionalmente na Amazônia de caboclo-ribeirinhos. A proposta sociológica e a perspectiva metodológica estão firmadas numa base teórica sólida e amparadas em pesquisa de campo de grande envergadura, realizada nos anos de 1992/93, na várzea do complexo Solimões/Amazonas. O autor não objetiva apenas discutir as singularidades

* Resenha do Livro de Witkoski, Antonio C. Terras, floretas e águas de trabalho: os camponeses amazônicos e as formas de uso de seus recursos naturais. Manaus: Edua, 2007, 484 p.

** Graduado em Ciências Sociais e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGSCA da Universidade Federal do Estado do Amazonas (UFAM). Pesquisador bolsista do Núcleo de Socioeconomia da Faculdade de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Estado do Amazonas (UFAM).

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socioeconômicas desses sujeitos sociais, que são muitas. Procura evidenciar como esses sujeitos sociais, denominados sociologicamente de camponeses – portanto, ancorado em categoria sociológica madura no âmbito das Ciências Sociais – utilizam as terras, as florestas e as águas em seu modo de vida numa relação simbiôntica com a natureza através do mundo do trabalho sedentário e nômade.

Noutras palavras, o autor propõe analisar as formas de uso dos recursos naturais, por parte dos camponeses amazônicos, mostrando os aspectos fundamentais de sua adaptabilidade ao ecossistema de várzea do complexo Solimões/Amazonas – mais especificamente às microrregiões do Médio Solimões (Município de Coari), Baixo Solimões (Município de Manaquiri e Iranduba), Alto Amazonas (Município do Careiro da Várzea) e Médio Amazonas (Município de Parintins). Nesse sentido, o autor procura entender as formas de trabalho do camponês e sua família que se apropria e utiliza os recursos naturais da várzea, tendo como pano de fundo o contínuo e cíclico movimento de seus rios – enchente, cheia, vazante e seca. A dialética vida social/natureza imprime uma dinâmica singular aos processos de trabalho, não apenas no sentido de que “a vida comanda o rio”, mas também, no sentido de que “o rio comanda a vida.”

No primeiro capítulo, A “civilização” e os trópicos: adaptabilidade dos ameríndios à várzea amazônica e seu etnocídio, o autor realiza ampla contextualização da formação social da Amazônia, começando pela desmistificação da idéia de uma provável natureza intocada, passando pelo etnocídio dos ameríndios que têm, nos Omáguas, os ameríndios das águas, o foco central dessa investigação e sustentação da tese de parte da ancestralidade histórico-cultural do camponês amazônico. Utilizando-se das ferramentas da história, procura evidenciar a estrutura organizacional do Estado português na Amazônia, que fez a posse e conquista da região à custa do etnocídio indígena. Apresenta, ainda, algumas representações sociais da ancestralidade do camponês amazônico, questões resultantes do “choque cultural” promovido pelo “encontro” do branco colonizador (nobre e/ou padre) com os ameríndios. Aqui, vale destacar que o termo “encontro” deve ser

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Aldenor da Silva Ferreira

entendido no sentido amplo da palavra, isto é, como um encontro civil, militar e religioso. Foi, na verdade, um encontro de duas visões de mundo antagônicas: uma, mercantilista, que primava pela exploração de riquezas imediatas; outra, a simbiôntica, que utilizava a natureza de maneira harmônica e respeitosa, conhecendo-a profundamente. Segundo o autor, “o etnocídio praticado contra os ameríndios (seja através da morte física ou simbólica) parece tão evidente, em si mesmo, que se torna desnecessário recorrer a dados estatísticos[...].” (p. 87). Finaliza o capítulo discutindo o conceito de região e os processos socioeconômicos e políticos que marcaram a formação da região amazônica contemporaneamente. Aponta igualmente as recentes preocupações geopolíticas do Estado brasileiro em “desenvolver” a região e integrá-la ao resto do país.

O autor, em O camponês amazônico e o ecossistema de várzea, apresenta-nos a diversidade e a configuração geomorfológica da várzea dos rios Solimões/Amazonas. Analisa parte desse ecossistema e sua dinâmica bem como a relação homem/natureza, onde “o trabalho comparece como um ato de mediação entre os homens e a natureza e o resultado do trabalho é a transformação da natureza e a transformação do próprio homem,” (p. 131). Apresenta, também, em sua perspectiva analítica, a sua concepção de camponês. Toma por base teórica o estudo de Eric Wolf Sociedades Camponesas (1970), onde esse autor procura responder que o que de fato distingue os camponeses dos povos primitivos são os tipos de relações sociais que eles estabelecem com a sociedade envolvente – sejam elas as cidades e/ou a organização política dos grupos e/ou classes dominantes. Para Witkoski, o objeto de sua investigação “é um tipo de camponês que desenvolve, e tem que desenvolver, uma multiplicidade de atividades.” (p. 162). Nesse sentido, o camponês amazônico é portador de singularidades que o diferenciam de outros, tanto no Brasil como no mundo. A exigência de ter que trabalhar nas terras, florestas e nas águas torna-se um imperativo categórico à prática polivalente. Assim, a polivalência nas atividades camponesas relaciona-se com a necessidade do trabalho agrícola, a criação de animais, o extrativismo vegetal

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e/ou animal – todas elas ligadas diretamente à unidade de produção familiar. A estrutura organizacional da família camponesa é decisiva para a obtenção dos meios de vida, pois quem produz é a unidade de produção familiar, como se fosse um trabalhador coletivo: “sem família não há produção e sem produção não há família. A família não só reproduz biologicamente seus membros, como tem que educá-los para a vida e o mundo do trabalho” (p. 183). Aqui, o autor utiliza sociologicamente a categoria de camponês coerentemente, pois, de acordo com Alexander Chayanov (1974, p. 47), “o caráter da família é um dos fatores principais na organização da unidade econômica camponesa.”

No terceiro capítulo, Terras, florestas e águas de trabalho: o mundo camponês, o mais extenso, Antonio Carlos Witkoski procura mostrar as múltiplas dimensões dos processos de trabalho que o camponês realiza utilizando os ambientes terras, florestas e águas. Para ele, o trabalho assume o mesmo sentido nos três ambientes onde o camponês amazônico e sua família realizam suas atividades. Bem adaptado à dinâmica ambiental da várzea amazônica e exercendo a polivalência com êxito, o camponês amazônico e sua família trabalham a terra, a floresta e a água procurando extrair desses ambientes os recursos naturais necessários à sua vida material e/ou simbólica. Para isso, estabelece a seguinte organização de trabalho: nas terras de várzea baixa e/ou alta, ele pratica agricultura de subsistência, comercializando seus excedentes econômicos e criando principalmente pequenos animais. Nesse contexto, não se pode esquecer do sítio, que é importante não só para a complementação alimentar, mas também, eventualmente, como geração de renda para a família camponesa; na floresta – várzea e/ou terra firme – ele pratica o extrativismo vegetal (lenha, madeira, frutos, plantas medicinais e etc.) e animal – a caça fundamentalmente, objetivando complementar e variar sua dieta alimentar protéica; no ambiente água, o camponês pratica o extrativismo animal – principalmente a pesca e a caça. Todas as estratégias de trabalho, no interior da unidade de produção familiar, giram em torno do sistema agroflorestal, que, de certa forma, guia a vida socioeconômica camponesa. Isto se dá devido à

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Aldenor da Silva Ferreira

integração entre os cultivos agrícolas, criação de animais, extrativismo vegetal e animal que têm por objetivo incrementar a produtividade. Este tipo de manejo, que se relaciona diretamente com a natureza e dela depende implica produzir com tecnologias de baixo impacto ambiental. Nesse sentido, pode-se afirmar que o modo de vida do camponês amazônico representa um modo específico de organização social, de autonomia e de sobrevivência que se contrapõe ao modo de vida capitalista de outros contextos. Trata-se de uma outra lógica de relações sociais, de produção e sobrevivência, que reclama o direito de um outro modo de trabalho. Este, comandado pelo tempo ecológico, implica reconhecer e respeitar o ciclo das águas numa constante dinâmica de adaptabilidade.

O camponês amazônico é a representação do sujeito social possuidor de capital social, de um saber e de uma organização política muito peculiar. Representa o agente direto na relação com a natureza e no projeto de sustentabilidade para a Amazônia. O autor chama a atenção para elementos da natureza envolvidos na relação de trabalho que são carregados de significados sociais tais como os lagos. Enfatiza que os camponeses, na sua condição de sujeitos sociais, são possuidores de um alto grau de consciência coletiva e de grande responsabilidade na relação com a natureza. A dinâmica constante na luta pela sobrevivência dos sujeitos sociais organizados em torno das terras, florestas e águas de trabalho rompem com o paradigma do sujeito pacato e passivo a que fora submetido à representação do caboclo/ribeirinho – camponês amazônico.

No último capítulo, O camponês e o mito de Sísifo, Witkoski finaliza sua viagem científica pela vida amazônica apontando o dilema camponês no âmbito das relações econômicas das trocas. Para tanto, elabora um balanço da produção da unidade camponesa, no sentido de compreender aquilo que efetivamente o camponês e sua família produzem e consomem, de forma independente do mercado, e o que eles produzem objetivando vender no mercado para a obtenção de valores de usos necessários à sua (re) produção material e simbólica. Aliás, essa é a lógica e a simbólica que nos permite definir sociologicamente o camponês:

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Terras, Florestas e Águas de Trabalho. A tríade da vida...

“a unidade de produção camponesa é uma unidade que produz [material e simbolicamente] para si e para o mercado” (CHAYANOV, 1974). Assim, o dilema camponês reside justamente no fato de que a unidade de produção camponesa precisa se relacionar com um poder que lhe é exterior e estranho. Sua principal teleologia é a produção relacionada à subsistência, todavia ela precisa se relacionar com o mercado, exatamente porque a unidade de produção familiar não produz tudo de que necessita. Obviamente, se o camponês pudesse produzir de modo auto-suficiente com certeza ele o faria. Entretanto, a ele não é permitida essa independência com relação ao mercado, visto que ele precisa de enxada, terçado, forno de torrar farinha, roupa etc. Desse modo, a obtenção dos produtos industrializados – valores de uso produzidos externamente à unidade de produção familiar – dá-se muitas vezes sob a égide da fórmula mercadoria/mercadoria (M/M) ou mercadoria/dinheiro/mercadoria (M/D/M). O fato é que, independentemente da fórmula a que está submetido o camponês na sua relação com o mercado, ele sempre vai se defrontar com a lógica perversa dos agentes da comercialização.

Os agentes da comercialização são sujeitos sociais que não produzem nenhum tipo de produto – seja de origem agrícola, criação animal ou extrativista – apenas apropriam-se dos excedentes da produção camponesa para vender e revender na cidade. Os preços são, geralmente, determinados por eles, e nunca correspondem aos custos de produção do trabalho camponês. Nesse sentido, o autor observou em sua pesquisa quatro tipos de agentes da comercialização – marreteiro, marreteiro da feira, regatão e patrão. O marreteiro é o sujeito que “é proprietário de barcos com motores à combustão, sempre com motores diesel, sendo em grande medida responsável pelo abastecimento de mercadorias da unidade de produção familiar” (p. 392). O marreteiro da feira “vive no mundo rural e pode ser até mesmo um camponês que eventualmente trabalha na sua unidade de produção. E pode ser eventualmente um habitante da própria comunidade”. O regatão, terceiro agente da comercialização, é o que tem mais

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fama, e sua história confunde-se com a própria história amazônica: “é aquele sujeito que percorre os rios de barco, parando de lugar em lugar [...] levando mercadorias às populações do interior e as vende à dinheiro ou as troca por produtos” (p.397). Por último, o patrão, sujeito social residual do “ciclo da borracha”, aparece em menor escala nas microrregiões estudadas: a sua forma de atuação é abastecer de bens manufaturados, apanhados das casas comerciais, a unidade de produção camponesa, numa relação de aviamento.

A autor finaliza seu livro mostrando o delicado equilíbrio da vida camponesa na várzea dos rios solimões/Amazonas. Argumenta que assim como o capitalismo tem encontrado barreiras naturais para o desenvolvimento agrícola nas várzeas amazônicas, a pesca comercial tem se ampliado de maneira gigantesca comprometendo significativamente o tempo de produção dos recursos ictiofaunísticos na várzea. Conclui afirmando que a lógica da pesca comercial – que se apóia necessariamente numa racionalidade de mercado que não respeita e não tem como respeitar o tempo de produção da natureza – tem ameaçado e posto em xeque uma das principais fontes de proteínas e de renda do camponês amazônico e sua família – os recursos pesqueiros.

referências

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.CHAYANOV, A.V. La organización de la unidad econômica campesina: Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1974. FRAXE, T. de J. P. Homens anfíbios: uma etnografia de um campesinato das águas. São Paulo: Annhablume, 2000.GARCIA JR. A. A terra de trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.WITKOSKI, A. C. Terras, florestas e águas de Trabalho: os camponeses Amazônicos e as formas de uso de seus recursos naturais. Manaus: EDUA, 2007.WOLF, E. Sociedades camponesas. Rio de Janeiro: zahar Editores, 1970.

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Entrevista

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“o Brasil não conhece o Brasil, o Brasil não conhece a Amazônia”*

Edna Castro e Wilson Nogueira**

A socióloga Edna Maria Ramos de Castro disse, no 1°. Encontro da Região Norte da Sociedade Brasileira de Sociologia, realizado em Manaus (AM), no período de 16 a 19 deste mês (julho de 2008), que o Brasil revive as práticas desenvolvimentistas das décadas de 1960 e 1970, cujas conseqüências foram desastrosas para a Amazônia. A região, segundo ela, mantém-se no centro das discussões mundiais, mas sempre sob pressão de idéias que não consideram o modo de viver, de produzir e de pensar das sociedades que nela vivem. O Brasil, para ela, ainda se orienta por uma visão colonialista-evolucionista e por isso planeja suas políticas de desenvolvimento baseadas na dualidade progresso versus atraso. Edna Castro é doutora em Sociologia e professora na Universidade Federal do Pará. Confira a entrevista da socióloga ao também sociólogo Wilson Nogueira.

* Entrevista publicada no jornal www.textobr.com na segunda-feira, 22 de setembro de 2008.** Edna Maria Ramos de Castro é Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2; possui graduação em

Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (1969), mestrado em em Sociologia - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (1978) e doutorado em Ciências Sociais - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (1983). Atualmente é professora adjunto iv da Universidade Federal do Pará, coordenadora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos e Presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia do Desenvolvimento, atuando principalmente nos seguintes temas: trabalho, Amazônia, meio ambiente e políticas públicas. Wilson Nogeira é jornalista, mestre e doutorando em Sociedade e Cultura na Amazônia.

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“O Brasil não conhece o Brasil, o Brasil não conhece...”

W.N.: A senhora disse, na sua conferência, que a Amazônia vive em dois mundos: o da pré-modernidade e o da modernidade. Como lidar com essa contradição?

E.C.: é um dilema, né? O primeiro ponto é uma constatação. A Amazônia é falada, é vista, é discutida, é representada no mundo inteiro. é uma região que eles, fora daqui, não conhecem, eles percebem a região e o verde, mas não percebem muito bem a sociedade, não percebem muito bem a dinâmica da vida social. Hoje a Amazônia está no centro de discussão de inúmeros interesses. Podemos dizer que esse olhar sobre a Amazônia é o que transforma a representação que tem fora da Amazônia. Então, a Amazônia é uma região pós-moderna (para quem prefere esse conceito), ela está na pós-modernidade e na modernidade, no sentido de que a Amazônia está nas questões fundamentais que o mundo discute hoje. Por exemplo: a questão ambiental, que é um tema de angústia internacional, é um grande desafio porque diz respeito à própria sobrevivência não só humana, mas à sobrevivência do planeta; a Amazônia é um ponto de esperança dentro dessa possibilidade de discussão de meio ambiente. A Amazônia também é tema central quando se pensa nas possibilidades de recursos naturais, quando o mercado pensa na expansão econômica, na integração, em minérios, na pecuária, na produção industrial da madeira e dos fitoterápicos. Ela está no debate mais avançado, está em questões importantes da coletividade mundial. Nesse contexto, ela é uma região globalizada, as decisões que são tomadas são decisões globalizadas. Porém, essa mesma Amazônia é pré-moderna no sentido de que as grandes questões sociais da pré-modernidade persistem nela. Vejo isso como um grande desafio.

W.N.: Qual o papel das ciências sociais nesse contexto?E.C.: Elas têm papel fundamental. Penso que a Sociologia deve uma

leitura mais crítica, mais comprometida e mais original sobre a sociedade amazônica. Esse desafio não foi cumprido. Há uma série de colegas que estão

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trabalhando nesse sentido, mas esse fato é um desafio e, ao mesmo tempo, uma aposta que a Sociologia e as Ciências Sociais devem fazer para que o entendimento da região ou a representação dessa região, produzida dessa (nova) forma, atravesse a sociedade brasileira, porque o Brasil não conhece o Brasil, o Brasil não conhece a Amazônia. Não conhece e não tem consciência de que não o conhece. Por isso, as instituições e pessoas que pensam o planejamento e as políticas públicas para a Amazônia – o Senado, a Câmara Federal, o Congresso Nacional e outros segmentos do Legislativo, Executivo, os intelectuais e as elites dominantes – representam, influenciam e definem políticas absolutamente dentro de estereótipos, dentro de interesses pessoais que não dizem respeito à realidade dessa região. Nós não podemos impedir essas representações. A mídia, por exemplo, reproduz uma representação espetaculosa da Amazônia, e ela influencia os circuitos de conhecimentos que vão sendo produzidos, repassados e se refazendo também, porque eles são dinâmicos. Não temos como atravessar essa representação de outra forma, a não ser pela produção de conhecimento mais aprofundado, mais comprometido e que rompa (com a atual situação), um conhecimento que tenha comprometimento, que tenha coragem de fazer ruptura com essas formas de interpretação e de representação da Amazônia que acabam sendo prejudiciais à vida social aqui, à vida social, à vida ecou5mica, à historia, à memória da região, à diversidade das etnias. Esse é um grande projeto para as ciências sociais.

W.N.: Qual a causa da falta desse entendimento por parte das elites políticas, econômicas e intelectuais?

E.C.: Eu não diria uma causa. A sociedade brasileira é atravessada por uma mentalidade colonial, evolucionista, linear e dualista que vê o moderno versus o atrasado, que vê ricos versus pobres, que vê desenvolvimento versus subdesenvolvimento. Isso está na cabeça dessas pessoas, faz parte de uma racionalidade e de uma mentalidade brasileira. Essa mentalidade colonialista não

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“O Brasil não conhece o Brasil, o Brasil não conhece...”

reconhece o outro; ela funciona na lógica da invisibilidade, ela não vê o outro, ela não o vê, mas ela recria, a partir da sua imagem e de seus interesses, um projeto, por exemplo, de ocupação e de aproveitamento do que existe aqui, do que aquela outra sociedade, do que aquela outra região tem para lhe dar. Essa mentalidade colonial, que é reproduzida no Brasil, essa mentalidade dualista vê a Amazônia como subdesenvolvida. No fundo, o projeto que eles elaboram é um projeto Ocidental de desenvolver uma região subdesenvolvida, o que significa desenvolver sob a imagem criaram, porque eles não podem se contrapor a essa imagem, eles não têm outra imagem da Amazônia. Por isso, diria que não se trata de uma causa, mas de um sistema de conhecimento, de uma estrutura colonial que atravessa a sociedade brasileira e que acaba percebendo, na Amazônia, o que ela tem de recursos. Também é uma mentalidade da busca do europeu, do espanhol, do português, da busca do outro, as mesmas bandeiras que desbravaram o sertão em busca também de recursos. Acho que é essa a mentalidade que prevalece.

W.N.: Como reverter esse problema? E.C.: A única forma de se contrapor a esse conhecimento é produzindo

outro conhecimento. Isso significa produzir conhecimentos e interpretações e torná-los visíveis, como vocês fazem, por exemplo, numa mídia comprometida, num jornalismo comprometido com essas preocupações. Existem vários profissionais na Amazônia fazendo isso. Isso significa romper com esse tipo de interpretação, mas tendo algo para colocar como interpretação a partir de uma visão amazônica.

“A bandeira ambiental, a meu ver, é consistente e coerente, mas não pode ser separada de um entendimento da sociedade”.

W.N.: O ambientalismo se apresenta como includente, mas essa questão pode ser vista como fundamental às incompreensões a respeito da Amazônia?

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E.C.: O ambientalismo ou o debate, ou a militância em torno da problemática ambiental precisa também ser vista no que há de diferente. Não se trata de uma coisa homogênea: há grupos diferentes que se filiam, digamos, dentro de um determinado ambientalismo. Tem-se uma empresa que é poluidora, mas que está falando de responsabilidade social. Temos que distinguir sobre o que estamos falando. A bandeira ambiental, a meu ver, é consistente e coerente, mas não pode ser separada de um entendimento da sociedade, porque já se incorreu no erro de se pensar a Amazônia simplesmente pelo verde, que é pensar a Amazônia apenas como meio ambiente. Essa é uma forma de invisibilizar ainda mais as dinâmicas sociais, culturais, étnicas das sociedades que vivem aqui há milênios, que construíram sistemas de conhecimento, que construíram formas e modelos de sobrevivência autênticos e originais. Essas sociedades devem provocar esse debate sobre meio ambiente; e não nós adotarmos modelos ambientalistas alienígenas. O primeiro esforço é o de separar esses discursos, porque eles aparecem como homogêneos, mas eles não são homogêneos. Depende muito de quem formula a idéia e de quem pratica esse ambientalismo, e como a sociedade é uma sociedade de classes, torna-se, também, uma sociedade de interesses diferentes; é, do mesmo modo, uma sociedade múltipla; nós temos que ver que essas propostas ambientalistas também são propostas múltiplas, de acordo com os atores e sujeitos que trazem essa proposta. Esse é o primeiro ponto. O segundo ponto é que a questão ambiental é central, ela tem uma centralidade nas discussões da sociedade regional. Não dá para se deslocar da Amazônia esse debate ambiental, mas dá para problematizá-lo e enriquecê-lo a partir de quê? A partir das percepções, a partir do conhecimento dessa região que foi produzida pelos diversos grupos sociais aqui existentes e, também, pela sociedade nacional. Nesse caso há uma aliança de grupos que se dá em nível nacional, não se dá apenas em nível regional. Essa dimensão nacional precisa ser resgatada na importância que ela tem.

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“O Brasil não conhece o Brasil, o Brasil não conhece...”

W.N.: São recorrentes os vários pontos de tensão entre a Amazônia e Brasil. As decisões ou indecisões sobre elas têm destinos definidos na política...

E.C.: Entra aí a relação Estado versus sociedade e a produção do conhecimento científico. O primeiro ponto é que temos que ampliar a nossa capacidade institucional de fazer pesquisa. Temos que tomar em mãos um pouco isso: institutos de pesquisas, produção de conhecimento, recursos para pesquisa, porque a Amazôinia sempre ficou mal servida dos recursos públicos para a área da pesquisa, e esse campo tem que avançar, aumentar os programas de pós-grad uação e abrir novos campos de produção de conhecimento na região. Isso me parece que é um ponto fundamental, sobretudo porque as políticas públicas de desenvolvimento para a região trabalham numa abordagem que volta um pouco aos anos sessenta, de uma perspectiva desenvolvimentista, de desenvolvimento de infra-estrutura, de grandes projetos e muitas vezes esses projetos deixam de fora toda a dimensão social. Pensam mais numa dimensão econômica, achando que o econômico, a médio termo, vai acabar resolvendo os problemas da sociedade, os problemas de infra-estrutura, os problemas de falta de recursos para a educação, para a saúde, melhoria das cidades, enfim, que são problemas cruciais que a Amazônia tem em todos os seus estados. Sabe-se que os índices de IDH dos Estados da Amazônia e dos municípios da Amazônia são os mais baixos do Brasil. Quando pensarmos em política, por exemplo, temos que pensar num quadro que temos: as duas metrópoles da Amazônia, porque eu considero Manaus também como uma metrópole, estão entre as dez primeiras em situação de maior precariedade do Brasil, e Belém é a terceira. Quando pensarmos em desenvolvimento, temos que pensar nisso, isso é fundamental. Não é só o desenvolvimento de estruturas empresariais e econômicas, porque, muitas vezes, como no caso da Jari, deixa muito pouco de desenvolvimento regional. Quer dizer: tem uma grande empresa de fábrica produzindo celulose e grandes plantações de melina, pinos etc. e, por outro lado, tem-se um beiradão com uma população enorme vivendo em péssimas condições. A mesma coisa é termos um

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imenso projeto de mineração, Carajás, e ter-se uma pobreza em volta dele. Então, no conceito de desenvolvimento, tem que estar contida a solução para esses problemas gravíssimos que a população tem. Nesse início de século, voltamos, portanto, a questões cruciais que, para as Ciências Sociais, conduziram os debates dos anos sessenta. Um dos temas mais marcantes do debate nas Ciências Sociais, na Economia, na Sociologia, na Política, na Antropologia e na Geografia era o desenvolvimento e o subdesenvolvimento, e sobre como encontrar um modelo mais adequado para a Amazônia. Hoje estamos no início de outro século, mas nós estamos voltando às políticas, pelo menos as que nos avizinham, de perspectiva mais desenvolvimentista, que recupera uma dimensão e uma lógica dos anos sessenta, cujas conseqyências nós as conhecemos muito bem. Isso não me deixa desconhecer que há muitas políticas sociais no atual governo. Para fechar essa pergunta, quero dizer o seguinte: desenvolvimento de ciência e tecnologia não é uma coisa neutra que paira acima dos mortais; ciência e tecnologia é uma coisa muito concreta. Quando se faz ciência e tecnologia tem-se que saber para o que se faz. Portanto, pensar ciência e tecnologia para o desenvolvimento é pensá-la para o desenvolvimento do conjunto da sociedade e que todos tenham o direito de acesso aos resultados desse conhecimento; e os resultados desse conhecimento não podem beneficiar apenas algumas empresas ou algumas regiões em detrimento da maioria da sociedade. Isso significa colocar no centro da discussão o direito, os direitos sociais, a noção de justiça, a noção de eqüidade como fundamentais dentro de um modelo mais avançado de desenvolvimento.

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Documento

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o Jornalismo de outrora no Amazonas –1939:um ensaio de curiosidades*

Raul de Azevedo**

Não vou contar a história minuciosa do jornalismo amazonense. Longe de mim tal pretensão. Faltavam-me dados completos, tempo e vocação para essas adoráveis velharias. E depois não sou precisamente um arqueólogo...

A idéia desta página simples veio de uma exposição que um dia visitei. O meu pranteado amigo Coronel João Baptista de Faria e Souza – um homem que teve a monomania de colecionar gazetas e revistas do Amazonas, do Brasil, que era de uma paciência evangélica, e que eu tive o prazer de ter ao meu lado nas redações do inesquecível “Diário de Notícias”, do “Commercio do Amazonas”, do “Rio Negro”, de “O Globo”, do “Amazonas”, da “A Federação” – quis comemorar a data de 13 de maio de 1907, que relembrava o 99° aniversário da fundação do primeiro jornal brasileiro. E assim fez uma exposição interessante de todos os jornais das terras dos Barés e dos Manaus.

Quem, como eu, foi sempre, bem ou mal, um apaixonado da folha impressa, e já aos 18 anos dirigia e fazia a “Gazeta Postal” – o jornal menos postal que tem aparecido no mundo e em cujas páginas brilhava o talento jaceirado de intelectuais do Pará, Ceará e Pernambuco – havia de rever, como revi, cheio de um largo prazer e de uma intensa saudade, todas essas gazetas de outrora, principalmente onde há também muito de minha vida ...

A paixão do jornal! Ela é intensa e forte, como o vício do álcool, do jogo e do fumo. Pessimistas acrescentariam – e da mulher. A gente passando pela

* Transcrito de A Tarde, de 19 de fevereiro de 1939.** Do P.E.N. Club e da Academia Amazonense de Letras

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O Jornalismo de outrora no Amazonas...

imprensa, nunca mais – como o corvo de Edgar Poe – poderá esquecê-las. Fica-se jungido a ela. As vitórias, as polêmicas e parece que as injustiças e as calúnias... nos prendem mais. E com que júbilo saboreamos um êxito, mesmo quando ele vem depois de lutas, injustiças e reveses!

A minha primeira alegria na imprensa...A primeira e a maior. Recordo-me bem, como se fosse ontem. Eu estava

nos meus dezoito anos – há quantos anos? – e até então apenas escrevera na minha pequena gazeta. Acariciava então nos meus sonhos de moço uma idéia para mim irrealizável... “A Província do Pará” era naquela época o empório intelectual do Norte. O acesso às suas colunas era dificílimo e eu nem sonhara tal fantasia. Quase criança, conhecendo apenas de cumprimento de rua o Senador Antonio Lemos, seu diretor, temível e exigente, nunca tivera tal veleidade. Mas todos sabem que a mocidade é petulante! – aproximava-se o aniversário da “Província do Pará” e, na véspera, com uma carta de duas linhas, enviava um artigo para esse ternamente moço e que nós chamávamos o “velho Lemos”.

E no dia seguinte, manhã ainda, estava desperto e ávido pela gazeta. Quando recebi o jornal, sôfrego, lancei a vista sobre a folha. Era um número lindo, bem feito, elegante. E lá estava, abrindo a primeira coluna da segunda página, o meu ensaio sobre os Goncourt – modesta colaboração intelectual naquelas páginas de intelectuais. E nas oito páginas cheias, a colaboração de Arthur Lemos, João Marques de Carvalho, Bertino de Miranda, João Lúcio de Azevedo, Paulino e Heliodoro de Brito, Licínio Silva, Frederico Rhossard ...

Que alegria intensa! Depois os jornalistas, os meus dias de vitória. Fundei, no Amazonas, três grandes jornais diários, chefiei a redação de cinco, tive lutas, combates, algumas tentativas de assassinato, colaborei em grandes jornais e revistas – mas guardo desse dia de contentamento sincero uma indefinível recordação.

Nós éramos assim, como diria o Eça, e eu tinha 18 anos. Saudades...

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Raul de Azevedo

IIE as saudades fizeram quase esquecer o motivo desta página. Aqueles que

na vida têm uma lembrança igual perdoarão de certo a minha digressão. Passou para mim a época das veleidades. Não mais fantasias, não mais ilusões.

Mas, é preciso justificar o título destas linhas ligeiras. A coleção João Baptista era excelente e completa. Nela figuravam todos os jornais, revistas, boletins etc., que apareceram no Amazonas, e muitas no Brasil.

Manaus teve a sua primeira gazeta em 10 de janeiro de 1866. Era uma folha pequena de quatro páginas, mas impressa, e de que foi proprietário Manoel da Silva Ramos, falecido em 1860. A folha continuou. Notícias comerciais, anúncios e pouco mais.

Só quem tem o amor do jornal é que pode avaliar aquele dia delicioso que passei revendo toda a papelada. Era a história inteira do Amazonas político e social. Era o seu progresso acentuado dia a dia. Era também uma parte da minha vida – anos de jornalismo, na brecha. Caluniado, muita vez insultado, na refrega das paixões, mas sempre e sempre querendo bem e amando o jornal, na vitória e nos reveses.

O leitor apaixonado de velharias encontrará, em seguida, a nota pelos anos e com os nomes de todos os jornais que têm aparecido no Amazonas, desde o primeiro ao último, dos antigos:

1852 - “Estrella do Amazonas”1861 - “O Catechista”1863 - “O Progressista”1866 - “O Amazonas”1867 - “Jornal do Rio Negro”1869 - “Diario Official”, “Commercio do Amazonas” e “Jornal do Norte”1870 - “Echo” e “Argos”1871 - “Reforma Liberal”1872 - “Boletim Official”1873 - “Diário do Amazonas”, “Futuro” e “Colibry”

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O Jornalismo de outrora no Amazonas...

1874 - “Rio Negro”. “Actualidades” e “Baderna”1875 - “Jornal do Amazonas”1876 - “Revista do Amazonas”1877 - “0 Rio Mar” e “Correio do Norte”1878 - “Monitor do Norte”, “A Provincia”, “A Democracia” e o “Echo Militar”1879 - “Ajuricaba” e “Tribuna Amazonica”1880 - “Censor”, “O Censor dos Censores”, “Cinco de Setembro” e “Palmatoria”1881 - “Voz do Povo” e “Correio de Manaus”1882 - “Apollo” (manuscrito) e “Palestra”1884 - “Amazonia”, “Abolicionista do Amazonas” e “O Aristarcho”1885 - “A Provincia”, “Gazela de Manaus” e “Correio da Manhã”1886 - “Rio Branco”, “O Paiz” e “Gazela de Manaus”1887 - “Jornal do Commercio”, “Manaus”, “Echo do Norte”, “O Artista” e “A Provincia”1888 - “O Mantenedor”, “Evolução”, “Echo dos Andes’’, “O Norte do Brasil”, “Cidade de Manaus”, “O Cometa” e “Constituição”1889 - “Luz da Verdade”, “Bem Publico”, “O Seculo” e “A Ephoca”1890 - “Tribuna do Povo”, “Diario de Manaus”, “Indice do Commercio”, “Novo Dia”, “Jornal do Commercio” e “Phalena”1891 - “Guttemberg”1892 - “Estado do Amazonas”, “O Vulcão”, “Operario” e “A Borboleta”1893 - “Jornal do Commercio”, “Diario de Noticias”, “Correio da Manhã” e Diário Official”1894 - “A República”1895 - “Amazonas Commercial”, “Volutas” e “O Judas”1897 - “O Imparcial”, “O Rio Negro”, “Victoria Regia”, “Pingarilho”, “O Taruman” e “A Folha de Manaus”

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Raul de Azevedo

1899 - “Manaus”, “O Anunciador Commercial”, “Diario de Noticias”, “O Rio Mar”, “O Indio”, “A Tesoura”, “O Buscapé”, “A Platéa”, “O Monoculo”, “O Propagador”, “O Pão”, “O Papagaio” e “Pátria”1900 - “O Lusitano”, “Novidades”, “O Barés”, “O Plebeu”, “A Escola”, “O Guarany” e “O Foguete”.1901 - “Mensageiro”, “La Voz de España”, “El Espanol”, “Amazonense”, “A Mascara”, “O Debate”, “A Noticia”, “O Braz Cubas”, “O Globo”, “O Poeta”, “Revista Theatral”, “O Corsario”, “O Mercurio”, “O Triumpho”, “O Leque”, “O Figaro”, “O Monitor”, “O Lyrico”, “O Mocoense”, “L’Italiano” e “Rio Mar”1902 - “Centro Espanhol”, “O Brasil”, “O Norte”, “Quo Vadis”, “O Palito”, “O Jornalzinho”, “O Cravo”, “O Charuto”, “O Namoro”, “A Mutuca”, “La Union”, “O Arara”, “O Grillo”, “O Monitor”, “El Espanol”, “O Pensador”, “O Nu”, “O Reclamo” e “O Evangelista”1904 - “Jornal do Commercio”, “A Gazetinha”, “A Actualidade”, “O Luso”, “A Escova”, “Letras e Artes”, “O Evolucionista” e “O Barulho”1905 - “O Ideal”, “O Guia”, “A Troça”, “O Holophote”, “O Terrivel”, “O Mikado”, “Liga Literaria”, “O 6 de Agosto”, “Evangelizador”, “Ideal Club”, “A Semana” e “Revista Theatral”1906 - “Correio do Norte”, “O Theatro”, “O Bonde”, “Pontos nos iis”, “O Brasil”, “Correio da Noite”, “Evolução” e “Revista Amazonense”.1907 (até junho) - “O Gymnasio”, “Archivo Amazonense”, “O Nucleo”, “A Ordem”, “The anti tropical jornal”, “O Meio” e “A Platléa”.Em 53 anos de imprensa, 181 jornais e revistas.De 1907 a 1936, quatro dezenas de jornais e revistas, alguns dirigidos por

mim, em quase todos colaborando.Desnecessário será dizer que algumas dessas gazetas tiveram vida efêmera.Na coleção João Baptista figuravam também os jornais do interior.

A imprensa, dentro do Amazonas, e fora de Manaus, sempre foi pobre. No

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Humaitá, em 1892, [quando] apareceu o primeiro número do “Humaytaense”, “O Sino”, da mesma cidade, terminou.

Na Lábrea, em 1885, o “Purus”, e em 1897, o “Correio do Purus”.Em Manicoré, o “Rio Madeira” e “O Manicoré” - ambos desapareceram.Em Itacoatiara, morreram “Municipio” e “O Itacoatiara”; parece que

ainda vive o “Arauto”.Acabou, em Parintins, “O Tacape”, assim como em São Joaquim (Rio

Negro), “O Triumpho”.O município de Manacapuru possuiu o seu jornalzinho “A Tribuna”. Teve

a sorte dos seus colegas do interior ...Em Capatará, na foz do Acre, houve uma gazetinha, “O Acre”, tudo

dentro daquela época.Uma nota interessante, a respeito do jornalismo no interior – em Manicoré,

a 18 de março de 1901, iniciou a sua publicação uma gazetinha, “A Paz”. Era feita, escrita, composta, impressão etc., por um menino Ignacio de Azevedo. Era uma folha pequena, de alguns centímetros. Em 1904, o proprietário redator mudou-se para Manaus e aí fez reaparecer “A Paz”, ano II, aumentando o formato do curioso periódico...

iii

Manaus tem tido resumido número de revistas, que logo desapareceram. De 12 de dezembro de 1899 a 7 de abril de 1901, houve a “Revista do Norte”. Em 1891, “A Escola”. Em 1904, a “Neomatia”, de Manoel de Bittencourt. Em 1901 o “Boletim Commercial”. Em 1896 a “Revista Medica”, que foi pena desaparecer. Em 1908, “Alpha”. Em 1907 “O Labaro”.

Depois, a “Revista Amazonense”, fundada em janeiro de 1896, do Professor Octavio Pires, dedicada à instrução pública e subvencionada pelo Governo do Estado; o “Archivo Amazonense” (1907), diretor Bento Aranha,

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para registro de documentos históricos e publicado pelo Governo; “A Ordem” (1907), revista maçônica.

De jornais diários, lembro-me do velho “Amazonas”, “Jornal do Commercio” e “Diario Official”. O primeiro era órgão do Partido Republicano Federal, que aliás em certo momento era o único partido no Amazonas. Ou melhor, não era um partido, era um inteiro...

Publicava-se mais – “La Union”, órgão da colônia peruana; o “Evangelizador”, órgão batista; “A Semana”, folha humorística de Th. Vaz e onde, na sua primeira fase, colaborei assiduamente, e a “Platéa”, dedicada a coisas teatrais, de minha direção e de Luiz Rodolpho Cavalcante de Albuquerque, um belo espírito.

Jornal literário, nenhum. Tivemos, outrora, “O Cravo”, “O Lyrio”, “O Poeta”, “A Phalena”, de duração rápida. Agora há a “Revista da Academia de Letras” e a “Cabocla”, revista ilustrada.

Gazetinhas pequenas e – como direi? – de linguagem viperina, havia “O Barulho” e o “Leque”. Parece que era só... Apareceram outras, antes, “O Buscapé”, “O Palito”, “A Mutuca”, “O Judas”, “O Censor dos Censores”, “O Censor”, “O Baderna” etc. Desapareceram logo.

Manaus ainda teve um jornal caricato. Apenas alguns calungas, como “O Bonde”, “Os pontos nos ii”, etc. Apareceram poucos números para logo morrerem.

Jornais manuscritos, vi dois na interessante exposição - “Apollo”, de 1882, escrito por João Baptista e Brito Inglez, estudantes, e “O Estandarte”, do mesmo ano, de Marcio Nery (depois uma notabilidade médica), Simplício de Lemos de Braule Pinto e Augusto Celso Menezes.

Em 1900 a capital amazonense saboreou dois casos que não deixaram de ser interessantes – o aparecimento de dois jornais diários, de grande formato, com um programa vastíssimo, – “O Luzitano” e o “Novidades”. Este último era

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do grande jornalista meu amigo José Maria dos Santos. Pois, quer o “Novidades”, quer o Luzitano”, deram apenas um número cada um ...

Como este é um ensaio de curiosidades, registremos outras. “A Republica”, antecessora da “Federação”, foi o primeiro jornal amazonense que deu edição litografada. Foi a 18 de setembro de 1891 e apareceu com o retrato do doutor Eduardo Gonçalves Ribeiro, o “Pensador”. O serviço material foi feito no Pará, na Casa Wiegandt. Antes, eram fotografias coladas na gazeta.

O “Commercio do Amazonas” foi o primeiro jornal que deu clichés com retratos de personagens célebres e ... desconhecidas, do Brasil e do estrangeiro, e vistas de cidades.

O Brasil foi o país das poliantéias. Elas já se tornavam uma calamidade nacional. O Amazonas não escapou à lei geral. As primeiras foram sempre em homenagem às grandes datas nacionais e portuguesas. Depois vieram poliantéias dos homens, dos políticos. Naquela exposição havia inúmeras. Tomei notas das que traziam retratos, alguns feitos pelo xilógrafo Niceforo, que por muito tempo trabalhou no “Commercio do Amazonas” e que, sem estudos, era entretanto de uma rara habilidade: ao Barão do Juruá, ao Dr. Eduardo Ribeiro, uma em 1892 do “Estado do Amazonas” com a fotografia colada dos deportados de Tabatinga e Rio Branco, ao Marechal Floriano Peixoto, Coronel José Ramalho, Coronel Ferreira Penna, Tenreiro Aranha (fundador da província), do saudoso senador Dr. Silvério Nery, Emílio Moreira, do pranteado militar e governador general Dr. Fileto Pires Ferreira, Rocha dos Santos, Adolpho Lisboa, com retrato a cores, impresso o “cliché” na tipografia do Regimento Militar do Estado, Dr. Serzedelo Correa quando visitou o Amazonas em 1896, homenagem da colônia paraense, governador Dr. A. Constantino Nery, maestro Adelelmo do Nascimento, tipógrafo e poeta Quintino Amazonas, Coronel Caetano Monteiro etc.

O maior número de poliantéias era dedicado ao grande amazonense, governador Dr. Silvério José Nery, então chefe do partido situacionista no Amazonas.

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Nessa exposição figurava o “Amazonas”, cujo primeiro número apareceu em 9 de julho de 1886, e que sucedeu à “Estrella do Amazonas”. Tinha três colunas, quatro páginas, e saía uma vez por semana. Era seu proprietário Antonio Cunha Mendes e, na monarquia, sempre foi o órgão liberal. Lá estava a coleção completa desse jornal. Em todas as suas fases.

“O Jornal do Amazonas” nasceu a 8 de abril de 1875. Era o adversário do “Amazonas” e órgão conservador. Fundou-o Ernesto Rodrigues Vieira. Acabou em 1890, tendo como proprietário e redator João Baptista, que foi o dono da coleção.

Há também coleção completa nas suas múltiplas fases do “Commercio do Amazonas” fundado por Gregório José de Moraes a 15 de agosto de 1889. Esse jornalista era pai do Dr. Jorge de Moraes, depois deputado federal e senador por esse Estado. Interrompeu a sua publicação em 1905.

Em 1869 tivemos o primeiro “Diario Official”, que durou pouco tempo, assim como o “Boletim Official”, em 1872.

A “Reforma Liberal” durou de 1881 a 1891, e era o órgão da dissidência do partido liberal.

O “Rio Mar” do Dr. Brito Inglez, de quando em quando aparecia, escrito em diversas línguas....

Havia outras curiosidades nessa coleção paciente. Exemplificando: um número do “The Times”, de Londres, de 9 de novembro de 1805. Era de formato pequeno com quatro páginas e tinha mais de 100 anos. Um outro número, do primeiro ano, do Jornal do Commercio.

E ainda vi nesse turbilhão de papéis espalhados – revistas e gazetas de outros Estados, velhas conhecidas minhas onde colaborei. “A Província do Pará” e a “Republica”, de Belém, “Jornal do Commercio”, do Rio (deste fui também no Amazonas correspondente quatro anos), e “A Renascença”, do Rio de Janeiro, “Revista Contemporanea”, de Pernambuco, a “Folha Nova”, jornal paulista do meu grande e saudoso amigo Garcia Redondo; “O Pagão”, órgão

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da Padaria Espiritual do Ceará, a que pertenci, etc., fora muitos e muitos jornais amazonenses.

Mas este capítulo já vai longe. é preciso terminar.

iV

Já que este ensaio começou com algumas lembranças, que conclua também com recordações pessoais.

Em 1895, chegava ao Amazonas. Trabalhava então na redação da “A Província do Pará”, na crônica, no artigo literário, na notícia. Dois dias depois de chegar a Manaus assumia a chefia do “Amazonas Commercial”, jornal do meu pranteado amigo o Coronel Caetano Monteiro da Silva, no momento figura de grande projeção comercial.

Fora de Belém para dirigir esse jornal. O meio era desconhecido para mim, e a imprensa era ali, naquela época, por assim dizer, essencialmente política. Limitava-se à notícia ligeira, simples; o telégrafo não existia, e o resto eram artigos pesados, de uma virulência de linguagem extraordinária, salvo as clássicas exceções... Dir-se-ia que alguns jornalistas ou tinham prazer em sacrificar a vida, ou estavam certos da impunidade.

Fiz um jornal diverso. Convidado para assumir a direção do “Amazonas Commercial”, fiquei na dúvida se teria elementos para fazer uma boa gazeta... Mas, felizmente, encontrei no seu proprietário um espírito inteligente e apaixonado pelo Amazonas. Com ampla liberdade de agir, a minha folha tornou-se exclusivamente comercial e literária, coisas que parecem, mas não são antagônicas... J. J. da Câmara, na gerência, muito me auxiliou. Hoje ele é grande proprietário.

Em política, apenas doutrinava. Nunca me imiscuí na politicagem estreita do palavreado garoto. E o “Amazonas Commercial”, transformado até materialmente, triunfou. Deixei-o quando, ao ser iniciado o governo Fileto Pires,

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fui convidado para assumir as funções de Secretário do Estado. Não podia mais dirigir imparcialmente um jornal que era politicamente imparcial...

Nessa exposição vi todos os jornais amazonenses onde tinha trabalhado. A “A Federação”, outrora órgão do partido Republicano Federal e de que fui redator em duas épocas diversas – uma no governo Fileto Pires, com Justiniano de Serpa, Joaquim Ribeiro Gonçalves, Joaquim Belmont, e outra no governo Silverio Nery, com Annibal Mascarenhas, Julio Nogueira, Th. Vaz, Silva Ferraz, Carlos Dias Fernandes e outros.

Depois, o “Commercio do Amazonas”, de que também fui redator duas vezes, uma com Rocha dos Santos, outra com o Dr. Pereira Teixeira, depois deputado federal. Na primeira fase tive como colaborador assíduo João Baptista.

“O Commercio” era um jornal feito e querido do público. Nele, quando esteve no Amazonas, colaborou Claudio de Souza, hoje acadêmico notável. Foi, como já disse, a gazeta que introduziu nas suas páginas o “clichê”. Diariamente, num calunga... E por falar em clichês, deram-se casos interessantes. Duma feita saíra do teatro para o jornal. Meia noite. Fazendo as efemérides, encontrei o nome de Taunay. Disse a Rocha dos Santos, que dormitava numa cadeira:

– O’ Rocha! Amanhã é o aniversário do visconde de Taunay. Temos clichê?– Sim, vou buscá-lo. Prepara o artigo. Preparei o artigo. O Rocha, daí a minutos, trazia um clichê, é – é este. Ora,

eu nunca tinha visto o Taunay... E no Commercio do Amazonas no dia seguinte saiu um retrato de um sujeito muito alto, muito magro, muito barbado, e com uma cartola comprida e tragicamente fúnebre. Houve na cidade uma indignação entre os conhecidos do autor de “Inocência”. Aquele nunca tinha sido o Taunay! Era um capitalista inédito de Vizeu, – pois o Rocha arrematava, por peso, os clichês dos jornais ilustrados de Portugal, gênero “Mala da Europa”.

E como este, muitos e muitos casos curiosos, de que ficávamos indignados no momento para depois rirmos a bom rir...

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Vi as coleções de dois grandes jornais diários que fundei e de que fui diretor – O Rio Negro, com o Dr. Justiniano de Serpa, depois deputado federal pelo Pará, e com a colaboração assídua, entre outras, de Silvério Nery, Bertino de Miranda, etc. e O Globo, com o meu velho amigo e desembargador amazonense Guido Gomes de Souza, e uma cooperação escolhida. Do primeiro era também redator Júlio Nogueira; do segundo, Th. Vaz, o grande talento e grande boêmio.

Com saudades – nós todos que passamos pela imprensa temos destas coisas... – revi as coleções do Diário de Notícias, de que fui também redator-chefe em duas fases bem diversas. O Diário de Notícias foi um belo jornal, duma feitura artística cuidadosa e colaborado brilhantemente. Fez época. Todos os seus serviços, desde a instalação, eram completos. O corpo de colaboradores era luzido – Silvério Nery, Capitão de Mar e Guerra Baptista Franco, Eduardo Salamonde, Araripe Júnior (um dos colaboradores do Rio), Bertino de Miranda, Melo Rezende e, enfim, outros intelectuais de merecimento, Th. Vaz, Pedro do Rego, Barão de Sant’Anna Nery, Jonas da Silva, Amaro Bezerra, Alberto Rangel, Porfírio Nogueira, Manuel de Bittencourt, etc, etc. A redação era minha, de Júlio Nogueira e João Baptista e, na primeira época, também de Thaumaturgo Vaz, o maior boêmio do Norte, o nosso Paula Ney.

Fazíamos o jornal à vontade, sem peias partidárias e até sem preocupações financeiras! Dia a dia a renda do balcão aumentava e assim tínhamos elementos para dar ao público uma bela gazeta. O Diário de Notícias tinha crônicas em francês, italiano, inglês e espanhol... e até em latim! Era a folha querida das colônias estrangeiras.

Havia a coleção completa do órgão do Partido Republicano Federal, o “Amazonas”, de que fui colaborador desde o primeiro número da última fase.

O Estado teve revistas teatrais de que quase sempre fui colaborador. Outra velha mania, a do teatro... Ainda no último ano havia uma gazeta, O Teatro, a que já me referi, de propriedade do Dr. Luiz de Albuquerque e César Silva e que fui redator com Alcides Bahia, Th. Vaz e outros. Nesse ano de 1907, fundei para

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a estação lírica francesa uma revista – A Platéia, de minha direção. Saíram 11 números, durante a excelente temporada de ópera lírica.

é cedo para serem escritas as fases diversas do jornalismo amazonense, na época mais moderna.

Tenho notas guardadas, muitos apontamentos, casos de uma psicologia adorável, situações políticas melindrosas e algo interessantes, fatos de um ridículo inacreditável ou de um humorismo esfuziante... Um dia é possível que tudo isso seja publicado. Já no tempo de Shakespeare havia um conhecido provérbio – totus mundus agit histrionem.

Fundei no Amazonas os grandes jornais diários “O Rio Negro”, “O Diário de Noticias”. “O Globo” e “Folha do Amazonas”, que tiveram a sua época. Fui redator-chefe ou diretor, ou redator, de outros grandes jornais diários – o “Amazonas Commercial”, “A Federação”, o “Amazonas”, o “Estado do Amazonas”. Fui colaborador, outrora, do “Jornal do Commercio” e, presentemente, colaboro n’ “O Jornal”, de Manaus, folha bem feita e de vasta circulação.

Também dirigi algumas revistas, inclusive a da “Academia Amazonense de Letras”.

Lembro-me que trouxe desse dia em que passei a manusear jornais e revistas amazonenses, uma grande saudade. Creio que me senti mais velho, eu que ao jornal consagrei quase toda a minha mocidade. Parece que ali estava, além do meu espírito de combatente, parte da minha alma e parte do meu coração...1

Nota1 Foi mantida a grafia original.

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Defesas

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Defesas

Defesas de dissertações do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia

2008/1.º Semestre

1. Kátia Maria da Silva. Título: O controle social e a saúde indígena: um estudo dos Conselhos de Saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena de Manaus/AM. Orientadora: Heloísa Helena Corrêa da Silva. Membros da Banca Examinadora: Valéria Augusta Cerqueira de Medeiros Weigel e Yoshiko Sassaki. Data: 14/01/2008.

2. Suzana Maria Ramos da Costa. Título: Terceiro Setor: Uma relevância Social das Organizações ambientalistas existentes na cidade de Manaus para o desenvolvimento regional. Orientadora: Simone Eneida Baçal de Oliveira. Membros da Banca Examinadora: Yoshiko Sassaki e Lucilene Ferreira de Melo. Data: 28/ 01/08.

3. Lílian da Silva Gomes. Título: Entre “secos e molhados”: A sobrevivência dos trabalhadores no mercado informal da Zona Leste de Manaus. Orientadora: Yoshiko Sassaki. Membros da Banca Examinadora: Iraíldes Cadas Torres e Selma Sueli Baçal de Oliveira. Data: 29/01/08.

4. érika Renata Almeida. Título: Condições de vida e trabalho: um estudo sobre idosos moradores da Zona Sul. Orientadora: Yoshiko Sassaki. Membros da Banca Examinadora: Heloisa Helena Corrêa da Silva e Rita Maria do S. Pulga Barbosa. Data: 30/01/08.

5. Rodrigo Capelato.Título: “Se essa rua fosse minha..” A (RE) construção do Espaço Público em Manaus. Orientador: Ricardo José Batista Nogueira. Membros da Banca Examinadora: Marisa Varanda Carpintéro e Sérgio Ivan Gil Braga. Data: 07/05/2008.

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Projetos de pesquisa

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Projetos de Pesquisa

Projetos de pesquisa*

I. LINHA DE PESQUISA**: LINGUAGEM, CULTURA E COMUNICA-ÇÃO NA AMAZÔNIA

1. Análise Contrastiva de Variedades do Português - VARPORT Descrição: Este projeto faz parte de uma parceria binacional entre pesquisadores e doutorandos, vinculados ao Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ao Centro de Lingüística da Universidade de Lisboa (CLUL-UL). Conta com o apoio da CAPES, no Brasil, e do ICCTEI / GRICES, em Portugal. Resp. Docente: Maria Luiza de Carvalho Cruz

2. Momentos decisivos da literatura no Amazonas Descrição: Análise da formação da literatura amazonense acompanhado de um estudo do pensamento social da região. Resp. Docente: Marcos Frederico Krüger Aleixo

3. Produção poética em Manaus (edições, antologias, novos autores-1990/2000) Descrição: Levantamento bibliográfico das públicações feitas em Manaus na década de 1990-2000, verificando as relações existentes entre a produção local e a produção nacional e como o serial imagético telúrico (topus tais como o rio, a terra, os frutos, o caboclo) correspondem a um expressão poética e literária acabadas. Resp. Docente: Gabriel Arcanjo Santos Albuquerque

* Os dados foram obtidos junto ao Relatório Coleta/Capes do PPGSCA – ano de referência 2007.** As linhas de pesquisa foram anotadas a partir dos dados do projeto. Em 2008, o número de linhas de pesquisa foi

reduzido para três e suas denominações foram alteradas.

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Projetos de Pesquisa

II. LINHA DE PESQUISA: POPULAÇÕES AMAZÔNICAS: CULTURA E HISTÓRIA1. Etnicidade, territorialidade e história

Descrição: Aprovado pelo CNPq - Edital n. 061 - Ciências Humanas, o projeto pretende articular pesquisas relativas às trajetórias das populações indígenas, em particular, Muras e Parintintins, no contexto do “mundo branco”, relevando os processos de construção de identidades sociais e étnicas, dimensões de territorialidades e fronteiras, dilemas do contato interétnico e modalidades de inserção das populações nativas no contexto das hierarquias sociais estabelecidas no “Novo Mundo”.

Resp. Docente: Patrícia Maria Melo Sampaio

2. Festas religiosas e populares na AmazôniaDescrição: A pesquisa se pauta por uma abordagem antropológica de

festas amazônicas, tanto históricas como contemporâneas. Longe de uma procura das origens, busca-se comparar diferentes manifestações festivas com a finalidade de estabelecer aspectos comuns e prováveis peculiaridades existentes em tais manifestações. Considera-se como festas amazônicas as práticas culturais de populações urbanas mestiças ou caboclas, com suposta influência cultural indígena, de afro-descendentes e da colonização européia, registradas na literatura de época e vivenciadas hoje no âmbito da região amazônica, com destaque para as festas correspondentes ao Estado do Amazonas.

Resp. Docente: Sérgio Ivan Gil Braga

3. Instituições Governamentais e não Governamentais e Povos Indígenas no Amazonas

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Projetos de Pesquisa

Descrição: A pesquisa tenta compreender as relações entre os povos indígenas presentes no Estado do Amazonas e as instituições governamentais e não governamentais que atuam em políticas voltadas para esse povos.

Resp. Docente: Selda Vale da Costa

4. Mulher trabalha ou ajuda? Relações de gênero no sistema de produção na comunidade São Francisco do Parauá na Costa do Canabuoca, Manacapuru/AM.

Descrição: Esta pesquisa busca verificar as clivagens de gênero presentes nas relações sociais dos moradores da comunidade do Parauá em Manacapuru, dando ênfase à exploração das mulheres no sistema produtiva.

Resp. Docente: Iraildes Caldas Torres

5.NovaCartografiaSocialdaAmazôniaDescrição: O projeto tem como produtos fascículos temáticos.Resp. Docente: Alfredo Wagner Berno de Almeida

6. PIATAM-Área Temática História e Meio-AmbienteDescrição: O projeto integrado RIOS E HOMENS: história, natureza e

cultura na Amazônia pretende aglutinar os temas de investigação em torno das relações entre história e natureza na Amazônia. Desse modo, o projeto articula-se em torno de projetos temáticos que verticalizam diferentes dimensões dessas relações, utilizando os rios, a um só tempo, como tema e como estratégia de pesquisa.

Resp. Docente: Patrícia Maria Melo Sampaio

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Projetos de Pesquisa

7. Políticas indígenas e indigenistas na Amazônia Portuguesa, séculos XVIII e XIX.

Descrição: O projeto investiga as interações existentes entre as políticas indigenistas, implementadas pelos agentes coloniais, e as políticas indígenas, i. é, aquelas viabilizadas pelas populações aldeadas do Estado do Grão-Pará e Rio Negro, a partir da análise do processo de aplicação da legislação indigenista no final do Setecentos.

Resp. Docente: Patrícia Maria Melo Sampaio

8. Rios, cidades e homens: trajetórias coloniais e pós-coloniaisDescrição: Vinculado ao projeto integrado Rios e Homens: história,

cultura e natureza na Amazônia e às linhas de investigação dos Grupos de Pesquisa História Colonial da Amazônia (Cnpq/UFAM), o presente projeto propõe analisar comparativamente a evolução político-administrativa de núcleos urbanos amazônicos, centrando-se nos fluxos administrativos, no funcionamento das instituições políticas, no desenvolvimento populacional em contraste com os recursos naturais e na organização das redes de poder locais, que conferiram através das trajetórias sociais a materialidade e a governabilidade dessas localidades..

Resp. Docente: Patrícia Maria Melo Sampaio

III. LINHA DE PESQUISA: PROCESSOS SOCIAIS, AMBIENTAIS E RELAÇÃO DE PODER

1. Estudos das Formas de Manejo dos Recursos NaturaisDescrição: O presente estudo objetiva conhecer as práticas e saberes

adotados pelas populações ribeirinhas.Resp. Docente: Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves.

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Projetos de Pesquisa

2. Estudos das Políticas Públicas de PrevidênciaDescrição: O presente estudo objetiva analisar as condições de acesso às

Políticas Públicas de Previdência.Resp. Docente: Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves

IV. LINHA DE PESQUISA: SISTEMAS SIMBÓLICOS E MANIFESTAÇÕES SOCIOCULTURAIS

1. Atlas dos Falares do Baixo Amazonas - AFBAMDescrição: Os estudos lingüísticos voltados para a caracterização

do português do Brasil são ainda pouco expressivos. Algumas regiões têm elaborado atlas lingüísticos e conseguido caracterizar o falar de algumas localidades. No Amazonas, muito há para se fazer, pela falta de tradição de pesquisas dialectológicas nessa região. Com a finalidade de suprir parte dessa lacuna, pretende-se elaborar o Atlas dos Falares do Baixo Amazonas – AFBAM, por meio de pesquisa dialectológica, que tem como cerne o estudo e a análise fonético-fonológica de cinco dos municípios que formam a microrregião do Baixo Amazonas: Barreirinha, Boa Vista do Ramos, Nhamundá, São Sebastião do Uatumã e Urucará.

Resp. Docente: Maria Luiza de Carvalho Cruz

2. Comportamento da vogal tônica posterior média fechada /o/ e das vogais médias pretônicas /e/ e /o/, nos municípios de Presidente Figueiredo, Silves e Itapiranga.

Descrição: Esta pesquisa abordará questões relacionadas ao comportamento da vogal posterior média fechada /o/, em contexto iniciais, mediais e finais tônicos e as vogais mediais pretônicas /e/ e /o/, nos municípios de Presidente Figueiredo, Silves e Itapiranga, pertencentes à microrregião do Médio Amazonas, investigando o modo de realização dessa variante nessas localidades.

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Projetos de Pesquisa

Resp. Docente: Maria Luiza de Carvalho Cruz

3. Mestrinho: o homem, a terra, a política e seus feitosDescrição: Este projeto busca reconstruir a memória do ex-governante

Gilberto Mestrinho de Medeiros Rapouso dando ênfase à sua trajetória política, em meio à reconstituição de seus retalhos de vida. Assume o propósito de reunir fragmentos de reentrâncias, erros, vitórias, perdas, acertos e vicissitudes da vida do político em questão.

Resp. Docente: Iraildes Caldas Torres

V. LINHA DE PESQUISA: SOCIEDADE, ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS NA AMAZÔNIA

1. Implantação de um sistema de monitoramento e controle da intoxicação humana e ambiental por agrotóxicos do Estado do Amazonas.

Descrição: Avaliação socioeconômica junto aos agricultores, por meio de entrevistas estruturadas, semi-estruturadas e observação direta investigando tempo que pratica a agricultura, o custo dos agrotóxicos utilizados, a área total plantada, renda obtida com essa produção, custos da produção, mão de obra empregada.

Resp. Docente: Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves

2. Modos de vida ribeirinha: políticas sociais, relações de gênero e sindicato

Descrição: Caracterizar a vida cotidiana ribeirinha nos diferentes ecossistemas e diferentes práticas sociais e culturais nas comunidades rurais com intenção de traçar um mapa de exclusão social em que vive em esses segmentos das populações “tradicionais na Amazônia”. Pretende ainda identificar os

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221Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Projetos de Pesquisa

impactos socioambientais das políticas sociais compensatórias entre elas: o Bolsa-Escola, o previbarco.

Resp. Docente: Elenise Faria Scherer

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222 Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Projetos de Pesquisa

VI. LINHA DE PESQUISA: TEMPO E ESPAÇO NA AMAZÔNIA

1. A cidade de Manaus expansão urbana: transformações e permanências (1967 a 2000)

Descrição: Compreender a dinâmica do processo de expansão da cidade de Manaus no período de 1967 a 2000 tendo como eixo de investigação a moradia e o transporte coletivo.

Resp. Docente: José Aldemir de Oliveira

2. A cidade de Manaus expansão urbana: transformações e permanências 1967 a 2000

Descrição: Analisar transformações e permanências no processo de expansão urbana pelo qual passou a cidade de Manaus no período de 1967 a 2000.

Resp. Docente: José Aldemir de Oliveira

3. Geoprocessamento e análise socioambiental de microbacias urbanas na cidade de Manaus

Descrição: O objetivo geral deste projeto de pesquisa é a geração de informações georeferenciadas da microbacia do Mindu na cidade de Manaus, a fim de se estabelecer o diagnóstico dos processos socioambientais para subsidiar futuras propostas de intervenção urbanística ambientalmente correta.

Resp. Docente: José Aldemir de Oliveira

4. Projeto de Pesquisa PROCESSOS SOCIOCULTURAIS NA AMAZÔNIA: história do pensamento antropológico e processos étnico-culturais.

Descrição: Projeto Integrado de Pesquisas e Cooperação Interinstitucional reunindo o Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia,

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223Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Projetos de Pesquisa

da Universidade Federal do Amazonas, e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia, da Universidade Federal de Pernambuco. Resp. Docente: Nelson Matos de Noronha

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224 Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

Somanlu - revista de Estudos Amazônicos

Números Editados

v. 1, n. 1, 2000

ArtigosPolifonia cultural e pensamento radical – Edgard de Assis CarvalhoO pensamento social na Amazônia: (re)visões da Ciência – Peter WeigelPaul Ricoeur e Walter Mignolo – um estudo de hermenêuticas racionalistas num campo interpretativo comum – Marilene Corrêa da SilvaNarcisismo & sociedade – Narciso Júlio Freire LoboTeoria crítica, educação e delinqüência política ou do cidadão mínimo e da tirania do mercado – José Alcimar de OliveiraDireito à vida: reafirmação da exclusão – Elenise Faria SchererDe Vice-reino à Província: tensões regionalistas no Grão-Pará no contexto da emancipação política brasileira – Luiz Balkar Sá Peixoto Pinheiro Amazônia e questão regional: um regionalismo sufocado – Ricardo José Batista NogueiraReflexões em torno das raízes culturais da mulher na Amazônia – Heloisa Lara Campos da Costa

PesquisasUm olhar fenomenológico sobre a cidade – Júlio César SchweickardtAspectos estruturais das cidades e suas transformações – Luiz de Oliveira CarvalhoA dialética do seringal – Ricardo Pereira ParenteA rede de fortificações na Amazônia brasileira: uma abordagem sobre a militarização (séculos 17 e 18) – Mírcia Ribeiro Fortes Carne de Sol: uma análise discursiva da narrativa curta de Álvaro Maia – José Ribamar Mitoso Representações e realidade social intersubjetiva – Ricardo Ossame

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225Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

ImagensCores de um meteoro – Otoni Mesquita

ResenhaAs vítimas do massacre – José Aldemir de Oliveira

Ano 2, n. 2 – Edição especial, 2002O BOI NA UNIVERSIDADE

ArtigosArte e Cultura PopularO boi é bom para pensar: estrutura e história nos bois-bumbás de Parintins – Sérgio Ivan Gil Braga A festa de boi-bumbá em Parintins: tradição e identidade cultural – Raimundo Dejard Vieira FilhoParintins: turismo e cultura – ângelo César Brandão Pimentel

Globalização e TurismoSaga do boi-bumbá em preto-e-branco – Fátima Guedes Uma viagem ao boi-bumbá de Parintins: do turismo ao marketing cultural – Luiza Elaine Corrêa AzevedoO boi-bumbá e a nova estrutura urbana de Parintins – José Camilo Ramos de SouzaEducação ambiental e festas populares: um estudo de caso na Amazônia utilizando o Festival Folclórico de Parintins – Elizabeth da Conceição SaotosFestival folclórico: o que muda em Parintins? – Ana Rúbia Figueiredo Fernandes

Mito e ImaginárioTradição, tradução e transparência – João de Jesus Paes Loureiro

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226 Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

O indianismo revisitado pelo boi-bumbá. Notas de pesquisa – Maria Laura Viveiros de Castro CavalcantiA geografia mítica do boi – Amarildo Menezes GonzagaBoi-bumbá, memória de antigamente – Selda Vale da Costa

EnsaiofotográficoParintins: brincando com arte – Andreas Valentin

ComunicaçõesArte e cultura regional – Odinéia Andrade, Fred Góes, José Mayr Mendes, Roosevelt Max Sampaio Pinheiro, Mêncius Mello, Tony Medeiros e Marcos SantosGlobalização e turismo – Wilson Nogueira e Gerson Severo DantasProdução audiovisual – Elaine Meneghini e Salete LimaMito e imaginário – Marcos Frederico Krüger Aleixo

Produção acadêmica sobre os bois-bumbás e o Festival de Parintins

Ano 3, n. 1/2, jan./dez. 2003

ArtigosNatureza e cultura na Amazônia: evolução e tendências da pesquisa e da pós-graduação – Nelson Matos de NoronhaMeditação e devaneio: entre o rio e a festa – João de Jesus Paes LoureiroOs enredos caboclos e nativistas nas toadas dos Bois-Bumbás Garantido e Caprichoso, heróis do Festival Folclórico de Parintins – Maria Eva LetíziaEscolas indígenas: a que será que se destinam? – Márcio SilvaUma comunidade da várzea: organização e morfologia social – Marilene Corrêa da Silva e José Fernandes Barros

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227Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

Políticas agrárias e políticas ambientais na Amazônia: encontros e desencontros – Kátia Helena Serafina Cruz Schweickardt Políticas energéticas no Estado do Amazonas: implicações e questões em face do meio ambiente – André Jun Miki Manaus ontem e hoje: transformações do espaço urbano e memória popular – Lucynier Omena MeloCidades desaparecidas: Poiares, século 18 – Patrícia Melo Sampaio Pós-modernidade: uma tentativa de reflexão sobre sua expressão econômica, política e cultural – Marinez Gil NogueiraFilosofia, antropologia: o fim de um mal-entendido – Claude Imbert

Ano 4, n. 1, jan./jun. 2004

ArtigosAmazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais” como fator essencial de transição econômica – pontos resumidos para uma discussão – Alfredo Wagner Berno de Almeida Tradição, modernidade e políticas públicas no Alto Rio Negro – Maria Luiza Garnelo Pereira Dimensão pedagógica da violência na formação do trabalhador amazonense – Marlene RibeiroInovações tecnológicas e qualificação profissional – Maria Izabel de Medeiros ValleImpactos da reestruturação produtiva nas expressões de consciência de classe dos operadores de produção da Zona Franca de Manaus – Márcia Perales Mendes SilvaDesemprego, trabalho precário e des-cidanização na zona Franca de Manaus – Elenise Faria Scherer Impactos da reestruturação produtiva no Amazonas – níveis de emprego e de desemprego na Zona Franca e demais setores – Iraildes Caldas Torres

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228 Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

Suframa: agência de agentes – Izaura Rodrigues NascimentoUm debate sobre a Agenda 21 Brasileira: em defesa da floresta amazônica – Pérsida da Silva Ribeiro Miki

Ano 4, n. 2, jul./dez. 2004

ArtigosDesenvolvimento sustentável e educação ambiental: para uma integração da dimensão intercultural nas abordagens pedagógicas e didáticas – Olivier Meunier Agricultura e identidade cabocla-ribeirinha – Terezinha de Jesus Pinto Fraxe/Antônio Carlos Witkoski O cooperativismo popular como forma de inserção econômica – Celso Augusto Tôrres do NascimentoNoção de trabalho e trabalhadores na Amazônia – Iraildes Caldas TorresCategorias de análise de sustentabilidade social em relações de trabalho na indústria madeireira do Amazonas – Jessé Rodrigues dos SantosA terceirização como estratégia para a competitividade: uma análise do processo na Gradiente Eletrônica S.A. – zânia Maria Rios Aguiar VieiraLa escritura de Neruda: itinerario de três viajes – Elsa Otilia Heufemann-BarríaUma leitura amazônica a partir de Judas Asvero, de Euclides da Cunha – Nícia Petreceli zucoloRomance-documentário em Inferno Verde e A selva – Rita Barbosa de OliveiraPor uma antropologia do espaço social: os ensaios de Garantido e Caprichoso em Manaus – Hueliton da Silveira Ferreira e Sérgio Ivan Gil BragaRuídos na comunicação: o homem amazônico sob a ótica do preconceito – Maria das Graças Ferreira de MedeirosJornalismo científico na Amazônia – Walmir de Albuquerque Barbosa

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229Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

ConferênciaDelineando corpos – Maria Izilda Santos de Matos

ResenhasA complexa fala operária – Narciso Júlio Freire LoboUm jogo filosofante ou a demolição do narcisismo dos autores – João Bosco Ladislau de Andrade

Homenagem Póstuma ao Prof. Dr. Octavio Ianni

Ano 5, n. 1, jan./jun. 2005

ArtigosE tu me amas? – Aurélio MichilesA narrativa poética em Dois irmãos – lugar de intercâmbio entre suportes arquivísticos – Allison LeãoA importância dos fatores socioculturais no processo da comunicação – Allan S. B. Rodrigues e Grace S. CostaO modo de ser e viver o caboclo por Dalcídio Jurandir – Fabiane Maia Garcia/João Bosco Ferreira Mercado faz a festa na floresta – Wilson NogueiraRepresentações sociais das comunidades rurais amazônicas do conceito ambientalismo ou preservação ambiental: os casos de Fátima e Livramento – Renan Albuquerque RodriguesO desafio ético do desenvolvimento com diversidade – Carlos Lopes Nas margens do igarapé do Mindu: dois lados da história - ângela Maria de Abreu CavalcanteDesenvolvimento sustentável e ecodesenvolvimento: uma reflexão sobre as diferenças ídeo-políticas conceituais – Marinez Gil Nogueira e Maria do Perpétuo Socorro R. ChavesAfirmação étnica e movimento indígena em Tefé: o caso dos Cambeba – Benedito Maciel

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230 Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

A inserção do indivíduo em novos espaços sociais e a criação de novos papéis – Aldair Oliveira de AndradeDinâmica territorial na fronteira Brasil-Colômbia – Ricardo José Batista Nogueira

Resenhas A contribuição seminal de Koch-Grünberg – Renan Freitas PintoPonto e contraponto – Marcos Frederico Krüger

Homenagem Póstuma a Leandro Tocantins

Ano 5, n. 2, jul./dez. 2005

ArtigosDarwin e Marx: diálogos nos trópicos. para uma interpretação do Brasil – Alfredo Wagner Berno de AlmeidaA Geografia em Foucault – Marcos Castro de LimaAfirmação e erotismo: os reflexos da indústria cultural na música popular produzida na Região Norte – Marcio Lima NoronhaLixo & Arte – João Bosco Ladislau de AndradeO ignorado Benjamin Sanches e o Modernismo: uma leitura inicial de sua obra no contexto brasileiro ancorada no conto “A Gravata” – Nícia Petreceli zucoloMovimento teatral em Manaus e identidade regional – Selda Vale da CostaAtlas Lingüístico do Amazonas – ALAM: natureza de sua elaboração, resultados e perspectivas – Maria Luiza de Carvalho CruzTecnologia e Comunicação: os mediadores de confrontos – Cristina Teresa Salvador Rebelo SantosGlobalização e saber local: mito e racionalidade na Amazônia como diálogo intercultural – Harald Sá Peixoto PinheiroAs mulheres e o patrimonialismo (Amazônia: 1840-1930) – Heloisa Lara Campos da Costa

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231Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

O avanço da terceirização no cenário de reestruturação produtiva na Zona Franca de Manaus – Márcia Perales/Maria R. A. Vieira /zânia M. Silva Aguiar

ConferênciaOs itinerários urbanos de Claude Lévi-Strauss – Claude Imbert

ResenhasUm livro que é bom para pensar – Marcos Frederico KrügerAmazônia: mito e literatura ou o relato de tudo quanto viu o viajante Marcos Frederico Krüger – Gabriel Albuquerque

Homenagem póstuma a Mário Ypiranga Monteiro Mário Ypiranga Monteiro, meu pai – Marita Socorro MonteiroO pescador – Mário Ypiranga Monteiro (inédito)

Ano 6, n. 1, jan./jun. 2006

ArtigosA vivência individual do sagrado e do místico em Manaus – Lucynier Auxiliadora Omena Melo Os rumos da produção científica sobre mulher e gênero na Universidade Federal do Amazonas (1975/2002) – Heloisa Lara Campos da Costa e Priscila Freire RodriguesO povo Dâw do Alto Rio Negro – Am – Lenita de Paula Souza AssisEcoturismo Indígena: o desafio da sustentabilidade no Pólo de ecoturismo do Amazonas – Ivani Ferreira de Faria Medicina Tradicional Baniwa: doença, poder, conflito e cura – Luiza Garnelo, Sully Sampaio, André Fernando Baniwa e Gary Lynn Vidas molhadas – Um estudo socioambiental de comunidades ribeirinhas da Várzea Amazônica – Geandro Guerreiro Pantoja, Therezinha de Jesus Pinto Fraxe e Antônio Carlos Witkoski

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232 Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

As toadas dos bois Garantido e Caprichoso de Parintins – Am na versão de 2004 – Maria Eva LetíziaO patrimônio no Amazonas: natureza e cultura em processo – Ana Lucia Nascentes da Silva Abrahim

ConferênciaSaberes humanos e educação do futuro – Edgard de Assis Carvalho

DocumentoIntrodução à dramaturgia indígena – Manoel Nunes Pereira

EntrevistaSobre Antropologia Visual – Renato Athias

ResenhasDuas cidades, duas memórias... – Narciso Júlio Freire LoboEntre Luiz Vitalli, Clarice Lispector e Polifônicas Idéias – Ricardo Parente

Ano 6, n. 2, jul./dez. 2006

ArtigosViagem com um regatão – Julio Cezar Melatti“Soldiers” and citizens in the rainforest: Brazilian rubber tappers during World War II – Seth GarfieldMulheres nos seringais: etnia, parentesco e afetividade – Mariana Ciavatta PantojaO etnoconhecimento dos cablocos-ribeirinhos no manejo ecológico do solo em uma comunidade amazônica – Albejamere Pereira de Castro, Therezinha de Jesus Pinto Fraxe e Hedinaldo Narciso LimaEntre o branco e o negro. Política e cultura no início da trajetória intelectual de Mário Ypiranga Monteiro – Marco Aurélio Coelho de Paiva

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233Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

Água amazônica: ouro azul, fonte de vida, instrumento de poder – Luiz Henrique da Silva SantanaMigrações fronteiriças: uma reflexão necessária no Amazonas – Márcia Maria de OliveiraA migração dos símbolos. Diálogo intercultural e processos identitários entre os bolivianos em São Paulo – Sidney Antonio da Silva

EntrevistaFilosofia e Literatura – Benedito Nunes

ResenhasO Diário de Samuel Fritz – Renan Freitas Pinto O Brasil se revela na crítica de Walter Benjamin – Nelson de Matos Noronha

DocumentoManaus e Belém. Aspectos históricos, sociais, folclóricos, psicológicos e, sobretudo, sentimentais – Djalma Batista

Ano 7, n. 1, jan./jun. 2007

ArtigosIndústria fonográfica no Amazonas: subjugação aos padrões globalizados e realização da liberdade possível - Elizabeth Duarte CavalcanteDo moderno ao selvagem: a fotografia amazônica de George Huebner - Andreas Valentin Abram alas que eu quero passar: o desfile do automóvel na cidade de Manaus - Tatiana Schor A heterogeneidade representacional da Amazônia nos desenhos de crianças nativas - Norma Felicidade Lopes da Silva Valêncio, Antonio Roberto Guerreiro Júnior, Milene Peixoto ávila e Cínthia Cássia Catóia

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234 Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

Kumuá, baiároá e yaís. Os especialistas da cura entre os índios do rio Uaupés (Amazonas) - Renato Athias Pesca e conflitos socioambientais em uma área com manejo comunitário na Amazônia central - Tony Marcos Porto Braga, José Fernandes Barros e Maria do Perpétuo Socorro ChavesA noção de habitus em o desencantamento de mundo - Terezinha Fraxe e Antonio Carlos WitkoskiManejo de recursos naturais no município de Coari, Médio Solimões - M. do P. Socorro Chaves e Débora Cristina Bandeiras RodriguesA reforma agrária ecológica na Floresta Nacional de Tefé - Thaís Brianezi

ConferênciaConhecimento e transformação social: para uma ecologia dos saberes - Boaventura de Souza Santos

EntrevistaNotas sobre história da antropologia no Brasil - Julio Cezar Melatti

ResenhaVisões sobre a obra de Hatoum - Marcos Frederico Krüger Aleixo

DocumentoOs índios e os caboclos na Amazônia: uma herança cultural-antropológica – Samuel Benchimol

Ano 7, n. especial, 2007

AntropologiavisualefilmeetnográficoAntropologia Visual no Brasil – Patrícia Monte-Mór, Carmem Silvia Rial

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235Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

Caçada de onças. Um relato etnográfico de um filme perdido de Luiz Thomaz Reis – Fernando de TaccaO som direto e o tuxaua Manoelzinho – David Ronney Pennington Jean Rouch, um antropólogo-cineasta – Entrevista com Marcius Freire

Cinema no AmazonasO cinema em Manaus nos anos 60 e 70 – Renan Freitas Pinto, José Gaspar, Joaquim Marinho e Márcio SouzaA aventura de fazer cinema no Amazonas – Entrevista e homenagem a Cosme Alves Netto

EnsaiofotográficoManaus: um fotógrafo como turista aprendiz – Fernando de Tacca

Documentarismo na AmazôniaA produção atual de documentários na Amazônia – Murilo Santos, Aurélio Michiles, Januário Guedes e Júnior RodriguesA construção das identidades no documentário. Um panorama das relações entre cinema documentário e povos amazônicos – Fernanda Bizarria Cine hecho con los propios indígenas – Entrevista com Fernando Valdivia Filme autoral sobre tema atual – Entrevista com Jorane Castro Baniwa - um trabalho de parceria – Entrevista com Stella Oswaldo Cruz Penido Vídeo e patrimônio arqueológico nas aldeias – Entrevista com Raoni Valle

AMFILD: uma experiência de cinema no Amazonas – Carlos Garcia e Izis Negreiros

IMostraAmazônicadoFilmeEtnográficoApresentação: olhares sobre a Amazônia Homenagens a Jorge Bodansky e Cosme Alves Netto Juri da Mostra Competitiva

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236 Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Números Anteriores

Oficinas, Mini-cursos e Fóruns de DebatesProgramação OficialPremiaçõesEquipe de realização

Ano 7, n. 2, jul./dez. 2007

ArtigosLo maravilloso literario y su desplazamiento hacia la Amazonía - Elsa Otilia Heufemann-BarríaTravessia: uma situação de passagem entre o Brasil e a Guiana Francesa - Ana Paulina Aguiar SoaresA vida à beira da cidade - história e etnografia do Cacau Pirêra/Iranduba (Am) - Iraildes Caldas Torres e Hamida PereiraDa Vila Municipal ao Adrianópolis: percepção, representação e produção social do espaço - Paula de Melo BittencourtO perfil do analista da indústria eletroeletrônica da Zona Franca de Manaus: características e transformações - Aldair Oliveira de Andrade e Antônio Marcos de Oliveira Siqueira Etnoconhecimento de pescadores na Amazônia Central: estudo de três comunidades nos lagos Grande e São Lourenço, Manacapuru (Am) - Paula Mirana de Sousa Ramos, Therezinha de Jesus Pinto Fraxe, Suzy Cristina Pedroza da Silva e Antônio Carlos WitkoskiSignificados do meio ambiente em um comunidade rural amazônica - Renan Albuquerque Rodrigues e Maria de Fátima Fernandes Martins Catão

ConferênciaAmazônia: identidade/identificaçõesJoão de Jesus Paes Loureiro

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237Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Resenhaálvaro Páscoa: artista e mestreRenan Freitas Pinto

Documento“A Amazônia e a cobiça internacional”Geraldo de Macedo Pinheiro

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238 Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Normas para apresentação de trabalho

Normas para apresentação de trabalho

Somanlu, publicação semestral do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia – ICHL/UFAM, tem caráter multidisciplinar e divulga trabalhos sobre os processos socioculturais da Amazônia. As seguintes normas devem ser seguidas na elaboração e envio de trabalhos para a revista:

1. Os artigos, resenhas e entrevistas deverão ser enviados em CD com etiqueta, ou através de e-mail, identificando o(s) autor (es).

2. O ARTIGO deverá conter, no máximo, 30 mil caracteres, sem espaços; título, o nome e a identificação do autor (titulação, área de estudo da titulação, vinculação profissional, endereço eletrônico e telefone), resumo e palavras-chave em português e inglês. As notas explicativas – nunca nota para indicar a obra citada – deverão vir sempre no final do texto, antes das referências. Os resumos deverão conter, no máximo, 350 caracteres sem espaços.

3. As referências a obras devem vir no corpo do trabalho, entre parênteses, como no exemplo: (SOUzA, 1998, p. 157) ou (SOUzA, 1998, p. 155-157).

4. As citações até três linhas são identificadas por aspas no texto. A partir de quatro linhas, devem ser destacadas do texto, em corpo 11, sem aspas.

5. As referências devem obedecer aos seguintes modelos: MARCUSE, Herbert (1972). Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. 2 ed. Rio de Janeiro: zahar; GALVãO, Eduardo (1951). Boi-bumbá, versão do baixo Amazonas. Anhembi. São Paulo, v. 3, n. 8, julho, p. 276 - 291; SACHS, Ignacy (1993). Estratégia de tradição para o século XXI. In: BURSzTYN, Marcel. (Org.). Para pensar o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Brasiliense, p. 29 -56.

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239Somanlu, ano 8, n. 1, jan./jun. 2008

Normas para apresentação de trabalho

6. Anexos: caso existam, devem vir depois das referências.7. A RESENHA de livros, com publicação nos últimos três anos, deve

conter indicação do autor, título, local da edição, editora e ano de publicação da obra resenhada, em até 13 mil caracteres sem espaços, corpo 12, na fonte Times New Roman.

8. A ENTREVISTA deve conter informações do entrevistado, do(s) entrevistador (res), data e local, e evento, se for o caso, em que se deu a oportunidade da entrevista. Deve sempre ater-se a temas de interesse da revista e conter, no máximo, 20 mil caracteres.

9. Os trabalhos serão submetidos ao Conselho Editorial que os enviará a pareceristas had hoc, que decidirão da sua publicação. Conforme a avaliação destes, o texto será programado para publicação ou devolvido a seu autor para ser reformulado e novamente enviado para nova avaliação. Os trabalhos não aprovados ficarão à disposição de seus autores pelo prazo de até um mês após a comunicação. Os autores que tiverem seus textos aprovados deverão encaminhar à Comissão Editorial uma autorização para sua publicação. O conteúdo dos textos será de inteira responsabilidade de seus autores.

10. Os autores que tiverem artigos, resenhas ou entrevistas publicados receberão três exemplares da Revista.

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