01 - atom bohr completo

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Evolução dos Conceitos Evolução dos Conceitos da Física da Física Do átomo grego ao átomo de Bohr Do átomo grego ao átomo de Bohr Luiz O.Q. Peduzzi Departamento de Física Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis - SC 2008

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  • Evoluo dos Conceitos Evoluo dos Conceitos da Fsicada Fsica

    Do tomo grego ao tomo de BohrDo tomo grego ao tomo de Bohr

    Luiz O.Q. Peduzzi

    Departamento de Fsica Universidade Federal de Santa Catarina

    Florianpolis - SC2008

  • A Luiza, minha filha querida.

  • ii

    Agradecimento Danieli Galvani, pela reviso ortogrfica do texto.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    iii

    Sumrio Introduo

    Introduo, 1 Referncias Bibliogrficas, 7

    1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da

    histria da fsica e da qumica 1.1 Introduo, 10 1.2 A substncia e a forma na composio de todas as coisas, 11 1.3 O atomismo, 15 1.4 As formas geomtricas de Plato, 20 1.5 A retomada do atomismo a partir do sculo XVII: a natureza no tem horror ao vazio, 24 1.6 Da alquimia rabe ascenso e queda do flogstico, 32 1.7 O atomismo de Dalton, 42 1.8 Um papel para a histria, 53 1.9 Referncias Bibliogrficas, 56

    2. Sobre o atomismo do sculo dezenove 2.1 Introduo, 60 2.2 Clausius e Thomson: as bases conceituais da termodinmica, 65 2.3 O movimento browniano, 74 2.4 O tomo no real: a rejeio de no observveis em uma teoria cientfica, 77 2.5 Reversibilidade e irreversibilidade temporal, 80 2.6 A oposio cientfica e epistemolgica de Boltzmann ao energetismo, 84 2.7 Referncias Bibliogrficas, 91

    3. A espectroscopia, o eltron, os raios X e a radioatividade: preldio a uma nova fsica

    3.1 Introduo, 96 3.2 Espectros: de Newton a Balmer, 100 3.3 Novas nuvens no cu da fsica clssica, 107 3.4 A descoberta do eltron, 108

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    iv

    3.5 Os raios X, 117 3.6 A radioatividade, 120 3.7 A experincia de Millikan, 126 3.8 Referncias Bibliogrficas, 130

    4. O quantum de radiao

    4.1 Introduo, 134 4.2 A radiao de corpo negro, 136 4.3 A lei da radiao de Planck, 146 4.4 Obteno das leis de Stefan-Boltzmann, Wien e Rayleigh-Jeans a partir da lei da radiao de Planck, 154 4.5 Dos fotoeltrons de Hertz aos estudos de Lenard, 157 4.6 O quantum de luz, 161 4.7 Reaes aos quanta de luz, 166 4.7 Referncias Bibliogrficas, 168

    5. O tomo de Bohr 5.1 Introduo, 172 5.2 Os postulados de Bohr, 178 5.3 A quantizao das rbitas e das velocidades no tomo de hidrognio, 181 5.4 A quantizao da energia e a primeira corroborao da teoria, 186 5.5 O modelo de Bohr para o hlio ionizado, 188 5.6 O modelo de Bohr para tomos de um eltron, 190 5.7 A teoria de Bohr e os espectros atmicos, 193 5.8 O princpio da correspondncia, 194 5.9 guisa de concluso, provisria..., 198 5.10 Referncias Bibliogrficas, 202

  • Introduo

    No prefcio edio portuguesa do texto de Niels Bohr, Sobre a constituio de tomos e molculas, editado pela Fundao Calouste Gulbenkian1, J. L. Rodrigues Martins2

    faz uma interessante reflexo sobre o valor didtico, cultural e epistemolgico da histria da cincia a partir do XII Congresso Internacional de Histria da Cincia realizado em Paris, no ano de 1968. Logo ao incio, ele ressalta que:

    (...) mais uma vez se reacendeu o debate tantas vezes renovado entre os que defendem o extraordinrio

    interesse pedaggico, o iniludvel significado cultural e o relevante alcance epistemolgico da Histria da

    Cincia, e os que a relegam para uma posio apagada e secundria, simples fonte de valores emotivos,

    ou gratuita curiosidade intelectual para as horas de repouso e disponibilidade de esprito, numa posio

    duplamente marginal: marginal em relao Histria Geral e marginal em relao prpria Cincia; mais

    uma vez, se abriu o debate oportuno entre os que propugnam a prevalncia de uma autntica Histria da

    Cincia em todos os cursos de um Ensino Superior de vocao universitria, integrado numa pedagogia

    polivalente, personalista e cultural, de tonalidade fortemente humanista, verdadeira Escola formadora de

    Homens, abertos a todas as frentes da Cultura, e os que defendem apenas, ou em primeiro lugar, um

    Ensino Superior de vocao tecnocrtica, orientado predominantemente para uma viso de realidade mais

    polarizada, diferenciadora, linear, acutilante e instrumental, fecunda Fbrica de Tcnicos, marcados por

    imperativos de eficincia e de produtividade, mas amputados de todas as dimenses humanas que no

    apontem diretamente para uma orientao profissional (...).

    Continuando a discorrer sobre o significado das opes em jogo, ele diz que novamente se abriu o debate entre aqueles que admitem que

    (...) um autntico cientista no pode, em verdade, reivindicar para si um perfeito e completo domnio da

    Cincia que cultiva se no possuir, ao mesmo tempo, um conhecimento igualmente completo e perfeito

    da evoluo histrica dessa mesma Cincia, at ao seu estado atual, como h mais de meio sculo vem

    ensinando o grande historiador George Sarton, na sua luta esforada mas inglria contra a fatalidade

    dessa miopia epistemolgica de que adoece a maioria dos investigadores e especialistas contemporneos.

    E os que, pelo contrrio, asseguram que tais especialistas e investigadores no podem, de certo,

    ultrapassar o condicionalismo que lhes imposto na impiedosa luta da emulao e da competio em que

    esto empenhados no campo da atividade cientfica, e, por isso, para assegurarem a viabilidade da

    conquista de direitos de prioridade e de descoberta, so forados a uma preparao intensiva, orientada

    exclusivamente para as exigncias imediatas dos problemas propostos, na investigao tecnolgica ou na

    1 BOHR, 1989, p. 5-26. 2 Professor do Laboratrio de Fsica da Faculdade de Cincias da Universidade de Luanda.

  • Introduo

    2

    investigao fundamental, o que no lhes deixa qualquer disponibilidade de tempo livre para, mesmo de

    modo passageiro, poderem se afastar das fecundas atividades em que trabalham, para se dedicarem

    consulta de velhas memrias cientficas, como, melancolicamente, reconheceu o eminente biolgo

    francs Jean Rostand (...). As justas preocupaes do professor Rodrigues Martins trazem discusso uma matria de

    natureza polmica, difcil, complexa pelo nmero e pela amplitude das variveis que abriga. Entretanto, so pertinentes e atuais na medida em que questionam pressupostos e suscitam posicionamentos no mbito da educao e da pesquisa cientfica.

    O texto Do tomo grego ao tomo de Bohr atua na perspectiva de que a histria da fsica no pode ser desconhecida pelos que estudam e trabalham com essa cincia. Voltado prioritaria-mente para o aluno universitrio, procura explorar o potencial didtico, cultural e epistemolgico da fsica atmica. De fato, desde os seus primrdios, o tomo tem desempenhado um papel essen-cial na estruturao de inmeras hipteses, conceitos e teorias na Fsica, seja como protagonista ou como coadjuvante.

    O conhecimento grego, e o atomismo em particular, foi objeto de estudo por muitos fsi-cos, alguns deles formuladores da mecnica quntica, que em livros, artigos, conferncias, expressaram publicamente apreo pelas origens e pela histria da sua cincia.

    Em A natureza e os gregos3

    A cincia uma inveno dos gregos. Talvez a esteja a maior razo para estud-la e, co-nhecendo-a, capacitar-se a admirar as suas conquistas e compreender as suas limitaes.

    , obra baseada em uma srie de conferncias proferidas por Erwing Schrdinger (1887-1961) em 1948, como parte de suas atividades oficiais como professor de fsica do University College, em Dublin, o autor diz que, no incio das primeiras palestras sobre a cincia grega, sentia-se na obrigao de explicar que o seu interesse pelos antigos no era um mero passatempo pessoal. Longe de se constituir em uma perda de tempo, em termos profissionais, como muitos poderiam inadvertidamente pensar, ao se aprofundar na histria de vrios sculos de um pensamento original que tem incio no sculo VI a. C., na cidade jnica de Mileto, e que logo se espalha por outras cidades-estado grega, Schrdinger objetiva reunir elementos para uma viso mais crtica da cincia atual.

    O iluminismo jnio gera a idia de que o mundo pode ser entendido. Desde ento, estrutu-ram-se conhecimentos sob a validade irrestrita desse indito e original pressuposto. A busca de explicaes naturais para os fenmenos naturais, a procura de ordem e regularidade como regra geral em um mundo que no compartimentaliza conhecimentos, no pode deixar os deuses seno em seus devidos lugares, ou mesmo negar a sua existncia. Nesse novo horizonte de expectativas, supersties e prticas mgicas ou obscuras no podem competir com a razo e a argumentao lgica.

    3 SCHRDINGER, 2003.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    3

    As complexas relaes da razo com a observao, e as limitaes dos sentidos, estudadas pelos gregos, so ainda hoje matria de vivo interesse, como adverte Schrdinger. Ser que a nossa imagem inventada do mundo se baseia unicamente nas percepes dos sentidos? Que papel desempenha a razo na sua formulao? Ser que essa imagem se assenta, em ltima instncia e de forma verdadeira, simplesmente sobre a razo pura?4

    A idia de que todas as coisas so constitudas por tomos e espao vazio d continuidade ao postulado bsico de que a Natureza compreensvel. O som, a cor, o aroma, a rigidez, o calor no so atributos dos tomos, mas o resultado das interaes dos (rgos dos) sentidos com a diversidade das formas, dos movimentos e dos arranjos geomtricos dos constituintes fundamen-tais da matria.

    Os tomos constituem a nica realidade imutvel; eles se movem no espao e no tempo, ao longo de linhas retas; mantm inclume a sua individualidade, colidem entre si, associam-se, desassociam-se, associam-se novamente... assim produzem a variedade dos fenmenos.

    Mas a construo intelectual no prescinde da percepo sensorial. O famoso dilogo de Demcrito, que apresenta o intelecto em uma competio com os sentidos, deixa isso claro:

    O intelecto afirma: O doce existe por conveno, o amargo existe por conveno, o calor existe por

    conveno, o frio existe por conveno; na verdade, no existe nada seno tomos e vazio.

    Ao que os sentidos respondem: Pobre intelecto, pensas derrotar-nos ao mesmo tempo que de ns queres

    as provas de que necessitas? A tua vitria a nossa derrota.5

    Imortalizada na obra De rerum natura (Sobre a natureza das coisas), do poeta romano Tito Lucrcio Caro (95-55 a.C), a hiptese atmica retomada no sculo XVII. Quando acorda do seu sono profundo, para no mais adormecer, encontra uma cincia que comea a ser regida por novas regras.

    O experimento controlado coloca o conhecimento cientfico em um novo patamar de de-senvolvimento. Em meio a isso, o papel atribudo aos dados acirram disputas epistemolgicas en-tre aqueles que, como Francis Bacon (1561-1626), consideram que eles esto na gnese das teo-rias, e os que os vem como corroboradores ou refutadores em potencial de idias concebidas previamente pela razo, como Ren Descartes (1596-1650).

    A concepo realista da antiga filosofia atomstica coloca o tomo no centro de discusses polmicas (a natureza tem ou no horror ao vazio?), na descrio de estados dinmicos da matria (a presso de um gs, de Daniel Bernolli (1700-1782)), na estruturao de modelos fsico-qumicos (o modelo de John Dalton (1766-1844)), na base de explicaes sobre as reaes qumi-cas.

    A imagem objetiva dos fenmenos, calcada na realidade objetiva do tomo, sofre a sua pri-

    4 Id, p. 32-33. 5 Id, p.38, 83.

  • Introduo

    4

    meira crise com o advento do conceito de campo, de Michael Faraday (1791-1867). Segundo Werner Heisenberg (1901-1976)6 :

    Uma interao entre campos de foras, sem nenhuma substncia como suporte das foras, era menos

    facilmente compreensvel do que a idia materialista da realidade, prpria da fsica atmica, e introduzia

    um elemento de abstrao, no intuitivo, naquela imagem do mundo que, por outro lado, parecia to clara

    e convincente. A postulao de um meio material (o ter) dotado de tenses elsticas, como suporte dos

    campos de fora e veculo de difuso dos distrbios eletromagnticos, mostrou-se insatisfatria tanto pelas suas contradies internas como pela evidncia experimental. Contudo, conforme Heisenberg7 :

    Alguma consolao se encontrava no fato de que, pelo menos, as variaes dos campos de foras se

    podiam tomar por processos no espao e no tempo descritveis objetivamente, isto , sem qualquer

    referncia aos processos de observao e que, por conseguinte, correspondiam imagem ideal,

    comumente aceita, de um fluir no espao e no tempo segundo leis determinadas. Alm disso, era lcito

    conceber os campos de foras observveis somente nas suas interaes com os tomos, como gerados por

    estes, e, de certo modo, no havia necessidade de recorrer aos campos, seno para explicar os

    movimentos dos tomos. Desta maneira, a nica realidade continuava a ser constituda pelos tomos [e

    pelo espao vazio entre eles]. Uma segunda e mais aguda crise provocada pelo surgimento do energetismo, uma filoso-

    fia que vai contestar a viso mecanicista da natureza e a realidade do tomo. Ser mesmo desej-vel construir conhecimentos luz deste (e de outros) no observvel, na cincia? Que evidncias experimentais confirmam a existncia do tomo? As conquistas da teoria cintica dos gases e o papel desempenhado pelo tomo na qumica no so suficientes para arrefecer as crticas ao ato-mismo. Afinal, a termodinmica e a sntese maxwelliana no prescidem do tomo?

    Em meio ao debate cientfico e epistemolgico entre Ludwig Boltzmann (1844-1906), um defensor incondicional do atomismo e da viso mecanicista da natureza, e Wilhelm Ostwald (1853-1932), que advoga a excluso do tomo da cincia, o sculo XIX chega ao fim; e com ele a constatao de que tomo no o ltimo limite de diviso da matria, com as descobertas do eltron, do raios X e da radioatividade.

    O fato do tomo ter uma estrutura interna no abala a imagem materialista do mundo. A realidade objetiva da matria est nas partculas elementares que constituem o tomo. Muda o foco, mas a essncia da idia a mesma. nesta simplicidade que reside a fora de persuaso dessa viso de mundo.

    6 HEISENBERG, 1980, p. 12. 7 Id, p. 12.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    5

    O eltron, os raios X e a radioatividade, e toda a gama de novos problemas tericos e experimentais que suscitam, mostram o equvoco daqueles que, desconhecendo a lio da histria, em outros episdios semelhantes, consideravam a fsica quase completa. Havia, de fato, muito mais (e ainda no suspeitadas) coisas por fazer do que buscar explicaes mais satisfatrias, no quadro da fsica clssica, para alguns fenmenos como a radiao do corpo negro e a emisso de partculas carregadas (eltrons) por metais expostos a radiao de certas freqncias.

    Como bem ressalta Louis de Broglie (1892-1987): Para o sbio, o julgar a cincia acabada uma iluso to completa como para o historiador pensar que a

    histria terminou. Quanto mais progridem os nossos conhecimentos, tanto mais a natureza se mostra

    detentora de uma riqueza quase infinita nas suas diversas manifestaes. Mesmo no domnio de uma

    cincia j to desenvolvida como a Fsica, no temos razo alguma para pensar que esto exaustos os

    tesouros da natureza ou que estamos quase a terminar o seu inventrio.8

    Um novo e revolucionrio conceito introduzido na fsica por Max Planck (1858-1947), em 1900 o quantum elementar de ao vai definitivamente mostrar que no domnio atmico a fsica deve lidar com um mundo regido por leis e regras muitas vezes estranhas fsica clssica, que no admitem analogias puras e simples com fenmenos j conhecidos.

    O modelo atmico de Bohr evoca a imagem do tomo como um sistema solar em miniatura, mas Bohr sabe das limitaes desse tipo de representao. A interveno do quantum de ao impede o infinitamente pequeno de ser uma reduo homottica do infinitamente grande.9

    A estabilidade intrnseca das configuraes eletrnicas no pode ser explicada pela fsica clssica. Da mesma forma, a emisso de radiao prevista pela teoria clssica no compatvel com os espectros de emisso dos elementos qumicos. Assim, luz do quantum de ao, Bohr impe condies especficas ao tomo de Rutherford e desenvolve o seu paradoxal e bem sucedido modelo. O princpio da correspondncia assegura que, quando a constante de Planck no tem um papel significativo no mbito dos fenmenos, as predies da fsica quntica correspondem s da fsica clssica.

    A intuio e a inspirao, nem sempre fceis de justificar, manisfestam-se agudamente nas proposies de Bohr. Elas so ingredientes essenciais, peas integrantes, condies necessrias (mas no suficientes) estruturao de uma nova fsica. O processo de construo e desenvolvi-mento da cincia no abdica das singularidades, mas coletivo por natureza e demanda tempo sua elaborao.

    8 DE BROGLIE, 1958, p. 30. 9 Id, p. 18.

  • Introduo

    6

    A falta de uma linguagem prpria para tratar os problemas ao nvel atmico apontada com bastante clareza por Bohr, em uma conversa com Heisenberg10 :

    Pretendemos dizer algo sobre a estrutura do tomo, mas falta-nos uma linguagem em que possamos nos

    fazer entender. Estamos na mesma situao de um marinheiro abandonado numa ilha remota, onde as

    condies diferem radicalmente de tudo o que ele jamais conheceu e onde, para piorar as coisas, os

    nativos falam uma lngua desconhecida. Ele tem que se fazer entender, mas no dispe de meios para

    isso. Nesse tipo de situao, uma teoria no pode esclarecer nada, no sentido cientfico estrito habitual

    da palavra. Tudo o que ela tem a esperana de fazer revelar ligaes. Quanto ao mais, ficamos tateando

    da melhor maneira possvel... Fazer mais do que isso est muito alm dos recursos atuais. O papel desempenhado pelo quantum de ao nos fenmenos atmicos no abala a convic-

    o de Planck de que h uma realidade objetiva independente do observador. Com a evoluo do conhecimento cientfico, aperfeioam-se as representaes dessa realidade. Os objetos gerados por uma nova representao possuem (em regra) um nvel de realidade mais elaborado que a sua precedente, da no se exigir que eles possam ser compreensveis a partir dos elementos de vises de mundo mais ingnuas.

    Hbitos psicolgicos fortemente arraigados s experincias clssicas usuais tiram do pensamento a flexibilidade necessria compreenso de novos conceitos. Desse modo, como argumenta Gaston Bachelard (1884-1962) em O novo esprito cientfico11

    Os ftons de Einstein no tm anlogo na mecnica clssica. Com massa de repouso nula e movimentando-se com a velocidade da luz, eles diferem dos corpsculos newtonianos de luz ou de qualquer outro corpo material. Da mesma forma, no h anlogo clssico para o eltron. Nesses termos, um tomo no se assemelha a um modelo em miniatura do sistema solar, pois um eltron no um corpsculo esfrico ou quase-esfrico, tambm no uma nuvem em volta do ncleo, no , enfim, nenhuma coisa que possa ser identificada com algo conhecido

    , faz-se com freqncia necessrio desaprender certas coisas de modo a poder v-las de uma outra forma, como partes de uma construo erigida em bases conceituais distintas da anterior.

    12

    De fato, irreversvel a crescente diminuio do carter intuitivo dos objetos e dos fenmenos de uma cincia dinmica, em constante mutao. Segundo Planck

    .

    13 :

    Em comparao com a imagem do mundo primordial e ingnua, a atual cosmoviso cientfica oferece um

    aspecto estranho e realmente inslito. As impresses sensoriais imediatas, nas quais o trabalho cientfico

    tem sua origem, desapareceram por completo. Ver, ouvir e tocar no desempenham nela nenhum papel.

    Uma olhada ao interior de um laboratrio de pesquisa revela que essas funes tm sido substitudas por

    uma coleo de aparelhos extremamente complexos, intrincados e difceis de manejar, inventados e 10 HEISENBERG, 1996, p. 54. 11 BACHELARD, 1986, p. 65. 12 FEYNMAN, 1989, p. 164-165. 13 PLANCK, 2000, p. 94.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    7

    construdos para a resoluo de problemas que s podem ser colocados com a ajuda de conceitos

    abstratos e smbolos matemticos e geomtricos e que com freqncia resultam absolutamente

    incompreensveis para os no iniciados. H vinte e cinco sculos, Herclito de feso (576-480 a.C) disse que s se pode entender

    a essncia das coisas quando se conhecem sua origem e seu desenvolvimento. Com igual clareza e perspiccia, ele tambm afirmou que a natureza ama esconder-se, veiculando a idia de que existe uma realidade oculta por trs da aparncia imediata do fenmeno sensvel.

    A natureza ama esconder-se ttulo de um livro escrito por Shimon Malin14, no qual o autor15

    , enfim, em uma fsica que perscruta o (sempre) enigmtico universo do infinitamente pe-queno que se vai buscar respostas a preocupaes antigas de um esprito que no envelhece pelas sempre novas e perturbadoras questes que prope.

    explora os insights proporcionados pela teoria quntica sobre a natureza da realidade. O que essa realidade oculta? Qual a sua relao com o mundo sensorial? possvel reunir o oculto e o manifesto em uma formulao inteligvel? A essas questes, formuladas na introduo do texto, somam-se muitas outras: Que papel tem o observador nesse novo e desconcertante mundo? ainda possvel falar em representaes palpveis da realidade objetiva? Os objetos atmicos tm ou no realidade fsica independente dos seres humanos e de suas observaes? Pode-se estender ao nvel atmico a objetividade e o determinismo da fsica clssica?

    Referncias Bibliogrficas

    BACHELARD, G. O novo esprito cientfico. Lisboa: Edies 70, 1986. BOHR, N. Sobre a constituio de tomos e molculas. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1989. DE BROGLIE, L. O futuro da fsica. In: Para alm da cincia.... Porto: Livraria Tavares Martins, 1958. FEYNMAN, R. O que uma lei fsica? Lisboa: Gradiva, 1989. HEISENBERG, W. A parte e o todo: encontros e conversas sobre fsica, filosofia, religio e poltica. Rio de Janeiro: Contra-ponto, 1996. HEISENBERG, W. A imagem da natureza na fsica moderna. Lisboa: Edio Livros do Brasil, 1980. MALIN, S. A natureza ama esconder-se. So Paulo: Editora, 2003.

    14 MALIN, 2003. 15 Autoridade em mecnica quntica, relatividade geral e cosmologia, e filosofia.

  • Introduo

    8

    PLANCK, M. Autobiografa cientfica y ltimos escritos. Madrid: Nivola Libros Ediciones, 2000. SCHRDINGER, E. A natureza e os gregos seguido de cincia e humanismo. Lisboa: Edies 70, 2003.

  • Captulo 1 Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

  • 1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

    10

    1.1 Introduo Ao se reportar a seus primeiros questionamentos fsica atmica, quando estudante,

    Werner Heisenberg (1901-1976) reitera a sua forte insatisfao em relao forma como o autor de um de seus livros-texto de fsica fazia a representao de uma molcula de dixido de car-bono: ganchos e colchetes prendiam dois tomos de oxignio a um tomo de carbono.

    Para Heisenberg1

    O estgio ainda muito incipiente da fsica atmica no comeo do sculo passado, fez com que o autor do texto recorresse a um modelo mecnico bastante simples para enfatizar, pela fora das imagens, que, na molcula de dixido de carbono, a natureza liga dois (e no trs ou mais) tomos de oxignio a um de carbono.

    , ganchos e colchetes eram estruturas arbitrrias, cujas formas podiam ser alteradas ao bel-prazer de cada um, de modo a adapt-los a diferentes utilidades. No entanto, os tomos e suas combinaes em molculas deveriam ser regidos por rigorosas leis naturais. Isso, evidentemente, no deixava margem alguma para invenes humanas, como ganchos e colchetes.

    evidente que nem todas as aes didticas que visam facilitar a compreenso e o aprendi-zado do estudante so bem sucedidas. Nesse caso particular, o autor do texto no poderia imagi-nar que estaria ilustrando, a um dos formuladores da teoria quntica, as imensas e incontornveis dificuldades de importar imagens do mundo clssico para o domnio microscpico.

    De qualquer modo, naquele momento, a semente da dvida se instalava no pensamento de Heisenberg. A busca por respostas, se no definitivas, remete-o ao estudo das origens histricas do atomismo.

    Certamente, h muitas perguntas que o estudante de hoje pode se fazer sobre o conceito ou a idia de tomo, algumas delas, talvez, compartilhando preocupaes manifestadas por Heisenberg. Assim, qual a origem desse conceito e o que visava explicar, quando foi formulado pela primeira vez? Como essa idia se disseminou e se modificou ao longo do tempo? Que resis-tncias enfrentou? Que influncias sofreu e exerceu com a mudana de mtodo na cincia? At que ponto se pode fazer, sem contradies, uma imagem clssica do tomo, associando-o, por exemplo, a esferas ou elipsides? O tomo real?

    O presente captulo explora essas e outras importantes questes, abordando contedos rela-tivos ao atomismo em um extenso perodo da histria do pensamento cientfico. Inicia procurando mostrar como se estabeleceram as primeiras tentativas de compreender o visvel, a partir do invisvel, entre os gregos antigos. Examina a seguir, no mbito da fsica, em que contexto se desenvolve a retomada do atomismo a partir do sculo XVII. Algumas consideraes sobre a alquimia rabe e a alquimia medieval europia desencadeiam discusses sobre a ascenso e queda do flogstico, um conceito que origina uma srie de estudos, na qumica, que vo ressaltar

    1 HEISENBERG, 1996, p. 10.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    11

    a natureza atmica da matria. Finaliza com um contraste entre o tomo grego e o tomo de Dalton, advertindo sobre a inaplicabilidade do conceito de precursor histrico.

    O fascnio que o tomo exerce sobre o pensamento cientfico parece bem expresso por James C. Maxwell (1831- 1879), no final do sculo XIX:

    Ainda que com o passar dos tempos tenham ocorrido catstrofes, e talvez possam ainda ocorrer nos cus,

    ainda que sistemas antigos possam ter sido dissolvidos e novos sistemas possam emergir de suas runas,

    as molculas [isto , os tomos!] de que se compem estes sistemas [a Terra e todo o sistema solar] as

    pedras fundamentais do universo material permanecem intactas e frias. Continuam hoje como foram

    criadas perfeitas em nmero, medida e peso (...).2

    e por Richard P. Feynman (1918-1988), quando diz que: Se, em algum cataclisma, todo o conhecimento cientfico fosse destrudo e apenas uma sentena fosse

    passada adiante s geraes seguintes de criaturas, que enunciado conteria a maior quantidade de

    informaes com o menor nmero de palavras? Acredito que seria a hiptese atmica (ou o fato atmico,

    ou como quiser cham-lo) de que todas as coisas compem-se de tomos.3

    1.2 A substncia e a forma na composio de todas as coisas A teoria atmica da matria mais uma notvel inveno grega. A idia de que a matria constituda por tomos, isto , por corpsculos indivisveis, foi

    estabelecida por Leucipo de Mileto (460-370 a.C.) e desenvolvida por Demcrito de Abdera (470-380 a.C.). O aparecimento dessa concepo parte integrante de uma cultura cientfica que, desde o sculo VI a.C., com Thales de Mileto (640-562 a.C.), comea a dar os primeiros passos na tentativa de compreender racionalmente o mundo natural.4

    De que o mundo feito? a pergunta que orienta os estudos dos primeiros filsofos gre-gos, que comeam a buscar respostas que no mais admitem conjeturas associadas a mitos, ma-gias e supersties.

    Para Thales, a matria primitiva da qual se originam todas as coisas a gua. Sem gua no h vida nos mundos vegetal e animal. Essa dependncia refora as convices tericas de Thales, que tambm v no mundo inanimado diferentes manifestaes desse elemento, por exem-plo, a neve, o gelo, o ar (mido) e o vapor (constituinte das nuvens).

    Anaximandro (611-545 a.C), tambm de Mileto, discorda de Thales. A gua no pode ex-plicar a poeira, pois as qualidades de mido e seco so opostas. Esses opostos, supe ele, devem ter se diferenciado a partir de uma mesma substncia, esta sim, origem de tudo. No conseguindo 2 MAXWELL apud PAIS, 1995, p. 93. 3 FEYNMAN, 1995, p. 39. 4 Mileto uma das cidades gregas localizada na Jnia, sudoeste da atual Turquia. As bases de uma nova forma de conhecimento que a comea a se estruturar logo se espalham para outras cidades gregas, em ilhas do mar Egeu e continente (particularmente na Itlia).

  • 1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

    12

    identificar que substncia esta, ele a designa pelo nome de apeiron, que significa indeterminado. a partir do apeiron, por processos ainda desconhecidos, que a natureza exibe suas formas e fe-nmenos.

    Segundo Anaxmenes (585-528 a.C.), outro grande filsofo milesiano, tudo ar, em dife-rentes graus de compactao. Quer dizer, a maior ou menor rarefao ou condensao desse elemento que explica a diversidade das coisas. Assim, o fogo ar muito rarefeito; a nuvem, a gua e a terra, em suas distintas formas, isto , os slidos, resultam, respectivamente, da progres-siva condensao desse elemento.

    A infinita diversidade das coisas e dos fenmenos talvez esconda, em sua essncia, um ele-mento nico estruturador de tudo, admite inicialmente Herclito de feso (576 - 480 a.C.). No entanto, a concepo da prpria natureza dessa substncia, imutvel em si mesma, constitui, em sua viso, um contra-senso com o dinamismo das transformaes e dos processos existentes no mundo material. Por isso, Herclito elege o fogo, ao mesmo tempo matria e fora motriz5

    O fogo de Herclito no uma chama material; muito menos um tijolo fundamental da natureza. , sob muitos aspectos, um conceito semelhante moderna energia.

    , como um elemento smbolo de todo esse dinamismo.

    De acordo com o filsofo jnio Xenfanes de Clofon (570-460 a.C), a origem de todas as coisas, o elemento primordial do Universo, a terra.

    Empdocles de Agrigento (492-432 a.C.) rompe com o monismo dos primeiros filsofos. A natureza complexa demais para ser explicada pelas transformaes de uma nica substncia. A terra, a gua, o ar e o fogo, combinados entre si e em percentuais variados, so as razes ltimas, os constituintes fundamentais de tudo o que existe.

    Alm dessa proposio inovadora dos quatro elementos, que ser mais adiante retomada por Aristteles de Estagira (384-322 a.C.) para explicar a composio dos objetos terrestres (mas no celestes)6, Empdocles considera que todos os fenmenos (como o movimento e a agrega-o/desagregao da matria) ocorrem pela ao de duas foras bsicas da natureza: a fora amor (atrao), que aproxima os diversos elementos e a fora dio (repulso), que os separa. Assim, em seu modo potico e qualitativo, Empdocles o primeiro a postular a realidade das causas no mundo fsico e a identific-las com foras7

    Em um de seus poemas, Empdocles enaltece a figura de um homem de extraordinrios co-nhecimentos, que sabia mais do que era possvel a algum aprender em dez ou vinte vidas. Esse

    . Para a cincia jnica, o movimento e as transformaes da matria primordial so atributos inerentes a esta matria, o que dispensa a an-lise causal de qualquer evento.

    5 HEISENBERG, 1995, p.52. 6 PEDUZZI, 1996. 7 SAMBURSKY, 1990, p. 39.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    13

    filsofo Pitgoras de Samos (570-497 a.C.), fundador de uma escola de pensamento com bases filosficas inteiramente diferentes da escola materialista de Mileto.

    Fig. 1.1 - Pitgoras, em detalhe do afresco A escola de Atenas, de Rafael.8

    Como os milesianos, Pitgoras acredita na existncia de uma matria primordial, mas no se ocupa em especular que substncia essa. O mundo, para ele e seus seguidores, governado pelos nmeros.

    Os nmeros constituam o verdadeiro elemento de que era feito o mundo. Chamavam Um ao ponto, Dois

    linha, Trs superfcie e Quatro ao slido, de acordo com o nmero mnimo de pontos necessrios para

    definir cada uma dessas dimenses. Os pontos se somavam para formar as linhas; as linhas, por sua vez,

    para formar superfcies; e estas para formar os volumes. A partir de Um, Dois, Trs e Quatro podiam

    construir o mundo.9

    As diferenas entre as diversas espcies de coisas devem ser buscadas na forma, nas distin-tas estruturas geomtricas dos corpos, determinadas pelos nmeros. A nfase deslocada da ma-tria [que afinal de contas comum a todas as coisas] para a forma. A estrutura a realidade fundamental, e esta estrutura pode ser expressa numericamente, em termos de quantidade10

    Apesar de indissociveis, a relao nmero-objeto no implica que os pitagricos conce-bam os corpos como um conglomerado de pontos materiais. Os nmeros irracionais impedem qualquer especulao nesse sentido, j que no podem ser escritos como nenhuma combinao de nmeros inteiros. A incomensurabilidade entre o lado e a diagonal do quadrado ilustra isso

    .

    11

    Assim, seja .

    l o lado de um quadrado de diagonal d . De acordo com o teorema de Pitgoras, 8 http://www.martin-rembeck.de/html/body_harmonie.html 9 FARRINGTON, 1961, p. 37. 10 GUTHRIE, 1987, p. 36. 11 BASTOS FILHO, 2003.

  • 1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

    14

    , 222 lld +=

    . 2 22 ld = ( 1 ) Sendo m e n dois nmeros inteiros e admitindo-se, por hiptese, que a razo entre d e

    l possa ser expressa pela razo entre esses nmeros, tem-se que

    . nm

    ld

    = ( 2 )

    De ( 2 ) em ( 1 ), resulta

    , 2 22=

    nm

    . 2 22 nm = ( 3 )

    Segundo a relao ( 3 ), 2m par, e m par. Como nm irredutvel, ento n deve ser

    um nmero inteiro mpar. Seja b a metade de m , isto ,

    . 2

    mb = ( 4 ) De ( 4 ) em ( 3 ), segue que

    , 2 4 22 nb =

    . 2 22 bn = ( 5 ) Conforme ( 5 ), 2n par. Por conseguinte, n deve ser um nmero inteiro par. As relaes ( 3 ) e ( 5 ) envolvem uma contradio, pois um mesmo nmero, n , no pode

    ser par e mpar. Assim, a razo entre a diagonal e o lado do quadrado, 2 , no pode ser expressa como a razo entre dois nmeros inteiros.

    Como ir frizar mais tarde Aristteles, os pontos dos pitagricos no tinham peso ou nenhum outro atributo fsico.12

    Pitgoras, na verdade, um filsofo envolvido em grandes mistrios. No deixou nada escrito. O mito que se criou em torno da sua pessoa, juntamente com o voto de silncio que proibia aos pitagricos divulgarem os ensinamentos de seu mestre, impede uma distino clara entre o que ele realmente descobriu e o que foi descoberto por seus seguidores. Dizia-se que os pitagricos eram mais admirados por seu silncio do que os mais famosos oradores por seus discursos

    13

    12 GORMAN, 1989, p. 157.

    . De fato, os conhecimentos desenvolvidos pelos membros dessa comunidade s vie-

    13 RUTHERFORD, 1991, p. 12.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    15

    ram a pblico quase cem anos depois da morte de Pitgoras. De qualquer modo, a principal con-tribuio dessa escola filosfica, no campo cientfico, foi a tentativa que fizeram de matematizar a natureza.

    A simetria de certas figuras da geometria plana, como o crculo, o tringulo equiltero e o quadrado, entre outras, chamava a ateno dos pitagricos. A geometria espacial certamente no poderia prescindir do arranjo regular e simtrico das formas, da beleza. Guiados por esse senti-mento, identificaram os cinco poliedros regulares: o cubo, o tetraedro, o octaedro, o dodecaedro e o icosaedro.

    levado igualmente por consideraes de simetria e beleza que Pitgoras formula a hiptese de ser a Terra um corpo esfrico. Para Thales e Anaxmenes ela era plana; segundo Anaximandro, cilndrica. 1.3 O atomismo

    De acordo com Leucipo e Demcrito, a matria no contnua. Ela constituda de germes eternos, minsculas partculas duras, indestrutveis, inacessveis ao olho humano. Por conceb-las como as menores subdivises possveis da matria, foram chamadas de tomos.

    Fig. 1.2 - Imagem artstica de Demcrito14

    .

    Sob a ao de foras da mais diversa natureza, a matria se desagrega, dissolve-se, despedaa-se, mas os seus elementos bsicos permanecem inclumes, pois nada pode voltar ao nada. Como nada pode surgir do nada, so novas associaes desses germes que vo constituir novos corpos. desse modo que a natureza opera, refazendo os corpos uns a partir dos outros, sem a interveno de deuses.

    No por certo em virtude de um plano determinado nem por um esprito sagaz que os tomos se

    juntaram segundo uma certa ordem; tambm no combinaram entre si com exatido os movimentos que

    14 http://www.archaeonia.com/philosophy/presocratics/democritus.htm

  • 1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

    16

    teriam; mas, depois de terem sido mudados de mil modos diferentes atravs de toda a imensidade, depois

    de terem sofrido pelos tempos eternos toda a espcie de choques, depois de terem experimentado todos

    os movimentos e combinaes possveis, chegaram finalmente a disposies tais que foi possvel o

    constituir-se tudo o que existe. E por assim se terem conservado durante muitos anos, uma vez chegados

    aos devidos movimentos, que os rios saciam o vido mar com suas grandes guas, que a Terra, aquecida

    pelo vapor do Sol, renova as suas produes, e florescem todas as raas de seres vivos, e se sustentam os

    fogos errantes pelo cu.15

    Os tomos de Demcrito so todos feitos de uma mesma substncia. Diferem em tamanho, forma, movimentos e arranjos geomtricos, sendo a diversidade de todas as coisas explicadas por essas diferenas.

    Desse modo, a maior ou menor rigidez de um slido est associada ao grau de compac-tamento dos tomos que o constituem. Por exemplo, h muito mais espaos vazios entre os to-mos de um objeto flexvel do que os existentes em um corpo rgido, como uma pedra, os quais se encontram fortemente agrupados. Por esse motivo, esses objetos respondem de forma diferente quando submetidos ao de uma mesma fora ou agente deformador: h uma variao significa-tiva de volume no corpo flexvel, mas no na pedra, que mantm sua forma inalterada.

    A fim de explicar o contraste entre o sabor doce, amargo ou azedo das coisas, os atomistas gregos apelavam para a forma diversificada dos tomos. Enquanto tomos lisos e arredondados eram responsveis pela agradvel sensao do doce, ao paladar, tomos de forma irregular, ponti-agudos, que podiam produzir at mesmo pequenas escoriaes na lngua, eram a causa do gosto de azedo ou de amargo de certas coisas. De fato,

    (...) no h nenhuma razo para supor que a sensao do doce seja produzida por tomos lisos, nem a de

    picante por tomos pontiagudos. Alis, isto no faz qualquer sentido em nossa fsica. Mas a imagem em

    si que interessante, porque nos fez compreender o tipo de raciocnio e de explicao que se podia ento

    encontrar16 .

    Tambm os sons agradveis, como os das fontes dgua, ou os que os msicos com maestria extraem de seus instrumentos, so compostos por tomos arredondados, que contrastam com os de forma irregular, origem de sons estridentes, desafinados, que ferem os ouvidos.

    O fogo dos raios, formado por tomos pequenos, capazes de atravessar diminutos poros da matria, muito mais penetrante do que o fogo comum das tochas, de tomos muito maiores.

    Se a gua flui com facilidade, sob o menor constrangimento, porque formada por elementos pequenos e rolantes. O mel, de natureza mais espessa e de movimento mais lento, nas mesmas condies, no pode reunir tomos to redondos e lisos. J a luz, constituda por tomos muitssimo finos, arredondados, velozes e sutis.

    15 LUCRCIO CARO, 1962, p. 74. 16 LENOBLE, 1990, p.327.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    17

    A filosofia atomista no restringe as suas explicaes matria inorgnica. So os fenmenos do mundo natural, em seu todo, incluindo aspectos relativos prpria vida, que ela almeja elucidar.

    Quase dois mil e quinhentos anos depois, em um discurso proferido na reunio de abertura do Congresso Internacional sobre Terapia atravs da Luz, realizado na cidade de Copenhague, em 1932, Niels Bohr (1885-1962), um dos fundadores da mecnica quntica, mostra a atualidade dessa concepo. Ressaltando as diferenas e especificidades prprias da pesquisa realizada em fsica e em biologia e que irracional qualquer pressuposto que aluda biologia algum tipo de lei especial que seja incompatvel com as regularidades fsico-qumicas j estabelecidas, ele diz que:

    As maravilhosas caractersticas constantemente reveladas nas investigaes fisiolgicas, e que diferem

    to marcantemente do que se conhece sobre a matria inorgnica, levaram os bilogos a crer que

    nenhuma compreenso adequada dos aspectos essenciais da vida possvel em termos puramente fsicos.

    Por outro lado, dificilmente se poderia dar uma expresso inambgua viso conhecida como vitalismo,

    que parte do pressuposto de que uma fora vital peculiar, desconhecida dos fsicos, rege toda a vida

    orgnica. Na verdade, penso que todos concordamos com Newton em que o fundamento ltimo da

    cincia a expectativa de que a natureza exiba efeitos idnticos em condies idnticas. Portanto, se pu-

    dermos avanar tanto na anlise dos mecanismos dos organismos vivos quanto na dos fenmenos

    atmicos, no deveremos esperar descobrir nenhuma caracterstica alheia matria inorgnica.17

    A cinemtica atomista pressupe a existncia do vazio, da ausncia de matria, do nada. Contudo, como ressalta Aristteles no Livro IV da Fsica: A concluso do movimento a partir do vazio no de modo algum necessria... Ele no , de maneira alguma, condio absoluta de todo movimento... E isso se v principalmente no turbilho das coisas contnuas, nos lquidos, por exemplo18

    Alm disso, argumenta Aristteles, a prpria noo de tomo incompatvel com a lgica que admite a diviso da matria em quantidades cada vez menores, pois por que haveria este processo de se deter em algum ponto?

    . O deslocamento de um peixe na gua ilustra o movimento de um corpo slido em um meio contnuo.

    Uma analogia com a geometria permite um melhor entendimento dessa objeo aristotlica. Assim,

    (...) se, por exemplo, divide-se uma linha em partes cada vez menores podemos perguntar se a menor

    parte obtida ainda uma linha, uma linha indivisvel ou tomo linha. Se a resposta afirmativa, a

    objeo imediata: por que, ento, esta pequenssima linha no vai seguir sendo divisvel? Tal como no

    caso do tomo fsico, no h nada que se oponha a isto. E da mesma forma que no caso do atomismo

    fsico, se incorre em uma contradio, a menos que no se queira admitir que uma linha possa dividir-se

    17 BOHR, 1995, p. 12-13. 18 ARISTTELES apud DUVERNOY, 1993, p. 34.

  • 1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

    18

    infinitamente. Mas neste caso o indivisvel componente ltimo da linha no pode ser, por motivos

    evidentes, uma linha.19

    O ponto, uma nova entidade, esse indivisvel, sendo uma linha uma sucesso infinita des-ses elementos. Ento, as dificuldades em se conceber um componente ltimo da matria seriam incontornveis, pois essa clula no poderia ser nada material.

    Mesmo frente s restries da filosofia natural aristotlica que, hegemnica, estrutura-se como um poderoso corpo de conhecimentos que no admite a existncia do vazio e que atribui diferentes realidades fsicas aos domnios terrestre e celeste (o primeiro corruptvel e sujeito a todo tipo de transformao; o ltimo inaltervel e perfeito, em funo do elemento que compe todas as coisas a existentes o ter), o atomismo aceito e adotado por muitos filsofos, como Epicuro (341-270 a.C).

    Epicuro diverge de Demcrito ao dotar os tomos de peso, entendido como uma presso exercida pela matria de cima para baixo. Com isso, os epicuristas podem explicar porque algumas coisas pesam mais do que outras, com as mesmas dimenses. Como o vazio no tem peso, o que mais leve possui mais espao e menos matria em seu interior; j o mais pesado tem mais matria e menos espao vazio, internamente.

    O peso explica o fenmeno da queda. Ele privilegia uma direo (a vertical) e um sentido (de cima para baixo), polarizando o espao. Isso no considerado no atomismo de Demcrito, para quem os tomos se movimentam em um espao homogneo (igual em qualquer de suas par-tes) e isotrpico (sem direes preferenciais). Como no h interao distncia entre os tomos, somente processos envolvendo a coliso entre eles so capazes de alterar as suas configuraes (ou estados, como vai-se dizer a partir de Ren Descartes (1596-1650) e Isaac Newton (1642-1727)) de repouso e de movimento. , de fato, apenas com a fora de atrao gravitacional newtoniana que a noo de um espao isotrpico vai se harmonizar com a de sua polarizao se-gundo determinadas direes.20

    As idias difundidas pelos atomistas extrapolam os domnios restritos do conhecimento ci-entfico, apresentando impactos significativos no campo social, poltico e econmico. Assim, com base no atomismo que Epicuro nega uma srie de conceitos e valores mantidos pelos esticos

    21

    19 FESTA, 2001, p. 81-96.

    , como a imortalidade da alma, as crenas em adivinhaes e em pressgios. Para Epicuro, o estudo dos fenmenos naturais podia libertar os humanos das supersties e de toda a forma de medo.

    20 DUVERNOY, 1993, p. 49. 21 Fundado por Zeno de Ccio (336-264 a.C.), o estoicismo doutrina contempornea e rival do epicurismo. Por exemplo, os esticos acreditavam na existncia de um fluido com propriedades anlogas mistura de ar e fogo, o pneuma, que penetra todos os corpos e preenche os espaos entre eles. A cosmologia estica no admite a existncia do vazio no Universo dos fenmenos naturais. A rigor, h vazio fora do mundo, j que concebiam o mundo enquanto conjunto de corpos como finito e envolto por um vazio que se estende indefinidamente. (ABRANTES, 1990)

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    19

    Conforme ressalta o historiador S. Sambursky22

    As conjeturas dos principais artfices da estrutura corpuscular da matria, que geram expli-caes plausveis, ao menos em tese, para uma ampla gama de fenmenos fsicos, compem uma viso de mundo que concebe o Universo, como um todo, constitudo de tomos e de vazio.

    , o estudo das nuances e dos contrastes do atomismo de Leucipo, Demcrito e Epicuro constituem um valioso indicativo do desenvolvi-mento interno de uma teoria cientfica. Contudo, o ncleo duro (os pressupostos fundamentais) da teoria atmica , essencialmente, o mesmo para os atomistas em geral.

    O que se poderia designar por lei da conservao da matria, (nada pode ser criado do nada e nem qualquer coisa pode ser destruda ou reduzida a nada, como afirma Demcrito) res-salta a indestrutibilidade de seu componente fundamental, em clara oposio aos que advogam a divisibilidade infinita das coisas.

    O Universo infinito em extenso, como infinito o nmero de tomos. Essas duas com-plexas noes comportam duas hipteses mutuamente excludentes: a de um Universo cheio, com os tomos ocupando todo o espao disponvel, e a de um Universo com um espao excedente em relao matria que ele encerra. por esta ltima que optam os que simpatizam com a essncia das idias de Leucipo, Demcrito e Epicuro.

    O atomismo imortalizado no De rerum natura do poeta romano Tito Lucrcio Caro (95-55 a.C.). Redigido de forma didtica, ele um verdadeiro tratado de fsica.23

    Mas o poema de Lucrcio, luz da filosofia epicrea, transcende cincia fsica. O ato-mismo enseja aos leitores a idia de que todos os fenmenos possuem uma causa fsica, centrada exclusivamente na matria e no movimento. Todas as coisas so constitudas por tomos, inclusive a alma. A morte simples desagregao, disperso da matria de um sistema complexo de tomos, como a de um objeto que se fragmenta em infindveis partes. A eternidade pertence ao tomo e no alma.

    Por que, ento, temer a morte, se ela parte de um processo natural? Ou o castigo eterno ao esprito rebelde, independente, que no admite a interveno de deuses nos fenmenos naturais e na vida dos homens? As trevas a temer so as da ignorncia, que assola os espritos aco-modados. No so os raios do sol, nem os dardos luminosos do dia que vo dissip-las, mas os fenmenos da natureza e sua explicao.

    Toda a natureza constituda por duas coisas: existem os tomos e existe o vazio em que se acham

    colocados.24

    Aos que se mostram cticos quanto existncia desse constituinte elementar da matria, por no ser detectado pela viso humana, Lucrcio faz uso de uma analogia com o vento, para

    22 SAMBURSKY, 1990, p. 132. 23 LUCRCIO CARO, 1962. 24 Id, p. 63.

  • 1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

    20

    mostrar que este tambm possui partculas que no podem ser vistas, mas das quais ningum nega a existncia, pela ao muitas vezes destruidora que exibem.

    Talvez, no entanto, voc esteja colocando em dvida as minhas palavras, porque esses meus tomos no

    so visveis a olho nu. Considere, portanto, a prova maior dos corpos cuja existncia voc h de reconhe-

    cer, embora no possam ser vistos. Primeiro, o vento, quando a sua fora aumenta, aoita as ondas, pe a

    pique barcos a vela e dispersa formaes de nuvens. s vezes assolando as plancies com intensidade

    devastadora, deixa por elas espalhadas enormes rvores e bombardeia os picos montanhosos com rajadas

    que derrubam florestas. Assim o vento em sua fria, quando d seu grito de guerra trazendo nele uma

    louca ameaa. Sem dvida, portanto, devem haver partculas invisveis de vento que varrem o mar, a terra

    e as nuvens no cu, investindo contra eles e os turbilhonando em um impetuoso tormento. Quanto ao

    modo como fluem e devastao que causam, eles em nada diferem de uma enchente torrencial quando a

    gua desce repentinamente pelas encostas das montanhas causando inundao, provocada por pesadas

    chuvas, e amontoa escombros das florestas e rvores inteiras. Embora mole por natureza, o choque

    repentino da gua que se aproxima maior do que at a mais robusta das pontes pode agentar, to

    furiosa a fora com que a trbida torrente tempestuosa se lana contra os seus pilares. Com um pode-

    roso rugido, abate-os, rolando enormes pedras sob suas ondas e desprezando todo obstculo que encontra

    pelo caminho. Esse, portanto, deve ser tambm o movimento das rajadas de vento. Quando elas vm

    avanando em seu curso como um rio impetuoso, empurram os obstculos que encontram pela frente e os

    atingem com repetidos golpes; e, s vezes, redemoinhando repetidamente, arrancam-nos e os vo levando

    em um veloz vrtice circular. Eis, portanto, prova em cima de prova de que os ventos possuem corpos

    invisveis, visto que em suas aes e em seu comportamento rivalizam com os rios, cujos corpos so

    plenamente visveis.25

    Por outro lado, se no houvesse o vazio (entre os corpos e dentro deles) tudo seria inteira-mente slido, nada poderia ser alterado, fracionado, movido. Afinal, os sons no atravessam pare-des? Como poderiam se movimentar os peixes se no existissem espaos vazios na gua? A dureza do ouro e dos outros metais no cede pelo calor que neles se infiltra, quando se liquefazem? No se tornam midas as roupas beira da costa, onde se quebram as ondas? A umidade que deixa um corpo, sob o efeito do calor, no mais uma prova da existncia de espaos vazios no interior da matria? Os exemplos se multiplicam e parecem suficientes razo.

    1.4 As formas geomtricas de Plato

    Para Plato (428-347 a.C), reduzem-se a tringulos, eqilteros e issceles, as estruturas fundamentais da natureza, pois a partir deles podem ser gerados os poliedros regulares e, com esses slidos, todas as coisas conhecidas.

    25 VON BAYER, 1994, p. 152; LUCRCIO CARO, 1962, p. 60.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    21

    Fig. 1.3 - Plato e Aristteles, em detalhe do afresco A escola de Atenas de Rafael. Com rara beleza, mostra o contraste entre duas distintas vises de mundo. Apontando para cima, Plato destaca o mundo das formas ideais (matemticas). Com a palma da mo voltada para baixo, Aristteles sinaliza a sua preocupao e seu interesse pelo mundo concreto e material.26

    Assim, com dois tringulos retngulos issceles, representa-se um quadrado; combinando-se apropriadamente seis quadrados, obtm-se um cubo. Cinco tringulos issceles formam um pentgono regular; doze pentgonos regulares compem o dodecaedro regular. Os outros trs poliedros regulares, o tetraedro, o octaedro e o icosaedro possuem faces idnticas constitudas, respectivamente, por quatro, oito e vinte tringulos equilteros.

    Desenvolvendo um raciocnio puramente matemtico, que elege a forma geomtrica como princpio orientador e diferenciador das coisas, Plato associa os elementos terra, gua, ar e fogo, de Empdocles, a poliedros regulares: atribui a forma cbica menor partcula do elemento terra (Fig. 1.4); identifica como um icosaedro a menor partcula do elemento gua (Fig. 1.5); associa o octaedro ao ar (Fig. 1.6) e o tetraedro ao fogo (Fig. 1.7). No havendo um quinto elemento para estabelecer a sua correspondncia com o dodecaedro (Fig. 1.8), Plato vincula este slido, de alguma maneira, ao Universo.

    26 http://www.educ.fc.ul.pt/icm/icm2000/icm33/plat_arist.htm

  • 1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

    22

    Fig. 1. 4 - Cubos regulares: corpsculos de terra.

    Fig. 1.5 - Icosaedros regulares: corpsculos de gua.

    Fig. 1.6 - Octaedros regulares: corpsculos de ar.

    Fig. 1.7 - Tetraedros regulares: corpsculos de fogo.

    Fig. 1.8 - Dodecaedros regulares.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    23

    Ao ler essas idias de Plato no Timeu, Heisenberg, ainda estudante, mostra-se perplexo. No se pode associar os tringulos elementares a qualquer tipo de matria, claro, pois so for-mas bidimensionais. Mas, e quanto aos poliedros regulares? Estaria o cubo apenas simbolica-mente ligado terra, como uma expresso de sua solidez, por exemplo, ou, de fato, teria uma forma cbica o menor corpsculo de terra? Conforme esclarece Heisenberg:

    Busquei um princpio que pudesse ajudar-me a encontrar alguma justificativa para a especulao

    platnica, mas, por mais que tentasse, no consegui descobrir nenhum. Mesmo assim, fiquei extasiado

    com a idia de que as partculas mais diminutas da matria devessem reduzir-se a uma forma matemtica.

    Afinal, qualquer tentativa de desenredar a densa trama dos fenmenos naturais dependia da descoberta de

    formas matemticas; contudo, continuou a ser incompreensvel para mim por que Plato escolhera os

    corpos regulares da geometria dos slidos.27

    Entre as dvidas de Heisenberg fica uma certeza, expressa em suas prprias palavras: O resultado mais importante de tudo isso talvez tenha sido a convico de que, para interpretar o mundo natural, precisvamos saber alguma coisa sobre suas partes mais diminutas.28

    uma forma matemtica, uma construo intelectual, e no efetivamente a matria que est na raiz ltima de todos os processos a partir dos quais a natureza pode ser entendida.

    A teoria de Plato sobre a estrutura da matria no uma variante da hiptese atmica de Leucipo e Demcrito. Plato no um atomista. A sua afirmativa de que, se pudesse, queimaria todos os livros dos atomistas, deixa isso claro. No entanto, mesmo que no admita, inegvel a fora da escola atomista sobre suas idias.

    Com uma perspiccia e originalidade sem precedentes, os atomistas estabeleceram como uma hiptese fundamental que os no observveis que postulamos para explicar as propriedades dos observveis no precisam, eles mesmos, ter estas propriedades29

    Plato deve ter intudo o valor cientfico dessa idia pois foi alm, muito alm, nesse mesmo caminho. Os indivisveis de sua fsica eram ainda mais distantes da experincia sensorial: eles no eram nem ao menos corpos, mas apenas superfcies de ligao de corpos...

    . Por exemplo, a divisibili-dade e a cor, atributos dos objetos acessveis percepo humana, no encontram anlogos no domnio do intangvel viso humana.

    30

    A teoria de Plato sobre a estrutura da matria no almeja reduzir, pura e simplesmente, a multiplicidade das formas indivisveis de Demcrito a quatro poliedros regulares de terra, gua, ar e fogo. Por serem indestrutveis, os tomos de Demcrito mantm inalteradas as suas formas. Isso no ocorre com os poliedros materiais de Plato.

    .

    27 HEISENBERG, 1996, p. 17. 28 Id, p. 17. 29 VLASTOS, 1987, p. 48. 30 Id, p. 49.

  • 1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

    24

    O tetraedro, o octaedro e o icosaedro podem ser decompostos nos tringulos elementares que os constituem. A reorganizao desses elementos possibilita a transformao de um tipo de matria em outro.

    Assim, por exemplo, o desmembramento de um icosaedro em trs tetraedros (trs corps-culos de fogo) e um octaedro (um corpsculo de ar) ilustra fisicamente a ebulio da gua, pois o produto desta transformao de estado ar muito quente.

    Um icosaedro desdobrado em um tetraedro e dois octaedros mostra um processo de va-porizao lenta, como a evaporao, pois, neste caso, o ar resultante contrasta com o anterior por apresentar-se apenas morno.

    As interaes entre os corpsculos materiais de Plato envolvem contato fsico direto entre eles. No h nenhuma ao distncia.

    Os corpsculos de fogo cortam os corpsculos de ar e de gua, pois os ngulos slidos dos tetraedros so menores portanto mais aguados do que os dos octaedros ou icosaedros; por razes semelhantes os corpsculos de ar cortam os corpsculos de gua. V-se, aqui, o ar se transformando em fogo e a gua se transformando em fogo ou ar ou nos dois.31

    Nas transformaes inversas, a ao de cortar substituda pela de amassar, esmagar. Isso ocorre quando uma pequena quantidade de fogo se envolve em uma massa maior de ar ou gua, ou uma pequena quantidade de ar em uma massa maior de gua; ento, a massa maior aperta e esmaga os poliedros da menor. Nesse caso, v-se fogo se transformando em ar ou em gua ou em ambos, ou ar sendo transformado em gua.

    32

    Em essncia, essas so as idias de Plato sobre a dinmica dos processos no interior da matria.

    1.5 A retomada do atomismo a partir do sculo XVII: a natureza no tem

    horror ao vazio Os tomos de Leucipo, Demcrito, Epicuro, no tm cor, sabor, cheiro. So seus movi-

    mentos, suas formas e seus arranjos espaciais que explicam essas sensaes humanas (em suas interaes com os rgos dos sentidos), as propriedades da matria, os fenmenos naturais, a imensido do cosmos.

    As limitaes do olho humano constituem obstculo instransponvel visualizao dos corpsculos indivisveis da matria, verdade. Entretanto, o modo de pensar grego, que d total liberdade ao pensamento racional e amplo valor estrutura lgica das idias, no sente falta do instrumental capaz de suprir essa deficincia. O teste da experincia controlada para o julgamento de hipteses parte de uma metodologia que a cincia s far uso a partir do sculo XVII.

    Os pressupostos tericos dos atomistas so amplamente discutidos. Com freqncia, so

    31 Id, p. 51. 32 Id, p. 55.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    25

    objetos de crticas contundentes, que geram novas e, em certos casos, inusitadas hipteses sobre a estrutura ltima da matria, como as de Plato. Porm, a proliferao de teorias, tanto sobre a es-trutura da matria quanto sobre a constituio do Universo, uma praxe natural no mundo grego ainda no acorrentado aos preceitos aristotlicos.

    Contudo, no o atomismo, mas a filosofia natural aristotlica, o sistema ptolomaico e a geometria euclidiana que a cincia grega deixa, inicialmente, como herana para as geraes que redescobrem o conhecimento grego na alta Idade Mdia.

    A noo de tomo retomada mais adiante, no sculo XVII, sob um aristotelismo agoni-zante, mas ainda sustentado pelo conservadorismo dos filsofos. As suas sementes se encontram no poema de Lucrcio que, impresso a partir da notvel descoberta de Johann Gutenberg (1397-1468), difunde amplamente a concepo atomista entre os europeus.

    Apesar das contundentes crticas filosofia natural aristotlica no mbito da fsica (com a teoria do impetus, a fsica de Galileu, a fsica de Descartes) e da astronomia (j h algum tempo, com a estruturao da teoria copernicana e, mais recentemente, com as evidncias propiciadas pelo telescpio de Galileu)33

    No entanto, no em funo apenas de contedos especficos do conhecimento que Aristteles contestado. Em seu Novum organum, publicado em 1620, Francis Bacon (1561-1626) clama por um novo mtodo na cincia. O verdadeiro conhecimento deve ser buscado na prpria natureza, luz da experincia, e no na Bblia ou nos escritos de Aristteles. Para isso, o intelecto humano deve superar as fontes de iluso cognitiva (como as limitaes dos sentidos e as generalizaes apressadas, baseadas em um nmero pequeno de casos); controlar sentimentos que precipitam supersties, geram instabilidade, impacincia, arrogncia, que voltam enfim a mente a coisas vis e efmeras que distorcem a investigao legtima; atentar para o rigor da linguagem na descrio cientfica (a fim de evitar interpretaes errneas de termos mal definidos); afastar as idias metafsicas, a especulao vazia, sem provas, que inibe o acesso verdade. O intelecto abandonado a si mesmo no capaz de sobrepujar a obscuridade das coisas. A experincia a fonte do conhecimento.

    , ela ainda continua sendo amplamente disseminada nas universi-dades europias.

    O indutivismo baconiano no aceito por Ren Descartes (1596-1650), que sustenta a pri-oridade da razo sobre o experimento, o racionalismo ao empirismo. A intuio clara, advinda de um comprometimento com a busca da verdade, que permite a formulao de enunciados de vali-dade indiscutvel, e a deduo, que leva a previses e explicaes que possibilitam o confronto com os fatos, so aspectos essenciais de sua filosofia. Para Descartes, a experimentao tem, fun-damentalmente, o papel de corroborar teorias.

    De qualquer modo, importa ressaltar que Bacon acredita em uma renovao do conheci-mento. Ele defende o carter coletivo da investigao cientfica, que no se deve restringir es- 33 PEDUZZI, 1998.

  • 1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

    26

    fera das mentes privilegiadas. Clama por uma cincia utilitarista, pelo domnio da natureza pelo homem.

    Para abalar a hegemonia do aristotelismo cristalizado e dogmatizado nas universidades, Bacon prope a criao de Sociedades Cientficas, tendo exercido grande influncia na fundao da Royal Society, em 1660. Por muito tempo, essa sociedade s aceitou discutir trabalhos de natureza emprica.

    nesse contexto histrico, que antecede a revoluo newtoniana, que Pierre Gassendi (1592-1655) lana novas contestaes a Aristteles. Os experimentos de Evangelista Torricelli (1608-1647), Blaise Pascal (1623-1662) e Otto von Guericke (1602-1686), sobre a presso do ar, reforam as convices de Gassendi sobre a presena do vazio na natureza.

    Em 1644, Torricelli demonstra a existncia da presso atmosfrica, e que o vazio pode ser produzido experimentalmente. Em sua mais famosa experincia, que prima pela simplicidade, vale-se de um recipiente aberto, contendo mercrio, e de um longo e estreito tubo de vidro. Preenchendo este tubo com mercrio e fechando a sua extremidade livre com o dedo, mergulha-o invertido no mercrio do recipiente. Desbloqueando a extremidade fechada, constata que o nvel da coluna lquida baixa at atingir uma altura de aproximadamente 76 cm em relao superfcie livre do metal lquido. Essa altura, que no depende do dimetro e nem do comprimento do tubo (Fig. 1.9 e 1.10), apresenta pequenas variaes em funo das condies climticas.

    Fig. 1.9 - A presso do ar sobre o mercrio do recipiente a causa da elevao do mercrio no tubo de vidro. A altura da coluna lquida no depende nem do comprimento e nem do dimetro do tubo.34

    34 http://galileo.imss.firenze.it/vuoto/index.html

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    27

    Fig. 1.10 - O barmetro de Torricelli, em uma reunio da Accademia del Cimento (Academia de Experimentos), na cidade de Florena (quadro de Gasparo Martellini). Entre 1657 e 1667, perodo de sua existncia, foi local de apresentao e discusso de trabalhos experimentais. Os estudos sobre a presso atmosfrica e o vazio refutavam a tese aristotlica da averso da natureza ao vazio.35

    Os resultados de Torricelli evidenciam que: a) o ar tem peso e por isso exerce uma presso (entendida como a fora que atua

    perpendicularmente a uma superfcie pela rea dessa superfcie) sobre a superfcie livre do mercrio. essa presso que equilibra a presso exercida pela coluna lquida sobre a sua base;

    b) o vazio existe, pois (desconsiderando-se os vapores de mercrio) no parece haver re-sduo de nada na parte superior do tubo com a descida do mercrio que havia nesse espao.

    Persuadido da importncia dos estudos de Torricelli, depois de reproduzir os seus expe-rimentos com mercrio e outras substncias e observar que a altura no se modificava com a inclinao dos tubos, Pascal concebe, em 1648, um experimento para comprovar a diminuio da presso atmosfrica com a altitude. Levando um barmetro de Torricelli ao Puy de Dome, um de seus assistentes constata uma diferena significativa entre os comprimentos da coluna de mercrio no alto e na base dessa elevao de 1500 m. Isso, naturalmente, ocorre porque, ao nvel do solo, maior a quantidade de ar sobre o mercrio do recipiente. Sendo maior a presso, mais se eleva o metal lquido no tubo (a altura de cm 76 , ao nvel do mar, a C 0 0 e a uma latitude de

    045 ). Os experimentos de Torricelli e Pascal suscitam uma importante crtica filosofia meca-

    nicista de Descartes, que nega a existncia do vazio. Para Descartes, todos os fenmenos na natu- 35 Id.

  • 1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

    28

    reza devem ser explicados pelas leis da matria em movimento, do choque entre partculas. O universo pleno, cheio.

    A partir da construo e do aperfeioamento de vrios dispositivos para a produo do va-zio, von Guericke desenvolve uma experincia que se tornou famosa na histria da fsica, por sua originalidade e dramatizao. Realizada na cidade alem de Magdeburgo, em 1654, ela destaca a magnitude da presso atmosfrica.

    Justapondo os dois hemisfrios de uma esfera de bronze oca, com um dimetro aproxi-mado de cm 50 , von Guericke extrai o ar de seu interior com uma bomba de vcuo. Assim, estabelece-se uma diferena de presso entre as superfcies interna e externa do slido. Aos gan-chos, fortemente incrustrados em cada uma das semiesferas, ele atrela cordas, que so puxadas em sentidos opostos por conjuntos de oito cavalos (Fig. 1.11). Aoitados, apenas depois de muito esforo que os animais conseguem separar os dois hemisfrios.

    Como a rejeio ao atomismo, particularmente pelos aristotlicos, assenta-se, fundamen-talmente, na no aceitao da existncia do vazio, no parece haver dvidas a Gassendi de que os tomos e o vazio dos atomistas esto na raiz de todas as explicaes cientficas.

    Ningum apresentou a concepo atmica com tanta veemncia e perseverana quanto Gassendi. Mas sua fsica qualitativa e, quando postula a existncia de tomos de luz, tomos sonoros, tomos do quente, tomos do frio para explicar a produo das qualidades sensveis, suas idias no ultrapassam o campo da especulao.36

    Fig. 1.11 - A experincia dos hemisfrios de Magdeburgo, em uma ilustrao extrada do texto Mechanica hydraulico-pneumatica, de Gaspar Schott (1657)37

    36 KOYR, 1982, p. 310.

    37 http://www.imss.fi.it/vuoto/iesper4.html#

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    29

    Robert Boyle (1627-1691), que tambm se mostra um partidrio do atomismo quando de-

    senvolve estudos em fsica, traz novas evidncias de que o ar tem peso e que exerce presso. Em uma de suas investigaes, ele coloca o barmetro de Torricelli em um compartimento fechado, conectado a uma bomba de vcuo. medida que extrai o ar de seu interior, constata que a altura da coluna de mercrio diminui, at igualar-se ao nvel de mercrio do reservatrio. A adio de ar ao compartimento causa de uma nova elevao do mercrio. Esse resultado mostra mais uma refutao tese aristotlica de que a natureza tem horror ao vazio, j que exclui a hiptese de ser o prprio vazio da parte superior do tubo, na sua nsia de ser preenchido, a causa da elevao do lquido no barmetro.

    Ao procurar entender o porqu da presso de um gs variar na razo inversa de seu vo-lume, Boyle examina duas distintas hipteses sobre a estrutura interna da matria. Desse modo, se as partculas que compem um gs esto em repouso e em permanente contato umas com as ou-tras, ento, para responder pela grande compressibilidade dos gases, elas devem se assemelhar a algo como diminutas molas imveis. Se, por outro lado, os corpsculos que constituem o gs no esto sempre em contato, mas em um estado de constante agitao, deslocando-se ao acaso, a coliso dessas partculas contra as paredes do recipiente a causa da presso do gs.

    Entre os dois modelos, o esttico no explica a propriedade de expanso dos gases, pois difcil admitir que as dimenses das partculas ou tomos-mola constituidoras do gs possam crescer indefinidamente. Por essa razo, alguns defensores desse modelo sugeriram haver foras de repulso entre as partculas que, assim, no precisariam variar significativamente as suas dimenses (uma anlise das implicaes desta ltima hiptese no relevante aos objetivos da presente seo, e no ser aqui desenvolvida).

    Mas, se o atomismo de Boyle explica a reduo do volume de um gs pela diminuio do espao vazio existente entre as partculas que o compem, o mesmo no se verifica em relao aos slidos e lquidos. Nesse caso, admitir-se que ambos sejam compostos por tomos ou por uma substncia contnua parece, em princpio, indiferente, dada a dificuldade de comprimi-los em qualquer das hipteses que se adote.

    Por outro lado, considerar a evaporao ou a ebulio da gua como resultado de um pro-cesso do qual se desprendem do lquido pequenas partculas, no parece ser uma hiptese desca-bida. O vapor resultante da ebulio, por exemplo, mostra semelhanas com o ar. Sendo o ar composto por tomos, lcito supor que o vapor dgua tambm o seja, assim como o lquido do qual se originaram essas partculas. E se a gua composta por tomos, sua forma slida, o gelo, tambm dever ser, situando-se as diferenas existentes entre os trs estados na maior ou menor liberdade de movimento de seus constituintes. Finalmente, a pertinncia dessas observaes em relao gua permite a sua extenso a qualquer corpo ou substncia, reafirmando a constituio corpuscular da matria, em geral.

  • 1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

    30

    O fato que, independentemente dessas ltimas consideraes, que aumentam o nmero de adeses ao atomismo, Boyle acaba se mostrando crtico filosofia corpuscular face diversi-dade e complexidade dos fenmenos no mbito da qumica. Assim, escrevendo sobre as proprie-dades individuais de certas substncias qumicas e do carter especfico de suas reaes, ele afirma que inacreditvel que to grande variedade de qualidades por ns realmente encontradas nos corpos naturais possa decorrer de apenas dois princpios, e to simples como a matria e o movimento local38

    Isaac Newton (1642-1727) parece ter sido influenciado pelas concepes atomsticas de Gassendi. Quando se vale da imagem do tomo, em determinadas situaes, Newton acentua as suas divergncias com Descartes, que representava poca da publicao dos Principia o grande obstculo para a aceitao e consolidao da teoria newtoniana (notadamente na Frana). Entre outras coisas, ele se contrape ao Universo pleno, cheio, dos cartesianos e a divisibilidade infinita da matria que eles defendem. A citao a seguir, extrada da ptica de Newton, evidencia aspectos do atomismo newtoniano:

    .

    Parece-me provvel que no princpio Deus formou a matria segundo partculas slidas, macias, duras,

    impenetrveis, mveis, com tamanhos, formas e propriedades, e em proporo em relao ao espao,

    condizentes aos fins para os quais Ele as criou; e que essas partculas primitivas, sendo slidas, so

    incomparavelmente mais duras do que quaisquer corpos porosos que elas constituem; e to sumamente

    duras que no se consomem ou se partem em pedaos, pois nenhum poder ordinrio capaz de dividir o

    que o prprio Deus fez uno no princpio da criao... Portanto, para que a natureza possa ser duradoura,

    as mudanas das coisas corpreas somente ocorrem atravs de separaes e novas associaes e

    movimentos dessas partculas permanentes; com os corpos compostos tendendo a romper-se no no meio

    dessas partculas slidas, mas nas partes onde elas se renem e apenas se tocam em uns poucos pontos.39

    Para Newton, a luz constituda por partculas e essas partculas materiais ou luminosas que se movem no espao absoluto newtoniano no deixam de lembrar os tomos dos gregos. Contudo, no se pode dizer que a concepo de Newton foi atomista, no sentido legtimo do termo. Uma forte razo para isso reside no fato de que as partculas materiais de Newton no so totalmente simples, j que exercem e sofrem foras atrativas distncia, ao passo que um corpo irredutivelmente simples dotado unicamente de propriedades geomtricas, o que exclui toda capacidade de ao distncia.40

    Daniel Bernoulli (1700-1782) mais um cientista que explora aspectos do atomismo de Gassendi. Na obra Hidrodinmica, publicada em 1738, ele descreve a presso de um gs tal como Boyle, em seu modelo dinmico. Assim, se um gs encerrado em um recipiente tem seu volume diminudo, por exemplo, quando se baixa o mbolo mvel de um cilindro (Fig. 1.12), o

    38 MASON, 1962, p. 189. 39 NEWTON, 2002, p. 290. 40 BEN-DOV, 1996, p. 69.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    31

    nmero de colises dos corpsculos do gs contra as paredes do recipiente aumenta, elevando a presso do gs. Para Bernolli, todas as colises envolvidas (partcula-partcula, partcula-recipi-ente) so elsticas, o que implica que o movimento interno incessante.

    Fig. 1.12 - A presso exercida pelo peso colocado sobre o mbolo do cilindro, com-pensada pela presso do gs. Aumentando o valor desse peso, aumenta a presso do gs, com a conseqente diminuio de seu volume. Bernoulli tambm ressalta que a presso exercida por um gs aumenta no apenas pela re-

    duo de seu volume, mas tambm pelo calor que se lhe adiciona, uma idia j bem conhecida. As concepes de Gassendi, Boyle, Newton, Bernoulli, (...) exprimem sobretudo a idia de uma estrutura descontnua da matria. Para Leucipo, Demcrito e

    Epicuro, o tomo era a menor parte possvel de um corpo. O mesmo sentido prevalece em Gassendi. Mas,

    para a maior parte dos autores, so usados indiferentemente tomo, molcula, corpsculo, partcula

    etc. Estas palavras designam os gros que formam a matria, sem que o sentido dos conceitos assim

    enunciados seja, na maior parte do tempo, melhor definido.41

    O tema amplo, complexo, com repercusses fora da cincia, como ocorre quando o qua-dro atomista se confronta com o dogma eucarstico da transubstanciao e o dogma da criao.

    De acordo com a Igreja Catlica, o atomismo doutrina hertica. Constitui-se em princpio de valor filosfico e teolgico a permanncia milagrosa do calor, da cor, do sabor, odor e dos outros acidentes sensveis do po e do vinho aps a consagrao, que transformava toda a substncia em corpo e sangue de Cristo42

    Como um homem da Igreja, Gassendi procura compatibilizar suas concepes atomsticas crena crist da criao de todas as coisas por Deus. Nesse sentido, ele nega a eternidade do tomo grego, considerando que eles foram criados por Deus no comeo de tudo. E mais, que a

    . Para um genuno atomista, no entanto, isso no tem sentido: um tomo de po continua sendo um tomo de po e um tomo de vinho continua sendo um tomo de vinho antes e depois da consagrao.

    41 ROSMORDUC, 1988, p. 102. 42 REDONDI, 1991, p. 183.

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    evoluo do mundo, a partir desse momento, continuamente guiada por Sua providncia. Assim, possivelmente, Gassendi nunca teria aceitado a viso materialista dos atomistas, de que o destino do mundo governado pelo acaso, determinado somente por colises e interaes entre os tomos, de acordo com a ocorrncia aleatria dos encontros43

    As discusses que se processam sobre o que vem a ser o calor, no sculo XVIII, ressaltam novos aspectos da estrutura corpuscular da matria

    .

    44

    . As divergncias entre os estudiosos desse perodo em relao a este conceito so bem caracterizadas por Pierre-Simon Laplace (1749-1827) e Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794) em um trabalho apresentado Academia de Cincias Francesa, em 1783, quando afirmam que:

    Os fsicos esto divididos sobre a natureza do calor. Alguns o vem como um fluido permeando toda a

    natureza, e que penetra os corpos em maior ou menor grau proporcionalmente a sua temperatura e

    capacidade... Outros fsicos pensam que o calor somente o resultado de movimentos imperceptveis nas

    molculas de matria... este movimento interno que... constitui o calor45 .

    Mas o mbito da fsica no esgota o atomismo. Naturalmente, a qumica tem contribuies histricas importantes para a aceitao do tomo como um constituinte fundamental da matria. Nas prximas sees, examina-se parte dessa histria, com a seleo e o aprofundamento de con-tudos compatveis com os interesses e os objetivos do presente estudo. 1.6 Da alquimia rabe ascenso e queda do flogstico

    Na filosofia natural aristotlica, o elemento fogo um dos constituintes bsicos do mundo sublunar. Os outros trs so a gua (no a que existe nos rios, lagos), o ar (no o que est presente na respirao dos seres vivos) e a terra (no a que se v ou se pega com as mos), elementos puros por natureza. Liberado de um corpo sob condies apropriadas, o fogo explica, entre outras coisas, a combusto da matria.

    Os estudos de alquimia desenvolvidos pelos rabes na Idade Mdia ampliam o quadro aris-totlico dos quatro elementos, com o enxofre, o mercrio e o sal, concebidos no como matria ordinria, identificada com as substncias reais de mesmo nome, mas como smbolos de certos princpios ou essncias da matria. Assim, o enxofre representa a inflamabilidade, o mercrio a fluidez e volatibilidade, e o sal a solidez e incombustibilidade.

    Se tudo o que existe , de alguma forma, uma combinao ou mescla de certos elementos ou essncias, a transmutao de um metal em outro, e em ouro em particular, algo que deve ser objeto de tentativas no laboratrio, acelerando processos naturais que demandam um longo tempo sua efetivao.

    43 PULLMAN, 1998, p. 121. 44 ROLLER, 1957. 45 ABRANTES, 1998, p. 151.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

    33

    Para Djabir ibn-Hayyan (760-815 d.C.), o primeiro e o mais notvel nome da alquimia rabe, a prata, o cobre, o ferro, o mercrio, o chumbo e o estanho so combinaes de mercrio e de enxofre em diferentes propores e graus de pureza. A forma lquida do mercrio comum decorre da grande concentrao de mercrio que ele contm. Quando puros e integrados no mais perfeito dos equilbrios naturais, estes princpios geram o ouro, o mais nobre dos metais.

    A prtica alqumica deve viabilizar essa concepo terica. Ela demanda a identificao da substncia ativadora desse processo o catalizador ou elixir. A importncia do trabalho experi-mental destacada por Djabir, quando diz que aquele que no realiza trabalhos prticos nem faz experincias jamais atingir o menor grau de conhecimento46

    teoria do enxofre e do mercrio de Djabir, outro grande alquimista do mundo rabe, Al-Razi (865-925) agrega o sal, um componente no inflamvel e no voltil, necessrio constitui-o de qualquer slido. Na verdade, o interesse na transmutao dos metais bastante antigo, sendo encontrado em Bolos de Mendes (

    . De fato, parte as diferentes concepes tericas, msticas, religiosas, filosficas de seus adeptos, ao longo do tempo, a alqui-mia , essencialmente, uma arte prtica, e a pacincia uma virtude indispensvel. particu-larmente a perspectiva do reencontro com um segredo, supostamente revelado pelo deus Hermes (o Tote egpcio) nos elos perdidos do passado, que atrai e fascina.

    200 a.C.), que procurou obter ouro a partir do chumbo e do ferro.

    Aos insucessos do objetivo primordial da alquimia, desde os tempos mais remotos, aliam-se misticismo, supersties, enigmas indecifrveis, obscuridades de toda a natureza e com os mais diversos propsitos. Contudo, o ouro muito mais do que riqueza material. Os artesos de um sem nmero de culturas talharam com esse metal os objetos mais preciosos de suas crenas. Ele smbolo de pureza, incorruptibilidade, poder, magia, eternidade. Assim,

    (...) o que comeara como uma busca de riquezas transformou-se gradualmente pelo menos para alguns

    em uma viagem do esprito. O trabalho do alquimista comeou a alcanar os mais altos nveis da

    indagao filosfica; se o ouro fosse matria em forma perfeita luz solar metlica, rebento dos deuses

    ento qualquer pessoa que aprendesse a cri-lo assumiria certamente os atributos da divindidade. O

    alquimista bem sucedido seria sbio, poderoso e, muito possivelmente, imortal.47

    Por entre a complexa teia de motivaes para o estudo da alquimia, h os que procuram utiliz-la para a preservao da sade e para o tratamento de doenas. Nesse sentido, as razes da iatroqumica (alquimia mdica) do sculo XVI podem ser encontradas nas atividades mdicas desenvolvidas por Al-Razi.

    Abu-Ali Al-Husayn Ibn Abdullah Ibn Sina (980-1037), conhecido por Avicena, mais um estudioso que teoriza sobre a transmutao dos metais inferiores em ouro, a partir do enxofre e do

    46 MATHIAS, 1977. 47 CAVE; DOYLE; KELLY, 1993.

  • 1. Do tomo grego ao tomo de Dalton: um percurso atravs da histria da fsica e da qumica

    34

    mercrio. Em funo da evidncia emprica, mostra-se ctico em relao a esse ideal. Por outro lado, desenvolve importantes e bem sucedidos estudos alqumicos com fins medicinais, utili-zando diversos minrios e plantas.

    A alquimia alcana o ocidente com o acesso dos estudiosos s bibliotecas rabes, a partir da fragmentao do Imprio Islmico no sculo XI. O conhecimento grego a preservado faz com que se retome a filosofia natural aristotlica, devidamente compatibilizada com os ideais do mundo cristo por Alberto Magno (1200-1280) e Toms de Aquino (1225-1274).

    em funo da concepo aristotlica de que toda a explicao de um processo de mu-dana deve se referir sua causa final (explicao teleolgica), que muitos filosfos medievais, entre os quais Roger Bacon (1214-1294), acreditam na transmutao dos metais sob a superfcie da terra. Nesse caso, o ouro seria o pice ou produto final de uma cadeia especfica. Suposta-mente, o catalizador ou elixir rabe, transformado em pedra filosofal, aceleraria o processo em metais deslocados de seu ambiente natural.

    Mesmo com sua prtica cercada de mistrios, sua linguagem metafrica, seus caracteres pessoais e muitas vezes indecifrveis, a alquimia medieval europia, tal como a rabe, abriga interesses bastante diversificados. Entre eles, est a possibilidade de um real acesso verdade, atravs de uma melhor compreenso da matria, dos constituintes bsicos de todas as coisas.

    A alquimia uma das disciplinas tratadas por Alberto Magno em seus escritos no teolgi-cos, que incluem uma ampla variedade de interesses da cincia, como astronomia, fsica, bot-nica, zoologia, fisiologia, mineralogia. Contudo, por ensejar a assimilao e a difuso da filosofia natural aristotlica, que considerava indispensvel formao do telogo, por trazer reflexo questes importantes sobre a razo e a f, que ele deixa escrito o seu nome na histria.

    Isaac Newton (1642-1727) foi um outro estudioso da alquimia que, exercendo o seu poder de fascnio sobre o esprito inquieto e indagador, no limita fronteiras no tempo. justamente a possibilidade de imerso em um mundo que transcende o mecanicismo da matria inerte, passiva, destituda de propriedades ocultas (nos termos aristotlicos), de incurso em um universo que na sua mais secreta intimidade capaz de iluminar a razo, de fazer o pensamento entrar em resso-nncia com a essncia ltima do fenmeno, que leva Newton a se interessar por ela em 1669.

    A alquimia afirmava a existncia de princpios ativos na matria, como agentes primrios dos fenmenos

    naturais. Em especial, postulava a existncia de um agente ativo, a pedra filosofal, objeto da arte

    hermtica. Toda a sorte de imagens era aplicada pedra, todas elas expressando um conceito de atividade

    profundamente contrrio inrcia da matria mecnica, caracterizada apenas pela extenso.48

    Para Newton, a compreenso dos princpios ativos da matria, como o da gravidade e o que causa a coeso dos corpos, era essencial para um entendimento pleno da mecnica. Assim, ele no hesita em derivar os princpios gerais do movimento, de ampla aplicao, sem deixar de res-

    48 WESTFALL, 1995, p. 116.

  • Do tomo grego ao tomo de Bohr

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    saltar que as causas destes princpios ainda no foram descobertas, devendo portanto ser objeto de novos estudos.49

    Em todo caso, atravs da alquimia se estudava a matria. Conforme Justus Liebig (1803-1873), um dos formuladores do princpio da conservao da energia, no sculo XIX,

    (...) a mais rica imaginao do mundo no teria podido conceber uma idia melhor do que a pedra

    filosofal para inspirar as mentes e as faculdades dos homens. Sem ela, a qumica no seria o que hoje.

    Para descobrir que no existia nada semelhante pedra filosofal, foi necessrio passar em revista e

    analisar todas as substncias conhecidas na Terra. E precisamente nisso que reside sua influncia

    miraculosa.50

    A mudana qumica uma alternativa nova, no contemplada na anlise aristtelica do processo de mudana, restrito a alteraes no espao (deslocamento de um objeto de um lugar a outro) e no tempo, que caracterizam e diferenciam os mundos terrestre e celeste.

    A descoberta de cidos com grande poder corrosivo, como o cido sulfrico e a aqua fortis (cido ntrico forte), amplia os horizontes da expe