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Maurício Dottori, editor Anais do VI SIMCAM Simpósio de Cognição e Artes Musicais Universidade Federal do Rio de Janeiro Escola de Música Marcos Nogueira, coordenador geral Rio de Janeiro, 25 a 28 de maio de 2010

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  • Maurício Dottori, editor

    Anais do

    VI SIMCAM Simpósio de Cognição e Artes Musicais

    Universidade Federal do Rio de JaneiroEscola de Música

    Marcos Nogueira, coordenador geral

    Rio de Janeiro, 25 a 28 de maio de 2010

  • VI SIMCAM Simpósio de Cognição e Artes MusicaisUniversidade Federal do Rio de Janeiro

    Escola de MúsicaPrograma de Pós-Graduação em Música

    Rio de Janeiro, 25 a 28 de maio de 2010

    Comissão Executiva de V SIMCAM

    Marcos Nogueira (Coordenação Geral)Maurício Dottori

    Rael Bertarelli

    Comissão Científica:Maurício Dottori e Marcos Nogueira

    Pareceristas:

    Beatriz Ilari (UFPR)Beatriz Raposo de Medeiros (USP)Daniel Quaranta (UFPR)Diana Santiago (UFBA)Graziela Bortz (UNESP)Indioney Rodrigues (UFPR)Leomara Craveiro de Sá (UFG)Marcos Nogueira (UFRJ)Maurício Dottori (UFPR)

    Ney Rodrigues Carrasco (UNICAMP)Patrícia Lima Martins Pederiva (UnB)Rael Bertarelli Toffolo (UEM)Regina Antunes Teixeira dos Santos(UFRGS)Rita de Cássia Fucci Amato (USP)Rosane Cardoso de Araújo (UFPR)Sonia Ray (UFG)

    AssociaçãoBrasileira deCognição e

    ArtesMusicais C A P E S

  • Realização:ABCM – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE COGNIÇÃO MUSICAL

    Maurício Dottori (UFPR), Presidente

    Diana Santiago (UFBA), Vice-Presidente

    Graziela Bortz (UNESP), Secretária

    Ricardo Dourado Freire (UnB), Tesoureiro

    Marcos Nogueira (UFRJ), Relações Públicas

    Beatriz Ilari (UFPR), Representante do Comitê Editorial

    UFRJ – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROAloísio Teixeira, Reitor

    Sylvia da Silveira Mello Vargas, Vice-Reitora

    Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pequisa Angela Uller, Pró-Reitora

    Decano do Centro de Letras e Artes Leo Soares

    Escola de Música e Artes CênicasAndré Cardoso, Diretor

    Marcos Nogueira, Vice-DiretorRoberto Macedo, Diretor Adjunto de Ensino de GraduaçãoEduardo Biato, Diretor Adjunto do Setor Artístico-Cultural

    Miriam Grosman, Diretor Adjunto de ExtensãoMarcos Nogueira, Coordenador do Programa de Pós-GraduaçãoErmelinda Paz Zanini, Coordenadora do Curso de Licenciatura

    Webmaster:Rael Bertarelli Gimenes Toffolo

    VI SIMCAM www.abcogmus.org/simcam

  • Anais do

    VI SIMCAM Simpósio de Cognição e Artes Musicais

  • Apresentação

    Prezados colegas,

    Neste ano de 2010, o Programa de Pós-Graduação em Música da UFRJ completa 30anos de existência e o comemora com muita honra recebendo o VI Simpósio de Cog-nição e Artes Musicais, evento pioneiro na área de Cognição Musical no país.

    O conceito de pós-graduação em Música em nosso programa contempla a produçãoartística e a bibliográfica em medidas iguais. Contudo, nesses 30 anos de trajetóriaquase 350 trabalhos foram defendidos e é flagrante a presença maciça de pesquisa eprodução nas áreas artísticas. Nos últimos 10 anos, entretanto, a produção bibliográ-fica se intensificou nessas áreas, o que pode ser entendido também como consequênciada interação com investigações em duas outras áreas emergentes no Programa: Mu-sicologia e Educação Musical. A consolidação de estudos musicais no âmbito das ciên-cias cognitivas, nos últimos 20 anos, nos parece um campo notavelmente fértil para oaprofundamento dessas interações entre procedimentos metodológicos de todas as su-báreas que constituem a pesquisa em Música, o que pode ser reconhecido no crescenteinteresse que a comunidade acadêmica musical vem demonstrando pelos recursos deconstrução do conhecimento oferecidos pela pesquisa em Cognição. Assim sendo, ma-nifestamos nossa satisfação com a realização de mais este SIMCAM e a aproximaçãocada vez maior de pesquisadores da nova área.

    A concretização deste VI Simpósio só foi possível graças à colaboração de inúmeroscolegas que acreditam, por razões variadas, neste projeto. Gostaria de fazer algunsagradecimentos especiais a Sonia Ray e Mauricio Dottori, coordenadora do últimoSIMCAM e presidente da ABCM, pela presença constante, a Rael Toffolo, pelo es-forço incansável de conduzir o SIMCAM, numa primeira experiência, pelos cami-

    ii

  • nhos ainda tortuosos dos sistemas on line, às coordenadoras dos Grupos de Estudo,Beatriz Ilari, Clara Piazzetta, Sonia Ray e Beatriz Raposo, e aos membros dessesGEs, que deram um primeiro impulso essencial para a consolidação dessa iniciativainovadora da Associação Brasileira de Cognição e Artes Musicais para esta edição doSIMCAM, e aos conferencistas e membros de mesas-redondas que gentilmente acei-taram os convites para dividirem conosco um pouco dos resultados de suas pesquisas.Gostaria de enfatizar ainda o apoio incondicional da direção da Escola de Música,aqui representada pelo diretor geral, André Cardoso, e pelo diretor artístico-cultural,Eduardo Biato, a gentileza dos artistas que aceitaram o convite para integrar a pro-gramação de concertos do SIMCAM6, e por toda a equipe técnico-administrativa doPrograma de Pós-Graduação em Música e do Setor Artístico-Cultural.

    Tenho convicção de que os esforços empreendidos nos últimos meses serão plenamenterecompensados com a realização de um encontro científico fértil e prazeroso. Sejammuito bem-vindos ao Rio de Janeiro!

    Marcos Nogueira

    Coordenador-Geral do VI Simcam

    iii

  • Nota do editor

    É um enorme prazer ver que nossa Associação começa o seu segundo lustro de existên-cia num simpósio em minha cidade, na mais antiga escola de música de nosso país.E que este nosso encontro servirá a um balanço do que atingimos nos seis anos con-secutivos de Simpósio de Cognição e Artes Musicais. Os seguidos SIMCAM tem sedemonstrado um foro privilegiado para as discussões sobre como nossas mentes e nossoscérebros (cuja fronteira de distinção constitui-se também em um importante tópicode debates) relacionam-se com a música em que vivemos. Este ano, em especial, háinúmeros trabalhos muito interessantes, o que mostra a gradativa consolidação daárea.

    Nesta direção esperamos também que a novidade que representam nossos Grupos deEstudos, que pela primeira vez acontecem, tenham um futuro muito profícuo.

    Por outro lado, o próprio modelo de nosso SIMCAM, em que a organização local ea coordenação científica, são realizados, de modo em grande parte independe, pelauniversidade sede e pela associação, vem se mostrando de tal modo eficaz que aprópria Anppom, desde seu congresso em Curitiba no ano passado, decidiu-se porsegui-la. E a tendência, espera-se, será a de tornar o trabalho científico cada vez maiseficiente. Para isto, nossa associação conta agora com um domínio e uma páginaprópria na internet, o que a liberta dos vínculos sempre frágeis com computadores deuniversidade e nos possibilitou a instalação e o uso de software de administração deconferências e da nossa revista. O pioneirismo em usar o software cobrou um certopreço este ano; mas, à medida que nos habituemos, teremos uma facilitação imensado trabalho necessário.

    iv

  • Lancemos também um olhar para o futuro científico de nossa Associação. Do pontode vista da coordenação científica, pude observar que os trabalhos apresentados sob otema de Artes Musicais e Cognição Social foram aqueles cujo número mais cresceudesde o primeiro simpósio em Curitiba, quando só alguns poucos trabalhos foramapresentados nesta área. E que por isso, como disse, para contemplar as discussõesnecessárias sobre a propriedade dos estudos sobre Consciência e Música que ora sefazem em todo o mundo, talvez seja necessário incluir um novo tema de FilosofiaCognitiva e Música, e subdividir o tema "A mente e a Produção das Artes Musicais"em dois pois os estudos se avolumaram, seja quanto ao aspecto de Criação Musicalquanto ao de Performance.

    Finalmente um agradecimento muito especial ao Marcos Nogueira, CoordenadorGeral deste simpósio, e ao Rael Toffolo que realizou a implantação online de nossaassociação.

    Maurício Dottori — Editor, Presidente da ABCM

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  • ÍNDICE

    a mente e a percepção das artes musicais

    Contextualização Musical no Treinamento Auditivo: Transferindo Memórias à Prática Musical 1

    Graziela Bortz

    Memória e Imitação na Percepção Musical 9Ricardo Dourado Freire

    Crítica às teorias representacionalistas da percepção musical 18André Villa

    A relação entre intérpretes e ouvintes na percepção das emoções em música 32Christian Alessandro Lisboa

    Expressões de tempo e de espaço na música 43Yahn Wagner F. M. Pinto

    Percepção e Processamento Musical em Usuários de Implante Coclear 54Scheila Farias de Paiva Lima, Cecília Cavalieri França & Stela MarisAguiar Lemos

    Critérios analíticos perceptivos para a o estudo da textura baseados em correntes auditivas e sua relação com a forma musical 73

    Jorge Alberto Falcón

    Estudo sobre possibilidades da concepção neurocientífica da percepção rítmica na análise de estruturas musicais 84

    Pedro Paulo Kohler Bondesan dos Santos

    O ouvido absoluto: prevalência e características em duas universidades brasileiras 93Patricia Vanzella, Mariana Benassi-Werke, Nayana G. Germano &Maria Gabriela M. Oliveira

    Dos coloridos sonoros na música ocidental proporcionados pelos diferentes semitons 100

    Edmundo Hora

    Música e Cognição: a percepção musical do ritmoem crianças entre 3 e 7 anos numa perspectiva piagetiana 108

    Filipe de Matos Rocha

    vi

  • a mente e a produção das artes musicais

    A valorização de parâmetros musicais na preparação de uma obra romântica por estudantes de piano 112

    Cristina Capparelli Gerling, Regina A. Teixeira dos Santos & CatarinaDominici

    Atribuição de Causalidade na Performance Musical 120Ana Francisca Schneider

    A influência do espaçamento entre notas nas relações de consonância e dissonância 128Orlando Scarpa Neto

    Coordenação motora e simplificação do movimento. Uma estratégia técnico-cognitiva para otimizar a ação pianística 146

    Maria Bernardete Castelan Póvoas & Alexandro Andrade

    Padrões de pensamento: aplicação da Técnica Alexander à execução musical 156

    Yara Quercia Vieira

    Diretrizes para a Elaboração de Dedilhados na Performance Violonística 164Bernardo Pellon de Lima Pichin

    O Processo Criativo da Composição Musical: Uma Visão Sistêmica e Evolutiva 177Marco Antônio Corrêa Varella, José Henrique Benedetti Piccoli Ferreira, Leonardo Antonio Marui Cosentino & Eduardo Ottoni

    O instrumentista e sua obra metamórfica: por um paradigma aberto para a performance musical 193

    Cristiano Sousa dos Santos

    Sem Fronteiras: Implicações da Performance no Ensino e Aprendizagem da Música Popular 202

    Juliana Rocha de Faria Silva & Maria Cristina Cascelli de Azevedo

    Investigação e auto-regulação na preparação de uma obra pianística 214Regina Antunes Teixeira dos Santos & Cristina Capparelli Gerling

    Cogito ergo jazz: improvisational transformations in Joe Henderson’s “No Me Esqueça” 221

    Mtafiti Imara

    A linguagem de sinais para improvisação Soundpaiting: sinalizando uma nova ferramenta para a formação musical 237

    Thenille Braun Janzen & Ronald Dennis Ranvaud

    vii

  • O papel do dedilhado na expressividade cravística: aspectos cognitivos no ensino e preparação para a performance 246

    Nivia Gasparini Zumpano & Edmundo Pacheco Hora

    artes musicais, lingüística, semiótica e cognição

    Musilinguagem: a música na fala e a fala na música 257Patrícia Pederiva & Elizabeth Tunes

    O conceito peirceano de Interpretante como fundamento para a compreensão do campo da interpretação musical 264

    Marcus Straubel Wolff

    Representação e Sociedade 271Indioney Rodrigues

    Interações entre Ritmo Lingüístico e Ritmo Musical no Contexto da Canção 279Cássio Andrade Santos & Beatriz Raposo de Medeiros

    Aspectos prosódicos de quatro emoções na voz falada 292Aline Mara de Oliveira &Beatriz Raposo de Medeiros

    Memória de Curto Prazo para Melodias: Efeito das Diferentes Escalas Musicais 301Benassi-Werke, M. E., Queiroz, M., Germano, N.G., Oliveira, M.G.M.

    Mario de Andrade e o Prazer Musical 305Luciana Barongeno

    tecnologia, artes musicais e a mente

    Desenvolvimento do processos composicionais eletroacústicos a partir da relação entre live-electronics e redes neurais artificiais 308

    Rael Bertarelli Gimenes Toffolo

    Som, sinal, movimento: novas modalidades do fazer/pensar música 317Guilherme Bertissolo

    A Ontomemética e a Evolução Musical 330Marcelo Gimenes

    Análise Particional: uma Mediação entre Composição Musical e a Teoria das Partições 343

    Pauxy Gentil-Nunes

    PARSEMAT: uma ferramenta para a Análise Particional 355Pauxy Gentil-Nunes

    viii

  • o desenvolvimento paralelo da mente e das artes musicais

    Apofenia Musical e Emoção Extrínseca em Música 358Bernardo Pellon de Lima Pichin

    Desenvolvimento de habilidades musicais e aquisição da leitura e escrita: estudos de intervenção e correlação com crianças pequenas 369

    Caroline Brendel Pacheco

    A Experiência Incorporada: Corpo e Cognição Musical 383Wânia Mara Agostini Storolli

    Cognição musical, especialização cerebral e o desenvolvimento da independência e coordenação motoras 393

    Antenor Ferreira Corrêa

    Processos de criação musical e constituição do sujeito: objetivando uma ética e estética na/da existência 400

    Patrícia Wazlawick & Kátia Maheirie

    Musicalidade na Educação a Distância: Reflexões sobre os usos das Tecnologias de Informação e Comunicação 408

    Luciane Cuervo

    A Construção da Escala Natural no Teclado: significando sons e teclas 419Caroline Cao Ponso

    Aprendizagem cooperativa: a diversidade como recurso facilitador na aprendizagem do instrumento 426

    Tais Dantas, Simone Braga & Marcus Rocha

    A motivação no processo de ensino e aprendizagem musical realizado a partir de aulas coletivas: relato de pesquisa concluída 437

    Tais Dantas

    Processos de ensinar & aprender: música, cognição e formação profissional 448Patrícia Wazlawick, Glauber Benetti Carvalho &Viviane Elias Portela

    O Aprendizado de Música por Crianças com Necessidades Educacionais Especiais 458Joana Malta Gomes

    Educação Musical e Ludopoiese: vivenciando a aprendizagem musical 472Maristela de Oliveira Mosca

    O Ensino de Música para Pessoas com Doença Mental: a desconstrução da figura do louco e a construção de possibilidades de inclusão social 482

    Thelma Sydenstricker Alvares

    ix

  • ‘Musicalidade em Ação’ e Processos Cognitivos na Musicoterapia 492Clara Márcia Piazzetta

    Aplicação do Conceito de Emoção Extrínseca em Música 506Bernardo Pellon de Lima Pichin

    artes musicais e cognição social

    Música e interdisciplinaridade: bases epistemológicas e exploração de uma interface 517Rita de Cássia Fucci Amato

    Coral e trabalho: o canto em conjunto como atividade de lazer e o coro como organização produtiva de bens e serviços culturais 540

    Rita de Cássia Fucci Amato

    Problemas Sociais do Adolescente em Cumprimento de Medida Sócio-Educativa que Interferem na Cognição Musical 555

    José Fortunato Fernandes

    Música erudita e cognição social: assim se cria um repertório universal 567Eliana M. de A. Monteiro da Silva

    Identidades sociomusicais na Canja de Viola em Curitiba 580Grace Filipak Torres

    Música e acordeom: discutindo experiências de educação musical na Maturidade 595Jonas Tarcísio Reis & Esther Beyer

    A construção do conceito de harmonia tonal através de aulas particulares de acordeom na região metropolitana de Porto Alegre - RS: três estudos de caso 606

    Jonas Tarcísio Reis

    Ensino coletivo de instrumentos musicais: auto-estima e motivação na aprendizagem musical realizada em grupo 619

    Tais Dantas

    O Espaço Musicoterapêutico como Campo do Representacional: Representações Sociais, Música e Musicoterapia 631

    Fernanda Valentin, Leomara Craveiro de Sá & Magda de Miranda Clímaco

    Idosos independentes versus Idosos institucionalizados: as diferenças na capacidade cognitiva entre grupos da terceira idade 642

    Mackely Ribeiro Borges

    x

  • A motivação dos alunos para continuar seus estudos em música 651Janaína Condessa

    Estimulação da memória pelo canto como base de educação musical na maturidade: um aspecto cognitivo social 663

    Celina Amalia Vettore Maydana & Maria de Fátima Machado Brasil

    A referência do outro: aquisição do conhecimento através da interação 672Simone Braga & Tais Dantas

    Saraus Musicais Escolares: Projeto de Cidadania 681Caroline Cao Ponso & Maria Helenita Nascimento Bernál

    xi

  • a mente e a percepção das artes musicais

    Contextualização Musical no Treinamento Auditivo:Transferindo Memórias à Prática Musical

    Graziela [email protected]

    Universidade Estadual Paulista.

    ResumoA pesquisa em andamento consiste em explorar as investigações empíricas em cogniçãomusical aplicadas ao treinamento auditivo para propor novas abordagens dos métodosde ensino na área de percepção musical. Os problemas apontados por Covington & Lord(1994) no ensino objetivista da disciplina e suas idéias de ensino construtivista são usadasaqui de maneira crítica para propor estratégias distintas, mas complementares, onde acoexistência das duas abordagens é possível. Os objetivos do trabalho incluem a revisãoda literatura na área de cognição musical e treinamento auditivo e a elaboração de estra-tégias de abordagem dos métodos tradicionais combinados com métodos novos. Coving-ton & Lord (1994) descrevem o treinamento auditivo tradicional como essencialmentebehaviorista e objetivista, ou seja, baseado na transmissão e repetição de conhecimentosespecíficos e bem demarcados, e tendo seus procedimentos de avaliações mensuradosaritmeticamente. Como vantagens do ensino objetivista nessa disciplina, o artigo assinalaa aquisição da habilidade de resgatar as informações adquiridas no treinamento dentro docontexto limitado dos exercícios feitos em classe. Os autores argumentam que, em longoprazo e no contexto real de trabalho, os resultados não são tão convincentes e que osestudantes tornam-se inábeis em transferir os conhecimentos de um universo a outro aoserem treinados em condições simplificadas como se fossem reais. Propõem o uso deum laboratório de informática em que aplicam o que denominam “explorações controla-das”, onde os estudantes podem acessar várias sub-tarefas enquanto buscam o objetivomaior proposto, desenvolvendo a capacidade de planejarem em seu próprio tempo e àsua maneira. Usando gravações de extratos reais de músicas, os estudantes gravam dife-rentes linhas da partitura em faixas de um sequencer. A coexistência das abordagens ob-jetivista e construtivistas, ao contrário do que pensam Covington & Lord, não são, naopinião da autora desta proposta, necessariamente excludentes. O problema da aborda-gem exclusivamente objetivista está na falta do exercício da transferência de um domínioa outro, no que, de fato, consiste a crítica daqueles autores ao objetivismo, ou seja, a faltade contextualização. Esta pesquisa propõe, portanto, a coexistência, o equilíbrio e a inter-face entre as duas abordagens.

    IntroduçãoDe acordo com Covington & Lord (1994), enquanto as pesquisas em cognição mu-sical têm se desenvolvido consideravelmente nos últimos anos, o treinamento audi-

    1

  • tivo em sala de aula tem sido frustrante para professores e alunos. Estes últimos de-monstram dificuldades em aplicar o conteúdo aprendido — que se concentra prin-cipalmente no estudo de alturas e ritmo, com a quase que total exclusão de outrosaspectos musicais — a seu cotidiano musical, onde a complexidade do material en-volve uma gama de possibilidades muito maior que a oferecida durante os estudosde percepção. Os autores descrevem o treinamento auditivo tradicional como essencialmente be-haviorista e objetivista, ou seja, baseado na transmissão e repetição de conhecimentosespecíficos e bem demarcados. Como os conhecimentos, os procedimentos de ava-liações também são mensuráveis aritmeticamente. Assim, quando a capacidade dosalunos em reconhecer determinados intervalos isolados, por exemplo, é colocada aprova, tem-se uma possibilidade de avaliação quantitativa. Covington & Lord ob-servam que o método objetivo de ensino e avaliação tem sido aplicado em todas asdisciplinas de conhecimento humano. No entanto, enquanto em outras áreas a edu-cação tem sido fortemente influenciada por pensadores construtivistas, o mesmonão ocorre na disciplina de percepção musical. Como vantagens do ensino objetivista nessa disciplina, o artigo assinala três pontosprincipais, a saber: (1) a aquisição de conhecimentos e habilidades específicas; (2) ahabilidade de resgatar as informações adquiridas no treinamento; (3) “sucesso dentrodo contexto limitado dos exercícios de treino auditivo isolados”, de onde se pode in-ferir que “aqueles alunos que se desempenham bem parecem desenvolver um tipode rede esquemática ou um sistema de expertise desejado” (Covington & Lord, 1994,p. 162). No entanto, o texto acrescenta que, em longo prazo e no contexto real detrabalho, os resultados não são tão convincentes. O fato de um estudante ser capaz, por exemplo, de decodificar um intervalo de trí-tono isolado não significa que ele automaticamente desenvolva a capacidade de di-ferenciar esse mesmo intervalo num contexto musical em que ele apareça formadopelo quarto e sétimo graus, exercendo a função de dominante com sétima, ou entreo segundo e sexto graus em modo menor, exercendo a função de harmonia inter-mediária (acorde de II grau como subdominante).

    Elementos isolados de seu contexto natural enfatizam a separação dos elementosmais que sua integração. . . . De fato, pesquisas em outros domínios têm demons-trado que tal treinamento pode, na verdade, desenvolver barreiras entre tipos deesquema ao invés de desenvolver a consciência de sua interconexão (Covington& Lord, 1994, p. 162).

    Os autores do artigo consideram ainda que o aprendizado de intervalos condicio-nados a uma determinada peça pode ser prejudicial, pois o caminho para recuperara informação é lento. Talvez se possa comparar este exemplo ao aprendizado da lei-tura da clave de fá condicionada à clave de sol. Decodificar diretamente uma clavequalquer a partir da visualização das distâncias formadas entre linhas ou espaços é

    2

  • mais eficiente que recuperar a informação indireta na transferência de uma leitura àoutra. A pesquisa de Burns & Ward (1982, p. 264-265), embora reconheça que a percepçãode intervalos é uma ferramenta analítica importante para a transcrição de melodias,confirma a teoria de que o treinamento da memorização de intervalos isolados frag-menta a cognição melódica. Comentam que “a percepção de intervalos melódicosisolados pode ter pouca relação com a percepção da melodia.” Mais tarde, acrescen-tam que “há evidência considerável de que melodias são percebidas como Gestaltsou padrões, e não uma sucessão de intervalos individualizados e que a magnitudeintervalar é apenas um pequeno fator na percepção total.” Da mesma maneira, Deutsch (1982, p. 287-291) demonstra como padrões de con-torno melódico são reconhecidos no discurso musical como equivalentes, ainda quese preserve apenas o contorno, e não os intervalos exatos. Afirma que, em longoprazo, a memória tende a reter informações classificadas hierarquicamente em níveismais profundos de abstração, lembrando que este modelo se aproxima da teoria ana-lítica de Heinrich Schenker (1868-1935), que utiliza um modelo de escuta, onde onível da superfície funciona como um “prolongamento” dos níveis estruturais maisprofundos. Edlung (1974, p. 7) vê como necessidade premente a contextualização musical notreinamento auditivo quando afirma que, “para que as relações tonais nas melodiassejam entendidas de maneira apropriada, deve ser requisitado [no treinamento] maisdo que a mera facilidade em cantar intervalos melódicos isolados”. Pode-se recuperarmais prontamente, na música tonal, a memória da função de uma altura em relaçãoa outras hierarquicamente mais importantes numa tonalidade do que o intervaloexato formado entre duas notas. A escuta dirigida às funções melódicas, tais como:uma nota que funciona como ornamentação, dirigindo-se por salto a outra for-mando uma escapada, ou de uma nota que funciona como conexão de outras sepa-radas por terça (nota de passagem), ou ainda uma bordadura, esclarece o discursomusical, ao invés de fragmentá-lo. Em música não-tonal, os intervalos tampouco seapresentam como elementos isolados. Alguns compositores preferem sonoridadesformadas por grupos de notas que se tornam familiares ao ouvido à medida quefaçam parte do treinamento contextualizado. Edlung (1963) trabalha sempre comgrupos intervalares, nunca individualizados, na música não-tonal, à maneira seme-lhante com que Berkowtiz et al (1960) e Edlung (1974) apresentam intervalos apartir de sua função na música tonal. Neste sentido, é pertinente a crítica ao ensino exclusivamente objetivista da percep-ção musical. Faz-se necessária a contextualização constante para que os níveis deabstração sejam percebidos e relacionados e para que a ocorra a transferência de co-nhecimentos do treinamento auditivo à prática real. Intervalos podem ser trabalha-dos em melodias tonais ou não-tonais globalmente.

    3

  • ObjetivosEmbora se busque uma visão ampla no enfoque da disciplina percepção neste tra-balho, a ênfase é dada à percepção de alturas. Logicamente, o contexto rítmico e tex-tural não são excluídos, mas a título de limitar o objeto de pesquisa, o enfoque recainos parâmetros de altura (melodia e harmonia).São utilizados dados de experiências na área de cognição musical, tais como: Deutsch,(1982, 2006), Krumhansl (1990,2006), Sloboda (2008), Levitin (2006, 2007), Co-vington & Lord (1994), entre outros, para elaborar novas abordagens e estratégiasde ensino na disciplina de percepção musical.

    Os objetivos desta proposta são:Fazer uma ampla revisão da literatura na área de cognição musical aplicada ao trei-namento auditivo de alunos de nível de graduação, incluindo trabalhos que tenhamfoco em outras práticas musicais, mas que possam contribuir indiretamente para oestudo da percepção (improvisação, estudos de memória para instrumentistas, pianocomplementar, o estudo de harmonia no teclado, entre outros). Propor uma nova abordagem dos exercícios de solfejo e ditado melódicos em con-textos tonais e não-tonais, procurando um diálogo constante com os diversos tiposde métodos: trabalhos com melodias escritas especialmente para solfejo e ditado(estruturas simplificadas) combinadas com melodias do repertório organizadas emmétodos de solfejo (estruturas intermediárias), além de exercícios de solfejo e ditadoa partir de contextos musicais reais (estruturas complexas — um extrato de uma sin-fonia ou de uma sonata, por exemplo), buscando transferir constantemente as asso-ciações obtidas em contextos simplificados e intermediários àqueles mais complexos. Propor, para o trabalho de solfejo, a análise prévia das estruturas melódicas apresen-tadas de maneira a antecipar os desafios propostos nas estruturas simplificadas, in-termediárias e complexas, buscando conectar a teoria à prática (de fato, a teoria àpercepção que, embora comumente associadas nas grades curriculares, resultam se-paradas na tradição do ensino objetivista).Finalmente, buscar uma visão holística da disciplina de percepção, evitando distor-ções conseqüentes do trabalho com materiais exclusivamente abstratos (intervalosfora de contexto musical, por exemplo). A proposta visa, através da constante con-textualização prática e analítica, integrar as diferentes atividades musicais dos alunose do curso de graduação em música, de modo a tornar a disciplina menos árida.

    MétodoCovington & Lord emprestam os conceitos de well-structuredness e ill-structuredness(Spiro et. al. apud Covington & Lord, 1994, p. 163-164) de estudos em educaçãopara descrever o primeiro como o contexto localizado da aula de percepção tradi-

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  • cional e o segundo como a obra musical real. “Compositores podem utilizar dife-renças contextuais como meio de manipulação das expectativas dos ouvintes. . . . Amúsica como é percebida auditivamente não é absolutamente previsível”. Nesta pesquisa, as expressões: estruturas simplificadas e estruturas complexas serãoutilizadas para descrever o contexto de aula onde o conhecimento é filtrado (well-structured) e aquele em que o estudo da música real (ill-structured) ocorre. Será uti-lizada, ainda, a expressão ‘estruturas intermediárias’ para se referir àquelas em queuma camada de uma estrutura complexa (uma melodia, harmonia ou um ritmo, porexemplo) apresenta-se isolada da textura musical original. Embora seja, por essarazão, mais simples, pode apresentar desafios particulares que merecem o tratamentodiferenciado. Enquanto os termos: estruturas simplificadas, intermediárias e com-plexas serão utilizados para determinar os materiais empregados, duas estratégiasserão aplicadas para a abordagem desses materiais: análise e montagem/remonta-gem.Enquanto as ferramentas de estruturas simplificadas utilizam a idéia de seleção, aabordagem de estruturas complexas explora a idéia de montagem (“assembly”) ouremontagem (“reassembly”) ao explorar conhecimentos adquiridos anteriormentee remontá-los num novo contexto (Covington & Lord, 1994, p. 165). Para os auto-res, a perspectiva construtivista, ao contrário da objetivista, oferece a possibilidadede tornar a prática da percepção útil ao estudante através da montagem. Eles acre-ditam que a experiência particular de cada aluno, quando transposta a um novo con-texto de estrutura complexa, “não é simplesmente recuperada intacta; é, antes,reconstruída especificamente para o caso em questão”. Assim, o produto final émenos importante que o “processo de aplicar a experiência pré-existente em novassituações”. Os autores crêem que os recursos para os estudos em cognição musical precisam seraprimorados e que as pesquisas nessa área explicam melhor a aquisição de conheci-mento em estruturas simplificadas que em complexas, embora o aprendizado sejaoposto nessas diferentes condições. Acrescentam que os estudantes tornam-se iná-beis em transferir os conhecimentos de um universo a outro ao serem treinados emcondições simplificadas como se fossem reais. Sugerem que uma grande “variedadede dimensões abstratas” deva ser aplicada para que se promova essa habilidade detransferência (Spiro et. al. apud Covington & Lord, 1994, p. 165). Propõem o que eles chamam de “explorações controladas”, onde “se pode acessar vá-rias sub-tarefas enquanto se busca um trabalho maior e mais abrangente, provendo[o aprendiz] não somente de uma vivência variada, como também da oportunidadede planejar estratégias para completar o trabalho por inteiro, ou seja, controlandoo aprendizado” (Covington & Lord, 1994, p. 166). Em seu laboratório de tecnolo-gia musical, eles descrevem sua experiência com os estudantes da Universidade deKentucky. Usando gravações de extratos reais de músicas, pedem aos estudantes que

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  • gravem diferentes linhas da partitura, por exemplo, o baixo, a melodia ou outra linhade algum instrumento qualquer, em outras faixas do sequencer. Para isso, os estu-dantes têm a seu dispor, teclados midi, computadores e softwares individuais, alémde fones de ouvido. Relatam os resultados como extremamente positivos tanto naaquisição e transferência de habilidades e conhecimentos, quanto no envolvimentodos alunos na tarefa. Algumas dificuldades comuns, como ouvir e recuperar na me-mória a linha do baixo, são superadas através do esforço e aplicação de estratégiaspessoais de acordo com a experiência e velocidade particular de cada aluno. Alémdisso, é possível que o estudante sinta-se menos pressionado por não ter suas difi-culdades expostas e comparadas com aqueles que têm maior facilidade.

    Estratégia 1: AnáliseAo iniciar uma leitura à primeira vista, o estudante muitas vezes se depara com ‘sur-presas’ no decorrer do solfejo. O olhar analítico antes de se iniciar o exercício é desuma importância para que se possam prever os desafios inerentes ao extrato emquestão. Com a experiência, as dificuldades são superadas e a leitura se torna poucoa pouco fluente. É importante que o professor utilize diferentes materiais de leitura,embora possa adotar um material-base. Berkowitz, Frontier & Kraft (1960) e Ott-man (1995) são materiais com estruturas particulares previstas para cada seção.Assim, os primeiros capítulos abordam somente melodias diatônicas, inserindo to-nicizações e modulações à dominante e outras harmonias cromáticas pouco a pouco.São excelentes materiais-base, mas é importante inserir alternativas a essas estruturasprevisíveis para que o estudante desenvolva a versatilidade e capacidade de previsãoanterior à leitura. Edlung (1974) oferece um material misto de estruturas previsíveise não-previsíveis nas diferentes seções e pode ser uma boa opção para esse propó-sito.No extrato abaixo, a primeira frase da melodia se encontra em Lá menor, modulandoà dominante na segunda parte da frase seguinte. A terceira frase se inicia com amesma melodia que a primeira, no entanto, dirige-se à subdominante da tonalidadeoriginal através de sua dominante individual, usando, ainda, o rebaixamento do se-gundo grau para acessá-la. Em seguida, na quarta frase, retorna-se a Lá menor atravésda dominante para voltar a esta última harmonia na semicadência. O extrato é in-terrompido na harmonia de tônica maior.

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  • Figura 1.1 — Extrato do repertório (Haydn) como apresentado no livro de solfejoModus Vetus de Lars Edlung, p. 112

    O uso das ferramentas de análise é imprescindível para que o estudante possa preveros caminhos por onde a melodia poderá encaminhá-lo durante a leitura. Além dapura conscientização teórica, é necessário que ele ouça esses caminhos antes de ini-ciar o solfejo. Pode-se inclusive cantarolar as alterações, por exemplo, da sensível dadominante e do segundo grau rebaixado seguido da V/ IV para ‘sentir’ essas altera-ções e localizar as funções melódicas desses graus alterados.

    Estratégia 2: Montagem e remontagem: Escuta de estruturas complexas— Uma abordagem construtivista

    Esta é a estratégia descrita por Covington & Lord (1994) como vivência direta comas estruturas complexas e que os autores chamam de montagem (assembly) e remon-tagem (reassembly). Uma vez que os estudantes tenham a oportunidade de escolhera ordem e as estratégias particulares usadas para decodificar o material, são orienta-dos a gravar numa faixa do sequencer o que ouviram.

    ConclusõesA coexistência das abordagens objetivista e construtivistas, ao contrário do que pen-sam Covington & Lord (1994), não são, na opinião da autora desta proposta, ne-cessariamente excludentes. O problema da abordagem exclusivamente objetivistaestá na falta do exercício da transferência de um domínio a outro, no que, de fato,consiste a crítica daqueles autores ao objetivismo. Uma fórmula aritmética não é, emsi, um problema ao estudante de matemática. O problema é não ser oferecido aoaluno o conhecimento de sua origem, a informação: ‘de onde vem?’ Se, ao contrário,como professores e pesquisadores, oferecermos aos alunos a possível conexão às tex-turas complexas da música, respeitando suas próprias experiências e dirigindo-as demaneira que eles mesmos possam aplicá-las em seu treinamento auditivo, o estudoda percepção pode se tornar menos árido e mais interessante. Esta pesquisa se en-contra em andamento, sendo aplicada aos alunos de primeiro e segundo anos de gra-duação em música do Instituto de Artes da Unesp.

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  • Agradecimentos

    À FUNDUNESP, por financiar a apresentação desta pesquisa no Simpósio de Cognição eArtes Musicais (SIMCAM VI).

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  • Memória e Imitação na Percepção MusicalRicardo Dourado Freire

    [email protected] de Música, Universidade de Brasília

    ResumoO processo cognitivo da percepção musical acontece mediado pelas maneiras como amemória atua no registro e processamento das informações auditivas. A abordagem dapercepção musical como processo cognitivo aceita que a memória pode atuar de diversasmaneiras durante o processo de identificação e escrita musical. O presente artigo tempor objetivo estabelecer uma relação entre os diferentes tipos de memória e propor mo-delos de imitação compatíveis com as formas de funcionamento de cada tipo de memóriaapresentado: (1) memória de longa duração, (2) memória de curta duração / memória ope-racional e (3) memória sensorial / neurônios espelho. De acordo com o modelo clássicode Attkinson & Shiffrin (1971 apud Sternberg, 2000) a memória pode ser processada de di-versas maneiras: (1) armazenamento sensorial, períodos de tempo muito breves, (2) arma-zenamento de curto prazo, e (3) armazenamento de longo prazo. Baddeley e Hitch (1974apud Werke 2008) propuseram o modelo de memória operacional que compreenderia esubstituiria o conceito clássico de memória de curto prazo. O conceito memória sensorialpode ser revisto e ampliado a partir das pesquisas de Rizzolatti (2004) sobre neurôniosespelho. No trabalho de percepção musical a imitação é uma ferramenta fundamentalpara o processo de aprendizagem. Cada tipo de memória pode ser desenvolvido pormeio de um tipo específico de imitação que irá promover uma forma de processamentoda informação musical. São propostas as denominações de imitação longa relacionada àmemória de longa duração; imitação curta, relacionada à memória de curta duração, imi-tação operacional relacionada à memória operacional e imitação espelho relacionada aofuncionamento de neurônios espelho. O trabalho demonstrou a potencialidade de se con-ceber a imitação como ferramenta para o desenvolvimento da memória no contexto dapercepção musical.

    Memória e ImitaçãoA percepção musical pode considerar tanto os aspectos fiscos da vibração dos sonsquanto os complexos processos de identificação e significação de eventos sonorosque possam ser semanticamente considerados como música. O processo cognitivoda percepção musical acontece mediado pela duração temporal das informaçõesapresentadas e em conseqüência pelas formas como a memória atua no registro eprocessamento das informações auditivas. A abordagem tradicional do ensino depercepção centrado no conteúdo musical pressupõe que o aluno deva memorizartrechos musicais para ser capaz de escrever ditados musicais. No entanto, a aborda-gem da percepção musical como processo cognitivo complexo deve observar os di-ferentes tipos de memória que atuam de diversas maneiras durante o processo deidentificação e decodificação musical. A partir da análise dos tipos de memórias en-

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  • volvidos no processo e suas relações com os processos de imitação propostos é pos-sível direcionar as práticas de percepção musical realizadas em atividades pedagógi-cas.Os estudos inicias sobre a Psicologia da Música realizados por Seashore (1938) co-locavam a memória como um dos aspectos fundamentais da aprendizagem.

    O processo de aprendizagem em música envolve dois aspectos principais: aqui-sição e retenção de informações e experiências musicais, e o desenvolvimento dehabilidades musicais. Estes dois aspectos podem ser incluídos no uso comum dotermo “memória”; assim sendo, nós possuímos uma memória consciente, que éa capacidade de tornar acessível a informação e habilidades armazenadas, e tam-bém uma memória subconsciente ou automática, que é um tipo de hábito, de-monstrado nos vários tipos de habilidades musicais durante a performance.(Seashore, 1938, pag. 149)

    Ao refletir sobre as idéias de Seashore podemos verificar que ele propõe que naaprendizagem estão presentes a aquisição de informações musicais, que podem serrealizadas por meio da imitação e a retenção da informação, característica funda-mental da memória musical.De acordo com Costa (1997), a “memória auditiva caracteriza-se pela capacidadede ouvir os sons internamente, ou seja, pensar os sons na ausência de fonte sonora”.Seashore (1938) refere-se a esta memória interna a partir do conceito de imaginaçãomusical (auditory imagery) como “a capacidade de ouvir música na lembrança, notrabalho criativo, e para suplementar os sons físicos atuais na audição musical”. Uti-lizou analogias com os processos de pintura e escultura para exemplificar seu con-ceito. Descreveu também que as imagens auditivas operam durante a audição damúsica, na reconstrução (recall) da música ou no processo de criação musical. Gor-don (1997) definiu o processo cognitivo de audição interna a partir da criação deum novo termo teórico: audiação (audiation) que “acontece quando é possível assi-milar e compreender em nossas mentes, músicas que estejam sendo executadas, queforam executadas no passado, ou para a qual o som não esteja fisicamente presente.”Também definiu tipos e estágios de audiação que incluem: (1) ouvir, (2) ler, (3) es-crever, (4) lembrar e tocar, (5) lembrar e escrever, (6) criar e improvisar na perfor-mance, (7) criar e improvisar durante a leitura, e (8) criar e improvisar durante aescrita. Lehman, Sloboda e Woody (2007) argumentaram que a performance mu-sical pode ser considerada, principalmente, como uma habilidade mental e não ape-nas uma atividade física. Utilizaram o conceito de representação mental como areconstrução interna do mundo externo vinculado às várias habilidades musicais.Imitação pode ser considerada como um dos procedimentos pedagógicos básicosutilizados no processo de aprendizagem musical. Processos tradicionais de ensinoinstrumental e vocal, seja em conservatórios europeus ou em culturas de tradiçãooral, utilizam a imitação de trechos musicais como elemento de aprendizagem. Naabordagem de Edwin Gordon (1997), o autor estabelece o processo de imitação de

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  • padrões melódicos e padrões rítmicos como elemento fundamental da aprendizagema partir da qual serão estabelecidos os procedimentos de instrução musical.O processo de imitação pode ser abordado de diversas maneiras, desde a imitaçãode notas individuais, imitação de intervalos musicais (2 notas), imitação de acordes(grupos de três notas simultâneas), imitação de linhas melódicas curtas, imitaçãode frases musicais, até a imitação de peças musicais completas. No entanto, quaissãos as relações que podem existir entre memória e imitação e de que maneira a es-truturação da imitação contribui na organização da memória.

    Tipos de MemóriaNa área de música existem várias abordagens para o estudo da memória. Principal-mente nos processos de memorização musical de peças musicais nas quais estão re-lacionados elementos da memória mecânica/cinestésica, memória auditiva, memóriavisual e memória analítica. (Costa, 1997)Neste trabalho, será observada, como referência inicial, a abordagem da psicologiacognitiva que de acordo com o modelo clássico de Attkinson & Shiffrin (1971 apudStenberg, 2000) a memória pode ser processada de três maneiras: 1) armazenamentosensorial, 2) armazenamento de curto prazo, e 3) armazenamento de longo prazo.A partir de um estímulo externo a informação pode ser registrada pelo sistema sen-sorial tanto visual quanto auditivo. A partir do registro sensorial, criador de umamemória sensorial, a informação pode ser registrada na Memória de Curta Duração,controlado pelos processos de ensaio, codificação, decisão e estratégias de recupera-ção da informação. A fixação permanente da informação irá produzir a Memória deLonga Duração.Baddeley (2004) explica o modelo de memória operacional que pressupõe a exis-tência de um sistema executivo central que gerencia e atua no controle da atençãodas ações armazenadas. Este sistema é auxiliado pela alça fonológica ou articulatória(phonological loop) que terá a função de manter na memória, por poucos segundos,as informações da linguagem funcional, como um ensaio silencioso das informaçõesarmazenadas a partir de referências verbais. O exemplo da alça fonológica pode serobservada quando uma pessoa repete silenciosamente um número de telefone, ouum endereço, por várias vezes, até ter certeza da memorização. O esboço vísuo-es-pacial (visuospatial sketchpad), um segundo sistema auxiliar, têm a função de arma-zenamento temporário e manipulação de informações visuais e espaciais. De acordo com Sternberg (2000) a memória sensorial é caracterizada pelo armaze-namento rápido que ocorre nos milisegundos seguintes a apresentação de uma in-formação. Funciona como um repositório inicial, propiciado pelos sentidos, de umconjunto de informações que serão selecionadas e que ingressam nos armazenamen-tos de curta e longa duração. O conceito de memória sensorial pode ser revisto eampliado a partir das pesquisas de Rizzolatti (2004) sobre neurônios espelho que

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  • identificou em macacos a presença de neurônios com funcionamento específico paraativar ações musculares são executadas e quando as mesmas ações são apenas obser-vadas ou escutadas, sendo que este funcionamento também está presente nos hu-manos. Desta maneira, tornou-se possível verificar que a mente é capaz de realizarrepresentações mentais de ações físicas de maneira muito rápida e quase que simul-taneamente enviar estímulos para a reprodução das ações musculares observadas.Gallese e Goldman (2000) realizaram pesquisas sobre neurônios espelho investi-gando as questões de leitura mental de macacos e observaram que a atuação de neu-rônios espelho facilitam a ação de grupos musculares dos sujeitos observadores emrelação aos sujeitos atores. Neste caso, os dados indicam que neurônios espelhopodem funcionar de acordo de uma perspectiva de uma teoria da estimulação naqual os sujeitos observadores conseguem adotar a perspectiva dos sujeitos atores porconseguirem estabelecer um funcionamento cerebral semelhante ao original.O presente artigo tem por objetivo estabelecer uma relação entre os diferentes tiposde memória e propor modelos de imitação compatíveis com as formas de funciona-mento de cada tipo de memória apresentado: 1) memória de longa duração, 2) me-mória de curta duração, 3) memória operacional e 4) memória sensorial / neurôniosespelho. Neste processo são caracterizadas as maneiras de utilização dos tipos de me-mória e as formas como estas memórias podem ser usadas nas atividades de percep-ção musical. Nesta contextualização do uso da memória faz-se necessário articularos tipos de funcionamento da memória e as possibilidades de exercícios de percepçãomusical.

    Discussão TeóricaA memória musical atua como um processo de acúmulo de informações que devemser processadas durante o reconhecimento e transcrição de trechos musicais. A me-mória pode funcionar de uma maneira positiva ao criar hierarquias e grupamentosde notas ou de maneira negativa ao interferir na identificação dos elementos musicais.Deutsch (1999) indica que “a memória na música precisa ter o funcionamento deum sistema heterogêneo, no qual as várias subdivisões se diferenciam a partir da pré-existência de elementos que irão reter a informação.” Assim, na atividade de percep-ção, o funcionamento da memória envolve vários aspectos que compõem essesistema complexo e diversificado de estímulos e processos de decodificação da in-formação. Entre as discussões sobre as similaridades e diferenças entre a memória de curta du-ração e a memória operacional, destacamos alguns estudos. De acordo com Kenrick(1994, p. 220 apud Engle et al.2000) a memória de curta duração é usada para reterinformações por períodos curtos. No entanto, a definição de memória operacionalrefere-se a um construto mais complexo, definido como um conjunto de elementosda memória ativados aos processos centrais de execução (Cowan apud Engle et al.2000).

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  • Os conceitos tradicionais de memória estão sendo revistos atualmente com novaspropostas de construtos teóricos. Ericsson e Kintsch (1995) apresentam estudospropondo a necessidade de ampliar o conceito de memorial operacional para situa-ções de longo prazo. A partir da análise dos processos cognitivos presentes na leiturae compreensão de textos, performance de alto nível e na atividade de jogadores avan-çados de xadrez, os autores refletem sobre os processos de armazenamento de infor-mações que precisam ser constantemente acessadas para realização de tarefascomplexas. Em atividades que exigem perícia, “a aquisição de habilidades de memó-ria permitem que informações importantes sejam armazenadas na memória de longaduração e acessadas pela memória de curto prazo” (Ericsson e Kintsch, 1995).Na área de música, Mariana Werke (2008) investigou se a memória operacional écapaz de lidar igualmente com sons verbais (números e pseudopalavras) e não-ver-bais (tons).O estudo observou indícios de que material melódico tem característicasdiferentes do material verbal, pois a manipulação de seqüências melódicas na me-mória operacional parece ser mais difícil do que a manipulação de seqüências verbaispara os três grupos experimentais. Os resultados indicam que pode existir uma alçafonológica exclusiva para o conteúdo musica e indica demonstra são necessáriasnovas pesquisas para caracterizar melhor as condições em que sequências melódicassão armazenadas e manipuladas na memória operacional. A hipótese da existênciade uma alça musical, ou o treinamento de uma operação musical, permite a elabo-ração de atividades que possam se beneficiar de um funcionamento rápido ao acessodas informações musicais.Overy e Molnar- Szakacs (2009) propuseram que os neurônios espelho podem estarativos em situações musicais como uma sequência de ações motoras que precedemos sinais musicais, e que o sistema humano de neurônios espelho permite a co-re-presentação e troca de experiências entre músico e audiência. Neste contexto, foiproposto que a imitação, a sincronização, e o compartilhamento de experiênciaspodem ser elementos que promovam o sucesso na realização de atividades musico-terápicas e com crianças com necessidades especiais. Neste caso, o funcionamentode neurônios espelho permite uma comunicação direta entre os participantes doprocesso, atividades de espelhamento permitem trocas significativas entre os parti-cipantes das experiências musicais, valorizando aspectos sociais e afetivos envolvidosno processo.Em trabalho anterior, Freire (2008) investigou a relação da imitação em tempo-real,e as imitações simultâneas de atividades musicais que foi caracterizada, a princípio,como ação simultânea que após revisão será considerada como uma atividade espe-lho:

    O processo de Ação Simultânea (espelho) está presente em várias atividades co-letivas, de uma forma direta e produtiva para líderes e participantes de gruposmusicais ou de atividades esportivas. Uma aula de ginástica aeróbica é um bom

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  • exemplo de uma situação em que os participantes conseguem seguir em temporeal, as indicações dos movimentos corporais do professor de educação física.Nestas aulas, o movimento é observado e repetido simultaneamente com a mú-sica, sendo que o estímulo visual do professor é observado, copiado e reproduzidocomo em um espelho ao mesmo tempo em que é apresentado pelo instrutor.Nesta situação, o estímulo visual é o fator que permite a ação simultânea entreos movimentos dos instrutores e os movimentos dos alunos. Um Coral de Leigosé um bom exemplo de situação musical na qual as pessoas conseguem acompa-nhar a performance musical, mesmo sem saber a leitura musical. Nesta situaçãoos participantes seguem as indicações musicais do regente e os líderes de naipe,ouvindo, olhando os movimentos labiais, seguindo a letra da música, sendo quemuitas partes da música não estão memorizadas e necessitam de exemplos musi-cais (colegas, piano, instrumentos, regente) para que as pessoas possam acompa-nhar e participar da performance musical. (Freire, 2008)

    Resultados O processo de imitação consiste na repetição de uma determinada informação. Notrabalho de percepção musical a imitação é uma ferramenta fundamental para o pro-cesso de aprendizagem. Cada tipo de memória pode ser trabalhada por meio de umtipo específico de imitação que irá promover uma forma de processamento da in-formação musical. Desta maneira são propostas as categorias: imitação longa, rela-cionada à memória de longa duração; imitação curta, relacionada à memória decurta duração; imitação operacional, relacionada à memória operacional e imitaçãoespelho, relacionada ao funcionamento de neurônios espelho. (Fig. 1)

    Figura1 — Correlação entre tipos de memória e tipos de imitação

    A imitação longa, relacionada à memória de longo prazo, pode ser trabalhada pormeio de atividades nas quais os sujeitos possam memorizar trechos musicais longos,após diversas audições, e tentar decodificar verbalmente por meio de solfejo, outranscrever os trechos musicais. (Fig. 2) A característica deste tipo de imitação estáem permitir uma visão do contexto musical de maneira completa, de forma que osujeito possa descobrir os detalhes a partir do todo. Neste contexto, a aprendizagemocorre da macroestrutura para a microestrutura.

    Memória de Longo Prazo Imitação LongaMemória de Curto Prazo Imitação Curta

    Memória Operacional Imitação OperacionalMemória Sensorial/Neurônios Espelho Imitação

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  • Figura 2— Atlântico (Ernesto Nazareth — Domínio Público) Trecho para imitação longa.

    A imitação curta, vinculada à memória de curto prazo, pode ser trabalhada pormeio de atividades nas quais os sujeitos podem memorizar trechos musicais curtos,após poucas audições, e tentar decodificar verbalmente por meio de solfejo, ou trans-crever os trechos musicais. (Fig. 3) Neste caso, os trechos a serem imitados são decurta duração (um ou dois compassos) e cada trecho pode ser imitado várias vezesantes de outro trecho ser apresentado. Neste caso a ação de ouvir e imitar trechoscurtos reforça a memória de curta duração, que a partir do armazenamento de di-versos trechos pode construir uma memória de longa duração.

    Figura 3 — Atlântico (Ernesto Nazareth — DP) Trecho para realização de exercícios de imitação curta.

    As memórias de longo e curto prazo são tradicionalmente trabalhadas em atividadesde percepção musical, sejam em ditados ou em procedimentos que músicos popu-lares e eruditos usam para aprender novas músicas a partir de gravações. A memóriaoperacional apresenta características distintas das anteriores, pois faz-se necessárioacessar e relacionar pequenas quantidades de informação que serão trabalhadas emtempo real. Por exemplo, quando um violonista acompanha de ouvido uma músicanova, ele necessita ouvir e memorizar partes da melodia e ao mesmo tempo criar re-cursos para verificar qual o acorde deverá ser utilizado. Esta complexa operação damemória de trabalho é processada pelo sistema executivo central ao lidar com o ar-mazenamento de informações novas (melodia) e sua relação com um conhecimentoadquirido (acordes) a partir da atenção do material sonoro, capacidade de resumirmelodias e planejamento das opções harmônicas. A imitação operacional pode sertrabalhada a partir da repetição de pequenos grupos de três ou quatro notas, queprecisam ser imitados imediatamente, para que as informações sejam mantidas ouensaiadas mentalmente. A imitação operacional se diferencia da memória de curtoprazo por depender da repetição imediata e da relação entre as informações que estãosendo armazenadas em tempo real. Outro exemplo de atividade de imitação opera-

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  • cional é a divisão de um trecho musical em pequenos motivos que podem ser apre-sentados em rápidas sequências. (Fig. 4)

    Figura 4 — Atlântico (Ernesto Nazareth — DP) Trecho para ser realizado como imitação operacional

    A característica dos neurônios espelho é promover uma imitação imediata, ou es-pelhada, da atividade principal. A ação e imitação ocorrem quase que simultanea-mente, pois a imitação ocorre frações de segundo após a ação principal. Por exemplo,quando uma pessoa tenta cantar uma música que não conhece com outra pessoa queesteja cantando. A pessoa tenta acompanhar a outra cantando “um pouco depois” emuitas vezes completando as frases já iniciadas. Esta atividade pode ser adaptadapara atividades de percepção musical, quando uma linha musical é apresentada,sendo imitada imediatamente. Neste caso uma nota precisa ser realizada e imitadaantes da nota seguinte. (Fig. 5) Na imitação espelho a aprendizagem ocorre a partirda microestrutura, da identificação de cada nota apresentada. A princípio, é neces-sário uma curta fração de segundo antes da imitação, mas o tempo de resposta podeser reduzido consideravelmente a partir de um treinamento progressivo. Pode-se ca-racterizar que a função da imitação espelho seja uma ação que permite a interaçãomusical em tempo real cujo estímulo e resposta musicais ocorrem tão rápido de ma-neira que sejam percebidos como uma reverberação sonora, ou seja, algo semelhanteao efeito de delay de aparelhos de amplificação.

    Figura 5 — Atlântico com valores aumentados (Ernesto Nazareth — DP) Trecho para ser realizado como imitação espelho

    A relação entre memória e imitação pode direcionar o trabalho pedagógico de per-cepção musical com sujeitos de diversas idades. A escolha de um tipo de imitação,que implica no uso de um determinado tipo de memória, possibilita compreendermelhor qual o modo de aprendizagem envolvido nas diferentes atividades.

    ConclusãoEsta pesquisa demonstrou a potencialidade de se conceber a imitação como ferra-menta estratégica para o desenvolvimento da memória no contexto da percepção

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  • musical. Cada tipo de memória pode ser trabalhada por meio de um tipo de imitação,que irá promover uma forma específica de processamento da informação musical. Aimitação de trechos longos, com 4 a 8 compassos, reforça o uso da memória de longaduração enquanto a repetição de frases musicais de dois a quatro compassos utilizaa memória de curta duração. Em casos nos quais são apresentados padrões musicaisde quatro a seis notas, imitados logo em seguida, estará usando a memória opera-cional. O uso da memória sensorial/neurônios espelho, por meio da imitação espe-lho, que tenta reproduzir simultaneamente a informação apresentada. O uso deestratégias diversificadas de imitação permite a articulação entre os modos de assi-milação da informação musical e seu processamento pelos diferentes tipos de memória.

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    In Anais do 4º. SIMCAM (Simpósio de Cognição e Artes Musicais). São Paulo: USP.

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  • Crítica às teorias representacionalistas da percepção musicalAndré Villa

    [email protected] de música — Universidade de Paris 8

    MSH Paris Nord

    ResumoA grande maioria das atuais teorias de modelização da percepção musical estão inseridasnum paradigma representacionalista da cognição e trabalham predominantemente comexemplos baseados em músicas tonais. Estas teorias postulam que nossa percepção realizauma extração de gestalten do continuum sonoro para formar um grupamento em unida-des perceptivas e que, em seguida, nós organizamos estas unidades em uma hierarquiza-ção seqüencial. Nesta perspectiva, esta organização perceptiva é vista como umasegmentação da superfície musical. Evidentemente, o principal — e por vezes o único —elemento musical morfofórico ( i.e. portador de forma) levado em consideração em taismodelos é a altura musical ( i.e. pitch, hauteur, Tonhöhe). Este texto desenvolve uma análisebaseada na percepção de músicas não-tonais e em alguns exemplos extraídos da etno-musicologia e propõe uma inversão dos modelos teóricos em questão. Em ressonânciacom a fenomenologia, a hermenêutica, a fisiologia da ação, a enação e as epistemologiasconstrutivistas, eu entendo a percepção não como um tratamento passivo de informaçõesdos estímulos de um mundo pré-estabelecido, mas como uma ação constitutiva do fe-nômeno percebido. Neste sentido, perceber as estruturas que compõem uma obra musicalé visto não como a realização de uma análise que extrai descontinuidades de uma unidadefuncional global, mais uma atividade que faz emergir um continuo articulado à partir doselementos discretos que formam os “postulados musicais”.

    IntroduçãoA grande maioria das atuais teorias de modelização da percepção e da cognição mu-sical estão inseridas num paradigma representacionalista da cognição. Expressões econceitos como “representações mentais”, “linguagem do pensamento”, “tratamentodas informações”, “sistema interno”, “codificação simbólica”, “emergência”, “universais”,entre outros, são freqüentemente utilizados nos textos científicos que trabalhamsobre as questões da cognição musical. Entretanto, ao meu entender, estas utilizaçõesnão refletem nenhum questionamento sobre a origem e os fundamentos filosóficose epistemológicos que servem de alicerce ao paradigma representacionalista da cog-nição. Este texto sugere um olhar crítico sobre estas questões.

    Paradigmas representacionalistas e ciências cognitivas: as origens

    Uma grande parte das teorias e dos modelos de percepção musical disponíveis na

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  • literatura especializada se dividem basicamente como pertencendo à dois diferentesparadigmas: o cognitivismo e o conexionismo. No entanto, ambos estão inseridosnuma abordagem computacional e representacionalista da cognição humana. Issoquer dizer que ambos paradigmas consideram os indivíduos como sistemas quetratam as informações pré-estabelecidas pelo mundo exterior e que, de uma certaforma, em certas partes do nosso córtex existem ativações neuronais ou “estadosmentais” que representam os dados do mundo percebido. Evidentemente, em umatal abordagem, existe uma relação de causa e efeito entre o mundo (pré-determinado)e as representações mentais que nós fazemos deste (a vectorização sendo obrigatoria-mente neste sentido mundo ⇒ percepção). De uma maneira extremamente resu-mida, a distinção entre os dois paradigmas pode ser apresentada da seguinte forma:

    O cognitivismo “clássico” admite a existência de estados mentais consideradoscomo idênticos e dependentes de um dado estado físico (concepção fisicalistado mundo) e supõe a existência de representações mentais simbólicas que são con-cebidas como enunciados de uma linguagem formal interna ao sistema. Esta lin-guagem formal — também chamada de linguagem do pensamento — possuiassim uma estrutura lógico-sintáxica (nível simbólico) que pode ser avaliada se-manticamente (nível representacional). Os processos cognitivos são entendidoscomo processos computacionais (“cálculos”) efetuados sobre símbolos e repre-sentações segundo um sistema de regras formais pré-estabelecidas. Os símbolospodem fazer referências às situações do mundo (fenômenos externos) e formamentidades estáveis. Eles podem ser estocados em memória e transformados se-gundo as citadas regras (o paradigma cognitivista é também chamado de sim-bólico). Estes “cálculos” são conduzidos sequencialmente — em um processobasicamente bottom-up — sob a direção de centros de controle (top-down) a umalto nível do processo cognitivo. O processo ocorre portanto de maneira internaao sistema que é assim apresentado como sendo linear. O cognitivismo é decla-radamente e abundantemente inspirado dos trabalhos sobre o computaciona-lismo e os sistemas formais que deram origem à informática, ao computador eaos primeiros projetos de pesquisa em inteligência artificial (IA). Este paradigmaconsidera assim as relações entre o físico e o mental como similar ao modelo dasrelações entre software e hardware em informática: o nível computo-represen-tacional de descrição dos estados e processos mentais (i.e. a cognição humana)é amplamente autônomo em relação ao nível físico do sistema interno no qualo nível computo-representacional se desenvolve (i.e. o córtex humano). “Pensaré calcular” torna-se a máxima que exprime o pensamento cognitivista e a “má-quina de Turing” transforma-se no principal modelo da mente humana.

    O conexionismo se desenvolveu principalmente à partir da chamada segunda ci-bernética e considera a cognição como a emergência de estados globais internosao sistema, sendo este sistema composto por uma rede de componentes simples(e.g. os neurônios humanos, os neurônios formais da informática). O sistema éconsiderado como sendo dinâmico complexo (logo, não-linear) e os “cálculos”são efetuados em paralelo — tratamento das informações de forma massiva —

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  • em múltiplas interações locais efetuadas pelos elementos que compõem a rede,o que implica em uma ausência de centros de controle. Os estados do mundo nãosão mais representados por símbolos como no cognitivismo, mas por estadosemergentes da rede conexionista (paradigma sub-simbólico). Esta emergênciaproduz estados estáveis e ocorre de forma auto-organizável, baseada nos “pesos”das conexões locais e na formação de conjuntos atratores no espaço do sistema.Vista como o surgimento auto-organizável de singularidades em sistemas natu-rais e baseada nos substratos materiais, a emergência conexionista também é ba-sicamente bottom-up. Neste sentido, o conexionismo — assim como ocognitivismo — é fisicalista (i.e. tese ontológica segundo a qual os constituintesda realidade são entidades físicas ou são determinadas exclusivamente por estas)e sustenta uma espécie de realismo semântico numa fórmula que consiste em rei-ficar — por vezes hipostasiar — o sentido concebido como entidade objetiva au-tônoma, independente do fato de ser apreendido ou não pela “mente” humana.

    A percepção como ação constitutiva do fenômeno percebido

    Como crítica ao paradigma computo-representacional, eu utilizo uma abordagemem ressonância com a fenomenologia, a hermenêutica, a fisiologia da ação, a enaçãoe as epistemologias construtivistas.

    A fenomenologia como base metodológicaA característica essencial da metodologia própria à fenomenologia husserliana é depriorizar descrição das estruturas fenomenais que caracterizam a forma pela qualos objetos se apresentam. A fenomenologia não se refere às diferenças entre duassubstâncias “fechadas” em si mesmas (dualismo cartesiano), e propõe uma superaçãoda oposição entre internalismo/externalismo. Ela prioriza a análise das estruturas quefazem a “correlação” entre as duas instâncias fundamentais de um mesmo fenômeno:um ato intencional (a noesis, ação doadora de sentido) e o objeto correlato deste ato(o noema, subordinado à noesis, mas independente pois é a unidade — ou plurali-dade — objetiva das determinações). Como cita Jean-Luc Marion, a conquista fun-damental da fenomenologia de Husserl é que “fenômeno [Erscheinung] não se diznem primeiro, nem somente do objeto que aparece, mas também da experiência vividana qual e pela qual ele aparece.” (Marion, 1989, 85).Husserl — e, mais explicitamente, Heidegger e Merleau-Ponty — chama nossa aten-ção sobre o fato que é nossa atividade, nossa interação com o mundo que nos dis-tingue dele e que o dota de sentido para nós. A percepção participa assim ativamenteda constituição do mundo ao nosso redor. A estrutura enquanto organização própriade um objeto percebido (e.g. uma obra musical) emerge no carrefour da correlaçãonoesis-noema. A fenomenologia também desenvolve de forma aprofundada muitasquestões sobre os objetos temporais e pode assim funcionar como uma potente e

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  • frutuosa “máquina filosófica” para analisarmos a percepção musical (Villa, 2005 e2008).

    Emergência, hermenêutica e enaçãoO termo emergência é polissêmico. A significação que eu atribuo a este termo seaproxima sensivelmente do conceito de enação sugerido e introduzido em ciênciascognitivas graças ao trabalho de Francisco Varela. O termo enação é uma tentativa de “traduzir” a nova designação do termo herme-nêutica adotada por Martin Heidegger. Para ele, a hermenêutica não se refere apenasà disciplina da interpretação de textos antigos. Com Heidegger e seu discípulo Ga-damer, a hermenêutica passa a designar “o fenômeno da interpretação como um todo,entendido como a enação ou fazer-emergir [enactment or bringing forth] da signifi-cação sobre um fundo [from a background] do entendimento” (Varela, Thompson eRosch, 1991, 149). Esta hermenêutica “heideggeriana” pressupõe o conhecimentodo mundo circundante como inseparável do ser que o percebe e de suas experiênciasvividas. Esta noção de emergência da significação como uma ação encontra-se já germinadanos fragmentos de Heráclito onde a palavra grega φυσιζ [phusis ou physis] designa oprocesso perpétuo de emergência pelo qual as coisas — a natureza — vêm à “ser”para o ser que percebe (Heidegger, 1958, 326). Este processo de emergência, nos es-creve Jean-Michel Salanskis, desenvolve um “sentido” cada vez que por ele ou nelehá a produção da aparição-estabilização de uma morfologia (Salanskis, 2003, 93).Esta morfologia que, na finalização desta emergência, se impõe à este mesmo ser quepercebe. Esta definição de “sentido” nos propõe a interpretação do comportamentocognitivo como a constituição ou a síntese do significado. O termo “sentido” é aquiutilizado como a emergência produzida e organizada de uma morfologia e é assimdesviado e ampliado de seu uso exclusivamente lingüístico. Outro argumento originário do pensamento heideggeriano e utilizado como críticaao representacionalismo nas ciências cognitivas — e principalmente na sua aplicaçãonas pesquisas de IA — é a leitura que Heidegger faz da situaçãoou do homem situado no mundo (Heidegger, 1997; Dreyfus, 1979). A hermenêuticaheideggeriana nos evidencia assim que as construções do sentido, da significação, dafuncionalidade e mesmo da decisões que possibilitam as constituições percebidascomo ontológicas dos objetos do mundo — e do próprio ser-no-mundo e da sua pre-sença (Dasein) — são intrínsecas ao contexto, à rede social, a cultura, em outraspalavras, à situação onde estes objetos e os sujeitos que os percebem evoluem e inte-ragem. Este pensamento, de uma certa forma, foi igualmente postulado por Mer-leau-Ponty no conceito de “arco intencional” (Merleau-Ponty, 1945, 158).

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  • Intersubjectividade, neurologia e fisiologia da açãoA intersubjectividade é o conceito da fenomenologia que tenta designar o que hojecostuma-se chamar de cognição social. Em outras palavras, como nós percebemos ecompreendemos o que os outros sujeitos percebem e compreendem. Os neurônios espelhos fazem parte dos dados recentes em neurologia (Rizzolatti eal., 1995; Rizzolatti e Sinigaglia, 2008) que podem ajudar na compreensão da in-tersubjectividade por meio de fatores biológicos, numa espécie de “naturalização”da fenomenologia. Estes neurônios se encontram principalmente no córtex pré-motor dos grandes primatas — macacos e homens — e se ativam tanto quando umanimal realiza uma determinada ação que quando este observa outro animal (nor-malmente da mesma espécie) realizar a mesma determinada ação. Assim, os neurô-nios espelhos podem nos ajudar à explicar como nós percebemos e compreendemosas interações dos sujeitos que nos circundam com o mundo que nos envolve à todos.Se a percepção é interdependente da ação e está situada, a intersubjectividade é semdúvida um fator primordial na construção cognitiva do mundo que nos envolve. As recentes pesquisas em fisiologia da ação (Berthoz e Petit, 2006; Berthoz, 2008)são esclarecedoras neste assunto e revelam o quanto uma abordagem fenomenoló-gica da percepção pode se mostrar pertinente com os dados produzidos nas recentespesquisas em fisiologia. Alain Berthoz, em ressonância com a fenomenologia, pos-tula que o pensamento não vem antes da ação nem vice-versa: a ação contém todoo pensamento.

    Algumas implicações da utilização do conceito de representação mental

    Varela chama a nossa atenção para a seguinte evidência: “somente um mundo pré-determinado pode ser representado mentalmente” (Varela, 1989, 92). A simples hi-pótese da existência de representações mentais pressupõe uma concepção dualistado mundo. Isto implica em aceitar a hipótese que o mundo à ser representado nãodepende nem do ser que o percebe, nem do contexto onde ocorre o ato perceptivo.O mundo é assim dotado de estabilidade ontológica separada em duas substânciasestáticas e independentes: o sujeito e o objeto. Temos como conseqüência um rea-lismo que permite uma especulação sobre a universalidade dos objetos do mundo(i.e. um objeto guarda sua ipseidade onde quer que ele se encontre no mundo) e “au-toriza” uma procura pelos universais em música. Em seguida, a relação entre uma representação R e a entidade representada E de-pende de elementos exteriores à R e E. Além disso, uma representação exata, no sen-tido que todas as propriedades de uma entidade E estejam presentes em umarepresentação R (i.e. R = E) contradiz o próprio conceito de representação. Assim,o que faz com que, dentro de um paradigma representacionalista, minhas represen-

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  • tações correspondam ou representem de maneira adequada as realidades externas?Formulando de uma outra maneira, quais são os elementos ou regras exteriores àsrealidades percebidas e suas respectivas representações mentais que servem de ancoraà adequação dos símbolos sobre os quais minhas representações mentais se portam?Se no paradigma representacionalista o mundo está separado em duas substânciasontologicamente independentes, como ocorre esta ponte entre estas duas substânciase, principalmente, o que me assegura a adequação entre R e E ? Ou ainda, como fugirdeste solipsismo e chegar à um consenso sobre os objetos do mundo se não for demaneira pública?

    As representações como funções operatórias: o exemplo da composição musical

    Eu não excluo a hipótese que possam haver atividades de uma forma representacio-nal — e portanto simbólica — nas experiências cognitivas cotidianas. Por exemplo,compor uma obra musical escrevendo sobre uma pauta, dedilhando sobre um violãoou programando em um computador. Dentro de um paradigma representacionalista,tais atividades representacionais reenviam rapidamente ao que Jacques Bouveressechama (baseado nas análises de Wittgenstein sobre a “linguagem privada”) de “omito da interioridade” (Bouveresse, 1976). De uma maneira resumida, é este “mito”que faz com que nós acreditemos que as “idéias musicais” nascem prontas e de ma-neira isolada na cabeça do compositor — como representações mentais — e que, emseguida, ele às exterioriza, seja sobre uma pauta, um instrumento ou um computador. Ora, as idéias musicais nascem justamente da interação do compositor com tais uten-sílios. Mesmo Beethoven não tinha suas idéias musicais prontas em sua cabeça. Seussketchbooks nos mostram como a interação do compositor com seus cadernos é queestruturaram seu pensamento e, por conseguinte, suas composições. A utilização deum instrumento musical durante a composição deixa ainda mais evidente esta inte-ração. Quanto ao computador, esta questão torna-se explicita nos argumentos deWinograd e Flores que nos evidenciam que os conceitos emergem antes da interaçãoque na máquina ou na cabeça do utilizador (Winograd e Flores, 1986). Eu entendo assim estas possíveis representações que nós podemos efetuar em relaçãoao mundo como sendo de uma ordem operatória. Elas participam à uma “troca” in-terativa que o sujeito — o ser vivo em geral — opera com seu habitat. Estas atividadesse encontram imersas em uma rede de processos operatórios que Maturana e Varela(1980) chamam de “acoplamento estrutural” (structural coupling). Sem esta interação,sem este estatuto operatório, os símbolos não adquirem sentido e não podem cons-truir nenhuma informação. Tanto no ato composicional como na audição de umapeça musical, somente elementos participando a um “acoplamento estrutural”podem se tornar elementos musicais morfofóricos (i.e. portadores de forma musical).

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  • A memória sem representaçõesApós tais considerações, algumas questões sobre a memória se impõem: como po-demos estocar dados e informações em memória sem a utilização de símbolos e derepresentações mentais? Ou ainda, como, em tal contexto, podemos hierarquizarperceptivamente eventos como os graus tonais e suas funções quando escutamosuma música tonal? Israel Rosenfield desenvolve uma visão crítica sobre a memória entendida como es-tocagem permanente de imagens em nosso cérebro (Rosenfield, 1994). Em uma re-leitura dos dados fundadores da neurologia no século XIX — obtidos com pacientescom lesões cerebrais (e.g. Charcot, Broca, Dejerine) — e os confrontando com novasabordagens da percepção e da memória propostas por Gerald Edelman, Rosenfieldnos mostra como a idéia de comparar o funcionamento do nosso cérebro com ocomputador se revela inadequada. O cérebro, escreve Rosenfield, “parece capaz (. . .)de criar suas próprias generalizações do mundo sem programas específicos integrados,nem informações pré-gravadas.” Ao contrario do que propõe a abordagem computo-representacionalista, nosso córtex não funciona como um disco rígido que estocasímbolos e representações.

    As mudanças de “paradigmas musicais” e o conceito de altura musical

    Wittgenstein desenvolve em seus textos as noções de aspectos e de ver . . . como (Witt-genstein, 2008). O exemplo típico é o da figura ambígua do pato-coelho. Nós pode-mos olhar o mesmo estímulo (a figura pato-coelho) e vê-lo como um pato ou vê-locomo um coelho. Existe assim aspectos de um objeto percebido que são determinadospelo pensamento e por associações. Epistemologicamente, estas noções também podem ser aplicadas às transformaçõesde “coletivos de pensamento” (Denkkollectiv), conceito introduzido por LudwikFleck e depois retomado, transformado e, segundo Bruno Latour, reduzido1 porThomas Kuhn na forma de “paradigmas científicos” (Fleck, 1992; Kuhn, 1983; La-tour, 2005). Como no experimento em que Aristóteles viu “somente” uma pedra(sustentada por um fio), Galileu viu um pêndulo. Ambos “viram” o “mesmo objetopêndulo”, mas deram interpretações e tiraram conclusões completamente diferentes.Em outras palavras, eles dotaram o “mesmo objeto” de dois aspectos diferentes, ouseja, de sentidos e significações completamente diferentes. Estas noções wittgensteinianas podem ser aplicadas à percepção musical na sua ver-são escutar . . . como. Assim, parte da minha análise é baseada nas principais trans-formações ou mudanças de “paradigmas musicais” ocorridas durante o século XX(Villa, 2008). Especialmente com o aparecimento de novas estruturas sonoras, novosconceitos do “sonoro-musical” e, principalmente, novos elementos musicais mor-

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  • fofóricos. Os exemplos são múltiplos: o princípio de abandono da funcionalidadeem música (que se manifesta desde o atonalismo de Schöenberg) e que mais tardedesenvolve o que Daniel Charles chama de “mudança de função da função” (Charles,1979). O desenvolvimento da potencialidade do “timbre” como elemento portadorde forma musical. O exemplo da pluralidade de sons que nos princípios de la musi-que concrète eram percebidos simplesmente como barulho e que hoje são usados co-tidianamente como sons musicais em composições contemporâneas e eletroacústicas(i.e. o objeto sonoro de Pierre Schaeffer assume assim o lugar da nota como elementomorfofórico musical). Ou ainda, a síntese sonora proposta pela elektronische Musik:o compositor passa à compor não apenas com sons mas os sons em si mesmos. Semcontar a dissolução da noção de forma musical e as transformações geradas pelo ad-vento da informática musical.

    A altura musical como fenômeno emergenteComo nos sinala o compositor Horacio Vaggione, não é a macro-forma de uma obramusical que é o “lugar” ou a “sede” da emergência (Vaggione, 2008). Uma peça mu-sical constitui uma situação multi-local onde a emergência é, em potência, onipre-sente. Ou seja, ela se encontra em todos os níveis do sonoro musical. A emergênciase constrói assim como um conjunto de vetorizações multi-direcionais, dentro deum espaço constituído — o que se tornou ainda mais evidente após o desenvolvi-mento da informática musical (e.g. estratégias de information-hiding) — como umarede de múltiplas escalas de duração. Ela se produz seja numa melodia ou num mo-tivo musical assim como na nota, no ritmo, no timbre, nas diferentes ornamentações,na espacialização sonora, na nuvem granular, no grão que da origem à nuvem, noenvelope espectral do grão, enfim: o som percebido como musical é um fenômenoconstruído como emergente à partir de redes multi-estratificadas.

    A altura musical como construção cognitivaAo contrário do axioma predominante no pensamento computo-representaciona-lista da percepção musical, eu não entendo a altura musical como um objeto estável,presente no mundo de forma objetiva e universal. A noção ou conceito de altura dosom como nós ocidentais a entendemos é uma construção cognitiva diretamente re-lacionada à um processo histórico-cultural determinado. A musicóloga Marie-Elisabeth Duchez nos mostra como a determinação de um ele-mento portador de forma — a altura do som — vem a ter dois aspectos diferentes deexpressão entre duas civilizações musicais diferentes como na música grega antigainstrumental e na música litúrgica do início da Idade Média. Enquanto na músicagrega antiga a alteração da “altura do som” foi obtida pela mudança da tensão — oTonus — e o comprimento das cordas da lira (referências quantificáveis), “no cantogregoriano dos dez primeiros séculos, a percepção auditiva e a emissão vocal de variações

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  • de grave-agudo se faziam sem referência físicas, segundo as sensações sinestésicas e suasconexões quinestésicas.” (Duchez, 1988, 287). Assim, na Idade Média, a noção de “al-tura do som” foi desenvolvida como uma noção abstrata (sem referências quantifi-cáveis) para ajudar a aprendizagem do canto e orientar a sua execução de forma eficaz.Na música grega antiga, a idéia de um elemento responsável pela forma musical (du-namis) permitiu um acordo relativo — porém fixo — dos instrumentos e a possibi-lidade de se poder tocar juntos (e.g. flautas que eram acompanhadas por liras).Ambas situações histórico-culturais tornaram possíveis as tr