0 pontifÍcia universidade catÓlica do rio grande do sul ... · Às receitas de quitutes, de...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA BETINA MARIANTE CARDOSO À MODA DA CASA: A COZINHA COMO ESPAÇO FÍSICO E SIMBÓLICO EM O ARROZ DE PALMA, POR QUE SOU GORDA, MAMÃE? E QUARENTA DIAS Porto Alegre 1º de dezembro de 2016

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Page 1: 0 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ... · Às receitas de quitutes, de doces, de refeições, escritas a mão em cadernos familiares, ou colhidas da Internet

0

PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS

MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA

BETINA MARIANTE CARDOSO

Agrave MODA DA CASA

A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE

SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS

Porto Alegre

1ordm de dezembro de 2016

1

BETINA MARIANTE CARDOSO

Agrave MODA DA CASA

A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE

SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS

Dissertaccedilatildeo apresentada como preacute-requisito para

obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teoria da

Literatura pela Faculdade de Letras da Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira

Porto Alegre

1o de dezembro de 2016

0

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

Ficha catalograacutefica elaborada pela Bibliotecaacuteria Clarissa Jesinska Selbach CRB102051

C268m Cardoso Betina Mariante

Agrave moda da casa a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico em O arroz

de Palma Por que sou gorda mamatildee e Quarenta dias Betina Mariante

Cardoso ndash 2016

144 fls

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul

Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira

1 Anaacutelise literaacuteria 2 Literatura brasileira 3 Memoacuteria I Moreira

Maria Eunice II Tiacutetulo

CDD 801

0

BETINA MARIANTE CARDOSO

Agrave MODA DA CASA

A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE

SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS

Dissertaccedilatildeo apresentada como preacute-requisito para

obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teoria da

Literatura pela Faculdade de Letras da Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira

Aprovada em 01 de dezembro de 2016

BANCA EXAMINADORA

Profa Dra Luciana Abreu Jardim

Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena

Profa Dra Maria Eunice Moreira

Porto Alegre

1o de dezembro de 2016

1

Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda pelos infinitos legados

que constituem meu gosto pela literatura pela cozinha e por sua interface

O som das teclas da maacutequina de escrever do Vocirc Heacutelio o perfume do panelatildeo de chimia de uva

Isabel da Voacute Leacuteia o brilho de sol nos vidros de ambrosia da Voacute Alda

ingredientes da minha escrita e do meu cozinhar

2

AGRADECIMENTOS

Agrave Profa Dra Maria Eunice Moreira pela proposta do tema que me encanta a interface

entre Literatura e Cozinha e seus diaacutelogos com outras aacutereas por todos os ensinamentos nas

disciplinas do Mestrado e na orientaccedilatildeo da escrita da Dissertaccedilatildeo pelo incentivo e pela confianccedila

durante toda a trajetoacuteria

Ao Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena pelo despertar da curiosidade e do gosto pela

literatura brasileira contemporacircnea pela confianccedila e entusiasmo e pela riqueza das sugestotildees

apontadas na Banca de Qualificaccedilatildeo de Mestrado

Agrave Profa Dra Luciana Abreu Jardim pelos ensinamentos transmitidos durante o mini-

curso que ministrou em Caxias do Sul em 2015 intitulado ldquoSobre o pensamento de Julia

Kristeva a experiecircncia-revolta atraveacutes dos cruzamentos de sentidosrdquo de grande relevacircncia para a

construccedilatildeo de minha bagagem adquirida durante o Mestrado

Agrave Profa Dra Leacutea Masina pelos meus dez anos de aprendizado nos seminaacuterios de escrita

literaacuteria por seu papel fundamental no amadurecimento do meu gosto por escrever e pelo carinho

com que conduz o processo de descobertas na literatura

Aos meus pais Ana Cristina e Apolinaacuterio e ao meu irmatildeo Diego pelo estiacutemulo aos meus

percursos e pelo incentivo para que eu sempre abrisse janelas aos horizontes possiacuteveis

Aos amigos de toda a vida Melissa Sharlene e Jaime pela amizade incondicional e pelo

apoio conversas e risadas durante o periacuteodo de escrita da Dissertaccedilatildeo

Ao Marcelo pela partilha dos prazeres da mesa com afeto muitos risos e boa prosa e

pelo estiacutemulo e sugestotildees nos desafios durante os momentos especiais do nosso conviacutevio

3

Aos autores das obras que compotildeem o corpus da Dissertaccedilatildeo Francisco Azevedo Ciacutentia

Moscovich e Maria Valeacuteria Rezende A partir de O arroz de Palma Por que sou gorda mamatildee

e Quarenta dias foi possiacutevel realizar o presente estudo

Agrave bibliotecaacuteria Clarissa Selbach pela disponibilidade e pela excelecircncia durante todo o

percurso da Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Aos meus sobrinhos Eacuterico e Lucas por me permitirem voltar a ser crianccedila em nossas

brincadeiras e por participarem do fazer culinaacuterio com alegria de festa

Agrave Tacircnia pelo afeto e pela celebraccedilatildeo de sempre

Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda a quem dedico essa

Dissertaccedilatildeo

4

ldquoFamiacutelia eacute afinidade eacute lsquoagrave moda da casarsquo

E cada casa gosta de preparar a famiacutelia a seu jeitordquo

(AZEVEDO 2008)

5

RESUMO

A presente dissertaccedilatildeo de Mestrado visa analisar a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico no

contexto de trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco

Azevedo (2008) Por que sou gorda mamatildee de Cintia Moscovich (2006) e Quarenta dias de

Maria Valeria Rezende (2014) No estudo de cada obra eacute estabelecida a relaccedilatildeo entre a cozinha e

um dos trecircs seguintes paradigmas respectivamente memoacuteria prazer e autonomia Assim o

trabalho eacute composto por trecircs capiacutetulos intitulados ldquoCozinha e memoacuteriardquo ldquoCozinha e prazerrdquo

ldquoCozinha e autonomiardquo O propoacutesito eacute compreender de que forma a cozinha eacute apresentada nas

narrativas do corpus no contexto dos temas escolhidos Elementos da fenomenologia

psiquiaacutetrica da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo satildeo apresentados em diaacutelogo com a

literatura brasileira contemporacircnea

Palavras-chave Literatura brasileira contemporacircnea Cozinha Comida

6

ABSTRACT

This dissertation aims to analyze the kitchen as a physical and symbolic space within the context

of three works of contemporary Brazilian literature Francisco Azevedorsquos O arroz de Palma

(2008) Cintia Moscovichrsquos Por que sou gorda mamatildee (2006) and Maria Valeria Rezendersquos

Quarenta dias (2014) In each work kitchen is related to one of the following three paradigms

respectively memory pleasure and autonomy Thus this study consists of three chapters entitled

Kitchen and Memory Kitchen and Pleasure and Kitchen and Autonomy Our goal is to

understand how the kitchen is described in the narratives of the corpus in the context of the

selected topics Elements of psychiatric phenomenology sociology and food history are

presented in connection with contemporary Brazilian literature

Keywords Contemporary Brazilian literature Kitchen Food

7

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 10

1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA 15

11 O ARROZ DE PALMA 15

12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA 19

13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO 34

14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA 42

2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57

21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57

22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL 60

23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA 66

24 O PRAZER DA COMIDA 74

3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS 92

31 QUARENTA DIAS 92

32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS 97

33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA 105

34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI 111

CONCLUSAtildeO 132

REFEREcircNCIAS 142

10

INTRODUCcedilAtildeO

O ato de cozinhar eacute parte ancestral da nossa existecircncia como seres humanos Desde os

tempos primitivos o homem transforma o ingrediente cru em alimento cozido Comemos por

necessidade nutricional mas tambeacutem por outros motivos comemos para sentir prazer com um

bom prato para socializarmos partilhando esse prazer com outras pessoas para evocarmos

lembranccedilas de famiacutelia e as nossas proacuteprias com sabores que fazem parte de nossa bagagem

emotiva Escolhemos o que comer aprendemos a gostar mais desse ou daquele doce somos

conhecidos pelo quitute que preparamos para os amigos Adoramos canela mas detestamos

alecrim A cozinha faz parte da construccedilatildeo de nossa identidade e da memoacuteria que vamos

formando a partir das experiecircncias vivenciadas sozinhos ou em grupo

Um ponto de extrema relevacircncia eacute o fato de que a comida supre as demandas orgacircnicas

manteacutem-nos com energia para enfrentar a rotina e sustenta a sauacutede razotildees pelas quais eacute parte de

nossa autonomia Recebemos o leite materno quando somos ainda dependentes do peito da matildee

a seguir os pais nos alimentam com novos sabores ateacute que passamos a aprender a gostar de

modo individual disso ou daquilo E aprendemos a natildeo gostar daquele guisado de aboacutebora do

almoccedilo ou da salada de cenoura beterraba alface e tomate - que devemos comer porque faz bem

e ponto As escolhas alimentares tornam-se parte de nossa capacidade de dirigirmos nosso Eu e

de compormos nossas preferecircncias Assim natildeo seria exagero referir que tais escolhas nos

identificam pois satildeo um pedaccedilo de quem nos tornamos como indiviacuteduos e como famiacutelia O

alimento torna-se uma fatia das histoacuterias que vivemos e das emoccedilotildees que sentimos

Haacute um aspecto a ser questionado a que nos referimos quando falamos em cozinha Ao

espaccedilo fiacutesico que essa ocupa na casa onde estatildeo o forno e o fogatildeo o refrigerador a pia Aos

utensiacutelios como talheres e pratos panelas eletrodomeacutesticos peneira travessas e assim por

diante Aos ingredientes em parte mantidos na despensa enquanto outros devem permanecer

refrigerados Agraves receitas de quitutes de doces de refeiccedilotildees escritas a matildeo em cadernos

familiares ou colhidas da Internet ou copiadas no programa televisivo de famosos chefs Agraves

recordaccedilotildees de vivecircncias passadas com as avoacutes que nos ensinavam o saber culinaacuterio pelo

claacutessico lsquobotar a matildeo na massarsquo Agrave cultura de um povo pelas comidas que prepara

A cozinha contempla todos esses elementos do simboacutelico ao concreto da antiguidade

mais remota aos tempos hipervelozes de hoje com diversas miacutedias dirigidas aos temas culinaacuterios

11

do conforto emocional que representava ao glamour que vem atingindo com o avanccedilo da

gastronomia como expressatildeo de status social e econocircmico no seacuteculo XXI

Memoacuteria prazer e autonomia lsquoingredientesrsquo relevantes na relaccedilatildeo do ser humano com o

alimento tanto na sua preparaccedilatildeo quanto no ato de comer propriamente dito

Pela importacircncia e significado da cozinha em todos os tempos e em todas as culturas a

presente dissertaccedilatildeo visa discutir seu papel nos acircmbitos fiacutesico e simboacutelico em trecircs obras da

literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco Azevedo (2008) Por que

sou gorda mamatildee de Ciacutentia Moscovich (2006) e Quarenta dias de Maria Valeacuteria Rezende

(2014)

A organizaccedilatildeo eacute composta por trecircs capiacutetulos que mantecircm a mesma estrutura na epiacutegrafe

um trecho emblemaacutetico da obra a ser explorada sob a perspectiva de um dos paradigmas

definidos como memoacuteria prazer e autonomia um fragmento introdutoacuterio para apresentaacute-lo em

sua relaccedilatildeo com a cozinha seguido de quatro subdivisotildees na primeira a apresentaccedilatildeo da obra do

corpus na segunda a fundamentaccedilatildeo teoacuterica do atributo escolhido para cada uma das narrativas

na terceira a reflexatildeo sobre este visto agrave luz de sua relaccedilatildeo com a cozinha na quarta a anaacutelise

das obras especiacuteficas utilizando-se trechos e analisando-os a partir das reflexotildees e estudos jaacute

expostos

O primeiro capiacutetulo intitulado ldquoCozinha e memoacuteria em O arroz de Palmardquo apresenta a

cozinha vinculada agraves histoacuterias familiar e pessoal das personagens o que permite relacionar esse

livro com a pesquisa sobre a memoacuteria tanto a individual como a coletiva O segundo capiacutetulo

intitulado ldquoCozinha e prazer em Por que sou gorda mamatildeerdquo traz a cozinha principalmente

manifesta pela vivecircncia do prazer da comida e suas consequecircncias para a protagonista como o

engorde motivo pelo qual incide sobre o prazer na relaccedilatildeo com a cozinha O terceiro capiacutetulo

intitulado ldquoCozinha e autonomia em Quarenta diasrdquo contempla o estudo dessa obra em que se

revela uma alimentaccedilatildeo vivenciada fora de casa atraveacutes da comida e dos lugares que a oferecem

Ao longo do percurso da personagem atraveacutes da retomada de sua independecircncia o comer eacute uma

das principais representaccedilotildees de sua autonomia nessa narrativa Assim o binocircmio estudado no

uacuteltimo capiacutetulo eacute cozinha e autonomia

O arroz de Palma trata da relevacircncia de um elemento o arroz na histoacuteria de vaacuterias

geraccedilotildees da famiacutelia do protagonista motivo pelo qual este capiacutetulo aborda a relaccedilatildeo entre cozinha

e memoacuteria Considerando-se a memoacuteria um tema estudado por diversos campos do

12

conhecimento a fundamentaccedilatildeo teoacuterica desse capiacutetulo eacute constituiacuteda pelos seguintes autores no

acircmbito filosoacutefico Paul Ricoeur e Gaston Bachelard cultural Aleida Assmann psicopatoloacutegico

Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio Bulbena e Sandro Domenichetti neurocientiacutefico Ivan

Izquierdo e Gordon Shepherd Satildeo tambeacutem referidas reflexotildees de Mircea Eliade na compreensatildeo

do mito As perspectivas do socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan satildeo

apresentadas junto aos autores jaacute referidos na subdivisatildeo que aborda a memoacuteria no contexto da

cozinha

Por que sou gorda mamatildee traz a cozinha ligada ao prazer pelo fato de a narrativa

abordar as sensaccedilotildees prazerosas ligadas agrave comida A fundamentaccedilatildeo teoacuterica abrange as facetas

bioloacutegica e cultural do prazer Na esfera bioloacutegica a reflexatildeo inclui aspectos saudaacuteveis e

psicopatoloacutegicos contendo ideias do psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers e dos psiquiatras

Lorenzo Pelizza e Franco Benazzi na esfera socioloacutegica a reflexatildeo parte da leitura do socioacutelogo

Carlos Alberto Doacuteria em seus livros A subdivisatildeo que apresenta o prazer ligado agrave cozinha eacute

constituiacuteda principalmente por Jean Louis Flandrin Maacutessimo Montanari e Jean-Anthelme Brillat-

Savarin

Quarenta dias expressa a relaccedilatildeo entre cozinha e autonomia pois o comer representa

para a personagem sua decisatildeo de sobrevivecircncia real Ela come porque tem fome necessidade

fisioloacutegica propriamente dita sendo o comer vinculado agraves decisotildees e agrave autonomia para tomaacute-las

elemento-chave na construccedilatildeo de seu percurso Nesse capiacutetulo a cozinha eacute principalmente

expressa pela comida motivo pelo qual este eacute o termo empregado na terceira e quarta

subdivisotildees A fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute composta por contribuiccedilotildees de Karl Jaspers tambeacutem

explorado nos capiacutetulos anteriores por aquelas do neurocientista Antonio Damaacutesio e do

psiquiatra Massimo Biondi Na subdivisatildeo que estabelece viacutenculo entre a comida e a autonomia

expressa como consciecircncia de si apoiamos a anaacutelise no pensamento do socioacutelogo Carlos Alberto

Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan tambeacutem presentes nos capiacutetulos anteriores

A decisatildeo por pesquisar na literatura a expressatildeo da cozinha deve-se ao nosso

questionamento sobre o modo como essa aparece atraveacutes da escrita literaacuteria Que contextos e que

termos satildeo escolhidos pelos escritores para retratar a cozinha como espaccedilos fiacutesico e simboacutelico

em suas obras A escolha recai sobre a literatura brasileira contemporacircnea definindo para o

corpus livros escritos por autores brasileiros em 2006 2008 e 2014 Trecircs livros publicados nas

duas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXI periacuteodo que coincide com a explosatildeo do papel da cozinha

13

em acircmbitos mundial e sem duacutevidas nacional Conforme refere Maria Eunice Moreira no ensaio

ldquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmardquo

Espaccedilo alquiacutemico por sua natureza lugar de transformaccedilatildeo e de transmutaccedilatildeo a cozinha

eacute um dos espaccedilos mais tematizados na atualidade Isso pode ser comprovado pelo

nuacutemero de perioacutedicos especializados em gastronomia variedades de programas de TV e

destaque concedido a chefes e gourmets que se tornaram personagens midiaacuteticos

Diferentes miacutedias hoje divulgam as proezas de cozinheiros especializados que divulgam

suas descobertas culinaacuterias com ingredientes exoacuteticos confeccionando pratos originais

(MOREIRA 2014 p167)

Com a magnitude das expressotildees gastronocircmicas contemporacircneas no mundo e no Brasil eacute

plausiacutevel encontrar na literatura de nosso tempo obras que tragam a cozinha nos seus diversos

domiacutenios ao papel de protagonista A escolha especiacutefica pela literatura brasileira contemporacircnea

resulta de nosso interesse por compreender com que linguagem ela eacute expressa em nosso paiacutes em

nossa literatura em nossa contemporaneidade Ainda de acordo com o ensaio acima referido

sobre O arroz de Palma vale ressaltar

Mas certamente os leitores concordam que no fundo dos bauacutes que cruzaram os mares

entre enxadas e sementes vieram junto bens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre

o antigo e o novo espaccedilo a ser habitado Satildeo esses bens porque falam a linguagem do

mito os mais duradouros e perenes e satildeo eles tambeacutem capazes de inspirar a escrita da

literatura brasileira em tempos de globalizaccedilatildeo (MOREIRA 2014 p174)

Os lsquobens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre o antigo e o novo espaccedilo a ser

habitadorsquo estatildeo presentes em O arroz de Palma e tambeacutem no livro Por que sou gorda mamatildee

Nesse uacuteltimo atraveacutes da representaccedilatildeo de uma famiacutelia de imigrantes judeus e de sua relaccedilatildeo com

a comida e com o prazer de comer Em Quarenta dias a protagonista eacute tambeacutem uma imigrante

mas vinda de outro Estado e de outra cultura no mesmo Paiacutes Assim tambeacutem nessa narrativa haacute

um contraste entre o espaccedilo antigo e o novo a ser habitado a cidade de Porto Alegre eacute o territoacuterio

desconhecido ao qual a narradora personagem deveraacute se adaptar Da mesma forma como

transfere sua moradia para as ruas da cidade enquanto reluta em apropriar-se de sua lsquonova vidarsquo

tambeacutem transfere sua alimentaccedilatildeo para as padarias botecos carrinhos de pipoca e de cachorro

quente pela rua restaurantes e bares de rodoviaacuteria Para ela a decisatildeo de comer eacute resultado da

fome do mero existir como o sono e o banho A cozinha bem como sua vida estatildeo

lsquotransplantadasrsquo para as ruas da cidade

Nas trecircs obras selecionadas para este estudo haacute um papel central desempenhado pela

cozinha a representaccedilatildeo de aspectos da natureza humana como a ligaccedilatildeo com o prazer a

14

memoacuteria e a autonomia como jaacute foi referido Nas narrativas a cozinha o cozinhar e o comer

existem atraveacutes das comidas dos ingredientes de instrumentos e do espaccedilo fiacutesico em si mas satildeo

expressos sobretudo como emoccedilotildees e vivecircncias recuperaccedilatildeo de tradiccedilotildees e expressatildeo de

sentimentos e de memoacuterias Ao escolher o termo lsquocozinharsquo para a representaccedilatildeo global estamos

incluindo o campo de ideias que esse envolve ou seja todo o espaccedilo fiacutesico e os elementos

materiais como eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios as comidas desde o ingredientes e

receitas ateacute os pratos propriamente ditos por fim os elementos simboacutelicos portanto imateriais

como as representaccedilotildees de ritualidade e os elementos psiacutequicos e culturais que envolvem o

cozinhar e o comer

O tiacutetulo ldquoAgrave moda da casardquo remete agraves receitas de um periacuteodo da culinaacuteria em que a

cozinha caseira ocupava papel central na alimentaccedilatildeo familiar Essa envolvia as concepccedilotildees de

lar de famiacutelia de memoacuteria dos pratos que eram partilhados na mesa nas refeiccedilotildees Uma carne de

panela agrave moda da casa eacute aquela feita seguindo o lsquocomo-se-fazrsquo na histoacuteria da famiacutelia A expressatildeo

lembra os cadernos de receitas as cozinhas das avoacutes matildees e tias a memoacuteria e os sabores da

tradiccedilatildeo as noccedilotildees de identidade e de consciecircncia de si como indiviacuteduo singular que eacute parte de

um plural a famiacutelia Todos esses aspectos satildeo presentes nas obras do corpus e portanto estatildeo

incluiacutedos na reflexatildeo sobre o tiacutetulo escolhido

15

1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA

- Como eacute que simples guardanapos satildeo capazes de trazer tanta recordaccedilatildeo

- Porque fizeram histoacuteria satildeo a prova real e dos nove que um grupo de pessoas se reunia

regularmente para celebrar - natildeo importa o quecirc Festejavam a vida e pronto A data

religiosa ou pagatilde era pretexto Podia ser Paacutescoa ou Carnaval Esses guardanapos tecircm

alma Aliaacutes todo ser inanimado passa a ter alma no momento em que se lhe imprime

afeto As coisas tambeacutem aspiram a uma existecircncia sensiacutevel

Francisco Azevedo

A cozinha eacute o espaccedilo onde habitam forno fogatildeo geladeira pia pratos talheres

guardanapos panelas travessas caderno de receitas ingredientes chimia de uva pudim doce de

leite e ambrosia E lembranccedilas Muitos de nossos registros tecircm sabores proacuteprios Recordamos

essa ou aquela vivecircncia porque sua representaccedilatildeo eacute ligada a um gosto a uma textura a um

aroma Houve aquele doce de ovos que experimentamos em uma uacutenica e inesqueciacutevel ocasiatildeo

Vale evocar tambeacutem o faqueiro de uma avoacute presente de casamento ou a panela de fondue

comprada com orgulho fruto do primeiro salaacuterio da monitoria na faculdade No territoacuterio fiacutesico

da cozinha a memoacuteria tem corpo tem existecircncia material atraveacutes dos ingredientes dos

instrumentos dos eletrodomeacutesticos da receita de famiacutelia preparada para o almoccedilo Acima de

tudo a memoacuteria tem respiraccedilatildeo

11 O ARROZ DE PALMA

A escolha do tema cozinha e memoacuteria nasce atraveacutes da leitura da primeira obra definida

para o presente corpus O arroz de Palma de Francisco Azevedo publicada pela Editora Record

em 2008 O significado da cozinha para a nossa experiecircncia subjetiva tem fortes raiacutezes nas

histoacuterias guardadas atraveacutes das lembranccedilas e transmitidas entre as geraccedilotildees Essa obra da

literatura brasileira contemporacircnea propotildee tal resgate com relevante aprofundamento

A narrativa comeccedila pela voz do protagonista Antocircnio narrador personagem que traz ao

leitor em primeira pessoa a histoacuteria de sua famiacutelia os pais receacutem-casados e Palma sua tia

paterna Os trecircs vieram de Viana do Castelo em Portugal para o Brasil no comeccedilo do seacuteculo XX

Entretanto o que Antocircnio vem contar antecede a imigraccedilatildeo o ponto que daacute origem agrave histoacuteria da

obra eacute o casamento dos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana Depois da cerimocircnia Palma

decide juntar todos os gratildeos de arroz atirados aos noivos na lsquoabenccediloada chuva de arrozrsquo

16

torrencial feita de lsquopunhados e mais punhadosrsquo Fez-se lsquochuva branca que natildeo paravarsquo Como se

fosse colheita ela junta gratildeo por gratildeo e coloca todos em um saco de estopa que leva aos receacutem-

casados como seu presente pelo matrimocircnio Surpreendente eacute a reaccedilatildeo de Joseacute Custoacutedio ao

receber a ideia de Palma raivoso desdenha do arroz ofertado pela irmatilde como se fosse presente

de menor valor A esposa Maria Romana contemporiza a situaccedilatildeo mas manteacutem a posiccedilatildeo firme

de que aceitaratildeo o presente E o arroz torna-se a alma dessa famiacutelia Melhor dizendo Palma

torna-se a alma da famiacutelia

A obra eacute composta por cinquenta e nove capiacutetulos curtos trezentas e sessenta e uma

paacuteginas e um calendaacuterio ao final com datas relevantes para a compreensatildeo da passagem do

tempo perspectiva essencial em O arroz de Palma Antocircnio eacute o narrador personagem muito do

que conta sobre a histoacuteria familiar ouviu de sua tia Palma figura de grande importacircncia na

formaccedilatildeo de sua personalidade Ela testemunhou boa parte das vivecircncias em Portugal e na

chegada ao Brasil protagonizou a maioria das cenas que se tornaram lembranccedilas Essas

transformaram-se depois em histoacuterias contadas por Palma e escutadas por Antocircnio

Fazendo zigue-zagues nas geraccedilotildees Antocircnio relembra pontos que conhece de viver e

pontos que sabe por escutar Em momentos da leitura parece estar contando a trama ao leitor

noutros tem-se a sensaccedilatildeo de que as conversas satildeo consigo mesmo a fim de percorrer uma linha

de tempo que faccedila sentido Ele narra de sua cozinha no presente do indicativo enquanto a

memoacuteria percorre outros tempos verbais mas a idade jaacute deixa lacunas Quando faltam

ingredientes na despensa da memoacuteria resta a tentativa de montar histoacuterias possiacuteveis ele compotildee

em um conjunto o que foi vivido e imaginado junto agraves suas reflexotildees atuais agrave beira do fogatildeo

Estaacute preparando a receita tiacutepica de arroz com significado em sua histoacuteria pessoal para a

comemoraccedilatildeo do centenaacuterio do matrimocircnio dos seus pais e do arroz colhido por Palma e

presenteado ao casal

Nas idas e vindas aparece de iniacutecio a fuacuteria de Joseacute Custoacutedio ao ganhar o saco de gratildeos de

arroz dirigida agrave irmatilde Palma Os trecircs vecircm para o Brasil onde ele consegue trabalho em uma

fazenda Mais tarde jaacute com a vida organizada quando o casal tem dificuldades em ter filhos

surge nova fuacuteria quando Palma sugere oferecer-lhe o arroz como forma de ajudar na fecundaccedilatildeo

pelos poderes atribuiacutedos ao ingrediente Ele recusa enraivecido mas Palma e Maria Romana

fazem com que coma o arroz mesmo assim No momento da raiva quebra a lsquoquarta cadeirarsquo que

iraacute reformar para sua irmatilde passada a coacutelera Essa seraacute a cadeira de onde ela contaraacute a Antocircnio as

17

memoacuterias de famiacutelia os remendos de histoacuteria as fantasias e imaginaccedilotildees as dores e intimidades

de sua juventude

A quarta cadeira seraacute seu palco Antocircnio eacute o expectador Cria-se um forte laccedilo entre ele e

a tia pois se torna desde cedo o herdeiro das recordaccedilotildees familiares Essa aproximaccedilatildeo acaba

por distanciaacute-lo dos trecircs irmatildeos Leonor Nicolau e Joaquim enquanto ele eacute mais lsquocaseirorsquo gosta

de ficar ouvindo as histoacuterias da Tia Palma os trecircs satildeo mais agitados apreciam os passeios e as

brincadeiras pelo campo A distacircncia entre ele e os trecircs faz com que a tia o chame de lsquoAntocircnimorsquo

opondo suas caracteriacutesticas agraves dos irmatildeos As diferenccedilas seguiratildeo vida afora o que o protagonista

vai contando em seus percursos

Surge entatildeo seu romance com Isabel filha do patratildeo de seu pai sua ida para o Rio de

Janeiro o noivado com a moccedila e o arroz de bacalhau para celebrar a ocasiatildeo em famiacutelia A

receita foi preparada com o mesmo arroz que serviu para a fertilidade dos pais o mesmo arroz

presenteado por Palma para o casamento deles o mesmo arroz da chuva abenccediloada da cerimocircnia

O arroz testemunha a vida da famiacutelia alinha suas histoacuterias nessa narrativa parece ser a

representaccedilatildeo da memoacuteria familiar Lembranccedila a lembranccedila gratildeo a gratildeo As narrativas vatildeo sendo

transmitidas escutadas digeridas Antes do casamento Antocircnio e Isabel lsquoroubamrsquo um punhado e

levam consigo ao lago abenccediloando o primeiro momento de uniatildeo fiacutesica que partilham Mais uma

vez o arroz participa da ocasiatildeo formando registros de memoacuteria

Casam-se Nascem os filhos Nuno e Rosaacuterio Gecircmeos Seratildeo no entanto muito

diferentes entre si ela objetiva praacutetica ele sensiacutevel Entre casamentos e separaccedilotildees a narrativa

segue trilhada pela voz de Antocircnio em idas e vindas nas deacutecadas entre o casamento dos pais e

seu aniversaacuterio Sempre ao lado de Isabel nos trechos de vida sempre com dificuldades na

ligaccedilatildeo com os irmatildeos Entre o arroz presenteado por Palma no casamento de Joseacute Custoacutedio e

Maria Romana e a receita de arroz preparada por Antocircnio em sua cozinha esse conta os

nascimentos e as mortes relembra a perda de tia Palma recorda-se de vivecircncias dolorosas ao

longo do percurso de cada um e de todos O arroz eacute roubado da vitrine do restaurante de Antocircnio

e Isabel pelos filhos outra porccedilatildeo parece ter sido roubada pela esposa de um dos irmatildeos por

ciuacuteme de seu casamento Mais tarde surge a informaccedilatildeo de que Antocircnio e a cunhada tiveram

uma ligaccedilatildeo afetiva antes de ambos unirem-se a seus pares Voltam a encontrar-se em um ponto

da histoacuteria em uma tarde de braccedilos dados desejos satisfeitos e despedida cordial

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Muitas satildeo as tramas vividas e recordadas nessa narrativa Antocircnio eacute o narrador

personagem mas a leitura faz o leitor convencer-se o protagonista a bem da verdade eacute o arroz

A tia Palma tem papel decisivo na famiacutelia eacute ela quem daacute a direccedilatildeo em vaacuterios momentos da

histoacuteria nas vidas do irmatildeo Joseacute Custoacutedio da cunhada Maria Romana do sobrinho mais

proacuteximo Antocircnio e de seus irmatildeos Eacute ela quem daacute a direccedilatildeo aos gratildeos de arroz no percurso

desde o casamento em Portugal na Igreja ateacute sua morte contando sempre com a cumplicidade

da cunhada O protagonista segue conversando com a tia em pensamento perguntando suas

opiniotildees e conselhos

Palma transmite histoacuterias o arroz transmite histoacuterias Ao longo de toda a narrativa ambos

vatildeo deixando suas marcas na vida das personagens Em sua cozinha enquanto prepara o arroz

ele une os gratildeos pelo cozimento assim como une as recordaccedilotildees em uma soacute histoacuteria da famiacutelia

Se acaba por esquecer de algo lembra depois ou conta agrave sua moda Lembranccedilas agrave moda da casa

Toda a narrativa eacute tecida com uma linha que atravessa as vivecircncias a metaacutefora feita agraves

famiacutelias como se fossem pratos da culinaacuteria O narrador protagonista traz a imagem de vaacuterios

desses pratos e suas equivalecircncias nos grupos familiares enquanto se lembra dos trechos de vida

entremeados com emoccedilotildees e pensamentos Natildeo eacute possiacutevel alinhar as memoacuterias estatildeo espalhadas

Parte delas remontam etapas de vida outras lugares e pessoas Haacute registros que surgem de

experiecircncias vividas e daquelas que ele conhece apenas por ouvir- em geral de sua tia Palma

sentada na quarta cadeira

Podemos lembrar do que vivemos ou do que imaginamos em nossa maquinaria de

lembranccedilas memoacuteria e imaginaccedilatildeo fundem-se e o que vivenciamos por ouvir contar se torna

tambeacutem parte de nossos registros pessoais Eacute o que se passa com Antocircnio quando conta o que

ouviu de Palma com tal fidelidade que parece ele mesmo ter vivido Escutou imaginou e entatildeo

apropriou-se da histoacuteria com suas proacuteprias cores eacute dele agora a trama contada pela tia Algo

parecido eacute o processo de alquimia de uma receita de cozinha quando eacute transmitida de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo cada novo cozinheiro agrega seu modo de preparar a receita e ela vai assim sendo

transformada pelo tempo e pelas vozes que a leem agrave beira do fogatildeo

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12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA

O propoacutesito de estudar a memoacuteria neste capiacutetulo eacute o de apresentaacute-la como um processo

inerente agrave constituiccedilatildeo do ser humano Necessitamos deixar registros agraves geraccedilotildees seguintes assim

como seguir rastros dos antepassados Queremos pertencer a uma histoacuteria de famiacutelia e construir a

nossa para ser lembrada e seguida Acima de tudo a memoacuteria eacute parte da identidade

imprescindiacutevel na consciecircncia do indiviacuteduo sobre si mesmo

No campo de estudos da memoacuteria haacute os substratos neuroanatocircmico neurofisioloacutegico e

neuroquiacutemico que a compotildeem sob a perspectiva orgacircnica responsaacuteveis por seu funcionamento

adequado entretanto o foco predominante neste estudo consiste no entendimento da memoacuteria

como processo singular em termos psiacutequicos e plural em termos culturais Devido agraves muacuteltiplas

facetas do tema ampliamos a fundamentaccedilatildeo teoacuterica para os campos fenomenoloacutegico em que

apresentamos as ideias de Paul Ricoeur cultural a partir dos estudos de Aleida Assmann

psicopatoloacutegicas em que satildeo apontadas reflexotildees de Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio

Bulbena e Sandro Domenichetti e neurocientiacuteficas em que fazemos referecircncia aos

neurocientistas Ivan Izquierdo argentino e Gordon Shepherd americano

A cozinha situa-se nas esferas da memoacuteria individual e coletiva A relaccedilatildeo que se

estabelece entre o indiviacuteduo e os aromas que habitam sua memoacuteria como no caso das madeleines

recordadas por Proust a partir de um gatilho eacute de tamanha intimidade que se torna parte de sua

bagagem afetiva Da mesma forma o caderno de receitas de uma avoacute pode atravessar geraccedilotildees

pois os sabores ali registrados evocam lembranccedilas da histoacuteria familiar Ao serem reproduzidos

despertam na memoacuteria de um grupo natildeo apenas a receita original mas toda a constelaccedilatildeo de

emoccedilotildees que envolve essa lembranccedila como a cozinha em que era feita as panelas pratos e

talheres os almoccedilos dominicais na mesa da sala de jantar

As experiecircncias representam os ingredientes para a formaccedilatildeo da memoacuteria Muitas delas

nascem das histoacuterias vivenciadas na cozinha seja atraveacutes da percepccedilatildeo de um gosto do sentir de

uma emoccedilatildeo do ato de mexer um bolo ou de preparar um prato Todas satildeo carimbadas pela

interpretaccedilatildeo pelos sentimentos e pelo significado que cada circunstacircncia assume em nosso

percurso E esse carimbo vira lembranccedila armazenada na despensa da memoacuteria passiacutevel de

transformaccedilotildees ao longo do amadurecimento e das vicissitudes de cada fase de vida Afinal de

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contas a memoacuteria natildeo eacute um registro estaacutetico ela eacute isso sim um processo dinacircmico dependente

de nosso olhar e de nosso viver

Conforme o psicopatologista alematildeo Karl Jaspers a memoacuteria eacute um mecanismo que tem

relaccedilatildeo com o colorido afetivo com o significado das coisas Ele definiu a memoacuteria propriamente

dita como um reservatoacuterio em que novos materiais satildeo integrados pela fixaccedilatildeo e satildeo extraiacutedos agrave

consciecircncia atraveacutes da funccedilatildeo de evocaccedilatildeo para ele a chegada e a partida dos materiais seriam

devidas agraves respectivas funccedilotildees de fixaccedilatildeo e evocaccedilatildeo enquanto a memoacuteria representaria o

reservatoacuterio de disponibilidade permanente (JASPERS 2000 p188) Se pensarmos na cozinha

a memoacuteria seria a despensa onde satildeo postos novos ingredientes e de onde satildeo retirados aqueles

escolhidos para o uso Jaacute de acordo com Bulbena citando Serralonga ldquo[] em termos objetivos

eacute possiacutevel defini-la como a capacidade de adquirir de reter e de utilizar secundariamente uma

experiecircnciardquo (BULBENA 1998 p169)

Bulbena aponta quarto aspectos relevantes na compreensatildeo da memoacuteria como fenocircmeno

humano entre os quais distingue a entrada a manutenccedilatildeo e a saiacuteda das informaccedilotildees em

constante intercacircmbio entre organismo e ambiente o aspecto de transformaccedilatildeo dessas

informaccedilotildees modificando o conteuacutedo que entra no lsquoreservatoacuteriorsquo de Jaspers tanto para o

armazenamento quanto para a futura reproduccedilatildeo desse conteuacutedo o fato de a memoacuteria ser

produzida no contexto de estruturas nervosas que veiculam o processo apontando-se que as

alteraccedilotildees neste resultaratildeo em transtornos em seus mecanismos de fixaccedilatildeo armazenamento e

reproduccedilatildeo O quarto ponto definido pelo autor eacute de grande importacircncia para a finalidade do

presente capiacutetulo a memoacuteria forma parte do conjunto da vida psiacutequica sendo as emoccedilotildees

especialmente relevantes em sua composiccedilatildeo e forma parte tambeacutem da biografia do indiviacuteduo

em que teraacute influecircncia e da qual receberaacute influecircncia tambeacutem

Quando o autor se refere agrave biografia estaacute fazendo menccedilatildeo agraves experiecircncias de vida desse

indiviacuteduo e satildeo essas que muitas vezes ocorreram em sua relaccedilatildeo com o comer e com a cozinha

O dado de a memoacuteria fazer parte da vida psiacutequica eacute significativo sobretudo no que tange agrave

relaccedilatildeo com o campo emocional pois sempre que tais experiecircncias vinculadas ao universo

culinaacuterio ocorrerem haveraacute o processamento da resposta afetiva

A memoacuteria eacute essencialmente parte da vida psiacutequica do ser humano e resultado de

mecanismos cerebrais de controle Eacute considerada uma das funccedilotildees do estado mental dos

indiviacuteduos avaliada no exame psiquiaacutetrico dessas funccedilotildees Bulbena refere que

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etimologicamente a maioria dos autores situa sua origem no termo latino memoacuteria de

significado similar ao atual mas haacute quem atribua a origem agrave palavra gemynd de raiz

anglosaxocircnica que conforme refere significaria mente Assim eacute possiacutevel que a associaccedilatildeo entre

memoacuteria e vida psiacutequica seja representada na proacutepria origem da palavra

Mesmo que a finalidade do presente capiacutetulo seja apresentar a memoacuteria vinculada agraves

vivecircncias de cozinha cabe realizar a abordagem desse mecanismo como fenocircmeno Paul Ricoeur

apresenta a respeito da fenomenologia da memoacuteria seu viacutenculo com a imaginaccedilatildeo O autor

refere que podemos fazer referecircncia a um evento passado ou dizer que temos dele uma imagem

que pode ser quase visual ou auditiva E aponta que a memoacuteria opera em funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo

reforccedilando a perspectiva de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que expressa que ldquo[] a memoacuteria eacute

uma proviacutencia da imaginaccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p25)

Tal aspecto liga-se ao exposto pelo neurocientista Gordon Shepherd que em seu livro

sobre neurogastronomia expotildee ldquoPara muitas pessoas as partes mais importantes do olfato e do

sabor satildeo as memoacuterias que elas evocam e as emoccedilotildees associadas a essasrdquo (SHEPHERD 2012

p174) Olfato e sabor satildeo tambeacutem elementos que evocam imagens de situaccedilotildees vivenciadas mas

imagens construiacutedas pelas caracteriacutesticas psiacutequicas individuais assim pode-se dizer que evocam

a imaginaccedilatildeo

A lembranccedila de um acontecimento do preparo de uma comida ou da ocasiatildeo em que a

saboreamos ocorre atraveacutes da imagem que fazemos dessas circunstacircncias Lembramos com cor

com cheiros com gostos Lembramos imaginando e eacute isso que Paul Ricoeur traz como ponto de

partida Shepherd refere que nossos mecanismos cognitivos tecircm a qualidade de perceber e de

evocar as coisas como um todo integrado a partir de uma fraccedilatildeo (SHEPHERD 2012) o que se

assemelha ao que Ricoeur refere sobre a ligaccedilatildeo mencionada ldquoEacute sob o signo da associaccedilatildeo de

ideias que estaacute situada essa espeacutecie de curto-circuito entre memoacuteria e imaginaccedilatildeo se essas duas

afecccedilotildees estatildeo ligadas por contiguidade evocar uma - portanto imaginar - eacute evocar a outra-

portanto lembrar-se delardquo (RICOEUR 2014 p25) Essa ideia associa-se ao fato de que todos os

registros que os sentidos percebem oriundos do mundo externo ao corpo satildeo traduzidos em

percepccedilotildees e entatildeo em lembranccedilas a serem armazenadas A lembranccedila torna-se uma impressatildeo

da experiecircncia e natildeo seu registro idecircntico uma vez que pode ser compreendida como uma

reconstruccedilatildeo do passado a partir da perspectiva atual O que laacute fixamos natildeo eacute idecircntico ao que no

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presente podemos evocar pois outras vivecircncias se colocam no caminho nos transformam e

modificam nosso modo de recordar o que um dia haviacuteamos registrado

O inconsciente em todo o processo pode guardar a sete chaves algumas das informaccedilotildees

fixadas parte do que vivemos passaraacute a ser liberado ou escondido por sua tutela Lembramos de

algo pela imaginaccedilatildeo do que permaneceu desse algo em nosso mundo interno na compreensatildeo

neurocientiacutefica os registros captados pelos sentidos ficam armazenados em estruturas

especiacuteficas predominantemente no hemisfeacuterio direito quando as lembranccedilas estiverem

conectadas a emoccedilotildees Uma lsquopistarsquo que dermos agrave memoacuteria seja uma figura um som um gosto

um aroma ou uma textura ou uma emoccedilatildeo podem trazer de volta em viagem ultraveloz a cena

arquivada com todas as transformaccedilotildees que o tempo provoca em noacutes

Eacute possiacutevel compreender que a memoacuteria identifica o indiviacuteduo e sua bagagem de

vivecircncias pois soacute nos lembramos do que conhecemos ldquoReconhecer algueacutem significa saber jaacute tecirc-

lo visto antes assim como recordar-se de um acontecimento significa saber que este jaacute ocorreu no

passadordquo (MINKOWSKI 2004 p143) O entendimento sobre suas consideraccedilotildees eacute a de que

uma lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a tonalidade emotiva com que este foi

percebido ou seja a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos

recordaremos dela no futuro porque eacute assim que a conhecemos Sobre tal aspecto Ivan

Izquierdo neurocientista especializado neste campo refere

Podemos afirmar conforme Norberto Bobbio que somos aquilo que recordamos

literalmente Natildeo podemos fazer aquilo que natildeo sabemos nem comunicar nada que

desconheccedilamos isto eacute que natildeo esteja na nossa memoacuteria Tambeacutem natildeo estatildeo agrave nossa

disposiccedilatildeo os conhecimentos inacessiacuteveis nem formam parte de noacutes os episoacutedios dos

quais esquecemos ou os quais nunca atravessamos O acervo de nossas memoacuterias faz

com que cada um de noacutes seja o que eacute um indiviacuteduo um ser para o qual natildeo existe outro

idecircntico (IZQUIERDO 2011 p11 grifo do autor)

O psicopatologista Eugeacutene Minkowski aborda a memoacuteria no capiacutetulo intitulado lsquoO

passadorsquo em seu livro O tempo vivido Tal afirmaccedilatildeo expressa que ela eacute parte de nosso tempo

vivido e atraveacutes da reflexatildeo de Ivan Izquierdo pode-se compreender que ela eacute parte do nosso

tempo de conhecimento vivido A ideia de que a memoacuteria faz de noacutes ldquo[] um ser para o qual natildeo

existe outro idecircnticordquo (IZQUIERDO 2011 p12) reforccedila a noccedilatildeo de que esse fenocircmeno eacute um

elemento inerente a um sujeito uacutenico com suas experiecircncias percepccedilotildees e bagagens Ainda

conforme Ivan Izquierdo ldquo[] o conjunto das memoacuterias de cada um determina aquilo que se

denomina personalidade ou forma de serrdquo (IZQUIERDO 2011 p12) O neurocientista refere que

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as emoccedilotildees e os estados de acircnimo tecircm importante papel no processo da memoacuteria tanto em

termos de aquisiccedilatildeo quanto de formaccedilatildeo e finalmente de evocaccedilatildeo

Falar em emoccedilotildees ou estados de acircnimo remete agrave referecircncia de Minkowski sobre as

tonalidades afetivas O psicopatologista faz alusatildeo ao viacutenculo entre emoccedilotildees e memoacuteria

expressando o modo como o sentir influencia o lembrar Eacute possiacutevel comprender sua ideia da

seguinte forma colocamos a mirada sobre nosso mundo interior para focar em uma fraccedilatildeo do

passado que sentimos presente em noacutes Isso seria equivalente agrave evocaccedilatildeo de uma lembranccedila Ao

percebermos o sentimento ligado a esse tempo anterior essa lembranccedila amplia-se agrave medida que

a encontramos em nosso iacutentimo A conexatildeo emotiva torna a vivecircncia passada cada vez mais

visiacutevel e de contornos niacutetidos como um feixe de luz que ao aumentar expande a aacuterea de

claridade e mostra os detalhes de um terreno

Tal iluminaccedilatildeo reproduz vivecircncias remotas como se fossem situaccedilotildees que nos parecem

recentes pela forccedila emotiva ligada ao evento passado Entretanto nossa impressatildeo sobre tais

eventos pode ser transformada por aspectos psiacutequicos que ocorrem entre o tempo real e o

lembrado modificando a impressatildeo do fato em suas nuances Permanece a essecircncia prazerosa ou

penosa de um fato mas a evocaccedilatildeo da lembranccedila pode tornaacute-la um rosa suave ou um vermelho

vivo Para mudar seu tom contam tanto nosso estado de acircnimo ao vivermos algo quanto ao

lembrarmos esse algo Memoacuteria e emoccedilatildeo assim estatildeo intimamente ligadas entre si em especial

no que concerne agraves nossas experiecircncias de vida

O termo memoacuteria no singular remete-nos a dois eixos um primeiro mais evidente eacute o

tempo o segundo subterracircneo o espaccedilo Tal colocaccedilatildeo vem do fato de que a memoacuteria pode ser

percebida como um espaccedilo subjetivo em nossa vida psiacutequica motivo pelo qual tecemos a

analogia com a imagem da despensa de cozinha Esta eacute de fato um espaccedilo objetivo mas cuja

subjetividade aparece ao revelar muitos aspectos sobre o morador da casa Seria plausiacutevel referir

que a despensa identifica esse sujeito em suas preferecircncias alimentares em sua condiccedilatildeo

econocircmica em sua regularidade nas refeiccedilotildees feitas no lar aleacutem de demonstrar se vive sozinho

ou em famiacutelia se tem haacutebitos saudaacuteveis se manteacutem cuidados com a higiene com o meio-

ambiente com os prazos dos alimentos e por aiacute vai A despensa seria assim a memoacuteria da casa

um espaccedilo onde se colocam os ingredientes onde satildeo armazenados e de onde satildeo retirados para o

uso imediato Nessa analogia os ingredientes remetem-nos agrave imagem das lembranccedilas guardadas

na despensa

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A partir dessa reflexatildeo eacute importante pensar no par lembranccedilas e memoacuteria como uma

relaccedilatildeo entre plural e singular Podem-se estabelecer ainda outras relaccedilotildees como a ideia de que a

memoacuteria maior conteacutem as lembranccedilas menores e muacuteltiplas A primeira representa um amplo

espaccedilo subjetivo para o armazenamento das segundas Uma comparaccedilatildeo mais detalhada colocaria

alguns itens nas estantes mais altas da despensa onde o acesso eacute difiacutecil ou mais ao fundo atraacutes

de elementos que satildeo usados com regularidade Natildeo eacute raro que esses ingredientes em partes

menos visualizadas sejam menos usados enquanto aqueles mais visiacuteveis sejam retirados dali e

consumidos com maior frequecircncia Tanto a regularidade do uso quanto os gostos alimentares

definem os produtos que ficam disponiacuteveis em estantes de mais faacutecil acesso em contraponto os

menos usados entram na categoria dos menos vistos

Aspectos que raramente enxergamos ficam esquecidos na despensa em lugares difiacuteceis e

ateacute passam da validade se natildeo tomamos conhecimento de que estatildeo laacute natildeo iremos evocaacute-los e

acabam por permanecer por um longo periacuteodo no canto mais longiacutenquo daquele espaccedilo Inuacutemeras

vezes esquecemos de usar produtos que guardamos haacute mais tempo e lembramos de acessar os

mais presentes em nossa rotina Aleacutem disso cabe lembrar que haacute estantes ou compartimentos em

uma despensa que servem justamente ao propoacutesito de definiccedilatildeo de categorias as mais

importantes alcanccedilamos estendendo o braccedilo enquanto as de menor relevacircncia recebem acesso

pelo uso da escada domeacutestica da lanterna para a procura ou no caso de estarem nas prateleiras

inferiores de posiccedilotildees fiacutesicas para encontrar o elemento procurado

Ao guardarmos algo que pouco usamos criamos espaccedilos de esquecimento dentro da

memoacuteria Para que resgatemos esses ingredientes haacute elementos como a imagem que nos

despertam para a recordaccedilatildeo de que um dia tomamos contato com ele Mais uma vez surge a

figura do conhecimento preacutevio entatildeo do passado como criteacuterio para o reconhecimento

Reconhecer eacute conhecer novamente voltar a tomar contato

Considerando a partir da analogia estabelecida as lembranccedilas como elemento plural

presente na memoacuteria de caraacuteter singular torna-se necessaacuterio compreender o fenocircmeno da

memoacuteria sob vaacuterias perspectivas Haacute diversos fatores envolvidos no modo como nos lembramos

de algo no porquecirc dessas lembranccedilas tornarem-se de mais faacutecil ou de mais difiacutecil acesso para

quais registros damos mais relevacircncia ao lsquoguardar na despensarsquo e outras variaacuteveis ligadas ao

lembrar e ao esquecer Tais perspectivas natildeo estatildeo divididas mas sim ligadas no texto uma vez

que ao contraacuterio das prateleiras da despensa a memoacuteria eacute um espaccedilo sem divisotildees estabelecidas

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na experiecircncia humana Mesmo do ponto de vista cerebral ela ocupa diversas aacutereas e muacuteltiplos

sistemas sendo resultado de um processo de integraccedilatildeo de estruturas e de funccedilotildees cerebrais

Um aspecto relevante sobre o uso da palavra memoacuteria quando usado no plural estaacute na

literatura Ler as memoacuterias de um autor remete agrave ideia de uma narrativa autobiograacutefica ou

biograacutefica novamente ligando a ideia de memoacuteria ao campo da definiccedilatildeo de identidade

Considero que esse termo seja o de maior importacircncia no conjunto do fenocircmeno pois mesmo que

se trate da memoacuteria de um grupo essa revela seu caraacuteter identitaacuterio

Identidade eacute palavra-chave no campo da memoacuteria O psiquiatra italiano Sandro

Domenichetti apresenta a lembranccedila como ldquo[] experiecircncia que constroacutei a consciecircncia de si e

que define a relaccedilatildeo entre o mundo afetivo e aquele cognitivordquo (DOMENICHETTI 2003 p1)

de acordo com ele entre as funccedilotildees da consciecircncia estaacute a diacrocircnica ou seja a de percepccedilatildeo da

identidade estaacutevel atraveacutes do tempo A consciecircncia entatildeo eacute um elemento central neste campo

Domenichetti refere que esta ldquo[] parece entatildeo configurar-se como um tipo de memoacuteria de si no

tempordquo (DOMENICHETTI 2003 p1) enfatizando a perspectiva de que ldquo[] um senso de si eacute

essencial para que todas as minhas lembranccedilas sejam exatamente as minhas lembranccedilasrdquo

(DOMENICHETTI 2003 p1 grifo do autor)

Outro elemento apontado por este autor tem como base a explanaccedilatildeo de Israel Rosenfeld

meacutedico e pesquisador com atuaccedilatildeo relevante no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti

Roselfield expotildee a continuidade da consciecircncia como derivada da correspondecircncia que o ceacuterebro

estabelece em momentos sucessivos com eventos no espaccedilo e no tempo sendo seu elemento vital

a autoconsciecircncia Para Roselfield

As minhas lembranccedilas emergem da relaccedilatildeo entre meu corpo e a imagem que meu

ceacuterebro tem do meu corpo (uma atividade inconsciente na qual o ceacuterebro constroacutei para si

uma ideia generalizada do corpo ideia que se modifica continuamente) Eacute esta relaccedilatildeo

que cria o senso de lsquosirsquo (DOMENICHETTI 2003 p2)

A fim de corroborar a relaccedilatildeo entre corpo e ceacuterebro estabelecida por Rosenfield

Domenichetti refere-se a Henri Bergson (1859-1941) filoacutesofo e diplomata francecircs cuja obra

destacou-se pelas contribuiccedilotildees no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti

[] o nosso conhecimento da realidade eacute feito de percepccedilotildees impregnadas de

lembranccedilas A memoacuteria de Bergson funciona atraveacutes de operaccedilotildees de coleta de imagens

que progressivamente satildeo produzidas o corpo eacute uma dessas imagens a uacuteltima para ser

exato E se o corpo em geral eacute uma imagem eacute oacutebvio que o eacute tambeacutem o ceacuterebro Este

ligar a percepccedilatildeo a memoacuteria e o corpo com passagens de um a outro atraveacutes da

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dimensatildeo temporal define a construccedilatildeo da funccedilatildeo mental da qual a memoacuteria eacute atributo

fundador como organizaccedilatildeo autoreflexiva que pensa o corpo (DOMENICHETTI 2003

p1)

Pode-se compreender entatildeo corpo e ceacuterebro como palcos onde as imagens da memoacuteria

satildeo encenadas Tais imagens unem-se agraves percepccedilotildees atuais do indiviacuteduo compondo um conjunto

formado pelo antes e o agora ndash passado e presente ndash intrincados Ainda referindo-se agraves

contribuiccedilotildees de Roselfield nesse campo Domenichetti acrescenta

Tambeacutem na visatildeo de Roselfield assim a memoacuteria natildeo pode ser considerada como um

manual de informaccedilotildees mas sobretudo como uma atividade contiacutenua do ceacuterebro Isso se

observa principalmente no caso das imagens Quando recordo a imagem de um evento

da minha infacircncia por exemplo natildeo a extraio de um hipoteacutetico arquivo de imagens

preexistentes devo formar conscientemente uma nova imagem (DOMENICHETTI

2003 p2)

Tais explanaccedilotildees sobre o papel da imagem para a recordaccedilatildeo coincidem com a

perspectiva de Paul Ricoeur em A lembranccedila e a imagem na primeira parte de sua obra jaacute

referida Ele questiona ldquoComo explicar que a lembranccedila retorne em forma de imagem e que a

imaginaccedilatildeo assim mobilizada chegue a revestir-se das formas que escapam agrave funccedilatildeo do irrealrdquo

(RICOEUR 2014 p66)

Para chegar a respostas possiacuteveis ele recorre a Bergson entre outros autores Deste

aponta que ldquoAdoto como hipoacutetese de trabalho a concepccedilatildeo bergsoniana da passagem da

lsquolembranccedila-purarsquo agrave lembranccedila-imagemrdquo (RICOEUR 2014 p67) De acordo com Ricoeur sobre

o trabalho de Bergson ldquoele traz de certo modo a lembranccedila para uma aacuterea de presenccedila

semelhante agrave da percepccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p68) ressaltando da imaginaccedilatildeo o que chama

de ldquofunccedilatildeo visualizanterdquo ou seja ldquosua maneira de dar a verrdquo (RICOEUR 2014 p68) Ricoeur

esclarece que

Eacute como se a forma que Bergson chama intermediaacuteria ou mista da lembranccedila isto eacute a

lembranccedila-imagem a meio-caminho entre lsquolembranccedila-purarsquo e a lembranccedila reinscrita na

percepccedilatildeo no estaacutegio em que o reconhecimento desabrocha no sentimento do deacutejagrave vu

correspondesse a uma forma intermediaacuteria da imaginaccedilatildeo a meio caminho entre a ficccedilatildeo

e a alucinaccedilatildeo a saber o componente imagem da lembranccedila-imagem Portanto eacute

tambeacutem como forma mista que eacute preciso falar da funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo que consiste em

lsquopocircr debaixo dos olhosrsquo funccedilatildeo que podemos chamar ostensiva trata-se de uma

imaginaccedilatildeo que mostra que expotildee que deixa ver (RICOEUR 2014 p70)

Assim o que se tem eacute uma zona de fronteiras pouco demarcadas entre a percepccedilatildeo a

lembranccedila e a imaginaccedilatildeo Ricoeur refere em relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas e diferenccedilas entre as duas

uacuteltimas ldquoCertamente dissemos e repetimos que a imaginaccedilatildeo e a memoacuteria tinham como traccedilo

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comum a presenccedila do ausente e como traccedilo diferencial de um lado a suspensatildeo de toda posiccedilatildeo

de realidade e a visatildeo de um irreal do outro a posiccedilatildeo de um real anteriorrdquo (RICOEUR 2014

p61)

Nesse sentido o papel da percepccedilatildeo eacute o de captar a realidade atraveacutes dos cinco sentidos

para entatildeo formar registros que no futuro seratildeo lembranccedilas As imagens que resgato satildeo

diferentes das que percebi no instante do acontecimento pois se misturam com outros

ingredientes como as emoccedilotildees por exemplo Ricoeur aponta ldquoTeriacuteamos assim a sequecircncia

percepccedilatildeo lembranccedila ficccedilatildeo Um limiar de inatualidade eacute transposto entre lembranccedila e ficccedilatildeordquo

(RICOEUR 2014 p65) Esse limiar de inatualidade expresso por ele como ldquotransposto entre

lembranccedila e ficccedilatildeordquo parece referir-se agrave passagem do tempo que torna as imagens de uma

vivecircncia cada vez mais proacuteximas da imaginaccedilatildeo quanto mais longiacutenquo for o passado

O filoacutesofo Gaston Bachelard em A poeacutetica do espaccedilo ao mencionar as lembranccedilas

associadas ao habitar de uma nova casa expressa o entrelaccedilamento entre a memoacuteria e a

imaginaccedilatildeo

E o devaneio se aprofunda de tal modo que para o sonhador do lar um acircmbito

imemorial se abre para aleacutem da mais antiga memoacuteria A casa como o fogo como a

aacutegua nos permitiraacute evocar na sequecircncia de nossa obra luzes fugidias de devaneio que

iluminam a siacutentese do imemorial com a lembranccedila Nessa regiatildeo longiacutenqua memoacuteria e

imaginaccedilatildeo natildeo se deixam dissociar Ambas trabalham para seu aprofundamento muacutetuo

Ambas constituem na ordem dos valores uma uniatildeo da lembranccedila com a imagem

(BACHELARD 2012 p25)

A relaccedilatildeo entre lembranccedila e imagem em Bachelard encontra-se bem representada atraveacutes

da ideia da casa e do habitar onde esses dois fenocircmenos se fundem Ele menciona a ideia de que

ldquo[] o calendaacuterio da nossa vida soacute pode ser estabelecido em seu processo produtor de imagensrdquo

(BACHELARD 2012 p28) Este calendaacuterio parece ser para o autor as lembranccedilas recordadas

por meio da imagem das cenas vividas e sentidas Bachelard refere que ldquo[] a imagem

estabelece-se numa cooperaccedilatildeo entre o real e o irreal pela participaccedilatildeo da funccedilatildeo do real e da

funccedilatildeo do irrealrdquo (BACHELARD 2012 p73) tecendo uma ligaccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo memoacuteria e

percepccedilatildeo Cabe ressaltar nesse ponto o aspecto de esta uacuteltima ocorrer atraveacutes dos cinco

sentidos veiacuteculo de traduccedilatildeo do mundo externo para o interno Retorna-se ao jaacute apresentado

sobre a relevacircncia do corpo para a memoacuteria Ricoeur menciona a esse respeito

Eacute o elo entre memoacuteria corporal e memoacuteria dos lugares que legitima a tiacutetulo primordial a

dessimplicaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo de sua forma objetivada O corpo constitui desse

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ponto de vista o lugar primordial o aqui em relaccedilatildeo ao qual todos os outros lugares satildeo

laacute (RICOEUR 2014 p59)

Compreender o papel da memoacuteria do corpo conduz agrave identificaccedilatildeo desta dentro da

consciecircncia de si pois diz respeito aos registros deixados pelas vivecircncias com potencial de

serem encenados novamente pelo indiviacuteduo O ato de cozinhar seria um exemplo de como a

memoacuteria corporal faz com que se pratique o ato culinaacuterio como um conhecimento do corpo

muitas vezes executado de forma habitual Ricoeur aponta que ldquo[] a memoacuteria corporal pode ser

lsquoagidarsquo como todas as outras modalidades de haacutebito como a de dirigir um carro que estaacute em meu

poder Ela varia segundo todas as variantes do sentimento de familiaridade ou de estranhezardquo

(RICOEUR 2014 p57) O autor acrescenta

Assim a memoacuteria corporal eacute povoada de lembranccedilas afetadas por diferentes graus de

distanciamento temporal a proacutepria extensatildeo do lapso de tempo decorrido pode ser

percebida sentida na forma de saudade nostalgia [] O momento da recordaccedilatildeo eacute

entatildeo o do reconhecimento (RICOEUR 2014 p57)

Partindo dessa compreensatildeo seria possiacutevel pensar em corpo casa e lugar como espaccedilos

onde a recordaccedilatildeo nasce do mais especiacutefico o corpo ao mais inespeciacutefico o lugar Em todos

esses espaccedilos haacute accedilotildees e vivecircncias que podem constituir lembranccedilas Conforme Ricoeur

A transiccedilatildeo da memoacuteria corporal para a memoacuteria dos lugares eacute assegurada por atos tatildeo

importantes como orientar-se deslocar-se e acima de tudo habitar Eacute na superfiacutecie

habitaacutevel da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado lugares memoraacuteveis

Assim as lsquocoisasrsquo lembradas satildeo intrinsecamente associadas a lugares E natildeo eacute por acaso

que dizemos sobre uma coisa que aconteceu que ela teve lugar Eacute de fato nesse niacutevel

primordial que se constitui o fenocircmeno dos lsquolugares de memoacuteriarsquo (RICOEUR 2014

p57-58)

Essa ideia pode ser corroborada com a perspectiva de Bachelard sobre o habitar

Eacute preciso dizer como habitamos o nosso espaccedilo vital de acordo com todas as dialeacuteticas

da vida como nos enraizamos dia a dia num lsquocanto do mundorsquo

Porque a casa eacute nosso canto do mundo Ela eacute como se diz amiuacutede o nosso primeiro

universo Eacute um verdadeiro cosmos (BACHELARD 2012 p24)

A respeito da relevacircncia da casa para a formaccedilatildeo e o armazenamento das lembranccedilas

Bachelard apresenta contribuiccedilotildees que reforccedilam a visatildeo de Ricoeur sobre o papel dos lugares

para a memoacuteria

Logicamente eacute graccedilas agrave casa que um grande nuacutemero de nossas lembranccedilas estatildeo

guardadas e quando a casa se complica um pouco quando tem um poratildeo e um soacutetatildeo

cantos e corredores nossas lembranccedilas tecircm refuacutegios cada vez mais bem caracterizados

29

A eles regressamos durante toda a vida em nossos devaneios (BACHELARD 2012

p28)

A ideia da memoacuteria associada ao espaccedilo seja corpo casa ou lugar conduz agrave reflexatildeo de

que essa tem uma existecircncia subjetiva interna que eacute representada pelo aspecto objetivo material

externo isso se daacute atraveacutes de vivecircncias associadas sempre a um primeiro espaccedilo o corpoacutereo e a

um segundo mais amplo que eacute o lugar para onde a lembranccedila remete Mais uma vez as

lembranccedilas tecircm imagens de correspondecircncia eacute como se os lugares dessem carne e osso a elas

confirmam sua existecircncia em um tempo e em um espaccedilo que mesmo passado relaciona-se ao

mundo fiacutesico Quanto mais longiacutenquas no tempo mais proacuteximas se encontram da imaginaccedilatildeo

como jaacute visto entretanto ainda assim tecircm um cenaacuterio onde vivem

Examinada como fenocircmeno a memoacuteria tem propriedades que a identificam Ricoeur

estabeleceu trecircs pares de oposiccedilotildees para a compreensatildeo da fenomenologia da memoacuteria o

primeiro deles eacute a dupla haacutebitomemoacuteria sobre a qual refere

O que faz a unidade desse espectro eacute a comunidade da relaccedilatildeo com o tempo Nos dois

casos extremos pressupotildee-se uma experiecircncia anteriormente adquirida mas num caso o

do haacutebito essa aquisiccedilatildeo estaacute incorporada agrave vivecircncia presente natildeo marcada natildeo

declarada como passado no outro caso faz-se referecircncia agrave anterioridade como tal da

aquisiccedilatildeo antiga Nos dois casos por conseguinte continua sendo verdade que a

memoacuteria lsquoeacute do passadorsquo mas conforme dois modos um natildeo marcado outro sim da

referecircncia ao lugar no tempo da experiecircncia inicial

[] A operaccedilatildeo descritiva consiste entatildeo em classificar as experiecircncias relativas agrave

profundidade temporal desde aquelas em que de algum modo o passado adere ao

presente ateacute aquelas em que o passado eacute reconhecido em sua preteridade passada

(RICOEUR 2014 p43)

A segunda dupla de opostos estabelecida por Ricoeur eacute composta pelo par

evocaccedilatildeobusca representado pelos dois trechos abaixo No primeiro a reflexatildeo sobre evocaccedilatildeo

no segundo sobre a busca

1) Entendamos por evocaccedilatildeo o aparecimento atual de uma lembranccedila Eacute a esta que

Aristoacuteteles destinava o termo mneme designando por anamnesis o que chamaremos

mais adiante de busca ou recordaccedilatildeo Ele caracterizava a mneme como pathos como

afecccedilatildeo ocorre que nos lembramos disto ou daquilo nesta ou naquela ocasiatildeo entatildeo

temos uma lembranccedila Portanto eacute em oposiccedilatildeo agrave busca que a evocaccedilatildeo eacute uma

afecccedilatildeo Enquanto tal em outras palavras desconsiderando sua posiccedilatildeo polar a

evocaccedilatildeo traz a carga do enigma que movimentou as investigaccedilotildees de Platatildeo e de

Aristoacuteteles ou seja a presenccedila agora do ausente anteriormente percebido

experimentado aprendido (RICOEUR 2014 p45)

2) Voltemo-nos agora para o outro poacutelo do par evocaccedilatildeobusca Eacute ele que a

denominaccedilatildeo grega da anamnesis designava Platatildeo a mitificara ligando-a a um saber

preacute-natal do qual estariacuteamos afastados por um esquecimento ligado agrave inauguraccedilatildeo da

vida da alma num corpo esquecimento de certo modo natal que faria da busca um

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reaprender do esquecimento Aristoacuteteles [] naturalizou de certo modo a anamnesis

comparando-a agravequilo que na experiecircncia cotidiana chamamos de recordaccedilatildeo [] o

ana de anamnesis significa volta retomada recobramento do que anteriormente foi

visto experimentado ou aprendido portanto de alguma forma significa repeticcedilatildeo

Assim o esquecimento eacute designado obliquamente como aquilo contra o que eacute

dirigido o esforccedilo da recordaccedilatildeo (RICOEUR 2014 p46)

O que Ricoeur propotildee assim com o par evocaccedilatildeobusca eacute a diferenciaccedilatildeo entre a

lembranccedila e a recordaccedilatildeo sendo a primeira segundo ele representativa do surgimento

espontacircneo de um registro gravado na memoacuteria enquanto a segunda seria resultado de uma

procura ativa voluntaacuteria Referindo as ideias de Bergson sobre lsquorecordaccedilatildeo instantacircnearsquo e

lsquorecordaccedilatildeo laboriosarsquo aponta a distinccedilatildeo ldquo[] podendo a recordaccedilatildeo instantacircnea ser considerada

como o grau zero da busca e a recordaccedilatildeo laboriosa e a recordaccedilatildeo laboriosa como sua forma

expressardquo (RICOEUR 2014 p46) Assim a lembranccedila viria de uma evocaccedilatildeo proacutexima ao que

Ricoeur chama de lsquoautomatismorsquo e lsquorecordaccedilatildeo mecacircnicarsquo diferente da recordaccedilatildeo que viria lsquoda

reflexatildeo da reconstituiccedilatildeo inteligentersquo estando ambas ldquo[] intimamente mescladas na

experiecircncia comumrdquo (RICOEUR 2014 p46) Por fim com relaccedilatildeo a esse par Ricoeur refere

Eacute de fato o esforccedilo de recordaccedilatildeo que oferece a melhor ocasiatildeo de fazer lsquomemoacuteria do

esquecimentorsquo para falar com antecipaccedilatildeo como Santo Agostinho A busca da

lembranccedila comprova uma das finalidades principais do ato de memoacuteria a saber lutar

contra o esquecimento arrancar alguns fragmentos de lembranccedila agrave lsquorapacidadersquo do

tempo (Santo Agostinho dixit) ao lsquosepultamentorsquo no esquecimento Natildeo eacute somente o

caraacuteter penoso do esforccedilo de memoacuteria que daacute agrave relaccedilatildeo sua coloraccedilatildeo inquieta mas o

temor de ter esquecido de esquecer de novo de esquecer amanhatilde de cumprir esta ou

aquela tarefa porque amanhatilde seraacute preciso natildeo esquecer [] de se lembrar (RICOEUR

2014 p48)

A terceira dupla de opostos proposta por Ricoeur em sua fenomenologia da memoacuteria eacute

constituiacuteda pela polaridade reflexividademundanidade A respeito do elemento reflexividade

Ricoeur esclarece

Natildeo nos lembramos somente de noacutes vendo experimentando aprendendo mas das

situaccedilotildees do mundo nas quais vimos experimentamos aprendemos Tais situaccedilotildees

implicam o proacuteprio corpo e o corpo dos outros o espaccedilo onde se viveu enfim o

horizonte do mundo e dos mundos sob o qual alguma coisa aconteceu Entre

reflexividade e mundanidade haacute mesmo uma polaridade na medida em que a

reflexividade eacute um rastro irrecusaacutevel da memoacuteria em sua fase declarativa algueacutem diz

lsquoem seu coraccedilatildeorsquo que viu experimentou aprendeu anteriormente sob esse aspecto nada

deve ser negado sobre o pertencimento da memoacuteria agrave esfera de interioridade

(RICOEUR 2014 p53-54)

A mundanidade por sua vez constitui um elemento significativo no estudo deste

capiacutetulo uma vez que contempla a existecircncia dos rituais atraveacutes da abordagem do fenocircmeno da

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comemoraccedilatildeo Ricoeur o associa agrave ldquo[] gestualidade corporal e agrave espacialidade dos rituais que

acompanham os ritmos temporais da celebraccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p60) A associaccedilatildeo do ato

de comemoraccedilatildeo com os rituais eacute explicada por ele

Natildeo haacute efetuaccedilatildeo ritual sem a evocaccedilatildeo de um mito que orienta a lembranccedila para o que eacute

digno de ser comemorado As comemoraccedilotildees satildeo assim espeacutecies de evocaccedilotildees no

sentido de reatualizaccedilatildeo eventos fundadores apoiados pelo lsquochamadorsquo a lembrar-se que

soleniza a cerimocircnia- comemorar observa Casey eacute solenizar tomando seriamente o

passado e celebrando-o em cerimocircnias apropriadas (RICOEUR 2014 p60)

A partir da reflexatildeo de Ricoeur sobre o par reflexividademundanidade e neste uacuteltimo

elemento a presenccedila do ritual cabe salientar o estudioso Mircea Eliade Este em sua obra Mito e

Realidade apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o mito

O mito conta uma histoacuteria sagrada ele relata um acontecimento ocorrido no tempo

primordial o tempo fabuloso do lsquoprinciacutepiorsquo Em outros termos o mito narra como

graccedilas agraves faccedilanhas dos Entes Sobrenaturais uma realidade passou a existir seja uma

realidade total o Cosmo ou apenas um fragmento uma ilha uma espeacutecie vegetal um

comportamento humano uma instituiccedilatildeo Eacute sempre portanto a narrativa de uma

lsquocriaccedilatildeorsquo ele relata de que modo algo foi produzido e comeccedilou a ser O mito fala apenas

do que realmente ocorreu do que se manifestou plenamente (ELIADE 2011 p11)

A relevacircncia dessa consideraccedilatildeo reside em corroborar que ldquo[] pelo fato de relatar as

gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestaccedilatildeo dos seus poderes sagrados o mito se torna o

modelo exemplar de todas as atividades humanas significativasrdquo (ELIADE 2011 p12) A

comemoraccedilatildeo enseja o rito que reencena o mito por isso eacute mencionada na explanaccedilatildeo de Ricoeur

quando se refere aos rituais Mircea Eliade esclarece ldquo[] a principal funccedilatildeo do mito consiste em

revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas tanto a

alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE

2011 p12) Compreende-se assim a comemoraccedilatildeo como a reuniatildeo de grupo ou de um povo

para celebrar a memoacuteria conjunta de seus membros em torno de uma finalidade o rito cuja

origem estaacute no evento original o mito A ideia impliacutecita neste caso eacute a de celebrar em conjunto

a memoacuteria de algo ou seja co-memorar A fim de reforccedilar essa reflexatildeo apontamos outra

explanaccedilatildeo de Eliade

Para o homem das sociedades arcaicas ao contraacuterio o que aconteceu ab origine pode ser

repetido atraveacutes do poder dos ritos Para ele portanto o essencial eacute conhecer os mitos

Essencial natildeo somente porque os mitos lhe oferecem uma explicaccedilatildeo do Mundo e de seu

proacuteprio modo de existir no Mundo mas sobretudo porque ao rememorar os mitos e

reatualiza-los ele eacute capaz de repetir o que os Deuses os Heroacuteis e os Ancestrais fizeram

ab origine Conhecer os mitos eacute aprender o segredo da origem das coisas Em outros

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termos aprende-se natildeo somente como as coisas vieram agrave existecircncia mas tambeacutem onde

encontra-las e como fazer com que reapareccedilam quando desaparecem (ELIADE 2011

p18)

No contexto do presente capiacutetulo interessa ressaltar a compreensatildeo do ritual como

celebraccedilatildeo de uma memoacuteria ancestral por parte de um grupo A ancestralidade dessa memoacuteria

tem em sua raiz o mito que lhe deu origem Tal entendimento tem associaccedilatildeo com o cozinhar e

com o partilhar o alimento com a reuniatildeo da famiacutelia em torno da comida e com a repeticcedilatildeo das

praacuteticas culinaacuterias que mesmo evoluindo ao longo do tempo remontam o primordial tornar cru

em cozido Outro elemento ligado agrave realizaccedilatildeo de rituais associados agrave cozinha estaacute na recitaccedilatildeo

do modo de fazer um prato quando transmitido atraveacutes de uma receita escrita O caminho que

essa percorre entre as geraccedilotildees de uma famiacutelia eacute emblemaacutetico de sua forccedila ritualiacutestica como se

carregasse de forma transgeracional a memoacuteria desse grupo atraveacutes do como-se-faz de uma

determinada praacutetica

Antes da existecircncia da receita no caderno o conhecimento empiacuterico dos antepassados

sobre o fazer culinaacuterio era ensinado oralmente e atraveacutes do proacuteprio fazer quando recitaccedilotildees eram

feitas para que o prato saiacutesse a contento essas eram assim a representaccedilatildeo do ritual naquele

grupo familiar Nesse sentido retomamos Eliade em sua explicaccedilatildeo sobre a recitaccedilatildeo do mito

Em Timor por exemplo quando germina um arrozal dirige-se ao campo algueacutem que

conhece as tradiccedilotildees miacuteticas referentes ao arroz [] Recitando o mito de origem

obriga-se o arroz a crescer tatildeo belo vigoroso e abundante como era quando apareceu

pela primeira vez Natildeo eacute com o fim de lsquoinstruiacute-lorsquo ou ensinar-lhe a maneira como deve

comportar-se que o oficiante lembra ao arroz o modo como foi criado Ele o forccedila

magicamente a retornar agrave origem isto eacute a reiterar sua criaccedilatildeo exemplar (ELIADE

2011 p19)

Esses conhecimentos eram transmitidos junto com a receita ou seja eram parte da

memoacuteria daquele prato em seu papel na tradiccedilatildeo familiar Vale lembrar que a etimologia de

receita estaacute no latim recepta alusivo a receber expressa entatildeo aquilo que se recebe em termos

de ensinamento sobre o fazer de uma comida especiacutefica Haacute diversas expressotildees no folclore da

cozinha que remontam a transmissatildeo do saber culinaacuterio em uma cultura

Haacute diferenccedila entre a memoacuteria individual essa que nos identifica como indiviacuteduos e a

memoacuteria coletiva Como exemplo da uacuteltima cito esse lsquosaber culinaacuterio em uma culturarsquo que

remete agrave compreensatildeo sobre a memoacuteria coletiva no contexto deste capiacutetulo Esta assim como a

individual tem em seu eixo a noccedilatildeo de identidade no caso da memoacuteria de um indiviacuteduo como jaacute

visto refere-se agrave consciecircncia de si mesmo como base daquilo de que ele eacute capaz de se lembrar

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para que as lembranccedilas sejam suas no caso da memoacuteria coletiva este eixo estaacute na identidade do

grupo que a conteacutem pois a memoacuteria e o grupo alimentam-se reciprocamente o grupo se manteacutem

vivo pelas memoacuterias enquanto essas permanecem presentes pela unidade do grupo

A respeito dessa inter-relaccedilatildeo a pesquisadora e professora alematilde Aleida Assmann no

livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo-formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural menciona as ideias

de Maurice Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva referindo que ldquo[] a memoacuteria coletiva assegura

a singularidade e a continuidade de um grupordquo (ASSMANN 2011 p144) e esclarece

Seu interesse voltou-se apenas agrave pergunta sobre o que manteacutem as pessoas unidas em

grupos Deparou assim com o significado agregador das lembranccedilas em comum como

importante elemento de coesatildeo Derivou daiacute a noccedilatildeo da existecircncia de uma lsquomemoacuteria de

gruporsquo Mas as lembranccedilas natildeo se estabilizam somente no grupo O grupo torna estaacuteveis

as lembranccedilas A investigaccedilatildeo de Halbwachs em torno dessa lsquomemoacuteria coletivarsquo resultou

no seguinte a estabilidade da memoacuteria coletiva estaacute vinculada de maneira direta agrave

composiccedilatildeo e subsistecircncia do grupo Se o grupo se dissolve os indiviacuteduos perdem em

sua memoacuteria a parte de lembranccedilas que os fazia assegurarem-se e identificarem-se como

grupo (ASSMANN 2011 p144)

A referecircncia agrave memoacuteria ligada agrave manutenccedilatildeo de um grupo remete novamente agrave ideia no

acircmbito das vivecircncias culinaacuterias das receitas de cozinha transmitidas entre as geraccedilotildees de uma

mesma famiacutelia O elemento que sustenta a presenccedila dessa receita no grupo eacute a memoacuteria que este

tem a respeito do lsquocomo-se-fazrsquo de uma determinada comida Enquanto houver membros dessa

famiacutelia que se interessem em manter a tradiccedilatildeo daquele determinado sabor a memoacuteria seraacute

mantida ao mesmo tempo enquanto houver essa memoacuteria a integraccedilatildeo do grupo permaneceraacute

Segundo Aleida Assmann

Os estudos do historiador francecircs Pierre Nora demonstraram que por traacutes da memoacuteria

coletiva natildeo haacute alma coletiva nem espiacuterito coletivo algum mas tatildeo somente a sociedade

com seus signos e siacutembolos Por meio dos siacutembolos em comum o indiviacuteduo toma parte

de uma memoacuteria e de uma identidade tidas em comum Nora cumpriu na teoria da

memoacuteria o passo que vai do grupo vinculado na coexistecircncia espaccedilo-temporal tema

estudado por Halbwachs agrave comunidade abstrata que se define por meio dos siacutembolos

que abrangem e agregam em niacutevel espacial e temporal Os portadores dessa memoacuteria

coletiva natildeo precisam conhecer-se para apesar disso reinvindicar para si uma identidade

comum (ASSMANN 2011 p145)

Assim como referido sobre o papel de uma receita de famiacutelia como elemento de coesatildeo

entre os membros da mesma atraveacutes das geraccedilotildees situaccedilatildeo semelhante pode ocorrer em relaccedilatildeo

a um determinado ingrediente ou preferecircncia alimentar A transmissatildeo de um saber culinaacuterio e

dos gostos de uma famiacutelia tambeacutem satildeo aspectos que se perpetuam no grupo em funccedilatildeo da

memoacuteria que agrega seus integrantes

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A memoacuteria individual entatildeo manteacutem a identidade por dar ao indiviacuteduo sua caracteriacutestica

singular atraveacutes do tempo nela estatildeo suas impressotildees lembranccedilas e registros que compotildeem a

noccedilatildeo de permanecircncia de quem ele eacute ou seja reforccedilam nele a consciecircncia do eu na duraccedilatildeo de

ciclos que se perpetuam Ele sabe quem eacute em grande parte pelas lembranccedilas que tem de si

Circunstacircncia anaacuteloga ocorre com a memoacuteria coletiva em que o grupo se manteacutem coeso pela

consciecircncia de ser um grupo com lembranccedilas em comum o papel dessas eacute exatamente o de

manter a unidade e a permanecircncia da identidade do conjunto

A memoacuteria individual e a coletiva estatildeo portanto implicadas na vivecircncia culinaacuteria

relaccedilotildees a serem exploradas na divisatildeo que segue

13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO

A relaccedilatildeo entre cozinha e memoacuteria existe devido agrave linguagem Avanccedilando nessa

perspectiva Mariano Garciacutea e Mariana Dimoacutepulos compiladores da obra Escritos sobre la mesa-

Literatura y comida afirmam que ldquo[] a relaccedilatildeo entre linguagem e comida comeccedila desde o

momento em que graccedilas agrave escritura se conservam notiacutecias de como se comia na Antiguidaderdquo

(GARCIacuteA DIMOacutePULOS 2014 p9) Toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo assim eacute conhecida em

virtude do que se registrou ao longo das eacutepocas sob os mais diversos veiacuteculos Esse aspecto eacute

relevante tanto do ponto de vista de Histoacuteria da Humanidade quanto daquele das histoacuterias

familiares atraveacutes de escritos transmitidos de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Em ambos os exemplos os

escritos culinaacuterios satildeo representativos da memoacuteria coletiva

Ainda no que concerne a essa memoacuteria salientamos que ela tem tambeacutem outras

expressotildees presentes no acircmbito identitaacuterio de uma cultura De acordo com Daniela Bunn em sua

obra O alimento na literatura uma questatildeo cultural ldquo[] satildeo assim criados em torno da mesa

modos maneiras e ingredientes que estabelecem uma identidade cultural destinada a representar

um grupo e sua identidaderdquo (BUNN 2016 p28) Tais lsquomodos maneiras e ingredientesrsquo satildeo

elementos que constituem parte da bagagem que pertence a um grupo e agraves geraccedilotildees seguintes

atraveacutes da memoacuteria coletiva Podemos citar como exemplos os ensinamentos culinaacuterios

aprendidos atraveacutes de gestos e de relatos orais e as preferecircncias alimentares de uma famiacutelia ou de

um povo

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Visitando cadernos de receitas antigos que pertenceram a avoacutes matildees e tias percebemos

uma caracteriacutestica em comum a todos eles o elenco de ingredientes com suas medidas e a breve

descriccedilatildeo do lsquocomo-se-fazrsquo apenas para guiar a praacutetica Parece-nos inclusive que eram

anotaccedilotildees que elas faziam para si mesmas para que natildeo esquecessem de um ou outro detalhe e

natildeo registros para serem transmitidos na famiacutelia Ensinavam sim mas in loco na hora em que

estivessem fazendo Mostravam caracteriacutesticas no aspecto do prato sendo feito apontavam para

os ruiacutedos da cebola fritando faziam sentir a textura de uma massa de patildeo o cheiro de um doce

exalando pela cozinha denunciavam a pitada de sal que ainda faltava no arroz soacute de provarem

com a ponta da colher Como sabiam Porque lembravam pelo que um dia aprenderam e mais do

que isso lembravam pelo haacutebito pelo praticar e de forma mais vivencial pelo sentir atraveacutes dos

cinco sentidos

Em Pequeno alfarraacutebio de acepipes e doccediluras haacute um capiacutetulo dedicado agrave cozinha das

avoacutes intitulado lsquoNossas avoacutesrsquo cujo propoacutesito eacute o de refletir de modo especiacutefico sobre a cozinha

que atravessa a memoacuteria e permanece como registro vivo pela referecircncia ao papel que estas

desempenham na memoacuteria de muitas pessoas Os pratos e doces feitos por elas as avoacutes de tantas

geraccedilotildees tornam-se parte das lembranccedilas que deixam na famiacutelia Aleacutem disso as receitas das avoacutes

satildeo emblemaacuteticas da memoacuteria que se manteacutem viva atraveacutes de um grupo que a alimenta a

memoacuteria coletiva conforme referida por Aleida Assmann ao mencionar as ideias de Maurice

Halbwachs

Um dos aspectos mais relevantes dessa lsquocozinha das avoacutesrsquo eacute o modo como tinham no

corpo o conhecimento da praacutetica culinaacuteria No texto lsquoA memoacuteria nas matildeosrsquo eacute referido esse

aspecto

No caso da Voacute Leacuteia e de tantas avoacutes da eacutepoca acho que tinham a memoacuteria nas matildeos

com tudo o que aprendiam e praticavam vida afora No entanto a sabedoria vai aleacutem

Acredito que sentissem vivamente nas etapas os cheiros gostos sons do alimento

aspecto textura pulsaccedilatildeo As matildeos preparavam mas todo corpo participava do feito

culinaacuterio Prestavam atenccedilatildeo estavam de fato presentes na tarefa E assim a memoacuteria era

lsquocarimbadarsquo nas matildeos nos cinco sentidos na emoccedilatildeo de um sabor que alegrava a

cozinha (CARDOSO 2012 p61)

O elemento determinante da memoacuteria das avoacutes cuja vivecircncia culinaacuteria era cotidiana e de

valor reconhecido entre os familiares eacute a praacutetica Sabiam fazer e muitas vezes de modo

intuitivo adaptavam e ateacute criavam receitas por esse conhecimento A lsquomemoacuteria nas matildeosrsquo

consistia em identificar pelo tato que a massa do patildeo estava no ponto quando a pele assim

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determinava E reconheciam isso por um dia ter aprendido mas principalmente porque apoacutes

tantas repeticcedilotildees do lsquocomo-se-fazrsquo foi a pele que passou a identificar este ponto ainda antes do

conhecer cognitivo Tal reflexatildeo conduz ao que refere Ricoeur sobre o par haacutebitomemoacuteria

quando o primeiro elemento do par alude agraves circunstacircncias em que o passado adere ao presente

Um saber adquirido eacute mantido em praacutetica o que torna sua lembranccedila como um fator que integra a

atualidade do fazer e natildeo apenas o passado

Esta memoacuteria das avoacutes que mantinham vivo um modo de conhecer o ato culinaacuterio como

parte de seu saber vivencial ilustra com nitidez a ideia da memoacuteria coletiva jaacute que seu saber era

compartilhado em seu tempo natildeo pela receita escrita mas pela forma como esse era sentido e

atuado na cozinha Agrave medida que as geraccedilotildees que detinham esses conhecimentos antigos foram

terminando suas memoacuterias de forno-e-fogatildeo construiacutedas pela accedilatildeo e pelos sentidos agrave beira do

fogo ou do balcatildeo foram deixando de existir O que ficou para as geraccedilotildees seguintes foi o

conjunto de receitas escritas mas essas natildeo substituem a riqueza de um fazer empiacuterico intuitivo

recordado no corpo

O escritor e pesquisador Michael Pollan faz uma referecircncia interessante nesse sentido ao

advertir que natildeo se deve comer nada que a avoacute natildeo chamaria de comida Essa expressatildeo proposta

no fulcro de uma culinaacuteria dirigida para fora dos lares e feita de alimentos muitas vezes pouco ou

nada saudaacuteveis chama a atenccedilatildeo para o reconhecimento das avoacutes como detentoras de um saber

uacutenico aquele da lsquocomida de verdadersquo

Avoacutes matildees e tias satildeo personagens de grande relevacircncia no aprendizado de cozinha das

geraccedilotildees seguintes Eacute possiacutevel que isso se deva a seu papel ancestral de transmissatildeo de um saber

especiacutefico A memoacuteria dos antepassados constitui o alicerce a fundamentaccedilatildeo da famiacutelia a partir

de experiecircncias e de saberes que um dia foram vivenciados para serem entatildeo narrados ao longo

do tempo agraves proacuteximas geraccedilotildees O socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da

culinaacuteria brasileira tece uma relevante consideraccedilatildeo a esse respeito ldquoOs saberes culinaacuterios

evoluiacuteram como uma heranccedila que se transmite matrilinearmente ndash e os cadernos de receitas das

avoacutes satildeo uma sobrevivecircncia persistente dessa diretrizrdquo (DOacuteRIA 2014 p206)

Doacuteria aborda outro elemento significativo na contribuiccedilatildeo com o papel da memoacuteria na

cozinha a corporeidade Esse fator representa o proacuteprio ato culinaacuterio que eacute exercido pelo corpo

Eacute nele que reside a memoacuteria dos movimentos e dos gestos implicados no preparo do alimento

como bater claras sovar a massa do patildeo picar a cebola etc Neste sentido o autor refere

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O corpo eacute tradicionalmente o principal instrumento do fazer culinaacuterio As ferramentas

da faca ao mais sofisticado equipamento utilizado na culinaacuteria molecular satildeo em geral

expedientes que visam economizar gestos ou conferir-lhes maior precisatildeo mas o

empenho fiacutesico com destreza eacute o primeiro responsaacutevel pelos resultados alcanccedilados []

(DOacuteRIA 2014 p216)

Essa reflexatildeo significa na compreensatildeo da memoacuteria ligada agrave cozinha que eacute o corpo o

principal responsaacutevel pela praacutetica culinaacuteria incluindo qualidades como a destreza mencionada

por Doacuteria A faca poderaacute cortar bem estar afiada mas se o corpo natildeo souber usaacute-la isso de nada

adiantaraacute Tal ponto nos remete agrave ideia da memoacuteria do corpo referida por Ricoeur no que tange

a uma espeacutecie de memoacuteria que pode ser agida na praacutetica habitual do indiviacuteduo fazendo parte de

sua identidade ter domiacutenio de um dado ato culinaacuterio daacute a algueacutem a consciecircncia de que sabe

fazer de que se lembra de que aquele saber eacute parte de si

Assim o ato culinaacuterio aprendido tanto por livros de receitas como pela transmissatildeo oral

por familiares representa a memoacuteria coletiva quando esse ato eacute praticado rotineiramente pelo

sujeito que aprendeu isto contribui para a consciecircncia de si representando o papel da memoacuteria

individual Cabe ressaltar tambeacutem a presenccedila da memoacuteria ancestral que acompanha as vivecircncias

de cozinha A esse propoacutesito Doacuteria refere que ldquoAssim lsquofazer para o outrorsquo ndash essa doaccedilatildeo atraveacutes

de um intermediaacuterio ao mesmo tempo material e simboacutelico como eacute a comida ndash permanece a

marca feminina do cozinhar desde os primeiros tempos da humanidaderdquo (DOacuteRIA 2014 p221)

Tal constataccedilatildeo reforccedila o papel ancestral das avoacutes matildees e tias na transmissatildeo do saber culinaacuterio

A postagem do blog Serendipity in Cucina traz no relato memorialiacutestico sobre a vivecircncia

de sua autora reflexatildeo sobre o componente ritualiacutestico do cozinhar

Haacute alguns anos decidi comeccedilar a fazer a chimia de uvas lsquoda Voacute Leacuteiarsquo a partir das

lembranccedilas que tenho do fazer de minha avoacute materna a quem assisti preparando o doce

inuacutemeras vezes Os dados sobre as proporccedilotildees tais como igual peso das cascas de uva e

do accediluacutecar e aacutegua que cubra soube por uma prima mas meu objetivo principal era o de

seguir a memoacuteria mais de vinte anos depois da uacuteltima vez que a vi fazendo o doce

Entatildeo sempre no veratildeo na eacutepoca dessas uvas repito a experiecircncia Fico em frente agrave

caccedilarola e a coloco em fogo baixo depois da fervura mexendo com a colher de pau em

giros lentos e precisos Percebo a mudanccedila atraveacutes da resistecircncia que o composto faz agrave

colher e assim progressivamente o fazer demanda mais forccedila do braccedilo direito Presto

atenccedilatildeo ao aspecto o roxo cintilante do iniacutecio torna-se mais opaco e fechado o brilho

das cascas da uva Isabel com que eacute feita a chimia diminui agrave medida que essa se

aproxima do resultado final O aroma toma conta da casa toda de forma insidiosa

Identifico que estaacute pronta pela consistecircncia reconheccedilo este momento porque a imagem

de minha avoacute em seus giros da colher de pau eacute parte de minha memoacuteria bem como a

lembranccedila das etapas da receita Quando repito seu movimento com semelhante

vagarosidade e empenho faccedilo-o pela lembranccedila do que assisti entretanto eacute provaacutevel

38

que a repeticcedilatildeo se deva tambeacutem ao ritual em que consiste o cozinhar O proacuteprio fato de

estar agrave frente do fogo preparando o alimento eacute por si um ritual (CARDOSO 2015)

Assim o papel da ancestralidade manifesta-se no modo como se vivencia o contato com a

comida tanto no cozinhar quanto no comer e no partilhar a refeiccedilatildeo pessoas afins ou seja esses

atos configuram-se como rituais Retomamos as contribuiccedilotildees de Mircea Eliade para corroborar

essa compreensatildeo especialmente sua referecircncia de que

Apesar das modificaccedilotildees sofridas no decorrer dos tempos os mitos dos lsquoprimitivosrsquo

ainda refletem um estado primordial Trata-se ademais de sociedades onde os mitos

ainda estatildeo vivos onde fundamentam e justificam todo o comportamento e toda a

atividade do homem (ELIADE 2011 p10)

O fazer a comida e aquele do sentar agrave mesa para compartilhaacute-la satildeo desta forma rituais

que praticamos como seres humanos reencenando mitos A expressatildeo dos rituais estaacute em uma

memoacuteria coletiva ancestral que evocamos nessas praacuteticas

Em suma os mitos descrevem as diversas e algumas vezes dramaacuteticas irrupccedilotildees do

sagrado (ou do lsquosobrenaturalrsquo) no Mundo Eacute essa irrupccedilatildeo do sagrado que realmente

fundamenta o Mundo e o converte no que eacute hoje E mais eacute em razatildeo das intervenccedilotildees

dos Entes Sobrenaturais que o homem eacute o que eacute hoje um ser mortal sexuado e cultural

(ELIADE 2011 p11)

No que concerne agrave praacutetica da cozinha tambeacutem o cumprimento de uma receita traz um ato

de recitaccedilatildeo especialmente na parte que se refere ao lsquomodo de fazerrsquo o que conduz agrave reflexatildeo de

que tambeacutem esta eacute parte do ritual que envolve a produccedilatildeo da comida Fala-se em seguir a receita

no sentido de obedececirc-la Ao ler as orientaccedilotildees o que se lecirc eacute a presenccedila de verbos especiacuteficos do

fazer culinaacuterio conjugados no modo imperativo corte refogue asse e assim por diante Este

recitar que muitas vezes eacute falado em voz baixa enquanto se prepara um prato eacute em si um ato

inerente ao fazer culinaacuterio A respeito da recitaccedilatildeo Eliade aponta que

Na maioria dos casos natildeo basta conhecer o mito da origem eacute preciso recitaacute-lo em certo

sentido eacute uma proclamaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo do proacuteprio conhecimento E natildeo eacute soacute

recitando ou celebrando o mito de origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela

atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos O tempo miacutetico

das origens eacute um tempo lsquofortersquo porque foi transfigurado pela presenccedila ativa e criadora

dos Entes Sobrenaturais Ao recitar os mitos reintegra-se agravequele tempo fabuloso e a

pessoa torna-se consequentemente lsquocontemporacircnearsquo de certo modo dos eventos

evocados compartilha da presenccedila dos Deuses ou dos Heroacuteis Numa foacutermula sumaacuteria

poderiacuteamos dizer que ao ldquoviverrdquo os mitos sai-se do tempo profano cronoloacutegico

ingressando num tempo qualitativamente diferente um tempo lsquosagradorsquo ao mesmo

tempo primordial e indefinidamente recuperaacutevel (ELIADE 2011 p21)

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Carlos Alberto Doacuteria faz uma relevante reflexatildeo sobre a receita culinaacuteria contemplando a

perspectiva desde sua origem ateacute o modo como eacute vista atualmente

Considerando as diferenccedilas tecnoloacutegicas as receitas satildeo sempre prescriccedilotildees sobre o

modo de proceder na cozinha assim como as receitas farmacecircuticas satildeo prescriccedilotildees a

respeito de como os farmacecircuticos devem proceder em seus laboratoacuterios Do ponto de

vista geral ao apontar a unidade receita-cozinha e o modo de lsquoaviamentorsquo estamos

considerando que essa unidade estaacute incrustrada nas demais instituiccedilotildees como a religiatildeo

a famiacutelia o Natal etc (DOacuteRIA 2009 p141)

A receita culinaacuteria eacute entatildeo parte do ritual que envolve as vivecircncias alimentares seja

cozinhar ou comer aleacutem disso essa constitui um relevante material como documento para a

memoacuteria de um local e de uma eacutepoca pois traz em seu vocabulaacuterio e nas accedilotildees que determina

elementos de identificaccedilatildeo que permitem caracterizar sua origem e periacuteodo de vigecircncia A receita

porta consigo a memoacuteria coletiva do contexto de que se origina bem como a memoacuteria

individual de quem a escreve em seu caderno de cozinha e a de quem reconhece nos livros de

receitas pratos que jaacute experimentou

Doacuteria aponta a respeito da memoacuteria implicada nesse tipo de material um aspecto

interessante sobre o papel da memoacuteria contida nos livros culinaacuterios O autor fala a respeito de um

renomado chef internacional Paul Bocuse que eacute contraacuterio agrave praacutetica de receitas lsquoagrave riscarsquo tendo

escrito um livro assim Doacuteria aponta que o chef faz uma ressalva em sua obra orientando ao

leitor que natildeo leve seu conteuacutedo demasiadamente a seacuterio e que ouccedila uma lsquoforccedila desconhecidarsquo

como a inspiraccedilatildeo o que ldquo[] garantiraacute melhores resultados praacuteticosrdquo (DOacuteRIA 2009 p144)

Consideramos por fim que Bocuse tambeacutem estaacute a nos dizer que as suas receitas satildeo

apenas e modestamente o seu modo de fazer aquele prato ou seja elas contecircm a

memoacuteria do seu trabalho como estilo e valor testemunhal e- tambeacutem de modo a

determinar- o livro eacute seu meio de propagaccedilatildeo Visto assim o livro de receitas eacute um

registro de memoacuteria do trabalho que possam ter alguma utilidade para os leitores []

(DOacuteRIA 2009 p144)

Aleacutem dessa referecircncia a Bocuse Doacuteria aponta criticamente a funccedilatildeo da receita para os

que a seguem ldquoEntatildeo se pararmos um minuto para pensar veremos que a receita dentro da

cozinha tem o status de um texto sagrado que nos reduz agrave condiccedilatildeo de seus exagetas

independentemente do grau de preparaccedilatildeo que tenhamos nessa singular teologia alimentarrdquo

(DOacuteRIA 2009 p142) Esse respeito ao texto sagrado eacute de certa forma o cumprimento da

memoacuteria coletiva transmitida atraveacutes dos documentos escritos denominados receitas ao longo do

tempo nessa transmissatildeo ocorrem transformaccedilotildees na forma de execuccedilatildeo dos alimentos

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conforme as modificaccedilotildees culturais de cada eacutepoca ou seja cada periacuteodo e lugar tem seu modo de

interpretar e de realizar as receitas culinaacuterias de acordo com os produtos oferecidos e com as

teacutecnicas vigentes Doacuteria menciona

Por isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculos e as modificaccedilotildees que

introduzimos nas receitas satildeo apenas formas do patildeo continuar existindo mediante as

transformaccedilotildees das receitas Por isso quando seguimos agrave risca uma receita de patildeo natildeo

queremos fazer o patildeo mas uma versatildeo do patildeo que uma tradiccedilatildeo qualquer elaborou

(DOacuteRIA 2009 p147)

Tecidas as consideraccedilotildees a respeito do fazer culinaacuterio consolidado pela memoacuteria coletiva

vale refletir sobre o modo como ele eacute vivenciado atraveacutes da memoacuteria individual Ao contar sobre

a chimia de uvas de sua avoacute apontamos que assistir a seu modo de praticaacute-la foi para a autora o

percurso para aprender a fazecirc-la O lsquocomo-se-fazrsquo guarda as lembranccedilas oriundas da praacutetica

vivenciada pelo ofiacutecio dos cinco sentidos e pelo assistir aos gestos do corpo como os giros lentos

da colher de pau feitos pela avoacute E por tantas outras avoacutes matildees e tias

Assim a memoacuteria coletiva de uma receita culinaacuteria a chimia de uvas Isabel na maneira

como era repetida por muitas pessoas de uma eacutepoca tornou-se tambeacutem memoacuteria individual

Passou a ser parte da identidade da autora do blog pois representa um ponto de identificaccedilatildeo com

sua avoacute pela recordaccedilatildeo marcante de assisti-la fazendo esse doce por isso decidiu fazecirc-lo tempos

depois de seu falecimento seguindo as lembranccedilas do seu fazer A memoacuteria a respeito dos doces

produzidos por ela eacute tatildeo significativa que estaacute registrada em uma crocircnica especiacutefica no jaacute citado

Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e Doccediluras lsquoAs deliacutecias nos vidros de cafeacutersquo a qual

reproduzimos abaixo

Na casa de praia da Voacute Leacuteia e do Vocirc Heacutelio havia milhares de encantos espalhados mas

a cozinha era meu favorito A mesa retangular generosa e lsquoconvidadeirarsquo contava um

universo de histoacuterias de faacutebulas e de sabores mas o que dava uma graccedila especial ao

conjunto era o armaacuterio proacuteximo agrave porta para a varanda Em suas estantes na parte

superior enfeites e guloseimas ali moravam os potes de rapadura de leite

constantemente abastecidos pela voacute Na parte inferior duas portas abriam um territoacuterio

uacutenico respirante Ali vidros de cafeacute daqueles grandes com tampas vermelhas

guardavam geleias chimias e compotas que ela fazia durante o veraneio

Deixaacutevamos para depois a ideia de pedir as receitas tiacutenhamos o propoacutesito de ficar ao

lado quando o panelatildeo estava no fogo tomando nota do lsquocomo-se-fazrsquo mas sem muita

obstinaccedilatildeo Afinal de contas a Voacute estava ali e era a uacutenica que sabia o tim-tim por tim-

tim do ponto das cores dos cheiros que seus feitos adquiriam a cada etapa Entatildeo

tiacutenhamos a fantasia de que ela estaria para sempre renovando as deliacutecias nos vidros de

cafeacute com alquimias de aboacutebora de laranja de uva [] nossa imaginaccedilatildeo percorria

lonjuras no tempo acreditando que seu fazer dos doces seria perene Agora refletindo

sobre por que natildeo peguei nenhuma de suas receitas por que natildeo anotava cada detalhe

41

ocorre-me que esta era uma forma de garantir que ela permaneceria no ofiacutecio que eu

poderia eternamente aprender com ela a fazer suas reliacutequias

Hoje soacute o moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhas conhece o segredo daquelas

inquilinas (CARDOSO 2012 p62)

No texto lecirc-se lsquoo moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhasrsquo mas esse moacutevel eacute a

proacutepria memoacuteria guardando lembranccedilas representadas como lsquoo segredo daquelas inquilinasrsquo A

memoacuteria individual conteacutem segredos pontos que com o passar do tempo natildeo satildeo contados de

acordo com a realidade vivida mas apenas com aquela lembranccedila que permanece atraveacutes das

imagens e de sentimentos muito do que foi percebido nos escapa deixando as cenas como se as

viacutessemos atraveacutes de um vidro embaccedilado Esses satildeo os lsquosegredosrsquo que as portinhas do moacutevel da

cozinha silenciam

Nesse aspecto retomamos a consideraccedilatildeo de Eugegravene Minkowski sobre a memoacuteria

quando esse autor menciona que ldquo[] a lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a

tonalidade emotiva com que este foi percebidordquo (MINKOWSKI 2004 p143) Entende-se assim

que a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos recordaremos dela

no futuro porque eacute assim que a conhecemos

Esses registros existem na memoacuteria e assim constituem parte da consciecircncia do

indiviacuteduo sobre si mesmo Satildeo lembranccedilas que colaboram com a construccedilatildeo da identidade da

autora do texto Chimia da uva Isabel memoacuterias e receita pois ligam-na agrave identificaccedilatildeo com a

avoacute e seu legado culinaacuterio Tal aspecto corrobora o que apresentamos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica

do presente capiacutetulo

As memoacuterias individuais vinculadas agrave cozinha tecircm outro elemento a ser destacado nos

cadernos de receitas muitas vezes haacute referecircncia no tiacutetulo das mesmas a quem fazia tal prato ou

tal doce como especialidade identificando a receita a seu lsquodonorsquo como exemplo cito a lsquotorta de

palmito da Dona Mimi Mororsquo e a lsquopizza de sardinha da Voacute Leiarsquo Satildeo sabores associados agraves

lembranccedilas que temos das proacuteprias cozinheiras como se o saborear e o lembrar de quem

produzia o alimento fossem recordaccedilotildees acopladas

Os tiacutetulos das receitas fazem-nos evocar essas personagens da histoacuteria pessoal Os nomes

presentes no caderno identificam figuras de relevo na vida de quem o guarda assim esse faz

tambeacutem o papel de um aacutelbum de recordaccedilotildees Destacamos nas paacuteginas do livro Pequeno

alfarraacutebio de acepipes e doccediluras que o lsquobolo de melado da Anildarsquo natildeo eacute uma receita qualquer

de bolo de melado mas aquela da qual a autora tem determinada lembranccedila perpetuada pelo

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colorido afetivo lembra-se do momento em que saboreou a receita pela primeira vez da Anilda

sua autora da cozinha em que o bolo era feito e ateacute mesmo do aroma que deixava na casa apoacutes

sair do forno A receita pode tornar-se entatildeo a narrativa das experiecircncias e das pessoas que

fazem parte delas atraveacutes da memoacuteria que nos permite acessar

Muitos livros de temas culinaacuterios satildeo memorialiacutesticos em acircmbito nacional e

internacional Esse elemento confirma a relaccedilatildeo da cozinha com o sujeito que comete nela seus

atos culinaacuterios mais iacutentimos esta constituiraacute o espaccedilo de memoacuteria de quem teve ali ou em outras

cozinhas de sua vida vivecircncias a serem contadas A outras pessoas ou a si mesmo como faz

Antocircnio ao rememorar sua histoacuteria familiar e pessoal enquanto prepara o arroz para o almoccedilo de

famiacutelia

Na seccedilatildeo seguinte apresentamos a anaacutelise da primeira obra do corpus dessa Dissertaccedilatildeo

de Mestrado O arroz de Palma a fim de propor a relaccedilatildeo entre a cozinha e o fenocircmeno da

memoacuteria a partir dos fragmentos escolhidos

14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA

A obra de Francisco Azevedo O arroz de Palma segue a cronologia da lembranccedila a

narrativa dos acontecimentos de sua histoacuteria pessoal e familiar eacute feita atraveacutes da costura de

tempos costura essa em que o fio que une os tecidos eacute a memoacuteria O protagonista Antonio

narrador-personagem tem oitenta e oito anos e estaacute na cozinha da fazenda de sua infacircncia

preparando um almoccedilo para reunir toda a famiacutelia O prato a ser servido O arroz ofertado por sua

tia Palma aos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana na ocasiatildeo do casamento

Os gratildeos jogados aos noivos na igreja satildeo colhidos da pedra por Palma para a oferta do

presente Esses gratildeos atravessam o oceano de Portugal ao Brasil para onde o casal e Palma vecircm

apoacutes dificuldades financeiras no paiacutes de origem e atravessam tambeacutem as geraccedilotildees O arroz

fertilizaraacute a famiacutelia e suas histoacuterias Eacute para celebrar o aniversaacuterio de 100 anos do casamento dos

pais e do arroz presenteado pela tia que Antonio prepara o almoccedilo com o que ainda haacute do

presente para ser compartilhado com os familiares

A narrativa eacute contada por ele enquanto prepara o prato sob a forma de lembranccedilas do que

viveu e do que ouviu da Tia Palma nas longas conversas que tinham desde seus tempos de

crianccedila O protagonista vai alinhavando essas recordaccedilotildees narrando-as como forma de

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estabelecer uma linha de tempo desde o recebimento do arroz pelos pais ateacute o almoccedilo que

cozinha para a famiacutelia com o mesmo arroz cem anos depois Em alguns pontos da histoacuteria

parece tecer uma interlocuccedilatildeo com o leitor mas o elo entre a memoacuteria e os pensamentos eacute feita

de si para si

Pode-se dividir os trechos escolhidos para a presente anaacutelise em trecircs tempos o que

Antonio narra a partir da atualidade o que ouviu de Tia Palma e o que vivenciou Na primeira

condiccedilatildeo estaacute no presente nas duas outras no passado

Quando evoca as lembranccedilas vive-as com tamanha intensidade que sua narrativa traz

eventos antigos como se fossem atuais e refere-se a si mesmo do seguinte modo ldquoE eu menino

enrugado aqui nesta cozinha ainda viajo presente colorido do indicativordquo (AZEVEDO 2008

p17) O termo lsquomenino enrugadorsquo expressa a ligaccedilatildeo entre os tempos do presente e da memoacuteria

enquanto o lsquocoloridorsquo evoca a forccedila com que as lembranccedilas se manifestam trazendo ao presente

tonalidade marcante

Em toda a narrativa o uso das metaacuteforas culinaacuterias para a representaccedilatildeo de vivecircncias de

percepccedilotildees de sentimentos e de lembranccedilas eacute o elemento principal A cozinha eacute assim a forma

constante de expressatildeo do protagonista aleacutem de ser o espaccedilo fiacutesico onde o romance se

desenvolve pois eacute neste lugar que ele estaacute enquanto tece recordaccedilotildees

No primeiro capiacutetulo do livro Antonio fala durante o preparo do almoccedilo que serviraacute para

a famiacutelia entatildeo na atualidade Lembra-se lsquoTia Palma me ensinou a cozinhar eu era jovemrsquo

ilustrando as reflexotildees feitas na subdivisatildeo anterior sobre a relevacircncia da cozinha das avoacutes e das

tias para a memoacuteria individual pois essas satildeo figuras de referecircncia para a construccedilatildeo da memoacuteria

e por conseguinte da consciecircncia de si Diz Antonio

Eu aqui na fazenda Eu aqui na cozinha quatro e pouco da manhatilde Isabel ainda dorme o

sol ainda demora Eu aqui um velho de 88 anos Para os mais novos o Avocirc Eterno o

que natildeo teve comeccedilo nem teraacute fim o que jaacute veio ao mundo com essa cara enrugada Eu

aqui de avental branco picando o tempero verde Preparo o almoccedilo de famiacutelia Terei

forccedilas 88 dois infinitos verticais Eacute boa idade seraacute uma bela festa Tenho praacutetica Tia

Palma me ensinou a cozinhar eu era jovem (AZEVEDO 2008 p9)

Antonio provoca lsquoAs autoridades querem minhas digitais Elas estatildeo na massa do patildeorsquo o

que conduz a dois aspectos jaacute discutidos o papel da memoacuteria individual na identidade papel que

estaacute impregnado na massa do patildeo ou seja no ato culinaacuterio o outro elemento eacute aquele referido

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por Doacuteria quando menciona lsquoPor isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculosrsquo

expressando a feitura do patildeo como resultado da memoacuteria coletiva e da realizaccedilatildeo de rituais

Eacute na cozinha que eu desembesto e solto os bichos Eacute na cozinha que eu viajo sem

passaporte sem bilhete sem revista em aeroportos As autoridades querem minhas

digitais Elas estatildeo na massa do patildeo Querem minha foto Tenho vaacuterias de frente e de

lado com meus pais e irmatildeos e com os que vieram depois Retratos falados- em voz alta

a famiacutelia toda ao mesmo tempo Destrambelhada famiacutelia Sagrada famiacutelia []

(AZEVEDO 2008 p11)

Ainda nesse capiacutetulo ressaltamos um elemento caracteriacutestico da obra as expressotildees da

cozinha que constituem metaacuteforas agrave composiccedilatildeo das famiacutelias A frase emblemaacutetica empregada

pelo personagem lsquofamiacutelia eacute prato difiacutecil de prepararrsquo apresenta as reflexotildees de Antonio sobre

diferenccedilas e peculiaridades entre familiares Todas as alusotildees agraves divergecircncias entre eles satildeo feitas

tendo como eixo a linguagem usada na culinaacuteria Salientamos um aspecto a aproximaccedilatildeo entre

os termos culinaacuterios e as relaccedilotildees familiares representando cozinha e famiacutelia como estruturas

com pontos de convergecircncia

Preciso me concentrar Eacute essencial Por quecirc Ora que pergunta Famiacutelia eacute prato difiacutecil

de preparar satildeo muitos ingredientes Reunir todos eacute um problema- principalmente no

Natal e Ano-Novo Pouco importa a qualidade da panela fazer uma famiacutelia exige

coragem devoccedilatildeo e paciecircncia Natildeo eacute para qualquer um Os truques os segredos o

imprevisiacutevel Agraves vezes daacute ateacute vontade de desistir Preferimos o desconforto do estocircmago

vazio Preferimos o desconforto do estocircmago vazio Vecircm a preguiccedila a conhecida falta

de imaginaccedilatildeo sobre o que se vai comer e aquele fastio Mas a vida- azeitona verde no

palito- sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite O tempo potildee a mesa

determina o nuacutemero de cadeiras e os lugares Suacutebito feito milagre a famiacutelia estaacute

servida (AZEVEDO 2008 p12)

Durante o preparo do arroz mistura lembranccedilas e devaneios seguindo a comparaccedilatildeo

entre pratos culinaacuterios e famiacutelias

Reuacutena essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida Natildeo haacute pressa Eu

espero Jaacute estatildeo aiacute Todas Oacutetimo Agora ponha o avental pegue a taacutebua a faca mais

afiada e tome alguns cuidados Logo logo vocecirc tambeacutem estaraacute cheirando a alho e a

cebola Natildeo se envergonhe se chorar Famiacutelia eacute prato que emociona E a gente chora

mesmo De alegria de raiva ou de tristeza (AZEVEDO 2008 p12)

Entre ponderaccedilotildees e aconselhamentos Antonio fala de si mesmo ao leitor apresentando

sua visatildeo sobre si como um lsquovelho jaacute meio caducorsquo e lsquoum veterano cozinheirorsquo A alternacircncia

entre recordaccedilotildees do passado ideias do presente e diaacutelogo com o interlocutor eacute um dos elementos

que marca a narrativa

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Enfim receita de famiacutelia natildeo se copia se inventa A gente vai aprendendo aos poucos

improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia A gente cata um registro ali de

algueacutem que sabe e conta e outro aqui que ficou no pedaccedilo de papel Muita coisa se

perde na lembranccedila Principalmente na cabeccedila de um velho jaacute meio caduco como eu O

que este veterano cozinheiro pode dizer eacute que por mais sem graccedila por pior que seja o

paladar famiacutelia eacute prato que vocecirc tem que experimentar e comer Se puder saborear

saboreie Natildeo ligue para etiquetas Passe o patildeo naquele molhinho que ficou na

porcelana na louccedila no alumiacutenio ou no barro Aproveite ao maacuteximo Famiacutelia eacute prato que

quando se acaba nunca mais se repete (AZEVEDO 2008 p14)

Essa mistura de periacuteodos entre passado contado passado vivido e presente eacute marcada

pela referecircncia sobre o ingresso do arroz na histoacuteria da famiacutelia pelas matildeos de Tia Palma Os

tempos misturam-se ora mostrando Antonio em sua cozinha na atualidade ora Joseacute Custoacutedio

Maria Romana e Tia Palma em cenas vividas por eles

Quando Antonio se refere a um evento passado usando um verbo no presente pode-se

compreender que atraveacutes da memoacuteria ingressou em outro tempo de si mesmo ou de sua famiacutelia

A mistura entre lembranccedila e atualidade marca muitos dos relatos pois o limiar entre passado e

presente para o protagonista jaacute eacute impreciso assim como as experiecircncias que viveu e aquelas que

ouviu de Palma

Tia Palma era enfaacutetica ao descrever a cena o arroz que desabou sobre os noivos aacute saiacuteda

da igreja foi torrencial Eram punhados e mais punhados Chuva branca que natildeo parava

Nunca se viu tanta fartura em votos de felicidade (AZEVEDO 2008 p15)

-E tu dizes que Palma eacute que eacute a mal-educada

-Basta assunto encerrado Daacute-se o arroz para algueacutem Palma natildeo precisa saber

-O arroz eacute presente O arroz fica

-Pois estaacute bem Guarda esse maldito presente Com o tempo ele haacute de mofar se encher

de bichos e teraacutes que jogaacute-lo fora

-Ouve bem meu querido Joseacute Custoacutedio este arroz eacute amor e puro amor Natildeo haacute de se

estragar (AZEVEDO 2008 p21)

O protagonista recorda-se das vivecircncias com Tia Palma na cadeira em que essa lhe

contava as histoacuterias sobre o arroz e tantas outras Ouvir Palma era vivido por Antonio como se

assistisse a uma peccedila de teatro

A expressatildeo no rosto natildeo daacute a menor pista A histoacuteria de hoje seraacute triste Que vozes

faraacute Que cenaacuterio me apresentaraacute ao levantar as cortinas A sala de jantar Uma ruela de

Viana do Castelo Seraacute dia SeraacuteTia Palma pigarreia faz pequena pausa comeccedila com

gravidade

Primeiro ato Tarde da noite ela garante O coto de vela colado no tampo da mesa mal

ilumina os rostos Mamatildee e papai apenas alguns meses de casados natildeo tecircm o que

comer Nada nem vegetal nem fruta nem gratildeo nada Em voz baixa respeitosa mamatildee

sugere o arroz A resposta que recebe eacute a fuacuteria o murro na mesa e a gargalhada que

parece pranto

-O arroz de Palma

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Outra sonora gargalhada e laacutegrimas Papai parece fora de si

-O arroz de Palma nunca Castigo maldiccedilatildeo que seja Morro de fome mas aquele arroz

varrido do chatildeo nunca

-O arroz de Palma eacute abenccediloado Arroz plantado na terra caiacutedo do ceacuteu colhido da pedra

(AZEVEDO 2008 p26)

Tia Palma sempre contara a Antonio sobre o papel do arroz para sua histoacuteria familiar

fazendo do sobrinho o herdeiro de suas memoacuterias e do conhecimento a respeito da relevacircncia do

ingrediente para a continuidade da famiacutelia

-A fertilidade de vocecircs estaacute no arroz A benccedilatildeo que haacute onze anos ele recusou

-Eu jurei ao Joseacute que o arroz ficava mas natildeo seria comido Foi o combinado

-Pois eu natildeo jurei nada a ele

Mamatildee acha graccedila meio espantada meio com medo

-Palma Como vais fazer

-Primeiro ponho uma dose cavalar de purgante na comida dele que eacute pra desentupiacute-lo

por traacutes Depois trago-lhe uma comida bem levezinha para que ele se recupereUma

canjinha especial bem magrinha como ele gosta Uma xiacutecara de arroz eacute o quanto basta

-Uma canjinha especial

O trato estaacute feito Os risos e o demorado do abraccedilo selam a cumplicidade (AZEVEDO

2008 p38)

Antonio lembra-se da cena em que quando crianccedila assegurou agrave Tia Palma que gostava

de arroz ingrediente crucial na conduccedilatildeo da narrativa Mostrava assim apreciar as histoacuterias

sobre o arroz contadas por ela e sabia desde entatildeo que esse era um elemento decisivo em sua

famiacutelia

E a cadeira jaacute eacute palco e se estamos assim abraccedilados eacute porque eu tambeacutem estou em cena e

agora a fala eacute minha Eacute a minha estreia Inesperada e tatildeo esperada estreia

-Natildeo fique preocupada Eu gosto de arroz De qualquer jeito grudado ou solto eu gosto

Com toda a verdade possiacutevel encerro a minha parte

-Ateacute puro sem feijatildeo sem nada eu gosto juro (AZEVEDO 2008 p28)

Cabe salientar o papel que esse elemento exerce na histoacuteria De acordo com Maria Eunice

Moreira no ensaio lsquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmarsquo ldquo[] o arroz tem

funccedilatildeo especial na formaccedilatildeo do clatilde como o objeto maacutegico que acompanha a trajetoacuteria da

famiacuteliardquo (MOREIRA 2014 p162) Aleacutem de ser o ingrediente que vem de Portugal e atravessa

as geraccedilotildees eacute presente de matrimocircnio de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana e posteriormente de

Antocircnio e Isabel Eacute o fator que fertiliza o primeiro casal e que reuacutene o segundo no almoccedilo entre

as famiacutelias quando Antonio e Isabel comeccedilam sua aproximaccedilatildeo

Esse almoccedilo comeccedila a partir de uma carta de Antonio ao pai em que anuncia de forma

quase imperceptiacutevel o interesse por Isabel e ao final conta que estaacute levando ingredientes

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especiais na sua viagem agrave fazenda ldquoPS Estou levando boas postas de bacalhau azeite vinho

verde e outras tantas gulodices vindas de Portugalrdquo (AZEVEDO 2008 p85) Tia Palma como

sempre com a percepccedilatildeo aguccedilada aos movimentos dos familiares tem a ideia de aproveitar a

ocasiatildeo para convidar a famiacutelia de Isabel a um almoccedilo de confraternizaccedilatildeo

-Vocecircs natildeo fazem anos de casados no dia da chegada de Antonio Entatildeo Preparamos

um almoccedilo e convidamos o senhor Avelino dona Maria Celeste e Isabel que eacute quem

nos interessa

-Palma os Alves Machado nunca se sentaram conosco agrave mesma mesa Natildeo sei Sinto-me

um pouco constrangida Ainda mais aqui em nossa casa tatildeo modesta Satildeo muito bons e

generosos mas satildeo nossos patrotildees O mundo deles eacute laacute em cima na sede

-O Joseacute Custoacutedio e o senhor Avelino natildeo satildeo tatildeo amigos Entatildeo Qual eacute o problema

Acho inclusive que jaacute deveriacuteamos tecirc-los chamado haacute mais tempo Jaacute ouvi por diversas

vezes dona Maria Celeste dizer que o marido gosta do nosso Joseacute como a um irmatildeo

(AZEVEDO 2008 p87)

Tia Palma e Maria Romana comeccedilam assim a combinar o almoccedilo que ocorre com

sucesso Primeiro passo eacute o de abrir o saco de arroz o que as surpreende pelo estado saudaacutevel dos

gratildeos Sendo Isabel a filha dos donos da fazenda e Antonio o filho do funcionaacuterio de confianccedila

haacute um constrangimento inicial que se desfaz com a partilha da refeiccedilatildeo entre as famiacutelias O arroz

une Portugal e Brasil paiacuteses das duas famiacutelias atraveacutes de ingredientes portugueses e tempero

brasileiro mais uma vez estando representada a cozinha como metaacutefora

Essa ocasiatildeo cujo propoacutesito eacute aproximar famiacutelias e reduzir diferenccedilas representa a

comemoraccedilatildeo de aniversaacuterio de casamento de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana bem como a visita

de Antonio agrave fazenda entatildeo morando no Rio de Janeiro Paul Ricoeur qualifica a comemoraccedilatildeo

dentro da caracteriacutestica mundanidade em par com reflexividade Esta mundanidade estaacute

associada agrave realizaccedilatildeo de rituais conforme jaacute visto Antonio alterna a lembranccedila sobre o relato de

Palma a respeito da combinaccedilatildeo entre ela e sua matildee com sua proacutepria recordaccedilatildeo sobre o almoccedilo

-Perfeito Veja Palma pegue

-Ceacuteus Quase 40 anos e ainda saudaacutevel

Mamatildee beija as matildeos de tia Palma

-Amor verdadeiro natildeo se estraga Eacute para sempre

-Trecircs quilos eacute o quanto basta Daraacute um belo arroz de bacalhau

-Eacute impossiacutevel que Antonio e Isabel natildeo se resolvam

O almoccedilo eacute um sucesso Os Alves Machado chegam um pouco cerimoniosos mas logo

com tantos comes e bebes somos a mesma famiacutelia (AZEVEDO 2008 p88)

O papel do arroz na histoacuteria seraacute tambeacutem o de testemunhar a uniatildeo fiacutesica de Antonio e

Isabel agrave beira do lago antes do casamento

48

-Eu sou o dono do arroz que tambeacutem eacute seu dona Isabel

-DonaPor acaso estamos casados

Sim estamos casados O Deus do azul sabe que estamos O lago menor sabe que

estamos O sangue e o arroz sabem que estamos (AZEVEDO 2008 p105)

Outra ocasiatildeo em que o arroz assume papel de ritual eacute quando o casal ganha de Joseacute

Custoacutedio Maria Romana e Palma o presente com nova dedicatoacuteria atualizada revisitando a

primeira feita por Palma Seraacute portanto o herdeiro do arroz ofertado pela Tia Palma a seus pais

junto a Isabel jaacute que o casal ganha o arroz como presente por seu matrimocircnio

Quero distacircncia de religiotildees mas respeito rituais Influecircncia de tia Palma admito Meu

cafeacute da manhatilde eacute sagrado O ritual eacute sempre o mesmo a hora a xiacutecara o pocircr o leite

primeiro o escurececirc-lo depois no ponto certo o abrir o patildeo o tirar o miolo

(AZEVEDO 2008 p127)

Individual ou coletivo o ritual eacute conexatildeo e cumplicidade [] Concluo que haacute sempre

algo de autoritaacuterio nos rituais Mas neles natildeo haveraacute tambeacutem algo que emociona Natildeo

haveraacute algo de belo e poeacutetico (AZEVEDO 2008 p127)

O arroz e todo o simbolismo que envolve na formaccedilatildeo dessa famiacutelia seraacute transmitido a

Antonio e Isabel em ocasiatildeo formal como desejam seus pais e Tia Palma

E o arroz Eacute o arroz Tia Palma quer que a entrega dessa vez ganhe algum ritual

Mamatildee e papai concordam Natildeo satildeo apenas os oito quilos que contam O presente de

casamento tem agora o peso da histoacuteria Portanto natildeo seraacute dado de modo informal

como aconteceu em Viana do Castelo (AZEVEDO 2008 p128)

O ritual de transmissatildeo do arroz eacute celebrado com a dedicatoacuteria atualizada e assinada por

seus pais e por Tia Palma eacute ela que faz a cerimocircnia de entrega ao sobrinho e agrave Isabel repetindo o

gesto feito na oferta do presente a Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu matrimocircnio

-Isabel e Antocircnio meus queridos este arroz que haacute quase 40 anos foi dado como

presente de casamento agrave minha cunhada Maria Romana e ao meu irmatildeo Joseacute Custoacutedio

por nossa vontade agora vos pertence Fazemos votos de que a tradiccedilatildeo continue e de

que todo o amor aqui contido chegue agraves geraccedilotildees futuras

Mamatildee potildee os oacuteculos lecirc a dedicatoacuteria atualizada

lsquoEste arroz-plantado na terra caiacutedo do ceacuteu como o manaacute do deserto e colhido da pedra- eacute

siacutembolo da fertilidade e do eterno amor Essa eacute a nossa benccedilatildeo

Palma Maria Romana e Joseacute Custoacutedio

Fazenda Santo Antocircnio da Uniatildeo em 13 de junho de 1946rsquo

Protegido pelo pano branco o arroz passa agraves nossas matildeos (AZEVEDO 2008 p130-

131)

Ainda no que concerne ao papel do ingrediente como elemento com atributo de ritual estaacute

a cena em que Antonio lecirc a receita em seu caderno do arroz de lentilhas de Tia Palma escrita

por ela com recomendaccedilotildees O aspecto a ser ressaltado nesse ponto estaacute principalmente na

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forma de apresentaccedilatildeo da receita que indica a importacircncia de recitar os trechos durante a feitura

do prato

Antonio meu querido lava bem as lentilhas em aacutegua corrente enquanto recitas

lsquotrepadeira trepadeirabeijo-te as folhas penadas e as flores violaacuteceas trepadeira

trepadeiranatildeo estou ao fundoestou ao frescoestou agrave beiraeacutes fortuna eacutes sauacutede eacutes

companheiratrepadeira trepadeira eacutes amor amigo eacutes paixatildeo verdadeirarsquo

Feito isso respira fundo trecircs vezes e solte o ar pela boca Deixa teu corpo sentir o

benefiacutecio Potildee as lentilhas em tacho com bastante aacutegua jaacute temperada de sal Leva ao

lume alto ateacute ferver Ao ferver abaixa o lume e deixa cozinhar ateacute que as lentilhas

estejam macias

Escorre a aacutegua da fervura E enquanto ela se vai diz com voz de certeza lsquoaacutegua

fervidaaacutegua de sal e de vidaaacutegua boa que seguetoma teu rumofertilizarsquo

(AZEVEDO 2008 p146-147)

A recomendaccedilatildeo de que faccedila as recitaccedilotildees ao cozinhar o prato traz a reflexatildeo sobre o

exposto por Mircea Eliade sobre a relevacircncia de recitar os mitos exposta anteriormente ldquo[]

recitando ou celebrando o mito da origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela atmosfera

sagradardquo (ELIADE 2011 p21) Haacute outra referecircncia a esse autor que merece ser salientada

pensando-se nos trechos a serem recitados como os cantos a que Eliade se refere ldquoA

recapitulaccedilatildeo atraveacutes dos cantos e da danccedila eacute simultaneamente uma rememoraccedilatildeo e uma

reatualizaccedilatildeo ritual dos eventos miacuteticos essenciais ocorridos desde a Criaccedilatildeordquo (ELIADE 2011

p27)

Laura Esquivel escreve no ensaio intitulado lsquoEl manaacute sagradorsquo em seu livro de ensaios

Iacutentimas suculencias-Tratado filosoacutefico de cocina sua perspectiva sobre a relaccedilatildeo entre a comida

e os rituais corroborando a importacircncia da cozinha como espaccedilo simboacutelico

Talvez natildeo haja muita diferenccedila entre falar de comida e falar de religiotildees Quase em

todas elas umas e outras se faz presente a divindade atraveacutes dos alimentos De fato natildeo

podemos negar que um rito obrigado de quase toda religiatildeo eacute o momento de comer e de

beber a deidade ou para a deidade O sentido profundo da alimentaccedilatildeo em alguma

medida tem a ver com nossa sede de eternidade cifrada na manutenccedilatildeo cotidiana da vida

Talvez por isso todos os deuses tenham deixado sua presenccedila contida nos alimentos

Nesse sentido nos alimentamos para viver e por viver O desfrute da comida tem

lampejos de vida eterna Mas natildeo soacute eacute fundamental o ato em si de comer tambeacutem o eacute a

cerimocircnia que implica preparar e compartilhar os alimentos A cerimocircnia ritual que se

realiza em torno da mesa eacute um ato de profunda e antiga significaccedilatildeo religiosa

(ESQUIVEL 2014 p77)

Entretanto natildeo apenas de comemoraccedilotildees eacute constituiacuteda a funccedilatildeo do arroz na narrativa

Algumas circunstacircncias satildeo provocadas pela representaccedilatildeo desse ingrediente na histoacuteria como as

diferenccedilas entre o protagonista e seus irmatildeos a tentativa de seus filhos Nuno e Rosaacuterio

50

mexerem no gratildeo derrubando-o na vitrine do restaurante e o deflagrar das emoccedilotildees da cunhada

em relaccedilatildeo a Antonio quando esta rouba uma porccedilatildeo do arroz para ter um pedaccedilo de Antonio

consigo

-Senti forte ciuacuteme de Isabel Inveja raiva tudo E ainda por cima era obrigada a

esconder o que sentia Quando vocecirc fez a vitrine iluminada no restaurante soacute pra expor o

arroz passei a acreditar que seria possiacutevel ter ao menos um punhadinho daquela

felicidade

-Vocecirc ainda tem ele

-Natildeo

-Natildeo

-Fiz do meu jeito Preparei ele na aacutegua e sal e comi Antes pedi a Deus que me desse um

pouco de vocecirc tambeacutem Nem que fosse por um dia

Amaacutelia torna a recostar a cabeccedila no meu peito Nada mais eacute dito Ou se eacute dito natildeo deixa

registro Acho que cochilamos Levantamo-nos da cama com o desprendimento de um

encontro rotineiro (AZEVEDO 2008 p217)

Entre rememoraccedilotildees e devaneios Antonio entrelaccedila retalhos do passado agrave sua percepccedilatildeo

sobre o presente a finitude as lembranccedilas recentes que se confundem o fluxo de consciecircncia

Reflete sobre o que faz ali na cozinha preparando o almoccedilo familiar e ao mesmo tempo

reconstroacutei lembranccedilas antigas que compuseram sua atualidade

Se me perguntarem natildeo sei dizer o que comi ontem no almoccedilo Mas sou capaz de

reproduzir diaacutelogos inteiros da minha juventude quando esta fazenda ainda era do

senhor Avelino e eu ainda morava na casa laacute de baixo com tia Palma meus pais e meus

irmatildeos Gozado isso Vaacute entender Memoacuterias antigas Niacutetidas perfeitas cheias de

miacutenimos detalhes cheiros e sons ateacute Inclusive as experiecircncias ancestrais que natildeo vivi

as histoacuterias laacute de Portugal que me foram contadas todas aqui dentro de cor e salteado

Fatos recentes Coitados Vatildeo se segurando em mim como podem (AZEVEDO 2008

p143)

A constataccedilatildeo de seus 88 anos daacute ao protagonista a consciecircncia de sua condiccedilatildeo de idoso

aceitando as falhas de lembranccedila mas natildeo aquelas em sua capacidade como cozinheiro

experiente

Natildeo quero vocecirc metida aqui dentro da cozinha Por favor Isabel Natildeo eacute nada disso Eacute

porque vocecirc fica zanzando para laacute e para caacute Potildee a matildeo prova daacute palpite Me atrapalha

Fico doido natildeo quero Nem vocecirc nem ningueacutem Deixa que eu dou conta do recado

Tantos anos agrave frente laacute do restaurante chefe com vaacuterios precircmios natildeo basta Eacute preciso

mais Idoso coisa nenhuma Dispenso o eufemismo bobo Sou velho isso sim Eu sei

natildeo precisa dizer A vista natildeo ajuda muito nem as pernas nem os reflexos Mas espera

aiacute gagaacute ainda natildeo estou Tenho forccedila nas matildeos Acho que ainda posso mexer uma

panela Quatro panelotildees concordo Fica tranquila que natildeo vou me queimar Nem a

comida (AZEVEDO 2008 p144-145)

51

A capacidade de Antonio com a cozinha comeccedilou com os aprendizados que teve com sua

tia na juventude e consolidou-se com a praacutetica Tal aquisiccedilatildeo lembra o referido sobre o par

memoacuteriahaacutebito na fenomenologia da memoacuteria proposta por Paul Ricoeur A capacidade

representa o elemento haacutebito pois eacute primordialmente construiacuteda a partir da atividade rotineira de

um atributo Talvez por isso na narrativa Antonio aceite as falhas de memoacuteria inerentes ao

envelhecimento mas natildeo a ideia de diminuiccedilatildeo daquilo que eacute seu por meacuterito por conquista com

esforccedilo dedicaccedilatildeo e sobretudo repeticcedilatildeo Antonio recorda-se de quando partiu para encontrar

trabalho na capital certo de que seguiria a atividade de cozinheiro

-O que eacute que significa isso agora Pra quecirc essa mala Antonio -Calma calma que eu natildeo vou pra guerra -Eu sabia Estaacutes indo embora por causa dessa moccedila Isabel E eacute tudo culpa da Palma

-Tenho 21 anos meu pai Sei muito bem o que faccedilo A vida do campo natildeo eacute para mim

Vou para a capital Farei amigos laacute E amigas

-Mas assim tatildeo de repente

-Trabalharei em restaurante conhecerei pessoas influentes ficarei conhecido e serei

proacutespero

-Para quecirc tanto entusiasmo Para lavar pratos Servir mesa

-Tambeacutem Mas natildeo eacute soacute isso Quero cozinhar Quem sabe um dia consigo abrir meu

proacuteprio negoacutecio

Papai se irrita

-Como cozinhar De onde tiraste essa ideia maluca (AZEVEDO 2008 p67)

O aprendizado com a tia eacute representativo da memoacuteria coletiva que se perpetua em um

grupo neste caso o familiar para a manutenccedilatildeo de um saber entre seus membros Essa memoacuteria

coletiva na histoacuteria eacute expressa pelo cozinhar como um conhecimento transmitido mas

principalmente pela histoacuteria que envolve o arroz nessa famiacutelia A narrativa dessa histoacuteria ao

longo das geraccedilotildees constitui tambeacutem a representaccedilatildeo dessa espeacutecie de memoacuteria na famiacutelia de

Antonio

Para aleacutem do que aprendeu com Tia Palma houve o que a praacutetica lhe ensinou

trabalhando em restaurantes ateacute que pudesse montar o proacuteprio negoacutecio Lembra-se de cenas do

percurso que seguiu ldquoO mar de mesas eacute convite agrave aventura Sigo Na copa e na cozinha o

barulho de louccedilas e talheres eacute intempeacuterie A vozearia eacute a marujada a postos que me recebe Esta eacute

a minha gente natildeo tenho duacutevidas Este eacute o meu barco e []rdquo (AZEVEDO 2008 p79)

Antonio tem em Palma seu referencial chamando por ela quando se vecirc em desafios

evocando lembranccedilas dos seus ensinamentos

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Transpiro o nervoso que vem de dentro Tia Palma por favor me ajuda lsquoO que o corpo

potildee para fora nos purificarsquo Saacutebia Tia Palma natildeo me falta nunca A cenoura e a batata jaacute

cortadas os tomates em rodelas e sem as sementes a cebola picada bem miudinha todos

nas respectivas vasilhas Mais alguma coisa Isso e aquilo Pronto acabei Natildeo me

canso Ao fim do expediente ainda haacute focirclego e entusiasmo de sobra Reluto em desfazer

o laccedilo do avental Jaacute (AZEVEDO 2008 p80)

Uma das cenas da obra que ilustra o entrelaccedilamento entre a memoacuteria individual e a

coletiva eacute no enterro dos pais de Isabel quando Antonio canta uma canccedilatildeo tradicional

portuguesa pensando fazecirc-lo em voz baixa como forma de homenagem Enquanto canta suas

memoacuterias tocam-lhe a ponto de natildeo perceber que o faz em voz alta E aqui estaacute o referido

entrelaccedilamento as demais pessoas presentes no enterro tambeacutem se emocionam e cantam em

coro Presentes ali estatildeo as proacuteprias lembranccedilas e aquelas de suas famiacutelias

Numa casa portuguesa fica bem

patildeo e vinho sobre a mesa

Quando agrave porta humildemente bate algueacutem

Senta-se agrave mesa coacutea gente

Fica bem essa fraqueza fica bem

que o povo nunca a desmente

A alegria da pobreza

estaacute nesta grande riqueza

de dar e ficar contente

(AZEVEDO 2008 p193)

Antonio segue a cantoria da muacutesica que pensa estar cantando para si Entatildeo percebe ter

cantado em voz alta e a emoccedilatildeo que causou Letra e muacutesica satildeo parte de sua memoacuteria individual

pela origem da famiacutelia e da memoacuteria coletiva dos presentes ao enterro que cantam com ele a

tradiccedilatildeo

Em algum momento tenho a impressatildeo de que algumas pessoas me acompanham e que

ao final todos ali cantamos juntos emocionados lsquoUma casa portuguesarsquo Volto ao enterro

com aplausos Reflexo condicionado eu mesmo bato palmas Isabel aos prantos me

beija agradecida pela homenagem inesperada Olho ao redor todos choram

copiosamente Natildeo eacute possiacutevel Seraacute que em vez de falar alto comigo mesmo cantei

alto Soacute pode ser (AZEVEDO 2008 p194)

Na volta do enterro o papel da comida em nutrir e acalentar eacute referido atraveacutes da

expressatildeo empregada por Antonio lsquopedimos a ela que nos aqueccedila algo para pocircr no estocircmagorsquo

como segue no trecho abaixo ldquoQuando chegamos em casa Nuno e Rosaacuterio jaacute estatildeo dormindo

Conceiccedilatildeo garante que ficaram quietinhos natildeo deram trabalho algum Pedimos a ela que nos

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aqueccedila algo para pocircr no estocircmago Ela diz que fez uma sopinha de legumes e jaacute nos chamardquo

(AZEVEDO 2008 p194)

O protagonista segue a narrativa evocando lembranccedilas reconstruindo impressotildees

reconhecendo a si mesmo atraveacutes da costura de retalhos da memoacuteria Estaacute em sua cozinha mas

viaja para muitos periacuteodos de sua vida visita a si mesmo em muitas eacutepocas lembra dos pais da

tia dos sogros dos irmatildeos dos filhos ateacute o momento atual Entatildeo na cozinha da fazenda aos 88

anos prepara com esmero os gratildeos de memoacuteria restantes em cozimento nas panelas Antonio

aguarda o encontro do passado com o presente no almoccedilo de famiacutelia Quando esse acontece

todos nas mesas entusiasmo e lembranccedila espalham-se na famiacutelia

Benccedilatildeo vivermos o bastante para poder dividi-lo assim irmatildemente sem conta de

padeiro nem laacutepis engatilhado atraacutes da orelha Olha soacute a cara da Leonor e a do Nicolau e

a do Joaquim Velhos bobos Nem sonhavam que ainda iam provar do arroz de Tia

Palma E agora choram desse jeito Natildeo eacute cebola nada que eu sei Eacute muita lembranccedila e

sonho tudo misturado agrave moda da casa Fiz de propoacutesito para pegar vocecircs de surpresa E

para a Amaacutelia - me pergunto- que gosto teraacute esse segundo arroz Qual o sabor de um

arroz assim permitido e compartilhado A garotada pode achar que somos velhos gagaacutes

e que essa histoacuteria eacute pura invencionice Impossiacutevel um arroz durar tanto a ciecircncia isto a

ciecircncia aquilo Eu natildeo ligo a miacutenima Vocecircs ligam Entatildeo oacutetimo Vamos comer agrave

vontade que haacute arroz para todos Joaquim meu irmatildeo me passa o azeite (AZEVEDO

2008 p352)

No trecho seguinte ao perguntar-se lsquoquantas vezes maisrsquo o protagonista expotildee sua

percepccedilatildeo quanto agrave finitude o tempo que ainda teraacute para novas cenas como aquela ldquoNoacutes

adultos continuamos em volta das mesas agraves voltas com as lembranccedilas Porque nos apetecem

repetimos o doce repetimos o vinho repetimos as histoacuterias Quantas vezes maisrdquo (AZEVEDO

2008 p356)

Ao longo da narrativa Antonio evoca histoacuterias lembranccedilas que lhe surgem

espontaneamente acionadas por outras por devaneios e por emoccedilotildees De acordo com Maria

Eunice Moreira em seu ensaio

A memoacuteria de Antonio organiza a configuraccedilatildeo caoacutetica da accedilatildeo externa dando um

sentido ao amontoado de fatos e episoacutedios jaacute vividos Nessa seleccedilatildeo privilegia natildeo a

memoacuteria anotada e escrita em cadernos ou diaacuterios mas aquela mais viva mais seletiva e

mais afetiva (MOREIRA 2014 p169)

No referido ensaio o fragmento acima corresponde agrave reflexatildeo de Antonio sobre a forma

como suas lembranccedilas lhe aparecem

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A memoacuteria que vai para o diaacuterio fica toda arrumadinha linear dia mecircs e ano Agraves vezes

horas e ateacute minutos constam do registro Mas quando velho a gente vai e consulta o

caderno se espanta com o montatildeo de coisa que jaacute nem faz sentido e estaria apagado natildeo

fosse a tinta A memoacuteria puxada da cabeccedila natildeo Eacute esforccedilo de selecionar soacute o que presta

o que nos eacute querido Natildeo eacute discurso ensaiado e lido Eacute fala de improviso com todos os

erros e tropeccedilos que a ousadia pode causar (AZEVEDO 2008 p248)

O que Antonio estaacute referindo eacute o conjunto de suas lembranccedilas na despensa da memoacuteria

aquelas que o identificam por constituiacuterem etapas de sua vida atraveacutes delas se reconhece

assume a consciecircncia de si Mesmo com o embaralhamento entre lembranccedilas e devaneios o

protagonista faz um balanccedilo de sua existecircncia enquanto prepara o almoccedilo familiar Estaacute na

cozinha porque esta eacute seu refuacutegio seu lugar no mundo Prepara o arroz para compartilhaacute-lo

assim como sua Tia Palma partilhava com ele suas histoacuterias sentada na quarta cadeira Os

trechos a seguir representam com nitidez o papel da comida agrave mesa para Antonio Mais uma vez

estatildeo presentes as lembranccedilas de tempos vividos e o arroz no prato como na frase lsquoo arroz tem

que vir sempre na frentersquo

A descriccedilatildeo de comidas caseiras do esmero de Conceiccedilatildeo ao arrumar a mesa da atitude

de Isabel em servi-lo todos satildeo elementos construiacutedos ao longo do tempo e tecircm como raiz as

experiecircncias familiares transformadas em memoacuteria O lsquocheiro gostoso da comidinha caseirarsquo eacute o

elemento sensorial que o acolhe na atmosfera de casa e simultaneamente o leva a viajar em suas

lembranccedilas O lsquoalmoccedilo de famiacutelia cotidianorsquo eacute o elemento que conduz o protagonista a cenas

semelhantes no passado como quando seus filhos eram crianccedilas Refeiccedilatildeo para Antonio eacute a

famiacutelia na mesa Assim a comida e a famiacutelia mais uma vez estatildeo vinculadas para ele como

sinocircnimos De recordaccedilatildeo de aconchego de partilha do gosto e do cheiro bom

Conceiccedilatildeo chega e anuncia que o almoccedilo estaacute indo para a mesa Graccedilas a Deus Meu

estocircmago jaacute estaacute roncando Puxo Rosaacuterio do sofaacute

-Vamos

E vamos todos levados pelo cheiro gostoso da comidinha caseira Ao nos sentarmos agrave

mesa impossiacutevel natildeo reparar no costumeiro apuro O caimento da toalha Os pratos os

copos os talheres afastados na medida certa Os guardanapos bem dobrados agrave esquerda

A cesta de patildees posta com arte Natildeo eacute almoccedilo para visitas Eacute almoccedilo de famiacutelia

cotidiano- esmero da Conceiccedilatildeo que ama tudo o que faz Laacute vem ela de novo da

cozinha pousa do meu lado a terrina do feijatildeo fumegando me daacute aquele sorriso de

missatildeo bem cumprida

-Botei bastante paio Ontem o senhor ficou revirando a concha dizendo que dava

precircmio para quem encontrasse um (AZEVEDO 2008 p311)

A cena pode ser compreendida sob a perspectiva de Laura Esquivel no ensaio jaacute referido

quando a autora exprime sua visatildeo sobre a comida e a partilha da mesa

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E ainda que natildeo sejamos religiosos creio que para nenhum de noacutes seraacute estranho pensar

que atraveacutes dos aromas que compartilhamos com nossos semelhantes dos sabores dos

alimentos e da substancial presenccedila da divindade neles os seres humanos podemos ter

dia apoacutes dia uma pequena antecipaccedilatildeo do paraiacuteso (ESQUIVEL 2014 p78)

A ideia de Esquivel sobre a lsquoantecipaccedilatildeo do paraiacutesorsquo coincide com o sentimento de

Antonio sobre a cozinha Para o protagonista essa representa a casa o sabor a famiacutelia Simboliza

o que Gaston Bachelard refere na frase ldquoPode-se demonstrar as primitividades imaginaacuterias

mesmo a respeito desse ser soacutelido na memoacuteria que eacute a casa natalrdquo (BACHELARD 2012 p47)

Pode-se complementar essa frase com outra ideia do autor ldquo[] a casa natal eacute uma casa

habitadardquo (BACHELARD 2012 p33) Ao estar na cozinha ou na sala de jantar ao estar sentado

agrave mesa a emoccedilatildeo eacute a de estar em casa naquela que primeiro conheceu como casa a fazenda A

casa natal eacute e sempre seraacute habitada pelas lembranccedilas Esse espaccedilo corresponde a um lugar de

memoacuteria conforme referido por Ricoeur A casa natal eacute um ser soacutelido na memoacuteria porque ela

conteacutem as primeiras vivecircncias afetos impressotildees Eacute ali que a vida comeccedila que se enraiacuteza dali

vecircm as lsquoprimitividades imaginaacuteriasrsquo e as lembranccedilas que tornaratildeo o sujeito em quem ele eacute pela

consciecircncia de si que a memoacuteria propicia

Minha mulher eacute paciente entende como funciono Ela pega meu prato e vai me

servindo um pouco disto um pouco daquilo mas antes de tudo o arroz- indispensaacutevel-

e o feijatildeo por cima Eu sei que natildeo eacute o certo Mas eacute assim que eu gosto o feijatildeo por

cima nunca do lado Se puser o feijatildeo primeiro e depois o montinho do arroz tambeacutem

implico O arroz tem que vir sempre na frente depois o feijatildeo molhando aiacute sim eacute

perfeito Sempre ensinei bons modos aos meus filhos mas nunca os proibi de misturar a

comida toda no prato de uma vez Se eu misturo como proibir Ai se fizeacutessemos isso na

frente de Isabel Bom nem pensar Em dias de ensopadinho de vagem com carninha

moiacuteda ou de chuchu com camaratildeo era verdadeiro supliacutecio Nuno e eu sofriacuteamos

horrores Queriacuteamos porque queriacuteamos misturar tudo de uma vez com o arroz Natildeo

podiacuteamos Era proibido por lei Isabel natildeo transigia Tiacutenhamos que ir misturando aos

pouquinhos puxando com o garfo e aiacute levar agrave boca Depois voltar misturar mais um

pouquinho puxando com o garfo e tornar a levar agrave boca Um sacrifiacutecio Depois de

nossos filhos adultos a lei do proibido misturar foi abolida E cada um liberado para

comer do seu jeitinho informal

Jaacute servido espeto o paio deliacutecia e retomo a conversa (AZEVEDO 2008 p314)

Chega a hora de Antonio apoacutes revisitar histoacuterias vividas e contadas pela memoacuteria Na

cozinha representaccedilatildeo de sua casa natal ele falece ldquoSempre acompanhamos com olhos de

saudade o balatildeo que sobe ceacuteu afora e se mistura no azul Acontece com todos Depois satildeo soacute

histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras Famiacutelia eacute prato que quando se acaba nunca

mais se repeterdquo (AZEVEDO 2008 p361)

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Histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras elementos que aludem agraves lembranccedilas

Mais uma vez a cozinha eacute representada ao falar-se em memoacuteria atraveacutes das lsquoreceitas caseirasrsquo

Essas satildeo registros de quem habitou os campos de forno-e-fogatildeo e deixou por escrito o como-

se-faz O seu

57

2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE

A sacola de crochecirc da voacute era perturbadora da ordem ali de dentro ela tirava varenikes

beigales mondales knishes strudels um perfume que ia nos buscar no mais remoto

quarto da casa pratos fundos de louccedila branca e pesada transbordantes de fartura Noacutes

nos reuniacuteamos em torno da mesa em torno da voacute em torno dos pratos - em torno da

comida que ela tratava como uma cerimocircnia de milagre E ela abria os braccedilos para nos

acarinhar a todos e nos beijava com os laacutebios finos o haacutelito de menta e pronunciava

palavras boas palavras de quem traz alviacutessaras feliz como quem pode dar o seio a um

bebecirc minhas crianccedilas a voacute trouxe comida pra vocecircs (MOSCOVICH 2006 p93-94)

Prazer eacute sentimento do corpo Bem-estar e gozo que se quer repetir Puro deleite acorda

os sentidos Onda repentina epifania de cores aromas gostos texturas sons Nasce sem aviso

deixa marcas faz pulsar em ritmo de quero-mais Nasce do encontro amoroso do saborear de um

prato e de tantas outras vivecircncias Estaacute na taccedila do vinho escuro e aveludado na mordida do mil-

folhas ao mesmo tempo crocante e macio O prazer desperta como se fosse dia novo entusiasma

provoca ecoa em cada parte nossa Comida eacute coisa prazerosa toca a vida sensorial alegra ceacutelulas

e anima A cozinha espaccedilo fiacutesico e territoacuterio afetivo evoca gostos desejos lembranccedilas prazer

O preparo das receitas o deleite dos pratos a partilha da mesa as conversas amenas durante a

refeiccedilatildeo todos inerentes ao universo culinaacuterio E depois vem a culpa a roupa que aperta o

regime por ordens meacutedicas Culpa e prazer inimigos entrelaccedilados

21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE

Por que sou gorda mamatildee eacute o romance escrito por Ciacutentia Moscovich em 2006 e

publicado pela Editora Record com uma narradora em primeira pessoa de quem o leitor natildeo

sabe o nome ao longo da obra Ela passa a limpo as histoacuterias de famiacutelia de origem judaica e a

sua proacutepria histoacuteria em uma carta para sua matildee Dessa o leitor tambeacutem natildeo sabe o nome da

primeira agrave uacuteltima paacutegina

O conflito central apresenta a dificuldade da narradora-personagem com seu aumento de

peso vinte e dois quilos em quatro anos e o sofrimento em face da necessidade de fazer dieta

Natildeo se trata apenas das privaccedilotildees de ter de fazer dieta Trata-se da dor emocional por precisar

fazer dieta de novo A repeticcedilatildeo de situaccedilotildees em que o engorde esteve presente em sua vida

ligado ao papel do comer em sua famiacutelia faz com que acuse sua matildee muitas vezes pela situaccedilatildeo

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a que chegou Por essa oferecer comida demais Natildeo Por oferecer afeto de menos Ao contraacuterio

da matildee a Voacute Magra sua avoacute materna eacute muito carinhosa com ela e seus irmatildeos e aleacutem disso

sempre aparece com a sacola de crocheacute plena de doces da cozinha judaica O papel da avoacute parece

ser o de suprir as faltas da matildee e as supre em excesso no que tange ao reforccedilo da gula

A narrativa pode ser a expressatildeo de uma catarse atraveacutes da escrita uma decisatildeo

confessional da narradora ou sua atitude ora acusatoacuteria ora carente na direccedilatildeo de sua matildee Em

uma mistura de cada uma dessas formas o livro traz o entrelaccedilamento das memoacuterias das

emoccedilotildees e das etapas objetivas em sua jornada de emagrecimento como narra a protagonista no

proacutelogo ao expor para sua matildee que a escrita seraacute dirigida a ela

Tenho medo mas estou prestes a pocircr um ponto final e a aticcedilar a pluma das lembranccedilas

Luta contra o gelo do tempo O proacutelogo em seus estertores depois comeccedila

Mamatildee me endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar

esse territoacuterio metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora

Quero voltar a ter um corpo

Haacute um livro a ser escrito e nele os fatos seratildeo fruto da prestidigitaccedilatildeo ainda que

imperfeita Respostas possiacuteveis ilusatildeo para secar as maacutegoas e o corpo O proacutelogo

termina Depois jaacute iniciou Comeccedilo num ponto de intrerrogaccedilatildeo

Por que sou gorda mamatildee (MOSCOVICH 2006 p19)

A narrativa eacute contada em vinte e cinco capiacutetulos duzentas e cinquenta e uma paacuteginas

vinte e dois quilos O primeiro capiacutetulo apresenta em primeira pessoa um entrelaccedilamento

essencial ao conflito da personagem a histoacuteria da origem de sua famiacutelia na Europa passando

fome em vilarejos judeus a histoacuteria de sua Voacute Magra com o prazer da comida e sua proacutepria

histoacuteria de infacircncia com os irmatildeos na hora das refeiccedilotildees

Segue-se ainda nesse capiacutetulo um desabafo com uma lista de aspectos pejorativos do

sujeito gordo Satildeo frases que costumamos ouvir com grande frequecircncia sobre os indiviacuteduos com

excesso de peso e que eles mesmos muitas vezes referem em tom entre o mea culpa e a auto

ironia Esse eacute o tom usado pela narradora falando em sua voz o que atribui ao olhar alheio

Depois de apontar os defeitos dos gordos conta do comeccedilo de seu sacrifiacutecio com as restriccedilotildees

alimentares

Em seguida o escaacuternio daacute lugar agrave lembranccedila da morte de seu pai as consequecircncias que

tal perda teve na famiacutelia e sobretudo na relaccedilatildeo de sua matildee com os filhos Eacute o comeccedilo da voz

acusatoacuteria da narradora trazendo agrave tona fatos e sofrimentos na relaccedilatildeo familiar Aparece a

ausecircncia da matildee no cumprir de sua funccedilatildeo afetiva Seguem-se capiacutetulos de apresentaccedilatildeo da Voacute

Gorda do lado paterno da Voacute Magra e de sua histoacuteria frustrada de amor por um violinista russo

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do avocirc do pai dos irmatildeos de si mesma em vaacuterios tempos da vida e da balanccedila Presente e

passado alternam-se disputando espaccedilo nas paacuteginas porque para a personagem em sua carta agrave

matildee o passado eacute parte do peso em quilos de seu presente

Enquanto passa a limpo sua histoacuteria e suas maacutegoas a narradora vai contando vitoacuterias e

deslizes na dieta dores pela restriccedilatildeo alimentar e alegrias por conseguir emagrecer lentamente A

histoacuteria familiar evolui o momento em que o excesso de peso na infacircncia tornou-se foco de

preocupaccedilatildeo e de imposiccedilatildeo da dieta por parte do pai aparece como fato de destaque A

narradora em zigue-zague transita entre os periacuteodos de vida para encontrar respostas ora em

conversas dirigidas agrave matildee ora em diaacutelogos com seu proacuteprio mundo interno A escrita para a matildee

eacute em essecircncia um passar a limpo para si mesma a proacutepria histoacuteria de seu corpo Gula prazer

afeto e ausecircncia dores e perdas inclusive de maacutegoas e de peso eis o transcorrer da histoacuteria

narrada Esses elementos satildeo o fio condutor da narrativa das primeiras paacuteginas ateacute a evoluccedilatildeo ao

epiacutelogo Parte desse reproduzo abaixo

Mamatildee natildeo preciso perdoaacute-la por nada Natildeo me incomodo mais pela porccedilatildeo presente de

sua lavra e todo o esforccedilo de natildeo mais me incomodar foi por amor que eacute minha cura

Mais cinco quilos a bordo de uma bicicleta cor-de-rosa seratildeo perdidos Recuso-me a

remexer ainda mais no passado Natildeo se angustie mamatildee Noacutes duas sabemos que natildeo

vale a pena-falta que a senhora serenize seus dias e deixe tambeacutem de remexer o passado

Depois que eu colocar o ponto final por favor mamatildee natildeo deixe de recompor sua

alegria seu desejo e sua piedade A senhora perdoaraacute a vida E eu terei esquecido que

cheguei ateacute aqui apesar da senhora

[hellip] (MOSCOVICH 2006 p250)

Destaca-se sobretudo a verossimilhanccedila interna da obra Entre o proacutelogo e o epiacutelogo haacute

muitas histoacuterias contadas em uma soacute compondo uma linha de tempo na cronologia do calendaacuterio

e outra dentro da personagem Afinal de contas o tempo interno tem um ritmo proacuteprio que

obedece acima de tudo agraves leis da memoacuteria

A narradora-personagem consegue compreender suas interrogaccedilotildees ao entremear passado

e presente histoacuteria familiar e individual A narrativa multifacetada natildeo sai dos trilhos e eacute possiacutevel

acompanhar o diaacutelogo da personagem consigo mesma atraveacutes da carta para sua matildee A

descoberta dos elementos alusivos agrave presenccedila e agrave falta de prazer alimentar que permeiam a obra

conduzem ao primeiro aspecto do presente capiacutetulo o que eacute o prazer afinal

60

22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL

Para o psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers o prazer no campo da Fenomenologia

Psiquiaacutetrica pode ser compreendido como a realizaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees

orgacircnicas Para o referido autor o prazer consiste no equiliacutebrio psiacutequico na satisfaccedilatildeo e no bem-

estar Jaacute conforme os autores do artigo Psicopatologia do Prazer Lorenzo Pelizza e Franco

Benazzi o prazer pode ser considerado um fenocircmeno psiacutequico de muacuteltiplas facetas Em termos

geneacutericos esse eacute um forte sentimento que corresponde agrave percepccedilatildeo de uma condiccedilatildeo positiva

fiacutesica ou mental proveniente do organismo

As pesquisas que abordam o prazer satildeo recentes Apenas haacute algumas deacutecadas a ciecircncia

passou a contribuir para evidenciar os efeitos beneacuteficos desse fenocircmeno tanto no sentido proacute-

ativo (como fator que favorece o bem-estar psico-fiacutesico do indiviacuteduo e que promove o processo

de cura da doenccedila) quanto no protetor (como elemento fundamental que fornece ao sujeito os

recursos necessaacuterios para afrontar e superar as experiecircncias negativas e para prevenir o risco de

adoecer) (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

Do ponto de vista do estudo do prazer como elemento saudaacutevel destacamos seu papel

como fator de importante valor motivacional sob o enfoque das teorias evolucionistas

Reduzindo ao maacuteximo a explicaccedilatildeo seria possiacutevel entender seu papel da seguinte forma como

espeacutecie sentimos prazer na alimentaccedilatildeo e na relaccedilatildeo sexual para que mediante esta sensaccedilatildeo

tenhamos estiacutemulo para nutrirmo-nos e procriarmos A gratificaccedilatildeo do ceacuterebro que ocorre

atraveacutes da experiecircncia prazerosa motiva o indiviacuteduo a repetir os comportamentos que a tornam

viaacutevel como o comer Forma-se assim um ciclo no qual a comida promove prazer e este motiva

a procuraacute-la pela resposta cerebral gerando novamente o prazer e assim ocorre a manutenccedilatildeo do

comportamento com sucessivas repeticcedilotildees A propoacutesito desse ciclo os referidos autores

esclarecem

O mecanismo operante de reforccedilorecompensa age em sentido evolucionista para

conduzir os comportamentos adotados na direccedilatildeo de escopos adaptativos que sejam uacuteteis

para garantir a sobrevivecircncia do indiviacuteduo (por exemplo busca de comida ou de aacutegua)

eou a conservaccedilatildeo da espeacutecie (condutas reprodutivas) Para que atinja a eficaacutecia o

estiacutemulo de reforccedilo deve ser capaz de ativar as instacircncias psiacutequicas do prazer e o sistema

neurobioloacutegico de gratificaccedilatildeo cerebral (circuitos dopaminergicos mesoliacutembicos) sendo

deste modo vivido como experiecircncia prazerosa satisfatoacuteria e assumindo assim um

importante valor motivacional (PELIZZA BENAZZI 2008 p298-299)

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Tal explicaccedilatildeo evolucionista eacute relevante para a compreensatildeo do prazer alimentar Como

espeacutecie devemos sentir prazer ao comer com o propoacutesito de termos estiacutemulo para mantermos a

constacircncia de uma alimentaccedilatildeo regular O prazer eacute o elemento que torna possiacutevel esta constacircncia

O socioacutelogo e escritor brasileiro Carlos Alberto Doacuteria acrescenta um dado relevante nesse

sentido ao mencionar o autor de A fisiologia do gosto Jean Anthelme Brillat-Savarin que

publicou a obra em 1825 relevante na literatura gastronocircmica Nessa ao referir-se aos cinco

sentidos Brillat-Savarin acrescenta o sentido geneacutesico sobre o qual Doacuteria reflete em seu livro A

culinaacuteria materialista

Este uacuteltimo eacute o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro

sendo a sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecie Este sentido diz ele foi ignorado ateacute o

seacuteculo XVIII sendo anexado ao (ou confundido com o) tato Ora a reproduccedilatildeo da

espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo

a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo ao sexo e ao comer eacute o prazer a

busca do agradaacutevel e este eacute o sentido muito especial que ele pretende indicar como

responsaacutevel pela gastronomia (DOacuteRIA 2009 p190 grifo do autor)

Assim a relaccedilatildeo de prazer do indiviacuteduo com a comida eacute tambeacutem de acordo com Brillat-

Savarin uma estrateacutegia de sobrevivecircncia da espeacutecie assim como o sexo A sensaccedilatildeo prazerosa

ligada ao alimento refere-se principalmente agrave percepccedilatildeo deste como tendo gosto agradaacutevel ou

seja ldquo[] aquilo que apraz aos sentidos mobilizados pela alimentaccedilatildeordquo (DORIA 2009 p192)

O estudo da obra de Carlos Alberto Doacuteria abre um campo de reflexatildeo relevante no que

tange ao fenocircmeno do prazer pois o autor o aborda pela perspectiva gastronocircmica referindo o

que torna um alimento prazeroso Ele menciona que de acordo com os modernos teoacutericos do

gosto ldquo[] o agradaacutevel que comemos depende do impacto favoraacutevel sobre todos os cinco

sentidosrdquo (DOacuteRIA 2009 p194)

Para explicar como um alimento se torna agradaacutevel ele comeccedila por definir o mundo

objetivo lsquoo mundo das coisas e das nossas aptidotildees fisioloacutegicas para percebecirc-lorsquo e o mundo

subjetivo lsquodos nossos valores crenccedilas e preferecircncias individuaisrsquo Entatildeo acrescenta o ponto

chave de sua reflexatildeo ldquoTomemos como hipoacutetese que o gosto se forma na relaccedilatildeo entre esses dois

mundos O gosto assim entendido eacute relacional e se refere ao que se passa em torno do ato

fisioloacutegico de comerrdquo (DOacuteRIA 2009 p194) A fim de aprofundar a ideia desta relaccedilatildeo expotildee

Ao explorar a noccedilatildeo de gosto partindo de sua dimensatildeo material isto eacute da relaccedilatildeo que

se estabelece entre o mundo e o homem por intermeacutedio do complexo aparato sensitivo

temos que entender tambeacutem que o gosto varia de indiviacuteduo para indiviacuteduo entre as

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diferentes idades de um mesmo indiviacuteduo entre as classes sociais de cultura para

cultura e de uma eacutepoca para outra na mesma cultura Sabemos tambeacutem que permanece

um misteacuterio como nasce o desejo intenso de se comer determinado alimento ou como a

monotonia de uma dieta se instaura de modo a repudiarmos o alimento apoacutes um certo

tempo Nada disso se explica por razotildees puramente fisioloacutegicas (DOacuteRIA 2009 p195)

Assim na relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o alimento agradaacutevel ao lsquocomplexo aparato

sensitivorsquo como define Doacuteria existem variaacuteveis como idade e cultura que interferem no modo

como a sensaccedilatildeo prazerosa eacute percebida Quanto ao aspecto cultural por exemplo o autor refere

O gosto partilhado por vaacuterias pessoas ndash sejam membros de uma famiacutelia de uma

comunidade de uma eacutepoca- sugere uma construccedilatildeo coletiva que natildeo se confunde com a

experiecircncia gustativa de cada um O caraacuteter afetivo da cozinha familiar eacute um modelo de

socializaccedilatildeo do gosto que todos conhecemos Ningueacutem faz determinado prato igual a

nossa matildee ou avoacute [] (DOacuteRIA 2009 p195)

Em diversas famiacutelias de uma dada geraccedilatildeo o lsquobife agrave milanesa da voacutersquo eacute emblemaacutetico em

representar a explicaccedilatildeo do autor Ao que parece o prazer reside no preparo pela avoacute mais do

que no prato em si A avoacute de cada famiacutelia seria a responsaacutevel pelo melhor bife agrave milanesa do

mundo de acordo com os respectivos netos Essa percepccedilatildeo reflete o que Doacuteria menciona como

lsquoo caraacuteter afetivo da cozinha familiarrsquo termo que coincide com o papel da Voacute Magra

personagem da obra em estudo neste capiacutetulo Outra consideraccedilatildeo relevante do autor acerca da

construccedilatildeo do universo do gosto eacute a de que este ldquo[] eacute expressatildeo da educaccedilatildeo do paladar e dos

demais sentidos conformados culturalmente para a apreciaccedilatildeo do que comemosrdquo (DOacuteRIA 2009

p196)

Deste modo eacute possiacutevel compreender que aprendemos a gostar do que eacute aceitaacutevel em

determinado contexto social e cultural entretanto temos em primeiro lugar a percepccedilatildeo

bioloacutegica atraveacutes dos cinco sentidos do que devemos levar agrave boca e daquilo que eacute necessaacuterio

evitar em termos de manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Pela aparecircncia e pelo olfato por exemplo um

alimento pode parecer prazeroso e entatildeo adequado ou repulsivo se apresentar sinais de bolor ou

de alteraccedilatildeo de suas caracteriacutesticas conhecidas A respeito dessa avaliaccedilatildeo sobre o que eacute

agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos com fins de alimentaccedilatildeo Doacuteria refere

O gosto caminha em meio a essas preferecircncias e rejeiccedilotildees ajudando a erigir barreiras

que demarcam os limites de determinada cultura ou mesmo as variaccedilotildees individuais

nessa mesma cultura Alimentos tabus natildeo devem ser tocados ou consumidos Por isso

seu sabor eacute tambeacutem repulsivo Assim as sociedades constroem um anteparo que protege

a cultura daquilo que ela considera lsquonatureza hostil (DOacuteRIA 2009 p196)

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Se de um lado o prazer eacute o elemento bioloacutegico que impulsiona o indiviacuteduo para a

preservaccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do alimento (e da espeacutecie atraveacutes da coacutepula) de outro as

escolhas que condicionam a sensaccedilatildeo prazerosa no campo alimentar ultrapassam a dimensatildeo

corpoacuterea atingindo em boa parte das vezes a esfera cultural atraveacutes da construccedilatildeo coletiva do

gosto O autor apresenta neste aspecto a seguinte reflexatildeo

Podemos imaginar o homem como uma maacutequina bioloacutegica que se relaciona

integralmente com o mundo de tal forma que todos os estiacutemulos que ele internaliza

afetam a totalidade dessa maacutequina O nosso conhecimento estaacute no tato na audiccedilatildeo na

visatildeo no olfato no paladar e tudo isso eacute processado natildeo apenas diretamente como

experiecircncia pessoal mas no acoplamento que mantemos com seres da mesma espeacutecie

(DOacuteRIA 2009 p197)

De acordo com essa exposiccedilatildeo podemos gostar daquele alimento que eacute aceitaacutevel em

nossa cultura e em nosso meio para assim continuarmos pertencendo ao grupo de que somos

parte contemplando a noccedilatildeo que o autor estabelece como o lsquoacoplamento que mantemos com

seres da mesma espeacuteciersquo Ao sentir prazer nos sentimos impelidos a comer algo porque nos

desperta a sensaccedilatildeo agradaacutevel essa experiecircncia eacute em primeiro plano instintiva quando o ldquo[]

elo entre prazerdesprazer se estabelece como base do fenocircmeno da aprendizagem e da aversatildeo a

um sabor a partir do risco que sinaliza para o organismordquo (DOacuteRIA 2009 p205)

Em segundo plano gostamos do que aprendemos que podemos gostar de acordo com a

cultura em que estamos inseridos Nesse contexto cabe ressaltar o fenocircmeno da

neuroplasticidade atraveacutes do qual o ceacuterebro se molda a partir das experiecircncias a que eacute exposto

de acordo com tal ocorrecircncia os mecanismos cerebrais aprendem a responder a determinado

estiacutemulo e criam um espaccedilo de resposta ao mesmo quanto mais vezes exposto a ele Isso pode

acontecer no aprendizado de uma competecircncia como tocar um instrumento musical falar um

idioma ou ateacute mesmo naquele de um novo paladar Aprendemos a gostar de um alimento o que

faz com que a sensaccedilatildeo agradaacutevel obtida ao comermos nos faccedila querer repetir seu consumo

Surge entatildeo a perspectiva do prazer em seu percurso do ponto de partida sauacutede para o

ponto de chegada doenccedila De acordo com Benazzi e Pelizza os mecanismos neurobioloacutegicos

responsaacuteveis pela gratificaccedilatildeo cerebral alimentam-se do prazer e quanto mais recebem mais

demandam que o organismo lhes forneccedila mais e mais sensaccedilotildees prazerosas Essa condiccedilatildeo

manifesta-se apenas em alguns indiviacuteduos cuja carga geneacutetica e aprendizagem cultural

favoreccedilam os comportamentos ditos compulsivos por exemplo Nas pessoas propensas a tal

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expressatildeo isso ocorre sucessivamente motivo pelo qual o prazer alimentar pode ser natildeo mais um

aliado da sauacutede e da sobrevivecircncia mas sim um algoz a partir de determinado momento Esse

ponto eacute quando o comer se torna excessivo fornecendo de modo incessante e crescente a

gratificaccedilatildeo prazerosa aos mecanismos cerebrais de recompensa

Desfaz-se assim a noccedilatildeo de prazer apresentada por Jaspers anteriormente referida

Quando haacute aumento das sensaccedilotildees prazerosas para saciar a demanda dos centros cerebrais de

gratificaccedilatildeo e natildeo mais para que o prazer esteja calcado lsquono equiliacutebrio psiacutequico e no bem-estarrsquo

pode-se compreender que esse deixou de cumprir sua funccedilatildeo na sauacutede

Quando uma cultura em amplo espectro como a norte-americana aprende a sentir prazer

com a ingesta do fast-food e isso se transmite a outras culturas e ainda mais grave agraves geraccedilotildees

seguintes os problemas de sauacutede atingem dimensotildees catastroacuteficas Esse resultado jaacute eacute possiacutevel

constatar em nosso seacuteculo XXI Compreende-se assim que natildeo apenas o indiviacuteduo pode

adoecer mas a cultura tambeacutem pode adoecer Fortunadamente pensadores do campo da

alimentaccedilatildeo como Michael Pollan tecircm combatido de modo ferrenho essa tendecircncia como o faz

em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo salienta-se tambeacutem o italiano

Carlo Petrini que jaacute na deacutecada de 80 fundou a filosofia do slow food em oposiccedilatildeo ao haacutebito

determinado pelas cadeias de fast-food ao redor do mundo

Cada vez mais o slow food tem ganho espaccedilo na compreensatildeo contemporacircnea sobre o

comer com prazer com sauacutede e com lentidatildeo respeitando o tempo das refeiccedilotildees como um tempo

de interaccedilatildeo familiar e de consciecircncia do alimento que se ingere Referimos nesse sentido o

proacuteprio Pollan responsaacutevel pela defesa de que as famiacutelias voltem a comer em casa como

oportunidade de alimentaccedilatildeo saudaacutevel e de interaccedilatildeo entre os membros do grupo familiar

Entretanto as mudanccedilas causadas pela conscientizaccedilatildeo estatildeo apenas nos primeiros passos os

comportamentos alimentares insalubres ainda representam a maioria ao menos no ocidente As

patologias do prazer ocupam importante espaccedilo no campo das doenccedilas contemporacircneas em

termos psiacutequicos e em suas decorrecircncias fiacutesicas

Tanto a reduccedilatildeo quanto o aumento significativo de experiecircncias prazerosas podem levar agrave

ocorrecircncia de patologias nos acircmbitos fiacutesico e psiacutequico No artigo em estudo Psicopatologia do

prazer lecirc-se ldquoO ser humano frente agrave possibilidade de permitir-se prazeres em alguns casos

pode sentir-se impedido pela preocupaccedilatildeo pela desvalia e pela culpa relativa a eventuais

consequecircncias potencialmente danosas de suas accedilotildeesrdquo (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

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Esses mesmos autores referem a existecircncia de uma porcentagem significativa de

indiviacuteduos capazes de experimentar sentimentos de baixa autoestima ou de culpa (leve e

transitoacuteria ou ao contraacuterio intensa e mantida) em relaccedilatildeo aos interesses e atividades que lhes

provocam prazer Tais emoccedilotildees desagradaacuteveis viriam em forma e em intensidade e representam

um relevante contraponto agrave sensaccedilatildeo prazerosa podendo inclusive inibir as experiecircncias futuras

de prazer A ausecircncia desse gera mais desvalia e culpa estresse crocircnico e sentimentos de

incapacidade impedindo com que novas vivecircncias potencialmente prazerosas aconteccedilam e assim

ocorre um ciclo com repercussotildees na sauacutede tanto em termos fiacutesicos quanto mentais Os autores

do artigo referem

[] de uma espeacutecie de estressor interno que tais indiviacuteduos transfeririam de uma

situaccedilatildeo a outra dessas circunstacircncias decorreriam entatildeo efeitos negativos sobre sua

sauacutede fiacutesica suas capacidades cognitivas (ex concentraccedilatildeo atenccedilatildeo memoacuteria) e em seu

funcionamento nos campos social e laboral cotidiano Seria possiacutevel referir que o

excesso de culpa ou desvalia determinaria uma condiccedilatildeo de estresse crocircnico capaz de

aumentar significativamente a secreccedilatildeo dos hormocircnios ligados ao estresse com

consequumlecircncias danosas agrave sauacutede fiacutesica e agrave mental (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

Ressaltamos que o contraacuterio tambeacutem ocorre Cabe refletir sobre o desejo exasperado e

absoluto de prazer levada a extremos como nas condiccedilotildees de transtornos alimentares (entre

esses a compulsatildeo alimentar) De acordo com tais autores quando ocorrer uma busca excessiva

de sensaccedilotildees prazerosas mesmo se houver a gratificaccedilatildeo desses prazeres haveraacute riscos para a

sauacutede do indiviacuteduo Nesse caso o prazer em excesso passaraacute a ser o responsaacutevel pelos

sentimentos de culpa desvalia depressatildeo ansiedade e descontrole de impulsos (PELIZZA

BENAZZI 2008)

O prazer em excesso no campo alimentar conduz muitas vezes ao aumento de peso

com prejuiacutezos agrave sauacutede Essas circunstacircncias podem acarretar uma forma de dor emocional

diretamente ligada ao prazer de comer como nos casos de indiviacuteduos que fazem dieta alimentar

por orientaccedilatildeo meacutedica Nesses a restriccedilatildeo imposta representa um importante sofrimento quando

se encontram em sobrepeso ou em condiccedilatildeo de obesidade moacuterbida A exigecircncia de restringir o

que lhes daacute prazer pode ser um motivo de transgressotildees da dieta O resultado eacute o natildeo

emagrecimento ou o engorde ainda maior A seguir vecircm a culpa a desvalia a tristeza e o

desacircnimo todos os antagonistas da sensaccedilatildeo prazerosa Para compensar as emoccedilotildees os

indiviacuteduos socorrem-se com a comida mantendo o ciacuterculo vicioso O equiliacutebrio preconizado por

Jaspers em sua perspectiva sobre o prazer natildeo eacute encontrado

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Em Por que sou gorda mamatildee o conflito da personagem com o impedimento ao prazer

alimentar estaacute presente em diversos trechos A narradora faz uma dolorosa e agraves vezes bem-

humorada recapitulaccedilatildeo de suas vivecircncias de prazer com a comida e de suas experiecircncias de

dieta de emagrecimento Satildeo narradas tambeacutem suas emoccedilotildees de desvalia e baixa autoestima por

vestir o adjetivo de gorda entretanto muito de sua insatisfaccedilatildeo estaacute no impedimento para comer

o que gosta o que lhe daacute prazer

Haacute uma visatildeo especiacutefica sobre o que eacute o prazer nos indiviacuteduos que apresentam

comportamentos anormais na procura por esta experiecircncia eles referem em diversas ocasiotildees a

percepccedilatildeo que tecircm sobre a comida na qualidade de fonte de prazer para algumas pessoas comer

eacute a uacutenica fonte de prazer possiacutevel Eacute comum referirem nas consultas meacutedicas lsquoou usufruo do

maacuteximo prazer ou natildeo sentirei nenhumrsquo ou lsquose natildeo puder comer todo o pote de sorvete natildeo

como mais nada Ou isto ou nada Me nego a fazer dietarsquo haacute ainda quem refira lsquonatildeo acredito

em dia livre dieta natildeo tem dia livre Isso eacute enganaccedilatildeo porque ningueacutem consegue voltar a comer

direito no outro diarsquo Essas frases demonstram padrotildees culturais de interpretaccedilatildeo do papel da

comida muitas vezes substitutivo de outras necessidades emocionais

Existindo maior resposta positiva aos prazeres aos quais o indiviacuteduo se dirige em

especial nas situaccedilotildees de excesso ocorreraacute ainda maior demanda por parte desses mecanismos

Como resultado surgem sintomas psiquiaacutetricos isolados ou em comorbidade decorrentes do

desequiliacutebrio gerado pela demanda excessiva Haacute ainda as decorrecircncias fiacutesicas de tal

desequiliacutebrio como a obesidade e as doenccedilas a ela associadas o diabetes a hipertensatildeo arterial e

a hipercolesterolemia entre outras Mais cedo ou mais tarde o corpo cobra sua conta dos

excessos quando se perpetuam

23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA

A fisiologia do gosto obra essencial na literatura gastronocircmica citada anteriormente foi

escrita por Jean Anthelme Brillhat-Savarin advogado e juiz francecircs (1755-1826) apaixonado

pelos prazeres da mesa O livro eacute composto por trinta capiacutetulos que o autor intitula lsquoMeditaccedilotildeesrsquo

e um uacuteltimo composto de variedades A fatia destinada agrave reflexatildeo sobre o prazer eacute a meditaccedilatildeo

14 lsquoDo prazer da mesarsquo Sobre a procura pelo prazer em termos gerais Brillat-Savarin refere

67

O homem eacute incontestavelmente dos seres sensitivos que povoam nosso globo o que

experimenta mais sofrimentos A natureza o condenou primitivamente agrave dor pela nudez

de sua pele pela forma de seus peacutes pelo instinto de guerra e destruiccedilatildeo que acompanha

a espeacutecie humana onde quer que ela se encontre

Os animais natildeo foram atingidos por essa maldiccedilatildeo e sem alguns combates causados

pelo instinto de reproduccedilatildeo a dor no estado de natureza seria completamente

desconhecida da maior parte das espeacutecies ao passo que o homem que soacute encontra o

prazer passageiramente e por meio de um pequeno nuacutemero de oacutergatildeos estaacute sempre

exposto em todas as partes do corpo a terriacuteveis sofrimentos

Essa sentenccedila do destino foi agravada em sua execuccedilatildeo por uma seacuterie de doenccedilas

nascidas dos haacutebitos do estado social de modo que o prazer mais satisfatoacuterio que se

possa imaginar seja em intensidade seja em duraccedilatildeo eacute incapaz de compensar as dores

atrozes que acompanham certos distuacuterbios [hellip] Eacute o temor praacutetico da dor que faz o

homem sem se aperceber disso lanccedilar-se com iacutempeto na direccedilatildeo oposta entregando-se

ao pequeno nuacutemero de prazeres que herdou da natureza (BRILLAT-SAVARIN 1995

p167)

Brillat-Savarin aponta que o homem se atira ao prazer para fugir das dores inerentes agrave

espeacutecie Entretanto esse eacute apenas um dos elementos de compreensatildeo do prazer alimentar pois a

sensaccedilatildeo prazerosa decorre tambeacutem de outros fatores presentes em nossa fisiologia e psiquismo

a sociabilidade por exemplo eacute um desses componentes e estaacute envolvida no que o autor

estabelece como o prazer da mesa Ele refere no capiacutetulo lsquoO prazer da mesarsquo uma reflexatildeo

importante sobre a comensalidade a refeiccedilatildeo em conjunto ldquoFoi durante as refeiccedilotildees que devem

ter nascido ou se aperfeiccediloado nossas liacutenguas seja porque era uma ocasiatildeo de reuniatildeo que se

repetia seja porque o lazer que acompanha e segue a refeiccedilatildeo dispotildee naturalmente agrave confianccedila e agrave

loquacidaderdquo (BRILLAT-SAVARIN 1995 p168)

Brillat-Savarin faz uma diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer- relacionando-o agrave satisfaccedilatildeo

da fome atraveacutes do alimento como ocorre com os animais - e o prazer da mesa exclusivo agrave

espeacutecie humana De acordo com esse autor ldquo[] o prazer de comer exige se natildeo a fome ao

menos o apetite o prazer agrave mesa na maioria das vezes independe de ambosrdquo (BRILLAT-

SAVARIN 1995 p170) Esse uacuteltimo representa assim a sociabilidade o conviacutevio agradaacutevel

com aqueles com quem se divide uma refeiccedilatildeo Ainda sobre o prazer da mesa Brillat-Savarin

explicita

[hellip] natildeo comporta arrebatamentos nem ecircxtases nem transportes mas ganha em duraccedilatildeo

o que perde em intensidade e se distingue sobretudo pelo privileacutegio particular de nos

incliner a todos os outros prazeres ou pelo menos de nos consolar por sua perda Com

efeito apoacutes uma boa refeiccedilatildeo o corpo e a alma gozam de um bem-estar especial

Fisicamente ao mesmo tempo em que o ceacuterebro se revigora a face se anima e se colore

os olhos brilham um suave calor se espalha em todos os membros Moralmente o

espiacuterito se aguccedila a imaginaccedilatildeo se aquece os ditos espirituosos nascem e circulam [hellip]

Aliaacutes com frequumlecircncia temos em volta da mesa todas as modificaccedilotildees que a extrema

sociabilidade introduziu entre noacutes o amor a amizade os negoacutecios as especulaccedilotildees o

68

poder as solicitaccedilotildees o protetorado a ambiccedilatildeo a intriga eis por que a convivialidade

tem a ver com tudo eis por que produz frutos de todos os sabores (BRILLAT-

SAVARIN 1995 p170-171)

O trecho acima transcrito expressa que os propoacutesitos para que o prazer da mesa fosse

atingido natildeo eram apenas a amizade e a intenccedilatildeo de conviacutevio entre as pessoas Eacute possiacutevel

verificar que havia tambeacutem entre os objetivos para a partilha das refeiccedilotildees o poder a ambiccedilatildeo e

outros aspectos distantes das alianccedilas de afeto A circunstacircncia do prazer da mesa criava uma

aproximaccedilatildeo maior entre os participantes de disputas poliacuteticas e administrativas favorecendo os

acordos pela ilusoacuteria sensaccedilatildeo de zelo e de alianccedila Nesse periacuteodo o prazer ainda natildeo era

percebido como finalidade e sim como instrumento para a aquisiccedilatildeo de benefiacutecios Segundo

Brillat-Savarin haacute quatro condiccedilotildees para que exista o prazer em uma refeiccedilatildeo

Chegamos portanto a tal progressatildeo alimentar que se os afazeres natildeo nos forccedilassem a

deixar a mesa ou se a necessidade do sono natildeo se interpusesse a duraccedilatildeo das refeiccedilotildees

seria praticamente indefinida e natildeo teriacuteamos nenhum dado certo para determinar o

tempo transcorrido desde o primeiro gole de madeira ateacute o ultimo copo de ponche [hellip]

Desfruta-se o prazer em quase toda sua extensatildeo toda vez que se reuacutenem as quatro

seguintes condiccedilotildees comida ao menos passaacutevel bom vinho comensais agradaacuteveis

tempo suficiente (BRILLAT-SAVARIN 1995 p172-173)

No livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo haacute explicaccedilotildees que muito se assemelham ao exposto

por Brillat-Savarin No capiacutetulo lsquoComer compromete refeiccedilotildees banquetes e festasrsquo o autor Gerd

Althoff expotildee elementos relevantes sobre o papel da refeiccedilatildeo na vida coletiva e social na Idade

Meacutedia

Durante a maior parte da Idade Meacutedia a refeiccedilatildeo e o banquete (convivium) constituiam

o mais eloquumlente siacutembolo de que se dispunha para para expresser o compromisso de

manter relaccedilotildees baseadas na paz e na concoacuterdia A palavra-chave nesse caso eacute

ldquocompromissordquo porque comer e beber junto era uma forma de obrigar-se a satisfazer as

condiccedilotildees que esse tipo de laccedilo implica [] (ALTHOFF 2015 p300)

Acordos e alianccedilas eram entatildeo estabelecidos em banquetes de longa duraccedilatildeo chamados

convivium A relaccedilatildeo de cumplicidade e de compromisso entre os indiviacuteduos estabelecida pela

existecircncia destes eventos natildeo foi por certo o iniacutecio do papel da refeiccedilatildeo partilhada como

elemento agregador entre as pessoas Haacute muitos periacuteodos da histoacuteria como exposto pelos vaacuterios

pesquisadores no livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo em que o comer junto assumiu papel essencial

na comunhatildeo dos membros de uma coletividade sendo a alegria e o prazer algumas das emoccedilotildees

presentes em vaacuterios desses periacuteodos

69

Quando Brillat-Savarin refere quatro condiccedilotildees para desfrutar-se o prazer em uma

refeiccedilatildeo uma dessas eacute que haja lsquocomensais agradaacuteveisrsquo Tal fato nos remete aos elementos da

alianccedila e da paz no conviacutevio entre aqueles que comiam juntos nos banquetes da Idade Meacutedia

mas remete principalmente ao elemento do prazer que aparece atraveacutes do termo lsquoagradaacuteveisrsquo O

prazer eacute um ingrediente necessaacuterio no estabelecimento dessa alianccedila pois propicia que os

indiviacuteduos se comprometam uns com os outros pelo bem-estar que o viacutenculo permite Tal

resultado propicia a constacircncia dessa ligaccedilatildeo importante tambeacutem do ponto de vista poliacutetico na

eacutepoca O bem-estar da refeiccedilatildeo partilhada era entatildeo um meio natildeo um fim era o recurso para a

manutenccedilatildeo da perenidade nas relaccedilotildees garantindo ldquo[] a disposiccedilatildeo de todos os participantes de

cumprirem os deveres dela decorrentesrdquo (ALTHOFF 2015 p309)

Ainda no que tange agrave ocasiatildeo do convivium ressalta-se a forma como as atividades

prazerosas eram proporcionadas com o propoacutesito de reforccedilar a ligaccedilatildeo entre os participantes

Era quase impensaacutevel passar vaacuterios dias natildeo fazendo outra coisa senatildeo comer beber e

trocar presentes mesmo que se atribua aos participantes um apetite e uma inclinaccedilatildeo

para a bebida for a do comum Isso explica que nossas fontes mencionem agraves vezes vaacuterias

atividades paralelas que se poderiam agrupar sob a denominaccedilatildeo de lsquodivertimentos

mundanosrsquo entre os quais os espetaacuteculos dados durante os convivial em que danccedilarinos

(ou danccedilarinas) muacutesicos ambulantes menestreacuteis e poetas distraiam os convivas A

sucessatildeo de pratos e bebidas interrompia-se tambeacutem para permitir aos participantes fazer

um pouco de exerciacutecio Tratava-se de jogos ou agraves vezes de animadas caccediladas

Certamente esses elementos do convivium tinham tambeacutem um valor simboacutelico Viver

algum tempo juntos em paz e partilhar certas atividades criava entre as pessoas o clima

de confianccedila necessaacuterio assegurava-se ao novo parceiro que se desejava a paz e que se

estava disposto a respeitaacute-la e firmava-se o compromisso de continuar a agir assim no

futuro (ALTHOFF 2015 p303)

Assim o prazer afirmava-se como elemento agregador de grande importacircncia na

permanecircncia de viacutenculos Entretanto a finalidade de tais viacutenculos natildeo se concentrava

propriamente no bem-estar em si entre os participantes mas nos benefiacutecios propiciados em

termos de propriedades poder administraccedilatildeo e outros fins de interesse material No convivium

o prazer era oferecido nas atividades de lsquodivertimento mundanorsquo Eacute possiacutevel compreender a

partir desse dado que o prazer da partilha no comer junto da Idade Meacutedia natildeo se aproximava do

prazer com o alimento ou a bebida per se mas com atividades paralelas de divertimento para

entreter os convivas durante os dias de banquete

O prazer entatildeo era ainda um elemento natildeo ligado ao comer pelo sabor da comida assim

como as alianccedilas eram vaacutelidas pelos benefiacutecios que alicerccedilavam natildeo por sua importacircncia para o

bem viver entre os membros de uma coletividade De acordo com Gerd Althoff as relaccedilotildees entre

70

os indiviacuteduos e os costumes como o comer e o beber junto eram de grande importacircncia para a

realidade medieval

Todas as culturas arcaicas recorriam a este meacutetodo para unir uma comunidade

Entretanto os efeitos da refeiccedilatildeo natildeo derivam dela proacutepria De fato na Idade Meacutedia a

refeiccedilatildeo o banquete e a festa serviam para exteriorizar atos administrativos rituais e

portanto convenccedilotildees que serviam para veicular um sentido bem determinado de modo

constrangedor e coercitivo (ALTHOFF 2015 p309)

No capiacutetulo de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo lsquoTempero cozinha e dieteacutetica nos seacuteculos XIV

XV e XVIrsquo haacute relevantes esclarecimentos sobre o papel do prazer no comer e sua importacircncia

para a sauacutede Um dos pontos referidos por seu autor quanto ao papel do uso dos temperos e do

cozinhar os alimentos estaacute relacionado tambeacutem ao prazer alimentar ldquoDe uma maneira geral

todo tempero e todo cozimento ou seja toda cozinha tinha uma dupla funccedilatildeo tornar os

alimentos ao mesmo tempo mais apetitosos saborosos e mais faacuteceis de digerirrdquo (FLANDRIN

2015 p482)

Deste modo falar no prazer de comer torna-se parte da perspectiva histoacuterica desse

periacuteodo quando as especiarias estatildeo no auge de seu reconhecimento Flandrin refere que os

seacuteculos XIV XV e XVI foram o aacutepice de seu papel na cozinha europeacuteia quando esses

ingredientes tinham tambeacutem valor terapecircutico Natildeo se pode referir que o prazer atraveacutes da

comida tenha iniciado nesse periacuteodo histoacuterico mas eacute possiacutevel compreender que esse periacuteodo foi o

iniacutecio do falar em prazer como aspecto favoraacutevel agrave digestatildeo Havia uma aproximaccedilatildeo entre a

gastronomia e a dieteacutetica conforme Jean-Louis Flandrin sugerida no trecho ldquoAos dietistas

interessava o gosto dos alimentos por diversas razotildees Em primeiro lugar porque se digere

melhor aquilo que se come com prazer-como acreditamos ateacute hojerdquo (FLANDRIN 2015 p486)

Compreender o prazer como elemento presente na alimentaccedilatildeo torna-o tambeacutem parte da

sauacutede e do bem-estar do ser humano Esta perspectiva remete ao estabelecido por Karl Jaspers

sobre o prazer Este fenocircmeno seria equivalente agrave satisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas

funccedilotildees orgacircnicas com resultados no equiliacutebrio psiacutequico na percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e no bem-

estar do indiviacuteduo Desse modo ao ler o historiador Jean-Louis Flandrin confirma-se o papel do

prazer na lsquosatisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees orgacircnicasrsquo na concepccedilatildeo do

psicopatologista Jaspers Flandrin conclui o capiacutetulo com a seguinte reflexatildeo

Em resumo cozinhar agravequela eacutepoca assim como hoje era dar aos alimentos os sabores

mais agradaacuteveis- mas agradaacuteveis no acircmbito de uma determinada cultura para um gosto

71

diferente do nosso porque modelado por outras crenccedilas dieteacuteticas outros haacutebitos

alimentares (FLANDRIN 2015 p495)

Falar no prazer de comer entatildeo remete a Karl Jaspers pela concepccedilatildeo meacutedica do prazer

mas tambeacutem a Brillat-Savarin em sua diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer e o prazer da mesa

Para o escritor de A fisiologia do gosto o primeiro eacute de ordem bioloacutegica a meu ver menos ligado

agrave sensaccedilatildeo prazerosa ligada ao sabor e mais associada ao mero saciar da fome o segundo

exclusivo da espeacutecie humana eacute vinculado agrave experiecircncia de conviacutevio agradaacutevel com os comensais

na partilha de uma refeiccedilatildeo

A abordagem da dualidade entre gastronomia e dieteacutetica apontada por Jean-Louis

Flandrin eacute semelhante agravequela da dualidade apontada por Brillat-Savarin o prazer de comer e o

prazer da mesa Talvez essas divisotildees tivessem o propoacutesito de partir o indiviacuteduo em duas

metades a do corpo e a da mente A metade que se satisfaz com o saciar da fome seria entatildeo

diferente da que se apraz da companhia dos amigos agrave mesa A metade que preparava as receitas

pela gastronomia em fins da Idade Meacutedia seria diversa da que seguia as ordens da dieteacutetica

Nesse sentido a visatildeo de Jaspers sobre o prazer eacute a mais completa pois integra a satisfaccedilatildeo

harmocircnica e ordenada das funccedilotildees orgacircnicas ao equiliacutebrio psiacutequico agrave percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e

ao bem-estar do indiviacuteduo

Considerando o prazer alimentar entatildeo como elemento que envolve o corpo e a mente

do saciar agrave fome ao satisfazer o prazer gustativo e social surgem dois novos termos a gula e o

bom gosto

Os seacuteculos XVII e XVIII trouxeram mudanccedilas na relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com o prazer do

gosto Enquanto na Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVII a alimentaccedilatildeo das elites aproximava-

se muito de perto das prescriccedilotildees dos meacutedicos o que se seguiu a partir de entatildeo foi o apagamento

das referecircncias agrave antiga dieteacutetica dando lugar entre cozinheiros e gastrocircnomos agrave harmonia dos

sabores como prioridade Ficou relegado a segundo plano o aspecto de que ldquo[] os sabores eram

ateacute entatildeo ligados tanto a eles como aos meacutedicos sabiamente classificados do mais frio ao mais

quente eles constiuiacuteam uma indicaccedilatildeo segura da natureza dos alimentos e sua digestibilidaderdquo

(FLANDRIN MONTANARI 2015 p548) Um resultado interessante da separaccedilatildeo progressiva

entre cozinha e dieteacutetica foi uma permissatildeo para a gulodice conforme o registro de Histoacuteria da

alimentaccedilatildeo

72

Os refinamentos da cozinha natildeo visam mais manter a boa sauacutede das pessoas mas

satisfazer o gosto dos glutotildees Com uma pequena diferenccedila estes ainda natildeo se

reconhecem como tais e se apresentam como pessoas de paladar apurado apreciadores

de iguarias e peritos na arte de reconhececirc-las (FLANDRIN MONTANARI 2015

p549)

Com o avanccedilo das descobertas e das criaccedilotildees dos cozinheiros e gastrocircnomos o prazer

com os alimentos reveste-se de nova importacircncia a gula Comer torna-se sinocircnimo nesse

contexto de desfrutar do sabor da comida o que muitas vezes eacute partilhado com amigos Para

Brillat-Savarin seria a uniatildeo do prazer de comer e do prazer da mesa O gosto como sentido

fisioloacutegico assume nova representaccedilatildeo eleva-se agrave categoria de bom-gosto com aplicaccedilotildees para

aleacutem dos campos da cozinha De acordo ainda com os organizadores de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo

Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari

O gosto esse sentido de que a natureza dotou o homem e os animais para discernirem o

comestiacutevel do natildeo-comestiacutevel sofreu alias em meados do seacuteculo XVII uma estranha

valorizaccedilatildeo fala-se dele a partir daiacute em sentido figurado a propoacutesito de literature

escultura pintura muacutesica mobiliaacuterio vestuaacuterio etc Em todos esses domiacutenios eacute ele que

permite distinguumlir o bom do ruim o belo do feio eacute o oacutergatildeo caracteriacutestico do lsquohomem de

gostorsquo um dos avatares do homem perfeito Ora essa valorizaccedilatildeo implica uma certa

toleracircncia para com os glutotildees (FLANDRIN MONTANARI 2015 p549)

Bom-gosto gula e prazer satildeo termos que se referem a uma semacircntica do deleite da

experiecircncia gustativa produzida nas cozinhas da eacutepoca com iniacutecio no seacuteculo XVII O indiviacuteduo

comeccedila a perceber a possibilidade de extrair da comida uma espeacutecie de luxuacuteria traduzida pela

gulodice Ele desfruta do sabor do alimento como se estivesse em um climax eis o glutatildeo

Enquanto na alta Idade Meacutedia o prazer nos banquetes vinha das atividades paralelas e seu

propoacutesito natildeo era a experiecircncia prazerosa per se mas a alianccedila e a realizaccedilatildeo de objetivos que

dela resultavam a partir desse seacuteculo o prazer reveste-se de importacircncia nos campos de forno-e-

fogatildeo

Dane-se a dieteacutetica talvez pensassem os sujeitos Gula e prazer eram expressotildees que a

boa comida despertava usufruiacutea deles quem tinha bom-gosto Nascia entatildeo um grupo de

pessoas com os pomposos tiacutetulos de lsquogourmetsrsquo e lsquogastrocircnomosrsquo seguida do surgimento e da

expansatildeo de sua literatura apropriada os tratados de cozinha Um novo modo de vivenciar o

alimento tornava-se cada vez mais abundante Houve um significativo movimento gerado pelo

gosto alimentar ldquoA multiplicaccedilatildeo das artes ligadas agrave alimentaccedilatildeo e das obras teacutecnicas que tratam

delas foi acompanhada sob formas diversas de escritos que fazem a apologia do prazer de comer

e ateacute da glutonaria e da embriaguezrdquo (FLANDRIN MONTANARI 2015 p551)

73

Entretanto tal vivecircncia jaacute existia em menor expressatildeo na Itaacutelia do Quatrocentos Conta-

se que ldquoPlatinardquo o humanista Bartolomeo Sacchi teve relevante papel no prazer de comer no

referido periacuteodo com seu De honesta voluptate

Natildeo soacute este natildeo eacute cozinheiro nem meacutedico [hellip] mas mistura agrave sua documentaccedilatildeo

culinaacuteria e dieteacutetica a lembranccedila nostaacutelgicada alegria que seus amigos e ele

experimentavam ao saborear este ou aquele prato de mestre Martino o grande

cozinheiro romano de meados do seacuteculo acima de tudo ele utiliza isso para defender o

honesto prazer de saborear uma cozinha ao mesmo tempo simples e refinada prazer que

poderiacuteamos hoje classificar como o de um glutatildeo (FLANDRIN MONTANARI 2015

p552)

Por que na eacutepoca de Platina e entatildeo nos seacuteculos XVII e XVIII de efervescecircncia dos

gourmets ou mesmo em nosso seacuteculo XXI a sensaccedilatildeo prazerosa provocada pelo alimento eacute tatildeo

semelhante em sujeitos tatildeo diversos Pelo fato de que o prazer eacute inerente agrave experiecircncia humana

A definiccedilatildeo dada por Jaspers agrave sensaccedilatildeo prazerosa une aspectos da percepccedilatildeo fiacutesica e da

experiecircncia mental integradas Com base em sua definiccedilatildeo e considerando o acima exposto

sobre os termos gula prazer e bom-gosto ocorre a pergunta por que tantos sujeitos de diferentes

eacutepocas vivenciaram o prazer associado agrave comida em especial quando essa assumiu uma

conotaccedilatildeo de importacircncia com o iniacutecio da Gastronomia um termo cognitivo Recorremos a uma

possiacutevel explicaccedilatildeo neurocientiacutefica para esse questionamento a hipoacutetese do ceacuterebro triuno que

abrange a experiecircncia prazerosa como elemento exclusivo do ser humano

A referida hipoacutetese foi proposta pelo meacutedico e neurocientista americano Paul MacLean

em 1970 Segundo tal autor somos compostos grosso modo por trecircs ceacuterebros que trabalham em

colaboraccedilatildeo embora oriundos de diferentes etapas da evoluccedilatildeo das espeacutecies Assim nos

mamiacuteferos superiores existe uma hierarquia de trecircs ceacuterebros em um soacute daiacute o termo triuno De

acordo com a teoria os trecircs operam com diferentes graus de complexidade mas orquestram o

funcionamento humano de forma conjunta O ceacuterebro reptiliano presente desde os reacutepteis ou

arquicoacutertex seria o mais primitivo responsaacutevel pelas questotildees de sobrevivecircncia bioloacutegica como

alimentaccedilatildeo reproduccedilatildeo proteccedilatildeo etc A seguir em termos evolucionistas viria o ceacuterebro

liacutembico ou paleocoacutertex responsaacutevel pela elaboraccedilatildeo das emoccedilotildees como apetite medo raiva

etc presente desde as aves O terceiro e entatildeo o mais evoluiacutedo seria o neocortex responsaacutevel

pela elaboraccedilatildeo dos pensamentos e dos sentimentos e exclusivamente humano

Transpondo essa teoria para o campo alimentar podemos referir o ceacuterebro reptiliano

como responsaacutevel pela fome enquanto o liacutembico seria responsaacutevel pelo desejo por essa ou aquela

74

comida especiacutefica O neocortex viria ao final para dar significado ao que comemos atraveacutes da

compreensatildeo das emoccedilotildees da relaccedilatildeo entre a memoacuteria e o alimento e da atribuiccedilatildeo de conceitos

cognitivos como a noccedilatildeo de bom-gosto No campo gastronocircmico seria possiacutevel entender a

cooperaccedilatildeo dos trecircs ceacuterebros como uma integraccedilatildeo que tem como resultado o prazer de saborear

este ou aquele quitute Saboreamos porque temos fome porque algo nos apetece e nos desperta

desejo por fim porque aprendemos do ponto de vista cognitivo que gostar daquele alimento eacute

permitido e em alguns casos eacute valoroso pois nos torna pertencentes a um grupo como o dos

glutotildees e gourmets Se comer tal alimento for prazeroso isto significa que nossos trecircs ceacuterebros

foram atendidos e estatildeo trabalhando em conjunto Mais uma vez o bem-estar do corpo de da

mente referido por Jaspers

Compreender o prazer que existe como expressatildeo fiacutesica emocional e mental nos

possibilita entender por que esse tambeacutem pode estar associado a patologias nos mesmos

domiacutenios A explicaccedilatildeo estaacute no fato de que para vivenciar esse complexo fenocircmeno eacute preciso

que sejamos humanos e que nossos trecircs ceacuterebros operem em orquestra vulneraacuteveis agraves

experiecircncias positivas ou negativas inexoraacuteveis

24 O PRAZER DA COMIDA

A partir da constataccedilatildeo do engorde e da dieta orientada pelo meacutedico a protagonista de

Por que sou gorda mamatildee lsquopassa a vida a limporsquo em sua memoacuteria Com o propoacutesito de

compreender o porquecirc de seu engorde escreve uma carta para a matildee em trechos ora

confessionais ora acusatoacuterios esperando na correspondecircncia construir para si a resposta ao

longo das lembranccedilas que evoca

O balanccedilo entre o passado e o presente alinha a compreensatildeo sobre o papel dos trajetos de

vida desde a infacircncia no quadro atual de sauacutede Os vinte e dois quilos ou cento e dez tabletes de

manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha satildeo o resultado dos sofrimentos que vivenciou

do afeto que natildeo recebeu e da comida que devorou A dor emocional eacute de fato sua mas talvez

seja tambeacutem heranccedila da Voacute Gorda da Voacute Magra do pai e da matildee Nas histoacuterias entrelaccediladas lecirc-

se uma pesada bagagem de dores ancestrais

Atraveacutes da intersecccedilatildeo entre as vivecircncias eacute possiacutevel ler na obra trecircs tempos

predominantes com fronteiras tecircnues entre si aquele dos antepassados que a protagonista

75

conhece por ouvir contar o tempo da infacircncia que ela narra pelas recordaccedilotildees e o tempo

presente da dieta que provoca as idas e vindas da narrativa a fim de descobrir as causas de seu

aumento de peso As fronteiras satildeo tecircnues pois os trecircs tempos embora diversos no calendaacuterio

misturam-se na personagem ora como lembranccedila ora como reflexatildeo No percurso da obra o

elemento que liga as histoacuterias eacute na maioria das vezes a sensaccedilatildeo prazerosa com a comida

mesmo quando a referecircncia aponta para o contraacuterio sentimentos de culpa pela obesidade e de

revolta pela restriccedilatildeo alimentar

Haacute uma ligaccedilatildeo natural entre o comer e o prazer para aleacutem da rima Desde a

amamentaccedilatildeo a chegada do leite materno eacute acompanhada pelo contato de afeto da matildee com o

bebecirc e pela experiecircncia de prazer fiacutesico associada agrave succcedilatildeo Assim alimento viacutenculo afetivo e

prazer satildeo parte de nossas primeiras memoacuterias e podem permanecer como o tripeacute que daraacute

suporte a muitos de nossos padrotildees de comportamento ao longo da vida Esse tripeacute contudo

pode desestabilizar-se caso haja preponderacircncia de um dos componentes gerando experiecircncias

de sofrimento associadas a tal desequiliacutebrio

A referida situaccedilatildeo aliaacutes estaacute muito bem expressa nessa obra na qual a vivecircncia da

personagem frente ao engordar mostra o quanto o comer em sua vida ocupou muitas vezes os

espaccedilos de amor e de seguranccedila deixados vazios pela ausecircncia desse afeto Sobretudo por parte

dessa matildee o proacuteprio tiacutetulo do livro dirigido a ela sugere que seja vista como culpada pelo

processo de engorde da personagem Em diversas passagens da obra a comida eacute citada como

abundante enquanto a expressatildeo das emoccedilotildees eacute percebida como escassa

Encontramos a posteridade dentro da fartura pela qual devemos agradecer todos os dias

e da qual ainda hoje devemos nos afastar por forccedila da geneacutetica O excesso de comida o

excesso de zelo o excesso dos excessos tudo ficou em noacutes como lembranccedila e como

estoque de uma espeacutecie de amor do qual ainda hoje nos valemos quando o amor falta

minguado (MOSCOVICH 2006 p220)

A vivecircncia do prazer da comida eacute apresentada em diversos fragmentos tanto associados agrave

narradora quanto agrave sua matildee a quem dirige as reflexotildees sua Voacute Magra seu pai e seus irmatildeos

Uma das passagens mais ilustrativas do papel desempenhado pela sensaccedilatildeo prazerosa nesta

narrativa estaacute no trecho de uma viagem O que as personagens experimentam nesta cena parece

muito proacuteximo ao lsquohonesto prazerrsquo referido por Platina mencionado anteriormente Lembrando

de uma viagem em famiacutelia durante um percurso ao Uruguai a protagonista remonta um

momento em que sua matildee ela e os irmatildeos lambuzavam-se com doces no carro

76

[hellip] A senhora de repente deu ordem expressa para que o pai estacionasse ali naquele

ponto bem na frente daquela confeitaria a Carrero O carro nem bem tinha parado nem

bem nossos protestos se haviam esvaiacutedo com a agilidade de seu movimento e a senhora

jaacute entrava na Carrero atraveacutes da porta de vidro porta muito pesada em sua fidalguia de

anos servindo o fino paladar uruguaio Porta que a senhora cruzou duas vezes em toda

sua vida - aquela era a segunda

Ficamos ali os quatro com os narizes achatados de curiosidade contra as janelas do

Ford Natildeo demorou nem bem cinco minutos e a senhora logo apareceu com trecircs garrafas

de Crush de laranja em uma das matildeos e na outra uma bandeja de doces - e me lembro

que o pai soltou uma gargalhada e sacudiu a cabeccedila num gesto de anuecircncia

Os doces foram devorados com seu incentivo feliz as garrafas passavam de matildeo em

matildeo limpava-se a boca com guardanapinhos de papel ou com a manga do casaco A

senhora se empanturrou e nos empanturrou Ningueacutem deu muita bola para os farelos de

massa folhada e para as manchas de doce de leite que ficaram melecando o estofamento

ateacute que voltaacutessemos para casa trecircs dias depois (MOSCOVICH 2006 p72)

Esta eacute a uacutenica cena de prazer compartilhado entre a narradora os irmatildeos e a matildee Eacute a

uacutenica cena tambeacutem em que a matildee aparece permitindo-se o deleite com algazarra com alegria

desfrutando do saborear em famiacutelia os doces da confeitaria A personagem refere que a matildee

cruzara a porta do estabelecimento duas vezes na vida e aquela era a segunda Haacute uma referecircncia

indireta aqui agrave escassa permissatildeo em sua matildee para esse tipo de prazer com farelos e doce de

leite espalhado Uma permissatildeo a si mesma de lambuzar-se com o prazer de partilhar o doce o

afeto a brincadeira O lsquohonesto prazerrsquo de Platina que misturava agrave sensaccedilatildeo prazerosa quem

sabe a alegria entre as pessoas Essa eacute a emoccedilatildeo que habita a cena e natildeo somente a gula pelos

doces

A matildee aparece protagonizando outras duas cenas de prazer alimentar ambas associadas a

uma condiccedilatildeo de sauacutede para a qual precisou fazer um cateterismo Entretanto a sensaccedilatildeo

prazerosa eacute expressa como experiecircncia de permissatildeo individual e natildeo partilhada com a famiacutelia

como no deleite dos doces e do refrigerante no carro A narradora conta sua lembranccedila sobre os

dois episoacutedios vividos pela matildee o primeiro antes do procedimento o segundo apoacutes

Naquela noite depois da cintilografia a senhora devorou meio quilo de patildeo com

manteiga um bule de cafeacute e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Disse que jaacute que

ia morrer comeria o que lhe desse na veneta (MOSCOVICH 2006 p119)

Jaacute em casa a senhora voltou ao tempo do seu rosto e apesar da ferida aberta na virilha

tornou-se de novo uma avoacute E o mais gracioso foi que naquela noite devorou meio

quilo de patildeo com manteiga uns cem gramas de mortadela um pote com azeitonas

pretas e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Me disse que jaacute que natildeo ia morrer

comeria o que lhe desse na telha (MOSCOVICH 2066 p124)

77

Compreende-se como o prazer de comer estaacute vinculado a uma justificativa aceitaacutevel em

uma e em outra ocasiatildeo lsquojaacute que ia morrerrsquo e lsquojaacute que natildeo ia morrerrsquo Natildeo haacute uma vivecircncia da

sensaccedilatildeo prazerosa experimentada pela matildee nesses casos sem uma razatildeo que fundamente a

permissatildeo Outro ponto a salientar estaacute nas frases lsquocomeria o que lhe desse na venetarsquo e lsquocomeria

o que lhe desse na telharsquo em que lsquodar na venetarsquo e lsquodar na telharsquo fazem alusatildeo agrave satisfazer a

vontade o impulso da hora expressotildees ligadas ao prazer Os fragmentos apresentados fornecem

dados para que se possa compreender que na personagem da matildee esse prazer do ldquodar na venetardquo

soacute poderia ser permitido se associado a uma razatildeo muito forte como a possibilidade de ela

morrer no procedimento

Aleacutem das questotildees psiacutequicas da ligaccedilatildeo entre cozinha e prazer existe a influecircncia da

cultura presente nas famiacutelias de acordo com a relaccedilatildeo que seus antepassados estabeleciam com a

comida com o prazer e com os viacutenculos Eacute possiacutevel aprender que um alimento eacute saboroso ou

condenado porque essa informaccedilatildeo passa de uma geraccedilatildeo agrave outra natildeo como uma carga geneacutetica

mas como uma transmissatildeo de aprendizado cultural O que eacute transmitido ao grupo familiar eacute

dependente do significado da comida para os diferentes povos Dentro das famiacutelias haacute tambeacutem

coacutedigos representados pelo alimento muitas vezes compartilhados pelos membros como

acontece entre a protagonista e sua Voacute Magra

Eu imitei a voacute fiz ach e dei um tapinha no ar Natildeo tinha mesmo importacircncia nenhuma

Noacutes duas comeccedilamos a rir De matildeos dadas fomos ateacute a cozinha buscar algo com

bastante accediluacutecar para comer Doces nos deixavam fortes e felizes

Como diz mais um velho ditado avoacutes e netos se datildeo bem porque tecircm um inimigo em

comum (MOSCOVICH 2006 p99)

O episoacutedio refere-se ao conflito entre sua matildee e a Voacute Magra avoacute materna e a

protagonista posiciona-se a favor da avoacute partilhando com ela o prazer de lsquobuscar algo com

bastante accediluacutecar pra comerrsquo Existe clara cumplicidade com a avoacute expressa na frase lsquoDoces nos

deixavam fortes e felizesrsquo Essa mesma comunhatildeo eacute demonstrada nos trechos sobre os passeios

que elas faziam juntas quando a Voacute Magra a levava consigo nas andanccedilas ao centro para vender

roupas na infacircncia da narradora

Ela bem gostava daquela funccedilatildeo ou ao menos aparentava gostar e se aparentava fingia

muito bem Depois de uma boa venda saiacutea exibindo um ar glorioso e altaneiro uma

conquistadora que avanccedila sobre terra remota e me puxando pela matildeo me punha diante

de um copo de guaranaacute- o copo que ela inspecionava muito bem e submetia ao processo

de assepsia com o lencinho- uma garrafa de refrigerante e um mil folhas partido ao meio

davam bem para noacutes duas Tatildeo bem que nem fazia falta a outra metade

78

O que eu aprendi com vovoacute foi bastante aleacutem do que pretendia papai Ela natildeo queria me

mostrar como se ganhava o patildeo natildeo tinha interesse em expor a neta a sofrimento algum

O que a voacute queria mesmo com aquelas excursotildees era a farra de dividir comigo um doce e

um refrigerante a gente se refestelando com creme de confeiteiro Ela pagou com

antecipaccedilatildeo aquelas pequenas felicidades coisa que ela mais amava no mundo

(MOSCOVICH 2006 p91-92)

Para a protagonista e sua Voacute Magra esses passeios representavam mais do que a

oportunidade de saborearem o mil folhas eram a chance de partilharem juntas o prazer de um

coacutedigo que comungavam o sabor doce Ao ler-se as passagens desta avoacute com ela e com seus

irmatildeos ao longo da obra compreende-se que este sabor doce eacute com nitidez o afeto partilhado

entre a Voacute Magra e os netos Para a avoacute o deleite com a comida tem raiacutezes culturais e vivenciais

O livro aponta a fome ancestral como possiacutevel razatildeo de seu prazer com a comida Jaacute no

capiacutetulo um ela apresenta sua Voacute Magra importante referencial em sua histoacuteria com o papel da

comida e com o engorde A obra comeccedila pelo cerne do significado da comida para a famiacutelia a

fome Essa vivecircncia eacute elemento relevante na histoacuteria familiar da protagonista A fim de

corroborar o papel da fome na dimensatildeo que cozinha ocupa na literatura judaica vale apresentar

a contribuiccedilatildeo de Ana Maria Shua em sua obra Risos e emoccedilotildees da cozinha judaica

A comida ocupa um lugar importante na literatura judaica Seguramente porque ocupa

um lugar importante na vida judaica na vida material e tambeacutem por razotildees religiosas

na vida espiritual Acima de tudo os judeus da Europa Oriental tendiam a contar com o

uacutenico adereccedilo capaz de converter em excelente qualquer comida para qualquer paladar a

fome Natildeo chama a atenccedilatildeo desse modo que o tema da comida apareccedila uma e outra vez

entre os sempre famintos personagens de sua literatura (SHUA 2016 p113)

O entendimento da comida como milagre aponta o poder que lhe era atribuiacutedo pela Voacute

Magra conforme narra a protagonista

Para quem vem de uma famiacutelia que nos miseraacuteveis e congelados vilarejos judeus da

Europa passou fome de comer soacute repolho ou soacute batata para a qual naqueles shtetels

carne era uma abstraccedilatildeo que os dentes nem conheceram e que se acostumou a aplacar o

oco do estocircmago com sopa de beterraba ou com aquele mameligue que nada mais era

do que um mingau meio insosso de farinha de milho e aacutegua a obsessatildeo por comida nada

tem ou nada deveria ter de extraordinaacuterio Vovoacute Magra assim como todas as avoacutes

acreditava que a comida era um milagre capaz de moldar crianccedilas em adultos um

homem eacute o peso daquilo que come uma boa refeiccedilatildeo vale a prece por um dia a mais de

vida

O caso era que diante de um prato de comida Vovoacute Magra parecia encontrar o sentido

da existecircncia (MOSCOVICH 2006 p21)

A comida era milagre e sentido da existecircncia para sua avoacute de acordo com a protagonista

entretanto vai aleacutem mostrando a voracidade o apetite o prazer afoito com que aquela comia O

79

aspecto interessante foi a narradora referir-se ao termo lsquodesesperorsquo que denota uma espeacutecie de

sofrimento A avoacute sentiu tanta fome que quando pocircde comer tornou o alimento a resposta para

todas as faltas mesmo as futuras A comida era um modo de prevenccedilatildeo contra a fome que ela

pudesse vir a passar novamente

E comia comia comia

Comia ovos duros comia coalhada comia milho comia carne comia saladas comia

frutas- especialmente laranjas-do-ceacuteu que docinhas natildeo espicaccedilavam o paladar ao

contraacuterio do azedo das laranjas-de-umbigo que ela tambeacutem comia Comia tanto que se

via nela um desespero E de tanto passer fome decerto vovoacute por mais que comesse e se

fartasse natildeo engordava Cinturinha fina seios achatados quadric estreitos heranccedila que

a senhora mamatildee abocanhou e que natildeo me deu

Da vovoacute soacute herdei o apetite ancestral o mesmo que a senhora herdou (MOSCOVICH

2006 p21-23)

O apetite eacute capaz de promover a antecipaccedilatildeo do prazer pela lembranccedila e pelo desejo de

comer determinado alimento aleacutem de estimular a repeticcedilatildeo do que satisfaz pela gratificaccedilatildeo que

o ceacuterebro registra Se tal prato eacute saboroso e lhe apetece o indiviacuteduo vai buscaacute-lo de novo e assim

sucessivamente Por isso a Voacutevoacute Magra lsquocomia comia comiarsquo e lsquocomia tanto que se via nela um

desesperorsquo Entatildeo quando a narradora comeccedila a passagem falando em fome e a conclui

referindo-se ao lsquoapetite ancestralrsquo estaacute dizendo que em sua avoacute a fome transformou-se no prazer

pela comida

Ainda assim havia respeito agraves proibiccedilotildees religiosas ligadas agrave tradiccedilatildeo culinaacuteria judaica A

narradora descreve sobre os haacutebitos alimentares da Voacute Magra ldquoExceto por carne de porco ou

mariscos e outras coisas gosmentas vindas da aacutegua ndash alimentos que a Lei considera impuros e

que portanto eram iguais agrave pedra que se interdita levar agrave boca ndash natildeo havia comida que ela

desprezasserdquo (MOSCOVICH 2006 p21-23)

Entatildeo embora houvesse o respeito agraves restriccedilotildees impostas havia tambeacutem o prazer com os

alimentos permitidos fossem ou natildeo pertencentes agrave culinaacuteria tradicional judaica Eacute neste ponto

que se aproximam os textos da ficccedilatildeo e da teoria fontes de estudo no presente capiacutetulo Natildeo se

nega que haja a proibiccedilatildeo a certos alimentos aspecto em que a obra de Ciacutentia Moscovich foi fiel

agrave cultura culinaacuteria judaica mas a mesma tambeacutem problematizou o espaccedilo de prazer existente na

cozinha de sua tradiccedilatildeo

Outro elemento relevante na anaacutelise da passagem acima eacute o que a narradora refere quando

menciona ter herdado de sua avoacute apenas o lsquoapetite ancestralrsquo Nesse ponto da narrativa atribui

agraves raiacutezes familiares seu gosto pela comida Eacute significativo que a narradora comece o texto falando

80

sobre a fome e o encerre usando o termo apetite pois se pode pensar na fome como uma

necessidade bioloacutegica do corpo que natildeo difere um alimento de outro O propoacutesito da fome eacute ser

saciada No que tange ao apetite pode-se pensar no apetite por algo o que o torna mais

especiacutefico agraves preferecircncias alimentares e desse modo mais proacuteximo ao prazer Foi o que Voacute

Magra descobriu

Eacute visiacutevel seu gosto por essa ou aquela comida sua profunda sensaccedilatildeo prazerosa com

ingredientes e pratos tiacutepicos Natildeo os escolhe apenas para saciar a fome deseja isso sim

satisfazer o apetite deleitar-se Com todas as restriccedilotildees que a tradiccedilatildeo impunha descobriu no

alimento fonte de prazer e com os netos de expressatildeo afetiva Havia tambeacutem um sentido de

aproveitar do alimento tudo o que ele poderia oferecer natildeo desperdiccedilando nada de sua

substacircncia Mesmo com o propoacutesito desse aproveitamento dedicava-se a fazer comidas e doces

saborosos como a narradora lembra no trecho abaixo

E havia aquele creme de laranja que era uma nuvem accedilucarada de sabor contrastante

um nada azedinho rompendo o doce dava ateacute um arrepio Era o jeito de a voacute aproveitar

as frutas que sobravam no mercado Natildeo se pode desperdiccedilar sumo algum mesmo que

as frutas despenquem podres no meio das sobras (MOSCOVICH 2006 p94)

O trecho expressa o fazer culinaacuterio de um doce que deixou lembranccedilas sensoriais na

protagonista expressas por termos como lsquonuvem accedilucarada de sabor contrastantersquo lsquoum nada

azedinho rompendo o docersquo e sobretudo a revelaccedilatildeo de que lsquodava ateacute um arrepiorsquo Entretanto as

escolhas alimentares na cultura judaica natildeo teriam por princiacutepio dar relevacircncia ao prazer mas aos

elementos religiosos Existe um conjunto de regras de idoneidade alimentar na cozinha judaica

chamada kasherut e cada alimento pertencente a tal conjunto e entatildeo permitido eacute chamado

kasher A respeito das tradiccedilotildees religiosas implicadas na alimentaccedilatildeo Ariel Toaff no capiacutetulo

lsquoCozinha judaica cozinhas judaicasrsquo do livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas

esclarece

Afirma-se em geral que as praacuteticas da alimentaccedilatildeo judaica estatildeo essencialmente

enquadradas na oacutetica do sistema religioso fundamentadas em proibiccedilotildees biacuteblicas

ampliadas e interpretadas pelas normativas rabiacutenicas Em outros termos o judeu comeria

alimentos que lhe satildeo permitidos descartando todos aqueles que de uma ou outra forma

entrassem nas categorias explicitamente proibidas pela biacuteblia ou pela hermenecircutica

geralmente extensa da ritualiacutestica posterior Nesse sentido suas escolhas alimentares

deveriam ser consideradas como fundamentos de sua identidade cultural e religiosa A

gama de proibiccedilotildees parece vasta e sem duacutevida condicionante (TOAFF 2009 p179)

81

Eacute interessante observar que mesmo focados na obediecircncia agraves normas havia uma culinaacuteria

rica de prazer dentro da cultura Apesar das influecircncias externas e as proibiccedilotildees religiosas

configurou-se uma cozinha judaica nuclear baseada no gosto Na Europa do seacuteculo XV ou XVI

os alimentos definidos como lsquoagrave hebraicarsquo ou lsquoagrave judiarsquo expressavam ingredientes gosto e aspecto

tipicamente judaicos e eram imediatamente reconhecidos como tal

O marzipatilde e as panquecas com mel e canela o patecirc de fiacutegado gordo os Griben (pedaccedilos

fritos de pele [de ave]) e os salsichotildees de ganso o hamin a carne guisada do Shabatt

com feijotildees e gratildeos-de-bico lsquocom pimenta e alhorsquo as alcachofras fritas lsquoagrave rosarsquo e a

endiacutevia assada no forno com lsquopeixe azulrsquo todos eles alimentos cuja preparaccedilatildeo era

comumente qualificada como lsquoagrave hebreacuteiarsquo natildeo eram decerto chamados desse modo pelo

fato de seu consumo ser permitido ou prescrito aos judeus pelas normas da biacuteblia e dos

rabinos mas porque se reconhecia neles a expressatildeo particular do gosto judaico [hellip] O

fato incontroverso eacute que o gosto gastronocircmico judaico parecia evidentemente diverso

daquele do ambiente cristatildeo circundante (TOAFF 2009 p183)

A evocaccedilatildeo sensorial eacute provocada pelos alimentos judaicos quando ateacute os nomes

despertam curiosidade e imaginaccedilatildeo pela forma e pelo gosto Ali estaacute bem expresso um conjunto

de sabores pertencentes agrave cultura e agrave vivecircncia de prazer associados agrave comida O capiacutetulo de Ariel

Toaff no livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas defende que o gosto e o prazer

na culinaacuteria judaica foram elementos de forccedila suficiente para ultrapassarem as proibiccedilotildees

religiosas aspecto corroborado pelo grande nuacutemero de receitas daquela cultura

O prazer alimentar estaacute associado a esse aspecto cultural de um povo Carlos Alberto

Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira aponta que

Em termos simples todo dia eu acordo me sentindo brasileiro ou espanhol ou tcheco

etc Isso ocorre porque falo uma liacutengua alimento-me de determinada comida sei como

meus compatriotas se comportaratildeo diante de certas situaccedilotildees e assim por diante Haacute um

sentimento multifacetado de pertencimento que me faz nacional (DOacuteRIA 2014 p24)

Esse pertencimento tem como parte culinaacuteria pois identifica gostos e ingredientes de um

povo No caso especiacutefico da culinaacuteria judaica essa caracterizaccedilatildeo ocorre mesmo quando

adaptada a outras culturas e produtos como Toaff aponta Em por que sou gorda Mamatildee a

narradora faz um relato que contempla a cozinha judaica vivenciada em sua infacircncia adaptada agrave

cultura local sem no entanto perder sua principal expressatildeo nos pratos tiacutepicos

Como sempre acreditamos no aprendizado pela dor a fome passou a ser o grande

mestre liccedilatildeo que pai nenhum queria que os filhos aprendessem Atestando que os

tempos haviam mudado e que este naco do Brasil era uma Canaatilde as cozinhas do Bairro

eram usinas de todo tipo de comida

82

Agraves sete da manhatilde mal se pulava da cama e uma nuacutevem aromaacutetica e uacutemida jaacute tinha

invadido a casa As panelas ferviam galinhas as cebolas se atiravam agrave fritura as lacircminas

das facas trituravam ramos de tempero verde colheres de pau puxavam refogados nas

caccedilarolas batalhotildees rechonchudos de almocircndegas se alinhavam nas taacutebuas de carne ao

lado de um fornido regimento de varenikes que logo iam encontrar seu destino na aacutegua

pelando No bairro inteiro cedinho frio ou calor chuva ou sol matildeos zelosas estripavam

peixes recheavam pimentotildees cortavam ovos duros mexiam guisados lavavam arroz

arrancavam folhas dos ramos de louro Tempero lambido na concha da matildeo douravam

batatas raspavam cenouras sovavam massas fatiavam tomates queimavam berinjelas

batiam espinafre amassavam miuacutedos de frango esmagavam dentes de alho Enquanto

pepinos eram enfiados em enormes potes de vidro para a conserva de salmoura

amendoins em trouxas de panos de prato eram batidos a martelo pecircssegos ameixas e

peras se compotavam marmelos de accedilucaravam cremes se encorpavam nacos de

goiaba e punhados de uva em passa enchiam o oco de maccedilatildes vermelhas e lustrosas

(MOSCOVICH 2006 p48-49)

A escolha pelo uso do preteacuterito imperfeito nos atos culinaacuterios ilustra o aspecto rotineiro

com que essas praacuteticas eram realizadas dentro da vida do bairro de predominacircncia judaica Todo

cotidiano era tecido pela manhatilde pelos aromas texturas e costumes que compunham a cultura

local O trecho remete o leitor a um passado que se perpetua atraveacutes dos movimentos vividos nas

cozinhas pelo que a narradora refere como lsquomatildeos zelosasrsquo Haacute no pano de fundo desse

fragmento a ideia da repeticcedilatildeo das accedilotildees como marca de continuidade de haacutebitos gostos e

preferecircncias A narradora prossegue seu relato transmitindo lembranccedilas da cozinha judaica

vivenciadas em seu bairro

Eu feliz na atmosfera lavada das manhatildes mastigando o haacutelito de cafeacute e pasta de dente

gostava de ver as mulheres que vinham da feira livre com sacolas nas quais adejavam

verduras outras traziam suspensas de ponta-cabeccedila galinhas vivas que arregalavam os

olhos redondos num susto de morte Algumas donas de casa elas mesmas fariam o

talho na garganta por onde se esvairia o sangue do bicho enquanto outras mais

piedosas ou covardes ou que seguissem a lei alimentar a kashrut recorriam ao shochet

responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual Todas para um uacutenico lugar a cozinha matriz do

afeto de nossa gente Pratos com nomes esquisitos e tatildeo familiares varenikes beigales

mondales knishes strudels iuchs kasha rossale borscht guefiltefish chrein kishke

kreplach tzimes

Comida para um exeacutercito (MOSCOVICH 2006 p49 grifo do autor)

No trecho acima lecirc-se o aspecto religioso ligado agrave culinaacuteria quando a narradora aborda a

lei alimentar a kashrut e o shochet responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual das galinhas Outro

elemento apontado eacute a referecircncia aos pratos judaicos remetendo agrave ligaccedilatildeo entre cozinha e

pertencimento a um povo elemento cultural referido por Carlos Alberto Doacuteria apresentado

anteriormente Um ponto relevante apontado por esse autor eacute a citaccedilatildeo de Levi Strauss ldquoGestos

aparentemente insignificantes transmitidos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua

insignificacircncia mesma satildeo testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou

83

movimentos figuradosrdquo (DOacuteRIA 2014 p215) Assim eacute possiacutevel compreender os gestos

corporais dos atos culinaacuterios apresentados pela narradora sobre a rotina alimentar em seu bairro

como um importante testemunho da cultura judaica daquele territoacuterio

Aleacutem disso uma frase de grande relevacircncia no fragmento eacute lsquoTodas para um uacutenico lugar a

cozinha matriz do afeto de nossa gentersquo Nessa o viacutenculo entre o comer e o afeto expressa um

importante fator da cultura judaica a essa ligaccedilatildeo estaacute associada tambeacutem a sensaccedilatildeo prazerosa

da comida partilhada Carlos Alberto Doacuteria expotildee a reflexatildeo de Annie Hubbert quando ela

registra

Especialmente nas sociedades onde as representaccedilotildees coletivas passam por livros

religiosos (os judeus os cristatildeos e os muccedilulmanos) o ato de comer aparece ligado ao

amor materno e recusar a comida eacute o mesmo que recusar essa modalidade fundante de

afeto um ato que exprime grande emoccedilatildeo (DOacuteRIA 2014 p204)

Dividir a comida eacute tambeacutem nutrir o sentimento de pertencer ao grupo de fomentar a

permanecircncia dos atos que satildeo parte dos costumes desse grupo como aqueles atos apresentados

no trecho anterior em preteacuterito imperfeito atos culinaacuterios que satildeo parte do cotidiano das

cozinhas do bairro Somam-se alimento afeto rotina cultura prazer pertencimento partilha

continuidade

Ainda sobre o gosto da cozinha judaica Toaff escreve

As mercearias dos guetos pululavam de clientes cristatildeos mais gulosos do que

esfomeados [hellip] A aproximaccedilatildeo dos cristatildeos agraves comidas judaicas era sempre ambiacutegua e

ambivalente atraiacutedos (e ao mesmo tempo desconfiados) por aqueles pratos que podiam

ter significados hereacuteticos imprevistos e por aqueles sabores exoacuteticos que exerciam

veladas seduccedilotildees de transgressatildeo lsquoComer agrave judiarsquo era um pouco como tornar-se judeu

no prazer de um momento sentir de dentro o fasciacutenio daquilo que era difiacutecil (e talvez

impossiacutevel) aprender de fora [hellip] Comer uma alcachofra lsquoagrave judiarsquo ou uma fatia de patildeo

aacutezimo era como fazer uma perigosa e temeraacuteria viagem ao estrangeiro uma espeacutecie de

percurso sedutor da igreja agrave sinagoga da qual poreacutem pretendia-se voltar o mais raacutepido

possiacutevel (TOAFF 2009 p183-184)

Compreende-se assim que a cozinha judaica tinha o apelo sedutor que provocava prazer

ateacute em outras culturas como a cristatilde Isso ocorria por sua forccedila especiacutefica pelo nuacutecleo vasto de

receitas e de modos-de-fazer este ou aquele prato no entanto tal apelo ocorria em grande parte

por simbolizar o proibido e o desconhecido aos cristatildeos Agradava-lhes a transgressatildeo dessa

cozinha tiacutepica seus sabores e significados Natildeo se tratava apenas de apreciar o gosto mas

84

tambeacutem o que tal culinaacuteria representava a um ambiente cultural diverso enfrentar a culpa e

encontrar o prazer do gosto clandestino

Para os proacuteprios judeus a amplitude de receitas e de gostos dos pratos lsquoagrave judiarsquo era tatildeo

arraigada que o gosto era parte de suas escolhas para aleacutem da imposiccedilatildeo religiosa Sobre isso

Toaff reflete ldquoHaacutebitos e tradiccedilotildees alimentares inquietudes irracionais gosto e nostalgias faziam

com que mesmo nos casos extremos o paladar abandonasse o judaiacutesmo muito mais lentamente e

de maacute vontade do que o coraccedilatildeo ou a menterdquo (TOAFF 2009 p185)

Ariel Toaff demonstra o ponto a ser discutido sobre o aspecto cultural dessa culinaacuteria em

relaccedilatildeo ao prazer alimentar as restriccedilotildees e as proibiccedilotildees religiosas de um lado o prazer de

manter vivo o respeito pela tradiccedilatildeo de receitas tiacutepicas lsquoagrave judiarsquo que representam o gosto

alimentar dos judeus de outro Apesar das proibiccedilotildees a essecircncia da cozinha judaica se manteve

atraveacutes de uma vasta quantidade de receitas Eacute possiacutevel compreender isso pelo fato de o prazer

ser um fenocircmeno exclusivamente humano cujas caracteriacutesticas satildeo o equiliacutebrio fisioloacutegico e

psiacutequico que leva ao bem-estar de acordo com o Jaspers Em sendo fenocircmeno humano

pronuncia-se no indiviacuteduo de todos os tempos e de todas as culturas e eacute elemento ateacute mesmo

capaz de sobrepujar um constructo como as proibiccedilotildees religiosas como no caso da cozinha

judaica

O que mais chama a atenccedilatildeo lendo a pesquisa de Ariel Toaff eacute de como o gosto judaico

foi sendo construiacutedo a ponto de configurar-se como uma tradiccedilatildeo culinaacuteria Outro elemento

interessante referido pelo autor satildeo os processos de osmose com outras culturas alimentares a

partir das emigraccedilotildees dos judeus para diferentes territoacuterios O paladar judaico foi adicionando

alimentos agrave sua lista ingredientes e pratos de outras culturas foram sendo incorporados ao seu

gosto

Um trecho que ilustra essa lsquoosmosersquo estaacute no comeccedilo de Por que sou gorda mamatildee

quando a narradora-personagem conta a histoacuteria da chegada de sua famiacutelia ao Brasil e a

aproximaccedilatildeo de seu bisavocirc a um iacutendio proacuteximo agrave moradia da famiacutelia

[hellip] Um desses bugres vovoacute natildeo tinha certeza de que era o mesmo que fora aprisionado

deixou uma tigela de farinha - dependendo da versatildeo um pedaccedilo de carne- na porta da

casa O bisavocirc na mesma tijela e no mesmo lugar ofereceu para o iacutendio uma porccedilatildeo de

aipim cozido (ou uma porccedilatildeo de chulent ou um pedaccedilo de leikech) Tijela vai tijela

volta o bugre fez amizade com o bisavocirc falavam-se de iniacutecio com os dedos Depois

passaram a dividir o mesmo tronco de aacutervore no qual o bisavocirc sentava para o descanso

do final da tarde Depois para o pasmo geral viram o iacutendio vestindo uma camisa e uma

85

calccedila do bisavocirc mesma eacutepoca em que vovoacute viu entrar em casa uma gamela talhada em

madeira e uma cesta em trama de taquaras

Mesmo que mulheres e crianccedilas estivessem proibidas de se aproximar do bugre ele de

posse de uma enxada passou a ajudante nas lides da roccedila e a trazer aacutegua de uma sanga

ali perto Tambeacutem alcanccedilava ervas com as quais o bisavocirc fazia emplastros para as dores

nas juntas e picadas de insetos aleacutem de infusotildees e chaacutes para tosse e vermes

A vovoacute jurava que era verdade quando viram o iacutendio falava iiacutediche

Deram ateacute nome para o homem Chamavam-no Salvador (MOSCOVICH 2006 p65-

66 grifo nosso)

A osmose era natildeo apenas de ingredientes mas de costumes de atitudes de

camaradagens Havia prazer nas trocas e no conviacutevio do bisavocirc com o iacutendio Esse trecho eacute um

dos mais representativos da obra pois expressa de forma muito clara como a cultura judaica foi

permeaacutevel no exemplo narrado agraves influecircncias e agraves gentilezas e escambos do bugre A famiacutelia

comeccedilava sua histoacuteria em terras brasileiras Um trecho que expressa o papel da comida nos

primeiros tempos da famiacutelia no Brasil eacute o que segue

Uns oito nove ou dez anos depois da chegada ao Brasil o bisavocirc tinha abandonado a

colocircnia e enveredado pelos interiores do hemisfeacuterio mascateava Soacute laacute naquela Canaatilde

da fronteira entre o Brasil e o Uruguai terminou a busca de um futuro que seria melhor

mas que natildeo seria dele Havia chocolates Aguila chaja embalado em papel manteiga

morrones queimados na brasa e carne muita que se assava em grelhas sobre braseiro

vivo Tudo isso natildeo chegava agrave casa e agrave mesa da famiacutelia que se alimentava de mameligue

ou farinha de mandioca agrave qual se acrescentava cafeacute com muito accediluacutecar que accediluacutecar natildeo

podia faltar Aos domingos cada um dos filhos recebia um tablete de mariola piteacuteu

envolto em papel celofane a ser poupado ateacute a semana seguinte um pedacinho de cada

vez Ou chupado como se fosse bala que assim durava mais (MOSCOVICH 2006

p71 grifo ou do autor)

Assim haacute trechos em que a protagonista narra as experiecircncias dos antepassados em

zigue-zague com outros em que reflete sobre seu engorde retomando o foco no presente Fala

entatildeo de sua dieta em contraste com a vivecircncia de sua famiacutelia com a fome Bisavoacutes avoacutes e pais

ao sentirem fome comeccedilaram a comer mais quando o alimento tornou-se disponiacutevel a eles no

caso da narradora foi preciso fazer o caminho contraacuterio ao sentir fome comeccedilar a comer menos

A referecircncia lsquoVovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e macarratildeo de letrinhasrsquo

demonstra que a loacutegica de sua avoacute era dar consistecircncia e energia agrave comida fornecendo-lhe fontes

de carbohidrato Assim a perspectiva era contraacuteria agrave restriccedilatildeo alimentar a que estava submetida

pelas orientaccedilotildees do meacutedico

Com o frio comer salada doacutei na alma

Sopa de legumes fazia tempo que natildeo preparava o panelatildeo fervente carne aipo

aboacutebora chuchu cenoura couve cebola espiga de milho cortada em rodelas pequenas

Enquanto escrevo a sopa se agita no fogo e um haacutelito bondoso que eacute cheiro de casa

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visita todas as peccedilas Espero a hora de submeter noz-moscada ao ralador e de cortar bem

miuacutedo tempero verde e ovos duros Vovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e

macarratildeo de letrinhas (MOSCOVICH 2006 p68)

A heranccedila para o prazer de comer deu-lhe desde a infacircncia a predileccedilatildeo pelos excessos

Porque a lei era o comer Ela comenta

Noacutes as crianccedilas estaacutevamos em fase de crescimento Como durou a tal fase Anos

Crianccedilas em fase de crescimento precisam comer muito bem para ter ossos fortes e

ceacuterebros ativos para o estudo Portanto a mesa do almoccedilo em nossa casa era farta Aliaacutes

a mesa do almoccedilo em nossa casa era um excesso Mas natildeo um excesso fuacutetil natildeo um

supeacuterfluo sem sentido Nossa mesa queria dizer comam vocecircs natildeo precisam passar

fome Fome eu vim passar adiante quando comecei as dietas (MOSCOVICH 2006

p23)

O aprendizado de exceder era associado natildeo apenas agrave saciedade mas ao prazer agrave ideia de

uma lsquomesa felizrsquo como se pode compreender a partir do seguinte fragmento

Se havia cinco pessoas na mesa de bifes deveria haver por baixo dez Para que natildeo

passaacutessemos pela dureza de medir o que estaacutevamos comendo quantos bifes satildeo meus

quantos satildeo seus Se isso acontecesse papai simplesmente natildeo comia bifes para que

mais houvesse para dividir

Numa mesa feliz natildeo se contam os bifes (MOSCOVICH 2006 p24)

O pai preocupado com o engorde dos filhos passou a adotar a imposiccedilatildeo da disciplina

alimentar riacutegida Para a protagonista a cada aumento dos quilos na balanccedila havia uma nova

ordem para o regime A protagonista lembra-se dessa fase e relata na carta para a matildee o periacuteodo

em que o pai determinou que os filhos fizessem dieta

Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre

com o Fairlane rabo-de-peixe A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos enterrado

o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como eram-

mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos ancorava

no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de construir o corpo

de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo fosse do jeito e na

hora em que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH 2006 p93)

Depois de diversas passagens entre passado e presente haacute uma retomada na histoacuteria em

direccedilatildeo agrave ordem paterna para a dieta pela quebra do carro da famiacutelia o tal lsquoFairlane rabo-de-

peixersquo Isso ocorre pelo excesso de peso na protagonista de seus irmatildeos e de suas tias de lado

paterno Frente agrave ameaccedila de dieta ela reinvindica ldquo[hellip] Entrei em pacircnico Dieta era alguma coisa

horrorosa natildeo comer um monte de coisas principalmente massas e doces eu protestei na busca

de meus direitosrdquo (MOSCOVICH 2006 p203) Ao que o pai linhas depois refere ldquo-Vocecircs vatildeo

fazer dieta E vai ser para toda a vidardquo (MOSCOVICH 2006 p204)

87

Dieta era assim ordem paterna veredicto imposiccedilatildeo e ameaccedila de perda dos direitos Natildeo

poderia ser algo para o bem para a sauacutede jaacute que restringia o prazer de comer o que se gosta De

um lado a Vovoacute Magra tinha deliacutecias em sua sacola de crocheacute para satisfazer o gosto dos netos

de outro o pai definia categoricamente que a lei da casa era a dieta Da avoacute materna com as

guloseimas estava o afeto do pai com a voz de mando o cuidado com a sauacutede Ambas as

manifestaccedilotildees eram a expressatildeo de amor que cada um deles era capaz de oferecer de acordo com

sua histoacuteria e com sua personalidade

Um elemento importante para a compreensatildeo do engorde da protagonista estaacute em sua

infacircncia quando ao contraacuterio do que ocorreu na vida adulta precisou fazer dieta para engordar

Mais uma vez a Voacute Magra tem papel crucial nesse processo conforme mostra o trecho abaixo

Os que me conhecem soacute agora natildeo acreditam Nem eu acredito Ateacute uns sete ou oito

anos eu era uma crianccedila inapetente Vovoacute Magra chegava em casa com pedaccedilos de

alcatra chuletas ou bifes de fiacutegado cortes que ela havia escolhido com ciecircncia no balcatildeo

do accedilougue do seu Jorge Depois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho

direto para a cozinha e ali direto aos armaacuterios Sentava-me junto agrave mesa de foacutermica

Vovoacute dava de matildeo numa pequena frigideira de alumiacutenio com duas alccedilas de baquelite jaacute

retorcidas pelo calor Aacutegua esponja sabatildeo pano de prato Daiacute um fio de oacuteleo Mazola-

ou Sol Levante aquele que estivesse mais em conta na ocasiatildeo- escorria da lata natildeo

muito o suficiente para que uma poccedila dourada se armazenasse no cocircncavo da frigideira

No balcatildeo da pia vovoacute ordenava o pote de sal uma taacutebua de madeira chaira batedor de

bife a faca de corte e o embrulho de papel pardo no qual seu Jorge tinha riscado o total

a pagar Na abertura do pacote lembro aquele cheiro cru e meio arisco o papel

manchado de sangue da pobre vida extinta A faca era passada na chaira em movimentos

agudos um sibilar que me causava arrepio nos dentes Depois com a lacircmina vovoacute

eliminava nervos sebo e outras impurezas que soacute ela podia identificar Finalmente

espalmava os dedos sobre a peccedila de carne e em talhos saacutebios cortava em fatias Agraves

vezes usava o batedor para domar algum pedaccedilo mais resistente tunda de laccedilo na carne

que batia na madeira que batia na pedra que por seu turno estremecia o balcatildeo e todos

os cocircmodos da casa Uma pitada de sal o oacuteleo tinindo recebia a carne com uma

chiadeira labaredas azuladas salpicavam as fatias- daacute-lhe fumaccedila um nevoeiro que

anunciava a forccedila resistindo agrave morte (MOSCOVICH 2006 p35-36)

A Voacute Magra participava da alimentaccedilatildeo da neta natildeo apenas no preparo dos bifes mas

tambeacutem na extraccedilatildeo do sumo que resultava deles e na oferta do caldo agrave protagonista ainda

crianccedila Percebe-se o zelo da avoacute todo esse processo no qual o alimento representa nutriccedilatildeo

fiacutesica e cuidado afetivo

Dado o susto vovoacute colocava os bifes num prato fundo e com um garfo espremia e

espremia ateacute reunir uma boa quantidade de sumo sanguinolento Um pano ajeitado como

babador e entornando um pouco o prato com uma colher de sobremesa dava-me aos

bocados aquela riqueza nutritiva (MOSCOVICH 2006 p36)

88

Ressalta-se o detalhamento com que a narradora apresenta os utensiacutelios de cozinha no

preparo dos bifes e os atos culinaacuterios da Voacute Magra Se natildeo haacute referecircncia direta ao prazer de

comer haacute o conhecimento visceral da avoacute no cozinhar Cada movimento eacute conhecido pelo corpo

e traduzido pelo uso dos utensiacutelios O que marca o trecho eacute o afeto com que a avoacute faz os bifes

para a neta o cuidado que tem com cada nuance do preparo expresso na proacutepria dedicaccedilatildeo e

tambeacutem em especial na frase lsquodepois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho direto

para a cozinharsquo Este eacute um dos trechos emblemaacuteticos da obra em termos de expressatildeo da cozinha

como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico nesta narrativa pois mostra dados como o oacuteleo na frigideira a

destreza com cada instrumento e o zelo no preparo do alimento como reforccedilo nutricional

A narradora segue o relato sobre os bifes que colocam sua matildee em segundo plano

Se vovoacute natildeo vinha o jeito era a senhora mamatildee me sentar na frente do preacutedio reunir

crianccedilas e cachorros da vizinhanccedila ao meu redor e fazendo aviatildeozinho enquanto eu me

distraiacutea me enfiar goela abaixo colheradas de legumes carne e todo o resto que eu

detestava

Natildeo me lembro quando comecei a comer feito gente grande Nunca mais parei

(MOSCOVICH 2006 p36-37)

Haacute uma diferenccedila na percepccedilatildeo da narradora sobre a forma como a Voacute Magra lhe oferecia

a lsquoriqueza nutritivarsquo aos bocados e aquela como a matildee o fazia ao lsquoenfiar goela abaixo

colheradas de legumes carne e todo o resto que eu detestavarsquo O contraste estaacute sobretudo na

expressatildeo do afeto que leva a protagonista o falar em lsquoriqueza nutritivarsquo quando menciona o

cuidado da avoacute e ao referir-se ao termo lsquogoela abaixorsquo sobre o alimento oferecido pela matildee

Possivelmente o prazer de comer tivesse sido originado no afeto ligado ao alimento e ao cuidado

pela avoacute pois eacute das cenas com esta que restaram os principais registros de memoacuteria sugerindo

que a lembranccedila daquele preparo eacute muito mais viva do que aquela da interaccedilatildeo com sua matildee A

frase lsquonunca mais pareirsquo mostra o comportamento de comer como algo que passou a se repetir

sugerindo a presenccedila de prazer que impele agrave repeticcedilatildeo

A partir do ponto em que comeccedilou a comer e entatildeo a engordar junto a seus irmatildeos

instalou-se na famiacutelia a determinaccedilatildeo de regime para os trecircs ordenada pelo pai A protagonista

refere

Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre

com o lsquoFairlane rabo-de-peixersquo A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos

enterrado o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como

eram- mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos

ancorava no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de

89

constituir o corpo de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo

fosse do jeito e na hora que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH

2006 p93)

Quando refere lsquoEssa ordem sei agora era o que nos ancorava no mundorsquo estaacute

expressando que sob a perspectiva adulta consegue ver a razatildeo da imposiccedilatildeo do pai ancorar os

filhos no mundo Estabelecia-se uma dicotomia entre a postura da Voacute Magra que partilhava seu

prazer alimentar com os netos e a do pai que assumia a funccedilatildeo de impor normas aos filhos Para

a narradora essa divisatildeo era contundente a bagagem de carinho da avoacute materna era o paraiacuteso a

forccedila da voz paterna era o inferno restringia definia acusava ordenava proibia O livro traz

todo o conflito da narradora personagem em seu tracircnsito por essa dicotomia ao longo da vida ateacute

apresentar os resultados do excesso de comer em seu corpo os terriacuteveis vinte e dois quilos ou

cento e dez tabletes de manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha

A ordem paterna para a dieta transforma-se na idade adulta na ordem do meacutedico

tambeacutem uma voz impositiva ameaccediladora e acusatoacuteria Essa eacute expressa jaacute no proacutelogo quando a

protagonista conta o motivo de sua reflexatildeo sobre a histoacuteria familiar e a pessoal para

compreender o porquecirc de chegar ao excesso de peso

- Vocecirc natildeo estaacute gorda

Certo meu estado natildeo era transitoacuterio a gordura nunca foi um episoacutedio solteiro em

minha vida eu sabia ele nem precisava ir adiante Mas ele foi

- Vamos fazer suas ceacutelulas adiposas murcharem -Pediu minha atenccedilatildeo com a caneta no

ar- sei que parece injusto mas a natureza a fez assim Vocecirc eacute gorda

Uma vez mais de novo (MOSCOVICH 2006 p15)

A uacuteltima frase lsquouma vez mais de novorsquo refere-se possivelmente agrave lembranccedila sobre o

veredito do pai na infacircncia quando mandou que ela e os irmatildeos fizessem dieta O prazer de

comer tornava-se sempre transgressor da ordem sempre um mundo proibido e recheado de

culpas impostas por terceiros Por mais que ela natildeo quisesse sentir as culpas aprendera que

deveria senti-las para afastar-se do prazer

Com a evoluccedilatildeo da dieta conduzida pelo meacutedico a personagem comeccedila a conseguir

emagrecer e a perda de peso vai ganhando por sua vez gosto de vitoacuteria Emagrecer tambeacutem se

torna um prazer o que reflete a sua conscientizaccedilatildeo para a mudanccedila de haacutebitos e mais ainda

para o seu amadurecimento Haacute na protagonista a consciecircncia de sua responsabilidade pelas

escolhas alimentares e pelo resultado da dieta em sua sauacutede A mudanccedila de postura destaca-se

atraveacutes do termo lsquoum deliacuteriorsquo ponto em que se percebe sua capacidade de avaliar o que pode e o

90

que natildeo pode comer sem precisar ouvi-lo de terceiros A personagem conta o que sente

demonstrando sua disposiccedilatildeo para mudar a atitude frente agrave comida

Uma enorme vontade de comer uma daquelas refeiccedilotildees de estivador arroz feijatildeo ovo

frito massa bife na chapa purecirc de batatas salada de tomate e cebola Tudo num uacutenico

prato fundo e transbordante Para beber uma daquelas cervejas pretas docinhas das

quais se dizia que eram boas para mulheres que amamentavam Sobremesa pudim de

leite

Soacute vontade Um deliacuterio

Descobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um punhado de

parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagado Tambeacutem descobri que atum em lata e

dois ovos duros saciam por mais de quatro horas Uma xiacutecara de cafeacute e um pedaccedilo de

queijo enganam a fome por um bom tempo Disso eu sabia mas tinha me esquecido

Fui verificar meu peso um quilo e novecentos gramas a menos (MOSCOVICH 2006

p125-126)

A passagem acima ilustra um periacuteodo da personagem jaacute adulta em seu progresso durante

a dieta Quando ela diz lsquoDescobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um

punhado de parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagadorsquo (MOSCOVICH 2006 p125-126)

estaacute demonstrando que jaacute eacute capaz de encontrar prazer e sabor dentro da dieta ao inveacutes de lutar

com as restriccedilotildees como fez desde a infacircncia Eacute nesse momento que a comida assume um caraacuteter

de transformaccedilatildeo na narrativa a mudanccedila de postura em relaccedilatildeo ao foco de prazer na comida de

uma lauta refeiccedilatildeo ao novo modo de temperar a salada Como resultado a perda de peso

O significado de tal mudanccedila estaacute justamente na conscientizaccedilatildeo que representa Ao dizer

lsquoSoacute vontade Um deliacuteriorsquo a protagonista expressa conhecer os perigos de lsquouma daquelas refeiccedilotildees

de estivadorrsquo como a que descreve Mostrando a mudanccedila de possibilidades estaacute dizendo a si

mesma que compreendeu que eacute preciso mudar a fonte de prazer para atingir o emagrecimento

proposto pelo meacutedico

Nesse momento aliaacutes a ordem natildeo vem mais do pai natildeo vem mais do meacutedico E nem eacute

mais uma ordem Eacute entatildeo uma escolha E o melhor de tudo parte da proacutepria narradora

personagem em seu percurso no anseio do que pede agrave sua matildee no proacutelogo ldquoMamatildee me

endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar esse territoacuterio

metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora Quero voltar a ter um

corpordquo (MOSCOVICH 2006 proacutelogo)

A voz para a matildee eacute na verdade a voz em que ela se permite emitir essa narrativa Em

essecircncia a voz eacute dirigida a si mesma e o pedido para lsquovoltar a ter um corporsquo segue o verbo

querer na primeira pessoa do singular no presente do indicativo Eacute a afirmaccedilatildeo de um desejo de

91

uma escolha Natildeo eacute o pai natildeo eacute o meacutedico natildeo eacute a interlocuccedilatildeo com a matildee A lei agora eacute sua

segue seu proacuteprio querer Da refeiccedilatildeo de estivador agraves alternativas possiacuteveis a narradora mostra o

que compreendeu eacute agente da proacutepria transformaccedilatildeo eacute emissora da proacutepria voz Tem um corpo

sim Mais do que isso tem um novo querer tambeacutem prazeroso e mais saudaacutevel o

emagrecimento

92

3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS

Levantei-me as pernas agora quase firmes desci os degraus da porta ateacute a calccedilada

buscando algo para comer e o que havia no meu raio de visatildeo era uma carrocinha de

pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me desde que horas ele estava ali se

tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda

agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido Cheguei junto dele remexendo a bolsa

agrave procura de uns trocados que tivessem restado da farra de salgadinhos e biscoitos da

Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada desde entatildeo (REZENDE 2014

p147)

Comida eacute alimento nutriccedilatildeo sobrevivecircncia Eacute palavra feita de carne de aboacutebora de

arroz Tangiacutevel Comemos para nutrir as ceacutelulas mas tambeacutem para garantir nossa autonomia

porque comida eacute escolha eacute expressatildeo de si mesmo gosto disso prefiro aquilo Comida eacute

exerciacutecio de liberdade no quando no quanto no onde no que comer E comer eacute matar a fome e

satisfazer o apetite na comida de rua servida no papel pardo ou na mesa posta com talheres

prato copo guardanapo Comemos intransitivos ou transitivos sozinhos ou acompanhados

Comemos para atravessar mais um dia para seguir existindo como oacutergatildeos viacutesceras cinco

sentidos Mastigar salivar engolir digerir metabolizar excretar eis o trajeto da comida atraveacutes

do organismo tornando-se parte de quem somos E comemos para continuar sendo

31 QUARENTA DIAS

Quarenta dias eacute o livro escrito por Maria Valeacuteria Rezende editado pela Editora Record

em 2014 A narrativa traz a histoacuteria de Alice mulher de meia-idade que a pedido de sua filha

muda-se de Joatildeo Pessoa para Porto Alegre A contragosto deixa sua casa e sua vida as amizades

e os afazeres e segue a demanda da filha para que se torne lsquovoacute profissionalrsquo jaacute que a moccedila e seu

esposo decidem ter um filho

A personagem faz a mudanccedila de tudo o que tem caixas e caixas para a nova cidade em

apartamento escolhido e alugado pela filha e o genro No entanto em um jantar na casa do casal

recebe a notiacutecia de que decidiram passar um periacuteodo fora do paiacutes para suas especializaccedilotildees

acadecircmicas Assim adiaram os planos de gravidez motivo pelo qual ela havia abandonado seu

habitat e aceito uma imposiccedilatildeo pelo desejo da moccedila em ser matildee Partiriam em poucos dias logo

apoacutes Alice ter chegado em sua nova moradia

93

No desterro de seu lar e sozinha na capital gauacutecha a personagem transfere seu territoacuterio

de nutriccedilatildeo para a rua para o espaccedilo representado pelo coletivo pela cidade e natildeo para a cozinha

nova e moderna do apartamento Haacute sobretudo um deslocamento primordial na narrativa a

lsquoexpulsatildeorsquo de suas reflexotildees para as paacuteginas do diaacuterioepiacutestola em que Alice escreve de si

dirigindo-se a uma interlocutora Barbie a figura na capa do caderno que encontrara entre as

caixas da mudanccedila

No iniacutecio de sua vida em Porto Alegre esconde-se em casa fingindo ter viajado para o

interior na casa de primos Entatildeo mune-se de um motivo benevolente que usa para justificar

suas caminhadas a qualquer pessoa com quem encontre a busca freneacutetica pelo rapaz conterracircneo

Ciacutecero Arauacutejo perdido no Sul Nessa missatildeo esquece o proacuteprio endereccedilo e decide por viver um

paradoxo casa que natildeo eacute casa rua que natildeo eacute rua Externo que se torna interno porque eacute parte

dela Rua que eacute casa parece em sendo casa na rua encontra abrigo para a solidatildeo na rua

encontra alimento para as fomes que sente Fome de comida sim mas para aleacutem desta a fome de

ser lsquosi mesmarsquo de novo

Sozinha perde-se de si de seus referenciais familiares dos telefones que tem na

memoacuteria dos sentidos de sua proacutepria vida Tem no desaparecido a razatildeo temporaacuteria para sua

andanccedila sem paradeiro Procurar um jovem de sua terra que veio para Porto Alegre eacute uma boa

desculpa para algueacutem que percorre uma cidade em seus pontos mais perigosos ou naqueles mais

dramaacuteticos como o Hospital de Pronto-Socorro Nem vestiacutegio de Ciacutecero mas laacute encontra um

banco de madeira onde pode dormir

Em seus trajetos transfere o espaccedilo ocupado pela cozinha que eacute o de preparar a nutriccedilatildeo

para um espaccedilo coletivo e itinerante Padarias pequenos botecos nas vilas que percorre carrinhos

de pipoca e de cachorro-quente restaurante da rodoviaacuteria em que escuta um sotaque familiar

comida ofertada aos sem-moradia nas madrugadas Sem desejar voltar para casa Alice passa a

habitar a rua Faz amigos ao longo do caminho pessoas que se preocupam mais com ela do que

sua filha Mas isso ela quer esquecer quer apagar e estabelece um objetivo firme de resgatar um

desaparecido pelos recantos mais insoacutelitos e arriscados da cidade

A representaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo itinerante eacute um fator muito consistente na obra

Porque a cozinha eacute territoacuterio fiacutesico definido por moacuteveis objetos e eletrodomeacutesticos que a

compotildeem mas eacute tambeacutem simboacutelico nela vivem nutriccedilatildeo afeto famiacutelia intimidade Transferir

tal importacircncia para o externo para o alheio a si eacute como um transplante ao contraacuterio

94

O deslocamento na representaccedilatildeo dessa forccedila que transcende o objetivo meramente

nutricional expressa a ausecircncia de ninho vivenciada pela personagem Ela escolhe transplantar

sua vida para o lado de fora da porta escolhe a solidatildeo no meio do coletivo para apagar a solidatildeo

em silecircncio dentro das paredes de uma casa (e natildeo um lar) que a filha e o genro definiram para

ela Ao menos assim eacute ela quem escolhe Autonomia O que comer onde viver onde dormir

onde se banhar Por pior que seja o banho na rodoviaacuteria eacute sua voz eacute sua decisatildeo Por pior que

seja a noite no banco duro de madeira do Pronto-Socorro a pipoca do carrinho que fica ali na

frente o natildeo-ter-para-onde-ir fingindo estar na busca desenfreada pelo desaparecido eacute sua

proacutepria voz que precisa escutar Eacute pelo aparecimento de sua identidade perdida que faz

peregrinaccedilotildees pelos becos mais sombrios por onde se propotildee a percorrer

Ao longo do percurso do livro enquanto parece perder-se cada vez mais de seus

referenciais de sua memoacuteria mais firma o passo mais decide onde ir E suas frases no diaacuterio

vatildeo ganhando pontos-finais ao relatar o ocorrido agrave medida em que se lembra e se torna mais

capaz de contar da redescoberta de sua identidade Na crise da personagem atraveacutes desse

desalojamento de um habitat seguro dessa saiacuteda para fora da porta ocorre a habitaccedilatildeo de um

novo espaccedilo o proacuteprio eu Em seus percursos defronta-se com a perda dos referenciais antigos

da casa de sempre da memoacuteria que lhe permitiria voltar para o eixo seguro da nutriccedilatildeo estaacutevel

na intimidade soacutelida da cozinha

Alice desloca-se durante a maior parte da narrativa Desloca-se de sua terra natal para

Porto Alegre e nessa capital transita entre avenidas principais e becos escondidos entre

viadutos e casas de estranhos entre floriculturas e terrenos baldios Desloca-se de si mesma

quando decide natildeo voltar agrave casa escolhida para ela Escolhida eacute voz passiva voz que ela quer

transcender

Distrai-se com a histoacuteria do desaparecimento de Ciacutecero Arauacutejo com a confusatildeo mental

que se instala entre fome-frio-sono-exaustatildeo Tudo isto para natildeo lembrar volta-se para fora e

desse modo esquece o dentro Desloca o foco das confissotildees que faz a si sendo um diaacuterio para

Barbie como um sucessivo contar de eventos e emoccedilotildees em escritos que mais parecem cartas

Mais uma vez dentro e fora se conjugam pois acontecem num simultacircneo mas estatildeo

dissociados Alice dirige para fora suas reflexotildees para um terceiro entatildeo dissocia-se de si para

olhar para si

95

Em um determinado ponto refere ldquoNatildeo Barbie esta noite natildeo dormi em saguatildeo nem em

parque nenhum Natildeo vecirc como estou bem-disposta a sentar-me pegar a caneta e continuar

escrevendo aqui nesta cozinha depois desta noite bem-dormida na suiacutete deste apartamento que

me esforccedilo para aceitar finalmente como meurdquo (REZENDE 2014 p163)

Estaacute dentro de casa mas ainda natildeo faz parte dela em verdade situa-se fora dali no sentir

Demonstra isso quando usa lsquobem-disposta nesta cozinha deste apartamento como meu me

esforccedilo para aceitarrsquo Tal dissociaccedilatildeo identitaacuteria eacute expressa por um permanente desconexatildeo

consigo Perde-se de sua casa e de seus referenciais para descobrir o paradeiro de Ciacutecero Arauacutejo

com o firme propoacutesito de encontrar um motivo que alinhave seus dias em Porto Alegre dentro de

si o sentido estaacute fora de si Nessa desconexatildeo descobre uma Alice nascente

Chega Barbie agora eu paro mesmo que jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia

guria a solidariedade silenciosa mas agora vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a

mal taacute natildeo digo que seja pra sempre quem sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo

a limpo (REZENDE 2014 p245)

Eacute possiacutevel ler que aquilo que estava fora sua narrativa epistolar para a Barbie seraacute

entregue ao mundo da gaveta o interno e passe a habitar esse lsquodomiciacuteliorsquo escondido Entretanto

Alice jaacute internalizou marcas de linguagem regionais como as tachadas em negrito lsquoguriarsquo e lsquotu

natildeo leva a mal taacutersquo significando esse ponto uma transformaccedilatildeo de aspectos de sua identidade a

incorporaccedilatildeo da linguagem oral como proacutepria Internalizou o que estava fora tornou-o seu

tambeacutem passou a sentir-se parte Como resultado guardou no interno na gaveta seu diaacuterio que

sendo comunicaccedilatildeo consigo era dirigido a um interlocutor

Esse eacute o permanente tracircnsito do livro essa dissociaccedilatildeo permeia cada vivecircncia e eacute atraveacutes

dessa mobilidade que Alice pode ver a si mesma e se transformar Sacudida pelo real perigo de

sua itineracircncia permanente aproxima-se do fim de sua busca por um Ciacutecero que nem espera mais

encontrar

Ao longo da narrativa haacute frases sem ponto final no teacutermino dos capiacutetulos e muitas vezes

com ideias inacabadas Um elemento ligado a esse aspecto eacute o das muacuteltiplas linguagens surgem

epiacutegrafes vindas de outros autores contemporacircneos e em vaacuterias partes do livro elementos

graacuteficos aludindo a folhetos colados no diaacuterio Assim a ruptura da linguagem linear adotando

uma expressatildeo proacutepria eacute composta por frases descontiacutenuas e de outras em que a viacutergula daacute

apenas a pausa necessaacuteria ao ritmo da voz sem preocupaccedilotildees formais com a gramaacutetica

Prevalece aliaacutes o registro do informal com letras maiuacutesculas seguindo viacutergulas interrogaccedilotildees

96

no meio da frase sem uma letra maiuacutescula a seguir e assim por diante trazendo muito mais um

lsquocomo se falarsquo do que um lsquocomo se lecircrsquo

Tal elemento alia-se a um projeto graacutefico que apresenta aleacutem de texto imagens para

contemplar a lsquoformarsquo do livro como um diaacuterio Esta complementaridade toca em um tema de

grande relevacircncia no contemporacircneo a ligaccedilatildeo das artes para expressar um todo que ultrapasse

os territoacuterios particulares uma intersecccedilatildeo de saberes e de poeacuteticas que independentes em sua

importacircncia complementem-se As figuras lsquocoladasrsquo no diaacuterio natildeo parecem ter conexatildeo entre si

mas transmitem a ideia de uma escolha Foram postas ali por Alice Natildeo parece haver unidade

entre as imagens Colagem de figuras mas tambeacutem de vinhetas que se tornam epiacutegrafes sem

conexatildeo aparente entre si Essa ausecircncia de conexatildeo eacute possivelmente o que a obra pretende

comunicar com suas dissociaccedilotildees e com as frases descontiacutenuas agrave medida que a personagem

percorre o trajeto da autonomia as frases vatildeo ganhando finalizaccedilatildeo Ela comeccedila a decidir

Nesse livro a ausecircncia de unidade parece representar exatamente o contraacuterio sua

unidade Outro ponto a ser ressaltado eacute o fato de o diaacuterio ser escrito em uma mistura de tempos

natildeo seguindo a cronologia tiacutepica dos diaacuterios Muito do texto referente agrave eacute registrado em olhar

retrospectivo a todo o periacuteodo e natildeo segue uma ordem temporal tiacutepica em que a escrita iacutentima

sucede cada evento Mistura de tempos e de autores escolhidos para as epiacutegrafes e de figuras

selecionadas para compor o percurso lsquograacuteficorsquo da personagem como a nota da padaria a

propaganda da imobiliaacuteria a divulgaccedilatildeo da cliacutenica de traumatologia e por aiacute vai

Quarenta dias acontece no cerne mais cru da capital as vilas as avenidas movimentadas

a rodoviaacuteria os viadutos de moradores de rua os becos as paradas de ocircnibus o pronto-socorro

os cenaacuterios tiacutepicos de apartamento de lsquocidade grandersquo

Alice eacute uma personagem urbana implantada em Porto Alegre sem colar-se agrave cidade mas

que quanto mais se torna moradora de rua mais se torna pertencente ao mapa porto-alegrense

Mesmo sem perceber Faz-se aderida agraves ruas aos becos agraves vilas aos botecos agraves paradas de

ocircnibus onde dorme Eacute fio da trama quer estar fora porque reluta em aceitar a vida que a ela foi

imposta pela filha Neste processo cria uma vida para si cria um olhar para a cidade que vai

habitando No geruacutendio Alice torna-se parte Faz-se parte quando adentra a rua os viadutos

habitados agrave noite os crimes em matagais o cafeacute e o mate e o cachorro-quente oferecidos pelos

voluntaacuterios na madrugada O banho na rodoviaacuteria o banco duro de madeira onde dorme no HPS

Alice vai tomando voz vai tomando-se de sua voz que haacute tempos natildeo ouvia

97

32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS

Fenocircmenos psiacutequicos como a consciecircncia a memoacuteria a emoccedilatildeo o pensamento e o juiacutezo

criacutetico entre outros satildeo estudados principalmente pelo campo da Fenomenologia Psiquiaacutetrica

esses constituem os pilares para a avaliaccedilatildeo do estado mental de um indiviacuteduo O psiquiatra

examina a qualidade da expressatildeo dos mesmos na entrevista com o paciente verificando se estatildeo

dentro da normalidade ou se apresentam desvios compatiacuteveis com um quadro psicopatoloacutegico

Algumas capacidades satildeo compostas por um conjunto desses fenocircmenos e natildeo apenas por um

esse eacute o caso da autonomia

O indiviacuteduo natildeo nasce com autonomia Esta deve ser estimulada pelos pais desde o

momento em que a crianccedila deixa de mamar no peito e comeccedila a receber a alimentaccedilatildeo soacutelida

Brinca de fechar a boca enquanto a colher vem com a papinha O comer eacute a primeira autonomia

depois da dependecircncia representada pela amamentaccedilatildeo Entatildeo a crianccedila aprende a segurar a

colher entatildeo pouco a pouco os outros talheres Aprende a gostar de comer isso ou aquilo a

apontar o que deseja em seu prato A autonomia vai sendo aprendida na infacircncia pelo engatinhar

e pelo caminhar Segue-se o controle dos esfiacutencteres que vai sendo aprendido o limpar-se o

tomar banho o ficar sem os pais no maternal E tantas outras conquistas ensinadas e estimuladas

para a aquisiccedilatildeo dessa capacidade Entretanto limitaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas podem desde o

iniacutecio da vida restringir seu desenvolvimento

Jaspers compreende as manifestaccedilotildees psiacutequicas tendo como base elementos da

Fenomenologia Desse modo a autonomia resultaria de um conjunto de fatores que em bom

funcionamento determinariam a adequada manutenccedilatildeo dessa capacidade Em contrapartida o

neurocientista Antocircnio Damaacutesio eacute apresentado nesta fundamentaccedilatildeo por suas pesquisas

neurobioloacutegicas sobre o fenocircmeno da consciecircncia na qual aponta existir o nuacutecleo da consciecircncia

de si Nesta estaria o cerne para a autonomia

A escolha e a independecircncia paracircmetros que estatildeo associados agrave essa capacidade

necessitam que haja no ser humano em primeiro lugar a consciecircncia e nesta a consciecircncia de

si a escolha e a decisatildeo acontecem no domiacutenio do pensamento mas envolvem tambeacutem as

emoccedilotildees (representadas pelo afeto e o humor) e o juiacutezo criacutetico Por fim a escolha se realiza

atraveacutes de uma accedilatildeo expressa pela conduta Todos esses elementos satildeo fenocircmenos psiacutequicos que

98

compotildeem a capacidade de autonomia de um indiviacuteduo Quando essa se apresenta reduzida por

algum dos paracircmetros indicados avalia-se a presenccedila ou a ausecircncia de normalidade por

conseguinte avalia-se a existecircncia de psicopatologia Os outros fenocircmenos - atenccedilatildeo orientaccedilatildeo

memoacuteria sensopercepccedilatildeo inteligecircncia e linguagem- estatildeo presentes na avaliaccedilatildeo do estado

mental do indiviacuteduo compondo tambeacutem sua autonomia no entanto apresentam-se em grau de

menor relevacircncia para seu desenvolvimento

Aleacutem de escolha independecircncia consciecircncia de si e decisatildeo outras expressotildees podem

ser associadas a seu exerciacutecio liberdade individualidade vontade self eu Em termos

etmoloacutegicos a palavra autonomiacutea procede do latim autonomĭa e esta por sua vez do grego

αὐτονομία (autonomia) formada por αὐτός (autoacutes) que significa lsquomesmorsquo e νόμος (noacutemos) lsquoleirsquo

ou lsquonormarsquo Assim seria possiacutevel compreender que o significado aponta para a noccedilatildeo de

autonomia como lsquoleis para si mesmorsquo ou seja as leis que o proacuteprio indiviacuteduo define para sua

vida

Considerando a autonomia como capacidade eacute necessaacuterio apontar que em casos de

sofrimento psiacutequico essa apresenta-se muitas vezes reduzida pois o sofrer acaba por reduzir a

possibilidade de o indiviacuteduo sentir-se livre para as proacuteprias escolhas Em ateacute que ponto este

quadro representa uma circunstacircncia normal e a partir de qual se torna patoloacutegico O sofrimento

pode resultar de uma crise vital com duraccedilatildeo por um periacuteodo esperado e apresentaccedilatildeo de

sintomas dentro da normalidade ou pode resultar do adoecimento do indiviacuteduo com sintomas

presentes em intensidade maior e por periacuteodo mais longo A restriccedilatildeo da liberdade e portanto da

autonomia ocorreraacute de acordo com o tipo e com a duraccedilatildeo deste sofrimento Tal diminuiccedilatildeo na

narrativa pode ser vista de dois modos como parte do sofrimento psiacutequico vivenciado pela

personagem e como perda real de sua experiecircncia de autonomia jaacute que teve sua vinda ao Sul

definida pela escolha da filha Natildeo por sua decisatildeo Eacute por perceber-se nesta condiccedilatildeo que Alice

parte na direccedilatildeo de sua autonomia para sentir-se livre novamente

Karl Jaspers apresenta elementos relacionados agrave autonomia em sua obra Psicopatologia

geral sem que esse termo propriamente dito seja conceituado ou explicitado A expressatildeo mais

proacutexima eacute a da consciecircncia do eu considerada dentre o que ele estabelece como lsquofenocircmenos

subjetivos da vida psiacutequicarsquo Esta consciecircncia estaacute na base fundamental para o desenvolvimento

da autonomia ao lado de outro fenocircmeno apontado o da lsquoconsciecircncia do corporsquo

99

Na apresentaccedilatildeo da lsquoconsciecircncia do eursquo Jaspers define quatro componentes o primeiro eacute

o sentimento de atividade uma consciecircncia de atividade do eu Este se refere a tudo o que ocorre

na vida psiacutequica e que o indiviacuteduo identifica como seu a exemplo de percepccedilotildees sensaccedilotildees do

corpo lembranccedilas representaccedilotildees pensamentos e sentimentos Todas essas atividades do eu que

o caracterizam satildeo operaccedilotildees pessoais realizadas em si mesmo e identificadas como proacuteprias e

compotildeem o que o autor denomina personalizaccedilatildeo Quando haacute alteraccedilatildeo desses aspectos usa-se o

termo despersonalizaccedilatildeo fenocircmeno que pode ser descrito como o estranhamento do eu a

percepccedilatildeo de que tudo o que ocorre com o indiviacuteduo eacute na verdade alheio ao mesmo

Tal estranhamento ocorre no mundo das percepccedilotildees junto agrave ausecircncia de sensaccedilotildees

normais do proacuteprio corpo agrave incapacidade subjetiva de recordar-se de dados referentes a si agrave

inibiccedilatildeo dos sentimentos e ao automatismo de processos voluntaacuterios Tudo passa a constituir um

conjunto de atividades alheias ao eu e que em condiccedilotildees de normalidade deveriam ser

compreendidas como proacuteprias

O segundo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia da unidade ou seja a

unidade do eu Esta se refere agrave possibilidade de o indiviacuteduo perceber a si mesmo como unidade

ser um soacute no mesmo instante e natildeo como dois seres distintos ainda que atraveacutes de accedilotildees

diferentes (como ouvir a proacutepria voz enquanto fala e reconhecer que eacute sua proacutepria voz) A

alteraccedilatildeo da unidade do eu ocorre quando haacute um desdobramento da percepccedilatildeo de si observando

o eu como se estivesse fora dele

O terceiro componente da consciecircncia do eu eacute a consciecircncia da identidade ou seja a

identidade do eu Com a frase lsquosou o mesmo de antesrsquo refere-se agrave identidade como a consciecircncia

de ser o mesmo indiviacuteduo no seguir do tempo a constacircncia de si proacuteprio A alteraccedilatildeo deste

fenocircmeno leva o paciente a perceber o lsquoeursquo de um periacuteodo de vida como diferente do lsquoeursquo de

outro periacuteodo como antes e depois da instalaccedilatildeo de uma doenccedila psiacutequica por exemplo

O uacuteltimo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia do eu em oposiccedilatildeo ao mundo

externo e ao outro em que o indiviacuteduo eacute capaz de reconhecer a proacutepria identidade e de percebecirc-la

distinta do mundo externo e da identidade de outra pessoa Existe nesse componente a clara

contraposiccedilatildeo entre este indiviacuteduo e o mundo externo

Tais elementos constituem assim a lsquoconsciecircncia do eursquo base para a percepccedilatildeo das

proacuteprias necessidades e desejos neste sentido constituem tambeacutem a base para as escolhas

individuais no plano do pensamento dos sentimentos e das accedilotildees compreendidas pelo indiviacuteduo

100

como proacuteprias a si Ao lado dos componentes apresentados estaacute a consciecircncia do corpo Sobre

essa consciecircncia Jaspers refere

[] sou consciente do meu corpo como de minha existecircncia e contemporaneamente eu o

vejo com os olhos e o toco com as matildeos O corpo eacute a uacutenica parte do mundo que deve ser

sentida ao mesmo tempo pelo interno e percebida na superfiacutecie Esse eacute um objeto para

mim e sou esse mesmo corpo Satildeo duas coisas diferentes como me sinto

corpoereamente e como me percebo como objeto mas as coisas satildeo ligadas de modo

indissoluacutevel (JASPERS 2000 p95)

De acordo com o autor essa deve ser conhecida do ponto de vista fenomenoloacutegico

mediante a percepccedilatildeo de nossa experiecircncia global com nosso corpo Essa consciecircncia estaacute mais

proacutexima agrave lsquoconsciecircncia do eursquo nas atividades musculares e de movimento mais distantes das

sensaccedilotildees associadas ao coraccedilatildeo e agrave circulaccedilatildeo e ainda mais afastadas das sensaccedilotildees oriundas da

atividade vegetativa Enquanto o movimento eacute resultado das funccedilotildees voluntaacuterias os mecanismos

fisioloacutegicos vinculados ao coraccedilatildeo agrave circulaccedilatildeo e agrave atividade vegetativa satildeo inerentes agrave vida do

ponto de vista bioloacutegico e portanto involuntaacuterios A consciecircncia do corpo associada agravequela do

eu eacute referida por Jaspers por determinados fatores

Temos um sentimento especiacutefico da nossa existecircncia corpoacuterea no movimento e no

comportamento na forma na leveza e graccedila ou no peso na falta de agilidade motora na

impressatildeo que desejamos que nosso corpo desperte no outro no estado de fraqueza ou

de forccedila nas alteraccedilotildees da sauacutede [] A experiecircncia do proacuteprio corpo eacute ligada

estritamente do ponto de vista fenomenoloacutegico com a experiecircncia do sentimento das

pulsotildees instintivas da consciecircncia do eu (JASPERS 2000 p96)

Essas duas expressotildees da consciecircncia a do eu e a do corpo compotildeem o indiviacuteduo capaz

de perceber a si mesmo como unidade com uma identidade constante no tempo uacutenica em si

mesma e contraposta ao mundo externo a si e a outras pessoas De acordo tambeacutem com Jaspers

ldquo[] o corpo eacute a realidade da qual se pode dizer eu sou esse mesmordquo (JASPERS 2000 p383) O

autor refere que ldquo[] a situaccedilatildeo fundamental do ser humano eacute a estar no mundo como ser

singular finito ser dependente mas ter a possibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevel limitado

por confins obrigatoacuteriosrdquo (JASPERS 2000 p352) Em tal reflexatildeo a autonomia do indiviacuteduo

estaacute nesta lsquopossibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevelrsquo determinada pelo autor Entretanto ele

define tal possibilidade associada a confins obrigatoacuterios que delimitam o espaccedilo individual

Jaspers estabelece os limites entre autossuficiecircncia e dependecircncia apontando que somos

seres dependentes em nossa realidade e que a autossuficiecircncia completa eacute um ideal inatingiacutevel

101

[] no homem haacute a tendecircncia a imaginar-se um ser ideal que fechado em si seja

autossuficiente e que satisfeito em si mesmo viva sem sentir necessidade de qualquer

coisa do externo porque ele existe em si mesmo em abundacircncia infinita Se o homem

quiser tornar-se tal ser deveraacute compreender de modo draacutestico que eacute simplesmente

dependente em tudo Ele como ser vital tem necessidades que soacute podem ser satisfeitas

pelo externo Ele deve viver e valer na sociedade para participar aos bens necessaacuterios agrave

vida Ele deve viver com outros seres humanos em reciprocidade (JASPERS 2000

p354)

Assim para Jaspers a consciecircncia de si e a consciecircncia do corpo formam a unidade do ser

individual que pode agir em um espaccedilo mutaacutevel no qual o indiviacuteduo eacute consciente se si mesmo e

das proacuteprias accedilotildees mas cuja autossuficiecircncia eacute condicionada a confins obrigatoacuterios a realidade

externa os bens necessaacuterios agrave vida (alimentos moradia recursos econocircmicos para vestir-se e

deslocar-se por exemplo) e os outros indiviacuteduos com quem este interage em suas relaccedilotildees

interpessoais A autonomia assim acontece dentro de um espaccedilo definido por limites reais do

mundo externo

O neurologista e neurocientista Antonio Damaacutesio assim como Jaspers tambeacutem

estabelece uma associaccedilatildeo direta entre a consciecircncia do eu e o corpo O elemento da consciecircncia

do indiviacuteduo sobre si mesmo eacute denominado por ele de Self e eacute parte da estrutura que define

como consciecircncia Damaacutesio parte da comparaccedilatildeo do ser humano com organismos unicelulares e

estabelece

Uma chave para compreendermos os organismos vivos desde aqueles compostos de

uma uacutenica ceacutelula ateacute os formados por bilhotildees de ceacutelulas eacute a definiccedilatildeo de sua fronteira a

separaccedilatildeo entre o que estaacute dentro deles e o que estaacute fora A estrutura do organismo estaacute

dentro da fronteira e a vida do organismo eacute definida pela manutenccedilatildeo dos estados

internos agrave fronteira E a individualidade singular depende dessa fronteira (DAMAacuteSIO

2000 p178)

A referecircncia de Antonio Damaacutesio estaacute de acordo com a perspectiva de Karl Jaspers no

que tange agrave lsquoindividualidade singularrsquo dentro da fronteira separada do mundo externo a parte de

fora dessa fronteira O neurocientista explicita que o indiviacuteduo singular deve apresentar

sobretudo ldquo[] um grau notaacutevel de invariacircncia estrutural para que consiga oferecer uma unidade

de referecircncia no decorrer de longos periacuteodosrdquo acrescentando que ldquo[] de fato continuidade de

referecircncia eacute o que o self precisa proporcionarrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Essa continuidade de

referecircncia coincide com um dos componentes da lsquoconsciecircncia do eursquo definida por Jaspers aquele

em que o indiviacuteduo permanece com a percepccedilatildeo de si mesmo ao longo do tempo

102

O aspecto que se relaciona agrave reflexatildeo sobre a autonomia a partir da leitura de Damaacutesio

encontra-se em tal continuidade ligada por sua vez ao que ele aponta como estabilidade Este

autor refere que ldquo[] quando refletimos acerca do que estaacute por traacutes da noccedilatildeo de self encontramos

a noccedilatildeo do indiviacuteduo singular E quando pensamos no que estaacute por traacutes da singularidade do

indiviacuteduo encontramos a estabilidaderdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Quando se refere agrave noccedilatildeo de

estabilidade Damaacutesio estaacute na verdade apresentando a ideia de que um organismo vivo deve ter

constacircncia em seu meio interno para manter a vida e essa constacircncia pode ser explicada nas

palavras do autor como ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados internos de modo

que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Ao trazer a noccedilatildeo de constacircncia o autor estaacute falando em organismo e sobretudo em

sobrevivecircncia A chave de sua reflexatildeo reside no fato de remeter-se agrave noccedilatildeo de estabilidade dos

paracircmetros do organismo compatiacuteveis com a vida para chegar ao fenocircmeno da consciecircncia do

eu Damaacutesio aponta que

Um organismo simples formado de uma uacutenica ceacutelula digamos uma ameba natildeo apenas

estaacute vivo mas se empenha em continuar vivo Sendo uma criatura sem ceacuterebro e sem

mente a ameba natildeo sabe sobre as intenccedilotildees do seu proacuteprio organismo assim como noacutes

sabemos sobre nossas intenccedilotildees equivalentes [] O que estou tentando mostrar eacute que o

iacutempeto de manter-se vivo natildeo eacute um avanccedilo recente Natildeo eacute uma propriedade exclusiva

dos seres humanos De um modo ou de outro dos organismos simples aos complexos a

maioria dos seres vivos apresenta essa propriedade O que efetivamente varia eacute o grau

em que os organismos tecircm conhecimento desse iacutempeto Poucos deles tecircm Mas o iacutempeto

estaacute presente quer o organismo saiba disso ou natildeo Graccedilas agrave consciecircncia os humanos

satildeo em grande parte cientes dele (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Eacute possiacutevel compreender entatildeo a referida estabilidade como o iacutempeto do organismo em

manter-se vivo nos seres humanos existe a consciecircncia desse iacutempeto O indiviacuteduo singular

como denomina o autor eacute consciente de sua sobrevivecircncia que ocorre no ambiente interno de

sua fronteira ou seja em seu corpo Para conservaacute-la com a estabilidade necessaacuteria agrave

permanecircncia de vida deve manter constantes paracircmetros internos em sua fisiologia Comer

dormir beber liacutequidos proteger-se de extremos de temperatura urinar e defecar algumas das

funccedilotildees que realizamos conscientemente para responder a essa finalidade cumprimos

necessidades vitais respondemos ao iacutempeto do organismo em manter-se vivo mas o realizamos

com o claro propoacutesito de fazecirc-lo Damaacutesio refere que ldquo[] a cada momento o ceacuterebro tem agrave sua

disposiccedilatildeo uma representaccedilatildeo dinacircmica de uma entidade com variaccedilotildees limitadas de estados

possiacuteveis- o corpordquo (DAMAacuteSIO 2000 p186)

103

A consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo portanto estatildeo na base do indiviacuteduo

singular A manutenccedilatildeo do ambiente dentro da fronteira nosso corpo eacute realizada por nossa

consciecircncia no cumprimento de nossas funccedilotildees vitais de certo modo escolhemos cumprir tais

funccedilotildees ao respeitarmos necessidades fisioloacutegicas entre elas comer e dormir Assim

sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas por um elemento em comum a consciecircncia que o

indiviacuteduo tem de si mesmo Entretanto deve-se salientar que a autonomia eacute uma capacidade que

poderaacute existir em maior ou menor grau durante o ciclo vital pois depende das possibilidades

fiacutesicas e psiacutequicas do ser humano em responder agraves exigecircncias da vida dentro de paracircmetros de

normalidade

Alguns elementos podem restringir a capacidade de autonomia sendo o sofrimento

psiacutequico um deles por reduzir a liberdade de o indiviacuteduo em fazer suas escolhas Tal reduccedilatildeo eacute

determinada pelo proacuteprio sofrimento inerente a patologias psiquiaacutetricas ou a crises vitais como

por exemplo a reaccedilatildeo a um evento traumaacutetico

Massimo Biondi em seu livro A mente selvagem um ensaio sobre a normalidade nos

comportamentos humanos apresenta o viacutenculo do sofrimento subjetivo com a reduccedilatildeo da

liberdade Sobre esse tema discute o limite entre normalidade e psicopatologia quando se aborda

o indiviacuteduo que sofre Segundo esse psiquiatra italiano no capiacutetulo intitulado lsquoO sofrimento

subjetivo e a liberdadersquo que o sofrimento subjetivo e a anguacutestia a reduccedilatildeo ou falta de liberdade e

a reduccedilatildeo da vontade satildeo aspectos que invariavelmente acompanham o distuacuterbio psiacutequico quanto

a este pode-se falar da importacircncia da vivecircncia subjetiva de determinado evento ou situaccedilatildeo

existencial para procurar definir os limites entre a normalidade psiacutequica e a patologia

O sofrimento subjetivo termo empregado por esse autor constitui um criteacuterio para

diversos diagnoacutesticos psiquiaacutetricos e tem como eixos principais a experiecircncia subjetiva e aquela

psiacutequica a primeira referente agrave percepccedilatildeo subjetiva de um evento existencial ou de um

sentimento pode ser avaliada apenas indiretamente por suas manifestaccedilotildees e pelo relato do

indiviacuteduo que sofre A segunda em linhas gerais refere-se agrave resposta do indiviacuteduo em termos

psiacutequicos ou seja atraveacutes de alteraccedilotildees dos fenocircmenos do estado mental conduzindo ao

diagnoacutestico Massimo Biondi aponta quatro componentes do que denomina sofrimento psiacutequico

a) Um estado de sofrimento subjetivo mesmo que natildeo espontaneamente referido pela

pessoa em niacutevel verbal b) uma reduccedilatildeo ou perda da liberdade sobre os proacuteprios

pensamentos e sobre as proacuteprias accedilotildees c) uma alteraccedilatildeo do proacuteprio projeto de existecircncia

104

e da capacidade de projetar o futuro d) uma alteraccedilatildeo reduccedilatildeo ou anulaccedilatildeo da vontade

(BIONDI 1996 p40)

O segundo componente relativo agrave reduccedilatildeo ou perda da liberdade eacute elemento comum e

distintivo que atravessa a existecircncia de pessoas com distuacuterbios psiacutequicos Tal elemento eacute um dos

criteacuterios de patologia psiquiaacutetrica de uma relevante instituiccedilatildeo da especialidade mas natildeo estaacute

restrito apenas aos diagnoacutesticos tal perda estaacute associada ao proacuteprio sofrimento Assim podemos

encontrar em indiviacuteduos que atravessam crises vitais essa perda de liberdade significando

reduccedilatildeo da autonomia de algueacutem que atravessa uma situaccedilatildeo de sofrimento subjetivo sem

necessariamente tal quadro constituir alguma patologia psiquiaacutetrica definida

Ainda de acordo com Biondi um indiviacuteduo pode apresentar um distuacuterbio psiquiaacutetrico

como causa de um evento especiacutefico existem quadros em que o evento estressante tem um claro

papel patogecircnico Nesses casos o sofrimento subjetivo gerado pelo evento aparece como

principal mediador que causa favorece e acompanha o estado psicopatoloacutegico Existem

entretanto condiccedilotildees em que o sofrer subjetivo natildeo eacute indicativo de um estado de doenccedila

propriamente dito mas pode estar associado a condiccedilotildees compreendidas dentro da normalidade

Um estado de sofrimento subjetivo decorre por exemplo de situaccedilotildees comuns e

lsquonormaisrsquo como luto perda de trabalho dificuldades afetivas ou conjugais fracasso escolar ou

profissional natildeo necessariamente evoluindo para um quatro de psicopatologia Algumas

situaccedilotildees inclusive satildeo vivenciadas como positivas pelo indiviacuteduo porque reestruturam algum

foco de seu mundo interno conduzindo a uma mudanccedila na percepccedilatildeo de determinadas

experiecircncias Em tais casos o sofrimento pode ser atenuado ou ateacute mesmo ter um valor

construtivo Eacute possiacutevel refletir que nessas condiccedilotildees a perda da liberdade seja temporaacuteria mas

ainda assim leve agrave melhora do indiviacuteduo em sua perspectiva de vida pois o sofrimento eacute

condiccedilatildeo muitas vezes para a tomada de consciecircncia da condiccedilatildeo humana

Por fim cabe referir a ressalva do proacuteprio autor

[] a normalidade natildeo eacute uma condiccedilatildeo caracterizada apenas pela ausecircncia de sofrimento

psiacutequico Muitos acontecimentos comuns da vida fazem sofrer agraves vezes de modo mais

intenso e persistente em situaccedilotildees totalmente normais [] O problema estaacute em

reconhecer o sofrimento normal daquele que define em sentido estrito alguma patologia

psiacutequica (BIONDI 1996 p53-56)

A reflexatildeo sobre a perda da liberdade inerente ao sofrimento psiacutequico em vigecircncia de

uma circunstacircncia normal ou de patologia psiquiaacutetrica inclui o entendimento de que a autonomia

105

estaacute reduzida quando este sofrimento acontece O indiviacuteduo durante o periacuteodo em que sofre eacute

limitado na capacidade de fazer escolhas saudaacuteveis para si e tal limitaccedilatildeo decorre da dor psiacutequica

propriamente dita Aleacutem de ser menos livre pois o que pensa e sente eacute condicionado por essa dor

o indiviacuteduo acometido sente menos vontade como refere Biondi ao mencionar o uacuteltimo dos

quatro componentes do sofrimento psiacutequico Pode-se novamente referir a reduccedilatildeo da autonomia

pois dela faz parte tambeacutem o fato de ter vontades e de dar voz agraves mesmas

33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA

O que nos move ao comer Brillat-Savarin em A fisiologia do gosto apontou o lsquosentido

geneacutesicorsquo ldquo[] o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro sendo a

sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecierdquo (DOacuteRIA 2009 p190) A referecircncia agrave obra claacutessica na

literatura gastronocircmica feita pelo pesquisador Carlos Alberto Doacuteria em seu livro A culinaacuteria

materialista eacute seguida pela seguinte reflexatildeo apresentada por ele

[] ora a reproduccedilatildeo da espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do

indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo

ao sexo e ao comer eacute o prazer a busca do agradaacutevel [] Precisamos nos encontrar com

o alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduos e isso se daacute por dois caminhos

pelo prazer e pela dor

A fome eacute a fonte de dor e nos leva em direccedilatildeo ao alimento o prazer em comer tambeacutem

nos leva em direccedilatildeo ao alimento antes que a dor nos imponha o seu caminho (DOacuteRIA

2009 p190)

lsquoA busca pelo alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduosrsquo nas palavras do autor

estaacute associada agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo precisamos

manter a vida para preservaacute-la motivo pelo qual nos nutrimos e copulamos A procura por

alimentos viaacuteveis eacute da histoacuteria do Homo sapiens assim como no ato de cozinhar

experimentavam-se teacutecnicas que favorecessem a ingestatildeo de animais e vegetais

Neste ponto cabe a reflexatildeo de que a procura por novos alimentos e o desenvolvimento

de modos para preparaacute-los resultou da iniciativa em descobrir novas possibilidades comestiacuteveis

da capacidade fiacutesica de fazecirc-lo e de vaacuterias capacidades deste homo sapiens Seria possiacutevel

compreender entre estas a autonomia conduzindo agrave compreensatildeo de que teria sido esta

capacidade em suas primeiras manifestaccedilotildees uma das responsaacuteveis pela partida em direccedilatildeo a

animais e vegetais para comer

106

Caberia citar tambeacutem a autonomia como responsaacutevel pelo desenvolvimento da descoberta

de cozinhar os alimentos aleacutem de aspectos inerentes agrave proacutepria evoluccedilatildeo da espeacutecie Desse modo

ela pode ter permitido a sobrevivecircncia em condiccedilotildees muitas vezes desfavoraacuteveis pelas escolhas

alimentares que favoreceu Sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas assim desde tempos

ancestrais conforme refere Carlos Alberto Doacuteria no mesmo livro

Assim como ensina o arqueozooacutelogo Jean-Denis Vigne haacute 30 mil anos o homem jaacute natildeo

comia soacute o que o seu ambiente imediato lhe oferecia por facilidade de captura mas ia

atraacutes de alimentos capazes de satisfazer suas imagens mentais mais fortes e expressivas

em termos sociais Especialmente nas regiotildees frias no Paleoliacutetico Superior sua dieta era

composta de animais com pouca disponibilidade de vegetais Jaacute no Mesoliacutetico o clima

se estabiliza e nas regiotildees temperadas comeccedila a apresentar maior utilizaccedilatildeo de vegetais

Entre 8000-9000 aC e 5000 aC desenvolve-se a dieta moderna em que as energias

humanas satildeo providas por lipiacutedeos e gluciacutedeos originados de animais e plantas

domesticadas Pode-se dizer entatildeo que dessa eacutepoca em diante o homem produz tudo

aquilo que come isto eacute produz a si proacuteprio do ponto de vista alimentar (DOacuteRIA 2009

p3)

Doacuteria aponta ainda o viacutenculo entre a dieta humana e o processo de hominizaccedilatildeo como a

aquisiccedilatildeo da postura biacutepede e por fim a expansatildeo do Homo erectus ao moderno Homo sapiens

que exigiu uma dieta suficientemente rica em calorias e nutrientes Aleacutem desse aspecto o autor

refere o domiacutenio do fogo que permitiu cozinhar os alimentos e seus benefiacutecios

O incremento de calorias se deu graccedilas tanto a ambientes mais favoraacuteveis quanto agrave

adoccedilatildeo da culinaacuteria da agricultura e de criteacuterios de seleccedilatildeo de espeacutecies alimentares

Cozinhar tornou os alimentos mais macios e faacuteceis de ingerir e viabilizou o consumo de

vegetais como a batata e a mandioca que na forma crua natildeo podiam ter seus nutrientes

metabolizados pelo corpo humano Desse modo esses carboidratos complexos se

tornaram digestiacuteveis e multiplicaram ao extremo as possibilidades alimentares Em

siacutentese esses procedimentos aliados agrave seleccedilatildeo de espeacutecies vegetais permitiram

incrementar sua produtividade sua digestibilidade e seu conteuacutedo nutricional (DOacuteRIA

2009 p32)

O Homo sapiens munido de maiores capacidades alimentava-se de forma cada vez

melhor no sentido de incrementar sua sobrevivecircncia nutrindo-se com maior variedade e melhor

qualidade da dieta adquiria novas capacidades e aprimorava aquelas jaacute dominadas resultando em

aumento na capacidade de descoberta de novos ingredientes e de preparo dos mesmos Instalava-

se assim um ciacuterculo entre o desenvolvimento de potencialidades tornando-o cada vez mais

capaz de sobreviver mesmo em condiccedilotildees adversas bem como de agir sobre tais condiccedilotildees

Tudo isso favorecia a vida e a reproduccedilatildeo da espeacutecie Sobrevivecircncia e autonomia novamente

aliadas pelo alimento O pesquisador norte-americano Michael Pollan alude a uma observaccedilatildeo de

Winston Churchill sobre a arquitetura ldquoPrimeiro cozinhamos nossa comida depois ela nos

107

cozinhourdquo (POLLAN 2014 p15) Pollan explica esse fenocircmeno ocupado pelo cozinhar em

nossa biologia

Portanto cozinhar nos transformou e natildeo apenas por nos tornar mais sociaacuteveis e

corteses Uma vez que o ato de cozinhar permitiu que expandiacutessemos nossas capacidades

cognitivas agrave custa da capacidade digestiva natildeo havia mais como voltar atraacutes nossos

ceacuterebros grandes e intestinos pequenos dependiam agora de uma dieta agrave base de

alimentos cozidos [] Isso quer dizer que cozinhar tornou-se compulsoacuterio- estaacute por

assim dizer cozido em nossa biologia (POLLAN 2014 p15)

A partir daiacute toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo incluindo o surgimento da gastronomia

conduz progressivamente a um grau de evoluccedilatildeo deste campo que ultrapassa a lsquomerarsquo demanda

pela sobrevivecircncia e preservaccedilatildeo da espeacutecie A sobrevivecircncia ao que parece natildeo ocupa mais o

centro no universo da cozinha O campo das accedilotildees e estudos ligados ao preparo do alimento

chega em nosso seacuteculo XXI em niacuteveis de superespecializaccedilatildeo e de glamourizaccedilatildeo nunca antes

imaginados Este eacute o caso para citar exemplos da Cozinha Molecular e dos programas

televisivos que invadem as casas com a famiacutelia muito mais atenta ao programa sobre comer do

que ao proacuteprio comer Hoje em dia aliaacutes sobreviver natildeo atinge a categoria de prioridade de

muitos indiviacuteduos fervorosos em sua autonomia contemporacircnea no desejo insalubre pelo prazer

da comida ou mesmo na pressa da vida urbana morrem por comer da pior forma possiacutevel

Para compreender esse processo vale refletir sobre como chegamos ateacute aqui A histoacuteria a

ser contada parte do ato de cozinhar que ldquo[] eacute como dizem os antropoacutelogos uma atividade que

nos define como seres humanos - o ato com o qual segundo o filoacutesofo e antropoacutelogo Claude

Levi-Strauss a cultura surgerdquo (POLLAN 2014 p13) Para Leacutevi-Strauss conforme referido por

Michael Pollan ldquo[] cozinhar servia como uma metaacutefora da transformaccedilatildeo humana da natureza

crua para a cultura cozidardquo (POLLAN 2014 p13) A respeito do papel do cozinhar para a

cultura Carlos Alberto Doacuteria refere

O que une as abelhas no coletivo eacute uma interaccedilatildeo quiacutemica chamada trofolaxe Ora aleacutem

da integraccedilatildeo neurosensorial devemos considerar que a trofolaxe humana eacute a linguagem

Eacute por intermeacutedio da linguagem que estamos acoplados com outros seres humanos e eacute

tambeacutem com ela que partilhamos nossas experiecircncias ateacute mesmo atraveacutes de enormes

distacircncias no tempo e no espaccedilo Nessa trofolaxe a relaccedilatildeo com os sabores do mundo se

daacute ao mesmo tempo pelo aparelho gustativo e pela cultura (DOacuteRIA 2009 p197)

Deve-se considerar a vasta gama de fatos da histoacuteria da alimentaccedilatildeo desde a preacute-histoacuteria

ateacute nosso terceiro milecircnio tendo como eixo a transformaccedilatildeo na cultura produzida pelo cozinhar

a fim de compreender as mudanccedilas exponenciais que a cozinha atravessou ateacute chegar agrave sua

108

representaccedilatildeo contemporacircnea Nesse contexto faz-se necessaacuterio definir os pontos de referecircncia

que marcaram a transiccedilatildeo a partir da qual sobreviver parece ter deixado de ocupar o motivo por

que o indiviacuteduo se alimenta

Um dos aspectos que podem ser apontados como referenciais na transiccedilatildeo acima abordada

eacute o iniacutecio da chamada restauraccedilatildeo ou seja o surgimento dos restaurantes dentro do nascimento

da hotelaria Em especial a existecircncia da comida de rua passa a ter um papel significativo neste

sentido A valorizaccedilatildeo da gastronomia cada vez maior desde o seacuteculo XVIII teve tambeacutem

influecircncia no processo ao deslocar para o prazer dos sentidos principalmente o do gosto o

centro de sua atenccedilatildeo

Entretanto haacute um ponto chave para a mudanccedila do foco da comida de aspecto nutricional

e gregaacuterio a fator de risco para as mais variadas doenccedilas fiacutesicas como a obesidade e a

hipertensatildeo arterial e para aquelas psiacutequicas como a anorexia e a bulimia tatildeo vigentes no seacuteculo

XXI Este ponto em sua origem estaacute no processo de industrializaccedilatildeo que culminou com o

deslocamento do comer da mesa do lar para o local de trabalho De que forma este pode

relacionar-se agrave sobrevivecircncia e agrave autonomia focos deste subcapiacutetulo Por dois caminhos o

primeiro refere-se ao fato de que o deslocamento restringiu as possiblidades de alimentaccedilatildeo e os

empregados ficaram submetidos ao que fosse oferecido em seu trabalho portanto com restriccedilatildeo

da autonomia o segundo caminho refere-se agraves ofertas alimentares propiciadas nos locais de

trabalho pouco dirigidas agrave sauacutede do indiviacuteduo e por extensatildeo ao papel nutricional da

alimentaccedilatildeo equivalente agrave sua sobrevivecircncia

Pode-se falar na evoluccedilatildeo dos centros urbanos e de suas demandas e transformaccedilotildees entre

estas a pressa que tambeacutem restringe as escolhas alimentares possiacuteveis Outra vez a restriccedilatildeo da

autonomia e o prejuiacutezo das escolhas agrave sauacutede Da pressa passamos ao fenocircmeno seguinte aquele

que Maacutessimo Montanari e Jean-Louis Flandrin denominam lsquoA McDonaldizaccedilatildeo dos costumesrsquo

no livro Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo do qual satildeo organizadores A pressa leva ao surgimento dos

fast-food pela sociedade norte-mericana estes por sua vez causam uma lista de patologias

cardiovasculares e oncoloacutegicas por exemplo A pressa e os fast-food tornam-se parte do

fenocircmeno de stress que aumenta a pressa e torna rotineira a alimentaccedilatildeo raacutepida reduzindo a

sauacutede e aumentando ainda mais o stress Instala-se o ciacuterculo vicioso da vida moderna O eixo de

nutriccedilatildeo que uma vez focircra o lar tornou-se a rua

109

Retomando um dos elementos discutidos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute possiacutevel perceber o

modo como as referidas mudanccedilas atingem a sobrevivecircncia Damaacutesio refere que para que um

organismo permaneccedila vivo eacute necessaacuterio ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados

internos de modo que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Em seu ensaio sobre a normalidade dos comportamentos humanos Massimo Biondi

apresenta um capiacutetulo em que aborda a normalidade dos padrotildees fisioloacutegicos de sobrevivecircncia

Explica que

O organismo eacute uma entidade viva Sua vida se baseia em processos bioloacutegicos de base

que devem respeitar algumas caracteriacutesticas A vida humana por exemplo eacute possiacutevel

para temperaturas corporais compreendidas entre 30 e 42deg Acima ou abaixo de tais

temperaturas para aleacutem de um certo tempo a vida eacute impossiacutevel []

Tal conceito vale para muitas outras variaacuteveis estudadas em medicina e fisiologia do

peso agrave altura da frequecircncia cardiacuteaca agrave pressatildeo arterial [] da quantidade diaacuteria de

accediluacutecar no sangue agraves caracteriacutesticas da urina

O criteacuterio da norma bioloacutegica assim como concebido aqui refere-se agrave normalidade de

funcionamento de estruturas bioloacutegicas que caracterizam a vida de um organismo e satildeo

compatiacuteveis com a mesma (BIONDI 1996 p169)

O indiviacuteduo do seacuteculo XXI em posse de sua autonomia acaba por fazer escolhas

alimentares contra a proacutepria sobrevivecircncia pois alteram os padrotildees de normalidade compatiacuteveis

com a sauacutede e em uacuteltima instacircncia com a proacutepria vida eacute o caso do impacto de alimentos do

regime fast-food na sauacutede resultando em diabetes hipertensatildeo arterial e sobrepesoobesidade

Tal resultado entre outros deve-se agrave ingestatildeo excessiva de carboidratos gorduras e

trigliceriacutedeos presentes nesta forma lsquodesnutricionalrsquo

A autonomia desse modo que muitas vezes eacute fonte de extrema valorizaccedilatildeo em tempos

nos quais a individualidade ocupa papel central leva o homem contemporacircneo a atacar a

sobrevivecircncia e natildeo mais a preservaacute-la Nesse ponto da histoacuteria da alimentaccedilatildeo sobrevivecircncia e

autonomia afrouxaram o dar as matildeos De acordo com Michael Pollan ldquoPesquisas de opiniatildeo

confirmam que a cada ano cozinhamos menos e compramos mais refeiccedilotildees prontasrdquo

(POLLAN 2014 p11)

Este autor traz reflexotildees relevantes quanto ao paradoxo do papel da cozinha em nossa

contemporaneidade apontando que ao mesmo tempo que o tempo de cozinhar diminui aumenta

o tempo de dedicaccedilatildeo a assistir programas de cozinha na televisatildeo aleacutem de outras modificaccedilotildees

mencionadas por ele sobre as escolhas alimentares O que chama a atenccedilatildeo na obra de Michael

Pollan eacute o fato de ele mencionar o ponto em que chegamos sob a perspectiva de nossa cultura

110

alimentar global Sendo este um pesquisador reconhecido e respeitado internacionalmente eacute

positivo que exponha em tom pungente os resultados de pesquisas e perspectivas no

embasamento de suas reflexotildees Posiciona-se frente a vaacuterios problemas graves ligados ao modo

de comer de nosso tempo ao mencionar a reduccedilatildeo do haacutebito de cozinhar e suas consequecircncias

ldquo[] natildeo eacute surpresa alguma o decliacutenio do haacutebito de cozinhar em casa coincidir com o aumento da

incidecircncia da obesidade e de todas as doenccedilas crocircnicas associadas agrave alimentaccedilatildeordquo (POLLAN

2014 p16)

O elemento apontado por este autor e que se relaciona agrave relaccedilatildeo entre a comida e as

relaccedilotildees interpessoais declara que a refeiccedilatildeo em famiacutelia deu lugar em larga escala ao comer

sozinho Autonomia praticidade e individualismo parecem estar no centro deste fenocircmeno

A ascensatildeo do fast-food e o decliacutenio da comida caseira tambeacutem abalaram a instituiccedilatildeo da

refeiccedilatildeo compartilhada por nos estimularem a comer coisas diferentes com pressa e

muitas vezes sozinhos Pesquisas dizem que estamos dedicando mais tempo agrave

lsquoalimentaccedilatildeo secundaacuteriarsquo que eacute como denominamos esse costume meio constante de

beliscar alimentos embalados e menos tempo agrave lsquoalimentaccedilatildeo primaacuteriarsquo - termo um tanto

deprimente para a instituiccedilatildeo outrora respeitada e conhecida como refeiccedilatildeo

A refeiccedilatildeo compartilhada natildeo eacute algo insignificante Trata-se de um dos fundamentos da

vida em famiacutelia o lugar onde as crianccedilas aprendem a arte da conversaccedilatildeo e adquirem

haacutebitos que caracterizam a civilizaccedilatildeo repartir ouvir ceder a vez administrar

diferenccedilas discutir sem ofender (POLLAN 2014 p16 grifo do autor)

A autonomia agrave eneacutesima potecircncia deixa de ser uma capacidade para tornar-se uma redoma

Acabamos tornando-nos seres livres em excesso talvez Por termos pressa querermos prazeres e

independecircncia extremos sobreviver passou agrave categoria de um lsquotanto fazrsquo em prol do proveito

maacuteximo do instantacircneo Vale retomar a reflexatildeo de Karl Jaspers sobre a consciecircncia do eu

definida por limites externos e reais nossa autossuficiecircncia eacute delimitada pela dependecircncia que

temos de recursos externos como por exemplo os bens alimentares e das pessoas significativas

em nossa vida Dependemos desses bens assim como dos relacionamentos familiares afetivos e

profissionais todos necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia do ponto de vista fiacutesico e psiacutequico

A autonomia conquistada para sobrevivermos na evoluccedilatildeo da espeacutecie chegou a um grau

de importacircncia em nosso universo contemporacircneo que parece ter ultrapassado o instinto de

preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo Viver a liberdade as vontades e

prazeres sobrepuja o proacuteprio sobreviver Autonomia e sobrevivecircncia parecem ter soltado as matildeos

111

34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI

A leitura do romance Quarenta dias permite identificar a cozinha presente em trecircs

periacuteodos principais da narrativa representados respectivamente por trecircs elementos especiacuteficos

O primeiro aparece nas paacuteginas iniciais quando Alice comeccedila a relatar em seu caderno o

periacuteodo que antecedeu a mudanccedila para Porto Alegre lembrando-se do egoiacutesmo de Norinha sua

filha desde quando ainda morava em Joatildeo Pessoa Tais recordaccedilotildees fornecem pistas do

comportamento da moccedila ao determinar as transformaccedilotildees na vida da matildee para satisfazer seus

interesses

O segundo elemento abrange os primeiros dias da chegada de Alice a inconformidade

com a nova moradia onde a cozinha que define como lsquode show-roomrsquo expressa uma atmosfera

impessoal e asseacuteptica agrave qual ela natildeo consegue se adaptar Aparece nesta etapa o choque de sua

nova realidade e a tentativa de aceite de todas as mudanccedilas de vida impostas pela filha

A importacircncia de refletir sobre os dois elementos apresentados acima estaacute no fato de esses

demonstrarem Alice em sua vida em Joatildeo Pessoa e logo na chegada em Porto Alegre Os dois

periacuteodos expressam o comportamento de Norinha como explicaccedilatildeo para sua conduta egoiacutesta em

relaccedilatildeo agrave matildee e expressam tambeacutem a relaccedilatildeo de Alice com a consciecircncia de si mesma e com a

autonomia Assim os dois periacuteodos anteriores agrave procura por Ciacutecero descritos por ela agrave Barbie

em seu caderno anunciam o porquecirc de desejar a retomada de si mesma durante os dias em que

transplanta sua vida para o espaccedilo urbano

O terceiro elemento por fim refere-se ao tema deste capiacutetulo a comida como

representaccedilatildeo da necessidade de autonomia vinculada ao processo de tomada de consciecircncia de

si incluindo suas escolhas necessidades de sobrevivecircncia gostos e memoacuterias gustativas que satildeo

parte de sua identidade Nesse terceiro elemento que ocupa a maior parte da anaacutelise encontra-se

uma cozinha transplantada para o universo urbano espaccedilo que Alice habita nos quarenta dias

Junto agrave comida expressa por carrinhos de pipoca botecos moradias em vilas- onde lhe

oferecem cafeacute chimarratildeo e algo para comer- padarias e um restaurante de rodoviaacuteria estaacute a

representaccedilatildeo de uma vida cujo cenaacuterio eacute o proacuteprio espaccedilo da cidade no dormir no banhar-se no

comer Eacute neste territoacuterio que Alice procura a si mesma enquanto em suas andanccedilas ela pergunta

por um desconhecido Ciacutecero Arauacutejo dentro de si vai encontrando aquela que eacute capaz de tomar as

proacuteprias decisotildees de sobrevivecircncia Progressivamente recupera a consciecircncia de si e as suas

112

vontades Um fator que deve ser ressaltado estaacute incluiacutedo neste terceiro elemento a ligaccedilatildeo

mesmo que efecircmera que Alice estabelece com as demais personagens da narrativa na maior

parte das vezes esta ligaccedilatildeo ocorre por intermeacutedio da comida que oferecem a ela ou que ela

partilha como no caso de Lola e Arturo

Eacute possiacutevel observar que haacute situaccedilotildees em que o cuidado de desconhecidos para com ela

ocorre ao oferecerem um chaacute um cafeacute um biscoito nas casas de vilas por onde passa o mesmo

cuidado eacute feito por Penha que coloca com esmero a mesa para Alice no restaurante da

rodoviaacuteria tratando-a com gentileza e camaradagem ou pela proacutepria Milena que cuida de Alice

com chaacute e canja de galinha no iniacutecio da histoacuteria quando esta teria voltado doente de sua visita a

Jaguaratildeo Ateacute mesmo Zelima que aparece na cena em que a protagonista se engasga com a

pipoca no Hospital de Pronto Socorro tem uma atitude de cuidado e de preocupaccedilatildeo para com

ela oferecendo-lhe aacutegua e acompanhando sua melhora

Estas breves expressotildees de carinho e zelo atraveacutes do alimento representam na obra a

nutriccedilatildeo que o cuidado interpessoal oferece muitas vezes na linguagem do alimento na vivecircncia

de Alice em sua nova vida porto-alegrense A capacidade de despertar sentimentos de cuidado de

afeto e de preocupaccedilatildeo da parte de outras pessoas demonstra caracteriacutesticas de uma Alice que

retoma o contato consigo que se reencontra

Mesmo com todo o trauma que atravessa a personagem eacute capaz de estabelecer viacutenculos

durante seus caminhos ainda que sejam breviacutessimos ilustram um aspecto de sua personalidade

Eacute algo seu que natildeo se perdeu com o roubo de sua autonomia e eacute justamente por seu modo de ser

que vai estabelecendo pontes para chegar a algum desfecho de sua procura durante a histoacuteria

pontes atraveacutes da comunicaccedilatildeo com as pessoas e comunicaccedilatildeo atraveacutes da comida que lhe eacute

servida das informaccedilotildees que lhe satildeo dadas do cuidado amistoso como no caso de Lola e de

Milena

Embora o foco do presente capiacutetulo seja a abordagem da conquista da autonomia da

personagem atraveacutes de suas decisotildees pela sobrevivecircncia eacute importante enfatizar que Alice em sua

vida em Joatildeo Pesssoa tinha tal autonomia Aleacutem de ter criado sua filha praticamente sozinha

tinha apartamento proacuteprio amigos e projetos reconhecimento de sua atividade profissional como

a lsquosensata Professora Poacutelirsquo conforme diversas vezes se denomina durante a narrativa Essa

capacidade sofreu abrupta reduccedilatildeo pela interferecircncia da filha quando definiu que a matildee iria se

transferir para Porto Alegre para cuidar do futuro neto

113

Este eacute entatildeo o primeiro elemento a ser abordado o egoiacutesmo da filha A conduta de

Norinha deveu-se a esse egoiacutesmo ao natildeo pensar no desejo de Alice e sim nos proacuteprios interesses

Apenas quando escreve a longa lsquocartarsquo para Barbie depois de sua jornada pela cidade a

protagonista eacute capaz de se recordar de episoacutedios antigos com a filha Esses eventos jaacute

denunciavam a postura da moccedila desde o comeccedilo da juventude O trecho a seguir mostra uma

dessas recordaccedilotildees

Ainda meio adormecida fechei a janela e voltei pra cama naquela madorna jaacute perto de

acordar de vez e entatildeo comecei a reviver cenas bobas de muito tempo atraacutes sem

importacircncia completamente esquecidas agora niacutetidas em sonho ou na minha memoacuteria

por que seraacutecoisas assim como o dia em que estava um friozinho excepcional pra

Joatildeo Pessoa e resolvi fazer uma sopa quente pro jantar aproveitando umas batatas-

baroas que tinha achado no mercado Batata-baroa saudade do siacutetio do meu avocirc uma

raridade na cidade mais batata inglesa cenoura cebola e caldo de galinha tudo de bom

O cheiro da sopa no fogo jaacute tinha impregnado a casa quando Nora chegou Vai fazer

sopa hoje Matildeiacutenha Que horas Jaacute estaacute pronta se quiser eacute soacute bater no

liquidificadorComo nunca me esperava pra cear pois iacutea correndo pra faculdade

apenas ouvi vagamente que estava mexendo na cozinha enquanto eu assistia agrave novelinha

das seis Tatildeo distraiacuteda com a novela nem percebi que ela jaacute tinha saiacutedo Tudo bem ateacute

que fui tratar de pocircr a mesa pra mim Soacute tinha sobrado menos de uma concha rasa de

sopa Pasme Barbie ela tinha se servido na tigela do feijatildeo Fiquei danada na hora mas

nada a fazer do que usar a imaginaccedilatildeo Jaacute eram quase sete e meia da noite Entatildeo botei

mais um copo dacuteaacutegua com uma colher de maisena meio tablete a mais de caldo de

galinha e cozinhei ali dentro uma porccedilatildeo de massinha pra sopaque bom que tinha em

casa Tomei entatildeo o resultado como se estivesse tudo normal com apenas um leve

gostinho de batata-baroamas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada

de matildeo-de-vaca (REZENDE 2014 p22)

Vale ressaltar a atitude complacente de Alice frente ao egoiacutesmo da filha no episoacutedio

narrado acima expressa pela frase lsquomas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada

de matildeo-de-vacarsquo A seguir outro fragmento em que Norinha se apossava dos chocolates e das

guloseimas da matildee Alice reflete em sua carta para Barbie sua obediecircncia agraves demandas da moccedila

devidas agraves dietas no comprar lsquocoisas estranhasrsquo na feira

Diversos pontos satildeo referidos como o fato de a filha natildeo se sentar mais agrave mesa com ela e

a atitude de desperdiccedilar as gemas de ovo em suas dietas Um aspecto interessante do trecho

abaixo eacute a memoacuteria de sua avoacute fazendo lsquofios dacuteovosrsquo e quindins como marca de afeto e de

partilha pela comida Assim haacute o contraste do alimento ora como representaccedilatildeo do egoiacutesmo da

filha ao lsquoroubarrsquo seus chocolates e as guloseimas ora como expressatildeo do afeto compartilhado

pela avoacute atraveacutes dos doces que fazia

Cabe ainda a reflexatildeo mais uma vez Alice menciona sua complacecircncia para com a filha

nas frases lsquofielmente obedeciarsquo e lsquoeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar

114

discussatildeorsquo Volta-se desse modo para a frase apresentada no primeiro trecho referida acima

lsquonatildeo dei um pio pra natildeo ser chamada de matildeo-de-vacarsquo A postura de Alice em relaccedilatildeo agrave Norinha

tinha sempre um elemento de passividade de obediecircncia agraves normas e aos quereres da filha

anunciando que a postura da uacuteltima em definir a mudanccedila de Alice mesmo contra a vontade desta

era a continuidade de um comportamento mais antigo na relaccedilatildeo entre elas A protagonista conta

agrave Barbie

Vivia acrescentando coisas estranhas nas minhas listas de feira que eu fielmente

obedeciaeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar discussatildeo Claro de

vez em quando ela dava umas escapadas na dieta principalmente comendo meus

chocolates e umas guloseimas de que gosto e comprava pro meu lanche Afinal eu natildeo

estava de dieta Quase natildeo se sentava agrave mesa comigo comia em peacute na cozinha ia pro

quarto dela comer as gororobas dieteacuteticas que fazia ou se enchia soacute de claras de ovo

jogando as gemas fora Parei de tentar aproveitar pois natildeo dava pra tomar gemada todo

dia natildeo eacute e Voacute natildeo estaacute mais neste mundo pra me ensinar a fazer fios dacuteovos ou

quindinse as gemas que Norinha descartava eram branquelas nada daquele amarelo

vivo dos ovos de capoeira do siacutetio Seraacute que ainda existem fios dacuteovos (REZENDE

2014 p23)

O trecho seguinte refere-se ao segundo elemento assinalado ou seja a inconformidade de

Alice com sua nova vida em Porto Alegre no apartamento que natildeo aceita como seu Nas

referecircncias agrave cozinha lsquode show-roomrsquo a protagonista expressa suas impressotildees sobre o local

montado por Norinha para sua habitaccedilatildeo Haacute diversos momentos em que a comida representa seu

desacerto com a vida montada em um territoacuterio sem referecircncias afetivas sem lembranccedilas dos

quais o fragmento abaixo eacute um exemplo

Alice mostra uma resignaccedilatildeo compulsoacuteria com as ordens da filha uma aparente

concordacircncia com as tentativas de Norinha de abater-lhe a autonomia eacute na contrariedade com o

cenaacuterio esteacuteril da cozinha que define como lsquoalheiarsquo e com os alimentos que tem em casa com as

compras que a filha faz e guarda nos armaacuterios e gavetas que se mostra seu modo de perceber e

de sentir as imposiccedilotildees da mesma

A inconformidade com a vida porto-alegrense aparece em diversas situaccedilotildees na chegada

de Alice ao apartamento aleacutem do trecho acima Percebo em vaacuterios pontos a revolta da

protagonista com os detalhes da cozinha como espaccedilo fiacutesico em outros aparece seu lsquodesacertorsquo

atraveacutes de uma voz criacutetica e ateacute mesmo irocircnica com os alimentos gauacutechos

Assumi consciente e disciplinadamente a atitude que eu jaacute vinha ensaiando havia algum

tempo do ET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes muito maiores

que ele Eu continuava a encolher Engoli obediente tudo o que estava posto sobre a

previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de vidro num canto da sala o chaacute as

115

torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar de chimia a

fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial trazido

natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite morno (REZENDE 2014

p41)

Eacute possiacutevel ler a atitude de engolir lsquoobedientersquo o alimento como representativa de sua

percepccedilatildeo sobre si mesma de ldquoET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes

muito maiores do que elerdquo A obediecircncia em comer aqui ilustra a frase ldquoEu continuava a

encolherrdquo Ela natildeo via o que estava sendo posto na mesa como cuidado com sua chegada por

preocupaccedilatildeo genuiacutena com seu bem-estar entendia isto sim como ldquobenevolecircncia de terraacutequeos

muito maioresrdquo A forccedila da comparaccedilatildeo estaacute no fato de que o comer tambeacutem se tornou objeto de

controle da filha a quem ela passava a ldquoobedecerrdquo Passava a ocupar assim o papel que descreve

como ldquofilha da minha filhardquo (REZENDE 2014 p74)

Neste trecho lecirc-se a contrariedade de Alice na referecircncia que faz agrave cozinha como espaccedilo

fiacutesico ldquo[] tudo o que estava posto sobre a previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de

vidro no canto da salardquo (REZENDE 2014 p74) Ainda que se refira agrave mesa como estando na

sala atribui a ela papel conotaccedilatildeo ligada agrave funccedilatildeo da cozinha como extensatildeo desta pois eacute onde

estatildeo na cena os produtos alimentares oferecidos

Na menccedilatildeo que ela faz a esses produtos estaacute expressa tambeacutem a revolta atraveacutes da voz

irocircnica ldquo[] o chaacute as torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar

de chimia a fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial

trazido natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite mornordquo (REZENDE 2014

p41) Assim eacute na cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico que se expressa na chegada de Alice a

Porto Alegre a representaccedilatildeo de sua recusa em aceitar a vida que lhe foi imposta Haacute referecircncias

expliacutecitas agrave sua revolta mas a forma material da contrariedade eacute demonstrada nessa etapa da

narrativa em diversos episoacutedios ligados agrave cozinha

A manhatilde seguinte agrave chegada no apartamento continua tendo essa peccedila da casa como

cenaacuterio da inconformidade de Alice quando Norinha chega com as compras

Naquela primeira manhatilde sem coragem de decifrar os armaacuterios e eletrodomeacutesticos desta

cozinha metida a besta eu ainda de camisola e roupatildeo agrave mesa do canto da sala

preguiccedilosamente acabando de recuperar como cafeacute da manhatilde os restos do lanche da

madrugada que ficaram largados ali bolo torradas amanhecidas chimia queijo serrano

chaacute frio ouvi barulho de chave na fechadura e me assustei Norinha pelo visto agora

detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas tambeacutem da chave da minha

moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha com almoccedilo

Bem paraibano viu Matildeiacutenha pra vocecirc ir se acostumando aos poucos a quentinha

116

equilibrada entre montes de sacolas de compras Pra abastecer a despensa de minha

Maacuteinha adorada que vai ser tratada como uma duquesa pela sua filhinha preferida []

meteu-se diretamente na cozinha Que tive que fazer malabarismos para conseguir passar

no supermercado pra conseguir passar no supermercado e trazer suas compras depois a

gente acerta natildeo se preocupe com isso por hoje vou ter de sair correndo que este dia da

semana eacute sempre pesadiacutessimo na universidade agraves vezes natildeo daacute tempo nem de fazer xixi

(REZENDE 2014 p47-48 grifo nosso)

A frase em grifo representa a percepccedilatildeo de Alice sobre o controle que a filha assumia

sobre sua vida ldquoNorinha pelo visto agora detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas

tambeacutem da chave da minha moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha

com almoccedilordquo (REZENDE 2014 p48) O controle sobre o cardaacutepio expressa a inconformidade

da protagonista com as imposiccedilotildees de Norinha na sua vida por exemplo escolhendo um almoccedilo

lsquobem paraibano viu Matildeiacutenha para vocecirc ir se acostumando aos poucosrsquo como ela refere Aleacutem

deste aspecto as sacolas de compras lsquoPra abastecer a despensa de minha Matildeiacutenha adoradarsquo

tambeacutem satildeo para Alice representativas dos mandos de sua filha

A direccedilatildeo da filha sobre a rotina da personagem ocorre em detalhes cotidianos como de

fazer e de guardar as compras de supermercado na cozinha do apartamento levar a lsquoquentinharsquo

para o almoccedilo e definir na percepccedilatildeo de Alice que ela deve sair agrave rua entre outras condutas

Tais comportamentos ligados agrave alimentaccedilatildeo demonstram a atitude de Norinha interferindo na

autonomia da matildee procurando ceifar sua capacidade de cuidar de uma nova vida naquilo que eacute

mais individual na sobrevivecircncia a nutriccedilatildeo A contrariedade de Alice agrave cozinha do apartamento

reflete em muito a percepccedilatildeo que ela tem deste ao longo da narrativa em suas referecircncias eacute

possiacutevel compreender que se vecirc presa naquilo que por diversas vezes chama de lsquotabuleiro de

xadrezrsquo Em grande parte essa impressatildeo se deve ao aspecto do local mas o sentimento

transcende essa caracteriacutestica no lsquotabuleirorsquo Alice tem sua liberdade tolhida

O trecho a seguir representa a relaccedilatildeo que se estabelece entre elas nesta etapa inicial da

chegada de Alice a Porto Alegre

Fiquei calada soacute olhando com a boca cheia o naco de queijo grande demais difiacutecil de

mastigar e engolir como todo o resto que havia tempos jaacute vinha entalado na minha

garganta Nem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia em meu nome

gritando aqui da cozinha enquanto desensacava os pacotes e escondia as coisas atraacutes de

sei laacute qual dessas dezenas de portinhas brancas por cima desses azulejos pretos [] e

por aiacute foi Norinha perguntando e respondendo por mim ateacute esvaziar a uacuteltima sacola

bater pela uacuteltima vez todas as portas e gavetas dos armaacuterios da geladeira O almoccedilo eacute soacute

esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenha (REZENDE 2014 p48-49)

117

Um dos pontos que deflagram a atitude de Norinha em ceifar a autonomia de Alice estaacute na

frase lsquoO almoccedilo eacute soacute esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenharsquo como se a matildee natildeo soubesse disso

ou natildeo tivesse capacidade de percebecirc-lo sozinha A filha infantiliza a personagem tomando por

ela decisotildees e condutas (como ir ao supermercado e guardar as compras nos armaacuterios da

cozinha) Ateacute mesmo a verbalizaccedilatildeo das respostas eacute feita por ela sem dar agrave Alice a possibilidade

de expressar-se como na frase lsquoNem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia

em meu nome gritando aqui da cozinharsquo

A resposta emocional de Alice a este iniacutecio de sua vida na nova cidade ainda antes da

revelaccedilatildeo de que Norinha e o esposo adiaram os planos de gravidez estaacute representada no

fragmento a seguir

Fiquei laacute Alice diminuindo mais ainda imprensada entre a mesa e a parede nem sei

quanto tempo tentando me convencer de que ela natildeo se meteria mais de surpresa pela

porta adentro e sabendo que pra rua eu natildeo ia como queria minha filha e natildeo ia mesmo

soacute porque era isso que ela tinha ordenado Natildeo ia natildeo de birra sem nenhuma ideia

nem vontade de fazer nada a natildeo ser andar para um lado e outro naquele tabuleiro de

xadrez minhas pernas dissipando a energia acumulada pela raiva olhar as malas ainda

fechadas as portas desses armaacuterios da cozinha fechadas a pilha de caixas fechadas e de

relance a minha cara fechada refletida na enorme televisatildeo da sala em outra menor no

quarto nos vaacuterios espelhos e vidraccedilas espalhados por aiacute O almoccedilo ficou aqui esfriando

no balcatildeo da cozinha ateacute o anoitecer Daiacute engoli aquilo frio mesmo enquanto deixava o

telefone tocar tocar tocar ateacute desistirem (REZENDE 2014 p51)

Entretanto a protagonista encontra em si mesma a capacidade de autonomia que vinha

adormecida desde quando comeccedilou o processo de mudanccedila determinado pela filha Comeccedila a

aceitar as modificaccedilotildees tomar conta da proacutepria rotina decidir adaptar-se ao apartamento e agrave nova

vida A decisatildeo de aceitar a vida imposta pela filha eacute tomada com autonomia com a sensatez que

remonta a lsquosensata professora Poacutelirsquo Alice torna a instalaccedilatildeo em sua nova moradia algo que

parece originar de uma decisatildeo sua e natildeo apenas de uma imposiccedilatildeo de Norinha Entretanto

expressa que a decisatildeo para tal eacute racional assim como a organizaccedilatildeo metoacutedica da casa que

realiza Sugere que estaacute fazendo de conta que esqueceu lsquode todo o restorsquo

E a sensata professora Poacuteli acabou vencendo pelo menos provisoriamente porque

acordei logo cedo disposta a deixar pra laacute o ressentimento ser realista encarar as coisas

como eram agora como gente grande voltar ao meu tamanho normal pulei da cama me

vesti decentemente explorei as provisotildees que Norinha tinha deixado fiz e tomei meu

cafeacute e danei a desmanchar malas e pacotes a encher gavetas prateleiras e cabides tudo

muito bem-arrumado metodicamente pensando soacute naquilo que tinha concretamente

diante de mim esquecida ou fazendo de conta que esquecia de todo o resto Pronto

[] botando ordem fora e dentro de mim pensava Pesquisei nos armaacuterios da cozinha

achei o que precisava fiz um almocinho pus toalha louccedila talher aqui mesmo nessa

118

espeacutecie de mesa sem pernas de pedra preta embutida na parede e comi com certo gosto

depois de natildeo sei quanto tempo de fastio (REZENDE 2014 p52-53)

Quando Alice menciona lsquopesquisei nos armaacuterios da cozinha achei o que precisava fiz

um almocinho pus toalha louccedila talherrsquo estaacute manifestando sua decisatildeo de procurar acostumar-se

aos detalhes da nova rotina como colocar a mesa O trecho a seguir complementa essa tentativa

Subi de volta confiante tinha tomado minha primeira iniciativa depois de tanto tempo

e isso fazia sentir-me melhor Abri mais umas caixas e arrumei o conteuacutedo Fiz almoccedilo

direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada sesta de uma vida

normal li umas paacuteginas de uma revista apanhada no aviatildeo e como sempre cochilei

logo (REZENDE 2014 p61)

A frase lsquofiz o almoccedilo direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada

sesta de uma vida normalrsquo demonstra sua procura por se adaptar ao cotidiano Alice procura

retomar as reacutedeas da nova vida mesmo sendo esta imposta a ela reassumindo seus afazeres

(lsquolimpar a cozinharsquo) e costumes (a lsquosagrada sesta de uma vida normalrsquo) Tudo isso relata agrave Barbie

no caderno posteriormente sabendo que tais posturas representavam apenas a tentativa em

ultrapassar a dor emocional pela saiacuteda de seu habitat em Joatildeo Pessoa A existecircncia compulsoacuteria

volta a aparecer quando eacute convidada para jantar na casa da filha ao mencionar lsquoeu jaacute estava

pegando jeito de me comportar como filha da minha filharsquo conforme se lecirc abaixo

Pois Umberto vai passar aiacute pelas sete horas que eu vou correr pra preparar um

comerzinho bem bom e trazer a senhora pra jantar com a gente botar a conversa em dia

vai ser uma deliacutecia vaacute se aprumar bem bonita que daqui a pouco ele estaacute batendo aiacute

Que remeacutedio senatildeo obedecer Eu jaacute estava pegando jeito de me comportar como filha da

minha filha (REZENDE 2014 p74)

No jantar referido Alice eacute informada por Norinha sobre a viagem do casal para o exterior

postergando o projeto da maternidade motivo de sua mudanccedila para Porto Alegre No primeiro a

lsquolasanha da verdadeirarsquo o lsquomelhor vinho da serra gauacutecharsquo e a lsquocuca de arrasarrsquo satildeo elementos

regionais que a filha oferece como forma ao que parece de apresentar agrave sua matildee as benesses do

territoacuterio em que esta deveraacute habitar no segundo a expressatildeo lsquoe eu soacute com a tarefa de garfar o

que me serviam e emitir de vez em quanto um huuuummm apreciativorsquo exprime a posiccedilatildeo

passiva que a protagonista reconhece assumir frente agraves imposiccedilotildees da filha Neste jantar tem fim

o periacuteodo de interaccedilatildeo de Alice com Norinha na narrativa demarcando a conclusatildeo de uma etapa

da histoacuteria a chegada da personagem agrave cidade

119

A seguir dois fragmentos que retratam a comida como fator de suposta agregaccedilatildeo

familiar mas escondem atraacutes do lsquoFiz jantar especialrsquo o desrespeito e o egoiacutesmo da moccedila quanto

agrave sua matildee Esta ficaraacute sozinha em uma cidade desconhecida sem referecircncias apoacutes ter tido que

abandonar sua terra natal em nome da exigecircncia da filha A atitude de falar da cuca como um

doce de seu completo desconhecimento ilustra agrave escassa familiaridade de Alice com as tradiccedilotildees

da regiatildeo como na frase lsquoum bolo recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima

gostoso de fatorsquo Os trechos definem a atmosfera aparentemente agradaacutevel da refeiccedilatildeo em

famiacutelia imposta por Norinha antes de esta fazer a revelaccedilatildeo que interferiraacute na vida de Alice

culminando na busca de sua autonomia O papel da comida neste ponto do livro eacute o de lsquoadoccedilarrsquo

a personagem para receber a notiacutecia da viagem da filha e do genro

Fiz jantar especial uma lasanha da verdadeira o melhor vinho da serra gauacutecha uma

cuca de arrasar vocecirc vai provar hoje uma cuca tudo receita da minha sogra vai adorar

jaacute estaacute com apetite natildeo eacute soacute de ouvir dizer entatildeo como estaacute sendo sua primeira

semana em Porto Alegre (REZENDE 2014 p74)

Umberto parecendo distraiacutedo dando soacute palpites lacocircnicos sempre concordando com a

mulher dele e eu soacute com a tarefa de garfar o que me serviam e emitir de vez em quando

um huuuummm apreciativo ateacute terminar de comer e aprovar a tal cuca um bolo

recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima gostoso de fato

(REZENDE 2014 p75)

A partir desse jantar Alice volta para sua casa e suspende os contatos com o casal Tem

iniacutecio assim o papel da comida ligada agrave recuperaccedilatildeo da autonomia perdida

Quando sai para a rua imbuiacuteda da missatildeo de procurar por Ciacutecero Alice sabe que sua

decisatildeo ultrapassa a descoberta do rapaz Eacute por si mesma pela capacidade de cuidar de si de

decidir mesmo as questotildees mais baacutesicas de sobrevivecircncia apoacutes Norinha ter tomado conta de sua

vida e de suas resoluccedilotildees Alice decide decidir Nesse sentido passa a guiar-se por suas

necessidades vitais como fome sono e banho por exemplo todos eles transplantados para o

espaccedilo urbano onde decide habitar apenas para natildeo voltar para o lsquotabuleiro de xadrez seu

apartamento

Mesmo quando esquece onde mora a permanecircncia nas ruas continua sendo uma escolha

pois poderia ligar para a prima Elizete que tem seu endereccedilo no entanto opta por natildeo fazecirc-lo

Durante o periacuteodo duas buacutessolas guiam seus rumos a procura por Ciacutecero que daacute sentido agrave

peregrinaccedilatildeo como um aacutelibi para justificar as andanccedilas e o natildeo-retorno para casa e a

120

manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do que escolhe comer de onde decide dormir e banhar-se

por exemplo

Uma das primeiras decisotildees de Alice eacute a de esconder-se em casa nos primeiros dias apoacutes

a revelaccedilatildeo sobre a viagem de Norinha e Umberto para o exterior e o adiamento dos planos que

ocasionaram sua mudanccedila para Porto Alegre

Cinco dias de fartura de letras quase jejum de qualquer outra comida o silecircncio cortado

soacute ateacute o comeccedilo da tarde do segundo dia pela ainda prazerosa estridecircncia do telefone

com perverso gosto de vinganccedila que me enchia a boca e quase me bastava como

simulacro de refeiccedilatildeo (REZENDE 2014 p87)

Protege-se em casa lendo livros e deixando o telefone tocar a nutriccedilatildeo estaacute fora do eixo

da comida nesse sentido pois Alice alimenta-se do isolamento que consegue estabelecer Assim

esse eacute o iniacutecio da retomada de sua autonomia atraveacutes das escolhas que comeccedila a fazer por si de

modo independente ao controle da filha Decide natildeo mais se submeter mesmo que a atender o

telefone A nutriccedilatildeo estaacute baseada na autonomia na independecircncia que retoma mais do que nos

proacuteprios alimentos nesse ponto da narrativa Quando refere lsquocom perverso gosto de vinganccedila que

me enchia a boca e quase me bastava como simulacro de refeiccedilatildeorsquo o que se pode ler eacute que a

salvaguarda da sobrevivecircncia estava apoiada na sua capacidade de reagir agrave filha de impor sua

vontade contrariando a imposiccedilatildeo de Norinha

A histoacuteria sofre a guinada maior quando Alice recebe a incumbecircncia de procurar por

Ciacutecero a missatildeo daacute sentido ao seu caminho aos seus dias A missatildeo de encontrar o rapaz eacute o

fator que move a personagem a sair de seu apartamento e a desafiar-se em espaccedilos urbanos

desconhecidos de uma cidade que ainda eacute para ela uma cidade estranha Este seraacute tambeacutem um

modo de se esconder da filha de Elizete e de todos que a possam encontrar Alice decide

descobrir o paradeiro de Ciacutecero para encontrar consigo mesma Aquela lsquosensata professora Polirsquo

capaz de tomar decisotildees e de gerenciar a proacutepria vida estaacute desaparecida de si

Na partida para a Vila Maria Degolada ela tem o primeiro contato com a comida das ruas

e botecos Ao sair de casa sem ter se alimentado obriga-se a comer para saciar a fome esta eacute a

primeira expressatildeo do comer como decisatildeo de sobrevivecircncia

Passei diante de uma portinha aberta quase invisiacutevel entre duas casas um balcatildeozinho

prateleiras com umas poucas mercadorias e uma caixa de vidro com lamentaacuteveis

empadas e coxinhas ou coisa parecida sobrevoadas por uma mosca preguiccedilosa Era

pouco mais que aqueles fiteiros de rua laacute de Joatildeo Pessoa e pode ter sido por isso entrei e

por pouco natildeo pedi uma tapioca de queijo Pedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer

121

de comer Leite natildeo havia fui soacute de cafeacute e uma coxinha engordurada de anteontem

caloria bastante para eu continuar minha peregrinaccedilatildeo Quem servia era um homem jaacute

idoso nada a ver com as imagens de gauacutecho de churrascaria que eu tinha pregadas na

imaginaccedilatildeo nem alto nem louro nem moreno bigodudo de chapeacuteu preto lenccedilo

vermelho laccedilo no ombro e bombacha bufante Baixinho e coxinho com um resto de

bigode fino um bonezinho achatado na careca camisa branca encardida e um lenccedilo

branco amarrado no pescoccedilo Comi paguei e me animei a perguntar pra onde ficava a tal

Vila Maria Degolada (REZENDE 2014 p96-97)

lsquoPedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer de comerrsquo eacute uma das frases que aponta para

o papel da comida nesse momento da histoacuteria o de saciar a fome O alimento em sua funccedilatildeo

primordial eacute o mote desse trecho jaacute que aqui Alice natildeo quer comer algo saboroso e sim que lhe

forneccedila forccedilas para seguir o percurso

Segui em frente olhando pro chatildeo emburrada passo firme e decidido lsquoCiacutecero Arauacutejo

Vila Maria Degolada Ciacutecero Arauacutejo Vila Maria Degoladarsquo revigorada pelo sal a

gordura e a cafeiacutena ateacute chegar manhatilde alta numa avenida larga sem ter mais nenhuma

ideia de pra que lado ficava o apartamento onde eu devia morar (REZENDE 2014

p97)

A atitude determinada de Alice frente ao objetivo eacute o lsquopasso firme e decididorsquo

complementado pela referecircncia que ela faz ao efeito da comida em seu acircnimo para chegar agrave Vila

Maria Degolada lsquorevigorada pelo sal a gordura e a cafeiacutenarsquo A personagem expressa nessa

uacuteltima frase o reforccedilo ao papel do alimento em saciar a fome e em fornecer energia

Nos caminhos que vai percorrendo junta folhetos de propaganda papeacuteis soltos e

guardanapos todos como base para escrever pedaccedilos de livros que encontra Um desses folhetos

representa a visatildeo de Alice sobre sua avoacute que aproveitava as gemas para preparar doces de sua

origem portuguesa e sobre sua filha que desperdiccedilava as gemas para preparar omeletes de

claras para a dieta Essa evocaccedilatildeo de lembranccedilas em relaccedilatildeo agrave avoacute e agrave filha a partir de uma

divulgaccedilatildeo impressa traz mais uma das funccedilotildees do alimento nessa etapa da histoacuteria aleacutem da

expressatildeo de autonomia o resgate de si atraveacutes das recordaccedilotildees de suas origens Lembrar-se de

sua avoacute eacute remontar uma parte de sua proacutepria construccedilatildeo pessoal e portanto estaacute incluiacutedo na

procura de Alice por sua identidade separada das ordens e determinaccedilotildees de Norinha

Uma ialorixaacute me deu um papelzinho com receita de uma simpatia natildeo exatamente pra

achar filho perdido era pra juntar famiacutelia desunida Mas pode crer que ajuda se tu fizer

com feacute soacute precisa quatro quindinsonde eacute que eu iacutea achar quindins veio-me por um

instante a lembranccedila das gemas de ovo desperdiccediladas por Norinha saudade da minha

avoacute portuguesa exilada laacute no sertatildeo e de seus doces de ovos os quindins que ela

aprendeu a fazer com coco lamentando sempre natildeo poder fazer sua brisa do Lis como a

de Leiria por falta das amecircndoasescrever o pedido pocircr os quindins em cima polvilhar

accediluacutecar cristal e espetar nos doces quatro flores amarelas quatro moedas acender quatro

122

velas e deixar tudo numa praccedila olha aiacute Barbie o papelzinho ficou junto com o resto dos

que se foram acumulando na minha mochila com as costas cheias de frases copiadas de

livros (REZENDE 2014 p116-117)

A necessidade de encontrar consigo mesma estaacute pungente na personagem uma soacute palavra

que remeta a seu passado serve para as recordaccedilotildees surgirem como os lsquoquindinsrsquo que na

verdade natildeo servem como alimento e sim como parte da simpatia Eacute como se a palavra fosse

uma porta para suas lembranccedilas e uma vez aberta faz que muito seja recordado e refletido

Alice segue pela Vila Maria Degolada agrave procura de Ciacutecero e vai tendo contato com

moradores que a ajudam andando pela vila atraacutes de pistas do rapaz Durante as horas que

permanece ali a comunicaccedilatildeo entre ela e as pessoas que a recebem eacute feita em grande parte pelos

alimentos que oferecem para ela comer ou beber Alice descobre novos sabores regionais na

receita ou apenas no nome e sobretudo conhece novas pessoas ao longo do trajeto O que decide

comprar nos botecos ou aceitar nas casas como os salgados os biscoitos ou o cafeacute ralo deve-se

principalmente a satisfazer as necessidades fiacutesicas de fome e sede Mais uma vez a comida

representa a manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Entretanto surge para essa novo papel o de saciar a

necessidade de contato humano de trocas e de interaccedilatildeo social

Nem sei quantos cafeacutes ralos engoli Pra te animar vai bebe nem sei quantas cuias de

chimarratildeo recusei Natildeo sou daqui natildeo sou da Paraiacuteba na minha terra natildeo eacute costume

cheguei haacute pouco ainda natildeo aprendi a tomar Mas logo acostuma que um amargo eacute coisa

boa demais bom pra sauacutede pro estocircmago pra tudo Todos sem falhar queriam ajudar

indicavam uma rua uma viela uma direccedilatildeo onde sim havia gente de lsquolaacutersquo Sei laacute quantas

coxinhas empadas comi e paguei pelas biroscas da Vila Maria Degolada nome que eu

logo parei de usar porque percebi que natildeo era do agrado de ningueacutem ali Ia aprendendo

coisas e nomes a comer dedo-de-negro que logo domestiquei como parente de nossa

sorda cortada em tiras e groacutestolis que identifiquei como a calccedila-virada da minha avoacute

portuguesa Tudo o que me fizesse esquecer Norinha e o apartamento preto e branco me

servia bem (REZENDE 2014 p117)

A passagem pela vila na procura por Ciacutecero tinha outra funccedilatildeo primordial dentro de

Alice a de natildeo retornar para o apartamento e para a vida que lhe foi imposta Com tal propoacutesito

decide prosseguir Percebe-se capaz de fazer escolhas a seu favor quando se pergunta lsquoe agorarsquo

pois responde que voltar para o apartamento natildeo lhe atrai lsquode jeito nenhumrsquo

Jaacute passava um pouco das quatro da tarde eu tinha andado desde as sete da manhatilde

sentando-me raras vezes quando alguma mulher mais atenciosa puxava uma cadeira de

dentro de casa e me oferecia pra descansar na sombra ou em algum boteco o tempo de

comer uma empadinha ou uma cueca-virada E agora Voltar pro apartamento natildeo me

atraiacutea de jeito nenhum Por que natildeo continuar pro novo destino provisoacuterio que me

indicaram Apesar de entatildeo jaacute achar tudo aquilo bastante suspeito (REZENDE 2014

p123)

123

Prosseguindo para o Hospital de Pronto Socorro surgem trecircs cenas relevantes em que o

comer eacute expresso como satisfaccedilatildeo da fome e reestabelecimento do acircnimo na primeira Alice

percebe a fome e decide procurar o que comer na segunda come de forma tatildeo afoita as pipocas

que se engasga na terceira eacute socorrida por Zelima senhora que a ajuda reforccedilando que o

cuidado de terceiros tambeacutem tem uma funccedilatildeo quando o comer eacute representado na obra

1) Cansaccedilo absoluto e fome fincaram-me no meio do saguatildeo zonza olhando aquela

larga porta aberta pra nada Um lugar vago num dos bancos era tudo o que me restava

Ali desabei e fiquei de olhos fechados e a cabeccedila pendendo sobre o peito como tantos

outros sentados naquele natildeo lugar esperando minhas pernas pararem de tremelicar

pensando apenas nelas e na sensaccedilatildeo do meu estocircmago oco Natildeo sei quanto tempo parei

ali Lembro-me de que afinal a fome venceu abri os olhos puxei o celular da bolsa pra

ver as horas a bateria estava descarregada procurei em torno e vi um reloacutegio na parede

do saguatildeo jaacute passava das nove da noite levantei-me as pernas agora quase firmes desci

os degraus da porta ateacute a calccedilada buscando algo pra comer e o que havia no meu raio de

visatildeo era uma carrocinha de pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me

desde que horas ele estava ali se tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia

inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido

Cheguei junto dele remexendo a bolsa agrave procura de uns trocados que tivessem restado da

farra de salgadinhos e biscoitos da Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada

desde entatildeo (REZENDE 2014 p147)

2) Puxei um bolinho de notas de dois reais e umas moedas estendi-as ao homem ele

escolheu o que correspondia ao preccedilo do saco de pipocas e me entregou tudo sem

trocarmos uma palavra Escorei-me no poste junto da carrocinha e enfiei na boca de

uma soacute vez o maior punhado de pipocas que pude sem me importar com as poucas que

escaparam e foram ao chatildeo Engasguei-me a boca seca e cheia tentando segurar a tosse

pra natildeo fazer chover mais pipoca pra todo lado mas natildeo consegui as ex-professora Poacuteli

cuspiu um jorro de piruaacutes tossiu de se acabar encostada num poste de lugar nenhum o

mundo escurecendo (REZENDE 2014 p147-148)

3) Zelima sentou-se ao meu lado segurando fielmente o meio copo de aacutegua e o meio

pacotinho de pipocas e assim que me recompus devolveu-me aquele simulacro de

refeiccedilatildeo dizendo Come que tu estaacute fraca bebe o resto da aacutegua para empurrar Soacute

balancei a cabeccedila obedeci ela recolheu os invoacutelucros vazios e foi jogaacute-los numa lixeira

na calccedilada voltou e sentou-se de novo junto a mim em silecircncio (REZENDE 2014

p148-149)

O percurso tem continuidade na manhatilde seguinte quando decide encontrar uma padaria

onde encontra aleacutem da satisfaccedilatildeo da fome um ambiente onde conversa e ri sobre o

desconhecimento de termos regionais como o nome de lsquocacetinhorsquo para o patildeo francecircs Nutre-se

desse modo do alimento e do contato humano ldquoAprumei o espinhaccedilo apanhei a bolsa e saiacute

novamente com passo firme destino certo uma padariardquo (REZENDE 2014 p159) A

protagonista chega no destino esperado saciando a fome de comida e de afeto

Cafeacute com leite cacetinho na chapa e riso me puseram em quase perfeita forma por

dentro e pelos proacuteximos instantes mas restava um tanto consideraacutevel de dor no corpo e

uma vontade enorme de me deitar e dormir decentemente

124

[] Quando saiacute olhei bem o nome da padaria e da rua pra voltar quando precisasse

encontrar um conhecido amigaacutevel como se eu jaacute soubesse quantas vezes precisaria

voltar (REZENDE 2014 p161)

Alice come quando tem fome dorme quando tem sono Respeita a sobrevivecircncia em sua

procura pelo desconhecido Ciacutecero A vida eacute no espaccedilo da rua do parque das avenidas das

padarias das carrocinhas de pipoca e de cachorro-quente

Quem mais usa orelhatildeo neste mundo ocirc Alice te liga no segundo deles o fio do

telefone pendia cortado mas na mesma esquina havia uma lojinha de venda e conserto

de celulares Sim o homem podia carregar pra mim Pelo menos uma carga raacutepida de

emergecircncia ateacute tu chegar em casa soacute dois pilas senta aiacute Abanquei-me no tamborete

oferecido mas meu estocircmago natildeo queria esperar mais nem um minuto e vi pela porta

uma carrocinha de cachorro-quente do outro lado da esquina Fui laacute e voltei trazendo o

patildeo com salsicha montes de mostarda escorrendo no guardanapo de papel e o luxo de

um saquinho de batata frita uma latinha de refrigerante o tamborete agrave sombra a parede

fresca para encostar as costas Seraacute que cochilei

Paguei agradeci saiacute comprei mais um cachorro-quente da carrocinha e natildeo pensei mais

em telefonar a Elizete nem queria saber endereccedilo nenhum nem voltar pra lugar

nenhum soacute continuar agrave toa Agrave toa Que nada (REZENDE 2014 p170-171)

Alice sabe natildeo estar agrave toa volta a ser dona de suas escolhas sejam elas quais forem Vai

retomando a consciecircncia de si mesma dos referenciais de sua histoacuteria de vida das lembranccedilas

ajudam a reconstruir sua identidade como quando refere a recordaccedilatildeo de lsquoum cafeacute com leite que

ao longo da vida sempre me parecia como soluccedilatildeo para pequenas dores pequenos desconfortosrsquo

Um vento mais frio me fez fugir da sombra procurar um resto de sol com vontade de

tomar alguma coisa quente um cafeacute com leite que ao longo da vida sempre me aparecia

como soluccedilatildeo pra pequenas dores pequenos desconfortos e fui em busca de um bar

lanchonete Achei um botequinho que me serviu leite ralo com cafeacute de garrafa teacutermica

ainda havia de aprender a tomar chimarratildeo mas me bastou

Depois de confortada pela bebida morna e accedilucarada saiacute agrave toa de novo esquecida de

Ciacutecero Arauacutejo [] (REZENDE 2014 p176)

Esquecer-se de Ciacutecero Arauacutejo significa neste ponto da histoacuteria que a aproximaccedilatildeo

consigo mesma torna-se mais importante Essa retomada de si atraveacutes do conforto de uma

lsquobebida morna e accedilucaradarsquo corresponde ao respeito aos seus referenciais de memoacuteria durante a

vida Alice vai remontando dados de si peccedilas de um mosaico desordenado pela mudanccedila de vida

mas que agrave medida que segue um percurso aleatoacuterio ou lsquoagrave toarsquo passa a ser o caminho para o

contato com suas caracteriacutesticas Quanto mais retoma a si mesma menos se ocupa de Ciacutecero

Este ocupar-se de si eacute traduzido pela procura por satisfazer as funccedilotildees vitais mas tambeacutem pelos

pequenos confortos que passa a permitir-se obter como a cena que transcorre na rodoviaacuteria

125

Nesse local o lsquoprato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos colherrsquo eacute a

expressatildeo da mudanccedila da personagem ao longo da histoacuteria pois essa passa a querer saciar a fome

com uma refeiccedilatildeo digna e natildeo mais com lanches de rua O garfo e a faca nesse sentido

representam a imagem de um comer para aleacutem do aspecto de saciar a fome evocam a ideia da

comida no prato posta agrave mesa e natildeo mais agrave rua sentada em um tamborete ou em peacute Eacute

interessante observar a referecircncia que faz ao cachorro-quente paraibano como forma de remontar

suas origens na reconstruccedilatildeo que faz de si

Decerto era preciso pagar e eu tambeacutem precisava comer uma refeiccedilatildeo decente como

havia dois dias natildeo comia impossiacutevel continuar vivendo de salgadinho refrigerante e

cachorro-quente de salsicha Se pelo menos fosse o bom cachorro quente paraibano com

tudo quanto haacute um verdadeiro prato feito dentro de um patildeo muita carne moiacuteda mais a

salsicha se quisesse verdura ovo ou qualquer outra coisa ou tudo junto o que a gente

pedisse aqueles abundantes molhos vermelhos de colorau escorrendo pelos lados

alimentando ou entupindo o freguecircs davam a sensaccedilatildeo de saciedade por um bom tempo

Mas aqui natildeo Eacute um patildeo com uma salsicha e a mostarda fraco demais pra mim eu natildeo

podia mais queria um prato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos de

colher Ali devia haver de tudo mas custava dinheiro (REZENDE 2014 p184)

Ainda na rodoviaacuteria onde consegue tambeacutem tomar banho vai decidindo adotar accedilotildees de

cuidado consigo como a lembranccedila da pasta de dente Progressivamente Alice ocupa-se de

retomar as rotinas de higiene de alimentaccedilatildeo e de sono Mais uma vez menciona a refeiccedilatildeo

completa o lsquogrande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdurarsquo Haacute a

noccedilatildeo de conforto na ideia de comida servida no prato e sobretudo no termo que ela usa

lsquocomida quentinharsquo

Dei-me conta de que pouco importava eu natildeo tinha sabonete nem sabatildeo nenhum mas

me lembrei confortada da pasta de dente que restava do aviatildeo guardada na bolsa pra

depois do grande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdura o

que fosse que eu havia de comer antes de procurar um canto pra dormir (REZENDE

2014 p187-188)

Na evoluccedilatildeo da procura por uma refeiccedilatildeo decente a protagonista encontra o restaurante

de Penha tambeacutem paraibana Descobre a coincidecircncia durante o jantar enquanto ouve a

proprietaacuteria falando ao telefone A forma como recebe a refeiccedilatildeo com o cuidado de Penha em

oferecer-lhe a comida agrave mesa junto agrave constataccedilatildeo de um sotaque familiar fazem com que Alice

se sinta confortada

1) Andei um pouco procurando onde comer e achei um restaurantezinho com um

aspecto muito simples limpo uma mulher com um jeito vagamente familiar do outro

lado do balcatildeo uma oferta Prato Feito R$ 350 Ai Barbie com que apetite me sentei

126

numa das duas mesinhas em frente ao balcatildeo e pedi meu PF uma latinha de refrigerante

Esperei meu olhar desgarrado acompanhando e abandonando cada um que passava

pensei Daiacute a poucos minutos a mulher sem nada dizer com uma das matildeos desdobrou agrave

minha frente uma toalhinha azul engomada a ferro com a outra depositou meu prato

quentinho acreditei ver o vapor subindo da comida talheres limpos enrolados num

guardanapo de papel imaculado um copo impecavelmente limpo a latinha gelada e ateacute

palito que eu nunca usei nem ia usar mas me acrescentavam conforto todos aqueles

adereccedilos em torno da minha fome soacute pra mim bem sentada numa cadeira de encosto as

matildeos limpas me sentindo toda limpa apesar da roupa usada e ataquei o prato com

voracidade tentando conter-me para natildeo comer depressa demais pra aquele prazer durar

bastante (REZENDE 2014 p192)

2) Quando a outra paraibana acabou o telefonema eu me levantei com o prato jaacute vazio o

copo ainda meio cheio me encostei ao balcatildeo e entreguei a louccedila mas continuei ali

tomei mais um gole do meu refrigerante e perguntei Vocecirc eacute da Paraiacuteba natildeo eacute Ela disse

Sou sim como eacute que sabe Ouvi umas palavras matildeiacutenha painho Campinatambeacutem sou

de laacute (REZENDE 2014 p193)

3) Acordei maldormida por conta do frio mas sem dor no corpo a rodoviaacuteria jaacute se

enchendo de gente juntei meus tereacutens e fui tomar cafeacute na bodeguinha de minha

conterracircnea que agravequela hora bem cedo jaacute havia reassumido seu posto (REZENDE

2014 p194)

Alice decide retornar ao restaurante de Penha na manhatilde seguinte permitindo-se tomar o

cafeacute da manhatilde Quando refere lsquobodeguinha da minha conterracircnearsquo jaacute expressa o conforto de

sentir-se familiar agrave Penha como forma de novamente encontrar referecircncia agrave sua Paraiacuteba Assim

como em outros fragmentos jaacute referidos a comida representa natildeo apenas o aspecto vital de

nutriccedilatildeo mas tambeacutem o do contato humano que propicia a exemplo do zelo com que a

proprietaacuteria coloca a mesa para Alice

Satisfeita em suas necessidades a personagem retoma sua busca por Ciacutecero Arauacutejo

seguindo a sugestatildeo dada por Penha para que fosse ao Campo da Tuca Laacute novo aproximaccedilatildeo

com seus referenciais atraveacutes do queijo de manteiga da rapadura e da plaquinha lsquotemos carne de

solrsquo

Procurando por Ciacutecero Alice encontra partes de sua terra Reencontra a si mesma atraveacutes

do contato com conterracircneos como Penha e outros do Campo da Tuca e de alimentos de sua

regiatildeo

Fui dando a volta ao campo de futebol e dei com uma bodeguinha que me cheirou a

nordestina encostei na porta olhei percebi logo o acerto de minha intuiccedilatildeo em cima do

balcatildeo havia uma caixa de vidro com queijo de manteiga e uma pilhazinha de rapaduras

na parede do fundo um cartaz Temos carne de sol Eu natildeo via ningueacutem depois percebi

movimento num canto mais ao fundo algueacutem arrumando prateleiras chamei Por favor

ele veio na hora pra entabular conversa perguntei O senhor tem mesmo carne de sol e

ele pesaroso Acabou esta manhatilde vendi o uacuteltimo pedaccedilo quase guardei pra mim mas a

freguesa antiga amiga laacute da minha terra insistiu e vendi pra ela semana que vem chega

mais se a senhora voltar na quarta ou quinta-feira eacute de certeza que vai ter carne de sol

aqui porque o primo que me manda jaacute despachou estaacute chegando era ateacute pra ter chegado

127

ontem [] olhe tem um queijinho de manteiga de primeira esse acabou de chegar

tenho mais laacute dentro a senhora pode levar quanto quiser esse eacute do bom bota na brasa

na frigideira e fica uma beleza assado natildeo vai se arrepender leve um pedacinho do

queijo pra esperar a carne de sol assim mata a saudade (REZENDE 2014 p200-201)

Alice ouve o sotaque familiar recebe acolhimento nas famiacutelias por onde procura por

Ciacutecero Natildeo encontra pistas dele mas descobre a cada novo trecho pistas de si mesma e de suas

raiacutezes

Suelen me conduziu de casa em casa gente do sertatildeo do litoral da Vaacuterzea do Brejo da

Paraiacuteba uns tantos Ciacuteceros por certo mas nenhuma notiacutecia de Ciacutecero Arauacutejo nem nas

casas de outros Arauacutejos Comi tapioca com coco tomei cafeacute refresco de cajaacute A gente

arranja algueacutem traz e guarda no freezer sempre tem mas natildeo achei Ciacutecero

(REZENDE 2014 p204)

Ela sabe que Ciacutecero eacute um pretexto em sua procura Reconhece que seu propoacutesito principal

natildeo eacute o de encontraacute-lo mas sim o de continuar sobrevivendo pelas proacuteprias pernas tomando as

proacuteprias decisotildees Quando menciona que se forccedilava a crer sabe que sua busca era por si mesma

Salgadinhos e cachorros-quentes mastigados agraves pressas ou com exagerada lentidatildeo a

depender do interesse dos assentos disponiacuteveis ou do cansaccedilo das pernas e as andanccedilas

sem fim com objetivos mentirosos nas quais eu mesma me forccedilava a crer Ciacutecero Arauacutejo

sumindo e reaparecendo segundo seus caprichos e minhas necessidades []

(REZENDE 2014 p213-214)

Em uma nova padaria ela alimenta-se de lsquopatildeo na chapa e cafeacute com leitersquo repete o pedido

para permanecer ali por mais tempo lsquomatutandorsquo Quando refere a si mesma naquela condiccedilatildeo

como lsquoalimentada e decididarsquo mostra que sobrevivecircncia e autonomia estatildeo lado a lado eacute capaz

de cuidar de si e de tomar as proacuteprias decisotildees mesmo que sejam como a de dormir em um sofaacute

ao relento coberta com o plaacutestico-bolha

Andei mais um pouco passei por uma padaria senti fome voltei entrei patildeo na chapa e

cafeacute com leite sentei-me em uma das duas mesinhas com tamboretes pedi mais patildeo

com cafeacute e encompridei minha permanecircncia ali matutando ateacute comeccedilarem a puxar a

primeira porta de ferro Entatildeo alimentada e decidida debaixo de um ceacuteu despejado

voltei ao sofaacute que laacute me esperava deserto deitei-me em cima da bolsa os joelhos

apoiados na mochila presa pelas alccedilas agraves minhas canelas agasalhei-me com meu

plaacutestico-bolha e dormi minha primeira noite ao relento sem nada sobre a cabeccedila senatildeo

estrelas (REZENDE 2014 p217)

A frase jaacute apontada lsquoalimentada e decididarsquo mostra a ideia de que a alimentaccedilatildeo eacute

combustiacutevel de sua sobrevivecircncia e de sua capacidade de decidir por si o que fazer Cada vez

mais a protagonista da narrativa se percebe protagonista da proacutepria vida

128

No seguimento de seus dias na rua Alice encontra Arturo e Lola moradores de rua Com

eles compartilha o lugar de dormir e as refeiccedilotildees interage afeiccediloa-se com amizade Arturo a

quem ela apelida de lsquoChapeleirorsquo acorda-a para que receba dos voluntaacuterios o lanche da

madrugada

Eu dormi Barbie pela primeira vez eu dormi na rua literalmente de verdade a noite

quase toda ateacute comeccedilar a clarear laacute fora Foi o Chapeleiro que me acordou sacudindo

meu ombro com sua fala arrevesada lsquoCha bem a chente do pan y do cafeacute no perde esse

pan com cafeacute dessos pibes eacute bueno eacute quente conforta son pibes Buenosrsquo

A cada parada saltavam jovens dois rapazes e uma moccedila com copos de plaacutestico

garrafas teacutermicas e embrulhinhos de papel pardo distribuindo-os Quando chegou a

minha vez vi primeiro aacutegua quente pras cuias como a do Chapeleiro jaacute a bomba em

riste um pacotinho de erva-mate pra quem pedia e a oferta de cafeacute com leite bem

accedilucarado que eu preferi mais um cacetinho com manteiga e uma espeacutecie de mortadela

ou outro afiambrado qualquer Vou lhe dizer Barbie embora o copinho fino quase

queimasse a matildeo aquilo me pareceu um presente do ceacuteu eu quase sem dinheiro nenhum

e tatildeo longe da padaria do meu amigo pra ir pedir-lhe fiado outro cacetinho na chapa e

um cafeacute com leite (REZENDE 2014 p224)

Lola eacute personagem de grande relevacircncia na narrativa pois estabelece com Alice uma

relaccedilatildeo de amizade e de cuidado Recebe-a em sua casa mesmo com toda precariedade que esta

estrutura tem a oferecer Daacute agrave protagonista a confianccedila de poder dormir laacute quando quiser Alice

retribui compartilhando com ela as refeiccedilotildees que faz Mesmo com pouquiacutessimo dinheiro que

ainda lhe sobra ela divide com Lola a comida que consegue comprar O alimento aleacutem de nutrir

o corpo nutre a amizade funciona como instrumento de partilha e de gratidatildeo pelo acolhimento

que recebe da nova amiga A seguir trecircs fragmentos que ilustram o cuidado muacutetuo entre elas

1) Natildeo tive coragem de fazer perguntas sobre aquilo tudo preferi oferecer-lhe com um

resto de dinheiro que catei nos bolsos e na carteira um cafeacute com patildeo na padaria mais

proacutexima que ela aceitou e comeu com gosto nenhuma de noacutes duas ligando a miacutenima

pros olhares enviesados que nos cercavam Tu vem todo dia dormir aqui tu eacute direita tu

pode aprende o caminho Eu vinha sim sem duacutevida nenhuma e fomos cada uma pro

seu lado eu memorizando pontos de referecircncia pelo caminho (REZENDE 2014 p232)

2) Dormia em seu terraccedilo dividia com ela minhas parcas refeiccedilotildees lia seus livros

embolorados Ela nunca me perguntou mais nada desde o primeiro encontro em que lhe

contei e ela duvidou da minha histoacuteria de filha neto Ciacutecero e tudo mais que ouviu com

um risinho descrente (REZENDE 2014 p236)

3) Guiavam-me o amanhecer e o entardecer a chuva o frio o sol a fome que eu

resolvia com qualquer coisa natildeo mais de dez reais por dia a menor quantia que o caixa

eletrocircnico cuspia agraves vezes suficientes pra mim e pra Lola Dias e dias Nada mais na

minha aparecircncia nem de leve acho me distinguia dos outros (REZENDE 2014

p239)

Ao final da narrativa Alice narra como terminou seus quarenta dias de rua jaacute sem

dinheiro ainda encontra um modo de se alimentar vendendo os livros que comprou mendigando

129

aacutegua em bares Sua condiccedilatildeo deteriorada chega ao limite e entatildeo natildeo mais se parece apenas mas

se torna moradora de rua pela proacutepria escolha de natildeo voltar ao apartamento Natildeo eacute mais guiada

pela procura por Ciacutecero mas sim por aquela de sobreviver

Esmoreci de vez sem banho sem comida rasgada desmantelada deixei-me cair em

mais um banco indiferente aos olhares se eacute que algueacutem me via cochilei e acordei mil

vezes saiacute pra rua tocada pela fome a esmo coragem nenhuma de pedir nas portas de

remexer no lixo vendi no sebo meus livros novos de 199 pela quantia suficiente pra trecircs

cachorros-quentes bebi aacutegua de torneira mendigada em balcotildees de bares Jaacute natildeo tinha

mais nada a perder (REZENDE 2014 p244)

Quem ajuda Alice na decisatildeo de retomar sua vida de voltar a seu apartamento eacute Lola Ao

estimulaacute-la a telefonar para Elizete para pegar o endereccedilo de sua casa Lola cuida de Alice

acordando-a de madrugada e oferecendo-lhe lsquoa metade de um patildeo dormido e uns goles do seu

chimarratildeorsquo Aqui o alimento eacute para dar forccedilas agrave personagem mas eacute acima de tudo representativo

do cuidado e do carinho que se estabelece entre elas Alice reconhece

Ela afinal acreditava mais do que eu me sacudiu no lusco-fusco da madrugada Vai

sai desse buraco isso natildeo eacute pra ti tu soacute natildeo esquece da gente Obedeci sem resistecircncia

Lola me deu a metade de um patildeo dormido uns goles do seu chimarratildeo Toma pra tu

aguentar ateacute laacute levou-me a um orelhatildeo talvez o uacuteltimo que ainda funcionava telefonei

pra Elizete a cobrar tirei-a da cama na madrugada (REZENDE 2014 p245)

Quando refere lsquoobedeci sem resistecircnciarsquo natildeo se trata de uma obediecircncia passiva como

aquela que se instala com a filha no iniacutecio da narrativa eacute sim o resultado de sua quarentena a

compreensatildeo de si mesma e de suas necessidades de sobrevivecircncia que natildeo mais podem ser

satisfeitas na rua pela falta de dinheiro Alice constata que seu percurso em direccedilatildeo agrave si mesma

chega ao fim que jaacute eacute capaz de comeccedilar uma nova vida em Porto Alegre agora com o passo

firme de quem eacute capaz de decidir natildeo mais apenas sobreviver mas viver a rotina como se

apresenta A protagonista natildeo estaacute mais resignada agrave vida que lhe foi imposta mas compreende

que chegou aos proacuteprios limites e que retomou sua autonomia ldquoChega Barbie agora eu paro

mesmo jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia guria a solidariedade silenciosa mas

agora eu vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a mal taacute Natildeo digo que seja pra sempre quem

sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo a limpordquo (REZENDE 2014 p245)

Sem ponto final o paraacutegrafo mostra a caracteriacutestica da narrativa muitas vezes com frases

inacabadas Entretanto aqui a falta do ponto denota a abertura agraves possibilidades do que refere

como lsquopasso tudo a limporsquo Alice assume elementos da linguagem gauacutecha como o uso do lsquoguriarsquo

130

do lsquotursquo e do lsquotaacutersquo expressando a iniciativa pela assimilaccedilatildeo de elementos regionais em sua nova

fase depois de fazer todo o relato de sua mudanccedila de vida nas paacuteginas do diaacuterio

Em todo o percurso de sua procura por si mesma pelo resgate de sua autonomia o

alimento assume diversas conotaccedilotildees Pode-se compreender a cozinha em Quarenta dias como

um fator que marca etapas da histoacuteria de Alice desde a sopa que prepara em Joatildeo Pessoa ateacute o

patildeo dormido que recebe de Lola tanto representada pelo aspecto da comida como por aquele da

mobiacutelia dos instrumentos que satildeo parte do preparar o alimento e do comer Aleacutem disso eacute

possiacutevel transplantar a cozinha para o externo na histoacuteria como representaccedilatildeo da vida que Alice

decide tomar fora da vida que lhe foi imposta A cozinha representa a autonomia e natildeo mais a

obediecircncia agrave filha A consciecircncia do corpo por sua vez as necessidades de fome sede sono e

higiene pessoal que satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa

Cabe compreender a consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo ambas definidas por

Jaspers na procura que a protagonista faz por si mesma a partir da capacidade de tomar decisotildees

a favor do que deseja e precisa e natildeo a favor da filha Aleacutem disso relembra diversos elementos

de sua identidade a partir de referenciais de sua terra encontrados em Porto Alegre como um

sotaque familiar de Penha ou os sabores paraibanos ou mesmo na evocaccedilatildeo dos doces de sua

avoacute que os quindins da simpatia fazem-na evocar A recordaccedilatildeo do cachorro-quente paraibano

que compara com aquele soacute de patildeo e salsicha gauacutecho faz com que as memoacuterias ajudem em sua

reconstruccedilatildeo no que tange agrave consciecircncia de si A consciecircncia do corpo por sua vez pode ser lida

na iniciativa de Alice por satisfazer as necessidades de fome sede sono e higiene pessoal que

satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa

Um ponto de grande importacircncia eacute a interaccedilatildeo com outras pessoas que tambeacutem consiste

em necessidade de sobrevivecircncia Alice sai do isolamento em que passa os primeiros dias do

choque imbuiacuteda de encontrar Ciacutecero Nesta missatildeo conhece pessoas com quem conversa e

partilha mesmo que seja uma breve aproximaccedilatildeo Nutre-se dessas trocas aleacutem da nutriccedilatildeo pelo

alimento Coloca-se em situaccedilotildees em que eacute escutada em que tem sua necessidade atendida como

nas vilas que percorre na procura pelo rapaz nos botecos e restaurantes onde vai recebe o que

pede no restaurante de Penha recebe o zelo de uma mesa posta de Zelima no Pronto-Socorro

recebe cuidado e preocupaccedilatildeo

131

Atraveacutes da necessidade de sobreviver e da missatildeo de descobrir o paradeiro de Ciacutecero

Alice redescobre sua capacidade de tomar as reacutedeas da proacutepria vida que atribuiacutera agrave filha Norinha

logo que chegou em Porto Alegre

132

CONCLUSAtildeO

Italo Calvino ao se referir agrave atividade do escritor afirmou ldquoEscrevemos para tornar

possiacutevel ao mundo natildeo escrito de exprimir-se atraveacutes de noacutesrdquo (DANZI 2007 p140) O que ele

denomina lsquomundo natildeo escritorsquo eacute a proacutepria vida real percebida pelo indiviacuteduo por seus cinco

sentidos e vivenciada atraveacutes das emoccedilotildees e dos pensamentos Desse lsquomundo natildeo escritorsquo

portanto fazem parte o cozinhar e o comer o partilhar as refeiccedilotildees e seus sabores o vincular-se

aos demais entre outras vicissitudes da experiecircncia humana Atraveacutes do ofiacutecio do escritor essas

condiccedilotildees satildeo representadas no texto literaacuterio

A escolha por estudar o universo da cozinha neste contexto permite expressar diversas

perspectivas atraveacutes da literatura Silvana Ghiazza estudiosa das relaccedilotildees entre cozinha e

literatura expotildee que

O alimento enquanto signo significa portanto algo aleacutem de si mesmo media conteuacutedos

ligados ao universo cultural revela conexotildees com a realidade histoacuterico-social com o

conjunto profundo da identidade individual e coletiva constitui em suma um polo de

agregaccedilatildeo de diversas dimensotildees de humanidade torna-se uma forma de linguagem natildeo-

verbal organizando-se em paralelo a outras linguagens em um orgacircnico sistema de

sinais desta forma pode tornar-se entatildeo uma chave de leitura transversal da realidade

Ateacute daquela literaacuteria (GHIAZZA 2015 p19)

De acordo com a mesma autora ldquo[] pode-se falar de comida ou atraveacutes da comidardquo

(GHIAZZA 2015 p20 grifo nosso) No termo lsquoatraveacutesrsquo empregado por Silvana Ghiazza estatildeo

as possiacuteveis aplicaccedilotildees da cozinha na literatura em que a primeira a cozinha eacute um veiacuteculo para

que a segunda a literatura exprima na linguagem do escritor uma seacuterie de circunstacircncias dos

personagens e da trama

Mais uma vez Silvana Ghiazza colabora para a compreensatildeo do sentido da comida e sua

relaccedilatildeo com a literatura quando esclarece

A comida pode ser presente como objeto em sua concreta materialidade no interno da

representaccedilatildeo marcando a natureza realiacutestica da proacutepria estrutura narrativa pode

contribuir a delimitar as coordenadas espaccedilo-temporais fornecendo referecircncias a

produtos pratos haacutebitos de um tempo e de um territoacuterio determinado pode tambeacutem

assumir um significado metafoacuterico mediando conteuacutedos diversos e simboacutelicos A

relaccedilatildeo com o alimento em termos de sua conotaccedilatildeo identitaacuteria pode servir ao autor para

tratar o caraacuteter das personagens e pode tornar-se uma forma de comunicaccedilatildeo

interpessoal uma linguagem natildeo-verbal A comida pode ainda constituir o campo

semacircntico do qual o autor se serve para as escolhas lexicais de sua escritura

(GHIAZZA 2015 p20)

133

A expressatildeo da cozinha no texto literaacuterio serve valendo-nos da referecircncia de Italo

Calvino a que este lsquomundo natildeo escritorsquo se exprima atraveacutes do escritor A partir da leitura da

autora entende-se que esse lsquoexprimir-sersquo poderaacute ocorrer por meio de trecircs funccedilotildees principais a

denotativa a conotativa e a comunicativa Sobre a primeira denotativa Silvana Ghiazza explica

As referecircncias a produtos alimentares a pratos e a receitas assim como a rituais haacutebitos

ou eventos ligados agrave realidade gastronocircmica de um tempo preciso e de um territoacuterio

definido contribuem sem duacutevidas para dar veridicidade verossimilhanccedila agrave narrativa

marcando sua estrutura realiacutestica (GHIAZZA 2015 p24)

As trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea escolhidas para compor o corpus

desta dissertaccedilatildeo apresentam o universo da cozinha atraveacutes da funccedilatildeo denotativa nos elementos

compreendidos como espaccedilo fiacutesico material Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo as

referecircncias agraves tradiccedilotildees culinaacuterias judaicas em seus pratos receitas e praacuteticas satildeo representadas

por essa funccedilatildeo Em O arroz de Palma podemos ler em produtos como o arroz a lata de azeite

de oliva e o bacalhau a presenccedila da cultura portuguesa configurando tal funccedilatildeo em Quarenta

dias a mesma estaria representada pelas carrocinhas de pipoca e de cachorro quente pelas

padarias e comidas de botecos de rua pois satildeo elementos que datildeo verossimilhanccedila agrave estrutura

narrativa em que a personagem passa a habitar as ruas da cidade durante a sua procura

A respeito da funccedilatildeo conotativa em situaccedilatildeo oposta agrave anterior Ghiazza explicita

As referecircncias agrave esfera alimentar natildeo tecircm o escopo de marcar a verossimilhanccedila e o

realismo da obra fornecendo informaccedilotildees do tipo denotativo realistico-referencial mas

servem principalmente para tratar do caraacuteter das personagens para definir a

personalidade atraveacutes de gestos de comportamentos ou de haacutebitos ligados de algum

modo agrave produccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo e ao consumo do alimento (GHIAZZA 2015 p25)

Podemos na funccedilatildeo conotativa mencionar em O arroz de Palma a preparaccedilatildeo do arroz

por Antonio enquanto narra a histoacuteria bem como o papel do arroz na trama considerando seu

caraacuteter simboacutelico como fertilizador da famiacutelia e como elemento presenteado por Palma e Joseacute

Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento Em Por que sou gorda mamatildee a funccedilatildeo

conotativa seria representada pela relaccedilatildeo das personagens com o comer jaacute que tanto no caso da

protagonista como no de sua matildee e no da Voacute Magra tal relaccedilatildeo eacute caracteriacutestica da personalidade

das mesmas entre outros exemplos Em Quarenta dias as escolhas alimentares de Alice satildeo

comportamentos associados agrave sua decisatildeo de permanecer na rua natildeo voltando para casa bem

como de seu desejo por autonomia Na mesma obra tanto o restaurante da conterracircnea Penha

134

quanto ingredientes e comidas da Paraiacuteba com os quais a protagonista tem contato em seus

percursos marcam a ligaccedilatildeo afetiva que ela manteacutem com sua terra natal

Outra das funccedilotildees que Silvana Ghiazza refere eacute a comunicativa relacionada ao papel da

cozinha na comunicaccedilatildeo entre as personagens de uma trama como por exemplo a funccedilatildeo da

comida no compartilhar a mesa

Ainda um outro significado que a comida pode assumir eacute ligado agrave convivialidade agrave sua

funccedilatildeo de meio de comunicaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Desde sempre dividir o alimento

foi de forma diversa mas em todas as sociedades ocasiatildeo para comunicar E esse eacute um

dado verificaacutevel na vida de cada dia em que se espera que o momento da divisatildeo do

alimento seja tambeacutem momento de divisatildeo de pensamentos e de afetos de

aprofundamento do conhecer reciacuteproco Na mesa se fala o eu torna-se noacutes

Tambeacutem na literatura esta realidade ocupa um lugar notaacutevel e as referecircncias agrave comida

desempenham uma funccedilatildeo comunicativa na medida em que oferecem o suporte para

uma troca relacional entre as personagens o alimento e mais em termos gerais as

praacuteticas alimentares podem transformar-se de fato em uma verdadeira linguagem natildeo-

verbal capaz de comunicar mensagens sem a necessidade de palavras [] A comida

torna-se a forma privilegiada de linguagem natildeo-verbal para comunicar o sentimento de

amor em todas as suas formas (GHIAZZA 2015 p26-27)

Nas trecircs obras do corpus encontramos a funccedilatildeo comunicativa quando a comida bem

como as representaccedilotildees da cozinha como espaccedilo fiacutesico satildeo elos de convivecircncia entre as

personagens Palma colhe o arroz da pedra para presenteaacute-lo ao irmatildeo e agrave cunhada e o mesmo

seraacute elemento de ligaccedilatildeo entre a famiacutelia assumindo o arroz o nuacutecleo da trama Antonio durante a

narrativa prepara o que restou do ingrediente para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo de cem anos do

casamento dos pais e do proacuteprio arroz em O arroz de Palma Ateacute mesmo na expressatildeo do amor

fiacutesico o arroz eacute o elemento comunicativo na cena em que Antonio e Isabel inauguram sua

intimidade fiacutesica derramando sobre seus corpos o arroz Em Por que sou gorda mamatildee a Voacute

Magra oferece doces tiacutepicos aos netos em sua sacola de crocheacute enquanto a matildee da protagonista

compartilha com os filhos os doces e o refrigerante dentro do carro na viagem da famiacutelia ao

Uruguai

Assim a representaccedilatildeo da cozinha pode se exprimir no texto literaacuterio como espaccedilo fiacutesico

e simboacutelico termos escolhidos para o presente trabalho ou atraveacutes de suas funccedilotildees denotativa

conotativa e comunicativa conforme Silvana Ghiazza As trecircs obras do corpus tecircm o objetivo de

propor a reflexatildeo sobre as linguagens que a cozinha pode assumir no texto literaacuterio

especificamente no contexto da literatura brasileira contemporacircnea Nossa escolha por estudar o

referido tema decorreu tambeacutem da funccedilatildeo cultural que a cozinha assume na sociedade atraveacutes

dos tempos Rita Rutigliano explica que

135

Desde sempre os escritores utilizam a comida e o comer tambeacutem para falar de outra

coisa As paacuteginas dos livros se sabe portam um patrimocircnio de signos reveladores de

vivecircncias e de sentimentos humanos Nos eacute possiacutevel colher indiacutecios preciosos atraveacutes de

descriccedilotildees dos rituais alimentares (e ateacute mesmo do jejum) que- cobrindo o arco inteiro

entre dois polos- a comida como necessidade de base e como um aspecto da paixatildeo pela

vida-podem se tornar invenccedilatildeo jogo poesia religiatildeo histoacuteria barocircmetro das

experiecircncias pessoais e coletivas metaacutefora social e poliacutetica Em uma palavra cultura

(RUTIGLIANO 2000 p11)

A respeito do papel desempenhado pela cozinha na cultura salientado por Rita

Rutigliano podemos acrescentar o fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo lsquoLa cultura em la

cocinarsquo cujo conselho editorial eacute composto por Marcelo Aacutelvarez Jesuacutes Contreras e Rosaacuterio

Olivas O referido fragmento aparece publicado em um dos livros da coleccedilatildeo pela editora

Catalonia del Nuevo Extremo

A cozinha natildeo eacute soacute um procedimento teacutecnico que permite que os produtos alimentiacutecios

se transformem em pratos e em receitas eacute acima de tudo uma linguagem em que se

expressa a cultura humana Os gostos a esteacutetica as combinaccedilotildees de sabores os

condimentos preferidos e as maneiras agrave mesa satildeo gestos sociais que se relacionam com a

histoacuteria e com a transmissatildeo dos siacutembolos que distinguem uma comunidade da outra

(SARDE MONTECINO 2014)

O fato eacute que das mais diversas formas dentro do referido contexto cultural o universo

culinaacuterio pode ser traduzido na literatura como um fenocircmeno da natureza humana O cozinhar

nos fez humanos A propoacutesito disso Eloisa Palafox refere que as capacidades de cozinhar os

alimentos e de contar histoacuterias distinguem o homo sapiens ambas compotildeem parte primordial de

nossa evoluccedilatildeo A semelhanccedila entre tais praacuteticas estaacute tambeacutem no fato de que permitem a

socializaccedilatildeo entre os indiviacuteduos e a partilha da comida e das histoacuterias Para Michael Pollan

Somos a uacutenica espeacutecie que depende do fogo para manter o corpo aquecido e a uacutenica

espeacutecie que natildeo pode passar sem cozinhar sua comida A esta altura o controle do fogo

jaacute estaacute inscrito nos nossos genes uma questatildeo natildeo mais associada apenas agrave cultura

humana mas sim agrave nossa biologia (POLLAN 2014 p109)

A relaccedilatildeo com o cozinhar vai aleacutem do preparo do alimento no fogo para ingestatildeo Esse eacute

sem duacutevidas o que manteacutem nossa sobrevivecircncia bioloacutegica mas haacute outra habilidade que

aprendemos como espeacutecie graccedilas tambeacutem ao fogo a interaccedilatildeo com os demais que Silvana

Ghiazza relaciona com a funccedilatildeo comunicativa que a cozinha pode ter no texto literaacuterio Pollan

acrescenta agrave exposiccedilatildeo acima a relevacircncia dessa aquisiccedilatildeo em nosso desenvolvimento

136

Sobretudo o fogo que usamos para cozinhar como o que vigio na churrasqueira do meu

quintal tambeacutem ajudou a nos formar como seres sociais lsquoA forccedila do magnetismo social

exercido pelo fogorsquo como diz o historiador Felipe Fernaacutendez-Armesto eacute o que nos

manteacutem juntos e ao fazer isso ele provavelmente mudou o curso da evoluccedilatildeo humana O

fogo usado para cozinhar promoveu a seleccedilatildeo de indiviacuteduos capazes de tolerar outros

indiviacuteduos- fazer contato visual cooperar e compartilhar lsquoQuando o fogo se combinou agrave

comidarsquo escreveu Fernaacutendez-Armesto lsquoum foco quase irresistiacutevel foi criado para a vida

comunalrsquo (na verdade lsquofocorsquo vem da palavra latina focus para lareira braseiro chama)

A forccedila da gravidade social exercida pelo fogo natildeo parece ter diminuiacutedo [] (POLLAN

2014 p109)

Assim somos seres bioloacutegicos e sociais atributos que devemos ao ato de cozinhar A

nossa biologia nos confere o comer pela fome e pelo prazer Esse elemento por sua vez eacute

necessaacuterio para promover a continuidade da sobrevivecircncia individual da mesma forma que o

prazer sexual eacute o estiacutemulo para a preservaccedilatildeo do humano como espeacutecie Cozinhar comer

alimentos cozidos que nos deem nutriccedilatildeo e sensaccedilotildees prazerosas e nos reunirmos com nossos

semelhantes satildeo atributos evolutivos que promoveram a chegada ao seacuteculo XXI

A reuniatildeo com as pessoas proacuteximas resultado do fogo como elemento agregador para

cozinhar os alimentos tornou-nos em termos evolucionaacuterios seres sociais Sendo assim

partilhamos vivecircncias com outros e essas nos propiciam a noccedilatildeo de pertencimento a um grupo

Temos a partir disso a noccedilatildeo de uma identidade singular e plural Somos parte de algo e

acumulamos percepccedilotildees experiecircncias e sentimentos em comum forma-se a memoacuteria coletiva A

memoacuteria individual de modo diverso eacute parte do aparato anatocircmico e fisioloacutegico dos seres

humanos Essa se desenvolve agrave medida que se forma o neocoacutertex ceacuterebro exclusivamente nosso

cooperando com a consciecircncia de noacutes mesmos e entatildeo com a construccedilatildeo da identidade

individual E porque somos capazes de reter informaccedilotildees de arquivaacute-las e de evocaacute-las em

acircmbito individual somos tambeacutem capazes de fazecirc-lo coletivamente ao compormos um grupo

seja uma famiacutelia ou um povo

Uma das principais caracteriacutesticas da memoacuteria na esfera familiar satildeo as histoacuterias que

atravessam geraccedilotildees por serem contadas desde os antepassados Entre essas eacute vaacutelido incluirmos

tambeacutem as receitas de cozinha pois narram o como-se-faz de um prato atraveacutes dos tempos por

parentes de sangue ou de criaccedilatildeo Entre tais histoacuterias podemos tambeacutem referir o papel de um

determinado ingrediente na formaccedilatildeo de uma memoacuteria de famiacutelia como eacute o exemplo em O arroz

de Palma

A memoacuteria individual por sua vez eacute porccedilatildeo imprescindiacutevel de nossa identidade e da

consciecircncia que temos sobre quem somos ela compotildee junto aos demais elementos nossa

137

capacidade de autonomia Jaspers aponta para a impossibilidade de uma independecircncia total em

relaccedilatildeo a outras pessoas pois precisamos das interaccedilotildees de afeto e de trocas com nossos

semelhantes Temos tambeacutem necessidade uns dos outros por aspectos praacuteticos de sobrevivecircncia

indiviacuteduos que plantem que colham que pesquem que vendam que comprem que cozinhem

que consumam e que faccedilam esse ciacuterculo perpetuar-se Seguiremos cozinhando uns para os outros

pelo simples fato de que precisamos comer E partilhar Esse eacute o ponto em Quarenta dias

A protagonista depende de quem prepare o alimento para ela seja o anocircnimo na

carrocinha de cachorro quente na rua seja na mesa posta com esmero que recebe no restaurante

da rodoviaacuteria pela conterracircnea Penha Paradoxalmente o fato de receber do outro a comida eacute o

substrato da retomada de sua autonomia jaacute que a decisatildeo do que comer eacute da proacutepria Alice Nesse

caso o cozinhar tece as interaccedilotildees entre os sujeitos

Os elementos escolhidos para estudo satildeo resultado de nossa capacidade de pensar de

sentir emoccedilotildees de perceber os estiacutemulos externos atraveacutes dos cinco sentidos e de interpretaacute-los

de acordo com a consciecircncia do corpo e de noacutes mesmos A bagagem individual e cultural

fornecida pela memoacuteria faz com que possamos sentir prazer ao saborear uma receita de famiacutelia

porque ela nos faz lembrar de uma avoacute ou de uma tia como ocorre com Antonio ao ler aquela

escrita por Palma em seu caderno Escolhemos o que comer exercendo nossa autonomia

conforme as preferecircncias alimentares que nos identificam considerando a cultura do territoacuterio

onde vivemos Compreende-se entatildeo que os atributos definidos para este trabalho natildeo ocupam

compartimentos estanques mas estatildeo inexoravelmente interligados em noacutes

Pollan reflete sobre a contribuiccedilatildeo de Levi-Strauss nesse aspecto

Segundo Levi-Strauss a distinccedilatildeo entre lsquoo crursquo e lsquoo cozidorsquo serviu a muitas culturas

como a grande alegoria para estabelecer a diferenccedila entre animais e pessoas Em lsquoO cru

e o cozidorsquo ele escreveu lsquocozinhar natildeo apenas marca a transiccedilatildeo da natureza para a

cultura mas por meio dessa accedilatildeo e com a sua ajuda a condiccedilatildeo humana pode ser

definida com todos os seus atributosrsquo Cozinhar transforma a natureza e ao fazer isso

nos eleva acima desse estado tornando-nos humanos (POLLAN 2014 p57)

Na presente dissertaccedilatildeo partiu-se da proposta de estudar a memoacuteria ligada agrave cozinha em

O arroz de Palma o prazer vinculado ao comer em Por que sou gorda mamatildee e a autonomia

associada ao escolher o alimento a partir da percepccedilatildeo da fome em Quarenta dias Essa

separaccedilatildeo se deveu agrave predominacircncia desses atributos em cada uma das obras natildeo os excluindo

138

das demais Como jaacute exposto haacute uma interligaccedilatildeo entre esses em cada um de noacutes Eacute possiacutevel

encontrar nas trecircs narrativas expressotildees dessa conexatildeo

Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo muito se pode refletir sobre as lembranccedilas

da proacutepria narradora-personagem e de sua famiacutelia ou sobre sua autonomia ao decidir pelo que

come Em Quarenta dias a protagonista recorre agrave memoacuteria de sabores e de vivecircncias ao

escrever em seu caderno a retrospectiva de suas andanccedilas aleacutem disso apesar de sua fome ser o

determinante na escolha do que comer Alice sente prazer com a refeiccedilatildeo quentinha e posta na

mesa com esmero no restaurante da rodoviaacuteria ou com o lanche servido na padaria Em O arroz

de Palma os atributos tambeacutem estatildeo entremeados mesmo com o predomiacutenio da memoacuteria para o

estudo dessa obra haacute presenccedila do prazer e da autonomia ao longo das lembranccedilas de Antonio

Um ponto de semelhanccedila entre as trecircs obras eacute o fato de apresentarem todas um narrador-

personagem que protagoniza as vivecircncias A cozinha eacute portanto contada em primeira pessoa

espaccedilo vivencial do narrador A opccedilatildeo por um eu ficcional para narrar as histoacuterias natildeo eacute ao acaso

sendo a cozinha um espaccedilo de tamanha relevacircncia para nossa vida de tanto apelo ao imaginaacuterio e

agraves lembranccedilas nos campos individual e coletivo eacute bem apropriado que quem conte seja a

personagem que a vivenciou atraveacutes das proacuteprias experiecircncias ou da memoacuteria familiar A tal

propoacutesito outro elemento que aproxima as trecircs obras eacute a presenccedila da famiacutelia das personagens

que ocupa posiccedilatildeo relevante na relaccedilatildeo que os protagonistas assumem com a cozinha

Nas trecircs narrativas o narrador-personagem fala de suas emoccedilotildees e vivecircncias e por vezes

fala da famiacutelia e das histoacuterias e lembranccedilas que representam a raiz de muitas experiecircncias com a

cozinha e com o comer A famiacutelia nesse contexto representa o coletivo que eacute apresentado junto

ao individual o sentir e pensar do proacuteprio narrador No livro Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e

Doccediluras essa coexistecircncia entre o singular e o plural eacute um dos elementos abordados em relaccedilatildeo

ao papel da cozinha conforme expresso no trecho abaixo

O ato culinaacuterio eacute ao mesmo tempo uma experiecircncia individual e coletiva uma

oportunidade de autoconhecimento de entrega a mim mesma e simultaneamente de

partilha de doaccedilatildeo de expressatildeo de afetos positivos [hellip] Sobretudo o ato culinaacuterio

representa uma das circunstacircncias mais propiacutecias para experimentar singular e plural

para nos aproximar de noacutes mesmos e daqueles a quem admiramos amamos e que satildeo

parte da nossa histoacuteria (CARDOSO 2012 p13)

139

O termo lsquoato culinaacuteriorsquo refere-se natildeo apenas ao cozinhar mas a toda gama de

comportamentos ligados agrave cozinha como dividir uma refeiccedilatildeo receber doces ou oferecer uma

comida aos demais colocar a mesa e tantas outras possibilidades

A diferenccedila entre as trecircs obras eacute o espaccedilo que a cozinha representa em cada uma Em O

arroz de Palma Antonio faz a narrativa a partir de sua cozinha enquanto prepara o almoccedilo de

celebraccedilatildeo dos cem anos de casamento de seus pais e do saco de estopa com o arroz como

presente aos noivos A cozinha nesse caso eacute apresentada atraveacutes do espaccedilo fiacutesico mas tambeacutem

do ingrediente-protagonista o arroz por outros elementos materiais como os guardanapos da

matildee de Isabel e o caderno de receitas de Antonio e por aqueles imateriais a exemplo da memoacuteria

associada ao cozinhar e das comparaccedilotildees dos pratos culinaacuterios com os estilos de famiacutelias Em

Por que sou gorda mamatildee a cozinha aparece ora como ingredientes ora como espaccedilo fiacutesico

ora como comidas ora como emoccedilotildees revelando histoacuterias da protagonista e de seus antepassados

de origem judaica Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como espaccedilo fiacutesico no novo

apartamento e na vida da protagonista em Joatildeo Pessoa antes da mudanccedila e passa a ser expressa

ao longo da obra pelos bares estabelecimentos e lsquocarrinhosrsquo pelos quais ela passa tambeacutem

representativos do espaccedilo fiacutesico Aleacutem disso a cozinha aparece como espaccedilo simboacutelico de

sobrevivecircncia nessa narrativa essa representaccedilatildeo eacute feita atraveacutes das comidas que Alice escolhe

enquanto anda pelas ruas Deste modo as trecircs obras contemplam ambos os espaccedilos referidos no

propoacutesito desse trabalho

Nas obras a cozinha eacute descrita como espaccedilo fiacutesico - tanto como peccedila da casa quanto

atraveacutes dos eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios ou seja em sua existecircncia material- e como

espaccedilo simboacutelico traduzindo lembranccedilas emoccedilotildees e comportamentos representando o ritual

implicado no cozinhar e comunicando os integrantes de uma famiacutelia

Em relaccedilatildeo ao elemento material da cozinha destaco em O arroz de Palma a cozinha de

onde Antonio narra suas lembranccedilas a panela em que ele prepara o arroz a taacutebua na qual corta os

temperos seu caderno de receitas onde estaacute aquela escrita por Palma os guardanapos da matildee de

Isabel a lata de azeite de Oliva e o mais significativo de todos o proacuteprio arroz presenteado a

Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento A expressatildeo material estaacute presente sobretudo

no espaccedilo fiacutesico e nos elementos citados embora haja menccedilatildeo a comidas como o arroz de

bacalhau preparado para aproximar as famiacutelias a fim de comeccedilar o namoro com Isabel

140

Em Por que sou gorda mamatildee haacute referecircncias agraves comidas e doces judaicos como

aqueles na sacola de crocheacute da Voacute Magra Aleacutem disso em vaacuterias passagens se lecirc descriccedilotildees como

aquela em que os moradores do bairro preparam pratos a partir dos ingredientes nas cozinhas de

suas casas com detalhamento dos atos culinaacuterios e dos instrumentos utilizados Uma das cenas

mais consistentes em demonstrar a cozinha como espaccedilo fiacutesico eacute quando a Voacute Magra prepara os

bifes para a protagonista ali essa representaccedilatildeo natildeo apenas estaacute na cozinha mas tambeacutem nos

utensiacutelios e ingredientes como o oacuteleo que ela usa para o preparo da carne Nessa obra a

predominacircncia da perspectiva material estaacute principalmente nas comidas Outro exemplo eacute a cena

em que a matildee se deleita com os filhos na viagem ao Uruguai comendo doces e refrigerante ou

quando essa faz uma farta refeiccedilatildeo antes do cateterismo e outra depois de sair do hospital Esses

satildeo alguns exemplos da expressatildeo fiacutesica que a cozinha assume na obra de Cintia Moscovich

Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como peccedila da casa de Joatildeo Pessoa e de Porto

Alegre sendo essa uacuteltima expressa com detalhes quanto a eletrodomeacutesticos armaacuterios mesa e

utensiacutelios No periacuteodo em que Alice estaacute na rua o aspecto material da cozinha eacute manifestado

pelas carrocinhas de pipoca e cachorro quente pelos botecos e padarias e pelos alimentos Esses

predominam na narrativa como expressatildeo do espaccedilo fiacutesico ocupado pela cozinha

Quanto ao aspecto simboacutelico representado ressalta-se que ao cozinhar e ao comer

estamos praticando rituais Mircea Eliade na obra jaacute referida nessa dissertaccedilatildeo expotildee que ldquo[]

a principal funccedilatildeo do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e

atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a

educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 2011 p13)

A alimentaccedilatildeo como ritual estaacute presente nas trecircs obras de formas diversas Em O arroz de

Palma estaacute na colheita do arroz na pedra pela Tia Palma bem como na oferta desse aos noivos

como presente de casamento estaacute tambeacutem na canja que ela faz ao irmatildeo com esse mesmo

arroz para que os gratildeos o fertilizem e no almoccedilo em que ela e Maria Romana preparam o arroz

de bacalhau para a integraccedilatildeo das famiacutelias Estaacute tambeacutem em outros pontos da narrativa como no

ponto em que Antonio e Isabel recebem o arroz em seu casamento e quando levam um punhado

desse para sua comunhatildeo fiacutesica no lago

Nessa obra os trecircs exemplos que melhor ilustram a presenccedila do ritual satildeo o ato de

cozinhar que permeia toda a histoacuteria pois enquanto o protagonista prepara o arroz evoca

lembranccedilas e as mistura com imaginaccedilotildees e pensamentos a leitura da receita dedicada a ele em

141

seu caderno de receitas por Palma com recitaccedilotildees a serem praticadas durante o preparo da

comida Por fim a reuniatildeo da famiacutelia nas mesas para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo dos cem anos

do casamento dos pais e do presente do arroz em que haacute dois pontos que aludem ao ritual Tanto

a reuniatildeo da famiacutelia para comer eacute ritualiacutestica quanto tambeacutem o fato de se tratar de uma

comemoraccedilatildeo como foi visto na referecircncia que Ricoeur faz ao elemento mundanidade do par

reflexividademundanidade em sua fenomenologia da memoacuteria

Em Por que sou gorda mamatildee o componente do ritual estaacute principalmente associado ao

comer e ao partilhar o alimento e menos ao cozinhar A oferta de doces na sacola de crocheacute que

a Voacute Magra faz aos netos eacute um dos exemplos dessa partilha assim como a menccedilatildeo que a

protagonista faz agraves refeiccedilotildees agrave mesa em famiacutelia Haacute o aspecto ritual nos doces oferecidos pois

satildeo de origem judaica e ilustram sabores ancestrais dessa cultura

Em Quarenta dias o ritual estaacute presente tambeacutem no comer e em muitos casos nas ofertas

de alimento que Alice recebe em seu percurso pelas vilas Como jaacute mencionado a mesa posta no

restaurante da rodoviaacuteria eacute parte do ritual da alimentaccedilatildeo e a partilha dos lanches entre Alice e

Lola representa a integraccedilatildeo dos indiviacuteduos que compartilham as refeiccedilotildees

Em um periacuteodo da histoacuteria da humanidade em que estamos prestando mais atenccedilatildeo na

gastronomia como espetaacuteculo midiaacutetico essas trecircs narrativas apontam para um retorno da

cozinha como contexto de afeto de memoacuteria de tradiccedilatildeo de construccedilatildeo de significados Michael

Pollan em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo reitera

Estamos falando mais sobre culinaacuteria- e assistindo a programas de culinaacuteria lendo sobre

o assunto e indo a restaurantes onde podemos observar o preparo da comida em tempo

real Vivemos numa era em que cozinheiros profissionais se tornaram celebridades

alguns deles tatildeo famosos quanto atletas ou estrelas de cinema A mesma atividade que

muitas pessoas encaram como um trabalho enfadonho acabou sendo de alguma forma

elevada agrave categoria de esporte popular com puacuteblico proacuteprio [hellip] Por algum motivo

cozinhar eacute diferente O trabalho ou o processo carrega uma forccedila emocional ou

psicoloacutegica da qual natildeo podemos-ou natildeo queremos- nos livrar (POLLAN 2014 p11)

Nas trecircs narrativas lecirc-se o cozinhar cumprindo os propoacutesitos ancestrais que o homem

aprendeu com o domiacutenio do fogo nutrir e agregar No mundo real que Italo Calvino chamou de

lsquomundo natildeo escritorsquo a cozinha promove essas vivecircncias pela transformaccedilatildeo do alimento e pelo

viacutenculo com os outros indiviacuteduos atraveacutes da comida preparada Nas obras escolhidas para o

corpus os espaccedilos fiacutesico e simboacutelico da cozinha tornam-se parte do mundo escrito exprimindo-

se atraveacutes do ofiacutecio de seus autores Reafirma-se assim a perspectiva de Italo Calvino

142

REFEREcircNCIAS

ALTHOFF G Comer compromete refeiccedilotildees banquetes e festas In FLANDRIN Jean-Louis

MONTANARI Maacuteximo (Org) Histoacuteria da alimentaccedilatildeo Satildeo Paulo Estaccedilatildeo Liberdade 2015

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BACHELARD Gaston A poeacutetica do espaccedilo Satildeo Paulo Martins Fontes 2012

BIONDI Massimo La mente selvaggia um saggio sulla normalitaacute nei comportamenti umani

Roma Il Pensiero Scientifico Editore 1996 p 39-53 Traduccedilatildeo nossa

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Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 167-179

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Introduccioacuten a la psicopatologiacutea y a la psiquiatriacutea 4 ed Barcelona Masson SA 1998 p

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CARDOSO Betina Mariante Chimia da Uva Isabel memoacuterias e receita 31 out 2015

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Editorial Luminara 2012

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la-perditagt Acesso em 10 out 2016 Traduccedilatildeo nossa

143

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DOacuteRIA Carlos Alberto Formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira escritos sobre a cozinha inzoneira

Satildeo Paulo Trecircs Estrelas 2014

ELIADE Mircea Mito e realidade Satildeo Paulo Perspectiva 2011

ESQUIVEL Laura Iacutentimas suculencias tratado filosoacutefico de cocina Buenos Aires Aguilar

Altea Taurus Alfaguara SA de Ediciones 2014 Traduccedilatildeo nossa

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Jean-Louis MONTANARI Maacuteximo (Org) Histoacuteria da alimentaccedilatildeo Satildeo Paulo Estaccedilatildeo

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UNIVERSITAgrave DEGLI STUDI DI BARI ALDO MORO Cibo eegrave cultura convegno di studi

Bari Universitagrave degli Studi di Bari Aldo Moro 2015 (Quaderni di Ateneo 15) p 19-31

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JASPERS Karl Parte prima psicologia dele prestazioni In ______ Psicopatologia generale

7 ed Roma Il Pensiero Scientifico Editore 2000 p188 Traduccedilatildeo nossa

JASPERS Karl Parte seconda relazioni comprensibili In ______ Psicopatologia generale 7

ed Roma Il Pensiero Scientifico Editore 2000 p 340-392 Traduccedilatildeo nossa

MACLEAN Paul The triune brain 1999 Documento em pdf Traduccedilatildeo nossa

MINKOWSKI Eugegravene Il passato In ______ Il tempo vissuto fenomenologia e

psicopatologia Torino Giulio Einaudi Edittore 2004 p 141-160 Traduccedilatildeo nossa

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criacuteticas na literatura brasileira contemporacircnea Porto Alegre Casa Editorial Luminara 2014 p

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MOSCOVICH Ciacutentia Por que sou gorda mamatildee Satildeo Paulo Record 2006

PELIZZA Lorenzo BENAZZI Franco Psicopatologia del Piacere Giornale Italiano di

Psicopatologia Pisa v3 n14 p 293-306 2008 Disponiacutevel em

lthttpwwwjpsychopatholitwp-contentuploads201508Pelizza1pdfgt Acesso em 10 out

2016 Traduccedilatildeo nossa

POLLAN Michael Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo Rio de Janeiro Intriacutenseca

2014

REZENDE Maria Valeacuteria Quarenta dias Satildeo Paulo Alfaguara 2014

RICOEUR Paul A memoacuteria a histoacuteria o esquecimento Campinas Editora da Unicamp

2014

RUTIGLIANO Rita Per mangiare in versi e in prosa In ______ (Org) Spunti e spuntini

letterari collana cibo di carta Santhiagrave GS Editrice 2000 p 10-15 Traduccedilatildeo nossa

SARDE Michegravele MONTECINO Sonia La mano de Marguerite Yourcenar cocina escritura

y biografia (1950-1987) Buenos Aires Editorial del Nuevo Extremo 2014 (Colecioacuten La cultura

en la cocina) Fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo Traduccedilatildeo nossa

SHEPHERD Gordon Neurogastronomy how the brain creates flavor and why it matters New

York Columbia University Press 2012 Traduccedilatildeo nossa

SHUA Ana Mariacutea Sobre comida y literatura In ______ Risas y emociones de la cocina judiacutea

Buenos Aires Ediciones B Argenina SA 2016 p 113 Traduccedilatildeo nossa

TOAFF A Cozinha judaica cozinhas judaicas In MONTANARI Massimo (Org) O mundo

na cozinha histoacuteria identidade trocas Satildeo Paulo Senac 2009 p 179-194

Page 2: 0 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ... · Às receitas de quitutes, de doces, de refeições, escritas a mão em cadernos familiares, ou colhidas da Internet

1

BETINA MARIANTE CARDOSO

Agrave MODA DA CASA

A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE

SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS

Dissertaccedilatildeo apresentada como preacute-requisito para

obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teoria da

Literatura pela Faculdade de Letras da Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira

Porto Alegre

1o de dezembro de 2016

0

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

Ficha catalograacutefica elaborada pela Bibliotecaacuteria Clarissa Jesinska Selbach CRB102051

C268m Cardoso Betina Mariante

Agrave moda da casa a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico em O arroz

de Palma Por que sou gorda mamatildee e Quarenta dias Betina Mariante

Cardoso ndash 2016

144 fls

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul

Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira

1 Anaacutelise literaacuteria 2 Literatura brasileira 3 Memoacuteria I Moreira

Maria Eunice II Tiacutetulo

CDD 801

0

BETINA MARIANTE CARDOSO

Agrave MODA DA CASA

A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE

SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS

Dissertaccedilatildeo apresentada como preacute-requisito para

obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teoria da

Literatura pela Faculdade de Letras da Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira

Aprovada em 01 de dezembro de 2016

BANCA EXAMINADORA

Profa Dra Luciana Abreu Jardim

Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena

Profa Dra Maria Eunice Moreira

Porto Alegre

1o de dezembro de 2016

1

Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda pelos infinitos legados

que constituem meu gosto pela literatura pela cozinha e por sua interface

O som das teclas da maacutequina de escrever do Vocirc Heacutelio o perfume do panelatildeo de chimia de uva

Isabel da Voacute Leacuteia o brilho de sol nos vidros de ambrosia da Voacute Alda

ingredientes da minha escrita e do meu cozinhar

2

AGRADECIMENTOS

Agrave Profa Dra Maria Eunice Moreira pela proposta do tema que me encanta a interface

entre Literatura e Cozinha e seus diaacutelogos com outras aacutereas por todos os ensinamentos nas

disciplinas do Mestrado e na orientaccedilatildeo da escrita da Dissertaccedilatildeo pelo incentivo e pela confianccedila

durante toda a trajetoacuteria

Ao Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena pelo despertar da curiosidade e do gosto pela

literatura brasileira contemporacircnea pela confianccedila e entusiasmo e pela riqueza das sugestotildees

apontadas na Banca de Qualificaccedilatildeo de Mestrado

Agrave Profa Dra Luciana Abreu Jardim pelos ensinamentos transmitidos durante o mini-

curso que ministrou em Caxias do Sul em 2015 intitulado ldquoSobre o pensamento de Julia

Kristeva a experiecircncia-revolta atraveacutes dos cruzamentos de sentidosrdquo de grande relevacircncia para a

construccedilatildeo de minha bagagem adquirida durante o Mestrado

Agrave Profa Dra Leacutea Masina pelos meus dez anos de aprendizado nos seminaacuterios de escrita

literaacuteria por seu papel fundamental no amadurecimento do meu gosto por escrever e pelo carinho

com que conduz o processo de descobertas na literatura

Aos meus pais Ana Cristina e Apolinaacuterio e ao meu irmatildeo Diego pelo estiacutemulo aos meus

percursos e pelo incentivo para que eu sempre abrisse janelas aos horizontes possiacuteveis

Aos amigos de toda a vida Melissa Sharlene e Jaime pela amizade incondicional e pelo

apoio conversas e risadas durante o periacuteodo de escrita da Dissertaccedilatildeo

Ao Marcelo pela partilha dos prazeres da mesa com afeto muitos risos e boa prosa e

pelo estiacutemulo e sugestotildees nos desafios durante os momentos especiais do nosso conviacutevio

3

Aos autores das obras que compotildeem o corpus da Dissertaccedilatildeo Francisco Azevedo Ciacutentia

Moscovich e Maria Valeacuteria Rezende A partir de O arroz de Palma Por que sou gorda mamatildee

e Quarenta dias foi possiacutevel realizar o presente estudo

Agrave bibliotecaacuteria Clarissa Selbach pela disponibilidade e pela excelecircncia durante todo o

percurso da Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Aos meus sobrinhos Eacuterico e Lucas por me permitirem voltar a ser crianccedila em nossas

brincadeiras e por participarem do fazer culinaacuterio com alegria de festa

Agrave Tacircnia pelo afeto e pela celebraccedilatildeo de sempre

Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda a quem dedico essa

Dissertaccedilatildeo

4

ldquoFamiacutelia eacute afinidade eacute lsquoagrave moda da casarsquo

E cada casa gosta de preparar a famiacutelia a seu jeitordquo

(AZEVEDO 2008)

5

RESUMO

A presente dissertaccedilatildeo de Mestrado visa analisar a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico no

contexto de trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco

Azevedo (2008) Por que sou gorda mamatildee de Cintia Moscovich (2006) e Quarenta dias de

Maria Valeria Rezende (2014) No estudo de cada obra eacute estabelecida a relaccedilatildeo entre a cozinha e

um dos trecircs seguintes paradigmas respectivamente memoacuteria prazer e autonomia Assim o

trabalho eacute composto por trecircs capiacutetulos intitulados ldquoCozinha e memoacuteriardquo ldquoCozinha e prazerrdquo

ldquoCozinha e autonomiardquo O propoacutesito eacute compreender de que forma a cozinha eacute apresentada nas

narrativas do corpus no contexto dos temas escolhidos Elementos da fenomenologia

psiquiaacutetrica da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo satildeo apresentados em diaacutelogo com a

literatura brasileira contemporacircnea

Palavras-chave Literatura brasileira contemporacircnea Cozinha Comida

6

ABSTRACT

This dissertation aims to analyze the kitchen as a physical and symbolic space within the context

of three works of contemporary Brazilian literature Francisco Azevedorsquos O arroz de Palma

(2008) Cintia Moscovichrsquos Por que sou gorda mamatildee (2006) and Maria Valeria Rezendersquos

Quarenta dias (2014) In each work kitchen is related to one of the following three paradigms

respectively memory pleasure and autonomy Thus this study consists of three chapters entitled

Kitchen and Memory Kitchen and Pleasure and Kitchen and Autonomy Our goal is to

understand how the kitchen is described in the narratives of the corpus in the context of the

selected topics Elements of psychiatric phenomenology sociology and food history are

presented in connection with contemporary Brazilian literature

Keywords Contemporary Brazilian literature Kitchen Food

7

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 10

1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA 15

11 O ARROZ DE PALMA 15

12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA 19

13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO 34

14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA 42

2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57

21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57

22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL 60

23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA 66

24 O PRAZER DA COMIDA 74

3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS 92

31 QUARENTA DIAS 92

32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS 97

33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA 105

34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI 111

CONCLUSAtildeO 132

REFEREcircNCIAS 142

10

INTRODUCcedilAtildeO

O ato de cozinhar eacute parte ancestral da nossa existecircncia como seres humanos Desde os

tempos primitivos o homem transforma o ingrediente cru em alimento cozido Comemos por

necessidade nutricional mas tambeacutem por outros motivos comemos para sentir prazer com um

bom prato para socializarmos partilhando esse prazer com outras pessoas para evocarmos

lembranccedilas de famiacutelia e as nossas proacuteprias com sabores que fazem parte de nossa bagagem

emotiva Escolhemos o que comer aprendemos a gostar mais desse ou daquele doce somos

conhecidos pelo quitute que preparamos para os amigos Adoramos canela mas detestamos

alecrim A cozinha faz parte da construccedilatildeo de nossa identidade e da memoacuteria que vamos

formando a partir das experiecircncias vivenciadas sozinhos ou em grupo

Um ponto de extrema relevacircncia eacute o fato de que a comida supre as demandas orgacircnicas

manteacutem-nos com energia para enfrentar a rotina e sustenta a sauacutede razotildees pelas quais eacute parte de

nossa autonomia Recebemos o leite materno quando somos ainda dependentes do peito da matildee

a seguir os pais nos alimentam com novos sabores ateacute que passamos a aprender a gostar de

modo individual disso ou daquilo E aprendemos a natildeo gostar daquele guisado de aboacutebora do

almoccedilo ou da salada de cenoura beterraba alface e tomate - que devemos comer porque faz bem

e ponto As escolhas alimentares tornam-se parte de nossa capacidade de dirigirmos nosso Eu e

de compormos nossas preferecircncias Assim natildeo seria exagero referir que tais escolhas nos

identificam pois satildeo um pedaccedilo de quem nos tornamos como indiviacuteduos e como famiacutelia O

alimento torna-se uma fatia das histoacuterias que vivemos e das emoccedilotildees que sentimos

Haacute um aspecto a ser questionado a que nos referimos quando falamos em cozinha Ao

espaccedilo fiacutesico que essa ocupa na casa onde estatildeo o forno e o fogatildeo o refrigerador a pia Aos

utensiacutelios como talheres e pratos panelas eletrodomeacutesticos peneira travessas e assim por

diante Aos ingredientes em parte mantidos na despensa enquanto outros devem permanecer

refrigerados Agraves receitas de quitutes de doces de refeiccedilotildees escritas a matildeo em cadernos

familiares ou colhidas da Internet ou copiadas no programa televisivo de famosos chefs Agraves

recordaccedilotildees de vivecircncias passadas com as avoacutes que nos ensinavam o saber culinaacuterio pelo

claacutessico lsquobotar a matildeo na massarsquo Agrave cultura de um povo pelas comidas que prepara

A cozinha contempla todos esses elementos do simboacutelico ao concreto da antiguidade

mais remota aos tempos hipervelozes de hoje com diversas miacutedias dirigidas aos temas culinaacuterios

11

do conforto emocional que representava ao glamour que vem atingindo com o avanccedilo da

gastronomia como expressatildeo de status social e econocircmico no seacuteculo XXI

Memoacuteria prazer e autonomia lsquoingredientesrsquo relevantes na relaccedilatildeo do ser humano com o

alimento tanto na sua preparaccedilatildeo quanto no ato de comer propriamente dito

Pela importacircncia e significado da cozinha em todos os tempos e em todas as culturas a

presente dissertaccedilatildeo visa discutir seu papel nos acircmbitos fiacutesico e simboacutelico em trecircs obras da

literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco Azevedo (2008) Por que

sou gorda mamatildee de Ciacutentia Moscovich (2006) e Quarenta dias de Maria Valeacuteria Rezende

(2014)

A organizaccedilatildeo eacute composta por trecircs capiacutetulos que mantecircm a mesma estrutura na epiacutegrafe

um trecho emblemaacutetico da obra a ser explorada sob a perspectiva de um dos paradigmas

definidos como memoacuteria prazer e autonomia um fragmento introdutoacuterio para apresentaacute-lo em

sua relaccedilatildeo com a cozinha seguido de quatro subdivisotildees na primeira a apresentaccedilatildeo da obra do

corpus na segunda a fundamentaccedilatildeo teoacuterica do atributo escolhido para cada uma das narrativas

na terceira a reflexatildeo sobre este visto agrave luz de sua relaccedilatildeo com a cozinha na quarta a anaacutelise

das obras especiacuteficas utilizando-se trechos e analisando-os a partir das reflexotildees e estudos jaacute

expostos

O primeiro capiacutetulo intitulado ldquoCozinha e memoacuteria em O arroz de Palmardquo apresenta a

cozinha vinculada agraves histoacuterias familiar e pessoal das personagens o que permite relacionar esse

livro com a pesquisa sobre a memoacuteria tanto a individual como a coletiva O segundo capiacutetulo

intitulado ldquoCozinha e prazer em Por que sou gorda mamatildeerdquo traz a cozinha principalmente

manifesta pela vivecircncia do prazer da comida e suas consequecircncias para a protagonista como o

engorde motivo pelo qual incide sobre o prazer na relaccedilatildeo com a cozinha O terceiro capiacutetulo

intitulado ldquoCozinha e autonomia em Quarenta diasrdquo contempla o estudo dessa obra em que se

revela uma alimentaccedilatildeo vivenciada fora de casa atraveacutes da comida e dos lugares que a oferecem

Ao longo do percurso da personagem atraveacutes da retomada de sua independecircncia o comer eacute uma

das principais representaccedilotildees de sua autonomia nessa narrativa Assim o binocircmio estudado no

uacuteltimo capiacutetulo eacute cozinha e autonomia

O arroz de Palma trata da relevacircncia de um elemento o arroz na histoacuteria de vaacuterias

geraccedilotildees da famiacutelia do protagonista motivo pelo qual este capiacutetulo aborda a relaccedilatildeo entre cozinha

e memoacuteria Considerando-se a memoacuteria um tema estudado por diversos campos do

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conhecimento a fundamentaccedilatildeo teoacuterica desse capiacutetulo eacute constituiacuteda pelos seguintes autores no

acircmbito filosoacutefico Paul Ricoeur e Gaston Bachelard cultural Aleida Assmann psicopatoloacutegico

Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio Bulbena e Sandro Domenichetti neurocientiacutefico Ivan

Izquierdo e Gordon Shepherd Satildeo tambeacutem referidas reflexotildees de Mircea Eliade na compreensatildeo

do mito As perspectivas do socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan satildeo

apresentadas junto aos autores jaacute referidos na subdivisatildeo que aborda a memoacuteria no contexto da

cozinha

Por que sou gorda mamatildee traz a cozinha ligada ao prazer pelo fato de a narrativa

abordar as sensaccedilotildees prazerosas ligadas agrave comida A fundamentaccedilatildeo teoacuterica abrange as facetas

bioloacutegica e cultural do prazer Na esfera bioloacutegica a reflexatildeo inclui aspectos saudaacuteveis e

psicopatoloacutegicos contendo ideias do psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers e dos psiquiatras

Lorenzo Pelizza e Franco Benazzi na esfera socioloacutegica a reflexatildeo parte da leitura do socioacutelogo

Carlos Alberto Doacuteria em seus livros A subdivisatildeo que apresenta o prazer ligado agrave cozinha eacute

constituiacuteda principalmente por Jean Louis Flandrin Maacutessimo Montanari e Jean-Anthelme Brillat-

Savarin

Quarenta dias expressa a relaccedilatildeo entre cozinha e autonomia pois o comer representa

para a personagem sua decisatildeo de sobrevivecircncia real Ela come porque tem fome necessidade

fisioloacutegica propriamente dita sendo o comer vinculado agraves decisotildees e agrave autonomia para tomaacute-las

elemento-chave na construccedilatildeo de seu percurso Nesse capiacutetulo a cozinha eacute principalmente

expressa pela comida motivo pelo qual este eacute o termo empregado na terceira e quarta

subdivisotildees A fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute composta por contribuiccedilotildees de Karl Jaspers tambeacutem

explorado nos capiacutetulos anteriores por aquelas do neurocientista Antonio Damaacutesio e do

psiquiatra Massimo Biondi Na subdivisatildeo que estabelece viacutenculo entre a comida e a autonomia

expressa como consciecircncia de si apoiamos a anaacutelise no pensamento do socioacutelogo Carlos Alberto

Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan tambeacutem presentes nos capiacutetulos anteriores

A decisatildeo por pesquisar na literatura a expressatildeo da cozinha deve-se ao nosso

questionamento sobre o modo como essa aparece atraveacutes da escrita literaacuteria Que contextos e que

termos satildeo escolhidos pelos escritores para retratar a cozinha como espaccedilos fiacutesico e simboacutelico

em suas obras A escolha recai sobre a literatura brasileira contemporacircnea definindo para o

corpus livros escritos por autores brasileiros em 2006 2008 e 2014 Trecircs livros publicados nas

duas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXI periacuteodo que coincide com a explosatildeo do papel da cozinha

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em acircmbitos mundial e sem duacutevidas nacional Conforme refere Maria Eunice Moreira no ensaio

ldquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmardquo

Espaccedilo alquiacutemico por sua natureza lugar de transformaccedilatildeo e de transmutaccedilatildeo a cozinha

eacute um dos espaccedilos mais tematizados na atualidade Isso pode ser comprovado pelo

nuacutemero de perioacutedicos especializados em gastronomia variedades de programas de TV e

destaque concedido a chefes e gourmets que se tornaram personagens midiaacuteticos

Diferentes miacutedias hoje divulgam as proezas de cozinheiros especializados que divulgam

suas descobertas culinaacuterias com ingredientes exoacuteticos confeccionando pratos originais

(MOREIRA 2014 p167)

Com a magnitude das expressotildees gastronocircmicas contemporacircneas no mundo e no Brasil eacute

plausiacutevel encontrar na literatura de nosso tempo obras que tragam a cozinha nos seus diversos

domiacutenios ao papel de protagonista A escolha especiacutefica pela literatura brasileira contemporacircnea

resulta de nosso interesse por compreender com que linguagem ela eacute expressa em nosso paiacutes em

nossa literatura em nossa contemporaneidade Ainda de acordo com o ensaio acima referido

sobre O arroz de Palma vale ressaltar

Mas certamente os leitores concordam que no fundo dos bauacutes que cruzaram os mares

entre enxadas e sementes vieram junto bens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre

o antigo e o novo espaccedilo a ser habitado Satildeo esses bens porque falam a linguagem do

mito os mais duradouros e perenes e satildeo eles tambeacutem capazes de inspirar a escrita da

literatura brasileira em tempos de globalizaccedilatildeo (MOREIRA 2014 p174)

Os lsquobens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre o antigo e o novo espaccedilo a ser

habitadorsquo estatildeo presentes em O arroz de Palma e tambeacutem no livro Por que sou gorda mamatildee

Nesse uacuteltimo atraveacutes da representaccedilatildeo de uma famiacutelia de imigrantes judeus e de sua relaccedilatildeo com

a comida e com o prazer de comer Em Quarenta dias a protagonista eacute tambeacutem uma imigrante

mas vinda de outro Estado e de outra cultura no mesmo Paiacutes Assim tambeacutem nessa narrativa haacute

um contraste entre o espaccedilo antigo e o novo a ser habitado a cidade de Porto Alegre eacute o territoacuterio

desconhecido ao qual a narradora personagem deveraacute se adaptar Da mesma forma como

transfere sua moradia para as ruas da cidade enquanto reluta em apropriar-se de sua lsquonova vidarsquo

tambeacutem transfere sua alimentaccedilatildeo para as padarias botecos carrinhos de pipoca e de cachorro

quente pela rua restaurantes e bares de rodoviaacuteria Para ela a decisatildeo de comer eacute resultado da

fome do mero existir como o sono e o banho A cozinha bem como sua vida estatildeo

lsquotransplantadasrsquo para as ruas da cidade

Nas trecircs obras selecionadas para este estudo haacute um papel central desempenhado pela

cozinha a representaccedilatildeo de aspectos da natureza humana como a ligaccedilatildeo com o prazer a

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memoacuteria e a autonomia como jaacute foi referido Nas narrativas a cozinha o cozinhar e o comer

existem atraveacutes das comidas dos ingredientes de instrumentos e do espaccedilo fiacutesico em si mas satildeo

expressos sobretudo como emoccedilotildees e vivecircncias recuperaccedilatildeo de tradiccedilotildees e expressatildeo de

sentimentos e de memoacuterias Ao escolher o termo lsquocozinharsquo para a representaccedilatildeo global estamos

incluindo o campo de ideias que esse envolve ou seja todo o espaccedilo fiacutesico e os elementos

materiais como eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios as comidas desde o ingredientes e

receitas ateacute os pratos propriamente ditos por fim os elementos simboacutelicos portanto imateriais

como as representaccedilotildees de ritualidade e os elementos psiacutequicos e culturais que envolvem o

cozinhar e o comer

O tiacutetulo ldquoAgrave moda da casardquo remete agraves receitas de um periacuteodo da culinaacuteria em que a

cozinha caseira ocupava papel central na alimentaccedilatildeo familiar Essa envolvia as concepccedilotildees de

lar de famiacutelia de memoacuteria dos pratos que eram partilhados na mesa nas refeiccedilotildees Uma carne de

panela agrave moda da casa eacute aquela feita seguindo o lsquocomo-se-fazrsquo na histoacuteria da famiacutelia A expressatildeo

lembra os cadernos de receitas as cozinhas das avoacutes matildees e tias a memoacuteria e os sabores da

tradiccedilatildeo as noccedilotildees de identidade e de consciecircncia de si como indiviacuteduo singular que eacute parte de

um plural a famiacutelia Todos esses aspectos satildeo presentes nas obras do corpus e portanto estatildeo

incluiacutedos na reflexatildeo sobre o tiacutetulo escolhido

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1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA

- Como eacute que simples guardanapos satildeo capazes de trazer tanta recordaccedilatildeo

- Porque fizeram histoacuteria satildeo a prova real e dos nove que um grupo de pessoas se reunia

regularmente para celebrar - natildeo importa o quecirc Festejavam a vida e pronto A data

religiosa ou pagatilde era pretexto Podia ser Paacutescoa ou Carnaval Esses guardanapos tecircm

alma Aliaacutes todo ser inanimado passa a ter alma no momento em que se lhe imprime

afeto As coisas tambeacutem aspiram a uma existecircncia sensiacutevel

Francisco Azevedo

A cozinha eacute o espaccedilo onde habitam forno fogatildeo geladeira pia pratos talheres

guardanapos panelas travessas caderno de receitas ingredientes chimia de uva pudim doce de

leite e ambrosia E lembranccedilas Muitos de nossos registros tecircm sabores proacuteprios Recordamos

essa ou aquela vivecircncia porque sua representaccedilatildeo eacute ligada a um gosto a uma textura a um

aroma Houve aquele doce de ovos que experimentamos em uma uacutenica e inesqueciacutevel ocasiatildeo

Vale evocar tambeacutem o faqueiro de uma avoacute presente de casamento ou a panela de fondue

comprada com orgulho fruto do primeiro salaacuterio da monitoria na faculdade No territoacuterio fiacutesico

da cozinha a memoacuteria tem corpo tem existecircncia material atraveacutes dos ingredientes dos

instrumentos dos eletrodomeacutesticos da receita de famiacutelia preparada para o almoccedilo Acima de

tudo a memoacuteria tem respiraccedilatildeo

11 O ARROZ DE PALMA

A escolha do tema cozinha e memoacuteria nasce atraveacutes da leitura da primeira obra definida

para o presente corpus O arroz de Palma de Francisco Azevedo publicada pela Editora Record

em 2008 O significado da cozinha para a nossa experiecircncia subjetiva tem fortes raiacutezes nas

histoacuterias guardadas atraveacutes das lembranccedilas e transmitidas entre as geraccedilotildees Essa obra da

literatura brasileira contemporacircnea propotildee tal resgate com relevante aprofundamento

A narrativa comeccedila pela voz do protagonista Antocircnio narrador personagem que traz ao

leitor em primeira pessoa a histoacuteria de sua famiacutelia os pais receacutem-casados e Palma sua tia

paterna Os trecircs vieram de Viana do Castelo em Portugal para o Brasil no comeccedilo do seacuteculo XX

Entretanto o que Antocircnio vem contar antecede a imigraccedilatildeo o ponto que daacute origem agrave histoacuteria da

obra eacute o casamento dos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana Depois da cerimocircnia Palma

decide juntar todos os gratildeos de arroz atirados aos noivos na lsquoabenccediloada chuva de arrozrsquo

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torrencial feita de lsquopunhados e mais punhadosrsquo Fez-se lsquochuva branca que natildeo paravarsquo Como se

fosse colheita ela junta gratildeo por gratildeo e coloca todos em um saco de estopa que leva aos receacutem-

casados como seu presente pelo matrimocircnio Surpreendente eacute a reaccedilatildeo de Joseacute Custoacutedio ao

receber a ideia de Palma raivoso desdenha do arroz ofertado pela irmatilde como se fosse presente

de menor valor A esposa Maria Romana contemporiza a situaccedilatildeo mas manteacutem a posiccedilatildeo firme

de que aceitaratildeo o presente E o arroz torna-se a alma dessa famiacutelia Melhor dizendo Palma

torna-se a alma da famiacutelia

A obra eacute composta por cinquenta e nove capiacutetulos curtos trezentas e sessenta e uma

paacuteginas e um calendaacuterio ao final com datas relevantes para a compreensatildeo da passagem do

tempo perspectiva essencial em O arroz de Palma Antocircnio eacute o narrador personagem muito do

que conta sobre a histoacuteria familiar ouviu de sua tia Palma figura de grande importacircncia na

formaccedilatildeo de sua personalidade Ela testemunhou boa parte das vivecircncias em Portugal e na

chegada ao Brasil protagonizou a maioria das cenas que se tornaram lembranccedilas Essas

transformaram-se depois em histoacuterias contadas por Palma e escutadas por Antocircnio

Fazendo zigue-zagues nas geraccedilotildees Antocircnio relembra pontos que conhece de viver e

pontos que sabe por escutar Em momentos da leitura parece estar contando a trama ao leitor

noutros tem-se a sensaccedilatildeo de que as conversas satildeo consigo mesmo a fim de percorrer uma linha

de tempo que faccedila sentido Ele narra de sua cozinha no presente do indicativo enquanto a

memoacuteria percorre outros tempos verbais mas a idade jaacute deixa lacunas Quando faltam

ingredientes na despensa da memoacuteria resta a tentativa de montar histoacuterias possiacuteveis ele compotildee

em um conjunto o que foi vivido e imaginado junto agraves suas reflexotildees atuais agrave beira do fogatildeo

Estaacute preparando a receita tiacutepica de arroz com significado em sua histoacuteria pessoal para a

comemoraccedilatildeo do centenaacuterio do matrimocircnio dos seus pais e do arroz colhido por Palma e

presenteado ao casal

Nas idas e vindas aparece de iniacutecio a fuacuteria de Joseacute Custoacutedio ao ganhar o saco de gratildeos de

arroz dirigida agrave irmatilde Palma Os trecircs vecircm para o Brasil onde ele consegue trabalho em uma

fazenda Mais tarde jaacute com a vida organizada quando o casal tem dificuldades em ter filhos

surge nova fuacuteria quando Palma sugere oferecer-lhe o arroz como forma de ajudar na fecundaccedilatildeo

pelos poderes atribuiacutedos ao ingrediente Ele recusa enraivecido mas Palma e Maria Romana

fazem com que coma o arroz mesmo assim No momento da raiva quebra a lsquoquarta cadeirarsquo que

iraacute reformar para sua irmatilde passada a coacutelera Essa seraacute a cadeira de onde ela contaraacute a Antocircnio as

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memoacuterias de famiacutelia os remendos de histoacuteria as fantasias e imaginaccedilotildees as dores e intimidades

de sua juventude

A quarta cadeira seraacute seu palco Antocircnio eacute o expectador Cria-se um forte laccedilo entre ele e

a tia pois se torna desde cedo o herdeiro das recordaccedilotildees familiares Essa aproximaccedilatildeo acaba

por distanciaacute-lo dos trecircs irmatildeos Leonor Nicolau e Joaquim enquanto ele eacute mais lsquocaseirorsquo gosta

de ficar ouvindo as histoacuterias da Tia Palma os trecircs satildeo mais agitados apreciam os passeios e as

brincadeiras pelo campo A distacircncia entre ele e os trecircs faz com que a tia o chame de lsquoAntocircnimorsquo

opondo suas caracteriacutesticas agraves dos irmatildeos As diferenccedilas seguiratildeo vida afora o que o protagonista

vai contando em seus percursos

Surge entatildeo seu romance com Isabel filha do patratildeo de seu pai sua ida para o Rio de

Janeiro o noivado com a moccedila e o arroz de bacalhau para celebrar a ocasiatildeo em famiacutelia A

receita foi preparada com o mesmo arroz que serviu para a fertilidade dos pais o mesmo arroz

presenteado por Palma para o casamento deles o mesmo arroz da chuva abenccediloada da cerimocircnia

O arroz testemunha a vida da famiacutelia alinha suas histoacuterias nessa narrativa parece ser a

representaccedilatildeo da memoacuteria familiar Lembranccedila a lembranccedila gratildeo a gratildeo As narrativas vatildeo sendo

transmitidas escutadas digeridas Antes do casamento Antocircnio e Isabel lsquoroubamrsquo um punhado e

levam consigo ao lago abenccediloando o primeiro momento de uniatildeo fiacutesica que partilham Mais uma

vez o arroz participa da ocasiatildeo formando registros de memoacuteria

Casam-se Nascem os filhos Nuno e Rosaacuterio Gecircmeos Seratildeo no entanto muito

diferentes entre si ela objetiva praacutetica ele sensiacutevel Entre casamentos e separaccedilotildees a narrativa

segue trilhada pela voz de Antocircnio em idas e vindas nas deacutecadas entre o casamento dos pais e

seu aniversaacuterio Sempre ao lado de Isabel nos trechos de vida sempre com dificuldades na

ligaccedilatildeo com os irmatildeos Entre o arroz presenteado por Palma no casamento de Joseacute Custoacutedio e

Maria Romana e a receita de arroz preparada por Antocircnio em sua cozinha esse conta os

nascimentos e as mortes relembra a perda de tia Palma recorda-se de vivecircncias dolorosas ao

longo do percurso de cada um e de todos O arroz eacute roubado da vitrine do restaurante de Antocircnio

e Isabel pelos filhos outra porccedilatildeo parece ter sido roubada pela esposa de um dos irmatildeos por

ciuacuteme de seu casamento Mais tarde surge a informaccedilatildeo de que Antocircnio e a cunhada tiveram

uma ligaccedilatildeo afetiva antes de ambos unirem-se a seus pares Voltam a encontrar-se em um ponto

da histoacuteria em uma tarde de braccedilos dados desejos satisfeitos e despedida cordial

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Muitas satildeo as tramas vividas e recordadas nessa narrativa Antocircnio eacute o narrador

personagem mas a leitura faz o leitor convencer-se o protagonista a bem da verdade eacute o arroz

A tia Palma tem papel decisivo na famiacutelia eacute ela quem daacute a direccedilatildeo em vaacuterios momentos da

histoacuteria nas vidas do irmatildeo Joseacute Custoacutedio da cunhada Maria Romana do sobrinho mais

proacuteximo Antocircnio e de seus irmatildeos Eacute ela quem daacute a direccedilatildeo aos gratildeos de arroz no percurso

desde o casamento em Portugal na Igreja ateacute sua morte contando sempre com a cumplicidade

da cunhada O protagonista segue conversando com a tia em pensamento perguntando suas

opiniotildees e conselhos

Palma transmite histoacuterias o arroz transmite histoacuterias Ao longo de toda a narrativa ambos

vatildeo deixando suas marcas na vida das personagens Em sua cozinha enquanto prepara o arroz

ele une os gratildeos pelo cozimento assim como une as recordaccedilotildees em uma soacute histoacuteria da famiacutelia

Se acaba por esquecer de algo lembra depois ou conta agrave sua moda Lembranccedilas agrave moda da casa

Toda a narrativa eacute tecida com uma linha que atravessa as vivecircncias a metaacutefora feita agraves

famiacutelias como se fossem pratos da culinaacuteria O narrador protagonista traz a imagem de vaacuterios

desses pratos e suas equivalecircncias nos grupos familiares enquanto se lembra dos trechos de vida

entremeados com emoccedilotildees e pensamentos Natildeo eacute possiacutevel alinhar as memoacuterias estatildeo espalhadas

Parte delas remontam etapas de vida outras lugares e pessoas Haacute registros que surgem de

experiecircncias vividas e daquelas que ele conhece apenas por ouvir- em geral de sua tia Palma

sentada na quarta cadeira

Podemos lembrar do que vivemos ou do que imaginamos em nossa maquinaria de

lembranccedilas memoacuteria e imaginaccedilatildeo fundem-se e o que vivenciamos por ouvir contar se torna

tambeacutem parte de nossos registros pessoais Eacute o que se passa com Antocircnio quando conta o que

ouviu de Palma com tal fidelidade que parece ele mesmo ter vivido Escutou imaginou e entatildeo

apropriou-se da histoacuteria com suas proacuteprias cores eacute dele agora a trama contada pela tia Algo

parecido eacute o processo de alquimia de uma receita de cozinha quando eacute transmitida de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo cada novo cozinheiro agrega seu modo de preparar a receita e ela vai assim sendo

transformada pelo tempo e pelas vozes que a leem agrave beira do fogatildeo

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12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA

O propoacutesito de estudar a memoacuteria neste capiacutetulo eacute o de apresentaacute-la como um processo

inerente agrave constituiccedilatildeo do ser humano Necessitamos deixar registros agraves geraccedilotildees seguintes assim

como seguir rastros dos antepassados Queremos pertencer a uma histoacuteria de famiacutelia e construir a

nossa para ser lembrada e seguida Acima de tudo a memoacuteria eacute parte da identidade

imprescindiacutevel na consciecircncia do indiviacuteduo sobre si mesmo

No campo de estudos da memoacuteria haacute os substratos neuroanatocircmico neurofisioloacutegico e

neuroquiacutemico que a compotildeem sob a perspectiva orgacircnica responsaacuteveis por seu funcionamento

adequado entretanto o foco predominante neste estudo consiste no entendimento da memoacuteria

como processo singular em termos psiacutequicos e plural em termos culturais Devido agraves muacuteltiplas

facetas do tema ampliamos a fundamentaccedilatildeo teoacuterica para os campos fenomenoloacutegico em que

apresentamos as ideias de Paul Ricoeur cultural a partir dos estudos de Aleida Assmann

psicopatoloacutegicas em que satildeo apontadas reflexotildees de Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio

Bulbena e Sandro Domenichetti e neurocientiacuteficas em que fazemos referecircncia aos

neurocientistas Ivan Izquierdo argentino e Gordon Shepherd americano

A cozinha situa-se nas esferas da memoacuteria individual e coletiva A relaccedilatildeo que se

estabelece entre o indiviacuteduo e os aromas que habitam sua memoacuteria como no caso das madeleines

recordadas por Proust a partir de um gatilho eacute de tamanha intimidade que se torna parte de sua

bagagem afetiva Da mesma forma o caderno de receitas de uma avoacute pode atravessar geraccedilotildees

pois os sabores ali registrados evocam lembranccedilas da histoacuteria familiar Ao serem reproduzidos

despertam na memoacuteria de um grupo natildeo apenas a receita original mas toda a constelaccedilatildeo de

emoccedilotildees que envolve essa lembranccedila como a cozinha em que era feita as panelas pratos e

talheres os almoccedilos dominicais na mesa da sala de jantar

As experiecircncias representam os ingredientes para a formaccedilatildeo da memoacuteria Muitas delas

nascem das histoacuterias vivenciadas na cozinha seja atraveacutes da percepccedilatildeo de um gosto do sentir de

uma emoccedilatildeo do ato de mexer um bolo ou de preparar um prato Todas satildeo carimbadas pela

interpretaccedilatildeo pelos sentimentos e pelo significado que cada circunstacircncia assume em nosso

percurso E esse carimbo vira lembranccedila armazenada na despensa da memoacuteria passiacutevel de

transformaccedilotildees ao longo do amadurecimento e das vicissitudes de cada fase de vida Afinal de

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contas a memoacuteria natildeo eacute um registro estaacutetico ela eacute isso sim um processo dinacircmico dependente

de nosso olhar e de nosso viver

Conforme o psicopatologista alematildeo Karl Jaspers a memoacuteria eacute um mecanismo que tem

relaccedilatildeo com o colorido afetivo com o significado das coisas Ele definiu a memoacuteria propriamente

dita como um reservatoacuterio em que novos materiais satildeo integrados pela fixaccedilatildeo e satildeo extraiacutedos agrave

consciecircncia atraveacutes da funccedilatildeo de evocaccedilatildeo para ele a chegada e a partida dos materiais seriam

devidas agraves respectivas funccedilotildees de fixaccedilatildeo e evocaccedilatildeo enquanto a memoacuteria representaria o

reservatoacuterio de disponibilidade permanente (JASPERS 2000 p188) Se pensarmos na cozinha

a memoacuteria seria a despensa onde satildeo postos novos ingredientes e de onde satildeo retirados aqueles

escolhidos para o uso Jaacute de acordo com Bulbena citando Serralonga ldquo[] em termos objetivos

eacute possiacutevel defini-la como a capacidade de adquirir de reter e de utilizar secundariamente uma

experiecircnciardquo (BULBENA 1998 p169)

Bulbena aponta quarto aspectos relevantes na compreensatildeo da memoacuteria como fenocircmeno

humano entre os quais distingue a entrada a manutenccedilatildeo e a saiacuteda das informaccedilotildees em

constante intercacircmbio entre organismo e ambiente o aspecto de transformaccedilatildeo dessas

informaccedilotildees modificando o conteuacutedo que entra no lsquoreservatoacuteriorsquo de Jaspers tanto para o

armazenamento quanto para a futura reproduccedilatildeo desse conteuacutedo o fato de a memoacuteria ser

produzida no contexto de estruturas nervosas que veiculam o processo apontando-se que as

alteraccedilotildees neste resultaratildeo em transtornos em seus mecanismos de fixaccedilatildeo armazenamento e

reproduccedilatildeo O quarto ponto definido pelo autor eacute de grande importacircncia para a finalidade do

presente capiacutetulo a memoacuteria forma parte do conjunto da vida psiacutequica sendo as emoccedilotildees

especialmente relevantes em sua composiccedilatildeo e forma parte tambeacutem da biografia do indiviacuteduo

em que teraacute influecircncia e da qual receberaacute influecircncia tambeacutem

Quando o autor se refere agrave biografia estaacute fazendo menccedilatildeo agraves experiecircncias de vida desse

indiviacuteduo e satildeo essas que muitas vezes ocorreram em sua relaccedilatildeo com o comer e com a cozinha

O dado de a memoacuteria fazer parte da vida psiacutequica eacute significativo sobretudo no que tange agrave

relaccedilatildeo com o campo emocional pois sempre que tais experiecircncias vinculadas ao universo

culinaacuterio ocorrerem haveraacute o processamento da resposta afetiva

A memoacuteria eacute essencialmente parte da vida psiacutequica do ser humano e resultado de

mecanismos cerebrais de controle Eacute considerada uma das funccedilotildees do estado mental dos

indiviacuteduos avaliada no exame psiquiaacutetrico dessas funccedilotildees Bulbena refere que

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etimologicamente a maioria dos autores situa sua origem no termo latino memoacuteria de

significado similar ao atual mas haacute quem atribua a origem agrave palavra gemynd de raiz

anglosaxocircnica que conforme refere significaria mente Assim eacute possiacutevel que a associaccedilatildeo entre

memoacuteria e vida psiacutequica seja representada na proacutepria origem da palavra

Mesmo que a finalidade do presente capiacutetulo seja apresentar a memoacuteria vinculada agraves

vivecircncias de cozinha cabe realizar a abordagem desse mecanismo como fenocircmeno Paul Ricoeur

apresenta a respeito da fenomenologia da memoacuteria seu viacutenculo com a imaginaccedilatildeo O autor

refere que podemos fazer referecircncia a um evento passado ou dizer que temos dele uma imagem

que pode ser quase visual ou auditiva E aponta que a memoacuteria opera em funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo

reforccedilando a perspectiva de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que expressa que ldquo[] a memoacuteria eacute

uma proviacutencia da imaginaccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p25)

Tal aspecto liga-se ao exposto pelo neurocientista Gordon Shepherd que em seu livro

sobre neurogastronomia expotildee ldquoPara muitas pessoas as partes mais importantes do olfato e do

sabor satildeo as memoacuterias que elas evocam e as emoccedilotildees associadas a essasrdquo (SHEPHERD 2012

p174) Olfato e sabor satildeo tambeacutem elementos que evocam imagens de situaccedilotildees vivenciadas mas

imagens construiacutedas pelas caracteriacutesticas psiacutequicas individuais assim pode-se dizer que evocam

a imaginaccedilatildeo

A lembranccedila de um acontecimento do preparo de uma comida ou da ocasiatildeo em que a

saboreamos ocorre atraveacutes da imagem que fazemos dessas circunstacircncias Lembramos com cor

com cheiros com gostos Lembramos imaginando e eacute isso que Paul Ricoeur traz como ponto de

partida Shepherd refere que nossos mecanismos cognitivos tecircm a qualidade de perceber e de

evocar as coisas como um todo integrado a partir de uma fraccedilatildeo (SHEPHERD 2012) o que se

assemelha ao que Ricoeur refere sobre a ligaccedilatildeo mencionada ldquoEacute sob o signo da associaccedilatildeo de

ideias que estaacute situada essa espeacutecie de curto-circuito entre memoacuteria e imaginaccedilatildeo se essas duas

afecccedilotildees estatildeo ligadas por contiguidade evocar uma - portanto imaginar - eacute evocar a outra-

portanto lembrar-se delardquo (RICOEUR 2014 p25) Essa ideia associa-se ao fato de que todos os

registros que os sentidos percebem oriundos do mundo externo ao corpo satildeo traduzidos em

percepccedilotildees e entatildeo em lembranccedilas a serem armazenadas A lembranccedila torna-se uma impressatildeo

da experiecircncia e natildeo seu registro idecircntico uma vez que pode ser compreendida como uma

reconstruccedilatildeo do passado a partir da perspectiva atual O que laacute fixamos natildeo eacute idecircntico ao que no

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presente podemos evocar pois outras vivecircncias se colocam no caminho nos transformam e

modificam nosso modo de recordar o que um dia haviacuteamos registrado

O inconsciente em todo o processo pode guardar a sete chaves algumas das informaccedilotildees

fixadas parte do que vivemos passaraacute a ser liberado ou escondido por sua tutela Lembramos de

algo pela imaginaccedilatildeo do que permaneceu desse algo em nosso mundo interno na compreensatildeo

neurocientiacutefica os registros captados pelos sentidos ficam armazenados em estruturas

especiacuteficas predominantemente no hemisfeacuterio direito quando as lembranccedilas estiverem

conectadas a emoccedilotildees Uma lsquopistarsquo que dermos agrave memoacuteria seja uma figura um som um gosto

um aroma ou uma textura ou uma emoccedilatildeo podem trazer de volta em viagem ultraveloz a cena

arquivada com todas as transformaccedilotildees que o tempo provoca em noacutes

Eacute possiacutevel compreender que a memoacuteria identifica o indiviacuteduo e sua bagagem de

vivecircncias pois soacute nos lembramos do que conhecemos ldquoReconhecer algueacutem significa saber jaacute tecirc-

lo visto antes assim como recordar-se de um acontecimento significa saber que este jaacute ocorreu no

passadordquo (MINKOWSKI 2004 p143) O entendimento sobre suas consideraccedilotildees eacute a de que

uma lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a tonalidade emotiva com que este foi

percebido ou seja a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos

recordaremos dela no futuro porque eacute assim que a conhecemos Sobre tal aspecto Ivan

Izquierdo neurocientista especializado neste campo refere

Podemos afirmar conforme Norberto Bobbio que somos aquilo que recordamos

literalmente Natildeo podemos fazer aquilo que natildeo sabemos nem comunicar nada que

desconheccedilamos isto eacute que natildeo esteja na nossa memoacuteria Tambeacutem natildeo estatildeo agrave nossa

disposiccedilatildeo os conhecimentos inacessiacuteveis nem formam parte de noacutes os episoacutedios dos

quais esquecemos ou os quais nunca atravessamos O acervo de nossas memoacuterias faz

com que cada um de noacutes seja o que eacute um indiviacuteduo um ser para o qual natildeo existe outro

idecircntico (IZQUIERDO 2011 p11 grifo do autor)

O psicopatologista Eugeacutene Minkowski aborda a memoacuteria no capiacutetulo intitulado lsquoO

passadorsquo em seu livro O tempo vivido Tal afirmaccedilatildeo expressa que ela eacute parte de nosso tempo

vivido e atraveacutes da reflexatildeo de Ivan Izquierdo pode-se compreender que ela eacute parte do nosso

tempo de conhecimento vivido A ideia de que a memoacuteria faz de noacutes ldquo[] um ser para o qual natildeo

existe outro idecircnticordquo (IZQUIERDO 2011 p12) reforccedila a noccedilatildeo de que esse fenocircmeno eacute um

elemento inerente a um sujeito uacutenico com suas experiecircncias percepccedilotildees e bagagens Ainda

conforme Ivan Izquierdo ldquo[] o conjunto das memoacuterias de cada um determina aquilo que se

denomina personalidade ou forma de serrdquo (IZQUIERDO 2011 p12) O neurocientista refere que

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as emoccedilotildees e os estados de acircnimo tecircm importante papel no processo da memoacuteria tanto em

termos de aquisiccedilatildeo quanto de formaccedilatildeo e finalmente de evocaccedilatildeo

Falar em emoccedilotildees ou estados de acircnimo remete agrave referecircncia de Minkowski sobre as

tonalidades afetivas O psicopatologista faz alusatildeo ao viacutenculo entre emoccedilotildees e memoacuteria

expressando o modo como o sentir influencia o lembrar Eacute possiacutevel comprender sua ideia da

seguinte forma colocamos a mirada sobre nosso mundo interior para focar em uma fraccedilatildeo do

passado que sentimos presente em noacutes Isso seria equivalente agrave evocaccedilatildeo de uma lembranccedila Ao

percebermos o sentimento ligado a esse tempo anterior essa lembranccedila amplia-se agrave medida que

a encontramos em nosso iacutentimo A conexatildeo emotiva torna a vivecircncia passada cada vez mais

visiacutevel e de contornos niacutetidos como um feixe de luz que ao aumentar expande a aacuterea de

claridade e mostra os detalhes de um terreno

Tal iluminaccedilatildeo reproduz vivecircncias remotas como se fossem situaccedilotildees que nos parecem

recentes pela forccedila emotiva ligada ao evento passado Entretanto nossa impressatildeo sobre tais

eventos pode ser transformada por aspectos psiacutequicos que ocorrem entre o tempo real e o

lembrado modificando a impressatildeo do fato em suas nuances Permanece a essecircncia prazerosa ou

penosa de um fato mas a evocaccedilatildeo da lembranccedila pode tornaacute-la um rosa suave ou um vermelho

vivo Para mudar seu tom contam tanto nosso estado de acircnimo ao vivermos algo quanto ao

lembrarmos esse algo Memoacuteria e emoccedilatildeo assim estatildeo intimamente ligadas entre si em especial

no que concerne agraves nossas experiecircncias de vida

O termo memoacuteria no singular remete-nos a dois eixos um primeiro mais evidente eacute o

tempo o segundo subterracircneo o espaccedilo Tal colocaccedilatildeo vem do fato de que a memoacuteria pode ser

percebida como um espaccedilo subjetivo em nossa vida psiacutequica motivo pelo qual tecemos a

analogia com a imagem da despensa de cozinha Esta eacute de fato um espaccedilo objetivo mas cuja

subjetividade aparece ao revelar muitos aspectos sobre o morador da casa Seria plausiacutevel referir

que a despensa identifica esse sujeito em suas preferecircncias alimentares em sua condiccedilatildeo

econocircmica em sua regularidade nas refeiccedilotildees feitas no lar aleacutem de demonstrar se vive sozinho

ou em famiacutelia se tem haacutebitos saudaacuteveis se manteacutem cuidados com a higiene com o meio-

ambiente com os prazos dos alimentos e por aiacute vai A despensa seria assim a memoacuteria da casa

um espaccedilo onde se colocam os ingredientes onde satildeo armazenados e de onde satildeo retirados para o

uso imediato Nessa analogia os ingredientes remetem-nos agrave imagem das lembranccedilas guardadas

na despensa

24

A partir dessa reflexatildeo eacute importante pensar no par lembranccedilas e memoacuteria como uma

relaccedilatildeo entre plural e singular Podem-se estabelecer ainda outras relaccedilotildees como a ideia de que a

memoacuteria maior conteacutem as lembranccedilas menores e muacuteltiplas A primeira representa um amplo

espaccedilo subjetivo para o armazenamento das segundas Uma comparaccedilatildeo mais detalhada colocaria

alguns itens nas estantes mais altas da despensa onde o acesso eacute difiacutecil ou mais ao fundo atraacutes

de elementos que satildeo usados com regularidade Natildeo eacute raro que esses ingredientes em partes

menos visualizadas sejam menos usados enquanto aqueles mais visiacuteveis sejam retirados dali e

consumidos com maior frequecircncia Tanto a regularidade do uso quanto os gostos alimentares

definem os produtos que ficam disponiacuteveis em estantes de mais faacutecil acesso em contraponto os

menos usados entram na categoria dos menos vistos

Aspectos que raramente enxergamos ficam esquecidos na despensa em lugares difiacuteceis e

ateacute passam da validade se natildeo tomamos conhecimento de que estatildeo laacute natildeo iremos evocaacute-los e

acabam por permanecer por um longo periacuteodo no canto mais longiacutenquo daquele espaccedilo Inuacutemeras

vezes esquecemos de usar produtos que guardamos haacute mais tempo e lembramos de acessar os

mais presentes em nossa rotina Aleacutem disso cabe lembrar que haacute estantes ou compartimentos em

uma despensa que servem justamente ao propoacutesito de definiccedilatildeo de categorias as mais

importantes alcanccedilamos estendendo o braccedilo enquanto as de menor relevacircncia recebem acesso

pelo uso da escada domeacutestica da lanterna para a procura ou no caso de estarem nas prateleiras

inferiores de posiccedilotildees fiacutesicas para encontrar o elemento procurado

Ao guardarmos algo que pouco usamos criamos espaccedilos de esquecimento dentro da

memoacuteria Para que resgatemos esses ingredientes haacute elementos como a imagem que nos

despertam para a recordaccedilatildeo de que um dia tomamos contato com ele Mais uma vez surge a

figura do conhecimento preacutevio entatildeo do passado como criteacuterio para o reconhecimento

Reconhecer eacute conhecer novamente voltar a tomar contato

Considerando a partir da analogia estabelecida as lembranccedilas como elemento plural

presente na memoacuteria de caraacuteter singular torna-se necessaacuterio compreender o fenocircmeno da

memoacuteria sob vaacuterias perspectivas Haacute diversos fatores envolvidos no modo como nos lembramos

de algo no porquecirc dessas lembranccedilas tornarem-se de mais faacutecil ou de mais difiacutecil acesso para

quais registros damos mais relevacircncia ao lsquoguardar na despensarsquo e outras variaacuteveis ligadas ao

lembrar e ao esquecer Tais perspectivas natildeo estatildeo divididas mas sim ligadas no texto uma vez

que ao contraacuterio das prateleiras da despensa a memoacuteria eacute um espaccedilo sem divisotildees estabelecidas

25

na experiecircncia humana Mesmo do ponto de vista cerebral ela ocupa diversas aacutereas e muacuteltiplos

sistemas sendo resultado de um processo de integraccedilatildeo de estruturas e de funccedilotildees cerebrais

Um aspecto relevante sobre o uso da palavra memoacuteria quando usado no plural estaacute na

literatura Ler as memoacuterias de um autor remete agrave ideia de uma narrativa autobiograacutefica ou

biograacutefica novamente ligando a ideia de memoacuteria ao campo da definiccedilatildeo de identidade

Considero que esse termo seja o de maior importacircncia no conjunto do fenocircmeno pois mesmo que

se trate da memoacuteria de um grupo essa revela seu caraacuteter identitaacuterio

Identidade eacute palavra-chave no campo da memoacuteria O psiquiatra italiano Sandro

Domenichetti apresenta a lembranccedila como ldquo[] experiecircncia que constroacutei a consciecircncia de si e

que define a relaccedilatildeo entre o mundo afetivo e aquele cognitivordquo (DOMENICHETTI 2003 p1)

de acordo com ele entre as funccedilotildees da consciecircncia estaacute a diacrocircnica ou seja a de percepccedilatildeo da

identidade estaacutevel atraveacutes do tempo A consciecircncia entatildeo eacute um elemento central neste campo

Domenichetti refere que esta ldquo[] parece entatildeo configurar-se como um tipo de memoacuteria de si no

tempordquo (DOMENICHETTI 2003 p1) enfatizando a perspectiva de que ldquo[] um senso de si eacute

essencial para que todas as minhas lembranccedilas sejam exatamente as minhas lembranccedilasrdquo

(DOMENICHETTI 2003 p1 grifo do autor)

Outro elemento apontado por este autor tem como base a explanaccedilatildeo de Israel Rosenfeld

meacutedico e pesquisador com atuaccedilatildeo relevante no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti

Roselfield expotildee a continuidade da consciecircncia como derivada da correspondecircncia que o ceacuterebro

estabelece em momentos sucessivos com eventos no espaccedilo e no tempo sendo seu elemento vital

a autoconsciecircncia Para Roselfield

As minhas lembranccedilas emergem da relaccedilatildeo entre meu corpo e a imagem que meu

ceacuterebro tem do meu corpo (uma atividade inconsciente na qual o ceacuterebro constroacutei para si

uma ideia generalizada do corpo ideia que se modifica continuamente) Eacute esta relaccedilatildeo

que cria o senso de lsquosirsquo (DOMENICHETTI 2003 p2)

A fim de corroborar a relaccedilatildeo entre corpo e ceacuterebro estabelecida por Rosenfield

Domenichetti refere-se a Henri Bergson (1859-1941) filoacutesofo e diplomata francecircs cuja obra

destacou-se pelas contribuiccedilotildees no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti

[] o nosso conhecimento da realidade eacute feito de percepccedilotildees impregnadas de

lembranccedilas A memoacuteria de Bergson funciona atraveacutes de operaccedilotildees de coleta de imagens

que progressivamente satildeo produzidas o corpo eacute uma dessas imagens a uacuteltima para ser

exato E se o corpo em geral eacute uma imagem eacute oacutebvio que o eacute tambeacutem o ceacuterebro Este

ligar a percepccedilatildeo a memoacuteria e o corpo com passagens de um a outro atraveacutes da

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dimensatildeo temporal define a construccedilatildeo da funccedilatildeo mental da qual a memoacuteria eacute atributo

fundador como organizaccedilatildeo autoreflexiva que pensa o corpo (DOMENICHETTI 2003

p1)

Pode-se compreender entatildeo corpo e ceacuterebro como palcos onde as imagens da memoacuteria

satildeo encenadas Tais imagens unem-se agraves percepccedilotildees atuais do indiviacuteduo compondo um conjunto

formado pelo antes e o agora ndash passado e presente ndash intrincados Ainda referindo-se agraves

contribuiccedilotildees de Roselfield nesse campo Domenichetti acrescenta

Tambeacutem na visatildeo de Roselfield assim a memoacuteria natildeo pode ser considerada como um

manual de informaccedilotildees mas sobretudo como uma atividade contiacutenua do ceacuterebro Isso se

observa principalmente no caso das imagens Quando recordo a imagem de um evento

da minha infacircncia por exemplo natildeo a extraio de um hipoteacutetico arquivo de imagens

preexistentes devo formar conscientemente uma nova imagem (DOMENICHETTI

2003 p2)

Tais explanaccedilotildees sobre o papel da imagem para a recordaccedilatildeo coincidem com a

perspectiva de Paul Ricoeur em A lembranccedila e a imagem na primeira parte de sua obra jaacute

referida Ele questiona ldquoComo explicar que a lembranccedila retorne em forma de imagem e que a

imaginaccedilatildeo assim mobilizada chegue a revestir-se das formas que escapam agrave funccedilatildeo do irrealrdquo

(RICOEUR 2014 p66)

Para chegar a respostas possiacuteveis ele recorre a Bergson entre outros autores Deste

aponta que ldquoAdoto como hipoacutetese de trabalho a concepccedilatildeo bergsoniana da passagem da

lsquolembranccedila-purarsquo agrave lembranccedila-imagemrdquo (RICOEUR 2014 p67) De acordo com Ricoeur sobre

o trabalho de Bergson ldquoele traz de certo modo a lembranccedila para uma aacuterea de presenccedila

semelhante agrave da percepccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p68) ressaltando da imaginaccedilatildeo o que chama

de ldquofunccedilatildeo visualizanterdquo ou seja ldquosua maneira de dar a verrdquo (RICOEUR 2014 p68) Ricoeur

esclarece que

Eacute como se a forma que Bergson chama intermediaacuteria ou mista da lembranccedila isto eacute a

lembranccedila-imagem a meio-caminho entre lsquolembranccedila-purarsquo e a lembranccedila reinscrita na

percepccedilatildeo no estaacutegio em que o reconhecimento desabrocha no sentimento do deacutejagrave vu

correspondesse a uma forma intermediaacuteria da imaginaccedilatildeo a meio caminho entre a ficccedilatildeo

e a alucinaccedilatildeo a saber o componente imagem da lembranccedila-imagem Portanto eacute

tambeacutem como forma mista que eacute preciso falar da funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo que consiste em

lsquopocircr debaixo dos olhosrsquo funccedilatildeo que podemos chamar ostensiva trata-se de uma

imaginaccedilatildeo que mostra que expotildee que deixa ver (RICOEUR 2014 p70)

Assim o que se tem eacute uma zona de fronteiras pouco demarcadas entre a percepccedilatildeo a

lembranccedila e a imaginaccedilatildeo Ricoeur refere em relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas e diferenccedilas entre as duas

uacuteltimas ldquoCertamente dissemos e repetimos que a imaginaccedilatildeo e a memoacuteria tinham como traccedilo

27

comum a presenccedila do ausente e como traccedilo diferencial de um lado a suspensatildeo de toda posiccedilatildeo

de realidade e a visatildeo de um irreal do outro a posiccedilatildeo de um real anteriorrdquo (RICOEUR 2014

p61)

Nesse sentido o papel da percepccedilatildeo eacute o de captar a realidade atraveacutes dos cinco sentidos

para entatildeo formar registros que no futuro seratildeo lembranccedilas As imagens que resgato satildeo

diferentes das que percebi no instante do acontecimento pois se misturam com outros

ingredientes como as emoccedilotildees por exemplo Ricoeur aponta ldquoTeriacuteamos assim a sequecircncia

percepccedilatildeo lembranccedila ficccedilatildeo Um limiar de inatualidade eacute transposto entre lembranccedila e ficccedilatildeordquo

(RICOEUR 2014 p65) Esse limiar de inatualidade expresso por ele como ldquotransposto entre

lembranccedila e ficccedilatildeordquo parece referir-se agrave passagem do tempo que torna as imagens de uma

vivecircncia cada vez mais proacuteximas da imaginaccedilatildeo quanto mais longiacutenquo for o passado

O filoacutesofo Gaston Bachelard em A poeacutetica do espaccedilo ao mencionar as lembranccedilas

associadas ao habitar de uma nova casa expressa o entrelaccedilamento entre a memoacuteria e a

imaginaccedilatildeo

E o devaneio se aprofunda de tal modo que para o sonhador do lar um acircmbito

imemorial se abre para aleacutem da mais antiga memoacuteria A casa como o fogo como a

aacutegua nos permitiraacute evocar na sequecircncia de nossa obra luzes fugidias de devaneio que

iluminam a siacutentese do imemorial com a lembranccedila Nessa regiatildeo longiacutenqua memoacuteria e

imaginaccedilatildeo natildeo se deixam dissociar Ambas trabalham para seu aprofundamento muacutetuo

Ambas constituem na ordem dos valores uma uniatildeo da lembranccedila com a imagem

(BACHELARD 2012 p25)

A relaccedilatildeo entre lembranccedila e imagem em Bachelard encontra-se bem representada atraveacutes

da ideia da casa e do habitar onde esses dois fenocircmenos se fundem Ele menciona a ideia de que

ldquo[] o calendaacuterio da nossa vida soacute pode ser estabelecido em seu processo produtor de imagensrdquo

(BACHELARD 2012 p28) Este calendaacuterio parece ser para o autor as lembranccedilas recordadas

por meio da imagem das cenas vividas e sentidas Bachelard refere que ldquo[] a imagem

estabelece-se numa cooperaccedilatildeo entre o real e o irreal pela participaccedilatildeo da funccedilatildeo do real e da

funccedilatildeo do irrealrdquo (BACHELARD 2012 p73) tecendo uma ligaccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo memoacuteria e

percepccedilatildeo Cabe ressaltar nesse ponto o aspecto de esta uacuteltima ocorrer atraveacutes dos cinco

sentidos veiacuteculo de traduccedilatildeo do mundo externo para o interno Retorna-se ao jaacute apresentado

sobre a relevacircncia do corpo para a memoacuteria Ricoeur menciona a esse respeito

Eacute o elo entre memoacuteria corporal e memoacuteria dos lugares que legitima a tiacutetulo primordial a

dessimplicaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo de sua forma objetivada O corpo constitui desse

28

ponto de vista o lugar primordial o aqui em relaccedilatildeo ao qual todos os outros lugares satildeo

laacute (RICOEUR 2014 p59)

Compreender o papel da memoacuteria do corpo conduz agrave identificaccedilatildeo desta dentro da

consciecircncia de si pois diz respeito aos registros deixados pelas vivecircncias com potencial de

serem encenados novamente pelo indiviacuteduo O ato de cozinhar seria um exemplo de como a

memoacuteria corporal faz com que se pratique o ato culinaacuterio como um conhecimento do corpo

muitas vezes executado de forma habitual Ricoeur aponta que ldquo[] a memoacuteria corporal pode ser

lsquoagidarsquo como todas as outras modalidades de haacutebito como a de dirigir um carro que estaacute em meu

poder Ela varia segundo todas as variantes do sentimento de familiaridade ou de estranhezardquo

(RICOEUR 2014 p57) O autor acrescenta

Assim a memoacuteria corporal eacute povoada de lembranccedilas afetadas por diferentes graus de

distanciamento temporal a proacutepria extensatildeo do lapso de tempo decorrido pode ser

percebida sentida na forma de saudade nostalgia [] O momento da recordaccedilatildeo eacute

entatildeo o do reconhecimento (RICOEUR 2014 p57)

Partindo dessa compreensatildeo seria possiacutevel pensar em corpo casa e lugar como espaccedilos

onde a recordaccedilatildeo nasce do mais especiacutefico o corpo ao mais inespeciacutefico o lugar Em todos

esses espaccedilos haacute accedilotildees e vivecircncias que podem constituir lembranccedilas Conforme Ricoeur

A transiccedilatildeo da memoacuteria corporal para a memoacuteria dos lugares eacute assegurada por atos tatildeo

importantes como orientar-se deslocar-se e acima de tudo habitar Eacute na superfiacutecie

habitaacutevel da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado lugares memoraacuteveis

Assim as lsquocoisasrsquo lembradas satildeo intrinsecamente associadas a lugares E natildeo eacute por acaso

que dizemos sobre uma coisa que aconteceu que ela teve lugar Eacute de fato nesse niacutevel

primordial que se constitui o fenocircmeno dos lsquolugares de memoacuteriarsquo (RICOEUR 2014

p57-58)

Essa ideia pode ser corroborada com a perspectiva de Bachelard sobre o habitar

Eacute preciso dizer como habitamos o nosso espaccedilo vital de acordo com todas as dialeacuteticas

da vida como nos enraizamos dia a dia num lsquocanto do mundorsquo

Porque a casa eacute nosso canto do mundo Ela eacute como se diz amiuacutede o nosso primeiro

universo Eacute um verdadeiro cosmos (BACHELARD 2012 p24)

A respeito da relevacircncia da casa para a formaccedilatildeo e o armazenamento das lembranccedilas

Bachelard apresenta contribuiccedilotildees que reforccedilam a visatildeo de Ricoeur sobre o papel dos lugares

para a memoacuteria

Logicamente eacute graccedilas agrave casa que um grande nuacutemero de nossas lembranccedilas estatildeo

guardadas e quando a casa se complica um pouco quando tem um poratildeo e um soacutetatildeo

cantos e corredores nossas lembranccedilas tecircm refuacutegios cada vez mais bem caracterizados

29

A eles regressamos durante toda a vida em nossos devaneios (BACHELARD 2012

p28)

A ideia da memoacuteria associada ao espaccedilo seja corpo casa ou lugar conduz agrave reflexatildeo de

que essa tem uma existecircncia subjetiva interna que eacute representada pelo aspecto objetivo material

externo isso se daacute atraveacutes de vivecircncias associadas sempre a um primeiro espaccedilo o corpoacutereo e a

um segundo mais amplo que eacute o lugar para onde a lembranccedila remete Mais uma vez as

lembranccedilas tecircm imagens de correspondecircncia eacute como se os lugares dessem carne e osso a elas

confirmam sua existecircncia em um tempo e em um espaccedilo que mesmo passado relaciona-se ao

mundo fiacutesico Quanto mais longiacutenquas no tempo mais proacuteximas se encontram da imaginaccedilatildeo

como jaacute visto entretanto ainda assim tecircm um cenaacuterio onde vivem

Examinada como fenocircmeno a memoacuteria tem propriedades que a identificam Ricoeur

estabeleceu trecircs pares de oposiccedilotildees para a compreensatildeo da fenomenologia da memoacuteria o

primeiro deles eacute a dupla haacutebitomemoacuteria sobre a qual refere

O que faz a unidade desse espectro eacute a comunidade da relaccedilatildeo com o tempo Nos dois

casos extremos pressupotildee-se uma experiecircncia anteriormente adquirida mas num caso o

do haacutebito essa aquisiccedilatildeo estaacute incorporada agrave vivecircncia presente natildeo marcada natildeo

declarada como passado no outro caso faz-se referecircncia agrave anterioridade como tal da

aquisiccedilatildeo antiga Nos dois casos por conseguinte continua sendo verdade que a

memoacuteria lsquoeacute do passadorsquo mas conforme dois modos um natildeo marcado outro sim da

referecircncia ao lugar no tempo da experiecircncia inicial

[] A operaccedilatildeo descritiva consiste entatildeo em classificar as experiecircncias relativas agrave

profundidade temporal desde aquelas em que de algum modo o passado adere ao

presente ateacute aquelas em que o passado eacute reconhecido em sua preteridade passada

(RICOEUR 2014 p43)

A segunda dupla de opostos estabelecida por Ricoeur eacute composta pelo par

evocaccedilatildeobusca representado pelos dois trechos abaixo No primeiro a reflexatildeo sobre evocaccedilatildeo

no segundo sobre a busca

1) Entendamos por evocaccedilatildeo o aparecimento atual de uma lembranccedila Eacute a esta que

Aristoacuteteles destinava o termo mneme designando por anamnesis o que chamaremos

mais adiante de busca ou recordaccedilatildeo Ele caracterizava a mneme como pathos como

afecccedilatildeo ocorre que nos lembramos disto ou daquilo nesta ou naquela ocasiatildeo entatildeo

temos uma lembranccedila Portanto eacute em oposiccedilatildeo agrave busca que a evocaccedilatildeo eacute uma

afecccedilatildeo Enquanto tal em outras palavras desconsiderando sua posiccedilatildeo polar a

evocaccedilatildeo traz a carga do enigma que movimentou as investigaccedilotildees de Platatildeo e de

Aristoacuteteles ou seja a presenccedila agora do ausente anteriormente percebido

experimentado aprendido (RICOEUR 2014 p45)

2) Voltemo-nos agora para o outro poacutelo do par evocaccedilatildeobusca Eacute ele que a

denominaccedilatildeo grega da anamnesis designava Platatildeo a mitificara ligando-a a um saber

preacute-natal do qual estariacuteamos afastados por um esquecimento ligado agrave inauguraccedilatildeo da

vida da alma num corpo esquecimento de certo modo natal que faria da busca um

30

reaprender do esquecimento Aristoacuteteles [] naturalizou de certo modo a anamnesis

comparando-a agravequilo que na experiecircncia cotidiana chamamos de recordaccedilatildeo [] o

ana de anamnesis significa volta retomada recobramento do que anteriormente foi

visto experimentado ou aprendido portanto de alguma forma significa repeticcedilatildeo

Assim o esquecimento eacute designado obliquamente como aquilo contra o que eacute

dirigido o esforccedilo da recordaccedilatildeo (RICOEUR 2014 p46)

O que Ricoeur propotildee assim com o par evocaccedilatildeobusca eacute a diferenciaccedilatildeo entre a

lembranccedila e a recordaccedilatildeo sendo a primeira segundo ele representativa do surgimento

espontacircneo de um registro gravado na memoacuteria enquanto a segunda seria resultado de uma

procura ativa voluntaacuteria Referindo as ideias de Bergson sobre lsquorecordaccedilatildeo instantacircnearsquo e

lsquorecordaccedilatildeo laboriosarsquo aponta a distinccedilatildeo ldquo[] podendo a recordaccedilatildeo instantacircnea ser considerada

como o grau zero da busca e a recordaccedilatildeo laboriosa e a recordaccedilatildeo laboriosa como sua forma

expressardquo (RICOEUR 2014 p46) Assim a lembranccedila viria de uma evocaccedilatildeo proacutexima ao que

Ricoeur chama de lsquoautomatismorsquo e lsquorecordaccedilatildeo mecacircnicarsquo diferente da recordaccedilatildeo que viria lsquoda

reflexatildeo da reconstituiccedilatildeo inteligentersquo estando ambas ldquo[] intimamente mescladas na

experiecircncia comumrdquo (RICOEUR 2014 p46) Por fim com relaccedilatildeo a esse par Ricoeur refere

Eacute de fato o esforccedilo de recordaccedilatildeo que oferece a melhor ocasiatildeo de fazer lsquomemoacuteria do

esquecimentorsquo para falar com antecipaccedilatildeo como Santo Agostinho A busca da

lembranccedila comprova uma das finalidades principais do ato de memoacuteria a saber lutar

contra o esquecimento arrancar alguns fragmentos de lembranccedila agrave lsquorapacidadersquo do

tempo (Santo Agostinho dixit) ao lsquosepultamentorsquo no esquecimento Natildeo eacute somente o

caraacuteter penoso do esforccedilo de memoacuteria que daacute agrave relaccedilatildeo sua coloraccedilatildeo inquieta mas o

temor de ter esquecido de esquecer de novo de esquecer amanhatilde de cumprir esta ou

aquela tarefa porque amanhatilde seraacute preciso natildeo esquecer [] de se lembrar (RICOEUR

2014 p48)

A terceira dupla de opostos proposta por Ricoeur em sua fenomenologia da memoacuteria eacute

constituiacuteda pela polaridade reflexividademundanidade A respeito do elemento reflexividade

Ricoeur esclarece

Natildeo nos lembramos somente de noacutes vendo experimentando aprendendo mas das

situaccedilotildees do mundo nas quais vimos experimentamos aprendemos Tais situaccedilotildees

implicam o proacuteprio corpo e o corpo dos outros o espaccedilo onde se viveu enfim o

horizonte do mundo e dos mundos sob o qual alguma coisa aconteceu Entre

reflexividade e mundanidade haacute mesmo uma polaridade na medida em que a

reflexividade eacute um rastro irrecusaacutevel da memoacuteria em sua fase declarativa algueacutem diz

lsquoem seu coraccedilatildeorsquo que viu experimentou aprendeu anteriormente sob esse aspecto nada

deve ser negado sobre o pertencimento da memoacuteria agrave esfera de interioridade

(RICOEUR 2014 p53-54)

A mundanidade por sua vez constitui um elemento significativo no estudo deste

capiacutetulo uma vez que contempla a existecircncia dos rituais atraveacutes da abordagem do fenocircmeno da

31

comemoraccedilatildeo Ricoeur o associa agrave ldquo[] gestualidade corporal e agrave espacialidade dos rituais que

acompanham os ritmos temporais da celebraccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p60) A associaccedilatildeo do ato

de comemoraccedilatildeo com os rituais eacute explicada por ele

Natildeo haacute efetuaccedilatildeo ritual sem a evocaccedilatildeo de um mito que orienta a lembranccedila para o que eacute

digno de ser comemorado As comemoraccedilotildees satildeo assim espeacutecies de evocaccedilotildees no

sentido de reatualizaccedilatildeo eventos fundadores apoiados pelo lsquochamadorsquo a lembrar-se que

soleniza a cerimocircnia- comemorar observa Casey eacute solenizar tomando seriamente o

passado e celebrando-o em cerimocircnias apropriadas (RICOEUR 2014 p60)

A partir da reflexatildeo de Ricoeur sobre o par reflexividademundanidade e neste uacuteltimo

elemento a presenccedila do ritual cabe salientar o estudioso Mircea Eliade Este em sua obra Mito e

Realidade apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o mito

O mito conta uma histoacuteria sagrada ele relata um acontecimento ocorrido no tempo

primordial o tempo fabuloso do lsquoprinciacutepiorsquo Em outros termos o mito narra como

graccedilas agraves faccedilanhas dos Entes Sobrenaturais uma realidade passou a existir seja uma

realidade total o Cosmo ou apenas um fragmento uma ilha uma espeacutecie vegetal um

comportamento humano uma instituiccedilatildeo Eacute sempre portanto a narrativa de uma

lsquocriaccedilatildeorsquo ele relata de que modo algo foi produzido e comeccedilou a ser O mito fala apenas

do que realmente ocorreu do que se manifestou plenamente (ELIADE 2011 p11)

A relevacircncia dessa consideraccedilatildeo reside em corroborar que ldquo[] pelo fato de relatar as

gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestaccedilatildeo dos seus poderes sagrados o mito se torna o

modelo exemplar de todas as atividades humanas significativasrdquo (ELIADE 2011 p12) A

comemoraccedilatildeo enseja o rito que reencena o mito por isso eacute mencionada na explanaccedilatildeo de Ricoeur

quando se refere aos rituais Mircea Eliade esclarece ldquo[] a principal funccedilatildeo do mito consiste em

revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas tanto a

alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE

2011 p12) Compreende-se assim a comemoraccedilatildeo como a reuniatildeo de grupo ou de um povo

para celebrar a memoacuteria conjunta de seus membros em torno de uma finalidade o rito cuja

origem estaacute no evento original o mito A ideia impliacutecita neste caso eacute a de celebrar em conjunto

a memoacuteria de algo ou seja co-memorar A fim de reforccedilar essa reflexatildeo apontamos outra

explanaccedilatildeo de Eliade

Para o homem das sociedades arcaicas ao contraacuterio o que aconteceu ab origine pode ser

repetido atraveacutes do poder dos ritos Para ele portanto o essencial eacute conhecer os mitos

Essencial natildeo somente porque os mitos lhe oferecem uma explicaccedilatildeo do Mundo e de seu

proacuteprio modo de existir no Mundo mas sobretudo porque ao rememorar os mitos e

reatualiza-los ele eacute capaz de repetir o que os Deuses os Heroacuteis e os Ancestrais fizeram

ab origine Conhecer os mitos eacute aprender o segredo da origem das coisas Em outros

32

termos aprende-se natildeo somente como as coisas vieram agrave existecircncia mas tambeacutem onde

encontra-las e como fazer com que reapareccedilam quando desaparecem (ELIADE 2011

p18)

No contexto do presente capiacutetulo interessa ressaltar a compreensatildeo do ritual como

celebraccedilatildeo de uma memoacuteria ancestral por parte de um grupo A ancestralidade dessa memoacuteria

tem em sua raiz o mito que lhe deu origem Tal entendimento tem associaccedilatildeo com o cozinhar e

com o partilhar o alimento com a reuniatildeo da famiacutelia em torno da comida e com a repeticcedilatildeo das

praacuteticas culinaacuterias que mesmo evoluindo ao longo do tempo remontam o primordial tornar cru

em cozido Outro elemento ligado agrave realizaccedilatildeo de rituais associados agrave cozinha estaacute na recitaccedilatildeo

do modo de fazer um prato quando transmitido atraveacutes de uma receita escrita O caminho que

essa percorre entre as geraccedilotildees de uma famiacutelia eacute emblemaacutetico de sua forccedila ritualiacutestica como se

carregasse de forma transgeracional a memoacuteria desse grupo atraveacutes do como-se-faz de uma

determinada praacutetica

Antes da existecircncia da receita no caderno o conhecimento empiacuterico dos antepassados

sobre o fazer culinaacuterio era ensinado oralmente e atraveacutes do proacuteprio fazer quando recitaccedilotildees eram

feitas para que o prato saiacutesse a contento essas eram assim a representaccedilatildeo do ritual naquele

grupo familiar Nesse sentido retomamos Eliade em sua explicaccedilatildeo sobre a recitaccedilatildeo do mito

Em Timor por exemplo quando germina um arrozal dirige-se ao campo algueacutem que

conhece as tradiccedilotildees miacuteticas referentes ao arroz [] Recitando o mito de origem

obriga-se o arroz a crescer tatildeo belo vigoroso e abundante como era quando apareceu

pela primeira vez Natildeo eacute com o fim de lsquoinstruiacute-lorsquo ou ensinar-lhe a maneira como deve

comportar-se que o oficiante lembra ao arroz o modo como foi criado Ele o forccedila

magicamente a retornar agrave origem isto eacute a reiterar sua criaccedilatildeo exemplar (ELIADE

2011 p19)

Esses conhecimentos eram transmitidos junto com a receita ou seja eram parte da

memoacuteria daquele prato em seu papel na tradiccedilatildeo familiar Vale lembrar que a etimologia de

receita estaacute no latim recepta alusivo a receber expressa entatildeo aquilo que se recebe em termos

de ensinamento sobre o fazer de uma comida especiacutefica Haacute diversas expressotildees no folclore da

cozinha que remontam a transmissatildeo do saber culinaacuterio em uma cultura

Haacute diferenccedila entre a memoacuteria individual essa que nos identifica como indiviacuteduos e a

memoacuteria coletiva Como exemplo da uacuteltima cito esse lsquosaber culinaacuterio em uma culturarsquo que

remete agrave compreensatildeo sobre a memoacuteria coletiva no contexto deste capiacutetulo Esta assim como a

individual tem em seu eixo a noccedilatildeo de identidade no caso da memoacuteria de um indiviacuteduo como jaacute

visto refere-se agrave consciecircncia de si mesmo como base daquilo de que ele eacute capaz de se lembrar

33

para que as lembranccedilas sejam suas no caso da memoacuteria coletiva este eixo estaacute na identidade do

grupo que a conteacutem pois a memoacuteria e o grupo alimentam-se reciprocamente o grupo se manteacutem

vivo pelas memoacuterias enquanto essas permanecem presentes pela unidade do grupo

A respeito dessa inter-relaccedilatildeo a pesquisadora e professora alematilde Aleida Assmann no

livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo-formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural menciona as ideias

de Maurice Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva referindo que ldquo[] a memoacuteria coletiva assegura

a singularidade e a continuidade de um grupordquo (ASSMANN 2011 p144) e esclarece

Seu interesse voltou-se apenas agrave pergunta sobre o que manteacutem as pessoas unidas em

grupos Deparou assim com o significado agregador das lembranccedilas em comum como

importante elemento de coesatildeo Derivou daiacute a noccedilatildeo da existecircncia de uma lsquomemoacuteria de

gruporsquo Mas as lembranccedilas natildeo se estabilizam somente no grupo O grupo torna estaacuteveis

as lembranccedilas A investigaccedilatildeo de Halbwachs em torno dessa lsquomemoacuteria coletivarsquo resultou

no seguinte a estabilidade da memoacuteria coletiva estaacute vinculada de maneira direta agrave

composiccedilatildeo e subsistecircncia do grupo Se o grupo se dissolve os indiviacuteduos perdem em

sua memoacuteria a parte de lembranccedilas que os fazia assegurarem-se e identificarem-se como

grupo (ASSMANN 2011 p144)

A referecircncia agrave memoacuteria ligada agrave manutenccedilatildeo de um grupo remete novamente agrave ideia no

acircmbito das vivecircncias culinaacuterias das receitas de cozinha transmitidas entre as geraccedilotildees de uma

mesma famiacutelia O elemento que sustenta a presenccedila dessa receita no grupo eacute a memoacuteria que este

tem a respeito do lsquocomo-se-fazrsquo de uma determinada comida Enquanto houver membros dessa

famiacutelia que se interessem em manter a tradiccedilatildeo daquele determinado sabor a memoacuteria seraacute

mantida ao mesmo tempo enquanto houver essa memoacuteria a integraccedilatildeo do grupo permaneceraacute

Segundo Aleida Assmann

Os estudos do historiador francecircs Pierre Nora demonstraram que por traacutes da memoacuteria

coletiva natildeo haacute alma coletiva nem espiacuterito coletivo algum mas tatildeo somente a sociedade

com seus signos e siacutembolos Por meio dos siacutembolos em comum o indiviacuteduo toma parte

de uma memoacuteria e de uma identidade tidas em comum Nora cumpriu na teoria da

memoacuteria o passo que vai do grupo vinculado na coexistecircncia espaccedilo-temporal tema

estudado por Halbwachs agrave comunidade abstrata que se define por meio dos siacutembolos

que abrangem e agregam em niacutevel espacial e temporal Os portadores dessa memoacuteria

coletiva natildeo precisam conhecer-se para apesar disso reinvindicar para si uma identidade

comum (ASSMANN 2011 p145)

Assim como referido sobre o papel de uma receita de famiacutelia como elemento de coesatildeo

entre os membros da mesma atraveacutes das geraccedilotildees situaccedilatildeo semelhante pode ocorrer em relaccedilatildeo

a um determinado ingrediente ou preferecircncia alimentar A transmissatildeo de um saber culinaacuterio e

dos gostos de uma famiacutelia tambeacutem satildeo aspectos que se perpetuam no grupo em funccedilatildeo da

memoacuteria que agrega seus integrantes

34

A memoacuteria individual entatildeo manteacutem a identidade por dar ao indiviacuteduo sua caracteriacutestica

singular atraveacutes do tempo nela estatildeo suas impressotildees lembranccedilas e registros que compotildeem a

noccedilatildeo de permanecircncia de quem ele eacute ou seja reforccedilam nele a consciecircncia do eu na duraccedilatildeo de

ciclos que se perpetuam Ele sabe quem eacute em grande parte pelas lembranccedilas que tem de si

Circunstacircncia anaacuteloga ocorre com a memoacuteria coletiva em que o grupo se manteacutem coeso pela

consciecircncia de ser um grupo com lembranccedilas em comum o papel dessas eacute exatamente o de

manter a unidade e a permanecircncia da identidade do conjunto

A memoacuteria individual e a coletiva estatildeo portanto implicadas na vivecircncia culinaacuteria

relaccedilotildees a serem exploradas na divisatildeo que segue

13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO

A relaccedilatildeo entre cozinha e memoacuteria existe devido agrave linguagem Avanccedilando nessa

perspectiva Mariano Garciacutea e Mariana Dimoacutepulos compiladores da obra Escritos sobre la mesa-

Literatura y comida afirmam que ldquo[] a relaccedilatildeo entre linguagem e comida comeccedila desde o

momento em que graccedilas agrave escritura se conservam notiacutecias de como se comia na Antiguidaderdquo

(GARCIacuteA DIMOacutePULOS 2014 p9) Toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo assim eacute conhecida em

virtude do que se registrou ao longo das eacutepocas sob os mais diversos veiacuteculos Esse aspecto eacute

relevante tanto do ponto de vista de Histoacuteria da Humanidade quanto daquele das histoacuterias

familiares atraveacutes de escritos transmitidos de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Em ambos os exemplos os

escritos culinaacuterios satildeo representativos da memoacuteria coletiva

Ainda no que concerne a essa memoacuteria salientamos que ela tem tambeacutem outras

expressotildees presentes no acircmbito identitaacuterio de uma cultura De acordo com Daniela Bunn em sua

obra O alimento na literatura uma questatildeo cultural ldquo[] satildeo assim criados em torno da mesa

modos maneiras e ingredientes que estabelecem uma identidade cultural destinada a representar

um grupo e sua identidaderdquo (BUNN 2016 p28) Tais lsquomodos maneiras e ingredientesrsquo satildeo

elementos que constituem parte da bagagem que pertence a um grupo e agraves geraccedilotildees seguintes

atraveacutes da memoacuteria coletiva Podemos citar como exemplos os ensinamentos culinaacuterios

aprendidos atraveacutes de gestos e de relatos orais e as preferecircncias alimentares de uma famiacutelia ou de

um povo

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Visitando cadernos de receitas antigos que pertenceram a avoacutes matildees e tias percebemos

uma caracteriacutestica em comum a todos eles o elenco de ingredientes com suas medidas e a breve

descriccedilatildeo do lsquocomo-se-fazrsquo apenas para guiar a praacutetica Parece-nos inclusive que eram

anotaccedilotildees que elas faziam para si mesmas para que natildeo esquecessem de um ou outro detalhe e

natildeo registros para serem transmitidos na famiacutelia Ensinavam sim mas in loco na hora em que

estivessem fazendo Mostravam caracteriacutesticas no aspecto do prato sendo feito apontavam para

os ruiacutedos da cebola fritando faziam sentir a textura de uma massa de patildeo o cheiro de um doce

exalando pela cozinha denunciavam a pitada de sal que ainda faltava no arroz soacute de provarem

com a ponta da colher Como sabiam Porque lembravam pelo que um dia aprenderam e mais do

que isso lembravam pelo haacutebito pelo praticar e de forma mais vivencial pelo sentir atraveacutes dos

cinco sentidos

Em Pequeno alfarraacutebio de acepipes e doccediluras haacute um capiacutetulo dedicado agrave cozinha das

avoacutes intitulado lsquoNossas avoacutesrsquo cujo propoacutesito eacute o de refletir de modo especiacutefico sobre a cozinha

que atravessa a memoacuteria e permanece como registro vivo pela referecircncia ao papel que estas

desempenham na memoacuteria de muitas pessoas Os pratos e doces feitos por elas as avoacutes de tantas

geraccedilotildees tornam-se parte das lembranccedilas que deixam na famiacutelia Aleacutem disso as receitas das avoacutes

satildeo emblemaacuteticas da memoacuteria que se manteacutem viva atraveacutes de um grupo que a alimenta a

memoacuteria coletiva conforme referida por Aleida Assmann ao mencionar as ideias de Maurice

Halbwachs

Um dos aspectos mais relevantes dessa lsquocozinha das avoacutesrsquo eacute o modo como tinham no

corpo o conhecimento da praacutetica culinaacuteria No texto lsquoA memoacuteria nas matildeosrsquo eacute referido esse

aspecto

No caso da Voacute Leacuteia e de tantas avoacutes da eacutepoca acho que tinham a memoacuteria nas matildeos

com tudo o que aprendiam e praticavam vida afora No entanto a sabedoria vai aleacutem

Acredito que sentissem vivamente nas etapas os cheiros gostos sons do alimento

aspecto textura pulsaccedilatildeo As matildeos preparavam mas todo corpo participava do feito

culinaacuterio Prestavam atenccedilatildeo estavam de fato presentes na tarefa E assim a memoacuteria era

lsquocarimbadarsquo nas matildeos nos cinco sentidos na emoccedilatildeo de um sabor que alegrava a

cozinha (CARDOSO 2012 p61)

O elemento determinante da memoacuteria das avoacutes cuja vivecircncia culinaacuteria era cotidiana e de

valor reconhecido entre os familiares eacute a praacutetica Sabiam fazer e muitas vezes de modo

intuitivo adaptavam e ateacute criavam receitas por esse conhecimento A lsquomemoacuteria nas matildeosrsquo

consistia em identificar pelo tato que a massa do patildeo estava no ponto quando a pele assim

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determinava E reconheciam isso por um dia ter aprendido mas principalmente porque apoacutes

tantas repeticcedilotildees do lsquocomo-se-fazrsquo foi a pele que passou a identificar este ponto ainda antes do

conhecer cognitivo Tal reflexatildeo conduz ao que refere Ricoeur sobre o par haacutebitomemoacuteria

quando o primeiro elemento do par alude agraves circunstacircncias em que o passado adere ao presente

Um saber adquirido eacute mantido em praacutetica o que torna sua lembranccedila como um fator que integra a

atualidade do fazer e natildeo apenas o passado

Esta memoacuteria das avoacutes que mantinham vivo um modo de conhecer o ato culinaacuterio como

parte de seu saber vivencial ilustra com nitidez a ideia da memoacuteria coletiva jaacute que seu saber era

compartilhado em seu tempo natildeo pela receita escrita mas pela forma como esse era sentido e

atuado na cozinha Agrave medida que as geraccedilotildees que detinham esses conhecimentos antigos foram

terminando suas memoacuterias de forno-e-fogatildeo construiacutedas pela accedilatildeo e pelos sentidos agrave beira do

fogo ou do balcatildeo foram deixando de existir O que ficou para as geraccedilotildees seguintes foi o

conjunto de receitas escritas mas essas natildeo substituem a riqueza de um fazer empiacuterico intuitivo

recordado no corpo

O escritor e pesquisador Michael Pollan faz uma referecircncia interessante nesse sentido ao

advertir que natildeo se deve comer nada que a avoacute natildeo chamaria de comida Essa expressatildeo proposta

no fulcro de uma culinaacuteria dirigida para fora dos lares e feita de alimentos muitas vezes pouco ou

nada saudaacuteveis chama a atenccedilatildeo para o reconhecimento das avoacutes como detentoras de um saber

uacutenico aquele da lsquocomida de verdadersquo

Avoacutes matildees e tias satildeo personagens de grande relevacircncia no aprendizado de cozinha das

geraccedilotildees seguintes Eacute possiacutevel que isso se deva a seu papel ancestral de transmissatildeo de um saber

especiacutefico A memoacuteria dos antepassados constitui o alicerce a fundamentaccedilatildeo da famiacutelia a partir

de experiecircncias e de saberes que um dia foram vivenciados para serem entatildeo narrados ao longo

do tempo agraves proacuteximas geraccedilotildees O socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da

culinaacuteria brasileira tece uma relevante consideraccedilatildeo a esse respeito ldquoOs saberes culinaacuterios

evoluiacuteram como uma heranccedila que se transmite matrilinearmente ndash e os cadernos de receitas das

avoacutes satildeo uma sobrevivecircncia persistente dessa diretrizrdquo (DOacuteRIA 2014 p206)

Doacuteria aborda outro elemento significativo na contribuiccedilatildeo com o papel da memoacuteria na

cozinha a corporeidade Esse fator representa o proacuteprio ato culinaacuterio que eacute exercido pelo corpo

Eacute nele que reside a memoacuteria dos movimentos e dos gestos implicados no preparo do alimento

como bater claras sovar a massa do patildeo picar a cebola etc Neste sentido o autor refere

37

O corpo eacute tradicionalmente o principal instrumento do fazer culinaacuterio As ferramentas

da faca ao mais sofisticado equipamento utilizado na culinaacuteria molecular satildeo em geral

expedientes que visam economizar gestos ou conferir-lhes maior precisatildeo mas o

empenho fiacutesico com destreza eacute o primeiro responsaacutevel pelos resultados alcanccedilados []

(DOacuteRIA 2014 p216)

Essa reflexatildeo significa na compreensatildeo da memoacuteria ligada agrave cozinha que eacute o corpo o

principal responsaacutevel pela praacutetica culinaacuteria incluindo qualidades como a destreza mencionada

por Doacuteria A faca poderaacute cortar bem estar afiada mas se o corpo natildeo souber usaacute-la isso de nada

adiantaraacute Tal ponto nos remete agrave ideia da memoacuteria do corpo referida por Ricoeur no que tange

a uma espeacutecie de memoacuteria que pode ser agida na praacutetica habitual do indiviacuteduo fazendo parte de

sua identidade ter domiacutenio de um dado ato culinaacuterio daacute a algueacutem a consciecircncia de que sabe

fazer de que se lembra de que aquele saber eacute parte de si

Assim o ato culinaacuterio aprendido tanto por livros de receitas como pela transmissatildeo oral

por familiares representa a memoacuteria coletiva quando esse ato eacute praticado rotineiramente pelo

sujeito que aprendeu isto contribui para a consciecircncia de si representando o papel da memoacuteria

individual Cabe ressaltar tambeacutem a presenccedila da memoacuteria ancestral que acompanha as vivecircncias

de cozinha A esse propoacutesito Doacuteria refere que ldquoAssim lsquofazer para o outrorsquo ndash essa doaccedilatildeo atraveacutes

de um intermediaacuterio ao mesmo tempo material e simboacutelico como eacute a comida ndash permanece a

marca feminina do cozinhar desde os primeiros tempos da humanidaderdquo (DOacuteRIA 2014 p221)

Tal constataccedilatildeo reforccedila o papel ancestral das avoacutes matildees e tias na transmissatildeo do saber culinaacuterio

A postagem do blog Serendipity in Cucina traz no relato memorialiacutestico sobre a vivecircncia

de sua autora reflexatildeo sobre o componente ritualiacutestico do cozinhar

Haacute alguns anos decidi comeccedilar a fazer a chimia de uvas lsquoda Voacute Leacuteiarsquo a partir das

lembranccedilas que tenho do fazer de minha avoacute materna a quem assisti preparando o doce

inuacutemeras vezes Os dados sobre as proporccedilotildees tais como igual peso das cascas de uva e

do accediluacutecar e aacutegua que cubra soube por uma prima mas meu objetivo principal era o de

seguir a memoacuteria mais de vinte anos depois da uacuteltima vez que a vi fazendo o doce

Entatildeo sempre no veratildeo na eacutepoca dessas uvas repito a experiecircncia Fico em frente agrave

caccedilarola e a coloco em fogo baixo depois da fervura mexendo com a colher de pau em

giros lentos e precisos Percebo a mudanccedila atraveacutes da resistecircncia que o composto faz agrave

colher e assim progressivamente o fazer demanda mais forccedila do braccedilo direito Presto

atenccedilatildeo ao aspecto o roxo cintilante do iniacutecio torna-se mais opaco e fechado o brilho

das cascas da uva Isabel com que eacute feita a chimia diminui agrave medida que essa se

aproxima do resultado final O aroma toma conta da casa toda de forma insidiosa

Identifico que estaacute pronta pela consistecircncia reconheccedilo este momento porque a imagem

de minha avoacute em seus giros da colher de pau eacute parte de minha memoacuteria bem como a

lembranccedila das etapas da receita Quando repito seu movimento com semelhante

vagarosidade e empenho faccedilo-o pela lembranccedila do que assisti entretanto eacute provaacutevel

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que a repeticcedilatildeo se deva tambeacutem ao ritual em que consiste o cozinhar O proacuteprio fato de

estar agrave frente do fogo preparando o alimento eacute por si um ritual (CARDOSO 2015)

Assim o papel da ancestralidade manifesta-se no modo como se vivencia o contato com a

comida tanto no cozinhar quanto no comer e no partilhar a refeiccedilatildeo pessoas afins ou seja esses

atos configuram-se como rituais Retomamos as contribuiccedilotildees de Mircea Eliade para corroborar

essa compreensatildeo especialmente sua referecircncia de que

Apesar das modificaccedilotildees sofridas no decorrer dos tempos os mitos dos lsquoprimitivosrsquo

ainda refletem um estado primordial Trata-se ademais de sociedades onde os mitos

ainda estatildeo vivos onde fundamentam e justificam todo o comportamento e toda a

atividade do homem (ELIADE 2011 p10)

O fazer a comida e aquele do sentar agrave mesa para compartilhaacute-la satildeo desta forma rituais

que praticamos como seres humanos reencenando mitos A expressatildeo dos rituais estaacute em uma

memoacuteria coletiva ancestral que evocamos nessas praacuteticas

Em suma os mitos descrevem as diversas e algumas vezes dramaacuteticas irrupccedilotildees do

sagrado (ou do lsquosobrenaturalrsquo) no Mundo Eacute essa irrupccedilatildeo do sagrado que realmente

fundamenta o Mundo e o converte no que eacute hoje E mais eacute em razatildeo das intervenccedilotildees

dos Entes Sobrenaturais que o homem eacute o que eacute hoje um ser mortal sexuado e cultural

(ELIADE 2011 p11)

No que concerne agrave praacutetica da cozinha tambeacutem o cumprimento de uma receita traz um ato

de recitaccedilatildeo especialmente na parte que se refere ao lsquomodo de fazerrsquo o que conduz agrave reflexatildeo de

que tambeacutem esta eacute parte do ritual que envolve a produccedilatildeo da comida Fala-se em seguir a receita

no sentido de obedececirc-la Ao ler as orientaccedilotildees o que se lecirc eacute a presenccedila de verbos especiacuteficos do

fazer culinaacuterio conjugados no modo imperativo corte refogue asse e assim por diante Este

recitar que muitas vezes eacute falado em voz baixa enquanto se prepara um prato eacute em si um ato

inerente ao fazer culinaacuterio A respeito da recitaccedilatildeo Eliade aponta que

Na maioria dos casos natildeo basta conhecer o mito da origem eacute preciso recitaacute-lo em certo

sentido eacute uma proclamaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo do proacuteprio conhecimento E natildeo eacute soacute

recitando ou celebrando o mito de origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela

atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos O tempo miacutetico

das origens eacute um tempo lsquofortersquo porque foi transfigurado pela presenccedila ativa e criadora

dos Entes Sobrenaturais Ao recitar os mitos reintegra-se agravequele tempo fabuloso e a

pessoa torna-se consequentemente lsquocontemporacircnearsquo de certo modo dos eventos

evocados compartilha da presenccedila dos Deuses ou dos Heroacuteis Numa foacutermula sumaacuteria

poderiacuteamos dizer que ao ldquoviverrdquo os mitos sai-se do tempo profano cronoloacutegico

ingressando num tempo qualitativamente diferente um tempo lsquosagradorsquo ao mesmo

tempo primordial e indefinidamente recuperaacutevel (ELIADE 2011 p21)

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Carlos Alberto Doacuteria faz uma relevante reflexatildeo sobre a receita culinaacuteria contemplando a

perspectiva desde sua origem ateacute o modo como eacute vista atualmente

Considerando as diferenccedilas tecnoloacutegicas as receitas satildeo sempre prescriccedilotildees sobre o

modo de proceder na cozinha assim como as receitas farmacecircuticas satildeo prescriccedilotildees a

respeito de como os farmacecircuticos devem proceder em seus laboratoacuterios Do ponto de

vista geral ao apontar a unidade receita-cozinha e o modo de lsquoaviamentorsquo estamos

considerando que essa unidade estaacute incrustrada nas demais instituiccedilotildees como a religiatildeo

a famiacutelia o Natal etc (DOacuteRIA 2009 p141)

A receita culinaacuteria eacute entatildeo parte do ritual que envolve as vivecircncias alimentares seja

cozinhar ou comer aleacutem disso essa constitui um relevante material como documento para a

memoacuteria de um local e de uma eacutepoca pois traz em seu vocabulaacuterio e nas accedilotildees que determina

elementos de identificaccedilatildeo que permitem caracterizar sua origem e periacuteodo de vigecircncia A receita

porta consigo a memoacuteria coletiva do contexto de que se origina bem como a memoacuteria

individual de quem a escreve em seu caderno de cozinha e a de quem reconhece nos livros de

receitas pratos que jaacute experimentou

Doacuteria aponta a respeito da memoacuteria implicada nesse tipo de material um aspecto

interessante sobre o papel da memoacuteria contida nos livros culinaacuterios O autor fala a respeito de um

renomado chef internacional Paul Bocuse que eacute contraacuterio agrave praacutetica de receitas lsquoagrave riscarsquo tendo

escrito um livro assim Doacuteria aponta que o chef faz uma ressalva em sua obra orientando ao

leitor que natildeo leve seu conteuacutedo demasiadamente a seacuterio e que ouccedila uma lsquoforccedila desconhecidarsquo

como a inspiraccedilatildeo o que ldquo[] garantiraacute melhores resultados praacuteticosrdquo (DOacuteRIA 2009 p144)

Consideramos por fim que Bocuse tambeacutem estaacute a nos dizer que as suas receitas satildeo

apenas e modestamente o seu modo de fazer aquele prato ou seja elas contecircm a

memoacuteria do seu trabalho como estilo e valor testemunhal e- tambeacutem de modo a

determinar- o livro eacute seu meio de propagaccedilatildeo Visto assim o livro de receitas eacute um

registro de memoacuteria do trabalho que possam ter alguma utilidade para os leitores []

(DOacuteRIA 2009 p144)

Aleacutem dessa referecircncia a Bocuse Doacuteria aponta criticamente a funccedilatildeo da receita para os

que a seguem ldquoEntatildeo se pararmos um minuto para pensar veremos que a receita dentro da

cozinha tem o status de um texto sagrado que nos reduz agrave condiccedilatildeo de seus exagetas

independentemente do grau de preparaccedilatildeo que tenhamos nessa singular teologia alimentarrdquo

(DOacuteRIA 2009 p142) Esse respeito ao texto sagrado eacute de certa forma o cumprimento da

memoacuteria coletiva transmitida atraveacutes dos documentos escritos denominados receitas ao longo do

tempo nessa transmissatildeo ocorrem transformaccedilotildees na forma de execuccedilatildeo dos alimentos

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conforme as modificaccedilotildees culturais de cada eacutepoca ou seja cada periacuteodo e lugar tem seu modo de

interpretar e de realizar as receitas culinaacuterias de acordo com os produtos oferecidos e com as

teacutecnicas vigentes Doacuteria menciona

Por isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculos e as modificaccedilotildees que

introduzimos nas receitas satildeo apenas formas do patildeo continuar existindo mediante as

transformaccedilotildees das receitas Por isso quando seguimos agrave risca uma receita de patildeo natildeo

queremos fazer o patildeo mas uma versatildeo do patildeo que uma tradiccedilatildeo qualquer elaborou

(DOacuteRIA 2009 p147)

Tecidas as consideraccedilotildees a respeito do fazer culinaacuterio consolidado pela memoacuteria coletiva

vale refletir sobre o modo como ele eacute vivenciado atraveacutes da memoacuteria individual Ao contar sobre

a chimia de uvas de sua avoacute apontamos que assistir a seu modo de praticaacute-la foi para a autora o

percurso para aprender a fazecirc-la O lsquocomo-se-fazrsquo guarda as lembranccedilas oriundas da praacutetica

vivenciada pelo ofiacutecio dos cinco sentidos e pelo assistir aos gestos do corpo como os giros lentos

da colher de pau feitos pela avoacute E por tantas outras avoacutes matildees e tias

Assim a memoacuteria coletiva de uma receita culinaacuteria a chimia de uvas Isabel na maneira

como era repetida por muitas pessoas de uma eacutepoca tornou-se tambeacutem memoacuteria individual

Passou a ser parte da identidade da autora do blog pois representa um ponto de identificaccedilatildeo com

sua avoacute pela recordaccedilatildeo marcante de assisti-la fazendo esse doce por isso decidiu fazecirc-lo tempos

depois de seu falecimento seguindo as lembranccedilas do seu fazer A memoacuteria a respeito dos doces

produzidos por ela eacute tatildeo significativa que estaacute registrada em uma crocircnica especiacutefica no jaacute citado

Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e Doccediluras lsquoAs deliacutecias nos vidros de cafeacutersquo a qual

reproduzimos abaixo

Na casa de praia da Voacute Leacuteia e do Vocirc Heacutelio havia milhares de encantos espalhados mas

a cozinha era meu favorito A mesa retangular generosa e lsquoconvidadeirarsquo contava um

universo de histoacuterias de faacutebulas e de sabores mas o que dava uma graccedila especial ao

conjunto era o armaacuterio proacuteximo agrave porta para a varanda Em suas estantes na parte

superior enfeites e guloseimas ali moravam os potes de rapadura de leite

constantemente abastecidos pela voacute Na parte inferior duas portas abriam um territoacuterio

uacutenico respirante Ali vidros de cafeacute daqueles grandes com tampas vermelhas

guardavam geleias chimias e compotas que ela fazia durante o veraneio

Deixaacutevamos para depois a ideia de pedir as receitas tiacutenhamos o propoacutesito de ficar ao

lado quando o panelatildeo estava no fogo tomando nota do lsquocomo-se-fazrsquo mas sem muita

obstinaccedilatildeo Afinal de contas a Voacute estava ali e era a uacutenica que sabia o tim-tim por tim-

tim do ponto das cores dos cheiros que seus feitos adquiriam a cada etapa Entatildeo

tiacutenhamos a fantasia de que ela estaria para sempre renovando as deliacutecias nos vidros de

cafeacute com alquimias de aboacutebora de laranja de uva [] nossa imaginaccedilatildeo percorria

lonjuras no tempo acreditando que seu fazer dos doces seria perene Agora refletindo

sobre por que natildeo peguei nenhuma de suas receitas por que natildeo anotava cada detalhe

41

ocorre-me que esta era uma forma de garantir que ela permaneceria no ofiacutecio que eu

poderia eternamente aprender com ela a fazer suas reliacutequias

Hoje soacute o moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhas conhece o segredo daquelas

inquilinas (CARDOSO 2012 p62)

No texto lecirc-se lsquoo moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhasrsquo mas esse moacutevel eacute a

proacutepria memoacuteria guardando lembranccedilas representadas como lsquoo segredo daquelas inquilinasrsquo A

memoacuteria individual conteacutem segredos pontos que com o passar do tempo natildeo satildeo contados de

acordo com a realidade vivida mas apenas com aquela lembranccedila que permanece atraveacutes das

imagens e de sentimentos muito do que foi percebido nos escapa deixando as cenas como se as

viacutessemos atraveacutes de um vidro embaccedilado Esses satildeo os lsquosegredosrsquo que as portinhas do moacutevel da

cozinha silenciam

Nesse aspecto retomamos a consideraccedilatildeo de Eugegravene Minkowski sobre a memoacuteria

quando esse autor menciona que ldquo[] a lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a

tonalidade emotiva com que este foi percebidordquo (MINKOWSKI 2004 p143) Entende-se assim

que a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos recordaremos dela

no futuro porque eacute assim que a conhecemos

Esses registros existem na memoacuteria e assim constituem parte da consciecircncia do

indiviacuteduo sobre si mesmo Satildeo lembranccedilas que colaboram com a construccedilatildeo da identidade da

autora do texto Chimia da uva Isabel memoacuterias e receita pois ligam-na agrave identificaccedilatildeo com a

avoacute e seu legado culinaacuterio Tal aspecto corrobora o que apresentamos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica

do presente capiacutetulo

As memoacuterias individuais vinculadas agrave cozinha tecircm outro elemento a ser destacado nos

cadernos de receitas muitas vezes haacute referecircncia no tiacutetulo das mesmas a quem fazia tal prato ou

tal doce como especialidade identificando a receita a seu lsquodonorsquo como exemplo cito a lsquotorta de

palmito da Dona Mimi Mororsquo e a lsquopizza de sardinha da Voacute Leiarsquo Satildeo sabores associados agraves

lembranccedilas que temos das proacuteprias cozinheiras como se o saborear e o lembrar de quem

produzia o alimento fossem recordaccedilotildees acopladas

Os tiacutetulos das receitas fazem-nos evocar essas personagens da histoacuteria pessoal Os nomes

presentes no caderno identificam figuras de relevo na vida de quem o guarda assim esse faz

tambeacutem o papel de um aacutelbum de recordaccedilotildees Destacamos nas paacuteginas do livro Pequeno

alfarraacutebio de acepipes e doccediluras que o lsquobolo de melado da Anildarsquo natildeo eacute uma receita qualquer

de bolo de melado mas aquela da qual a autora tem determinada lembranccedila perpetuada pelo

42

colorido afetivo lembra-se do momento em que saboreou a receita pela primeira vez da Anilda

sua autora da cozinha em que o bolo era feito e ateacute mesmo do aroma que deixava na casa apoacutes

sair do forno A receita pode tornar-se entatildeo a narrativa das experiecircncias e das pessoas que

fazem parte delas atraveacutes da memoacuteria que nos permite acessar

Muitos livros de temas culinaacuterios satildeo memorialiacutesticos em acircmbito nacional e

internacional Esse elemento confirma a relaccedilatildeo da cozinha com o sujeito que comete nela seus

atos culinaacuterios mais iacutentimos esta constituiraacute o espaccedilo de memoacuteria de quem teve ali ou em outras

cozinhas de sua vida vivecircncias a serem contadas A outras pessoas ou a si mesmo como faz

Antocircnio ao rememorar sua histoacuteria familiar e pessoal enquanto prepara o arroz para o almoccedilo de

famiacutelia

Na seccedilatildeo seguinte apresentamos a anaacutelise da primeira obra do corpus dessa Dissertaccedilatildeo

de Mestrado O arroz de Palma a fim de propor a relaccedilatildeo entre a cozinha e o fenocircmeno da

memoacuteria a partir dos fragmentos escolhidos

14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA

A obra de Francisco Azevedo O arroz de Palma segue a cronologia da lembranccedila a

narrativa dos acontecimentos de sua histoacuteria pessoal e familiar eacute feita atraveacutes da costura de

tempos costura essa em que o fio que une os tecidos eacute a memoacuteria O protagonista Antonio

narrador-personagem tem oitenta e oito anos e estaacute na cozinha da fazenda de sua infacircncia

preparando um almoccedilo para reunir toda a famiacutelia O prato a ser servido O arroz ofertado por sua

tia Palma aos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana na ocasiatildeo do casamento

Os gratildeos jogados aos noivos na igreja satildeo colhidos da pedra por Palma para a oferta do

presente Esses gratildeos atravessam o oceano de Portugal ao Brasil para onde o casal e Palma vecircm

apoacutes dificuldades financeiras no paiacutes de origem e atravessam tambeacutem as geraccedilotildees O arroz

fertilizaraacute a famiacutelia e suas histoacuterias Eacute para celebrar o aniversaacuterio de 100 anos do casamento dos

pais e do arroz presenteado pela tia que Antonio prepara o almoccedilo com o que ainda haacute do

presente para ser compartilhado com os familiares

A narrativa eacute contada por ele enquanto prepara o prato sob a forma de lembranccedilas do que

viveu e do que ouviu da Tia Palma nas longas conversas que tinham desde seus tempos de

crianccedila O protagonista vai alinhavando essas recordaccedilotildees narrando-as como forma de

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estabelecer uma linha de tempo desde o recebimento do arroz pelos pais ateacute o almoccedilo que

cozinha para a famiacutelia com o mesmo arroz cem anos depois Em alguns pontos da histoacuteria

parece tecer uma interlocuccedilatildeo com o leitor mas o elo entre a memoacuteria e os pensamentos eacute feita

de si para si

Pode-se dividir os trechos escolhidos para a presente anaacutelise em trecircs tempos o que

Antonio narra a partir da atualidade o que ouviu de Tia Palma e o que vivenciou Na primeira

condiccedilatildeo estaacute no presente nas duas outras no passado

Quando evoca as lembranccedilas vive-as com tamanha intensidade que sua narrativa traz

eventos antigos como se fossem atuais e refere-se a si mesmo do seguinte modo ldquoE eu menino

enrugado aqui nesta cozinha ainda viajo presente colorido do indicativordquo (AZEVEDO 2008

p17) O termo lsquomenino enrugadorsquo expressa a ligaccedilatildeo entre os tempos do presente e da memoacuteria

enquanto o lsquocoloridorsquo evoca a forccedila com que as lembranccedilas se manifestam trazendo ao presente

tonalidade marcante

Em toda a narrativa o uso das metaacuteforas culinaacuterias para a representaccedilatildeo de vivecircncias de

percepccedilotildees de sentimentos e de lembranccedilas eacute o elemento principal A cozinha eacute assim a forma

constante de expressatildeo do protagonista aleacutem de ser o espaccedilo fiacutesico onde o romance se

desenvolve pois eacute neste lugar que ele estaacute enquanto tece recordaccedilotildees

No primeiro capiacutetulo do livro Antonio fala durante o preparo do almoccedilo que serviraacute para

a famiacutelia entatildeo na atualidade Lembra-se lsquoTia Palma me ensinou a cozinhar eu era jovemrsquo

ilustrando as reflexotildees feitas na subdivisatildeo anterior sobre a relevacircncia da cozinha das avoacutes e das

tias para a memoacuteria individual pois essas satildeo figuras de referecircncia para a construccedilatildeo da memoacuteria

e por conseguinte da consciecircncia de si Diz Antonio

Eu aqui na fazenda Eu aqui na cozinha quatro e pouco da manhatilde Isabel ainda dorme o

sol ainda demora Eu aqui um velho de 88 anos Para os mais novos o Avocirc Eterno o

que natildeo teve comeccedilo nem teraacute fim o que jaacute veio ao mundo com essa cara enrugada Eu

aqui de avental branco picando o tempero verde Preparo o almoccedilo de famiacutelia Terei

forccedilas 88 dois infinitos verticais Eacute boa idade seraacute uma bela festa Tenho praacutetica Tia

Palma me ensinou a cozinhar eu era jovem (AZEVEDO 2008 p9)

Antonio provoca lsquoAs autoridades querem minhas digitais Elas estatildeo na massa do patildeorsquo o

que conduz a dois aspectos jaacute discutidos o papel da memoacuteria individual na identidade papel que

estaacute impregnado na massa do patildeo ou seja no ato culinaacuterio o outro elemento eacute aquele referido

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por Doacuteria quando menciona lsquoPor isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculosrsquo

expressando a feitura do patildeo como resultado da memoacuteria coletiva e da realizaccedilatildeo de rituais

Eacute na cozinha que eu desembesto e solto os bichos Eacute na cozinha que eu viajo sem

passaporte sem bilhete sem revista em aeroportos As autoridades querem minhas

digitais Elas estatildeo na massa do patildeo Querem minha foto Tenho vaacuterias de frente e de

lado com meus pais e irmatildeos e com os que vieram depois Retratos falados- em voz alta

a famiacutelia toda ao mesmo tempo Destrambelhada famiacutelia Sagrada famiacutelia []

(AZEVEDO 2008 p11)

Ainda nesse capiacutetulo ressaltamos um elemento caracteriacutestico da obra as expressotildees da

cozinha que constituem metaacuteforas agrave composiccedilatildeo das famiacutelias A frase emblemaacutetica empregada

pelo personagem lsquofamiacutelia eacute prato difiacutecil de prepararrsquo apresenta as reflexotildees de Antonio sobre

diferenccedilas e peculiaridades entre familiares Todas as alusotildees agraves divergecircncias entre eles satildeo feitas

tendo como eixo a linguagem usada na culinaacuteria Salientamos um aspecto a aproximaccedilatildeo entre

os termos culinaacuterios e as relaccedilotildees familiares representando cozinha e famiacutelia como estruturas

com pontos de convergecircncia

Preciso me concentrar Eacute essencial Por quecirc Ora que pergunta Famiacutelia eacute prato difiacutecil

de preparar satildeo muitos ingredientes Reunir todos eacute um problema- principalmente no

Natal e Ano-Novo Pouco importa a qualidade da panela fazer uma famiacutelia exige

coragem devoccedilatildeo e paciecircncia Natildeo eacute para qualquer um Os truques os segredos o

imprevisiacutevel Agraves vezes daacute ateacute vontade de desistir Preferimos o desconforto do estocircmago

vazio Preferimos o desconforto do estocircmago vazio Vecircm a preguiccedila a conhecida falta

de imaginaccedilatildeo sobre o que se vai comer e aquele fastio Mas a vida- azeitona verde no

palito- sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite O tempo potildee a mesa

determina o nuacutemero de cadeiras e os lugares Suacutebito feito milagre a famiacutelia estaacute

servida (AZEVEDO 2008 p12)

Durante o preparo do arroz mistura lembranccedilas e devaneios seguindo a comparaccedilatildeo

entre pratos culinaacuterios e famiacutelias

Reuacutena essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida Natildeo haacute pressa Eu

espero Jaacute estatildeo aiacute Todas Oacutetimo Agora ponha o avental pegue a taacutebua a faca mais

afiada e tome alguns cuidados Logo logo vocecirc tambeacutem estaraacute cheirando a alho e a

cebola Natildeo se envergonhe se chorar Famiacutelia eacute prato que emociona E a gente chora

mesmo De alegria de raiva ou de tristeza (AZEVEDO 2008 p12)

Entre ponderaccedilotildees e aconselhamentos Antonio fala de si mesmo ao leitor apresentando

sua visatildeo sobre si como um lsquovelho jaacute meio caducorsquo e lsquoum veterano cozinheirorsquo A alternacircncia

entre recordaccedilotildees do passado ideias do presente e diaacutelogo com o interlocutor eacute um dos elementos

que marca a narrativa

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Enfim receita de famiacutelia natildeo se copia se inventa A gente vai aprendendo aos poucos

improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia A gente cata um registro ali de

algueacutem que sabe e conta e outro aqui que ficou no pedaccedilo de papel Muita coisa se

perde na lembranccedila Principalmente na cabeccedila de um velho jaacute meio caduco como eu O

que este veterano cozinheiro pode dizer eacute que por mais sem graccedila por pior que seja o

paladar famiacutelia eacute prato que vocecirc tem que experimentar e comer Se puder saborear

saboreie Natildeo ligue para etiquetas Passe o patildeo naquele molhinho que ficou na

porcelana na louccedila no alumiacutenio ou no barro Aproveite ao maacuteximo Famiacutelia eacute prato que

quando se acaba nunca mais se repete (AZEVEDO 2008 p14)

Essa mistura de periacuteodos entre passado contado passado vivido e presente eacute marcada

pela referecircncia sobre o ingresso do arroz na histoacuteria da famiacutelia pelas matildeos de Tia Palma Os

tempos misturam-se ora mostrando Antonio em sua cozinha na atualidade ora Joseacute Custoacutedio

Maria Romana e Tia Palma em cenas vividas por eles

Quando Antonio se refere a um evento passado usando um verbo no presente pode-se

compreender que atraveacutes da memoacuteria ingressou em outro tempo de si mesmo ou de sua famiacutelia

A mistura entre lembranccedila e atualidade marca muitos dos relatos pois o limiar entre passado e

presente para o protagonista jaacute eacute impreciso assim como as experiecircncias que viveu e aquelas que

ouviu de Palma

Tia Palma era enfaacutetica ao descrever a cena o arroz que desabou sobre os noivos aacute saiacuteda

da igreja foi torrencial Eram punhados e mais punhados Chuva branca que natildeo parava

Nunca se viu tanta fartura em votos de felicidade (AZEVEDO 2008 p15)

-E tu dizes que Palma eacute que eacute a mal-educada

-Basta assunto encerrado Daacute-se o arroz para algueacutem Palma natildeo precisa saber

-O arroz eacute presente O arroz fica

-Pois estaacute bem Guarda esse maldito presente Com o tempo ele haacute de mofar se encher

de bichos e teraacutes que jogaacute-lo fora

-Ouve bem meu querido Joseacute Custoacutedio este arroz eacute amor e puro amor Natildeo haacute de se

estragar (AZEVEDO 2008 p21)

O protagonista recorda-se das vivecircncias com Tia Palma na cadeira em que essa lhe

contava as histoacuterias sobre o arroz e tantas outras Ouvir Palma era vivido por Antonio como se

assistisse a uma peccedila de teatro

A expressatildeo no rosto natildeo daacute a menor pista A histoacuteria de hoje seraacute triste Que vozes

faraacute Que cenaacuterio me apresentaraacute ao levantar as cortinas A sala de jantar Uma ruela de

Viana do Castelo Seraacute dia SeraacuteTia Palma pigarreia faz pequena pausa comeccedila com

gravidade

Primeiro ato Tarde da noite ela garante O coto de vela colado no tampo da mesa mal

ilumina os rostos Mamatildee e papai apenas alguns meses de casados natildeo tecircm o que

comer Nada nem vegetal nem fruta nem gratildeo nada Em voz baixa respeitosa mamatildee

sugere o arroz A resposta que recebe eacute a fuacuteria o murro na mesa e a gargalhada que

parece pranto

-O arroz de Palma

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Outra sonora gargalhada e laacutegrimas Papai parece fora de si

-O arroz de Palma nunca Castigo maldiccedilatildeo que seja Morro de fome mas aquele arroz

varrido do chatildeo nunca

-O arroz de Palma eacute abenccediloado Arroz plantado na terra caiacutedo do ceacuteu colhido da pedra

(AZEVEDO 2008 p26)

Tia Palma sempre contara a Antonio sobre o papel do arroz para sua histoacuteria familiar

fazendo do sobrinho o herdeiro de suas memoacuterias e do conhecimento a respeito da relevacircncia do

ingrediente para a continuidade da famiacutelia

-A fertilidade de vocecircs estaacute no arroz A benccedilatildeo que haacute onze anos ele recusou

-Eu jurei ao Joseacute que o arroz ficava mas natildeo seria comido Foi o combinado

-Pois eu natildeo jurei nada a ele

Mamatildee acha graccedila meio espantada meio com medo

-Palma Como vais fazer

-Primeiro ponho uma dose cavalar de purgante na comida dele que eacute pra desentupiacute-lo

por traacutes Depois trago-lhe uma comida bem levezinha para que ele se recupereUma

canjinha especial bem magrinha como ele gosta Uma xiacutecara de arroz eacute o quanto basta

-Uma canjinha especial

O trato estaacute feito Os risos e o demorado do abraccedilo selam a cumplicidade (AZEVEDO

2008 p38)

Antonio lembra-se da cena em que quando crianccedila assegurou agrave Tia Palma que gostava

de arroz ingrediente crucial na conduccedilatildeo da narrativa Mostrava assim apreciar as histoacuterias

sobre o arroz contadas por ela e sabia desde entatildeo que esse era um elemento decisivo em sua

famiacutelia

E a cadeira jaacute eacute palco e se estamos assim abraccedilados eacute porque eu tambeacutem estou em cena e

agora a fala eacute minha Eacute a minha estreia Inesperada e tatildeo esperada estreia

-Natildeo fique preocupada Eu gosto de arroz De qualquer jeito grudado ou solto eu gosto

Com toda a verdade possiacutevel encerro a minha parte

-Ateacute puro sem feijatildeo sem nada eu gosto juro (AZEVEDO 2008 p28)

Cabe salientar o papel que esse elemento exerce na histoacuteria De acordo com Maria Eunice

Moreira no ensaio lsquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmarsquo ldquo[] o arroz tem

funccedilatildeo especial na formaccedilatildeo do clatilde como o objeto maacutegico que acompanha a trajetoacuteria da

famiacuteliardquo (MOREIRA 2014 p162) Aleacutem de ser o ingrediente que vem de Portugal e atravessa

as geraccedilotildees eacute presente de matrimocircnio de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana e posteriormente de

Antocircnio e Isabel Eacute o fator que fertiliza o primeiro casal e que reuacutene o segundo no almoccedilo entre

as famiacutelias quando Antonio e Isabel comeccedilam sua aproximaccedilatildeo

Esse almoccedilo comeccedila a partir de uma carta de Antonio ao pai em que anuncia de forma

quase imperceptiacutevel o interesse por Isabel e ao final conta que estaacute levando ingredientes

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especiais na sua viagem agrave fazenda ldquoPS Estou levando boas postas de bacalhau azeite vinho

verde e outras tantas gulodices vindas de Portugalrdquo (AZEVEDO 2008 p85) Tia Palma como

sempre com a percepccedilatildeo aguccedilada aos movimentos dos familiares tem a ideia de aproveitar a

ocasiatildeo para convidar a famiacutelia de Isabel a um almoccedilo de confraternizaccedilatildeo

-Vocecircs natildeo fazem anos de casados no dia da chegada de Antonio Entatildeo Preparamos

um almoccedilo e convidamos o senhor Avelino dona Maria Celeste e Isabel que eacute quem

nos interessa

-Palma os Alves Machado nunca se sentaram conosco agrave mesma mesa Natildeo sei Sinto-me

um pouco constrangida Ainda mais aqui em nossa casa tatildeo modesta Satildeo muito bons e

generosos mas satildeo nossos patrotildees O mundo deles eacute laacute em cima na sede

-O Joseacute Custoacutedio e o senhor Avelino natildeo satildeo tatildeo amigos Entatildeo Qual eacute o problema

Acho inclusive que jaacute deveriacuteamos tecirc-los chamado haacute mais tempo Jaacute ouvi por diversas

vezes dona Maria Celeste dizer que o marido gosta do nosso Joseacute como a um irmatildeo

(AZEVEDO 2008 p87)

Tia Palma e Maria Romana comeccedilam assim a combinar o almoccedilo que ocorre com

sucesso Primeiro passo eacute o de abrir o saco de arroz o que as surpreende pelo estado saudaacutevel dos

gratildeos Sendo Isabel a filha dos donos da fazenda e Antonio o filho do funcionaacuterio de confianccedila

haacute um constrangimento inicial que se desfaz com a partilha da refeiccedilatildeo entre as famiacutelias O arroz

une Portugal e Brasil paiacuteses das duas famiacutelias atraveacutes de ingredientes portugueses e tempero

brasileiro mais uma vez estando representada a cozinha como metaacutefora

Essa ocasiatildeo cujo propoacutesito eacute aproximar famiacutelias e reduzir diferenccedilas representa a

comemoraccedilatildeo de aniversaacuterio de casamento de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana bem como a visita

de Antonio agrave fazenda entatildeo morando no Rio de Janeiro Paul Ricoeur qualifica a comemoraccedilatildeo

dentro da caracteriacutestica mundanidade em par com reflexividade Esta mundanidade estaacute

associada agrave realizaccedilatildeo de rituais conforme jaacute visto Antonio alterna a lembranccedila sobre o relato de

Palma a respeito da combinaccedilatildeo entre ela e sua matildee com sua proacutepria recordaccedilatildeo sobre o almoccedilo

-Perfeito Veja Palma pegue

-Ceacuteus Quase 40 anos e ainda saudaacutevel

Mamatildee beija as matildeos de tia Palma

-Amor verdadeiro natildeo se estraga Eacute para sempre

-Trecircs quilos eacute o quanto basta Daraacute um belo arroz de bacalhau

-Eacute impossiacutevel que Antonio e Isabel natildeo se resolvam

O almoccedilo eacute um sucesso Os Alves Machado chegam um pouco cerimoniosos mas logo

com tantos comes e bebes somos a mesma famiacutelia (AZEVEDO 2008 p88)

O papel do arroz na histoacuteria seraacute tambeacutem o de testemunhar a uniatildeo fiacutesica de Antonio e

Isabel agrave beira do lago antes do casamento

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-Eu sou o dono do arroz que tambeacutem eacute seu dona Isabel

-DonaPor acaso estamos casados

Sim estamos casados O Deus do azul sabe que estamos O lago menor sabe que

estamos O sangue e o arroz sabem que estamos (AZEVEDO 2008 p105)

Outra ocasiatildeo em que o arroz assume papel de ritual eacute quando o casal ganha de Joseacute

Custoacutedio Maria Romana e Palma o presente com nova dedicatoacuteria atualizada revisitando a

primeira feita por Palma Seraacute portanto o herdeiro do arroz ofertado pela Tia Palma a seus pais

junto a Isabel jaacute que o casal ganha o arroz como presente por seu matrimocircnio

Quero distacircncia de religiotildees mas respeito rituais Influecircncia de tia Palma admito Meu

cafeacute da manhatilde eacute sagrado O ritual eacute sempre o mesmo a hora a xiacutecara o pocircr o leite

primeiro o escurececirc-lo depois no ponto certo o abrir o patildeo o tirar o miolo

(AZEVEDO 2008 p127)

Individual ou coletivo o ritual eacute conexatildeo e cumplicidade [] Concluo que haacute sempre

algo de autoritaacuterio nos rituais Mas neles natildeo haveraacute tambeacutem algo que emociona Natildeo

haveraacute algo de belo e poeacutetico (AZEVEDO 2008 p127)

O arroz e todo o simbolismo que envolve na formaccedilatildeo dessa famiacutelia seraacute transmitido a

Antonio e Isabel em ocasiatildeo formal como desejam seus pais e Tia Palma

E o arroz Eacute o arroz Tia Palma quer que a entrega dessa vez ganhe algum ritual

Mamatildee e papai concordam Natildeo satildeo apenas os oito quilos que contam O presente de

casamento tem agora o peso da histoacuteria Portanto natildeo seraacute dado de modo informal

como aconteceu em Viana do Castelo (AZEVEDO 2008 p128)

O ritual de transmissatildeo do arroz eacute celebrado com a dedicatoacuteria atualizada e assinada por

seus pais e por Tia Palma eacute ela que faz a cerimocircnia de entrega ao sobrinho e agrave Isabel repetindo o

gesto feito na oferta do presente a Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu matrimocircnio

-Isabel e Antocircnio meus queridos este arroz que haacute quase 40 anos foi dado como

presente de casamento agrave minha cunhada Maria Romana e ao meu irmatildeo Joseacute Custoacutedio

por nossa vontade agora vos pertence Fazemos votos de que a tradiccedilatildeo continue e de

que todo o amor aqui contido chegue agraves geraccedilotildees futuras

Mamatildee potildee os oacuteculos lecirc a dedicatoacuteria atualizada

lsquoEste arroz-plantado na terra caiacutedo do ceacuteu como o manaacute do deserto e colhido da pedra- eacute

siacutembolo da fertilidade e do eterno amor Essa eacute a nossa benccedilatildeo

Palma Maria Romana e Joseacute Custoacutedio

Fazenda Santo Antocircnio da Uniatildeo em 13 de junho de 1946rsquo

Protegido pelo pano branco o arroz passa agraves nossas matildeos (AZEVEDO 2008 p130-

131)

Ainda no que concerne ao papel do ingrediente como elemento com atributo de ritual estaacute

a cena em que Antonio lecirc a receita em seu caderno do arroz de lentilhas de Tia Palma escrita

por ela com recomendaccedilotildees O aspecto a ser ressaltado nesse ponto estaacute principalmente na

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forma de apresentaccedilatildeo da receita que indica a importacircncia de recitar os trechos durante a feitura

do prato

Antonio meu querido lava bem as lentilhas em aacutegua corrente enquanto recitas

lsquotrepadeira trepadeirabeijo-te as folhas penadas e as flores violaacuteceas trepadeira

trepadeiranatildeo estou ao fundoestou ao frescoestou agrave beiraeacutes fortuna eacutes sauacutede eacutes

companheiratrepadeira trepadeira eacutes amor amigo eacutes paixatildeo verdadeirarsquo

Feito isso respira fundo trecircs vezes e solte o ar pela boca Deixa teu corpo sentir o

benefiacutecio Potildee as lentilhas em tacho com bastante aacutegua jaacute temperada de sal Leva ao

lume alto ateacute ferver Ao ferver abaixa o lume e deixa cozinhar ateacute que as lentilhas

estejam macias

Escorre a aacutegua da fervura E enquanto ela se vai diz com voz de certeza lsquoaacutegua

fervidaaacutegua de sal e de vidaaacutegua boa que seguetoma teu rumofertilizarsquo

(AZEVEDO 2008 p146-147)

A recomendaccedilatildeo de que faccedila as recitaccedilotildees ao cozinhar o prato traz a reflexatildeo sobre o

exposto por Mircea Eliade sobre a relevacircncia de recitar os mitos exposta anteriormente ldquo[]

recitando ou celebrando o mito da origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela atmosfera

sagradardquo (ELIADE 2011 p21) Haacute outra referecircncia a esse autor que merece ser salientada

pensando-se nos trechos a serem recitados como os cantos a que Eliade se refere ldquoA

recapitulaccedilatildeo atraveacutes dos cantos e da danccedila eacute simultaneamente uma rememoraccedilatildeo e uma

reatualizaccedilatildeo ritual dos eventos miacuteticos essenciais ocorridos desde a Criaccedilatildeordquo (ELIADE 2011

p27)

Laura Esquivel escreve no ensaio intitulado lsquoEl manaacute sagradorsquo em seu livro de ensaios

Iacutentimas suculencias-Tratado filosoacutefico de cocina sua perspectiva sobre a relaccedilatildeo entre a comida

e os rituais corroborando a importacircncia da cozinha como espaccedilo simboacutelico

Talvez natildeo haja muita diferenccedila entre falar de comida e falar de religiotildees Quase em

todas elas umas e outras se faz presente a divindade atraveacutes dos alimentos De fato natildeo

podemos negar que um rito obrigado de quase toda religiatildeo eacute o momento de comer e de

beber a deidade ou para a deidade O sentido profundo da alimentaccedilatildeo em alguma

medida tem a ver com nossa sede de eternidade cifrada na manutenccedilatildeo cotidiana da vida

Talvez por isso todos os deuses tenham deixado sua presenccedila contida nos alimentos

Nesse sentido nos alimentamos para viver e por viver O desfrute da comida tem

lampejos de vida eterna Mas natildeo soacute eacute fundamental o ato em si de comer tambeacutem o eacute a

cerimocircnia que implica preparar e compartilhar os alimentos A cerimocircnia ritual que se

realiza em torno da mesa eacute um ato de profunda e antiga significaccedilatildeo religiosa

(ESQUIVEL 2014 p77)

Entretanto natildeo apenas de comemoraccedilotildees eacute constituiacuteda a funccedilatildeo do arroz na narrativa

Algumas circunstacircncias satildeo provocadas pela representaccedilatildeo desse ingrediente na histoacuteria como as

diferenccedilas entre o protagonista e seus irmatildeos a tentativa de seus filhos Nuno e Rosaacuterio

50

mexerem no gratildeo derrubando-o na vitrine do restaurante e o deflagrar das emoccedilotildees da cunhada

em relaccedilatildeo a Antonio quando esta rouba uma porccedilatildeo do arroz para ter um pedaccedilo de Antonio

consigo

-Senti forte ciuacuteme de Isabel Inveja raiva tudo E ainda por cima era obrigada a

esconder o que sentia Quando vocecirc fez a vitrine iluminada no restaurante soacute pra expor o

arroz passei a acreditar que seria possiacutevel ter ao menos um punhadinho daquela

felicidade

-Vocecirc ainda tem ele

-Natildeo

-Natildeo

-Fiz do meu jeito Preparei ele na aacutegua e sal e comi Antes pedi a Deus que me desse um

pouco de vocecirc tambeacutem Nem que fosse por um dia

Amaacutelia torna a recostar a cabeccedila no meu peito Nada mais eacute dito Ou se eacute dito natildeo deixa

registro Acho que cochilamos Levantamo-nos da cama com o desprendimento de um

encontro rotineiro (AZEVEDO 2008 p217)

Entre rememoraccedilotildees e devaneios Antonio entrelaccedila retalhos do passado agrave sua percepccedilatildeo

sobre o presente a finitude as lembranccedilas recentes que se confundem o fluxo de consciecircncia

Reflete sobre o que faz ali na cozinha preparando o almoccedilo familiar e ao mesmo tempo

reconstroacutei lembranccedilas antigas que compuseram sua atualidade

Se me perguntarem natildeo sei dizer o que comi ontem no almoccedilo Mas sou capaz de

reproduzir diaacutelogos inteiros da minha juventude quando esta fazenda ainda era do

senhor Avelino e eu ainda morava na casa laacute de baixo com tia Palma meus pais e meus

irmatildeos Gozado isso Vaacute entender Memoacuterias antigas Niacutetidas perfeitas cheias de

miacutenimos detalhes cheiros e sons ateacute Inclusive as experiecircncias ancestrais que natildeo vivi

as histoacuterias laacute de Portugal que me foram contadas todas aqui dentro de cor e salteado

Fatos recentes Coitados Vatildeo se segurando em mim como podem (AZEVEDO 2008

p143)

A constataccedilatildeo de seus 88 anos daacute ao protagonista a consciecircncia de sua condiccedilatildeo de idoso

aceitando as falhas de lembranccedila mas natildeo aquelas em sua capacidade como cozinheiro

experiente

Natildeo quero vocecirc metida aqui dentro da cozinha Por favor Isabel Natildeo eacute nada disso Eacute

porque vocecirc fica zanzando para laacute e para caacute Potildee a matildeo prova daacute palpite Me atrapalha

Fico doido natildeo quero Nem vocecirc nem ningueacutem Deixa que eu dou conta do recado

Tantos anos agrave frente laacute do restaurante chefe com vaacuterios precircmios natildeo basta Eacute preciso

mais Idoso coisa nenhuma Dispenso o eufemismo bobo Sou velho isso sim Eu sei

natildeo precisa dizer A vista natildeo ajuda muito nem as pernas nem os reflexos Mas espera

aiacute gagaacute ainda natildeo estou Tenho forccedila nas matildeos Acho que ainda posso mexer uma

panela Quatro panelotildees concordo Fica tranquila que natildeo vou me queimar Nem a

comida (AZEVEDO 2008 p144-145)

51

A capacidade de Antonio com a cozinha comeccedilou com os aprendizados que teve com sua

tia na juventude e consolidou-se com a praacutetica Tal aquisiccedilatildeo lembra o referido sobre o par

memoacuteriahaacutebito na fenomenologia da memoacuteria proposta por Paul Ricoeur A capacidade

representa o elemento haacutebito pois eacute primordialmente construiacuteda a partir da atividade rotineira de

um atributo Talvez por isso na narrativa Antonio aceite as falhas de memoacuteria inerentes ao

envelhecimento mas natildeo a ideia de diminuiccedilatildeo daquilo que eacute seu por meacuterito por conquista com

esforccedilo dedicaccedilatildeo e sobretudo repeticcedilatildeo Antonio recorda-se de quando partiu para encontrar

trabalho na capital certo de que seguiria a atividade de cozinheiro

-O que eacute que significa isso agora Pra quecirc essa mala Antonio -Calma calma que eu natildeo vou pra guerra -Eu sabia Estaacutes indo embora por causa dessa moccedila Isabel E eacute tudo culpa da Palma

-Tenho 21 anos meu pai Sei muito bem o que faccedilo A vida do campo natildeo eacute para mim

Vou para a capital Farei amigos laacute E amigas

-Mas assim tatildeo de repente

-Trabalharei em restaurante conhecerei pessoas influentes ficarei conhecido e serei

proacutespero

-Para quecirc tanto entusiasmo Para lavar pratos Servir mesa

-Tambeacutem Mas natildeo eacute soacute isso Quero cozinhar Quem sabe um dia consigo abrir meu

proacuteprio negoacutecio

Papai se irrita

-Como cozinhar De onde tiraste essa ideia maluca (AZEVEDO 2008 p67)

O aprendizado com a tia eacute representativo da memoacuteria coletiva que se perpetua em um

grupo neste caso o familiar para a manutenccedilatildeo de um saber entre seus membros Essa memoacuteria

coletiva na histoacuteria eacute expressa pelo cozinhar como um conhecimento transmitido mas

principalmente pela histoacuteria que envolve o arroz nessa famiacutelia A narrativa dessa histoacuteria ao

longo das geraccedilotildees constitui tambeacutem a representaccedilatildeo dessa espeacutecie de memoacuteria na famiacutelia de

Antonio

Para aleacutem do que aprendeu com Tia Palma houve o que a praacutetica lhe ensinou

trabalhando em restaurantes ateacute que pudesse montar o proacuteprio negoacutecio Lembra-se de cenas do

percurso que seguiu ldquoO mar de mesas eacute convite agrave aventura Sigo Na copa e na cozinha o

barulho de louccedilas e talheres eacute intempeacuterie A vozearia eacute a marujada a postos que me recebe Esta eacute

a minha gente natildeo tenho duacutevidas Este eacute o meu barco e []rdquo (AZEVEDO 2008 p79)

Antonio tem em Palma seu referencial chamando por ela quando se vecirc em desafios

evocando lembranccedilas dos seus ensinamentos

52

Transpiro o nervoso que vem de dentro Tia Palma por favor me ajuda lsquoO que o corpo

potildee para fora nos purificarsquo Saacutebia Tia Palma natildeo me falta nunca A cenoura e a batata jaacute

cortadas os tomates em rodelas e sem as sementes a cebola picada bem miudinha todos

nas respectivas vasilhas Mais alguma coisa Isso e aquilo Pronto acabei Natildeo me

canso Ao fim do expediente ainda haacute focirclego e entusiasmo de sobra Reluto em desfazer

o laccedilo do avental Jaacute (AZEVEDO 2008 p80)

Uma das cenas da obra que ilustra o entrelaccedilamento entre a memoacuteria individual e a

coletiva eacute no enterro dos pais de Isabel quando Antonio canta uma canccedilatildeo tradicional

portuguesa pensando fazecirc-lo em voz baixa como forma de homenagem Enquanto canta suas

memoacuterias tocam-lhe a ponto de natildeo perceber que o faz em voz alta E aqui estaacute o referido

entrelaccedilamento as demais pessoas presentes no enterro tambeacutem se emocionam e cantam em

coro Presentes ali estatildeo as proacuteprias lembranccedilas e aquelas de suas famiacutelias

Numa casa portuguesa fica bem

patildeo e vinho sobre a mesa

Quando agrave porta humildemente bate algueacutem

Senta-se agrave mesa coacutea gente

Fica bem essa fraqueza fica bem

que o povo nunca a desmente

A alegria da pobreza

estaacute nesta grande riqueza

de dar e ficar contente

(AZEVEDO 2008 p193)

Antonio segue a cantoria da muacutesica que pensa estar cantando para si Entatildeo percebe ter

cantado em voz alta e a emoccedilatildeo que causou Letra e muacutesica satildeo parte de sua memoacuteria individual

pela origem da famiacutelia e da memoacuteria coletiva dos presentes ao enterro que cantam com ele a

tradiccedilatildeo

Em algum momento tenho a impressatildeo de que algumas pessoas me acompanham e que

ao final todos ali cantamos juntos emocionados lsquoUma casa portuguesarsquo Volto ao enterro

com aplausos Reflexo condicionado eu mesmo bato palmas Isabel aos prantos me

beija agradecida pela homenagem inesperada Olho ao redor todos choram

copiosamente Natildeo eacute possiacutevel Seraacute que em vez de falar alto comigo mesmo cantei

alto Soacute pode ser (AZEVEDO 2008 p194)

Na volta do enterro o papel da comida em nutrir e acalentar eacute referido atraveacutes da

expressatildeo empregada por Antonio lsquopedimos a ela que nos aqueccedila algo para pocircr no estocircmagorsquo

como segue no trecho abaixo ldquoQuando chegamos em casa Nuno e Rosaacuterio jaacute estatildeo dormindo

Conceiccedilatildeo garante que ficaram quietinhos natildeo deram trabalho algum Pedimos a ela que nos

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aqueccedila algo para pocircr no estocircmago Ela diz que fez uma sopinha de legumes e jaacute nos chamardquo

(AZEVEDO 2008 p194)

O protagonista segue a narrativa evocando lembranccedilas reconstruindo impressotildees

reconhecendo a si mesmo atraveacutes da costura de retalhos da memoacuteria Estaacute em sua cozinha mas

viaja para muitos periacuteodos de sua vida visita a si mesmo em muitas eacutepocas lembra dos pais da

tia dos sogros dos irmatildeos dos filhos ateacute o momento atual Entatildeo na cozinha da fazenda aos 88

anos prepara com esmero os gratildeos de memoacuteria restantes em cozimento nas panelas Antonio

aguarda o encontro do passado com o presente no almoccedilo de famiacutelia Quando esse acontece

todos nas mesas entusiasmo e lembranccedila espalham-se na famiacutelia

Benccedilatildeo vivermos o bastante para poder dividi-lo assim irmatildemente sem conta de

padeiro nem laacutepis engatilhado atraacutes da orelha Olha soacute a cara da Leonor e a do Nicolau e

a do Joaquim Velhos bobos Nem sonhavam que ainda iam provar do arroz de Tia

Palma E agora choram desse jeito Natildeo eacute cebola nada que eu sei Eacute muita lembranccedila e

sonho tudo misturado agrave moda da casa Fiz de propoacutesito para pegar vocecircs de surpresa E

para a Amaacutelia - me pergunto- que gosto teraacute esse segundo arroz Qual o sabor de um

arroz assim permitido e compartilhado A garotada pode achar que somos velhos gagaacutes

e que essa histoacuteria eacute pura invencionice Impossiacutevel um arroz durar tanto a ciecircncia isto a

ciecircncia aquilo Eu natildeo ligo a miacutenima Vocecircs ligam Entatildeo oacutetimo Vamos comer agrave

vontade que haacute arroz para todos Joaquim meu irmatildeo me passa o azeite (AZEVEDO

2008 p352)

No trecho seguinte ao perguntar-se lsquoquantas vezes maisrsquo o protagonista expotildee sua

percepccedilatildeo quanto agrave finitude o tempo que ainda teraacute para novas cenas como aquela ldquoNoacutes

adultos continuamos em volta das mesas agraves voltas com as lembranccedilas Porque nos apetecem

repetimos o doce repetimos o vinho repetimos as histoacuterias Quantas vezes maisrdquo (AZEVEDO

2008 p356)

Ao longo da narrativa Antonio evoca histoacuterias lembranccedilas que lhe surgem

espontaneamente acionadas por outras por devaneios e por emoccedilotildees De acordo com Maria

Eunice Moreira em seu ensaio

A memoacuteria de Antonio organiza a configuraccedilatildeo caoacutetica da accedilatildeo externa dando um

sentido ao amontoado de fatos e episoacutedios jaacute vividos Nessa seleccedilatildeo privilegia natildeo a

memoacuteria anotada e escrita em cadernos ou diaacuterios mas aquela mais viva mais seletiva e

mais afetiva (MOREIRA 2014 p169)

No referido ensaio o fragmento acima corresponde agrave reflexatildeo de Antonio sobre a forma

como suas lembranccedilas lhe aparecem

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A memoacuteria que vai para o diaacuterio fica toda arrumadinha linear dia mecircs e ano Agraves vezes

horas e ateacute minutos constam do registro Mas quando velho a gente vai e consulta o

caderno se espanta com o montatildeo de coisa que jaacute nem faz sentido e estaria apagado natildeo

fosse a tinta A memoacuteria puxada da cabeccedila natildeo Eacute esforccedilo de selecionar soacute o que presta

o que nos eacute querido Natildeo eacute discurso ensaiado e lido Eacute fala de improviso com todos os

erros e tropeccedilos que a ousadia pode causar (AZEVEDO 2008 p248)

O que Antonio estaacute referindo eacute o conjunto de suas lembranccedilas na despensa da memoacuteria

aquelas que o identificam por constituiacuterem etapas de sua vida atraveacutes delas se reconhece

assume a consciecircncia de si Mesmo com o embaralhamento entre lembranccedilas e devaneios o

protagonista faz um balanccedilo de sua existecircncia enquanto prepara o almoccedilo familiar Estaacute na

cozinha porque esta eacute seu refuacutegio seu lugar no mundo Prepara o arroz para compartilhaacute-lo

assim como sua Tia Palma partilhava com ele suas histoacuterias sentada na quarta cadeira Os

trechos a seguir representam com nitidez o papel da comida agrave mesa para Antonio Mais uma vez

estatildeo presentes as lembranccedilas de tempos vividos e o arroz no prato como na frase lsquoo arroz tem

que vir sempre na frentersquo

A descriccedilatildeo de comidas caseiras do esmero de Conceiccedilatildeo ao arrumar a mesa da atitude

de Isabel em servi-lo todos satildeo elementos construiacutedos ao longo do tempo e tecircm como raiz as

experiecircncias familiares transformadas em memoacuteria O lsquocheiro gostoso da comidinha caseirarsquo eacute o

elemento sensorial que o acolhe na atmosfera de casa e simultaneamente o leva a viajar em suas

lembranccedilas O lsquoalmoccedilo de famiacutelia cotidianorsquo eacute o elemento que conduz o protagonista a cenas

semelhantes no passado como quando seus filhos eram crianccedilas Refeiccedilatildeo para Antonio eacute a

famiacutelia na mesa Assim a comida e a famiacutelia mais uma vez estatildeo vinculadas para ele como

sinocircnimos De recordaccedilatildeo de aconchego de partilha do gosto e do cheiro bom

Conceiccedilatildeo chega e anuncia que o almoccedilo estaacute indo para a mesa Graccedilas a Deus Meu

estocircmago jaacute estaacute roncando Puxo Rosaacuterio do sofaacute

-Vamos

E vamos todos levados pelo cheiro gostoso da comidinha caseira Ao nos sentarmos agrave

mesa impossiacutevel natildeo reparar no costumeiro apuro O caimento da toalha Os pratos os

copos os talheres afastados na medida certa Os guardanapos bem dobrados agrave esquerda

A cesta de patildees posta com arte Natildeo eacute almoccedilo para visitas Eacute almoccedilo de famiacutelia

cotidiano- esmero da Conceiccedilatildeo que ama tudo o que faz Laacute vem ela de novo da

cozinha pousa do meu lado a terrina do feijatildeo fumegando me daacute aquele sorriso de

missatildeo bem cumprida

-Botei bastante paio Ontem o senhor ficou revirando a concha dizendo que dava

precircmio para quem encontrasse um (AZEVEDO 2008 p311)

A cena pode ser compreendida sob a perspectiva de Laura Esquivel no ensaio jaacute referido

quando a autora exprime sua visatildeo sobre a comida e a partilha da mesa

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E ainda que natildeo sejamos religiosos creio que para nenhum de noacutes seraacute estranho pensar

que atraveacutes dos aromas que compartilhamos com nossos semelhantes dos sabores dos

alimentos e da substancial presenccedila da divindade neles os seres humanos podemos ter

dia apoacutes dia uma pequena antecipaccedilatildeo do paraiacuteso (ESQUIVEL 2014 p78)

A ideia de Esquivel sobre a lsquoantecipaccedilatildeo do paraiacutesorsquo coincide com o sentimento de

Antonio sobre a cozinha Para o protagonista essa representa a casa o sabor a famiacutelia Simboliza

o que Gaston Bachelard refere na frase ldquoPode-se demonstrar as primitividades imaginaacuterias

mesmo a respeito desse ser soacutelido na memoacuteria que eacute a casa natalrdquo (BACHELARD 2012 p47)

Pode-se complementar essa frase com outra ideia do autor ldquo[] a casa natal eacute uma casa

habitadardquo (BACHELARD 2012 p33) Ao estar na cozinha ou na sala de jantar ao estar sentado

agrave mesa a emoccedilatildeo eacute a de estar em casa naquela que primeiro conheceu como casa a fazenda A

casa natal eacute e sempre seraacute habitada pelas lembranccedilas Esse espaccedilo corresponde a um lugar de

memoacuteria conforme referido por Ricoeur A casa natal eacute um ser soacutelido na memoacuteria porque ela

conteacutem as primeiras vivecircncias afetos impressotildees Eacute ali que a vida comeccedila que se enraiacuteza dali

vecircm as lsquoprimitividades imaginaacuteriasrsquo e as lembranccedilas que tornaratildeo o sujeito em quem ele eacute pela

consciecircncia de si que a memoacuteria propicia

Minha mulher eacute paciente entende como funciono Ela pega meu prato e vai me

servindo um pouco disto um pouco daquilo mas antes de tudo o arroz- indispensaacutevel-

e o feijatildeo por cima Eu sei que natildeo eacute o certo Mas eacute assim que eu gosto o feijatildeo por

cima nunca do lado Se puser o feijatildeo primeiro e depois o montinho do arroz tambeacutem

implico O arroz tem que vir sempre na frente depois o feijatildeo molhando aiacute sim eacute

perfeito Sempre ensinei bons modos aos meus filhos mas nunca os proibi de misturar a

comida toda no prato de uma vez Se eu misturo como proibir Ai se fizeacutessemos isso na

frente de Isabel Bom nem pensar Em dias de ensopadinho de vagem com carninha

moiacuteda ou de chuchu com camaratildeo era verdadeiro supliacutecio Nuno e eu sofriacuteamos

horrores Queriacuteamos porque queriacuteamos misturar tudo de uma vez com o arroz Natildeo

podiacuteamos Era proibido por lei Isabel natildeo transigia Tiacutenhamos que ir misturando aos

pouquinhos puxando com o garfo e aiacute levar agrave boca Depois voltar misturar mais um

pouquinho puxando com o garfo e tornar a levar agrave boca Um sacrifiacutecio Depois de

nossos filhos adultos a lei do proibido misturar foi abolida E cada um liberado para

comer do seu jeitinho informal

Jaacute servido espeto o paio deliacutecia e retomo a conversa (AZEVEDO 2008 p314)

Chega a hora de Antonio apoacutes revisitar histoacuterias vividas e contadas pela memoacuteria Na

cozinha representaccedilatildeo de sua casa natal ele falece ldquoSempre acompanhamos com olhos de

saudade o balatildeo que sobe ceacuteu afora e se mistura no azul Acontece com todos Depois satildeo soacute

histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras Famiacutelia eacute prato que quando se acaba nunca

mais se repeterdquo (AZEVEDO 2008 p361)

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Histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras elementos que aludem agraves lembranccedilas

Mais uma vez a cozinha eacute representada ao falar-se em memoacuteria atraveacutes das lsquoreceitas caseirasrsquo

Essas satildeo registros de quem habitou os campos de forno-e-fogatildeo e deixou por escrito o como-

se-faz O seu

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2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE

A sacola de crochecirc da voacute era perturbadora da ordem ali de dentro ela tirava varenikes

beigales mondales knishes strudels um perfume que ia nos buscar no mais remoto

quarto da casa pratos fundos de louccedila branca e pesada transbordantes de fartura Noacutes

nos reuniacuteamos em torno da mesa em torno da voacute em torno dos pratos - em torno da

comida que ela tratava como uma cerimocircnia de milagre E ela abria os braccedilos para nos

acarinhar a todos e nos beijava com os laacutebios finos o haacutelito de menta e pronunciava

palavras boas palavras de quem traz alviacutessaras feliz como quem pode dar o seio a um

bebecirc minhas crianccedilas a voacute trouxe comida pra vocecircs (MOSCOVICH 2006 p93-94)

Prazer eacute sentimento do corpo Bem-estar e gozo que se quer repetir Puro deleite acorda

os sentidos Onda repentina epifania de cores aromas gostos texturas sons Nasce sem aviso

deixa marcas faz pulsar em ritmo de quero-mais Nasce do encontro amoroso do saborear de um

prato e de tantas outras vivecircncias Estaacute na taccedila do vinho escuro e aveludado na mordida do mil-

folhas ao mesmo tempo crocante e macio O prazer desperta como se fosse dia novo entusiasma

provoca ecoa em cada parte nossa Comida eacute coisa prazerosa toca a vida sensorial alegra ceacutelulas

e anima A cozinha espaccedilo fiacutesico e territoacuterio afetivo evoca gostos desejos lembranccedilas prazer

O preparo das receitas o deleite dos pratos a partilha da mesa as conversas amenas durante a

refeiccedilatildeo todos inerentes ao universo culinaacuterio E depois vem a culpa a roupa que aperta o

regime por ordens meacutedicas Culpa e prazer inimigos entrelaccedilados

21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE

Por que sou gorda mamatildee eacute o romance escrito por Ciacutentia Moscovich em 2006 e

publicado pela Editora Record com uma narradora em primeira pessoa de quem o leitor natildeo

sabe o nome ao longo da obra Ela passa a limpo as histoacuterias de famiacutelia de origem judaica e a

sua proacutepria histoacuteria em uma carta para sua matildee Dessa o leitor tambeacutem natildeo sabe o nome da

primeira agrave uacuteltima paacutegina

O conflito central apresenta a dificuldade da narradora-personagem com seu aumento de

peso vinte e dois quilos em quatro anos e o sofrimento em face da necessidade de fazer dieta

Natildeo se trata apenas das privaccedilotildees de ter de fazer dieta Trata-se da dor emocional por precisar

fazer dieta de novo A repeticcedilatildeo de situaccedilotildees em que o engorde esteve presente em sua vida

ligado ao papel do comer em sua famiacutelia faz com que acuse sua matildee muitas vezes pela situaccedilatildeo

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a que chegou Por essa oferecer comida demais Natildeo Por oferecer afeto de menos Ao contraacuterio

da matildee a Voacute Magra sua avoacute materna eacute muito carinhosa com ela e seus irmatildeos e aleacutem disso

sempre aparece com a sacola de crocheacute plena de doces da cozinha judaica O papel da avoacute parece

ser o de suprir as faltas da matildee e as supre em excesso no que tange ao reforccedilo da gula

A narrativa pode ser a expressatildeo de uma catarse atraveacutes da escrita uma decisatildeo

confessional da narradora ou sua atitude ora acusatoacuteria ora carente na direccedilatildeo de sua matildee Em

uma mistura de cada uma dessas formas o livro traz o entrelaccedilamento das memoacuterias das

emoccedilotildees e das etapas objetivas em sua jornada de emagrecimento como narra a protagonista no

proacutelogo ao expor para sua matildee que a escrita seraacute dirigida a ela

Tenho medo mas estou prestes a pocircr um ponto final e a aticcedilar a pluma das lembranccedilas

Luta contra o gelo do tempo O proacutelogo em seus estertores depois comeccedila

Mamatildee me endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar

esse territoacuterio metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora

Quero voltar a ter um corpo

Haacute um livro a ser escrito e nele os fatos seratildeo fruto da prestidigitaccedilatildeo ainda que

imperfeita Respostas possiacuteveis ilusatildeo para secar as maacutegoas e o corpo O proacutelogo

termina Depois jaacute iniciou Comeccedilo num ponto de intrerrogaccedilatildeo

Por que sou gorda mamatildee (MOSCOVICH 2006 p19)

A narrativa eacute contada em vinte e cinco capiacutetulos duzentas e cinquenta e uma paacuteginas

vinte e dois quilos O primeiro capiacutetulo apresenta em primeira pessoa um entrelaccedilamento

essencial ao conflito da personagem a histoacuteria da origem de sua famiacutelia na Europa passando

fome em vilarejos judeus a histoacuteria de sua Voacute Magra com o prazer da comida e sua proacutepria

histoacuteria de infacircncia com os irmatildeos na hora das refeiccedilotildees

Segue-se ainda nesse capiacutetulo um desabafo com uma lista de aspectos pejorativos do

sujeito gordo Satildeo frases que costumamos ouvir com grande frequecircncia sobre os indiviacuteduos com

excesso de peso e que eles mesmos muitas vezes referem em tom entre o mea culpa e a auto

ironia Esse eacute o tom usado pela narradora falando em sua voz o que atribui ao olhar alheio

Depois de apontar os defeitos dos gordos conta do comeccedilo de seu sacrifiacutecio com as restriccedilotildees

alimentares

Em seguida o escaacuternio daacute lugar agrave lembranccedila da morte de seu pai as consequecircncias que

tal perda teve na famiacutelia e sobretudo na relaccedilatildeo de sua matildee com os filhos Eacute o comeccedilo da voz

acusatoacuteria da narradora trazendo agrave tona fatos e sofrimentos na relaccedilatildeo familiar Aparece a

ausecircncia da matildee no cumprir de sua funccedilatildeo afetiva Seguem-se capiacutetulos de apresentaccedilatildeo da Voacute

Gorda do lado paterno da Voacute Magra e de sua histoacuteria frustrada de amor por um violinista russo

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do avocirc do pai dos irmatildeos de si mesma em vaacuterios tempos da vida e da balanccedila Presente e

passado alternam-se disputando espaccedilo nas paacuteginas porque para a personagem em sua carta agrave

matildee o passado eacute parte do peso em quilos de seu presente

Enquanto passa a limpo sua histoacuteria e suas maacutegoas a narradora vai contando vitoacuterias e

deslizes na dieta dores pela restriccedilatildeo alimentar e alegrias por conseguir emagrecer lentamente A

histoacuteria familiar evolui o momento em que o excesso de peso na infacircncia tornou-se foco de

preocupaccedilatildeo e de imposiccedilatildeo da dieta por parte do pai aparece como fato de destaque A

narradora em zigue-zague transita entre os periacuteodos de vida para encontrar respostas ora em

conversas dirigidas agrave matildee ora em diaacutelogos com seu proacuteprio mundo interno A escrita para a matildee

eacute em essecircncia um passar a limpo para si mesma a proacutepria histoacuteria de seu corpo Gula prazer

afeto e ausecircncia dores e perdas inclusive de maacutegoas e de peso eis o transcorrer da histoacuteria

narrada Esses elementos satildeo o fio condutor da narrativa das primeiras paacuteginas ateacute a evoluccedilatildeo ao

epiacutelogo Parte desse reproduzo abaixo

Mamatildee natildeo preciso perdoaacute-la por nada Natildeo me incomodo mais pela porccedilatildeo presente de

sua lavra e todo o esforccedilo de natildeo mais me incomodar foi por amor que eacute minha cura

Mais cinco quilos a bordo de uma bicicleta cor-de-rosa seratildeo perdidos Recuso-me a

remexer ainda mais no passado Natildeo se angustie mamatildee Noacutes duas sabemos que natildeo

vale a pena-falta que a senhora serenize seus dias e deixe tambeacutem de remexer o passado

Depois que eu colocar o ponto final por favor mamatildee natildeo deixe de recompor sua

alegria seu desejo e sua piedade A senhora perdoaraacute a vida E eu terei esquecido que

cheguei ateacute aqui apesar da senhora

[hellip] (MOSCOVICH 2006 p250)

Destaca-se sobretudo a verossimilhanccedila interna da obra Entre o proacutelogo e o epiacutelogo haacute

muitas histoacuterias contadas em uma soacute compondo uma linha de tempo na cronologia do calendaacuterio

e outra dentro da personagem Afinal de contas o tempo interno tem um ritmo proacuteprio que

obedece acima de tudo agraves leis da memoacuteria

A narradora-personagem consegue compreender suas interrogaccedilotildees ao entremear passado

e presente histoacuteria familiar e individual A narrativa multifacetada natildeo sai dos trilhos e eacute possiacutevel

acompanhar o diaacutelogo da personagem consigo mesma atraveacutes da carta para sua matildee A

descoberta dos elementos alusivos agrave presenccedila e agrave falta de prazer alimentar que permeiam a obra

conduzem ao primeiro aspecto do presente capiacutetulo o que eacute o prazer afinal

60

22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL

Para o psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers o prazer no campo da Fenomenologia

Psiquiaacutetrica pode ser compreendido como a realizaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees

orgacircnicas Para o referido autor o prazer consiste no equiliacutebrio psiacutequico na satisfaccedilatildeo e no bem-

estar Jaacute conforme os autores do artigo Psicopatologia do Prazer Lorenzo Pelizza e Franco

Benazzi o prazer pode ser considerado um fenocircmeno psiacutequico de muacuteltiplas facetas Em termos

geneacutericos esse eacute um forte sentimento que corresponde agrave percepccedilatildeo de uma condiccedilatildeo positiva

fiacutesica ou mental proveniente do organismo

As pesquisas que abordam o prazer satildeo recentes Apenas haacute algumas deacutecadas a ciecircncia

passou a contribuir para evidenciar os efeitos beneacuteficos desse fenocircmeno tanto no sentido proacute-

ativo (como fator que favorece o bem-estar psico-fiacutesico do indiviacuteduo e que promove o processo

de cura da doenccedila) quanto no protetor (como elemento fundamental que fornece ao sujeito os

recursos necessaacuterios para afrontar e superar as experiecircncias negativas e para prevenir o risco de

adoecer) (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

Do ponto de vista do estudo do prazer como elemento saudaacutevel destacamos seu papel

como fator de importante valor motivacional sob o enfoque das teorias evolucionistas

Reduzindo ao maacuteximo a explicaccedilatildeo seria possiacutevel entender seu papel da seguinte forma como

espeacutecie sentimos prazer na alimentaccedilatildeo e na relaccedilatildeo sexual para que mediante esta sensaccedilatildeo

tenhamos estiacutemulo para nutrirmo-nos e procriarmos A gratificaccedilatildeo do ceacuterebro que ocorre

atraveacutes da experiecircncia prazerosa motiva o indiviacuteduo a repetir os comportamentos que a tornam

viaacutevel como o comer Forma-se assim um ciclo no qual a comida promove prazer e este motiva

a procuraacute-la pela resposta cerebral gerando novamente o prazer e assim ocorre a manutenccedilatildeo do

comportamento com sucessivas repeticcedilotildees A propoacutesito desse ciclo os referidos autores

esclarecem

O mecanismo operante de reforccedilorecompensa age em sentido evolucionista para

conduzir os comportamentos adotados na direccedilatildeo de escopos adaptativos que sejam uacuteteis

para garantir a sobrevivecircncia do indiviacuteduo (por exemplo busca de comida ou de aacutegua)

eou a conservaccedilatildeo da espeacutecie (condutas reprodutivas) Para que atinja a eficaacutecia o

estiacutemulo de reforccedilo deve ser capaz de ativar as instacircncias psiacutequicas do prazer e o sistema

neurobioloacutegico de gratificaccedilatildeo cerebral (circuitos dopaminergicos mesoliacutembicos) sendo

deste modo vivido como experiecircncia prazerosa satisfatoacuteria e assumindo assim um

importante valor motivacional (PELIZZA BENAZZI 2008 p298-299)

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Tal explicaccedilatildeo evolucionista eacute relevante para a compreensatildeo do prazer alimentar Como

espeacutecie devemos sentir prazer ao comer com o propoacutesito de termos estiacutemulo para mantermos a

constacircncia de uma alimentaccedilatildeo regular O prazer eacute o elemento que torna possiacutevel esta constacircncia

O socioacutelogo e escritor brasileiro Carlos Alberto Doacuteria acrescenta um dado relevante nesse

sentido ao mencionar o autor de A fisiologia do gosto Jean Anthelme Brillat-Savarin que

publicou a obra em 1825 relevante na literatura gastronocircmica Nessa ao referir-se aos cinco

sentidos Brillat-Savarin acrescenta o sentido geneacutesico sobre o qual Doacuteria reflete em seu livro A

culinaacuteria materialista

Este uacuteltimo eacute o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro

sendo a sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecie Este sentido diz ele foi ignorado ateacute o

seacuteculo XVIII sendo anexado ao (ou confundido com o) tato Ora a reproduccedilatildeo da

espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo

a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo ao sexo e ao comer eacute o prazer a

busca do agradaacutevel e este eacute o sentido muito especial que ele pretende indicar como

responsaacutevel pela gastronomia (DOacuteRIA 2009 p190 grifo do autor)

Assim a relaccedilatildeo de prazer do indiviacuteduo com a comida eacute tambeacutem de acordo com Brillat-

Savarin uma estrateacutegia de sobrevivecircncia da espeacutecie assim como o sexo A sensaccedilatildeo prazerosa

ligada ao alimento refere-se principalmente agrave percepccedilatildeo deste como tendo gosto agradaacutevel ou

seja ldquo[] aquilo que apraz aos sentidos mobilizados pela alimentaccedilatildeordquo (DORIA 2009 p192)

O estudo da obra de Carlos Alberto Doacuteria abre um campo de reflexatildeo relevante no que

tange ao fenocircmeno do prazer pois o autor o aborda pela perspectiva gastronocircmica referindo o

que torna um alimento prazeroso Ele menciona que de acordo com os modernos teoacutericos do

gosto ldquo[] o agradaacutevel que comemos depende do impacto favoraacutevel sobre todos os cinco

sentidosrdquo (DOacuteRIA 2009 p194)

Para explicar como um alimento se torna agradaacutevel ele comeccedila por definir o mundo

objetivo lsquoo mundo das coisas e das nossas aptidotildees fisioloacutegicas para percebecirc-lorsquo e o mundo

subjetivo lsquodos nossos valores crenccedilas e preferecircncias individuaisrsquo Entatildeo acrescenta o ponto

chave de sua reflexatildeo ldquoTomemos como hipoacutetese que o gosto se forma na relaccedilatildeo entre esses dois

mundos O gosto assim entendido eacute relacional e se refere ao que se passa em torno do ato

fisioloacutegico de comerrdquo (DOacuteRIA 2009 p194) A fim de aprofundar a ideia desta relaccedilatildeo expotildee

Ao explorar a noccedilatildeo de gosto partindo de sua dimensatildeo material isto eacute da relaccedilatildeo que

se estabelece entre o mundo e o homem por intermeacutedio do complexo aparato sensitivo

temos que entender tambeacutem que o gosto varia de indiviacuteduo para indiviacuteduo entre as

62

diferentes idades de um mesmo indiviacuteduo entre as classes sociais de cultura para

cultura e de uma eacutepoca para outra na mesma cultura Sabemos tambeacutem que permanece

um misteacuterio como nasce o desejo intenso de se comer determinado alimento ou como a

monotonia de uma dieta se instaura de modo a repudiarmos o alimento apoacutes um certo

tempo Nada disso se explica por razotildees puramente fisioloacutegicas (DOacuteRIA 2009 p195)

Assim na relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o alimento agradaacutevel ao lsquocomplexo aparato

sensitivorsquo como define Doacuteria existem variaacuteveis como idade e cultura que interferem no modo

como a sensaccedilatildeo prazerosa eacute percebida Quanto ao aspecto cultural por exemplo o autor refere

O gosto partilhado por vaacuterias pessoas ndash sejam membros de uma famiacutelia de uma

comunidade de uma eacutepoca- sugere uma construccedilatildeo coletiva que natildeo se confunde com a

experiecircncia gustativa de cada um O caraacuteter afetivo da cozinha familiar eacute um modelo de

socializaccedilatildeo do gosto que todos conhecemos Ningueacutem faz determinado prato igual a

nossa matildee ou avoacute [] (DOacuteRIA 2009 p195)

Em diversas famiacutelias de uma dada geraccedilatildeo o lsquobife agrave milanesa da voacutersquo eacute emblemaacutetico em

representar a explicaccedilatildeo do autor Ao que parece o prazer reside no preparo pela avoacute mais do

que no prato em si A avoacute de cada famiacutelia seria a responsaacutevel pelo melhor bife agrave milanesa do

mundo de acordo com os respectivos netos Essa percepccedilatildeo reflete o que Doacuteria menciona como

lsquoo caraacuteter afetivo da cozinha familiarrsquo termo que coincide com o papel da Voacute Magra

personagem da obra em estudo neste capiacutetulo Outra consideraccedilatildeo relevante do autor acerca da

construccedilatildeo do universo do gosto eacute a de que este ldquo[] eacute expressatildeo da educaccedilatildeo do paladar e dos

demais sentidos conformados culturalmente para a apreciaccedilatildeo do que comemosrdquo (DOacuteRIA 2009

p196)

Deste modo eacute possiacutevel compreender que aprendemos a gostar do que eacute aceitaacutevel em

determinado contexto social e cultural entretanto temos em primeiro lugar a percepccedilatildeo

bioloacutegica atraveacutes dos cinco sentidos do que devemos levar agrave boca e daquilo que eacute necessaacuterio

evitar em termos de manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Pela aparecircncia e pelo olfato por exemplo um

alimento pode parecer prazeroso e entatildeo adequado ou repulsivo se apresentar sinais de bolor ou

de alteraccedilatildeo de suas caracteriacutesticas conhecidas A respeito dessa avaliaccedilatildeo sobre o que eacute

agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos com fins de alimentaccedilatildeo Doacuteria refere

O gosto caminha em meio a essas preferecircncias e rejeiccedilotildees ajudando a erigir barreiras

que demarcam os limites de determinada cultura ou mesmo as variaccedilotildees individuais

nessa mesma cultura Alimentos tabus natildeo devem ser tocados ou consumidos Por isso

seu sabor eacute tambeacutem repulsivo Assim as sociedades constroem um anteparo que protege

a cultura daquilo que ela considera lsquonatureza hostil (DOacuteRIA 2009 p196)

63

Se de um lado o prazer eacute o elemento bioloacutegico que impulsiona o indiviacuteduo para a

preservaccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do alimento (e da espeacutecie atraveacutes da coacutepula) de outro as

escolhas que condicionam a sensaccedilatildeo prazerosa no campo alimentar ultrapassam a dimensatildeo

corpoacuterea atingindo em boa parte das vezes a esfera cultural atraveacutes da construccedilatildeo coletiva do

gosto O autor apresenta neste aspecto a seguinte reflexatildeo

Podemos imaginar o homem como uma maacutequina bioloacutegica que se relaciona

integralmente com o mundo de tal forma que todos os estiacutemulos que ele internaliza

afetam a totalidade dessa maacutequina O nosso conhecimento estaacute no tato na audiccedilatildeo na

visatildeo no olfato no paladar e tudo isso eacute processado natildeo apenas diretamente como

experiecircncia pessoal mas no acoplamento que mantemos com seres da mesma espeacutecie

(DOacuteRIA 2009 p197)

De acordo com essa exposiccedilatildeo podemos gostar daquele alimento que eacute aceitaacutevel em

nossa cultura e em nosso meio para assim continuarmos pertencendo ao grupo de que somos

parte contemplando a noccedilatildeo que o autor estabelece como o lsquoacoplamento que mantemos com

seres da mesma espeacuteciersquo Ao sentir prazer nos sentimos impelidos a comer algo porque nos

desperta a sensaccedilatildeo agradaacutevel essa experiecircncia eacute em primeiro plano instintiva quando o ldquo[]

elo entre prazerdesprazer se estabelece como base do fenocircmeno da aprendizagem e da aversatildeo a

um sabor a partir do risco que sinaliza para o organismordquo (DOacuteRIA 2009 p205)

Em segundo plano gostamos do que aprendemos que podemos gostar de acordo com a

cultura em que estamos inseridos Nesse contexto cabe ressaltar o fenocircmeno da

neuroplasticidade atraveacutes do qual o ceacuterebro se molda a partir das experiecircncias a que eacute exposto

de acordo com tal ocorrecircncia os mecanismos cerebrais aprendem a responder a determinado

estiacutemulo e criam um espaccedilo de resposta ao mesmo quanto mais vezes exposto a ele Isso pode

acontecer no aprendizado de uma competecircncia como tocar um instrumento musical falar um

idioma ou ateacute mesmo naquele de um novo paladar Aprendemos a gostar de um alimento o que

faz com que a sensaccedilatildeo agradaacutevel obtida ao comermos nos faccedila querer repetir seu consumo

Surge entatildeo a perspectiva do prazer em seu percurso do ponto de partida sauacutede para o

ponto de chegada doenccedila De acordo com Benazzi e Pelizza os mecanismos neurobioloacutegicos

responsaacuteveis pela gratificaccedilatildeo cerebral alimentam-se do prazer e quanto mais recebem mais

demandam que o organismo lhes forneccedila mais e mais sensaccedilotildees prazerosas Essa condiccedilatildeo

manifesta-se apenas em alguns indiviacuteduos cuja carga geneacutetica e aprendizagem cultural

favoreccedilam os comportamentos ditos compulsivos por exemplo Nas pessoas propensas a tal

64

expressatildeo isso ocorre sucessivamente motivo pelo qual o prazer alimentar pode ser natildeo mais um

aliado da sauacutede e da sobrevivecircncia mas sim um algoz a partir de determinado momento Esse

ponto eacute quando o comer se torna excessivo fornecendo de modo incessante e crescente a

gratificaccedilatildeo prazerosa aos mecanismos cerebrais de recompensa

Desfaz-se assim a noccedilatildeo de prazer apresentada por Jaspers anteriormente referida

Quando haacute aumento das sensaccedilotildees prazerosas para saciar a demanda dos centros cerebrais de

gratificaccedilatildeo e natildeo mais para que o prazer esteja calcado lsquono equiliacutebrio psiacutequico e no bem-estarrsquo

pode-se compreender que esse deixou de cumprir sua funccedilatildeo na sauacutede

Quando uma cultura em amplo espectro como a norte-americana aprende a sentir prazer

com a ingesta do fast-food e isso se transmite a outras culturas e ainda mais grave agraves geraccedilotildees

seguintes os problemas de sauacutede atingem dimensotildees catastroacuteficas Esse resultado jaacute eacute possiacutevel

constatar em nosso seacuteculo XXI Compreende-se assim que natildeo apenas o indiviacuteduo pode

adoecer mas a cultura tambeacutem pode adoecer Fortunadamente pensadores do campo da

alimentaccedilatildeo como Michael Pollan tecircm combatido de modo ferrenho essa tendecircncia como o faz

em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo salienta-se tambeacutem o italiano

Carlo Petrini que jaacute na deacutecada de 80 fundou a filosofia do slow food em oposiccedilatildeo ao haacutebito

determinado pelas cadeias de fast-food ao redor do mundo

Cada vez mais o slow food tem ganho espaccedilo na compreensatildeo contemporacircnea sobre o

comer com prazer com sauacutede e com lentidatildeo respeitando o tempo das refeiccedilotildees como um tempo

de interaccedilatildeo familiar e de consciecircncia do alimento que se ingere Referimos nesse sentido o

proacuteprio Pollan responsaacutevel pela defesa de que as famiacutelias voltem a comer em casa como

oportunidade de alimentaccedilatildeo saudaacutevel e de interaccedilatildeo entre os membros do grupo familiar

Entretanto as mudanccedilas causadas pela conscientizaccedilatildeo estatildeo apenas nos primeiros passos os

comportamentos alimentares insalubres ainda representam a maioria ao menos no ocidente As

patologias do prazer ocupam importante espaccedilo no campo das doenccedilas contemporacircneas em

termos psiacutequicos e em suas decorrecircncias fiacutesicas

Tanto a reduccedilatildeo quanto o aumento significativo de experiecircncias prazerosas podem levar agrave

ocorrecircncia de patologias nos acircmbitos fiacutesico e psiacutequico No artigo em estudo Psicopatologia do

prazer lecirc-se ldquoO ser humano frente agrave possibilidade de permitir-se prazeres em alguns casos

pode sentir-se impedido pela preocupaccedilatildeo pela desvalia e pela culpa relativa a eventuais

consequecircncias potencialmente danosas de suas accedilotildeesrdquo (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

65

Esses mesmos autores referem a existecircncia de uma porcentagem significativa de

indiviacuteduos capazes de experimentar sentimentos de baixa autoestima ou de culpa (leve e

transitoacuteria ou ao contraacuterio intensa e mantida) em relaccedilatildeo aos interesses e atividades que lhes

provocam prazer Tais emoccedilotildees desagradaacuteveis viriam em forma e em intensidade e representam

um relevante contraponto agrave sensaccedilatildeo prazerosa podendo inclusive inibir as experiecircncias futuras

de prazer A ausecircncia desse gera mais desvalia e culpa estresse crocircnico e sentimentos de

incapacidade impedindo com que novas vivecircncias potencialmente prazerosas aconteccedilam e assim

ocorre um ciclo com repercussotildees na sauacutede tanto em termos fiacutesicos quanto mentais Os autores

do artigo referem

[] de uma espeacutecie de estressor interno que tais indiviacuteduos transfeririam de uma

situaccedilatildeo a outra dessas circunstacircncias decorreriam entatildeo efeitos negativos sobre sua

sauacutede fiacutesica suas capacidades cognitivas (ex concentraccedilatildeo atenccedilatildeo memoacuteria) e em seu

funcionamento nos campos social e laboral cotidiano Seria possiacutevel referir que o

excesso de culpa ou desvalia determinaria uma condiccedilatildeo de estresse crocircnico capaz de

aumentar significativamente a secreccedilatildeo dos hormocircnios ligados ao estresse com

consequumlecircncias danosas agrave sauacutede fiacutesica e agrave mental (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

Ressaltamos que o contraacuterio tambeacutem ocorre Cabe refletir sobre o desejo exasperado e

absoluto de prazer levada a extremos como nas condiccedilotildees de transtornos alimentares (entre

esses a compulsatildeo alimentar) De acordo com tais autores quando ocorrer uma busca excessiva

de sensaccedilotildees prazerosas mesmo se houver a gratificaccedilatildeo desses prazeres haveraacute riscos para a

sauacutede do indiviacuteduo Nesse caso o prazer em excesso passaraacute a ser o responsaacutevel pelos

sentimentos de culpa desvalia depressatildeo ansiedade e descontrole de impulsos (PELIZZA

BENAZZI 2008)

O prazer em excesso no campo alimentar conduz muitas vezes ao aumento de peso

com prejuiacutezos agrave sauacutede Essas circunstacircncias podem acarretar uma forma de dor emocional

diretamente ligada ao prazer de comer como nos casos de indiviacuteduos que fazem dieta alimentar

por orientaccedilatildeo meacutedica Nesses a restriccedilatildeo imposta representa um importante sofrimento quando

se encontram em sobrepeso ou em condiccedilatildeo de obesidade moacuterbida A exigecircncia de restringir o

que lhes daacute prazer pode ser um motivo de transgressotildees da dieta O resultado eacute o natildeo

emagrecimento ou o engorde ainda maior A seguir vecircm a culpa a desvalia a tristeza e o

desacircnimo todos os antagonistas da sensaccedilatildeo prazerosa Para compensar as emoccedilotildees os

indiviacuteduos socorrem-se com a comida mantendo o ciacuterculo vicioso O equiliacutebrio preconizado por

Jaspers em sua perspectiva sobre o prazer natildeo eacute encontrado

66

Em Por que sou gorda mamatildee o conflito da personagem com o impedimento ao prazer

alimentar estaacute presente em diversos trechos A narradora faz uma dolorosa e agraves vezes bem-

humorada recapitulaccedilatildeo de suas vivecircncias de prazer com a comida e de suas experiecircncias de

dieta de emagrecimento Satildeo narradas tambeacutem suas emoccedilotildees de desvalia e baixa autoestima por

vestir o adjetivo de gorda entretanto muito de sua insatisfaccedilatildeo estaacute no impedimento para comer

o que gosta o que lhe daacute prazer

Haacute uma visatildeo especiacutefica sobre o que eacute o prazer nos indiviacuteduos que apresentam

comportamentos anormais na procura por esta experiecircncia eles referem em diversas ocasiotildees a

percepccedilatildeo que tecircm sobre a comida na qualidade de fonte de prazer para algumas pessoas comer

eacute a uacutenica fonte de prazer possiacutevel Eacute comum referirem nas consultas meacutedicas lsquoou usufruo do

maacuteximo prazer ou natildeo sentirei nenhumrsquo ou lsquose natildeo puder comer todo o pote de sorvete natildeo

como mais nada Ou isto ou nada Me nego a fazer dietarsquo haacute ainda quem refira lsquonatildeo acredito

em dia livre dieta natildeo tem dia livre Isso eacute enganaccedilatildeo porque ningueacutem consegue voltar a comer

direito no outro diarsquo Essas frases demonstram padrotildees culturais de interpretaccedilatildeo do papel da

comida muitas vezes substitutivo de outras necessidades emocionais

Existindo maior resposta positiva aos prazeres aos quais o indiviacuteduo se dirige em

especial nas situaccedilotildees de excesso ocorreraacute ainda maior demanda por parte desses mecanismos

Como resultado surgem sintomas psiquiaacutetricos isolados ou em comorbidade decorrentes do

desequiliacutebrio gerado pela demanda excessiva Haacute ainda as decorrecircncias fiacutesicas de tal

desequiliacutebrio como a obesidade e as doenccedilas a ela associadas o diabetes a hipertensatildeo arterial e

a hipercolesterolemia entre outras Mais cedo ou mais tarde o corpo cobra sua conta dos

excessos quando se perpetuam

23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA

A fisiologia do gosto obra essencial na literatura gastronocircmica citada anteriormente foi

escrita por Jean Anthelme Brillhat-Savarin advogado e juiz francecircs (1755-1826) apaixonado

pelos prazeres da mesa O livro eacute composto por trinta capiacutetulos que o autor intitula lsquoMeditaccedilotildeesrsquo

e um uacuteltimo composto de variedades A fatia destinada agrave reflexatildeo sobre o prazer eacute a meditaccedilatildeo

14 lsquoDo prazer da mesarsquo Sobre a procura pelo prazer em termos gerais Brillat-Savarin refere

67

O homem eacute incontestavelmente dos seres sensitivos que povoam nosso globo o que

experimenta mais sofrimentos A natureza o condenou primitivamente agrave dor pela nudez

de sua pele pela forma de seus peacutes pelo instinto de guerra e destruiccedilatildeo que acompanha

a espeacutecie humana onde quer que ela se encontre

Os animais natildeo foram atingidos por essa maldiccedilatildeo e sem alguns combates causados

pelo instinto de reproduccedilatildeo a dor no estado de natureza seria completamente

desconhecida da maior parte das espeacutecies ao passo que o homem que soacute encontra o

prazer passageiramente e por meio de um pequeno nuacutemero de oacutergatildeos estaacute sempre

exposto em todas as partes do corpo a terriacuteveis sofrimentos

Essa sentenccedila do destino foi agravada em sua execuccedilatildeo por uma seacuterie de doenccedilas

nascidas dos haacutebitos do estado social de modo que o prazer mais satisfatoacuterio que se

possa imaginar seja em intensidade seja em duraccedilatildeo eacute incapaz de compensar as dores

atrozes que acompanham certos distuacuterbios [hellip] Eacute o temor praacutetico da dor que faz o

homem sem se aperceber disso lanccedilar-se com iacutempeto na direccedilatildeo oposta entregando-se

ao pequeno nuacutemero de prazeres que herdou da natureza (BRILLAT-SAVARIN 1995

p167)

Brillat-Savarin aponta que o homem se atira ao prazer para fugir das dores inerentes agrave

espeacutecie Entretanto esse eacute apenas um dos elementos de compreensatildeo do prazer alimentar pois a

sensaccedilatildeo prazerosa decorre tambeacutem de outros fatores presentes em nossa fisiologia e psiquismo

a sociabilidade por exemplo eacute um desses componentes e estaacute envolvida no que o autor

estabelece como o prazer da mesa Ele refere no capiacutetulo lsquoO prazer da mesarsquo uma reflexatildeo

importante sobre a comensalidade a refeiccedilatildeo em conjunto ldquoFoi durante as refeiccedilotildees que devem

ter nascido ou se aperfeiccediloado nossas liacutenguas seja porque era uma ocasiatildeo de reuniatildeo que se

repetia seja porque o lazer que acompanha e segue a refeiccedilatildeo dispotildee naturalmente agrave confianccedila e agrave

loquacidaderdquo (BRILLAT-SAVARIN 1995 p168)

Brillat-Savarin faz uma diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer- relacionando-o agrave satisfaccedilatildeo

da fome atraveacutes do alimento como ocorre com os animais - e o prazer da mesa exclusivo agrave

espeacutecie humana De acordo com esse autor ldquo[] o prazer de comer exige se natildeo a fome ao

menos o apetite o prazer agrave mesa na maioria das vezes independe de ambosrdquo (BRILLAT-

SAVARIN 1995 p170) Esse uacuteltimo representa assim a sociabilidade o conviacutevio agradaacutevel

com aqueles com quem se divide uma refeiccedilatildeo Ainda sobre o prazer da mesa Brillat-Savarin

explicita

[hellip] natildeo comporta arrebatamentos nem ecircxtases nem transportes mas ganha em duraccedilatildeo

o que perde em intensidade e se distingue sobretudo pelo privileacutegio particular de nos

incliner a todos os outros prazeres ou pelo menos de nos consolar por sua perda Com

efeito apoacutes uma boa refeiccedilatildeo o corpo e a alma gozam de um bem-estar especial

Fisicamente ao mesmo tempo em que o ceacuterebro se revigora a face se anima e se colore

os olhos brilham um suave calor se espalha em todos os membros Moralmente o

espiacuterito se aguccedila a imaginaccedilatildeo se aquece os ditos espirituosos nascem e circulam [hellip]

Aliaacutes com frequumlecircncia temos em volta da mesa todas as modificaccedilotildees que a extrema

sociabilidade introduziu entre noacutes o amor a amizade os negoacutecios as especulaccedilotildees o

68

poder as solicitaccedilotildees o protetorado a ambiccedilatildeo a intriga eis por que a convivialidade

tem a ver com tudo eis por que produz frutos de todos os sabores (BRILLAT-

SAVARIN 1995 p170-171)

O trecho acima transcrito expressa que os propoacutesitos para que o prazer da mesa fosse

atingido natildeo eram apenas a amizade e a intenccedilatildeo de conviacutevio entre as pessoas Eacute possiacutevel

verificar que havia tambeacutem entre os objetivos para a partilha das refeiccedilotildees o poder a ambiccedilatildeo e

outros aspectos distantes das alianccedilas de afeto A circunstacircncia do prazer da mesa criava uma

aproximaccedilatildeo maior entre os participantes de disputas poliacuteticas e administrativas favorecendo os

acordos pela ilusoacuteria sensaccedilatildeo de zelo e de alianccedila Nesse periacuteodo o prazer ainda natildeo era

percebido como finalidade e sim como instrumento para a aquisiccedilatildeo de benefiacutecios Segundo

Brillat-Savarin haacute quatro condiccedilotildees para que exista o prazer em uma refeiccedilatildeo

Chegamos portanto a tal progressatildeo alimentar que se os afazeres natildeo nos forccedilassem a

deixar a mesa ou se a necessidade do sono natildeo se interpusesse a duraccedilatildeo das refeiccedilotildees

seria praticamente indefinida e natildeo teriacuteamos nenhum dado certo para determinar o

tempo transcorrido desde o primeiro gole de madeira ateacute o ultimo copo de ponche [hellip]

Desfruta-se o prazer em quase toda sua extensatildeo toda vez que se reuacutenem as quatro

seguintes condiccedilotildees comida ao menos passaacutevel bom vinho comensais agradaacuteveis

tempo suficiente (BRILLAT-SAVARIN 1995 p172-173)

No livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo haacute explicaccedilotildees que muito se assemelham ao exposto

por Brillat-Savarin No capiacutetulo lsquoComer compromete refeiccedilotildees banquetes e festasrsquo o autor Gerd

Althoff expotildee elementos relevantes sobre o papel da refeiccedilatildeo na vida coletiva e social na Idade

Meacutedia

Durante a maior parte da Idade Meacutedia a refeiccedilatildeo e o banquete (convivium) constituiam

o mais eloquumlente siacutembolo de que se dispunha para para expresser o compromisso de

manter relaccedilotildees baseadas na paz e na concoacuterdia A palavra-chave nesse caso eacute

ldquocompromissordquo porque comer e beber junto era uma forma de obrigar-se a satisfazer as

condiccedilotildees que esse tipo de laccedilo implica [] (ALTHOFF 2015 p300)

Acordos e alianccedilas eram entatildeo estabelecidos em banquetes de longa duraccedilatildeo chamados

convivium A relaccedilatildeo de cumplicidade e de compromisso entre os indiviacuteduos estabelecida pela

existecircncia destes eventos natildeo foi por certo o iniacutecio do papel da refeiccedilatildeo partilhada como

elemento agregador entre as pessoas Haacute muitos periacuteodos da histoacuteria como exposto pelos vaacuterios

pesquisadores no livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo em que o comer junto assumiu papel essencial

na comunhatildeo dos membros de uma coletividade sendo a alegria e o prazer algumas das emoccedilotildees

presentes em vaacuterios desses periacuteodos

69

Quando Brillat-Savarin refere quatro condiccedilotildees para desfrutar-se o prazer em uma

refeiccedilatildeo uma dessas eacute que haja lsquocomensais agradaacuteveisrsquo Tal fato nos remete aos elementos da

alianccedila e da paz no conviacutevio entre aqueles que comiam juntos nos banquetes da Idade Meacutedia

mas remete principalmente ao elemento do prazer que aparece atraveacutes do termo lsquoagradaacuteveisrsquo O

prazer eacute um ingrediente necessaacuterio no estabelecimento dessa alianccedila pois propicia que os

indiviacuteduos se comprometam uns com os outros pelo bem-estar que o viacutenculo permite Tal

resultado propicia a constacircncia dessa ligaccedilatildeo importante tambeacutem do ponto de vista poliacutetico na

eacutepoca O bem-estar da refeiccedilatildeo partilhada era entatildeo um meio natildeo um fim era o recurso para a

manutenccedilatildeo da perenidade nas relaccedilotildees garantindo ldquo[] a disposiccedilatildeo de todos os participantes de

cumprirem os deveres dela decorrentesrdquo (ALTHOFF 2015 p309)

Ainda no que tange agrave ocasiatildeo do convivium ressalta-se a forma como as atividades

prazerosas eram proporcionadas com o propoacutesito de reforccedilar a ligaccedilatildeo entre os participantes

Era quase impensaacutevel passar vaacuterios dias natildeo fazendo outra coisa senatildeo comer beber e

trocar presentes mesmo que se atribua aos participantes um apetite e uma inclinaccedilatildeo

para a bebida for a do comum Isso explica que nossas fontes mencionem agraves vezes vaacuterias

atividades paralelas que se poderiam agrupar sob a denominaccedilatildeo de lsquodivertimentos

mundanosrsquo entre os quais os espetaacuteculos dados durante os convivial em que danccedilarinos

(ou danccedilarinas) muacutesicos ambulantes menestreacuteis e poetas distraiam os convivas A

sucessatildeo de pratos e bebidas interrompia-se tambeacutem para permitir aos participantes fazer

um pouco de exerciacutecio Tratava-se de jogos ou agraves vezes de animadas caccediladas

Certamente esses elementos do convivium tinham tambeacutem um valor simboacutelico Viver

algum tempo juntos em paz e partilhar certas atividades criava entre as pessoas o clima

de confianccedila necessaacuterio assegurava-se ao novo parceiro que se desejava a paz e que se

estava disposto a respeitaacute-la e firmava-se o compromisso de continuar a agir assim no

futuro (ALTHOFF 2015 p303)

Assim o prazer afirmava-se como elemento agregador de grande importacircncia na

permanecircncia de viacutenculos Entretanto a finalidade de tais viacutenculos natildeo se concentrava

propriamente no bem-estar em si entre os participantes mas nos benefiacutecios propiciados em

termos de propriedades poder administraccedilatildeo e outros fins de interesse material No convivium

o prazer era oferecido nas atividades de lsquodivertimento mundanorsquo Eacute possiacutevel compreender a

partir desse dado que o prazer da partilha no comer junto da Idade Meacutedia natildeo se aproximava do

prazer com o alimento ou a bebida per se mas com atividades paralelas de divertimento para

entreter os convivas durante os dias de banquete

O prazer entatildeo era ainda um elemento natildeo ligado ao comer pelo sabor da comida assim

como as alianccedilas eram vaacutelidas pelos benefiacutecios que alicerccedilavam natildeo por sua importacircncia para o

bem viver entre os membros de uma coletividade De acordo com Gerd Althoff as relaccedilotildees entre

70

os indiviacuteduos e os costumes como o comer e o beber junto eram de grande importacircncia para a

realidade medieval

Todas as culturas arcaicas recorriam a este meacutetodo para unir uma comunidade

Entretanto os efeitos da refeiccedilatildeo natildeo derivam dela proacutepria De fato na Idade Meacutedia a

refeiccedilatildeo o banquete e a festa serviam para exteriorizar atos administrativos rituais e

portanto convenccedilotildees que serviam para veicular um sentido bem determinado de modo

constrangedor e coercitivo (ALTHOFF 2015 p309)

No capiacutetulo de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo lsquoTempero cozinha e dieteacutetica nos seacuteculos XIV

XV e XVIrsquo haacute relevantes esclarecimentos sobre o papel do prazer no comer e sua importacircncia

para a sauacutede Um dos pontos referidos por seu autor quanto ao papel do uso dos temperos e do

cozinhar os alimentos estaacute relacionado tambeacutem ao prazer alimentar ldquoDe uma maneira geral

todo tempero e todo cozimento ou seja toda cozinha tinha uma dupla funccedilatildeo tornar os

alimentos ao mesmo tempo mais apetitosos saborosos e mais faacuteceis de digerirrdquo (FLANDRIN

2015 p482)

Deste modo falar no prazer de comer torna-se parte da perspectiva histoacuterica desse

periacuteodo quando as especiarias estatildeo no auge de seu reconhecimento Flandrin refere que os

seacuteculos XIV XV e XVI foram o aacutepice de seu papel na cozinha europeacuteia quando esses

ingredientes tinham tambeacutem valor terapecircutico Natildeo se pode referir que o prazer atraveacutes da

comida tenha iniciado nesse periacuteodo histoacuterico mas eacute possiacutevel compreender que esse periacuteodo foi o

iniacutecio do falar em prazer como aspecto favoraacutevel agrave digestatildeo Havia uma aproximaccedilatildeo entre a

gastronomia e a dieteacutetica conforme Jean-Louis Flandrin sugerida no trecho ldquoAos dietistas

interessava o gosto dos alimentos por diversas razotildees Em primeiro lugar porque se digere

melhor aquilo que se come com prazer-como acreditamos ateacute hojerdquo (FLANDRIN 2015 p486)

Compreender o prazer como elemento presente na alimentaccedilatildeo torna-o tambeacutem parte da

sauacutede e do bem-estar do ser humano Esta perspectiva remete ao estabelecido por Karl Jaspers

sobre o prazer Este fenocircmeno seria equivalente agrave satisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas

funccedilotildees orgacircnicas com resultados no equiliacutebrio psiacutequico na percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e no bem-

estar do indiviacuteduo Desse modo ao ler o historiador Jean-Louis Flandrin confirma-se o papel do

prazer na lsquosatisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees orgacircnicasrsquo na concepccedilatildeo do

psicopatologista Jaspers Flandrin conclui o capiacutetulo com a seguinte reflexatildeo

Em resumo cozinhar agravequela eacutepoca assim como hoje era dar aos alimentos os sabores

mais agradaacuteveis- mas agradaacuteveis no acircmbito de uma determinada cultura para um gosto

71

diferente do nosso porque modelado por outras crenccedilas dieteacuteticas outros haacutebitos

alimentares (FLANDRIN 2015 p495)

Falar no prazer de comer entatildeo remete a Karl Jaspers pela concepccedilatildeo meacutedica do prazer

mas tambeacutem a Brillat-Savarin em sua diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer e o prazer da mesa

Para o escritor de A fisiologia do gosto o primeiro eacute de ordem bioloacutegica a meu ver menos ligado

agrave sensaccedilatildeo prazerosa ligada ao sabor e mais associada ao mero saciar da fome o segundo

exclusivo da espeacutecie humana eacute vinculado agrave experiecircncia de conviacutevio agradaacutevel com os comensais

na partilha de uma refeiccedilatildeo

A abordagem da dualidade entre gastronomia e dieteacutetica apontada por Jean-Louis

Flandrin eacute semelhante agravequela da dualidade apontada por Brillat-Savarin o prazer de comer e o

prazer da mesa Talvez essas divisotildees tivessem o propoacutesito de partir o indiviacuteduo em duas

metades a do corpo e a da mente A metade que se satisfaz com o saciar da fome seria entatildeo

diferente da que se apraz da companhia dos amigos agrave mesa A metade que preparava as receitas

pela gastronomia em fins da Idade Meacutedia seria diversa da que seguia as ordens da dieteacutetica

Nesse sentido a visatildeo de Jaspers sobre o prazer eacute a mais completa pois integra a satisfaccedilatildeo

harmocircnica e ordenada das funccedilotildees orgacircnicas ao equiliacutebrio psiacutequico agrave percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e

ao bem-estar do indiviacuteduo

Considerando o prazer alimentar entatildeo como elemento que envolve o corpo e a mente

do saciar agrave fome ao satisfazer o prazer gustativo e social surgem dois novos termos a gula e o

bom gosto

Os seacuteculos XVII e XVIII trouxeram mudanccedilas na relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com o prazer do

gosto Enquanto na Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVII a alimentaccedilatildeo das elites aproximava-

se muito de perto das prescriccedilotildees dos meacutedicos o que se seguiu a partir de entatildeo foi o apagamento

das referecircncias agrave antiga dieteacutetica dando lugar entre cozinheiros e gastrocircnomos agrave harmonia dos

sabores como prioridade Ficou relegado a segundo plano o aspecto de que ldquo[] os sabores eram

ateacute entatildeo ligados tanto a eles como aos meacutedicos sabiamente classificados do mais frio ao mais

quente eles constiuiacuteam uma indicaccedilatildeo segura da natureza dos alimentos e sua digestibilidaderdquo

(FLANDRIN MONTANARI 2015 p548) Um resultado interessante da separaccedilatildeo progressiva

entre cozinha e dieteacutetica foi uma permissatildeo para a gulodice conforme o registro de Histoacuteria da

alimentaccedilatildeo

72

Os refinamentos da cozinha natildeo visam mais manter a boa sauacutede das pessoas mas

satisfazer o gosto dos glutotildees Com uma pequena diferenccedila estes ainda natildeo se

reconhecem como tais e se apresentam como pessoas de paladar apurado apreciadores

de iguarias e peritos na arte de reconhececirc-las (FLANDRIN MONTANARI 2015

p549)

Com o avanccedilo das descobertas e das criaccedilotildees dos cozinheiros e gastrocircnomos o prazer

com os alimentos reveste-se de nova importacircncia a gula Comer torna-se sinocircnimo nesse

contexto de desfrutar do sabor da comida o que muitas vezes eacute partilhado com amigos Para

Brillat-Savarin seria a uniatildeo do prazer de comer e do prazer da mesa O gosto como sentido

fisioloacutegico assume nova representaccedilatildeo eleva-se agrave categoria de bom-gosto com aplicaccedilotildees para

aleacutem dos campos da cozinha De acordo ainda com os organizadores de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo

Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari

O gosto esse sentido de que a natureza dotou o homem e os animais para discernirem o

comestiacutevel do natildeo-comestiacutevel sofreu alias em meados do seacuteculo XVII uma estranha

valorizaccedilatildeo fala-se dele a partir daiacute em sentido figurado a propoacutesito de literature

escultura pintura muacutesica mobiliaacuterio vestuaacuterio etc Em todos esses domiacutenios eacute ele que

permite distinguumlir o bom do ruim o belo do feio eacute o oacutergatildeo caracteriacutestico do lsquohomem de

gostorsquo um dos avatares do homem perfeito Ora essa valorizaccedilatildeo implica uma certa

toleracircncia para com os glutotildees (FLANDRIN MONTANARI 2015 p549)

Bom-gosto gula e prazer satildeo termos que se referem a uma semacircntica do deleite da

experiecircncia gustativa produzida nas cozinhas da eacutepoca com iniacutecio no seacuteculo XVII O indiviacuteduo

comeccedila a perceber a possibilidade de extrair da comida uma espeacutecie de luxuacuteria traduzida pela

gulodice Ele desfruta do sabor do alimento como se estivesse em um climax eis o glutatildeo

Enquanto na alta Idade Meacutedia o prazer nos banquetes vinha das atividades paralelas e seu

propoacutesito natildeo era a experiecircncia prazerosa per se mas a alianccedila e a realizaccedilatildeo de objetivos que

dela resultavam a partir desse seacuteculo o prazer reveste-se de importacircncia nos campos de forno-e-

fogatildeo

Dane-se a dieteacutetica talvez pensassem os sujeitos Gula e prazer eram expressotildees que a

boa comida despertava usufruiacutea deles quem tinha bom-gosto Nascia entatildeo um grupo de

pessoas com os pomposos tiacutetulos de lsquogourmetsrsquo e lsquogastrocircnomosrsquo seguida do surgimento e da

expansatildeo de sua literatura apropriada os tratados de cozinha Um novo modo de vivenciar o

alimento tornava-se cada vez mais abundante Houve um significativo movimento gerado pelo

gosto alimentar ldquoA multiplicaccedilatildeo das artes ligadas agrave alimentaccedilatildeo e das obras teacutecnicas que tratam

delas foi acompanhada sob formas diversas de escritos que fazem a apologia do prazer de comer

e ateacute da glutonaria e da embriaguezrdquo (FLANDRIN MONTANARI 2015 p551)

73

Entretanto tal vivecircncia jaacute existia em menor expressatildeo na Itaacutelia do Quatrocentos Conta-

se que ldquoPlatinardquo o humanista Bartolomeo Sacchi teve relevante papel no prazer de comer no

referido periacuteodo com seu De honesta voluptate

Natildeo soacute este natildeo eacute cozinheiro nem meacutedico [hellip] mas mistura agrave sua documentaccedilatildeo

culinaacuteria e dieteacutetica a lembranccedila nostaacutelgicada alegria que seus amigos e ele

experimentavam ao saborear este ou aquele prato de mestre Martino o grande

cozinheiro romano de meados do seacuteculo acima de tudo ele utiliza isso para defender o

honesto prazer de saborear uma cozinha ao mesmo tempo simples e refinada prazer que

poderiacuteamos hoje classificar como o de um glutatildeo (FLANDRIN MONTANARI 2015

p552)

Por que na eacutepoca de Platina e entatildeo nos seacuteculos XVII e XVIII de efervescecircncia dos

gourmets ou mesmo em nosso seacuteculo XXI a sensaccedilatildeo prazerosa provocada pelo alimento eacute tatildeo

semelhante em sujeitos tatildeo diversos Pelo fato de que o prazer eacute inerente agrave experiecircncia humana

A definiccedilatildeo dada por Jaspers agrave sensaccedilatildeo prazerosa une aspectos da percepccedilatildeo fiacutesica e da

experiecircncia mental integradas Com base em sua definiccedilatildeo e considerando o acima exposto

sobre os termos gula prazer e bom-gosto ocorre a pergunta por que tantos sujeitos de diferentes

eacutepocas vivenciaram o prazer associado agrave comida em especial quando essa assumiu uma

conotaccedilatildeo de importacircncia com o iniacutecio da Gastronomia um termo cognitivo Recorremos a uma

possiacutevel explicaccedilatildeo neurocientiacutefica para esse questionamento a hipoacutetese do ceacuterebro triuno que

abrange a experiecircncia prazerosa como elemento exclusivo do ser humano

A referida hipoacutetese foi proposta pelo meacutedico e neurocientista americano Paul MacLean

em 1970 Segundo tal autor somos compostos grosso modo por trecircs ceacuterebros que trabalham em

colaboraccedilatildeo embora oriundos de diferentes etapas da evoluccedilatildeo das espeacutecies Assim nos

mamiacuteferos superiores existe uma hierarquia de trecircs ceacuterebros em um soacute daiacute o termo triuno De

acordo com a teoria os trecircs operam com diferentes graus de complexidade mas orquestram o

funcionamento humano de forma conjunta O ceacuterebro reptiliano presente desde os reacutepteis ou

arquicoacutertex seria o mais primitivo responsaacutevel pelas questotildees de sobrevivecircncia bioloacutegica como

alimentaccedilatildeo reproduccedilatildeo proteccedilatildeo etc A seguir em termos evolucionistas viria o ceacuterebro

liacutembico ou paleocoacutertex responsaacutevel pela elaboraccedilatildeo das emoccedilotildees como apetite medo raiva

etc presente desde as aves O terceiro e entatildeo o mais evoluiacutedo seria o neocortex responsaacutevel

pela elaboraccedilatildeo dos pensamentos e dos sentimentos e exclusivamente humano

Transpondo essa teoria para o campo alimentar podemos referir o ceacuterebro reptiliano

como responsaacutevel pela fome enquanto o liacutembico seria responsaacutevel pelo desejo por essa ou aquela

74

comida especiacutefica O neocortex viria ao final para dar significado ao que comemos atraveacutes da

compreensatildeo das emoccedilotildees da relaccedilatildeo entre a memoacuteria e o alimento e da atribuiccedilatildeo de conceitos

cognitivos como a noccedilatildeo de bom-gosto No campo gastronocircmico seria possiacutevel entender a

cooperaccedilatildeo dos trecircs ceacuterebros como uma integraccedilatildeo que tem como resultado o prazer de saborear

este ou aquele quitute Saboreamos porque temos fome porque algo nos apetece e nos desperta

desejo por fim porque aprendemos do ponto de vista cognitivo que gostar daquele alimento eacute

permitido e em alguns casos eacute valoroso pois nos torna pertencentes a um grupo como o dos

glutotildees e gourmets Se comer tal alimento for prazeroso isto significa que nossos trecircs ceacuterebros

foram atendidos e estatildeo trabalhando em conjunto Mais uma vez o bem-estar do corpo de da

mente referido por Jaspers

Compreender o prazer que existe como expressatildeo fiacutesica emocional e mental nos

possibilita entender por que esse tambeacutem pode estar associado a patologias nos mesmos

domiacutenios A explicaccedilatildeo estaacute no fato de que para vivenciar esse complexo fenocircmeno eacute preciso

que sejamos humanos e que nossos trecircs ceacuterebros operem em orquestra vulneraacuteveis agraves

experiecircncias positivas ou negativas inexoraacuteveis

24 O PRAZER DA COMIDA

A partir da constataccedilatildeo do engorde e da dieta orientada pelo meacutedico a protagonista de

Por que sou gorda mamatildee lsquopassa a vida a limporsquo em sua memoacuteria Com o propoacutesito de

compreender o porquecirc de seu engorde escreve uma carta para a matildee em trechos ora

confessionais ora acusatoacuterios esperando na correspondecircncia construir para si a resposta ao

longo das lembranccedilas que evoca

O balanccedilo entre o passado e o presente alinha a compreensatildeo sobre o papel dos trajetos de

vida desde a infacircncia no quadro atual de sauacutede Os vinte e dois quilos ou cento e dez tabletes de

manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha satildeo o resultado dos sofrimentos que vivenciou

do afeto que natildeo recebeu e da comida que devorou A dor emocional eacute de fato sua mas talvez

seja tambeacutem heranccedila da Voacute Gorda da Voacute Magra do pai e da matildee Nas histoacuterias entrelaccediladas lecirc-

se uma pesada bagagem de dores ancestrais

Atraveacutes da intersecccedilatildeo entre as vivecircncias eacute possiacutevel ler na obra trecircs tempos

predominantes com fronteiras tecircnues entre si aquele dos antepassados que a protagonista

75

conhece por ouvir contar o tempo da infacircncia que ela narra pelas recordaccedilotildees e o tempo

presente da dieta que provoca as idas e vindas da narrativa a fim de descobrir as causas de seu

aumento de peso As fronteiras satildeo tecircnues pois os trecircs tempos embora diversos no calendaacuterio

misturam-se na personagem ora como lembranccedila ora como reflexatildeo No percurso da obra o

elemento que liga as histoacuterias eacute na maioria das vezes a sensaccedilatildeo prazerosa com a comida

mesmo quando a referecircncia aponta para o contraacuterio sentimentos de culpa pela obesidade e de

revolta pela restriccedilatildeo alimentar

Haacute uma ligaccedilatildeo natural entre o comer e o prazer para aleacutem da rima Desde a

amamentaccedilatildeo a chegada do leite materno eacute acompanhada pelo contato de afeto da matildee com o

bebecirc e pela experiecircncia de prazer fiacutesico associada agrave succcedilatildeo Assim alimento viacutenculo afetivo e

prazer satildeo parte de nossas primeiras memoacuterias e podem permanecer como o tripeacute que daraacute

suporte a muitos de nossos padrotildees de comportamento ao longo da vida Esse tripeacute contudo

pode desestabilizar-se caso haja preponderacircncia de um dos componentes gerando experiecircncias

de sofrimento associadas a tal desequiliacutebrio

A referida situaccedilatildeo aliaacutes estaacute muito bem expressa nessa obra na qual a vivecircncia da

personagem frente ao engordar mostra o quanto o comer em sua vida ocupou muitas vezes os

espaccedilos de amor e de seguranccedila deixados vazios pela ausecircncia desse afeto Sobretudo por parte

dessa matildee o proacuteprio tiacutetulo do livro dirigido a ela sugere que seja vista como culpada pelo

processo de engorde da personagem Em diversas passagens da obra a comida eacute citada como

abundante enquanto a expressatildeo das emoccedilotildees eacute percebida como escassa

Encontramos a posteridade dentro da fartura pela qual devemos agradecer todos os dias

e da qual ainda hoje devemos nos afastar por forccedila da geneacutetica O excesso de comida o

excesso de zelo o excesso dos excessos tudo ficou em noacutes como lembranccedila e como

estoque de uma espeacutecie de amor do qual ainda hoje nos valemos quando o amor falta

minguado (MOSCOVICH 2006 p220)

A vivecircncia do prazer da comida eacute apresentada em diversos fragmentos tanto associados agrave

narradora quanto agrave sua matildee a quem dirige as reflexotildees sua Voacute Magra seu pai e seus irmatildeos

Uma das passagens mais ilustrativas do papel desempenhado pela sensaccedilatildeo prazerosa nesta

narrativa estaacute no trecho de uma viagem O que as personagens experimentam nesta cena parece

muito proacuteximo ao lsquohonesto prazerrsquo referido por Platina mencionado anteriormente Lembrando

de uma viagem em famiacutelia durante um percurso ao Uruguai a protagonista remonta um

momento em que sua matildee ela e os irmatildeos lambuzavam-se com doces no carro

76

[hellip] A senhora de repente deu ordem expressa para que o pai estacionasse ali naquele

ponto bem na frente daquela confeitaria a Carrero O carro nem bem tinha parado nem

bem nossos protestos se haviam esvaiacutedo com a agilidade de seu movimento e a senhora

jaacute entrava na Carrero atraveacutes da porta de vidro porta muito pesada em sua fidalguia de

anos servindo o fino paladar uruguaio Porta que a senhora cruzou duas vezes em toda

sua vida - aquela era a segunda

Ficamos ali os quatro com os narizes achatados de curiosidade contra as janelas do

Ford Natildeo demorou nem bem cinco minutos e a senhora logo apareceu com trecircs garrafas

de Crush de laranja em uma das matildeos e na outra uma bandeja de doces - e me lembro

que o pai soltou uma gargalhada e sacudiu a cabeccedila num gesto de anuecircncia

Os doces foram devorados com seu incentivo feliz as garrafas passavam de matildeo em

matildeo limpava-se a boca com guardanapinhos de papel ou com a manga do casaco A

senhora se empanturrou e nos empanturrou Ningueacutem deu muita bola para os farelos de

massa folhada e para as manchas de doce de leite que ficaram melecando o estofamento

ateacute que voltaacutessemos para casa trecircs dias depois (MOSCOVICH 2006 p72)

Esta eacute a uacutenica cena de prazer compartilhado entre a narradora os irmatildeos e a matildee Eacute a

uacutenica cena tambeacutem em que a matildee aparece permitindo-se o deleite com algazarra com alegria

desfrutando do saborear em famiacutelia os doces da confeitaria A personagem refere que a matildee

cruzara a porta do estabelecimento duas vezes na vida e aquela era a segunda Haacute uma referecircncia

indireta aqui agrave escassa permissatildeo em sua matildee para esse tipo de prazer com farelos e doce de

leite espalhado Uma permissatildeo a si mesma de lambuzar-se com o prazer de partilhar o doce o

afeto a brincadeira O lsquohonesto prazerrsquo de Platina que misturava agrave sensaccedilatildeo prazerosa quem

sabe a alegria entre as pessoas Essa eacute a emoccedilatildeo que habita a cena e natildeo somente a gula pelos

doces

A matildee aparece protagonizando outras duas cenas de prazer alimentar ambas associadas a

uma condiccedilatildeo de sauacutede para a qual precisou fazer um cateterismo Entretanto a sensaccedilatildeo

prazerosa eacute expressa como experiecircncia de permissatildeo individual e natildeo partilhada com a famiacutelia

como no deleite dos doces e do refrigerante no carro A narradora conta sua lembranccedila sobre os

dois episoacutedios vividos pela matildee o primeiro antes do procedimento o segundo apoacutes

Naquela noite depois da cintilografia a senhora devorou meio quilo de patildeo com

manteiga um bule de cafeacute e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Disse que jaacute que

ia morrer comeria o que lhe desse na veneta (MOSCOVICH 2006 p119)

Jaacute em casa a senhora voltou ao tempo do seu rosto e apesar da ferida aberta na virilha

tornou-se de novo uma avoacute E o mais gracioso foi que naquela noite devorou meio

quilo de patildeo com manteiga uns cem gramas de mortadela um pote com azeitonas

pretas e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Me disse que jaacute que natildeo ia morrer

comeria o que lhe desse na telha (MOSCOVICH 2066 p124)

77

Compreende-se como o prazer de comer estaacute vinculado a uma justificativa aceitaacutevel em

uma e em outra ocasiatildeo lsquojaacute que ia morrerrsquo e lsquojaacute que natildeo ia morrerrsquo Natildeo haacute uma vivecircncia da

sensaccedilatildeo prazerosa experimentada pela matildee nesses casos sem uma razatildeo que fundamente a

permissatildeo Outro ponto a salientar estaacute nas frases lsquocomeria o que lhe desse na venetarsquo e lsquocomeria

o que lhe desse na telharsquo em que lsquodar na venetarsquo e lsquodar na telharsquo fazem alusatildeo agrave satisfazer a

vontade o impulso da hora expressotildees ligadas ao prazer Os fragmentos apresentados fornecem

dados para que se possa compreender que na personagem da matildee esse prazer do ldquodar na venetardquo

soacute poderia ser permitido se associado a uma razatildeo muito forte como a possibilidade de ela

morrer no procedimento

Aleacutem das questotildees psiacutequicas da ligaccedilatildeo entre cozinha e prazer existe a influecircncia da

cultura presente nas famiacutelias de acordo com a relaccedilatildeo que seus antepassados estabeleciam com a

comida com o prazer e com os viacutenculos Eacute possiacutevel aprender que um alimento eacute saboroso ou

condenado porque essa informaccedilatildeo passa de uma geraccedilatildeo agrave outra natildeo como uma carga geneacutetica

mas como uma transmissatildeo de aprendizado cultural O que eacute transmitido ao grupo familiar eacute

dependente do significado da comida para os diferentes povos Dentro das famiacutelias haacute tambeacutem

coacutedigos representados pelo alimento muitas vezes compartilhados pelos membros como

acontece entre a protagonista e sua Voacute Magra

Eu imitei a voacute fiz ach e dei um tapinha no ar Natildeo tinha mesmo importacircncia nenhuma

Noacutes duas comeccedilamos a rir De matildeos dadas fomos ateacute a cozinha buscar algo com

bastante accediluacutecar para comer Doces nos deixavam fortes e felizes

Como diz mais um velho ditado avoacutes e netos se datildeo bem porque tecircm um inimigo em

comum (MOSCOVICH 2006 p99)

O episoacutedio refere-se ao conflito entre sua matildee e a Voacute Magra avoacute materna e a

protagonista posiciona-se a favor da avoacute partilhando com ela o prazer de lsquobuscar algo com

bastante accediluacutecar pra comerrsquo Existe clara cumplicidade com a avoacute expressa na frase lsquoDoces nos

deixavam fortes e felizesrsquo Essa mesma comunhatildeo eacute demonstrada nos trechos sobre os passeios

que elas faziam juntas quando a Voacute Magra a levava consigo nas andanccedilas ao centro para vender

roupas na infacircncia da narradora

Ela bem gostava daquela funccedilatildeo ou ao menos aparentava gostar e se aparentava fingia

muito bem Depois de uma boa venda saiacutea exibindo um ar glorioso e altaneiro uma

conquistadora que avanccedila sobre terra remota e me puxando pela matildeo me punha diante

de um copo de guaranaacute- o copo que ela inspecionava muito bem e submetia ao processo

de assepsia com o lencinho- uma garrafa de refrigerante e um mil folhas partido ao meio

davam bem para noacutes duas Tatildeo bem que nem fazia falta a outra metade

78

O que eu aprendi com vovoacute foi bastante aleacutem do que pretendia papai Ela natildeo queria me

mostrar como se ganhava o patildeo natildeo tinha interesse em expor a neta a sofrimento algum

O que a voacute queria mesmo com aquelas excursotildees era a farra de dividir comigo um doce e

um refrigerante a gente se refestelando com creme de confeiteiro Ela pagou com

antecipaccedilatildeo aquelas pequenas felicidades coisa que ela mais amava no mundo

(MOSCOVICH 2006 p91-92)

Para a protagonista e sua Voacute Magra esses passeios representavam mais do que a

oportunidade de saborearem o mil folhas eram a chance de partilharem juntas o prazer de um

coacutedigo que comungavam o sabor doce Ao ler-se as passagens desta avoacute com ela e com seus

irmatildeos ao longo da obra compreende-se que este sabor doce eacute com nitidez o afeto partilhado

entre a Voacute Magra e os netos Para a avoacute o deleite com a comida tem raiacutezes culturais e vivenciais

O livro aponta a fome ancestral como possiacutevel razatildeo de seu prazer com a comida Jaacute no

capiacutetulo um ela apresenta sua Voacute Magra importante referencial em sua histoacuteria com o papel da

comida e com o engorde A obra comeccedila pelo cerne do significado da comida para a famiacutelia a

fome Essa vivecircncia eacute elemento relevante na histoacuteria familiar da protagonista A fim de

corroborar o papel da fome na dimensatildeo que cozinha ocupa na literatura judaica vale apresentar

a contribuiccedilatildeo de Ana Maria Shua em sua obra Risos e emoccedilotildees da cozinha judaica

A comida ocupa um lugar importante na literatura judaica Seguramente porque ocupa

um lugar importante na vida judaica na vida material e tambeacutem por razotildees religiosas

na vida espiritual Acima de tudo os judeus da Europa Oriental tendiam a contar com o

uacutenico adereccedilo capaz de converter em excelente qualquer comida para qualquer paladar a

fome Natildeo chama a atenccedilatildeo desse modo que o tema da comida apareccedila uma e outra vez

entre os sempre famintos personagens de sua literatura (SHUA 2016 p113)

O entendimento da comida como milagre aponta o poder que lhe era atribuiacutedo pela Voacute

Magra conforme narra a protagonista

Para quem vem de uma famiacutelia que nos miseraacuteveis e congelados vilarejos judeus da

Europa passou fome de comer soacute repolho ou soacute batata para a qual naqueles shtetels

carne era uma abstraccedilatildeo que os dentes nem conheceram e que se acostumou a aplacar o

oco do estocircmago com sopa de beterraba ou com aquele mameligue que nada mais era

do que um mingau meio insosso de farinha de milho e aacutegua a obsessatildeo por comida nada

tem ou nada deveria ter de extraordinaacuterio Vovoacute Magra assim como todas as avoacutes

acreditava que a comida era um milagre capaz de moldar crianccedilas em adultos um

homem eacute o peso daquilo que come uma boa refeiccedilatildeo vale a prece por um dia a mais de

vida

O caso era que diante de um prato de comida Vovoacute Magra parecia encontrar o sentido

da existecircncia (MOSCOVICH 2006 p21)

A comida era milagre e sentido da existecircncia para sua avoacute de acordo com a protagonista

entretanto vai aleacutem mostrando a voracidade o apetite o prazer afoito com que aquela comia O

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aspecto interessante foi a narradora referir-se ao termo lsquodesesperorsquo que denota uma espeacutecie de

sofrimento A avoacute sentiu tanta fome que quando pocircde comer tornou o alimento a resposta para

todas as faltas mesmo as futuras A comida era um modo de prevenccedilatildeo contra a fome que ela

pudesse vir a passar novamente

E comia comia comia

Comia ovos duros comia coalhada comia milho comia carne comia saladas comia

frutas- especialmente laranjas-do-ceacuteu que docinhas natildeo espicaccedilavam o paladar ao

contraacuterio do azedo das laranjas-de-umbigo que ela tambeacutem comia Comia tanto que se

via nela um desespero E de tanto passer fome decerto vovoacute por mais que comesse e se

fartasse natildeo engordava Cinturinha fina seios achatados quadric estreitos heranccedila que

a senhora mamatildee abocanhou e que natildeo me deu

Da vovoacute soacute herdei o apetite ancestral o mesmo que a senhora herdou (MOSCOVICH

2006 p21-23)

O apetite eacute capaz de promover a antecipaccedilatildeo do prazer pela lembranccedila e pelo desejo de

comer determinado alimento aleacutem de estimular a repeticcedilatildeo do que satisfaz pela gratificaccedilatildeo que

o ceacuterebro registra Se tal prato eacute saboroso e lhe apetece o indiviacuteduo vai buscaacute-lo de novo e assim

sucessivamente Por isso a Voacutevoacute Magra lsquocomia comia comiarsquo e lsquocomia tanto que se via nela um

desesperorsquo Entatildeo quando a narradora comeccedila a passagem falando em fome e a conclui

referindo-se ao lsquoapetite ancestralrsquo estaacute dizendo que em sua avoacute a fome transformou-se no prazer

pela comida

Ainda assim havia respeito agraves proibiccedilotildees religiosas ligadas agrave tradiccedilatildeo culinaacuteria judaica A

narradora descreve sobre os haacutebitos alimentares da Voacute Magra ldquoExceto por carne de porco ou

mariscos e outras coisas gosmentas vindas da aacutegua ndash alimentos que a Lei considera impuros e

que portanto eram iguais agrave pedra que se interdita levar agrave boca ndash natildeo havia comida que ela

desprezasserdquo (MOSCOVICH 2006 p21-23)

Entatildeo embora houvesse o respeito agraves restriccedilotildees impostas havia tambeacutem o prazer com os

alimentos permitidos fossem ou natildeo pertencentes agrave culinaacuteria tradicional judaica Eacute neste ponto

que se aproximam os textos da ficccedilatildeo e da teoria fontes de estudo no presente capiacutetulo Natildeo se

nega que haja a proibiccedilatildeo a certos alimentos aspecto em que a obra de Ciacutentia Moscovich foi fiel

agrave cultura culinaacuteria judaica mas a mesma tambeacutem problematizou o espaccedilo de prazer existente na

cozinha de sua tradiccedilatildeo

Outro elemento relevante na anaacutelise da passagem acima eacute o que a narradora refere quando

menciona ter herdado de sua avoacute apenas o lsquoapetite ancestralrsquo Nesse ponto da narrativa atribui

agraves raiacutezes familiares seu gosto pela comida Eacute significativo que a narradora comece o texto falando

80

sobre a fome e o encerre usando o termo apetite pois se pode pensar na fome como uma

necessidade bioloacutegica do corpo que natildeo difere um alimento de outro O propoacutesito da fome eacute ser

saciada No que tange ao apetite pode-se pensar no apetite por algo o que o torna mais

especiacutefico agraves preferecircncias alimentares e desse modo mais proacuteximo ao prazer Foi o que Voacute

Magra descobriu

Eacute visiacutevel seu gosto por essa ou aquela comida sua profunda sensaccedilatildeo prazerosa com

ingredientes e pratos tiacutepicos Natildeo os escolhe apenas para saciar a fome deseja isso sim

satisfazer o apetite deleitar-se Com todas as restriccedilotildees que a tradiccedilatildeo impunha descobriu no

alimento fonte de prazer e com os netos de expressatildeo afetiva Havia tambeacutem um sentido de

aproveitar do alimento tudo o que ele poderia oferecer natildeo desperdiccedilando nada de sua

substacircncia Mesmo com o propoacutesito desse aproveitamento dedicava-se a fazer comidas e doces

saborosos como a narradora lembra no trecho abaixo

E havia aquele creme de laranja que era uma nuvem accedilucarada de sabor contrastante

um nada azedinho rompendo o doce dava ateacute um arrepio Era o jeito de a voacute aproveitar

as frutas que sobravam no mercado Natildeo se pode desperdiccedilar sumo algum mesmo que

as frutas despenquem podres no meio das sobras (MOSCOVICH 2006 p94)

O trecho expressa o fazer culinaacuterio de um doce que deixou lembranccedilas sensoriais na

protagonista expressas por termos como lsquonuvem accedilucarada de sabor contrastantersquo lsquoum nada

azedinho rompendo o docersquo e sobretudo a revelaccedilatildeo de que lsquodava ateacute um arrepiorsquo Entretanto as

escolhas alimentares na cultura judaica natildeo teriam por princiacutepio dar relevacircncia ao prazer mas aos

elementos religiosos Existe um conjunto de regras de idoneidade alimentar na cozinha judaica

chamada kasherut e cada alimento pertencente a tal conjunto e entatildeo permitido eacute chamado

kasher A respeito das tradiccedilotildees religiosas implicadas na alimentaccedilatildeo Ariel Toaff no capiacutetulo

lsquoCozinha judaica cozinhas judaicasrsquo do livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas

esclarece

Afirma-se em geral que as praacuteticas da alimentaccedilatildeo judaica estatildeo essencialmente

enquadradas na oacutetica do sistema religioso fundamentadas em proibiccedilotildees biacuteblicas

ampliadas e interpretadas pelas normativas rabiacutenicas Em outros termos o judeu comeria

alimentos que lhe satildeo permitidos descartando todos aqueles que de uma ou outra forma

entrassem nas categorias explicitamente proibidas pela biacuteblia ou pela hermenecircutica

geralmente extensa da ritualiacutestica posterior Nesse sentido suas escolhas alimentares

deveriam ser consideradas como fundamentos de sua identidade cultural e religiosa A

gama de proibiccedilotildees parece vasta e sem duacutevida condicionante (TOAFF 2009 p179)

81

Eacute interessante observar que mesmo focados na obediecircncia agraves normas havia uma culinaacuteria

rica de prazer dentro da cultura Apesar das influecircncias externas e as proibiccedilotildees religiosas

configurou-se uma cozinha judaica nuclear baseada no gosto Na Europa do seacuteculo XV ou XVI

os alimentos definidos como lsquoagrave hebraicarsquo ou lsquoagrave judiarsquo expressavam ingredientes gosto e aspecto

tipicamente judaicos e eram imediatamente reconhecidos como tal

O marzipatilde e as panquecas com mel e canela o patecirc de fiacutegado gordo os Griben (pedaccedilos

fritos de pele [de ave]) e os salsichotildees de ganso o hamin a carne guisada do Shabatt

com feijotildees e gratildeos-de-bico lsquocom pimenta e alhorsquo as alcachofras fritas lsquoagrave rosarsquo e a

endiacutevia assada no forno com lsquopeixe azulrsquo todos eles alimentos cuja preparaccedilatildeo era

comumente qualificada como lsquoagrave hebreacuteiarsquo natildeo eram decerto chamados desse modo pelo

fato de seu consumo ser permitido ou prescrito aos judeus pelas normas da biacuteblia e dos

rabinos mas porque se reconhecia neles a expressatildeo particular do gosto judaico [hellip] O

fato incontroverso eacute que o gosto gastronocircmico judaico parecia evidentemente diverso

daquele do ambiente cristatildeo circundante (TOAFF 2009 p183)

A evocaccedilatildeo sensorial eacute provocada pelos alimentos judaicos quando ateacute os nomes

despertam curiosidade e imaginaccedilatildeo pela forma e pelo gosto Ali estaacute bem expresso um conjunto

de sabores pertencentes agrave cultura e agrave vivecircncia de prazer associados agrave comida O capiacutetulo de Ariel

Toaff no livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas defende que o gosto e o prazer

na culinaacuteria judaica foram elementos de forccedila suficiente para ultrapassarem as proibiccedilotildees

religiosas aspecto corroborado pelo grande nuacutemero de receitas daquela cultura

O prazer alimentar estaacute associado a esse aspecto cultural de um povo Carlos Alberto

Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira aponta que

Em termos simples todo dia eu acordo me sentindo brasileiro ou espanhol ou tcheco

etc Isso ocorre porque falo uma liacutengua alimento-me de determinada comida sei como

meus compatriotas se comportaratildeo diante de certas situaccedilotildees e assim por diante Haacute um

sentimento multifacetado de pertencimento que me faz nacional (DOacuteRIA 2014 p24)

Esse pertencimento tem como parte culinaacuteria pois identifica gostos e ingredientes de um

povo No caso especiacutefico da culinaacuteria judaica essa caracterizaccedilatildeo ocorre mesmo quando

adaptada a outras culturas e produtos como Toaff aponta Em por que sou gorda Mamatildee a

narradora faz um relato que contempla a cozinha judaica vivenciada em sua infacircncia adaptada agrave

cultura local sem no entanto perder sua principal expressatildeo nos pratos tiacutepicos

Como sempre acreditamos no aprendizado pela dor a fome passou a ser o grande

mestre liccedilatildeo que pai nenhum queria que os filhos aprendessem Atestando que os

tempos haviam mudado e que este naco do Brasil era uma Canaatilde as cozinhas do Bairro

eram usinas de todo tipo de comida

82

Agraves sete da manhatilde mal se pulava da cama e uma nuacutevem aromaacutetica e uacutemida jaacute tinha

invadido a casa As panelas ferviam galinhas as cebolas se atiravam agrave fritura as lacircminas

das facas trituravam ramos de tempero verde colheres de pau puxavam refogados nas

caccedilarolas batalhotildees rechonchudos de almocircndegas se alinhavam nas taacutebuas de carne ao

lado de um fornido regimento de varenikes que logo iam encontrar seu destino na aacutegua

pelando No bairro inteiro cedinho frio ou calor chuva ou sol matildeos zelosas estripavam

peixes recheavam pimentotildees cortavam ovos duros mexiam guisados lavavam arroz

arrancavam folhas dos ramos de louro Tempero lambido na concha da matildeo douravam

batatas raspavam cenouras sovavam massas fatiavam tomates queimavam berinjelas

batiam espinafre amassavam miuacutedos de frango esmagavam dentes de alho Enquanto

pepinos eram enfiados em enormes potes de vidro para a conserva de salmoura

amendoins em trouxas de panos de prato eram batidos a martelo pecircssegos ameixas e

peras se compotavam marmelos de accedilucaravam cremes se encorpavam nacos de

goiaba e punhados de uva em passa enchiam o oco de maccedilatildes vermelhas e lustrosas

(MOSCOVICH 2006 p48-49)

A escolha pelo uso do preteacuterito imperfeito nos atos culinaacuterios ilustra o aspecto rotineiro

com que essas praacuteticas eram realizadas dentro da vida do bairro de predominacircncia judaica Todo

cotidiano era tecido pela manhatilde pelos aromas texturas e costumes que compunham a cultura

local O trecho remete o leitor a um passado que se perpetua atraveacutes dos movimentos vividos nas

cozinhas pelo que a narradora refere como lsquomatildeos zelosasrsquo Haacute no pano de fundo desse

fragmento a ideia da repeticcedilatildeo das accedilotildees como marca de continuidade de haacutebitos gostos e

preferecircncias A narradora prossegue seu relato transmitindo lembranccedilas da cozinha judaica

vivenciadas em seu bairro

Eu feliz na atmosfera lavada das manhatildes mastigando o haacutelito de cafeacute e pasta de dente

gostava de ver as mulheres que vinham da feira livre com sacolas nas quais adejavam

verduras outras traziam suspensas de ponta-cabeccedila galinhas vivas que arregalavam os

olhos redondos num susto de morte Algumas donas de casa elas mesmas fariam o

talho na garganta por onde se esvairia o sangue do bicho enquanto outras mais

piedosas ou covardes ou que seguissem a lei alimentar a kashrut recorriam ao shochet

responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual Todas para um uacutenico lugar a cozinha matriz do

afeto de nossa gente Pratos com nomes esquisitos e tatildeo familiares varenikes beigales

mondales knishes strudels iuchs kasha rossale borscht guefiltefish chrein kishke

kreplach tzimes

Comida para um exeacutercito (MOSCOVICH 2006 p49 grifo do autor)

No trecho acima lecirc-se o aspecto religioso ligado agrave culinaacuteria quando a narradora aborda a

lei alimentar a kashrut e o shochet responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual das galinhas Outro

elemento apontado eacute a referecircncia aos pratos judaicos remetendo agrave ligaccedilatildeo entre cozinha e

pertencimento a um povo elemento cultural referido por Carlos Alberto Doacuteria apresentado

anteriormente Um ponto relevante apontado por esse autor eacute a citaccedilatildeo de Levi Strauss ldquoGestos

aparentemente insignificantes transmitidos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua

insignificacircncia mesma satildeo testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou

83

movimentos figuradosrdquo (DOacuteRIA 2014 p215) Assim eacute possiacutevel compreender os gestos

corporais dos atos culinaacuterios apresentados pela narradora sobre a rotina alimentar em seu bairro

como um importante testemunho da cultura judaica daquele territoacuterio

Aleacutem disso uma frase de grande relevacircncia no fragmento eacute lsquoTodas para um uacutenico lugar a

cozinha matriz do afeto de nossa gentersquo Nessa o viacutenculo entre o comer e o afeto expressa um

importante fator da cultura judaica a essa ligaccedilatildeo estaacute associada tambeacutem a sensaccedilatildeo prazerosa

da comida partilhada Carlos Alberto Doacuteria expotildee a reflexatildeo de Annie Hubbert quando ela

registra

Especialmente nas sociedades onde as representaccedilotildees coletivas passam por livros

religiosos (os judeus os cristatildeos e os muccedilulmanos) o ato de comer aparece ligado ao

amor materno e recusar a comida eacute o mesmo que recusar essa modalidade fundante de

afeto um ato que exprime grande emoccedilatildeo (DOacuteRIA 2014 p204)

Dividir a comida eacute tambeacutem nutrir o sentimento de pertencer ao grupo de fomentar a

permanecircncia dos atos que satildeo parte dos costumes desse grupo como aqueles atos apresentados

no trecho anterior em preteacuterito imperfeito atos culinaacuterios que satildeo parte do cotidiano das

cozinhas do bairro Somam-se alimento afeto rotina cultura prazer pertencimento partilha

continuidade

Ainda sobre o gosto da cozinha judaica Toaff escreve

As mercearias dos guetos pululavam de clientes cristatildeos mais gulosos do que

esfomeados [hellip] A aproximaccedilatildeo dos cristatildeos agraves comidas judaicas era sempre ambiacutegua e

ambivalente atraiacutedos (e ao mesmo tempo desconfiados) por aqueles pratos que podiam

ter significados hereacuteticos imprevistos e por aqueles sabores exoacuteticos que exerciam

veladas seduccedilotildees de transgressatildeo lsquoComer agrave judiarsquo era um pouco como tornar-se judeu

no prazer de um momento sentir de dentro o fasciacutenio daquilo que era difiacutecil (e talvez

impossiacutevel) aprender de fora [hellip] Comer uma alcachofra lsquoagrave judiarsquo ou uma fatia de patildeo

aacutezimo era como fazer uma perigosa e temeraacuteria viagem ao estrangeiro uma espeacutecie de

percurso sedutor da igreja agrave sinagoga da qual poreacutem pretendia-se voltar o mais raacutepido

possiacutevel (TOAFF 2009 p183-184)

Compreende-se assim que a cozinha judaica tinha o apelo sedutor que provocava prazer

ateacute em outras culturas como a cristatilde Isso ocorria por sua forccedila especiacutefica pelo nuacutecleo vasto de

receitas e de modos-de-fazer este ou aquele prato no entanto tal apelo ocorria em grande parte

por simbolizar o proibido e o desconhecido aos cristatildeos Agradava-lhes a transgressatildeo dessa

cozinha tiacutepica seus sabores e significados Natildeo se tratava apenas de apreciar o gosto mas

84

tambeacutem o que tal culinaacuteria representava a um ambiente cultural diverso enfrentar a culpa e

encontrar o prazer do gosto clandestino

Para os proacuteprios judeus a amplitude de receitas e de gostos dos pratos lsquoagrave judiarsquo era tatildeo

arraigada que o gosto era parte de suas escolhas para aleacutem da imposiccedilatildeo religiosa Sobre isso

Toaff reflete ldquoHaacutebitos e tradiccedilotildees alimentares inquietudes irracionais gosto e nostalgias faziam

com que mesmo nos casos extremos o paladar abandonasse o judaiacutesmo muito mais lentamente e

de maacute vontade do que o coraccedilatildeo ou a menterdquo (TOAFF 2009 p185)

Ariel Toaff demonstra o ponto a ser discutido sobre o aspecto cultural dessa culinaacuteria em

relaccedilatildeo ao prazer alimentar as restriccedilotildees e as proibiccedilotildees religiosas de um lado o prazer de

manter vivo o respeito pela tradiccedilatildeo de receitas tiacutepicas lsquoagrave judiarsquo que representam o gosto

alimentar dos judeus de outro Apesar das proibiccedilotildees a essecircncia da cozinha judaica se manteve

atraveacutes de uma vasta quantidade de receitas Eacute possiacutevel compreender isso pelo fato de o prazer

ser um fenocircmeno exclusivamente humano cujas caracteriacutesticas satildeo o equiliacutebrio fisioloacutegico e

psiacutequico que leva ao bem-estar de acordo com o Jaspers Em sendo fenocircmeno humano

pronuncia-se no indiviacuteduo de todos os tempos e de todas as culturas e eacute elemento ateacute mesmo

capaz de sobrepujar um constructo como as proibiccedilotildees religiosas como no caso da cozinha

judaica

O que mais chama a atenccedilatildeo lendo a pesquisa de Ariel Toaff eacute de como o gosto judaico

foi sendo construiacutedo a ponto de configurar-se como uma tradiccedilatildeo culinaacuteria Outro elemento

interessante referido pelo autor satildeo os processos de osmose com outras culturas alimentares a

partir das emigraccedilotildees dos judeus para diferentes territoacuterios O paladar judaico foi adicionando

alimentos agrave sua lista ingredientes e pratos de outras culturas foram sendo incorporados ao seu

gosto

Um trecho que ilustra essa lsquoosmosersquo estaacute no comeccedilo de Por que sou gorda mamatildee

quando a narradora-personagem conta a histoacuteria da chegada de sua famiacutelia ao Brasil e a

aproximaccedilatildeo de seu bisavocirc a um iacutendio proacuteximo agrave moradia da famiacutelia

[hellip] Um desses bugres vovoacute natildeo tinha certeza de que era o mesmo que fora aprisionado

deixou uma tigela de farinha - dependendo da versatildeo um pedaccedilo de carne- na porta da

casa O bisavocirc na mesma tijela e no mesmo lugar ofereceu para o iacutendio uma porccedilatildeo de

aipim cozido (ou uma porccedilatildeo de chulent ou um pedaccedilo de leikech) Tijela vai tijela

volta o bugre fez amizade com o bisavocirc falavam-se de iniacutecio com os dedos Depois

passaram a dividir o mesmo tronco de aacutervore no qual o bisavocirc sentava para o descanso

do final da tarde Depois para o pasmo geral viram o iacutendio vestindo uma camisa e uma

85

calccedila do bisavocirc mesma eacutepoca em que vovoacute viu entrar em casa uma gamela talhada em

madeira e uma cesta em trama de taquaras

Mesmo que mulheres e crianccedilas estivessem proibidas de se aproximar do bugre ele de

posse de uma enxada passou a ajudante nas lides da roccedila e a trazer aacutegua de uma sanga

ali perto Tambeacutem alcanccedilava ervas com as quais o bisavocirc fazia emplastros para as dores

nas juntas e picadas de insetos aleacutem de infusotildees e chaacutes para tosse e vermes

A vovoacute jurava que era verdade quando viram o iacutendio falava iiacutediche

Deram ateacute nome para o homem Chamavam-no Salvador (MOSCOVICH 2006 p65-

66 grifo nosso)

A osmose era natildeo apenas de ingredientes mas de costumes de atitudes de

camaradagens Havia prazer nas trocas e no conviacutevio do bisavocirc com o iacutendio Esse trecho eacute um

dos mais representativos da obra pois expressa de forma muito clara como a cultura judaica foi

permeaacutevel no exemplo narrado agraves influecircncias e agraves gentilezas e escambos do bugre A famiacutelia

comeccedilava sua histoacuteria em terras brasileiras Um trecho que expressa o papel da comida nos

primeiros tempos da famiacutelia no Brasil eacute o que segue

Uns oito nove ou dez anos depois da chegada ao Brasil o bisavocirc tinha abandonado a

colocircnia e enveredado pelos interiores do hemisfeacuterio mascateava Soacute laacute naquela Canaatilde

da fronteira entre o Brasil e o Uruguai terminou a busca de um futuro que seria melhor

mas que natildeo seria dele Havia chocolates Aguila chaja embalado em papel manteiga

morrones queimados na brasa e carne muita que se assava em grelhas sobre braseiro

vivo Tudo isso natildeo chegava agrave casa e agrave mesa da famiacutelia que se alimentava de mameligue

ou farinha de mandioca agrave qual se acrescentava cafeacute com muito accediluacutecar que accediluacutecar natildeo

podia faltar Aos domingos cada um dos filhos recebia um tablete de mariola piteacuteu

envolto em papel celofane a ser poupado ateacute a semana seguinte um pedacinho de cada

vez Ou chupado como se fosse bala que assim durava mais (MOSCOVICH 2006

p71 grifo ou do autor)

Assim haacute trechos em que a protagonista narra as experiecircncias dos antepassados em

zigue-zague com outros em que reflete sobre seu engorde retomando o foco no presente Fala

entatildeo de sua dieta em contraste com a vivecircncia de sua famiacutelia com a fome Bisavoacutes avoacutes e pais

ao sentirem fome comeccedilaram a comer mais quando o alimento tornou-se disponiacutevel a eles no

caso da narradora foi preciso fazer o caminho contraacuterio ao sentir fome comeccedilar a comer menos

A referecircncia lsquoVovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e macarratildeo de letrinhasrsquo

demonstra que a loacutegica de sua avoacute era dar consistecircncia e energia agrave comida fornecendo-lhe fontes

de carbohidrato Assim a perspectiva era contraacuteria agrave restriccedilatildeo alimentar a que estava submetida

pelas orientaccedilotildees do meacutedico

Com o frio comer salada doacutei na alma

Sopa de legumes fazia tempo que natildeo preparava o panelatildeo fervente carne aipo

aboacutebora chuchu cenoura couve cebola espiga de milho cortada em rodelas pequenas

Enquanto escrevo a sopa se agita no fogo e um haacutelito bondoso que eacute cheiro de casa

86

visita todas as peccedilas Espero a hora de submeter noz-moscada ao ralador e de cortar bem

miuacutedo tempero verde e ovos duros Vovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e

macarratildeo de letrinhas (MOSCOVICH 2006 p68)

A heranccedila para o prazer de comer deu-lhe desde a infacircncia a predileccedilatildeo pelos excessos

Porque a lei era o comer Ela comenta

Noacutes as crianccedilas estaacutevamos em fase de crescimento Como durou a tal fase Anos

Crianccedilas em fase de crescimento precisam comer muito bem para ter ossos fortes e

ceacuterebros ativos para o estudo Portanto a mesa do almoccedilo em nossa casa era farta Aliaacutes

a mesa do almoccedilo em nossa casa era um excesso Mas natildeo um excesso fuacutetil natildeo um

supeacuterfluo sem sentido Nossa mesa queria dizer comam vocecircs natildeo precisam passar

fome Fome eu vim passar adiante quando comecei as dietas (MOSCOVICH 2006

p23)

O aprendizado de exceder era associado natildeo apenas agrave saciedade mas ao prazer agrave ideia de

uma lsquomesa felizrsquo como se pode compreender a partir do seguinte fragmento

Se havia cinco pessoas na mesa de bifes deveria haver por baixo dez Para que natildeo

passaacutessemos pela dureza de medir o que estaacutevamos comendo quantos bifes satildeo meus

quantos satildeo seus Se isso acontecesse papai simplesmente natildeo comia bifes para que

mais houvesse para dividir

Numa mesa feliz natildeo se contam os bifes (MOSCOVICH 2006 p24)

O pai preocupado com o engorde dos filhos passou a adotar a imposiccedilatildeo da disciplina

alimentar riacutegida Para a protagonista a cada aumento dos quilos na balanccedila havia uma nova

ordem para o regime A protagonista lembra-se dessa fase e relata na carta para a matildee o periacuteodo

em que o pai determinou que os filhos fizessem dieta

Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre

com o Fairlane rabo-de-peixe A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos enterrado

o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como eram-

mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos ancorava

no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de construir o corpo

de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo fosse do jeito e na

hora em que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH 2006 p93)

Depois de diversas passagens entre passado e presente haacute uma retomada na histoacuteria em

direccedilatildeo agrave ordem paterna para a dieta pela quebra do carro da famiacutelia o tal lsquoFairlane rabo-de-

peixersquo Isso ocorre pelo excesso de peso na protagonista de seus irmatildeos e de suas tias de lado

paterno Frente agrave ameaccedila de dieta ela reinvindica ldquo[hellip] Entrei em pacircnico Dieta era alguma coisa

horrorosa natildeo comer um monte de coisas principalmente massas e doces eu protestei na busca

de meus direitosrdquo (MOSCOVICH 2006 p203) Ao que o pai linhas depois refere ldquo-Vocecircs vatildeo

fazer dieta E vai ser para toda a vidardquo (MOSCOVICH 2006 p204)

87

Dieta era assim ordem paterna veredicto imposiccedilatildeo e ameaccedila de perda dos direitos Natildeo

poderia ser algo para o bem para a sauacutede jaacute que restringia o prazer de comer o que se gosta De

um lado a Vovoacute Magra tinha deliacutecias em sua sacola de crocheacute para satisfazer o gosto dos netos

de outro o pai definia categoricamente que a lei da casa era a dieta Da avoacute materna com as

guloseimas estava o afeto do pai com a voz de mando o cuidado com a sauacutede Ambas as

manifestaccedilotildees eram a expressatildeo de amor que cada um deles era capaz de oferecer de acordo com

sua histoacuteria e com sua personalidade

Um elemento importante para a compreensatildeo do engorde da protagonista estaacute em sua

infacircncia quando ao contraacuterio do que ocorreu na vida adulta precisou fazer dieta para engordar

Mais uma vez a Voacute Magra tem papel crucial nesse processo conforme mostra o trecho abaixo

Os que me conhecem soacute agora natildeo acreditam Nem eu acredito Ateacute uns sete ou oito

anos eu era uma crianccedila inapetente Vovoacute Magra chegava em casa com pedaccedilos de

alcatra chuletas ou bifes de fiacutegado cortes que ela havia escolhido com ciecircncia no balcatildeo

do accedilougue do seu Jorge Depois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho

direto para a cozinha e ali direto aos armaacuterios Sentava-me junto agrave mesa de foacutermica

Vovoacute dava de matildeo numa pequena frigideira de alumiacutenio com duas alccedilas de baquelite jaacute

retorcidas pelo calor Aacutegua esponja sabatildeo pano de prato Daiacute um fio de oacuteleo Mazola-

ou Sol Levante aquele que estivesse mais em conta na ocasiatildeo- escorria da lata natildeo

muito o suficiente para que uma poccedila dourada se armazenasse no cocircncavo da frigideira

No balcatildeo da pia vovoacute ordenava o pote de sal uma taacutebua de madeira chaira batedor de

bife a faca de corte e o embrulho de papel pardo no qual seu Jorge tinha riscado o total

a pagar Na abertura do pacote lembro aquele cheiro cru e meio arisco o papel

manchado de sangue da pobre vida extinta A faca era passada na chaira em movimentos

agudos um sibilar que me causava arrepio nos dentes Depois com a lacircmina vovoacute

eliminava nervos sebo e outras impurezas que soacute ela podia identificar Finalmente

espalmava os dedos sobre a peccedila de carne e em talhos saacutebios cortava em fatias Agraves

vezes usava o batedor para domar algum pedaccedilo mais resistente tunda de laccedilo na carne

que batia na madeira que batia na pedra que por seu turno estremecia o balcatildeo e todos

os cocircmodos da casa Uma pitada de sal o oacuteleo tinindo recebia a carne com uma

chiadeira labaredas azuladas salpicavam as fatias- daacute-lhe fumaccedila um nevoeiro que

anunciava a forccedila resistindo agrave morte (MOSCOVICH 2006 p35-36)

A Voacute Magra participava da alimentaccedilatildeo da neta natildeo apenas no preparo dos bifes mas

tambeacutem na extraccedilatildeo do sumo que resultava deles e na oferta do caldo agrave protagonista ainda

crianccedila Percebe-se o zelo da avoacute todo esse processo no qual o alimento representa nutriccedilatildeo

fiacutesica e cuidado afetivo

Dado o susto vovoacute colocava os bifes num prato fundo e com um garfo espremia e

espremia ateacute reunir uma boa quantidade de sumo sanguinolento Um pano ajeitado como

babador e entornando um pouco o prato com uma colher de sobremesa dava-me aos

bocados aquela riqueza nutritiva (MOSCOVICH 2006 p36)

88

Ressalta-se o detalhamento com que a narradora apresenta os utensiacutelios de cozinha no

preparo dos bifes e os atos culinaacuterios da Voacute Magra Se natildeo haacute referecircncia direta ao prazer de

comer haacute o conhecimento visceral da avoacute no cozinhar Cada movimento eacute conhecido pelo corpo

e traduzido pelo uso dos utensiacutelios O que marca o trecho eacute o afeto com que a avoacute faz os bifes

para a neta o cuidado que tem com cada nuance do preparo expresso na proacutepria dedicaccedilatildeo e

tambeacutem em especial na frase lsquodepois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho direto

para a cozinharsquo Este eacute um dos trechos emblemaacuteticos da obra em termos de expressatildeo da cozinha

como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico nesta narrativa pois mostra dados como o oacuteleo na frigideira a

destreza com cada instrumento e o zelo no preparo do alimento como reforccedilo nutricional

A narradora segue o relato sobre os bifes que colocam sua matildee em segundo plano

Se vovoacute natildeo vinha o jeito era a senhora mamatildee me sentar na frente do preacutedio reunir

crianccedilas e cachorros da vizinhanccedila ao meu redor e fazendo aviatildeozinho enquanto eu me

distraiacutea me enfiar goela abaixo colheradas de legumes carne e todo o resto que eu

detestava

Natildeo me lembro quando comecei a comer feito gente grande Nunca mais parei

(MOSCOVICH 2006 p36-37)

Haacute uma diferenccedila na percepccedilatildeo da narradora sobre a forma como a Voacute Magra lhe oferecia

a lsquoriqueza nutritivarsquo aos bocados e aquela como a matildee o fazia ao lsquoenfiar goela abaixo

colheradas de legumes carne e todo o resto que eu detestavarsquo O contraste estaacute sobretudo na

expressatildeo do afeto que leva a protagonista o falar em lsquoriqueza nutritivarsquo quando menciona o

cuidado da avoacute e ao referir-se ao termo lsquogoela abaixorsquo sobre o alimento oferecido pela matildee

Possivelmente o prazer de comer tivesse sido originado no afeto ligado ao alimento e ao cuidado

pela avoacute pois eacute das cenas com esta que restaram os principais registros de memoacuteria sugerindo

que a lembranccedila daquele preparo eacute muito mais viva do que aquela da interaccedilatildeo com sua matildee A

frase lsquonunca mais pareirsquo mostra o comportamento de comer como algo que passou a se repetir

sugerindo a presenccedila de prazer que impele agrave repeticcedilatildeo

A partir do ponto em que comeccedilou a comer e entatildeo a engordar junto a seus irmatildeos

instalou-se na famiacutelia a determinaccedilatildeo de regime para os trecircs ordenada pelo pai A protagonista

refere

Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre

com o lsquoFairlane rabo-de-peixersquo A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos

enterrado o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como

eram- mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos

ancorava no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de

89

constituir o corpo de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo

fosse do jeito e na hora que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH

2006 p93)

Quando refere lsquoEssa ordem sei agora era o que nos ancorava no mundorsquo estaacute

expressando que sob a perspectiva adulta consegue ver a razatildeo da imposiccedilatildeo do pai ancorar os

filhos no mundo Estabelecia-se uma dicotomia entre a postura da Voacute Magra que partilhava seu

prazer alimentar com os netos e a do pai que assumia a funccedilatildeo de impor normas aos filhos Para

a narradora essa divisatildeo era contundente a bagagem de carinho da avoacute materna era o paraiacuteso a

forccedila da voz paterna era o inferno restringia definia acusava ordenava proibia O livro traz

todo o conflito da narradora personagem em seu tracircnsito por essa dicotomia ao longo da vida ateacute

apresentar os resultados do excesso de comer em seu corpo os terriacuteveis vinte e dois quilos ou

cento e dez tabletes de manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha

A ordem paterna para a dieta transforma-se na idade adulta na ordem do meacutedico

tambeacutem uma voz impositiva ameaccediladora e acusatoacuteria Essa eacute expressa jaacute no proacutelogo quando a

protagonista conta o motivo de sua reflexatildeo sobre a histoacuteria familiar e a pessoal para

compreender o porquecirc de chegar ao excesso de peso

- Vocecirc natildeo estaacute gorda

Certo meu estado natildeo era transitoacuterio a gordura nunca foi um episoacutedio solteiro em

minha vida eu sabia ele nem precisava ir adiante Mas ele foi

- Vamos fazer suas ceacutelulas adiposas murcharem -Pediu minha atenccedilatildeo com a caneta no

ar- sei que parece injusto mas a natureza a fez assim Vocecirc eacute gorda

Uma vez mais de novo (MOSCOVICH 2006 p15)

A uacuteltima frase lsquouma vez mais de novorsquo refere-se possivelmente agrave lembranccedila sobre o

veredito do pai na infacircncia quando mandou que ela e os irmatildeos fizessem dieta O prazer de

comer tornava-se sempre transgressor da ordem sempre um mundo proibido e recheado de

culpas impostas por terceiros Por mais que ela natildeo quisesse sentir as culpas aprendera que

deveria senti-las para afastar-se do prazer

Com a evoluccedilatildeo da dieta conduzida pelo meacutedico a personagem comeccedila a conseguir

emagrecer e a perda de peso vai ganhando por sua vez gosto de vitoacuteria Emagrecer tambeacutem se

torna um prazer o que reflete a sua conscientizaccedilatildeo para a mudanccedila de haacutebitos e mais ainda

para o seu amadurecimento Haacute na protagonista a consciecircncia de sua responsabilidade pelas

escolhas alimentares e pelo resultado da dieta em sua sauacutede A mudanccedila de postura destaca-se

atraveacutes do termo lsquoum deliacuteriorsquo ponto em que se percebe sua capacidade de avaliar o que pode e o

90

que natildeo pode comer sem precisar ouvi-lo de terceiros A personagem conta o que sente

demonstrando sua disposiccedilatildeo para mudar a atitude frente agrave comida

Uma enorme vontade de comer uma daquelas refeiccedilotildees de estivador arroz feijatildeo ovo

frito massa bife na chapa purecirc de batatas salada de tomate e cebola Tudo num uacutenico

prato fundo e transbordante Para beber uma daquelas cervejas pretas docinhas das

quais se dizia que eram boas para mulheres que amamentavam Sobremesa pudim de

leite

Soacute vontade Um deliacuterio

Descobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um punhado de

parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagado Tambeacutem descobri que atum em lata e

dois ovos duros saciam por mais de quatro horas Uma xiacutecara de cafeacute e um pedaccedilo de

queijo enganam a fome por um bom tempo Disso eu sabia mas tinha me esquecido

Fui verificar meu peso um quilo e novecentos gramas a menos (MOSCOVICH 2006

p125-126)

A passagem acima ilustra um periacuteodo da personagem jaacute adulta em seu progresso durante

a dieta Quando ela diz lsquoDescobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um

punhado de parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagadorsquo (MOSCOVICH 2006 p125-126)

estaacute demonstrando que jaacute eacute capaz de encontrar prazer e sabor dentro da dieta ao inveacutes de lutar

com as restriccedilotildees como fez desde a infacircncia Eacute nesse momento que a comida assume um caraacuteter

de transformaccedilatildeo na narrativa a mudanccedila de postura em relaccedilatildeo ao foco de prazer na comida de

uma lauta refeiccedilatildeo ao novo modo de temperar a salada Como resultado a perda de peso

O significado de tal mudanccedila estaacute justamente na conscientizaccedilatildeo que representa Ao dizer

lsquoSoacute vontade Um deliacuteriorsquo a protagonista expressa conhecer os perigos de lsquouma daquelas refeiccedilotildees

de estivadorrsquo como a que descreve Mostrando a mudanccedila de possibilidades estaacute dizendo a si

mesma que compreendeu que eacute preciso mudar a fonte de prazer para atingir o emagrecimento

proposto pelo meacutedico

Nesse momento aliaacutes a ordem natildeo vem mais do pai natildeo vem mais do meacutedico E nem eacute

mais uma ordem Eacute entatildeo uma escolha E o melhor de tudo parte da proacutepria narradora

personagem em seu percurso no anseio do que pede agrave sua matildee no proacutelogo ldquoMamatildee me

endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar esse territoacuterio

metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora Quero voltar a ter um

corpordquo (MOSCOVICH 2006 proacutelogo)

A voz para a matildee eacute na verdade a voz em que ela se permite emitir essa narrativa Em

essecircncia a voz eacute dirigida a si mesma e o pedido para lsquovoltar a ter um corporsquo segue o verbo

querer na primeira pessoa do singular no presente do indicativo Eacute a afirmaccedilatildeo de um desejo de

91

uma escolha Natildeo eacute o pai natildeo eacute o meacutedico natildeo eacute a interlocuccedilatildeo com a matildee A lei agora eacute sua

segue seu proacuteprio querer Da refeiccedilatildeo de estivador agraves alternativas possiacuteveis a narradora mostra o

que compreendeu eacute agente da proacutepria transformaccedilatildeo eacute emissora da proacutepria voz Tem um corpo

sim Mais do que isso tem um novo querer tambeacutem prazeroso e mais saudaacutevel o

emagrecimento

92

3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS

Levantei-me as pernas agora quase firmes desci os degraus da porta ateacute a calccedilada

buscando algo para comer e o que havia no meu raio de visatildeo era uma carrocinha de

pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me desde que horas ele estava ali se

tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda

agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido Cheguei junto dele remexendo a bolsa

agrave procura de uns trocados que tivessem restado da farra de salgadinhos e biscoitos da

Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada desde entatildeo (REZENDE 2014

p147)

Comida eacute alimento nutriccedilatildeo sobrevivecircncia Eacute palavra feita de carne de aboacutebora de

arroz Tangiacutevel Comemos para nutrir as ceacutelulas mas tambeacutem para garantir nossa autonomia

porque comida eacute escolha eacute expressatildeo de si mesmo gosto disso prefiro aquilo Comida eacute

exerciacutecio de liberdade no quando no quanto no onde no que comer E comer eacute matar a fome e

satisfazer o apetite na comida de rua servida no papel pardo ou na mesa posta com talheres

prato copo guardanapo Comemos intransitivos ou transitivos sozinhos ou acompanhados

Comemos para atravessar mais um dia para seguir existindo como oacutergatildeos viacutesceras cinco

sentidos Mastigar salivar engolir digerir metabolizar excretar eis o trajeto da comida atraveacutes

do organismo tornando-se parte de quem somos E comemos para continuar sendo

31 QUARENTA DIAS

Quarenta dias eacute o livro escrito por Maria Valeacuteria Rezende editado pela Editora Record

em 2014 A narrativa traz a histoacuteria de Alice mulher de meia-idade que a pedido de sua filha

muda-se de Joatildeo Pessoa para Porto Alegre A contragosto deixa sua casa e sua vida as amizades

e os afazeres e segue a demanda da filha para que se torne lsquovoacute profissionalrsquo jaacute que a moccedila e seu

esposo decidem ter um filho

A personagem faz a mudanccedila de tudo o que tem caixas e caixas para a nova cidade em

apartamento escolhido e alugado pela filha e o genro No entanto em um jantar na casa do casal

recebe a notiacutecia de que decidiram passar um periacuteodo fora do paiacutes para suas especializaccedilotildees

acadecircmicas Assim adiaram os planos de gravidez motivo pelo qual ela havia abandonado seu

habitat e aceito uma imposiccedilatildeo pelo desejo da moccedila em ser matildee Partiriam em poucos dias logo

apoacutes Alice ter chegado em sua nova moradia

93

No desterro de seu lar e sozinha na capital gauacutecha a personagem transfere seu territoacuterio

de nutriccedilatildeo para a rua para o espaccedilo representado pelo coletivo pela cidade e natildeo para a cozinha

nova e moderna do apartamento Haacute sobretudo um deslocamento primordial na narrativa a

lsquoexpulsatildeorsquo de suas reflexotildees para as paacuteginas do diaacuterioepiacutestola em que Alice escreve de si

dirigindo-se a uma interlocutora Barbie a figura na capa do caderno que encontrara entre as

caixas da mudanccedila

No iniacutecio de sua vida em Porto Alegre esconde-se em casa fingindo ter viajado para o

interior na casa de primos Entatildeo mune-se de um motivo benevolente que usa para justificar

suas caminhadas a qualquer pessoa com quem encontre a busca freneacutetica pelo rapaz conterracircneo

Ciacutecero Arauacutejo perdido no Sul Nessa missatildeo esquece o proacuteprio endereccedilo e decide por viver um

paradoxo casa que natildeo eacute casa rua que natildeo eacute rua Externo que se torna interno porque eacute parte

dela Rua que eacute casa parece em sendo casa na rua encontra abrigo para a solidatildeo na rua

encontra alimento para as fomes que sente Fome de comida sim mas para aleacutem desta a fome de

ser lsquosi mesmarsquo de novo

Sozinha perde-se de si de seus referenciais familiares dos telefones que tem na

memoacuteria dos sentidos de sua proacutepria vida Tem no desaparecido a razatildeo temporaacuteria para sua

andanccedila sem paradeiro Procurar um jovem de sua terra que veio para Porto Alegre eacute uma boa

desculpa para algueacutem que percorre uma cidade em seus pontos mais perigosos ou naqueles mais

dramaacuteticos como o Hospital de Pronto-Socorro Nem vestiacutegio de Ciacutecero mas laacute encontra um

banco de madeira onde pode dormir

Em seus trajetos transfere o espaccedilo ocupado pela cozinha que eacute o de preparar a nutriccedilatildeo

para um espaccedilo coletivo e itinerante Padarias pequenos botecos nas vilas que percorre carrinhos

de pipoca e de cachorro-quente restaurante da rodoviaacuteria em que escuta um sotaque familiar

comida ofertada aos sem-moradia nas madrugadas Sem desejar voltar para casa Alice passa a

habitar a rua Faz amigos ao longo do caminho pessoas que se preocupam mais com ela do que

sua filha Mas isso ela quer esquecer quer apagar e estabelece um objetivo firme de resgatar um

desaparecido pelos recantos mais insoacutelitos e arriscados da cidade

A representaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo itinerante eacute um fator muito consistente na obra

Porque a cozinha eacute territoacuterio fiacutesico definido por moacuteveis objetos e eletrodomeacutesticos que a

compotildeem mas eacute tambeacutem simboacutelico nela vivem nutriccedilatildeo afeto famiacutelia intimidade Transferir

tal importacircncia para o externo para o alheio a si eacute como um transplante ao contraacuterio

94

O deslocamento na representaccedilatildeo dessa forccedila que transcende o objetivo meramente

nutricional expressa a ausecircncia de ninho vivenciada pela personagem Ela escolhe transplantar

sua vida para o lado de fora da porta escolhe a solidatildeo no meio do coletivo para apagar a solidatildeo

em silecircncio dentro das paredes de uma casa (e natildeo um lar) que a filha e o genro definiram para

ela Ao menos assim eacute ela quem escolhe Autonomia O que comer onde viver onde dormir

onde se banhar Por pior que seja o banho na rodoviaacuteria eacute sua voz eacute sua decisatildeo Por pior que

seja a noite no banco duro de madeira do Pronto-Socorro a pipoca do carrinho que fica ali na

frente o natildeo-ter-para-onde-ir fingindo estar na busca desenfreada pelo desaparecido eacute sua

proacutepria voz que precisa escutar Eacute pelo aparecimento de sua identidade perdida que faz

peregrinaccedilotildees pelos becos mais sombrios por onde se propotildee a percorrer

Ao longo do percurso do livro enquanto parece perder-se cada vez mais de seus

referenciais de sua memoacuteria mais firma o passo mais decide onde ir E suas frases no diaacuterio

vatildeo ganhando pontos-finais ao relatar o ocorrido agrave medida em que se lembra e se torna mais

capaz de contar da redescoberta de sua identidade Na crise da personagem atraveacutes desse

desalojamento de um habitat seguro dessa saiacuteda para fora da porta ocorre a habitaccedilatildeo de um

novo espaccedilo o proacuteprio eu Em seus percursos defronta-se com a perda dos referenciais antigos

da casa de sempre da memoacuteria que lhe permitiria voltar para o eixo seguro da nutriccedilatildeo estaacutevel

na intimidade soacutelida da cozinha

Alice desloca-se durante a maior parte da narrativa Desloca-se de sua terra natal para

Porto Alegre e nessa capital transita entre avenidas principais e becos escondidos entre

viadutos e casas de estranhos entre floriculturas e terrenos baldios Desloca-se de si mesma

quando decide natildeo voltar agrave casa escolhida para ela Escolhida eacute voz passiva voz que ela quer

transcender

Distrai-se com a histoacuteria do desaparecimento de Ciacutecero Arauacutejo com a confusatildeo mental

que se instala entre fome-frio-sono-exaustatildeo Tudo isto para natildeo lembrar volta-se para fora e

desse modo esquece o dentro Desloca o foco das confissotildees que faz a si sendo um diaacuterio para

Barbie como um sucessivo contar de eventos e emoccedilotildees em escritos que mais parecem cartas

Mais uma vez dentro e fora se conjugam pois acontecem num simultacircneo mas estatildeo

dissociados Alice dirige para fora suas reflexotildees para um terceiro entatildeo dissocia-se de si para

olhar para si

95

Em um determinado ponto refere ldquoNatildeo Barbie esta noite natildeo dormi em saguatildeo nem em

parque nenhum Natildeo vecirc como estou bem-disposta a sentar-me pegar a caneta e continuar

escrevendo aqui nesta cozinha depois desta noite bem-dormida na suiacutete deste apartamento que

me esforccedilo para aceitar finalmente como meurdquo (REZENDE 2014 p163)

Estaacute dentro de casa mas ainda natildeo faz parte dela em verdade situa-se fora dali no sentir

Demonstra isso quando usa lsquobem-disposta nesta cozinha deste apartamento como meu me

esforccedilo para aceitarrsquo Tal dissociaccedilatildeo identitaacuteria eacute expressa por um permanente desconexatildeo

consigo Perde-se de sua casa e de seus referenciais para descobrir o paradeiro de Ciacutecero Arauacutejo

com o firme propoacutesito de encontrar um motivo que alinhave seus dias em Porto Alegre dentro de

si o sentido estaacute fora de si Nessa desconexatildeo descobre uma Alice nascente

Chega Barbie agora eu paro mesmo que jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia

guria a solidariedade silenciosa mas agora vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a

mal taacute natildeo digo que seja pra sempre quem sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo

a limpo (REZENDE 2014 p245)

Eacute possiacutevel ler que aquilo que estava fora sua narrativa epistolar para a Barbie seraacute

entregue ao mundo da gaveta o interno e passe a habitar esse lsquodomiciacuteliorsquo escondido Entretanto

Alice jaacute internalizou marcas de linguagem regionais como as tachadas em negrito lsquoguriarsquo e lsquotu

natildeo leva a mal taacutersquo significando esse ponto uma transformaccedilatildeo de aspectos de sua identidade a

incorporaccedilatildeo da linguagem oral como proacutepria Internalizou o que estava fora tornou-o seu

tambeacutem passou a sentir-se parte Como resultado guardou no interno na gaveta seu diaacuterio que

sendo comunicaccedilatildeo consigo era dirigido a um interlocutor

Esse eacute o permanente tracircnsito do livro essa dissociaccedilatildeo permeia cada vivecircncia e eacute atraveacutes

dessa mobilidade que Alice pode ver a si mesma e se transformar Sacudida pelo real perigo de

sua itineracircncia permanente aproxima-se do fim de sua busca por um Ciacutecero que nem espera mais

encontrar

Ao longo da narrativa haacute frases sem ponto final no teacutermino dos capiacutetulos e muitas vezes

com ideias inacabadas Um elemento ligado a esse aspecto eacute o das muacuteltiplas linguagens surgem

epiacutegrafes vindas de outros autores contemporacircneos e em vaacuterias partes do livro elementos

graacuteficos aludindo a folhetos colados no diaacuterio Assim a ruptura da linguagem linear adotando

uma expressatildeo proacutepria eacute composta por frases descontiacutenuas e de outras em que a viacutergula daacute

apenas a pausa necessaacuteria ao ritmo da voz sem preocupaccedilotildees formais com a gramaacutetica

Prevalece aliaacutes o registro do informal com letras maiuacutesculas seguindo viacutergulas interrogaccedilotildees

96

no meio da frase sem uma letra maiuacutescula a seguir e assim por diante trazendo muito mais um

lsquocomo se falarsquo do que um lsquocomo se lecircrsquo

Tal elemento alia-se a um projeto graacutefico que apresenta aleacutem de texto imagens para

contemplar a lsquoformarsquo do livro como um diaacuterio Esta complementaridade toca em um tema de

grande relevacircncia no contemporacircneo a ligaccedilatildeo das artes para expressar um todo que ultrapasse

os territoacuterios particulares uma intersecccedilatildeo de saberes e de poeacuteticas que independentes em sua

importacircncia complementem-se As figuras lsquocoladasrsquo no diaacuterio natildeo parecem ter conexatildeo entre si

mas transmitem a ideia de uma escolha Foram postas ali por Alice Natildeo parece haver unidade

entre as imagens Colagem de figuras mas tambeacutem de vinhetas que se tornam epiacutegrafes sem

conexatildeo aparente entre si Essa ausecircncia de conexatildeo eacute possivelmente o que a obra pretende

comunicar com suas dissociaccedilotildees e com as frases descontiacutenuas agrave medida que a personagem

percorre o trajeto da autonomia as frases vatildeo ganhando finalizaccedilatildeo Ela comeccedila a decidir

Nesse livro a ausecircncia de unidade parece representar exatamente o contraacuterio sua

unidade Outro ponto a ser ressaltado eacute o fato de o diaacuterio ser escrito em uma mistura de tempos

natildeo seguindo a cronologia tiacutepica dos diaacuterios Muito do texto referente agrave eacute registrado em olhar

retrospectivo a todo o periacuteodo e natildeo segue uma ordem temporal tiacutepica em que a escrita iacutentima

sucede cada evento Mistura de tempos e de autores escolhidos para as epiacutegrafes e de figuras

selecionadas para compor o percurso lsquograacuteficorsquo da personagem como a nota da padaria a

propaganda da imobiliaacuteria a divulgaccedilatildeo da cliacutenica de traumatologia e por aiacute vai

Quarenta dias acontece no cerne mais cru da capital as vilas as avenidas movimentadas

a rodoviaacuteria os viadutos de moradores de rua os becos as paradas de ocircnibus o pronto-socorro

os cenaacuterios tiacutepicos de apartamento de lsquocidade grandersquo

Alice eacute uma personagem urbana implantada em Porto Alegre sem colar-se agrave cidade mas

que quanto mais se torna moradora de rua mais se torna pertencente ao mapa porto-alegrense

Mesmo sem perceber Faz-se aderida agraves ruas aos becos agraves vilas aos botecos agraves paradas de

ocircnibus onde dorme Eacute fio da trama quer estar fora porque reluta em aceitar a vida que a ela foi

imposta pela filha Neste processo cria uma vida para si cria um olhar para a cidade que vai

habitando No geruacutendio Alice torna-se parte Faz-se parte quando adentra a rua os viadutos

habitados agrave noite os crimes em matagais o cafeacute e o mate e o cachorro-quente oferecidos pelos

voluntaacuterios na madrugada O banho na rodoviaacuteria o banco duro de madeira onde dorme no HPS

Alice vai tomando voz vai tomando-se de sua voz que haacute tempos natildeo ouvia

97

32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS

Fenocircmenos psiacutequicos como a consciecircncia a memoacuteria a emoccedilatildeo o pensamento e o juiacutezo

criacutetico entre outros satildeo estudados principalmente pelo campo da Fenomenologia Psiquiaacutetrica

esses constituem os pilares para a avaliaccedilatildeo do estado mental de um indiviacuteduo O psiquiatra

examina a qualidade da expressatildeo dos mesmos na entrevista com o paciente verificando se estatildeo

dentro da normalidade ou se apresentam desvios compatiacuteveis com um quadro psicopatoloacutegico

Algumas capacidades satildeo compostas por um conjunto desses fenocircmenos e natildeo apenas por um

esse eacute o caso da autonomia

O indiviacuteduo natildeo nasce com autonomia Esta deve ser estimulada pelos pais desde o

momento em que a crianccedila deixa de mamar no peito e comeccedila a receber a alimentaccedilatildeo soacutelida

Brinca de fechar a boca enquanto a colher vem com a papinha O comer eacute a primeira autonomia

depois da dependecircncia representada pela amamentaccedilatildeo Entatildeo a crianccedila aprende a segurar a

colher entatildeo pouco a pouco os outros talheres Aprende a gostar de comer isso ou aquilo a

apontar o que deseja em seu prato A autonomia vai sendo aprendida na infacircncia pelo engatinhar

e pelo caminhar Segue-se o controle dos esfiacutencteres que vai sendo aprendido o limpar-se o

tomar banho o ficar sem os pais no maternal E tantas outras conquistas ensinadas e estimuladas

para a aquisiccedilatildeo dessa capacidade Entretanto limitaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas podem desde o

iniacutecio da vida restringir seu desenvolvimento

Jaspers compreende as manifestaccedilotildees psiacutequicas tendo como base elementos da

Fenomenologia Desse modo a autonomia resultaria de um conjunto de fatores que em bom

funcionamento determinariam a adequada manutenccedilatildeo dessa capacidade Em contrapartida o

neurocientista Antocircnio Damaacutesio eacute apresentado nesta fundamentaccedilatildeo por suas pesquisas

neurobioloacutegicas sobre o fenocircmeno da consciecircncia na qual aponta existir o nuacutecleo da consciecircncia

de si Nesta estaria o cerne para a autonomia

A escolha e a independecircncia paracircmetros que estatildeo associados agrave essa capacidade

necessitam que haja no ser humano em primeiro lugar a consciecircncia e nesta a consciecircncia de

si a escolha e a decisatildeo acontecem no domiacutenio do pensamento mas envolvem tambeacutem as

emoccedilotildees (representadas pelo afeto e o humor) e o juiacutezo criacutetico Por fim a escolha se realiza

atraveacutes de uma accedilatildeo expressa pela conduta Todos esses elementos satildeo fenocircmenos psiacutequicos que

98

compotildeem a capacidade de autonomia de um indiviacuteduo Quando essa se apresenta reduzida por

algum dos paracircmetros indicados avalia-se a presenccedila ou a ausecircncia de normalidade por

conseguinte avalia-se a existecircncia de psicopatologia Os outros fenocircmenos - atenccedilatildeo orientaccedilatildeo

memoacuteria sensopercepccedilatildeo inteligecircncia e linguagem- estatildeo presentes na avaliaccedilatildeo do estado

mental do indiviacuteduo compondo tambeacutem sua autonomia no entanto apresentam-se em grau de

menor relevacircncia para seu desenvolvimento

Aleacutem de escolha independecircncia consciecircncia de si e decisatildeo outras expressotildees podem

ser associadas a seu exerciacutecio liberdade individualidade vontade self eu Em termos

etmoloacutegicos a palavra autonomiacutea procede do latim autonomĭa e esta por sua vez do grego

αὐτονομία (autonomia) formada por αὐτός (autoacutes) que significa lsquomesmorsquo e νόμος (noacutemos) lsquoleirsquo

ou lsquonormarsquo Assim seria possiacutevel compreender que o significado aponta para a noccedilatildeo de

autonomia como lsquoleis para si mesmorsquo ou seja as leis que o proacuteprio indiviacuteduo define para sua

vida

Considerando a autonomia como capacidade eacute necessaacuterio apontar que em casos de

sofrimento psiacutequico essa apresenta-se muitas vezes reduzida pois o sofrer acaba por reduzir a

possibilidade de o indiviacuteduo sentir-se livre para as proacuteprias escolhas Em ateacute que ponto este

quadro representa uma circunstacircncia normal e a partir de qual se torna patoloacutegico O sofrimento

pode resultar de uma crise vital com duraccedilatildeo por um periacuteodo esperado e apresentaccedilatildeo de

sintomas dentro da normalidade ou pode resultar do adoecimento do indiviacuteduo com sintomas

presentes em intensidade maior e por periacuteodo mais longo A restriccedilatildeo da liberdade e portanto da

autonomia ocorreraacute de acordo com o tipo e com a duraccedilatildeo deste sofrimento Tal diminuiccedilatildeo na

narrativa pode ser vista de dois modos como parte do sofrimento psiacutequico vivenciado pela

personagem e como perda real de sua experiecircncia de autonomia jaacute que teve sua vinda ao Sul

definida pela escolha da filha Natildeo por sua decisatildeo Eacute por perceber-se nesta condiccedilatildeo que Alice

parte na direccedilatildeo de sua autonomia para sentir-se livre novamente

Karl Jaspers apresenta elementos relacionados agrave autonomia em sua obra Psicopatologia

geral sem que esse termo propriamente dito seja conceituado ou explicitado A expressatildeo mais

proacutexima eacute a da consciecircncia do eu considerada dentre o que ele estabelece como lsquofenocircmenos

subjetivos da vida psiacutequicarsquo Esta consciecircncia estaacute na base fundamental para o desenvolvimento

da autonomia ao lado de outro fenocircmeno apontado o da lsquoconsciecircncia do corporsquo

99

Na apresentaccedilatildeo da lsquoconsciecircncia do eursquo Jaspers define quatro componentes o primeiro eacute

o sentimento de atividade uma consciecircncia de atividade do eu Este se refere a tudo o que ocorre

na vida psiacutequica e que o indiviacuteduo identifica como seu a exemplo de percepccedilotildees sensaccedilotildees do

corpo lembranccedilas representaccedilotildees pensamentos e sentimentos Todas essas atividades do eu que

o caracterizam satildeo operaccedilotildees pessoais realizadas em si mesmo e identificadas como proacuteprias e

compotildeem o que o autor denomina personalizaccedilatildeo Quando haacute alteraccedilatildeo desses aspectos usa-se o

termo despersonalizaccedilatildeo fenocircmeno que pode ser descrito como o estranhamento do eu a

percepccedilatildeo de que tudo o que ocorre com o indiviacuteduo eacute na verdade alheio ao mesmo

Tal estranhamento ocorre no mundo das percepccedilotildees junto agrave ausecircncia de sensaccedilotildees

normais do proacuteprio corpo agrave incapacidade subjetiva de recordar-se de dados referentes a si agrave

inibiccedilatildeo dos sentimentos e ao automatismo de processos voluntaacuterios Tudo passa a constituir um

conjunto de atividades alheias ao eu e que em condiccedilotildees de normalidade deveriam ser

compreendidas como proacuteprias

O segundo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia da unidade ou seja a

unidade do eu Esta se refere agrave possibilidade de o indiviacuteduo perceber a si mesmo como unidade

ser um soacute no mesmo instante e natildeo como dois seres distintos ainda que atraveacutes de accedilotildees

diferentes (como ouvir a proacutepria voz enquanto fala e reconhecer que eacute sua proacutepria voz) A

alteraccedilatildeo da unidade do eu ocorre quando haacute um desdobramento da percepccedilatildeo de si observando

o eu como se estivesse fora dele

O terceiro componente da consciecircncia do eu eacute a consciecircncia da identidade ou seja a

identidade do eu Com a frase lsquosou o mesmo de antesrsquo refere-se agrave identidade como a consciecircncia

de ser o mesmo indiviacuteduo no seguir do tempo a constacircncia de si proacuteprio A alteraccedilatildeo deste

fenocircmeno leva o paciente a perceber o lsquoeursquo de um periacuteodo de vida como diferente do lsquoeursquo de

outro periacuteodo como antes e depois da instalaccedilatildeo de uma doenccedila psiacutequica por exemplo

O uacuteltimo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia do eu em oposiccedilatildeo ao mundo

externo e ao outro em que o indiviacuteduo eacute capaz de reconhecer a proacutepria identidade e de percebecirc-la

distinta do mundo externo e da identidade de outra pessoa Existe nesse componente a clara

contraposiccedilatildeo entre este indiviacuteduo e o mundo externo

Tais elementos constituem assim a lsquoconsciecircncia do eursquo base para a percepccedilatildeo das

proacuteprias necessidades e desejos neste sentido constituem tambeacutem a base para as escolhas

individuais no plano do pensamento dos sentimentos e das accedilotildees compreendidas pelo indiviacuteduo

100

como proacuteprias a si Ao lado dos componentes apresentados estaacute a consciecircncia do corpo Sobre

essa consciecircncia Jaspers refere

[] sou consciente do meu corpo como de minha existecircncia e contemporaneamente eu o

vejo com os olhos e o toco com as matildeos O corpo eacute a uacutenica parte do mundo que deve ser

sentida ao mesmo tempo pelo interno e percebida na superfiacutecie Esse eacute um objeto para

mim e sou esse mesmo corpo Satildeo duas coisas diferentes como me sinto

corpoereamente e como me percebo como objeto mas as coisas satildeo ligadas de modo

indissoluacutevel (JASPERS 2000 p95)

De acordo com o autor essa deve ser conhecida do ponto de vista fenomenoloacutegico

mediante a percepccedilatildeo de nossa experiecircncia global com nosso corpo Essa consciecircncia estaacute mais

proacutexima agrave lsquoconsciecircncia do eursquo nas atividades musculares e de movimento mais distantes das

sensaccedilotildees associadas ao coraccedilatildeo e agrave circulaccedilatildeo e ainda mais afastadas das sensaccedilotildees oriundas da

atividade vegetativa Enquanto o movimento eacute resultado das funccedilotildees voluntaacuterias os mecanismos

fisioloacutegicos vinculados ao coraccedilatildeo agrave circulaccedilatildeo e agrave atividade vegetativa satildeo inerentes agrave vida do

ponto de vista bioloacutegico e portanto involuntaacuterios A consciecircncia do corpo associada agravequela do

eu eacute referida por Jaspers por determinados fatores

Temos um sentimento especiacutefico da nossa existecircncia corpoacuterea no movimento e no

comportamento na forma na leveza e graccedila ou no peso na falta de agilidade motora na

impressatildeo que desejamos que nosso corpo desperte no outro no estado de fraqueza ou

de forccedila nas alteraccedilotildees da sauacutede [] A experiecircncia do proacuteprio corpo eacute ligada

estritamente do ponto de vista fenomenoloacutegico com a experiecircncia do sentimento das

pulsotildees instintivas da consciecircncia do eu (JASPERS 2000 p96)

Essas duas expressotildees da consciecircncia a do eu e a do corpo compotildeem o indiviacuteduo capaz

de perceber a si mesmo como unidade com uma identidade constante no tempo uacutenica em si

mesma e contraposta ao mundo externo a si e a outras pessoas De acordo tambeacutem com Jaspers

ldquo[] o corpo eacute a realidade da qual se pode dizer eu sou esse mesmordquo (JASPERS 2000 p383) O

autor refere que ldquo[] a situaccedilatildeo fundamental do ser humano eacute a estar no mundo como ser

singular finito ser dependente mas ter a possibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevel limitado

por confins obrigatoacuteriosrdquo (JASPERS 2000 p352) Em tal reflexatildeo a autonomia do indiviacuteduo

estaacute nesta lsquopossibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevelrsquo determinada pelo autor Entretanto ele

define tal possibilidade associada a confins obrigatoacuterios que delimitam o espaccedilo individual

Jaspers estabelece os limites entre autossuficiecircncia e dependecircncia apontando que somos

seres dependentes em nossa realidade e que a autossuficiecircncia completa eacute um ideal inatingiacutevel

101

[] no homem haacute a tendecircncia a imaginar-se um ser ideal que fechado em si seja

autossuficiente e que satisfeito em si mesmo viva sem sentir necessidade de qualquer

coisa do externo porque ele existe em si mesmo em abundacircncia infinita Se o homem

quiser tornar-se tal ser deveraacute compreender de modo draacutestico que eacute simplesmente

dependente em tudo Ele como ser vital tem necessidades que soacute podem ser satisfeitas

pelo externo Ele deve viver e valer na sociedade para participar aos bens necessaacuterios agrave

vida Ele deve viver com outros seres humanos em reciprocidade (JASPERS 2000

p354)

Assim para Jaspers a consciecircncia de si e a consciecircncia do corpo formam a unidade do ser

individual que pode agir em um espaccedilo mutaacutevel no qual o indiviacuteduo eacute consciente se si mesmo e

das proacuteprias accedilotildees mas cuja autossuficiecircncia eacute condicionada a confins obrigatoacuterios a realidade

externa os bens necessaacuterios agrave vida (alimentos moradia recursos econocircmicos para vestir-se e

deslocar-se por exemplo) e os outros indiviacuteduos com quem este interage em suas relaccedilotildees

interpessoais A autonomia assim acontece dentro de um espaccedilo definido por limites reais do

mundo externo

O neurologista e neurocientista Antonio Damaacutesio assim como Jaspers tambeacutem

estabelece uma associaccedilatildeo direta entre a consciecircncia do eu e o corpo O elemento da consciecircncia

do indiviacuteduo sobre si mesmo eacute denominado por ele de Self e eacute parte da estrutura que define

como consciecircncia Damaacutesio parte da comparaccedilatildeo do ser humano com organismos unicelulares e

estabelece

Uma chave para compreendermos os organismos vivos desde aqueles compostos de

uma uacutenica ceacutelula ateacute os formados por bilhotildees de ceacutelulas eacute a definiccedilatildeo de sua fronteira a

separaccedilatildeo entre o que estaacute dentro deles e o que estaacute fora A estrutura do organismo estaacute

dentro da fronteira e a vida do organismo eacute definida pela manutenccedilatildeo dos estados

internos agrave fronteira E a individualidade singular depende dessa fronteira (DAMAacuteSIO

2000 p178)

A referecircncia de Antonio Damaacutesio estaacute de acordo com a perspectiva de Karl Jaspers no

que tange agrave lsquoindividualidade singularrsquo dentro da fronteira separada do mundo externo a parte de

fora dessa fronteira O neurocientista explicita que o indiviacuteduo singular deve apresentar

sobretudo ldquo[] um grau notaacutevel de invariacircncia estrutural para que consiga oferecer uma unidade

de referecircncia no decorrer de longos periacuteodosrdquo acrescentando que ldquo[] de fato continuidade de

referecircncia eacute o que o self precisa proporcionarrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Essa continuidade de

referecircncia coincide com um dos componentes da lsquoconsciecircncia do eursquo definida por Jaspers aquele

em que o indiviacuteduo permanece com a percepccedilatildeo de si mesmo ao longo do tempo

102

O aspecto que se relaciona agrave reflexatildeo sobre a autonomia a partir da leitura de Damaacutesio

encontra-se em tal continuidade ligada por sua vez ao que ele aponta como estabilidade Este

autor refere que ldquo[] quando refletimos acerca do que estaacute por traacutes da noccedilatildeo de self encontramos

a noccedilatildeo do indiviacuteduo singular E quando pensamos no que estaacute por traacutes da singularidade do

indiviacuteduo encontramos a estabilidaderdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Quando se refere agrave noccedilatildeo de

estabilidade Damaacutesio estaacute na verdade apresentando a ideia de que um organismo vivo deve ter

constacircncia em seu meio interno para manter a vida e essa constacircncia pode ser explicada nas

palavras do autor como ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados internos de modo

que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Ao trazer a noccedilatildeo de constacircncia o autor estaacute falando em organismo e sobretudo em

sobrevivecircncia A chave de sua reflexatildeo reside no fato de remeter-se agrave noccedilatildeo de estabilidade dos

paracircmetros do organismo compatiacuteveis com a vida para chegar ao fenocircmeno da consciecircncia do

eu Damaacutesio aponta que

Um organismo simples formado de uma uacutenica ceacutelula digamos uma ameba natildeo apenas

estaacute vivo mas se empenha em continuar vivo Sendo uma criatura sem ceacuterebro e sem

mente a ameba natildeo sabe sobre as intenccedilotildees do seu proacuteprio organismo assim como noacutes

sabemos sobre nossas intenccedilotildees equivalentes [] O que estou tentando mostrar eacute que o

iacutempeto de manter-se vivo natildeo eacute um avanccedilo recente Natildeo eacute uma propriedade exclusiva

dos seres humanos De um modo ou de outro dos organismos simples aos complexos a

maioria dos seres vivos apresenta essa propriedade O que efetivamente varia eacute o grau

em que os organismos tecircm conhecimento desse iacutempeto Poucos deles tecircm Mas o iacutempeto

estaacute presente quer o organismo saiba disso ou natildeo Graccedilas agrave consciecircncia os humanos

satildeo em grande parte cientes dele (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Eacute possiacutevel compreender entatildeo a referida estabilidade como o iacutempeto do organismo em

manter-se vivo nos seres humanos existe a consciecircncia desse iacutempeto O indiviacuteduo singular

como denomina o autor eacute consciente de sua sobrevivecircncia que ocorre no ambiente interno de

sua fronteira ou seja em seu corpo Para conservaacute-la com a estabilidade necessaacuteria agrave

permanecircncia de vida deve manter constantes paracircmetros internos em sua fisiologia Comer

dormir beber liacutequidos proteger-se de extremos de temperatura urinar e defecar algumas das

funccedilotildees que realizamos conscientemente para responder a essa finalidade cumprimos

necessidades vitais respondemos ao iacutempeto do organismo em manter-se vivo mas o realizamos

com o claro propoacutesito de fazecirc-lo Damaacutesio refere que ldquo[] a cada momento o ceacuterebro tem agrave sua

disposiccedilatildeo uma representaccedilatildeo dinacircmica de uma entidade com variaccedilotildees limitadas de estados

possiacuteveis- o corpordquo (DAMAacuteSIO 2000 p186)

103

A consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo portanto estatildeo na base do indiviacuteduo

singular A manutenccedilatildeo do ambiente dentro da fronteira nosso corpo eacute realizada por nossa

consciecircncia no cumprimento de nossas funccedilotildees vitais de certo modo escolhemos cumprir tais

funccedilotildees ao respeitarmos necessidades fisioloacutegicas entre elas comer e dormir Assim

sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas por um elemento em comum a consciecircncia que o

indiviacuteduo tem de si mesmo Entretanto deve-se salientar que a autonomia eacute uma capacidade que

poderaacute existir em maior ou menor grau durante o ciclo vital pois depende das possibilidades

fiacutesicas e psiacutequicas do ser humano em responder agraves exigecircncias da vida dentro de paracircmetros de

normalidade

Alguns elementos podem restringir a capacidade de autonomia sendo o sofrimento

psiacutequico um deles por reduzir a liberdade de o indiviacuteduo em fazer suas escolhas Tal reduccedilatildeo eacute

determinada pelo proacuteprio sofrimento inerente a patologias psiquiaacutetricas ou a crises vitais como

por exemplo a reaccedilatildeo a um evento traumaacutetico

Massimo Biondi em seu livro A mente selvagem um ensaio sobre a normalidade nos

comportamentos humanos apresenta o viacutenculo do sofrimento subjetivo com a reduccedilatildeo da

liberdade Sobre esse tema discute o limite entre normalidade e psicopatologia quando se aborda

o indiviacuteduo que sofre Segundo esse psiquiatra italiano no capiacutetulo intitulado lsquoO sofrimento

subjetivo e a liberdadersquo que o sofrimento subjetivo e a anguacutestia a reduccedilatildeo ou falta de liberdade e

a reduccedilatildeo da vontade satildeo aspectos que invariavelmente acompanham o distuacuterbio psiacutequico quanto

a este pode-se falar da importacircncia da vivecircncia subjetiva de determinado evento ou situaccedilatildeo

existencial para procurar definir os limites entre a normalidade psiacutequica e a patologia

O sofrimento subjetivo termo empregado por esse autor constitui um criteacuterio para

diversos diagnoacutesticos psiquiaacutetricos e tem como eixos principais a experiecircncia subjetiva e aquela

psiacutequica a primeira referente agrave percepccedilatildeo subjetiva de um evento existencial ou de um

sentimento pode ser avaliada apenas indiretamente por suas manifestaccedilotildees e pelo relato do

indiviacuteduo que sofre A segunda em linhas gerais refere-se agrave resposta do indiviacuteduo em termos

psiacutequicos ou seja atraveacutes de alteraccedilotildees dos fenocircmenos do estado mental conduzindo ao

diagnoacutestico Massimo Biondi aponta quatro componentes do que denomina sofrimento psiacutequico

a) Um estado de sofrimento subjetivo mesmo que natildeo espontaneamente referido pela

pessoa em niacutevel verbal b) uma reduccedilatildeo ou perda da liberdade sobre os proacuteprios

pensamentos e sobre as proacuteprias accedilotildees c) uma alteraccedilatildeo do proacuteprio projeto de existecircncia

104

e da capacidade de projetar o futuro d) uma alteraccedilatildeo reduccedilatildeo ou anulaccedilatildeo da vontade

(BIONDI 1996 p40)

O segundo componente relativo agrave reduccedilatildeo ou perda da liberdade eacute elemento comum e

distintivo que atravessa a existecircncia de pessoas com distuacuterbios psiacutequicos Tal elemento eacute um dos

criteacuterios de patologia psiquiaacutetrica de uma relevante instituiccedilatildeo da especialidade mas natildeo estaacute

restrito apenas aos diagnoacutesticos tal perda estaacute associada ao proacuteprio sofrimento Assim podemos

encontrar em indiviacuteduos que atravessam crises vitais essa perda de liberdade significando

reduccedilatildeo da autonomia de algueacutem que atravessa uma situaccedilatildeo de sofrimento subjetivo sem

necessariamente tal quadro constituir alguma patologia psiquiaacutetrica definida

Ainda de acordo com Biondi um indiviacuteduo pode apresentar um distuacuterbio psiquiaacutetrico

como causa de um evento especiacutefico existem quadros em que o evento estressante tem um claro

papel patogecircnico Nesses casos o sofrimento subjetivo gerado pelo evento aparece como

principal mediador que causa favorece e acompanha o estado psicopatoloacutegico Existem

entretanto condiccedilotildees em que o sofrer subjetivo natildeo eacute indicativo de um estado de doenccedila

propriamente dito mas pode estar associado a condiccedilotildees compreendidas dentro da normalidade

Um estado de sofrimento subjetivo decorre por exemplo de situaccedilotildees comuns e

lsquonormaisrsquo como luto perda de trabalho dificuldades afetivas ou conjugais fracasso escolar ou

profissional natildeo necessariamente evoluindo para um quatro de psicopatologia Algumas

situaccedilotildees inclusive satildeo vivenciadas como positivas pelo indiviacuteduo porque reestruturam algum

foco de seu mundo interno conduzindo a uma mudanccedila na percepccedilatildeo de determinadas

experiecircncias Em tais casos o sofrimento pode ser atenuado ou ateacute mesmo ter um valor

construtivo Eacute possiacutevel refletir que nessas condiccedilotildees a perda da liberdade seja temporaacuteria mas

ainda assim leve agrave melhora do indiviacuteduo em sua perspectiva de vida pois o sofrimento eacute

condiccedilatildeo muitas vezes para a tomada de consciecircncia da condiccedilatildeo humana

Por fim cabe referir a ressalva do proacuteprio autor

[] a normalidade natildeo eacute uma condiccedilatildeo caracterizada apenas pela ausecircncia de sofrimento

psiacutequico Muitos acontecimentos comuns da vida fazem sofrer agraves vezes de modo mais

intenso e persistente em situaccedilotildees totalmente normais [] O problema estaacute em

reconhecer o sofrimento normal daquele que define em sentido estrito alguma patologia

psiacutequica (BIONDI 1996 p53-56)

A reflexatildeo sobre a perda da liberdade inerente ao sofrimento psiacutequico em vigecircncia de

uma circunstacircncia normal ou de patologia psiquiaacutetrica inclui o entendimento de que a autonomia

105

estaacute reduzida quando este sofrimento acontece O indiviacuteduo durante o periacuteodo em que sofre eacute

limitado na capacidade de fazer escolhas saudaacuteveis para si e tal limitaccedilatildeo decorre da dor psiacutequica

propriamente dita Aleacutem de ser menos livre pois o que pensa e sente eacute condicionado por essa dor

o indiviacuteduo acometido sente menos vontade como refere Biondi ao mencionar o uacuteltimo dos

quatro componentes do sofrimento psiacutequico Pode-se novamente referir a reduccedilatildeo da autonomia

pois dela faz parte tambeacutem o fato de ter vontades e de dar voz agraves mesmas

33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA

O que nos move ao comer Brillat-Savarin em A fisiologia do gosto apontou o lsquosentido

geneacutesicorsquo ldquo[] o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro sendo a

sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecierdquo (DOacuteRIA 2009 p190) A referecircncia agrave obra claacutessica na

literatura gastronocircmica feita pelo pesquisador Carlos Alberto Doacuteria em seu livro A culinaacuteria

materialista eacute seguida pela seguinte reflexatildeo apresentada por ele

[] ora a reproduccedilatildeo da espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do

indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo

ao sexo e ao comer eacute o prazer a busca do agradaacutevel [] Precisamos nos encontrar com

o alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduos e isso se daacute por dois caminhos

pelo prazer e pela dor

A fome eacute a fonte de dor e nos leva em direccedilatildeo ao alimento o prazer em comer tambeacutem

nos leva em direccedilatildeo ao alimento antes que a dor nos imponha o seu caminho (DOacuteRIA

2009 p190)

lsquoA busca pelo alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduosrsquo nas palavras do autor

estaacute associada agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo precisamos

manter a vida para preservaacute-la motivo pelo qual nos nutrimos e copulamos A procura por

alimentos viaacuteveis eacute da histoacuteria do Homo sapiens assim como no ato de cozinhar

experimentavam-se teacutecnicas que favorecessem a ingestatildeo de animais e vegetais

Neste ponto cabe a reflexatildeo de que a procura por novos alimentos e o desenvolvimento

de modos para preparaacute-los resultou da iniciativa em descobrir novas possibilidades comestiacuteveis

da capacidade fiacutesica de fazecirc-lo e de vaacuterias capacidades deste homo sapiens Seria possiacutevel

compreender entre estas a autonomia conduzindo agrave compreensatildeo de que teria sido esta

capacidade em suas primeiras manifestaccedilotildees uma das responsaacuteveis pela partida em direccedilatildeo a

animais e vegetais para comer

106

Caberia citar tambeacutem a autonomia como responsaacutevel pelo desenvolvimento da descoberta

de cozinhar os alimentos aleacutem de aspectos inerentes agrave proacutepria evoluccedilatildeo da espeacutecie Desse modo

ela pode ter permitido a sobrevivecircncia em condiccedilotildees muitas vezes desfavoraacuteveis pelas escolhas

alimentares que favoreceu Sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas assim desde tempos

ancestrais conforme refere Carlos Alberto Doacuteria no mesmo livro

Assim como ensina o arqueozooacutelogo Jean-Denis Vigne haacute 30 mil anos o homem jaacute natildeo

comia soacute o que o seu ambiente imediato lhe oferecia por facilidade de captura mas ia

atraacutes de alimentos capazes de satisfazer suas imagens mentais mais fortes e expressivas

em termos sociais Especialmente nas regiotildees frias no Paleoliacutetico Superior sua dieta era

composta de animais com pouca disponibilidade de vegetais Jaacute no Mesoliacutetico o clima

se estabiliza e nas regiotildees temperadas comeccedila a apresentar maior utilizaccedilatildeo de vegetais

Entre 8000-9000 aC e 5000 aC desenvolve-se a dieta moderna em que as energias

humanas satildeo providas por lipiacutedeos e gluciacutedeos originados de animais e plantas

domesticadas Pode-se dizer entatildeo que dessa eacutepoca em diante o homem produz tudo

aquilo que come isto eacute produz a si proacuteprio do ponto de vista alimentar (DOacuteRIA 2009

p3)

Doacuteria aponta ainda o viacutenculo entre a dieta humana e o processo de hominizaccedilatildeo como a

aquisiccedilatildeo da postura biacutepede e por fim a expansatildeo do Homo erectus ao moderno Homo sapiens

que exigiu uma dieta suficientemente rica em calorias e nutrientes Aleacutem desse aspecto o autor

refere o domiacutenio do fogo que permitiu cozinhar os alimentos e seus benefiacutecios

O incremento de calorias se deu graccedilas tanto a ambientes mais favoraacuteveis quanto agrave

adoccedilatildeo da culinaacuteria da agricultura e de criteacuterios de seleccedilatildeo de espeacutecies alimentares

Cozinhar tornou os alimentos mais macios e faacuteceis de ingerir e viabilizou o consumo de

vegetais como a batata e a mandioca que na forma crua natildeo podiam ter seus nutrientes

metabolizados pelo corpo humano Desse modo esses carboidratos complexos se

tornaram digestiacuteveis e multiplicaram ao extremo as possibilidades alimentares Em

siacutentese esses procedimentos aliados agrave seleccedilatildeo de espeacutecies vegetais permitiram

incrementar sua produtividade sua digestibilidade e seu conteuacutedo nutricional (DOacuteRIA

2009 p32)

O Homo sapiens munido de maiores capacidades alimentava-se de forma cada vez

melhor no sentido de incrementar sua sobrevivecircncia nutrindo-se com maior variedade e melhor

qualidade da dieta adquiria novas capacidades e aprimorava aquelas jaacute dominadas resultando em

aumento na capacidade de descoberta de novos ingredientes e de preparo dos mesmos Instalava-

se assim um ciacuterculo entre o desenvolvimento de potencialidades tornando-o cada vez mais

capaz de sobreviver mesmo em condiccedilotildees adversas bem como de agir sobre tais condiccedilotildees

Tudo isso favorecia a vida e a reproduccedilatildeo da espeacutecie Sobrevivecircncia e autonomia novamente

aliadas pelo alimento O pesquisador norte-americano Michael Pollan alude a uma observaccedilatildeo de

Winston Churchill sobre a arquitetura ldquoPrimeiro cozinhamos nossa comida depois ela nos

107

cozinhourdquo (POLLAN 2014 p15) Pollan explica esse fenocircmeno ocupado pelo cozinhar em

nossa biologia

Portanto cozinhar nos transformou e natildeo apenas por nos tornar mais sociaacuteveis e

corteses Uma vez que o ato de cozinhar permitiu que expandiacutessemos nossas capacidades

cognitivas agrave custa da capacidade digestiva natildeo havia mais como voltar atraacutes nossos

ceacuterebros grandes e intestinos pequenos dependiam agora de uma dieta agrave base de

alimentos cozidos [] Isso quer dizer que cozinhar tornou-se compulsoacuterio- estaacute por

assim dizer cozido em nossa biologia (POLLAN 2014 p15)

A partir daiacute toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo incluindo o surgimento da gastronomia

conduz progressivamente a um grau de evoluccedilatildeo deste campo que ultrapassa a lsquomerarsquo demanda

pela sobrevivecircncia e preservaccedilatildeo da espeacutecie A sobrevivecircncia ao que parece natildeo ocupa mais o

centro no universo da cozinha O campo das accedilotildees e estudos ligados ao preparo do alimento

chega em nosso seacuteculo XXI em niacuteveis de superespecializaccedilatildeo e de glamourizaccedilatildeo nunca antes

imaginados Este eacute o caso para citar exemplos da Cozinha Molecular e dos programas

televisivos que invadem as casas com a famiacutelia muito mais atenta ao programa sobre comer do

que ao proacuteprio comer Hoje em dia aliaacutes sobreviver natildeo atinge a categoria de prioridade de

muitos indiviacuteduos fervorosos em sua autonomia contemporacircnea no desejo insalubre pelo prazer

da comida ou mesmo na pressa da vida urbana morrem por comer da pior forma possiacutevel

Para compreender esse processo vale refletir sobre como chegamos ateacute aqui A histoacuteria a

ser contada parte do ato de cozinhar que ldquo[] eacute como dizem os antropoacutelogos uma atividade que

nos define como seres humanos - o ato com o qual segundo o filoacutesofo e antropoacutelogo Claude

Levi-Strauss a cultura surgerdquo (POLLAN 2014 p13) Para Leacutevi-Strauss conforme referido por

Michael Pollan ldquo[] cozinhar servia como uma metaacutefora da transformaccedilatildeo humana da natureza

crua para a cultura cozidardquo (POLLAN 2014 p13) A respeito do papel do cozinhar para a

cultura Carlos Alberto Doacuteria refere

O que une as abelhas no coletivo eacute uma interaccedilatildeo quiacutemica chamada trofolaxe Ora aleacutem

da integraccedilatildeo neurosensorial devemos considerar que a trofolaxe humana eacute a linguagem

Eacute por intermeacutedio da linguagem que estamos acoplados com outros seres humanos e eacute

tambeacutem com ela que partilhamos nossas experiecircncias ateacute mesmo atraveacutes de enormes

distacircncias no tempo e no espaccedilo Nessa trofolaxe a relaccedilatildeo com os sabores do mundo se

daacute ao mesmo tempo pelo aparelho gustativo e pela cultura (DOacuteRIA 2009 p197)

Deve-se considerar a vasta gama de fatos da histoacuteria da alimentaccedilatildeo desde a preacute-histoacuteria

ateacute nosso terceiro milecircnio tendo como eixo a transformaccedilatildeo na cultura produzida pelo cozinhar

a fim de compreender as mudanccedilas exponenciais que a cozinha atravessou ateacute chegar agrave sua

108

representaccedilatildeo contemporacircnea Nesse contexto faz-se necessaacuterio definir os pontos de referecircncia

que marcaram a transiccedilatildeo a partir da qual sobreviver parece ter deixado de ocupar o motivo por

que o indiviacuteduo se alimenta

Um dos aspectos que podem ser apontados como referenciais na transiccedilatildeo acima abordada

eacute o iniacutecio da chamada restauraccedilatildeo ou seja o surgimento dos restaurantes dentro do nascimento

da hotelaria Em especial a existecircncia da comida de rua passa a ter um papel significativo neste

sentido A valorizaccedilatildeo da gastronomia cada vez maior desde o seacuteculo XVIII teve tambeacutem

influecircncia no processo ao deslocar para o prazer dos sentidos principalmente o do gosto o

centro de sua atenccedilatildeo

Entretanto haacute um ponto chave para a mudanccedila do foco da comida de aspecto nutricional

e gregaacuterio a fator de risco para as mais variadas doenccedilas fiacutesicas como a obesidade e a

hipertensatildeo arterial e para aquelas psiacutequicas como a anorexia e a bulimia tatildeo vigentes no seacuteculo

XXI Este ponto em sua origem estaacute no processo de industrializaccedilatildeo que culminou com o

deslocamento do comer da mesa do lar para o local de trabalho De que forma este pode

relacionar-se agrave sobrevivecircncia e agrave autonomia focos deste subcapiacutetulo Por dois caminhos o

primeiro refere-se ao fato de que o deslocamento restringiu as possiblidades de alimentaccedilatildeo e os

empregados ficaram submetidos ao que fosse oferecido em seu trabalho portanto com restriccedilatildeo

da autonomia o segundo caminho refere-se agraves ofertas alimentares propiciadas nos locais de

trabalho pouco dirigidas agrave sauacutede do indiviacuteduo e por extensatildeo ao papel nutricional da

alimentaccedilatildeo equivalente agrave sua sobrevivecircncia

Pode-se falar na evoluccedilatildeo dos centros urbanos e de suas demandas e transformaccedilotildees entre

estas a pressa que tambeacutem restringe as escolhas alimentares possiacuteveis Outra vez a restriccedilatildeo da

autonomia e o prejuiacutezo das escolhas agrave sauacutede Da pressa passamos ao fenocircmeno seguinte aquele

que Maacutessimo Montanari e Jean-Louis Flandrin denominam lsquoA McDonaldizaccedilatildeo dos costumesrsquo

no livro Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo do qual satildeo organizadores A pressa leva ao surgimento dos

fast-food pela sociedade norte-mericana estes por sua vez causam uma lista de patologias

cardiovasculares e oncoloacutegicas por exemplo A pressa e os fast-food tornam-se parte do

fenocircmeno de stress que aumenta a pressa e torna rotineira a alimentaccedilatildeo raacutepida reduzindo a

sauacutede e aumentando ainda mais o stress Instala-se o ciacuterculo vicioso da vida moderna O eixo de

nutriccedilatildeo que uma vez focircra o lar tornou-se a rua

109

Retomando um dos elementos discutidos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute possiacutevel perceber o

modo como as referidas mudanccedilas atingem a sobrevivecircncia Damaacutesio refere que para que um

organismo permaneccedila vivo eacute necessaacuterio ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados

internos de modo que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Em seu ensaio sobre a normalidade dos comportamentos humanos Massimo Biondi

apresenta um capiacutetulo em que aborda a normalidade dos padrotildees fisioloacutegicos de sobrevivecircncia

Explica que

O organismo eacute uma entidade viva Sua vida se baseia em processos bioloacutegicos de base

que devem respeitar algumas caracteriacutesticas A vida humana por exemplo eacute possiacutevel

para temperaturas corporais compreendidas entre 30 e 42deg Acima ou abaixo de tais

temperaturas para aleacutem de um certo tempo a vida eacute impossiacutevel []

Tal conceito vale para muitas outras variaacuteveis estudadas em medicina e fisiologia do

peso agrave altura da frequecircncia cardiacuteaca agrave pressatildeo arterial [] da quantidade diaacuteria de

accediluacutecar no sangue agraves caracteriacutesticas da urina

O criteacuterio da norma bioloacutegica assim como concebido aqui refere-se agrave normalidade de

funcionamento de estruturas bioloacutegicas que caracterizam a vida de um organismo e satildeo

compatiacuteveis com a mesma (BIONDI 1996 p169)

O indiviacuteduo do seacuteculo XXI em posse de sua autonomia acaba por fazer escolhas

alimentares contra a proacutepria sobrevivecircncia pois alteram os padrotildees de normalidade compatiacuteveis

com a sauacutede e em uacuteltima instacircncia com a proacutepria vida eacute o caso do impacto de alimentos do

regime fast-food na sauacutede resultando em diabetes hipertensatildeo arterial e sobrepesoobesidade

Tal resultado entre outros deve-se agrave ingestatildeo excessiva de carboidratos gorduras e

trigliceriacutedeos presentes nesta forma lsquodesnutricionalrsquo

A autonomia desse modo que muitas vezes eacute fonte de extrema valorizaccedilatildeo em tempos

nos quais a individualidade ocupa papel central leva o homem contemporacircneo a atacar a

sobrevivecircncia e natildeo mais a preservaacute-la Nesse ponto da histoacuteria da alimentaccedilatildeo sobrevivecircncia e

autonomia afrouxaram o dar as matildeos De acordo com Michael Pollan ldquoPesquisas de opiniatildeo

confirmam que a cada ano cozinhamos menos e compramos mais refeiccedilotildees prontasrdquo

(POLLAN 2014 p11)

Este autor traz reflexotildees relevantes quanto ao paradoxo do papel da cozinha em nossa

contemporaneidade apontando que ao mesmo tempo que o tempo de cozinhar diminui aumenta

o tempo de dedicaccedilatildeo a assistir programas de cozinha na televisatildeo aleacutem de outras modificaccedilotildees

mencionadas por ele sobre as escolhas alimentares O que chama a atenccedilatildeo na obra de Michael

Pollan eacute o fato de ele mencionar o ponto em que chegamos sob a perspectiva de nossa cultura

110

alimentar global Sendo este um pesquisador reconhecido e respeitado internacionalmente eacute

positivo que exponha em tom pungente os resultados de pesquisas e perspectivas no

embasamento de suas reflexotildees Posiciona-se frente a vaacuterios problemas graves ligados ao modo

de comer de nosso tempo ao mencionar a reduccedilatildeo do haacutebito de cozinhar e suas consequecircncias

ldquo[] natildeo eacute surpresa alguma o decliacutenio do haacutebito de cozinhar em casa coincidir com o aumento da

incidecircncia da obesidade e de todas as doenccedilas crocircnicas associadas agrave alimentaccedilatildeordquo (POLLAN

2014 p16)

O elemento apontado por este autor e que se relaciona agrave relaccedilatildeo entre a comida e as

relaccedilotildees interpessoais declara que a refeiccedilatildeo em famiacutelia deu lugar em larga escala ao comer

sozinho Autonomia praticidade e individualismo parecem estar no centro deste fenocircmeno

A ascensatildeo do fast-food e o decliacutenio da comida caseira tambeacutem abalaram a instituiccedilatildeo da

refeiccedilatildeo compartilhada por nos estimularem a comer coisas diferentes com pressa e

muitas vezes sozinhos Pesquisas dizem que estamos dedicando mais tempo agrave

lsquoalimentaccedilatildeo secundaacuteriarsquo que eacute como denominamos esse costume meio constante de

beliscar alimentos embalados e menos tempo agrave lsquoalimentaccedilatildeo primaacuteriarsquo - termo um tanto

deprimente para a instituiccedilatildeo outrora respeitada e conhecida como refeiccedilatildeo

A refeiccedilatildeo compartilhada natildeo eacute algo insignificante Trata-se de um dos fundamentos da

vida em famiacutelia o lugar onde as crianccedilas aprendem a arte da conversaccedilatildeo e adquirem

haacutebitos que caracterizam a civilizaccedilatildeo repartir ouvir ceder a vez administrar

diferenccedilas discutir sem ofender (POLLAN 2014 p16 grifo do autor)

A autonomia agrave eneacutesima potecircncia deixa de ser uma capacidade para tornar-se uma redoma

Acabamos tornando-nos seres livres em excesso talvez Por termos pressa querermos prazeres e

independecircncia extremos sobreviver passou agrave categoria de um lsquotanto fazrsquo em prol do proveito

maacuteximo do instantacircneo Vale retomar a reflexatildeo de Karl Jaspers sobre a consciecircncia do eu

definida por limites externos e reais nossa autossuficiecircncia eacute delimitada pela dependecircncia que

temos de recursos externos como por exemplo os bens alimentares e das pessoas significativas

em nossa vida Dependemos desses bens assim como dos relacionamentos familiares afetivos e

profissionais todos necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia do ponto de vista fiacutesico e psiacutequico

A autonomia conquistada para sobrevivermos na evoluccedilatildeo da espeacutecie chegou a um grau

de importacircncia em nosso universo contemporacircneo que parece ter ultrapassado o instinto de

preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo Viver a liberdade as vontades e

prazeres sobrepuja o proacuteprio sobreviver Autonomia e sobrevivecircncia parecem ter soltado as matildeos

111

34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI

A leitura do romance Quarenta dias permite identificar a cozinha presente em trecircs

periacuteodos principais da narrativa representados respectivamente por trecircs elementos especiacuteficos

O primeiro aparece nas paacuteginas iniciais quando Alice comeccedila a relatar em seu caderno o

periacuteodo que antecedeu a mudanccedila para Porto Alegre lembrando-se do egoiacutesmo de Norinha sua

filha desde quando ainda morava em Joatildeo Pessoa Tais recordaccedilotildees fornecem pistas do

comportamento da moccedila ao determinar as transformaccedilotildees na vida da matildee para satisfazer seus

interesses

O segundo elemento abrange os primeiros dias da chegada de Alice a inconformidade

com a nova moradia onde a cozinha que define como lsquode show-roomrsquo expressa uma atmosfera

impessoal e asseacuteptica agrave qual ela natildeo consegue se adaptar Aparece nesta etapa o choque de sua

nova realidade e a tentativa de aceite de todas as mudanccedilas de vida impostas pela filha

A importacircncia de refletir sobre os dois elementos apresentados acima estaacute no fato de esses

demonstrarem Alice em sua vida em Joatildeo Pessoa e logo na chegada em Porto Alegre Os dois

periacuteodos expressam o comportamento de Norinha como explicaccedilatildeo para sua conduta egoiacutesta em

relaccedilatildeo agrave matildee e expressam tambeacutem a relaccedilatildeo de Alice com a consciecircncia de si mesma e com a

autonomia Assim os dois periacuteodos anteriores agrave procura por Ciacutecero descritos por ela agrave Barbie

em seu caderno anunciam o porquecirc de desejar a retomada de si mesma durante os dias em que

transplanta sua vida para o espaccedilo urbano

O terceiro elemento por fim refere-se ao tema deste capiacutetulo a comida como

representaccedilatildeo da necessidade de autonomia vinculada ao processo de tomada de consciecircncia de

si incluindo suas escolhas necessidades de sobrevivecircncia gostos e memoacuterias gustativas que satildeo

parte de sua identidade Nesse terceiro elemento que ocupa a maior parte da anaacutelise encontra-se

uma cozinha transplantada para o universo urbano espaccedilo que Alice habita nos quarenta dias

Junto agrave comida expressa por carrinhos de pipoca botecos moradias em vilas- onde lhe

oferecem cafeacute chimarratildeo e algo para comer- padarias e um restaurante de rodoviaacuteria estaacute a

representaccedilatildeo de uma vida cujo cenaacuterio eacute o proacuteprio espaccedilo da cidade no dormir no banhar-se no

comer Eacute neste territoacuterio que Alice procura a si mesma enquanto em suas andanccedilas ela pergunta

por um desconhecido Ciacutecero Arauacutejo dentro de si vai encontrando aquela que eacute capaz de tomar as

proacuteprias decisotildees de sobrevivecircncia Progressivamente recupera a consciecircncia de si e as suas

112

vontades Um fator que deve ser ressaltado estaacute incluiacutedo neste terceiro elemento a ligaccedilatildeo

mesmo que efecircmera que Alice estabelece com as demais personagens da narrativa na maior

parte das vezes esta ligaccedilatildeo ocorre por intermeacutedio da comida que oferecem a ela ou que ela

partilha como no caso de Lola e Arturo

Eacute possiacutevel observar que haacute situaccedilotildees em que o cuidado de desconhecidos para com ela

ocorre ao oferecerem um chaacute um cafeacute um biscoito nas casas de vilas por onde passa o mesmo

cuidado eacute feito por Penha que coloca com esmero a mesa para Alice no restaurante da

rodoviaacuteria tratando-a com gentileza e camaradagem ou pela proacutepria Milena que cuida de Alice

com chaacute e canja de galinha no iniacutecio da histoacuteria quando esta teria voltado doente de sua visita a

Jaguaratildeo Ateacute mesmo Zelima que aparece na cena em que a protagonista se engasga com a

pipoca no Hospital de Pronto Socorro tem uma atitude de cuidado e de preocupaccedilatildeo para com

ela oferecendo-lhe aacutegua e acompanhando sua melhora

Estas breves expressotildees de carinho e zelo atraveacutes do alimento representam na obra a

nutriccedilatildeo que o cuidado interpessoal oferece muitas vezes na linguagem do alimento na vivecircncia

de Alice em sua nova vida porto-alegrense A capacidade de despertar sentimentos de cuidado de

afeto e de preocupaccedilatildeo da parte de outras pessoas demonstra caracteriacutesticas de uma Alice que

retoma o contato consigo que se reencontra

Mesmo com todo o trauma que atravessa a personagem eacute capaz de estabelecer viacutenculos

durante seus caminhos ainda que sejam breviacutessimos ilustram um aspecto de sua personalidade

Eacute algo seu que natildeo se perdeu com o roubo de sua autonomia e eacute justamente por seu modo de ser

que vai estabelecendo pontes para chegar a algum desfecho de sua procura durante a histoacuteria

pontes atraveacutes da comunicaccedilatildeo com as pessoas e comunicaccedilatildeo atraveacutes da comida que lhe eacute

servida das informaccedilotildees que lhe satildeo dadas do cuidado amistoso como no caso de Lola e de

Milena

Embora o foco do presente capiacutetulo seja a abordagem da conquista da autonomia da

personagem atraveacutes de suas decisotildees pela sobrevivecircncia eacute importante enfatizar que Alice em sua

vida em Joatildeo Pesssoa tinha tal autonomia Aleacutem de ter criado sua filha praticamente sozinha

tinha apartamento proacuteprio amigos e projetos reconhecimento de sua atividade profissional como

a lsquosensata Professora Poacutelirsquo conforme diversas vezes se denomina durante a narrativa Essa

capacidade sofreu abrupta reduccedilatildeo pela interferecircncia da filha quando definiu que a matildee iria se

transferir para Porto Alegre para cuidar do futuro neto

113

Este eacute entatildeo o primeiro elemento a ser abordado o egoiacutesmo da filha A conduta de

Norinha deveu-se a esse egoiacutesmo ao natildeo pensar no desejo de Alice e sim nos proacuteprios interesses

Apenas quando escreve a longa lsquocartarsquo para Barbie depois de sua jornada pela cidade a

protagonista eacute capaz de se recordar de episoacutedios antigos com a filha Esses eventos jaacute

denunciavam a postura da moccedila desde o comeccedilo da juventude O trecho a seguir mostra uma

dessas recordaccedilotildees

Ainda meio adormecida fechei a janela e voltei pra cama naquela madorna jaacute perto de

acordar de vez e entatildeo comecei a reviver cenas bobas de muito tempo atraacutes sem

importacircncia completamente esquecidas agora niacutetidas em sonho ou na minha memoacuteria

por que seraacutecoisas assim como o dia em que estava um friozinho excepcional pra

Joatildeo Pessoa e resolvi fazer uma sopa quente pro jantar aproveitando umas batatas-

baroas que tinha achado no mercado Batata-baroa saudade do siacutetio do meu avocirc uma

raridade na cidade mais batata inglesa cenoura cebola e caldo de galinha tudo de bom

O cheiro da sopa no fogo jaacute tinha impregnado a casa quando Nora chegou Vai fazer

sopa hoje Matildeiacutenha Que horas Jaacute estaacute pronta se quiser eacute soacute bater no

liquidificadorComo nunca me esperava pra cear pois iacutea correndo pra faculdade

apenas ouvi vagamente que estava mexendo na cozinha enquanto eu assistia agrave novelinha

das seis Tatildeo distraiacuteda com a novela nem percebi que ela jaacute tinha saiacutedo Tudo bem ateacute

que fui tratar de pocircr a mesa pra mim Soacute tinha sobrado menos de uma concha rasa de

sopa Pasme Barbie ela tinha se servido na tigela do feijatildeo Fiquei danada na hora mas

nada a fazer do que usar a imaginaccedilatildeo Jaacute eram quase sete e meia da noite Entatildeo botei

mais um copo dacuteaacutegua com uma colher de maisena meio tablete a mais de caldo de

galinha e cozinhei ali dentro uma porccedilatildeo de massinha pra sopaque bom que tinha em

casa Tomei entatildeo o resultado como se estivesse tudo normal com apenas um leve

gostinho de batata-baroamas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada

de matildeo-de-vaca (REZENDE 2014 p22)

Vale ressaltar a atitude complacente de Alice frente ao egoiacutesmo da filha no episoacutedio

narrado acima expressa pela frase lsquomas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada

de matildeo-de-vacarsquo A seguir outro fragmento em que Norinha se apossava dos chocolates e das

guloseimas da matildee Alice reflete em sua carta para Barbie sua obediecircncia agraves demandas da moccedila

devidas agraves dietas no comprar lsquocoisas estranhasrsquo na feira

Diversos pontos satildeo referidos como o fato de a filha natildeo se sentar mais agrave mesa com ela e

a atitude de desperdiccedilar as gemas de ovo em suas dietas Um aspecto interessante do trecho

abaixo eacute a memoacuteria de sua avoacute fazendo lsquofios dacuteovosrsquo e quindins como marca de afeto e de

partilha pela comida Assim haacute o contraste do alimento ora como representaccedilatildeo do egoiacutesmo da

filha ao lsquoroubarrsquo seus chocolates e as guloseimas ora como expressatildeo do afeto compartilhado

pela avoacute atraveacutes dos doces que fazia

Cabe ainda a reflexatildeo mais uma vez Alice menciona sua complacecircncia para com a filha

nas frases lsquofielmente obedeciarsquo e lsquoeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar

114

discussatildeorsquo Volta-se desse modo para a frase apresentada no primeiro trecho referida acima

lsquonatildeo dei um pio pra natildeo ser chamada de matildeo-de-vacarsquo A postura de Alice em relaccedilatildeo agrave Norinha

tinha sempre um elemento de passividade de obediecircncia agraves normas e aos quereres da filha

anunciando que a postura da uacuteltima em definir a mudanccedila de Alice mesmo contra a vontade desta

era a continuidade de um comportamento mais antigo na relaccedilatildeo entre elas A protagonista conta

agrave Barbie

Vivia acrescentando coisas estranhas nas minhas listas de feira que eu fielmente

obedeciaeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar discussatildeo Claro de

vez em quando ela dava umas escapadas na dieta principalmente comendo meus

chocolates e umas guloseimas de que gosto e comprava pro meu lanche Afinal eu natildeo

estava de dieta Quase natildeo se sentava agrave mesa comigo comia em peacute na cozinha ia pro

quarto dela comer as gororobas dieteacuteticas que fazia ou se enchia soacute de claras de ovo

jogando as gemas fora Parei de tentar aproveitar pois natildeo dava pra tomar gemada todo

dia natildeo eacute e Voacute natildeo estaacute mais neste mundo pra me ensinar a fazer fios dacuteovos ou

quindinse as gemas que Norinha descartava eram branquelas nada daquele amarelo

vivo dos ovos de capoeira do siacutetio Seraacute que ainda existem fios dacuteovos (REZENDE

2014 p23)

O trecho seguinte refere-se ao segundo elemento assinalado ou seja a inconformidade de

Alice com sua nova vida em Porto Alegre no apartamento que natildeo aceita como seu Nas

referecircncias agrave cozinha lsquode show-roomrsquo a protagonista expressa suas impressotildees sobre o local

montado por Norinha para sua habitaccedilatildeo Haacute diversos momentos em que a comida representa seu

desacerto com a vida montada em um territoacuterio sem referecircncias afetivas sem lembranccedilas dos

quais o fragmento abaixo eacute um exemplo

Alice mostra uma resignaccedilatildeo compulsoacuteria com as ordens da filha uma aparente

concordacircncia com as tentativas de Norinha de abater-lhe a autonomia eacute na contrariedade com o

cenaacuterio esteacuteril da cozinha que define como lsquoalheiarsquo e com os alimentos que tem em casa com as

compras que a filha faz e guarda nos armaacuterios e gavetas que se mostra seu modo de perceber e

de sentir as imposiccedilotildees da mesma

A inconformidade com a vida porto-alegrense aparece em diversas situaccedilotildees na chegada

de Alice ao apartamento aleacutem do trecho acima Percebo em vaacuterios pontos a revolta da

protagonista com os detalhes da cozinha como espaccedilo fiacutesico em outros aparece seu lsquodesacertorsquo

atraveacutes de uma voz criacutetica e ateacute mesmo irocircnica com os alimentos gauacutechos

Assumi consciente e disciplinadamente a atitude que eu jaacute vinha ensaiando havia algum

tempo do ET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes muito maiores

que ele Eu continuava a encolher Engoli obediente tudo o que estava posto sobre a

previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de vidro num canto da sala o chaacute as

115

torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar de chimia a

fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial trazido

natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite morno (REZENDE 2014

p41)

Eacute possiacutevel ler a atitude de engolir lsquoobedientersquo o alimento como representativa de sua

percepccedilatildeo sobre si mesma de ldquoET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes

muito maiores do que elerdquo A obediecircncia em comer aqui ilustra a frase ldquoEu continuava a

encolherrdquo Ela natildeo via o que estava sendo posto na mesa como cuidado com sua chegada por

preocupaccedilatildeo genuiacutena com seu bem-estar entendia isto sim como ldquobenevolecircncia de terraacutequeos

muito maioresrdquo A forccedila da comparaccedilatildeo estaacute no fato de que o comer tambeacutem se tornou objeto de

controle da filha a quem ela passava a ldquoobedecerrdquo Passava a ocupar assim o papel que descreve

como ldquofilha da minha filhardquo (REZENDE 2014 p74)

Neste trecho lecirc-se a contrariedade de Alice na referecircncia que faz agrave cozinha como espaccedilo

fiacutesico ldquo[] tudo o que estava posto sobre a previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de

vidro no canto da salardquo (REZENDE 2014 p74) Ainda que se refira agrave mesa como estando na

sala atribui a ela papel conotaccedilatildeo ligada agrave funccedilatildeo da cozinha como extensatildeo desta pois eacute onde

estatildeo na cena os produtos alimentares oferecidos

Na menccedilatildeo que ela faz a esses produtos estaacute expressa tambeacutem a revolta atraveacutes da voz

irocircnica ldquo[] o chaacute as torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar

de chimia a fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial

trazido natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite mornordquo (REZENDE 2014

p41) Assim eacute na cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico que se expressa na chegada de Alice a

Porto Alegre a representaccedilatildeo de sua recusa em aceitar a vida que lhe foi imposta Haacute referecircncias

expliacutecitas agrave sua revolta mas a forma material da contrariedade eacute demonstrada nessa etapa da

narrativa em diversos episoacutedios ligados agrave cozinha

A manhatilde seguinte agrave chegada no apartamento continua tendo essa peccedila da casa como

cenaacuterio da inconformidade de Alice quando Norinha chega com as compras

Naquela primeira manhatilde sem coragem de decifrar os armaacuterios e eletrodomeacutesticos desta

cozinha metida a besta eu ainda de camisola e roupatildeo agrave mesa do canto da sala

preguiccedilosamente acabando de recuperar como cafeacute da manhatilde os restos do lanche da

madrugada que ficaram largados ali bolo torradas amanhecidas chimia queijo serrano

chaacute frio ouvi barulho de chave na fechadura e me assustei Norinha pelo visto agora

detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas tambeacutem da chave da minha

moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha com almoccedilo

Bem paraibano viu Matildeiacutenha pra vocecirc ir se acostumando aos poucos a quentinha

116

equilibrada entre montes de sacolas de compras Pra abastecer a despensa de minha

Maacuteinha adorada que vai ser tratada como uma duquesa pela sua filhinha preferida []

meteu-se diretamente na cozinha Que tive que fazer malabarismos para conseguir passar

no supermercado pra conseguir passar no supermercado e trazer suas compras depois a

gente acerta natildeo se preocupe com isso por hoje vou ter de sair correndo que este dia da

semana eacute sempre pesadiacutessimo na universidade agraves vezes natildeo daacute tempo nem de fazer xixi

(REZENDE 2014 p47-48 grifo nosso)

A frase em grifo representa a percepccedilatildeo de Alice sobre o controle que a filha assumia

sobre sua vida ldquoNorinha pelo visto agora detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas

tambeacutem da chave da minha moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha

com almoccedilordquo (REZENDE 2014 p48) O controle sobre o cardaacutepio expressa a inconformidade

da protagonista com as imposiccedilotildees de Norinha na sua vida por exemplo escolhendo um almoccedilo

lsquobem paraibano viu Matildeiacutenha para vocecirc ir se acostumando aos poucosrsquo como ela refere Aleacutem

deste aspecto as sacolas de compras lsquoPra abastecer a despensa de minha Matildeiacutenha adoradarsquo

tambeacutem satildeo para Alice representativas dos mandos de sua filha

A direccedilatildeo da filha sobre a rotina da personagem ocorre em detalhes cotidianos como de

fazer e de guardar as compras de supermercado na cozinha do apartamento levar a lsquoquentinharsquo

para o almoccedilo e definir na percepccedilatildeo de Alice que ela deve sair agrave rua entre outras condutas

Tais comportamentos ligados agrave alimentaccedilatildeo demonstram a atitude de Norinha interferindo na

autonomia da matildee procurando ceifar sua capacidade de cuidar de uma nova vida naquilo que eacute

mais individual na sobrevivecircncia a nutriccedilatildeo A contrariedade de Alice agrave cozinha do apartamento

reflete em muito a percepccedilatildeo que ela tem deste ao longo da narrativa em suas referecircncias eacute

possiacutevel compreender que se vecirc presa naquilo que por diversas vezes chama de lsquotabuleiro de

xadrezrsquo Em grande parte essa impressatildeo se deve ao aspecto do local mas o sentimento

transcende essa caracteriacutestica no lsquotabuleirorsquo Alice tem sua liberdade tolhida

O trecho a seguir representa a relaccedilatildeo que se estabelece entre elas nesta etapa inicial da

chegada de Alice a Porto Alegre

Fiquei calada soacute olhando com a boca cheia o naco de queijo grande demais difiacutecil de

mastigar e engolir como todo o resto que havia tempos jaacute vinha entalado na minha

garganta Nem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia em meu nome

gritando aqui da cozinha enquanto desensacava os pacotes e escondia as coisas atraacutes de

sei laacute qual dessas dezenas de portinhas brancas por cima desses azulejos pretos [] e

por aiacute foi Norinha perguntando e respondendo por mim ateacute esvaziar a uacuteltima sacola

bater pela uacuteltima vez todas as portas e gavetas dos armaacuterios da geladeira O almoccedilo eacute soacute

esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenha (REZENDE 2014 p48-49)

117

Um dos pontos que deflagram a atitude de Norinha em ceifar a autonomia de Alice estaacute na

frase lsquoO almoccedilo eacute soacute esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenharsquo como se a matildee natildeo soubesse disso

ou natildeo tivesse capacidade de percebecirc-lo sozinha A filha infantiliza a personagem tomando por

ela decisotildees e condutas (como ir ao supermercado e guardar as compras nos armaacuterios da

cozinha) Ateacute mesmo a verbalizaccedilatildeo das respostas eacute feita por ela sem dar agrave Alice a possibilidade

de expressar-se como na frase lsquoNem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia

em meu nome gritando aqui da cozinharsquo

A resposta emocional de Alice a este iniacutecio de sua vida na nova cidade ainda antes da

revelaccedilatildeo de que Norinha e o esposo adiaram os planos de gravidez estaacute representada no

fragmento a seguir

Fiquei laacute Alice diminuindo mais ainda imprensada entre a mesa e a parede nem sei

quanto tempo tentando me convencer de que ela natildeo se meteria mais de surpresa pela

porta adentro e sabendo que pra rua eu natildeo ia como queria minha filha e natildeo ia mesmo

soacute porque era isso que ela tinha ordenado Natildeo ia natildeo de birra sem nenhuma ideia

nem vontade de fazer nada a natildeo ser andar para um lado e outro naquele tabuleiro de

xadrez minhas pernas dissipando a energia acumulada pela raiva olhar as malas ainda

fechadas as portas desses armaacuterios da cozinha fechadas a pilha de caixas fechadas e de

relance a minha cara fechada refletida na enorme televisatildeo da sala em outra menor no

quarto nos vaacuterios espelhos e vidraccedilas espalhados por aiacute O almoccedilo ficou aqui esfriando

no balcatildeo da cozinha ateacute o anoitecer Daiacute engoli aquilo frio mesmo enquanto deixava o

telefone tocar tocar tocar ateacute desistirem (REZENDE 2014 p51)

Entretanto a protagonista encontra em si mesma a capacidade de autonomia que vinha

adormecida desde quando comeccedilou o processo de mudanccedila determinado pela filha Comeccedila a

aceitar as modificaccedilotildees tomar conta da proacutepria rotina decidir adaptar-se ao apartamento e agrave nova

vida A decisatildeo de aceitar a vida imposta pela filha eacute tomada com autonomia com a sensatez que

remonta a lsquosensata professora Poacutelirsquo Alice torna a instalaccedilatildeo em sua nova moradia algo que

parece originar de uma decisatildeo sua e natildeo apenas de uma imposiccedilatildeo de Norinha Entretanto

expressa que a decisatildeo para tal eacute racional assim como a organizaccedilatildeo metoacutedica da casa que

realiza Sugere que estaacute fazendo de conta que esqueceu lsquode todo o restorsquo

E a sensata professora Poacuteli acabou vencendo pelo menos provisoriamente porque

acordei logo cedo disposta a deixar pra laacute o ressentimento ser realista encarar as coisas

como eram agora como gente grande voltar ao meu tamanho normal pulei da cama me

vesti decentemente explorei as provisotildees que Norinha tinha deixado fiz e tomei meu

cafeacute e danei a desmanchar malas e pacotes a encher gavetas prateleiras e cabides tudo

muito bem-arrumado metodicamente pensando soacute naquilo que tinha concretamente

diante de mim esquecida ou fazendo de conta que esquecia de todo o resto Pronto

[] botando ordem fora e dentro de mim pensava Pesquisei nos armaacuterios da cozinha

achei o que precisava fiz um almocinho pus toalha louccedila talher aqui mesmo nessa

118

espeacutecie de mesa sem pernas de pedra preta embutida na parede e comi com certo gosto

depois de natildeo sei quanto tempo de fastio (REZENDE 2014 p52-53)

Quando Alice menciona lsquopesquisei nos armaacuterios da cozinha achei o que precisava fiz

um almocinho pus toalha louccedila talherrsquo estaacute manifestando sua decisatildeo de procurar acostumar-se

aos detalhes da nova rotina como colocar a mesa O trecho a seguir complementa essa tentativa

Subi de volta confiante tinha tomado minha primeira iniciativa depois de tanto tempo

e isso fazia sentir-me melhor Abri mais umas caixas e arrumei o conteuacutedo Fiz almoccedilo

direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada sesta de uma vida

normal li umas paacuteginas de uma revista apanhada no aviatildeo e como sempre cochilei

logo (REZENDE 2014 p61)

A frase lsquofiz o almoccedilo direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada

sesta de uma vida normalrsquo demonstra sua procura por se adaptar ao cotidiano Alice procura

retomar as reacutedeas da nova vida mesmo sendo esta imposta a ela reassumindo seus afazeres

(lsquolimpar a cozinharsquo) e costumes (a lsquosagrada sesta de uma vida normalrsquo) Tudo isso relata agrave Barbie

no caderno posteriormente sabendo que tais posturas representavam apenas a tentativa em

ultrapassar a dor emocional pela saiacuteda de seu habitat em Joatildeo Pessoa A existecircncia compulsoacuteria

volta a aparecer quando eacute convidada para jantar na casa da filha ao mencionar lsquoeu jaacute estava

pegando jeito de me comportar como filha da minha filharsquo conforme se lecirc abaixo

Pois Umberto vai passar aiacute pelas sete horas que eu vou correr pra preparar um

comerzinho bem bom e trazer a senhora pra jantar com a gente botar a conversa em dia

vai ser uma deliacutecia vaacute se aprumar bem bonita que daqui a pouco ele estaacute batendo aiacute

Que remeacutedio senatildeo obedecer Eu jaacute estava pegando jeito de me comportar como filha da

minha filha (REZENDE 2014 p74)

No jantar referido Alice eacute informada por Norinha sobre a viagem do casal para o exterior

postergando o projeto da maternidade motivo de sua mudanccedila para Porto Alegre No primeiro a

lsquolasanha da verdadeirarsquo o lsquomelhor vinho da serra gauacutecharsquo e a lsquocuca de arrasarrsquo satildeo elementos

regionais que a filha oferece como forma ao que parece de apresentar agrave sua matildee as benesses do

territoacuterio em que esta deveraacute habitar no segundo a expressatildeo lsquoe eu soacute com a tarefa de garfar o

que me serviam e emitir de vez em quanto um huuuummm apreciativorsquo exprime a posiccedilatildeo

passiva que a protagonista reconhece assumir frente agraves imposiccedilotildees da filha Neste jantar tem fim

o periacuteodo de interaccedilatildeo de Alice com Norinha na narrativa demarcando a conclusatildeo de uma etapa

da histoacuteria a chegada da personagem agrave cidade

119

A seguir dois fragmentos que retratam a comida como fator de suposta agregaccedilatildeo

familiar mas escondem atraacutes do lsquoFiz jantar especialrsquo o desrespeito e o egoiacutesmo da moccedila quanto

agrave sua matildee Esta ficaraacute sozinha em uma cidade desconhecida sem referecircncias apoacutes ter tido que

abandonar sua terra natal em nome da exigecircncia da filha A atitude de falar da cuca como um

doce de seu completo desconhecimento ilustra agrave escassa familiaridade de Alice com as tradiccedilotildees

da regiatildeo como na frase lsquoum bolo recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima

gostoso de fatorsquo Os trechos definem a atmosfera aparentemente agradaacutevel da refeiccedilatildeo em

famiacutelia imposta por Norinha antes de esta fazer a revelaccedilatildeo que interferiraacute na vida de Alice

culminando na busca de sua autonomia O papel da comida neste ponto do livro eacute o de lsquoadoccedilarrsquo

a personagem para receber a notiacutecia da viagem da filha e do genro

Fiz jantar especial uma lasanha da verdadeira o melhor vinho da serra gauacutecha uma

cuca de arrasar vocecirc vai provar hoje uma cuca tudo receita da minha sogra vai adorar

jaacute estaacute com apetite natildeo eacute soacute de ouvir dizer entatildeo como estaacute sendo sua primeira

semana em Porto Alegre (REZENDE 2014 p74)

Umberto parecendo distraiacutedo dando soacute palpites lacocircnicos sempre concordando com a

mulher dele e eu soacute com a tarefa de garfar o que me serviam e emitir de vez em quando

um huuuummm apreciativo ateacute terminar de comer e aprovar a tal cuca um bolo

recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima gostoso de fato

(REZENDE 2014 p75)

A partir desse jantar Alice volta para sua casa e suspende os contatos com o casal Tem

iniacutecio assim o papel da comida ligada agrave recuperaccedilatildeo da autonomia perdida

Quando sai para a rua imbuiacuteda da missatildeo de procurar por Ciacutecero Alice sabe que sua

decisatildeo ultrapassa a descoberta do rapaz Eacute por si mesma pela capacidade de cuidar de si de

decidir mesmo as questotildees mais baacutesicas de sobrevivecircncia apoacutes Norinha ter tomado conta de sua

vida e de suas resoluccedilotildees Alice decide decidir Nesse sentido passa a guiar-se por suas

necessidades vitais como fome sono e banho por exemplo todos eles transplantados para o

espaccedilo urbano onde decide habitar apenas para natildeo voltar para o lsquotabuleiro de xadrez seu

apartamento

Mesmo quando esquece onde mora a permanecircncia nas ruas continua sendo uma escolha

pois poderia ligar para a prima Elizete que tem seu endereccedilo no entanto opta por natildeo fazecirc-lo

Durante o periacuteodo duas buacutessolas guiam seus rumos a procura por Ciacutecero que daacute sentido agrave

peregrinaccedilatildeo como um aacutelibi para justificar as andanccedilas e o natildeo-retorno para casa e a

120

manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do que escolhe comer de onde decide dormir e banhar-se

por exemplo

Uma das primeiras decisotildees de Alice eacute a de esconder-se em casa nos primeiros dias apoacutes

a revelaccedilatildeo sobre a viagem de Norinha e Umberto para o exterior e o adiamento dos planos que

ocasionaram sua mudanccedila para Porto Alegre

Cinco dias de fartura de letras quase jejum de qualquer outra comida o silecircncio cortado

soacute ateacute o comeccedilo da tarde do segundo dia pela ainda prazerosa estridecircncia do telefone

com perverso gosto de vinganccedila que me enchia a boca e quase me bastava como

simulacro de refeiccedilatildeo (REZENDE 2014 p87)

Protege-se em casa lendo livros e deixando o telefone tocar a nutriccedilatildeo estaacute fora do eixo

da comida nesse sentido pois Alice alimenta-se do isolamento que consegue estabelecer Assim

esse eacute o iniacutecio da retomada de sua autonomia atraveacutes das escolhas que comeccedila a fazer por si de

modo independente ao controle da filha Decide natildeo mais se submeter mesmo que a atender o

telefone A nutriccedilatildeo estaacute baseada na autonomia na independecircncia que retoma mais do que nos

proacuteprios alimentos nesse ponto da narrativa Quando refere lsquocom perverso gosto de vinganccedila que

me enchia a boca e quase me bastava como simulacro de refeiccedilatildeorsquo o que se pode ler eacute que a

salvaguarda da sobrevivecircncia estava apoiada na sua capacidade de reagir agrave filha de impor sua

vontade contrariando a imposiccedilatildeo de Norinha

A histoacuteria sofre a guinada maior quando Alice recebe a incumbecircncia de procurar por

Ciacutecero a missatildeo daacute sentido ao seu caminho aos seus dias A missatildeo de encontrar o rapaz eacute o

fator que move a personagem a sair de seu apartamento e a desafiar-se em espaccedilos urbanos

desconhecidos de uma cidade que ainda eacute para ela uma cidade estranha Este seraacute tambeacutem um

modo de se esconder da filha de Elizete e de todos que a possam encontrar Alice decide

descobrir o paradeiro de Ciacutecero para encontrar consigo mesma Aquela lsquosensata professora Polirsquo

capaz de tomar decisotildees e de gerenciar a proacutepria vida estaacute desaparecida de si

Na partida para a Vila Maria Degolada ela tem o primeiro contato com a comida das ruas

e botecos Ao sair de casa sem ter se alimentado obriga-se a comer para saciar a fome esta eacute a

primeira expressatildeo do comer como decisatildeo de sobrevivecircncia

Passei diante de uma portinha aberta quase invisiacutevel entre duas casas um balcatildeozinho

prateleiras com umas poucas mercadorias e uma caixa de vidro com lamentaacuteveis

empadas e coxinhas ou coisa parecida sobrevoadas por uma mosca preguiccedilosa Era

pouco mais que aqueles fiteiros de rua laacute de Joatildeo Pessoa e pode ter sido por isso entrei e

por pouco natildeo pedi uma tapioca de queijo Pedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer

121

de comer Leite natildeo havia fui soacute de cafeacute e uma coxinha engordurada de anteontem

caloria bastante para eu continuar minha peregrinaccedilatildeo Quem servia era um homem jaacute

idoso nada a ver com as imagens de gauacutecho de churrascaria que eu tinha pregadas na

imaginaccedilatildeo nem alto nem louro nem moreno bigodudo de chapeacuteu preto lenccedilo

vermelho laccedilo no ombro e bombacha bufante Baixinho e coxinho com um resto de

bigode fino um bonezinho achatado na careca camisa branca encardida e um lenccedilo

branco amarrado no pescoccedilo Comi paguei e me animei a perguntar pra onde ficava a tal

Vila Maria Degolada (REZENDE 2014 p96-97)

lsquoPedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer de comerrsquo eacute uma das frases que aponta para

o papel da comida nesse momento da histoacuteria o de saciar a fome O alimento em sua funccedilatildeo

primordial eacute o mote desse trecho jaacute que aqui Alice natildeo quer comer algo saboroso e sim que lhe

forneccedila forccedilas para seguir o percurso

Segui em frente olhando pro chatildeo emburrada passo firme e decidido lsquoCiacutecero Arauacutejo

Vila Maria Degolada Ciacutecero Arauacutejo Vila Maria Degoladarsquo revigorada pelo sal a

gordura e a cafeiacutena ateacute chegar manhatilde alta numa avenida larga sem ter mais nenhuma

ideia de pra que lado ficava o apartamento onde eu devia morar (REZENDE 2014

p97)

A atitude determinada de Alice frente ao objetivo eacute o lsquopasso firme e decididorsquo

complementado pela referecircncia que ela faz ao efeito da comida em seu acircnimo para chegar agrave Vila

Maria Degolada lsquorevigorada pelo sal a gordura e a cafeiacutenarsquo A personagem expressa nessa

uacuteltima frase o reforccedilo ao papel do alimento em saciar a fome e em fornecer energia

Nos caminhos que vai percorrendo junta folhetos de propaganda papeacuteis soltos e

guardanapos todos como base para escrever pedaccedilos de livros que encontra Um desses folhetos

representa a visatildeo de Alice sobre sua avoacute que aproveitava as gemas para preparar doces de sua

origem portuguesa e sobre sua filha que desperdiccedilava as gemas para preparar omeletes de

claras para a dieta Essa evocaccedilatildeo de lembranccedilas em relaccedilatildeo agrave avoacute e agrave filha a partir de uma

divulgaccedilatildeo impressa traz mais uma das funccedilotildees do alimento nessa etapa da histoacuteria aleacutem da

expressatildeo de autonomia o resgate de si atraveacutes das recordaccedilotildees de suas origens Lembrar-se de

sua avoacute eacute remontar uma parte de sua proacutepria construccedilatildeo pessoal e portanto estaacute incluiacutedo na

procura de Alice por sua identidade separada das ordens e determinaccedilotildees de Norinha

Uma ialorixaacute me deu um papelzinho com receita de uma simpatia natildeo exatamente pra

achar filho perdido era pra juntar famiacutelia desunida Mas pode crer que ajuda se tu fizer

com feacute soacute precisa quatro quindinsonde eacute que eu iacutea achar quindins veio-me por um

instante a lembranccedila das gemas de ovo desperdiccediladas por Norinha saudade da minha

avoacute portuguesa exilada laacute no sertatildeo e de seus doces de ovos os quindins que ela

aprendeu a fazer com coco lamentando sempre natildeo poder fazer sua brisa do Lis como a

de Leiria por falta das amecircndoasescrever o pedido pocircr os quindins em cima polvilhar

accediluacutecar cristal e espetar nos doces quatro flores amarelas quatro moedas acender quatro

122

velas e deixar tudo numa praccedila olha aiacute Barbie o papelzinho ficou junto com o resto dos

que se foram acumulando na minha mochila com as costas cheias de frases copiadas de

livros (REZENDE 2014 p116-117)

A necessidade de encontrar consigo mesma estaacute pungente na personagem uma soacute palavra

que remeta a seu passado serve para as recordaccedilotildees surgirem como os lsquoquindinsrsquo que na

verdade natildeo servem como alimento e sim como parte da simpatia Eacute como se a palavra fosse

uma porta para suas lembranccedilas e uma vez aberta faz que muito seja recordado e refletido

Alice segue pela Vila Maria Degolada agrave procura de Ciacutecero e vai tendo contato com

moradores que a ajudam andando pela vila atraacutes de pistas do rapaz Durante as horas que

permanece ali a comunicaccedilatildeo entre ela e as pessoas que a recebem eacute feita em grande parte pelos

alimentos que oferecem para ela comer ou beber Alice descobre novos sabores regionais na

receita ou apenas no nome e sobretudo conhece novas pessoas ao longo do trajeto O que decide

comprar nos botecos ou aceitar nas casas como os salgados os biscoitos ou o cafeacute ralo deve-se

principalmente a satisfazer as necessidades fiacutesicas de fome e sede Mais uma vez a comida

representa a manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Entretanto surge para essa novo papel o de saciar a

necessidade de contato humano de trocas e de interaccedilatildeo social

Nem sei quantos cafeacutes ralos engoli Pra te animar vai bebe nem sei quantas cuias de

chimarratildeo recusei Natildeo sou daqui natildeo sou da Paraiacuteba na minha terra natildeo eacute costume

cheguei haacute pouco ainda natildeo aprendi a tomar Mas logo acostuma que um amargo eacute coisa

boa demais bom pra sauacutede pro estocircmago pra tudo Todos sem falhar queriam ajudar

indicavam uma rua uma viela uma direccedilatildeo onde sim havia gente de lsquolaacutersquo Sei laacute quantas

coxinhas empadas comi e paguei pelas biroscas da Vila Maria Degolada nome que eu

logo parei de usar porque percebi que natildeo era do agrado de ningueacutem ali Ia aprendendo

coisas e nomes a comer dedo-de-negro que logo domestiquei como parente de nossa

sorda cortada em tiras e groacutestolis que identifiquei como a calccedila-virada da minha avoacute

portuguesa Tudo o que me fizesse esquecer Norinha e o apartamento preto e branco me

servia bem (REZENDE 2014 p117)

A passagem pela vila na procura por Ciacutecero tinha outra funccedilatildeo primordial dentro de

Alice a de natildeo retornar para o apartamento e para a vida que lhe foi imposta Com tal propoacutesito

decide prosseguir Percebe-se capaz de fazer escolhas a seu favor quando se pergunta lsquoe agorarsquo

pois responde que voltar para o apartamento natildeo lhe atrai lsquode jeito nenhumrsquo

Jaacute passava um pouco das quatro da tarde eu tinha andado desde as sete da manhatilde

sentando-me raras vezes quando alguma mulher mais atenciosa puxava uma cadeira de

dentro de casa e me oferecia pra descansar na sombra ou em algum boteco o tempo de

comer uma empadinha ou uma cueca-virada E agora Voltar pro apartamento natildeo me

atraiacutea de jeito nenhum Por que natildeo continuar pro novo destino provisoacuterio que me

indicaram Apesar de entatildeo jaacute achar tudo aquilo bastante suspeito (REZENDE 2014

p123)

123

Prosseguindo para o Hospital de Pronto Socorro surgem trecircs cenas relevantes em que o

comer eacute expresso como satisfaccedilatildeo da fome e reestabelecimento do acircnimo na primeira Alice

percebe a fome e decide procurar o que comer na segunda come de forma tatildeo afoita as pipocas

que se engasga na terceira eacute socorrida por Zelima senhora que a ajuda reforccedilando que o

cuidado de terceiros tambeacutem tem uma funccedilatildeo quando o comer eacute representado na obra

1) Cansaccedilo absoluto e fome fincaram-me no meio do saguatildeo zonza olhando aquela

larga porta aberta pra nada Um lugar vago num dos bancos era tudo o que me restava

Ali desabei e fiquei de olhos fechados e a cabeccedila pendendo sobre o peito como tantos

outros sentados naquele natildeo lugar esperando minhas pernas pararem de tremelicar

pensando apenas nelas e na sensaccedilatildeo do meu estocircmago oco Natildeo sei quanto tempo parei

ali Lembro-me de que afinal a fome venceu abri os olhos puxei o celular da bolsa pra

ver as horas a bateria estava descarregada procurei em torno e vi um reloacutegio na parede

do saguatildeo jaacute passava das nove da noite levantei-me as pernas agora quase firmes desci

os degraus da porta ateacute a calccedilada buscando algo pra comer e o que havia no meu raio de

visatildeo era uma carrocinha de pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me

desde que horas ele estava ali se tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia

inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido

Cheguei junto dele remexendo a bolsa agrave procura de uns trocados que tivessem restado da

farra de salgadinhos e biscoitos da Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada

desde entatildeo (REZENDE 2014 p147)

2) Puxei um bolinho de notas de dois reais e umas moedas estendi-as ao homem ele

escolheu o que correspondia ao preccedilo do saco de pipocas e me entregou tudo sem

trocarmos uma palavra Escorei-me no poste junto da carrocinha e enfiei na boca de

uma soacute vez o maior punhado de pipocas que pude sem me importar com as poucas que

escaparam e foram ao chatildeo Engasguei-me a boca seca e cheia tentando segurar a tosse

pra natildeo fazer chover mais pipoca pra todo lado mas natildeo consegui as ex-professora Poacuteli

cuspiu um jorro de piruaacutes tossiu de se acabar encostada num poste de lugar nenhum o

mundo escurecendo (REZENDE 2014 p147-148)

3) Zelima sentou-se ao meu lado segurando fielmente o meio copo de aacutegua e o meio

pacotinho de pipocas e assim que me recompus devolveu-me aquele simulacro de

refeiccedilatildeo dizendo Come que tu estaacute fraca bebe o resto da aacutegua para empurrar Soacute

balancei a cabeccedila obedeci ela recolheu os invoacutelucros vazios e foi jogaacute-los numa lixeira

na calccedilada voltou e sentou-se de novo junto a mim em silecircncio (REZENDE 2014

p148-149)

O percurso tem continuidade na manhatilde seguinte quando decide encontrar uma padaria

onde encontra aleacutem da satisfaccedilatildeo da fome um ambiente onde conversa e ri sobre o

desconhecimento de termos regionais como o nome de lsquocacetinhorsquo para o patildeo francecircs Nutre-se

desse modo do alimento e do contato humano ldquoAprumei o espinhaccedilo apanhei a bolsa e saiacute

novamente com passo firme destino certo uma padariardquo (REZENDE 2014 p159) A

protagonista chega no destino esperado saciando a fome de comida e de afeto

Cafeacute com leite cacetinho na chapa e riso me puseram em quase perfeita forma por

dentro e pelos proacuteximos instantes mas restava um tanto consideraacutevel de dor no corpo e

uma vontade enorme de me deitar e dormir decentemente

124

[] Quando saiacute olhei bem o nome da padaria e da rua pra voltar quando precisasse

encontrar um conhecido amigaacutevel como se eu jaacute soubesse quantas vezes precisaria

voltar (REZENDE 2014 p161)

Alice come quando tem fome dorme quando tem sono Respeita a sobrevivecircncia em sua

procura pelo desconhecido Ciacutecero A vida eacute no espaccedilo da rua do parque das avenidas das

padarias das carrocinhas de pipoca e de cachorro-quente

Quem mais usa orelhatildeo neste mundo ocirc Alice te liga no segundo deles o fio do

telefone pendia cortado mas na mesma esquina havia uma lojinha de venda e conserto

de celulares Sim o homem podia carregar pra mim Pelo menos uma carga raacutepida de

emergecircncia ateacute tu chegar em casa soacute dois pilas senta aiacute Abanquei-me no tamborete

oferecido mas meu estocircmago natildeo queria esperar mais nem um minuto e vi pela porta

uma carrocinha de cachorro-quente do outro lado da esquina Fui laacute e voltei trazendo o

patildeo com salsicha montes de mostarda escorrendo no guardanapo de papel e o luxo de

um saquinho de batata frita uma latinha de refrigerante o tamborete agrave sombra a parede

fresca para encostar as costas Seraacute que cochilei

Paguei agradeci saiacute comprei mais um cachorro-quente da carrocinha e natildeo pensei mais

em telefonar a Elizete nem queria saber endereccedilo nenhum nem voltar pra lugar

nenhum soacute continuar agrave toa Agrave toa Que nada (REZENDE 2014 p170-171)

Alice sabe natildeo estar agrave toa volta a ser dona de suas escolhas sejam elas quais forem Vai

retomando a consciecircncia de si mesma dos referenciais de sua histoacuteria de vida das lembranccedilas

ajudam a reconstruir sua identidade como quando refere a recordaccedilatildeo de lsquoum cafeacute com leite que

ao longo da vida sempre me parecia como soluccedilatildeo para pequenas dores pequenos desconfortosrsquo

Um vento mais frio me fez fugir da sombra procurar um resto de sol com vontade de

tomar alguma coisa quente um cafeacute com leite que ao longo da vida sempre me aparecia

como soluccedilatildeo pra pequenas dores pequenos desconfortos e fui em busca de um bar

lanchonete Achei um botequinho que me serviu leite ralo com cafeacute de garrafa teacutermica

ainda havia de aprender a tomar chimarratildeo mas me bastou

Depois de confortada pela bebida morna e accedilucarada saiacute agrave toa de novo esquecida de

Ciacutecero Arauacutejo [] (REZENDE 2014 p176)

Esquecer-se de Ciacutecero Arauacutejo significa neste ponto da histoacuteria que a aproximaccedilatildeo

consigo mesma torna-se mais importante Essa retomada de si atraveacutes do conforto de uma

lsquobebida morna e accedilucaradarsquo corresponde ao respeito aos seus referenciais de memoacuteria durante a

vida Alice vai remontando dados de si peccedilas de um mosaico desordenado pela mudanccedila de vida

mas que agrave medida que segue um percurso aleatoacuterio ou lsquoagrave toarsquo passa a ser o caminho para o

contato com suas caracteriacutesticas Quanto mais retoma a si mesma menos se ocupa de Ciacutecero

Este ocupar-se de si eacute traduzido pela procura por satisfazer as funccedilotildees vitais mas tambeacutem pelos

pequenos confortos que passa a permitir-se obter como a cena que transcorre na rodoviaacuteria

125

Nesse local o lsquoprato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos colherrsquo eacute a

expressatildeo da mudanccedila da personagem ao longo da histoacuteria pois essa passa a querer saciar a fome

com uma refeiccedilatildeo digna e natildeo mais com lanches de rua O garfo e a faca nesse sentido

representam a imagem de um comer para aleacutem do aspecto de saciar a fome evocam a ideia da

comida no prato posta agrave mesa e natildeo mais agrave rua sentada em um tamborete ou em peacute Eacute

interessante observar a referecircncia que faz ao cachorro-quente paraibano como forma de remontar

suas origens na reconstruccedilatildeo que faz de si

Decerto era preciso pagar e eu tambeacutem precisava comer uma refeiccedilatildeo decente como

havia dois dias natildeo comia impossiacutevel continuar vivendo de salgadinho refrigerante e

cachorro-quente de salsicha Se pelo menos fosse o bom cachorro quente paraibano com

tudo quanto haacute um verdadeiro prato feito dentro de um patildeo muita carne moiacuteda mais a

salsicha se quisesse verdura ovo ou qualquer outra coisa ou tudo junto o que a gente

pedisse aqueles abundantes molhos vermelhos de colorau escorrendo pelos lados

alimentando ou entupindo o freguecircs davam a sensaccedilatildeo de saciedade por um bom tempo

Mas aqui natildeo Eacute um patildeo com uma salsicha e a mostarda fraco demais pra mim eu natildeo

podia mais queria um prato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos de

colher Ali devia haver de tudo mas custava dinheiro (REZENDE 2014 p184)

Ainda na rodoviaacuteria onde consegue tambeacutem tomar banho vai decidindo adotar accedilotildees de

cuidado consigo como a lembranccedila da pasta de dente Progressivamente Alice ocupa-se de

retomar as rotinas de higiene de alimentaccedilatildeo e de sono Mais uma vez menciona a refeiccedilatildeo

completa o lsquogrande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdurarsquo Haacute a

noccedilatildeo de conforto na ideia de comida servida no prato e sobretudo no termo que ela usa

lsquocomida quentinharsquo

Dei-me conta de que pouco importava eu natildeo tinha sabonete nem sabatildeo nenhum mas

me lembrei confortada da pasta de dente que restava do aviatildeo guardada na bolsa pra

depois do grande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdura o

que fosse que eu havia de comer antes de procurar um canto pra dormir (REZENDE

2014 p187-188)

Na evoluccedilatildeo da procura por uma refeiccedilatildeo decente a protagonista encontra o restaurante

de Penha tambeacutem paraibana Descobre a coincidecircncia durante o jantar enquanto ouve a

proprietaacuteria falando ao telefone A forma como recebe a refeiccedilatildeo com o cuidado de Penha em

oferecer-lhe a comida agrave mesa junto agrave constataccedilatildeo de um sotaque familiar fazem com que Alice

se sinta confortada

1) Andei um pouco procurando onde comer e achei um restaurantezinho com um

aspecto muito simples limpo uma mulher com um jeito vagamente familiar do outro

lado do balcatildeo uma oferta Prato Feito R$ 350 Ai Barbie com que apetite me sentei

126

numa das duas mesinhas em frente ao balcatildeo e pedi meu PF uma latinha de refrigerante

Esperei meu olhar desgarrado acompanhando e abandonando cada um que passava

pensei Daiacute a poucos minutos a mulher sem nada dizer com uma das matildeos desdobrou agrave

minha frente uma toalhinha azul engomada a ferro com a outra depositou meu prato

quentinho acreditei ver o vapor subindo da comida talheres limpos enrolados num

guardanapo de papel imaculado um copo impecavelmente limpo a latinha gelada e ateacute

palito que eu nunca usei nem ia usar mas me acrescentavam conforto todos aqueles

adereccedilos em torno da minha fome soacute pra mim bem sentada numa cadeira de encosto as

matildeos limpas me sentindo toda limpa apesar da roupa usada e ataquei o prato com

voracidade tentando conter-me para natildeo comer depressa demais pra aquele prazer durar

bastante (REZENDE 2014 p192)

2) Quando a outra paraibana acabou o telefonema eu me levantei com o prato jaacute vazio o

copo ainda meio cheio me encostei ao balcatildeo e entreguei a louccedila mas continuei ali

tomei mais um gole do meu refrigerante e perguntei Vocecirc eacute da Paraiacuteba natildeo eacute Ela disse

Sou sim como eacute que sabe Ouvi umas palavras matildeiacutenha painho Campinatambeacutem sou

de laacute (REZENDE 2014 p193)

3) Acordei maldormida por conta do frio mas sem dor no corpo a rodoviaacuteria jaacute se

enchendo de gente juntei meus tereacutens e fui tomar cafeacute na bodeguinha de minha

conterracircnea que agravequela hora bem cedo jaacute havia reassumido seu posto (REZENDE

2014 p194)

Alice decide retornar ao restaurante de Penha na manhatilde seguinte permitindo-se tomar o

cafeacute da manhatilde Quando refere lsquobodeguinha da minha conterracircnearsquo jaacute expressa o conforto de

sentir-se familiar agrave Penha como forma de novamente encontrar referecircncia agrave sua Paraiacuteba Assim

como em outros fragmentos jaacute referidos a comida representa natildeo apenas o aspecto vital de

nutriccedilatildeo mas tambeacutem o do contato humano que propicia a exemplo do zelo com que a

proprietaacuteria coloca a mesa para Alice

Satisfeita em suas necessidades a personagem retoma sua busca por Ciacutecero Arauacutejo

seguindo a sugestatildeo dada por Penha para que fosse ao Campo da Tuca Laacute novo aproximaccedilatildeo

com seus referenciais atraveacutes do queijo de manteiga da rapadura e da plaquinha lsquotemos carne de

solrsquo

Procurando por Ciacutecero Alice encontra partes de sua terra Reencontra a si mesma atraveacutes

do contato com conterracircneos como Penha e outros do Campo da Tuca e de alimentos de sua

regiatildeo

Fui dando a volta ao campo de futebol e dei com uma bodeguinha que me cheirou a

nordestina encostei na porta olhei percebi logo o acerto de minha intuiccedilatildeo em cima do

balcatildeo havia uma caixa de vidro com queijo de manteiga e uma pilhazinha de rapaduras

na parede do fundo um cartaz Temos carne de sol Eu natildeo via ningueacutem depois percebi

movimento num canto mais ao fundo algueacutem arrumando prateleiras chamei Por favor

ele veio na hora pra entabular conversa perguntei O senhor tem mesmo carne de sol e

ele pesaroso Acabou esta manhatilde vendi o uacuteltimo pedaccedilo quase guardei pra mim mas a

freguesa antiga amiga laacute da minha terra insistiu e vendi pra ela semana que vem chega

mais se a senhora voltar na quarta ou quinta-feira eacute de certeza que vai ter carne de sol

aqui porque o primo que me manda jaacute despachou estaacute chegando era ateacute pra ter chegado

127

ontem [] olhe tem um queijinho de manteiga de primeira esse acabou de chegar

tenho mais laacute dentro a senhora pode levar quanto quiser esse eacute do bom bota na brasa

na frigideira e fica uma beleza assado natildeo vai se arrepender leve um pedacinho do

queijo pra esperar a carne de sol assim mata a saudade (REZENDE 2014 p200-201)

Alice ouve o sotaque familiar recebe acolhimento nas famiacutelias por onde procura por

Ciacutecero Natildeo encontra pistas dele mas descobre a cada novo trecho pistas de si mesma e de suas

raiacutezes

Suelen me conduziu de casa em casa gente do sertatildeo do litoral da Vaacuterzea do Brejo da

Paraiacuteba uns tantos Ciacuteceros por certo mas nenhuma notiacutecia de Ciacutecero Arauacutejo nem nas

casas de outros Arauacutejos Comi tapioca com coco tomei cafeacute refresco de cajaacute A gente

arranja algueacutem traz e guarda no freezer sempre tem mas natildeo achei Ciacutecero

(REZENDE 2014 p204)

Ela sabe que Ciacutecero eacute um pretexto em sua procura Reconhece que seu propoacutesito principal

natildeo eacute o de encontraacute-lo mas sim o de continuar sobrevivendo pelas proacuteprias pernas tomando as

proacuteprias decisotildees Quando menciona que se forccedilava a crer sabe que sua busca era por si mesma

Salgadinhos e cachorros-quentes mastigados agraves pressas ou com exagerada lentidatildeo a

depender do interesse dos assentos disponiacuteveis ou do cansaccedilo das pernas e as andanccedilas

sem fim com objetivos mentirosos nas quais eu mesma me forccedilava a crer Ciacutecero Arauacutejo

sumindo e reaparecendo segundo seus caprichos e minhas necessidades []

(REZENDE 2014 p213-214)

Em uma nova padaria ela alimenta-se de lsquopatildeo na chapa e cafeacute com leitersquo repete o pedido

para permanecer ali por mais tempo lsquomatutandorsquo Quando refere a si mesma naquela condiccedilatildeo

como lsquoalimentada e decididarsquo mostra que sobrevivecircncia e autonomia estatildeo lado a lado eacute capaz

de cuidar de si e de tomar as proacuteprias decisotildees mesmo que sejam como a de dormir em um sofaacute

ao relento coberta com o plaacutestico-bolha

Andei mais um pouco passei por uma padaria senti fome voltei entrei patildeo na chapa e

cafeacute com leite sentei-me em uma das duas mesinhas com tamboretes pedi mais patildeo

com cafeacute e encompridei minha permanecircncia ali matutando ateacute comeccedilarem a puxar a

primeira porta de ferro Entatildeo alimentada e decidida debaixo de um ceacuteu despejado

voltei ao sofaacute que laacute me esperava deserto deitei-me em cima da bolsa os joelhos

apoiados na mochila presa pelas alccedilas agraves minhas canelas agasalhei-me com meu

plaacutestico-bolha e dormi minha primeira noite ao relento sem nada sobre a cabeccedila senatildeo

estrelas (REZENDE 2014 p217)

A frase jaacute apontada lsquoalimentada e decididarsquo mostra a ideia de que a alimentaccedilatildeo eacute

combustiacutevel de sua sobrevivecircncia e de sua capacidade de decidir por si o que fazer Cada vez

mais a protagonista da narrativa se percebe protagonista da proacutepria vida

128

No seguimento de seus dias na rua Alice encontra Arturo e Lola moradores de rua Com

eles compartilha o lugar de dormir e as refeiccedilotildees interage afeiccediloa-se com amizade Arturo a

quem ela apelida de lsquoChapeleirorsquo acorda-a para que receba dos voluntaacuterios o lanche da

madrugada

Eu dormi Barbie pela primeira vez eu dormi na rua literalmente de verdade a noite

quase toda ateacute comeccedilar a clarear laacute fora Foi o Chapeleiro que me acordou sacudindo

meu ombro com sua fala arrevesada lsquoCha bem a chente do pan y do cafeacute no perde esse

pan com cafeacute dessos pibes eacute bueno eacute quente conforta son pibes Buenosrsquo

A cada parada saltavam jovens dois rapazes e uma moccedila com copos de plaacutestico

garrafas teacutermicas e embrulhinhos de papel pardo distribuindo-os Quando chegou a

minha vez vi primeiro aacutegua quente pras cuias como a do Chapeleiro jaacute a bomba em

riste um pacotinho de erva-mate pra quem pedia e a oferta de cafeacute com leite bem

accedilucarado que eu preferi mais um cacetinho com manteiga e uma espeacutecie de mortadela

ou outro afiambrado qualquer Vou lhe dizer Barbie embora o copinho fino quase

queimasse a matildeo aquilo me pareceu um presente do ceacuteu eu quase sem dinheiro nenhum

e tatildeo longe da padaria do meu amigo pra ir pedir-lhe fiado outro cacetinho na chapa e

um cafeacute com leite (REZENDE 2014 p224)

Lola eacute personagem de grande relevacircncia na narrativa pois estabelece com Alice uma

relaccedilatildeo de amizade e de cuidado Recebe-a em sua casa mesmo com toda precariedade que esta

estrutura tem a oferecer Daacute agrave protagonista a confianccedila de poder dormir laacute quando quiser Alice

retribui compartilhando com ela as refeiccedilotildees que faz Mesmo com pouquiacutessimo dinheiro que

ainda lhe sobra ela divide com Lola a comida que consegue comprar O alimento aleacutem de nutrir

o corpo nutre a amizade funciona como instrumento de partilha e de gratidatildeo pelo acolhimento

que recebe da nova amiga A seguir trecircs fragmentos que ilustram o cuidado muacutetuo entre elas

1) Natildeo tive coragem de fazer perguntas sobre aquilo tudo preferi oferecer-lhe com um

resto de dinheiro que catei nos bolsos e na carteira um cafeacute com patildeo na padaria mais

proacutexima que ela aceitou e comeu com gosto nenhuma de noacutes duas ligando a miacutenima

pros olhares enviesados que nos cercavam Tu vem todo dia dormir aqui tu eacute direita tu

pode aprende o caminho Eu vinha sim sem duacutevida nenhuma e fomos cada uma pro

seu lado eu memorizando pontos de referecircncia pelo caminho (REZENDE 2014 p232)

2) Dormia em seu terraccedilo dividia com ela minhas parcas refeiccedilotildees lia seus livros

embolorados Ela nunca me perguntou mais nada desde o primeiro encontro em que lhe

contei e ela duvidou da minha histoacuteria de filha neto Ciacutecero e tudo mais que ouviu com

um risinho descrente (REZENDE 2014 p236)

3) Guiavam-me o amanhecer e o entardecer a chuva o frio o sol a fome que eu

resolvia com qualquer coisa natildeo mais de dez reais por dia a menor quantia que o caixa

eletrocircnico cuspia agraves vezes suficientes pra mim e pra Lola Dias e dias Nada mais na

minha aparecircncia nem de leve acho me distinguia dos outros (REZENDE 2014

p239)

Ao final da narrativa Alice narra como terminou seus quarenta dias de rua jaacute sem

dinheiro ainda encontra um modo de se alimentar vendendo os livros que comprou mendigando

129

aacutegua em bares Sua condiccedilatildeo deteriorada chega ao limite e entatildeo natildeo mais se parece apenas mas

se torna moradora de rua pela proacutepria escolha de natildeo voltar ao apartamento Natildeo eacute mais guiada

pela procura por Ciacutecero mas sim por aquela de sobreviver

Esmoreci de vez sem banho sem comida rasgada desmantelada deixei-me cair em

mais um banco indiferente aos olhares se eacute que algueacutem me via cochilei e acordei mil

vezes saiacute pra rua tocada pela fome a esmo coragem nenhuma de pedir nas portas de

remexer no lixo vendi no sebo meus livros novos de 199 pela quantia suficiente pra trecircs

cachorros-quentes bebi aacutegua de torneira mendigada em balcotildees de bares Jaacute natildeo tinha

mais nada a perder (REZENDE 2014 p244)

Quem ajuda Alice na decisatildeo de retomar sua vida de voltar a seu apartamento eacute Lola Ao

estimulaacute-la a telefonar para Elizete para pegar o endereccedilo de sua casa Lola cuida de Alice

acordando-a de madrugada e oferecendo-lhe lsquoa metade de um patildeo dormido e uns goles do seu

chimarratildeorsquo Aqui o alimento eacute para dar forccedilas agrave personagem mas eacute acima de tudo representativo

do cuidado e do carinho que se estabelece entre elas Alice reconhece

Ela afinal acreditava mais do que eu me sacudiu no lusco-fusco da madrugada Vai

sai desse buraco isso natildeo eacute pra ti tu soacute natildeo esquece da gente Obedeci sem resistecircncia

Lola me deu a metade de um patildeo dormido uns goles do seu chimarratildeo Toma pra tu

aguentar ateacute laacute levou-me a um orelhatildeo talvez o uacuteltimo que ainda funcionava telefonei

pra Elizete a cobrar tirei-a da cama na madrugada (REZENDE 2014 p245)

Quando refere lsquoobedeci sem resistecircnciarsquo natildeo se trata de uma obediecircncia passiva como

aquela que se instala com a filha no iniacutecio da narrativa eacute sim o resultado de sua quarentena a

compreensatildeo de si mesma e de suas necessidades de sobrevivecircncia que natildeo mais podem ser

satisfeitas na rua pela falta de dinheiro Alice constata que seu percurso em direccedilatildeo agrave si mesma

chega ao fim que jaacute eacute capaz de comeccedilar uma nova vida em Porto Alegre agora com o passo

firme de quem eacute capaz de decidir natildeo mais apenas sobreviver mas viver a rotina como se

apresenta A protagonista natildeo estaacute mais resignada agrave vida que lhe foi imposta mas compreende

que chegou aos proacuteprios limites e que retomou sua autonomia ldquoChega Barbie agora eu paro

mesmo jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia guria a solidariedade silenciosa mas

agora eu vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a mal taacute Natildeo digo que seja pra sempre quem

sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo a limpordquo (REZENDE 2014 p245)

Sem ponto final o paraacutegrafo mostra a caracteriacutestica da narrativa muitas vezes com frases

inacabadas Entretanto aqui a falta do ponto denota a abertura agraves possibilidades do que refere

como lsquopasso tudo a limporsquo Alice assume elementos da linguagem gauacutecha como o uso do lsquoguriarsquo

130

do lsquotursquo e do lsquotaacutersquo expressando a iniciativa pela assimilaccedilatildeo de elementos regionais em sua nova

fase depois de fazer todo o relato de sua mudanccedila de vida nas paacuteginas do diaacuterio

Em todo o percurso de sua procura por si mesma pelo resgate de sua autonomia o

alimento assume diversas conotaccedilotildees Pode-se compreender a cozinha em Quarenta dias como

um fator que marca etapas da histoacuteria de Alice desde a sopa que prepara em Joatildeo Pessoa ateacute o

patildeo dormido que recebe de Lola tanto representada pelo aspecto da comida como por aquele da

mobiacutelia dos instrumentos que satildeo parte do preparar o alimento e do comer Aleacutem disso eacute

possiacutevel transplantar a cozinha para o externo na histoacuteria como representaccedilatildeo da vida que Alice

decide tomar fora da vida que lhe foi imposta A cozinha representa a autonomia e natildeo mais a

obediecircncia agrave filha A consciecircncia do corpo por sua vez as necessidades de fome sede sono e

higiene pessoal que satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa

Cabe compreender a consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo ambas definidas por

Jaspers na procura que a protagonista faz por si mesma a partir da capacidade de tomar decisotildees

a favor do que deseja e precisa e natildeo a favor da filha Aleacutem disso relembra diversos elementos

de sua identidade a partir de referenciais de sua terra encontrados em Porto Alegre como um

sotaque familiar de Penha ou os sabores paraibanos ou mesmo na evocaccedilatildeo dos doces de sua

avoacute que os quindins da simpatia fazem-na evocar A recordaccedilatildeo do cachorro-quente paraibano

que compara com aquele soacute de patildeo e salsicha gauacutecho faz com que as memoacuterias ajudem em sua

reconstruccedilatildeo no que tange agrave consciecircncia de si A consciecircncia do corpo por sua vez pode ser lida

na iniciativa de Alice por satisfazer as necessidades de fome sede sono e higiene pessoal que

satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa

Um ponto de grande importacircncia eacute a interaccedilatildeo com outras pessoas que tambeacutem consiste

em necessidade de sobrevivecircncia Alice sai do isolamento em que passa os primeiros dias do

choque imbuiacuteda de encontrar Ciacutecero Nesta missatildeo conhece pessoas com quem conversa e

partilha mesmo que seja uma breve aproximaccedilatildeo Nutre-se dessas trocas aleacutem da nutriccedilatildeo pelo

alimento Coloca-se em situaccedilotildees em que eacute escutada em que tem sua necessidade atendida como

nas vilas que percorre na procura pelo rapaz nos botecos e restaurantes onde vai recebe o que

pede no restaurante de Penha recebe o zelo de uma mesa posta de Zelima no Pronto-Socorro

recebe cuidado e preocupaccedilatildeo

131

Atraveacutes da necessidade de sobreviver e da missatildeo de descobrir o paradeiro de Ciacutecero

Alice redescobre sua capacidade de tomar as reacutedeas da proacutepria vida que atribuiacutera agrave filha Norinha

logo que chegou em Porto Alegre

132

CONCLUSAtildeO

Italo Calvino ao se referir agrave atividade do escritor afirmou ldquoEscrevemos para tornar

possiacutevel ao mundo natildeo escrito de exprimir-se atraveacutes de noacutesrdquo (DANZI 2007 p140) O que ele

denomina lsquomundo natildeo escritorsquo eacute a proacutepria vida real percebida pelo indiviacuteduo por seus cinco

sentidos e vivenciada atraveacutes das emoccedilotildees e dos pensamentos Desse lsquomundo natildeo escritorsquo

portanto fazem parte o cozinhar e o comer o partilhar as refeiccedilotildees e seus sabores o vincular-se

aos demais entre outras vicissitudes da experiecircncia humana Atraveacutes do ofiacutecio do escritor essas

condiccedilotildees satildeo representadas no texto literaacuterio

A escolha por estudar o universo da cozinha neste contexto permite expressar diversas

perspectivas atraveacutes da literatura Silvana Ghiazza estudiosa das relaccedilotildees entre cozinha e

literatura expotildee que

O alimento enquanto signo significa portanto algo aleacutem de si mesmo media conteuacutedos

ligados ao universo cultural revela conexotildees com a realidade histoacuterico-social com o

conjunto profundo da identidade individual e coletiva constitui em suma um polo de

agregaccedilatildeo de diversas dimensotildees de humanidade torna-se uma forma de linguagem natildeo-

verbal organizando-se em paralelo a outras linguagens em um orgacircnico sistema de

sinais desta forma pode tornar-se entatildeo uma chave de leitura transversal da realidade

Ateacute daquela literaacuteria (GHIAZZA 2015 p19)

De acordo com a mesma autora ldquo[] pode-se falar de comida ou atraveacutes da comidardquo

(GHIAZZA 2015 p20 grifo nosso) No termo lsquoatraveacutesrsquo empregado por Silvana Ghiazza estatildeo

as possiacuteveis aplicaccedilotildees da cozinha na literatura em que a primeira a cozinha eacute um veiacuteculo para

que a segunda a literatura exprima na linguagem do escritor uma seacuterie de circunstacircncias dos

personagens e da trama

Mais uma vez Silvana Ghiazza colabora para a compreensatildeo do sentido da comida e sua

relaccedilatildeo com a literatura quando esclarece

A comida pode ser presente como objeto em sua concreta materialidade no interno da

representaccedilatildeo marcando a natureza realiacutestica da proacutepria estrutura narrativa pode

contribuir a delimitar as coordenadas espaccedilo-temporais fornecendo referecircncias a

produtos pratos haacutebitos de um tempo e de um territoacuterio determinado pode tambeacutem

assumir um significado metafoacuterico mediando conteuacutedos diversos e simboacutelicos A

relaccedilatildeo com o alimento em termos de sua conotaccedilatildeo identitaacuteria pode servir ao autor para

tratar o caraacuteter das personagens e pode tornar-se uma forma de comunicaccedilatildeo

interpessoal uma linguagem natildeo-verbal A comida pode ainda constituir o campo

semacircntico do qual o autor se serve para as escolhas lexicais de sua escritura

(GHIAZZA 2015 p20)

133

A expressatildeo da cozinha no texto literaacuterio serve valendo-nos da referecircncia de Italo

Calvino a que este lsquomundo natildeo escritorsquo se exprima atraveacutes do escritor A partir da leitura da

autora entende-se que esse lsquoexprimir-sersquo poderaacute ocorrer por meio de trecircs funccedilotildees principais a

denotativa a conotativa e a comunicativa Sobre a primeira denotativa Silvana Ghiazza explica

As referecircncias a produtos alimentares a pratos e a receitas assim como a rituais haacutebitos

ou eventos ligados agrave realidade gastronocircmica de um tempo preciso e de um territoacuterio

definido contribuem sem duacutevidas para dar veridicidade verossimilhanccedila agrave narrativa

marcando sua estrutura realiacutestica (GHIAZZA 2015 p24)

As trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea escolhidas para compor o corpus

desta dissertaccedilatildeo apresentam o universo da cozinha atraveacutes da funccedilatildeo denotativa nos elementos

compreendidos como espaccedilo fiacutesico material Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo as

referecircncias agraves tradiccedilotildees culinaacuterias judaicas em seus pratos receitas e praacuteticas satildeo representadas

por essa funccedilatildeo Em O arroz de Palma podemos ler em produtos como o arroz a lata de azeite

de oliva e o bacalhau a presenccedila da cultura portuguesa configurando tal funccedilatildeo em Quarenta

dias a mesma estaria representada pelas carrocinhas de pipoca e de cachorro quente pelas

padarias e comidas de botecos de rua pois satildeo elementos que datildeo verossimilhanccedila agrave estrutura

narrativa em que a personagem passa a habitar as ruas da cidade durante a sua procura

A respeito da funccedilatildeo conotativa em situaccedilatildeo oposta agrave anterior Ghiazza explicita

As referecircncias agrave esfera alimentar natildeo tecircm o escopo de marcar a verossimilhanccedila e o

realismo da obra fornecendo informaccedilotildees do tipo denotativo realistico-referencial mas

servem principalmente para tratar do caraacuteter das personagens para definir a

personalidade atraveacutes de gestos de comportamentos ou de haacutebitos ligados de algum

modo agrave produccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo e ao consumo do alimento (GHIAZZA 2015 p25)

Podemos na funccedilatildeo conotativa mencionar em O arroz de Palma a preparaccedilatildeo do arroz

por Antonio enquanto narra a histoacuteria bem como o papel do arroz na trama considerando seu

caraacuteter simboacutelico como fertilizador da famiacutelia e como elemento presenteado por Palma e Joseacute

Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento Em Por que sou gorda mamatildee a funccedilatildeo

conotativa seria representada pela relaccedilatildeo das personagens com o comer jaacute que tanto no caso da

protagonista como no de sua matildee e no da Voacute Magra tal relaccedilatildeo eacute caracteriacutestica da personalidade

das mesmas entre outros exemplos Em Quarenta dias as escolhas alimentares de Alice satildeo

comportamentos associados agrave sua decisatildeo de permanecer na rua natildeo voltando para casa bem

como de seu desejo por autonomia Na mesma obra tanto o restaurante da conterracircnea Penha

134

quanto ingredientes e comidas da Paraiacuteba com os quais a protagonista tem contato em seus

percursos marcam a ligaccedilatildeo afetiva que ela manteacutem com sua terra natal

Outra das funccedilotildees que Silvana Ghiazza refere eacute a comunicativa relacionada ao papel da

cozinha na comunicaccedilatildeo entre as personagens de uma trama como por exemplo a funccedilatildeo da

comida no compartilhar a mesa

Ainda um outro significado que a comida pode assumir eacute ligado agrave convivialidade agrave sua

funccedilatildeo de meio de comunicaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Desde sempre dividir o alimento

foi de forma diversa mas em todas as sociedades ocasiatildeo para comunicar E esse eacute um

dado verificaacutevel na vida de cada dia em que se espera que o momento da divisatildeo do

alimento seja tambeacutem momento de divisatildeo de pensamentos e de afetos de

aprofundamento do conhecer reciacuteproco Na mesa se fala o eu torna-se noacutes

Tambeacutem na literatura esta realidade ocupa um lugar notaacutevel e as referecircncias agrave comida

desempenham uma funccedilatildeo comunicativa na medida em que oferecem o suporte para

uma troca relacional entre as personagens o alimento e mais em termos gerais as

praacuteticas alimentares podem transformar-se de fato em uma verdadeira linguagem natildeo-

verbal capaz de comunicar mensagens sem a necessidade de palavras [] A comida

torna-se a forma privilegiada de linguagem natildeo-verbal para comunicar o sentimento de

amor em todas as suas formas (GHIAZZA 2015 p26-27)

Nas trecircs obras do corpus encontramos a funccedilatildeo comunicativa quando a comida bem

como as representaccedilotildees da cozinha como espaccedilo fiacutesico satildeo elos de convivecircncia entre as

personagens Palma colhe o arroz da pedra para presenteaacute-lo ao irmatildeo e agrave cunhada e o mesmo

seraacute elemento de ligaccedilatildeo entre a famiacutelia assumindo o arroz o nuacutecleo da trama Antonio durante a

narrativa prepara o que restou do ingrediente para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo de cem anos do

casamento dos pais e do proacuteprio arroz em O arroz de Palma Ateacute mesmo na expressatildeo do amor

fiacutesico o arroz eacute o elemento comunicativo na cena em que Antonio e Isabel inauguram sua

intimidade fiacutesica derramando sobre seus corpos o arroz Em Por que sou gorda mamatildee a Voacute

Magra oferece doces tiacutepicos aos netos em sua sacola de crocheacute enquanto a matildee da protagonista

compartilha com os filhos os doces e o refrigerante dentro do carro na viagem da famiacutelia ao

Uruguai

Assim a representaccedilatildeo da cozinha pode se exprimir no texto literaacuterio como espaccedilo fiacutesico

e simboacutelico termos escolhidos para o presente trabalho ou atraveacutes de suas funccedilotildees denotativa

conotativa e comunicativa conforme Silvana Ghiazza As trecircs obras do corpus tecircm o objetivo de

propor a reflexatildeo sobre as linguagens que a cozinha pode assumir no texto literaacuterio

especificamente no contexto da literatura brasileira contemporacircnea Nossa escolha por estudar o

referido tema decorreu tambeacutem da funccedilatildeo cultural que a cozinha assume na sociedade atraveacutes

dos tempos Rita Rutigliano explica que

135

Desde sempre os escritores utilizam a comida e o comer tambeacutem para falar de outra

coisa As paacuteginas dos livros se sabe portam um patrimocircnio de signos reveladores de

vivecircncias e de sentimentos humanos Nos eacute possiacutevel colher indiacutecios preciosos atraveacutes de

descriccedilotildees dos rituais alimentares (e ateacute mesmo do jejum) que- cobrindo o arco inteiro

entre dois polos- a comida como necessidade de base e como um aspecto da paixatildeo pela

vida-podem se tornar invenccedilatildeo jogo poesia religiatildeo histoacuteria barocircmetro das

experiecircncias pessoais e coletivas metaacutefora social e poliacutetica Em uma palavra cultura

(RUTIGLIANO 2000 p11)

A respeito do papel desempenhado pela cozinha na cultura salientado por Rita

Rutigliano podemos acrescentar o fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo lsquoLa cultura em la

cocinarsquo cujo conselho editorial eacute composto por Marcelo Aacutelvarez Jesuacutes Contreras e Rosaacuterio

Olivas O referido fragmento aparece publicado em um dos livros da coleccedilatildeo pela editora

Catalonia del Nuevo Extremo

A cozinha natildeo eacute soacute um procedimento teacutecnico que permite que os produtos alimentiacutecios

se transformem em pratos e em receitas eacute acima de tudo uma linguagem em que se

expressa a cultura humana Os gostos a esteacutetica as combinaccedilotildees de sabores os

condimentos preferidos e as maneiras agrave mesa satildeo gestos sociais que se relacionam com a

histoacuteria e com a transmissatildeo dos siacutembolos que distinguem uma comunidade da outra

(SARDE MONTECINO 2014)

O fato eacute que das mais diversas formas dentro do referido contexto cultural o universo

culinaacuterio pode ser traduzido na literatura como um fenocircmeno da natureza humana O cozinhar

nos fez humanos A propoacutesito disso Eloisa Palafox refere que as capacidades de cozinhar os

alimentos e de contar histoacuterias distinguem o homo sapiens ambas compotildeem parte primordial de

nossa evoluccedilatildeo A semelhanccedila entre tais praacuteticas estaacute tambeacutem no fato de que permitem a

socializaccedilatildeo entre os indiviacuteduos e a partilha da comida e das histoacuterias Para Michael Pollan

Somos a uacutenica espeacutecie que depende do fogo para manter o corpo aquecido e a uacutenica

espeacutecie que natildeo pode passar sem cozinhar sua comida A esta altura o controle do fogo

jaacute estaacute inscrito nos nossos genes uma questatildeo natildeo mais associada apenas agrave cultura

humana mas sim agrave nossa biologia (POLLAN 2014 p109)

A relaccedilatildeo com o cozinhar vai aleacutem do preparo do alimento no fogo para ingestatildeo Esse eacute

sem duacutevidas o que manteacutem nossa sobrevivecircncia bioloacutegica mas haacute outra habilidade que

aprendemos como espeacutecie graccedilas tambeacutem ao fogo a interaccedilatildeo com os demais que Silvana

Ghiazza relaciona com a funccedilatildeo comunicativa que a cozinha pode ter no texto literaacuterio Pollan

acrescenta agrave exposiccedilatildeo acima a relevacircncia dessa aquisiccedilatildeo em nosso desenvolvimento

136

Sobretudo o fogo que usamos para cozinhar como o que vigio na churrasqueira do meu

quintal tambeacutem ajudou a nos formar como seres sociais lsquoA forccedila do magnetismo social

exercido pelo fogorsquo como diz o historiador Felipe Fernaacutendez-Armesto eacute o que nos

manteacutem juntos e ao fazer isso ele provavelmente mudou o curso da evoluccedilatildeo humana O

fogo usado para cozinhar promoveu a seleccedilatildeo de indiviacuteduos capazes de tolerar outros

indiviacuteduos- fazer contato visual cooperar e compartilhar lsquoQuando o fogo se combinou agrave

comidarsquo escreveu Fernaacutendez-Armesto lsquoum foco quase irresistiacutevel foi criado para a vida

comunalrsquo (na verdade lsquofocorsquo vem da palavra latina focus para lareira braseiro chama)

A forccedila da gravidade social exercida pelo fogo natildeo parece ter diminuiacutedo [] (POLLAN

2014 p109)

Assim somos seres bioloacutegicos e sociais atributos que devemos ao ato de cozinhar A

nossa biologia nos confere o comer pela fome e pelo prazer Esse elemento por sua vez eacute

necessaacuterio para promover a continuidade da sobrevivecircncia individual da mesma forma que o

prazer sexual eacute o estiacutemulo para a preservaccedilatildeo do humano como espeacutecie Cozinhar comer

alimentos cozidos que nos deem nutriccedilatildeo e sensaccedilotildees prazerosas e nos reunirmos com nossos

semelhantes satildeo atributos evolutivos que promoveram a chegada ao seacuteculo XXI

A reuniatildeo com as pessoas proacuteximas resultado do fogo como elemento agregador para

cozinhar os alimentos tornou-nos em termos evolucionaacuterios seres sociais Sendo assim

partilhamos vivecircncias com outros e essas nos propiciam a noccedilatildeo de pertencimento a um grupo

Temos a partir disso a noccedilatildeo de uma identidade singular e plural Somos parte de algo e

acumulamos percepccedilotildees experiecircncias e sentimentos em comum forma-se a memoacuteria coletiva A

memoacuteria individual de modo diverso eacute parte do aparato anatocircmico e fisioloacutegico dos seres

humanos Essa se desenvolve agrave medida que se forma o neocoacutertex ceacuterebro exclusivamente nosso

cooperando com a consciecircncia de noacutes mesmos e entatildeo com a construccedilatildeo da identidade

individual E porque somos capazes de reter informaccedilotildees de arquivaacute-las e de evocaacute-las em

acircmbito individual somos tambeacutem capazes de fazecirc-lo coletivamente ao compormos um grupo

seja uma famiacutelia ou um povo

Uma das principais caracteriacutesticas da memoacuteria na esfera familiar satildeo as histoacuterias que

atravessam geraccedilotildees por serem contadas desde os antepassados Entre essas eacute vaacutelido incluirmos

tambeacutem as receitas de cozinha pois narram o como-se-faz de um prato atraveacutes dos tempos por

parentes de sangue ou de criaccedilatildeo Entre tais histoacuterias podemos tambeacutem referir o papel de um

determinado ingrediente na formaccedilatildeo de uma memoacuteria de famiacutelia como eacute o exemplo em O arroz

de Palma

A memoacuteria individual por sua vez eacute porccedilatildeo imprescindiacutevel de nossa identidade e da

consciecircncia que temos sobre quem somos ela compotildee junto aos demais elementos nossa

137

capacidade de autonomia Jaspers aponta para a impossibilidade de uma independecircncia total em

relaccedilatildeo a outras pessoas pois precisamos das interaccedilotildees de afeto e de trocas com nossos

semelhantes Temos tambeacutem necessidade uns dos outros por aspectos praacuteticos de sobrevivecircncia

indiviacuteduos que plantem que colham que pesquem que vendam que comprem que cozinhem

que consumam e que faccedilam esse ciacuterculo perpetuar-se Seguiremos cozinhando uns para os outros

pelo simples fato de que precisamos comer E partilhar Esse eacute o ponto em Quarenta dias

A protagonista depende de quem prepare o alimento para ela seja o anocircnimo na

carrocinha de cachorro quente na rua seja na mesa posta com esmero que recebe no restaurante

da rodoviaacuteria pela conterracircnea Penha Paradoxalmente o fato de receber do outro a comida eacute o

substrato da retomada de sua autonomia jaacute que a decisatildeo do que comer eacute da proacutepria Alice Nesse

caso o cozinhar tece as interaccedilotildees entre os sujeitos

Os elementos escolhidos para estudo satildeo resultado de nossa capacidade de pensar de

sentir emoccedilotildees de perceber os estiacutemulos externos atraveacutes dos cinco sentidos e de interpretaacute-los

de acordo com a consciecircncia do corpo e de noacutes mesmos A bagagem individual e cultural

fornecida pela memoacuteria faz com que possamos sentir prazer ao saborear uma receita de famiacutelia

porque ela nos faz lembrar de uma avoacute ou de uma tia como ocorre com Antonio ao ler aquela

escrita por Palma em seu caderno Escolhemos o que comer exercendo nossa autonomia

conforme as preferecircncias alimentares que nos identificam considerando a cultura do territoacuterio

onde vivemos Compreende-se entatildeo que os atributos definidos para este trabalho natildeo ocupam

compartimentos estanques mas estatildeo inexoravelmente interligados em noacutes

Pollan reflete sobre a contribuiccedilatildeo de Levi-Strauss nesse aspecto

Segundo Levi-Strauss a distinccedilatildeo entre lsquoo crursquo e lsquoo cozidorsquo serviu a muitas culturas

como a grande alegoria para estabelecer a diferenccedila entre animais e pessoas Em lsquoO cru

e o cozidorsquo ele escreveu lsquocozinhar natildeo apenas marca a transiccedilatildeo da natureza para a

cultura mas por meio dessa accedilatildeo e com a sua ajuda a condiccedilatildeo humana pode ser

definida com todos os seus atributosrsquo Cozinhar transforma a natureza e ao fazer isso

nos eleva acima desse estado tornando-nos humanos (POLLAN 2014 p57)

Na presente dissertaccedilatildeo partiu-se da proposta de estudar a memoacuteria ligada agrave cozinha em

O arroz de Palma o prazer vinculado ao comer em Por que sou gorda mamatildee e a autonomia

associada ao escolher o alimento a partir da percepccedilatildeo da fome em Quarenta dias Essa

separaccedilatildeo se deveu agrave predominacircncia desses atributos em cada uma das obras natildeo os excluindo

138

das demais Como jaacute exposto haacute uma interligaccedilatildeo entre esses em cada um de noacutes Eacute possiacutevel

encontrar nas trecircs narrativas expressotildees dessa conexatildeo

Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo muito se pode refletir sobre as lembranccedilas

da proacutepria narradora-personagem e de sua famiacutelia ou sobre sua autonomia ao decidir pelo que

come Em Quarenta dias a protagonista recorre agrave memoacuteria de sabores e de vivecircncias ao

escrever em seu caderno a retrospectiva de suas andanccedilas aleacutem disso apesar de sua fome ser o

determinante na escolha do que comer Alice sente prazer com a refeiccedilatildeo quentinha e posta na

mesa com esmero no restaurante da rodoviaacuteria ou com o lanche servido na padaria Em O arroz

de Palma os atributos tambeacutem estatildeo entremeados mesmo com o predomiacutenio da memoacuteria para o

estudo dessa obra haacute presenccedila do prazer e da autonomia ao longo das lembranccedilas de Antonio

Um ponto de semelhanccedila entre as trecircs obras eacute o fato de apresentarem todas um narrador-

personagem que protagoniza as vivecircncias A cozinha eacute portanto contada em primeira pessoa

espaccedilo vivencial do narrador A opccedilatildeo por um eu ficcional para narrar as histoacuterias natildeo eacute ao acaso

sendo a cozinha um espaccedilo de tamanha relevacircncia para nossa vida de tanto apelo ao imaginaacuterio e

agraves lembranccedilas nos campos individual e coletivo eacute bem apropriado que quem conte seja a

personagem que a vivenciou atraveacutes das proacuteprias experiecircncias ou da memoacuteria familiar A tal

propoacutesito outro elemento que aproxima as trecircs obras eacute a presenccedila da famiacutelia das personagens

que ocupa posiccedilatildeo relevante na relaccedilatildeo que os protagonistas assumem com a cozinha

Nas trecircs narrativas o narrador-personagem fala de suas emoccedilotildees e vivecircncias e por vezes

fala da famiacutelia e das histoacuterias e lembranccedilas que representam a raiz de muitas experiecircncias com a

cozinha e com o comer A famiacutelia nesse contexto representa o coletivo que eacute apresentado junto

ao individual o sentir e pensar do proacuteprio narrador No livro Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e

Doccediluras essa coexistecircncia entre o singular e o plural eacute um dos elementos abordados em relaccedilatildeo

ao papel da cozinha conforme expresso no trecho abaixo

O ato culinaacuterio eacute ao mesmo tempo uma experiecircncia individual e coletiva uma

oportunidade de autoconhecimento de entrega a mim mesma e simultaneamente de

partilha de doaccedilatildeo de expressatildeo de afetos positivos [hellip] Sobretudo o ato culinaacuterio

representa uma das circunstacircncias mais propiacutecias para experimentar singular e plural

para nos aproximar de noacutes mesmos e daqueles a quem admiramos amamos e que satildeo

parte da nossa histoacuteria (CARDOSO 2012 p13)

139

O termo lsquoato culinaacuteriorsquo refere-se natildeo apenas ao cozinhar mas a toda gama de

comportamentos ligados agrave cozinha como dividir uma refeiccedilatildeo receber doces ou oferecer uma

comida aos demais colocar a mesa e tantas outras possibilidades

A diferenccedila entre as trecircs obras eacute o espaccedilo que a cozinha representa em cada uma Em O

arroz de Palma Antonio faz a narrativa a partir de sua cozinha enquanto prepara o almoccedilo de

celebraccedilatildeo dos cem anos de casamento de seus pais e do saco de estopa com o arroz como

presente aos noivos A cozinha nesse caso eacute apresentada atraveacutes do espaccedilo fiacutesico mas tambeacutem

do ingrediente-protagonista o arroz por outros elementos materiais como os guardanapos da

matildee de Isabel e o caderno de receitas de Antonio e por aqueles imateriais a exemplo da memoacuteria

associada ao cozinhar e das comparaccedilotildees dos pratos culinaacuterios com os estilos de famiacutelias Em

Por que sou gorda mamatildee a cozinha aparece ora como ingredientes ora como espaccedilo fiacutesico

ora como comidas ora como emoccedilotildees revelando histoacuterias da protagonista e de seus antepassados

de origem judaica Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como espaccedilo fiacutesico no novo

apartamento e na vida da protagonista em Joatildeo Pessoa antes da mudanccedila e passa a ser expressa

ao longo da obra pelos bares estabelecimentos e lsquocarrinhosrsquo pelos quais ela passa tambeacutem

representativos do espaccedilo fiacutesico Aleacutem disso a cozinha aparece como espaccedilo simboacutelico de

sobrevivecircncia nessa narrativa essa representaccedilatildeo eacute feita atraveacutes das comidas que Alice escolhe

enquanto anda pelas ruas Deste modo as trecircs obras contemplam ambos os espaccedilos referidos no

propoacutesito desse trabalho

Nas obras a cozinha eacute descrita como espaccedilo fiacutesico - tanto como peccedila da casa quanto

atraveacutes dos eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios ou seja em sua existecircncia material- e como

espaccedilo simboacutelico traduzindo lembranccedilas emoccedilotildees e comportamentos representando o ritual

implicado no cozinhar e comunicando os integrantes de uma famiacutelia

Em relaccedilatildeo ao elemento material da cozinha destaco em O arroz de Palma a cozinha de

onde Antonio narra suas lembranccedilas a panela em que ele prepara o arroz a taacutebua na qual corta os

temperos seu caderno de receitas onde estaacute aquela escrita por Palma os guardanapos da matildee de

Isabel a lata de azeite de Oliva e o mais significativo de todos o proacuteprio arroz presenteado a

Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento A expressatildeo material estaacute presente sobretudo

no espaccedilo fiacutesico e nos elementos citados embora haja menccedilatildeo a comidas como o arroz de

bacalhau preparado para aproximar as famiacutelias a fim de comeccedilar o namoro com Isabel

140

Em Por que sou gorda mamatildee haacute referecircncias agraves comidas e doces judaicos como

aqueles na sacola de crocheacute da Voacute Magra Aleacutem disso em vaacuterias passagens se lecirc descriccedilotildees como

aquela em que os moradores do bairro preparam pratos a partir dos ingredientes nas cozinhas de

suas casas com detalhamento dos atos culinaacuterios e dos instrumentos utilizados Uma das cenas

mais consistentes em demonstrar a cozinha como espaccedilo fiacutesico eacute quando a Voacute Magra prepara os

bifes para a protagonista ali essa representaccedilatildeo natildeo apenas estaacute na cozinha mas tambeacutem nos

utensiacutelios e ingredientes como o oacuteleo que ela usa para o preparo da carne Nessa obra a

predominacircncia da perspectiva material estaacute principalmente nas comidas Outro exemplo eacute a cena

em que a matildee se deleita com os filhos na viagem ao Uruguai comendo doces e refrigerante ou

quando essa faz uma farta refeiccedilatildeo antes do cateterismo e outra depois de sair do hospital Esses

satildeo alguns exemplos da expressatildeo fiacutesica que a cozinha assume na obra de Cintia Moscovich

Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como peccedila da casa de Joatildeo Pessoa e de Porto

Alegre sendo essa uacuteltima expressa com detalhes quanto a eletrodomeacutesticos armaacuterios mesa e

utensiacutelios No periacuteodo em que Alice estaacute na rua o aspecto material da cozinha eacute manifestado

pelas carrocinhas de pipoca e cachorro quente pelos botecos e padarias e pelos alimentos Esses

predominam na narrativa como expressatildeo do espaccedilo fiacutesico ocupado pela cozinha

Quanto ao aspecto simboacutelico representado ressalta-se que ao cozinhar e ao comer

estamos praticando rituais Mircea Eliade na obra jaacute referida nessa dissertaccedilatildeo expotildee que ldquo[]

a principal funccedilatildeo do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e

atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a

educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 2011 p13)

A alimentaccedilatildeo como ritual estaacute presente nas trecircs obras de formas diversas Em O arroz de

Palma estaacute na colheita do arroz na pedra pela Tia Palma bem como na oferta desse aos noivos

como presente de casamento estaacute tambeacutem na canja que ela faz ao irmatildeo com esse mesmo

arroz para que os gratildeos o fertilizem e no almoccedilo em que ela e Maria Romana preparam o arroz

de bacalhau para a integraccedilatildeo das famiacutelias Estaacute tambeacutem em outros pontos da narrativa como no

ponto em que Antonio e Isabel recebem o arroz em seu casamento e quando levam um punhado

desse para sua comunhatildeo fiacutesica no lago

Nessa obra os trecircs exemplos que melhor ilustram a presenccedila do ritual satildeo o ato de

cozinhar que permeia toda a histoacuteria pois enquanto o protagonista prepara o arroz evoca

lembranccedilas e as mistura com imaginaccedilotildees e pensamentos a leitura da receita dedicada a ele em

141

seu caderno de receitas por Palma com recitaccedilotildees a serem praticadas durante o preparo da

comida Por fim a reuniatildeo da famiacutelia nas mesas para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo dos cem anos

do casamento dos pais e do presente do arroz em que haacute dois pontos que aludem ao ritual Tanto

a reuniatildeo da famiacutelia para comer eacute ritualiacutestica quanto tambeacutem o fato de se tratar de uma

comemoraccedilatildeo como foi visto na referecircncia que Ricoeur faz ao elemento mundanidade do par

reflexividademundanidade em sua fenomenologia da memoacuteria

Em Por que sou gorda mamatildee o componente do ritual estaacute principalmente associado ao

comer e ao partilhar o alimento e menos ao cozinhar A oferta de doces na sacola de crocheacute que

a Voacute Magra faz aos netos eacute um dos exemplos dessa partilha assim como a menccedilatildeo que a

protagonista faz agraves refeiccedilotildees agrave mesa em famiacutelia Haacute o aspecto ritual nos doces oferecidos pois

satildeo de origem judaica e ilustram sabores ancestrais dessa cultura

Em Quarenta dias o ritual estaacute presente tambeacutem no comer e em muitos casos nas ofertas

de alimento que Alice recebe em seu percurso pelas vilas Como jaacute mencionado a mesa posta no

restaurante da rodoviaacuteria eacute parte do ritual da alimentaccedilatildeo e a partilha dos lanches entre Alice e

Lola representa a integraccedilatildeo dos indiviacuteduos que compartilham as refeiccedilotildees

Em um periacuteodo da histoacuteria da humanidade em que estamos prestando mais atenccedilatildeo na

gastronomia como espetaacuteculo midiaacutetico essas trecircs narrativas apontam para um retorno da

cozinha como contexto de afeto de memoacuteria de tradiccedilatildeo de construccedilatildeo de significados Michael

Pollan em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo reitera

Estamos falando mais sobre culinaacuteria- e assistindo a programas de culinaacuteria lendo sobre

o assunto e indo a restaurantes onde podemos observar o preparo da comida em tempo

real Vivemos numa era em que cozinheiros profissionais se tornaram celebridades

alguns deles tatildeo famosos quanto atletas ou estrelas de cinema A mesma atividade que

muitas pessoas encaram como um trabalho enfadonho acabou sendo de alguma forma

elevada agrave categoria de esporte popular com puacuteblico proacuteprio [hellip] Por algum motivo

cozinhar eacute diferente O trabalho ou o processo carrega uma forccedila emocional ou

psicoloacutegica da qual natildeo podemos-ou natildeo queremos- nos livrar (POLLAN 2014 p11)

Nas trecircs narrativas lecirc-se o cozinhar cumprindo os propoacutesitos ancestrais que o homem

aprendeu com o domiacutenio do fogo nutrir e agregar No mundo real que Italo Calvino chamou de

lsquomundo natildeo escritorsquo a cozinha promove essas vivecircncias pela transformaccedilatildeo do alimento e pelo

viacutenculo com os outros indiviacuteduos atraveacutes da comida preparada Nas obras escolhidas para o

corpus os espaccedilos fiacutesico e simboacutelico da cozinha tornam-se parte do mundo escrito exprimindo-

se atraveacutes do ofiacutecio de seus autores Reafirma-se assim a perspectiva de Italo Calvino

142

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MOREIRA Maria Eunice De cozinhas sabores e famiacutelia em O arroz de Palma In

BARBERENA Ricardo CARNEIRO Viniacutecius (Org) Das luzes agraves soleiras perspectivas

144

criacuteticas na literatura brasileira contemporacircnea Porto Alegre Casa Editorial Luminara 2014 p

159-175

MOSCOVICH Ciacutentia Por que sou gorda mamatildee Satildeo Paulo Record 2006

PELIZZA Lorenzo BENAZZI Franco Psicopatologia del Piacere Giornale Italiano di

Psicopatologia Pisa v3 n14 p 293-306 2008 Disponiacutevel em

lthttpwwwjpsychopatholitwp-contentuploads201508Pelizza1pdfgt Acesso em 10 out

2016 Traduccedilatildeo nossa

POLLAN Michael Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo Rio de Janeiro Intriacutenseca

2014

REZENDE Maria Valeacuteria Quarenta dias Satildeo Paulo Alfaguara 2014

RICOEUR Paul A memoacuteria a histoacuteria o esquecimento Campinas Editora da Unicamp

2014

RUTIGLIANO Rita Per mangiare in versi e in prosa In ______ (Org) Spunti e spuntini

letterari collana cibo di carta Santhiagrave GS Editrice 2000 p 10-15 Traduccedilatildeo nossa

SARDE Michegravele MONTECINO Sonia La mano de Marguerite Yourcenar cocina escritura

y biografia (1950-1987) Buenos Aires Editorial del Nuevo Extremo 2014 (Colecioacuten La cultura

en la cocina) Fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo Traduccedilatildeo nossa

SHEPHERD Gordon Neurogastronomy how the brain creates flavor and why it matters New

York Columbia University Press 2012 Traduccedilatildeo nossa

SHUA Ana Mariacutea Sobre comida y literatura In ______ Risas y emociones de la cocina judiacutea

Buenos Aires Ediciones B Argenina SA 2016 p 113 Traduccedilatildeo nossa

TOAFF A Cozinha judaica cozinhas judaicas In MONTANARI Massimo (Org) O mundo

na cozinha histoacuteria identidade trocas Satildeo Paulo Senac 2009 p 179-194

Page 3: 0 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ... · Às receitas de quitutes, de doces, de refeições, escritas a mão em cadernos familiares, ou colhidas da Internet

0

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

Ficha catalograacutefica elaborada pela Bibliotecaacuteria Clarissa Jesinska Selbach CRB102051

C268m Cardoso Betina Mariante

Agrave moda da casa a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico em O arroz

de Palma Por que sou gorda mamatildee e Quarenta dias Betina Mariante

Cardoso ndash 2016

144 fls

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio

Grande do Sul

Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira

1 Anaacutelise literaacuteria 2 Literatura brasileira 3 Memoacuteria I Moreira

Maria Eunice II Tiacutetulo

CDD 801

0

BETINA MARIANTE CARDOSO

Agrave MODA DA CASA

A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE

SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS

Dissertaccedilatildeo apresentada como preacute-requisito para

obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teoria da

Literatura pela Faculdade de Letras da Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira

Aprovada em 01 de dezembro de 2016

BANCA EXAMINADORA

Profa Dra Luciana Abreu Jardim

Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena

Profa Dra Maria Eunice Moreira

Porto Alegre

1o de dezembro de 2016

1

Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda pelos infinitos legados

que constituem meu gosto pela literatura pela cozinha e por sua interface

O som das teclas da maacutequina de escrever do Vocirc Heacutelio o perfume do panelatildeo de chimia de uva

Isabel da Voacute Leacuteia o brilho de sol nos vidros de ambrosia da Voacute Alda

ingredientes da minha escrita e do meu cozinhar

2

AGRADECIMENTOS

Agrave Profa Dra Maria Eunice Moreira pela proposta do tema que me encanta a interface

entre Literatura e Cozinha e seus diaacutelogos com outras aacutereas por todos os ensinamentos nas

disciplinas do Mestrado e na orientaccedilatildeo da escrita da Dissertaccedilatildeo pelo incentivo e pela confianccedila

durante toda a trajetoacuteria

Ao Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena pelo despertar da curiosidade e do gosto pela

literatura brasileira contemporacircnea pela confianccedila e entusiasmo e pela riqueza das sugestotildees

apontadas na Banca de Qualificaccedilatildeo de Mestrado

Agrave Profa Dra Luciana Abreu Jardim pelos ensinamentos transmitidos durante o mini-

curso que ministrou em Caxias do Sul em 2015 intitulado ldquoSobre o pensamento de Julia

Kristeva a experiecircncia-revolta atraveacutes dos cruzamentos de sentidosrdquo de grande relevacircncia para a

construccedilatildeo de minha bagagem adquirida durante o Mestrado

Agrave Profa Dra Leacutea Masina pelos meus dez anos de aprendizado nos seminaacuterios de escrita

literaacuteria por seu papel fundamental no amadurecimento do meu gosto por escrever e pelo carinho

com que conduz o processo de descobertas na literatura

Aos meus pais Ana Cristina e Apolinaacuterio e ao meu irmatildeo Diego pelo estiacutemulo aos meus

percursos e pelo incentivo para que eu sempre abrisse janelas aos horizontes possiacuteveis

Aos amigos de toda a vida Melissa Sharlene e Jaime pela amizade incondicional e pelo

apoio conversas e risadas durante o periacuteodo de escrita da Dissertaccedilatildeo

Ao Marcelo pela partilha dos prazeres da mesa com afeto muitos risos e boa prosa e

pelo estiacutemulo e sugestotildees nos desafios durante os momentos especiais do nosso conviacutevio

3

Aos autores das obras que compotildeem o corpus da Dissertaccedilatildeo Francisco Azevedo Ciacutentia

Moscovich e Maria Valeacuteria Rezende A partir de O arroz de Palma Por que sou gorda mamatildee

e Quarenta dias foi possiacutevel realizar o presente estudo

Agrave bibliotecaacuteria Clarissa Selbach pela disponibilidade e pela excelecircncia durante todo o

percurso da Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Aos meus sobrinhos Eacuterico e Lucas por me permitirem voltar a ser crianccedila em nossas

brincadeiras e por participarem do fazer culinaacuterio com alegria de festa

Agrave Tacircnia pelo afeto e pela celebraccedilatildeo de sempre

Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda a quem dedico essa

Dissertaccedilatildeo

4

ldquoFamiacutelia eacute afinidade eacute lsquoagrave moda da casarsquo

E cada casa gosta de preparar a famiacutelia a seu jeitordquo

(AZEVEDO 2008)

5

RESUMO

A presente dissertaccedilatildeo de Mestrado visa analisar a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico no

contexto de trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco

Azevedo (2008) Por que sou gorda mamatildee de Cintia Moscovich (2006) e Quarenta dias de

Maria Valeria Rezende (2014) No estudo de cada obra eacute estabelecida a relaccedilatildeo entre a cozinha e

um dos trecircs seguintes paradigmas respectivamente memoacuteria prazer e autonomia Assim o

trabalho eacute composto por trecircs capiacutetulos intitulados ldquoCozinha e memoacuteriardquo ldquoCozinha e prazerrdquo

ldquoCozinha e autonomiardquo O propoacutesito eacute compreender de que forma a cozinha eacute apresentada nas

narrativas do corpus no contexto dos temas escolhidos Elementos da fenomenologia

psiquiaacutetrica da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo satildeo apresentados em diaacutelogo com a

literatura brasileira contemporacircnea

Palavras-chave Literatura brasileira contemporacircnea Cozinha Comida

6

ABSTRACT

This dissertation aims to analyze the kitchen as a physical and symbolic space within the context

of three works of contemporary Brazilian literature Francisco Azevedorsquos O arroz de Palma

(2008) Cintia Moscovichrsquos Por que sou gorda mamatildee (2006) and Maria Valeria Rezendersquos

Quarenta dias (2014) In each work kitchen is related to one of the following three paradigms

respectively memory pleasure and autonomy Thus this study consists of three chapters entitled

Kitchen and Memory Kitchen and Pleasure and Kitchen and Autonomy Our goal is to

understand how the kitchen is described in the narratives of the corpus in the context of the

selected topics Elements of psychiatric phenomenology sociology and food history are

presented in connection with contemporary Brazilian literature

Keywords Contemporary Brazilian literature Kitchen Food

7

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 10

1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA 15

11 O ARROZ DE PALMA 15

12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA 19

13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO 34

14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA 42

2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57

21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57

22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL 60

23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA 66

24 O PRAZER DA COMIDA 74

3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS 92

31 QUARENTA DIAS 92

32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS 97

33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA 105

34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI 111

CONCLUSAtildeO 132

REFEREcircNCIAS 142

10

INTRODUCcedilAtildeO

O ato de cozinhar eacute parte ancestral da nossa existecircncia como seres humanos Desde os

tempos primitivos o homem transforma o ingrediente cru em alimento cozido Comemos por

necessidade nutricional mas tambeacutem por outros motivos comemos para sentir prazer com um

bom prato para socializarmos partilhando esse prazer com outras pessoas para evocarmos

lembranccedilas de famiacutelia e as nossas proacuteprias com sabores que fazem parte de nossa bagagem

emotiva Escolhemos o que comer aprendemos a gostar mais desse ou daquele doce somos

conhecidos pelo quitute que preparamos para os amigos Adoramos canela mas detestamos

alecrim A cozinha faz parte da construccedilatildeo de nossa identidade e da memoacuteria que vamos

formando a partir das experiecircncias vivenciadas sozinhos ou em grupo

Um ponto de extrema relevacircncia eacute o fato de que a comida supre as demandas orgacircnicas

manteacutem-nos com energia para enfrentar a rotina e sustenta a sauacutede razotildees pelas quais eacute parte de

nossa autonomia Recebemos o leite materno quando somos ainda dependentes do peito da matildee

a seguir os pais nos alimentam com novos sabores ateacute que passamos a aprender a gostar de

modo individual disso ou daquilo E aprendemos a natildeo gostar daquele guisado de aboacutebora do

almoccedilo ou da salada de cenoura beterraba alface e tomate - que devemos comer porque faz bem

e ponto As escolhas alimentares tornam-se parte de nossa capacidade de dirigirmos nosso Eu e

de compormos nossas preferecircncias Assim natildeo seria exagero referir que tais escolhas nos

identificam pois satildeo um pedaccedilo de quem nos tornamos como indiviacuteduos e como famiacutelia O

alimento torna-se uma fatia das histoacuterias que vivemos e das emoccedilotildees que sentimos

Haacute um aspecto a ser questionado a que nos referimos quando falamos em cozinha Ao

espaccedilo fiacutesico que essa ocupa na casa onde estatildeo o forno e o fogatildeo o refrigerador a pia Aos

utensiacutelios como talheres e pratos panelas eletrodomeacutesticos peneira travessas e assim por

diante Aos ingredientes em parte mantidos na despensa enquanto outros devem permanecer

refrigerados Agraves receitas de quitutes de doces de refeiccedilotildees escritas a matildeo em cadernos

familiares ou colhidas da Internet ou copiadas no programa televisivo de famosos chefs Agraves

recordaccedilotildees de vivecircncias passadas com as avoacutes que nos ensinavam o saber culinaacuterio pelo

claacutessico lsquobotar a matildeo na massarsquo Agrave cultura de um povo pelas comidas que prepara

A cozinha contempla todos esses elementos do simboacutelico ao concreto da antiguidade

mais remota aos tempos hipervelozes de hoje com diversas miacutedias dirigidas aos temas culinaacuterios

11

do conforto emocional que representava ao glamour que vem atingindo com o avanccedilo da

gastronomia como expressatildeo de status social e econocircmico no seacuteculo XXI

Memoacuteria prazer e autonomia lsquoingredientesrsquo relevantes na relaccedilatildeo do ser humano com o

alimento tanto na sua preparaccedilatildeo quanto no ato de comer propriamente dito

Pela importacircncia e significado da cozinha em todos os tempos e em todas as culturas a

presente dissertaccedilatildeo visa discutir seu papel nos acircmbitos fiacutesico e simboacutelico em trecircs obras da

literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco Azevedo (2008) Por que

sou gorda mamatildee de Ciacutentia Moscovich (2006) e Quarenta dias de Maria Valeacuteria Rezende

(2014)

A organizaccedilatildeo eacute composta por trecircs capiacutetulos que mantecircm a mesma estrutura na epiacutegrafe

um trecho emblemaacutetico da obra a ser explorada sob a perspectiva de um dos paradigmas

definidos como memoacuteria prazer e autonomia um fragmento introdutoacuterio para apresentaacute-lo em

sua relaccedilatildeo com a cozinha seguido de quatro subdivisotildees na primeira a apresentaccedilatildeo da obra do

corpus na segunda a fundamentaccedilatildeo teoacuterica do atributo escolhido para cada uma das narrativas

na terceira a reflexatildeo sobre este visto agrave luz de sua relaccedilatildeo com a cozinha na quarta a anaacutelise

das obras especiacuteficas utilizando-se trechos e analisando-os a partir das reflexotildees e estudos jaacute

expostos

O primeiro capiacutetulo intitulado ldquoCozinha e memoacuteria em O arroz de Palmardquo apresenta a

cozinha vinculada agraves histoacuterias familiar e pessoal das personagens o que permite relacionar esse

livro com a pesquisa sobre a memoacuteria tanto a individual como a coletiva O segundo capiacutetulo

intitulado ldquoCozinha e prazer em Por que sou gorda mamatildeerdquo traz a cozinha principalmente

manifesta pela vivecircncia do prazer da comida e suas consequecircncias para a protagonista como o

engorde motivo pelo qual incide sobre o prazer na relaccedilatildeo com a cozinha O terceiro capiacutetulo

intitulado ldquoCozinha e autonomia em Quarenta diasrdquo contempla o estudo dessa obra em que se

revela uma alimentaccedilatildeo vivenciada fora de casa atraveacutes da comida e dos lugares que a oferecem

Ao longo do percurso da personagem atraveacutes da retomada de sua independecircncia o comer eacute uma

das principais representaccedilotildees de sua autonomia nessa narrativa Assim o binocircmio estudado no

uacuteltimo capiacutetulo eacute cozinha e autonomia

O arroz de Palma trata da relevacircncia de um elemento o arroz na histoacuteria de vaacuterias

geraccedilotildees da famiacutelia do protagonista motivo pelo qual este capiacutetulo aborda a relaccedilatildeo entre cozinha

e memoacuteria Considerando-se a memoacuteria um tema estudado por diversos campos do

12

conhecimento a fundamentaccedilatildeo teoacuterica desse capiacutetulo eacute constituiacuteda pelos seguintes autores no

acircmbito filosoacutefico Paul Ricoeur e Gaston Bachelard cultural Aleida Assmann psicopatoloacutegico

Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio Bulbena e Sandro Domenichetti neurocientiacutefico Ivan

Izquierdo e Gordon Shepherd Satildeo tambeacutem referidas reflexotildees de Mircea Eliade na compreensatildeo

do mito As perspectivas do socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan satildeo

apresentadas junto aos autores jaacute referidos na subdivisatildeo que aborda a memoacuteria no contexto da

cozinha

Por que sou gorda mamatildee traz a cozinha ligada ao prazer pelo fato de a narrativa

abordar as sensaccedilotildees prazerosas ligadas agrave comida A fundamentaccedilatildeo teoacuterica abrange as facetas

bioloacutegica e cultural do prazer Na esfera bioloacutegica a reflexatildeo inclui aspectos saudaacuteveis e

psicopatoloacutegicos contendo ideias do psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers e dos psiquiatras

Lorenzo Pelizza e Franco Benazzi na esfera socioloacutegica a reflexatildeo parte da leitura do socioacutelogo

Carlos Alberto Doacuteria em seus livros A subdivisatildeo que apresenta o prazer ligado agrave cozinha eacute

constituiacuteda principalmente por Jean Louis Flandrin Maacutessimo Montanari e Jean-Anthelme Brillat-

Savarin

Quarenta dias expressa a relaccedilatildeo entre cozinha e autonomia pois o comer representa

para a personagem sua decisatildeo de sobrevivecircncia real Ela come porque tem fome necessidade

fisioloacutegica propriamente dita sendo o comer vinculado agraves decisotildees e agrave autonomia para tomaacute-las

elemento-chave na construccedilatildeo de seu percurso Nesse capiacutetulo a cozinha eacute principalmente

expressa pela comida motivo pelo qual este eacute o termo empregado na terceira e quarta

subdivisotildees A fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute composta por contribuiccedilotildees de Karl Jaspers tambeacutem

explorado nos capiacutetulos anteriores por aquelas do neurocientista Antonio Damaacutesio e do

psiquiatra Massimo Biondi Na subdivisatildeo que estabelece viacutenculo entre a comida e a autonomia

expressa como consciecircncia de si apoiamos a anaacutelise no pensamento do socioacutelogo Carlos Alberto

Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan tambeacutem presentes nos capiacutetulos anteriores

A decisatildeo por pesquisar na literatura a expressatildeo da cozinha deve-se ao nosso

questionamento sobre o modo como essa aparece atraveacutes da escrita literaacuteria Que contextos e que

termos satildeo escolhidos pelos escritores para retratar a cozinha como espaccedilos fiacutesico e simboacutelico

em suas obras A escolha recai sobre a literatura brasileira contemporacircnea definindo para o

corpus livros escritos por autores brasileiros em 2006 2008 e 2014 Trecircs livros publicados nas

duas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXI periacuteodo que coincide com a explosatildeo do papel da cozinha

13

em acircmbitos mundial e sem duacutevidas nacional Conforme refere Maria Eunice Moreira no ensaio

ldquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmardquo

Espaccedilo alquiacutemico por sua natureza lugar de transformaccedilatildeo e de transmutaccedilatildeo a cozinha

eacute um dos espaccedilos mais tematizados na atualidade Isso pode ser comprovado pelo

nuacutemero de perioacutedicos especializados em gastronomia variedades de programas de TV e

destaque concedido a chefes e gourmets que se tornaram personagens midiaacuteticos

Diferentes miacutedias hoje divulgam as proezas de cozinheiros especializados que divulgam

suas descobertas culinaacuterias com ingredientes exoacuteticos confeccionando pratos originais

(MOREIRA 2014 p167)

Com a magnitude das expressotildees gastronocircmicas contemporacircneas no mundo e no Brasil eacute

plausiacutevel encontrar na literatura de nosso tempo obras que tragam a cozinha nos seus diversos

domiacutenios ao papel de protagonista A escolha especiacutefica pela literatura brasileira contemporacircnea

resulta de nosso interesse por compreender com que linguagem ela eacute expressa em nosso paiacutes em

nossa literatura em nossa contemporaneidade Ainda de acordo com o ensaio acima referido

sobre O arroz de Palma vale ressaltar

Mas certamente os leitores concordam que no fundo dos bauacutes que cruzaram os mares

entre enxadas e sementes vieram junto bens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre

o antigo e o novo espaccedilo a ser habitado Satildeo esses bens porque falam a linguagem do

mito os mais duradouros e perenes e satildeo eles tambeacutem capazes de inspirar a escrita da

literatura brasileira em tempos de globalizaccedilatildeo (MOREIRA 2014 p174)

Os lsquobens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre o antigo e o novo espaccedilo a ser

habitadorsquo estatildeo presentes em O arroz de Palma e tambeacutem no livro Por que sou gorda mamatildee

Nesse uacuteltimo atraveacutes da representaccedilatildeo de uma famiacutelia de imigrantes judeus e de sua relaccedilatildeo com

a comida e com o prazer de comer Em Quarenta dias a protagonista eacute tambeacutem uma imigrante

mas vinda de outro Estado e de outra cultura no mesmo Paiacutes Assim tambeacutem nessa narrativa haacute

um contraste entre o espaccedilo antigo e o novo a ser habitado a cidade de Porto Alegre eacute o territoacuterio

desconhecido ao qual a narradora personagem deveraacute se adaptar Da mesma forma como

transfere sua moradia para as ruas da cidade enquanto reluta em apropriar-se de sua lsquonova vidarsquo

tambeacutem transfere sua alimentaccedilatildeo para as padarias botecos carrinhos de pipoca e de cachorro

quente pela rua restaurantes e bares de rodoviaacuteria Para ela a decisatildeo de comer eacute resultado da

fome do mero existir como o sono e o banho A cozinha bem como sua vida estatildeo

lsquotransplantadasrsquo para as ruas da cidade

Nas trecircs obras selecionadas para este estudo haacute um papel central desempenhado pela

cozinha a representaccedilatildeo de aspectos da natureza humana como a ligaccedilatildeo com o prazer a

14

memoacuteria e a autonomia como jaacute foi referido Nas narrativas a cozinha o cozinhar e o comer

existem atraveacutes das comidas dos ingredientes de instrumentos e do espaccedilo fiacutesico em si mas satildeo

expressos sobretudo como emoccedilotildees e vivecircncias recuperaccedilatildeo de tradiccedilotildees e expressatildeo de

sentimentos e de memoacuterias Ao escolher o termo lsquocozinharsquo para a representaccedilatildeo global estamos

incluindo o campo de ideias que esse envolve ou seja todo o espaccedilo fiacutesico e os elementos

materiais como eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios as comidas desde o ingredientes e

receitas ateacute os pratos propriamente ditos por fim os elementos simboacutelicos portanto imateriais

como as representaccedilotildees de ritualidade e os elementos psiacutequicos e culturais que envolvem o

cozinhar e o comer

O tiacutetulo ldquoAgrave moda da casardquo remete agraves receitas de um periacuteodo da culinaacuteria em que a

cozinha caseira ocupava papel central na alimentaccedilatildeo familiar Essa envolvia as concepccedilotildees de

lar de famiacutelia de memoacuteria dos pratos que eram partilhados na mesa nas refeiccedilotildees Uma carne de

panela agrave moda da casa eacute aquela feita seguindo o lsquocomo-se-fazrsquo na histoacuteria da famiacutelia A expressatildeo

lembra os cadernos de receitas as cozinhas das avoacutes matildees e tias a memoacuteria e os sabores da

tradiccedilatildeo as noccedilotildees de identidade e de consciecircncia de si como indiviacuteduo singular que eacute parte de

um plural a famiacutelia Todos esses aspectos satildeo presentes nas obras do corpus e portanto estatildeo

incluiacutedos na reflexatildeo sobre o tiacutetulo escolhido

15

1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA

- Como eacute que simples guardanapos satildeo capazes de trazer tanta recordaccedilatildeo

- Porque fizeram histoacuteria satildeo a prova real e dos nove que um grupo de pessoas se reunia

regularmente para celebrar - natildeo importa o quecirc Festejavam a vida e pronto A data

religiosa ou pagatilde era pretexto Podia ser Paacutescoa ou Carnaval Esses guardanapos tecircm

alma Aliaacutes todo ser inanimado passa a ter alma no momento em que se lhe imprime

afeto As coisas tambeacutem aspiram a uma existecircncia sensiacutevel

Francisco Azevedo

A cozinha eacute o espaccedilo onde habitam forno fogatildeo geladeira pia pratos talheres

guardanapos panelas travessas caderno de receitas ingredientes chimia de uva pudim doce de

leite e ambrosia E lembranccedilas Muitos de nossos registros tecircm sabores proacuteprios Recordamos

essa ou aquela vivecircncia porque sua representaccedilatildeo eacute ligada a um gosto a uma textura a um

aroma Houve aquele doce de ovos que experimentamos em uma uacutenica e inesqueciacutevel ocasiatildeo

Vale evocar tambeacutem o faqueiro de uma avoacute presente de casamento ou a panela de fondue

comprada com orgulho fruto do primeiro salaacuterio da monitoria na faculdade No territoacuterio fiacutesico

da cozinha a memoacuteria tem corpo tem existecircncia material atraveacutes dos ingredientes dos

instrumentos dos eletrodomeacutesticos da receita de famiacutelia preparada para o almoccedilo Acima de

tudo a memoacuteria tem respiraccedilatildeo

11 O ARROZ DE PALMA

A escolha do tema cozinha e memoacuteria nasce atraveacutes da leitura da primeira obra definida

para o presente corpus O arroz de Palma de Francisco Azevedo publicada pela Editora Record

em 2008 O significado da cozinha para a nossa experiecircncia subjetiva tem fortes raiacutezes nas

histoacuterias guardadas atraveacutes das lembranccedilas e transmitidas entre as geraccedilotildees Essa obra da

literatura brasileira contemporacircnea propotildee tal resgate com relevante aprofundamento

A narrativa comeccedila pela voz do protagonista Antocircnio narrador personagem que traz ao

leitor em primeira pessoa a histoacuteria de sua famiacutelia os pais receacutem-casados e Palma sua tia

paterna Os trecircs vieram de Viana do Castelo em Portugal para o Brasil no comeccedilo do seacuteculo XX

Entretanto o que Antocircnio vem contar antecede a imigraccedilatildeo o ponto que daacute origem agrave histoacuteria da

obra eacute o casamento dos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana Depois da cerimocircnia Palma

decide juntar todos os gratildeos de arroz atirados aos noivos na lsquoabenccediloada chuva de arrozrsquo

16

torrencial feita de lsquopunhados e mais punhadosrsquo Fez-se lsquochuva branca que natildeo paravarsquo Como se

fosse colheita ela junta gratildeo por gratildeo e coloca todos em um saco de estopa que leva aos receacutem-

casados como seu presente pelo matrimocircnio Surpreendente eacute a reaccedilatildeo de Joseacute Custoacutedio ao

receber a ideia de Palma raivoso desdenha do arroz ofertado pela irmatilde como se fosse presente

de menor valor A esposa Maria Romana contemporiza a situaccedilatildeo mas manteacutem a posiccedilatildeo firme

de que aceitaratildeo o presente E o arroz torna-se a alma dessa famiacutelia Melhor dizendo Palma

torna-se a alma da famiacutelia

A obra eacute composta por cinquenta e nove capiacutetulos curtos trezentas e sessenta e uma

paacuteginas e um calendaacuterio ao final com datas relevantes para a compreensatildeo da passagem do

tempo perspectiva essencial em O arroz de Palma Antocircnio eacute o narrador personagem muito do

que conta sobre a histoacuteria familiar ouviu de sua tia Palma figura de grande importacircncia na

formaccedilatildeo de sua personalidade Ela testemunhou boa parte das vivecircncias em Portugal e na

chegada ao Brasil protagonizou a maioria das cenas que se tornaram lembranccedilas Essas

transformaram-se depois em histoacuterias contadas por Palma e escutadas por Antocircnio

Fazendo zigue-zagues nas geraccedilotildees Antocircnio relembra pontos que conhece de viver e

pontos que sabe por escutar Em momentos da leitura parece estar contando a trama ao leitor

noutros tem-se a sensaccedilatildeo de que as conversas satildeo consigo mesmo a fim de percorrer uma linha

de tempo que faccedila sentido Ele narra de sua cozinha no presente do indicativo enquanto a

memoacuteria percorre outros tempos verbais mas a idade jaacute deixa lacunas Quando faltam

ingredientes na despensa da memoacuteria resta a tentativa de montar histoacuterias possiacuteveis ele compotildee

em um conjunto o que foi vivido e imaginado junto agraves suas reflexotildees atuais agrave beira do fogatildeo

Estaacute preparando a receita tiacutepica de arroz com significado em sua histoacuteria pessoal para a

comemoraccedilatildeo do centenaacuterio do matrimocircnio dos seus pais e do arroz colhido por Palma e

presenteado ao casal

Nas idas e vindas aparece de iniacutecio a fuacuteria de Joseacute Custoacutedio ao ganhar o saco de gratildeos de

arroz dirigida agrave irmatilde Palma Os trecircs vecircm para o Brasil onde ele consegue trabalho em uma

fazenda Mais tarde jaacute com a vida organizada quando o casal tem dificuldades em ter filhos

surge nova fuacuteria quando Palma sugere oferecer-lhe o arroz como forma de ajudar na fecundaccedilatildeo

pelos poderes atribuiacutedos ao ingrediente Ele recusa enraivecido mas Palma e Maria Romana

fazem com que coma o arroz mesmo assim No momento da raiva quebra a lsquoquarta cadeirarsquo que

iraacute reformar para sua irmatilde passada a coacutelera Essa seraacute a cadeira de onde ela contaraacute a Antocircnio as

17

memoacuterias de famiacutelia os remendos de histoacuteria as fantasias e imaginaccedilotildees as dores e intimidades

de sua juventude

A quarta cadeira seraacute seu palco Antocircnio eacute o expectador Cria-se um forte laccedilo entre ele e

a tia pois se torna desde cedo o herdeiro das recordaccedilotildees familiares Essa aproximaccedilatildeo acaba

por distanciaacute-lo dos trecircs irmatildeos Leonor Nicolau e Joaquim enquanto ele eacute mais lsquocaseirorsquo gosta

de ficar ouvindo as histoacuterias da Tia Palma os trecircs satildeo mais agitados apreciam os passeios e as

brincadeiras pelo campo A distacircncia entre ele e os trecircs faz com que a tia o chame de lsquoAntocircnimorsquo

opondo suas caracteriacutesticas agraves dos irmatildeos As diferenccedilas seguiratildeo vida afora o que o protagonista

vai contando em seus percursos

Surge entatildeo seu romance com Isabel filha do patratildeo de seu pai sua ida para o Rio de

Janeiro o noivado com a moccedila e o arroz de bacalhau para celebrar a ocasiatildeo em famiacutelia A

receita foi preparada com o mesmo arroz que serviu para a fertilidade dos pais o mesmo arroz

presenteado por Palma para o casamento deles o mesmo arroz da chuva abenccediloada da cerimocircnia

O arroz testemunha a vida da famiacutelia alinha suas histoacuterias nessa narrativa parece ser a

representaccedilatildeo da memoacuteria familiar Lembranccedila a lembranccedila gratildeo a gratildeo As narrativas vatildeo sendo

transmitidas escutadas digeridas Antes do casamento Antocircnio e Isabel lsquoroubamrsquo um punhado e

levam consigo ao lago abenccediloando o primeiro momento de uniatildeo fiacutesica que partilham Mais uma

vez o arroz participa da ocasiatildeo formando registros de memoacuteria

Casam-se Nascem os filhos Nuno e Rosaacuterio Gecircmeos Seratildeo no entanto muito

diferentes entre si ela objetiva praacutetica ele sensiacutevel Entre casamentos e separaccedilotildees a narrativa

segue trilhada pela voz de Antocircnio em idas e vindas nas deacutecadas entre o casamento dos pais e

seu aniversaacuterio Sempre ao lado de Isabel nos trechos de vida sempre com dificuldades na

ligaccedilatildeo com os irmatildeos Entre o arroz presenteado por Palma no casamento de Joseacute Custoacutedio e

Maria Romana e a receita de arroz preparada por Antocircnio em sua cozinha esse conta os

nascimentos e as mortes relembra a perda de tia Palma recorda-se de vivecircncias dolorosas ao

longo do percurso de cada um e de todos O arroz eacute roubado da vitrine do restaurante de Antocircnio

e Isabel pelos filhos outra porccedilatildeo parece ter sido roubada pela esposa de um dos irmatildeos por

ciuacuteme de seu casamento Mais tarde surge a informaccedilatildeo de que Antocircnio e a cunhada tiveram

uma ligaccedilatildeo afetiva antes de ambos unirem-se a seus pares Voltam a encontrar-se em um ponto

da histoacuteria em uma tarde de braccedilos dados desejos satisfeitos e despedida cordial

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Muitas satildeo as tramas vividas e recordadas nessa narrativa Antocircnio eacute o narrador

personagem mas a leitura faz o leitor convencer-se o protagonista a bem da verdade eacute o arroz

A tia Palma tem papel decisivo na famiacutelia eacute ela quem daacute a direccedilatildeo em vaacuterios momentos da

histoacuteria nas vidas do irmatildeo Joseacute Custoacutedio da cunhada Maria Romana do sobrinho mais

proacuteximo Antocircnio e de seus irmatildeos Eacute ela quem daacute a direccedilatildeo aos gratildeos de arroz no percurso

desde o casamento em Portugal na Igreja ateacute sua morte contando sempre com a cumplicidade

da cunhada O protagonista segue conversando com a tia em pensamento perguntando suas

opiniotildees e conselhos

Palma transmite histoacuterias o arroz transmite histoacuterias Ao longo de toda a narrativa ambos

vatildeo deixando suas marcas na vida das personagens Em sua cozinha enquanto prepara o arroz

ele une os gratildeos pelo cozimento assim como une as recordaccedilotildees em uma soacute histoacuteria da famiacutelia

Se acaba por esquecer de algo lembra depois ou conta agrave sua moda Lembranccedilas agrave moda da casa

Toda a narrativa eacute tecida com uma linha que atravessa as vivecircncias a metaacutefora feita agraves

famiacutelias como se fossem pratos da culinaacuteria O narrador protagonista traz a imagem de vaacuterios

desses pratos e suas equivalecircncias nos grupos familiares enquanto se lembra dos trechos de vida

entremeados com emoccedilotildees e pensamentos Natildeo eacute possiacutevel alinhar as memoacuterias estatildeo espalhadas

Parte delas remontam etapas de vida outras lugares e pessoas Haacute registros que surgem de

experiecircncias vividas e daquelas que ele conhece apenas por ouvir- em geral de sua tia Palma

sentada na quarta cadeira

Podemos lembrar do que vivemos ou do que imaginamos em nossa maquinaria de

lembranccedilas memoacuteria e imaginaccedilatildeo fundem-se e o que vivenciamos por ouvir contar se torna

tambeacutem parte de nossos registros pessoais Eacute o que se passa com Antocircnio quando conta o que

ouviu de Palma com tal fidelidade que parece ele mesmo ter vivido Escutou imaginou e entatildeo

apropriou-se da histoacuteria com suas proacuteprias cores eacute dele agora a trama contada pela tia Algo

parecido eacute o processo de alquimia de uma receita de cozinha quando eacute transmitida de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo cada novo cozinheiro agrega seu modo de preparar a receita e ela vai assim sendo

transformada pelo tempo e pelas vozes que a leem agrave beira do fogatildeo

19

12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA

O propoacutesito de estudar a memoacuteria neste capiacutetulo eacute o de apresentaacute-la como um processo

inerente agrave constituiccedilatildeo do ser humano Necessitamos deixar registros agraves geraccedilotildees seguintes assim

como seguir rastros dos antepassados Queremos pertencer a uma histoacuteria de famiacutelia e construir a

nossa para ser lembrada e seguida Acima de tudo a memoacuteria eacute parte da identidade

imprescindiacutevel na consciecircncia do indiviacuteduo sobre si mesmo

No campo de estudos da memoacuteria haacute os substratos neuroanatocircmico neurofisioloacutegico e

neuroquiacutemico que a compotildeem sob a perspectiva orgacircnica responsaacuteveis por seu funcionamento

adequado entretanto o foco predominante neste estudo consiste no entendimento da memoacuteria

como processo singular em termos psiacutequicos e plural em termos culturais Devido agraves muacuteltiplas

facetas do tema ampliamos a fundamentaccedilatildeo teoacuterica para os campos fenomenoloacutegico em que

apresentamos as ideias de Paul Ricoeur cultural a partir dos estudos de Aleida Assmann

psicopatoloacutegicas em que satildeo apontadas reflexotildees de Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio

Bulbena e Sandro Domenichetti e neurocientiacuteficas em que fazemos referecircncia aos

neurocientistas Ivan Izquierdo argentino e Gordon Shepherd americano

A cozinha situa-se nas esferas da memoacuteria individual e coletiva A relaccedilatildeo que se

estabelece entre o indiviacuteduo e os aromas que habitam sua memoacuteria como no caso das madeleines

recordadas por Proust a partir de um gatilho eacute de tamanha intimidade que se torna parte de sua

bagagem afetiva Da mesma forma o caderno de receitas de uma avoacute pode atravessar geraccedilotildees

pois os sabores ali registrados evocam lembranccedilas da histoacuteria familiar Ao serem reproduzidos

despertam na memoacuteria de um grupo natildeo apenas a receita original mas toda a constelaccedilatildeo de

emoccedilotildees que envolve essa lembranccedila como a cozinha em que era feita as panelas pratos e

talheres os almoccedilos dominicais na mesa da sala de jantar

As experiecircncias representam os ingredientes para a formaccedilatildeo da memoacuteria Muitas delas

nascem das histoacuterias vivenciadas na cozinha seja atraveacutes da percepccedilatildeo de um gosto do sentir de

uma emoccedilatildeo do ato de mexer um bolo ou de preparar um prato Todas satildeo carimbadas pela

interpretaccedilatildeo pelos sentimentos e pelo significado que cada circunstacircncia assume em nosso

percurso E esse carimbo vira lembranccedila armazenada na despensa da memoacuteria passiacutevel de

transformaccedilotildees ao longo do amadurecimento e das vicissitudes de cada fase de vida Afinal de

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contas a memoacuteria natildeo eacute um registro estaacutetico ela eacute isso sim um processo dinacircmico dependente

de nosso olhar e de nosso viver

Conforme o psicopatologista alematildeo Karl Jaspers a memoacuteria eacute um mecanismo que tem

relaccedilatildeo com o colorido afetivo com o significado das coisas Ele definiu a memoacuteria propriamente

dita como um reservatoacuterio em que novos materiais satildeo integrados pela fixaccedilatildeo e satildeo extraiacutedos agrave

consciecircncia atraveacutes da funccedilatildeo de evocaccedilatildeo para ele a chegada e a partida dos materiais seriam

devidas agraves respectivas funccedilotildees de fixaccedilatildeo e evocaccedilatildeo enquanto a memoacuteria representaria o

reservatoacuterio de disponibilidade permanente (JASPERS 2000 p188) Se pensarmos na cozinha

a memoacuteria seria a despensa onde satildeo postos novos ingredientes e de onde satildeo retirados aqueles

escolhidos para o uso Jaacute de acordo com Bulbena citando Serralonga ldquo[] em termos objetivos

eacute possiacutevel defini-la como a capacidade de adquirir de reter e de utilizar secundariamente uma

experiecircnciardquo (BULBENA 1998 p169)

Bulbena aponta quarto aspectos relevantes na compreensatildeo da memoacuteria como fenocircmeno

humano entre os quais distingue a entrada a manutenccedilatildeo e a saiacuteda das informaccedilotildees em

constante intercacircmbio entre organismo e ambiente o aspecto de transformaccedilatildeo dessas

informaccedilotildees modificando o conteuacutedo que entra no lsquoreservatoacuteriorsquo de Jaspers tanto para o

armazenamento quanto para a futura reproduccedilatildeo desse conteuacutedo o fato de a memoacuteria ser

produzida no contexto de estruturas nervosas que veiculam o processo apontando-se que as

alteraccedilotildees neste resultaratildeo em transtornos em seus mecanismos de fixaccedilatildeo armazenamento e

reproduccedilatildeo O quarto ponto definido pelo autor eacute de grande importacircncia para a finalidade do

presente capiacutetulo a memoacuteria forma parte do conjunto da vida psiacutequica sendo as emoccedilotildees

especialmente relevantes em sua composiccedilatildeo e forma parte tambeacutem da biografia do indiviacuteduo

em que teraacute influecircncia e da qual receberaacute influecircncia tambeacutem

Quando o autor se refere agrave biografia estaacute fazendo menccedilatildeo agraves experiecircncias de vida desse

indiviacuteduo e satildeo essas que muitas vezes ocorreram em sua relaccedilatildeo com o comer e com a cozinha

O dado de a memoacuteria fazer parte da vida psiacutequica eacute significativo sobretudo no que tange agrave

relaccedilatildeo com o campo emocional pois sempre que tais experiecircncias vinculadas ao universo

culinaacuterio ocorrerem haveraacute o processamento da resposta afetiva

A memoacuteria eacute essencialmente parte da vida psiacutequica do ser humano e resultado de

mecanismos cerebrais de controle Eacute considerada uma das funccedilotildees do estado mental dos

indiviacuteduos avaliada no exame psiquiaacutetrico dessas funccedilotildees Bulbena refere que

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etimologicamente a maioria dos autores situa sua origem no termo latino memoacuteria de

significado similar ao atual mas haacute quem atribua a origem agrave palavra gemynd de raiz

anglosaxocircnica que conforme refere significaria mente Assim eacute possiacutevel que a associaccedilatildeo entre

memoacuteria e vida psiacutequica seja representada na proacutepria origem da palavra

Mesmo que a finalidade do presente capiacutetulo seja apresentar a memoacuteria vinculada agraves

vivecircncias de cozinha cabe realizar a abordagem desse mecanismo como fenocircmeno Paul Ricoeur

apresenta a respeito da fenomenologia da memoacuteria seu viacutenculo com a imaginaccedilatildeo O autor

refere que podemos fazer referecircncia a um evento passado ou dizer que temos dele uma imagem

que pode ser quase visual ou auditiva E aponta que a memoacuteria opera em funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo

reforccedilando a perspectiva de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que expressa que ldquo[] a memoacuteria eacute

uma proviacutencia da imaginaccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p25)

Tal aspecto liga-se ao exposto pelo neurocientista Gordon Shepherd que em seu livro

sobre neurogastronomia expotildee ldquoPara muitas pessoas as partes mais importantes do olfato e do

sabor satildeo as memoacuterias que elas evocam e as emoccedilotildees associadas a essasrdquo (SHEPHERD 2012

p174) Olfato e sabor satildeo tambeacutem elementos que evocam imagens de situaccedilotildees vivenciadas mas

imagens construiacutedas pelas caracteriacutesticas psiacutequicas individuais assim pode-se dizer que evocam

a imaginaccedilatildeo

A lembranccedila de um acontecimento do preparo de uma comida ou da ocasiatildeo em que a

saboreamos ocorre atraveacutes da imagem que fazemos dessas circunstacircncias Lembramos com cor

com cheiros com gostos Lembramos imaginando e eacute isso que Paul Ricoeur traz como ponto de

partida Shepherd refere que nossos mecanismos cognitivos tecircm a qualidade de perceber e de

evocar as coisas como um todo integrado a partir de uma fraccedilatildeo (SHEPHERD 2012) o que se

assemelha ao que Ricoeur refere sobre a ligaccedilatildeo mencionada ldquoEacute sob o signo da associaccedilatildeo de

ideias que estaacute situada essa espeacutecie de curto-circuito entre memoacuteria e imaginaccedilatildeo se essas duas

afecccedilotildees estatildeo ligadas por contiguidade evocar uma - portanto imaginar - eacute evocar a outra-

portanto lembrar-se delardquo (RICOEUR 2014 p25) Essa ideia associa-se ao fato de que todos os

registros que os sentidos percebem oriundos do mundo externo ao corpo satildeo traduzidos em

percepccedilotildees e entatildeo em lembranccedilas a serem armazenadas A lembranccedila torna-se uma impressatildeo

da experiecircncia e natildeo seu registro idecircntico uma vez que pode ser compreendida como uma

reconstruccedilatildeo do passado a partir da perspectiva atual O que laacute fixamos natildeo eacute idecircntico ao que no

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presente podemos evocar pois outras vivecircncias se colocam no caminho nos transformam e

modificam nosso modo de recordar o que um dia haviacuteamos registrado

O inconsciente em todo o processo pode guardar a sete chaves algumas das informaccedilotildees

fixadas parte do que vivemos passaraacute a ser liberado ou escondido por sua tutela Lembramos de

algo pela imaginaccedilatildeo do que permaneceu desse algo em nosso mundo interno na compreensatildeo

neurocientiacutefica os registros captados pelos sentidos ficam armazenados em estruturas

especiacuteficas predominantemente no hemisfeacuterio direito quando as lembranccedilas estiverem

conectadas a emoccedilotildees Uma lsquopistarsquo que dermos agrave memoacuteria seja uma figura um som um gosto

um aroma ou uma textura ou uma emoccedilatildeo podem trazer de volta em viagem ultraveloz a cena

arquivada com todas as transformaccedilotildees que o tempo provoca em noacutes

Eacute possiacutevel compreender que a memoacuteria identifica o indiviacuteduo e sua bagagem de

vivecircncias pois soacute nos lembramos do que conhecemos ldquoReconhecer algueacutem significa saber jaacute tecirc-

lo visto antes assim como recordar-se de um acontecimento significa saber que este jaacute ocorreu no

passadordquo (MINKOWSKI 2004 p143) O entendimento sobre suas consideraccedilotildees eacute a de que

uma lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a tonalidade emotiva com que este foi

percebido ou seja a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos

recordaremos dela no futuro porque eacute assim que a conhecemos Sobre tal aspecto Ivan

Izquierdo neurocientista especializado neste campo refere

Podemos afirmar conforme Norberto Bobbio que somos aquilo que recordamos

literalmente Natildeo podemos fazer aquilo que natildeo sabemos nem comunicar nada que

desconheccedilamos isto eacute que natildeo esteja na nossa memoacuteria Tambeacutem natildeo estatildeo agrave nossa

disposiccedilatildeo os conhecimentos inacessiacuteveis nem formam parte de noacutes os episoacutedios dos

quais esquecemos ou os quais nunca atravessamos O acervo de nossas memoacuterias faz

com que cada um de noacutes seja o que eacute um indiviacuteduo um ser para o qual natildeo existe outro

idecircntico (IZQUIERDO 2011 p11 grifo do autor)

O psicopatologista Eugeacutene Minkowski aborda a memoacuteria no capiacutetulo intitulado lsquoO

passadorsquo em seu livro O tempo vivido Tal afirmaccedilatildeo expressa que ela eacute parte de nosso tempo

vivido e atraveacutes da reflexatildeo de Ivan Izquierdo pode-se compreender que ela eacute parte do nosso

tempo de conhecimento vivido A ideia de que a memoacuteria faz de noacutes ldquo[] um ser para o qual natildeo

existe outro idecircnticordquo (IZQUIERDO 2011 p12) reforccedila a noccedilatildeo de que esse fenocircmeno eacute um

elemento inerente a um sujeito uacutenico com suas experiecircncias percepccedilotildees e bagagens Ainda

conforme Ivan Izquierdo ldquo[] o conjunto das memoacuterias de cada um determina aquilo que se

denomina personalidade ou forma de serrdquo (IZQUIERDO 2011 p12) O neurocientista refere que

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as emoccedilotildees e os estados de acircnimo tecircm importante papel no processo da memoacuteria tanto em

termos de aquisiccedilatildeo quanto de formaccedilatildeo e finalmente de evocaccedilatildeo

Falar em emoccedilotildees ou estados de acircnimo remete agrave referecircncia de Minkowski sobre as

tonalidades afetivas O psicopatologista faz alusatildeo ao viacutenculo entre emoccedilotildees e memoacuteria

expressando o modo como o sentir influencia o lembrar Eacute possiacutevel comprender sua ideia da

seguinte forma colocamos a mirada sobre nosso mundo interior para focar em uma fraccedilatildeo do

passado que sentimos presente em noacutes Isso seria equivalente agrave evocaccedilatildeo de uma lembranccedila Ao

percebermos o sentimento ligado a esse tempo anterior essa lembranccedila amplia-se agrave medida que

a encontramos em nosso iacutentimo A conexatildeo emotiva torna a vivecircncia passada cada vez mais

visiacutevel e de contornos niacutetidos como um feixe de luz que ao aumentar expande a aacuterea de

claridade e mostra os detalhes de um terreno

Tal iluminaccedilatildeo reproduz vivecircncias remotas como se fossem situaccedilotildees que nos parecem

recentes pela forccedila emotiva ligada ao evento passado Entretanto nossa impressatildeo sobre tais

eventos pode ser transformada por aspectos psiacutequicos que ocorrem entre o tempo real e o

lembrado modificando a impressatildeo do fato em suas nuances Permanece a essecircncia prazerosa ou

penosa de um fato mas a evocaccedilatildeo da lembranccedila pode tornaacute-la um rosa suave ou um vermelho

vivo Para mudar seu tom contam tanto nosso estado de acircnimo ao vivermos algo quanto ao

lembrarmos esse algo Memoacuteria e emoccedilatildeo assim estatildeo intimamente ligadas entre si em especial

no que concerne agraves nossas experiecircncias de vida

O termo memoacuteria no singular remete-nos a dois eixos um primeiro mais evidente eacute o

tempo o segundo subterracircneo o espaccedilo Tal colocaccedilatildeo vem do fato de que a memoacuteria pode ser

percebida como um espaccedilo subjetivo em nossa vida psiacutequica motivo pelo qual tecemos a

analogia com a imagem da despensa de cozinha Esta eacute de fato um espaccedilo objetivo mas cuja

subjetividade aparece ao revelar muitos aspectos sobre o morador da casa Seria plausiacutevel referir

que a despensa identifica esse sujeito em suas preferecircncias alimentares em sua condiccedilatildeo

econocircmica em sua regularidade nas refeiccedilotildees feitas no lar aleacutem de demonstrar se vive sozinho

ou em famiacutelia se tem haacutebitos saudaacuteveis se manteacutem cuidados com a higiene com o meio-

ambiente com os prazos dos alimentos e por aiacute vai A despensa seria assim a memoacuteria da casa

um espaccedilo onde se colocam os ingredientes onde satildeo armazenados e de onde satildeo retirados para o

uso imediato Nessa analogia os ingredientes remetem-nos agrave imagem das lembranccedilas guardadas

na despensa

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A partir dessa reflexatildeo eacute importante pensar no par lembranccedilas e memoacuteria como uma

relaccedilatildeo entre plural e singular Podem-se estabelecer ainda outras relaccedilotildees como a ideia de que a

memoacuteria maior conteacutem as lembranccedilas menores e muacuteltiplas A primeira representa um amplo

espaccedilo subjetivo para o armazenamento das segundas Uma comparaccedilatildeo mais detalhada colocaria

alguns itens nas estantes mais altas da despensa onde o acesso eacute difiacutecil ou mais ao fundo atraacutes

de elementos que satildeo usados com regularidade Natildeo eacute raro que esses ingredientes em partes

menos visualizadas sejam menos usados enquanto aqueles mais visiacuteveis sejam retirados dali e

consumidos com maior frequecircncia Tanto a regularidade do uso quanto os gostos alimentares

definem os produtos que ficam disponiacuteveis em estantes de mais faacutecil acesso em contraponto os

menos usados entram na categoria dos menos vistos

Aspectos que raramente enxergamos ficam esquecidos na despensa em lugares difiacuteceis e

ateacute passam da validade se natildeo tomamos conhecimento de que estatildeo laacute natildeo iremos evocaacute-los e

acabam por permanecer por um longo periacuteodo no canto mais longiacutenquo daquele espaccedilo Inuacutemeras

vezes esquecemos de usar produtos que guardamos haacute mais tempo e lembramos de acessar os

mais presentes em nossa rotina Aleacutem disso cabe lembrar que haacute estantes ou compartimentos em

uma despensa que servem justamente ao propoacutesito de definiccedilatildeo de categorias as mais

importantes alcanccedilamos estendendo o braccedilo enquanto as de menor relevacircncia recebem acesso

pelo uso da escada domeacutestica da lanterna para a procura ou no caso de estarem nas prateleiras

inferiores de posiccedilotildees fiacutesicas para encontrar o elemento procurado

Ao guardarmos algo que pouco usamos criamos espaccedilos de esquecimento dentro da

memoacuteria Para que resgatemos esses ingredientes haacute elementos como a imagem que nos

despertam para a recordaccedilatildeo de que um dia tomamos contato com ele Mais uma vez surge a

figura do conhecimento preacutevio entatildeo do passado como criteacuterio para o reconhecimento

Reconhecer eacute conhecer novamente voltar a tomar contato

Considerando a partir da analogia estabelecida as lembranccedilas como elemento plural

presente na memoacuteria de caraacuteter singular torna-se necessaacuterio compreender o fenocircmeno da

memoacuteria sob vaacuterias perspectivas Haacute diversos fatores envolvidos no modo como nos lembramos

de algo no porquecirc dessas lembranccedilas tornarem-se de mais faacutecil ou de mais difiacutecil acesso para

quais registros damos mais relevacircncia ao lsquoguardar na despensarsquo e outras variaacuteveis ligadas ao

lembrar e ao esquecer Tais perspectivas natildeo estatildeo divididas mas sim ligadas no texto uma vez

que ao contraacuterio das prateleiras da despensa a memoacuteria eacute um espaccedilo sem divisotildees estabelecidas

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na experiecircncia humana Mesmo do ponto de vista cerebral ela ocupa diversas aacutereas e muacuteltiplos

sistemas sendo resultado de um processo de integraccedilatildeo de estruturas e de funccedilotildees cerebrais

Um aspecto relevante sobre o uso da palavra memoacuteria quando usado no plural estaacute na

literatura Ler as memoacuterias de um autor remete agrave ideia de uma narrativa autobiograacutefica ou

biograacutefica novamente ligando a ideia de memoacuteria ao campo da definiccedilatildeo de identidade

Considero que esse termo seja o de maior importacircncia no conjunto do fenocircmeno pois mesmo que

se trate da memoacuteria de um grupo essa revela seu caraacuteter identitaacuterio

Identidade eacute palavra-chave no campo da memoacuteria O psiquiatra italiano Sandro

Domenichetti apresenta a lembranccedila como ldquo[] experiecircncia que constroacutei a consciecircncia de si e

que define a relaccedilatildeo entre o mundo afetivo e aquele cognitivordquo (DOMENICHETTI 2003 p1)

de acordo com ele entre as funccedilotildees da consciecircncia estaacute a diacrocircnica ou seja a de percepccedilatildeo da

identidade estaacutevel atraveacutes do tempo A consciecircncia entatildeo eacute um elemento central neste campo

Domenichetti refere que esta ldquo[] parece entatildeo configurar-se como um tipo de memoacuteria de si no

tempordquo (DOMENICHETTI 2003 p1) enfatizando a perspectiva de que ldquo[] um senso de si eacute

essencial para que todas as minhas lembranccedilas sejam exatamente as minhas lembranccedilasrdquo

(DOMENICHETTI 2003 p1 grifo do autor)

Outro elemento apontado por este autor tem como base a explanaccedilatildeo de Israel Rosenfeld

meacutedico e pesquisador com atuaccedilatildeo relevante no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti

Roselfield expotildee a continuidade da consciecircncia como derivada da correspondecircncia que o ceacuterebro

estabelece em momentos sucessivos com eventos no espaccedilo e no tempo sendo seu elemento vital

a autoconsciecircncia Para Roselfield

As minhas lembranccedilas emergem da relaccedilatildeo entre meu corpo e a imagem que meu

ceacuterebro tem do meu corpo (uma atividade inconsciente na qual o ceacuterebro constroacutei para si

uma ideia generalizada do corpo ideia que se modifica continuamente) Eacute esta relaccedilatildeo

que cria o senso de lsquosirsquo (DOMENICHETTI 2003 p2)

A fim de corroborar a relaccedilatildeo entre corpo e ceacuterebro estabelecida por Rosenfield

Domenichetti refere-se a Henri Bergson (1859-1941) filoacutesofo e diplomata francecircs cuja obra

destacou-se pelas contribuiccedilotildees no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti

[] o nosso conhecimento da realidade eacute feito de percepccedilotildees impregnadas de

lembranccedilas A memoacuteria de Bergson funciona atraveacutes de operaccedilotildees de coleta de imagens

que progressivamente satildeo produzidas o corpo eacute uma dessas imagens a uacuteltima para ser

exato E se o corpo em geral eacute uma imagem eacute oacutebvio que o eacute tambeacutem o ceacuterebro Este

ligar a percepccedilatildeo a memoacuteria e o corpo com passagens de um a outro atraveacutes da

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dimensatildeo temporal define a construccedilatildeo da funccedilatildeo mental da qual a memoacuteria eacute atributo

fundador como organizaccedilatildeo autoreflexiva que pensa o corpo (DOMENICHETTI 2003

p1)

Pode-se compreender entatildeo corpo e ceacuterebro como palcos onde as imagens da memoacuteria

satildeo encenadas Tais imagens unem-se agraves percepccedilotildees atuais do indiviacuteduo compondo um conjunto

formado pelo antes e o agora ndash passado e presente ndash intrincados Ainda referindo-se agraves

contribuiccedilotildees de Roselfield nesse campo Domenichetti acrescenta

Tambeacutem na visatildeo de Roselfield assim a memoacuteria natildeo pode ser considerada como um

manual de informaccedilotildees mas sobretudo como uma atividade contiacutenua do ceacuterebro Isso se

observa principalmente no caso das imagens Quando recordo a imagem de um evento

da minha infacircncia por exemplo natildeo a extraio de um hipoteacutetico arquivo de imagens

preexistentes devo formar conscientemente uma nova imagem (DOMENICHETTI

2003 p2)

Tais explanaccedilotildees sobre o papel da imagem para a recordaccedilatildeo coincidem com a

perspectiva de Paul Ricoeur em A lembranccedila e a imagem na primeira parte de sua obra jaacute

referida Ele questiona ldquoComo explicar que a lembranccedila retorne em forma de imagem e que a

imaginaccedilatildeo assim mobilizada chegue a revestir-se das formas que escapam agrave funccedilatildeo do irrealrdquo

(RICOEUR 2014 p66)

Para chegar a respostas possiacuteveis ele recorre a Bergson entre outros autores Deste

aponta que ldquoAdoto como hipoacutetese de trabalho a concepccedilatildeo bergsoniana da passagem da

lsquolembranccedila-purarsquo agrave lembranccedila-imagemrdquo (RICOEUR 2014 p67) De acordo com Ricoeur sobre

o trabalho de Bergson ldquoele traz de certo modo a lembranccedila para uma aacuterea de presenccedila

semelhante agrave da percepccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p68) ressaltando da imaginaccedilatildeo o que chama

de ldquofunccedilatildeo visualizanterdquo ou seja ldquosua maneira de dar a verrdquo (RICOEUR 2014 p68) Ricoeur

esclarece que

Eacute como se a forma que Bergson chama intermediaacuteria ou mista da lembranccedila isto eacute a

lembranccedila-imagem a meio-caminho entre lsquolembranccedila-purarsquo e a lembranccedila reinscrita na

percepccedilatildeo no estaacutegio em que o reconhecimento desabrocha no sentimento do deacutejagrave vu

correspondesse a uma forma intermediaacuteria da imaginaccedilatildeo a meio caminho entre a ficccedilatildeo

e a alucinaccedilatildeo a saber o componente imagem da lembranccedila-imagem Portanto eacute

tambeacutem como forma mista que eacute preciso falar da funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo que consiste em

lsquopocircr debaixo dos olhosrsquo funccedilatildeo que podemos chamar ostensiva trata-se de uma

imaginaccedilatildeo que mostra que expotildee que deixa ver (RICOEUR 2014 p70)

Assim o que se tem eacute uma zona de fronteiras pouco demarcadas entre a percepccedilatildeo a

lembranccedila e a imaginaccedilatildeo Ricoeur refere em relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas e diferenccedilas entre as duas

uacuteltimas ldquoCertamente dissemos e repetimos que a imaginaccedilatildeo e a memoacuteria tinham como traccedilo

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comum a presenccedila do ausente e como traccedilo diferencial de um lado a suspensatildeo de toda posiccedilatildeo

de realidade e a visatildeo de um irreal do outro a posiccedilatildeo de um real anteriorrdquo (RICOEUR 2014

p61)

Nesse sentido o papel da percepccedilatildeo eacute o de captar a realidade atraveacutes dos cinco sentidos

para entatildeo formar registros que no futuro seratildeo lembranccedilas As imagens que resgato satildeo

diferentes das que percebi no instante do acontecimento pois se misturam com outros

ingredientes como as emoccedilotildees por exemplo Ricoeur aponta ldquoTeriacuteamos assim a sequecircncia

percepccedilatildeo lembranccedila ficccedilatildeo Um limiar de inatualidade eacute transposto entre lembranccedila e ficccedilatildeordquo

(RICOEUR 2014 p65) Esse limiar de inatualidade expresso por ele como ldquotransposto entre

lembranccedila e ficccedilatildeordquo parece referir-se agrave passagem do tempo que torna as imagens de uma

vivecircncia cada vez mais proacuteximas da imaginaccedilatildeo quanto mais longiacutenquo for o passado

O filoacutesofo Gaston Bachelard em A poeacutetica do espaccedilo ao mencionar as lembranccedilas

associadas ao habitar de uma nova casa expressa o entrelaccedilamento entre a memoacuteria e a

imaginaccedilatildeo

E o devaneio se aprofunda de tal modo que para o sonhador do lar um acircmbito

imemorial se abre para aleacutem da mais antiga memoacuteria A casa como o fogo como a

aacutegua nos permitiraacute evocar na sequecircncia de nossa obra luzes fugidias de devaneio que

iluminam a siacutentese do imemorial com a lembranccedila Nessa regiatildeo longiacutenqua memoacuteria e

imaginaccedilatildeo natildeo se deixam dissociar Ambas trabalham para seu aprofundamento muacutetuo

Ambas constituem na ordem dos valores uma uniatildeo da lembranccedila com a imagem

(BACHELARD 2012 p25)

A relaccedilatildeo entre lembranccedila e imagem em Bachelard encontra-se bem representada atraveacutes

da ideia da casa e do habitar onde esses dois fenocircmenos se fundem Ele menciona a ideia de que

ldquo[] o calendaacuterio da nossa vida soacute pode ser estabelecido em seu processo produtor de imagensrdquo

(BACHELARD 2012 p28) Este calendaacuterio parece ser para o autor as lembranccedilas recordadas

por meio da imagem das cenas vividas e sentidas Bachelard refere que ldquo[] a imagem

estabelece-se numa cooperaccedilatildeo entre o real e o irreal pela participaccedilatildeo da funccedilatildeo do real e da

funccedilatildeo do irrealrdquo (BACHELARD 2012 p73) tecendo uma ligaccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo memoacuteria e

percepccedilatildeo Cabe ressaltar nesse ponto o aspecto de esta uacuteltima ocorrer atraveacutes dos cinco

sentidos veiacuteculo de traduccedilatildeo do mundo externo para o interno Retorna-se ao jaacute apresentado

sobre a relevacircncia do corpo para a memoacuteria Ricoeur menciona a esse respeito

Eacute o elo entre memoacuteria corporal e memoacuteria dos lugares que legitima a tiacutetulo primordial a

dessimplicaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo de sua forma objetivada O corpo constitui desse

28

ponto de vista o lugar primordial o aqui em relaccedilatildeo ao qual todos os outros lugares satildeo

laacute (RICOEUR 2014 p59)

Compreender o papel da memoacuteria do corpo conduz agrave identificaccedilatildeo desta dentro da

consciecircncia de si pois diz respeito aos registros deixados pelas vivecircncias com potencial de

serem encenados novamente pelo indiviacuteduo O ato de cozinhar seria um exemplo de como a

memoacuteria corporal faz com que se pratique o ato culinaacuterio como um conhecimento do corpo

muitas vezes executado de forma habitual Ricoeur aponta que ldquo[] a memoacuteria corporal pode ser

lsquoagidarsquo como todas as outras modalidades de haacutebito como a de dirigir um carro que estaacute em meu

poder Ela varia segundo todas as variantes do sentimento de familiaridade ou de estranhezardquo

(RICOEUR 2014 p57) O autor acrescenta

Assim a memoacuteria corporal eacute povoada de lembranccedilas afetadas por diferentes graus de

distanciamento temporal a proacutepria extensatildeo do lapso de tempo decorrido pode ser

percebida sentida na forma de saudade nostalgia [] O momento da recordaccedilatildeo eacute

entatildeo o do reconhecimento (RICOEUR 2014 p57)

Partindo dessa compreensatildeo seria possiacutevel pensar em corpo casa e lugar como espaccedilos

onde a recordaccedilatildeo nasce do mais especiacutefico o corpo ao mais inespeciacutefico o lugar Em todos

esses espaccedilos haacute accedilotildees e vivecircncias que podem constituir lembranccedilas Conforme Ricoeur

A transiccedilatildeo da memoacuteria corporal para a memoacuteria dos lugares eacute assegurada por atos tatildeo

importantes como orientar-se deslocar-se e acima de tudo habitar Eacute na superfiacutecie

habitaacutevel da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado lugares memoraacuteveis

Assim as lsquocoisasrsquo lembradas satildeo intrinsecamente associadas a lugares E natildeo eacute por acaso

que dizemos sobre uma coisa que aconteceu que ela teve lugar Eacute de fato nesse niacutevel

primordial que se constitui o fenocircmeno dos lsquolugares de memoacuteriarsquo (RICOEUR 2014

p57-58)

Essa ideia pode ser corroborada com a perspectiva de Bachelard sobre o habitar

Eacute preciso dizer como habitamos o nosso espaccedilo vital de acordo com todas as dialeacuteticas

da vida como nos enraizamos dia a dia num lsquocanto do mundorsquo

Porque a casa eacute nosso canto do mundo Ela eacute como se diz amiuacutede o nosso primeiro

universo Eacute um verdadeiro cosmos (BACHELARD 2012 p24)

A respeito da relevacircncia da casa para a formaccedilatildeo e o armazenamento das lembranccedilas

Bachelard apresenta contribuiccedilotildees que reforccedilam a visatildeo de Ricoeur sobre o papel dos lugares

para a memoacuteria

Logicamente eacute graccedilas agrave casa que um grande nuacutemero de nossas lembranccedilas estatildeo

guardadas e quando a casa se complica um pouco quando tem um poratildeo e um soacutetatildeo

cantos e corredores nossas lembranccedilas tecircm refuacutegios cada vez mais bem caracterizados

29

A eles regressamos durante toda a vida em nossos devaneios (BACHELARD 2012

p28)

A ideia da memoacuteria associada ao espaccedilo seja corpo casa ou lugar conduz agrave reflexatildeo de

que essa tem uma existecircncia subjetiva interna que eacute representada pelo aspecto objetivo material

externo isso se daacute atraveacutes de vivecircncias associadas sempre a um primeiro espaccedilo o corpoacutereo e a

um segundo mais amplo que eacute o lugar para onde a lembranccedila remete Mais uma vez as

lembranccedilas tecircm imagens de correspondecircncia eacute como se os lugares dessem carne e osso a elas

confirmam sua existecircncia em um tempo e em um espaccedilo que mesmo passado relaciona-se ao

mundo fiacutesico Quanto mais longiacutenquas no tempo mais proacuteximas se encontram da imaginaccedilatildeo

como jaacute visto entretanto ainda assim tecircm um cenaacuterio onde vivem

Examinada como fenocircmeno a memoacuteria tem propriedades que a identificam Ricoeur

estabeleceu trecircs pares de oposiccedilotildees para a compreensatildeo da fenomenologia da memoacuteria o

primeiro deles eacute a dupla haacutebitomemoacuteria sobre a qual refere

O que faz a unidade desse espectro eacute a comunidade da relaccedilatildeo com o tempo Nos dois

casos extremos pressupotildee-se uma experiecircncia anteriormente adquirida mas num caso o

do haacutebito essa aquisiccedilatildeo estaacute incorporada agrave vivecircncia presente natildeo marcada natildeo

declarada como passado no outro caso faz-se referecircncia agrave anterioridade como tal da

aquisiccedilatildeo antiga Nos dois casos por conseguinte continua sendo verdade que a

memoacuteria lsquoeacute do passadorsquo mas conforme dois modos um natildeo marcado outro sim da

referecircncia ao lugar no tempo da experiecircncia inicial

[] A operaccedilatildeo descritiva consiste entatildeo em classificar as experiecircncias relativas agrave

profundidade temporal desde aquelas em que de algum modo o passado adere ao

presente ateacute aquelas em que o passado eacute reconhecido em sua preteridade passada

(RICOEUR 2014 p43)

A segunda dupla de opostos estabelecida por Ricoeur eacute composta pelo par

evocaccedilatildeobusca representado pelos dois trechos abaixo No primeiro a reflexatildeo sobre evocaccedilatildeo

no segundo sobre a busca

1) Entendamos por evocaccedilatildeo o aparecimento atual de uma lembranccedila Eacute a esta que

Aristoacuteteles destinava o termo mneme designando por anamnesis o que chamaremos

mais adiante de busca ou recordaccedilatildeo Ele caracterizava a mneme como pathos como

afecccedilatildeo ocorre que nos lembramos disto ou daquilo nesta ou naquela ocasiatildeo entatildeo

temos uma lembranccedila Portanto eacute em oposiccedilatildeo agrave busca que a evocaccedilatildeo eacute uma

afecccedilatildeo Enquanto tal em outras palavras desconsiderando sua posiccedilatildeo polar a

evocaccedilatildeo traz a carga do enigma que movimentou as investigaccedilotildees de Platatildeo e de

Aristoacuteteles ou seja a presenccedila agora do ausente anteriormente percebido

experimentado aprendido (RICOEUR 2014 p45)

2) Voltemo-nos agora para o outro poacutelo do par evocaccedilatildeobusca Eacute ele que a

denominaccedilatildeo grega da anamnesis designava Platatildeo a mitificara ligando-a a um saber

preacute-natal do qual estariacuteamos afastados por um esquecimento ligado agrave inauguraccedilatildeo da

vida da alma num corpo esquecimento de certo modo natal que faria da busca um

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reaprender do esquecimento Aristoacuteteles [] naturalizou de certo modo a anamnesis

comparando-a agravequilo que na experiecircncia cotidiana chamamos de recordaccedilatildeo [] o

ana de anamnesis significa volta retomada recobramento do que anteriormente foi

visto experimentado ou aprendido portanto de alguma forma significa repeticcedilatildeo

Assim o esquecimento eacute designado obliquamente como aquilo contra o que eacute

dirigido o esforccedilo da recordaccedilatildeo (RICOEUR 2014 p46)

O que Ricoeur propotildee assim com o par evocaccedilatildeobusca eacute a diferenciaccedilatildeo entre a

lembranccedila e a recordaccedilatildeo sendo a primeira segundo ele representativa do surgimento

espontacircneo de um registro gravado na memoacuteria enquanto a segunda seria resultado de uma

procura ativa voluntaacuteria Referindo as ideias de Bergson sobre lsquorecordaccedilatildeo instantacircnearsquo e

lsquorecordaccedilatildeo laboriosarsquo aponta a distinccedilatildeo ldquo[] podendo a recordaccedilatildeo instantacircnea ser considerada

como o grau zero da busca e a recordaccedilatildeo laboriosa e a recordaccedilatildeo laboriosa como sua forma

expressardquo (RICOEUR 2014 p46) Assim a lembranccedila viria de uma evocaccedilatildeo proacutexima ao que

Ricoeur chama de lsquoautomatismorsquo e lsquorecordaccedilatildeo mecacircnicarsquo diferente da recordaccedilatildeo que viria lsquoda

reflexatildeo da reconstituiccedilatildeo inteligentersquo estando ambas ldquo[] intimamente mescladas na

experiecircncia comumrdquo (RICOEUR 2014 p46) Por fim com relaccedilatildeo a esse par Ricoeur refere

Eacute de fato o esforccedilo de recordaccedilatildeo que oferece a melhor ocasiatildeo de fazer lsquomemoacuteria do

esquecimentorsquo para falar com antecipaccedilatildeo como Santo Agostinho A busca da

lembranccedila comprova uma das finalidades principais do ato de memoacuteria a saber lutar

contra o esquecimento arrancar alguns fragmentos de lembranccedila agrave lsquorapacidadersquo do

tempo (Santo Agostinho dixit) ao lsquosepultamentorsquo no esquecimento Natildeo eacute somente o

caraacuteter penoso do esforccedilo de memoacuteria que daacute agrave relaccedilatildeo sua coloraccedilatildeo inquieta mas o

temor de ter esquecido de esquecer de novo de esquecer amanhatilde de cumprir esta ou

aquela tarefa porque amanhatilde seraacute preciso natildeo esquecer [] de se lembrar (RICOEUR

2014 p48)

A terceira dupla de opostos proposta por Ricoeur em sua fenomenologia da memoacuteria eacute

constituiacuteda pela polaridade reflexividademundanidade A respeito do elemento reflexividade

Ricoeur esclarece

Natildeo nos lembramos somente de noacutes vendo experimentando aprendendo mas das

situaccedilotildees do mundo nas quais vimos experimentamos aprendemos Tais situaccedilotildees

implicam o proacuteprio corpo e o corpo dos outros o espaccedilo onde se viveu enfim o

horizonte do mundo e dos mundos sob o qual alguma coisa aconteceu Entre

reflexividade e mundanidade haacute mesmo uma polaridade na medida em que a

reflexividade eacute um rastro irrecusaacutevel da memoacuteria em sua fase declarativa algueacutem diz

lsquoem seu coraccedilatildeorsquo que viu experimentou aprendeu anteriormente sob esse aspecto nada

deve ser negado sobre o pertencimento da memoacuteria agrave esfera de interioridade

(RICOEUR 2014 p53-54)

A mundanidade por sua vez constitui um elemento significativo no estudo deste

capiacutetulo uma vez que contempla a existecircncia dos rituais atraveacutes da abordagem do fenocircmeno da

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comemoraccedilatildeo Ricoeur o associa agrave ldquo[] gestualidade corporal e agrave espacialidade dos rituais que

acompanham os ritmos temporais da celebraccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p60) A associaccedilatildeo do ato

de comemoraccedilatildeo com os rituais eacute explicada por ele

Natildeo haacute efetuaccedilatildeo ritual sem a evocaccedilatildeo de um mito que orienta a lembranccedila para o que eacute

digno de ser comemorado As comemoraccedilotildees satildeo assim espeacutecies de evocaccedilotildees no

sentido de reatualizaccedilatildeo eventos fundadores apoiados pelo lsquochamadorsquo a lembrar-se que

soleniza a cerimocircnia- comemorar observa Casey eacute solenizar tomando seriamente o

passado e celebrando-o em cerimocircnias apropriadas (RICOEUR 2014 p60)

A partir da reflexatildeo de Ricoeur sobre o par reflexividademundanidade e neste uacuteltimo

elemento a presenccedila do ritual cabe salientar o estudioso Mircea Eliade Este em sua obra Mito e

Realidade apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o mito

O mito conta uma histoacuteria sagrada ele relata um acontecimento ocorrido no tempo

primordial o tempo fabuloso do lsquoprinciacutepiorsquo Em outros termos o mito narra como

graccedilas agraves faccedilanhas dos Entes Sobrenaturais uma realidade passou a existir seja uma

realidade total o Cosmo ou apenas um fragmento uma ilha uma espeacutecie vegetal um

comportamento humano uma instituiccedilatildeo Eacute sempre portanto a narrativa de uma

lsquocriaccedilatildeorsquo ele relata de que modo algo foi produzido e comeccedilou a ser O mito fala apenas

do que realmente ocorreu do que se manifestou plenamente (ELIADE 2011 p11)

A relevacircncia dessa consideraccedilatildeo reside em corroborar que ldquo[] pelo fato de relatar as

gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestaccedilatildeo dos seus poderes sagrados o mito se torna o

modelo exemplar de todas as atividades humanas significativasrdquo (ELIADE 2011 p12) A

comemoraccedilatildeo enseja o rito que reencena o mito por isso eacute mencionada na explanaccedilatildeo de Ricoeur

quando se refere aos rituais Mircea Eliade esclarece ldquo[] a principal funccedilatildeo do mito consiste em

revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas tanto a

alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE

2011 p12) Compreende-se assim a comemoraccedilatildeo como a reuniatildeo de grupo ou de um povo

para celebrar a memoacuteria conjunta de seus membros em torno de uma finalidade o rito cuja

origem estaacute no evento original o mito A ideia impliacutecita neste caso eacute a de celebrar em conjunto

a memoacuteria de algo ou seja co-memorar A fim de reforccedilar essa reflexatildeo apontamos outra

explanaccedilatildeo de Eliade

Para o homem das sociedades arcaicas ao contraacuterio o que aconteceu ab origine pode ser

repetido atraveacutes do poder dos ritos Para ele portanto o essencial eacute conhecer os mitos

Essencial natildeo somente porque os mitos lhe oferecem uma explicaccedilatildeo do Mundo e de seu

proacuteprio modo de existir no Mundo mas sobretudo porque ao rememorar os mitos e

reatualiza-los ele eacute capaz de repetir o que os Deuses os Heroacuteis e os Ancestrais fizeram

ab origine Conhecer os mitos eacute aprender o segredo da origem das coisas Em outros

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termos aprende-se natildeo somente como as coisas vieram agrave existecircncia mas tambeacutem onde

encontra-las e como fazer com que reapareccedilam quando desaparecem (ELIADE 2011

p18)

No contexto do presente capiacutetulo interessa ressaltar a compreensatildeo do ritual como

celebraccedilatildeo de uma memoacuteria ancestral por parte de um grupo A ancestralidade dessa memoacuteria

tem em sua raiz o mito que lhe deu origem Tal entendimento tem associaccedilatildeo com o cozinhar e

com o partilhar o alimento com a reuniatildeo da famiacutelia em torno da comida e com a repeticcedilatildeo das

praacuteticas culinaacuterias que mesmo evoluindo ao longo do tempo remontam o primordial tornar cru

em cozido Outro elemento ligado agrave realizaccedilatildeo de rituais associados agrave cozinha estaacute na recitaccedilatildeo

do modo de fazer um prato quando transmitido atraveacutes de uma receita escrita O caminho que

essa percorre entre as geraccedilotildees de uma famiacutelia eacute emblemaacutetico de sua forccedila ritualiacutestica como se

carregasse de forma transgeracional a memoacuteria desse grupo atraveacutes do como-se-faz de uma

determinada praacutetica

Antes da existecircncia da receita no caderno o conhecimento empiacuterico dos antepassados

sobre o fazer culinaacuterio era ensinado oralmente e atraveacutes do proacuteprio fazer quando recitaccedilotildees eram

feitas para que o prato saiacutesse a contento essas eram assim a representaccedilatildeo do ritual naquele

grupo familiar Nesse sentido retomamos Eliade em sua explicaccedilatildeo sobre a recitaccedilatildeo do mito

Em Timor por exemplo quando germina um arrozal dirige-se ao campo algueacutem que

conhece as tradiccedilotildees miacuteticas referentes ao arroz [] Recitando o mito de origem

obriga-se o arroz a crescer tatildeo belo vigoroso e abundante como era quando apareceu

pela primeira vez Natildeo eacute com o fim de lsquoinstruiacute-lorsquo ou ensinar-lhe a maneira como deve

comportar-se que o oficiante lembra ao arroz o modo como foi criado Ele o forccedila

magicamente a retornar agrave origem isto eacute a reiterar sua criaccedilatildeo exemplar (ELIADE

2011 p19)

Esses conhecimentos eram transmitidos junto com a receita ou seja eram parte da

memoacuteria daquele prato em seu papel na tradiccedilatildeo familiar Vale lembrar que a etimologia de

receita estaacute no latim recepta alusivo a receber expressa entatildeo aquilo que se recebe em termos

de ensinamento sobre o fazer de uma comida especiacutefica Haacute diversas expressotildees no folclore da

cozinha que remontam a transmissatildeo do saber culinaacuterio em uma cultura

Haacute diferenccedila entre a memoacuteria individual essa que nos identifica como indiviacuteduos e a

memoacuteria coletiva Como exemplo da uacuteltima cito esse lsquosaber culinaacuterio em uma culturarsquo que

remete agrave compreensatildeo sobre a memoacuteria coletiva no contexto deste capiacutetulo Esta assim como a

individual tem em seu eixo a noccedilatildeo de identidade no caso da memoacuteria de um indiviacuteduo como jaacute

visto refere-se agrave consciecircncia de si mesmo como base daquilo de que ele eacute capaz de se lembrar

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para que as lembranccedilas sejam suas no caso da memoacuteria coletiva este eixo estaacute na identidade do

grupo que a conteacutem pois a memoacuteria e o grupo alimentam-se reciprocamente o grupo se manteacutem

vivo pelas memoacuterias enquanto essas permanecem presentes pela unidade do grupo

A respeito dessa inter-relaccedilatildeo a pesquisadora e professora alematilde Aleida Assmann no

livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo-formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural menciona as ideias

de Maurice Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva referindo que ldquo[] a memoacuteria coletiva assegura

a singularidade e a continuidade de um grupordquo (ASSMANN 2011 p144) e esclarece

Seu interesse voltou-se apenas agrave pergunta sobre o que manteacutem as pessoas unidas em

grupos Deparou assim com o significado agregador das lembranccedilas em comum como

importante elemento de coesatildeo Derivou daiacute a noccedilatildeo da existecircncia de uma lsquomemoacuteria de

gruporsquo Mas as lembranccedilas natildeo se estabilizam somente no grupo O grupo torna estaacuteveis

as lembranccedilas A investigaccedilatildeo de Halbwachs em torno dessa lsquomemoacuteria coletivarsquo resultou

no seguinte a estabilidade da memoacuteria coletiva estaacute vinculada de maneira direta agrave

composiccedilatildeo e subsistecircncia do grupo Se o grupo se dissolve os indiviacuteduos perdem em

sua memoacuteria a parte de lembranccedilas que os fazia assegurarem-se e identificarem-se como

grupo (ASSMANN 2011 p144)

A referecircncia agrave memoacuteria ligada agrave manutenccedilatildeo de um grupo remete novamente agrave ideia no

acircmbito das vivecircncias culinaacuterias das receitas de cozinha transmitidas entre as geraccedilotildees de uma

mesma famiacutelia O elemento que sustenta a presenccedila dessa receita no grupo eacute a memoacuteria que este

tem a respeito do lsquocomo-se-fazrsquo de uma determinada comida Enquanto houver membros dessa

famiacutelia que se interessem em manter a tradiccedilatildeo daquele determinado sabor a memoacuteria seraacute

mantida ao mesmo tempo enquanto houver essa memoacuteria a integraccedilatildeo do grupo permaneceraacute

Segundo Aleida Assmann

Os estudos do historiador francecircs Pierre Nora demonstraram que por traacutes da memoacuteria

coletiva natildeo haacute alma coletiva nem espiacuterito coletivo algum mas tatildeo somente a sociedade

com seus signos e siacutembolos Por meio dos siacutembolos em comum o indiviacuteduo toma parte

de uma memoacuteria e de uma identidade tidas em comum Nora cumpriu na teoria da

memoacuteria o passo que vai do grupo vinculado na coexistecircncia espaccedilo-temporal tema

estudado por Halbwachs agrave comunidade abstrata que se define por meio dos siacutembolos

que abrangem e agregam em niacutevel espacial e temporal Os portadores dessa memoacuteria

coletiva natildeo precisam conhecer-se para apesar disso reinvindicar para si uma identidade

comum (ASSMANN 2011 p145)

Assim como referido sobre o papel de uma receita de famiacutelia como elemento de coesatildeo

entre os membros da mesma atraveacutes das geraccedilotildees situaccedilatildeo semelhante pode ocorrer em relaccedilatildeo

a um determinado ingrediente ou preferecircncia alimentar A transmissatildeo de um saber culinaacuterio e

dos gostos de uma famiacutelia tambeacutem satildeo aspectos que se perpetuam no grupo em funccedilatildeo da

memoacuteria que agrega seus integrantes

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A memoacuteria individual entatildeo manteacutem a identidade por dar ao indiviacuteduo sua caracteriacutestica

singular atraveacutes do tempo nela estatildeo suas impressotildees lembranccedilas e registros que compotildeem a

noccedilatildeo de permanecircncia de quem ele eacute ou seja reforccedilam nele a consciecircncia do eu na duraccedilatildeo de

ciclos que se perpetuam Ele sabe quem eacute em grande parte pelas lembranccedilas que tem de si

Circunstacircncia anaacuteloga ocorre com a memoacuteria coletiva em que o grupo se manteacutem coeso pela

consciecircncia de ser um grupo com lembranccedilas em comum o papel dessas eacute exatamente o de

manter a unidade e a permanecircncia da identidade do conjunto

A memoacuteria individual e a coletiva estatildeo portanto implicadas na vivecircncia culinaacuteria

relaccedilotildees a serem exploradas na divisatildeo que segue

13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO

A relaccedilatildeo entre cozinha e memoacuteria existe devido agrave linguagem Avanccedilando nessa

perspectiva Mariano Garciacutea e Mariana Dimoacutepulos compiladores da obra Escritos sobre la mesa-

Literatura y comida afirmam que ldquo[] a relaccedilatildeo entre linguagem e comida comeccedila desde o

momento em que graccedilas agrave escritura se conservam notiacutecias de como se comia na Antiguidaderdquo

(GARCIacuteA DIMOacutePULOS 2014 p9) Toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo assim eacute conhecida em

virtude do que se registrou ao longo das eacutepocas sob os mais diversos veiacuteculos Esse aspecto eacute

relevante tanto do ponto de vista de Histoacuteria da Humanidade quanto daquele das histoacuterias

familiares atraveacutes de escritos transmitidos de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Em ambos os exemplos os

escritos culinaacuterios satildeo representativos da memoacuteria coletiva

Ainda no que concerne a essa memoacuteria salientamos que ela tem tambeacutem outras

expressotildees presentes no acircmbito identitaacuterio de uma cultura De acordo com Daniela Bunn em sua

obra O alimento na literatura uma questatildeo cultural ldquo[] satildeo assim criados em torno da mesa

modos maneiras e ingredientes que estabelecem uma identidade cultural destinada a representar

um grupo e sua identidaderdquo (BUNN 2016 p28) Tais lsquomodos maneiras e ingredientesrsquo satildeo

elementos que constituem parte da bagagem que pertence a um grupo e agraves geraccedilotildees seguintes

atraveacutes da memoacuteria coletiva Podemos citar como exemplos os ensinamentos culinaacuterios

aprendidos atraveacutes de gestos e de relatos orais e as preferecircncias alimentares de uma famiacutelia ou de

um povo

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Visitando cadernos de receitas antigos que pertenceram a avoacutes matildees e tias percebemos

uma caracteriacutestica em comum a todos eles o elenco de ingredientes com suas medidas e a breve

descriccedilatildeo do lsquocomo-se-fazrsquo apenas para guiar a praacutetica Parece-nos inclusive que eram

anotaccedilotildees que elas faziam para si mesmas para que natildeo esquecessem de um ou outro detalhe e

natildeo registros para serem transmitidos na famiacutelia Ensinavam sim mas in loco na hora em que

estivessem fazendo Mostravam caracteriacutesticas no aspecto do prato sendo feito apontavam para

os ruiacutedos da cebola fritando faziam sentir a textura de uma massa de patildeo o cheiro de um doce

exalando pela cozinha denunciavam a pitada de sal que ainda faltava no arroz soacute de provarem

com a ponta da colher Como sabiam Porque lembravam pelo que um dia aprenderam e mais do

que isso lembravam pelo haacutebito pelo praticar e de forma mais vivencial pelo sentir atraveacutes dos

cinco sentidos

Em Pequeno alfarraacutebio de acepipes e doccediluras haacute um capiacutetulo dedicado agrave cozinha das

avoacutes intitulado lsquoNossas avoacutesrsquo cujo propoacutesito eacute o de refletir de modo especiacutefico sobre a cozinha

que atravessa a memoacuteria e permanece como registro vivo pela referecircncia ao papel que estas

desempenham na memoacuteria de muitas pessoas Os pratos e doces feitos por elas as avoacutes de tantas

geraccedilotildees tornam-se parte das lembranccedilas que deixam na famiacutelia Aleacutem disso as receitas das avoacutes

satildeo emblemaacuteticas da memoacuteria que se manteacutem viva atraveacutes de um grupo que a alimenta a

memoacuteria coletiva conforme referida por Aleida Assmann ao mencionar as ideias de Maurice

Halbwachs

Um dos aspectos mais relevantes dessa lsquocozinha das avoacutesrsquo eacute o modo como tinham no

corpo o conhecimento da praacutetica culinaacuteria No texto lsquoA memoacuteria nas matildeosrsquo eacute referido esse

aspecto

No caso da Voacute Leacuteia e de tantas avoacutes da eacutepoca acho que tinham a memoacuteria nas matildeos

com tudo o que aprendiam e praticavam vida afora No entanto a sabedoria vai aleacutem

Acredito que sentissem vivamente nas etapas os cheiros gostos sons do alimento

aspecto textura pulsaccedilatildeo As matildeos preparavam mas todo corpo participava do feito

culinaacuterio Prestavam atenccedilatildeo estavam de fato presentes na tarefa E assim a memoacuteria era

lsquocarimbadarsquo nas matildeos nos cinco sentidos na emoccedilatildeo de um sabor que alegrava a

cozinha (CARDOSO 2012 p61)

O elemento determinante da memoacuteria das avoacutes cuja vivecircncia culinaacuteria era cotidiana e de

valor reconhecido entre os familiares eacute a praacutetica Sabiam fazer e muitas vezes de modo

intuitivo adaptavam e ateacute criavam receitas por esse conhecimento A lsquomemoacuteria nas matildeosrsquo

consistia em identificar pelo tato que a massa do patildeo estava no ponto quando a pele assim

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determinava E reconheciam isso por um dia ter aprendido mas principalmente porque apoacutes

tantas repeticcedilotildees do lsquocomo-se-fazrsquo foi a pele que passou a identificar este ponto ainda antes do

conhecer cognitivo Tal reflexatildeo conduz ao que refere Ricoeur sobre o par haacutebitomemoacuteria

quando o primeiro elemento do par alude agraves circunstacircncias em que o passado adere ao presente

Um saber adquirido eacute mantido em praacutetica o que torna sua lembranccedila como um fator que integra a

atualidade do fazer e natildeo apenas o passado

Esta memoacuteria das avoacutes que mantinham vivo um modo de conhecer o ato culinaacuterio como

parte de seu saber vivencial ilustra com nitidez a ideia da memoacuteria coletiva jaacute que seu saber era

compartilhado em seu tempo natildeo pela receita escrita mas pela forma como esse era sentido e

atuado na cozinha Agrave medida que as geraccedilotildees que detinham esses conhecimentos antigos foram

terminando suas memoacuterias de forno-e-fogatildeo construiacutedas pela accedilatildeo e pelos sentidos agrave beira do

fogo ou do balcatildeo foram deixando de existir O que ficou para as geraccedilotildees seguintes foi o

conjunto de receitas escritas mas essas natildeo substituem a riqueza de um fazer empiacuterico intuitivo

recordado no corpo

O escritor e pesquisador Michael Pollan faz uma referecircncia interessante nesse sentido ao

advertir que natildeo se deve comer nada que a avoacute natildeo chamaria de comida Essa expressatildeo proposta

no fulcro de uma culinaacuteria dirigida para fora dos lares e feita de alimentos muitas vezes pouco ou

nada saudaacuteveis chama a atenccedilatildeo para o reconhecimento das avoacutes como detentoras de um saber

uacutenico aquele da lsquocomida de verdadersquo

Avoacutes matildees e tias satildeo personagens de grande relevacircncia no aprendizado de cozinha das

geraccedilotildees seguintes Eacute possiacutevel que isso se deva a seu papel ancestral de transmissatildeo de um saber

especiacutefico A memoacuteria dos antepassados constitui o alicerce a fundamentaccedilatildeo da famiacutelia a partir

de experiecircncias e de saberes que um dia foram vivenciados para serem entatildeo narrados ao longo

do tempo agraves proacuteximas geraccedilotildees O socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da

culinaacuteria brasileira tece uma relevante consideraccedilatildeo a esse respeito ldquoOs saberes culinaacuterios

evoluiacuteram como uma heranccedila que se transmite matrilinearmente ndash e os cadernos de receitas das

avoacutes satildeo uma sobrevivecircncia persistente dessa diretrizrdquo (DOacuteRIA 2014 p206)

Doacuteria aborda outro elemento significativo na contribuiccedilatildeo com o papel da memoacuteria na

cozinha a corporeidade Esse fator representa o proacuteprio ato culinaacuterio que eacute exercido pelo corpo

Eacute nele que reside a memoacuteria dos movimentos e dos gestos implicados no preparo do alimento

como bater claras sovar a massa do patildeo picar a cebola etc Neste sentido o autor refere

37

O corpo eacute tradicionalmente o principal instrumento do fazer culinaacuterio As ferramentas

da faca ao mais sofisticado equipamento utilizado na culinaacuteria molecular satildeo em geral

expedientes que visam economizar gestos ou conferir-lhes maior precisatildeo mas o

empenho fiacutesico com destreza eacute o primeiro responsaacutevel pelos resultados alcanccedilados []

(DOacuteRIA 2014 p216)

Essa reflexatildeo significa na compreensatildeo da memoacuteria ligada agrave cozinha que eacute o corpo o

principal responsaacutevel pela praacutetica culinaacuteria incluindo qualidades como a destreza mencionada

por Doacuteria A faca poderaacute cortar bem estar afiada mas se o corpo natildeo souber usaacute-la isso de nada

adiantaraacute Tal ponto nos remete agrave ideia da memoacuteria do corpo referida por Ricoeur no que tange

a uma espeacutecie de memoacuteria que pode ser agida na praacutetica habitual do indiviacuteduo fazendo parte de

sua identidade ter domiacutenio de um dado ato culinaacuterio daacute a algueacutem a consciecircncia de que sabe

fazer de que se lembra de que aquele saber eacute parte de si

Assim o ato culinaacuterio aprendido tanto por livros de receitas como pela transmissatildeo oral

por familiares representa a memoacuteria coletiva quando esse ato eacute praticado rotineiramente pelo

sujeito que aprendeu isto contribui para a consciecircncia de si representando o papel da memoacuteria

individual Cabe ressaltar tambeacutem a presenccedila da memoacuteria ancestral que acompanha as vivecircncias

de cozinha A esse propoacutesito Doacuteria refere que ldquoAssim lsquofazer para o outrorsquo ndash essa doaccedilatildeo atraveacutes

de um intermediaacuterio ao mesmo tempo material e simboacutelico como eacute a comida ndash permanece a

marca feminina do cozinhar desde os primeiros tempos da humanidaderdquo (DOacuteRIA 2014 p221)

Tal constataccedilatildeo reforccedila o papel ancestral das avoacutes matildees e tias na transmissatildeo do saber culinaacuterio

A postagem do blog Serendipity in Cucina traz no relato memorialiacutestico sobre a vivecircncia

de sua autora reflexatildeo sobre o componente ritualiacutestico do cozinhar

Haacute alguns anos decidi comeccedilar a fazer a chimia de uvas lsquoda Voacute Leacuteiarsquo a partir das

lembranccedilas que tenho do fazer de minha avoacute materna a quem assisti preparando o doce

inuacutemeras vezes Os dados sobre as proporccedilotildees tais como igual peso das cascas de uva e

do accediluacutecar e aacutegua que cubra soube por uma prima mas meu objetivo principal era o de

seguir a memoacuteria mais de vinte anos depois da uacuteltima vez que a vi fazendo o doce

Entatildeo sempre no veratildeo na eacutepoca dessas uvas repito a experiecircncia Fico em frente agrave

caccedilarola e a coloco em fogo baixo depois da fervura mexendo com a colher de pau em

giros lentos e precisos Percebo a mudanccedila atraveacutes da resistecircncia que o composto faz agrave

colher e assim progressivamente o fazer demanda mais forccedila do braccedilo direito Presto

atenccedilatildeo ao aspecto o roxo cintilante do iniacutecio torna-se mais opaco e fechado o brilho

das cascas da uva Isabel com que eacute feita a chimia diminui agrave medida que essa se

aproxima do resultado final O aroma toma conta da casa toda de forma insidiosa

Identifico que estaacute pronta pela consistecircncia reconheccedilo este momento porque a imagem

de minha avoacute em seus giros da colher de pau eacute parte de minha memoacuteria bem como a

lembranccedila das etapas da receita Quando repito seu movimento com semelhante

vagarosidade e empenho faccedilo-o pela lembranccedila do que assisti entretanto eacute provaacutevel

38

que a repeticcedilatildeo se deva tambeacutem ao ritual em que consiste o cozinhar O proacuteprio fato de

estar agrave frente do fogo preparando o alimento eacute por si um ritual (CARDOSO 2015)

Assim o papel da ancestralidade manifesta-se no modo como se vivencia o contato com a

comida tanto no cozinhar quanto no comer e no partilhar a refeiccedilatildeo pessoas afins ou seja esses

atos configuram-se como rituais Retomamos as contribuiccedilotildees de Mircea Eliade para corroborar

essa compreensatildeo especialmente sua referecircncia de que

Apesar das modificaccedilotildees sofridas no decorrer dos tempos os mitos dos lsquoprimitivosrsquo

ainda refletem um estado primordial Trata-se ademais de sociedades onde os mitos

ainda estatildeo vivos onde fundamentam e justificam todo o comportamento e toda a

atividade do homem (ELIADE 2011 p10)

O fazer a comida e aquele do sentar agrave mesa para compartilhaacute-la satildeo desta forma rituais

que praticamos como seres humanos reencenando mitos A expressatildeo dos rituais estaacute em uma

memoacuteria coletiva ancestral que evocamos nessas praacuteticas

Em suma os mitos descrevem as diversas e algumas vezes dramaacuteticas irrupccedilotildees do

sagrado (ou do lsquosobrenaturalrsquo) no Mundo Eacute essa irrupccedilatildeo do sagrado que realmente

fundamenta o Mundo e o converte no que eacute hoje E mais eacute em razatildeo das intervenccedilotildees

dos Entes Sobrenaturais que o homem eacute o que eacute hoje um ser mortal sexuado e cultural

(ELIADE 2011 p11)

No que concerne agrave praacutetica da cozinha tambeacutem o cumprimento de uma receita traz um ato

de recitaccedilatildeo especialmente na parte que se refere ao lsquomodo de fazerrsquo o que conduz agrave reflexatildeo de

que tambeacutem esta eacute parte do ritual que envolve a produccedilatildeo da comida Fala-se em seguir a receita

no sentido de obedececirc-la Ao ler as orientaccedilotildees o que se lecirc eacute a presenccedila de verbos especiacuteficos do

fazer culinaacuterio conjugados no modo imperativo corte refogue asse e assim por diante Este

recitar que muitas vezes eacute falado em voz baixa enquanto se prepara um prato eacute em si um ato

inerente ao fazer culinaacuterio A respeito da recitaccedilatildeo Eliade aponta que

Na maioria dos casos natildeo basta conhecer o mito da origem eacute preciso recitaacute-lo em certo

sentido eacute uma proclamaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo do proacuteprio conhecimento E natildeo eacute soacute

recitando ou celebrando o mito de origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela

atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos O tempo miacutetico

das origens eacute um tempo lsquofortersquo porque foi transfigurado pela presenccedila ativa e criadora

dos Entes Sobrenaturais Ao recitar os mitos reintegra-se agravequele tempo fabuloso e a

pessoa torna-se consequentemente lsquocontemporacircnearsquo de certo modo dos eventos

evocados compartilha da presenccedila dos Deuses ou dos Heroacuteis Numa foacutermula sumaacuteria

poderiacuteamos dizer que ao ldquoviverrdquo os mitos sai-se do tempo profano cronoloacutegico

ingressando num tempo qualitativamente diferente um tempo lsquosagradorsquo ao mesmo

tempo primordial e indefinidamente recuperaacutevel (ELIADE 2011 p21)

39

Carlos Alberto Doacuteria faz uma relevante reflexatildeo sobre a receita culinaacuteria contemplando a

perspectiva desde sua origem ateacute o modo como eacute vista atualmente

Considerando as diferenccedilas tecnoloacutegicas as receitas satildeo sempre prescriccedilotildees sobre o

modo de proceder na cozinha assim como as receitas farmacecircuticas satildeo prescriccedilotildees a

respeito de como os farmacecircuticos devem proceder em seus laboratoacuterios Do ponto de

vista geral ao apontar a unidade receita-cozinha e o modo de lsquoaviamentorsquo estamos

considerando que essa unidade estaacute incrustrada nas demais instituiccedilotildees como a religiatildeo

a famiacutelia o Natal etc (DOacuteRIA 2009 p141)

A receita culinaacuteria eacute entatildeo parte do ritual que envolve as vivecircncias alimentares seja

cozinhar ou comer aleacutem disso essa constitui um relevante material como documento para a

memoacuteria de um local e de uma eacutepoca pois traz em seu vocabulaacuterio e nas accedilotildees que determina

elementos de identificaccedilatildeo que permitem caracterizar sua origem e periacuteodo de vigecircncia A receita

porta consigo a memoacuteria coletiva do contexto de que se origina bem como a memoacuteria

individual de quem a escreve em seu caderno de cozinha e a de quem reconhece nos livros de

receitas pratos que jaacute experimentou

Doacuteria aponta a respeito da memoacuteria implicada nesse tipo de material um aspecto

interessante sobre o papel da memoacuteria contida nos livros culinaacuterios O autor fala a respeito de um

renomado chef internacional Paul Bocuse que eacute contraacuterio agrave praacutetica de receitas lsquoagrave riscarsquo tendo

escrito um livro assim Doacuteria aponta que o chef faz uma ressalva em sua obra orientando ao

leitor que natildeo leve seu conteuacutedo demasiadamente a seacuterio e que ouccedila uma lsquoforccedila desconhecidarsquo

como a inspiraccedilatildeo o que ldquo[] garantiraacute melhores resultados praacuteticosrdquo (DOacuteRIA 2009 p144)

Consideramos por fim que Bocuse tambeacutem estaacute a nos dizer que as suas receitas satildeo

apenas e modestamente o seu modo de fazer aquele prato ou seja elas contecircm a

memoacuteria do seu trabalho como estilo e valor testemunhal e- tambeacutem de modo a

determinar- o livro eacute seu meio de propagaccedilatildeo Visto assim o livro de receitas eacute um

registro de memoacuteria do trabalho que possam ter alguma utilidade para os leitores []

(DOacuteRIA 2009 p144)

Aleacutem dessa referecircncia a Bocuse Doacuteria aponta criticamente a funccedilatildeo da receita para os

que a seguem ldquoEntatildeo se pararmos um minuto para pensar veremos que a receita dentro da

cozinha tem o status de um texto sagrado que nos reduz agrave condiccedilatildeo de seus exagetas

independentemente do grau de preparaccedilatildeo que tenhamos nessa singular teologia alimentarrdquo

(DOacuteRIA 2009 p142) Esse respeito ao texto sagrado eacute de certa forma o cumprimento da

memoacuteria coletiva transmitida atraveacutes dos documentos escritos denominados receitas ao longo do

tempo nessa transmissatildeo ocorrem transformaccedilotildees na forma de execuccedilatildeo dos alimentos

40

conforme as modificaccedilotildees culturais de cada eacutepoca ou seja cada periacuteodo e lugar tem seu modo de

interpretar e de realizar as receitas culinaacuterias de acordo com os produtos oferecidos e com as

teacutecnicas vigentes Doacuteria menciona

Por isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculos e as modificaccedilotildees que

introduzimos nas receitas satildeo apenas formas do patildeo continuar existindo mediante as

transformaccedilotildees das receitas Por isso quando seguimos agrave risca uma receita de patildeo natildeo

queremos fazer o patildeo mas uma versatildeo do patildeo que uma tradiccedilatildeo qualquer elaborou

(DOacuteRIA 2009 p147)

Tecidas as consideraccedilotildees a respeito do fazer culinaacuterio consolidado pela memoacuteria coletiva

vale refletir sobre o modo como ele eacute vivenciado atraveacutes da memoacuteria individual Ao contar sobre

a chimia de uvas de sua avoacute apontamos que assistir a seu modo de praticaacute-la foi para a autora o

percurso para aprender a fazecirc-la O lsquocomo-se-fazrsquo guarda as lembranccedilas oriundas da praacutetica

vivenciada pelo ofiacutecio dos cinco sentidos e pelo assistir aos gestos do corpo como os giros lentos

da colher de pau feitos pela avoacute E por tantas outras avoacutes matildees e tias

Assim a memoacuteria coletiva de uma receita culinaacuteria a chimia de uvas Isabel na maneira

como era repetida por muitas pessoas de uma eacutepoca tornou-se tambeacutem memoacuteria individual

Passou a ser parte da identidade da autora do blog pois representa um ponto de identificaccedilatildeo com

sua avoacute pela recordaccedilatildeo marcante de assisti-la fazendo esse doce por isso decidiu fazecirc-lo tempos

depois de seu falecimento seguindo as lembranccedilas do seu fazer A memoacuteria a respeito dos doces

produzidos por ela eacute tatildeo significativa que estaacute registrada em uma crocircnica especiacutefica no jaacute citado

Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e Doccediluras lsquoAs deliacutecias nos vidros de cafeacutersquo a qual

reproduzimos abaixo

Na casa de praia da Voacute Leacuteia e do Vocirc Heacutelio havia milhares de encantos espalhados mas

a cozinha era meu favorito A mesa retangular generosa e lsquoconvidadeirarsquo contava um

universo de histoacuterias de faacutebulas e de sabores mas o que dava uma graccedila especial ao

conjunto era o armaacuterio proacuteximo agrave porta para a varanda Em suas estantes na parte

superior enfeites e guloseimas ali moravam os potes de rapadura de leite

constantemente abastecidos pela voacute Na parte inferior duas portas abriam um territoacuterio

uacutenico respirante Ali vidros de cafeacute daqueles grandes com tampas vermelhas

guardavam geleias chimias e compotas que ela fazia durante o veraneio

Deixaacutevamos para depois a ideia de pedir as receitas tiacutenhamos o propoacutesito de ficar ao

lado quando o panelatildeo estava no fogo tomando nota do lsquocomo-se-fazrsquo mas sem muita

obstinaccedilatildeo Afinal de contas a Voacute estava ali e era a uacutenica que sabia o tim-tim por tim-

tim do ponto das cores dos cheiros que seus feitos adquiriam a cada etapa Entatildeo

tiacutenhamos a fantasia de que ela estaria para sempre renovando as deliacutecias nos vidros de

cafeacute com alquimias de aboacutebora de laranja de uva [] nossa imaginaccedilatildeo percorria

lonjuras no tempo acreditando que seu fazer dos doces seria perene Agora refletindo

sobre por que natildeo peguei nenhuma de suas receitas por que natildeo anotava cada detalhe

41

ocorre-me que esta era uma forma de garantir que ela permaneceria no ofiacutecio que eu

poderia eternamente aprender com ela a fazer suas reliacutequias

Hoje soacute o moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhas conhece o segredo daquelas

inquilinas (CARDOSO 2012 p62)

No texto lecirc-se lsquoo moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhasrsquo mas esse moacutevel eacute a

proacutepria memoacuteria guardando lembranccedilas representadas como lsquoo segredo daquelas inquilinasrsquo A

memoacuteria individual conteacutem segredos pontos que com o passar do tempo natildeo satildeo contados de

acordo com a realidade vivida mas apenas com aquela lembranccedila que permanece atraveacutes das

imagens e de sentimentos muito do que foi percebido nos escapa deixando as cenas como se as

viacutessemos atraveacutes de um vidro embaccedilado Esses satildeo os lsquosegredosrsquo que as portinhas do moacutevel da

cozinha silenciam

Nesse aspecto retomamos a consideraccedilatildeo de Eugegravene Minkowski sobre a memoacuteria

quando esse autor menciona que ldquo[] a lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a

tonalidade emotiva com que este foi percebidordquo (MINKOWSKI 2004 p143) Entende-se assim

que a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos recordaremos dela

no futuro porque eacute assim que a conhecemos

Esses registros existem na memoacuteria e assim constituem parte da consciecircncia do

indiviacuteduo sobre si mesmo Satildeo lembranccedilas que colaboram com a construccedilatildeo da identidade da

autora do texto Chimia da uva Isabel memoacuterias e receita pois ligam-na agrave identificaccedilatildeo com a

avoacute e seu legado culinaacuterio Tal aspecto corrobora o que apresentamos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica

do presente capiacutetulo

As memoacuterias individuais vinculadas agrave cozinha tecircm outro elemento a ser destacado nos

cadernos de receitas muitas vezes haacute referecircncia no tiacutetulo das mesmas a quem fazia tal prato ou

tal doce como especialidade identificando a receita a seu lsquodonorsquo como exemplo cito a lsquotorta de

palmito da Dona Mimi Mororsquo e a lsquopizza de sardinha da Voacute Leiarsquo Satildeo sabores associados agraves

lembranccedilas que temos das proacuteprias cozinheiras como se o saborear e o lembrar de quem

produzia o alimento fossem recordaccedilotildees acopladas

Os tiacutetulos das receitas fazem-nos evocar essas personagens da histoacuteria pessoal Os nomes

presentes no caderno identificam figuras de relevo na vida de quem o guarda assim esse faz

tambeacutem o papel de um aacutelbum de recordaccedilotildees Destacamos nas paacuteginas do livro Pequeno

alfarraacutebio de acepipes e doccediluras que o lsquobolo de melado da Anildarsquo natildeo eacute uma receita qualquer

de bolo de melado mas aquela da qual a autora tem determinada lembranccedila perpetuada pelo

42

colorido afetivo lembra-se do momento em que saboreou a receita pela primeira vez da Anilda

sua autora da cozinha em que o bolo era feito e ateacute mesmo do aroma que deixava na casa apoacutes

sair do forno A receita pode tornar-se entatildeo a narrativa das experiecircncias e das pessoas que

fazem parte delas atraveacutes da memoacuteria que nos permite acessar

Muitos livros de temas culinaacuterios satildeo memorialiacutesticos em acircmbito nacional e

internacional Esse elemento confirma a relaccedilatildeo da cozinha com o sujeito que comete nela seus

atos culinaacuterios mais iacutentimos esta constituiraacute o espaccedilo de memoacuteria de quem teve ali ou em outras

cozinhas de sua vida vivecircncias a serem contadas A outras pessoas ou a si mesmo como faz

Antocircnio ao rememorar sua histoacuteria familiar e pessoal enquanto prepara o arroz para o almoccedilo de

famiacutelia

Na seccedilatildeo seguinte apresentamos a anaacutelise da primeira obra do corpus dessa Dissertaccedilatildeo

de Mestrado O arroz de Palma a fim de propor a relaccedilatildeo entre a cozinha e o fenocircmeno da

memoacuteria a partir dos fragmentos escolhidos

14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA

A obra de Francisco Azevedo O arroz de Palma segue a cronologia da lembranccedila a

narrativa dos acontecimentos de sua histoacuteria pessoal e familiar eacute feita atraveacutes da costura de

tempos costura essa em que o fio que une os tecidos eacute a memoacuteria O protagonista Antonio

narrador-personagem tem oitenta e oito anos e estaacute na cozinha da fazenda de sua infacircncia

preparando um almoccedilo para reunir toda a famiacutelia O prato a ser servido O arroz ofertado por sua

tia Palma aos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana na ocasiatildeo do casamento

Os gratildeos jogados aos noivos na igreja satildeo colhidos da pedra por Palma para a oferta do

presente Esses gratildeos atravessam o oceano de Portugal ao Brasil para onde o casal e Palma vecircm

apoacutes dificuldades financeiras no paiacutes de origem e atravessam tambeacutem as geraccedilotildees O arroz

fertilizaraacute a famiacutelia e suas histoacuterias Eacute para celebrar o aniversaacuterio de 100 anos do casamento dos

pais e do arroz presenteado pela tia que Antonio prepara o almoccedilo com o que ainda haacute do

presente para ser compartilhado com os familiares

A narrativa eacute contada por ele enquanto prepara o prato sob a forma de lembranccedilas do que

viveu e do que ouviu da Tia Palma nas longas conversas que tinham desde seus tempos de

crianccedila O protagonista vai alinhavando essas recordaccedilotildees narrando-as como forma de

43

estabelecer uma linha de tempo desde o recebimento do arroz pelos pais ateacute o almoccedilo que

cozinha para a famiacutelia com o mesmo arroz cem anos depois Em alguns pontos da histoacuteria

parece tecer uma interlocuccedilatildeo com o leitor mas o elo entre a memoacuteria e os pensamentos eacute feita

de si para si

Pode-se dividir os trechos escolhidos para a presente anaacutelise em trecircs tempos o que

Antonio narra a partir da atualidade o que ouviu de Tia Palma e o que vivenciou Na primeira

condiccedilatildeo estaacute no presente nas duas outras no passado

Quando evoca as lembranccedilas vive-as com tamanha intensidade que sua narrativa traz

eventos antigos como se fossem atuais e refere-se a si mesmo do seguinte modo ldquoE eu menino

enrugado aqui nesta cozinha ainda viajo presente colorido do indicativordquo (AZEVEDO 2008

p17) O termo lsquomenino enrugadorsquo expressa a ligaccedilatildeo entre os tempos do presente e da memoacuteria

enquanto o lsquocoloridorsquo evoca a forccedila com que as lembranccedilas se manifestam trazendo ao presente

tonalidade marcante

Em toda a narrativa o uso das metaacuteforas culinaacuterias para a representaccedilatildeo de vivecircncias de

percepccedilotildees de sentimentos e de lembranccedilas eacute o elemento principal A cozinha eacute assim a forma

constante de expressatildeo do protagonista aleacutem de ser o espaccedilo fiacutesico onde o romance se

desenvolve pois eacute neste lugar que ele estaacute enquanto tece recordaccedilotildees

No primeiro capiacutetulo do livro Antonio fala durante o preparo do almoccedilo que serviraacute para

a famiacutelia entatildeo na atualidade Lembra-se lsquoTia Palma me ensinou a cozinhar eu era jovemrsquo

ilustrando as reflexotildees feitas na subdivisatildeo anterior sobre a relevacircncia da cozinha das avoacutes e das

tias para a memoacuteria individual pois essas satildeo figuras de referecircncia para a construccedilatildeo da memoacuteria

e por conseguinte da consciecircncia de si Diz Antonio

Eu aqui na fazenda Eu aqui na cozinha quatro e pouco da manhatilde Isabel ainda dorme o

sol ainda demora Eu aqui um velho de 88 anos Para os mais novos o Avocirc Eterno o

que natildeo teve comeccedilo nem teraacute fim o que jaacute veio ao mundo com essa cara enrugada Eu

aqui de avental branco picando o tempero verde Preparo o almoccedilo de famiacutelia Terei

forccedilas 88 dois infinitos verticais Eacute boa idade seraacute uma bela festa Tenho praacutetica Tia

Palma me ensinou a cozinhar eu era jovem (AZEVEDO 2008 p9)

Antonio provoca lsquoAs autoridades querem minhas digitais Elas estatildeo na massa do patildeorsquo o

que conduz a dois aspectos jaacute discutidos o papel da memoacuteria individual na identidade papel que

estaacute impregnado na massa do patildeo ou seja no ato culinaacuterio o outro elemento eacute aquele referido

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por Doacuteria quando menciona lsquoPor isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculosrsquo

expressando a feitura do patildeo como resultado da memoacuteria coletiva e da realizaccedilatildeo de rituais

Eacute na cozinha que eu desembesto e solto os bichos Eacute na cozinha que eu viajo sem

passaporte sem bilhete sem revista em aeroportos As autoridades querem minhas

digitais Elas estatildeo na massa do patildeo Querem minha foto Tenho vaacuterias de frente e de

lado com meus pais e irmatildeos e com os que vieram depois Retratos falados- em voz alta

a famiacutelia toda ao mesmo tempo Destrambelhada famiacutelia Sagrada famiacutelia []

(AZEVEDO 2008 p11)

Ainda nesse capiacutetulo ressaltamos um elemento caracteriacutestico da obra as expressotildees da

cozinha que constituem metaacuteforas agrave composiccedilatildeo das famiacutelias A frase emblemaacutetica empregada

pelo personagem lsquofamiacutelia eacute prato difiacutecil de prepararrsquo apresenta as reflexotildees de Antonio sobre

diferenccedilas e peculiaridades entre familiares Todas as alusotildees agraves divergecircncias entre eles satildeo feitas

tendo como eixo a linguagem usada na culinaacuteria Salientamos um aspecto a aproximaccedilatildeo entre

os termos culinaacuterios e as relaccedilotildees familiares representando cozinha e famiacutelia como estruturas

com pontos de convergecircncia

Preciso me concentrar Eacute essencial Por quecirc Ora que pergunta Famiacutelia eacute prato difiacutecil

de preparar satildeo muitos ingredientes Reunir todos eacute um problema- principalmente no

Natal e Ano-Novo Pouco importa a qualidade da panela fazer uma famiacutelia exige

coragem devoccedilatildeo e paciecircncia Natildeo eacute para qualquer um Os truques os segredos o

imprevisiacutevel Agraves vezes daacute ateacute vontade de desistir Preferimos o desconforto do estocircmago

vazio Preferimos o desconforto do estocircmago vazio Vecircm a preguiccedila a conhecida falta

de imaginaccedilatildeo sobre o que se vai comer e aquele fastio Mas a vida- azeitona verde no

palito- sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite O tempo potildee a mesa

determina o nuacutemero de cadeiras e os lugares Suacutebito feito milagre a famiacutelia estaacute

servida (AZEVEDO 2008 p12)

Durante o preparo do arroz mistura lembranccedilas e devaneios seguindo a comparaccedilatildeo

entre pratos culinaacuterios e famiacutelias

Reuacutena essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida Natildeo haacute pressa Eu

espero Jaacute estatildeo aiacute Todas Oacutetimo Agora ponha o avental pegue a taacutebua a faca mais

afiada e tome alguns cuidados Logo logo vocecirc tambeacutem estaraacute cheirando a alho e a

cebola Natildeo se envergonhe se chorar Famiacutelia eacute prato que emociona E a gente chora

mesmo De alegria de raiva ou de tristeza (AZEVEDO 2008 p12)

Entre ponderaccedilotildees e aconselhamentos Antonio fala de si mesmo ao leitor apresentando

sua visatildeo sobre si como um lsquovelho jaacute meio caducorsquo e lsquoum veterano cozinheirorsquo A alternacircncia

entre recordaccedilotildees do passado ideias do presente e diaacutelogo com o interlocutor eacute um dos elementos

que marca a narrativa

45

Enfim receita de famiacutelia natildeo se copia se inventa A gente vai aprendendo aos poucos

improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia A gente cata um registro ali de

algueacutem que sabe e conta e outro aqui que ficou no pedaccedilo de papel Muita coisa se

perde na lembranccedila Principalmente na cabeccedila de um velho jaacute meio caduco como eu O

que este veterano cozinheiro pode dizer eacute que por mais sem graccedila por pior que seja o

paladar famiacutelia eacute prato que vocecirc tem que experimentar e comer Se puder saborear

saboreie Natildeo ligue para etiquetas Passe o patildeo naquele molhinho que ficou na

porcelana na louccedila no alumiacutenio ou no barro Aproveite ao maacuteximo Famiacutelia eacute prato que

quando se acaba nunca mais se repete (AZEVEDO 2008 p14)

Essa mistura de periacuteodos entre passado contado passado vivido e presente eacute marcada

pela referecircncia sobre o ingresso do arroz na histoacuteria da famiacutelia pelas matildeos de Tia Palma Os

tempos misturam-se ora mostrando Antonio em sua cozinha na atualidade ora Joseacute Custoacutedio

Maria Romana e Tia Palma em cenas vividas por eles

Quando Antonio se refere a um evento passado usando um verbo no presente pode-se

compreender que atraveacutes da memoacuteria ingressou em outro tempo de si mesmo ou de sua famiacutelia

A mistura entre lembranccedila e atualidade marca muitos dos relatos pois o limiar entre passado e

presente para o protagonista jaacute eacute impreciso assim como as experiecircncias que viveu e aquelas que

ouviu de Palma

Tia Palma era enfaacutetica ao descrever a cena o arroz que desabou sobre os noivos aacute saiacuteda

da igreja foi torrencial Eram punhados e mais punhados Chuva branca que natildeo parava

Nunca se viu tanta fartura em votos de felicidade (AZEVEDO 2008 p15)

-E tu dizes que Palma eacute que eacute a mal-educada

-Basta assunto encerrado Daacute-se o arroz para algueacutem Palma natildeo precisa saber

-O arroz eacute presente O arroz fica

-Pois estaacute bem Guarda esse maldito presente Com o tempo ele haacute de mofar se encher

de bichos e teraacutes que jogaacute-lo fora

-Ouve bem meu querido Joseacute Custoacutedio este arroz eacute amor e puro amor Natildeo haacute de se

estragar (AZEVEDO 2008 p21)

O protagonista recorda-se das vivecircncias com Tia Palma na cadeira em que essa lhe

contava as histoacuterias sobre o arroz e tantas outras Ouvir Palma era vivido por Antonio como se

assistisse a uma peccedila de teatro

A expressatildeo no rosto natildeo daacute a menor pista A histoacuteria de hoje seraacute triste Que vozes

faraacute Que cenaacuterio me apresentaraacute ao levantar as cortinas A sala de jantar Uma ruela de

Viana do Castelo Seraacute dia SeraacuteTia Palma pigarreia faz pequena pausa comeccedila com

gravidade

Primeiro ato Tarde da noite ela garante O coto de vela colado no tampo da mesa mal

ilumina os rostos Mamatildee e papai apenas alguns meses de casados natildeo tecircm o que

comer Nada nem vegetal nem fruta nem gratildeo nada Em voz baixa respeitosa mamatildee

sugere o arroz A resposta que recebe eacute a fuacuteria o murro na mesa e a gargalhada que

parece pranto

-O arroz de Palma

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Outra sonora gargalhada e laacutegrimas Papai parece fora de si

-O arroz de Palma nunca Castigo maldiccedilatildeo que seja Morro de fome mas aquele arroz

varrido do chatildeo nunca

-O arroz de Palma eacute abenccediloado Arroz plantado na terra caiacutedo do ceacuteu colhido da pedra

(AZEVEDO 2008 p26)

Tia Palma sempre contara a Antonio sobre o papel do arroz para sua histoacuteria familiar

fazendo do sobrinho o herdeiro de suas memoacuterias e do conhecimento a respeito da relevacircncia do

ingrediente para a continuidade da famiacutelia

-A fertilidade de vocecircs estaacute no arroz A benccedilatildeo que haacute onze anos ele recusou

-Eu jurei ao Joseacute que o arroz ficava mas natildeo seria comido Foi o combinado

-Pois eu natildeo jurei nada a ele

Mamatildee acha graccedila meio espantada meio com medo

-Palma Como vais fazer

-Primeiro ponho uma dose cavalar de purgante na comida dele que eacute pra desentupiacute-lo

por traacutes Depois trago-lhe uma comida bem levezinha para que ele se recupereUma

canjinha especial bem magrinha como ele gosta Uma xiacutecara de arroz eacute o quanto basta

-Uma canjinha especial

O trato estaacute feito Os risos e o demorado do abraccedilo selam a cumplicidade (AZEVEDO

2008 p38)

Antonio lembra-se da cena em que quando crianccedila assegurou agrave Tia Palma que gostava

de arroz ingrediente crucial na conduccedilatildeo da narrativa Mostrava assim apreciar as histoacuterias

sobre o arroz contadas por ela e sabia desde entatildeo que esse era um elemento decisivo em sua

famiacutelia

E a cadeira jaacute eacute palco e se estamos assim abraccedilados eacute porque eu tambeacutem estou em cena e

agora a fala eacute minha Eacute a minha estreia Inesperada e tatildeo esperada estreia

-Natildeo fique preocupada Eu gosto de arroz De qualquer jeito grudado ou solto eu gosto

Com toda a verdade possiacutevel encerro a minha parte

-Ateacute puro sem feijatildeo sem nada eu gosto juro (AZEVEDO 2008 p28)

Cabe salientar o papel que esse elemento exerce na histoacuteria De acordo com Maria Eunice

Moreira no ensaio lsquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmarsquo ldquo[] o arroz tem

funccedilatildeo especial na formaccedilatildeo do clatilde como o objeto maacutegico que acompanha a trajetoacuteria da

famiacuteliardquo (MOREIRA 2014 p162) Aleacutem de ser o ingrediente que vem de Portugal e atravessa

as geraccedilotildees eacute presente de matrimocircnio de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana e posteriormente de

Antocircnio e Isabel Eacute o fator que fertiliza o primeiro casal e que reuacutene o segundo no almoccedilo entre

as famiacutelias quando Antonio e Isabel comeccedilam sua aproximaccedilatildeo

Esse almoccedilo comeccedila a partir de uma carta de Antonio ao pai em que anuncia de forma

quase imperceptiacutevel o interesse por Isabel e ao final conta que estaacute levando ingredientes

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especiais na sua viagem agrave fazenda ldquoPS Estou levando boas postas de bacalhau azeite vinho

verde e outras tantas gulodices vindas de Portugalrdquo (AZEVEDO 2008 p85) Tia Palma como

sempre com a percepccedilatildeo aguccedilada aos movimentos dos familiares tem a ideia de aproveitar a

ocasiatildeo para convidar a famiacutelia de Isabel a um almoccedilo de confraternizaccedilatildeo

-Vocecircs natildeo fazem anos de casados no dia da chegada de Antonio Entatildeo Preparamos

um almoccedilo e convidamos o senhor Avelino dona Maria Celeste e Isabel que eacute quem

nos interessa

-Palma os Alves Machado nunca se sentaram conosco agrave mesma mesa Natildeo sei Sinto-me

um pouco constrangida Ainda mais aqui em nossa casa tatildeo modesta Satildeo muito bons e

generosos mas satildeo nossos patrotildees O mundo deles eacute laacute em cima na sede

-O Joseacute Custoacutedio e o senhor Avelino natildeo satildeo tatildeo amigos Entatildeo Qual eacute o problema

Acho inclusive que jaacute deveriacuteamos tecirc-los chamado haacute mais tempo Jaacute ouvi por diversas

vezes dona Maria Celeste dizer que o marido gosta do nosso Joseacute como a um irmatildeo

(AZEVEDO 2008 p87)

Tia Palma e Maria Romana comeccedilam assim a combinar o almoccedilo que ocorre com

sucesso Primeiro passo eacute o de abrir o saco de arroz o que as surpreende pelo estado saudaacutevel dos

gratildeos Sendo Isabel a filha dos donos da fazenda e Antonio o filho do funcionaacuterio de confianccedila

haacute um constrangimento inicial que se desfaz com a partilha da refeiccedilatildeo entre as famiacutelias O arroz

une Portugal e Brasil paiacuteses das duas famiacutelias atraveacutes de ingredientes portugueses e tempero

brasileiro mais uma vez estando representada a cozinha como metaacutefora

Essa ocasiatildeo cujo propoacutesito eacute aproximar famiacutelias e reduzir diferenccedilas representa a

comemoraccedilatildeo de aniversaacuterio de casamento de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana bem como a visita

de Antonio agrave fazenda entatildeo morando no Rio de Janeiro Paul Ricoeur qualifica a comemoraccedilatildeo

dentro da caracteriacutestica mundanidade em par com reflexividade Esta mundanidade estaacute

associada agrave realizaccedilatildeo de rituais conforme jaacute visto Antonio alterna a lembranccedila sobre o relato de

Palma a respeito da combinaccedilatildeo entre ela e sua matildee com sua proacutepria recordaccedilatildeo sobre o almoccedilo

-Perfeito Veja Palma pegue

-Ceacuteus Quase 40 anos e ainda saudaacutevel

Mamatildee beija as matildeos de tia Palma

-Amor verdadeiro natildeo se estraga Eacute para sempre

-Trecircs quilos eacute o quanto basta Daraacute um belo arroz de bacalhau

-Eacute impossiacutevel que Antonio e Isabel natildeo se resolvam

O almoccedilo eacute um sucesso Os Alves Machado chegam um pouco cerimoniosos mas logo

com tantos comes e bebes somos a mesma famiacutelia (AZEVEDO 2008 p88)

O papel do arroz na histoacuteria seraacute tambeacutem o de testemunhar a uniatildeo fiacutesica de Antonio e

Isabel agrave beira do lago antes do casamento

48

-Eu sou o dono do arroz que tambeacutem eacute seu dona Isabel

-DonaPor acaso estamos casados

Sim estamos casados O Deus do azul sabe que estamos O lago menor sabe que

estamos O sangue e o arroz sabem que estamos (AZEVEDO 2008 p105)

Outra ocasiatildeo em que o arroz assume papel de ritual eacute quando o casal ganha de Joseacute

Custoacutedio Maria Romana e Palma o presente com nova dedicatoacuteria atualizada revisitando a

primeira feita por Palma Seraacute portanto o herdeiro do arroz ofertado pela Tia Palma a seus pais

junto a Isabel jaacute que o casal ganha o arroz como presente por seu matrimocircnio

Quero distacircncia de religiotildees mas respeito rituais Influecircncia de tia Palma admito Meu

cafeacute da manhatilde eacute sagrado O ritual eacute sempre o mesmo a hora a xiacutecara o pocircr o leite

primeiro o escurececirc-lo depois no ponto certo o abrir o patildeo o tirar o miolo

(AZEVEDO 2008 p127)

Individual ou coletivo o ritual eacute conexatildeo e cumplicidade [] Concluo que haacute sempre

algo de autoritaacuterio nos rituais Mas neles natildeo haveraacute tambeacutem algo que emociona Natildeo

haveraacute algo de belo e poeacutetico (AZEVEDO 2008 p127)

O arroz e todo o simbolismo que envolve na formaccedilatildeo dessa famiacutelia seraacute transmitido a

Antonio e Isabel em ocasiatildeo formal como desejam seus pais e Tia Palma

E o arroz Eacute o arroz Tia Palma quer que a entrega dessa vez ganhe algum ritual

Mamatildee e papai concordam Natildeo satildeo apenas os oito quilos que contam O presente de

casamento tem agora o peso da histoacuteria Portanto natildeo seraacute dado de modo informal

como aconteceu em Viana do Castelo (AZEVEDO 2008 p128)

O ritual de transmissatildeo do arroz eacute celebrado com a dedicatoacuteria atualizada e assinada por

seus pais e por Tia Palma eacute ela que faz a cerimocircnia de entrega ao sobrinho e agrave Isabel repetindo o

gesto feito na oferta do presente a Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu matrimocircnio

-Isabel e Antocircnio meus queridos este arroz que haacute quase 40 anos foi dado como

presente de casamento agrave minha cunhada Maria Romana e ao meu irmatildeo Joseacute Custoacutedio

por nossa vontade agora vos pertence Fazemos votos de que a tradiccedilatildeo continue e de

que todo o amor aqui contido chegue agraves geraccedilotildees futuras

Mamatildee potildee os oacuteculos lecirc a dedicatoacuteria atualizada

lsquoEste arroz-plantado na terra caiacutedo do ceacuteu como o manaacute do deserto e colhido da pedra- eacute

siacutembolo da fertilidade e do eterno amor Essa eacute a nossa benccedilatildeo

Palma Maria Romana e Joseacute Custoacutedio

Fazenda Santo Antocircnio da Uniatildeo em 13 de junho de 1946rsquo

Protegido pelo pano branco o arroz passa agraves nossas matildeos (AZEVEDO 2008 p130-

131)

Ainda no que concerne ao papel do ingrediente como elemento com atributo de ritual estaacute

a cena em que Antonio lecirc a receita em seu caderno do arroz de lentilhas de Tia Palma escrita

por ela com recomendaccedilotildees O aspecto a ser ressaltado nesse ponto estaacute principalmente na

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forma de apresentaccedilatildeo da receita que indica a importacircncia de recitar os trechos durante a feitura

do prato

Antonio meu querido lava bem as lentilhas em aacutegua corrente enquanto recitas

lsquotrepadeira trepadeirabeijo-te as folhas penadas e as flores violaacuteceas trepadeira

trepadeiranatildeo estou ao fundoestou ao frescoestou agrave beiraeacutes fortuna eacutes sauacutede eacutes

companheiratrepadeira trepadeira eacutes amor amigo eacutes paixatildeo verdadeirarsquo

Feito isso respira fundo trecircs vezes e solte o ar pela boca Deixa teu corpo sentir o

benefiacutecio Potildee as lentilhas em tacho com bastante aacutegua jaacute temperada de sal Leva ao

lume alto ateacute ferver Ao ferver abaixa o lume e deixa cozinhar ateacute que as lentilhas

estejam macias

Escorre a aacutegua da fervura E enquanto ela se vai diz com voz de certeza lsquoaacutegua

fervidaaacutegua de sal e de vidaaacutegua boa que seguetoma teu rumofertilizarsquo

(AZEVEDO 2008 p146-147)

A recomendaccedilatildeo de que faccedila as recitaccedilotildees ao cozinhar o prato traz a reflexatildeo sobre o

exposto por Mircea Eliade sobre a relevacircncia de recitar os mitos exposta anteriormente ldquo[]

recitando ou celebrando o mito da origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela atmosfera

sagradardquo (ELIADE 2011 p21) Haacute outra referecircncia a esse autor que merece ser salientada

pensando-se nos trechos a serem recitados como os cantos a que Eliade se refere ldquoA

recapitulaccedilatildeo atraveacutes dos cantos e da danccedila eacute simultaneamente uma rememoraccedilatildeo e uma

reatualizaccedilatildeo ritual dos eventos miacuteticos essenciais ocorridos desde a Criaccedilatildeordquo (ELIADE 2011

p27)

Laura Esquivel escreve no ensaio intitulado lsquoEl manaacute sagradorsquo em seu livro de ensaios

Iacutentimas suculencias-Tratado filosoacutefico de cocina sua perspectiva sobre a relaccedilatildeo entre a comida

e os rituais corroborando a importacircncia da cozinha como espaccedilo simboacutelico

Talvez natildeo haja muita diferenccedila entre falar de comida e falar de religiotildees Quase em

todas elas umas e outras se faz presente a divindade atraveacutes dos alimentos De fato natildeo

podemos negar que um rito obrigado de quase toda religiatildeo eacute o momento de comer e de

beber a deidade ou para a deidade O sentido profundo da alimentaccedilatildeo em alguma

medida tem a ver com nossa sede de eternidade cifrada na manutenccedilatildeo cotidiana da vida

Talvez por isso todos os deuses tenham deixado sua presenccedila contida nos alimentos

Nesse sentido nos alimentamos para viver e por viver O desfrute da comida tem

lampejos de vida eterna Mas natildeo soacute eacute fundamental o ato em si de comer tambeacutem o eacute a

cerimocircnia que implica preparar e compartilhar os alimentos A cerimocircnia ritual que se

realiza em torno da mesa eacute um ato de profunda e antiga significaccedilatildeo religiosa

(ESQUIVEL 2014 p77)

Entretanto natildeo apenas de comemoraccedilotildees eacute constituiacuteda a funccedilatildeo do arroz na narrativa

Algumas circunstacircncias satildeo provocadas pela representaccedilatildeo desse ingrediente na histoacuteria como as

diferenccedilas entre o protagonista e seus irmatildeos a tentativa de seus filhos Nuno e Rosaacuterio

50

mexerem no gratildeo derrubando-o na vitrine do restaurante e o deflagrar das emoccedilotildees da cunhada

em relaccedilatildeo a Antonio quando esta rouba uma porccedilatildeo do arroz para ter um pedaccedilo de Antonio

consigo

-Senti forte ciuacuteme de Isabel Inveja raiva tudo E ainda por cima era obrigada a

esconder o que sentia Quando vocecirc fez a vitrine iluminada no restaurante soacute pra expor o

arroz passei a acreditar que seria possiacutevel ter ao menos um punhadinho daquela

felicidade

-Vocecirc ainda tem ele

-Natildeo

-Natildeo

-Fiz do meu jeito Preparei ele na aacutegua e sal e comi Antes pedi a Deus que me desse um

pouco de vocecirc tambeacutem Nem que fosse por um dia

Amaacutelia torna a recostar a cabeccedila no meu peito Nada mais eacute dito Ou se eacute dito natildeo deixa

registro Acho que cochilamos Levantamo-nos da cama com o desprendimento de um

encontro rotineiro (AZEVEDO 2008 p217)

Entre rememoraccedilotildees e devaneios Antonio entrelaccedila retalhos do passado agrave sua percepccedilatildeo

sobre o presente a finitude as lembranccedilas recentes que se confundem o fluxo de consciecircncia

Reflete sobre o que faz ali na cozinha preparando o almoccedilo familiar e ao mesmo tempo

reconstroacutei lembranccedilas antigas que compuseram sua atualidade

Se me perguntarem natildeo sei dizer o que comi ontem no almoccedilo Mas sou capaz de

reproduzir diaacutelogos inteiros da minha juventude quando esta fazenda ainda era do

senhor Avelino e eu ainda morava na casa laacute de baixo com tia Palma meus pais e meus

irmatildeos Gozado isso Vaacute entender Memoacuterias antigas Niacutetidas perfeitas cheias de

miacutenimos detalhes cheiros e sons ateacute Inclusive as experiecircncias ancestrais que natildeo vivi

as histoacuterias laacute de Portugal que me foram contadas todas aqui dentro de cor e salteado

Fatos recentes Coitados Vatildeo se segurando em mim como podem (AZEVEDO 2008

p143)

A constataccedilatildeo de seus 88 anos daacute ao protagonista a consciecircncia de sua condiccedilatildeo de idoso

aceitando as falhas de lembranccedila mas natildeo aquelas em sua capacidade como cozinheiro

experiente

Natildeo quero vocecirc metida aqui dentro da cozinha Por favor Isabel Natildeo eacute nada disso Eacute

porque vocecirc fica zanzando para laacute e para caacute Potildee a matildeo prova daacute palpite Me atrapalha

Fico doido natildeo quero Nem vocecirc nem ningueacutem Deixa que eu dou conta do recado

Tantos anos agrave frente laacute do restaurante chefe com vaacuterios precircmios natildeo basta Eacute preciso

mais Idoso coisa nenhuma Dispenso o eufemismo bobo Sou velho isso sim Eu sei

natildeo precisa dizer A vista natildeo ajuda muito nem as pernas nem os reflexos Mas espera

aiacute gagaacute ainda natildeo estou Tenho forccedila nas matildeos Acho que ainda posso mexer uma

panela Quatro panelotildees concordo Fica tranquila que natildeo vou me queimar Nem a

comida (AZEVEDO 2008 p144-145)

51

A capacidade de Antonio com a cozinha comeccedilou com os aprendizados que teve com sua

tia na juventude e consolidou-se com a praacutetica Tal aquisiccedilatildeo lembra o referido sobre o par

memoacuteriahaacutebito na fenomenologia da memoacuteria proposta por Paul Ricoeur A capacidade

representa o elemento haacutebito pois eacute primordialmente construiacuteda a partir da atividade rotineira de

um atributo Talvez por isso na narrativa Antonio aceite as falhas de memoacuteria inerentes ao

envelhecimento mas natildeo a ideia de diminuiccedilatildeo daquilo que eacute seu por meacuterito por conquista com

esforccedilo dedicaccedilatildeo e sobretudo repeticcedilatildeo Antonio recorda-se de quando partiu para encontrar

trabalho na capital certo de que seguiria a atividade de cozinheiro

-O que eacute que significa isso agora Pra quecirc essa mala Antonio -Calma calma que eu natildeo vou pra guerra -Eu sabia Estaacutes indo embora por causa dessa moccedila Isabel E eacute tudo culpa da Palma

-Tenho 21 anos meu pai Sei muito bem o que faccedilo A vida do campo natildeo eacute para mim

Vou para a capital Farei amigos laacute E amigas

-Mas assim tatildeo de repente

-Trabalharei em restaurante conhecerei pessoas influentes ficarei conhecido e serei

proacutespero

-Para quecirc tanto entusiasmo Para lavar pratos Servir mesa

-Tambeacutem Mas natildeo eacute soacute isso Quero cozinhar Quem sabe um dia consigo abrir meu

proacuteprio negoacutecio

Papai se irrita

-Como cozinhar De onde tiraste essa ideia maluca (AZEVEDO 2008 p67)

O aprendizado com a tia eacute representativo da memoacuteria coletiva que se perpetua em um

grupo neste caso o familiar para a manutenccedilatildeo de um saber entre seus membros Essa memoacuteria

coletiva na histoacuteria eacute expressa pelo cozinhar como um conhecimento transmitido mas

principalmente pela histoacuteria que envolve o arroz nessa famiacutelia A narrativa dessa histoacuteria ao

longo das geraccedilotildees constitui tambeacutem a representaccedilatildeo dessa espeacutecie de memoacuteria na famiacutelia de

Antonio

Para aleacutem do que aprendeu com Tia Palma houve o que a praacutetica lhe ensinou

trabalhando em restaurantes ateacute que pudesse montar o proacuteprio negoacutecio Lembra-se de cenas do

percurso que seguiu ldquoO mar de mesas eacute convite agrave aventura Sigo Na copa e na cozinha o

barulho de louccedilas e talheres eacute intempeacuterie A vozearia eacute a marujada a postos que me recebe Esta eacute

a minha gente natildeo tenho duacutevidas Este eacute o meu barco e []rdquo (AZEVEDO 2008 p79)

Antonio tem em Palma seu referencial chamando por ela quando se vecirc em desafios

evocando lembranccedilas dos seus ensinamentos

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Transpiro o nervoso que vem de dentro Tia Palma por favor me ajuda lsquoO que o corpo

potildee para fora nos purificarsquo Saacutebia Tia Palma natildeo me falta nunca A cenoura e a batata jaacute

cortadas os tomates em rodelas e sem as sementes a cebola picada bem miudinha todos

nas respectivas vasilhas Mais alguma coisa Isso e aquilo Pronto acabei Natildeo me

canso Ao fim do expediente ainda haacute focirclego e entusiasmo de sobra Reluto em desfazer

o laccedilo do avental Jaacute (AZEVEDO 2008 p80)

Uma das cenas da obra que ilustra o entrelaccedilamento entre a memoacuteria individual e a

coletiva eacute no enterro dos pais de Isabel quando Antonio canta uma canccedilatildeo tradicional

portuguesa pensando fazecirc-lo em voz baixa como forma de homenagem Enquanto canta suas

memoacuterias tocam-lhe a ponto de natildeo perceber que o faz em voz alta E aqui estaacute o referido

entrelaccedilamento as demais pessoas presentes no enterro tambeacutem se emocionam e cantam em

coro Presentes ali estatildeo as proacuteprias lembranccedilas e aquelas de suas famiacutelias

Numa casa portuguesa fica bem

patildeo e vinho sobre a mesa

Quando agrave porta humildemente bate algueacutem

Senta-se agrave mesa coacutea gente

Fica bem essa fraqueza fica bem

que o povo nunca a desmente

A alegria da pobreza

estaacute nesta grande riqueza

de dar e ficar contente

(AZEVEDO 2008 p193)

Antonio segue a cantoria da muacutesica que pensa estar cantando para si Entatildeo percebe ter

cantado em voz alta e a emoccedilatildeo que causou Letra e muacutesica satildeo parte de sua memoacuteria individual

pela origem da famiacutelia e da memoacuteria coletiva dos presentes ao enterro que cantam com ele a

tradiccedilatildeo

Em algum momento tenho a impressatildeo de que algumas pessoas me acompanham e que

ao final todos ali cantamos juntos emocionados lsquoUma casa portuguesarsquo Volto ao enterro

com aplausos Reflexo condicionado eu mesmo bato palmas Isabel aos prantos me

beija agradecida pela homenagem inesperada Olho ao redor todos choram

copiosamente Natildeo eacute possiacutevel Seraacute que em vez de falar alto comigo mesmo cantei

alto Soacute pode ser (AZEVEDO 2008 p194)

Na volta do enterro o papel da comida em nutrir e acalentar eacute referido atraveacutes da

expressatildeo empregada por Antonio lsquopedimos a ela que nos aqueccedila algo para pocircr no estocircmagorsquo

como segue no trecho abaixo ldquoQuando chegamos em casa Nuno e Rosaacuterio jaacute estatildeo dormindo

Conceiccedilatildeo garante que ficaram quietinhos natildeo deram trabalho algum Pedimos a ela que nos

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aqueccedila algo para pocircr no estocircmago Ela diz que fez uma sopinha de legumes e jaacute nos chamardquo

(AZEVEDO 2008 p194)

O protagonista segue a narrativa evocando lembranccedilas reconstruindo impressotildees

reconhecendo a si mesmo atraveacutes da costura de retalhos da memoacuteria Estaacute em sua cozinha mas

viaja para muitos periacuteodos de sua vida visita a si mesmo em muitas eacutepocas lembra dos pais da

tia dos sogros dos irmatildeos dos filhos ateacute o momento atual Entatildeo na cozinha da fazenda aos 88

anos prepara com esmero os gratildeos de memoacuteria restantes em cozimento nas panelas Antonio

aguarda o encontro do passado com o presente no almoccedilo de famiacutelia Quando esse acontece

todos nas mesas entusiasmo e lembranccedila espalham-se na famiacutelia

Benccedilatildeo vivermos o bastante para poder dividi-lo assim irmatildemente sem conta de

padeiro nem laacutepis engatilhado atraacutes da orelha Olha soacute a cara da Leonor e a do Nicolau e

a do Joaquim Velhos bobos Nem sonhavam que ainda iam provar do arroz de Tia

Palma E agora choram desse jeito Natildeo eacute cebola nada que eu sei Eacute muita lembranccedila e

sonho tudo misturado agrave moda da casa Fiz de propoacutesito para pegar vocecircs de surpresa E

para a Amaacutelia - me pergunto- que gosto teraacute esse segundo arroz Qual o sabor de um

arroz assim permitido e compartilhado A garotada pode achar que somos velhos gagaacutes

e que essa histoacuteria eacute pura invencionice Impossiacutevel um arroz durar tanto a ciecircncia isto a

ciecircncia aquilo Eu natildeo ligo a miacutenima Vocecircs ligam Entatildeo oacutetimo Vamos comer agrave

vontade que haacute arroz para todos Joaquim meu irmatildeo me passa o azeite (AZEVEDO

2008 p352)

No trecho seguinte ao perguntar-se lsquoquantas vezes maisrsquo o protagonista expotildee sua

percepccedilatildeo quanto agrave finitude o tempo que ainda teraacute para novas cenas como aquela ldquoNoacutes

adultos continuamos em volta das mesas agraves voltas com as lembranccedilas Porque nos apetecem

repetimos o doce repetimos o vinho repetimos as histoacuterias Quantas vezes maisrdquo (AZEVEDO

2008 p356)

Ao longo da narrativa Antonio evoca histoacuterias lembranccedilas que lhe surgem

espontaneamente acionadas por outras por devaneios e por emoccedilotildees De acordo com Maria

Eunice Moreira em seu ensaio

A memoacuteria de Antonio organiza a configuraccedilatildeo caoacutetica da accedilatildeo externa dando um

sentido ao amontoado de fatos e episoacutedios jaacute vividos Nessa seleccedilatildeo privilegia natildeo a

memoacuteria anotada e escrita em cadernos ou diaacuterios mas aquela mais viva mais seletiva e

mais afetiva (MOREIRA 2014 p169)

No referido ensaio o fragmento acima corresponde agrave reflexatildeo de Antonio sobre a forma

como suas lembranccedilas lhe aparecem

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A memoacuteria que vai para o diaacuterio fica toda arrumadinha linear dia mecircs e ano Agraves vezes

horas e ateacute minutos constam do registro Mas quando velho a gente vai e consulta o

caderno se espanta com o montatildeo de coisa que jaacute nem faz sentido e estaria apagado natildeo

fosse a tinta A memoacuteria puxada da cabeccedila natildeo Eacute esforccedilo de selecionar soacute o que presta

o que nos eacute querido Natildeo eacute discurso ensaiado e lido Eacute fala de improviso com todos os

erros e tropeccedilos que a ousadia pode causar (AZEVEDO 2008 p248)

O que Antonio estaacute referindo eacute o conjunto de suas lembranccedilas na despensa da memoacuteria

aquelas que o identificam por constituiacuterem etapas de sua vida atraveacutes delas se reconhece

assume a consciecircncia de si Mesmo com o embaralhamento entre lembranccedilas e devaneios o

protagonista faz um balanccedilo de sua existecircncia enquanto prepara o almoccedilo familiar Estaacute na

cozinha porque esta eacute seu refuacutegio seu lugar no mundo Prepara o arroz para compartilhaacute-lo

assim como sua Tia Palma partilhava com ele suas histoacuterias sentada na quarta cadeira Os

trechos a seguir representam com nitidez o papel da comida agrave mesa para Antonio Mais uma vez

estatildeo presentes as lembranccedilas de tempos vividos e o arroz no prato como na frase lsquoo arroz tem

que vir sempre na frentersquo

A descriccedilatildeo de comidas caseiras do esmero de Conceiccedilatildeo ao arrumar a mesa da atitude

de Isabel em servi-lo todos satildeo elementos construiacutedos ao longo do tempo e tecircm como raiz as

experiecircncias familiares transformadas em memoacuteria O lsquocheiro gostoso da comidinha caseirarsquo eacute o

elemento sensorial que o acolhe na atmosfera de casa e simultaneamente o leva a viajar em suas

lembranccedilas O lsquoalmoccedilo de famiacutelia cotidianorsquo eacute o elemento que conduz o protagonista a cenas

semelhantes no passado como quando seus filhos eram crianccedilas Refeiccedilatildeo para Antonio eacute a

famiacutelia na mesa Assim a comida e a famiacutelia mais uma vez estatildeo vinculadas para ele como

sinocircnimos De recordaccedilatildeo de aconchego de partilha do gosto e do cheiro bom

Conceiccedilatildeo chega e anuncia que o almoccedilo estaacute indo para a mesa Graccedilas a Deus Meu

estocircmago jaacute estaacute roncando Puxo Rosaacuterio do sofaacute

-Vamos

E vamos todos levados pelo cheiro gostoso da comidinha caseira Ao nos sentarmos agrave

mesa impossiacutevel natildeo reparar no costumeiro apuro O caimento da toalha Os pratos os

copos os talheres afastados na medida certa Os guardanapos bem dobrados agrave esquerda

A cesta de patildees posta com arte Natildeo eacute almoccedilo para visitas Eacute almoccedilo de famiacutelia

cotidiano- esmero da Conceiccedilatildeo que ama tudo o que faz Laacute vem ela de novo da

cozinha pousa do meu lado a terrina do feijatildeo fumegando me daacute aquele sorriso de

missatildeo bem cumprida

-Botei bastante paio Ontem o senhor ficou revirando a concha dizendo que dava

precircmio para quem encontrasse um (AZEVEDO 2008 p311)

A cena pode ser compreendida sob a perspectiva de Laura Esquivel no ensaio jaacute referido

quando a autora exprime sua visatildeo sobre a comida e a partilha da mesa

55

E ainda que natildeo sejamos religiosos creio que para nenhum de noacutes seraacute estranho pensar

que atraveacutes dos aromas que compartilhamos com nossos semelhantes dos sabores dos

alimentos e da substancial presenccedila da divindade neles os seres humanos podemos ter

dia apoacutes dia uma pequena antecipaccedilatildeo do paraiacuteso (ESQUIVEL 2014 p78)

A ideia de Esquivel sobre a lsquoantecipaccedilatildeo do paraiacutesorsquo coincide com o sentimento de

Antonio sobre a cozinha Para o protagonista essa representa a casa o sabor a famiacutelia Simboliza

o que Gaston Bachelard refere na frase ldquoPode-se demonstrar as primitividades imaginaacuterias

mesmo a respeito desse ser soacutelido na memoacuteria que eacute a casa natalrdquo (BACHELARD 2012 p47)

Pode-se complementar essa frase com outra ideia do autor ldquo[] a casa natal eacute uma casa

habitadardquo (BACHELARD 2012 p33) Ao estar na cozinha ou na sala de jantar ao estar sentado

agrave mesa a emoccedilatildeo eacute a de estar em casa naquela que primeiro conheceu como casa a fazenda A

casa natal eacute e sempre seraacute habitada pelas lembranccedilas Esse espaccedilo corresponde a um lugar de

memoacuteria conforme referido por Ricoeur A casa natal eacute um ser soacutelido na memoacuteria porque ela

conteacutem as primeiras vivecircncias afetos impressotildees Eacute ali que a vida comeccedila que se enraiacuteza dali

vecircm as lsquoprimitividades imaginaacuteriasrsquo e as lembranccedilas que tornaratildeo o sujeito em quem ele eacute pela

consciecircncia de si que a memoacuteria propicia

Minha mulher eacute paciente entende como funciono Ela pega meu prato e vai me

servindo um pouco disto um pouco daquilo mas antes de tudo o arroz- indispensaacutevel-

e o feijatildeo por cima Eu sei que natildeo eacute o certo Mas eacute assim que eu gosto o feijatildeo por

cima nunca do lado Se puser o feijatildeo primeiro e depois o montinho do arroz tambeacutem

implico O arroz tem que vir sempre na frente depois o feijatildeo molhando aiacute sim eacute

perfeito Sempre ensinei bons modos aos meus filhos mas nunca os proibi de misturar a

comida toda no prato de uma vez Se eu misturo como proibir Ai se fizeacutessemos isso na

frente de Isabel Bom nem pensar Em dias de ensopadinho de vagem com carninha

moiacuteda ou de chuchu com camaratildeo era verdadeiro supliacutecio Nuno e eu sofriacuteamos

horrores Queriacuteamos porque queriacuteamos misturar tudo de uma vez com o arroz Natildeo

podiacuteamos Era proibido por lei Isabel natildeo transigia Tiacutenhamos que ir misturando aos

pouquinhos puxando com o garfo e aiacute levar agrave boca Depois voltar misturar mais um

pouquinho puxando com o garfo e tornar a levar agrave boca Um sacrifiacutecio Depois de

nossos filhos adultos a lei do proibido misturar foi abolida E cada um liberado para

comer do seu jeitinho informal

Jaacute servido espeto o paio deliacutecia e retomo a conversa (AZEVEDO 2008 p314)

Chega a hora de Antonio apoacutes revisitar histoacuterias vividas e contadas pela memoacuteria Na

cozinha representaccedilatildeo de sua casa natal ele falece ldquoSempre acompanhamos com olhos de

saudade o balatildeo que sobe ceacuteu afora e se mistura no azul Acontece com todos Depois satildeo soacute

histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras Famiacutelia eacute prato que quando se acaba nunca

mais se repeterdquo (AZEVEDO 2008 p361)

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Histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras elementos que aludem agraves lembranccedilas

Mais uma vez a cozinha eacute representada ao falar-se em memoacuteria atraveacutes das lsquoreceitas caseirasrsquo

Essas satildeo registros de quem habitou os campos de forno-e-fogatildeo e deixou por escrito o como-

se-faz O seu

57

2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE

A sacola de crochecirc da voacute era perturbadora da ordem ali de dentro ela tirava varenikes

beigales mondales knishes strudels um perfume que ia nos buscar no mais remoto

quarto da casa pratos fundos de louccedila branca e pesada transbordantes de fartura Noacutes

nos reuniacuteamos em torno da mesa em torno da voacute em torno dos pratos - em torno da

comida que ela tratava como uma cerimocircnia de milagre E ela abria os braccedilos para nos

acarinhar a todos e nos beijava com os laacutebios finos o haacutelito de menta e pronunciava

palavras boas palavras de quem traz alviacutessaras feliz como quem pode dar o seio a um

bebecirc minhas crianccedilas a voacute trouxe comida pra vocecircs (MOSCOVICH 2006 p93-94)

Prazer eacute sentimento do corpo Bem-estar e gozo que se quer repetir Puro deleite acorda

os sentidos Onda repentina epifania de cores aromas gostos texturas sons Nasce sem aviso

deixa marcas faz pulsar em ritmo de quero-mais Nasce do encontro amoroso do saborear de um

prato e de tantas outras vivecircncias Estaacute na taccedila do vinho escuro e aveludado na mordida do mil-

folhas ao mesmo tempo crocante e macio O prazer desperta como se fosse dia novo entusiasma

provoca ecoa em cada parte nossa Comida eacute coisa prazerosa toca a vida sensorial alegra ceacutelulas

e anima A cozinha espaccedilo fiacutesico e territoacuterio afetivo evoca gostos desejos lembranccedilas prazer

O preparo das receitas o deleite dos pratos a partilha da mesa as conversas amenas durante a

refeiccedilatildeo todos inerentes ao universo culinaacuterio E depois vem a culpa a roupa que aperta o

regime por ordens meacutedicas Culpa e prazer inimigos entrelaccedilados

21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE

Por que sou gorda mamatildee eacute o romance escrito por Ciacutentia Moscovich em 2006 e

publicado pela Editora Record com uma narradora em primeira pessoa de quem o leitor natildeo

sabe o nome ao longo da obra Ela passa a limpo as histoacuterias de famiacutelia de origem judaica e a

sua proacutepria histoacuteria em uma carta para sua matildee Dessa o leitor tambeacutem natildeo sabe o nome da

primeira agrave uacuteltima paacutegina

O conflito central apresenta a dificuldade da narradora-personagem com seu aumento de

peso vinte e dois quilos em quatro anos e o sofrimento em face da necessidade de fazer dieta

Natildeo se trata apenas das privaccedilotildees de ter de fazer dieta Trata-se da dor emocional por precisar

fazer dieta de novo A repeticcedilatildeo de situaccedilotildees em que o engorde esteve presente em sua vida

ligado ao papel do comer em sua famiacutelia faz com que acuse sua matildee muitas vezes pela situaccedilatildeo

58

a que chegou Por essa oferecer comida demais Natildeo Por oferecer afeto de menos Ao contraacuterio

da matildee a Voacute Magra sua avoacute materna eacute muito carinhosa com ela e seus irmatildeos e aleacutem disso

sempre aparece com a sacola de crocheacute plena de doces da cozinha judaica O papel da avoacute parece

ser o de suprir as faltas da matildee e as supre em excesso no que tange ao reforccedilo da gula

A narrativa pode ser a expressatildeo de uma catarse atraveacutes da escrita uma decisatildeo

confessional da narradora ou sua atitude ora acusatoacuteria ora carente na direccedilatildeo de sua matildee Em

uma mistura de cada uma dessas formas o livro traz o entrelaccedilamento das memoacuterias das

emoccedilotildees e das etapas objetivas em sua jornada de emagrecimento como narra a protagonista no

proacutelogo ao expor para sua matildee que a escrita seraacute dirigida a ela

Tenho medo mas estou prestes a pocircr um ponto final e a aticcedilar a pluma das lembranccedilas

Luta contra o gelo do tempo O proacutelogo em seus estertores depois comeccedila

Mamatildee me endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar

esse territoacuterio metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora

Quero voltar a ter um corpo

Haacute um livro a ser escrito e nele os fatos seratildeo fruto da prestidigitaccedilatildeo ainda que

imperfeita Respostas possiacuteveis ilusatildeo para secar as maacutegoas e o corpo O proacutelogo

termina Depois jaacute iniciou Comeccedilo num ponto de intrerrogaccedilatildeo

Por que sou gorda mamatildee (MOSCOVICH 2006 p19)

A narrativa eacute contada em vinte e cinco capiacutetulos duzentas e cinquenta e uma paacuteginas

vinte e dois quilos O primeiro capiacutetulo apresenta em primeira pessoa um entrelaccedilamento

essencial ao conflito da personagem a histoacuteria da origem de sua famiacutelia na Europa passando

fome em vilarejos judeus a histoacuteria de sua Voacute Magra com o prazer da comida e sua proacutepria

histoacuteria de infacircncia com os irmatildeos na hora das refeiccedilotildees

Segue-se ainda nesse capiacutetulo um desabafo com uma lista de aspectos pejorativos do

sujeito gordo Satildeo frases que costumamos ouvir com grande frequecircncia sobre os indiviacuteduos com

excesso de peso e que eles mesmos muitas vezes referem em tom entre o mea culpa e a auto

ironia Esse eacute o tom usado pela narradora falando em sua voz o que atribui ao olhar alheio

Depois de apontar os defeitos dos gordos conta do comeccedilo de seu sacrifiacutecio com as restriccedilotildees

alimentares

Em seguida o escaacuternio daacute lugar agrave lembranccedila da morte de seu pai as consequecircncias que

tal perda teve na famiacutelia e sobretudo na relaccedilatildeo de sua matildee com os filhos Eacute o comeccedilo da voz

acusatoacuteria da narradora trazendo agrave tona fatos e sofrimentos na relaccedilatildeo familiar Aparece a

ausecircncia da matildee no cumprir de sua funccedilatildeo afetiva Seguem-se capiacutetulos de apresentaccedilatildeo da Voacute

Gorda do lado paterno da Voacute Magra e de sua histoacuteria frustrada de amor por um violinista russo

59

do avocirc do pai dos irmatildeos de si mesma em vaacuterios tempos da vida e da balanccedila Presente e

passado alternam-se disputando espaccedilo nas paacuteginas porque para a personagem em sua carta agrave

matildee o passado eacute parte do peso em quilos de seu presente

Enquanto passa a limpo sua histoacuteria e suas maacutegoas a narradora vai contando vitoacuterias e

deslizes na dieta dores pela restriccedilatildeo alimentar e alegrias por conseguir emagrecer lentamente A

histoacuteria familiar evolui o momento em que o excesso de peso na infacircncia tornou-se foco de

preocupaccedilatildeo e de imposiccedilatildeo da dieta por parte do pai aparece como fato de destaque A

narradora em zigue-zague transita entre os periacuteodos de vida para encontrar respostas ora em

conversas dirigidas agrave matildee ora em diaacutelogos com seu proacuteprio mundo interno A escrita para a matildee

eacute em essecircncia um passar a limpo para si mesma a proacutepria histoacuteria de seu corpo Gula prazer

afeto e ausecircncia dores e perdas inclusive de maacutegoas e de peso eis o transcorrer da histoacuteria

narrada Esses elementos satildeo o fio condutor da narrativa das primeiras paacuteginas ateacute a evoluccedilatildeo ao

epiacutelogo Parte desse reproduzo abaixo

Mamatildee natildeo preciso perdoaacute-la por nada Natildeo me incomodo mais pela porccedilatildeo presente de

sua lavra e todo o esforccedilo de natildeo mais me incomodar foi por amor que eacute minha cura

Mais cinco quilos a bordo de uma bicicleta cor-de-rosa seratildeo perdidos Recuso-me a

remexer ainda mais no passado Natildeo se angustie mamatildee Noacutes duas sabemos que natildeo

vale a pena-falta que a senhora serenize seus dias e deixe tambeacutem de remexer o passado

Depois que eu colocar o ponto final por favor mamatildee natildeo deixe de recompor sua

alegria seu desejo e sua piedade A senhora perdoaraacute a vida E eu terei esquecido que

cheguei ateacute aqui apesar da senhora

[hellip] (MOSCOVICH 2006 p250)

Destaca-se sobretudo a verossimilhanccedila interna da obra Entre o proacutelogo e o epiacutelogo haacute

muitas histoacuterias contadas em uma soacute compondo uma linha de tempo na cronologia do calendaacuterio

e outra dentro da personagem Afinal de contas o tempo interno tem um ritmo proacuteprio que

obedece acima de tudo agraves leis da memoacuteria

A narradora-personagem consegue compreender suas interrogaccedilotildees ao entremear passado

e presente histoacuteria familiar e individual A narrativa multifacetada natildeo sai dos trilhos e eacute possiacutevel

acompanhar o diaacutelogo da personagem consigo mesma atraveacutes da carta para sua matildee A

descoberta dos elementos alusivos agrave presenccedila e agrave falta de prazer alimentar que permeiam a obra

conduzem ao primeiro aspecto do presente capiacutetulo o que eacute o prazer afinal

60

22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL

Para o psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers o prazer no campo da Fenomenologia

Psiquiaacutetrica pode ser compreendido como a realizaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees

orgacircnicas Para o referido autor o prazer consiste no equiliacutebrio psiacutequico na satisfaccedilatildeo e no bem-

estar Jaacute conforme os autores do artigo Psicopatologia do Prazer Lorenzo Pelizza e Franco

Benazzi o prazer pode ser considerado um fenocircmeno psiacutequico de muacuteltiplas facetas Em termos

geneacutericos esse eacute um forte sentimento que corresponde agrave percepccedilatildeo de uma condiccedilatildeo positiva

fiacutesica ou mental proveniente do organismo

As pesquisas que abordam o prazer satildeo recentes Apenas haacute algumas deacutecadas a ciecircncia

passou a contribuir para evidenciar os efeitos beneacuteficos desse fenocircmeno tanto no sentido proacute-

ativo (como fator que favorece o bem-estar psico-fiacutesico do indiviacuteduo e que promove o processo

de cura da doenccedila) quanto no protetor (como elemento fundamental que fornece ao sujeito os

recursos necessaacuterios para afrontar e superar as experiecircncias negativas e para prevenir o risco de

adoecer) (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

Do ponto de vista do estudo do prazer como elemento saudaacutevel destacamos seu papel

como fator de importante valor motivacional sob o enfoque das teorias evolucionistas

Reduzindo ao maacuteximo a explicaccedilatildeo seria possiacutevel entender seu papel da seguinte forma como

espeacutecie sentimos prazer na alimentaccedilatildeo e na relaccedilatildeo sexual para que mediante esta sensaccedilatildeo

tenhamos estiacutemulo para nutrirmo-nos e procriarmos A gratificaccedilatildeo do ceacuterebro que ocorre

atraveacutes da experiecircncia prazerosa motiva o indiviacuteduo a repetir os comportamentos que a tornam

viaacutevel como o comer Forma-se assim um ciclo no qual a comida promove prazer e este motiva

a procuraacute-la pela resposta cerebral gerando novamente o prazer e assim ocorre a manutenccedilatildeo do

comportamento com sucessivas repeticcedilotildees A propoacutesito desse ciclo os referidos autores

esclarecem

O mecanismo operante de reforccedilorecompensa age em sentido evolucionista para

conduzir os comportamentos adotados na direccedilatildeo de escopos adaptativos que sejam uacuteteis

para garantir a sobrevivecircncia do indiviacuteduo (por exemplo busca de comida ou de aacutegua)

eou a conservaccedilatildeo da espeacutecie (condutas reprodutivas) Para que atinja a eficaacutecia o

estiacutemulo de reforccedilo deve ser capaz de ativar as instacircncias psiacutequicas do prazer e o sistema

neurobioloacutegico de gratificaccedilatildeo cerebral (circuitos dopaminergicos mesoliacutembicos) sendo

deste modo vivido como experiecircncia prazerosa satisfatoacuteria e assumindo assim um

importante valor motivacional (PELIZZA BENAZZI 2008 p298-299)

61

Tal explicaccedilatildeo evolucionista eacute relevante para a compreensatildeo do prazer alimentar Como

espeacutecie devemos sentir prazer ao comer com o propoacutesito de termos estiacutemulo para mantermos a

constacircncia de uma alimentaccedilatildeo regular O prazer eacute o elemento que torna possiacutevel esta constacircncia

O socioacutelogo e escritor brasileiro Carlos Alberto Doacuteria acrescenta um dado relevante nesse

sentido ao mencionar o autor de A fisiologia do gosto Jean Anthelme Brillat-Savarin que

publicou a obra em 1825 relevante na literatura gastronocircmica Nessa ao referir-se aos cinco

sentidos Brillat-Savarin acrescenta o sentido geneacutesico sobre o qual Doacuteria reflete em seu livro A

culinaacuteria materialista

Este uacuteltimo eacute o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro

sendo a sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecie Este sentido diz ele foi ignorado ateacute o

seacuteculo XVIII sendo anexado ao (ou confundido com o) tato Ora a reproduccedilatildeo da

espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo

a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo ao sexo e ao comer eacute o prazer a

busca do agradaacutevel e este eacute o sentido muito especial que ele pretende indicar como

responsaacutevel pela gastronomia (DOacuteRIA 2009 p190 grifo do autor)

Assim a relaccedilatildeo de prazer do indiviacuteduo com a comida eacute tambeacutem de acordo com Brillat-

Savarin uma estrateacutegia de sobrevivecircncia da espeacutecie assim como o sexo A sensaccedilatildeo prazerosa

ligada ao alimento refere-se principalmente agrave percepccedilatildeo deste como tendo gosto agradaacutevel ou

seja ldquo[] aquilo que apraz aos sentidos mobilizados pela alimentaccedilatildeordquo (DORIA 2009 p192)

O estudo da obra de Carlos Alberto Doacuteria abre um campo de reflexatildeo relevante no que

tange ao fenocircmeno do prazer pois o autor o aborda pela perspectiva gastronocircmica referindo o

que torna um alimento prazeroso Ele menciona que de acordo com os modernos teoacutericos do

gosto ldquo[] o agradaacutevel que comemos depende do impacto favoraacutevel sobre todos os cinco

sentidosrdquo (DOacuteRIA 2009 p194)

Para explicar como um alimento se torna agradaacutevel ele comeccedila por definir o mundo

objetivo lsquoo mundo das coisas e das nossas aptidotildees fisioloacutegicas para percebecirc-lorsquo e o mundo

subjetivo lsquodos nossos valores crenccedilas e preferecircncias individuaisrsquo Entatildeo acrescenta o ponto

chave de sua reflexatildeo ldquoTomemos como hipoacutetese que o gosto se forma na relaccedilatildeo entre esses dois

mundos O gosto assim entendido eacute relacional e se refere ao que se passa em torno do ato

fisioloacutegico de comerrdquo (DOacuteRIA 2009 p194) A fim de aprofundar a ideia desta relaccedilatildeo expotildee

Ao explorar a noccedilatildeo de gosto partindo de sua dimensatildeo material isto eacute da relaccedilatildeo que

se estabelece entre o mundo e o homem por intermeacutedio do complexo aparato sensitivo

temos que entender tambeacutem que o gosto varia de indiviacuteduo para indiviacuteduo entre as

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diferentes idades de um mesmo indiviacuteduo entre as classes sociais de cultura para

cultura e de uma eacutepoca para outra na mesma cultura Sabemos tambeacutem que permanece

um misteacuterio como nasce o desejo intenso de se comer determinado alimento ou como a

monotonia de uma dieta se instaura de modo a repudiarmos o alimento apoacutes um certo

tempo Nada disso se explica por razotildees puramente fisioloacutegicas (DOacuteRIA 2009 p195)

Assim na relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o alimento agradaacutevel ao lsquocomplexo aparato

sensitivorsquo como define Doacuteria existem variaacuteveis como idade e cultura que interferem no modo

como a sensaccedilatildeo prazerosa eacute percebida Quanto ao aspecto cultural por exemplo o autor refere

O gosto partilhado por vaacuterias pessoas ndash sejam membros de uma famiacutelia de uma

comunidade de uma eacutepoca- sugere uma construccedilatildeo coletiva que natildeo se confunde com a

experiecircncia gustativa de cada um O caraacuteter afetivo da cozinha familiar eacute um modelo de

socializaccedilatildeo do gosto que todos conhecemos Ningueacutem faz determinado prato igual a

nossa matildee ou avoacute [] (DOacuteRIA 2009 p195)

Em diversas famiacutelias de uma dada geraccedilatildeo o lsquobife agrave milanesa da voacutersquo eacute emblemaacutetico em

representar a explicaccedilatildeo do autor Ao que parece o prazer reside no preparo pela avoacute mais do

que no prato em si A avoacute de cada famiacutelia seria a responsaacutevel pelo melhor bife agrave milanesa do

mundo de acordo com os respectivos netos Essa percepccedilatildeo reflete o que Doacuteria menciona como

lsquoo caraacuteter afetivo da cozinha familiarrsquo termo que coincide com o papel da Voacute Magra

personagem da obra em estudo neste capiacutetulo Outra consideraccedilatildeo relevante do autor acerca da

construccedilatildeo do universo do gosto eacute a de que este ldquo[] eacute expressatildeo da educaccedilatildeo do paladar e dos

demais sentidos conformados culturalmente para a apreciaccedilatildeo do que comemosrdquo (DOacuteRIA 2009

p196)

Deste modo eacute possiacutevel compreender que aprendemos a gostar do que eacute aceitaacutevel em

determinado contexto social e cultural entretanto temos em primeiro lugar a percepccedilatildeo

bioloacutegica atraveacutes dos cinco sentidos do que devemos levar agrave boca e daquilo que eacute necessaacuterio

evitar em termos de manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Pela aparecircncia e pelo olfato por exemplo um

alimento pode parecer prazeroso e entatildeo adequado ou repulsivo se apresentar sinais de bolor ou

de alteraccedilatildeo de suas caracteriacutesticas conhecidas A respeito dessa avaliaccedilatildeo sobre o que eacute

agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos com fins de alimentaccedilatildeo Doacuteria refere

O gosto caminha em meio a essas preferecircncias e rejeiccedilotildees ajudando a erigir barreiras

que demarcam os limites de determinada cultura ou mesmo as variaccedilotildees individuais

nessa mesma cultura Alimentos tabus natildeo devem ser tocados ou consumidos Por isso

seu sabor eacute tambeacutem repulsivo Assim as sociedades constroem um anteparo que protege

a cultura daquilo que ela considera lsquonatureza hostil (DOacuteRIA 2009 p196)

63

Se de um lado o prazer eacute o elemento bioloacutegico que impulsiona o indiviacuteduo para a

preservaccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do alimento (e da espeacutecie atraveacutes da coacutepula) de outro as

escolhas que condicionam a sensaccedilatildeo prazerosa no campo alimentar ultrapassam a dimensatildeo

corpoacuterea atingindo em boa parte das vezes a esfera cultural atraveacutes da construccedilatildeo coletiva do

gosto O autor apresenta neste aspecto a seguinte reflexatildeo

Podemos imaginar o homem como uma maacutequina bioloacutegica que se relaciona

integralmente com o mundo de tal forma que todos os estiacutemulos que ele internaliza

afetam a totalidade dessa maacutequina O nosso conhecimento estaacute no tato na audiccedilatildeo na

visatildeo no olfato no paladar e tudo isso eacute processado natildeo apenas diretamente como

experiecircncia pessoal mas no acoplamento que mantemos com seres da mesma espeacutecie

(DOacuteRIA 2009 p197)

De acordo com essa exposiccedilatildeo podemos gostar daquele alimento que eacute aceitaacutevel em

nossa cultura e em nosso meio para assim continuarmos pertencendo ao grupo de que somos

parte contemplando a noccedilatildeo que o autor estabelece como o lsquoacoplamento que mantemos com

seres da mesma espeacuteciersquo Ao sentir prazer nos sentimos impelidos a comer algo porque nos

desperta a sensaccedilatildeo agradaacutevel essa experiecircncia eacute em primeiro plano instintiva quando o ldquo[]

elo entre prazerdesprazer se estabelece como base do fenocircmeno da aprendizagem e da aversatildeo a

um sabor a partir do risco que sinaliza para o organismordquo (DOacuteRIA 2009 p205)

Em segundo plano gostamos do que aprendemos que podemos gostar de acordo com a

cultura em que estamos inseridos Nesse contexto cabe ressaltar o fenocircmeno da

neuroplasticidade atraveacutes do qual o ceacuterebro se molda a partir das experiecircncias a que eacute exposto

de acordo com tal ocorrecircncia os mecanismos cerebrais aprendem a responder a determinado

estiacutemulo e criam um espaccedilo de resposta ao mesmo quanto mais vezes exposto a ele Isso pode

acontecer no aprendizado de uma competecircncia como tocar um instrumento musical falar um

idioma ou ateacute mesmo naquele de um novo paladar Aprendemos a gostar de um alimento o que

faz com que a sensaccedilatildeo agradaacutevel obtida ao comermos nos faccedila querer repetir seu consumo

Surge entatildeo a perspectiva do prazer em seu percurso do ponto de partida sauacutede para o

ponto de chegada doenccedila De acordo com Benazzi e Pelizza os mecanismos neurobioloacutegicos

responsaacuteveis pela gratificaccedilatildeo cerebral alimentam-se do prazer e quanto mais recebem mais

demandam que o organismo lhes forneccedila mais e mais sensaccedilotildees prazerosas Essa condiccedilatildeo

manifesta-se apenas em alguns indiviacuteduos cuja carga geneacutetica e aprendizagem cultural

favoreccedilam os comportamentos ditos compulsivos por exemplo Nas pessoas propensas a tal

64

expressatildeo isso ocorre sucessivamente motivo pelo qual o prazer alimentar pode ser natildeo mais um

aliado da sauacutede e da sobrevivecircncia mas sim um algoz a partir de determinado momento Esse

ponto eacute quando o comer se torna excessivo fornecendo de modo incessante e crescente a

gratificaccedilatildeo prazerosa aos mecanismos cerebrais de recompensa

Desfaz-se assim a noccedilatildeo de prazer apresentada por Jaspers anteriormente referida

Quando haacute aumento das sensaccedilotildees prazerosas para saciar a demanda dos centros cerebrais de

gratificaccedilatildeo e natildeo mais para que o prazer esteja calcado lsquono equiliacutebrio psiacutequico e no bem-estarrsquo

pode-se compreender que esse deixou de cumprir sua funccedilatildeo na sauacutede

Quando uma cultura em amplo espectro como a norte-americana aprende a sentir prazer

com a ingesta do fast-food e isso se transmite a outras culturas e ainda mais grave agraves geraccedilotildees

seguintes os problemas de sauacutede atingem dimensotildees catastroacuteficas Esse resultado jaacute eacute possiacutevel

constatar em nosso seacuteculo XXI Compreende-se assim que natildeo apenas o indiviacuteduo pode

adoecer mas a cultura tambeacutem pode adoecer Fortunadamente pensadores do campo da

alimentaccedilatildeo como Michael Pollan tecircm combatido de modo ferrenho essa tendecircncia como o faz

em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo salienta-se tambeacutem o italiano

Carlo Petrini que jaacute na deacutecada de 80 fundou a filosofia do slow food em oposiccedilatildeo ao haacutebito

determinado pelas cadeias de fast-food ao redor do mundo

Cada vez mais o slow food tem ganho espaccedilo na compreensatildeo contemporacircnea sobre o

comer com prazer com sauacutede e com lentidatildeo respeitando o tempo das refeiccedilotildees como um tempo

de interaccedilatildeo familiar e de consciecircncia do alimento que se ingere Referimos nesse sentido o

proacuteprio Pollan responsaacutevel pela defesa de que as famiacutelias voltem a comer em casa como

oportunidade de alimentaccedilatildeo saudaacutevel e de interaccedilatildeo entre os membros do grupo familiar

Entretanto as mudanccedilas causadas pela conscientizaccedilatildeo estatildeo apenas nos primeiros passos os

comportamentos alimentares insalubres ainda representam a maioria ao menos no ocidente As

patologias do prazer ocupam importante espaccedilo no campo das doenccedilas contemporacircneas em

termos psiacutequicos e em suas decorrecircncias fiacutesicas

Tanto a reduccedilatildeo quanto o aumento significativo de experiecircncias prazerosas podem levar agrave

ocorrecircncia de patologias nos acircmbitos fiacutesico e psiacutequico No artigo em estudo Psicopatologia do

prazer lecirc-se ldquoO ser humano frente agrave possibilidade de permitir-se prazeres em alguns casos

pode sentir-se impedido pela preocupaccedilatildeo pela desvalia e pela culpa relativa a eventuais

consequecircncias potencialmente danosas de suas accedilotildeesrdquo (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

65

Esses mesmos autores referem a existecircncia de uma porcentagem significativa de

indiviacuteduos capazes de experimentar sentimentos de baixa autoestima ou de culpa (leve e

transitoacuteria ou ao contraacuterio intensa e mantida) em relaccedilatildeo aos interesses e atividades que lhes

provocam prazer Tais emoccedilotildees desagradaacuteveis viriam em forma e em intensidade e representam

um relevante contraponto agrave sensaccedilatildeo prazerosa podendo inclusive inibir as experiecircncias futuras

de prazer A ausecircncia desse gera mais desvalia e culpa estresse crocircnico e sentimentos de

incapacidade impedindo com que novas vivecircncias potencialmente prazerosas aconteccedilam e assim

ocorre um ciclo com repercussotildees na sauacutede tanto em termos fiacutesicos quanto mentais Os autores

do artigo referem

[] de uma espeacutecie de estressor interno que tais indiviacuteduos transfeririam de uma

situaccedilatildeo a outra dessas circunstacircncias decorreriam entatildeo efeitos negativos sobre sua

sauacutede fiacutesica suas capacidades cognitivas (ex concentraccedilatildeo atenccedilatildeo memoacuteria) e em seu

funcionamento nos campos social e laboral cotidiano Seria possiacutevel referir que o

excesso de culpa ou desvalia determinaria uma condiccedilatildeo de estresse crocircnico capaz de

aumentar significativamente a secreccedilatildeo dos hormocircnios ligados ao estresse com

consequumlecircncias danosas agrave sauacutede fiacutesica e agrave mental (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

Ressaltamos que o contraacuterio tambeacutem ocorre Cabe refletir sobre o desejo exasperado e

absoluto de prazer levada a extremos como nas condiccedilotildees de transtornos alimentares (entre

esses a compulsatildeo alimentar) De acordo com tais autores quando ocorrer uma busca excessiva

de sensaccedilotildees prazerosas mesmo se houver a gratificaccedilatildeo desses prazeres haveraacute riscos para a

sauacutede do indiviacuteduo Nesse caso o prazer em excesso passaraacute a ser o responsaacutevel pelos

sentimentos de culpa desvalia depressatildeo ansiedade e descontrole de impulsos (PELIZZA

BENAZZI 2008)

O prazer em excesso no campo alimentar conduz muitas vezes ao aumento de peso

com prejuiacutezos agrave sauacutede Essas circunstacircncias podem acarretar uma forma de dor emocional

diretamente ligada ao prazer de comer como nos casos de indiviacuteduos que fazem dieta alimentar

por orientaccedilatildeo meacutedica Nesses a restriccedilatildeo imposta representa um importante sofrimento quando

se encontram em sobrepeso ou em condiccedilatildeo de obesidade moacuterbida A exigecircncia de restringir o

que lhes daacute prazer pode ser um motivo de transgressotildees da dieta O resultado eacute o natildeo

emagrecimento ou o engorde ainda maior A seguir vecircm a culpa a desvalia a tristeza e o

desacircnimo todos os antagonistas da sensaccedilatildeo prazerosa Para compensar as emoccedilotildees os

indiviacuteduos socorrem-se com a comida mantendo o ciacuterculo vicioso O equiliacutebrio preconizado por

Jaspers em sua perspectiva sobre o prazer natildeo eacute encontrado

66

Em Por que sou gorda mamatildee o conflito da personagem com o impedimento ao prazer

alimentar estaacute presente em diversos trechos A narradora faz uma dolorosa e agraves vezes bem-

humorada recapitulaccedilatildeo de suas vivecircncias de prazer com a comida e de suas experiecircncias de

dieta de emagrecimento Satildeo narradas tambeacutem suas emoccedilotildees de desvalia e baixa autoestima por

vestir o adjetivo de gorda entretanto muito de sua insatisfaccedilatildeo estaacute no impedimento para comer

o que gosta o que lhe daacute prazer

Haacute uma visatildeo especiacutefica sobre o que eacute o prazer nos indiviacuteduos que apresentam

comportamentos anormais na procura por esta experiecircncia eles referem em diversas ocasiotildees a

percepccedilatildeo que tecircm sobre a comida na qualidade de fonte de prazer para algumas pessoas comer

eacute a uacutenica fonte de prazer possiacutevel Eacute comum referirem nas consultas meacutedicas lsquoou usufruo do

maacuteximo prazer ou natildeo sentirei nenhumrsquo ou lsquose natildeo puder comer todo o pote de sorvete natildeo

como mais nada Ou isto ou nada Me nego a fazer dietarsquo haacute ainda quem refira lsquonatildeo acredito

em dia livre dieta natildeo tem dia livre Isso eacute enganaccedilatildeo porque ningueacutem consegue voltar a comer

direito no outro diarsquo Essas frases demonstram padrotildees culturais de interpretaccedilatildeo do papel da

comida muitas vezes substitutivo de outras necessidades emocionais

Existindo maior resposta positiva aos prazeres aos quais o indiviacuteduo se dirige em

especial nas situaccedilotildees de excesso ocorreraacute ainda maior demanda por parte desses mecanismos

Como resultado surgem sintomas psiquiaacutetricos isolados ou em comorbidade decorrentes do

desequiliacutebrio gerado pela demanda excessiva Haacute ainda as decorrecircncias fiacutesicas de tal

desequiliacutebrio como a obesidade e as doenccedilas a ela associadas o diabetes a hipertensatildeo arterial e

a hipercolesterolemia entre outras Mais cedo ou mais tarde o corpo cobra sua conta dos

excessos quando se perpetuam

23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA

A fisiologia do gosto obra essencial na literatura gastronocircmica citada anteriormente foi

escrita por Jean Anthelme Brillhat-Savarin advogado e juiz francecircs (1755-1826) apaixonado

pelos prazeres da mesa O livro eacute composto por trinta capiacutetulos que o autor intitula lsquoMeditaccedilotildeesrsquo

e um uacuteltimo composto de variedades A fatia destinada agrave reflexatildeo sobre o prazer eacute a meditaccedilatildeo

14 lsquoDo prazer da mesarsquo Sobre a procura pelo prazer em termos gerais Brillat-Savarin refere

67

O homem eacute incontestavelmente dos seres sensitivos que povoam nosso globo o que

experimenta mais sofrimentos A natureza o condenou primitivamente agrave dor pela nudez

de sua pele pela forma de seus peacutes pelo instinto de guerra e destruiccedilatildeo que acompanha

a espeacutecie humana onde quer que ela se encontre

Os animais natildeo foram atingidos por essa maldiccedilatildeo e sem alguns combates causados

pelo instinto de reproduccedilatildeo a dor no estado de natureza seria completamente

desconhecida da maior parte das espeacutecies ao passo que o homem que soacute encontra o

prazer passageiramente e por meio de um pequeno nuacutemero de oacutergatildeos estaacute sempre

exposto em todas as partes do corpo a terriacuteveis sofrimentos

Essa sentenccedila do destino foi agravada em sua execuccedilatildeo por uma seacuterie de doenccedilas

nascidas dos haacutebitos do estado social de modo que o prazer mais satisfatoacuterio que se

possa imaginar seja em intensidade seja em duraccedilatildeo eacute incapaz de compensar as dores

atrozes que acompanham certos distuacuterbios [hellip] Eacute o temor praacutetico da dor que faz o

homem sem se aperceber disso lanccedilar-se com iacutempeto na direccedilatildeo oposta entregando-se

ao pequeno nuacutemero de prazeres que herdou da natureza (BRILLAT-SAVARIN 1995

p167)

Brillat-Savarin aponta que o homem se atira ao prazer para fugir das dores inerentes agrave

espeacutecie Entretanto esse eacute apenas um dos elementos de compreensatildeo do prazer alimentar pois a

sensaccedilatildeo prazerosa decorre tambeacutem de outros fatores presentes em nossa fisiologia e psiquismo

a sociabilidade por exemplo eacute um desses componentes e estaacute envolvida no que o autor

estabelece como o prazer da mesa Ele refere no capiacutetulo lsquoO prazer da mesarsquo uma reflexatildeo

importante sobre a comensalidade a refeiccedilatildeo em conjunto ldquoFoi durante as refeiccedilotildees que devem

ter nascido ou se aperfeiccediloado nossas liacutenguas seja porque era uma ocasiatildeo de reuniatildeo que se

repetia seja porque o lazer que acompanha e segue a refeiccedilatildeo dispotildee naturalmente agrave confianccedila e agrave

loquacidaderdquo (BRILLAT-SAVARIN 1995 p168)

Brillat-Savarin faz uma diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer- relacionando-o agrave satisfaccedilatildeo

da fome atraveacutes do alimento como ocorre com os animais - e o prazer da mesa exclusivo agrave

espeacutecie humana De acordo com esse autor ldquo[] o prazer de comer exige se natildeo a fome ao

menos o apetite o prazer agrave mesa na maioria das vezes independe de ambosrdquo (BRILLAT-

SAVARIN 1995 p170) Esse uacuteltimo representa assim a sociabilidade o conviacutevio agradaacutevel

com aqueles com quem se divide uma refeiccedilatildeo Ainda sobre o prazer da mesa Brillat-Savarin

explicita

[hellip] natildeo comporta arrebatamentos nem ecircxtases nem transportes mas ganha em duraccedilatildeo

o que perde em intensidade e se distingue sobretudo pelo privileacutegio particular de nos

incliner a todos os outros prazeres ou pelo menos de nos consolar por sua perda Com

efeito apoacutes uma boa refeiccedilatildeo o corpo e a alma gozam de um bem-estar especial

Fisicamente ao mesmo tempo em que o ceacuterebro se revigora a face se anima e se colore

os olhos brilham um suave calor se espalha em todos os membros Moralmente o

espiacuterito se aguccedila a imaginaccedilatildeo se aquece os ditos espirituosos nascem e circulam [hellip]

Aliaacutes com frequumlecircncia temos em volta da mesa todas as modificaccedilotildees que a extrema

sociabilidade introduziu entre noacutes o amor a amizade os negoacutecios as especulaccedilotildees o

68

poder as solicitaccedilotildees o protetorado a ambiccedilatildeo a intriga eis por que a convivialidade

tem a ver com tudo eis por que produz frutos de todos os sabores (BRILLAT-

SAVARIN 1995 p170-171)

O trecho acima transcrito expressa que os propoacutesitos para que o prazer da mesa fosse

atingido natildeo eram apenas a amizade e a intenccedilatildeo de conviacutevio entre as pessoas Eacute possiacutevel

verificar que havia tambeacutem entre os objetivos para a partilha das refeiccedilotildees o poder a ambiccedilatildeo e

outros aspectos distantes das alianccedilas de afeto A circunstacircncia do prazer da mesa criava uma

aproximaccedilatildeo maior entre os participantes de disputas poliacuteticas e administrativas favorecendo os

acordos pela ilusoacuteria sensaccedilatildeo de zelo e de alianccedila Nesse periacuteodo o prazer ainda natildeo era

percebido como finalidade e sim como instrumento para a aquisiccedilatildeo de benefiacutecios Segundo

Brillat-Savarin haacute quatro condiccedilotildees para que exista o prazer em uma refeiccedilatildeo

Chegamos portanto a tal progressatildeo alimentar que se os afazeres natildeo nos forccedilassem a

deixar a mesa ou se a necessidade do sono natildeo se interpusesse a duraccedilatildeo das refeiccedilotildees

seria praticamente indefinida e natildeo teriacuteamos nenhum dado certo para determinar o

tempo transcorrido desde o primeiro gole de madeira ateacute o ultimo copo de ponche [hellip]

Desfruta-se o prazer em quase toda sua extensatildeo toda vez que se reuacutenem as quatro

seguintes condiccedilotildees comida ao menos passaacutevel bom vinho comensais agradaacuteveis

tempo suficiente (BRILLAT-SAVARIN 1995 p172-173)

No livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo haacute explicaccedilotildees que muito se assemelham ao exposto

por Brillat-Savarin No capiacutetulo lsquoComer compromete refeiccedilotildees banquetes e festasrsquo o autor Gerd

Althoff expotildee elementos relevantes sobre o papel da refeiccedilatildeo na vida coletiva e social na Idade

Meacutedia

Durante a maior parte da Idade Meacutedia a refeiccedilatildeo e o banquete (convivium) constituiam

o mais eloquumlente siacutembolo de que se dispunha para para expresser o compromisso de

manter relaccedilotildees baseadas na paz e na concoacuterdia A palavra-chave nesse caso eacute

ldquocompromissordquo porque comer e beber junto era uma forma de obrigar-se a satisfazer as

condiccedilotildees que esse tipo de laccedilo implica [] (ALTHOFF 2015 p300)

Acordos e alianccedilas eram entatildeo estabelecidos em banquetes de longa duraccedilatildeo chamados

convivium A relaccedilatildeo de cumplicidade e de compromisso entre os indiviacuteduos estabelecida pela

existecircncia destes eventos natildeo foi por certo o iniacutecio do papel da refeiccedilatildeo partilhada como

elemento agregador entre as pessoas Haacute muitos periacuteodos da histoacuteria como exposto pelos vaacuterios

pesquisadores no livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo em que o comer junto assumiu papel essencial

na comunhatildeo dos membros de uma coletividade sendo a alegria e o prazer algumas das emoccedilotildees

presentes em vaacuterios desses periacuteodos

69

Quando Brillat-Savarin refere quatro condiccedilotildees para desfrutar-se o prazer em uma

refeiccedilatildeo uma dessas eacute que haja lsquocomensais agradaacuteveisrsquo Tal fato nos remete aos elementos da

alianccedila e da paz no conviacutevio entre aqueles que comiam juntos nos banquetes da Idade Meacutedia

mas remete principalmente ao elemento do prazer que aparece atraveacutes do termo lsquoagradaacuteveisrsquo O

prazer eacute um ingrediente necessaacuterio no estabelecimento dessa alianccedila pois propicia que os

indiviacuteduos se comprometam uns com os outros pelo bem-estar que o viacutenculo permite Tal

resultado propicia a constacircncia dessa ligaccedilatildeo importante tambeacutem do ponto de vista poliacutetico na

eacutepoca O bem-estar da refeiccedilatildeo partilhada era entatildeo um meio natildeo um fim era o recurso para a

manutenccedilatildeo da perenidade nas relaccedilotildees garantindo ldquo[] a disposiccedilatildeo de todos os participantes de

cumprirem os deveres dela decorrentesrdquo (ALTHOFF 2015 p309)

Ainda no que tange agrave ocasiatildeo do convivium ressalta-se a forma como as atividades

prazerosas eram proporcionadas com o propoacutesito de reforccedilar a ligaccedilatildeo entre os participantes

Era quase impensaacutevel passar vaacuterios dias natildeo fazendo outra coisa senatildeo comer beber e

trocar presentes mesmo que se atribua aos participantes um apetite e uma inclinaccedilatildeo

para a bebida for a do comum Isso explica que nossas fontes mencionem agraves vezes vaacuterias

atividades paralelas que se poderiam agrupar sob a denominaccedilatildeo de lsquodivertimentos

mundanosrsquo entre os quais os espetaacuteculos dados durante os convivial em que danccedilarinos

(ou danccedilarinas) muacutesicos ambulantes menestreacuteis e poetas distraiam os convivas A

sucessatildeo de pratos e bebidas interrompia-se tambeacutem para permitir aos participantes fazer

um pouco de exerciacutecio Tratava-se de jogos ou agraves vezes de animadas caccediladas

Certamente esses elementos do convivium tinham tambeacutem um valor simboacutelico Viver

algum tempo juntos em paz e partilhar certas atividades criava entre as pessoas o clima

de confianccedila necessaacuterio assegurava-se ao novo parceiro que se desejava a paz e que se

estava disposto a respeitaacute-la e firmava-se o compromisso de continuar a agir assim no

futuro (ALTHOFF 2015 p303)

Assim o prazer afirmava-se como elemento agregador de grande importacircncia na

permanecircncia de viacutenculos Entretanto a finalidade de tais viacutenculos natildeo se concentrava

propriamente no bem-estar em si entre os participantes mas nos benefiacutecios propiciados em

termos de propriedades poder administraccedilatildeo e outros fins de interesse material No convivium

o prazer era oferecido nas atividades de lsquodivertimento mundanorsquo Eacute possiacutevel compreender a

partir desse dado que o prazer da partilha no comer junto da Idade Meacutedia natildeo se aproximava do

prazer com o alimento ou a bebida per se mas com atividades paralelas de divertimento para

entreter os convivas durante os dias de banquete

O prazer entatildeo era ainda um elemento natildeo ligado ao comer pelo sabor da comida assim

como as alianccedilas eram vaacutelidas pelos benefiacutecios que alicerccedilavam natildeo por sua importacircncia para o

bem viver entre os membros de uma coletividade De acordo com Gerd Althoff as relaccedilotildees entre

70

os indiviacuteduos e os costumes como o comer e o beber junto eram de grande importacircncia para a

realidade medieval

Todas as culturas arcaicas recorriam a este meacutetodo para unir uma comunidade

Entretanto os efeitos da refeiccedilatildeo natildeo derivam dela proacutepria De fato na Idade Meacutedia a

refeiccedilatildeo o banquete e a festa serviam para exteriorizar atos administrativos rituais e

portanto convenccedilotildees que serviam para veicular um sentido bem determinado de modo

constrangedor e coercitivo (ALTHOFF 2015 p309)

No capiacutetulo de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo lsquoTempero cozinha e dieteacutetica nos seacuteculos XIV

XV e XVIrsquo haacute relevantes esclarecimentos sobre o papel do prazer no comer e sua importacircncia

para a sauacutede Um dos pontos referidos por seu autor quanto ao papel do uso dos temperos e do

cozinhar os alimentos estaacute relacionado tambeacutem ao prazer alimentar ldquoDe uma maneira geral

todo tempero e todo cozimento ou seja toda cozinha tinha uma dupla funccedilatildeo tornar os

alimentos ao mesmo tempo mais apetitosos saborosos e mais faacuteceis de digerirrdquo (FLANDRIN

2015 p482)

Deste modo falar no prazer de comer torna-se parte da perspectiva histoacuterica desse

periacuteodo quando as especiarias estatildeo no auge de seu reconhecimento Flandrin refere que os

seacuteculos XIV XV e XVI foram o aacutepice de seu papel na cozinha europeacuteia quando esses

ingredientes tinham tambeacutem valor terapecircutico Natildeo se pode referir que o prazer atraveacutes da

comida tenha iniciado nesse periacuteodo histoacuterico mas eacute possiacutevel compreender que esse periacuteodo foi o

iniacutecio do falar em prazer como aspecto favoraacutevel agrave digestatildeo Havia uma aproximaccedilatildeo entre a

gastronomia e a dieteacutetica conforme Jean-Louis Flandrin sugerida no trecho ldquoAos dietistas

interessava o gosto dos alimentos por diversas razotildees Em primeiro lugar porque se digere

melhor aquilo que se come com prazer-como acreditamos ateacute hojerdquo (FLANDRIN 2015 p486)

Compreender o prazer como elemento presente na alimentaccedilatildeo torna-o tambeacutem parte da

sauacutede e do bem-estar do ser humano Esta perspectiva remete ao estabelecido por Karl Jaspers

sobre o prazer Este fenocircmeno seria equivalente agrave satisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas

funccedilotildees orgacircnicas com resultados no equiliacutebrio psiacutequico na percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e no bem-

estar do indiviacuteduo Desse modo ao ler o historiador Jean-Louis Flandrin confirma-se o papel do

prazer na lsquosatisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees orgacircnicasrsquo na concepccedilatildeo do

psicopatologista Jaspers Flandrin conclui o capiacutetulo com a seguinte reflexatildeo

Em resumo cozinhar agravequela eacutepoca assim como hoje era dar aos alimentos os sabores

mais agradaacuteveis- mas agradaacuteveis no acircmbito de uma determinada cultura para um gosto

71

diferente do nosso porque modelado por outras crenccedilas dieteacuteticas outros haacutebitos

alimentares (FLANDRIN 2015 p495)

Falar no prazer de comer entatildeo remete a Karl Jaspers pela concepccedilatildeo meacutedica do prazer

mas tambeacutem a Brillat-Savarin em sua diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer e o prazer da mesa

Para o escritor de A fisiologia do gosto o primeiro eacute de ordem bioloacutegica a meu ver menos ligado

agrave sensaccedilatildeo prazerosa ligada ao sabor e mais associada ao mero saciar da fome o segundo

exclusivo da espeacutecie humana eacute vinculado agrave experiecircncia de conviacutevio agradaacutevel com os comensais

na partilha de uma refeiccedilatildeo

A abordagem da dualidade entre gastronomia e dieteacutetica apontada por Jean-Louis

Flandrin eacute semelhante agravequela da dualidade apontada por Brillat-Savarin o prazer de comer e o

prazer da mesa Talvez essas divisotildees tivessem o propoacutesito de partir o indiviacuteduo em duas

metades a do corpo e a da mente A metade que se satisfaz com o saciar da fome seria entatildeo

diferente da que se apraz da companhia dos amigos agrave mesa A metade que preparava as receitas

pela gastronomia em fins da Idade Meacutedia seria diversa da que seguia as ordens da dieteacutetica

Nesse sentido a visatildeo de Jaspers sobre o prazer eacute a mais completa pois integra a satisfaccedilatildeo

harmocircnica e ordenada das funccedilotildees orgacircnicas ao equiliacutebrio psiacutequico agrave percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e

ao bem-estar do indiviacuteduo

Considerando o prazer alimentar entatildeo como elemento que envolve o corpo e a mente

do saciar agrave fome ao satisfazer o prazer gustativo e social surgem dois novos termos a gula e o

bom gosto

Os seacuteculos XVII e XVIII trouxeram mudanccedilas na relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com o prazer do

gosto Enquanto na Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVII a alimentaccedilatildeo das elites aproximava-

se muito de perto das prescriccedilotildees dos meacutedicos o que se seguiu a partir de entatildeo foi o apagamento

das referecircncias agrave antiga dieteacutetica dando lugar entre cozinheiros e gastrocircnomos agrave harmonia dos

sabores como prioridade Ficou relegado a segundo plano o aspecto de que ldquo[] os sabores eram

ateacute entatildeo ligados tanto a eles como aos meacutedicos sabiamente classificados do mais frio ao mais

quente eles constiuiacuteam uma indicaccedilatildeo segura da natureza dos alimentos e sua digestibilidaderdquo

(FLANDRIN MONTANARI 2015 p548) Um resultado interessante da separaccedilatildeo progressiva

entre cozinha e dieteacutetica foi uma permissatildeo para a gulodice conforme o registro de Histoacuteria da

alimentaccedilatildeo

72

Os refinamentos da cozinha natildeo visam mais manter a boa sauacutede das pessoas mas

satisfazer o gosto dos glutotildees Com uma pequena diferenccedila estes ainda natildeo se

reconhecem como tais e se apresentam como pessoas de paladar apurado apreciadores

de iguarias e peritos na arte de reconhececirc-las (FLANDRIN MONTANARI 2015

p549)

Com o avanccedilo das descobertas e das criaccedilotildees dos cozinheiros e gastrocircnomos o prazer

com os alimentos reveste-se de nova importacircncia a gula Comer torna-se sinocircnimo nesse

contexto de desfrutar do sabor da comida o que muitas vezes eacute partilhado com amigos Para

Brillat-Savarin seria a uniatildeo do prazer de comer e do prazer da mesa O gosto como sentido

fisioloacutegico assume nova representaccedilatildeo eleva-se agrave categoria de bom-gosto com aplicaccedilotildees para

aleacutem dos campos da cozinha De acordo ainda com os organizadores de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo

Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari

O gosto esse sentido de que a natureza dotou o homem e os animais para discernirem o

comestiacutevel do natildeo-comestiacutevel sofreu alias em meados do seacuteculo XVII uma estranha

valorizaccedilatildeo fala-se dele a partir daiacute em sentido figurado a propoacutesito de literature

escultura pintura muacutesica mobiliaacuterio vestuaacuterio etc Em todos esses domiacutenios eacute ele que

permite distinguumlir o bom do ruim o belo do feio eacute o oacutergatildeo caracteriacutestico do lsquohomem de

gostorsquo um dos avatares do homem perfeito Ora essa valorizaccedilatildeo implica uma certa

toleracircncia para com os glutotildees (FLANDRIN MONTANARI 2015 p549)

Bom-gosto gula e prazer satildeo termos que se referem a uma semacircntica do deleite da

experiecircncia gustativa produzida nas cozinhas da eacutepoca com iniacutecio no seacuteculo XVII O indiviacuteduo

comeccedila a perceber a possibilidade de extrair da comida uma espeacutecie de luxuacuteria traduzida pela

gulodice Ele desfruta do sabor do alimento como se estivesse em um climax eis o glutatildeo

Enquanto na alta Idade Meacutedia o prazer nos banquetes vinha das atividades paralelas e seu

propoacutesito natildeo era a experiecircncia prazerosa per se mas a alianccedila e a realizaccedilatildeo de objetivos que

dela resultavam a partir desse seacuteculo o prazer reveste-se de importacircncia nos campos de forno-e-

fogatildeo

Dane-se a dieteacutetica talvez pensassem os sujeitos Gula e prazer eram expressotildees que a

boa comida despertava usufruiacutea deles quem tinha bom-gosto Nascia entatildeo um grupo de

pessoas com os pomposos tiacutetulos de lsquogourmetsrsquo e lsquogastrocircnomosrsquo seguida do surgimento e da

expansatildeo de sua literatura apropriada os tratados de cozinha Um novo modo de vivenciar o

alimento tornava-se cada vez mais abundante Houve um significativo movimento gerado pelo

gosto alimentar ldquoA multiplicaccedilatildeo das artes ligadas agrave alimentaccedilatildeo e das obras teacutecnicas que tratam

delas foi acompanhada sob formas diversas de escritos que fazem a apologia do prazer de comer

e ateacute da glutonaria e da embriaguezrdquo (FLANDRIN MONTANARI 2015 p551)

73

Entretanto tal vivecircncia jaacute existia em menor expressatildeo na Itaacutelia do Quatrocentos Conta-

se que ldquoPlatinardquo o humanista Bartolomeo Sacchi teve relevante papel no prazer de comer no

referido periacuteodo com seu De honesta voluptate

Natildeo soacute este natildeo eacute cozinheiro nem meacutedico [hellip] mas mistura agrave sua documentaccedilatildeo

culinaacuteria e dieteacutetica a lembranccedila nostaacutelgicada alegria que seus amigos e ele

experimentavam ao saborear este ou aquele prato de mestre Martino o grande

cozinheiro romano de meados do seacuteculo acima de tudo ele utiliza isso para defender o

honesto prazer de saborear uma cozinha ao mesmo tempo simples e refinada prazer que

poderiacuteamos hoje classificar como o de um glutatildeo (FLANDRIN MONTANARI 2015

p552)

Por que na eacutepoca de Platina e entatildeo nos seacuteculos XVII e XVIII de efervescecircncia dos

gourmets ou mesmo em nosso seacuteculo XXI a sensaccedilatildeo prazerosa provocada pelo alimento eacute tatildeo

semelhante em sujeitos tatildeo diversos Pelo fato de que o prazer eacute inerente agrave experiecircncia humana

A definiccedilatildeo dada por Jaspers agrave sensaccedilatildeo prazerosa une aspectos da percepccedilatildeo fiacutesica e da

experiecircncia mental integradas Com base em sua definiccedilatildeo e considerando o acima exposto

sobre os termos gula prazer e bom-gosto ocorre a pergunta por que tantos sujeitos de diferentes

eacutepocas vivenciaram o prazer associado agrave comida em especial quando essa assumiu uma

conotaccedilatildeo de importacircncia com o iniacutecio da Gastronomia um termo cognitivo Recorremos a uma

possiacutevel explicaccedilatildeo neurocientiacutefica para esse questionamento a hipoacutetese do ceacuterebro triuno que

abrange a experiecircncia prazerosa como elemento exclusivo do ser humano

A referida hipoacutetese foi proposta pelo meacutedico e neurocientista americano Paul MacLean

em 1970 Segundo tal autor somos compostos grosso modo por trecircs ceacuterebros que trabalham em

colaboraccedilatildeo embora oriundos de diferentes etapas da evoluccedilatildeo das espeacutecies Assim nos

mamiacuteferos superiores existe uma hierarquia de trecircs ceacuterebros em um soacute daiacute o termo triuno De

acordo com a teoria os trecircs operam com diferentes graus de complexidade mas orquestram o

funcionamento humano de forma conjunta O ceacuterebro reptiliano presente desde os reacutepteis ou

arquicoacutertex seria o mais primitivo responsaacutevel pelas questotildees de sobrevivecircncia bioloacutegica como

alimentaccedilatildeo reproduccedilatildeo proteccedilatildeo etc A seguir em termos evolucionistas viria o ceacuterebro

liacutembico ou paleocoacutertex responsaacutevel pela elaboraccedilatildeo das emoccedilotildees como apetite medo raiva

etc presente desde as aves O terceiro e entatildeo o mais evoluiacutedo seria o neocortex responsaacutevel

pela elaboraccedilatildeo dos pensamentos e dos sentimentos e exclusivamente humano

Transpondo essa teoria para o campo alimentar podemos referir o ceacuterebro reptiliano

como responsaacutevel pela fome enquanto o liacutembico seria responsaacutevel pelo desejo por essa ou aquela

74

comida especiacutefica O neocortex viria ao final para dar significado ao que comemos atraveacutes da

compreensatildeo das emoccedilotildees da relaccedilatildeo entre a memoacuteria e o alimento e da atribuiccedilatildeo de conceitos

cognitivos como a noccedilatildeo de bom-gosto No campo gastronocircmico seria possiacutevel entender a

cooperaccedilatildeo dos trecircs ceacuterebros como uma integraccedilatildeo que tem como resultado o prazer de saborear

este ou aquele quitute Saboreamos porque temos fome porque algo nos apetece e nos desperta

desejo por fim porque aprendemos do ponto de vista cognitivo que gostar daquele alimento eacute

permitido e em alguns casos eacute valoroso pois nos torna pertencentes a um grupo como o dos

glutotildees e gourmets Se comer tal alimento for prazeroso isto significa que nossos trecircs ceacuterebros

foram atendidos e estatildeo trabalhando em conjunto Mais uma vez o bem-estar do corpo de da

mente referido por Jaspers

Compreender o prazer que existe como expressatildeo fiacutesica emocional e mental nos

possibilita entender por que esse tambeacutem pode estar associado a patologias nos mesmos

domiacutenios A explicaccedilatildeo estaacute no fato de que para vivenciar esse complexo fenocircmeno eacute preciso

que sejamos humanos e que nossos trecircs ceacuterebros operem em orquestra vulneraacuteveis agraves

experiecircncias positivas ou negativas inexoraacuteveis

24 O PRAZER DA COMIDA

A partir da constataccedilatildeo do engorde e da dieta orientada pelo meacutedico a protagonista de

Por que sou gorda mamatildee lsquopassa a vida a limporsquo em sua memoacuteria Com o propoacutesito de

compreender o porquecirc de seu engorde escreve uma carta para a matildee em trechos ora

confessionais ora acusatoacuterios esperando na correspondecircncia construir para si a resposta ao

longo das lembranccedilas que evoca

O balanccedilo entre o passado e o presente alinha a compreensatildeo sobre o papel dos trajetos de

vida desde a infacircncia no quadro atual de sauacutede Os vinte e dois quilos ou cento e dez tabletes de

manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha satildeo o resultado dos sofrimentos que vivenciou

do afeto que natildeo recebeu e da comida que devorou A dor emocional eacute de fato sua mas talvez

seja tambeacutem heranccedila da Voacute Gorda da Voacute Magra do pai e da matildee Nas histoacuterias entrelaccediladas lecirc-

se uma pesada bagagem de dores ancestrais

Atraveacutes da intersecccedilatildeo entre as vivecircncias eacute possiacutevel ler na obra trecircs tempos

predominantes com fronteiras tecircnues entre si aquele dos antepassados que a protagonista

75

conhece por ouvir contar o tempo da infacircncia que ela narra pelas recordaccedilotildees e o tempo

presente da dieta que provoca as idas e vindas da narrativa a fim de descobrir as causas de seu

aumento de peso As fronteiras satildeo tecircnues pois os trecircs tempos embora diversos no calendaacuterio

misturam-se na personagem ora como lembranccedila ora como reflexatildeo No percurso da obra o

elemento que liga as histoacuterias eacute na maioria das vezes a sensaccedilatildeo prazerosa com a comida

mesmo quando a referecircncia aponta para o contraacuterio sentimentos de culpa pela obesidade e de

revolta pela restriccedilatildeo alimentar

Haacute uma ligaccedilatildeo natural entre o comer e o prazer para aleacutem da rima Desde a

amamentaccedilatildeo a chegada do leite materno eacute acompanhada pelo contato de afeto da matildee com o

bebecirc e pela experiecircncia de prazer fiacutesico associada agrave succcedilatildeo Assim alimento viacutenculo afetivo e

prazer satildeo parte de nossas primeiras memoacuterias e podem permanecer como o tripeacute que daraacute

suporte a muitos de nossos padrotildees de comportamento ao longo da vida Esse tripeacute contudo

pode desestabilizar-se caso haja preponderacircncia de um dos componentes gerando experiecircncias

de sofrimento associadas a tal desequiliacutebrio

A referida situaccedilatildeo aliaacutes estaacute muito bem expressa nessa obra na qual a vivecircncia da

personagem frente ao engordar mostra o quanto o comer em sua vida ocupou muitas vezes os

espaccedilos de amor e de seguranccedila deixados vazios pela ausecircncia desse afeto Sobretudo por parte

dessa matildee o proacuteprio tiacutetulo do livro dirigido a ela sugere que seja vista como culpada pelo

processo de engorde da personagem Em diversas passagens da obra a comida eacute citada como

abundante enquanto a expressatildeo das emoccedilotildees eacute percebida como escassa

Encontramos a posteridade dentro da fartura pela qual devemos agradecer todos os dias

e da qual ainda hoje devemos nos afastar por forccedila da geneacutetica O excesso de comida o

excesso de zelo o excesso dos excessos tudo ficou em noacutes como lembranccedila e como

estoque de uma espeacutecie de amor do qual ainda hoje nos valemos quando o amor falta

minguado (MOSCOVICH 2006 p220)

A vivecircncia do prazer da comida eacute apresentada em diversos fragmentos tanto associados agrave

narradora quanto agrave sua matildee a quem dirige as reflexotildees sua Voacute Magra seu pai e seus irmatildeos

Uma das passagens mais ilustrativas do papel desempenhado pela sensaccedilatildeo prazerosa nesta

narrativa estaacute no trecho de uma viagem O que as personagens experimentam nesta cena parece

muito proacuteximo ao lsquohonesto prazerrsquo referido por Platina mencionado anteriormente Lembrando

de uma viagem em famiacutelia durante um percurso ao Uruguai a protagonista remonta um

momento em que sua matildee ela e os irmatildeos lambuzavam-se com doces no carro

76

[hellip] A senhora de repente deu ordem expressa para que o pai estacionasse ali naquele

ponto bem na frente daquela confeitaria a Carrero O carro nem bem tinha parado nem

bem nossos protestos se haviam esvaiacutedo com a agilidade de seu movimento e a senhora

jaacute entrava na Carrero atraveacutes da porta de vidro porta muito pesada em sua fidalguia de

anos servindo o fino paladar uruguaio Porta que a senhora cruzou duas vezes em toda

sua vida - aquela era a segunda

Ficamos ali os quatro com os narizes achatados de curiosidade contra as janelas do

Ford Natildeo demorou nem bem cinco minutos e a senhora logo apareceu com trecircs garrafas

de Crush de laranja em uma das matildeos e na outra uma bandeja de doces - e me lembro

que o pai soltou uma gargalhada e sacudiu a cabeccedila num gesto de anuecircncia

Os doces foram devorados com seu incentivo feliz as garrafas passavam de matildeo em

matildeo limpava-se a boca com guardanapinhos de papel ou com a manga do casaco A

senhora se empanturrou e nos empanturrou Ningueacutem deu muita bola para os farelos de

massa folhada e para as manchas de doce de leite que ficaram melecando o estofamento

ateacute que voltaacutessemos para casa trecircs dias depois (MOSCOVICH 2006 p72)

Esta eacute a uacutenica cena de prazer compartilhado entre a narradora os irmatildeos e a matildee Eacute a

uacutenica cena tambeacutem em que a matildee aparece permitindo-se o deleite com algazarra com alegria

desfrutando do saborear em famiacutelia os doces da confeitaria A personagem refere que a matildee

cruzara a porta do estabelecimento duas vezes na vida e aquela era a segunda Haacute uma referecircncia

indireta aqui agrave escassa permissatildeo em sua matildee para esse tipo de prazer com farelos e doce de

leite espalhado Uma permissatildeo a si mesma de lambuzar-se com o prazer de partilhar o doce o

afeto a brincadeira O lsquohonesto prazerrsquo de Platina que misturava agrave sensaccedilatildeo prazerosa quem

sabe a alegria entre as pessoas Essa eacute a emoccedilatildeo que habita a cena e natildeo somente a gula pelos

doces

A matildee aparece protagonizando outras duas cenas de prazer alimentar ambas associadas a

uma condiccedilatildeo de sauacutede para a qual precisou fazer um cateterismo Entretanto a sensaccedilatildeo

prazerosa eacute expressa como experiecircncia de permissatildeo individual e natildeo partilhada com a famiacutelia

como no deleite dos doces e do refrigerante no carro A narradora conta sua lembranccedila sobre os

dois episoacutedios vividos pela matildee o primeiro antes do procedimento o segundo apoacutes

Naquela noite depois da cintilografia a senhora devorou meio quilo de patildeo com

manteiga um bule de cafeacute e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Disse que jaacute que

ia morrer comeria o que lhe desse na veneta (MOSCOVICH 2006 p119)

Jaacute em casa a senhora voltou ao tempo do seu rosto e apesar da ferida aberta na virilha

tornou-se de novo uma avoacute E o mais gracioso foi que naquela noite devorou meio

quilo de patildeo com manteiga uns cem gramas de mortadela um pote com azeitonas

pretas e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Me disse que jaacute que natildeo ia morrer

comeria o que lhe desse na telha (MOSCOVICH 2066 p124)

77

Compreende-se como o prazer de comer estaacute vinculado a uma justificativa aceitaacutevel em

uma e em outra ocasiatildeo lsquojaacute que ia morrerrsquo e lsquojaacute que natildeo ia morrerrsquo Natildeo haacute uma vivecircncia da

sensaccedilatildeo prazerosa experimentada pela matildee nesses casos sem uma razatildeo que fundamente a

permissatildeo Outro ponto a salientar estaacute nas frases lsquocomeria o que lhe desse na venetarsquo e lsquocomeria

o que lhe desse na telharsquo em que lsquodar na venetarsquo e lsquodar na telharsquo fazem alusatildeo agrave satisfazer a

vontade o impulso da hora expressotildees ligadas ao prazer Os fragmentos apresentados fornecem

dados para que se possa compreender que na personagem da matildee esse prazer do ldquodar na venetardquo

soacute poderia ser permitido se associado a uma razatildeo muito forte como a possibilidade de ela

morrer no procedimento

Aleacutem das questotildees psiacutequicas da ligaccedilatildeo entre cozinha e prazer existe a influecircncia da

cultura presente nas famiacutelias de acordo com a relaccedilatildeo que seus antepassados estabeleciam com a

comida com o prazer e com os viacutenculos Eacute possiacutevel aprender que um alimento eacute saboroso ou

condenado porque essa informaccedilatildeo passa de uma geraccedilatildeo agrave outra natildeo como uma carga geneacutetica

mas como uma transmissatildeo de aprendizado cultural O que eacute transmitido ao grupo familiar eacute

dependente do significado da comida para os diferentes povos Dentro das famiacutelias haacute tambeacutem

coacutedigos representados pelo alimento muitas vezes compartilhados pelos membros como

acontece entre a protagonista e sua Voacute Magra

Eu imitei a voacute fiz ach e dei um tapinha no ar Natildeo tinha mesmo importacircncia nenhuma

Noacutes duas comeccedilamos a rir De matildeos dadas fomos ateacute a cozinha buscar algo com

bastante accediluacutecar para comer Doces nos deixavam fortes e felizes

Como diz mais um velho ditado avoacutes e netos se datildeo bem porque tecircm um inimigo em

comum (MOSCOVICH 2006 p99)

O episoacutedio refere-se ao conflito entre sua matildee e a Voacute Magra avoacute materna e a

protagonista posiciona-se a favor da avoacute partilhando com ela o prazer de lsquobuscar algo com

bastante accediluacutecar pra comerrsquo Existe clara cumplicidade com a avoacute expressa na frase lsquoDoces nos

deixavam fortes e felizesrsquo Essa mesma comunhatildeo eacute demonstrada nos trechos sobre os passeios

que elas faziam juntas quando a Voacute Magra a levava consigo nas andanccedilas ao centro para vender

roupas na infacircncia da narradora

Ela bem gostava daquela funccedilatildeo ou ao menos aparentava gostar e se aparentava fingia

muito bem Depois de uma boa venda saiacutea exibindo um ar glorioso e altaneiro uma

conquistadora que avanccedila sobre terra remota e me puxando pela matildeo me punha diante

de um copo de guaranaacute- o copo que ela inspecionava muito bem e submetia ao processo

de assepsia com o lencinho- uma garrafa de refrigerante e um mil folhas partido ao meio

davam bem para noacutes duas Tatildeo bem que nem fazia falta a outra metade

78

O que eu aprendi com vovoacute foi bastante aleacutem do que pretendia papai Ela natildeo queria me

mostrar como se ganhava o patildeo natildeo tinha interesse em expor a neta a sofrimento algum

O que a voacute queria mesmo com aquelas excursotildees era a farra de dividir comigo um doce e

um refrigerante a gente se refestelando com creme de confeiteiro Ela pagou com

antecipaccedilatildeo aquelas pequenas felicidades coisa que ela mais amava no mundo

(MOSCOVICH 2006 p91-92)

Para a protagonista e sua Voacute Magra esses passeios representavam mais do que a

oportunidade de saborearem o mil folhas eram a chance de partilharem juntas o prazer de um

coacutedigo que comungavam o sabor doce Ao ler-se as passagens desta avoacute com ela e com seus

irmatildeos ao longo da obra compreende-se que este sabor doce eacute com nitidez o afeto partilhado

entre a Voacute Magra e os netos Para a avoacute o deleite com a comida tem raiacutezes culturais e vivenciais

O livro aponta a fome ancestral como possiacutevel razatildeo de seu prazer com a comida Jaacute no

capiacutetulo um ela apresenta sua Voacute Magra importante referencial em sua histoacuteria com o papel da

comida e com o engorde A obra comeccedila pelo cerne do significado da comida para a famiacutelia a

fome Essa vivecircncia eacute elemento relevante na histoacuteria familiar da protagonista A fim de

corroborar o papel da fome na dimensatildeo que cozinha ocupa na literatura judaica vale apresentar

a contribuiccedilatildeo de Ana Maria Shua em sua obra Risos e emoccedilotildees da cozinha judaica

A comida ocupa um lugar importante na literatura judaica Seguramente porque ocupa

um lugar importante na vida judaica na vida material e tambeacutem por razotildees religiosas

na vida espiritual Acima de tudo os judeus da Europa Oriental tendiam a contar com o

uacutenico adereccedilo capaz de converter em excelente qualquer comida para qualquer paladar a

fome Natildeo chama a atenccedilatildeo desse modo que o tema da comida apareccedila uma e outra vez

entre os sempre famintos personagens de sua literatura (SHUA 2016 p113)

O entendimento da comida como milagre aponta o poder que lhe era atribuiacutedo pela Voacute

Magra conforme narra a protagonista

Para quem vem de uma famiacutelia que nos miseraacuteveis e congelados vilarejos judeus da

Europa passou fome de comer soacute repolho ou soacute batata para a qual naqueles shtetels

carne era uma abstraccedilatildeo que os dentes nem conheceram e que se acostumou a aplacar o

oco do estocircmago com sopa de beterraba ou com aquele mameligue que nada mais era

do que um mingau meio insosso de farinha de milho e aacutegua a obsessatildeo por comida nada

tem ou nada deveria ter de extraordinaacuterio Vovoacute Magra assim como todas as avoacutes

acreditava que a comida era um milagre capaz de moldar crianccedilas em adultos um

homem eacute o peso daquilo que come uma boa refeiccedilatildeo vale a prece por um dia a mais de

vida

O caso era que diante de um prato de comida Vovoacute Magra parecia encontrar o sentido

da existecircncia (MOSCOVICH 2006 p21)

A comida era milagre e sentido da existecircncia para sua avoacute de acordo com a protagonista

entretanto vai aleacutem mostrando a voracidade o apetite o prazer afoito com que aquela comia O

79

aspecto interessante foi a narradora referir-se ao termo lsquodesesperorsquo que denota uma espeacutecie de

sofrimento A avoacute sentiu tanta fome que quando pocircde comer tornou o alimento a resposta para

todas as faltas mesmo as futuras A comida era um modo de prevenccedilatildeo contra a fome que ela

pudesse vir a passar novamente

E comia comia comia

Comia ovos duros comia coalhada comia milho comia carne comia saladas comia

frutas- especialmente laranjas-do-ceacuteu que docinhas natildeo espicaccedilavam o paladar ao

contraacuterio do azedo das laranjas-de-umbigo que ela tambeacutem comia Comia tanto que se

via nela um desespero E de tanto passer fome decerto vovoacute por mais que comesse e se

fartasse natildeo engordava Cinturinha fina seios achatados quadric estreitos heranccedila que

a senhora mamatildee abocanhou e que natildeo me deu

Da vovoacute soacute herdei o apetite ancestral o mesmo que a senhora herdou (MOSCOVICH

2006 p21-23)

O apetite eacute capaz de promover a antecipaccedilatildeo do prazer pela lembranccedila e pelo desejo de

comer determinado alimento aleacutem de estimular a repeticcedilatildeo do que satisfaz pela gratificaccedilatildeo que

o ceacuterebro registra Se tal prato eacute saboroso e lhe apetece o indiviacuteduo vai buscaacute-lo de novo e assim

sucessivamente Por isso a Voacutevoacute Magra lsquocomia comia comiarsquo e lsquocomia tanto que se via nela um

desesperorsquo Entatildeo quando a narradora comeccedila a passagem falando em fome e a conclui

referindo-se ao lsquoapetite ancestralrsquo estaacute dizendo que em sua avoacute a fome transformou-se no prazer

pela comida

Ainda assim havia respeito agraves proibiccedilotildees religiosas ligadas agrave tradiccedilatildeo culinaacuteria judaica A

narradora descreve sobre os haacutebitos alimentares da Voacute Magra ldquoExceto por carne de porco ou

mariscos e outras coisas gosmentas vindas da aacutegua ndash alimentos que a Lei considera impuros e

que portanto eram iguais agrave pedra que se interdita levar agrave boca ndash natildeo havia comida que ela

desprezasserdquo (MOSCOVICH 2006 p21-23)

Entatildeo embora houvesse o respeito agraves restriccedilotildees impostas havia tambeacutem o prazer com os

alimentos permitidos fossem ou natildeo pertencentes agrave culinaacuteria tradicional judaica Eacute neste ponto

que se aproximam os textos da ficccedilatildeo e da teoria fontes de estudo no presente capiacutetulo Natildeo se

nega que haja a proibiccedilatildeo a certos alimentos aspecto em que a obra de Ciacutentia Moscovich foi fiel

agrave cultura culinaacuteria judaica mas a mesma tambeacutem problematizou o espaccedilo de prazer existente na

cozinha de sua tradiccedilatildeo

Outro elemento relevante na anaacutelise da passagem acima eacute o que a narradora refere quando

menciona ter herdado de sua avoacute apenas o lsquoapetite ancestralrsquo Nesse ponto da narrativa atribui

agraves raiacutezes familiares seu gosto pela comida Eacute significativo que a narradora comece o texto falando

80

sobre a fome e o encerre usando o termo apetite pois se pode pensar na fome como uma

necessidade bioloacutegica do corpo que natildeo difere um alimento de outro O propoacutesito da fome eacute ser

saciada No que tange ao apetite pode-se pensar no apetite por algo o que o torna mais

especiacutefico agraves preferecircncias alimentares e desse modo mais proacuteximo ao prazer Foi o que Voacute

Magra descobriu

Eacute visiacutevel seu gosto por essa ou aquela comida sua profunda sensaccedilatildeo prazerosa com

ingredientes e pratos tiacutepicos Natildeo os escolhe apenas para saciar a fome deseja isso sim

satisfazer o apetite deleitar-se Com todas as restriccedilotildees que a tradiccedilatildeo impunha descobriu no

alimento fonte de prazer e com os netos de expressatildeo afetiva Havia tambeacutem um sentido de

aproveitar do alimento tudo o que ele poderia oferecer natildeo desperdiccedilando nada de sua

substacircncia Mesmo com o propoacutesito desse aproveitamento dedicava-se a fazer comidas e doces

saborosos como a narradora lembra no trecho abaixo

E havia aquele creme de laranja que era uma nuvem accedilucarada de sabor contrastante

um nada azedinho rompendo o doce dava ateacute um arrepio Era o jeito de a voacute aproveitar

as frutas que sobravam no mercado Natildeo se pode desperdiccedilar sumo algum mesmo que

as frutas despenquem podres no meio das sobras (MOSCOVICH 2006 p94)

O trecho expressa o fazer culinaacuterio de um doce que deixou lembranccedilas sensoriais na

protagonista expressas por termos como lsquonuvem accedilucarada de sabor contrastantersquo lsquoum nada

azedinho rompendo o docersquo e sobretudo a revelaccedilatildeo de que lsquodava ateacute um arrepiorsquo Entretanto as

escolhas alimentares na cultura judaica natildeo teriam por princiacutepio dar relevacircncia ao prazer mas aos

elementos religiosos Existe um conjunto de regras de idoneidade alimentar na cozinha judaica

chamada kasherut e cada alimento pertencente a tal conjunto e entatildeo permitido eacute chamado

kasher A respeito das tradiccedilotildees religiosas implicadas na alimentaccedilatildeo Ariel Toaff no capiacutetulo

lsquoCozinha judaica cozinhas judaicasrsquo do livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas

esclarece

Afirma-se em geral que as praacuteticas da alimentaccedilatildeo judaica estatildeo essencialmente

enquadradas na oacutetica do sistema religioso fundamentadas em proibiccedilotildees biacuteblicas

ampliadas e interpretadas pelas normativas rabiacutenicas Em outros termos o judeu comeria

alimentos que lhe satildeo permitidos descartando todos aqueles que de uma ou outra forma

entrassem nas categorias explicitamente proibidas pela biacuteblia ou pela hermenecircutica

geralmente extensa da ritualiacutestica posterior Nesse sentido suas escolhas alimentares

deveriam ser consideradas como fundamentos de sua identidade cultural e religiosa A

gama de proibiccedilotildees parece vasta e sem duacutevida condicionante (TOAFF 2009 p179)

81

Eacute interessante observar que mesmo focados na obediecircncia agraves normas havia uma culinaacuteria

rica de prazer dentro da cultura Apesar das influecircncias externas e as proibiccedilotildees religiosas

configurou-se uma cozinha judaica nuclear baseada no gosto Na Europa do seacuteculo XV ou XVI

os alimentos definidos como lsquoagrave hebraicarsquo ou lsquoagrave judiarsquo expressavam ingredientes gosto e aspecto

tipicamente judaicos e eram imediatamente reconhecidos como tal

O marzipatilde e as panquecas com mel e canela o patecirc de fiacutegado gordo os Griben (pedaccedilos

fritos de pele [de ave]) e os salsichotildees de ganso o hamin a carne guisada do Shabatt

com feijotildees e gratildeos-de-bico lsquocom pimenta e alhorsquo as alcachofras fritas lsquoagrave rosarsquo e a

endiacutevia assada no forno com lsquopeixe azulrsquo todos eles alimentos cuja preparaccedilatildeo era

comumente qualificada como lsquoagrave hebreacuteiarsquo natildeo eram decerto chamados desse modo pelo

fato de seu consumo ser permitido ou prescrito aos judeus pelas normas da biacuteblia e dos

rabinos mas porque se reconhecia neles a expressatildeo particular do gosto judaico [hellip] O

fato incontroverso eacute que o gosto gastronocircmico judaico parecia evidentemente diverso

daquele do ambiente cristatildeo circundante (TOAFF 2009 p183)

A evocaccedilatildeo sensorial eacute provocada pelos alimentos judaicos quando ateacute os nomes

despertam curiosidade e imaginaccedilatildeo pela forma e pelo gosto Ali estaacute bem expresso um conjunto

de sabores pertencentes agrave cultura e agrave vivecircncia de prazer associados agrave comida O capiacutetulo de Ariel

Toaff no livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas defende que o gosto e o prazer

na culinaacuteria judaica foram elementos de forccedila suficiente para ultrapassarem as proibiccedilotildees

religiosas aspecto corroborado pelo grande nuacutemero de receitas daquela cultura

O prazer alimentar estaacute associado a esse aspecto cultural de um povo Carlos Alberto

Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira aponta que

Em termos simples todo dia eu acordo me sentindo brasileiro ou espanhol ou tcheco

etc Isso ocorre porque falo uma liacutengua alimento-me de determinada comida sei como

meus compatriotas se comportaratildeo diante de certas situaccedilotildees e assim por diante Haacute um

sentimento multifacetado de pertencimento que me faz nacional (DOacuteRIA 2014 p24)

Esse pertencimento tem como parte culinaacuteria pois identifica gostos e ingredientes de um

povo No caso especiacutefico da culinaacuteria judaica essa caracterizaccedilatildeo ocorre mesmo quando

adaptada a outras culturas e produtos como Toaff aponta Em por que sou gorda Mamatildee a

narradora faz um relato que contempla a cozinha judaica vivenciada em sua infacircncia adaptada agrave

cultura local sem no entanto perder sua principal expressatildeo nos pratos tiacutepicos

Como sempre acreditamos no aprendizado pela dor a fome passou a ser o grande

mestre liccedilatildeo que pai nenhum queria que os filhos aprendessem Atestando que os

tempos haviam mudado e que este naco do Brasil era uma Canaatilde as cozinhas do Bairro

eram usinas de todo tipo de comida

82

Agraves sete da manhatilde mal se pulava da cama e uma nuacutevem aromaacutetica e uacutemida jaacute tinha

invadido a casa As panelas ferviam galinhas as cebolas se atiravam agrave fritura as lacircminas

das facas trituravam ramos de tempero verde colheres de pau puxavam refogados nas

caccedilarolas batalhotildees rechonchudos de almocircndegas se alinhavam nas taacutebuas de carne ao

lado de um fornido regimento de varenikes que logo iam encontrar seu destino na aacutegua

pelando No bairro inteiro cedinho frio ou calor chuva ou sol matildeos zelosas estripavam

peixes recheavam pimentotildees cortavam ovos duros mexiam guisados lavavam arroz

arrancavam folhas dos ramos de louro Tempero lambido na concha da matildeo douravam

batatas raspavam cenouras sovavam massas fatiavam tomates queimavam berinjelas

batiam espinafre amassavam miuacutedos de frango esmagavam dentes de alho Enquanto

pepinos eram enfiados em enormes potes de vidro para a conserva de salmoura

amendoins em trouxas de panos de prato eram batidos a martelo pecircssegos ameixas e

peras se compotavam marmelos de accedilucaravam cremes se encorpavam nacos de

goiaba e punhados de uva em passa enchiam o oco de maccedilatildes vermelhas e lustrosas

(MOSCOVICH 2006 p48-49)

A escolha pelo uso do preteacuterito imperfeito nos atos culinaacuterios ilustra o aspecto rotineiro

com que essas praacuteticas eram realizadas dentro da vida do bairro de predominacircncia judaica Todo

cotidiano era tecido pela manhatilde pelos aromas texturas e costumes que compunham a cultura

local O trecho remete o leitor a um passado que se perpetua atraveacutes dos movimentos vividos nas

cozinhas pelo que a narradora refere como lsquomatildeos zelosasrsquo Haacute no pano de fundo desse

fragmento a ideia da repeticcedilatildeo das accedilotildees como marca de continuidade de haacutebitos gostos e

preferecircncias A narradora prossegue seu relato transmitindo lembranccedilas da cozinha judaica

vivenciadas em seu bairro

Eu feliz na atmosfera lavada das manhatildes mastigando o haacutelito de cafeacute e pasta de dente

gostava de ver as mulheres que vinham da feira livre com sacolas nas quais adejavam

verduras outras traziam suspensas de ponta-cabeccedila galinhas vivas que arregalavam os

olhos redondos num susto de morte Algumas donas de casa elas mesmas fariam o

talho na garganta por onde se esvairia o sangue do bicho enquanto outras mais

piedosas ou covardes ou que seguissem a lei alimentar a kashrut recorriam ao shochet

responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual Todas para um uacutenico lugar a cozinha matriz do

afeto de nossa gente Pratos com nomes esquisitos e tatildeo familiares varenikes beigales

mondales knishes strudels iuchs kasha rossale borscht guefiltefish chrein kishke

kreplach tzimes

Comida para um exeacutercito (MOSCOVICH 2006 p49 grifo do autor)

No trecho acima lecirc-se o aspecto religioso ligado agrave culinaacuteria quando a narradora aborda a

lei alimentar a kashrut e o shochet responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual das galinhas Outro

elemento apontado eacute a referecircncia aos pratos judaicos remetendo agrave ligaccedilatildeo entre cozinha e

pertencimento a um povo elemento cultural referido por Carlos Alberto Doacuteria apresentado

anteriormente Um ponto relevante apontado por esse autor eacute a citaccedilatildeo de Levi Strauss ldquoGestos

aparentemente insignificantes transmitidos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua

insignificacircncia mesma satildeo testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou

83

movimentos figuradosrdquo (DOacuteRIA 2014 p215) Assim eacute possiacutevel compreender os gestos

corporais dos atos culinaacuterios apresentados pela narradora sobre a rotina alimentar em seu bairro

como um importante testemunho da cultura judaica daquele territoacuterio

Aleacutem disso uma frase de grande relevacircncia no fragmento eacute lsquoTodas para um uacutenico lugar a

cozinha matriz do afeto de nossa gentersquo Nessa o viacutenculo entre o comer e o afeto expressa um

importante fator da cultura judaica a essa ligaccedilatildeo estaacute associada tambeacutem a sensaccedilatildeo prazerosa

da comida partilhada Carlos Alberto Doacuteria expotildee a reflexatildeo de Annie Hubbert quando ela

registra

Especialmente nas sociedades onde as representaccedilotildees coletivas passam por livros

religiosos (os judeus os cristatildeos e os muccedilulmanos) o ato de comer aparece ligado ao

amor materno e recusar a comida eacute o mesmo que recusar essa modalidade fundante de

afeto um ato que exprime grande emoccedilatildeo (DOacuteRIA 2014 p204)

Dividir a comida eacute tambeacutem nutrir o sentimento de pertencer ao grupo de fomentar a

permanecircncia dos atos que satildeo parte dos costumes desse grupo como aqueles atos apresentados

no trecho anterior em preteacuterito imperfeito atos culinaacuterios que satildeo parte do cotidiano das

cozinhas do bairro Somam-se alimento afeto rotina cultura prazer pertencimento partilha

continuidade

Ainda sobre o gosto da cozinha judaica Toaff escreve

As mercearias dos guetos pululavam de clientes cristatildeos mais gulosos do que

esfomeados [hellip] A aproximaccedilatildeo dos cristatildeos agraves comidas judaicas era sempre ambiacutegua e

ambivalente atraiacutedos (e ao mesmo tempo desconfiados) por aqueles pratos que podiam

ter significados hereacuteticos imprevistos e por aqueles sabores exoacuteticos que exerciam

veladas seduccedilotildees de transgressatildeo lsquoComer agrave judiarsquo era um pouco como tornar-se judeu

no prazer de um momento sentir de dentro o fasciacutenio daquilo que era difiacutecil (e talvez

impossiacutevel) aprender de fora [hellip] Comer uma alcachofra lsquoagrave judiarsquo ou uma fatia de patildeo

aacutezimo era como fazer uma perigosa e temeraacuteria viagem ao estrangeiro uma espeacutecie de

percurso sedutor da igreja agrave sinagoga da qual poreacutem pretendia-se voltar o mais raacutepido

possiacutevel (TOAFF 2009 p183-184)

Compreende-se assim que a cozinha judaica tinha o apelo sedutor que provocava prazer

ateacute em outras culturas como a cristatilde Isso ocorria por sua forccedila especiacutefica pelo nuacutecleo vasto de

receitas e de modos-de-fazer este ou aquele prato no entanto tal apelo ocorria em grande parte

por simbolizar o proibido e o desconhecido aos cristatildeos Agradava-lhes a transgressatildeo dessa

cozinha tiacutepica seus sabores e significados Natildeo se tratava apenas de apreciar o gosto mas

84

tambeacutem o que tal culinaacuteria representava a um ambiente cultural diverso enfrentar a culpa e

encontrar o prazer do gosto clandestino

Para os proacuteprios judeus a amplitude de receitas e de gostos dos pratos lsquoagrave judiarsquo era tatildeo

arraigada que o gosto era parte de suas escolhas para aleacutem da imposiccedilatildeo religiosa Sobre isso

Toaff reflete ldquoHaacutebitos e tradiccedilotildees alimentares inquietudes irracionais gosto e nostalgias faziam

com que mesmo nos casos extremos o paladar abandonasse o judaiacutesmo muito mais lentamente e

de maacute vontade do que o coraccedilatildeo ou a menterdquo (TOAFF 2009 p185)

Ariel Toaff demonstra o ponto a ser discutido sobre o aspecto cultural dessa culinaacuteria em

relaccedilatildeo ao prazer alimentar as restriccedilotildees e as proibiccedilotildees religiosas de um lado o prazer de

manter vivo o respeito pela tradiccedilatildeo de receitas tiacutepicas lsquoagrave judiarsquo que representam o gosto

alimentar dos judeus de outro Apesar das proibiccedilotildees a essecircncia da cozinha judaica se manteve

atraveacutes de uma vasta quantidade de receitas Eacute possiacutevel compreender isso pelo fato de o prazer

ser um fenocircmeno exclusivamente humano cujas caracteriacutesticas satildeo o equiliacutebrio fisioloacutegico e

psiacutequico que leva ao bem-estar de acordo com o Jaspers Em sendo fenocircmeno humano

pronuncia-se no indiviacuteduo de todos os tempos e de todas as culturas e eacute elemento ateacute mesmo

capaz de sobrepujar um constructo como as proibiccedilotildees religiosas como no caso da cozinha

judaica

O que mais chama a atenccedilatildeo lendo a pesquisa de Ariel Toaff eacute de como o gosto judaico

foi sendo construiacutedo a ponto de configurar-se como uma tradiccedilatildeo culinaacuteria Outro elemento

interessante referido pelo autor satildeo os processos de osmose com outras culturas alimentares a

partir das emigraccedilotildees dos judeus para diferentes territoacuterios O paladar judaico foi adicionando

alimentos agrave sua lista ingredientes e pratos de outras culturas foram sendo incorporados ao seu

gosto

Um trecho que ilustra essa lsquoosmosersquo estaacute no comeccedilo de Por que sou gorda mamatildee

quando a narradora-personagem conta a histoacuteria da chegada de sua famiacutelia ao Brasil e a

aproximaccedilatildeo de seu bisavocirc a um iacutendio proacuteximo agrave moradia da famiacutelia

[hellip] Um desses bugres vovoacute natildeo tinha certeza de que era o mesmo que fora aprisionado

deixou uma tigela de farinha - dependendo da versatildeo um pedaccedilo de carne- na porta da

casa O bisavocirc na mesma tijela e no mesmo lugar ofereceu para o iacutendio uma porccedilatildeo de

aipim cozido (ou uma porccedilatildeo de chulent ou um pedaccedilo de leikech) Tijela vai tijela

volta o bugre fez amizade com o bisavocirc falavam-se de iniacutecio com os dedos Depois

passaram a dividir o mesmo tronco de aacutervore no qual o bisavocirc sentava para o descanso

do final da tarde Depois para o pasmo geral viram o iacutendio vestindo uma camisa e uma

85

calccedila do bisavocirc mesma eacutepoca em que vovoacute viu entrar em casa uma gamela talhada em

madeira e uma cesta em trama de taquaras

Mesmo que mulheres e crianccedilas estivessem proibidas de se aproximar do bugre ele de

posse de uma enxada passou a ajudante nas lides da roccedila e a trazer aacutegua de uma sanga

ali perto Tambeacutem alcanccedilava ervas com as quais o bisavocirc fazia emplastros para as dores

nas juntas e picadas de insetos aleacutem de infusotildees e chaacutes para tosse e vermes

A vovoacute jurava que era verdade quando viram o iacutendio falava iiacutediche

Deram ateacute nome para o homem Chamavam-no Salvador (MOSCOVICH 2006 p65-

66 grifo nosso)

A osmose era natildeo apenas de ingredientes mas de costumes de atitudes de

camaradagens Havia prazer nas trocas e no conviacutevio do bisavocirc com o iacutendio Esse trecho eacute um

dos mais representativos da obra pois expressa de forma muito clara como a cultura judaica foi

permeaacutevel no exemplo narrado agraves influecircncias e agraves gentilezas e escambos do bugre A famiacutelia

comeccedilava sua histoacuteria em terras brasileiras Um trecho que expressa o papel da comida nos

primeiros tempos da famiacutelia no Brasil eacute o que segue

Uns oito nove ou dez anos depois da chegada ao Brasil o bisavocirc tinha abandonado a

colocircnia e enveredado pelos interiores do hemisfeacuterio mascateava Soacute laacute naquela Canaatilde

da fronteira entre o Brasil e o Uruguai terminou a busca de um futuro que seria melhor

mas que natildeo seria dele Havia chocolates Aguila chaja embalado em papel manteiga

morrones queimados na brasa e carne muita que se assava em grelhas sobre braseiro

vivo Tudo isso natildeo chegava agrave casa e agrave mesa da famiacutelia que se alimentava de mameligue

ou farinha de mandioca agrave qual se acrescentava cafeacute com muito accediluacutecar que accediluacutecar natildeo

podia faltar Aos domingos cada um dos filhos recebia um tablete de mariola piteacuteu

envolto em papel celofane a ser poupado ateacute a semana seguinte um pedacinho de cada

vez Ou chupado como se fosse bala que assim durava mais (MOSCOVICH 2006

p71 grifo ou do autor)

Assim haacute trechos em que a protagonista narra as experiecircncias dos antepassados em

zigue-zague com outros em que reflete sobre seu engorde retomando o foco no presente Fala

entatildeo de sua dieta em contraste com a vivecircncia de sua famiacutelia com a fome Bisavoacutes avoacutes e pais

ao sentirem fome comeccedilaram a comer mais quando o alimento tornou-se disponiacutevel a eles no

caso da narradora foi preciso fazer o caminho contraacuterio ao sentir fome comeccedilar a comer menos

A referecircncia lsquoVovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e macarratildeo de letrinhasrsquo

demonstra que a loacutegica de sua avoacute era dar consistecircncia e energia agrave comida fornecendo-lhe fontes

de carbohidrato Assim a perspectiva era contraacuteria agrave restriccedilatildeo alimentar a que estava submetida

pelas orientaccedilotildees do meacutedico

Com o frio comer salada doacutei na alma

Sopa de legumes fazia tempo que natildeo preparava o panelatildeo fervente carne aipo

aboacutebora chuchu cenoura couve cebola espiga de milho cortada em rodelas pequenas

Enquanto escrevo a sopa se agita no fogo e um haacutelito bondoso que eacute cheiro de casa

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visita todas as peccedilas Espero a hora de submeter noz-moscada ao ralador e de cortar bem

miuacutedo tempero verde e ovos duros Vovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e

macarratildeo de letrinhas (MOSCOVICH 2006 p68)

A heranccedila para o prazer de comer deu-lhe desde a infacircncia a predileccedilatildeo pelos excessos

Porque a lei era o comer Ela comenta

Noacutes as crianccedilas estaacutevamos em fase de crescimento Como durou a tal fase Anos

Crianccedilas em fase de crescimento precisam comer muito bem para ter ossos fortes e

ceacuterebros ativos para o estudo Portanto a mesa do almoccedilo em nossa casa era farta Aliaacutes

a mesa do almoccedilo em nossa casa era um excesso Mas natildeo um excesso fuacutetil natildeo um

supeacuterfluo sem sentido Nossa mesa queria dizer comam vocecircs natildeo precisam passar

fome Fome eu vim passar adiante quando comecei as dietas (MOSCOVICH 2006

p23)

O aprendizado de exceder era associado natildeo apenas agrave saciedade mas ao prazer agrave ideia de

uma lsquomesa felizrsquo como se pode compreender a partir do seguinte fragmento

Se havia cinco pessoas na mesa de bifes deveria haver por baixo dez Para que natildeo

passaacutessemos pela dureza de medir o que estaacutevamos comendo quantos bifes satildeo meus

quantos satildeo seus Se isso acontecesse papai simplesmente natildeo comia bifes para que

mais houvesse para dividir

Numa mesa feliz natildeo se contam os bifes (MOSCOVICH 2006 p24)

O pai preocupado com o engorde dos filhos passou a adotar a imposiccedilatildeo da disciplina

alimentar riacutegida Para a protagonista a cada aumento dos quilos na balanccedila havia uma nova

ordem para o regime A protagonista lembra-se dessa fase e relata na carta para a matildee o periacuteodo

em que o pai determinou que os filhos fizessem dieta

Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre

com o Fairlane rabo-de-peixe A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos enterrado

o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como eram-

mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos ancorava

no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de construir o corpo

de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo fosse do jeito e na

hora em que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH 2006 p93)

Depois de diversas passagens entre passado e presente haacute uma retomada na histoacuteria em

direccedilatildeo agrave ordem paterna para a dieta pela quebra do carro da famiacutelia o tal lsquoFairlane rabo-de-

peixersquo Isso ocorre pelo excesso de peso na protagonista de seus irmatildeos e de suas tias de lado

paterno Frente agrave ameaccedila de dieta ela reinvindica ldquo[hellip] Entrei em pacircnico Dieta era alguma coisa

horrorosa natildeo comer um monte de coisas principalmente massas e doces eu protestei na busca

de meus direitosrdquo (MOSCOVICH 2006 p203) Ao que o pai linhas depois refere ldquo-Vocecircs vatildeo

fazer dieta E vai ser para toda a vidardquo (MOSCOVICH 2006 p204)

87

Dieta era assim ordem paterna veredicto imposiccedilatildeo e ameaccedila de perda dos direitos Natildeo

poderia ser algo para o bem para a sauacutede jaacute que restringia o prazer de comer o que se gosta De

um lado a Vovoacute Magra tinha deliacutecias em sua sacola de crocheacute para satisfazer o gosto dos netos

de outro o pai definia categoricamente que a lei da casa era a dieta Da avoacute materna com as

guloseimas estava o afeto do pai com a voz de mando o cuidado com a sauacutede Ambas as

manifestaccedilotildees eram a expressatildeo de amor que cada um deles era capaz de oferecer de acordo com

sua histoacuteria e com sua personalidade

Um elemento importante para a compreensatildeo do engorde da protagonista estaacute em sua

infacircncia quando ao contraacuterio do que ocorreu na vida adulta precisou fazer dieta para engordar

Mais uma vez a Voacute Magra tem papel crucial nesse processo conforme mostra o trecho abaixo

Os que me conhecem soacute agora natildeo acreditam Nem eu acredito Ateacute uns sete ou oito

anos eu era uma crianccedila inapetente Vovoacute Magra chegava em casa com pedaccedilos de

alcatra chuletas ou bifes de fiacutegado cortes que ela havia escolhido com ciecircncia no balcatildeo

do accedilougue do seu Jorge Depois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho

direto para a cozinha e ali direto aos armaacuterios Sentava-me junto agrave mesa de foacutermica

Vovoacute dava de matildeo numa pequena frigideira de alumiacutenio com duas alccedilas de baquelite jaacute

retorcidas pelo calor Aacutegua esponja sabatildeo pano de prato Daiacute um fio de oacuteleo Mazola-

ou Sol Levante aquele que estivesse mais em conta na ocasiatildeo- escorria da lata natildeo

muito o suficiente para que uma poccedila dourada se armazenasse no cocircncavo da frigideira

No balcatildeo da pia vovoacute ordenava o pote de sal uma taacutebua de madeira chaira batedor de

bife a faca de corte e o embrulho de papel pardo no qual seu Jorge tinha riscado o total

a pagar Na abertura do pacote lembro aquele cheiro cru e meio arisco o papel

manchado de sangue da pobre vida extinta A faca era passada na chaira em movimentos

agudos um sibilar que me causava arrepio nos dentes Depois com a lacircmina vovoacute

eliminava nervos sebo e outras impurezas que soacute ela podia identificar Finalmente

espalmava os dedos sobre a peccedila de carne e em talhos saacutebios cortava em fatias Agraves

vezes usava o batedor para domar algum pedaccedilo mais resistente tunda de laccedilo na carne

que batia na madeira que batia na pedra que por seu turno estremecia o balcatildeo e todos

os cocircmodos da casa Uma pitada de sal o oacuteleo tinindo recebia a carne com uma

chiadeira labaredas azuladas salpicavam as fatias- daacute-lhe fumaccedila um nevoeiro que

anunciava a forccedila resistindo agrave morte (MOSCOVICH 2006 p35-36)

A Voacute Magra participava da alimentaccedilatildeo da neta natildeo apenas no preparo dos bifes mas

tambeacutem na extraccedilatildeo do sumo que resultava deles e na oferta do caldo agrave protagonista ainda

crianccedila Percebe-se o zelo da avoacute todo esse processo no qual o alimento representa nutriccedilatildeo

fiacutesica e cuidado afetivo

Dado o susto vovoacute colocava os bifes num prato fundo e com um garfo espremia e

espremia ateacute reunir uma boa quantidade de sumo sanguinolento Um pano ajeitado como

babador e entornando um pouco o prato com uma colher de sobremesa dava-me aos

bocados aquela riqueza nutritiva (MOSCOVICH 2006 p36)

88

Ressalta-se o detalhamento com que a narradora apresenta os utensiacutelios de cozinha no

preparo dos bifes e os atos culinaacuterios da Voacute Magra Se natildeo haacute referecircncia direta ao prazer de

comer haacute o conhecimento visceral da avoacute no cozinhar Cada movimento eacute conhecido pelo corpo

e traduzido pelo uso dos utensiacutelios O que marca o trecho eacute o afeto com que a avoacute faz os bifes

para a neta o cuidado que tem com cada nuance do preparo expresso na proacutepria dedicaccedilatildeo e

tambeacutem em especial na frase lsquodepois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho direto

para a cozinharsquo Este eacute um dos trechos emblemaacuteticos da obra em termos de expressatildeo da cozinha

como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico nesta narrativa pois mostra dados como o oacuteleo na frigideira a

destreza com cada instrumento e o zelo no preparo do alimento como reforccedilo nutricional

A narradora segue o relato sobre os bifes que colocam sua matildee em segundo plano

Se vovoacute natildeo vinha o jeito era a senhora mamatildee me sentar na frente do preacutedio reunir

crianccedilas e cachorros da vizinhanccedila ao meu redor e fazendo aviatildeozinho enquanto eu me

distraiacutea me enfiar goela abaixo colheradas de legumes carne e todo o resto que eu

detestava

Natildeo me lembro quando comecei a comer feito gente grande Nunca mais parei

(MOSCOVICH 2006 p36-37)

Haacute uma diferenccedila na percepccedilatildeo da narradora sobre a forma como a Voacute Magra lhe oferecia

a lsquoriqueza nutritivarsquo aos bocados e aquela como a matildee o fazia ao lsquoenfiar goela abaixo

colheradas de legumes carne e todo o resto que eu detestavarsquo O contraste estaacute sobretudo na

expressatildeo do afeto que leva a protagonista o falar em lsquoriqueza nutritivarsquo quando menciona o

cuidado da avoacute e ao referir-se ao termo lsquogoela abaixorsquo sobre o alimento oferecido pela matildee

Possivelmente o prazer de comer tivesse sido originado no afeto ligado ao alimento e ao cuidado

pela avoacute pois eacute das cenas com esta que restaram os principais registros de memoacuteria sugerindo

que a lembranccedila daquele preparo eacute muito mais viva do que aquela da interaccedilatildeo com sua matildee A

frase lsquonunca mais pareirsquo mostra o comportamento de comer como algo que passou a se repetir

sugerindo a presenccedila de prazer que impele agrave repeticcedilatildeo

A partir do ponto em que comeccedilou a comer e entatildeo a engordar junto a seus irmatildeos

instalou-se na famiacutelia a determinaccedilatildeo de regime para os trecircs ordenada pelo pai A protagonista

refere

Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre

com o lsquoFairlane rabo-de-peixersquo A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos

enterrado o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como

eram- mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos

ancorava no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de

89

constituir o corpo de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo

fosse do jeito e na hora que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH

2006 p93)

Quando refere lsquoEssa ordem sei agora era o que nos ancorava no mundorsquo estaacute

expressando que sob a perspectiva adulta consegue ver a razatildeo da imposiccedilatildeo do pai ancorar os

filhos no mundo Estabelecia-se uma dicotomia entre a postura da Voacute Magra que partilhava seu

prazer alimentar com os netos e a do pai que assumia a funccedilatildeo de impor normas aos filhos Para

a narradora essa divisatildeo era contundente a bagagem de carinho da avoacute materna era o paraiacuteso a

forccedila da voz paterna era o inferno restringia definia acusava ordenava proibia O livro traz

todo o conflito da narradora personagem em seu tracircnsito por essa dicotomia ao longo da vida ateacute

apresentar os resultados do excesso de comer em seu corpo os terriacuteveis vinte e dois quilos ou

cento e dez tabletes de manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha

A ordem paterna para a dieta transforma-se na idade adulta na ordem do meacutedico

tambeacutem uma voz impositiva ameaccediladora e acusatoacuteria Essa eacute expressa jaacute no proacutelogo quando a

protagonista conta o motivo de sua reflexatildeo sobre a histoacuteria familiar e a pessoal para

compreender o porquecirc de chegar ao excesso de peso

- Vocecirc natildeo estaacute gorda

Certo meu estado natildeo era transitoacuterio a gordura nunca foi um episoacutedio solteiro em

minha vida eu sabia ele nem precisava ir adiante Mas ele foi

- Vamos fazer suas ceacutelulas adiposas murcharem -Pediu minha atenccedilatildeo com a caneta no

ar- sei que parece injusto mas a natureza a fez assim Vocecirc eacute gorda

Uma vez mais de novo (MOSCOVICH 2006 p15)

A uacuteltima frase lsquouma vez mais de novorsquo refere-se possivelmente agrave lembranccedila sobre o

veredito do pai na infacircncia quando mandou que ela e os irmatildeos fizessem dieta O prazer de

comer tornava-se sempre transgressor da ordem sempre um mundo proibido e recheado de

culpas impostas por terceiros Por mais que ela natildeo quisesse sentir as culpas aprendera que

deveria senti-las para afastar-se do prazer

Com a evoluccedilatildeo da dieta conduzida pelo meacutedico a personagem comeccedila a conseguir

emagrecer e a perda de peso vai ganhando por sua vez gosto de vitoacuteria Emagrecer tambeacutem se

torna um prazer o que reflete a sua conscientizaccedilatildeo para a mudanccedila de haacutebitos e mais ainda

para o seu amadurecimento Haacute na protagonista a consciecircncia de sua responsabilidade pelas

escolhas alimentares e pelo resultado da dieta em sua sauacutede A mudanccedila de postura destaca-se

atraveacutes do termo lsquoum deliacuteriorsquo ponto em que se percebe sua capacidade de avaliar o que pode e o

90

que natildeo pode comer sem precisar ouvi-lo de terceiros A personagem conta o que sente

demonstrando sua disposiccedilatildeo para mudar a atitude frente agrave comida

Uma enorme vontade de comer uma daquelas refeiccedilotildees de estivador arroz feijatildeo ovo

frito massa bife na chapa purecirc de batatas salada de tomate e cebola Tudo num uacutenico

prato fundo e transbordante Para beber uma daquelas cervejas pretas docinhas das

quais se dizia que eram boas para mulheres que amamentavam Sobremesa pudim de

leite

Soacute vontade Um deliacuterio

Descobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um punhado de

parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagado Tambeacutem descobri que atum em lata e

dois ovos duros saciam por mais de quatro horas Uma xiacutecara de cafeacute e um pedaccedilo de

queijo enganam a fome por um bom tempo Disso eu sabia mas tinha me esquecido

Fui verificar meu peso um quilo e novecentos gramas a menos (MOSCOVICH 2006

p125-126)

A passagem acima ilustra um periacuteodo da personagem jaacute adulta em seu progresso durante

a dieta Quando ela diz lsquoDescobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um

punhado de parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagadorsquo (MOSCOVICH 2006 p125-126)

estaacute demonstrando que jaacute eacute capaz de encontrar prazer e sabor dentro da dieta ao inveacutes de lutar

com as restriccedilotildees como fez desde a infacircncia Eacute nesse momento que a comida assume um caraacuteter

de transformaccedilatildeo na narrativa a mudanccedila de postura em relaccedilatildeo ao foco de prazer na comida de

uma lauta refeiccedilatildeo ao novo modo de temperar a salada Como resultado a perda de peso

O significado de tal mudanccedila estaacute justamente na conscientizaccedilatildeo que representa Ao dizer

lsquoSoacute vontade Um deliacuteriorsquo a protagonista expressa conhecer os perigos de lsquouma daquelas refeiccedilotildees

de estivadorrsquo como a que descreve Mostrando a mudanccedila de possibilidades estaacute dizendo a si

mesma que compreendeu que eacute preciso mudar a fonte de prazer para atingir o emagrecimento

proposto pelo meacutedico

Nesse momento aliaacutes a ordem natildeo vem mais do pai natildeo vem mais do meacutedico E nem eacute

mais uma ordem Eacute entatildeo uma escolha E o melhor de tudo parte da proacutepria narradora

personagem em seu percurso no anseio do que pede agrave sua matildee no proacutelogo ldquoMamatildee me

endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar esse territoacuterio

metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora Quero voltar a ter um

corpordquo (MOSCOVICH 2006 proacutelogo)

A voz para a matildee eacute na verdade a voz em que ela se permite emitir essa narrativa Em

essecircncia a voz eacute dirigida a si mesma e o pedido para lsquovoltar a ter um corporsquo segue o verbo

querer na primeira pessoa do singular no presente do indicativo Eacute a afirmaccedilatildeo de um desejo de

91

uma escolha Natildeo eacute o pai natildeo eacute o meacutedico natildeo eacute a interlocuccedilatildeo com a matildee A lei agora eacute sua

segue seu proacuteprio querer Da refeiccedilatildeo de estivador agraves alternativas possiacuteveis a narradora mostra o

que compreendeu eacute agente da proacutepria transformaccedilatildeo eacute emissora da proacutepria voz Tem um corpo

sim Mais do que isso tem um novo querer tambeacutem prazeroso e mais saudaacutevel o

emagrecimento

92

3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS

Levantei-me as pernas agora quase firmes desci os degraus da porta ateacute a calccedilada

buscando algo para comer e o que havia no meu raio de visatildeo era uma carrocinha de

pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me desde que horas ele estava ali se

tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda

agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido Cheguei junto dele remexendo a bolsa

agrave procura de uns trocados que tivessem restado da farra de salgadinhos e biscoitos da

Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada desde entatildeo (REZENDE 2014

p147)

Comida eacute alimento nutriccedilatildeo sobrevivecircncia Eacute palavra feita de carne de aboacutebora de

arroz Tangiacutevel Comemos para nutrir as ceacutelulas mas tambeacutem para garantir nossa autonomia

porque comida eacute escolha eacute expressatildeo de si mesmo gosto disso prefiro aquilo Comida eacute

exerciacutecio de liberdade no quando no quanto no onde no que comer E comer eacute matar a fome e

satisfazer o apetite na comida de rua servida no papel pardo ou na mesa posta com talheres

prato copo guardanapo Comemos intransitivos ou transitivos sozinhos ou acompanhados

Comemos para atravessar mais um dia para seguir existindo como oacutergatildeos viacutesceras cinco

sentidos Mastigar salivar engolir digerir metabolizar excretar eis o trajeto da comida atraveacutes

do organismo tornando-se parte de quem somos E comemos para continuar sendo

31 QUARENTA DIAS

Quarenta dias eacute o livro escrito por Maria Valeacuteria Rezende editado pela Editora Record

em 2014 A narrativa traz a histoacuteria de Alice mulher de meia-idade que a pedido de sua filha

muda-se de Joatildeo Pessoa para Porto Alegre A contragosto deixa sua casa e sua vida as amizades

e os afazeres e segue a demanda da filha para que se torne lsquovoacute profissionalrsquo jaacute que a moccedila e seu

esposo decidem ter um filho

A personagem faz a mudanccedila de tudo o que tem caixas e caixas para a nova cidade em

apartamento escolhido e alugado pela filha e o genro No entanto em um jantar na casa do casal

recebe a notiacutecia de que decidiram passar um periacuteodo fora do paiacutes para suas especializaccedilotildees

acadecircmicas Assim adiaram os planos de gravidez motivo pelo qual ela havia abandonado seu

habitat e aceito uma imposiccedilatildeo pelo desejo da moccedila em ser matildee Partiriam em poucos dias logo

apoacutes Alice ter chegado em sua nova moradia

93

No desterro de seu lar e sozinha na capital gauacutecha a personagem transfere seu territoacuterio

de nutriccedilatildeo para a rua para o espaccedilo representado pelo coletivo pela cidade e natildeo para a cozinha

nova e moderna do apartamento Haacute sobretudo um deslocamento primordial na narrativa a

lsquoexpulsatildeorsquo de suas reflexotildees para as paacuteginas do diaacuterioepiacutestola em que Alice escreve de si

dirigindo-se a uma interlocutora Barbie a figura na capa do caderno que encontrara entre as

caixas da mudanccedila

No iniacutecio de sua vida em Porto Alegre esconde-se em casa fingindo ter viajado para o

interior na casa de primos Entatildeo mune-se de um motivo benevolente que usa para justificar

suas caminhadas a qualquer pessoa com quem encontre a busca freneacutetica pelo rapaz conterracircneo

Ciacutecero Arauacutejo perdido no Sul Nessa missatildeo esquece o proacuteprio endereccedilo e decide por viver um

paradoxo casa que natildeo eacute casa rua que natildeo eacute rua Externo que se torna interno porque eacute parte

dela Rua que eacute casa parece em sendo casa na rua encontra abrigo para a solidatildeo na rua

encontra alimento para as fomes que sente Fome de comida sim mas para aleacutem desta a fome de

ser lsquosi mesmarsquo de novo

Sozinha perde-se de si de seus referenciais familiares dos telefones que tem na

memoacuteria dos sentidos de sua proacutepria vida Tem no desaparecido a razatildeo temporaacuteria para sua

andanccedila sem paradeiro Procurar um jovem de sua terra que veio para Porto Alegre eacute uma boa

desculpa para algueacutem que percorre uma cidade em seus pontos mais perigosos ou naqueles mais

dramaacuteticos como o Hospital de Pronto-Socorro Nem vestiacutegio de Ciacutecero mas laacute encontra um

banco de madeira onde pode dormir

Em seus trajetos transfere o espaccedilo ocupado pela cozinha que eacute o de preparar a nutriccedilatildeo

para um espaccedilo coletivo e itinerante Padarias pequenos botecos nas vilas que percorre carrinhos

de pipoca e de cachorro-quente restaurante da rodoviaacuteria em que escuta um sotaque familiar

comida ofertada aos sem-moradia nas madrugadas Sem desejar voltar para casa Alice passa a

habitar a rua Faz amigos ao longo do caminho pessoas que se preocupam mais com ela do que

sua filha Mas isso ela quer esquecer quer apagar e estabelece um objetivo firme de resgatar um

desaparecido pelos recantos mais insoacutelitos e arriscados da cidade

A representaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo itinerante eacute um fator muito consistente na obra

Porque a cozinha eacute territoacuterio fiacutesico definido por moacuteveis objetos e eletrodomeacutesticos que a

compotildeem mas eacute tambeacutem simboacutelico nela vivem nutriccedilatildeo afeto famiacutelia intimidade Transferir

tal importacircncia para o externo para o alheio a si eacute como um transplante ao contraacuterio

94

O deslocamento na representaccedilatildeo dessa forccedila que transcende o objetivo meramente

nutricional expressa a ausecircncia de ninho vivenciada pela personagem Ela escolhe transplantar

sua vida para o lado de fora da porta escolhe a solidatildeo no meio do coletivo para apagar a solidatildeo

em silecircncio dentro das paredes de uma casa (e natildeo um lar) que a filha e o genro definiram para

ela Ao menos assim eacute ela quem escolhe Autonomia O que comer onde viver onde dormir

onde se banhar Por pior que seja o banho na rodoviaacuteria eacute sua voz eacute sua decisatildeo Por pior que

seja a noite no banco duro de madeira do Pronto-Socorro a pipoca do carrinho que fica ali na

frente o natildeo-ter-para-onde-ir fingindo estar na busca desenfreada pelo desaparecido eacute sua

proacutepria voz que precisa escutar Eacute pelo aparecimento de sua identidade perdida que faz

peregrinaccedilotildees pelos becos mais sombrios por onde se propotildee a percorrer

Ao longo do percurso do livro enquanto parece perder-se cada vez mais de seus

referenciais de sua memoacuteria mais firma o passo mais decide onde ir E suas frases no diaacuterio

vatildeo ganhando pontos-finais ao relatar o ocorrido agrave medida em que se lembra e se torna mais

capaz de contar da redescoberta de sua identidade Na crise da personagem atraveacutes desse

desalojamento de um habitat seguro dessa saiacuteda para fora da porta ocorre a habitaccedilatildeo de um

novo espaccedilo o proacuteprio eu Em seus percursos defronta-se com a perda dos referenciais antigos

da casa de sempre da memoacuteria que lhe permitiria voltar para o eixo seguro da nutriccedilatildeo estaacutevel

na intimidade soacutelida da cozinha

Alice desloca-se durante a maior parte da narrativa Desloca-se de sua terra natal para

Porto Alegre e nessa capital transita entre avenidas principais e becos escondidos entre

viadutos e casas de estranhos entre floriculturas e terrenos baldios Desloca-se de si mesma

quando decide natildeo voltar agrave casa escolhida para ela Escolhida eacute voz passiva voz que ela quer

transcender

Distrai-se com a histoacuteria do desaparecimento de Ciacutecero Arauacutejo com a confusatildeo mental

que se instala entre fome-frio-sono-exaustatildeo Tudo isto para natildeo lembrar volta-se para fora e

desse modo esquece o dentro Desloca o foco das confissotildees que faz a si sendo um diaacuterio para

Barbie como um sucessivo contar de eventos e emoccedilotildees em escritos que mais parecem cartas

Mais uma vez dentro e fora se conjugam pois acontecem num simultacircneo mas estatildeo

dissociados Alice dirige para fora suas reflexotildees para um terceiro entatildeo dissocia-se de si para

olhar para si

95

Em um determinado ponto refere ldquoNatildeo Barbie esta noite natildeo dormi em saguatildeo nem em

parque nenhum Natildeo vecirc como estou bem-disposta a sentar-me pegar a caneta e continuar

escrevendo aqui nesta cozinha depois desta noite bem-dormida na suiacutete deste apartamento que

me esforccedilo para aceitar finalmente como meurdquo (REZENDE 2014 p163)

Estaacute dentro de casa mas ainda natildeo faz parte dela em verdade situa-se fora dali no sentir

Demonstra isso quando usa lsquobem-disposta nesta cozinha deste apartamento como meu me

esforccedilo para aceitarrsquo Tal dissociaccedilatildeo identitaacuteria eacute expressa por um permanente desconexatildeo

consigo Perde-se de sua casa e de seus referenciais para descobrir o paradeiro de Ciacutecero Arauacutejo

com o firme propoacutesito de encontrar um motivo que alinhave seus dias em Porto Alegre dentro de

si o sentido estaacute fora de si Nessa desconexatildeo descobre uma Alice nascente

Chega Barbie agora eu paro mesmo que jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia

guria a solidariedade silenciosa mas agora vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a

mal taacute natildeo digo que seja pra sempre quem sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo

a limpo (REZENDE 2014 p245)

Eacute possiacutevel ler que aquilo que estava fora sua narrativa epistolar para a Barbie seraacute

entregue ao mundo da gaveta o interno e passe a habitar esse lsquodomiciacuteliorsquo escondido Entretanto

Alice jaacute internalizou marcas de linguagem regionais como as tachadas em negrito lsquoguriarsquo e lsquotu

natildeo leva a mal taacutersquo significando esse ponto uma transformaccedilatildeo de aspectos de sua identidade a

incorporaccedilatildeo da linguagem oral como proacutepria Internalizou o que estava fora tornou-o seu

tambeacutem passou a sentir-se parte Como resultado guardou no interno na gaveta seu diaacuterio que

sendo comunicaccedilatildeo consigo era dirigido a um interlocutor

Esse eacute o permanente tracircnsito do livro essa dissociaccedilatildeo permeia cada vivecircncia e eacute atraveacutes

dessa mobilidade que Alice pode ver a si mesma e se transformar Sacudida pelo real perigo de

sua itineracircncia permanente aproxima-se do fim de sua busca por um Ciacutecero que nem espera mais

encontrar

Ao longo da narrativa haacute frases sem ponto final no teacutermino dos capiacutetulos e muitas vezes

com ideias inacabadas Um elemento ligado a esse aspecto eacute o das muacuteltiplas linguagens surgem

epiacutegrafes vindas de outros autores contemporacircneos e em vaacuterias partes do livro elementos

graacuteficos aludindo a folhetos colados no diaacuterio Assim a ruptura da linguagem linear adotando

uma expressatildeo proacutepria eacute composta por frases descontiacutenuas e de outras em que a viacutergula daacute

apenas a pausa necessaacuteria ao ritmo da voz sem preocupaccedilotildees formais com a gramaacutetica

Prevalece aliaacutes o registro do informal com letras maiuacutesculas seguindo viacutergulas interrogaccedilotildees

96

no meio da frase sem uma letra maiuacutescula a seguir e assim por diante trazendo muito mais um

lsquocomo se falarsquo do que um lsquocomo se lecircrsquo

Tal elemento alia-se a um projeto graacutefico que apresenta aleacutem de texto imagens para

contemplar a lsquoformarsquo do livro como um diaacuterio Esta complementaridade toca em um tema de

grande relevacircncia no contemporacircneo a ligaccedilatildeo das artes para expressar um todo que ultrapasse

os territoacuterios particulares uma intersecccedilatildeo de saberes e de poeacuteticas que independentes em sua

importacircncia complementem-se As figuras lsquocoladasrsquo no diaacuterio natildeo parecem ter conexatildeo entre si

mas transmitem a ideia de uma escolha Foram postas ali por Alice Natildeo parece haver unidade

entre as imagens Colagem de figuras mas tambeacutem de vinhetas que se tornam epiacutegrafes sem

conexatildeo aparente entre si Essa ausecircncia de conexatildeo eacute possivelmente o que a obra pretende

comunicar com suas dissociaccedilotildees e com as frases descontiacutenuas agrave medida que a personagem

percorre o trajeto da autonomia as frases vatildeo ganhando finalizaccedilatildeo Ela comeccedila a decidir

Nesse livro a ausecircncia de unidade parece representar exatamente o contraacuterio sua

unidade Outro ponto a ser ressaltado eacute o fato de o diaacuterio ser escrito em uma mistura de tempos

natildeo seguindo a cronologia tiacutepica dos diaacuterios Muito do texto referente agrave eacute registrado em olhar

retrospectivo a todo o periacuteodo e natildeo segue uma ordem temporal tiacutepica em que a escrita iacutentima

sucede cada evento Mistura de tempos e de autores escolhidos para as epiacutegrafes e de figuras

selecionadas para compor o percurso lsquograacuteficorsquo da personagem como a nota da padaria a

propaganda da imobiliaacuteria a divulgaccedilatildeo da cliacutenica de traumatologia e por aiacute vai

Quarenta dias acontece no cerne mais cru da capital as vilas as avenidas movimentadas

a rodoviaacuteria os viadutos de moradores de rua os becos as paradas de ocircnibus o pronto-socorro

os cenaacuterios tiacutepicos de apartamento de lsquocidade grandersquo

Alice eacute uma personagem urbana implantada em Porto Alegre sem colar-se agrave cidade mas

que quanto mais se torna moradora de rua mais se torna pertencente ao mapa porto-alegrense

Mesmo sem perceber Faz-se aderida agraves ruas aos becos agraves vilas aos botecos agraves paradas de

ocircnibus onde dorme Eacute fio da trama quer estar fora porque reluta em aceitar a vida que a ela foi

imposta pela filha Neste processo cria uma vida para si cria um olhar para a cidade que vai

habitando No geruacutendio Alice torna-se parte Faz-se parte quando adentra a rua os viadutos

habitados agrave noite os crimes em matagais o cafeacute e o mate e o cachorro-quente oferecidos pelos

voluntaacuterios na madrugada O banho na rodoviaacuteria o banco duro de madeira onde dorme no HPS

Alice vai tomando voz vai tomando-se de sua voz que haacute tempos natildeo ouvia

97

32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS

Fenocircmenos psiacutequicos como a consciecircncia a memoacuteria a emoccedilatildeo o pensamento e o juiacutezo

criacutetico entre outros satildeo estudados principalmente pelo campo da Fenomenologia Psiquiaacutetrica

esses constituem os pilares para a avaliaccedilatildeo do estado mental de um indiviacuteduo O psiquiatra

examina a qualidade da expressatildeo dos mesmos na entrevista com o paciente verificando se estatildeo

dentro da normalidade ou se apresentam desvios compatiacuteveis com um quadro psicopatoloacutegico

Algumas capacidades satildeo compostas por um conjunto desses fenocircmenos e natildeo apenas por um

esse eacute o caso da autonomia

O indiviacuteduo natildeo nasce com autonomia Esta deve ser estimulada pelos pais desde o

momento em que a crianccedila deixa de mamar no peito e comeccedila a receber a alimentaccedilatildeo soacutelida

Brinca de fechar a boca enquanto a colher vem com a papinha O comer eacute a primeira autonomia

depois da dependecircncia representada pela amamentaccedilatildeo Entatildeo a crianccedila aprende a segurar a

colher entatildeo pouco a pouco os outros talheres Aprende a gostar de comer isso ou aquilo a

apontar o que deseja em seu prato A autonomia vai sendo aprendida na infacircncia pelo engatinhar

e pelo caminhar Segue-se o controle dos esfiacutencteres que vai sendo aprendido o limpar-se o

tomar banho o ficar sem os pais no maternal E tantas outras conquistas ensinadas e estimuladas

para a aquisiccedilatildeo dessa capacidade Entretanto limitaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas podem desde o

iniacutecio da vida restringir seu desenvolvimento

Jaspers compreende as manifestaccedilotildees psiacutequicas tendo como base elementos da

Fenomenologia Desse modo a autonomia resultaria de um conjunto de fatores que em bom

funcionamento determinariam a adequada manutenccedilatildeo dessa capacidade Em contrapartida o

neurocientista Antocircnio Damaacutesio eacute apresentado nesta fundamentaccedilatildeo por suas pesquisas

neurobioloacutegicas sobre o fenocircmeno da consciecircncia na qual aponta existir o nuacutecleo da consciecircncia

de si Nesta estaria o cerne para a autonomia

A escolha e a independecircncia paracircmetros que estatildeo associados agrave essa capacidade

necessitam que haja no ser humano em primeiro lugar a consciecircncia e nesta a consciecircncia de

si a escolha e a decisatildeo acontecem no domiacutenio do pensamento mas envolvem tambeacutem as

emoccedilotildees (representadas pelo afeto e o humor) e o juiacutezo criacutetico Por fim a escolha se realiza

atraveacutes de uma accedilatildeo expressa pela conduta Todos esses elementos satildeo fenocircmenos psiacutequicos que

98

compotildeem a capacidade de autonomia de um indiviacuteduo Quando essa se apresenta reduzida por

algum dos paracircmetros indicados avalia-se a presenccedila ou a ausecircncia de normalidade por

conseguinte avalia-se a existecircncia de psicopatologia Os outros fenocircmenos - atenccedilatildeo orientaccedilatildeo

memoacuteria sensopercepccedilatildeo inteligecircncia e linguagem- estatildeo presentes na avaliaccedilatildeo do estado

mental do indiviacuteduo compondo tambeacutem sua autonomia no entanto apresentam-se em grau de

menor relevacircncia para seu desenvolvimento

Aleacutem de escolha independecircncia consciecircncia de si e decisatildeo outras expressotildees podem

ser associadas a seu exerciacutecio liberdade individualidade vontade self eu Em termos

etmoloacutegicos a palavra autonomiacutea procede do latim autonomĭa e esta por sua vez do grego

αὐτονομία (autonomia) formada por αὐτός (autoacutes) que significa lsquomesmorsquo e νόμος (noacutemos) lsquoleirsquo

ou lsquonormarsquo Assim seria possiacutevel compreender que o significado aponta para a noccedilatildeo de

autonomia como lsquoleis para si mesmorsquo ou seja as leis que o proacuteprio indiviacuteduo define para sua

vida

Considerando a autonomia como capacidade eacute necessaacuterio apontar que em casos de

sofrimento psiacutequico essa apresenta-se muitas vezes reduzida pois o sofrer acaba por reduzir a

possibilidade de o indiviacuteduo sentir-se livre para as proacuteprias escolhas Em ateacute que ponto este

quadro representa uma circunstacircncia normal e a partir de qual se torna patoloacutegico O sofrimento

pode resultar de uma crise vital com duraccedilatildeo por um periacuteodo esperado e apresentaccedilatildeo de

sintomas dentro da normalidade ou pode resultar do adoecimento do indiviacuteduo com sintomas

presentes em intensidade maior e por periacuteodo mais longo A restriccedilatildeo da liberdade e portanto da

autonomia ocorreraacute de acordo com o tipo e com a duraccedilatildeo deste sofrimento Tal diminuiccedilatildeo na

narrativa pode ser vista de dois modos como parte do sofrimento psiacutequico vivenciado pela

personagem e como perda real de sua experiecircncia de autonomia jaacute que teve sua vinda ao Sul

definida pela escolha da filha Natildeo por sua decisatildeo Eacute por perceber-se nesta condiccedilatildeo que Alice

parte na direccedilatildeo de sua autonomia para sentir-se livre novamente

Karl Jaspers apresenta elementos relacionados agrave autonomia em sua obra Psicopatologia

geral sem que esse termo propriamente dito seja conceituado ou explicitado A expressatildeo mais

proacutexima eacute a da consciecircncia do eu considerada dentre o que ele estabelece como lsquofenocircmenos

subjetivos da vida psiacutequicarsquo Esta consciecircncia estaacute na base fundamental para o desenvolvimento

da autonomia ao lado de outro fenocircmeno apontado o da lsquoconsciecircncia do corporsquo

99

Na apresentaccedilatildeo da lsquoconsciecircncia do eursquo Jaspers define quatro componentes o primeiro eacute

o sentimento de atividade uma consciecircncia de atividade do eu Este se refere a tudo o que ocorre

na vida psiacutequica e que o indiviacuteduo identifica como seu a exemplo de percepccedilotildees sensaccedilotildees do

corpo lembranccedilas representaccedilotildees pensamentos e sentimentos Todas essas atividades do eu que

o caracterizam satildeo operaccedilotildees pessoais realizadas em si mesmo e identificadas como proacuteprias e

compotildeem o que o autor denomina personalizaccedilatildeo Quando haacute alteraccedilatildeo desses aspectos usa-se o

termo despersonalizaccedilatildeo fenocircmeno que pode ser descrito como o estranhamento do eu a

percepccedilatildeo de que tudo o que ocorre com o indiviacuteduo eacute na verdade alheio ao mesmo

Tal estranhamento ocorre no mundo das percepccedilotildees junto agrave ausecircncia de sensaccedilotildees

normais do proacuteprio corpo agrave incapacidade subjetiva de recordar-se de dados referentes a si agrave

inibiccedilatildeo dos sentimentos e ao automatismo de processos voluntaacuterios Tudo passa a constituir um

conjunto de atividades alheias ao eu e que em condiccedilotildees de normalidade deveriam ser

compreendidas como proacuteprias

O segundo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia da unidade ou seja a

unidade do eu Esta se refere agrave possibilidade de o indiviacuteduo perceber a si mesmo como unidade

ser um soacute no mesmo instante e natildeo como dois seres distintos ainda que atraveacutes de accedilotildees

diferentes (como ouvir a proacutepria voz enquanto fala e reconhecer que eacute sua proacutepria voz) A

alteraccedilatildeo da unidade do eu ocorre quando haacute um desdobramento da percepccedilatildeo de si observando

o eu como se estivesse fora dele

O terceiro componente da consciecircncia do eu eacute a consciecircncia da identidade ou seja a

identidade do eu Com a frase lsquosou o mesmo de antesrsquo refere-se agrave identidade como a consciecircncia

de ser o mesmo indiviacuteduo no seguir do tempo a constacircncia de si proacuteprio A alteraccedilatildeo deste

fenocircmeno leva o paciente a perceber o lsquoeursquo de um periacuteodo de vida como diferente do lsquoeursquo de

outro periacuteodo como antes e depois da instalaccedilatildeo de uma doenccedila psiacutequica por exemplo

O uacuteltimo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia do eu em oposiccedilatildeo ao mundo

externo e ao outro em que o indiviacuteduo eacute capaz de reconhecer a proacutepria identidade e de percebecirc-la

distinta do mundo externo e da identidade de outra pessoa Existe nesse componente a clara

contraposiccedilatildeo entre este indiviacuteduo e o mundo externo

Tais elementos constituem assim a lsquoconsciecircncia do eursquo base para a percepccedilatildeo das

proacuteprias necessidades e desejos neste sentido constituem tambeacutem a base para as escolhas

individuais no plano do pensamento dos sentimentos e das accedilotildees compreendidas pelo indiviacuteduo

100

como proacuteprias a si Ao lado dos componentes apresentados estaacute a consciecircncia do corpo Sobre

essa consciecircncia Jaspers refere

[] sou consciente do meu corpo como de minha existecircncia e contemporaneamente eu o

vejo com os olhos e o toco com as matildeos O corpo eacute a uacutenica parte do mundo que deve ser

sentida ao mesmo tempo pelo interno e percebida na superfiacutecie Esse eacute um objeto para

mim e sou esse mesmo corpo Satildeo duas coisas diferentes como me sinto

corpoereamente e como me percebo como objeto mas as coisas satildeo ligadas de modo

indissoluacutevel (JASPERS 2000 p95)

De acordo com o autor essa deve ser conhecida do ponto de vista fenomenoloacutegico

mediante a percepccedilatildeo de nossa experiecircncia global com nosso corpo Essa consciecircncia estaacute mais

proacutexima agrave lsquoconsciecircncia do eursquo nas atividades musculares e de movimento mais distantes das

sensaccedilotildees associadas ao coraccedilatildeo e agrave circulaccedilatildeo e ainda mais afastadas das sensaccedilotildees oriundas da

atividade vegetativa Enquanto o movimento eacute resultado das funccedilotildees voluntaacuterias os mecanismos

fisioloacutegicos vinculados ao coraccedilatildeo agrave circulaccedilatildeo e agrave atividade vegetativa satildeo inerentes agrave vida do

ponto de vista bioloacutegico e portanto involuntaacuterios A consciecircncia do corpo associada agravequela do

eu eacute referida por Jaspers por determinados fatores

Temos um sentimento especiacutefico da nossa existecircncia corpoacuterea no movimento e no

comportamento na forma na leveza e graccedila ou no peso na falta de agilidade motora na

impressatildeo que desejamos que nosso corpo desperte no outro no estado de fraqueza ou

de forccedila nas alteraccedilotildees da sauacutede [] A experiecircncia do proacuteprio corpo eacute ligada

estritamente do ponto de vista fenomenoloacutegico com a experiecircncia do sentimento das

pulsotildees instintivas da consciecircncia do eu (JASPERS 2000 p96)

Essas duas expressotildees da consciecircncia a do eu e a do corpo compotildeem o indiviacuteduo capaz

de perceber a si mesmo como unidade com uma identidade constante no tempo uacutenica em si

mesma e contraposta ao mundo externo a si e a outras pessoas De acordo tambeacutem com Jaspers

ldquo[] o corpo eacute a realidade da qual se pode dizer eu sou esse mesmordquo (JASPERS 2000 p383) O

autor refere que ldquo[] a situaccedilatildeo fundamental do ser humano eacute a estar no mundo como ser

singular finito ser dependente mas ter a possibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevel limitado

por confins obrigatoacuteriosrdquo (JASPERS 2000 p352) Em tal reflexatildeo a autonomia do indiviacuteduo

estaacute nesta lsquopossibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevelrsquo determinada pelo autor Entretanto ele

define tal possibilidade associada a confins obrigatoacuterios que delimitam o espaccedilo individual

Jaspers estabelece os limites entre autossuficiecircncia e dependecircncia apontando que somos

seres dependentes em nossa realidade e que a autossuficiecircncia completa eacute um ideal inatingiacutevel

101

[] no homem haacute a tendecircncia a imaginar-se um ser ideal que fechado em si seja

autossuficiente e que satisfeito em si mesmo viva sem sentir necessidade de qualquer

coisa do externo porque ele existe em si mesmo em abundacircncia infinita Se o homem

quiser tornar-se tal ser deveraacute compreender de modo draacutestico que eacute simplesmente

dependente em tudo Ele como ser vital tem necessidades que soacute podem ser satisfeitas

pelo externo Ele deve viver e valer na sociedade para participar aos bens necessaacuterios agrave

vida Ele deve viver com outros seres humanos em reciprocidade (JASPERS 2000

p354)

Assim para Jaspers a consciecircncia de si e a consciecircncia do corpo formam a unidade do ser

individual que pode agir em um espaccedilo mutaacutevel no qual o indiviacuteduo eacute consciente se si mesmo e

das proacuteprias accedilotildees mas cuja autossuficiecircncia eacute condicionada a confins obrigatoacuterios a realidade

externa os bens necessaacuterios agrave vida (alimentos moradia recursos econocircmicos para vestir-se e

deslocar-se por exemplo) e os outros indiviacuteduos com quem este interage em suas relaccedilotildees

interpessoais A autonomia assim acontece dentro de um espaccedilo definido por limites reais do

mundo externo

O neurologista e neurocientista Antonio Damaacutesio assim como Jaspers tambeacutem

estabelece uma associaccedilatildeo direta entre a consciecircncia do eu e o corpo O elemento da consciecircncia

do indiviacuteduo sobre si mesmo eacute denominado por ele de Self e eacute parte da estrutura que define

como consciecircncia Damaacutesio parte da comparaccedilatildeo do ser humano com organismos unicelulares e

estabelece

Uma chave para compreendermos os organismos vivos desde aqueles compostos de

uma uacutenica ceacutelula ateacute os formados por bilhotildees de ceacutelulas eacute a definiccedilatildeo de sua fronteira a

separaccedilatildeo entre o que estaacute dentro deles e o que estaacute fora A estrutura do organismo estaacute

dentro da fronteira e a vida do organismo eacute definida pela manutenccedilatildeo dos estados

internos agrave fronteira E a individualidade singular depende dessa fronteira (DAMAacuteSIO

2000 p178)

A referecircncia de Antonio Damaacutesio estaacute de acordo com a perspectiva de Karl Jaspers no

que tange agrave lsquoindividualidade singularrsquo dentro da fronteira separada do mundo externo a parte de

fora dessa fronteira O neurocientista explicita que o indiviacuteduo singular deve apresentar

sobretudo ldquo[] um grau notaacutevel de invariacircncia estrutural para que consiga oferecer uma unidade

de referecircncia no decorrer de longos periacuteodosrdquo acrescentando que ldquo[] de fato continuidade de

referecircncia eacute o que o self precisa proporcionarrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Essa continuidade de

referecircncia coincide com um dos componentes da lsquoconsciecircncia do eursquo definida por Jaspers aquele

em que o indiviacuteduo permanece com a percepccedilatildeo de si mesmo ao longo do tempo

102

O aspecto que se relaciona agrave reflexatildeo sobre a autonomia a partir da leitura de Damaacutesio

encontra-se em tal continuidade ligada por sua vez ao que ele aponta como estabilidade Este

autor refere que ldquo[] quando refletimos acerca do que estaacute por traacutes da noccedilatildeo de self encontramos

a noccedilatildeo do indiviacuteduo singular E quando pensamos no que estaacute por traacutes da singularidade do

indiviacuteduo encontramos a estabilidaderdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Quando se refere agrave noccedilatildeo de

estabilidade Damaacutesio estaacute na verdade apresentando a ideia de que um organismo vivo deve ter

constacircncia em seu meio interno para manter a vida e essa constacircncia pode ser explicada nas

palavras do autor como ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados internos de modo

que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Ao trazer a noccedilatildeo de constacircncia o autor estaacute falando em organismo e sobretudo em

sobrevivecircncia A chave de sua reflexatildeo reside no fato de remeter-se agrave noccedilatildeo de estabilidade dos

paracircmetros do organismo compatiacuteveis com a vida para chegar ao fenocircmeno da consciecircncia do

eu Damaacutesio aponta que

Um organismo simples formado de uma uacutenica ceacutelula digamos uma ameba natildeo apenas

estaacute vivo mas se empenha em continuar vivo Sendo uma criatura sem ceacuterebro e sem

mente a ameba natildeo sabe sobre as intenccedilotildees do seu proacuteprio organismo assim como noacutes

sabemos sobre nossas intenccedilotildees equivalentes [] O que estou tentando mostrar eacute que o

iacutempeto de manter-se vivo natildeo eacute um avanccedilo recente Natildeo eacute uma propriedade exclusiva

dos seres humanos De um modo ou de outro dos organismos simples aos complexos a

maioria dos seres vivos apresenta essa propriedade O que efetivamente varia eacute o grau

em que os organismos tecircm conhecimento desse iacutempeto Poucos deles tecircm Mas o iacutempeto

estaacute presente quer o organismo saiba disso ou natildeo Graccedilas agrave consciecircncia os humanos

satildeo em grande parte cientes dele (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Eacute possiacutevel compreender entatildeo a referida estabilidade como o iacutempeto do organismo em

manter-se vivo nos seres humanos existe a consciecircncia desse iacutempeto O indiviacuteduo singular

como denomina o autor eacute consciente de sua sobrevivecircncia que ocorre no ambiente interno de

sua fronteira ou seja em seu corpo Para conservaacute-la com a estabilidade necessaacuteria agrave

permanecircncia de vida deve manter constantes paracircmetros internos em sua fisiologia Comer

dormir beber liacutequidos proteger-se de extremos de temperatura urinar e defecar algumas das

funccedilotildees que realizamos conscientemente para responder a essa finalidade cumprimos

necessidades vitais respondemos ao iacutempeto do organismo em manter-se vivo mas o realizamos

com o claro propoacutesito de fazecirc-lo Damaacutesio refere que ldquo[] a cada momento o ceacuterebro tem agrave sua

disposiccedilatildeo uma representaccedilatildeo dinacircmica de uma entidade com variaccedilotildees limitadas de estados

possiacuteveis- o corpordquo (DAMAacuteSIO 2000 p186)

103

A consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo portanto estatildeo na base do indiviacuteduo

singular A manutenccedilatildeo do ambiente dentro da fronteira nosso corpo eacute realizada por nossa

consciecircncia no cumprimento de nossas funccedilotildees vitais de certo modo escolhemos cumprir tais

funccedilotildees ao respeitarmos necessidades fisioloacutegicas entre elas comer e dormir Assim

sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas por um elemento em comum a consciecircncia que o

indiviacuteduo tem de si mesmo Entretanto deve-se salientar que a autonomia eacute uma capacidade que

poderaacute existir em maior ou menor grau durante o ciclo vital pois depende das possibilidades

fiacutesicas e psiacutequicas do ser humano em responder agraves exigecircncias da vida dentro de paracircmetros de

normalidade

Alguns elementos podem restringir a capacidade de autonomia sendo o sofrimento

psiacutequico um deles por reduzir a liberdade de o indiviacuteduo em fazer suas escolhas Tal reduccedilatildeo eacute

determinada pelo proacuteprio sofrimento inerente a patologias psiquiaacutetricas ou a crises vitais como

por exemplo a reaccedilatildeo a um evento traumaacutetico

Massimo Biondi em seu livro A mente selvagem um ensaio sobre a normalidade nos

comportamentos humanos apresenta o viacutenculo do sofrimento subjetivo com a reduccedilatildeo da

liberdade Sobre esse tema discute o limite entre normalidade e psicopatologia quando se aborda

o indiviacuteduo que sofre Segundo esse psiquiatra italiano no capiacutetulo intitulado lsquoO sofrimento

subjetivo e a liberdadersquo que o sofrimento subjetivo e a anguacutestia a reduccedilatildeo ou falta de liberdade e

a reduccedilatildeo da vontade satildeo aspectos que invariavelmente acompanham o distuacuterbio psiacutequico quanto

a este pode-se falar da importacircncia da vivecircncia subjetiva de determinado evento ou situaccedilatildeo

existencial para procurar definir os limites entre a normalidade psiacutequica e a patologia

O sofrimento subjetivo termo empregado por esse autor constitui um criteacuterio para

diversos diagnoacutesticos psiquiaacutetricos e tem como eixos principais a experiecircncia subjetiva e aquela

psiacutequica a primeira referente agrave percepccedilatildeo subjetiva de um evento existencial ou de um

sentimento pode ser avaliada apenas indiretamente por suas manifestaccedilotildees e pelo relato do

indiviacuteduo que sofre A segunda em linhas gerais refere-se agrave resposta do indiviacuteduo em termos

psiacutequicos ou seja atraveacutes de alteraccedilotildees dos fenocircmenos do estado mental conduzindo ao

diagnoacutestico Massimo Biondi aponta quatro componentes do que denomina sofrimento psiacutequico

a) Um estado de sofrimento subjetivo mesmo que natildeo espontaneamente referido pela

pessoa em niacutevel verbal b) uma reduccedilatildeo ou perda da liberdade sobre os proacuteprios

pensamentos e sobre as proacuteprias accedilotildees c) uma alteraccedilatildeo do proacuteprio projeto de existecircncia

104

e da capacidade de projetar o futuro d) uma alteraccedilatildeo reduccedilatildeo ou anulaccedilatildeo da vontade

(BIONDI 1996 p40)

O segundo componente relativo agrave reduccedilatildeo ou perda da liberdade eacute elemento comum e

distintivo que atravessa a existecircncia de pessoas com distuacuterbios psiacutequicos Tal elemento eacute um dos

criteacuterios de patologia psiquiaacutetrica de uma relevante instituiccedilatildeo da especialidade mas natildeo estaacute

restrito apenas aos diagnoacutesticos tal perda estaacute associada ao proacuteprio sofrimento Assim podemos

encontrar em indiviacuteduos que atravessam crises vitais essa perda de liberdade significando

reduccedilatildeo da autonomia de algueacutem que atravessa uma situaccedilatildeo de sofrimento subjetivo sem

necessariamente tal quadro constituir alguma patologia psiquiaacutetrica definida

Ainda de acordo com Biondi um indiviacuteduo pode apresentar um distuacuterbio psiquiaacutetrico

como causa de um evento especiacutefico existem quadros em que o evento estressante tem um claro

papel patogecircnico Nesses casos o sofrimento subjetivo gerado pelo evento aparece como

principal mediador que causa favorece e acompanha o estado psicopatoloacutegico Existem

entretanto condiccedilotildees em que o sofrer subjetivo natildeo eacute indicativo de um estado de doenccedila

propriamente dito mas pode estar associado a condiccedilotildees compreendidas dentro da normalidade

Um estado de sofrimento subjetivo decorre por exemplo de situaccedilotildees comuns e

lsquonormaisrsquo como luto perda de trabalho dificuldades afetivas ou conjugais fracasso escolar ou

profissional natildeo necessariamente evoluindo para um quatro de psicopatologia Algumas

situaccedilotildees inclusive satildeo vivenciadas como positivas pelo indiviacuteduo porque reestruturam algum

foco de seu mundo interno conduzindo a uma mudanccedila na percepccedilatildeo de determinadas

experiecircncias Em tais casos o sofrimento pode ser atenuado ou ateacute mesmo ter um valor

construtivo Eacute possiacutevel refletir que nessas condiccedilotildees a perda da liberdade seja temporaacuteria mas

ainda assim leve agrave melhora do indiviacuteduo em sua perspectiva de vida pois o sofrimento eacute

condiccedilatildeo muitas vezes para a tomada de consciecircncia da condiccedilatildeo humana

Por fim cabe referir a ressalva do proacuteprio autor

[] a normalidade natildeo eacute uma condiccedilatildeo caracterizada apenas pela ausecircncia de sofrimento

psiacutequico Muitos acontecimentos comuns da vida fazem sofrer agraves vezes de modo mais

intenso e persistente em situaccedilotildees totalmente normais [] O problema estaacute em

reconhecer o sofrimento normal daquele que define em sentido estrito alguma patologia

psiacutequica (BIONDI 1996 p53-56)

A reflexatildeo sobre a perda da liberdade inerente ao sofrimento psiacutequico em vigecircncia de

uma circunstacircncia normal ou de patologia psiquiaacutetrica inclui o entendimento de que a autonomia

105

estaacute reduzida quando este sofrimento acontece O indiviacuteduo durante o periacuteodo em que sofre eacute

limitado na capacidade de fazer escolhas saudaacuteveis para si e tal limitaccedilatildeo decorre da dor psiacutequica

propriamente dita Aleacutem de ser menos livre pois o que pensa e sente eacute condicionado por essa dor

o indiviacuteduo acometido sente menos vontade como refere Biondi ao mencionar o uacuteltimo dos

quatro componentes do sofrimento psiacutequico Pode-se novamente referir a reduccedilatildeo da autonomia

pois dela faz parte tambeacutem o fato de ter vontades e de dar voz agraves mesmas

33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA

O que nos move ao comer Brillat-Savarin em A fisiologia do gosto apontou o lsquosentido

geneacutesicorsquo ldquo[] o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro sendo a

sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecierdquo (DOacuteRIA 2009 p190) A referecircncia agrave obra claacutessica na

literatura gastronocircmica feita pelo pesquisador Carlos Alberto Doacuteria em seu livro A culinaacuteria

materialista eacute seguida pela seguinte reflexatildeo apresentada por ele

[] ora a reproduccedilatildeo da espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do

indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo

ao sexo e ao comer eacute o prazer a busca do agradaacutevel [] Precisamos nos encontrar com

o alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduos e isso se daacute por dois caminhos

pelo prazer e pela dor

A fome eacute a fonte de dor e nos leva em direccedilatildeo ao alimento o prazer em comer tambeacutem

nos leva em direccedilatildeo ao alimento antes que a dor nos imponha o seu caminho (DOacuteRIA

2009 p190)

lsquoA busca pelo alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduosrsquo nas palavras do autor

estaacute associada agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo precisamos

manter a vida para preservaacute-la motivo pelo qual nos nutrimos e copulamos A procura por

alimentos viaacuteveis eacute da histoacuteria do Homo sapiens assim como no ato de cozinhar

experimentavam-se teacutecnicas que favorecessem a ingestatildeo de animais e vegetais

Neste ponto cabe a reflexatildeo de que a procura por novos alimentos e o desenvolvimento

de modos para preparaacute-los resultou da iniciativa em descobrir novas possibilidades comestiacuteveis

da capacidade fiacutesica de fazecirc-lo e de vaacuterias capacidades deste homo sapiens Seria possiacutevel

compreender entre estas a autonomia conduzindo agrave compreensatildeo de que teria sido esta

capacidade em suas primeiras manifestaccedilotildees uma das responsaacuteveis pela partida em direccedilatildeo a

animais e vegetais para comer

106

Caberia citar tambeacutem a autonomia como responsaacutevel pelo desenvolvimento da descoberta

de cozinhar os alimentos aleacutem de aspectos inerentes agrave proacutepria evoluccedilatildeo da espeacutecie Desse modo

ela pode ter permitido a sobrevivecircncia em condiccedilotildees muitas vezes desfavoraacuteveis pelas escolhas

alimentares que favoreceu Sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas assim desde tempos

ancestrais conforme refere Carlos Alberto Doacuteria no mesmo livro

Assim como ensina o arqueozooacutelogo Jean-Denis Vigne haacute 30 mil anos o homem jaacute natildeo

comia soacute o que o seu ambiente imediato lhe oferecia por facilidade de captura mas ia

atraacutes de alimentos capazes de satisfazer suas imagens mentais mais fortes e expressivas

em termos sociais Especialmente nas regiotildees frias no Paleoliacutetico Superior sua dieta era

composta de animais com pouca disponibilidade de vegetais Jaacute no Mesoliacutetico o clima

se estabiliza e nas regiotildees temperadas comeccedila a apresentar maior utilizaccedilatildeo de vegetais

Entre 8000-9000 aC e 5000 aC desenvolve-se a dieta moderna em que as energias

humanas satildeo providas por lipiacutedeos e gluciacutedeos originados de animais e plantas

domesticadas Pode-se dizer entatildeo que dessa eacutepoca em diante o homem produz tudo

aquilo que come isto eacute produz a si proacuteprio do ponto de vista alimentar (DOacuteRIA 2009

p3)

Doacuteria aponta ainda o viacutenculo entre a dieta humana e o processo de hominizaccedilatildeo como a

aquisiccedilatildeo da postura biacutepede e por fim a expansatildeo do Homo erectus ao moderno Homo sapiens

que exigiu uma dieta suficientemente rica em calorias e nutrientes Aleacutem desse aspecto o autor

refere o domiacutenio do fogo que permitiu cozinhar os alimentos e seus benefiacutecios

O incremento de calorias se deu graccedilas tanto a ambientes mais favoraacuteveis quanto agrave

adoccedilatildeo da culinaacuteria da agricultura e de criteacuterios de seleccedilatildeo de espeacutecies alimentares

Cozinhar tornou os alimentos mais macios e faacuteceis de ingerir e viabilizou o consumo de

vegetais como a batata e a mandioca que na forma crua natildeo podiam ter seus nutrientes

metabolizados pelo corpo humano Desse modo esses carboidratos complexos se

tornaram digestiacuteveis e multiplicaram ao extremo as possibilidades alimentares Em

siacutentese esses procedimentos aliados agrave seleccedilatildeo de espeacutecies vegetais permitiram

incrementar sua produtividade sua digestibilidade e seu conteuacutedo nutricional (DOacuteRIA

2009 p32)

O Homo sapiens munido de maiores capacidades alimentava-se de forma cada vez

melhor no sentido de incrementar sua sobrevivecircncia nutrindo-se com maior variedade e melhor

qualidade da dieta adquiria novas capacidades e aprimorava aquelas jaacute dominadas resultando em

aumento na capacidade de descoberta de novos ingredientes e de preparo dos mesmos Instalava-

se assim um ciacuterculo entre o desenvolvimento de potencialidades tornando-o cada vez mais

capaz de sobreviver mesmo em condiccedilotildees adversas bem como de agir sobre tais condiccedilotildees

Tudo isso favorecia a vida e a reproduccedilatildeo da espeacutecie Sobrevivecircncia e autonomia novamente

aliadas pelo alimento O pesquisador norte-americano Michael Pollan alude a uma observaccedilatildeo de

Winston Churchill sobre a arquitetura ldquoPrimeiro cozinhamos nossa comida depois ela nos

107

cozinhourdquo (POLLAN 2014 p15) Pollan explica esse fenocircmeno ocupado pelo cozinhar em

nossa biologia

Portanto cozinhar nos transformou e natildeo apenas por nos tornar mais sociaacuteveis e

corteses Uma vez que o ato de cozinhar permitiu que expandiacutessemos nossas capacidades

cognitivas agrave custa da capacidade digestiva natildeo havia mais como voltar atraacutes nossos

ceacuterebros grandes e intestinos pequenos dependiam agora de uma dieta agrave base de

alimentos cozidos [] Isso quer dizer que cozinhar tornou-se compulsoacuterio- estaacute por

assim dizer cozido em nossa biologia (POLLAN 2014 p15)

A partir daiacute toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo incluindo o surgimento da gastronomia

conduz progressivamente a um grau de evoluccedilatildeo deste campo que ultrapassa a lsquomerarsquo demanda

pela sobrevivecircncia e preservaccedilatildeo da espeacutecie A sobrevivecircncia ao que parece natildeo ocupa mais o

centro no universo da cozinha O campo das accedilotildees e estudos ligados ao preparo do alimento

chega em nosso seacuteculo XXI em niacuteveis de superespecializaccedilatildeo e de glamourizaccedilatildeo nunca antes

imaginados Este eacute o caso para citar exemplos da Cozinha Molecular e dos programas

televisivos que invadem as casas com a famiacutelia muito mais atenta ao programa sobre comer do

que ao proacuteprio comer Hoje em dia aliaacutes sobreviver natildeo atinge a categoria de prioridade de

muitos indiviacuteduos fervorosos em sua autonomia contemporacircnea no desejo insalubre pelo prazer

da comida ou mesmo na pressa da vida urbana morrem por comer da pior forma possiacutevel

Para compreender esse processo vale refletir sobre como chegamos ateacute aqui A histoacuteria a

ser contada parte do ato de cozinhar que ldquo[] eacute como dizem os antropoacutelogos uma atividade que

nos define como seres humanos - o ato com o qual segundo o filoacutesofo e antropoacutelogo Claude

Levi-Strauss a cultura surgerdquo (POLLAN 2014 p13) Para Leacutevi-Strauss conforme referido por

Michael Pollan ldquo[] cozinhar servia como uma metaacutefora da transformaccedilatildeo humana da natureza

crua para a cultura cozidardquo (POLLAN 2014 p13) A respeito do papel do cozinhar para a

cultura Carlos Alberto Doacuteria refere

O que une as abelhas no coletivo eacute uma interaccedilatildeo quiacutemica chamada trofolaxe Ora aleacutem

da integraccedilatildeo neurosensorial devemos considerar que a trofolaxe humana eacute a linguagem

Eacute por intermeacutedio da linguagem que estamos acoplados com outros seres humanos e eacute

tambeacutem com ela que partilhamos nossas experiecircncias ateacute mesmo atraveacutes de enormes

distacircncias no tempo e no espaccedilo Nessa trofolaxe a relaccedilatildeo com os sabores do mundo se

daacute ao mesmo tempo pelo aparelho gustativo e pela cultura (DOacuteRIA 2009 p197)

Deve-se considerar a vasta gama de fatos da histoacuteria da alimentaccedilatildeo desde a preacute-histoacuteria

ateacute nosso terceiro milecircnio tendo como eixo a transformaccedilatildeo na cultura produzida pelo cozinhar

a fim de compreender as mudanccedilas exponenciais que a cozinha atravessou ateacute chegar agrave sua

108

representaccedilatildeo contemporacircnea Nesse contexto faz-se necessaacuterio definir os pontos de referecircncia

que marcaram a transiccedilatildeo a partir da qual sobreviver parece ter deixado de ocupar o motivo por

que o indiviacuteduo se alimenta

Um dos aspectos que podem ser apontados como referenciais na transiccedilatildeo acima abordada

eacute o iniacutecio da chamada restauraccedilatildeo ou seja o surgimento dos restaurantes dentro do nascimento

da hotelaria Em especial a existecircncia da comida de rua passa a ter um papel significativo neste

sentido A valorizaccedilatildeo da gastronomia cada vez maior desde o seacuteculo XVIII teve tambeacutem

influecircncia no processo ao deslocar para o prazer dos sentidos principalmente o do gosto o

centro de sua atenccedilatildeo

Entretanto haacute um ponto chave para a mudanccedila do foco da comida de aspecto nutricional

e gregaacuterio a fator de risco para as mais variadas doenccedilas fiacutesicas como a obesidade e a

hipertensatildeo arterial e para aquelas psiacutequicas como a anorexia e a bulimia tatildeo vigentes no seacuteculo

XXI Este ponto em sua origem estaacute no processo de industrializaccedilatildeo que culminou com o

deslocamento do comer da mesa do lar para o local de trabalho De que forma este pode

relacionar-se agrave sobrevivecircncia e agrave autonomia focos deste subcapiacutetulo Por dois caminhos o

primeiro refere-se ao fato de que o deslocamento restringiu as possiblidades de alimentaccedilatildeo e os

empregados ficaram submetidos ao que fosse oferecido em seu trabalho portanto com restriccedilatildeo

da autonomia o segundo caminho refere-se agraves ofertas alimentares propiciadas nos locais de

trabalho pouco dirigidas agrave sauacutede do indiviacuteduo e por extensatildeo ao papel nutricional da

alimentaccedilatildeo equivalente agrave sua sobrevivecircncia

Pode-se falar na evoluccedilatildeo dos centros urbanos e de suas demandas e transformaccedilotildees entre

estas a pressa que tambeacutem restringe as escolhas alimentares possiacuteveis Outra vez a restriccedilatildeo da

autonomia e o prejuiacutezo das escolhas agrave sauacutede Da pressa passamos ao fenocircmeno seguinte aquele

que Maacutessimo Montanari e Jean-Louis Flandrin denominam lsquoA McDonaldizaccedilatildeo dos costumesrsquo

no livro Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo do qual satildeo organizadores A pressa leva ao surgimento dos

fast-food pela sociedade norte-mericana estes por sua vez causam uma lista de patologias

cardiovasculares e oncoloacutegicas por exemplo A pressa e os fast-food tornam-se parte do

fenocircmeno de stress que aumenta a pressa e torna rotineira a alimentaccedilatildeo raacutepida reduzindo a

sauacutede e aumentando ainda mais o stress Instala-se o ciacuterculo vicioso da vida moderna O eixo de

nutriccedilatildeo que uma vez focircra o lar tornou-se a rua

109

Retomando um dos elementos discutidos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute possiacutevel perceber o

modo como as referidas mudanccedilas atingem a sobrevivecircncia Damaacutesio refere que para que um

organismo permaneccedila vivo eacute necessaacuterio ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados

internos de modo que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Em seu ensaio sobre a normalidade dos comportamentos humanos Massimo Biondi

apresenta um capiacutetulo em que aborda a normalidade dos padrotildees fisioloacutegicos de sobrevivecircncia

Explica que

O organismo eacute uma entidade viva Sua vida se baseia em processos bioloacutegicos de base

que devem respeitar algumas caracteriacutesticas A vida humana por exemplo eacute possiacutevel

para temperaturas corporais compreendidas entre 30 e 42deg Acima ou abaixo de tais

temperaturas para aleacutem de um certo tempo a vida eacute impossiacutevel []

Tal conceito vale para muitas outras variaacuteveis estudadas em medicina e fisiologia do

peso agrave altura da frequecircncia cardiacuteaca agrave pressatildeo arterial [] da quantidade diaacuteria de

accediluacutecar no sangue agraves caracteriacutesticas da urina

O criteacuterio da norma bioloacutegica assim como concebido aqui refere-se agrave normalidade de

funcionamento de estruturas bioloacutegicas que caracterizam a vida de um organismo e satildeo

compatiacuteveis com a mesma (BIONDI 1996 p169)

O indiviacuteduo do seacuteculo XXI em posse de sua autonomia acaba por fazer escolhas

alimentares contra a proacutepria sobrevivecircncia pois alteram os padrotildees de normalidade compatiacuteveis

com a sauacutede e em uacuteltima instacircncia com a proacutepria vida eacute o caso do impacto de alimentos do

regime fast-food na sauacutede resultando em diabetes hipertensatildeo arterial e sobrepesoobesidade

Tal resultado entre outros deve-se agrave ingestatildeo excessiva de carboidratos gorduras e

trigliceriacutedeos presentes nesta forma lsquodesnutricionalrsquo

A autonomia desse modo que muitas vezes eacute fonte de extrema valorizaccedilatildeo em tempos

nos quais a individualidade ocupa papel central leva o homem contemporacircneo a atacar a

sobrevivecircncia e natildeo mais a preservaacute-la Nesse ponto da histoacuteria da alimentaccedilatildeo sobrevivecircncia e

autonomia afrouxaram o dar as matildeos De acordo com Michael Pollan ldquoPesquisas de opiniatildeo

confirmam que a cada ano cozinhamos menos e compramos mais refeiccedilotildees prontasrdquo

(POLLAN 2014 p11)

Este autor traz reflexotildees relevantes quanto ao paradoxo do papel da cozinha em nossa

contemporaneidade apontando que ao mesmo tempo que o tempo de cozinhar diminui aumenta

o tempo de dedicaccedilatildeo a assistir programas de cozinha na televisatildeo aleacutem de outras modificaccedilotildees

mencionadas por ele sobre as escolhas alimentares O que chama a atenccedilatildeo na obra de Michael

Pollan eacute o fato de ele mencionar o ponto em que chegamos sob a perspectiva de nossa cultura

110

alimentar global Sendo este um pesquisador reconhecido e respeitado internacionalmente eacute

positivo que exponha em tom pungente os resultados de pesquisas e perspectivas no

embasamento de suas reflexotildees Posiciona-se frente a vaacuterios problemas graves ligados ao modo

de comer de nosso tempo ao mencionar a reduccedilatildeo do haacutebito de cozinhar e suas consequecircncias

ldquo[] natildeo eacute surpresa alguma o decliacutenio do haacutebito de cozinhar em casa coincidir com o aumento da

incidecircncia da obesidade e de todas as doenccedilas crocircnicas associadas agrave alimentaccedilatildeordquo (POLLAN

2014 p16)

O elemento apontado por este autor e que se relaciona agrave relaccedilatildeo entre a comida e as

relaccedilotildees interpessoais declara que a refeiccedilatildeo em famiacutelia deu lugar em larga escala ao comer

sozinho Autonomia praticidade e individualismo parecem estar no centro deste fenocircmeno

A ascensatildeo do fast-food e o decliacutenio da comida caseira tambeacutem abalaram a instituiccedilatildeo da

refeiccedilatildeo compartilhada por nos estimularem a comer coisas diferentes com pressa e

muitas vezes sozinhos Pesquisas dizem que estamos dedicando mais tempo agrave

lsquoalimentaccedilatildeo secundaacuteriarsquo que eacute como denominamos esse costume meio constante de

beliscar alimentos embalados e menos tempo agrave lsquoalimentaccedilatildeo primaacuteriarsquo - termo um tanto

deprimente para a instituiccedilatildeo outrora respeitada e conhecida como refeiccedilatildeo

A refeiccedilatildeo compartilhada natildeo eacute algo insignificante Trata-se de um dos fundamentos da

vida em famiacutelia o lugar onde as crianccedilas aprendem a arte da conversaccedilatildeo e adquirem

haacutebitos que caracterizam a civilizaccedilatildeo repartir ouvir ceder a vez administrar

diferenccedilas discutir sem ofender (POLLAN 2014 p16 grifo do autor)

A autonomia agrave eneacutesima potecircncia deixa de ser uma capacidade para tornar-se uma redoma

Acabamos tornando-nos seres livres em excesso talvez Por termos pressa querermos prazeres e

independecircncia extremos sobreviver passou agrave categoria de um lsquotanto fazrsquo em prol do proveito

maacuteximo do instantacircneo Vale retomar a reflexatildeo de Karl Jaspers sobre a consciecircncia do eu

definida por limites externos e reais nossa autossuficiecircncia eacute delimitada pela dependecircncia que

temos de recursos externos como por exemplo os bens alimentares e das pessoas significativas

em nossa vida Dependemos desses bens assim como dos relacionamentos familiares afetivos e

profissionais todos necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia do ponto de vista fiacutesico e psiacutequico

A autonomia conquistada para sobrevivermos na evoluccedilatildeo da espeacutecie chegou a um grau

de importacircncia em nosso universo contemporacircneo que parece ter ultrapassado o instinto de

preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo Viver a liberdade as vontades e

prazeres sobrepuja o proacuteprio sobreviver Autonomia e sobrevivecircncia parecem ter soltado as matildeos

111

34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI

A leitura do romance Quarenta dias permite identificar a cozinha presente em trecircs

periacuteodos principais da narrativa representados respectivamente por trecircs elementos especiacuteficos

O primeiro aparece nas paacuteginas iniciais quando Alice comeccedila a relatar em seu caderno o

periacuteodo que antecedeu a mudanccedila para Porto Alegre lembrando-se do egoiacutesmo de Norinha sua

filha desde quando ainda morava em Joatildeo Pessoa Tais recordaccedilotildees fornecem pistas do

comportamento da moccedila ao determinar as transformaccedilotildees na vida da matildee para satisfazer seus

interesses

O segundo elemento abrange os primeiros dias da chegada de Alice a inconformidade

com a nova moradia onde a cozinha que define como lsquode show-roomrsquo expressa uma atmosfera

impessoal e asseacuteptica agrave qual ela natildeo consegue se adaptar Aparece nesta etapa o choque de sua

nova realidade e a tentativa de aceite de todas as mudanccedilas de vida impostas pela filha

A importacircncia de refletir sobre os dois elementos apresentados acima estaacute no fato de esses

demonstrarem Alice em sua vida em Joatildeo Pessoa e logo na chegada em Porto Alegre Os dois

periacuteodos expressam o comportamento de Norinha como explicaccedilatildeo para sua conduta egoiacutesta em

relaccedilatildeo agrave matildee e expressam tambeacutem a relaccedilatildeo de Alice com a consciecircncia de si mesma e com a

autonomia Assim os dois periacuteodos anteriores agrave procura por Ciacutecero descritos por ela agrave Barbie

em seu caderno anunciam o porquecirc de desejar a retomada de si mesma durante os dias em que

transplanta sua vida para o espaccedilo urbano

O terceiro elemento por fim refere-se ao tema deste capiacutetulo a comida como

representaccedilatildeo da necessidade de autonomia vinculada ao processo de tomada de consciecircncia de

si incluindo suas escolhas necessidades de sobrevivecircncia gostos e memoacuterias gustativas que satildeo

parte de sua identidade Nesse terceiro elemento que ocupa a maior parte da anaacutelise encontra-se

uma cozinha transplantada para o universo urbano espaccedilo que Alice habita nos quarenta dias

Junto agrave comida expressa por carrinhos de pipoca botecos moradias em vilas- onde lhe

oferecem cafeacute chimarratildeo e algo para comer- padarias e um restaurante de rodoviaacuteria estaacute a

representaccedilatildeo de uma vida cujo cenaacuterio eacute o proacuteprio espaccedilo da cidade no dormir no banhar-se no

comer Eacute neste territoacuterio que Alice procura a si mesma enquanto em suas andanccedilas ela pergunta

por um desconhecido Ciacutecero Arauacutejo dentro de si vai encontrando aquela que eacute capaz de tomar as

proacuteprias decisotildees de sobrevivecircncia Progressivamente recupera a consciecircncia de si e as suas

112

vontades Um fator que deve ser ressaltado estaacute incluiacutedo neste terceiro elemento a ligaccedilatildeo

mesmo que efecircmera que Alice estabelece com as demais personagens da narrativa na maior

parte das vezes esta ligaccedilatildeo ocorre por intermeacutedio da comida que oferecem a ela ou que ela

partilha como no caso de Lola e Arturo

Eacute possiacutevel observar que haacute situaccedilotildees em que o cuidado de desconhecidos para com ela

ocorre ao oferecerem um chaacute um cafeacute um biscoito nas casas de vilas por onde passa o mesmo

cuidado eacute feito por Penha que coloca com esmero a mesa para Alice no restaurante da

rodoviaacuteria tratando-a com gentileza e camaradagem ou pela proacutepria Milena que cuida de Alice

com chaacute e canja de galinha no iniacutecio da histoacuteria quando esta teria voltado doente de sua visita a

Jaguaratildeo Ateacute mesmo Zelima que aparece na cena em que a protagonista se engasga com a

pipoca no Hospital de Pronto Socorro tem uma atitude de cuidado e de preocupaccedilatildeo para com

ela oferecendo-lhe aacutegua e acompanhando sua melhora

Estas breves expressotildees de carinho e zelo atraveacutes do alimento representam na obra a

nutriccedilatildeo que o cuidado interpessoal oferece muitas vezes na linguagem do alimento na vivecircncia

de Alice em sua nova vida porto-alegrense A capacidade de despertar sentimentos de cuidado de

afeto e de preocupaccedilatildeo da parte de outras pessoas demonstra caracteriacutesticas de uma Alice que

retoma o contato consigo que se reencontra

Mesmo com todo o trauma que atravessa a personagem eacute capaz de estabelecer viacutenculos

durante seus caminhos ainda que sejam breviacutessimos ilustram um aspecto de sua personalidade

Eacute algo seu que natildeo se perdeu com o roubo de sua autonomia e eacute justamente por seu modo de ser

que vai estabelecendo pontes para chegar a algum desfecho de sua procura durante a histoacuteria

pontes atraveacutes da comunicaccedilatildeo com as pessoas e comunicaccedilatildeo atraveacutes da comida que lhe eacute

servida das informaccedilotildees que lhe satildeo dadas do cuidado amistoso como no caso de Lola e de

Milena

Embora o foco do presente capiacutetulo seja a abordagem da conquista da autonomia da

personagem atraveacutes de suas decisotildees pela sobrevivecircncia eacute importante enfatizar que Alice em sua

vida em Joatildeo Pesssoa tinha tal autonomia Aleacutem de ter criado sua filha praticamente sozinha

tinha apartamento proacuteprio amigos e projetos reconhecimento de sua atividade profissional como

a lsquosensata Professora Poacutelirsquo conforme diversas vezes se denomina durante a narrativa Essa

capacidade sofreu abrupta reduccedilatildeo pela interferecircncia da filha quando definiu que a matildee iria se

transferir para Porto Alegre para cuidar do futuro neto

113

Este eacute entatildeo o primeiro elemento a ser abordado o egoiacutesmo da filha A conduta de

Norinha deveu-se a esse egoiacutesmo ao natildeo pensar no desejo de Alice e sim nos proacuteprios interesses

Apenas quando escreve a longa lsquocartarsquo para Barbie depois de sua jornada pela cidade a

protagonista eacute capaz de se recordar de episoacutedios antigos com a filha Esses eventos jaacute

denunciavam a postura da moccedila desde o comeccedilo da juventude O trecho a seguir mostra uma

dessas recordaccedilotildees

Ainda meio adormecida fechei a janela e voltei pra cama naquela madorna jaacute perto de

acordar de vez e entatildeo comecei a reviver cenas bobas de muito tempo atraacutes sem

importacircncia completamente esquecidas agora niacutetidas em sonho ou na minha memoacuteria

por que seraacutecoisas assim como o dia em que estava um friozinho excepcional pra

Joatildeo Pessoa e resolvi fazer uma sopa quente pro jantar aproveitando umas batatas-

baroas que tinha achado no mercado Batata-baroa saudade do siacutetio do meu avocirc uma

raridade na cidade mais batata inglesa cenoura cebola e caldo de galinha tudo de bom

O cheiro da sopa no fogo jaacute tinha impregnado a casa quando Nora chegou Vai fazer

sopa hoje Matildeiacutenha Que horas Jaacute estaacute pronta se quiser eacute soacute bater no

liquidificadorComo nunca me esperava pra cear pois iacutea correndo pra faculdade

apenas ouvi vagamente que estava mexendo na cozinha enquanto eu assistia agrave novelinha

das seis Tatildeo distraiacuteda com a novela nem percebi que ela jaacute tinha saiacutedo Tudo bem ateacute

que fui tratar de pocircr a mesa pra mim Soacute tinha sobrado menos de uma concha rasa de

sopa Pasme Barbie ela tinha se servido na tigela do feijatildeo Fiquei danada na hora mas

nada a fazer do que usar a imaginaccedilatildeo Jaacute eram quase sete e meia da noite Entatildeo botei

mais um copo dacuteaacutegua com uma colher de maisena meio tablete a mais de caldo de

galinha e cozinhei ali dentro uma porccedilatildeo de massinha pra sopaque bom que tinha em

casa Tomei entatildeo o resultado como se estivesse tudo normal com apenas um leve

gostinho de batata-baroamas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada

de matildeo-de-vaca (REZENDE 2014 p22)

Vale ressaltar a atitude complacente de Alice frente ao egoiacutesmo da filha no episoacutedio

narrado acima expressa pela frase lsquomas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada

de matildeo-de-vacarsquo A seguir outro fragmento em que Norinha se apossava dos chocolates e das

guloseimas da matildee Alice reflete em sua carta para Barbie sua obediecircncia agraves demandas da moccedila

devidas agraves dietas no comprar lsquocoisas estranhasrsquo na feira

Diversos pontos satildeo referidos como o fato de a filha natildeo se sentar mais agrave mesa com ela e

a atitude de desperdiccedilar as gemas de ovo em suas dietas Um aspecto interessante do trecho

abaixo eacute a memoacuteria de sua avoacute fazendo lsquofios dacuteovosrsquo e quindins como marca de afeto e de

partilha pela comida Assim haacute o contraste do alimento ora como representaccedilatildeo do egoiacutesmo da

filha ao lsquoroubarrsquo seus chocolates e as guloseimas ora como expressatildeo do afeto compartilhado

pela avoacute atraveacutes dos doces que fazia

Cabe ainda a reflexatildeo mais uma vez Alice menciona sua complacecircncia para com a filha

nas frases lsquofielmente obedeciarsquo e lsquoeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar

114

discussatildeorsquo Volta-se desse modo para a frase apresentada no primeiro trecho referida acima

lsquonatildeo dei um pio pra natildeo ser chamada de matildeo-de-vacarsquo A postura de Alice em relaccedilatildeo agrave Norinha

tinha sempre um elemento de passividade de obediecircncia agraves normas e aos quereres da filha

anunciando que a postura da uacuteltima em definir a mudanccedila de Alice mesmo contra a vontade desta

era a continuidade de um comportamento mais antigo na relaccedilatildeo entre elas A protagonista conta

agrave Barbie

Vivia acrescentando coisas estranhas nas minhas listas de feira que eu fielmente

obedeciaeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar discussatildeo Claro de

vez em quando ela dava umas escapadas na dieta principalmente comendo meus

chocolates e umas guloseimas de que gosto e comprava pro meu lanche Afinal eu natildeo

estava de dieta Quase natildeo se sentava agrave mesa comigo comia em peacute na cozinha ia pro

quarto dela comer as gororobas dieteacuteticas que fazia ou se enchia soacute de claras de ovo

jogando as gemas fora Parei de tentar aproveitar pois natildeo dava pra tomar gemada todo

dia natildeo eacute e Voacute natildeo estaacute mais neste mundo pra me ensinar a fazer fios dacuteovos ou

quindinse as gemas que Norinha descartava eram branquelas nada daquele amarelo

vivo dos ovos de capoeira do siacutetio Seraacute que ainda existem fios dacuteovos (REZENDE

2014 p23)

O trecho seguinte refere-se ao segundo elemento assinalado ou seja a inconformidade de

Alice com sua nova vida em Porto Alegre no apartamento que natildeo aceita como seu Nas

referecircncias agrave cozinha lsquode show-roomrsquo a protagonista expressa suas impressotildees sobre o local

montado por Norinha para sua habitaccedilatildeo Haacute diversos momentos em que a comida representa seu

desacerto com a vida montada em um territoacuterio sem referecircncias afetivas sem lembranccedilas dos

quais o fragmento abaixo eacute um exemplo

Alice mostra uma resignaccedilatildeo compulsoacuteria com as ordens da filha uma aparente

concordacircncia com as tentativas de Norinha de abater-lhe a autonomia eacute na contrariedade com o

cenaacuterio esteacuteril da cozinha que define como lsquoalheiarsquo e com os alimentos que tem em casa com as

compras que a filha faz e guarda nos armaacuterios e gavetas que se mostra seu modo de perceber e

de sentir as imposiccedilotildees da mesma

A inconformidade com a vida porto-alegrense aparece em diversas situaccedilotildees na chegada

de Alice ao apartamento aleacutem do trecho acima Percebo em vaacuterios pontos a revolta da

protagonista com os detalhes da cozinha como espaccedilo fiacutesico em outros aparece seu lsquodesacertorsquo

atraveacutes de uma voz criacutetica e ateacute mesmo irocircnica com os alimentos gauacutechos

Assumi consciente e disciplinadamente a atitude que eu jaacute vinha ensaiando havia algum

tempo do ET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes muito maiores

que ele Eu continuava a encolher Engoli obediente tudo o que estava posto sobre a

previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de vidro num canto da sala o chaacute as

115

torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar de chimia a

fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial trazido

natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite morno (REZENDE 2014

p41)

Eacute possiacutevel ler a atitude de engolir lsquoobedientersquo o alimento como representativa de sua

percepccedilatildeo sobre si mesma de ldquoET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes

muito maiores do que elerdquo A obediecircncia em comer aqui ilustra a frase ldquoEu continuava a

encolherrdquo Ela natildeo via o que estava sendo posto na mesa como cuidado com sua chegada por

preocupaccedilatildeo genuiacutena com seu bem-estar entendia isto sim como ldquobenevolecircncia de terraacutequeos

muito maioresrdquo A forccedila da comparaccedilatildeo estaacute no fato de que o comer tambeacutem se tornou objeto de

controle da filha a quem ela passava a ldquoobedecerrdquo Passava a ocupar assim o papel que descreve

como ldquofilha da minha filhardquo (REZENDE 2014 p74)

Neste trecho lecirc-se a contrariedade de Alice na referecircncia que faz agrave cozinha como espaccedilo

fiacutesico ldquo[] tudo o que estava posto sobre a previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de

vidro no canto da salardquo (REZENDE 2014 p74) Ainda que se refira agrave mesa como estando na

sala atribui a ela papel conotaccedilatildeo ligada agrave funccedilatildeo da cozinha como extensatildeo desta pois eacute onde

estatildeo na cena os produtos alimentares oferecidos

Na menccedilatildeo que ela faz a esses produtos estaacute expressa tambeacutem a revolta atraveacutes da voz

irocircnica ldquo[] o chaacute as torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar

de chimia a fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial

trazido natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite mornordquo (REZENDE 2014

p41) Assim eacute na cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico que se expressa na chegada de Alice a

Porto Alegre a representaccedilatildeo de sua recusa em aceitar a vida que lhe foi imposta Haacute referecircncias

expliacutecitas agrave sua revolta mas a forma material da contrariedade eacute demonstrada nessa etapa da

narrativa em diversos episoacutedios ligados agrave cozinha

A manhatilde seguinte agrave chegada no apartamento continua tendo essa peccedila da casa como

cenaacuterio da inconformidade de Alice quando Norinha chega com as compras

Naquela primeira manhatilde sem coragem de decifrar os armaacuterios e eletrodomeacutesticos desta

cozinha metida a besta eu ainda de camisola e roupatildeo agrave mesa do canto da sala

preguiccedilosamente acabando de recuperar como cafeacute da manhatilde os restos do lanche da

madrugada que ficaram largados ali bolo torradas amanhecidas chimia queijo serrano

chaacute frio ouvi barulho de chave na fechadura e me assustei Norinha pelo visto agora

detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas tambeacutem da chave da minha

moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha com almoccedilo

Bem paraibano viu Matildeiacutenha pra vocecirc ir se acostumando aos poucos a quentinha

116

equilibrada entre montes de sacolas de compras Pra abastecer a despensa de minha

Maacuteinha adorada que vai ser tratada como uma duquesa pela sua filhinha preferida []

meteu-se diretamente na cozinha Que tive que fazer malabarismos para conseguir passar

no supermercado pra conseguir passar no supermercado e trazer suas compras depois a

gente acerta natildeo se preocupe com isso por hoje vou ter de sair correndo que este dia da

semana eacute sempre pesadiacutessimo na universidade agraves vezes natildeo daacute tempo nem de fazer xixi

(REZENDE 2014 p47-48 grifo nosso)

A frase em grifo representa a percepccedilatildeo de Alice sobre o controle que a filha assumia

sobre sua vida ldquoNorinha pelo visto agora detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas

tambeacutem da chave da minha moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha

com almoccedilordquo (REZENDE 2014 p48) O controle sobre o cardaacutepio expressa a inconformidade

da protagonista com as imposiccedilotildees de Norinha na sua vida por exemplo escolhendo um almoccedilo

lsquobem paraibano viu Matildeiacutenha para vocecirc ir se acostumando aos poucosrsquo como ela refere Aleacutem

deste aspecto as sacolas de compras lsquoPra abastecer a despensa de minha Matildeiacutenha adoradarsquo

tambeacutem satildeo para Alice representativas dos mandos de sua filha

A direccedilatildeo da filha sobre a rotina da personagem ocorre em detalhes cotidianos como de

fazer e de guardar as compras de supermercado na cozinha do apartamento levar a lsquoquentinharsquo

para o almoccedilo e definir na percepccedilatildeo de Alice que ela deve sair agrave rua entre outras condutas

Tais comportamentos ligados agrave alimentaccedilatildeo demonstram a atitude de Norinha interferindo na

autonomia da matildee procurando ceifar sua capacidade de cuidar de uma nova vida naquilo que eacute

mais individual na sobrevivecircncia a nutriccedilatildeo A contrariedade de Alice agrave cozinha do apartamento

reflete em muito a percepccedilatildeo que ela tem deste ao longo da narrativa em suas referecircncias eacute

possiacutevel compreender que se vecirc presa naquilo que por diversas vezes chama de lsquotabuleiro de

xadrezrsquo Em grande parte essa impressatildeo se deve ao aspecto do local mas o sentimento

transcende essa caracteriacutestica no lsquotabuleirorsquo Alice tem sua liberdade tolhida

O trecho a seguir representa a relaccedilatildeo que se estabelece entre elas nesta etapa inicial da

chegada de Alice a Porto Alegre

Fiquei calada soacute olhando com a boca cheia o naco de queijo grande demais difiacutecil de

mastigar e engolir como todo o resto que havia tempos jaacute vinha entalado na minha

garganta Nem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia em meu nome

gritando aqui da cozinha enquanto desensacava os pacotes e escondia as coisas atraacutes de

sei laacute qual dessas dezenas de portinhas brancas por cima desses azulejos pretos [] e

por aiacute foi Norinha perguntando e respondendo por mim ateacute esvaziar a uacuteltima sacola

bater pela uacuteltima vez todas as portas e gavetas dos armaacuterios da geladeira O almoccedilo eacute soacute

esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenha (REZENDE 2014 p48-49)

117

Um dos pontos que deflagram a atitude de Norinha em ceifar a autonomia de Alice estaacute na

frase lsquoO almoccedilo eacute soacute esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenharsquo como se a matildee natildeo soubesse disso

ou natildeo tivesse capacidade de percebecirc-lo sozinha A filha infantiliza a personagem tomando por

ela decisotildees e condutas (como ir ao supermercado e guardar as compras nos armaacuterios da

cozinha) Ateacute mesmo a verbalizaccedilatildeo das respostas eacute feita por ela sem dar agrave Alice a possibilidade

de expressar-se como na frase lsquoNem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia

em meu nome gritando aqui da cozinharsquo

A resposta emocional de Alice a este iniacutecio de sua vida na nova cidade ainda antes da

revelaccedilatildeo de que Norinha e o esposo adiaram os planos de gravidez estaacute representada no

fragmento a seguir

Fiquei laacute Alice diminuindo mais ainda imprensada entre a mesa e a parede nem sei

quanto tempo tentando me convencer de que ela natildeo se meteria mais de surpresa pela

porta adentro e sabendo que pra rua eu natildeo ia como queria minha filha e natildeo ia mesmo

soacute porque era isso que ela tinha ordenado Natildeo ia natildeo de birra sem nenhuma ideia

nem vontade de fazer nada a natildeo ser andar para um lado e outro naquele tabuleiro de

xadrez minhas pernas dissipando a energia acumulada pela raiva olhar as malas ainda

fechadas as portas desses armaacuterios da cozinha fechadas a pilha de caixas fechadas e de

relance a minha cara fechada refletida na enorme televisatildeo da sala em outra menor no

quarto nos vaacuterios espelhos e vidraccedilas espalhados por aiacute O almoccedilo ficou aqui esfriando

no balcatildeo da cozinha ateacute o anoitecer Daiacute engoli aquilo frio mesmo enquanto deixava o

telefone tocar tocar tocar ateacute desistirem (REZENDE 2014 p51)

Entretanto a protagonista encontra em si mesma a capacidade de autonomia que vinha

adormecida desde quando comeccedilou o processo de mudanccedila determinado pela filha Comeccedila a

aceitar as modificaccedilotildees tomar conta da proacutepria rotina decidir adaptar-se ao apartamento e agrave nova

vida A decisatildeo de aceitar a vida imposta pela filha eacute tomada com autonomia com a sensatez que

remonta a lsquosensata professora Poacutelirsquo Alice torna a instalaccedilatildeo em sua nova moradia algo que

parece originar de uma decisatildeo sua e natildeo apenas de uma imposiccedilatildeo de Norinha Entretanto

expressa que a decisatildeo para tal eacute racional assim como a organizaccedilatildeo metoacutedica da casa que

realiza Sugere que estaacute fazendo de conta que esqueceu lsquode todo o restorsquo

E a sensata professora Poacuteli acabou vencendo pelo menos provisoriamente porque

acordei logo cedo disposta a deixar pra laacute o ressentimento ser realista encarar as coisas

como eram agora como gente grande voltar ao meu tamanho normal pulei da cama me

vesti decentemente explorei as provisotildees que Norinha tinha deixado fiz e tomei meu

cafeacute e danei a desmanchar malas e pacotes a encher gavetas prateleiras e cabides tudo

muito bem-arrumado metodicamente pensando soacute naquilo que tinha concretamente

diante de mim esquecida ou fazendo de conta que esquecia de todo o resto Pronto

[] botando ordem fora e dentro de mim pensava Pesquisei nos armaacuterios da cozinha

achei o que precisava fiz um almocinho pus toalha louccedila talher aqui mesmo nessa

118

espeacutecie de mesa sem pernas de pedra preta embutida na parede e comi com certo gosto

depois de natildeo sei quanto tempo de fastio (REZENDE 2014 p52-53)

Quando Alice menciona lsquopesquisei nos armaacuterios da cozinha achei o que precisava fiz

um almocinho pus toalha louccedila talherrsquo estaacute manifestando sua decisatildeo de procurar acostumar-se

aos detalhes da nova rotina como colocar a mesa O trecho a seguir complementa essa tentativa

Subi de volta confiante tinha tomado minha primeira iniciativa depois de tanto tempo

e isso fazia sentir-me melhor Abri mais umas caixas e arrumei o conteuacutedo Fiz almoccedilo

direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada sesta de uma vida

normal li umas paacuteginas de uma revista apanhada no aviatildeo e como sempre cochilei

logo (REZENDE 2014 p61)

A frase lsquofiz o almoccedilo direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada

sesta de uma vida normalrsquo demonstra sua procura por se adaptar ao cotidiano Alice procura

retomar as reacutedeas da nova vida mesmo sendo esta imposta a ela reassumindo seus afazeres

(lsquolimpar a cozinharsquo) e costumes (a lsquosagrada sesta de uma vida normalrsquo) Tudo isso relata agrave Barbie

no caderno posteriormente sabendo que tais posturas representavam apenas a tentativa em

ultrapassar a dor emocional pela saiacuteda de seu habitat em Joatildeo Pessoa A existecircncia compulsoacuteria

volta a aparecer quando eacute convidada para jantar na casa da filha ao mencionar lsquoeu jaacute estava

pegando jeito de me comportar como filha da minha filharsquo conforme se lecirc abaixo

Pois Umberto vai passar aiacute pelas sete horas que eu vou correr pra preparar um

comerzinho bem bom e trazer a senhora pra jantar com a gente botar a conversa em dia

vai ser uma deliacutecia vaacute se aprumar bem bonita que daqui a pouco ele estaacute batendo aiacute

Que remeacutedio senatildeo obedecer Eu jaacute estava pegando jeito de me comportar como filha da

minha filha (REZENDE 2014 p74)

No jantar referido Alice eacute informada por Norinha sobre a viagem do casal para o exterior

postergando o projeto da maternidade motivo de sua mudanccedila para Porto Alegre No primeiro a

lsquolasanha da verdadeirarsquo o lsquomelhor vinho da serra gauacutecharsquo e a lsquocuca de arrasarrsquo satildeo elementos

regionais que a filha oferece como forma ao que parece de apresentar agrave sua matildee as benesses do

territoacuterio em que esta deveraacute habitar no segundo a expressatildeo lsquoe eu soacute com a tarefa de garfar o

que me serviam e emitir de vez em quanto um huuuummm apreciativorsquo exprime a posiccedilatildeo

passiva que a protagonista reconhece assumir frente agraves imposiccedilotildees da filha Neste jantar tem fim

o periacuteodo de interaccedilatildeo de Alice com Norinha na narrativa demarcando a conclusatildeo de uma etapa

da histoacuteria a chegada da personagem agrave cidade

119

A seguir dois fragmentos que retratam a comida como fator de suposta agregaccedilatildeo

familiar mas escondem atraacutes do lsquoFiz jantar especialrsquo o desrespeito e o egoiacutesmo da moccedila quanto

agrave sua matildee Esta ficaraacute sozinha em uma cidade desconhecida sem referecircncias apoacutes ter tido que

abandonar sua terra natal em nome da exigecircncia da filha A atitude de falar da cuca como um

doce de seu completo desconhecimento ilustra agrave escassa familiaridade de Alice com as tradiccedilotildees

da regiatildeo como na frase lsquoum bolo recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima

gostoso de fatorsquo Os trechos definem a atmosfera aparentemente agradaacutevel da refeiccedilatildeo em

famiacutelia imposta por Norinha antes de esta fazer a revelaccedilatildeo que interferiraacute na vida de Alice

culminando na busca de sua autonomia O papel da comida neste ponto do livro eacute o de lsquoadoccedilarrsquo

a personagem para receber a notiacutecia da viagem da filha e do genro

Fiz jantar especial uma lasanha da verdadeira o melhor vinho da serra gauacutecha uma

cuca de arrasar vocecirc vai provar hoje uma cuca tudo receita da minha sogra vai adorar

jaacute estaacute com apetite natildeo eacute soacute de ouvir dizer entatildeo como estaacute sendo sua primeira

semana em Porto Alegre (REZENDE 2014 p74)

Umberto parecendo distraiacutedo dando soacute palpites lacocircnicos sempre concordando com a

mulher dele e eu soacute com a tarefa de garfar o que me serviam e emitir de vez em quando

um huuuummm apreciativo ateacute terminar de comer e aprovar a tal cuca um bolo

recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima gostoso de fato

(REZENDE 2014 p75)

A partir desse jantar Alice volta para sua casa e suspende os contatos com o casal Tem

iniacutecio assim o papel da comida ligada agrave recuperaccedilatildeo da autonomia perdida

Quando sai para a rua imbuiacuteda da missatildeo de procurar por Ciacutecero Alice sabe que sua

decisatildeo ultrapassa a descoberta do rapaz Eacute por si mesma pela capacidade de cuidar de si de

decidir mesmo as questotildees mais baacutesicas de sobrevivecircncia apoacutes Norinha ter tomado conta de sua

vida e de suas resoluccedilotildees Alice decide decidir Nesse sentido passa a guiar-se por suas

necessidades vitais como fome sono e banho por exemplo todos eles transplantados para o

espaccedilo urbano onde decide habitar apenas para natildeo voltar para o lsquotabuleiro de xadrez seu

apartamento

Mesmo quando esquece onde mora a permanecircncia nas ruas continua sendo uma escolha

pois poderia ligar para a prima Elizete que tem seu endereccedilo no entanto opta por natildeo fazecirc-lo

Durante o periacuteodo duas buacutessolas guiam seus rumos a procura por Ciacutecero que daacute sentido agrave

peregrinaccedilatildeo como um aacutelibi para justificar as andanccedilas e o natildeo-retorno para casa e a

120

manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do que escolhe comer de onde decide dormir e banhar-se

por exemplo

Uma das primeiras decisotildees de Alice eacute a de esconder-se em casa nos primeiros dias apoacutes

a revelaccedilatildeo sobre a viagem de Norinha e Umberto para o exterior e o adiamento dos planos que

ocasionaram sua mudanccedila para Porto Alegre

Cinco dias de fartura de letras quase jejum de qualquer outra comida o silecircncio cortado

soacute ateacute o comeccedilo da tarde do segundo dia pela ainda prazerosa estridecircncia do telefone

com perverso gosto de vinganccedila que me enchia a boca e quase me bastava como

simulacro de refeiccedilatildeo (REZENDE 2014 p87)

Protege-se em casa lendo livros e deixando o telefone tocar a nutriccedilatildeo estaacute fora do eixo

da comida nesse sentido pois Alice alimenta-se do isolamento que consegue estabelecer Assim

esse eacute o iniacutecio da retomada de sua autonomia atraveacutes das escolhas que comeccedila a fazer por si de

modo independente ao controle da filha Decide natildeo mais se submeter mesmo que a atender o

telefone A nutriccedilatildeo estaacute baseada na autonomia na independecircncia que retoma mais do que nos

proacuteprios alimentos nesse ponto da narrativa Quando refere lsquocom perverso gosto de vinganccedila que

me enchia a boca e quase me bastava como simulacro de refeiccedilatildeorsquo o que se pode ler eacute que a

salvaguarda da sobrevivecircncia estava apoiada na sua capacidade de reagir agrave filha de impor sua

vontade contrariando a imposiccedilatildeo de Norinha

A histoacuteria sofre a guinada maior quando Alice recebe a incumbecircncia de procurar por

Ciacutecero a missatildeo daacute sentido ao seu caminho aos seus dias A missatildeo de encontrar o rapaz eacute o

fator que move a personagem a sair de seu apartamento e a desafiar-se em espaccedilos urbanos

desconhecidos de uma cidade que ainda eacute para ela uma cidade estranha Este seraacute tambeacutem um

modo de se esconder da filha de Elizete e de todos que a possam encontrar Alice decide

descobrir o paradeiro de Ciacutecero para encontrar consigo mesma Aquela lsquosensata professora Polirsquo

capaz de tomar decisotildees e de gerenciar a proacutepria vida estaacute desaparecida de si

Na partida para a Vila Maria Degolada ela tem o primeiro contato com a comida das ruas

e botecos Ao sair de casa sem ter se alimentado obriga-se a comer para saciar a fome esta eacute a

primeira expressatildeo do comer como decisatildeo de sobrevivecircncia

Passei diante de uma portinha aberta quase invisiacutevel entre duas casas um balcatildeozinho

prateleiras com umas poucas mercadorias e uma caixa de vidro com lamentaacuteveis

empadas e coxinhas ou coisa parecida sobrevoadas por uma mosca preguiccedilosa Era

pouco mais que aqueles fiteiros de rua laacute de Joatildeo Pessoa e pode ter sido por isso entrei e

por pouco natildeo pedi uma tapioca de queijo Pedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer

121

de comer Leite natildeo havia fui soacute de cafeacute e uma coxinha engordurada de anteontem

caloria bastante para eu continuar minha peregrinaccedilatildeo Quem servia era um homem jaacute

idoso nada a ver com as imagens de gauacutecho de churrascaria que eu tinha pregadas na

imaginaccedilatildeo nem alto nem louro nem moreno bigodudo de chapeacuteu preto lenccedilo

vermelho laccedilo no ombro e bombacha bufante Baixinho e coxinho com um resto de

bigode fino um bonezinho achatado na careca camisa branca encardida e um lenccedilo

branco amarrado no pescoccedilo Comi paguei e me animei a perguntar pra onde ficava a tal

Vila Maria Degolada (REZENDE 2014 p96-97)

lsquoPedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer de comerrsquo eacute uma das frases que aponta para

o papel da comida nesse momento da histoacuteria o de saciar a fome O alimento em sua funccedilatildeo

primordial eacute o mote desse trecho jaacute que aqui Alice natildeo quer comer algo saboroso e sim que lhe

forneccedila forccedilas para seguir o percurso

Segui em frente olhando pro chatildeo emburrada passo firme e decidido lsquoCiacutecero Arauacutejo

Vila Maria Degolada Ciacutecero Arauacutejo Vila Maria Degoladarsquo revigorada pelo sal a

gordura e a cafeiacutena ateacute chegar manhatilde alta numa avenida larga sem ter mais nenhuma

ideia de pra que lado ficava o apartamento onde eu devia morar (REZENDE 2014

p97)

A atitude determinada de Alice frente ao objetivo eacute o lsquopasso firme e decididorsquo

complementado pela referecircncia que ela faz ao efeito da comida em seu acircnimo para chegar agrave Vila

Maria Degolada lsquorevigorada pelo sal a gordura e a cafeiacutenarsquo A personagem expressa nessa

uacuteltima frase o reforccedilo ao papel do alimento em saciar a fome e em fornecer energia

Nos caminhos que vai percorrendo junta folhetos de propaganda papeacuteis soltos e

guardanapos todos como base para escrever pedaccedilos de livros que encontra Um desses folhetos

representa a visatildeo de Alice sobre sua avoacute que aproveitava as gemas para preparar doces de sua

origem portuguesa e sobre sua filha que desperdiccedilava as gemas para preparar omeletes de

claras para a dieta Essa evocaccedilatildeo de lembranccedilas em relaccedilatildeo agrave avoacute e agrave filha a partir de uma

divulgaccedilatildeo impressa traz mais uma das funccedilotildees do alimento nessa etapa da histoacuteria aleacutem da

expressatildeo de autonomia o resgate de si atraveacutes das recordaccedilotildees de suas origens Lembrar-se de

sua avoacute eacute remontar uma parte de sua proacutepria construccedilatildeo pessoal e portanto estaacute incluiacutedo na

procura de Alice por sua identidade separada das ordens e determinaccedilotildees de Norinha

Uma ialorixaacute me deu um papelzinho com receita de uma simpatia natildeo exatamente pra

achar filho perdido era pra juntar famiacutelia desunida Mas pode crer que ajuda se tu fizer

com feacute soacute precisa quatro quindinsonde eacute que eu iacutea achar quindins veio-me por um

instante a lembranccedila das gemas de ovo desperdiccediladas por Norinha saudade da minha

avoacute portuguesa exilada laacute no sertatildeo e de seus doces de ovos os quindins que ela

aprendeu a fazer com coco lamentando sempre natildeo poder fazer sua brisa do Lis como a

de Leiria por falta das amecircndoasescrever o pedido pocircr os quindins em cima polvilhar

accediluacutecar cristal e espetar nos doces quatro flores amarelas quatro moedas acender quatro

122

velas e deixar tudo numa praccedila olha aiacute Barbie o papelzinho ficou junto com o resto dos

que se foram acumulando na minha mochila com as costas cheias de frases copiadas de

livros (REZENDE 2014 p116-117)

A necessidade de encontrar consigo mesma estaacute pungente na personagem uma soacute palavra

que remeta a seu passado serve para as recordaccedilotildees surgirem como os lsquoquindinsrsquo que na

verdade natildeo servem como alimento e sim como parte da simpatia Eacute como se a palavra fosse

uma porta para suas lembranccedilas e uma vez aberta faz que muito seja recordado e refletido

Alice segue pela Vila Maria Degolada agrave procura de Ciacutecero e vai tendo contato com

moradores que a ajudam andando pela vila atraacutes de pistas do rapaz Durante as horas que

permanece ali a comunicaccedilatildeo entre ela e as pessoas que a recebem eacute feita em grande parte pelos

alimentos que oferecem para ela comer ou beber Alice descobre novos sabores regionais na

receita ou apenas no nome e sobretudo conhece novas pessoas ao longo do trajeto O que decide

comprar nos botecos ou aceitar nas casas como os salgados os biscoitos ou o cafeacute ralo deve-se

principalmente a satisfazer as necessidades fiacutesicas de fome e sede Mais uma vez a comida

representa a manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Entretanto surge para essa novo papel o de saciar a

necessidade de contato humano de trocas e de interaccedilatildeo social

Nem sei quantos cafeacutes ralos engoli Pra te animar vai bebe nem sei quantas cuias de

chimarratildeo recusei Natildeo sou daqui natildeo sou da Paraiacuteba na minha terra natildeo eacute costume

cheguei haacute pouco ainda natildeo aprendi a tomar Mas logo acostuma que um amargo eacute coisa

boa demais bom pra sauacutede pro estocircmago pra tudo Todos sem falhar queriam ajudar

indicavam uma rua uma viela uma direccedilatildeo onde sim havia gente de lsquolaacutersquo Sei laacute quantas

coxinhas empadas comi e paguei pelas biroscas da Vila Maria Degolada nome que eu

logo parei de usar porque percebi que natildeo era do agrado de ningueacutem ali Ia aprendendo

coisas e nomes a comer dedo-de-negro que logo domestiquei como parente de nossa

sorda cortada em tiras e groacutestolis que identifiquei como a calccedila-virada da minha avoacute

portuguesa Tudo o que me fizesse esquecer Norinha e o apartamento preto e branco me

servia bem (REZENDE 2014 p117)

A passagem pela vila na procura por Ciacutecero tinha outra funccedilatildeo primordial dentro de

Alice a de natildeo retornar para o apartamento e para a vida que lhe foi imposta Com tal propoacutesito

decide prosseguir Percebe-se capaz de fazer escolhas a seu favor quando se pergunta lsquoe agorarsquo

pois responde que voltar para o apartamento natildeo lhe atrai lsquode jeito nenhumrsquo

Jaacute passava um pouco das quatro da tarde eu tinha andado desde as sete da manhatilde

sentando-me raras vezes quando alguma mulher mais atenciosa puxava uma cadeira de

dentro de casa e me oferecia pra descansar na sombra ou em algum boteco o tempo de

comer uma empadinha ou uma cueca-virada E agora Voltar pro apartamento natildeo me

atraiacutea de jeito nenhum Por que natildeo continuar pro novo destino provisoacuterio que me

indicaram Apesar de entatildeo jaacute achar tudo aquilo bastante suspeito (REZENDE 2014

p123)

123

Prosseguindo para o Hospital de Pronto Socorro surgem trecircs cenas relevantes em que o

comer eacute expresso como satisfaccedilatildeo da fome e reestabelecimento do acircnimo na primeira Alice

percebe a fome e decide procurar o que comer na segunda come de forma tatildeo afoita as pipocas

que se engasga na terceira eacute socorrida por Zelima senhora que a ajuda reforccedilando que o

cuidado de terceiros tambeacutem tem uma funccedilatildeo quando o comer eacute representado na obra

1) Cansaccedilo absoluto e fome fincaram-me no meio do saguatildeo zonza olhando aquela

larga porta aberta pra nada Um lugar vago num dos bancos era tudo o que me restava

Ali desabei e fiquei de olhos fechados e a cabeccedila pendendo sobre o peito como tantos

outros sentados naquele natildeo lugar esperando minhas pernas pararem de tremelicar

pensando apenas nelas e na sensaccedilatildeo do meu estocircmago oco Natildeo sei quanto tempo parei

ali Lembro-me de que afinal a fome venceu abri os olhos puxei o celular da bolsa pra

ver as horas a bateria estava descarregada procurei em torno e vi um reloacutegio na parede

do saguatildeo jaacute passava das nove da noite levantei-me as pernas agora quase firmes desci

os degraus da porta ateacute a calccedilada buscando algo pra comer e o que havia no meu raio de

visatildeo era uma carrocinha de pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me

desde que horas ele estava ali se tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia

inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido

Cheguei junto dele remexendo a bolsa agrave procura de uns trocados que tivessem restado da

farra de salgadinhos e biscoitos da Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada

desde entatildeo (REZENDE 2014 p147)

2) Puxei um bolinho de notas de dois reais e umas moedas estendi-as ao homem ele

escolheu o que correspondia ao preccedilo do saco de pipocas e me entregou tudo sem

trocarmos uma palavra Escorei-me no poste junto da carrocinha e enfiei na boca de

uma soacute vez o maior punhado de pipocas que pude sem me importar com as poucas que

escaparam e foram ao chatildeo Engasguei-me a boca seca e cheia tentando segurar a tosse

pra natildeo fazer chover mais pipoca pra todo lado mas natildeo consegui as ex-professora Poacuteli

cuspiu um jorro de piruaacutes tossiu de se acabar encostada num poste de lugar nenhum o

mundo escurecendo (REZENDE 2014 p147-148)

3) Zelima sentou-se ao meu lado segurando fielmente o meio copo de aacutegua e o meio

pacotinho de pipocas e assim que me recompus devolveu-me aquele simulacro de

refeiccedilatildeo dizendo Come que tu estaacute fraca bebe o resto da aacutegua para empurrar Soacute

balancei a cabeccedila obedeci ela recolheu os invoacutelucros vazios e foi jogaacute-los numa lixeira

na calccedilada voltou e sentou-se de novo junto a mim em silecircncio (REZENDE 2014

p148-149)

O percurso tem continuidade na manhatilde seguinte quando decide encontrar uma padaria

onde encontra aleacutem da satisfaccedilatildeo da fome um ambiente onde conversa e ri sobre o

desconhecimento de termos regionais como o nome de lsquocacetinhorsquo para o patildeo francecircs Nutre-se

desse modo do alimento e do contato humano ldquoAprumei o espinhaccedilo apanhei a bolsa e saiacute

novamente com passo firme destino certo uma padariardquo (REZENDE 2014 p159) A

protagonista chega no destino esperado saciando a fome de comida e de afeto

Cafeacute com leite cacetinho na chapa e riso me puseram em quase perfeita forma por

dentro e pelos proacuteximos instantes mas restava um tanto consideraacutevel de dor no corpo e

uma vontade enorme de me deitar e dormir decentemente

124

[] Quando saiacute olhei bem o nome da padaria e da rua pra voltar quando precisasse

encontrar um conhecido amigaacutevel como se eu jaacute soubesse quantas vezes precisaria

voltar (REZENDE 2014 p161)

Alice come quando tem fome dorme quando tem sono Respeita a sobrevivecircncia em sua

procura pelo desconhecido Ciacutecero A vida eacute no espaccedilo da rua do parque das avenidas das

padarias das carrocinhas de pipoca e de cachorro-quente

Quem mais usa orelhatildeo neste mundo ocirc Alice te liga no segundo deles o fio do

telefone pendia cortado mas na mesma esquina havia uma lojinha de venda e conserto

de celulares Sim o homem podia carregar pra mim Pelo menos uma carga raacutepida de

emergecircncia ateacute tu chegar em casa soacute dois pilas senta aiacute Abanquei-me no tamborete

oferecido mas meu estocircmago natildeo queria esperar mais nem um minuto e vi pela porta

uma carrocinha de cachorro-quente do outro lado da esquina Fui laacute e voltei trazendo o

patildeo com salsicha montes de mostarda escorrendo no guardanapo de papel e o luxo de

um saquinho de batata frita uma latinha de refrigerante o tamborete agrave sombra a parede

fresca para encostar as costas Seraacute que cochilei

Paguei agradeci saiacute comprei mais um cachorro-quente da carrocinha e natildeo pensei mais

em telefonar a Elizete nem queria saber endereccedilo nenhum nem voltar pra lugar

nenhum soacute continuar agrave toa Agrave toa Que nada (REZENDE 2014 p170-171)

Alice sabe natildeo estar agrave toa volta a ser dona de suas escolhas sejam elas quais forem Vai

retomando a consciecircncia de si mesma dos referenciais de sua histoacuteria de vida das lembranccedilas

ajudam a reconstruir sua identidade como quando refere a recordaccedilatildeo de lsquoum cafeacute com leite que

ao longo da vida sempre me parecia como soluccedilatildeo para pequenas dores pequenos desconfortosrsquo

Um vento mais frio me fez fugir da sombra procurar um resto de sol com vontade de

tomar alguma coisa quente um cafeacute com leite que ao longo da vida sempre me aparecia

como soluccedilatildeo pra pequenas dores pequenos desconfortos e fui em busca de um bar

lanchonete Achei um botequinho que me serviu leite ralo com cafeacute de garrafa teacutermica

ainda havia de aprender a tomar chimarratildeo mas me bastou

Depois de confortada pela bebida morna e accedilucarada saiacute agrave toa de novo esquecida de

Ciacutecero Arauacutejo [] (REZENDE 2014 p176)

Esquecer-se de Ciacutecero Arauacutejo significa neste ponto da histoacuteria que a aproximaccedilatildeo

consigo mesma torna-se mais importante Essa retomada de si atraveacutes do conforto de uma

lsquobebida morna e accedilucaradarsquo corresponde ao respeito aos seus referenciais de memoacuteria durante a

vida Alice vai remontando dados de si peccedilas de um mosaico desordenado pela mudanccedila de vida

mas que agrave medida que segue um percurso aleatoacuterio ou lsquoagrave toarsquo passa a ser o caminho para o

contato com suas caracteriacutesticas Quanto mais retoma a si mesma menos se ocupa de Ciacutecero

Este ocupar-se de si eacute traduzido pela procura por satisfazer as funccedilotildees vitais mas tambeacutem pelos

pequenos confortos que passa a permitir-se obter como a cena que transcorre na rodoviaacuteria

125

Nesse local o lsquoprato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos colherrsquo eacute a

expressatildeo da mudanccedila da personagem ao longo da histoacuteria pois essa passa a querer saciar a fome

com uma refeiccedilatildeo digna e natildeo mais com lanches de rua O garfo e a faca nesse sentido

representam a imagem de um comer para aleacutem do aspecto de saciar a fome evocam a ideia da

comida no prato posta agrave mesa e natildeo mais agrave rua sentada em um tamborete ou em peacute Eacute

interessante observar a referecircncia que faz ao cachorro-quente paraibano como forma de remontar

suas origens na reconstruccedilatildeo que faz de si

Decerto era preciso pagar e eu tambeacutem precisava comer uma refeiccedilatildeo decente como

havia dois dias natildeo comia impossiacutevel continuar vivendo de salgadinho refrigerante e

cachorro-quente de salsicha Se pelo menos fosse o bom cachorro quente paraibano com

tudo quanto haacute um verdadeiro prato feito dentro de um patildeo muita carne moiacuteda mais a

salsicha se quisesse verdura ovo ou qualquer outra coisa ou tudo junto o que a gente

pedisse aqueles abundantes molhos vermelhos de colorau escorrendo pelos lados

alimentando ou entupindo o freguecircs davam a sensaccedilatildeo de saciedade por um bom tempo

Mas aqui natildeo Eacute um patildeo com uma salsicha e a mostarda fraco demais pra mim eu natildeo

podia mais queria um prato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos de

colher Ali devia haver de tudo mas custava dinheiro (REZENDE 2014 p184)

Ainda na rodoviaacuteria onde consegue tambeacutem tomar banho vai decidindo adotar accedilotildees de

cuidado consigo como a lembranccedila da pasta de dente Progressivamente Alice ocupa-se de

retomar as rotinas de higiene de alimentaccedilatildeo e de sono Mais uma vez menciona a refeiccedilatildeo

completa o lsquogrande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdurarsquo Haacute a

noccedilatildeo de conforto na ideia de comida servida no prato e sobretudo no termo que ela usa

lsquocomida quentinharsquo

Dei-me conta de que pouco importava eu natildeo tinha sabonete nem sabatildeo nenhum mas

me lembrei confortada da pasta de dente que restava do aviatildeo guardada na bolsa pra

depois do grande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdura o

que fosse que eu havia de comer antes de procurar um canto pra dormir (REZENDE

2014 p187-188)

Na evoluccedilatildeo da procura por uma refeiccedilatildeo decente a protagonista encontra o restaurante

de Penha tambeacutem paraibana Descobre a coincidecircncia durante o jantar enquanto ouve a

proprietaacuteria falando ao telefone A forma como recebe a refeiccedilatildeo com o cuidado de Penha em

oferecer-lhe a comida agrave mesa junto agrave constataccedilatildeo de um sotaque familiar fazem com que Alice

se sinta confortada

1) Andei um pouco procurando onde comer e achei um restaurantezinho com um

aspecto muito simples limpo uma mulher com um jeito vagamente familiar do outro

lado do balcatildeo uma oferta Prato Feito R$ 350 Ai Barbie com que apetite me sentei

126

numa das duas mesinhas em frente ao balcatildeo e pedi meu PF uma latinha de refrigerante

Esperei meu olhar desgarrado acompanhando e abandonando cada um que passava

pensei Daiacute a poucos minutos a mulher sem nada dizer com uma das matildeos desdobrou agrave

minha frente uma toalhinha azul engomada a ferro com a outra depositou meu prato

quentinho acreditei ver o vapor subindo da comida talheres limpos enrolados num

guardanapo de papel imaculado um copo impecavelmente limpo a latinha gelada e ateacute

palito que eu nunca usei nem ia usar mas me acrescentavam conforto todos aqueles

adereccedilos em torno da minha fome soacute pra mim bem sentada numa cadeira de encosto as

matildeos limpas me sentindo toda limpa apesar da roupa usada e ataquei o prato com

voracidade tentando conter-me para natildeo comer depressa demais pra aquele prazer durar

bastante (REZENDE 2014 p192)

2) Quando a outra paraibana acabou o telefonema eu me levantei com o prato jaacute vazio o

copo ainda meio cheio me encostei ao balcatildeo e entreguei a louccedila mas continuei ali

tomei mais um gole do meu refrigerante e perguntei Vocecirc eacute da Paraiacuteba natildeo eacute Ela disse

Sou sim como eacute que sabe Ouvi umas palavras matildeiacutenha painho Campinatambeacutem sou

de laacute (REZENDE 2014 p193)

3) Acordei maldormida por conta do frio mas sem dor no corpo a rodoviaacuteria jaacute se

enchendo de gente juntei meus tereacutens e fui tomar cafeacute na bodeguinha de minha

conterracircnea que agravequela hora bem cedo jaacute havia reassumido seu posto (REZENDE

2014 p194)

Alice decide retornar ao restaurante de Penha na manhatilde seguinte permitindo-se tomar o

cafeacute da manhatilde Quando refere lsquobodeguinha da minha conterracircnearsquo jaacute expressa o conforto de

sentir-se familiar agrave Penha como forma de novamente encontrar referecircncia agrave sua Paraiacuteba Assim

como em outros fragmentos jaacute referidos a comida representa natildeo apenas o aspecto vital de

nutriccedilatildeo mas tambeacutem o do contato humano que propicia a exemplo do zelo com que a

proprietaacuteria coloca a mesa para Alice

Satisfeita em suas necessidades a personagem retoma sua busca por Ciacutecero Arauacutejo

seguindo a sugestatildeo dada por Penha para que fosse ao Campo da Tuca Laacute novo aproximaccedilatildeo

com seus referenciais atraveacutes do queijo de manteiga da rapadura e da plaquinha lsquotemos carne de

solrsquo

Procurando por Ciacutecero Alice encontra partes de sua terra Reencontra a si mesma atraveacutes

do contato com conterracircneos como Penha e outros do Campo da Tuca e de alimentos de sua

regiatildeo

Fui dando a volta ao campo de futebol e dei com uma bodeguinha que me cheirou a

nordestina encostei na porta olhei percebi logo o acerto de minha intuiccedilatildeo em cima do

balcatildeo havia uma caixa de vidro com queijo de manteiga e uma pilhazinha de rapaduras

na parede do fundo um cartaz Temos carne de sol Eu natildeo via ningueacutem depois percebi

movimento num canto mais ao fundo algueacutem arrumando prateleiras chamei Por favor

ele veio na hora pra entabular conversa perguntei O senhor tem mesmo carne de sol e

ele pesaroso Acabou esta manhatilde vendi o uacuteltimo pedaccedilo quase guardei pra mim mas a

freguesa antiga amiga laacute da minha terra insistiu e vendi pra ela semana que vem chega

mais se a senhora voltar na quarta ou quinta-feira eacute de certeza que vai ter carne de sol

aqui porque o primo que me manda jaacute despachou estaacute chegando era ateacute pra ter chegado

127

ontem [] olhe tem um queijinho de manteiga de primeira esse acabou de chegar

tenho mais laacute dentro a senhora pode levar quanto quiser esse eacute do bom bota na brasa

na frigideira e fica uma beleza assado natildeo vai se arrepender leve um pedacinho do

queijo pra esperar a carne de sol assim mata a saudade (REZENDE 2014 p200-201)

Alice ouve o sotaque familiar recebe acolhimento nas famiacutelias por onde procura por

Ciacutecero Natildeo encontra pistas dele mas descobre a cada novo trecho pistas de si mesma e de suas

raiacutezes

Suelen me conduziu de casa em casa gente do sertatildeo do litoral da Vaacuterzea do Brejo da

Paraiacuteba uns tantos Ciacuteceros por certo mas nenhuma notiacutecia de Ciacutecero Arauacutejo nem nas

casas de outros Arauacutejos Comi tapioca com coco tomei cafeacute refresco de cajaacute A gente

arranja algueacutem traz e guarda no freezer sempre tem mas natildeo achei Ciacutecero

(REZENDE 2014 p204)

Ela sabe que Ciacutecero eacute um pretexto em sua procura Reconhece que seu propoacutesito principal

natildeo eacute o de encontraacute-lo mas sim o de continuar sobrevivendo pelas proacuteprias pernas tomando as

proacuteprias decisotildees Quando menciona que se forccedilava a crer sabe que sua busca era por si mesma

Salgadinhos e cachorros-quentes mastigados agraves pressas ou com exagerada lentidatildeo a

depender do interesse dos assentos disponiacuteveis ou do cansaccedilo das pernas e as andanccedilas

sem fim com objetivos mentirosos nas quais eu mesma me forccedilava a crer Ciacutecero Arauacutejo

sumindo e reaparecendo segundo seus caprichos e minhas necessidades []

(REZENDE 2014 p213-214)

Em uma nova padaria ela alimenta-se de lsquopatildeo na chapa e cafeacute com leitersquo repete o pedido

para permanecer ali por mais tempo lsquomatutandorsquo Quando refere a si mesma naquela condiccedilatildeo

como lsquoalimentada e decididarsquo mostra que sobrevivecircncia e autonomia estatildeo lado a lado eacute capaz

de cuidar de si e de tomar as proacuteprias decisotildees mesmo que sejam como a de dormir em um sofaacute

ao relento coberta com o plaacutestico-bolha

Andei mais um pouco passei por uma padaria senti fome voltei entrei patildeo na chapa e

cafeacute com leite sentei-me em uma das duas mesinhas com tamboretes pedi mais patildeo

com cafeacute e encompridei minha permanecircncia ali matutando ateacute comeccedilarem a puxar a

primeira porta de ferro Entatildeo alimentada e decidida debaixo de um ceacuteu despejado

voltei ao sofaacute que laacute me esperava deserto deitei-me em cima da bolsa os joelhos

apoiados na mochila presa pelas alccedilas agraves minhas canelas agasalhei-me com meu

plaacutestico-bolha e dormi minha primeira noite ao relento sem nada sobre a cabeccedila senatildeo

estrelas (REZENDE 2014 p217)

A frase jaacute apontada lsquoalimentada e decididarsquo mostra a ideia de que a alimentaccedilatildeo eacute

combustiacutevel de sua sobrevivecircncia e de sua capacidade de decidir por si o que fazer Cada vez

mais a protagonista da narrativa se percebe protagonista da proacutepria vida

128

No seguimento de seus dias na rua Alice encontra Arturo e Lola moradores de rua Com

eles compartilha o lugar de dormir e as refeiccedilotildees interage afeiccediloa-se com amizade Arturo a

quem ela apelida de lsquoChapeleirorsquo acorda-a para que receba dos voluntaacuterios o lanche da

madrugada

Eu dormi Barbie pela primeira vez eu dormi na rua literalmente de verdade a noite

quase toda ateacute comeccedilar a clarear laacute fora Foi o Chapeleiro que me acordou sacudindo

meu ombro com sua fala arrevesada lsquoCha bem a chente do pan y do cafeacute no perde esse

pan com cafeacute dessos pibes eacute bueno eacute quente conforta son pibes Buenosrsquo

A cada parada saltavam jovens dois rapazes e uma moccedila com copos de plaacutestico

garrafas teacutermicas e embrulhinhos de papel pardo distribuindo-os Quando chegou a

minha vez vi primeiro aacutegua quente pras cuias como a do Chapeleiro jaacute a bomba em

riste um pacotinho de erva-mate pra quem pedia e a oferta de cafeacute com leite bem

accedilucarado que eu preferi mais um cacetinho com manteiga e uma espeacutecie de mortadela

ou outro afiambrado qualquer Vou lhe dizer Barbie embora o copinho fino quase

queimasse a matildeo aquilo me pareceu um presente do ceacuteu eu quase sem dinheiro nenhum

e tatildeo longe da padaria do meu amigo pra ir pedir-lhe fiado outro cacetinho na chapa e

um cafeacute com leite (REZENDE 2014 p224)

Lola eacute personagem de grande relevacircncia na narrativa pois estabelece com Alice uma

relaccedilatildeo de amizade e de cuidado Recebe-a em sua casa mesmo com toda precariedade que esta

estrutura tem a oferecer Daacute agrave protagonista a confianccedila de poder dormir laacute quando quiser Alice

retribui compartilhando com ela as refeiccedilotildees que faz Mesmo com pouquiacutessimo dinheiro que

ainda lhe sobra ela divide com Lola a comida que consegue comprar O alimento aleacutem de nutrir

o corpo nutre a amizade funciona como instrumento de partilha e de gratidatildeo pelo acolhimento

que recebe da nova amiga A seguir trecircs fragmentos que ilustram o cuidado muacutetuo entre elas

1) Natildeo tive coragem de fazer perguntas sobre aquilo tudo preferi oferecer-lhe com um

resto de dinheiro que catei nos bolsos e na carteira um cafeacute com patildeo na padaria mais

proacutexima que ela aceitou e comeu com gosto nenhuma de noacutes duas ligando a miacutenima

pros olhares enviesados que nos cercavam Tu vem todo dia dormir aqui tu eacute direita tu

pode aprende o caminho Eu vinha sim sem duacutevida nenhuma e fomos cada uma pro

seu lado eu memorizando pontos de referecircncia pelo caminho (REZENDE 2014 p232)

2) Dormia em seu terraccedilo dividia com ela minhas parcas refeiccedilotildees lia seus livros

embolorados Ela nunca me perguntou mais nada desde o primeiro encontro em que lhe

contei e ela duvidou da minha histoacuteria de filha neto Ciacutecero e tudo mais que ouviu com

um risinho descrente (REZENDE 2014 p236)

3) Guiavam-me o amanhecer e o entardecer a chuva o frio o sol a fome que eu

resolvia com qualquer coisa natildeo mais de dez reais por dia a menor quantia que o caixa

eletrocircnico cuspia agraves vezes suficientes pra mim e pra Lola Dias e dias Nada mais na

minha aparecircncia nem de leve acho me distinguia dos outros (REZENDE 2014

p239)

Ao final da narrativa Alice narra como terminou seus quarenta dias de rua jaacute sem

dinheiro ainda encontra um modo de se alimentar vendendo os livros que comprou mendigando

129

aacutegua em bares Sua condiccedilatildeo deteriorada chega ao limite e entatildeo natildeo mais se parece apenas mas

se torna moradora de rua pela proacutepria escolha de natildeo voltar ao apartamento Natildeo eacute mais guiada

pela procura por Ciacutecero mas sim por aquela de sobreviver

Esmoreci de vez sem banho sem comida rasgada desmantelada deixei-me cair em

mais um banco indiferente aos olhares se eacute que algueacutem me via cochilei e acordei mil

vezes saiacute pra rua tocada pela fome a esmo coragem nenhuma de pedir nas portas de

remexer no lixo vendi no sebo meus livros novos de 199 pela quantia suficiente pra trecircs

cachorros-quentes bebi aacutegua de torneira mendigada em balcotildees de bares Jaacute natildeo tinha

mais nada a perder (REZENDE 2014 p244)

Quem ajuda Alice na decisatildeo de retomar sua vida de voltar a seu apartamento eacute Lola Ao

estimulaacute-la a telefonar para Elizete para pegar o endereccedilo de sua casa Lola cuida de Alice

acordando-a de madrugada e oferecendo-lhe lsquoa metade de um patildeo dormido e uns goles do seu

chimarratildeorsquo Aqui o alimento eacute para dar forccedilas agrave personagem mas eacute acima de tudo representativo

do cuidado e do carinho que se estabelece entre elas Alice reconhece

Ela afinal acreditava mais do que eu me sacudiu no lusco-fusco da madrugada Vai

sai desse buraco isso natildeo eacute pra ti tu soacute natildeo esquece da gente Obedeci sem resistecircncia

Lola me deu a metade de um patildeo dormido uns goles do seu chimarratildeo Toma pra tu

aguentar ateacute laacute levou-me a um orelhatildeo talvez o uacuteltimo que ainda funcionava telefonei

pra Elizete a cobrar tirei-a da cama na madrugada (REZENDE 2014 p245)

Quando refere lsquoobedeci sem resistecircnciarsquo natildeo se trata de uma obediecircncia passiva como

aquela que se instala com a filha no iniacutecio da narrativa eacute sim o resultado de sua quarentena a

compreensatildeo de si mesma e de suas necessidades de sobrevivecircncia que natildeo mais podem ser

satisfeitas na rua pela falta de dinheiro Alice constata que seu percurso em direccedilatildeo agrave si mesma

chega ao fim que jaacute eacute capaz de comeccedilar uma nova vida em Porto Alegre agora com o passo

firme de quem eacute capaz de decidir natildeo mais apenas sobreviver mas viver a rotina como se

apresenta A protagonista natildeo estaacute mais resignada agrave vida que lhe foi imposta mas compreende

que chegou aos proacuteprios limites e que retomou sua autonomia ldquoChega Barbie agora eu paro

mesmo jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia guria a solidariedade silenciosa mas

agora eu vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a mal taacute Natildeo digo que seja pra sempre quem

sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo a limpordquo (REZENDE 2014 p245)

Sem ponto final o paraacutegrafo mostra a caracteriacutestica da narrativa muitas vezes com frases

inacabadas Entretanto aqui a falta do ponto denota a abertura agraves possibilidades do que refere

como lsquopasso tudo a limporsquo Alice assume elementos da linguagem gauacutecha como o uso do lsquoguriarsquo

130

do lsquotursquo e do lsquotaacutersquo expressando a iniciativa pela assimilaccedilatildeo de elementos regionais em sua nova

fase depois de fazer todo o relato de sua mudanccedila de vida nas paacuteginas do diaacuterio

Em todo o percurso de sua procura por si mesma pelo resgate de sua autonomia o

alimento assume diversas conotaccedilotildees Pode-se compreender a cozinha em Quarenta dias como

um fator que marca etapas da histoacuteria de Alice desde a sopa que prepara em Joatildeo Pessoa ateacute o

patildeo dormido que recebe de Lola tanto representada pelo aspecto da comida como por aquele da

mobiacutelia dos instrumentos que satildeo parte do preparar o alimento e do comer Aleacutem disso eacute

possiacutevel transplantar a cozinha para o externo na histoacuteria como representaccedilatildeo da vida que Alice

decide tomar fora da vida que lhe foi imposta A cozinha representa a autonomia e natildeo mais a

obediecircncia agrave filha A consciecircncia do corpo por sua vez as necessidades de fome sede sono e

higiene pessoal que satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa

Cabe compreender a consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo ambas definidas por

Jaspers na procura que a protagonista faz por si mesma a partir da capacidade de tomar decisotildees

a favor do que deseja e precisa e natildeo a favor da filha Aleacutem disso relembra diversos elementos

de sua identidade a partir de referenciais de sua terra encontrados em Porto Alegre como um

sotaque familiar de Penha ou os sabores paraibanos ou mesmo na evocaccedilatildeo dos doces de sua

avoacute que os quindins da simpatia fazem-na evocar A recordaccedilatildeo do cachorro-quente paraibano

que compara com aquele soacute de patildeo e salsicha gauacutecho faz com que as memoacuterias ajudem em sua

reconstruccedilatildeo no que tange agrave consciecircncia de si A consciecircncia do corpo por sua vez pode ser lida

na iniciativa de Alice por satisfazer as necessidades de fome sede sono e higiene pessoal que

satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa

Um ponto de grande importacircncia eacute a interaccedilatildeo com outras pessoas que tambeacutem consiste

em necessidade de sobrevivecircncia Alice sai do isolamento em que passa os primeiros dias do

choque imbuiacuteda de encontrar Ciacutecero Nesta missatildeo conhece pessoas com quem conversa e

partilha mesmo que seja uma breve aproximaccedilatildeo Nutre-se dessas trocas aleacutem da nutriccedilatildeo pelo

alimento Coloca-se em situaccedilotildees em que eacute escutada em que tem sua necessidade atendida como

nas vilas que percorre na procura pelo rapaz nos botecos e restaurantes onde vai recebe o que

pede no restaurante de Penha recebe o zelo de uma mesa posta de Zelima no Pronto-Socorro

recebe cuidado e preocupaccedilatildeo

131

Atraveacutes da necessidade de sobreviver e da missatildeo de descobrir o paradeiro de Ciacutecero

Alice redescobre sua capacidade de tomar as reacutedeas da proacutepria vida que atribuiacutera agrave filha Norinha

logo que chegou em Porto Alegre

132

CONCLUSAtildeO

Italo Calvino ao se referir agrave atividade do escritor afirmou ldquoEscrevemos para tornar

possiacutevel ao mundo natildeo escrito de exprimir-se atraveacutes de noacutesrdquo (DANZI 2007 p140) O que ele

denomina lsquomundo natildeo escritorsquo eacute a proacutepria vida real percebida pelo indiviacuteduo por seus cinco

sentidos e vivenciada atraveacutes das emoccedilotildees e dos pensamentos Desse lsquomundo natildeo escritorsquo

portanto fazem parte o cozinhar e o comer o partilhar as refeiccedilotildees e seus sabores o vincular-se

aos demais entre outras vicissitudes da experiecircncia humana Atraveacutes do ofiacutecio do escritor essas

condiccedilotildees satildeo representadas no texto literaacuterio

A escolha por estudar o universo da cozinha neste contexto permite expressar diversas

perspectivas atraveacutes da literatura Silvana Ghiazza estudiosa das relaccedilotildees entre cozinha e

literatura expotildee que

O alimento enquanto signo significa portanto algo aleacutem de si mesmo media conteuacutedos

ligados ao universo cultural revela conexotildees com a realidade histoacuterico-social com o

conjunto profundo da identidade individual e coletiva constitui em suma um polo de

agregaccedilatildeo de diversas dimensotildees de humanidade torna-se uma forma de linguagem natildeo-

verbal organizando-se em paralelo a outras linguagens em um orgacircnico sistema de

sinais desta forma pode tornar-se entatildeo uma chave de leitura transversal da realidade

Ateacute daquela literaacuteria (GHIAZZA 2015 p19)

De acordo com a mesma autora ldquo[] pode-se falar de comida ou atraveacutes da comidardquo

(GHIAZZA 2015 p20 grifo nosso) No termo lsquoatraveacutesrsquo empregado por Silvana Ghiazza estatildeo

as possiacuteveis aplicaccedilotildees da cozinha na literatura em que a primeira a cozinha eacute um veiacuteculo para

que a segunda a literatura exprima na linguagem do escritor uma seacuterie de circunstacircncias dos

personagens e da trama

Mais uma vez Silvana Ghiazza colabora para a compreensatildeo do sentido da comida e sua

relaccedilatildeo com a literatura quando esclarece

A comida pode ser presente como objeto em sua concreta materialidade no interno da

representaccedilatildeo marcando a natureza realiacutestica da proacutepria estrutura narrativa pode

contribuir a delimitar as coordenadas espaccedilo-temporais fornecendo referecircncias a

produtos pratos haacutebitos de um tempo e de um territoacuterio determinado pode tambeacutem

assumir um significado metafoacuterico mediando conteuacutedos diversos e simboacutelicos A

relaccedilatildeo com o alimento em termos de sua conotaccedilatildeo identitaacuteria pode servir ao autor para

tratar o caraacuteter das personagens e pode tornar-se uma forma de comunicaccedilatildeo

interpessoal uma linguagem natildeo-verbal A comida pode ainda constituir o campo

semacircntico do qual o autor se serve para as escolhas lexicais de sua escritura

(GHIAZZA 2015 p20)

133

A expressatildeo da cozinha no texto literaacuterio serve valendo-nos da referecircncia de Italo

Calvino a que este lsquomundo natildeo escritorsquo se exprima atraveacutes do escritor A partir da leitura da

autora entende-se que esse lsquoexprimir-sersquo poderaacute ocorrer por meio de trecircs funccedilotildees principais a

denotativa a conotativa e a comunicativa Sobre a primeira denotativa Silvana Ghiazza explica

As referecircncias a produtos alimentares a pratos e a receitas assim como a rituais haacutebitos

ou eventos ligados agrave realidade gastronocircmica de um tempo preciso e de um territoacuterio

definido contribuem sem duacutevidas para dar veridicidade verossimilhanccedila agrave narrativa

marcando sua estrutura realiacutestica (GHIAZZA 2015 p24)

As trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea escolhidas para compor o corpus

desta dissertaccedilatildeo apresentam o universo da cozinha atraveacutes da funccedilatildeo denotativa nos elementos

compreendidos como espaccedilo fiacutesico material Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo as

referecircncias agraves tradiccedilotildees culinaacuterias judaicas em seus pratos receitas e praacuteticas satildeo representadas

por essa funccedilatildeo Em O arroz de Palma podemos ler em produtos como o arroz a lata de azeite

de oliva e o bacalhau a presenccedila da cultura portuguesa configurando tal funccedilatildeo em Quarenta

dias a mesma estaria representada pelas carrocinhas de pipoca e de cachorro quente pelas

padarias e comidas de botecos de rua pois satildeo elementos que datildeo verossimilhanccedila agrave estrutura

narrativa em que a personagem passa a habitar as ruas da cidade durante a sua procura

A respeito da funccedilatildeo conotativa em situaccedilatildeo oposta agrave anterior Ghiazza explicita

As referecircncias agrave esfera alimentar natildeo tecircm o escopo de marcar a verossimilhanccedila e o

realismo da obra fornecendo informaccedilotildees do tipo denotativo realistico-referencial mas

servem principalmente para tratar do caraacuteter das personagens para definir a

personalidade atraveacutes de gestos de comportamentos ou de haacutebitos ligados de algum

modo agrave produccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo e ao consumo do alimento (GHIAZZA 2015 p25)

Podemos na funccedilatildeo conotativa mencionar em O arroz de Palma a preparaccedilatildeo do arroz

por Antonio enquanto narra a histoacuteria bem como o papel do arroz na trama considerando seu

caraacuteter simboacutelico como fertilizador da famiacutelia e como elemento presenteado por Palma e Joseacute

Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento Em Por que sou gorda mamatildee a funccedilatildeo

conotativa seria representada pela relaccedilatildeo das personagens com o comer jaacute que tanto no caso da

protagonista como no de sua matildee e no da Voacute Magra tal relaccedilatildeo eacute caracteriacutestica da personalidade

das mesmas entre outros exemplos Em Quarenta dias as escolhas alimentares de Alice satildeo

comportamentos associados agrave sua decisatildeo de permanecer na rua natildeo voltando para casa bem

como de seu desejo por autonomia Na mesma obra tanto o restaurante da conterracircnea Penha

134

quanto ingredientes e comidas da Paraiacuteba com os quais a protagonista tem contato em seus

percursos marcam a ligaccedilatildeo afetiva que ela manteacutem com sua terra natal

Outra das funccedilotildees que Silvana Ghiazza refere eacute a comunicativa relacionada ao papel da

cozinha na comunicaccedilatildeo entre as personagens de uma trama como por exemplo a funccedilatildeo da

comida no compartilhar a mesa

Ainda um outro significado que a comida pode assumir eacute ligado agrave convivialidade agrave sua

funccedilatildeo de meio de comunicaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Desde sempre dividir o alimento

foi de forma diversa mas em todas as sociedades ocasiatildeo para comunicar E esse eacute um

dado verificaacutevel na vida de cada dia em que se espera que o momento da divisatildeo do

alimento seja tambeacutem momento de divisatildeo de pensamentos e de afetos de

aprofundamento do conhecer reciacuteproco Na mesa se fala o eu torna-se noacutes

Tambeacutem na literatura esta realidade ocupa um lugar notaacutevel e as referecircncias agrave comida

desempenham uma funccedilatildeo comunicativa na medida em que oferecem o suporte para

uma troca relacional entre as personagens o alimento e mais em termos gerais as

praacuteticas alimentares podem transformar-se de fato em uma verdadeira linguagem natildeo-

verbal capaz de comunicar mensagens sem a necessidade de palavras [] A comida

torna-se a forma privilegiada de linguagem natildeo-verbal para comunicar o sentimento de

amor em todas as suas formas (GHIAZZA 2015 p26-27)

Nas trecircs obras do corpus encontramos a funccedilatildeo comunicativa quando a comida bem

como as representaccedilotildees da cozinha como espaccedilo fiacutesico satildeo elos de convivecircncia entre as

personagens Palma colhe o arroz da pedra para presenteaacute-lo ao irmatildeo e agrave cunhada e o mesmo

seraacute elemento de ligaccedilatildeo entre a famiacutelia assumindo o arroz o nuacutecleo da trama Antonio durante a

narrativa prepara o que restou do ingrediente para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo de cem anos do

casamento dos pais e do proacuteprio arroz em O arroz de Palma Ateacute mesmo na expressatildeo do amor

fiacutesico o arroz eacute o elemento comunicativo na cena em que Antonio e Isabel inauguram sua

intimidade fiacutesica derramando sobre seus corpos o arroz Em Por que sou gorda mamatildee a Voacute

Magra oferece doces tiacutepicos aos netos em sua sacola de crocheacute enquanto a matildee da protagonista

compartilha com os filhos os doces e o refrigerante dentro do carro na viagem da famiacutelia ao

Uruguai

Assim a representaccedilatildeo da cozinha pode se exprimir no texto literaacuterio como espaccedilo fiacutesico

e simboacutelico termos escolhidos para o presente trabalho ou atraveacutes de suas funccedilotildees denotativa

conotativa e comunicativa conforme Silvana Ghiazza As trecircs obras do corpus tecircm o objetivo de

propor a reflexatildeo sobre as linguagens que a cozinha pode assumir no texto literaacuterio

especificamente no contexto da literatura brasileira contemporacircnea Nossa escolha por estudar o

referido tema decorreu tambeacutem da funccedilatildeo cultural que a cozinha assume na sociedade atraveacutes

dos tempos Rita Rutigliano explica que

135

Desde sempre os escritores utilizam a comida e o comer tambeacutem para falar de outra

coisa As paacuteginas dos livros se sabe portam um patrimocircnio de signos reveladores de

vivecircncias e de sentimentos humanos Nos eacute possiacutevel colher indiacutecios preciosos atraveacutes de

descriccedilotildees dos rituais alimentares (e ateacute mesmo do jejum) que- cobrindo o arco inteiro

entre dois polos- a comida como necessidade de base e como um aspecto da paixatildeo pela

vida-podem se tornar invenccedilatildeo jogo poesia religiatildeo histoacuteria barocircmetro das

experiecircncias pessoais e coletivas metaacutefora social e poliacutetica Em uma palavra cultura

(RUTIGLIANO 2000 p11)

A respeito do papel desempenhado pela cozinha na cultura salientado por Rita

Rutigliano podemos acrescentar o fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo lsquoLa cultura em la

cocinarsquo cujo conselho editorial eacute composto por Marcelo Aacutelvarez Jesuacutes Contreras e Rosaacuterio

Olivas O referido fragmento aparece publicado em um dos livros da coleccedilatildeo pela editora

Catalonia del Nuevo Extremo

A cozinha natildeo eacute soacute um procedimento teacutecnico que permite que os produtos alimentiacutecios

se transformem em pratos e em receitas eacute acima de tudo uma linguagem em que se

expressa a cultura humana Os gostos a esteacutetica as combinaccedilotildees de sabores os

condimentos preferidos e as maneiras agrave mesa satildeo gestos sociais que se relacionam com a

histoacuteria e com a transmissatildeo dos siacutembolos que distinguem uma comunidade da outra

(SARDE MONTECINO 2014)

O fato eacute que das mais diversas formas dentro do referido contexto cultural o universo

culinaacuterio pode ser traduzido na literatura como um fenocircmeno da natureza humana O cozinhar

nos fez humanos A propoacutesito disso Eloisa Palafox refere que as capacidades de cozinhar os

alimentos e de contar histoacuterias distinguem o homo sapiens ambas compotildeem parte primordial de

nossa evoluccedilatildeo A semelhanccedila entre tais praacuteticas estaacute tambeacutem no fato de que permitem a

socializaccedilatildeo entre os indiviacuteduos e a partilha da comida e das histoacuterias Para Michael Pollan

Somos a uacutenica espeacutecie que depende do fogo para manter o corpo aquecido e a uacutenica

espeacutecie que natildeo pode passar sem cozinhar sua comida A esta altura o controle do fogo

jaacute estaacute inscrito nos nossos genes uma questatildeo natildeo mais associada apenas agrave cultura

humana mas sim agrave nossa biologia (POLLAN 2014 p109)

A relaccedilatildeo com o cozinhar vai aleacutem do preparo do alimento no fogo para ingestatildeo Esse eacute

sem duacutevidas o que manteacutem nossa sobrevivecircncia bioloacutegica mas haacute outra habilidade que

aprendemos como espeacutecie graccedilas tambeacutem ao fogo a interaccedilatildeo com os demais que Silvana

Ghiazza relaciona com a funccedilatildeo comunicativa que a cozinha pode ter no texto literaacuterio Pollan

acrescenta agrave exposiccedilatildeo acima a relevacircncia dessa aquisiccedilatildeo em nosso desenvolvimento

136

Sobretudo o fogo que usamos para cozinhar como o que vigio na churrasqueira do meu

quintal tambeacutem ajudou a nos formar como seres sociais lsquoA forccedila do magnetismo social

exercido pelo fogorsquo como diz o historiador Felipe Fernaacutendez-Armesto eacute o que nos

manteacutem juntos e ao fazer isso ele provavelmente mudou o curso da evoluccedilatildeo humana O

fogo usado para cozinhar promoveu a seleccedilatildeo de indiviacuteduos capazes de tolerar outros

indiviacuteduos- fazer contato visual cooperar e compartilhar lsquoQuando o fogo se combinou agrave

comidarsquo escreveu Fernaacutendez-Armesto lsquoum foco quase irresistiacutevel foi criado para a vida

comunalrsquo (na verdade lsquofocorsquo vem da palavra latina focus para lareira braseiro chama)

A forccedila da gravidade social exercida pelo fogo natildeo parece ter diminuiacutedo [] (POLLAN

2014 p109)

Assim somos seres bioloacutegicos e sociais atributos que devemos ao ato de cozinhar A

nossa biologia nos confere o comer pela fome e pelo prazer Esse elemento por sua vez eacute

necessaacuterio para promover a continuidade da sobrevivecircncia individual da mesma forma que o

prazer sexual eacute o estiacutemulo para a preservaccedilatildeo do humano como espeacutecie Cozinhar comer

alimentos cozidos que nos deem nutriccedilatildeo e sensaccedilotildees prazerosas e nos reunirmos com nossos

semelhantes satildeo atributos evolutivos que promoveram a chegada ao seacuteculo XXI

A reuniatildeo com as pessoas proacuteximas resultado do fogo como elemento agregador para

cozinhar os alimentos tornou-nos em termos evolucionaacuterios seres sociais Sendo assim

partilhamos vivecircncias com outros e essas nos propiciam a noccedilatildeo de pertencimento a um grupo

Temos a partir disso a noccedilatildeo de uma identidade singular e plural Somos parte de algo e

acumulamos percepccedilotildees experiecircncias e sentimentos em comum forma-se a memoacuteria coletiva A

memoacuteria individual de modo diverso eacute parte do aparato anatocircmico e fisioloacutegico dos seres

humanos Essa se desenvolve agrave medida que se forma o neocoacutertex ceacuterebro exclusivamente nosso

cooperando com a consciecircncia de noacutes mesmos e entatildeo com a construccedilatildeo da identidade

individual E porque somos capazes de reter informaccedilotildees de arquivaacute-las e de evocaacute-las em

acircmbito individual somos tambeacutem capazes de fazecirc-lo coletivamente ao compormos um grupo

seja uma famiacutelia ou um povo

Uma das principais caracteriacutesticas da memoacuteria na esfera familiar satildeo as histoacuterias que

atravessam geraccedilotildees por serem contadas desde os antepassados Entre essas eacute vaacutelido incluirmos

tambeacutem as receitas de cozinha pois narram o como-se-faz de um prato atraveacutes dos tempos por

parentes de sangue ou de criaccedilatildeo Entre tais histoacuterias podemos tambeacutem referir o papel de um

determinado ingrediente na formaccedilatildeo de uma memoacuteria de famiacutelia como eacute o exemplo em O arroz

de Palma

A memoacuteria individual por sua vez eacute porccedilatildeo imprescindiacutevel de nossa identidade e da

consciecircncia que temos sobre quem somos ela compotildee junto aos demais elementos nossa

137

capacidade de autonomia Jaspers aponta para a impossibilidade de uma independecircncia total em

relaccedilatildeo a outras pessoas pois precisamos das interaccedilotildees de afeto e de trocas com nossos

semelhantes Temos tambeacutem necessidade uns dos outros por aspectos praacuteticos de sobrevivecircncia

indiviacuteduos que plantem que colham que pesquem que vendam que comprem que cozinhem

que consumam e que faccedilam esse ciacuterculo perpetuar-se Seguiremos cozinhando uns para os outros

pelo simples fato de que precisamos comer E partilhar Esse eacute o ponto em Quarenta dias

A protagonista depende de quem prepare o alimento para ela seja o anocircnimo na

carrocinha de cachorro quente na rua seja na mesa posta com esmero que recebe no restaurante

da rodoviaacuteria pela conterracircnea Penha Paradoxalmente o fato de receber do outro a comida eacute o

substrato da retomada de sua autonomia jaacute que a decisatildeo do que comer eacute da proacutepria Alice Nesse

caso o cozinhar tece as interaccedilotildees entre os sujeitos

Os elementos escolhidos para estudo satildeo resultado de nossa capacidade de pensar de

sentir emoccedilotildees de perceber os estiacutemulos externos atraveacutes dos cinco sentidos e de interpretaacute-los

de acordo com a consciecircncia do corpo e de noacutes mesmos A bagagem individual e cultural

fornecida pela memoacuteria faz com que possamos sentir prazer ao saborear uma receita de famiacutelia

porque ela nos faz lembrar de uma avoacute ou de uma tia como ocorre com Antonio ao ler aquela

escrita por Palma em seu caderno Escolhemos o que comer exercendo nossa autonomia

conforme as preferecircncias alimentares que nos identificam considerando a cultura do territoacuterio

onde vivemos Compreende-se entatildeo que os atributos definidos para este trabalho natildeo ocupam

compartimentos estanques mas estatildeo inexoravelmente interligados em noacutes

Pollan reflete sobre a contribuiccedilatildeo de Levi-Strauss nesse aspecto

Segundo Levi-Strauss a distinccedilatildeo entre lsquoo crursquo e lsquoo cozidorsquo serviu a muitas culturas

como a grande alegoria para estabelecer a diferenccedila entre animais e pessoas Em lsquoO cru

e o cozidorsquo ele escreveu lsquocozinhar natildeo apenas marca a transiccedilatildeo da natureza para a

cultura mas por meio dessa accedilatildeo e com a sua ajuda a condiccedilatildeo humana pode ser

definida com todos os seus atributosrsquo Cozinhar transforma a natureza e ao fazer isso

nos eleva acima desse estado tornando-nos humanos (POLLAN 2014 p57)

Na presente dissertaccedilatildeo partiu-se da proposta de estudar a memoacuteria ligada agrave cozinha em

O arroz de Palma o prazer vinculado ao comer em Por que sou gorda mamatildee e a autonomia

associada ao escolher o alimento a partir da percepccedilatildeo da fome em Quarenta dias Essa

separaccedilatildeo se deveu agrave predominacircncia desses atributos em cada uma das obras natildeo os excluindo

138

das demais Como jaacute exposto haacute uma interligaccedilatildeo entre esses em cada um de noacutes Eacute possiacutevel

encontrar nas trecircs narrativas expressotildees dessa conexatildeo

Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo muito se pode refletir sobre as lembranccedilas

da proacutepria narradora-personagem e de sua famiacutelia ou sobre sua autonomia ao decidir pelo que

come Em Quarenta dias a protagonista recorre agrave memoacuteria de sabores e de vivecircncias ao

escrever em seu caderno a retrospectiva de suas andanccedilas aleacutem disso apesar de sua fome ser o

determinante na escolha do que comer Alice sente prazer com a refeiccedilatildeo quentinha e posta na

mesa com esmero no restaurante da rodoviaacuteria ou com o lanche servido na padaria Em O arroz

de Palma os atributos tambeacutem estatildeo entremeados mesmo com o predomiacutenio da memoacuteria para o

estudo dessa obra haacute presenccedila do prazer e da autonomia ao longo das lembranccedilas de Antonio

Um ponto de semelhanccedila entre as trecircs obras eacute o fato de apresentarem todas um narrador-

personagem que protagoniza as vivecircncias A cozinha eacute portanto contada em primeira pessoa

espaccedilo vivencial do narrador A opccedilatildeo por um eu ficcional para narrar as histoacuterias natildeo eacute ao acaso

sendo a cozinha um espaccedilo de tamanha relevacircncia para nossa vida de tanto apelo ao imaginaacuterio e

agraves lembranccedilas nos campos individual e coletivo eacute bem apropriado que quem conte seja a

personagem que a vivenciou atraveacutes das proacuteprias experiecircncias ou da memoacuteria familiar A tal

propoacutesito outro elemento que aproxima as trecircs obras eacute a presenccedila da famiacutelia das personagens

que ocupa posiccedilatildeo relevante na relaccedilatildeo que os protagonistas assumem com a cozinha

Nas trecircs narrativas o narrador-personagem fala de suas emoccedilotildees e vivecircncias e por vezes

fala da famiacutelia e das histoacuterias e lembranccedilas que representam a raiz de muitas experiecircncias com a

cozinha e com o comer A famiacutelia nesse contexto representa o coletivo que eacute apresentado junto

ao individual o sentir e pensar do proacuteprio narrador No livro Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e

Doccediluras essa coexistecircncia entre o singular e o plural eacute um dos elementos abordados em relaccedilatildeo

ao papel da cozinha conforme expresso no trecho abaixo

O ato culinaacuterio eacute ao mesmo tempo uma experiecircncia individual e coletiva uma

oportunidade de autoconhecimento de entrega a mim mesma e simultaneamente de

partilha de doaccedilatildeo de expressatildeo de afetos positivos [hellip] Sobretudo o ato culinaacuterio

representa uma das circunstacircncias mais propiacutecias para experimentar singular e plural

para nos aproximar de noacutes mesmos e daqueles a quem admiramos amamos e que satildeo

parte da nossa histoacuteria (CARDOSO 2012 p13)

139

O termo lsquoato culinaacuteriorsquo refere-se natildeo apenas ao cozinhar mas a toda gama de

comportamentos ligados agrave cozinha como dividir uma refeiccedilatildeo receber doces ou oferecer uma

comida aos demais colocar a mesa e tantas outras possibilidades

A diferenccedila entre as trecircs obras eacute o espaccedilo que a cozinha representa em cada uma Em O

arroz de Palma Antonio faz a narrativa a partir de sua cozinha enquanto prepara o almoccedilo de

celebraccedilatildeo dos cem anos de casamento de seus pais e do saco de estopa com o arroz como

presente aos noivos A cozinha nesse caso eacute apresentada atraveacutes do espaccedilo fiacutesico mas tambeacutem

do ingrediente-protagonista o arroz por outros elementos materiais como os guardanapos da

matildee de Isabel e o caderno de receitas de Antonio e por aqueles imateriais a exemplo da memoacuteria

associada ao cozinhar e das comparaccedilotildees dos pratos culinaacuterios com os estilos de famiacutelias Em

Por que sou gorda mamatildee a cozinha aparece ora como ingredientes ora como espaccedilo fiacutesico

ora como comidas ora como emoccedilotildees revelando histoacuterias da protagonista e de seus antepassados

de origem judaica Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como espaccedilo fiacutesico no novo

apartamento e na vida da protagonista em Joatildeo Pessoa antes da mudanccedila e passa a ser expressa

ao longo da obra pelos bares estabelecimentos e lsquocarrinhosrsquo pelos quais ela passa tambeacutem

representativos do espaccedilo fiacutesico Aleacutem disso a cozinha aparece como espaccedilo simboacutelico de

sobrevivecircncia nessa narrativa essa representaccedilatildeo eacute feita atraveacutes das comidas que Alice escolhe

enquanto anda pelas ruas Deste modo as trecircs obras contemplam ambos os espaccedilos referidos no

propoacutesito desse trabalho

Nas obras a cozinha eacute descrita como espaccedilo fiacutesico - tanto como peccedila da casa quanto

atraveacutes dos eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios ou seja em sua existecircncia material- e como

espaccedilo simboacutelico traduzindo lembranccedilas emoccedilotildees e comportamentos representando o ritual

implicado no cozinhar e comunicando os integrantes de uma famiacutelia

Em relaccedilatildeo ao elemento material da cozinha destaco em O arroz de Palma a cozinha de

onde Antonio narra suas lembranccedilas a panela em que ele prepara o arroz a taacutebua na qual corta os

temperos seu caderno de receitas onde estaacute aquela escrita por Palma os guardanapos da matildee de

Isabel a lata de azeite de Oliva e o mais significativo de todos o proacuteprio arroz presenteado a

Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento A expressatildeo material estaacute presente sobretudo

no espaccedilo fiacutesico e nos elementos citados embora haja menccedilatildeo a comidas como o arroz de

bacalhau preparado para aproximar as famiacutelias a fim de comeccedilar o namoro com Isabel

140

Em Por que sou gorda mamatildee haacute referecircncias agraves comidas e doces judaicos como

aqueles na sacola de crocheacute da Voacute Magra Aleacutem disso em vaacuterias passagens se lecirc descriccedilotildees como

aquela em que os moradores do bairro preparam pratos a partir dos ingredientes nas cozinhas de

suas casas com detalhamento dos atos culinaacuterios e dos instrumentos utilizados Uma das cenas

mais consistentes em demonstrar a cozinha como espaccedilo fiacutesico eacute quando a Voacute Magra prepara os

bifes para a protagonista ali essa representaccedilatildeo natildeo apenas estaacute na cozinha mas tambeacutem nos

utensiacutelios e ingredientes como o oacuteleo que ela usa para o preparo da carne Nessa obra a

predominacircncia da perspectiva material estaacute principalmente nas comidas Outro exemplo eacute a cena

em que a matildee se deleita com os filhos na viagem ao Uruguai comendo doces e refrigerante ou

quando essa faz uma farta refeiccedilatildeo antes do cateterismo e outra depois de sair do hospital Esses

satildeo alguns exemplos da expressatildeo fiacutesica que a cozinha assume na obra de Cintia Moscovich

Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como peccedila da casa de Joatildeo Pessoa e de Porto

Alegre sendo essa uacuteltima expressa com detalhes quanto a eletrodomeacutesticos armaacuterios mesa e

utensiacutelios No periacuteodo em que Alice estaacute na rua o aspecto material da cozinha eacute manifestado

pelas carrocinhas de pipoca e cachorro quente pelos botecos e padarias e pelos alimentos Esses

predominam na narrativa como expressatildeo do espaccedilo fiacutesico ocupado pela cozinha

Quanto ao aspecto simboacutelico representado ressalta-se que ao cozinhar e ao comer

estamos praticando rituais Mircea Eliade na obra jaacute referida nessa dissertaccedilatildeo expotildee que ldquo[]

a principal funccedilatildeo do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e

atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a

educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 2011 p13)

A alimentaccedilatildeo como ritual estaacute presente nas trecircs obras de formas diversas Em O arroz de

Palma estaacute na colheita do arroz na pedra pela Tia Palma bem como na oferta desse aos noivos

como presente de casamento estaacute tambeacutem na canja que ela faz ao irmatildeo com esse mesmo

arroz para que os gratildeos o fertilizem e no almoccedilo em que ela e Maria Romana preparam o arroz

de bacalhau para a integraccedilatildeo das famiacutelias Estaacute tambeacutem em outros pontos da narrativa como no

ponto em que Antonio e Isabel recebem o arroz em seu casamento e quando levam um punhado

desse para sua comunhatildeo fiacutesica no lago

Nessa obra os trecircs exemplos que melhor ilustram a presenccedila do ritual satildeo o ato de

cozinhar que permeia toda a histoacuteria pois enquanto o protagonista prepara o arroz evoca

lembranccedilas e as mistura com imaginaccedilotildees e pensamentos a leitura da receita dedicada a ele em

141

seu caderno de receitas por Palma com recitaccedilotildees a serem praticadas durante o preparo da

comida Por fim a reuniatildeo da famiacutelia nas mesas para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo dos cem anos

do casamento dos pais e do presente do arroz em que haacute dois pontos que aludem ao ritual Tanto

a reuniatildeo da famiacutelia para comer eacute ritualiacutestica quanto tambeacutem o fato de se tratar de uma

comemoraccedilatildeo como foi visto na referecircncia que Ricoeur faz ao elemento mundanidade do par

reflexividademundanidade em sua fenomenologia da memoacuteria

Em Por que sou gorda mamatildee o componente do ritual estaacute principalmente associado ao

comer e ao partilhar o alimento e menos ao cozinhar A oferta de doces na sacola de crocheacute que

a Voacute Magra faz aos netos eacute um dos exemplos dessa partilha assim como a menccedilatildeo que a

protagonista faz agraves refeiccedilotildees agrave mesa em famiacutelia Haacute o aspecto ritual nos doces oferecidos pois

satildeo de origem judaica e ilustram sabores ancestrais dessa cultura

Em Quarenta dias o ritual estaacute presente tambeacutem no comer e em muitos casos nas ofertas

de alimento que Alice recebe em seu percurso pelas vilas Como jaacute mencionado a mesa posta no

restaurante da rodoviaacuteria eacute parte do ritual da alimentaccedilatildeo e a partilha dos lanches entre Alice e

Lola representa a integraccedilatildeo dos indiviacuteduos que compartilham as refeiccedilotildees

Em um periacuteodo da histoacuteria da humanidade em que estamos prestando mais atenccedilatildeo na

gastronomia como espetaacuteculo midiaacutetico essas trecircs narrativas apontam para um retorno da

cozinha como contexto de afeto de memoacuteria de tradiccedilatildeo de construccedilatildeo de significados Michael

Pollan em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo reitera

Estamos falando mais sobre culinaacuteria- e assistindo a programas de culinaacuteria lendo sobre

o assunto e indo a restaurantes onde podemos observar o preparo da comida em tempo

real Vivemos numa era em que cozinheiros profissionais se tornaram celebridades

alguns deles tatildeo famosos quanto atletas ou estrelas de cinema A mesma atividade que

muitas pessoas encaram como um trabalho enfadonho acabou sendo de alguma forma

elevada agrave categoria de esporte popular com puacuteblico proacuteprio [hellip] Por algum motivo

cozinhar eacute diferente O trabalho ou o processo carrega uma forccedila emocional ou

psicoloacutegica da qual natildeo podemos-ou natildeo queremos- nos livrar (POLLAN 2014 p11)

Nas trecircs narrativas lecirc-se o cozinhar cumprindo os propoacutesitos ancestrais que o homem

aprendeu com o domiacutenio do fogo nutrir e agregar No mundo real que Italo Calvino chamou de

lsquomundo natildeo escritorsquo a cozinha promove essas vivecircncias pela transformaccedilatildeo do alimento e pelo

viacutenculo com os outros indiviacuteduos atraveacutes da comida preparada Nas obras escolhidas para o

corpus os espaccedilos fiacutesico e simboacutelico da cozinha tornam-se parte do mundo escrito exprimindo-

se atraveacutes do ofiacutecio de seus autores Reafirma-se assim a perspectiva de Italo Calvino

142

REFEREcircNCIAS

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JASPERS Karl Parte prima psicologia dele prestazioni In ______ Psicopatologia generale

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JASPERS Karl Parte seconda relazioni comprensibili In ______ Psicopatologia generale 7

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2014

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letterari collana cibo di carta Santhiagrave GS Editrice 2000 p 10-15 Traduccedilatildeo nossa

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y biografia (1950-1987) Buenos Aires Editorial del Nuevo Extremo 2014 (Colecioacuten La cultura

en la cocina) Fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo Traduccedilatildeo nossa

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York Columbia University Press 2012 Traduccedilatildeo nossa

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Buenos Aires Ediciones B Argenina SA 2016 p 113 Traduccedilatildeo nossa

TOAFF A Cozinha judaica cozinhas judaicas In MONTANARI Massimo (Org) O mundo

na cozinha histoacuteria identidade trocas Satildeo Paulo Senac 2009 p 179-194

Page 4: 0 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ... · Às receitas de quitutes, de doces, de refeições, escritas a mão em cadernos familiares, ou colhidas da Internet

0

BETINA MARIANTE CARDOSO

Agrave MODA DA CASA

A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE

SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS

Dissertaccedilatildeo apresentada como preacute-requisito para

obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teoria da

Literatura pela Faculdade de Letras da Pontifiacutecia

Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul

Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira

Aprovada em 01 de dezembro de 2016

BANCA EXAMINADORA

Profa Dra Luciana Abreu Jardim

Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena

Profa Dra Maria Eunice Moreira

Porto Alegre

1o de dezembro de 2016

1

Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda pelos infinitos legados

que constituem meu gosto pela literatura pela cozinha e por sua interface

O som das teclas da maacutequina de escrever do Vocirc Heacutelio o perfume do panelatildeo de chimia de uva

Isabel da Voacute Leacuteia o brilho de sol nos vidros de ambrosia da Voacute Alda

ingredientes da minha escrita e do meu cozinhar

2

AGRADECIMENTOS

Agrave Profa Dra Maria Eunice Moreira pela proposta do tema que me encanta a interface

entre Literatura e Cozinha e seus diaacutelogos com outras aacutereas por todos os ensinamentos nas

disciplinas do Mestrado e na orientaccedilatildeo da escrita da Dissertaccedilatildeo pelo incentivo e pela confianccedila

durante toda a trajetoacuteria

Ao Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena pelo despertar da curiosidade e do gosto pela

literatura brasileira contemporacircnea pela confianccedila e entusiasmo e pela riqueza das sugestotildees

apontadas na Banca de Qualificaccedilatildeo de Mestrado

Agrave Profa Dra Luciana Abreu Jardim pelos ensinamentos transmitidos durante o mini-

curso que ministrou em Caxias do Sul em 2015 intitulado ldquoSobre o pensamento de Julia

Kristeva a experiecircncia-revolta atraveacutes dos cruzamentos de sentidosrdquo de grande relevacircncia para a

construccedilatildeo de minha bagagem adquirida durante o Mestrado

Agrave Profa Dra Leacutea Masina pelos meus dez anos de aprendizado nos seminaacuterios de escrita

literaacuteria por seu papel fundamental no amadurecimento do meu gosto por escrever e pelo carinho

com que conduz o processo de descobertas na literatura

Aos meus pais Ana Cristina e Apolinaacuterio e ao meu irmatildeo Diego pelo estiacutemulo aos meus

percursos e pelo incentivo para que eu sempre abrisse janelas aos horizontes possiacuteveis

Aos amigos de toda a vida Melissa Sharlene e Jaime pela amizade incondicional e pelo

apoio conversas e risadas durante o periacuteodo de escrita da Dissertaccedilatildeo

Ao Marcelo pela partilha dos prazeres da mesa com afeto muitos risos e boa prosa e

pelo estiacutemulo e sugestotildees nos desafios durante os momentos especiais do nosso conviacutevio

3

Aos autores das obras que compotildeem o corpus da Dissertaccedilatildeo Francisco Azevedo Ciacutentia

Moscovich e Maria Valeacuteria Rezende A partir de O arroz de Palma Por que sou gorda mamatildee

e Quarenta dias foi possiacutevel realizar o presente estudo

Agrave bibliotecaacuteria Clarissa Selbach pela disponibilidade e pela excelecircncia durante todo o

percurso da Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Aos meus sobrinhos Eacuterico e Lucas por me permitirem voltar a ser crianccedila em nossas

brincadeiras e por participarem do fazer culinaacuterio com alegria de festa

Agrave Tacircnia pelo afeto e pela celebraccedilatildeo de sempre

Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda a quem dedico essa

Dissertaccedilatildeo

4

ldquoFamiacutelia eacute afinidade eacute lsquoagrave moda da casarsquo

E cada casa gosta de preparar a famiacutelia a seu jeitordquo

(AZEVEDO 2008)

5

RESUMO

A presente dissertaccedilatildeo de Mestrado visa analisar a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico no

contexto de trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco

Azevedo (2008) Por que sou gorda mamatildee de Cintia Moscovich (2006) e Quarenta dias de

Maria Valeria Rezende (2014) No estudo de cada obra eacute estabelecida a relaccedilatildeo entre a cozinha e

um dos trecircs seguintes paradigmas respectivamente memoacuteria prazer e autonomia Assim o

trabalho eacute composto por trecircs capiacutetulos intitulados ldquoCozinha e memoacuteriardquo ldquoCozinha e prazerrdquo

ldquoCozinha e autonomiardquo O propoacutesito eacute compreender de que forma a cozinha eacute apresentada nas

narrativas do corpus no contexto dos temas escolhidos Elementos da fenomenologia

psiquiaacutetrica da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo satildeo apresentados em diaacutelogo com a

literatura brasileira contemporacircnea

Palavras-chave Literatura brasileira contemporacircnea Cozinha Comida

6

ABSTRACT

This dissertation aims to analyze the kitchen as a physical and symbolic space within the context

of three works of contemporary Brazilian literature Francisco Azevedorsquos O arroz de Palma

(2008) Cintia Moscovichrsquos Por que sou gorda mamatildee (2006) and Maria Valeria Rezendersquos

Quarenta dias (2014) In each work kitchen is related to one of the following three paradigms

respectively memory pleasure and autonomy Thus this study consists of three chapters entitled

Kitchen and Memory Kitchen and Pleasure and Kitchen and Autonomy Our goal is to

understand how the kitchen is described in the narratives of the corpus in the context of the

selected topics Elements of psychiatric phenomenology sociology and food history are

presented in connection with contemporary Brazilian literature

Keywords Contemporary Brazilian literature Kitchen Food

7

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 10

1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA 15

11 O ARROZ DE PALMA 15

12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA 19

13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO 34

14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA 42

2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57

21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57

22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL 60

23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA 66

24 O PRAZER DA COMIDA 74

3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS 92

31 QUARENTA DIAS 92

32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS 97

33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA 105

34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI 111

CONCLUSAtildeO 132

REFEREcircNCIAS 142

10

INTRODUCcedilAtildeO

O ato de cozinhar eacute parte ancestral da nossa existecircncia como seres humanos Desde os

tempos primitivos o homem transforma o ingrediente cru em alimento cozido Comemos por

necessidade nutricional mas tambeacutem por outros motivos comemos para sentir prazer com um

bom prato para socializarmos partilhando esse prazer com outras pessoas para evocarmos

lembranccedilas de famiacutelia e as nossas proacuteprias com sabores que fazem parte de nossa bagagem

emotiva Escolhemos o que comer aprendemos a gostar mais desse ou daquele doce somos

conhecidos pelo quitute que preparamos para os amigos Adoramos canela mas detestamos

alecrim A cozinha faz parte da construccedilatildeo de nossa identidade e da memoacuteria que vamos

formando a partir das experiecircncias vivenciadas sozinhos ou em grupo

Um ponto de extrema relevacircncia eacute o fato de que a comida supre as demandas orgacircnicas

manteacutem-nos com energia para enfrentar a rotina e sustenta a sauacutede razotildees pelas quais eacute parte de

nossa autonomia Recebemos o leite materno quando somos ainda dependentes do peito da matildee

a seguir os pais nos alimentam com novos sabores ateacute que passamos a aprender a gostar de

modo individual disso ou daquilo E aprendemos a natildeo gostar daquele guisado de aboacutebora do

almoccedilo ou da salada de cenoura beterraba alface e tomate - que devemos comer porque faz bem

e ponto As escolhas alimentares tornam-se parte de nossa capacidade de dirigirmos nosso Eu e

de compormos nossas preferecircncias Assim natildeo seria exagero referir que tais escolhas nos

identificam pois satildeo um pedaccedilo de quem nos tornamos como indiviacuteduos e como famiacutelia O

alimento torna-se uma fatia das histoacuterias que vivemos e das emoccedilotildees que sentimos

Haacute um aspecto a ser questionado a que nos referimos quando falamos em cozinha Ao

espaccedilo fiacutesico que essa ocupa na casa onde estatildeo o forno e o fogatildeo o refrigerador a pia Aos

utensiacutelios como talheres e pratos panelas eletrodomeacutesticos peneira travessas e assim por

diante Aos ingredientes em parte mantidos na despensa enquanto outros devem permanecer

refrigerados Agraves receitas de quitutes de doces de refeiccedilotildees escritas a matildeo em cadernos

familiares ou colhidas da Internet ou copiadas no programa televisivo de famosos chefs Agraves

recordaccedilotildees de vivecircncias passadas com as avoacutes que nos ensinavam o saber culinaacuterio pelo

claacutessico lsquobotar a matildeo na massarsquo Agrave cultura de um povo pelas comidas que prepara

A cozinha contempla todos esses elementos do simboacutelico ao concreto da antiguidade

mais remota aos tempos hipervelozes de hoje com diversas miacutedias dirigidas aos temas culinaacuterios

11

do conforto emocional que representava ao glamour que vem atingindo com o avanccedilo da

gastronomia como expressatildeo de status social e econocircmico no seacuteculo XXI

Memoacuteria prazer e autonomia lsquoingredientesrsquo relevantes na relaccedilatildeo do ser humano com o

alimento tanto na sua preparaccedilatildeo quanto no ato de comer propriamente dito

Pela importacircncia e significado da cozinha em todos os tempos e em todas as culturas a

presente dissertaccedilatildeo visa discutir seu papel nos acircmbitos fiacutesico e simboacutelico em trecircs obras da

literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco Azevedo (2008) Por que

sou gorda mamatildee de Ciacutentia Moscovich (2006) e Quarenta dias de Maria Valeacuteria Rezende

(2014)

A organizaccedilatildeo eacute composta por trecircs capiacutetulos que mantecircm a mesma estrutura na epiacutegrafe

um trecho emblemaacutetico da obra a ser explorada sob a perspectiva de um dos paradigmas

definidos como memoacuteria prazer e autonomia um fragmento introdutoacuterio para apresentaacute-lo em

sua relaccedilatildeo com a cozinha seguido de quatro subdivisotildees na primeira a apresentaccedilatildeo da obra do

corpus na segunda a fundamentaccedilatildeo teoacuterica do atributo escolhido para cada uma das narrativas

na terceira a reflexatildeo sobre este visto agrave luz de sua relaccedilatildeo com a cozinha na quarta a anaacutelise

das obras especiacuteficas utilizando-se trechos e analisando-os a partir das reflexotildees e estudos jaacute

expostos

O primeiro capiacutetulo intitulado ldquoCozinha e memoacuteria em O arroz de Palmardquo apresenta a

cozinha vinculada agraves histoacuterias familiar e pessoal das personagens o que permite relacionar esse

livro com a pesquisa sobre a memoacuteria tanto a individual como a coletiva O segundo capiacutetulo

intitulado ldquoCozinha e prazer em Por que sou gorda mamatildeerdquo traz a cozinha principalmente

manifesta pela vivecircncia do prazer da comida e suas consequecircncias para a protagonista como o

engorde motivo pelo qual incide sobre o prazer na relaccedilatildeo com a cozinha O terceiro capiacutetulo

intitulado ldquoCozinha e autonomia em Quarenta diasrdquo contempla o estudo dessa obra em que se

revela uma alimentaccedilatildeo vivenciada fora de casa atraveacutes da comida e dos lugares que a oferecem

Ao longo do percurso da personagem atraveacutes da retomada de sua independecircncia o comer eacute uma

das principais representaccedilotildees de sua autonomia nessa narrativa Assim o binocircmio estudado no

uacuteltimo capiacutetulo eacute cozinha e autonomia

O arroz de Palma trata da relevacircncia de um elemento o arroz na histoacuteria de vaacuterias

geraccedilotildees da famiacutelia do protagonista motivo pelo qual este capiacutetulo aborda a relaccedilatildeo entre cozinha

e memoacuteria Considerando-se a memoacuteria um tema estudado por diversos campos do

12

conhecimento a fundamentaccedilatildeo teoacuterica desse capiacutetulo eacute constituiacuteda pelos seguintes autores no

acircmbito filosoacutefico Paul Ricoeur e Gaston Bachelard cultural Aleida Assmann psicopatoloacutegico

Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio Bulbena e Sandro Domenichetti neurocientiacutefico Ivan

Izquierdo e Gordon Shepherd Satildeo tambeacutem referidas reflexotildees de Mircea Eliade na compreensatildeo

do mito As perspectivas do socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan satildeo

apresentadas junto aos autores jaacute referidos na subdivisatildeo que aborda a memoacuteria no contexto da

cozinha

Por que sou gorda mamatildee traz a cozinha ligada ao prazer pelo fato de a narrativa

abordar as sensaccedilotildees prazerosas ligadas agrave comida A fundamentaccedilatildeo teoacuterica abrange as facetas

bioloacutegica e cultural do prazer Na esfera bioloacutegica a reflexatildeo inclui aspectos saudaacuteveis e

psicopatoloacutegicos contendo ideias do psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers e dos psiquiatras

Lorenzo Pelizza e Franco Benazzi na esfera socioloacutegica a reflexatildeo parte da leitura do socioacutelogo

Carlos Alberto Doacuteria em seus livros A subdivisatildeo que apresenta o prazer ligado agrave cozinha eacute

constituiacuteda principalmente por Jean Louis Flandrin Maacutessimo Montanari e Jean-Anthelme Brillat-

Savarin

Quarenta dias expressa a relaccedilatildeo entre cozinha e autonomia pois o comer representa

para a personagem sua decisatildeo de sobrevivecircncia real Ela come porque tem fome necessidade

fisioloacutegica propriamente dita sendo o comer vinculado agraves decisotildees e agrave autonomia para tomaacute-las

elemento-chave na construccedilatildeo de seu percurso Nesse capiacutetulo a cozinha eacute principalmente

expressa pela comida motivo pelo qual este eacute o termo empregado na terceira e quarta

subdivisotildees A fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute composta por contribuiccedilotildees de Karl Jaspers tambeacutem

explorado nos capiacutetulos anteriores por aquelas do neurocientista Antonio Damaacutesio e do

psiquiatra Massimo Biondi Na subdivisatildeo que estabelece viacutenculo entre a comida e a autonomia

expressa como consciecircncia de si apoiamos a anaacutelise no pensamento do socioacutelogo Carlos Alberto

Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan tambeacutem presentes nos capiacutetulos anteriores

A decisatildeo por pesquisar na literatura a expressatildeo da cozinha deve-se ao nosso

questionamento sobre o modo como essa aparece atraveacutes da escrita literaacuteria Que contextos e que

termos satildeo escolhidos pelos escritores para retratar a cozinha como espaccedilos fiacutesico e simboacutelico

em suas obras A escolha recai sobre a literatura brasileira contemporacircnea definindo para o

corpus livros escritos por autores brasileiros em 2006 2008 e 2014 Trecircs livros publicados nas

duas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXI periacuteodo que coincide com a explosatildeo do papel da cozinha

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em acircmbitos mundial e sem duacutevidas nacional Conforme refere Maria Eunice Moreira no ensaio

ldquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmardquo

Espaccedilo alquiacutemico por sua natureza lugar de transformaccedilatildeo e de transmutaccedilatildeo a cozinha

eacute um dos espaccedilos mais tematizados na atualidade Isso pode ser comprovado pelo

nuacutemero de perioacutedicos especializados em gastronomia variedades de programas de TV e

destaque concedido a chefes e gourmets que se tornaram personagens midiaacuteticos

Diferentes miacutedias hoje divulgam as proezas de cozinheiros especializados que divulgam

suas descobertas culinaacuterias com ingredientes exoacuteticos confeccionando pratos originais

(MOREIRA 2014 p167)

Com a magnitude das expressotildees gastronocircmicas contemporacircneas no mundo e no Brasil eacute

plausiacutevel encontrar na literatura de nosso tempo obras que tragam a cozinha nos seus diversos

domiacutenios ao papel de protagonista A escolha especiacutefica pela literatura brasileira contemporacircnea

resulta de nosso interesse por compreender com que linguagem ela eacute expressa em nosso paiacutes em

nossa literatura em nossa contemporaneidade Ainda de acordo com o ensaio acima referido

sobre O arroz de Palma vale ressaltar

Mas certamente os leitores concordam que no fundo dos bauacutes que cruzaram os mares

entre enxadas e sementes vieram junto bens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre

o antigo e o novo espaccedilo a ser habitado Satildeo esses bens porque falam a linguagem do

mito os mais duradouros e perenes e satildeo eles tambeacutem capazes de inspirar a escrita da

literatura brasileira em tempos de globalizaccedilatildeo (MOREIRA 2014 p174)

Os lsquobens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre o antigo e o novo espaccedilo a ser

habitadorsquo estatildeo presentes em O arroz de Palma e tambeacutem no livro Por que sou gorda mamatildee

Nesse uacuteltimo atraveacutes da representaccedilatildeo de uma famiacutelia de imigrantes judeus e de sua relaccedilatildeo com

a comida e com o prazer de comer Em Quarenta dias a protagonista eacute tambeacutem uma imigrante

mas vinda de outro Estado e de outra cultura no mesmo Paiacutes Assim tambeacutem nessa narrativa haacute

um contraste entre o espaccedilo antigo e o novo a ser habitado a cidade de Porto Alegre eacute o territoacuterio

desconhecido ao qual a narradora personagem deveraacute se adaptar Da mesma forma como

transfere sua moradia para as ruas da cidade enquanto reluta em apropriar-se de sua lsquonova vidarsquo

tambeacutem transfere sua alimentaccedilatildeo para as padarias botecos carrinhos de pipoca e de cachorro

quente pela rua restaurantes e bares de rodoviaacuteria Para ela a decisatildeo de comer eacute resultado da

fome do mero existir como o sono e o banho A cozinha bem como sua vida estatildeo

lsquotransplantadasrsquo para as ruas da cidade

Nas trecircs obras selecionadas para este estudo haacute um papel central desempenhado pela

cozinha a representaccedilatildeo de aspectos da natureza humana como a ligaccedilatildeo com o prazer a

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memoacuteria e a autonomia como jaacute foi referido Nas narrativas a cozinha o cozinhar e o comer

existem atraveacutes das comidas dos ingredientes de instrumentos e do espaccedilo fiacutesico em si mas satildeo

expressos sobretudo como emoccedilotildees e vivecircncias recuperaccedilatildeo de tradiccedilotildees e expressatildeo de

sentimentos e de memoacuterias Ao escolher o termo lsquocozinharsquo para a representaccedilatildeo global estamos

incluindo o campo de ideias que esse envolve ou seja todo o espaccedilo fiacutesico e os elementos

materiais como eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios as comidas desde o ingredientes e

receitas ateacute os pratos propriamente ditos por fim os elementos simboacutelicos portanto imateriais

como as representaccedilotildees de ritualidade e os elementos psiacutequicos e culturais que envolvem o

cozinhar e o comer

O tiacutetulo ldquoAgrave moda da casardquo remete agraves receitas de um periacuteodo da culinaacuteria em que a

cozinha caseira ocupava papel central na alimentaccedilatildeo familiar Essa envolvia as concepccedilotildees de

lar de famiacutelia de memoacuteria dos pratos que eram partilhados na mesa nas refeiccedilotildees Uma carne de

panela agrave moda da casa eacute aquela feita seguindo o lsquocomo-se-fazrsquo na histoacuteria da famiacutelia A expressatildeo

lembra os cadernos de receitas as cozinhas das avoacutes matildees e tias a memoacuteria e os sabores da

tradiccedilatildeo as noccedilotildees de identidade e de consciecircncia de si como indiviacuteduo singular que eacute parte de

um plural a famiacutelia Todos esses aspectos satildeo presentes nas obras do corpus e portanto estatildeo

incluiacutedos na reflexatildeo sobre o tiacutetulo escolhido

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1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA

- Como eacute que simples guardanapos satildeo capazes de trazer tanta recordaccedilatildeo

- Porque fizeram histoacuteria satildeo a prova real e dos nove que um grupo de pessoas se reunia

regularmente para celebrar - natildeo importa o quecirc Festejavam a vida e pronto A data

religiosa ou pagatilde era pretexto Podia ser Paacutescoa ou Carnaval Esses guardanapos tecircm

alma Aliaacutes todo ser inanimado passa a ter alma no momento em que se lhe imprime

afeto As coisas tambeacutem aspiram a uma existecircncia sensiacutevel

Francisco Azevedo

A cozinha eacute o espaccedilo onde habitam forno fogatildeo geladeira pia pratos talheres

guardanapos panelas travessas caderno de receitas ingredientes chimia de uva pudim doce de

leite e ambrosia E lembranccedilas Muitos de nossos registros tecircm sabores proacuteprios Recordamos

essa ou aquela vivecircncia porque sua representaccedilatildeo eacute ligada a um gosto a uma textura a um

aroma Houve aquele doce de ovos que experimentamos em uma uacutenica e inesqueciacutevel ocasiatildeo

Vale evocar tambeacutem o faqueiro de uma avoacute presente de casamento ou a panela de fondue

comprada com orgulho fruto do primeiro salaacuterio da monitoria na faculdade No territoacuterio fiacutesico

da cozinha a memoacuteria tem corpo tem existecircncia material atraveacutes dos ingredientes dos

instrumentos dos eletrodomeacutesticos da receita de famiacutelia preparada para o almoccedilo Acima de

tudo a memoacuteria tem respiraccedilatildeo

11 O ARROZ DE PALMA

A escolha do tema cozinha e memoacuteria nasce atraveacutes da leitura da primeira obra definida

para o presente corpus O arroz de Palma de Francisco Azevedo publicada pela Editora Record

em 2008 O significado da cozinha para a nossa experiecircncia subjetiva tem fortes raiacutezes nas

histoacuterias guardadas atraveacutes das lembranccedilas e transmitidas entre as geraccedilotildees Essa obra da

literatura brasileira contemporacircnea propotildee tal resgate com relevante aprofundamento

A narrativa comeccedila pela voz do protagonista Antocircnio narrador personagem que traz ao

leitor em primeira pessoa a histoacuteria de sua famiacutelia os pais receacutem-casados e Palma sua tia

paterna Os trecircs vieram de Viana do Castelo em Portugal para o Brasil no comeccedilo do seacuteculo XX

Entretanto o que Antocircnio vem contar antecede a imigraccedilatildeo o ponto que daacute origem agrave histoacuteria da

obra eacute o casamento dos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana Depois da cerimocircnia Palma

decide juntar todos os gratildeos de arroz atirados aos noivos na lsquoabenccediloada chuva de arrozrsquo

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torrencial feita de lsquopunhados e mais punhadosrsquo Fez-se lsquochuva branca que natildeo paravarsquo Como se

fosse colheita ela junta gratildeo por gratildeo e coloca todos em um saco de estopa que leva aos receacutem-

casados como seu presente pelo matrimocircnio Surpreendente eacute a reaccedilatildeo de Joseacute Custoacutedio ao

receber a ideia de Palma raivoso desdenha do arroz ofertado pela irmatilde como se fosse presente

de menor valor A esposa Maria Romana contemporiza a situaccedilatildeo mas manteacutem a posiccedilatildeo firme

de que aceitaratildeo o presente E o arroz torna-se a alma dessa famiacutelia Melhor dizendo Palma

torna-se a alma da famiacutelia

A obra eacute composta por cinquenta e nove capiacutetulos curtos trezentas e sessenta e uma

paacuteginas e um calendaacuterio ao final com datas relevantes para a compreensatildeo da passagem do

tempo perspectiva essencial em O arroz de Palma Antocircnio eacute o narrador personagem muito do

que conta sobre a histoacuteria familiar ouviu de sua tia Palma figura de grande importacircncia na

formaccedilatildeo de sua personalidade Ela testemunhou boa parte das vivecircncias em Portugal e na

chegada ao Brasil protagonizou a maioria das cenas que se tornaram lembranccedilas Essas

transformaram-se depois em histoacuterias contadas por Palma e escutadas por Antocircnio

Fazendo zigue-zagues nas geraccedilotildees Antocircnio relembra pontos que conhece de viver e

pontos que sabe por escutar Em momentos da leitura parece estar contando a trama ao leitor

noutros tem-se a sensaccedilatildeo de que as conversas satildeo consigo mesmo a fim de percorrer uma linha

de tempo que faccedila sentido Ele narra de sua cozinha no presente do indicativo enquanto a

memoacuteria percorre outros tempos verbais mas a idade jaacute deixa lacunas Quando faltam

ingredientes na despensa da memoacuteria resta a tentativa de montar histoacuterias possiacuteveis ele compotildee

em um conjunto o que foi vivido e imaginado junto agraves suas reflexotildees atuais agrave beira do fogatildeo

Estaacute preparando a receita tiacutepica de arroz com significado em sua histoacuteria pessoal para a

comemoraccedilatildeo do centenaacuterio do matrimocircnio dos seus pais e do arroz colhido por Palma e

presenteado ao casal

Nas idas e vindas aparece de iniacutecio a fuacuteria de Joseacute Custoacutedio ao ganhar o saco de gratildeos de

arroz dirigida agrave irmatilde Palma Os trecircs vecircm para o Brasil onde ele consegue trabalho em uma

fazenda Mais tarde jaacute com a vida organizada quando o casal tem dificuldades em ter filhos

surge nova fuacuteria quando Palma sugere oferecer-lhe o arroz como forma de ajudar na fecundaccedilatildeo

pelos poderes atribuiacutedos ao ingrediente Ele recusa enraivecido mas Palma e Maria Romana

fazem com que coma o arroz mesmo assim No momento da raiva quebra a lsquoquarta cadeirarsquo que

iraacute reformar para sua irmatilde passada a coacutelera Essa seraacute a cadeira de onde ela contaraacute a Antocircnio as

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memoacuterias de famiacutelia os remendos de histoacuteria as fantasias e imaginaccedilotildees as dores e intimidades

de sua juventude

A quarta cadeira seraacute seu palco Antocircnio eacute o expectador Cria-se um forte laccedilo entre ele e

a tia pois se torna desde cedo o herdeiro das recordaccedilotildees familiares Essa aproximaccedilatildeo acaba

por distanciaacute-lo dos trecircs irmatildeos Leonor Nicolau e Joaquim enquanto ele eacute mais lsquocaseirorsquo gosta

de ficar ouvindo as histoacuterias da Tia Palma os trecircs satildeo mais agitados apreciam os passeios e as

brincadeiras pelo campo A distacircncia entre ele e os trecircs faz com que a tia o chame de lsquoAntocircnimorsquo

opondo suas caracteriacutesticas agraves dos irmatildeos As diferenccedilas seguiratildeo vida afora o que o protagonista

vai contando em seus percursos

Surge entatildeo seu romance com Isabel filha do patratildeo de seu pai sua ida para o Rio de

Janeiro o noivado com a moccedila e o arroz de bacalhau para celebrar a ocasiatildeo em famiacutelia A

receita foi preparada com o mesmo arroz que serviu para a fertilidade dos pais o mesmo arroz

presenteado por Palma para o casamento deles o mesmo arroz da chuva abenccediloada da cerimocircnia

O arroz testemunha a vida da famiacutelia alinha suas histoacuterias nessa narrativa parece ser a

representaccedilatildeo da memoacuteria familiar Lembranccedila a lembranccedila gratildeo a gratildeo As narrativas vatildeo sendo

transmitidas escutadas digeridas Antes do casamento Antocircnio e Isabel lsquoroubamrsquo um punhado e

levam consigo ao lago abenccediloando o primeiro momento de uniatildeo fiacutesica que partilham Mais uma

vez o arroz participa da ocasiatildeo formando registros de memoacuteria

Casam-se Nascem os filhos Nuno e Rosaacuterio Gecircmeos Seratildeo no entanto muito

diferentes entre si ela objetiva praacutetica ele sensiacutevel Entre casamentos e separaccedilotildees a narrativa

segue trilhada pela voz de Antocircnio em idas e vindas nas deacutecadas entre o casamento dos pais e

seu aniversaacuterio Sempre ao lado de Isabel nos trechos de vida sempre com dificuldades na

ligaccedilatildeo com os irmatildeos Entre o arroz presenteado por Palma no casamento de Joseacute Custoacutedio e

Maria Romana e a receita de arroz preparada por Antocircnio em sua cozinha esse conta os

nascimentos e as mortes relembra a perda de tia Palma recorda-se de vivecircncias dolorosas ao

longo do percurso de cada um e de todos O arroz eacute roubado da vitrine do restaurante de Antocircnio

e Isabel pelos filhos outra porccedilatildeo parece ter sido roubada pela esposa de um dos irmatildeos por

ciuacuteme de seu casamento Mais tarde surge a informaccedilatildeo de que Antocircnio e a cunhada tiveram

uma ligaccedilatildeo afetiva antes de ambos unirem-se a seus pares Voltam a encontrar-se em um ponto

da histoacuteria em uma tarde de braccedilos dados desejos satisfeitos e despedida cordial

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Muitas satildeo as tramas vividas e recordadas nessa narrativa Antocircnio eacute o narrador

personagem mas a leitura faz o leitor convencer-se o protagonista a bem da verdade eacute o arroz

A tia Palma tem papel decisivo na famiacutelia eacute ela quem daacute a direccedilatildeo em vaacuterios momentos da

histoacuteria nas vidas do irmatildeo Joseacute Custoacutedio da cunhada Maria Romana do sobrinho mais

proacuteximo Antocircnio e de seus irmatildeos Eacute ela quem daacute a direccedilatildeo aos gratildeos de arroz no percurso

desde o casamento em Portugal na Igreja ateacute sua morte contando sempre com a cumplicidade

da cunhada O protagonista segue conversando com a tia em pensamento perguntando suas

opiniotildees e conselhos

Palma transmite histoacuterias o arroz transmite histoacuterias Ao longo de toda a narrativa ambos

vatildeo deixando suas marcas na vida das personagens Em sua cozinha enquanto prepara o arroz

ele une os gratildeos pelo cozimento assim como une as recordaccedilotildees em uma soacute histoacuteria da famiacutelia

Se acaba por esquecer de algo lembra depois ou conta agrave sua moda Lembranccedilas agrave moda da casa

Toda a narrativa eacute tecida com uma linha que atravessa as vivecircncias a metaacutefora feita agraves

famiacutelias como se fossem pratos da culinaacuteria O narrador protagonista traz a imagem de vaacuterios

desses pratos e suas equivalecircncias nos grupos familiares enquanto se lembra dos trechos de vida

entremeados com emoccedilotildees e pensamentos Natildeo eacute possiacutevel alinhar as memoacuterias estatildeo espalhadas

Parte delas remontam etapas de vida outras lugares e pessoas Haacute registros que surgem de

experiecircncias vividas e daquelas que ele conhece apenas por ouvir- em geral de sua tia Palma

sentada na quarta cadeira

Podemos lembrar do que vivemos ou do que imaginamos em nossa maquinaria de

lembranccedilas memoacuteria e imaginaccedilatildeo fundem-se e o que vivenciamos por ouvir contar se torna

tambeacutem parte de nossos registros pessoais Eacute o que se passa com Antocircnio quando conta o que

ouviu de Palma com tal fidelidade que parece ele mesmo ter vivido Escutou imaginou e entatildeo

apropriou-se da histoacuteria com suas proacuteprias cores eacute dele agora a trama contada pela tia Algo

parecido eacute o processo de alquimia de uma receita de cozinha quando eacute transmitida de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo cada novo cozinheiro agrega seu modo de preparar a receita e ela vai assim sendo

transformada pelo tempo e pelas vozes que a leem agrave beira do fogatildeo

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12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA

O propoacutesito de estudar a memoacuteria neste capiacutetulo eacute o de apresentaacute-la como um processo

inerente agrave constituiccedilatildeo do ser humano Necessitamos deixar registros agraves geraccedilotildees seguintes assim

como seguir rastros dos antepassados Queremos pertencer a uma histoacuteria de famiacutelia e construir a

nossa para ser lembrada e seguida Acima de tudo a memoacuteria eacute parte da identidade

imprescindiacutevel na consciecircncia do indiviacuteduo sobre si mesmo

No campo de estudos da memoacuteria haacute os substratos neuroanatocircmico neurofisioloacutegico e

neuroquiacutemico que a compotildeem sob a perspectiva orgacircnica responsaacuteveis por seu funcionamento

adequado entretanto o foco predominante neste estudo consiste no entendimento da memoacuteria

como processo singular em termos psiacutequicos e plural em termos culturais Devido agraves muacuteltiplas

facetas do tema ampliamos a fundamentaccedilatildeo teoacuterica para os campos fenomenoloacutegico em que

apresentamos as ideias de Paul Ricoeur cultural a partir dos estudos de Aleida Assmann

psicopatoloacutegicas em que satildeo apontadas reflexotildees de Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio

Bulbena e Sandro Domenichetti e neurocientiacuteficas em que fazemos referecircncia aos

neurocientistas Ivan Izquierdo argentino e Gordon Shepherd americano

A cozinha situa-se nas esferas da memoacuteria individual e coletiva A relaccedilatildeo que se

estabelece entre o indiviacuteduo e os aromas que habitam sua memoacuteria como no caso das madeleines

recordadas por Proust a partir de um gatilho eacute de tamanha intimidade que se torna parte de sua

bagagem afetiva Da mesma forma o caderno de receitas de uma avoacute pode atravessar geraccedilotildees

pois os sabores ali registrados evocam lembranccedilas da histoacuteria familiar Ao serem reproduzidos

despertam na memoacuteria de um grupo natildeo apenas a receita original mas toda a constelaccedilatildeo de

emoccedilotildees que envolve essa lembranccedila como a cozinha em que era feita as panelas pratos e

talheres os almoccedilos dominicais na mesa da sala de jantar

As experiecircncias representam os ingredientes para a formaccedilatildeo da memoacuteria Muitas delas

nascem das histoacuterias vivenciadas na cozinha seja atraveacutes da percepccedilatildeo de um gosto do sentir de

uma emoccedilatildeo do ato de mexer um bolo ou de preparar um prato Todas satildeo carimbadas pela

interpretaccedilatildeo pelos sentimentos e pelo significado que cada circunstacircncia assume em nosso

percurso E esse carimbo vira lembranccedila armazenada na despensa da memoacuteria passiacutevel de

transformaccedilotildees ao longo do amadurecimento e das vicissitudes de cada fase de vida Afinal de

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contas a memoacuteria natildeo eacute um registro estaacutetico ela eacute isso sim um processo dinacircmico dependente

de nosso olhar e de nosso viver

Conforme o psicopatologista alematildeo Karl Jaspers a memoacuteria eacute um mecanismo que tem

relaccedilatildeo com o colorido afetivo com o significado das coisas Ele definiu a memoacuteria propriamente

dita como um reservatoacuterio em que novos materiais satildeo integrados pela fixaccedilatildeo e satildeo extraiacutedos agrave

consciecircncia atraveacutes da funccedilatildeo de evocaccedilatildeo para ele a chegada e a partida dos materiais seriam

devidas agraves respectivas funccedilotildees de fixaccedilatildeo e evocaccedilatildeo enquanto a memoacuteria representaria o

reservatoacuterio de disponibilidade permanente (JASPERS 2000 p188) Se pensarmos na cozinha

a memoacuteria seria a despensa onde satildeo postos novos ingredientes e de onde satildeo retirados aqueles

escolhidos para o uso Jaacute de acordo com Bulbena citando Serralonga ldquo[] em termos objetivos

eacute possiacutevel defini-la como a capacidade de adquirir de reter e de utilizar secundariamente uma

experiecircnciardquo (BULBENA 1998 p169)

Bulbena aponta quarto aspectos relevantes na compreensatildeo da memoacuteria como fenocircmeno

humano entre os quais distingue a entrada a manutenccedilatildeo e a saiacuteda das informaccedilotildees em

constante intercacircmbio entre organismo e ambiente o aspecto de transformaccedilatildeo dessas

informaccedilotildees modificando o conteuacutedo que entra no lsquoreservatoacuteriorsquo de Jaspers tanto para o

armazenamento quanto para a futura reproduccedilatildeo desse conteuacutedo o fato de a memoacuteria ser

produzida no contexto de estruturas nervosas que veiculam o processo apontando-se que as

alteraccedilotildees neste resultaratildeo em transtornos em seus mecanismos de fixaccedilatildeo armazenamento e

reproduccedilatildeo O quarto ponto definido pelo autor eacute de grande importacircncia para a finalidade do

presente capiacutetulo a memoacuteria forma parte do conjunto da vida psiacutequica sendo as emoccedilotildees

especialmente relevantes em sua composiccedilatildeo e forma parte tambeacutem da biografia do indiviacuteduo

em que teraacute influecircncia e da qual receberaacute influecircncia tambeacutem

Quando o autor se refere agrave biografia estaacute fazendo menccedilatildeo agraves experiecircncias de vida desse

indiviacuteduo e satildeo essas que muitas vezes ocorreram em sua relaccedilatildeo com o comer e com a cozinha

O dado de a memoacuteria fazer parte da vida psiacutequica eacute significativo sobretudo no que tange agrave

relaccedilatildeo com o campo emocional pois sempre que tais experiecircncias vinculadas ao universo

culinaacuterio ocorrerem haveraacute o processamento da resposta afetiva

A memoacuteria eacute essencialmente parte da vida psiacutequica do ser humano e resultado de

mecanismos cerebrais de controle Eacute considerada uma das funccedilotildees do estado mental dos

indiviacuteduos avaliada no exame psiquiaacutetrico dessas funccedilotildees Bulbena refere que

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etimologicamente a maioria dos autores situa sua origem no termo latino memoacuteria de

significado similar ao atual mas haacute quem atribua a origem agrave palavra gemynd de raiz

anglosaxocircnica que conforme refere significaria mente Assim eacute possiacutevel que a associaccedilatildeo entre

memoacuteria e vida psiacutequica seja representada na proacutepria origem da palavra

Mesmo que a finalidade do presente capiacutetulo seja apresentar a memoacuteria vinculada agraves

vivecircncias de cozinha cabe realizar a abordagem desse mecanismo como fenocircmeno Paul Ricoeur

apresenta a respeito da fenomenologia da memoacuteria seu viacutenculo com a imaginaccedilatildeo O autor

refere que podemos fazer referecircncia a um evento passado ou dizer que temos dele uma imagem

que pode ser quase visual ou auditiva E aponta que a memoacuteria opera em funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo

reforccedilando a perspectiva de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que expressa que ldquo[] a memoacuteria eacute

uma proviacutencia da imaginaccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p25)

Tal aspecto liga-se ao exposto pelo neurocientista Gordon Shepherd que em seu livro

sobre neurogastronomia expotildee ldquoPara muitas pessoas as partes mais importantes do olfato e do

sabor satildeo as memoacuterias que elas evocam e as emoccedilotildees associadas a essasrdquo (SHEPHERD 2012

p174) Olfato e sabor satildeo tambeacutem elementos que evocam imagens de situaccedilotildees vivenciadas mas

imagens construiacutedas pelas caracteriacutesticas psiacutequicas individuais assim pode-se dizer que evocam

a imaginaccedilatildeo

A lembranccedila de um acontecimento do preparo de uma comida ou da ocasiatildeo em que a

saboreamos ocorre atraveacutes da imagem que fazemos dessas circunstacircncias Lembramos com cor

com cheiros com gostos Lembramos imaginando e eacute isso que Paul Ricoeur traz como ponto de

partida Shepherd refere que nossos mecanismos cognitivos tecircm a qualidade de perceber e de

evocar as coisas como um todo integrado a partir de uma fraccedilatildeo (SHEPHERD 2012) o que se

assemelha ao que Ricoeur refere sobre a ligaccedilatildeo mencionada ldquoEacute sob o signo da associaccedilatildeo de

ideias que estaacute situada essa espeacutecie de curto-circuito entre memoacuteria e imaginaccedilatildeo se essas duas

afecccedilotildees estatildeo ligadas por contiguidade evocar uma - portanto imaginar - eacute evocar a outra-

portanto lembrar-se delardquo (RICOEUR 2014 p25) Essa ideia associa-se ao fato de que todos os

registros que os sentidos percebem oriundos do mundo externo ao corpo satildeo traduzidos em

percepccedilotildees e entatildeo em lembranccedilas a serem armazenadas A lembranccedila torna-se uma impressatildeo

da experiecircncia e natildeo seu registro idecircntico uma vez que pode ser compreendida como uma

reconstruccedilatildeo do passado a partir da perspectiva atual O que laacute fixamos natildeo eacute idecircntico ao que no

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presente podemos evocar pois outras vivecircncias se colocam no caminho nos transformam e

modificam nosso modo de recordar o que um dia haviacuteamos registrado

O inconsciente em todo o processo pode guardar a sete chaves algumas das informaccedilotildees

fixadas parte do que vivemos passaraacute a ser liberado ou escondido por sua tutela Lembramos de

algo pela imaginaccedilatildeo do que permaneceu desse algo em nosso mundo interno na compreensatildeo

neurocientiacutefica os registros captados pelos sentidos ficam armazenados em estruturas

especiacuteficas predominantemente no hemisfeacuterio direito quando as lembranccedilas estiverem

conectadas a emoccedilotildees Uma lsquopistarsquo que dermos agrave memoacuteria seja uma figura um som um gosto

um aroma ou uma textura ou uma emoccedilatildeo podem trazer de volta em viagem ultraveloz a cena

arquivada com todas as transformaccedilotildees que o tempo provoca em noacutes

Eacute possiacutevel compreender que a memoacuteria identifica o indiviacuteduo e sua bagagem de

vivecircncias pois soacute nos lembramos do que conhecemos ldquoReconhecer algueacutem significa saber jaacute tecirc-

lo visto antes assim como recordar-se de um acontecimento significa saber que este jaacute ocorreu no

passadordquo (MINKOWSKI 2004 p143) O entendimento sobre suas consideraccedilotildees eacute a de que

uma lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a tonalidade emotiva com que este foi

percebido ou seja a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos

recordaremos dela no futuro porque eacute assim que a conhecemos Sobre tal aspecto Ivan

Izquierdo neurocientista especializado neste campo refere

Podemos afirmar conforme Norberto Bobbio que somos aquilo que recordamos

literalmente Natildeo podemos fazer aquilo que natildeo sabemos nem comunicar nada que

desconheccedilamos isto eacute que natildeo esteja na nossa memoacuteria Tambeacutem natildeo estatildeo agrave nossa

disposiccedilatildeo os conhecimentos inacessiacuteveis nem formam parte de noacutes os episoacutedios dos

quais esquecemos ou os quais nunca atravessamos O acervo de nossas memoacuterias faz

com que cada um de noacutes seja o que eacute um indiviacuteduo um ser para o qual natildeo existe outro

idecircntico (IZQUIERDO 2011 p11 grifo do autor)

O psicopatologista Eugeacutene Minkowski aborda a memoacuteria no capiacutetulo intitulado lsquoO

passadorsquo em seu livro O tempo vivido Tal afirmaccedilatildeo expressa que ela eacute parte de nosso tempo

vivido e atraveacutes da reflexatildeo de Ivan Izquierdo pode-se compreender que ela eacute parte do nosso

tempo de conhecimento vivido A ideia de que a memoacuteria faz de noacutes ldquo[] um ser para o qual natildeo

existe outro idecircnticordquo (IZQUIERDO 2011 p12) reforccedila a noccedilatildeo de que esse fenocircmeno eacute um

elemento inerente a um sujeito uacutenico com suas experiecircncias percepccedilotildees e bagagens Ainda

conforme Ivan Izquierdo ldquo[] o conjunto das memoacuterias de cada um determina aquilo que se

denomina personalidade ou forma de serrdquo (IZQUIERDO 2011 p12) O neurocientista refere que

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as emoccedilotildees e os estados de acircnimo tecircm importante papel no processo da memoacuteria tanto em

termos de aquisiccedilatildeo quanto de formaccedilatildeo e finalmente de evocaccedilatildeo

Falar em emoccedilotildees ou estados de acircnimo remete agrave referecircncia de Minkowski sobre as

tonalidades afetivas O psicopatologista faz alusatildeo ao viacutenculo entre emoccedilotildees e memoacuteria

expressando o modo como o sentir influencia o lembrar Eacute possiacutevel comprender sua ideia da

seguinte forma colocamos a mirada sobre nosso mundo interior para focar em uma fraccedilatildeo do

passado que sentimos presente em noacutes Isso seria equivalente agrave evocaccedilatildeo de uma lembranccedila Ao

percebermos o sentimento ligado a esse tempo anterior essa lembranccedila amplia-se agrave medida que

a encontramos em nosso iacutentimo A conexatildeo emotiva torna a vivecircncia passada cada vez mais

visiacutevel e de contornos niacutetidos como um feixe de luz que ao aumentar expande a aacuterea de

claridade e mostra os detalhes de um terreno

Tal iluminaccedilatildeo reproduz vivecircncias remotas como se fossem situaccedilotildees que nos parecem

recentes pela forccedila emotiva ligada ao evento passado Entretanto nossa impressatildeo sobre tais

eventos pode ser transformada por aspectos psiacutequicos que ocorrem entre o tempo real e o

lembrado modificando a impressatildeo do fato em suas nuances Permanece a essecircncia prazerosa ou

penosa de um fato mas a evocaccedilatildeo da lembranccedila pode tornaacute-la um rosa suave ou um vermelho

vivo Para mudar seu tom contam tanto nosso estado de acircnimo ao vivermos algo quanto ao

lembrarmos esse algo Memoacuteria e emoccedilatildeo assim estatildeo intimamente ligadas entre si em especial

no que concerne agraves nossas experiecircncias de vida

O termo memoacuteria no singular remete-nos a dois eixos um primeiro mais evidente eacute o

tempo o segundo subterracircneo o espaccedilo Tal colocaccedilatildeo vem do fato de que a memoacuteria pode ser

percebida como um espaccedilo subjetivo em nossa vida psiacutequica motivo pelo qual tecemos a

analogia com a imagem da despensa de cozinha Esta eacute de fato um espaccedilo objetivo mas cuja

subjetividade aparece ao revelar muitos aspectos sobre o morador da casa Seria plausiacutevel referir

que a despensa identifica esse sujeito em suas preferecircncias alimentares em sua condiccedilatildeo

econocircmica em sua regularidade nas refeiccedilotildees feitas no lar aleacutem de demonstrar se vive sozinho

ou em famiacutelia se tem haacutebitos saudaacuteveis se manteacutem cuidados com a higiene com o meio-

ambiente com os prazos dos alimentos e por aiacute vai A despensa seria assim a memoacuteria da casa

um espaccedilo onde se colocam os ingredientes onde satildeo armazenados e de onde satildeo retirados para o

uso imediato Nessa analogia os ingredientes remetem-nos agrave imagem das lembranccedilas guardadas

na despensa

24

A partir dessa reflexatildeo eacute importante pensar no par lembranccedilas e memoacuteria como uma

relaccedilatildeo entre plural e singular Podem-se estabelecer ainda outras relaccedilotildees como a ideia de que a

memoacuteria maior conteacutem as lembranccedilas menores e muacuteltiplas A primeira representa um amplo

espaccedilo subjetivo para o armazenamento das segundas Uma comparaccedilatildeo mais detalhada colocaria

alguns itens nas estantes mais altas da despensa onde o acesso eacute difiacutecil ou mais ao fundo atraacutes

de elementos que satildeo usados com regularidade Natildeo eacute raro que esses ingredientes em partes

menos visualizadas sejam menos usados enquanto aqueles mais visiacuteveis sejam retirados dali e

consumidos com maior frequecircncia Tanto a regularidade do uso quanto os gostos alimentares

definem os produtos que ficam disponiacuteveis em estantes de mais faacutecil acesso em contraponto os

menos usados entram na categoria dos menos vistos

Aspectos que raramente enxergamos ficam esquecidos na despensa em lugares difiacuteceis e

ateacute passam da validade se natildeo tomamos conhecimento de que estatildeo laacute natildeo iremos evocaacute-los e

acabam por permanecer por um longo periacuteodo no canto mais longiacutenquo daquele espaccedilo Inuacutemeras

vezes esquecemos de usar produtos que guardamos haacute mais tempo e lembramos de acessar os

mais presentes em nossa rotina Aleacutem disso cabe lembrar que haacute estantes ou compartimentos em

uma despensa que servem justamente ao propoacutesito de definiccedilatildeo de categorias as mais

importantes alcanccedilamos estendendo o braccedilo enquanto as de menor relevacircncia recebem acesso

pelo uso da escada domeacutestica da lanterna para a procura ou no caso de estarem nas prateleiras

inferiores de posiccedilotildees fiacutesicas para encontrar o elemento procurado

Ao guardarmos algo que pouco usamos criamos espaccedilos de esquecimento dentro da

memoacuteria Para que resgatemos esses ingredientes haacute elementos como a imagem que nos

despertam para a recordaccedilatildeo de que um dia tomamos contato com ele Mais uma vez surge a

figura do conhecimento preacutevio entatildeo do passado como criteacuterio para o reconhecimento

Reconhecer eacute conhecer novamente voltar a tomar contato

Considerando a partir da analogia estabelecida as lembranccedilas como elemento plural

presente na memoacuteria de caraacuteter singular torna-se necessaacuterio compreender o fenocircmeno da

memoacuteria sob vaacuterias perspectivas Haacute diversos fatores envolvidos no modo como nos lembramos

de algo no porquecirc dessas lembranccedilas tornarem-se de mais faacutecil ou de mais difiacutecil acesso para

quais registros damos mais relevacircncia ao lsquoguardar na despensarsquo e outras variaacuteveis ligadas ao

lembrar e ao esquecer Tais perspectivas natildeo estatildeo divididas mas sim ligadas no texto uma vez

que ao contraacuterio das prateleiras da despensa a memoacuteria eacute um espaccedilo sem divisotildees estabelecidas

25

na experiecircncia humana Mesmo do ponto de vista cerebral ela ocupa diversas aacutereas e muacuteltiplos

sistemas sendo resultado de um processo de integraccedilatildeo de estruturas e de funccedilotildees cerebrais

Um aspecto relevante sobre o uso da palavra memoacuteria quando usado no plural estaacute na

literatura Ler as memoacuterias de um autor remete agrave ideia de uma narrativa autobiograacutefica ou

biograacutefica novamente ligando a ideia de memoacuteria ao campo da definiccedilatildeo de identidade

Considero que esse termo seja o de maior importacircncia no conjunto do fenocircmeno pois mesmo que

se trate da memoacuteria de um grupo essa revela seu caraacuteter identitaacuterio

Identidade eacute palavra-chave no campo da memoacuteria O psiquiatra italiano Sandro

Domenichetti apresenta a lembranccedila como ldquo[] experiecircncia que constroacutei a consciecircncia de si e

que define a relaccedilatildeo entre o mundo afetivo e aquele cognitivordquo (DOMENICHETTI 2003 p1)

de acordo com ele entre as funccedilotildees da consciecircncia estaacute a diacrocircnica ou seja a de percepccedilatildeo da

identidade estaacutevel atraveacutes do tempo A consciecircncia entatildeo eacute um elemento central neste campo

Domenichetti refere que esta ldquo[] parece entatildeo configurar-se como um tipo de memoacuteria de si no

tempordquo (DOMENICHETTI 2003 p1) enfatizando a perspectiva de que ldquo[] um senso de si eacute

essencial para que todas as minhas lembranccedilas sejam exatamente as minhas lembranccedilasrdquo

(DOMENICHETTI 2003 p1 grifo do autor)

Outro elemento apontado por este autor tem como base a explanaccedilatildeo de Israel Rosenfeld

meacutedico e pesquisador com atuaccedilatildeo relevante no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti

Roselfield expotildee a continuidade da consciecircncia como derivada da correspondecircncia que o ceacuterebro

estabelece em momentos sucessivos com eventos no espaccedilo e no tempo sendo seu elemento vital

a autoconsciecircncia Para Roselfield

As minhas lembranccedilas emergem da relaccedilatildeo entre meu corpo e a imagem que meu

ceacuterebro tem do meu corpo (uma atividade inconsciente na qual o ceacuterebro constroacutei para si

uma ideia generalizada do corpo ideia que se modifica continuamente) Eacute esta relaccedilatildeo

que cria o senso de lsquosirsquo (DOMENICHETTI 2003 p2)

A fim de corroborar a relaccedilatildeo entre corpo e ceacuterebro estabelecida por Rosenfield

Domenichetti refere-se a Henri Bergson (1859-1941) filoacutesofo e diplomata francecircs cuja obra

destacou-se pelas contribuiccedilotildees no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti

[] o nosso conhecimento da realidade eacute feito de percepccedilotildees impregnadas de

lembranccedilas A memoacuteria de Bergson funciona atraveacutes de operaccedilotildees de coleta de imagens

que progressivamente satildeo produzidas o corpo eacute uma dessas imagens a uacuteltima para ser

exato E se o corpo em geral eacute uma imagem eacute oacutebvio que o eacute tambeacutem o ceacuterebro Este

ligar a percepccedilatildeo a memoacuteria e o corpo com passagens de um a outro atraveacutes da

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dimensatildeo temporal define a construccedilatildeo da funccedilatildeo mental da qual a memoacuteria eacute atributo

fundador como organizaccedilatildeo autoreflexiva que pensa o corpo (DOMENICHETTI 2003

p1)

Pode-se compreender entatildeo corpo e ceacuterebro como palcos onde as imagens da memoacuteria

satildeo encenadas Tais imagens unem-se agraves percepccedilotildees atuais do indiviacuteduo compondo um conjunto

formado pelo antes e o agora ndash passado e presente ndash intrincados Ainda referindo-se agraves

contribuiccedilotildees de Roselfield nesse campo Domenichetti acrescenta

Tambeacutem na visatildeo de Roselfield assim a memoacuteria natildeo pode ser considerada como um

manual de informaccedilotildees mas sobretudo como uma atividade contiacutenua do ceacuterebro Isso se

observa principalmente no caso das imagens Quando recordo a imagem de um evento

da minha infacircncia por exemplo natildeo a extraio de um hipoteacutetico arquivo de imagens

preexistentes devo formar conscientemente uma nova imagem (DOMENICHETTI

2003 p2)

Tais explanaccedilotildees sobre o papel da imagem para a recordaccedilatildeo coincidem com a

perspectiva de Paul Ricoeur em A lembranccedila e a imagem na primeira parte de sua obra jaacute

referida Ele questiona ldquoComo explicar que a lembranccedila retorne em forma de imagem e que a

imaginaccedilatildeo assim mobilizada chegue a revestir-se das formas que escapam agrave funccedilatildeo do irrealrdquo

(RICOEUR 2014 p66)

Para chegar a respostas possiacuteveis ele recorre a Bergson entre outros autores Deste

aponta que ldquoAdoto como hipoacutetese de trabalho a concepccedilatildeo bergsoniana da passagem da

lsquolembranccedila-purarsquo agrave lembranccedila-imagemrdquo (RICOEUR 2014 p67) De acordo com Ricoeur sobre

o trabalho de Bergson ldquoele traz de certo modo a lembranccedila para uma aacuterea de presenccedila

semelhante agrave da percepccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p68) ressaltando da imaginaccedilatildeo o que chama

de ldquofunccedilatildeo visualizanterdquo ou seja ldquosua maneira de dar a verrdquo (RICOEUR 2014 p68) Ricoeur

esclarece que

Eacute como se a forma que Bergson chama intermediaacuteria ou mista da lembranccedila isto eacute a

lembranccedila-imagem a meio-caminho entre lsquolembranccedila-purarsquo e a lembranccedila reinscrita na

percepccedilatildeo no estaacutegio em que o reconhecimento desabrocha no sentimento do deacutejagrave vu

correspondesse a uma forma intermediaacuteria da imaginaccedilatildeo a meio caminho entre a ficccedilatildeo

e a alucinaccedilatildeo a saber o componente imagem da lembranccedila-imagem Portanto eacute

tambeacutem como forma mista que eacute preciso falar da funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo que consiste em

lsquopocircr debaixo dos olhosrsquo funccedilatildeo que podemos chamar ostensiva trata-se de uma

imaginaccedilatildeo que mostra que expotildee que deixa ver (RICOEUR 2014 p70)

Assim o que se tem eacute uma zona de fronteiras pouco demarcadas entre a percepccedilatildeo a

lembranccedila e a imaginaccedilatildeo Ricoeur refere em relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas e diferenccedilas entre as duas

uacuteltimas ldquoCertamente dissemos e repetimos que a imaginaccedilatildeo e a memoacuteria tinham como traccedilo

27

comum a presenccedila do ausente e como traccedilo diferencial de um lado a suspensatildeo de toda posiccedilatildeo

de realidade e a visatildeo de um irreal do outro a posiccedilatildeo de um real anteriorrdquo (RICOEUR 2014

p61)

Nesse sentido o papel da percepccedilatildeo eacute o de captar a realidade atraveacutes dos cinco sentidos

para entatildeo formar registros que no futuro seratildeo lembranccedilas As imagens que resgato satildeo

diferentes das que percebi no instante do acontecimento pois se misturam com outros

ingredientes como as emoccedilotildees por exemplo Ricoeur aponta ldquoTeriacuteamos assim a sequecircncia

percepccedilatildeo lembranccedila ficccedilatildeo Um limiar de inatualidade eacute transposto entre lembranccedila e ficccedilatildeordquo

(RICOEUR 2014 p65) Esse limiar de inatualidade expresso por ele como ldquotransposto entre

lembranccedila e ficccedilatildeordquo parece referir-se agrave passagem do tempo que torna as imagens de uma

vivecircncia cada vez mais proacuteximas da imaginaccedilatildeo quanto mais longiacutenquo for o passado

O filoacutesofo Gaston Bachelard em A poeacutetica do espaccedilo ao mencionar as lembranccedilas

associadas ao habitar de uma nova casa expressa o entrelaccedilamento entre a memoacuteria e a

imaginaccedilatildeo

E o devaneio se aprofunda de tal modo que para o sonhador do lar um acircmbito

imemorial se abre para aleacutem da mais antiga memoacuteria A casa como o fogo como a

aacutegua nos permitiraacute evocar na sequecircncia de nossa obra luzes fugidias de devaneio que

iluminam a siacutentese do imemorial com a lembranccedila Nessa regiatildeo longiacutenqua memoacuteria e

imaginaccedilatildeo natildeo se deixam dissociar Ambas trabalham para seu aprofundamento muacutetuo

Ambas constituem na ordem dos valores uma uniatildeo da lembranccedila com a imagem

(BACHELARD 2012 p25)

A relaccedilatildeo entre lembranccedila e imagem em Bachelard encontra-se bem representada atraveacutes

da ideia da casa e do habitar onde esses dois fenocircmenos se fundem Ele menciona a ideia de que

ldquo[] o calendaacuterio da nossa vida soacute pode ser estabelecido em seu processo produtor de imagensrdquo

(BACHELARD 2012 p28) Este calendaacuterio parece ser para o autor as lembranccedilas recordadas

por meio da imagem das cenas vividas e sentidas Bachelard refere que ldquo[] a imagem

estabelece-se numa cooperaccedilatildeo entre o real e o irreal pela participaccedilatildeo da funccedilatildeo do real e da

funccedilatildeo do irrealrdquo (BACHELARD 2012 p73) tecendo uma ligaccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo memoacuteria e

percepccedilatildeo Cabe ressaltar nesse ponto o aspecto de esta uacuteltima ocorrer atraveacutes dos cinco

sentidos veiacuteculo de traduccedilatildeo do mundo externo para o interno Retorna-se ao jaacute apresentado

sobre a relevacircncia do corpo para a memoacuteria Ricoeur menciona a esse respeito

Eacute o elo entre memoacuteria corporal e memoacuteria dos lugares que legitima a tiacutetulo primordial a

dessimplicaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo de sua forma objetivada O corpo constitui desse

28

ponto de vista o lugar primordial o aqui em relaccedilatildeo ao qual todos os outros lugares satildeo

laacute (RICOEUR 2014 p59)

Compreender o papel da memoacuteria do corpo conduz agrave identificaccedilatildeo desta dentro da

consciecircncia de si pois diz respeito aos registros deixados pelas vivecircncias com potencial de

serem encenados novamente pelo indiviacuteduo O ato de cozinhar seria um exemplo de como a

memoacuteria corporal faz com que se pratique o ato culinaacuterio como um conhecimento do corpo

muitas vezes executado de forma habitual Ricoeur aponta que ldquo[] a memoacuteria corporal pode ser

lsquoagidarsquo como todas as outras modalidades de haacutebito como a de dirigir um carro que estaacute em meu

poder Ela varia segundo todas as variantes do sentimento de familiaridade ou de estranhezardquo

(RICOEUR 2014 p57) O autor acrescenta

Assim a memoacuteria corporal eacute povoada de lembranccedilas afetadas por diferentes graus de

distanciamento temporal a proacutepria extensatildeo do lapso de tempo decorrido pode ser

percebida sentida na forma de saudade nostalgia [] O momento da recordaccedilatildeo eacute

entatildeo o do reconhecimento (RICOEUR 2014 p57)

Partindo dessa compreensatildeo seria possiacutevel pensar em corpo casa e lugar como espaccedilos

onde a recordaccedilatildeo nasce do mais especiacutefico o corpo ao mais inespeciacutefico o lugar Em todos

esses espaccedilos haacute accedilotildees e vivecircncias que podem constituir lembranccedilas Conforme Ricoeur

A transiccedilatildeo da memoacuteria corporal para a memoacuteria dos lugares eacute assegurada por atos tatildeo

importantes como orientar-se deslocar-se e acima de tudo habitar Eacute na superfiacutecie

habitaacutevel da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado lugares memoraacuteveis

Assim as lsquocoisasrsquo lembradas satildeo intrinsecamente associadas a lugares E natildeo eacute por acaso

que dizemos sobre uma coisa que aconteceu que ela teve lugar Eacute de fato nesse niacutevel

primordial que se constitui o fenocircmeno dos lsquolugares de memoacuteriarsquo (RICOEUR 2014

p57-58)

Essa ideia pode ser corroborada com a perspectiva de Bachelard sobre o habitar

Eacute preciso dizer como habitamos o nosso espaccedilo vital de acordo com todas as dialeacuteticas

da vida como nos enraizamos dia a dia num lsquocanto do mundorsquo

Porque a casa eacute nosso canto do mundo Ela eacute como se diz amiuacutede o nosso primeiro

universo Eacute um verdadeiro cosmos (BACHELARD 2012 p24)

A respeito da relevacircncia da casa para a formaccedilatildeo e o armazenamento das lembranccedilas

Bachelard apresenta contribuiccedilotildees que reforccedilam a visatildeo de Ricoeur sobre o papel dos lugares

para a memoacuteria

Logicamente eacute graccedilas agrave casa que um grande nuacutemero de nossas lembranccedilas estatildeo

guardadas e quando a casa se complica um pouco quando tem um poratildeo e um soacutetatildeo

cantos e corredores nossas lembranccedilas tecircm refuacutegios cada vez mais bem caracterizados

29

A eles regressamos durante toda a vida em nossos devaneios (BACHELARD 2012

p28)

A ideia da memoacuteria associada ao espaccedilo seja corpo casa ou lugar conduz agrave reflexatildeo de

que essa tem uma existecircncia subjetiva interna que eacute representada pelo aspecto objetivo material

externo isso se daacute atraveacutes de vivecircncias associadas sempre a um primeiro espaccedilo o corpoacutereo e a

um segundo mais amplo que eacute o lugar para onde a lembranccedila remete Mais uma vez as

lembranccedilas tecircm imagens de correspondecircncia eacute como se os lugares dessem carne e osso a elas

confirmam sua existecircncia em um tempo e em um espaccedilo que mesmo passado relaciona-se ao

mundo fiacutesico Quanto mais longiacutenquas no tempo mais proacuteximas se encontram da imaginaccedilatildeo

como jaacute visto entretanto ainda assim tecircm um cenaacuterio onde vivem

Examinada como fenocircmeno a memoacuteria tem propriedades que a identificam Ricoeur

estabeleceu trecircs pares de oposiccedilotildees para a compreensatildeo da fenomenologia da memoacuteria o

primeiro deles eacute a dupla haacutebitomemoacuteria sobre a qual refere

O que faz a unidade desse espectro eacute a comunidade da relaccedilatildeo com o tempo Nos dois

casos extremos pressupotildee-se uma experiecircncia anteriormente adquirida mas num caso o

do haacutebito essa aquisiccedilatildeo estaacute incorporada agrave vivecircncia presente natildeo marcada natildeo

declarada como passado no outro caso faz-se referecircncia agrave anterioridade como tal da

aquisiccedilatildeo antiga Nos dois casos por conseguinte continua sendo verdade que a

memoacuteria lsquoeacute do passadorsquo mas conforme dois modos um natildeo marcado outro sim da

referecircncia ao lugar no tempo da experiecircncia inicial

[] A operaccedilatildeo descritiva consiste entatildeo em classificar as experiecircncias relativas agrave

profundidade temporal desde aquelas em que de algum modo o passado adere ao

presente ateacute aquelas em que o passado eacute reconhecido em sua preteridade passada

(RICOEUR 2014 p43)

A segunda dupla de opostos estabelecida por Ricoeur eacute composta pelo par

evocaccedilatildeobusca representado pelos dois trechos abaixo No primeiro a reflexatildeo sobre evocaccedilatildeo

no segundo sobre a busca

1) Entendamos por evocaccedilatildeo o aparecimento atual de uma lembranccedila Eacute a esta que

Aristoacuteteles destinava o termo mneme designando por anamnesis o que chamaremos

mais adiante de busca ou recordaccedilatildeo Ele caracterizava a mneme como pathos como

afecccedilatildeo ocorre que nos lembramos disto ou daquilo nesta ou naquela ocasiatildeo entatildeo

temos uma lembranccedila Portanto eacute em oposiccedilatildeo agrave busca que a evocaccedilatildeo eacute uma

afecccedilatildeo Enquanto tal em outras palavras desconsiderando sua posiccedilatildeo polar a

evocaccedilatildeo traz a carga do enigma que movimentou as investigaccedilotildees de Platatildeo e de

Aristoacuteteles ou seja a presenccedila agora do ausente anteriormente percebido

experimentado aprendido (RICOEUR 2014 p45)

2) Voltemo-nos agora para o outro poacutelo do par evocaccedilatildeobusca Eacute ele que a

denominaccedilatildeo grega da anamnesis designava Platatildeo a mitificara ligando-a a um saber

preacute-natal do qual estariacuteamos afastados por um esquecimento ligado agrave inauguraccedilatildeo da

vida da alma num corpo esquecimento de certo modo natal que faria da busca um

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reaprender do esquecimento Aristoacuteteles [] naturalizou de certo modo a anamnesis

comparando-a agravequilo que na experiecircncia cotidiana chamamos de recordaccedilatildeo [] o

ana de anamnesis significa volta retomada recobramento do que anteriormente foi

visto experimentado ou aprendido portanto de alguma forma significa repeticcedilatildeo

Assim o esquecimento eacute designado obliquamente como aquilo contra o que eacute

dirigido o esforccedilo da recordaccedilatildeo (RICOEUR 2014 p46)

O que Ricoeur propotildee assim com o par evocaccedilatildeobusca eacute a diferenciaccedilatildeo entre a

lembranccedila e a recordaccedilatildeo sendo a primeira segundo ele representativa do surgimento

espontacircneo de um registro gravado na memoacuteria enquanto a segunda seria resultado de uma

procura ativa voluntaacuteria Referindo as ideias de Bergson sobre lsquorecordaccedilatildeo instantacircnearsquo e

lsquorecordaccedilatildeo laboriosarsquo aponta a distinccedilatildeo ldquo[] podendo a recordaccedilatildeo instantacircnea ser considerada

como o grau zero da busca e a recordaccedilatildeo laboriosa e a recordaccedilatildeo laboriosa como sua forma

expressardquo (RICOEUR 2014 p46) Assim a lembranccedila viria de uma evocaccedilatildeo proacutexima ao que

Ricoeur chama de lsquoautomatismorsquo e lsquorecordaccedilatildeo mecacircnicarsquo diferente da recordaccedilatildeo que viria lsquoda

reflexatildeo da reconstituiccedilatildeo inteligentersquo estando ambas ldquo[] intimamente mescladas na

experiecircncia comumrdquo (RICOEUR 2014 p46) Por fim com relaccedilatildeo a esse par Ricoeur refere

Eacute de fato o esforccedilo de recordaccedilatildeo que oferece a melhor ocasiatildeo de fazer lsquomemoacuteria do

esquecimentorsquo para falar com antecipaccedilatildeo como Santo Agostinho A busca da

lembranccedila comprova uma das finalidades principais do ato de memoacuteria a saber lutar

contra o esquecimento arrancar alguns fragmentos de lembranccedila agrave lsquorapacidadersquo do

tempo (Santo Agostinho dixit) ao lsquosepultamentorsquo no esquecimento Natildeo eacute somente o

caraacuteter penoso do esforccedilo de memoacuteria que daacute agrave relaccedilatildeo sua coloraccedilatildeo inquieta mas o

temor de ter esquecido de esquecer de novo de esquecer amanhatilde de cumprir esta ou

aquela tarefa porque amanhatilde seraacute preciso natildeo esquecer [] de se lembrar (RICOEUR

2014 p48)

A terceira dupla de opostos proposta por Ricoeur em sua fenomenologia da memoacuteria eacute

constituiacuteda pela polaridade reflexividademundanidade A respeito do elemento reflexividade

Ricoeur esclarece

Natildeo nos lembramos somente de noacutes vendo experimentando aprendendo mas das

situaccedilotildees do mundo nas quais vimos experimentamos aprendemos Tais situaccedilotildees

implicam o proacuteprio corpo e o corpo dos outros o espaccedilo onde se viveu enfim o

horizonte do mundo e dos mundos sob o qual alguma coisa aconteceu Entre

reflexividade e mundanidade haacute mesmo uma polaridade na medida em que a

reflexividade eacute um rastro irrecusaacutevel da memoacuteria em sua fase declarativa algueacutem diz

lsquoem seu coraccedilatildeorsquo que viu experimentou aprendeu anteriormente sob esse aspecto nada

deve ser negado sobre o pertencimento da memoacuteria agrave esfera de interioridade

(RICOEUR 2014 p53-54)

A mundanidade por sua vez constitui um elemento significativo no estudo deste

capiacutetulo uma vez que contempla a existecircncia dos rituais atraveacutes da abordagem do fenocircmeno da

31

comemoraccedilatildeo Ricoeur o associa agrave ldquo[] gestualidade corporal e agrave espacialidade dos rituais que

acompanham os ritmos temporais da celebraccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p60) A associaccedilatildeo do ato

de comemoraccedilatildeo com os rituais eacute explicada por ele

Natildeo haacute efetuaccedilatildeo ritual sem a evocaccedilatildeo de um mito que orienta a lembranccedila para o que eacute

digno de ser comemorado As comemoraccedilotildees satildeo assim espeacutecies de evocaccedilotildees no

sentido de reatualizaccedilatildeo eventos fundadores apoiados pelo lsquochamadorsquo a lembrar-se que

soleniza a cerimocircnia- comemorar observa Casey eacute solenizar tomando seriamente o

passado e celebrando-o em cerimocircnias apropriadas (RICOEUR 2014 p60)

A partir da reflexatildeo de Ricoeur sobre o par reflexividademundanidade e neste uacuteltimo

elemento a presenccedila do ritual cabe salientar o estudioso Mircea Eliade Este em sua obra Mito e

Realidade apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o mito

O mito conta uma histoacuteria sagrada ele relata um acontecimento ocorrido no tempo

primordial o tempo fabuloso do lsquoprinciacutepiorsquo Em outros termos o mito narra como

graccedilas agraves faccedilanhas dos Entes Sobrenaturais uma realidade passou a existir seja uma

realidade total o Cosmo ou apenas um fragmento uma ilha uma espeacutecie vegetal um

comportamento humano uma instituiccedilatildeo Eacute sempre portanto a narrativa de uma

lsquocriaccedilatildeorsquo ele relata de que modo algo foi produzido e comeccedilou a ser O mito fala apenas

do que realmente ocorreu do que se manifestou plenamente (ELIADE 2011 p11)

A relevacircncia dessa consideraccedilatildeo reside em corroborar que ldquo[] pelo fato de relatar as

gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestaccedilatildeo dos seus poderes sagrados o mito se torna o

modelo exemplar de todas as atividades humanas significativasrdquo (ELIADE 2011 p12) A

comemoraccedilatildeo enseja o rito que reencena o mito por isso eacute mencionada na explanaccedilatildeo de Ricoeur

quando se refere aos rituais Mircea Eliade esclarece ldquo[] a principal funccedilatildeo do mito consiste em

revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas tanto a

alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE

2011 p12) Compreende-se assim a comemoraccedilatildeo como a reuniatildeo de grupo ou de um povo

para celebrar a memoacuteria conjunta de seus membros em torno de uma finalidade o rito cuja

origem estaacute no evento original o mito A ideia impliacutecita neste caso eacute a de celebrar em conjunto

a memoacuteria de algo ou seja co-memorar A fim de reforccedilar essa reflexatildeo apontamos outra

explanaccedilatildeo de Eliade

Para o homem das sociedades arcaicas ao contraacuterio o que aconteceu ab origine pode ser

repetido atraveacutes do poder dos ritos Para ele portanto o essencial eacute conhecer os mitos

Essencial natildeo somente porque os mitos lhe oferecem uma explicaccedilatildeo do Mundo e de seu

proacuteprio modo de existir no Mundo mas sobretudo porque ao rememorar os mitos e

reatualiza-los ele eacute capaz de repetir o que os Deuses os Heroacuteis e os Ancestrais fizeram

ab origine Conhecer os mitos eacute aprender o segredo da origem das coisas Em outros

32

termos aprende-se natildeo somente como as coisas vieram agrave existecircncia mas tambeacutem onde

encontra-las e como fazer com que reapareccedilam quando desaparecem (ELIADE 2011

p18)

No contexto do presente capiacutetulo interessa ressaltar a compreensatildeo do ritual como

celebraccedilatildeo de uma memoacuteria ancestral por parte de um grupo A ancestralidade dessa memoacuteria

tem em sua raiz o mito que lhe deu origem Tal entendimento tem associaccedilatildeo com o cozinhar e

com o partilhar o alimento com a reuniatildeo da famiacutelia em torno da comida e com a repeticcedilatildeo das

praacuteticas culinaacuterias que mesmo evoluindo ao longo do tempo remontam o primordial tornar cru

em cozido Outro elemento ligado agrave realizaccedilatildeo de rituais associados agrave cozinha estaacute na recitaccedilatildeo

do modo de fazer um prato quando transmitido atraveacutes de uma receita escrita O caminho que

essa percorre entre as geraccedilotildees de uma famiacutelia eacute emblemaacutetico de sua forccedila ritualiacutestica como se

carregasse de forma transgeracional a memoacuteria desse grupo atraveacutes do como-se-faz de uma

determinada praacutetica

Antes da existecircncia da receita no caderno o conhecimento empiacuterico dos antepassados

sobre o fazer culinaacuterio era ensinado oralmente e atraveacutes do proacuteprio fazer quando recitaccedilotildees eram

feitas para que o prato saiacutesse a contento essas eram assim a representaccedilatildeo do ritual naquele

grupo familiar Nesse sentido retomamos Eliade em sua explicaccedilatildeo sobre a recitaccedilatildeo do mito

Em Timor por exemplo quando germina um arrozal dirige-se ao campo algueacutem que

conhece as tradiccedilotildees miacuteticas referentes ao arroz [] Recitando o mito de origem

obriga-se o arroz a crescer tatildeo belo vigoroso e abundante como era quando apareceu

pela primeira vez Natildeo eacute com o fim de lsquoinstruiacute-lorsquo ou ensinar-lhe a maneira como deve

comportar-se que o oficiante lembra ao arroz o modo como foi criado Ele o forccedila

magicamente a retornar agrave origem isto eacute a reiterar sua criaccedilatildeo exemplar (ELIADE

2011 p19)

Esses conhecimentos eram transmitidos junto com a receita ou seja eram parte da

memoacuteria daquele prato em seu papel na tradiccedilatildeo familiar Vale lembrar que a etimologia de

receita estaacute no latim recepta alusivo a receber expressa entatildeo aquilo que se recebe em termos

de ensinamento sobre o fazer de uma comida especiacutefica Haacute diversas expressotildees no folclore da

cozinha que remontam a transmissatildeo do saber culinaacuterio em uma cultura

Haacute diferenccedila entre a memoacuteria individual essa que nos identifica como indiviacuteduos e a

memoacuteria coletiva Como exemplo da uacuteltima cito esse lsquosaber culinaacuterio em uma culturarsquo que

remete agrave compreensatildeo sobre a memoacuteria coletiva no contexto deste capiacutetulo Esta assim como a

individual tem em seu eixo a noccedilatildeo de identidade no caso da memoacuteria de um indiviacuteduo como jaacute

visto refere-se agrave consciecircncia de si mesmo como base daquilo de que ele eacute capaz de se lembrar

33

para que as lembranccedilas sejam suas no caso da memoacuteria coletiva este eixo estaacute na identidade do

grupo que a conteacutem pois a memoacuteria e o grupo alimentam-se reciprocamente o grupo se manteacutem

vivo pelas memoacuterias enquanto essas permanecem presentes pela unidade do grupo

A respeito dessa inter-relaccedilatildeo a pesquisadora e professora alematilde Aleida Assmann no

livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo-formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural menciona as ideias

de Maurice Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva referindo que ldquo[] a memoacuteria coletiva assegura

a singularidade e a continuidade de um grupordquo (ASSMANN 2011 p144) e esclarece

Seu interesse voltou-se apenas agrave pergunta sobre o que manteacutem as pessoas unidas em

grupos Deparou assim com o significado agregador das lembranccedilas em comum como

importante elemento de coesatildeo Derivou daiacute a noccedilatildeo da existecircncia de uma lsquomemoacuteria de

gruporsquo Mas as lembranccedilas natildeo se estabilizam somente no grupo O grupo torna estaacuteveis

as lembranccedilas A investigaccedilatildeo de Halbwachs em torno dessa lsquomemoacuteria coletivarsquo resultou

no seguinte a estabilidade da memoacuteria coletiva estaacute vinculada de maneira direta agrave

composiccedilatildeo e subsistecircncia do grupo Se o grupo se dissolve os indiviacuteduos perdem em

sua memoacuteria a parte de lembranccedilas que os fazia assegurarem-se e identificarem-se como

grupo (ASSMANN 2011 p144)

A referecircncia agrave memoacuteria ligada agrave manutenccedilatildeo de um grupo remete novamente agrave ideia no

acircmbito das vivecircncias culinaacuterias das receitas de cozinha transmitidas entre as geraccedilotildees de uma

mesma famiacutelia O elemento que sustenta a presenccedila dessa receita no grupo eacute a memoacuteria que este

tem a respeito do lsquocomo-se-fazrsquo de uma determinada comida Enquanto houver membros dessa

famiacutelia que se interessem em manter a tradiccedilatildeo daquele determinado sabor a memoacuteria seraacute

mantida ao mesmo tempo enquanto houver essa memoacuteria a integraccedilatildeo do grupo permaneceraacute

Segundo Aleida Assmann

Os estudos do historiador francecircs Pierre Nora demonstraram que por traacutes da memoacuteria

coletiva natildeo haacute alma coletiva nem espiacuterito coletivo algum mas tatildeo somente a sociedade

com seus signos e siacutembolos Por meio dos siacutembolos em comum o indiviacuteduo toma parte

de uma memoacuteria e de uma identidade tidas em comum Nora cumpriu na teoria da

memoacuteria o passo que vai do grupo vinculado na coexistecircncia espaccedilo-temporal tema

estudado por Halbwachs agrave comunidade abstrata que se define por meio dos siacutembolos

que abrangem e agregam em niacutevel espacial e temporal Os portadores dessa memoacuteria

coletiva natildeo precisam conhecer-se para apesar disso reinvindicar para si uma identidade

comum (ASSMANN 2011 p145)

Assim como referido sobre o papel de uma receita de famiacutelia como elemento de coesatildeo

entre os membros da mesma atraveacutes das geraccedilotildees situaccedilatildeo semelhante pode ocorrer em relaccedilatildeo

a um determinado ingrediente ou preferecircncia alimentar A transmissatildeo de um saber culinaacuterio e

dos gostos de uma famiacutelia tambeacutem satildeo aspectos que se perpetuam no grupo em funccedilatildeo da

memoacuteria que agrega seus integrantes

34

A memoacuteria individual entatildeo manteacutem a identidade por dar ao indiviacuteduo sua caracteriacutestica

singular atraveacutes do tempo nela estatildeo suas impressotildees lembranccedilas e registros que compotildeem a

noccedilatildeo de permanecircncia de quem ele eacute ou seja reforccedilam nele a consciecircncia do eu na duraccedilatildeo de

ciclos que se perpetuam Ele sabe quem eacute em grande parte pelas lembranccedilas que tem de si

Circunstacircncia anaacuteloga ocorre com a memoacuteria coletiva em que o grupo se manteacutem coeso pela

consciecircncia de ser um grupo com lembranccedilas em comum o papel dessas eacute exatamente o de

manter a unidade e a permanecircncia da identidade do conjunto

A memoacuteria individual e a coletiva estatildeo portanto implicadas na vivecircncia culinaacuteria

relaccedilotildees a serem exploradas na divisatildeo que segue

13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO

A relaccedilatildeo entre cozinha e memoacuteria existe devido agrave linguagem Avanccedilando nessa

perspectiva Mariano Garciacutea e Mariana Dimoacutepulos compiladores da obra Escritos sobre la mesa-

Literatura y comida afirmam que ldquo[] a relaccedilatildeo entre linguagem e comida comeccedila desde o

momento em que graccedilas agrave escritura se conservam notiacutecias de como se comia na Antiguidaderdquo

(GARCIacuteA DIMOacutePULOS 2014 p9) Toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo assim eacute conhecida em

virtude do que se registrou ao longo das eacutepocas sob os mais diversos veiacuteculos Esse aspecto eacute

relevante tanto do ponto de vista de Histoacuteria da Humanidade quanto daquele das histoacuterias

familiares atraveacutes de escritos transmitidos de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Em ambos os exemplos os

escritos culinaacuterios satildeo representativos da memoacuteria coletiva

Ainda no que concerne a essa memoacuteria salientamos que ela tem tambeacutem outras

expressotildees presentes no acircmbito identitaacuterio de uma cultura De acordo com Daniela Bunn em sua

obra O alimento na literatura uma questatildeo cultural ldquo[] satildeo assim criados em torno da mesa

modos maneiras e ingredientes que estabelecem uma identidade cultural destinada a representar

um grupo e sua identidaderdquo (BUNN 2016 p28) Tais lsquomodos maneiras e ingredientesrsquo satildeo

elementos que constituem parte da bagagem que pertence a um grupo e agraves geraccedilotildees seguintes

atraveacutes da memoacuteria coletiva Podemos citar como exemplos os ensinamentos culinaacuterios

aprendidos atraveacutes de gestos e de relatos orais e as preferecircncias alimentares de uma famiacutelia ou de

um povo

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Visitando cadernos de receitas antigos que pertenceram a avoacutes matildees e tias percebemos

uma caracteriacutestica em comum a todos eles o elenco de ingredientes com suas medidas e a breve

descriccedilatildeo do lsquocomo-se-fazrsquo apenas para guiar a praacutetica Parece-nos inclusive que eram

anotaccedilotildees que elas faziam para si mesmas para que natildeo esquecessem de um ou outro detalhe e

natildeo registros para serem transmitidos na famiacutelia Ensinavam sim mas in loco na hora em que

estivessem fazendo Mostravam caracteriacutesticas no aspecto do prato sendo feito apontavam para

os ruiacutedos da cebola fritando faziam sentir a textura de uma massa de patildeo o cheiro de um doce

exalando pela cozinha denunciavam a pitada de sal que ainda faltava no arroz soacute de provarem

com a ponta da colher Como sabiam Porque lembravam pelo que um dia aprenderam e mais do

que isso lembravam pelo haacutebito pelo praticar e de forma mais vivencial pelo sentir atraveacutes dos

cinco sentidos

Em Pequeno alfarraacutebio de acepipes e doccediluras haacute um capiacutetulo dedicado agrave cozinha das

avoacutes intitulado lsquoNossas avoacutesrsquo cujo propoacutesito eacute o de refletir de modo especiacutefico sobre a cozinha

que atravessa a memoacuteria e permanece como registro vivo pela referecircncia ao papel que estas

desempenham na memoacuteria de muitas pessoas Os pratos e doces feitos por elas as avoacutes de tantas

geraccedilotildees tornam-se parte das lembranccedilas que deixam na famiacutelia Aleacutem disso as receitas das avoacutes

satildeo emblemaacuteticas da memoacuteria que se manteacutem viva atraveacutes de um grupo que a alimenta a

memoacuteria coletiva conforme referida por Aleida Assmann ao mencionar as ideias de Maurice

Halbwachs

Um dos aspectos mais relevantes dessa lsquocozinha das avoacutesrsquo eacute o modo como tinham no

corpo o conhecimento da praacutetica culinaacuteria No texto lsquoA memoacuteria nas matildeosrsquo eacute referido esse

aspecto

No caso da Voacute Leacuteia e de tantas avoacutes da eacutepoca acho que tinham a memoacuteria nas matildeos

com tudo o que aprendiam e praticavam vida afora No entanto a sabedoria vai aleacutem

Acredito que sentissem vivamente nas etapas os cheiros gostos sons do alimento

aspecto textura pulsaccedilatildeo As matildeos preparavam mas todo corpo participava do feito

culinaacuterio Prestavam atenccedilatildeo estavam de fato presentes na tarefa E assim a memoacuteria era

lsquocarimbadarsquo nas matildeos nos cinco sentidos na emoccedilatildeo de um sabor que alegrava a

cozinha (CARDOSO 2012 p61)

O elemento determinante da memoacuteria das avoacutes cuja vivecircncia culinaacuteria era cotidiana e de

valor reconhecido entre os familiares eacute a praacutetica Sabiam fazer e muitas vezes de modo

intuitivo adaptavam e ateacute criavam receitas por esse conhecimento A lsquomemoacuteria nas matildeosrsquo

consistia em identificar pelo tato que a massa do patildeo estava no ponto quando a pele assim

36

determinava E reconheciam isso por um dia ter aprendido mas principalmente porque apoacutes

tantas repeticcedilotildees do lsquocomo-se-fazrsquo foi a pele que passou a identificar este ponto ainda antes do

conhecer cognitivo Tal reflexatildeo conduz ao que refere Ricoeur sobre o par haacutebitomemoacuteria

quando o primeiro elemento do par alude agraves circunstacircncias em que o passado adere ao presente

Um saber adquirido eacute mantido em praacutetica o que torna sua lembranccedila como um fator que integra a

atualidade do fazer e natildeo apenas o passado

Esta memoacuteria das avoacutes que mantinham vivo um modo de conhecer o ato culinaacuterio como

parte de seu saber vivencial ilustra com nitidez a ideia da memoacuteria coletiva jaacute que seu saber era

compartilhado em seu tempo natildeo pela receita escrita mas pela forma como esse era sentido e

atuado na cozinha Agrave medida que as geraccedilotildees que detinham esses conhecimentos antigos foram

terminando suas memoacuterias de forno-e-fogatildeo construiacutedas pela accedilatildeo e pelos sentidos agrave beira do

fogo ou do balcatildeo foram deixando de existir O que ficou para as geraccedilotildees seguintes foi o

conjunto de receitas escritas mas essas natildeo substituem a riqueza de um fazer empiacuterico intuitivo

recordado no corpo

O escritor e pesquisador Michael Pollan faz uma referecircncia interessante nesse sentido ao

advertir que natildeo se deve comer nada que a avoacute natildeo chamaria de comida Essa expressatildeo proposta

no fulcro de uma culinaacuteria dirigida para fora dos lares e feita de alimentos muitas vezes pouco ou

nada saudaacuteveis chama a atenccedilatildeo para o reconhecimento das avoacutes como detentoras de um saber

uacutenico aquele da lsquocomida de verdadersquo

Avoacutes matildees e tias satildeo personagens de grande relevacircncia no aprendizado de cozinha das

geraccedilotildees seguintes Eacute possiacutevel que isso se deva a seu papel ancestral de transmissatildeo de um saber

especiacutefico A memoacuteria dos antepassados constitui o alicerce a fundamentaccedilatildeo da famiacutelia a partir

de experiecircncias e de saberes que um dia foram vivenciados para serem entatildeo narrados ao longo

do tempo agraves proacuteximas geraccedilotildees O socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da

culinaacuteria brasileira tece uma relevante consideraccedilatildeo a esse respeito ldquoOs saberes culinaacuterios

evoluiacuteram como uma heranccedila que se transmite matrilinearmente ndash e os cadernos de receitas das

avoacutes satildeo uma sobrevivecircncia persistente dessa diretrizrdquo (DOacuteRIA 2014 p206)

Doacuteria aborda outro elemento significativo na contribuiccedilatildeo com o papel da memoacuteria na

cozinha a corporeidade Esse fator representa o proacuteprio ato culinaacuterio que eacute exercido pelo corpo

Eacute nele que reside a memoacuteria dos movimentos e dos gestos implicados no preparo do alimento

como bater claras sovar a massa do patildeo picar a cebola etc Neste sentido o autor refere

37

O corpo eacute tradicionalmente o principal instrumento do fazer culinaacuterio As ferramentas

da faca ao mais sofisticado equipamento utilizado na culinaacuteria molecular satildeo em geral

expedientes que visam economizar gestos ou conferir-lhes maior precisatildeo mas o

empenho fiacutesico com destreza eacute o primeiro responsaacutevel pelos resultados alcanccedilados []

(DOacuteRIA 2014 p216)

Essa reflexatildeo significa na compreensatildeo da memoacuteria ligada agrave cozinha que eacute o corpo o

principal responsaacutevel pela praacutetica culinaacuteria incluindo qualidades como a destreza mencionada

por Doacuteria A faca poderaacute cortar bem estar afiada mas se o corpo natildeo souber usaacute-la isso de nada

adiantaraacute Tal ponto nos remete agrave ideia da memoacuteria do corpo referida por Ricoeur no que tange

a uma espeacutecie de memoacuteria que pode ser agida na praacutetica habitual do indiviacuteduo fazendo parte de

sua identidade ter domiacutenio de um dado ato culinaacuterio daacute a algueacutem a consciecircncia de que sabe

fazer de que se lembra de que aquele saber eacute parte de si

Assim o ato culinaacuterio aprendido tanto por livros de receitas como pela transmissatildeo oral

por familiares representa a memoacuteria coletiva quando esse ato eacute praticado rotineiramente pelo

sujeito que aprendeu isto contribui para a consciecircncia de si representando o papel da memoacuteria

individual Cabe ressaltar tambeacutem a presenccedila da memoacuteria ancestral que acompanha as vivecircncias

de cozinha A esse propoacutesito Doacuteria refere que ldquoAssim lsquofazer para o outrorsquo ndash essa doaccedilatildeo atraveacutes

de um intermediaacuterio ao mesmo tempo material e simboacutelico como eacute a comida ndash permanece a

marca feminina do cozinhar desde os primeiros tempos da humanidaderdquo (DOacuteRIA 2014 p221)

Tal constataccedilatildeo reforccedila o papel ancestral das avoacutes matildees e tias na transmissatildeo do saber culinaacuterio

A postagem do blog Serendipity in Cucina traz no relato memorialiacutestico sobre a vivecircncia

de sua autora reflexatildeo sobre o componente ritualiacutestico do cozinhar

Haacute alguns anos decidi comeccedilar a fazer a chimia de uvas lsquoda Voacute Leacuteiarsquo a partir das

lembranccedilas que tenho do fazer de minha avoacute materna a quem assisti preparando o doce

inuacutemeras vezes Os dados sobre as proporccedilotildees tais como igual peso das cascas de uva e

do accediluacutecar e aacutegua que cubra soube por uma prima mas meu objetivo principal era o de

seguir a memoacuteria mais de vinte anos depois da uacuteltima vez que a vi fazendo o doce

Entatildeo sempre no veratildeo na eacutepoca dessas uvas repito a experiecircncia Fico em frente agrave

caccedilarola e a coloco em fogo baixo depois da fervura mexendo com a colher de pau em

giros lentos e precisos Percebo a mudanccedila atraveacutes da resistecircncia que o composto faz agrave

colher e assim progressivamente o fazer demanda mais forccedila do braccedilo direito Presto

atenccedilatildeo ao aspecto o roxo cintilante do iniacutecio torna-se mais opaco e fechado o brilho

das cascas da uva Isabel com que eacute feita a chimia diminui agrave medida que essa se

aproxima do resultado final O aroma toma conta da casa toda de forma insidiosa

Identifico que estaacute pronta pela consistecircncia reconheccedilo este momento porque a imagem

de minha avoacute em seus giros da colher de pau eacute parte de minha memoacuteria bem como a

lembranccedila das etapas da receita Quando repito seu movimento com semelhante

vagarosidade e empenho faccedilo-o pela lembranccedila do que assisti entretanto eacute provaacutevel

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que a repeticcedilatildeo se deva tambeacutem ao ritual em que consiste o cozinhar O proacuteprio fato de

estar agrave frente do fogo preparando o alimento eacute por si um ritual (CARDOSO 2015)

Assim o papel da ancestralidade manifesta-se no modo como se vivencia o contato com a

comida tanto no cozinhar quanto no comer e no partilhar a refeiccedilatildeo pessoas afins ou seja esses

atos configuram-se como rituais Retomamos as contribuiccedilotildees de Mircea Eliade para corroborar

essa compreensatildeo especialmente sua referecircncia de que

Apesar das modificaccedilotildees sofridas no decorrer dos tempos os mitos dos lsquoprimitivosrsquo

ainda refletem um estado primordial Trata-se ademais de sociedades onde os mitos

ainda estatildeo vivos onde fundamentam e justificam todo o comportamento e toda a

atividade do homem (ELIADE 2011 p10)

O fazer a comida e aquele do sentar agrave mesa para compartilhaacute-la satildeo desta forma rituais

que praticamos como seres humanos reencenando mitos A expressatildeo dos rituais estaacute em uma

memoacuteria coletiva ancestral que evocamos nessas praacuteticas

Em suma os mitos descrevem as diversas e algumas vezes dramaacuteticas irrupccedilotildees do

sagrado (ou do lsquosobrenaturalrsquo) no Mundo Eacute essa irrupccedilatildeo do sagrado que realmente

fundamenta o Mundo e o converte no que eacute hoje E mais eacute em razatildeo das intervenccedilotildees

dos Entes Sobrenaturais que o homem eacute o que eacute hoje um ser mortal sexuado e cultural

(ELIADE 2011 p11)

No que concerne agrave praacutetica da cozinha tambeacutem o cumprimento de uma receita traz um ato

de recitaccedilatildeo especialmente na parte que se refere ao lsquomodo de fazerrsquo o que conduz agrave reflexatildeo de

que tambeacutem esta eacute parte do ritual que envolve a produccedilatildeo da comida Fala-se em seguir a receita

no sentido de obedececirc-la Ao ler as orientaccedilotildees o que se lecirc eacute a presenccedila de verbos especiacuteficos do

fazer culinaacuterio conjugados no modo imperativo corte refogue asse e assim por diante Este

recitar que muitas vezes eacute falado em voz baixa enquanto se prepara um prato eacute em si um ato

inerente ao fazer culinaacuterio A respeito da recitaccedilatildeo Eliade aponta que

Na maioria dos casos natildeo basta conhecer o mito da origem eacute preciso recitaacute-lo em certo

sentido eacute uma proclamaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo do proacuteprio conhecimento E natildeo eacute soacute

recitando ou celebrando o mito de origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela

atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos O tempo miacutetico

das origens eacute um tempo lsquofortersquo porque foi transfigurado pela presenccedila ativa e criadora

dos Entes Sobrenaturais Ao recitar os mitos reintegra-se agravequele tempo fabuloso e a

pessoa torna-se consequentemente lsquocontemporacircnearsquo de certo modo dos eventos

evocados compartilha da presenccedila dos Deuses ou dos Heroacuteis Numa foacutermula sumaacuteria

poderiacuteamos dizer que ao ldquoviverrdquo os mitos sai-se do tempo profano cronoloacutegico

ingressando num tempo qualitativamente diferente um tempo lsquosagradorsquo ao mesmo

tempo primordial e indefinidamente recuperaacutevel (ELIADE 2011 p21)

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Carlos Alberto Doacuteria faz uma relevante reflexatildeo sobre a receita culinaacuteria contemplando a

perspectiva desde sua origem ateacute o modo como eacute vista atualmente

Considerando as diferenccedilas tecnoloacutegicas as receitas satildeo sempre prescriccedilotildees sobre o

modo de proceder na cozinha assim como as receitas farmacecircuticas satildeo prescriccedilotildees a

respeito de como os farmacecircuticos devem proceder em seus laboratoacuterios Do ponto de

vista geral ao apontar a unidade receita-cozinha e o modo de lsquoaviamentorsquo estamos

considerando que essa unidade estaacute incrustrada nas demais instituiccedilotildees como a religiatildeo

a famiacutelia o Natal etc (DOacuteRIA 2009 p141)

A receita culinaacuteria eacute entatildeo parte do ritual que envolve as vivecircncias alimentares seja

cozinhar ou comer aleacutem disso essa constitui um relevante material como documento para a

memoacuteria de um local e de uma eacutepoca pois traz em seu vocabulaacuterio e nas accedilotildees que determina

elementos de identificaccedilatildeo que permitem caracterizar sua origem e periacuteodo de vigecircncia A receita

porta consigo a memoacuteria coletiva do contexto de que se origina bem como a memoacuteria

individual de quem a escreve em seu caderno de cozinha e a de quem reconhece nos livros de

receitas pratos que jaacute experimentou

Doacuteria aponta a respeito da memoacuteria implicada nesse tipo de material um aspecto

interessante sobre o papel da memoacuteria contida nos livros culinaacuterios O autor fala a respeito de um

renomado chef internacional Paul Bocuse que eacute contraacuterio agrave praacutetica de receitas lsquoagrave riscarsquo tendo

escrito um livro assim Doacuteria aponta que o chef faz uma ressalva em sua obra orientando ao

leitor que natildeo leve seu conteuacutedo demasiadamente a seacuterio e que ouccedila uma lsquoforccedila desconhecidarsquo

como a inspiraccedilatildeo o que ldquo[] garantiraacute melhores resultados praacuteticosrdquo (DOacuteRIA 2009 p144)

Consideramos por fim que Bocuse tambeacutem estaacute a nos dizer que as suas receitas satildeo

apenas e modestamente o seu modo de fazer aquele prato ou seja elas contecircm a

memoacuteria do seu trabalho como estilo e valor testemunhal e- tambeacutem de modo a

determinar- o livro eacute seu meio de propagaccedilatildeo Visto assim o livro de receitas eacute um

registro de memoacuteria do trabalho que possam ter alguma utilidade para os leitores []

(DOacuteRIA 2009 p144)

Aleacutem dessa referecircncia a Bocuse Doacuteria aponta criticamente a funccedilatildeo da receita para os

que a seguem ldquoEntatildeo se pararmos um minuto para pensar veremos que a receita dentro da

cozinha tem o status de um texto sagrado que nos reduz agrave condiccedilatildeo de seus exagetas

independentemente do grau de preparaccedilatildeo que tenhamos nessa singular teologia alimentarrdquo

(DOacuteRIA 2009 p142) Esse respeito ao texto sagrado eacute de certa forma o cumprimento da

memoacuteria coletiva transmitida atraveacutes dos documentos escritos denominados receitas ao longo do

tempo nessa transmissatildeo ocorrem transformaccedilotildees na forma de execuccedilatildeo dos alimentos

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conforme as modificaccedilotildees culturais de cada eacutepoca ou seja cada periacuteodo e lugar tem seu modo de

interpretar e de realizar as receitas culinaacuterias de acordo com os produtos oferecidos e com as

teacutecnicas vigentes Doacuteria menciona

Por isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculos e as modificaccedilotildees que

introduzimos nas receitas satildeo apenas formas do patildeo continuar existindo mediante as

transformaccedilotildees das receitas Por isso quando seguimos agrave risca uma receita de patildeo natildeo

queremos fazer o patildeo mas uma versatildeo do patildeo que uma tradiccedilatildeo qualquer elaborou

(DOacuteRIA 2009 p147)

Tecidas as consideraccedilotildees a respeito do fazer culinaacuterio consolidado pela memoacuteria coletiva

vale refletir sobre o modo como ele eacute vivenciado atraveacutes da memoacuteria individual Ao contar sobre

a chimia de uvas de sua avoacute apontamos que assistir a seu modo de praticaacute-la foi para a autora o

percurso para aprender a fazecirc-la O lsquocomo-se-fazrsquo guarda as lembranccedilas oriundas da praacutetica

vivenciada pelo ofiacutecio dos cinco sentidos e pelo assistir aos gestos do corpo como os giros lentos

da colher de pau feitos pela avoacute E por tantas outras avoacutes matildees e tias

Assim a memoacuteria coletiva de uma receita culinaacuteria a chimia de uvas Isabel na maneira

como era repetida por muitas pessoas de uma eacutepoca tornou-se tambeacutem memoacuteria individual

Passou a ser parte da identidade da autora do blog pois representa um ponto de identificaccedilatildeo com

sua avoacute pela recordaccedilatildeo marcante de assisti-la fazendo esse doce por isso decidiu fazecirc-lo tempos

depois de seu falecimento seguindo as lembranccedilas do seu fazer A memoacuteria a respeito dos doces

produzidos por ela eacute tatildeo significativa que estaacute registrada em uma crocircnica especiacutefica no jaacute citado

Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e Doccediluras lsquoAs deliacutecias nos vidros de cafeacutersquo a qual

reproduzimos abaixo

Na casa de praia da Voacute Leacuteia e do Vocirc Heacutelio havia milhares de encantos espalhados mas

a cozinha era meu favorito A mesa retangular generosa e lsquoconvidadeirarsquo contava um

universo de histoacuterias de faacutebulas e de sabores mas o que dava uma graccedila especial ao

conjunto era o armaacuterio proacuteximo agrave porta para a varanda Em suas estantes na parte

superior enfeites e guloseimas ali moravam os potes de rapadura de leite

constantemente abastecidos pela voacute Na parte inferior duas portas abriam um territoacuterio

uacutenico respirante Ali vidros de cafeacute daqueles grandes com tampas vermelhas

guardavam geleias chimias e compotas que ela fazia durante o veraneio

Deixaacutevamos para depois a ideia de pedir as receitas tiacutenhamos o propoacutesito de ficar ao

lado quando o panelatildeo estava no fogo tomando nota do lsquocomo-se-fazrsquo mas sem muita

obstinaccedilatildeo Afinal de contas a Voacute estava ali e era a uacutenica que sabia o tim-tim por tim-

tim do ponto das cores dos cheiros que seus feitos adquiriam a cada etapa Entatildeo

tiacutenhamos a fantasia de que ela estaria para sempre renovando as deliacutecias nos vidros de

cafeacute com alquimias de aboacutebora de laranja de uva [] nossa imaginaccedilatildeo percorria

lonjuras no tempo acreditando que seu fazer dos doces seria perene Agora refletindo

sobre por que natildeo peguei nenhuma de suas receitas por que natildeo anotava cada detalhe

41

ocorre-me que esta era uma forma de garantir que ela permaneceria no ofiacutecio que eu

poderia eternamente aprender com ela a fazer suas reliacutequias

Hoje soacute o moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhas conhece o segredo daquelas

inquilinas (CARDOSO 2012 p62)

No texto lecirc-se lsquoo moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhasrsquo mas esse moacutevel eacute a

proacutepria memoacuteria guardando lembranccedilas representadas como lsquoo segredo daquelas inquilinasrsquo A

memoacuteria individual conteacutem segredos pontos que com o passar do tempo natildeo satildeo contados de

acordo com a realidade vivida mas apenas com aquela lembranccedila que permanece atraveacutes das

imagens e de sentimentos muito do que foi percebido nos escapa deixando as cenas como se as

viacutessemos atraveacutes de um vidro embaccedilado Esses satildeo os lsquosegredosrsquo que as portinhas do moacutevel da

cozinha silenciam

Nesse aspecto retomamos a consideraccedilatildeo de Eugegravene Minkowski sobre a memoacuteria

quando esse autor menciona que ldquo[] a lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a

tonalidade emotiva com que este foi percebidordquo (MINKOWSKI 2004 p143) Entende-se assim

que a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos recordaremos dela

no futuro porque eacute assim que a conhecemos

Esses registros existem na memoacuteria e assim constituem parte da consciecircncia do

indiviacuteduo sobre si mesmo Satildeo lembranccedilas que colaboram com a construccedilatildeo da identidade da

autora do texto Chimia da uva Isabel memoacuterias e receita pois ligam-na agrave identificaccedilatildeo com a

avoacute e seu legado culinaacuterio Tal aspecto corrobora o que apresentamos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica

do presente capiacutetulo

As memoacuterias individuais vinculadas agrave cozinha tecircm outro elemento a ser destacado nos

cadernos de receitas muitas vezes haacute referecircncia no tiacutetulo das mesmas a quem fazia tal prato ou

tal doce como especialidade identificando a receita a seu lsquodonorsquo como exemplo cito a lsquotorta de

palmito da Dona Mimi Mororsquo e a lsquopizza de sardinha da Voacute Leiarsquo Satildeo sabores associados agraves

lembranccedilas que temos das proacuteprias cozinheiras como se o saborear e o lembrar de quem

produzia o alimento fossem recordaccedilotildees acopladas

Os tiacutetulos das receitas fazem-nos evocar essas personagens da histoacuteria pessoal Os nomes

presentes no caderno identificam figuras de relevo na vida de quem o guarda assim esse faz

tambeacutem o papel de um aacutelbum de recordaccedilotildees Destacamos nas paacuteginas do livro Pequeno

alfarraacutebio de acepipes e doccediluras que o lsquobolo de melado da Anildarsquo natildeo eacute uma receita qualquer

de bolo de melado mas aquela da qual a autora tem determinada lembranccedila perpetuada pelo

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colorido afetivo lembra-se do momento em que saboreou a receita pela primeira vez da Anilda

sua autora da cozinha em que o bolo era feito e ateacute mesmo do aroma que deixava na casa apoacutes

sair do forno A receita pode tornar-se entatildeo a narrativa das experiecircncias e das pessoas que

fazem parte delas atraveacutes da memoacuteria que nos permite acessar

Muitos livros de temas culinaacuterios satildeo memorialiacutesticos em acircmbito nacional e

internacional Esse elemento confirma a relaccedilatildeo da cozinha com o sujeito que comete nela seus

atos culinaacuterios mais iacutentimos esta constituiraacute o espaccedilo de memoacuteria de quem teve ali ou em outras

cozinhas de sua vida vivecircncias a serem contadas A outras pessoas ou a si mesmo como faz

Antocircnio ao rememorar sua histoacuteria familiar e pessoal enquanto prepara o arroz para o almoccedilo de

famiacutelia

Na seccedilatildeo seguinte apresentamos a anaacutelise da primeira obra do corpus dessa Dissertaccedilatildeo

de Mestrado O arroz de Palma a fim de propor a relaccedilatildeo entre a cozinha e o fenocircmeno da

memoacuteria a partir dos fragmentos escolhidos

14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA

A obra de Francisco Azevedo O arroz de Palma segue a cronologia da lembranccedila a

narrativa dos acontecimentos de sua histoacuteria pessoal e familiar eacute feita atraveacutes da costura de

tempos costura essa em que o fio que une os tecidos eacute a memoacuteria O protagonista Antonio

narrador-personagem tem oitenta e oito anos e estaacute na cozinha da fazenda de sua infacircncia

preparando um almoccedilo para reunir toda a famiacutelia O prato a ser servido O arroz ofertado por sua

tia Palma aos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana na ocasiatildeo do casamento

Os gratildeos jogados aos noivos na igreja satildeo colhidos da pedra por Palma para a oferta do

presente Esses gratildeos atravessam o oceano de Portugal ao Brasil para onde o casal e Palma vecircm

apoacutes dificuldades financeiras no paiacutes de origem e atravessam tambeacutem as geraccedilotildees O arroz

fertilizaraacute a famiacutelia e suas histoacuterias Eacute para celebrar o aniversaacuterio de 100 anos do casamento dos

pais e do arroz presenteado pela tia que Antonio prepara o almoccedilo com o que ainda haacute do

presente para ser compartilhado com os familiares

A narrativa eacute contada por ele enquanto prepara o prato sob a forma de lembranccedilas do que

viveu e do que ouviu da Tia Palma nas longas conversas que tinham desde seus tempos de

crianccedila O protagonista vai alinhavando essas recordaccedilotildees narrando-as como forma de

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estabelecer uma linha de tempo desde o recebimento do arroz pelos pais ateacute o almoccedilo que

cozinha para a famiacutelia com o mesmo arroz cem anos depois Em alguns pontos da histoacuteria

parece tecer uma interlocuccedilatildeo com o leitor mas o elo entre a memoacuteria e os pensamentos eacute feita

de si para si

Pode-se dividir os trechos escolhidos para a presente anaacutelise em trecircs tempos o que

Antonio narra a partir da atualidade o que ouviu de Tia Palma e o que vivenciou Na primeira

condiccedilatildeo estaacute no presente nas duas outras no passado

Quando evoca as lembranccedilas vive-as com tamanha intensidade que sua narrativa traz

eventos antigos como se fossem atuais e refere-se a si mesmo do seguinte modo ldquoE eu menino

enrugado aqui nesta cozinha ainda viajo presente colorido do indicativordquo (AZEVEDO 2008

p17) O termo lsquomenino enrugadorsquo expressa a ligaccedilatildeo entre os tempos do presente e da memoacuteria

enquanto o lsquocoloridorsquo evoca a forccedila com que as lembranccedilas se manifestam trazendo ao presente

tonalidade marcante

Em toda a narrativa o uso das metaacuteforas culinaacuterias para a representaccedilatildeo de vivecircncias de

percepccedilotildees de sentimentos e de lembranccedilas eacute o elemento principal A cozinha eacute assim a forma

constante de expressatildeo do protagonista aleacutem de ser o espaccedilo fiacutesico onde o romance se

desenvolve pois eacute neste lugar que ele estaacute enquanto tece recordaccedilotildees

No primeiro capiacutetulo do livro Antonio fala durante o preparo do almoccedilo que serviraacute para

a famiacutelia entatildeo na atualidade Lembra-se lsquoTia Palma me ensinou a cozinhar eu era jovemrsquo

ilustrando as reflexotildees feitas na subdivisatildeo anterior sobre a relevacircncia da cozinha das avoacutes e das

tias para a memoacuteria individual pois essas satildeo figuras de referecircncia para a construccedilatildeo da memoacuteria

e por conseguinte da consciecircncia de si Diz Antonio

Eu aqui na fazenda Eu aqui na cozinha quatro e pouco da manhatilde Isabel ainda dorme o

sol ainda demora Eu aqui um velho de 88 anos Para os mais novos o Avocirc Eterno o

que natildeo teve comeccedilo nem teraacute fim o que jaacute veio ao mundo com essa cara enrugada Eu

aqui de avental branco picando o tempero verde Preparo o almoccedilo de famiacutelia Terei

forccedilas 88 dois infinitos verticais Eacute boa idade seraacute uma bela festa Tenho praacutetica Tia

Palma me ensinou a cozinhar eu era jovem (AZEVEDO 2008 p9)

Antonio provoca lsquoAs autoridades querem minhas digitais Elas estatildeo na massa do patildeorsquo o

que conduz a dois aspectos jaacute discutidos o papel da memoacuteria individual na identidade papel que

estaacute impregnado na massa do patildeo ou seja no ato culinaacuterio o outro elemento eacute aquele referido

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por Doacuteria quando menciona lsquoPor isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculosrsquo

expressando a feitura do patildeo como resultado da memoacuteria coletiva e da realizaccedilatildeo de rituais

Eacute na cozinha que eu desembesto e solto os bichos Eacute na cozinha que eu viajo sem

passaporte sem bilhete sem revista em aeroportos As autoridades querem minhas

digitais Elas estatildeo na massa do patildeo Querem minha foto Tenho vaacuterias de frente e de

lado com meus pais e irmatildeos e com os que vieram depois Retratos falados- em voz alta

a famiacutelia toda ao mesmo tempo Destrambelhada famiacutelia Sagrada famiacutelia []

(AZEVEDO 2008 p11)

Ainda nesse capiacutetulo ressaltamos um elemento caracteriacutestico da obra as expressotildees da

cozinha que constituem metaacuteforas agrave composiccedilatildeo das famiacutelias A frase emblemaacutetica empregada

pelo personagem lsquofamiacutelia eacute prato difiacutecil de prepararrsquo apresenta as reflexotildees de Antonio sobre

diferenccedilas e peculiaridades entre familiares Todas as alusotildees agraves divergecircncias entre eles satildeo feitas

tendo como eixo a linguagem usada na culinaacuteria Salientamos um aspecto a aproximaccedilatildeo entre

os termos culinaacuterios e as relaccedilotildees familiares representando cozinha e famiacutelia como estruturas

com pontos de convergecircncia

Preciso me concentrar Eacute essencial Por quecirc Ora que pergunta Famiacutelia eacute prato difiacutecil

de preparar satildeo muitos ingredientes Reunir todos eacute um problema- principalmente no

Natal e Ano-Novo Pouco importa a qualidade da panela fazer uma famiacutelia exige

coragem devoccedilatildeo e paciecircncia Natildeo eacute para qualquer um Os truques os segredos o

imprevisiacutevel Agraves vezes daacute ateacute vontade de desistir Preferimos o desconforto do estocircmago

vazio Preferimos o desconforto do estocircmago vazio Vecircm a preguiccedila a conhecida falta

de imaginaccedilatildeo sobre o que se vai comer e aquele fastio Mas a vida- azeitona verde no

palito- sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite O tempo potildee a mesa

determina o nuacutemero de cadeiras e os lugares Suacutebito feito milagre a famiacutelia estaacute

servida (AZEVEDO 2008 p12)

Durante o preparo do arroz mistura lembranccedilas e devaneios seguindo a comparaccedilatildeo

entre pratos culinaacuterios e famiacutelias

Reuacutena essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida Natildeo haacute pressa Eu

espero Jaacute estatildeo aiacute Todas Oacutetimo Agora ponha o avental pegue a taacutebua a faca mais

afiada e tome alguns cuidados Logo logo vocecirc tambeacutem estaraacute cheirando a alho e a

cebola Natildeo se envergonhe se chorar Famiacutelia eacute prato que emociona E a gente chora

mesmo De alegria de raiva ou de tristeza (AZEVEDO 2008 p12)

Entre ponderaccedilotildees e aconselhamentos Antonio fala de si mesmo ao leitor apresentando

sua visatildeo sobre si como um lsquovelho jaacute meio caducorsquo e lsquoum veterano cozinheirorsquo A alternacircncia

entre recordaccedilotildees do passado ideias do presente e diaacutelogo com o interlocutor eacute um dos elementos

que marca a narrativa

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Enfim receita de famiacutelia natildeo se copia se inventa A gente vai aprendendo aos poucos

improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia A gente cata um registro ali de

algueacutem que sabe e conta e outro aqui que ficou no pedaccedilo de papel Muita coisa se

perde na lembranccedila Principalmente na cabeccedila de um velho jaacute meio caduco como eu O

que este veterano cozinheiro pode dizer eacute que por mais sem graccedila por pior que seja o

paladar famiacutelia eacute prato que vocecirc tem que experimentar e comer Se puder saborear

saboreie Natildeo ligue para etiquetas Passe o patildeo naquele molhinho que ficou na

porcelana na louccedila no alumiacutenio ou no barro Aproveite ao maacuteximo Famiacutelia eacute prato que

quando se acaba nunca mais se repete (AZEVEDO 2008 p14)

Essa mistura de periacuteodos entre passado contado passado vivido e presente eacute marcada

pela referecircncia sobre o ingresso do arroz na histoacuteria da famiacutelia pelas matildeos de Tia Palma Os

tempos misturam-se ora mostrando Antonio em sua cozinha na atualidade ora Joseacute Custoacutedio

Maria Romana e Tia Palma em cenas vividas por eles

Quando Antonio se refere a um evento passado usando um verbo no presente pode-se

compreender que atraveacutes da memoacuteria ingressou em outro tempo de si mesmo ou de sua famiacutelia

A mistura entre lembranccedila e atualidade marca muitos dos relatos pois o limiar entre passado e

presente para o protagonista jaacute eacute impreciso assim como as experiecircncias que viveu e aquelas que

ouviu de Palma

Tia Palma era enfaacutetica ao descrever a cena o arroz que desabou sobre os noivos aacute saiacuteda

da igreja foi torrencial Eram punhados e mais punhados Chuva branca que natildeo parava

Nunca se viu tanta fartura em votos de felicidade (AZEVEDO 2008 p15)

-E tu dizes que Palma eacute que eacute a mal-educada

-Basta assunto encerrado Daacute-se o arroz para algueacutem Palma natildeo precisa saber

-O arroz eacute presente O arroz fica

-Pois estaacute bem Guarda esse maldito presente Com o tempo ele haacute de mofar se encher

de bichos e teraacutes que jogaacute-lo fora

-Ouve bem meu querido Joseacute Custoacutedio este arroz eacute amor e puro amor Natildeo haacute de se

estragar (AZEVEDO 2008 p21)

O protagonista recorda-se das vivecircncias com Tia Palma na cadeira em que essa lhe

contava as histoacuterias sobre o arroz e tantas outras Ouvir Palma era vivido por Antonio como se

assistisse a uma peccedila de teatro

A expressatildeo no rosto natildeo daacute a menor pista A histoacuteria de hoje seraacute triste Que vozes

faraacute Que cenaacuterio me apresentaraacute ao levantar as cortinas A sala de jantar Uma ruela de

Viana do Castelo Seraacute dia SeraacuteTia Palma pigarreia faz pequena pausa comeccedila com

gravidade

Primeiro ato Tarde da noite ela garante O coto de vela colado no tampo da mesa mal

ilumina os rostos Mamatildee e papai apenas alguns meses de casados natildeo tecircm o que

comer Nada nem vegetal nem fruta nem gratildeo nada Em voz baixa respeitosa mamatildee

sugere o arroz A resposta que recebe eacute a fuacuteria o murro na mesa e a gargalhada que

parece pranto

-O arroz de Palma

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Outra sonora gargalhada e laacutegrimas Papai parece fora de si

-O arroz de Palma nunca Castigo maldiccedilatildeo que seja Morro de fome mas aquele arroz

varrido do chatildeo nunca

-O arroz de Palma eacute abenccediloado Arroz plantado na terra caiacutedo do ceacuteu colhido da pedra

(AZEVEDO 2008 p26)

Tia Palma sempre contara a Antonio sobre o papel do arroz para sua histoacuteria familiar

fazendo do sobrinho o herdeiro de suas memoacuterias e do conhecimento a respeito da relevacircncia do

ingrediente para a continuidade da famiacutelia

-A fertilidade de vocecircs estaacute no arroz A benccedilatildeo que haacute onze anos ele recusou

-Eu jurei ao Joseacute que o arroz ficava mas natildeo seria comido Foi o combinado

-Pois eu natildeo jurei nada a ele

Mamatildee acha graccedila meio espantada meio com medo

-Palma Como vais fazer

-Primeiro ponho uma dose cavalar de purgante na comida dele que eacute pra desentupiacute-lo

por traacutes Depois trago-lhe uma comida bem levezinha para que ele se recupereUma

canjinha especial bem magrinha como ele gosta Uma xiacutecara de arroz eacute o quanto basta

-Uma canjinha especial

O trato estaacute feito Os risos e o demorado do abraccedilo selam a cumplicidade (AZEVEDO

2008 p38)

Antonio lembra-se da cena em que quando crianccedila assegurou agrave Tia Palma que gostava

de arroz ingrediente crucial na conduccedilatildeo da narrativa Mostrava assim apreciar as histoacuterias

sobre o arroz contadas por ela e sabia desde entatildeo que esse era um elemento decisivo em sua

famiacutelia

E a cadeira jaacute eacute palco e se estamos assim abraccedilados eacute porque eu tambeacutem estou em cena e

agora a fala eacute minha Eacute a minha estreia Inesperada e tatildeo esperada estreia

-Natildeo fique preocupada Eu gosto de arroz De qualquer jeito grudado ou solto eu gosto

Com toda a verdade possiacutevel encerro a minha parte

-Ateacute puro sem feijatildeo sem nada eu gosto juro (AZEVEDO 2008 p28)

Cabe salientar o papel que esse elemento exerce na histoacuteria De acordo com Maria Eunice

Moreira no ensaio lsquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmarsquo ldquo[] o arroz tem

funccedilatildeo especial na formaccedilatildeo do clatilde como o objeto maacutegico que acompanha a trajetoacuteria da

famiacuteliardquo (MOREIRA 2014 p162) Aleacutem de ser o ingrediente que vem de Portugal e atravessa

as geraccedilotildees eacute presente de matrimocircnio de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana e posteriormente de

Antocircnio e Isabel Eacute o fator que fertiliza o primeiro casal e que reuacutene o segundo no almoccedilo entre

as famiacutelias quando Antonio e Isabel comeccedilam sua aproximaccedilatildeo

Esse almoccedilo comeccedila a partir de uma carta de Antonio ao pai em que anuncia de forma

quase imperceptiacutevel o interesse por Isabel e ao final conta que estaacute levando ingredientes

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especiais na sua viagem agrave fazenda ldquoPS Estou levando boas postas de bacalhau azeite vinho

verde e outras tantas gulodices vindas de Portugalrdquo (AZEVEDO 2008 p85) Tia Palma como

sempre com a percepccedilatildeo aguccedilada aos movimentos dos familiares tem a ideia de aproveitar a

ocasiatildeo para convidar a famiacutelia de Isabel a um almoccedilo de confraternizaccedilatildeo

-Vocecircs natildeo fazem anos de casados no dia da chegada de Antonio Entatildeo Preparamos

um almoccedilo e convidamos o senhor Avelino dona Maria Celeste e Isabel que eacute quem

nos interessa

-Palma os Alves Machado nunca se sentaram conosco agrave mesma mesa Natildeo sei Sinto-me

um pouco constrangida Ainda mais aqui em nossa casa tatildeo modesta Satildeo muito bons e

generosos mas satildeo nossos patrotildees O mundo deles eacute laacute em cima na sede

-O Joseacute Custoacutedio e o senhor Avelino natildeo satildeo tatildeo amigos Entatildeo Qual eacute o problema

Acho inclusive que jaacute deveriacuteamos tecirc-los chamado haacute mais tempo Jaacute ouvi por diversas

vezes dona Maria Celeste dizer que o marido gosta do nosso Joseacute como a um irmatildeo

(AZEVEDO 2008 p87)

Tia Palma e Maria Romana comeccedilam assim a combinar o almoccedilo que ocorre com

sucesso Primeiro passo eacute o de abrir o saco de arroz o que as surpreende pelo estado saudaacutevel dos

gratildeos Sendo Isabel a filha dos donos da fazenda e Antonio o filho do funcionaacuterio de confianccedila

haacute um constrangimento inicial que se desfaz com a partilha da refeiccedilatildeo entre as famiacutelias O arroz

une Portugal e Brasil paiacuteses das duas famiacutelias atraveacutes de ingredientes portugueses e tempero

brasileiro mais uma vez estando representada a cozinha como metaacutefora

Essa ocasiatildeo cujo propoacutesito eacute aproximar famiacutelias e reduzir diferenccedilas representa a

comemoraccedilatildeo de aniversaacuterio de casamento de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana bem como a visita

de Antonio agrave fazenda entatildeo morando no Rio de Janeiro Paul Ricoeur qualifica a comemoraccedilatildeo

dentro da caracteriacutestica mundanidade em par com reflexividade Esta mundanidade estaacute

associada agrave realizaccedilatildeo de rituais conforme jaacute visto Antonio alterna a lembranccedila sobre o relato de

Palma a respeito da combinaccedilatildeo entre ela e sua matildee com sua proacutepria recordaccedilatildeo sobre o almoccedilo

-Perfeito Veja Palma pegue

-Ceacuteus Quase 40 anos e ainda saudaacutevel

Mamatildee beija as matildeos de tia Palma

-Amor verdadeiro natildeo se estraga Eacute para sempre

-Trecircs quilos eacute o quanto basta Daraacute um belo arroz de bacalhau

-Eacute impossiacutevel que Antonio e Isabel natildeo se resolvam

O almoccedilo eacute um sucesso Os Alves Machado chegam um pouco cerimoniosos mas logo

com tantos comes e bebes somos a mesma famiacutelia (AZEVEDO 2008 p88)

O papel do arroz na histoacuteria seraacute tambeacutem o de testemunhar a uniatildeo fiacutesica de Antonio e

Isabel agrave beira do lago antes do casamento

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-Eu sou o dono do arroz que tambeacutem eacute seu dona Isabel

-DonaPor acaso estamos casados

Sim estamos casados O Deus do azul sabe que estamos O lago menor sabe que

estamos O sangue e o arroz sabem que estamos (AZEVEDO 2008 p105)

Outra ocasiatildeo em que o arroz assume papel de ritual eacute quando o casal ganha de Joseacute

Custoacutedio Maria Romana e Palma o presente com nova dedicatoacuteria atualizada revisitando a

primeira feita por Palma Seraacute portanto o herdeiro do arroz ofertado pela Tia Palma a seus pais

junto a Isabel jaacute que o casal ganha o arroz como presente por seu matrimocircnio

Quero distacircncia de religiotildees mas respeito rituais Influecircncia de tia Palma admito Meu

cafeacute da manhatilde eacute sagrado O ritual eacute sempre o mesmo a hora a xiacutecara o pocircr o leite

primeiro o escurececirc-lo depois no ponto certo o abrir o patildeo o tirar o miolo

(AZEVEDO 2008 p127)

Individual ou coletivo o ritual eacute conexatildeo e cumplicidade [] Concluo que haacute sempre

algo de autoritaacuterio nos rituais Mas neles natildeo haveraacute tambeacutem algo que emociona Natildeo

haveraacute algo de belo e poeacutetico (AZEVEDO 2008 p127)

O arroz e todo o simbolismo que envolve na formaccedilatildeo dessa famiacutelia seraacute transmitido a

Antonio e Isabel em ocasiatildeo formal como desejam seus pais e Tia Palma

E o arroz Eacute o arroz Tia Palma quer que a entrega dessa vez ganhe algum ritual

Mamatildee e papai concordam Natildeo satildeo apenas os oito quilos que contam O presente de

casamento tem agora o peso da histoacuteria Portanto natildeo seraacute dado de modo informal

como aconteceu em Viana do Castelo (AZEVEDO 2008 p128)

O ritual de transmissatildeo do arroz eacute celebrado com a dedicatoacuteria atualizada e assinada por

seus pais e por Tia Palma eacute ela que faz a cerimocircnia de entrega ao sobrinho e agrave Isabel repetindo o

gesto feito na oferta do presente a Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu matrimocircnio

-Isabel e Antocircnio meus queridos este arroz que haacute quase 40 anos foi dado como

presente de casamento agrave minha cunhada Maria Romana e ao meu irmatildeo Joseacute Custoacutedio

por nossa vontade agora vos pertence Fazemos votos de que a tradiccedilatildeo continue e de

que todo o amor aqui contido chegue agraves geraccedilotildees futuras

Mamatildee potildee os oacuteculos lecirc a dedicatoacuteria atualizada

lsquoEste arroz-plantado na terra caiacutedo do ceacuteu como o manaacute do deserto e colhido da pedra- eacute

siacutembolo da fertilidade e do eterno amor Essa eacute a nossa benccedilatildeo

Palma Maria Romana e Joseacute Custoacutedio

Fazenda Santo Antocircnio da Uniatildeo em 13 de junho de 1946rsquo

Protegido pelo pano branco o arroz passa agraves nossas matildeos (AZEVEDO 2008 p130-

131)

Ainda no que concerne ao papel do ingrediente como elemento com atributo de ritual estaacute

a cena em que Antonio lecirc a receita em seu caderno do arroz de lentilhas de Tia Palma escrita

por ela com recomendaccedilotildees O aspecto a ser ressaltado nesse ponto estaacute principalmente na

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forma de apresentaccedilatildeo da receita que indica a importacircncia de recitar os trechos durante a feitura

do prato

Antonio meu querido lava bem as lentilhas em aacutegua corrente enquanto recitas

lsquotrepadeira trepadeirabeijo-te as folhas penadas e as flores violaacuteceas trepadeira

trepadeiranatildeo estou ao fundoestou ao frescoestou agrave beiraeacutes fortuna eacutes sauacutede eacutes

companheiratrepadeira trepadeira eacutes amor amigo eacutes paixatildeo verdadeirarsquo

Feito isso respira fundo trecircs vezes e solte o ar pela boca Deixa teu corpo sentir o

benefiacutecio Potildee as lentilhas em tacho com bastante aacutegua jaacute temperada de sal Leva ao

lume alto ateacute ferver Ao ferver abaixa o lume e deixa cozinhar ateacute que as lentilhas

estejam macias

Escorre a aacutegua da fervura E enquanto ela se vai diz com voz de certeza lsquoaacutegua

fervidaaacutegua de sal e de vidaaacutegua boa que seguetoma teu rumofertilizarsquo

(AZEVEDO 2008 p146-147)

A recomendaccedilatildeo de que faccedila as recitaccedilotildees ao cozinhar o prato traz a reflexatildeo sobre o

exposto por Mircea Eliade sobre a relevacircncia de recitar os mitos exposta anteriormente ldquo[]

recitando ou celebrando o mito da origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela atmosfera

sagradardquo (ELIADE 2011 p21) Haacute outra referecircncia a esse autor que merece ser salientada

pensando-se nos trechos a serem recitados como os cantos a que Eliade se refere ldquoA

recapitulaccedilatildeo atraveacutes dos cantos e da danccedila eacute simultaneamente uma rememoraccedilatildeo e uma

reatualizaccedilatildeo ritual dos eventos miacuteticos essenciais ocorridos desde a Criaccedilatildeordquo (ELIADE 2011

p27)

Laura Esquivel escreve no ensaio intitulado lsquoEl manaacute sagradorsquo em seu livro de ensaios

Iacutentimas suculencias-Tratado filosoacutefico de cocina sua perspectiva sobre a relaccedilatildeo entre a comida

e os rituais corroborando a importacircncia da cozinha como espaccedilo simboacutelico

Talvez natildeo haja muita diferenccedila entre falar de comida e falar de religiotildees Quase em

todas elas umas e outras se faz presente a divindade atraveacutes dos alimentos De fato natildeo

podemos negar que um rito obrigado de quase toda religiatildeo eacute o momento de comer e de

beber a deidade ou para a deidade O sentido profundo da alimentaccedilatildeo em alguma

medida tem a ver com nossa sede de eternidade cifrada na manutenccedilatildeo cotidiana da vida

Talvez por isso todos os deuses tenham deixado sua presenccedila contida nos alimentos

Nesse sentido nos alimentamos para viver e por viver O desfrute da comida tem

lampejos de vida eterna Mas natildeo soacute eacute fundamental o ato em si de comer tambeacutem o eacute a

cerimocircnia que implica preparar e compartilhar os alimentos A cerimocircnia ritual que se

realiza em torno da mesa eacute um ato de profunda e antiga significaccedilatildeo religiosa

(ESQUIVEL 2014 p77)

Entretanto natildeo apenas de comemoraccedilotildees eacute constituiacuteda a funccedilatildeo do arroz na narrativa

Algumas circunstacircncias satildeo provocadas pela representaccedilatildeo desse ingrediente na histoacuteria como as

diferenccedilas entre o protagonista e seus irmatildeos a tentativa de seus filhos Nuno e Rosaacuterio

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mexerem no gratildeo derrubando-o na vitrine do restaurante e o deflagrar das emoccedilotildees da cunhada

em relaccedilatildeo a Antonio quando esta rouba uma porccedilatildeo do arroz para ter um pedaccedilo de Antonio

consigo

-Senti forte ciuacuteme de Isabel Inveja raiva tudo E ainda por cima era obrigada a

esconder o que sentia Quando vocecirc fez a vitrine iluminada no restaurante soacute pra expor o

arroz passei a acreditar que seria possiacutevel ter ao menos um punhadinho daquela

felicidade

-Vocecirc ainda tem ele

-Natildeo

-Natildeo

-Fiz do meu jeito Preparei ele na aacutegua e sal e comi Antes pedi a Deus que me desse um

pouco de vocecirc tambeacutem Nem que fosse por um dia

Amaacutelia torna a recostar a cabeccedila no meu peito Nada mais eacute dito Ou se eacute dito natildeo deixa

registro Acho que cochilamos Levantamo-nos da cama com o desprendimento de um

encontro rotineiro (AZEVEDO 2008 p217)

Entre rememoraccedilotildees e devaneios Antonio entrelaccedila retalhos do passado agrave sua percepccedilatildeo

sobre o presente a finitude as lembranccedilas recentes que se confundem o fluxo de consciecircncia

Reflete sobre o que faz ali na cozinha preparando o almoccedilo familiar e ao mesmo tempo

reconstroacutei lembranccedilas antigas que compuseram sua atualidade

Se me perguntarem natildeo sei dizer o que comi ontem no almoccedilo Mas sou capaz de

reproduzir diaacutelogos inteiros da minha juventude quando esta fazenda ainda era do

senhor Avelino e eu ainda morava na casa laacute de baixo com tia Palma meus pais e meus

irmatildeos Gozado isso Vaacute entender Memoacuterias antigas Niacutetidas perfeitas cheias de

miacutenimos detalhes cheiros e sons ateacute Inclusive as experiecircncias ancestrais que natildeo vivi

as histoacuterias laacute de Portugal que me foram contadas todas aqui dentro de cor e salteado

Fatos recentes Coitados Vatildeo se segurando em mim como podem (AZEVEDO 2008

p143)

A constataccedilatildeo de seus 88 anos daacute ao protagonista a consciecircncia de sua condiccedilatildeo de idoso

aceitando as falhas de lembranccedila mas natildeo aquelas em sua capacidade como cozinheiro

experiente

Natildeo quero vocecirc metida aqui dentro da cozinha Por favor Isabel Natildeo eacute nada disso Eacute

porque vocecirc fica zanzando para laacute e para caacute Potildee a matildeo prova daacute palpite Me atrapalha

Fico doido natildeo quero Nem vocecirc nem ningueacutem Deixa que eu dou conta do recado

Tantos anos agrave frente laacute do restaurante chefe com vaacuterios precircmios natildeo basta Eacute preciso

mais Idoso coisa nenhuma Dispenso o eufemismo bobo Sou velho isso sim Eu sei

natildeo precisa dizer A vista natildeo ajuda muito nem as pernas nem os reflexos Mas espera

aiacute gagaacute ainda natildeo estou Tenho forccedila nas matildeos Acho que ainda posso mexer uma

panela Quatro panelotildees concordo Fica tranquila que natildeo vou me queimar Nem a

comida (AZEVEDO 2008 p144-145)

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A capacidade de Antonio com a cozinha comeccedilou com os aprendizados que teve com sua

tia na juventude e consolidou-se com a praacutetica Tal aquisiccedilatildeo lembra o referido sobre o par

memoacuteriahaacutebito na fenomenologia da memoacuteria proposta por Paul Ricoeur A capacidade

representa o elemento haacutebito pois eacute primordialmente construiacuteda a partir da atividade rotineira de

um atributo Talvez por isso na narrativa Antonio aceite as falhas de memoacuteria inerentes ao

envelhecimento mas natildeo a ideia de diminuiccedilatildeo daquilo que eacute seu por meacuterito por conquista com

esforccedilo dedicaccedilatildeo e sobretudo repeticcedilatildeo Antonio recorda-se de quando partiu para encontrar

trabalho na capital certo de que seguiria a atividade de cozinheiro

-O que eacute que significa isso agora Pra quecirc essa mala Antonio -Calma calma que eu natildeo vou pra guerra -Eu sabia Estaacutes indo embora por causa dessa moccedila Isabel E eacute tudo culpa da Palma

-Tenho 21 anos meu pai Sei muito bem o que faccedilo A vida do campo natildeo eacute para mim

Vou para a capital Farei amigos laacute E amigas

-Mas assim tatildeo de repente

-Trabalharei em restaurante conhecerei pessoas influentes ficarei conhecido e serei

proacutespero

-Para quecirc tanto entusiasmo Para lavar pratos Servir mesa

-Tambeacutem Mas natildeo eacute soacute isso Quero cozinhar Quem sabe um dia consigo abrir meu

proacuteprio negoacutecio

Papai se irrita

-Como cozinhar De onde tiraste essa ideia maluca (AZEVEDO 2008 p67)

O aprendizado com a tia eacute representativo da memoacuteria coletiva que se perpetua em um

grupo neste caso o familiar para a manutenccedilatildeo de um saber entre seus membros Essa memoacuteria

coletiva na histoacuteria eacute expressa pelo cozinhar como um conhecimento transmitido mas

principalmente pela histoacuteria que envolve o arroz nessa famiacutelia A narrativa dessa histoacuteria ao

longo das geraccedilotildees constitui tambeacutem a representaccedilatildeo dessa espeacutecie de memoacuteria na famiacutelia de

Antonio

Para aleacutem do que aprendeu com Tia Palma houve o que a praacutetica lhe ensinou

trabalhando em restaurantes ateacute que pudesse montar o proacuteprio negoacutecio Lembra-se de cenas do

percurso que seguiu ldquoO mar de mesas eacute convite agrave aventura Sigo Na copa e na cozinha o

barulho de louccedilas e talheres eacute intempeacuterie A vozearia eacute a marujada a postos que me recebe Esta eacute

a minha gente natildeo tenho duacutevidas Este eacute o meu barco e []rdquo (AZEVEDO 2008 p79)

Antonio tem em Palma seu referencial chamando por ela quando se vecirc em desafios

evocando lembranccedilas dos seus ensinamentos

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Transpiro o nervoso que vem de dentro Tia Palma por favor me ajuda lsquoO que o corpo

potildee para fora nos purificarsquo Saacutebia Tia Palma natildeo me falta nunca A cenoura e a batata jaacute

cortadas os tomates em rodelas e sem as sementes a cebola picada bem miudinha todos

nas respectivas vasilhas Mais alguma coisa Isso e aquilo Pronto acabei Natildeo me

canso Ao fim do expediente ainda haacute focirclego e entusiasmo de sobra Reluto em desfazer

o laccedilo do avental Jaacute (AZEVEDO 2008 p80)

Uma das cenas da obra que ilustra o entrelaccedilamento entre a memoacuteria individual e a

coletiva eacute no enterro dos pais de Isabel quando Antonio canta uma canccedilatildeo tradicional

portuguesa pensando fazecirc-lo em voz baixa como forma de homenagem Enquanto canta suas

memoacuterias tocam-lhe a ponto de natildeo perceber que o faz em voz alta E aqui estaacute o referido

entrelaccedilamento as demais pessoas presentes no enterro tambeacutem se emocionam e cantam em

coro Presentes ali estatildeo as proacuteprias lembranccedilas e aquelas de suas famiacutelias

Numa casa portuguesa fica bem

patildeo e vinho sobre a mesa

Quando agrave porta humildemente bate algueacutem

Senta-se agrave mesa coacutea gente

Fica bem essa fraqueza fica bem

que o povo nunca a desmente

A alegria da pobreza

estaacute nesta grande riqueza

de dar e ficar contente

(AZEVEDO 2008 p193)

Antonio segue a cantoria da muacutesica que pensa estar cantando para si Entatildeo percebe ter

cantado em voz alta e a emoccedilatildeo que causou Letra e muacutesica satildeo parte de sua memoacuteria individual

pela origem da famiacutelia e da memoacuteria coletiva dos presentes ao enterro que cantam com ele a

tradiccedilatildeo

Em algum momento tenho a impressatildeo de que algumas pessoas me acompanham e que

ao final todos ali cantamos juntos emocionados lsquoUma casa portuguesarsquo Volto ao enterro

com aplausos Reflexo condicionado eu mesmo bato palmas Isabel aos prantos me

beija agradecida pela homenagem inesperada Olho ao redor todos choram

copiosamente Natildeo eacute possiacutevel Seraacute que em vez de falar alto comigo mesmo cantei

alto Soacute pode ser (AZEVEDO 2008 p194)

Na volta do enterro o papel da comida em nutrir e acalentar eacute referido atraveacutes da

expressatildeo empregada por Antonio lsquopedimos a ela que nos aqueccedila algo para pocircr no estocircmagorsquo

como segue no trecho abaixo ldquoQuando chegamos em casa Nuno e Rosaacuterio jaacute estatildeo dormindo

Conceiccedilatildeo garante que ficaram quietinhos natildeo deram trabalho algum Pedimos a ela que nos

53

aqueccedila algo para pocircr no estocircmago Ela diz que fez uma sopinha de legumes e jaacute nos chamardquo

(AZEVEDO 2008 p194)

O protagonista segue a narrativa evocando lembranccedilas reconstruindo impressotildees

reconhecendo a si mesmo atraveacutes da costura de retalhos da memoacuteria Estaacute em sua cozinha mas

viaja para muitos periacuteodos de sua vida visita a si mesmo em muitas eacutepocas lembra dos pais da

tia dos sogros dos irmatildeos dos filhos ateacute o momento atual Entatildeo na cozinha da fazenda aos 88

anos prepara com esmero os gratildeos de memoacuteria restantes em cozimento nas panelas Antonio

aguarda o encontro do passado com o presente no almoccedilo de famiacutelia Quando esse acontece

todos nas mesas entusiasmo e lembranccedila espalham-se na famiacutelia

Benccedilatildeo vivermos o bastante para poder dividi-lo assim irmatildemente sem conta de

padeiro nem laacutepis engatilhado atraacutes da orelha Olha soacute a cara da Leonor e a do Nicolau e

a do Joaquim Velhos bobos Nem sonhavam que ainda iam provar do arroz de Tia

Palma E agora choram desse jeito Natildeo eacute cebola nada que eu sei Eacute muita lembranccedila e

sonho tudo misturado agrave moda da casa Fiz de propoacutesito para pegar vocecircs de surpresa E

para a Amaacutelia - me pergunto- que gosto teraacute esse segundo arroz Qual o sabor de um

arroz assim permitido e compartilhado A garotada pode achar que somos velhos gagaacutes

e que essa histoacuteria eacute pura invencionice Impossiacutevel um arroz durar tanto a ciecircncia isto a

ciecircncia aquilo Eu natildeo ligo a miacutenima Vocecircs ligam Entatildeo oacutetimo Vamos comer agrave

vontade que haacute arroz para todos Joaquim meu irmatildeo me passa o azeite (AZEVEDO

2008 p352)

No trecho seguinte ao perguntar-se lsquoquantas vezes maisrsquo o protagonista expotildee sua

percepccedilatildeo quanto agrave finitude o tempo que ainda teraacute para novas cenas como aquela ldquoNoacutes

adultos continuamos em volta das mesas agraves voltas com as lembranccedilas Porque nos apetecem

repetimos o doce repetimos o vinho repetimos as histoacuterias Quantas vezes maisrdquo (AZEVEDO

2008 p356)

Ao longo da narrativa Antonio evoca histoacuterias lembranccedilas que lhe surgem

espontaneamente acionadas por outras por devaneios e por emoccedilotildees De acordo com Maria

Eunice Moreira em seu ensaio

A memoacuteria de Antonio organiza a configuraccedilatildeo caoacutetica da accedilatildeo externa dando um

sentido ao amontoado de fatos e episoacutedios jaacute vividos Nessa seleccedilatildeo privilegia natildeo a

memoacuteria anotada e escrita em cadernos ou diaacuterios mas aquela mais viva mais seletiva e

mais afetiva (MOREIRA 2014 p169)

No referido ensaio o fragmento acima corresponde agrave reflexatildeo de Antonio sobre a forma

como suas lembranccedilas lhe aparecem

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A memoacuteria que vai para o diaacuterio fica toda arrumadinha linear dia mecircs e ano Agraves vezes

horas e ateacute minutos constam do registro Mas quando velho a gente vai e consulta o

caderno se espanta com o montatildeo de coisa que jaacute nem faz sentido e estaria apagado natildeo

fosse a tinta A memoacuteria puxada da cabeccedila natildeo Eacute esforccedilo de selecionar soacute o que presta

o que nos eacute querido Natildeo eacute discurso ensaiado e lido Eacute fala de improviso com todos os

erros e tropeccedilos que a ousadia pode causar (AZEVEDO 2008 p248)

O que Antonio estaacute referindo eacute o conjunto de suas lembranccedilas na despensa da memoacuteria

aquelas que o identificam por constituiacuterem etapas de sua vida atraveacutes delas se reconhece

assume a consciecircncia de si Mesmo com o embaralhamento entre lembranccedilas e devaneios o

protagonista faz um balanccedilo de sua existecircncia enquanto prepara o almoccedilo familiar Estaacute na

cozinha porque esta eacute seu refuacutegio seu lugar no mundo Prepara o arroz para compartilhaacute-lo

assim como sua Tia Palma partilhava com ele suas histoacuterias sentada na quarta cadeira Os

trechos a seguir representam com nitidez o papel da comida agrave mesa para Antonio Mais uma vez

estatildeo presentes as lembranccedilas de tempos vividos e o arroz no prato como na frase lsquoo arroz tem

que vir sempre na frentersquo

A descriccedilatildeo de comidas caseiras do esmero de Conceiccedilatildeo ao arrumar a mesa da atitude

de Isabel em servi-lo todos satildeo elementos construiacutedos ao longo do tempo e tecircm como raiz as

experiecircncias familiares transformadas em memoacuteria O lsquocheiro gostoso da comidinha caseirarsquo eacute o

elemento sensorial que o acolhe na atmosfera de casa e simultaneamente o leva a viajar em suas

lembranccedilas O lsquoalmoccedilo de famiacutelia cotidianorsquo eacute o elemento que conduz o protagonista a cenas

semelhantes no passado como quando seus filhos eram crianccedilas Refeiccedilatildeo para Antonio eacute a

famiacutelia na mesa Assim a comida e a famiacutelia mais uma vez estatildeo vinculadas para ele como

sinocircnimos De recordaccedilatildeo de aconchego de partilha do gosto e do cheiro bom

Conceiccedilatildeo chega e anuncia que o almoccedilo estaacute indo para a mesa Graccedilas a Deus Meu

estocircmago jaacute estaacute roncando Puxo Rosaacuterio do sofaacute

-Vamos

E vamos todos levados pelo cheiro gostoso da comidinha caseira Ao nos sentarmos agrave

mesa impossiacutevel natildeo reparar no costumeiro apuro O caimento da toalha Os pratos os

copos os talheres afastados na medida certa Os guardanapos bem dobrados agrave esquerda

A cesta de patildees posta com arte Natildeo eacute almoccedilo para visitas Eacute almoccedilo de famiacutelia

cotidiano- esmero da Conceiccedilatildeo que ama tudo o que faz Laacute vem ela de novo da

cozinha pousa do meu lado a terrina do feijatildeo fumegando me daacute aquele sorriso de

missatildeo bem cumprida

-Botei bastante paio Ontem o senhor ficou revirando a concha dizendo que dava

precircmio para quem encontrasse um (AZEVEDO 2008 p311)

A cena pode ser compreendida sob a perspectiva de Laura Esquivel no ensaio jaacute referido

quando a autora exprime sua visatildeo sobre a comida e a partilha da mesa

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E ainda que natildeo sejamos religiosos creio que para nenhum de noacutes seraacute estranho pensar

que atraveacutes dos aromas que compartilhamos com nossos semelhantes dos sabores dos

alimentos e da substancial presenccedila da divindade neles os seres humanos podemos ter

dia apoacutes dia uma pequena antecipaccedilatildeo do paraiacuteso (ESQUIVEL 2014 p78)

A ideia de Esquivel sobre a lsquoantecipaccedilatildeo do paraiacutesorsquo coincide com o sentimento de

Antonio sobre a cozinha Para o protagonista essa representa a casa o sabor a famiacutelia Simboliza

o que Gaston Bachelard refere na frase ldquoPode-se demonstrar as primitividades imaginaacuterias

mesmo a respeito desse ser soacutelido na memoacuteria que eacute a casa natalrdquo (BACHELARD 2012 p47)

Pode-se complementar essa frase com outra ideia do autor ldquo[] a casa natal eacute uma casa

habitadardquo (BACHELARD 2012 p33) Ao estar na cozinha ou na sala de jantar ao estar sentado

agrave mesa a emoccedilatildeo eacute a de estar em casa naquela que primeiro conheceu como casa a fazenda A

casa natal eacute e sempre seraacute habitada pelas lembranccedilas Esse espaccedilo corresponde a um lugar de

memoacuteria conforme referido por Ricoeur A casa natal eacute um ser soacutelido na memoacuteria porque ela

conteacutem as primeiras vivecircncias afetos impressotildees Eacute ali que a vida comeccedila que se enraiacuteza dali

vecircm as lsquoprimitividades imaginaacuteriasrsquo e as lembranccedilas que tornaratildeo o sujeito em quem ele eacute pela

consciecircncia de si que a memoacuteria propicia

Minha mulher eacute paciente entende como funciono Ela pega meu prato e vai me

servindo um pouco disto um pouco daquilo mas antes de tudo o arroz- indispensaacutevel-

e o feijatildeo por cima Eu sei que natildeo eacute o certo Mas eacute assim que eu gosto o feijatildeo por

cima nunca do lado Se puser o feijatildeo primeiro e depois o montinho do arroz tambeacutem

implico O arroz tem que vir sempre na frente depois o feijatildeo molhando aiacute sim eacute

perfeito Sempre ensinei bons modos aos meus filhos mas nunca os proibi de misturar a

comida toda no prato de uma vez Se eu misturo como proibir Ai se fizeacutessemos isso na

frente de Isabel Bom nem pensar Em dias de ensopadinho de vagem com carninha

moiacuteda ou de chuchu com camaratildeo era verdadeiro supliacutecio Nuno e eu sofriacuteamos

horrores Queriacuteamos porque queriacuteamos misturar tudo de uma vez com o arroz Natildeo

podiacuteamos Era proibido por lei Isabel natildeo transigia Tiacutenhamos que ir misturando aos

pouquinhos puxando com o garfo e aiacute levar agrave boca Depois voltar misturar mais um

pouquinho puxando com o garfo e tornar a levar agrave boca Um sacrifiacutecio Depois de

nossos filhos adultos a lei do proibido misturar foi abolida E cada um liberado para

comer do seu jeitinho informal

Jaacute servido espeto o paio deliacutecia e retomo a conversa (AZEVEDO 2008 p314)

Chega a hora de Antonio apoacutes revisitar histoacuterias vividas e contadas pela memoacuteria Na

cozinha representaccedilatildeo de sua casa natal ele falece ldquoSempre acompanhamos com olhos de

saudade o balatildeo que sobe ceacuteu afora e se mistura no azul Acontece com todos Depois satildeo soacute

histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras Famiacutelia eacute prato que quando se acaba nunca

mais se repeterdquo (AZEVEDO 2008 p361)

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Histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras elementos que aludem agraves lembranccedilas

Mais uma vez a cozinha eacute representada ao falar-se em memoacuteria atraveacutes das lsquoreceitas caseirasrsquo

Essas satildeo registros de quem habitou os campos de forno-e-fogatildeo e deixou por escrito o como-

se-faz O seu

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2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE

A sacola de crochecirc da voacute era perturbadora da ordem ali de dentro ela tirava varenikes

beigales mondales knishes strudels um perfume que ia nos buscar no mais remoto

quarto da casa pratos fundos de louccedila branca e pesada transbordantes de fartura Noacutes

nos reuniacuteamos em torno da mesa em torno da voacute em torno dos pratos - em torno da

comida que ela tratava como uma cerimocircnia de milagre E ela abria os braccedilos para nos

acarinhar a todos e nos beijava com os laacutebios finos o haacutelito de menta e pronunciava

palavras boas palavras de quem traz alviacutessaras feliz como quem pode dar o seio a um

bebecirc minhas crianccedilas a voacute trouxe comida pra vocecircs (MOSCOVICH 2006 p93-94)

Prazer eacute sentimento do corpo Bem-estar e gozo que se quer repetir Puro deleite acorda

os sentidos Onda repentina epifania de cores aromas gostos texturas sons Nasce sem aviso

deixa marcas faz pulsar em ritmo de quero-mais Nasce do encontro amoroso do saborear de um

prato e de tantas outras vivecircncias Estaacute na taccedila do vinho escuro e aveludado na mordida do mil-

folhas ao mesmo tempo crocante e macio O prazer desperta como se fosse dia novo entusiasma

provoca ecoa em cada parte nossa Comida eacute coisa prazerosa toca a vida sensorial alegra ceacutelulas

e anima A cozinha espaccedilo fiacutesico e territoacuterio afetivo evoca gostos desejos lembranccedilas prazer

O preparo das receitas o deleite dos pratos a partilha da mesa as conversas amenas durante a

refeiccedilatildeo todos inerentes ao universo culinaacuterio E depois vem a culpa a roupa que aperta o

regime por ordens meacutedicas Culpa e prazer inimigos entrelaccedilados

21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE

Por que sou gorda mamatildee eacute o romance escrito por Ciacutentia Moscovich em 2006 e

publicado pela Editora Record com uma narradora em primeira pessoa de quem o leitor natildeo

sabe o nome ao longo da obra Ela passa a limpo as histoacuterias de famiacutelia de origem judaica e a

sua proacutepria histoacuteria em uma carta para sua matildee Dessa o leitor tambeacutem natildeo sabe o nome da

primeira agrave uacuteltima paacutegina

O conflito central apresenta a dificuldade da narradora-personagem com seu aumento de

peso vinte e dois quilos em quatro anos e o sofrimento em face da necessidade de fazer dieta

Natildeo se trata apenas das privaccedilotildees de ter de fazer dieta Trata-se da dor emocional por precisar

fazer dieta de novo A repeticcedilatildeo de situaccedilotildees em que o engorde esteve presente em sua vida

ligado ao papel do comer em sua famiacutelia faz com que acuse sua matildee muitas vezes pela situaccedilatildeo

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a que chegou Por essa oferecer comida demais Natildeo Por oferecer afeto de menos Ao contraacuterio

da matildee a Voacute Magra sua avoacute materna eacute muito carinhosa com ela e seus irmatildeos e aleacutem disso

sempre aparece com a sacola de crocheacute plena de doces da cozinha judaica O papel da avoacute parece

ser o de suprir as faltas da matildee e as supre em excesso no que tange ao reforccedilo da gula

A narrativa pode ser a expressatildeo de uma catarse atraveacutes da escrita uma decisatildeo

confessional da narradora ou sua atitude ora acusatoacuteria ora carente na direccedilatildeo de sua matildee Em

uma mistura de cada uma dessas formas o livro traz o entrelaccedilamento das memoacuterias das

emoccedilotildees e das etapas objetivas em sua jornada de emagrecimento como narra a protagonista no

proacutelogo ao expor para sua matildee que a escrita seraacute dirigida a ela

Tenho medo mas estou prestes a pocircr um ponto final e a aticcedilar a pluma das lembranccedilas

Luta contra o gelo do tempo O proacutelogo em seus estertores depois comeccedila

Mamatildee me endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar

esse territoacuterio metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora

Quero voltar a ter um corpo

Haacute um livro a ser escrito e nele os fatos seratildeo fruto da prestidigitaccedilatildeo ainda que

imperfeita Respostas possiacuteveis ilusatildeo para secar as maacutegoas e o corpo O proacutelogo

termina Depois jaacute iniciou Comeccedilo num ponto de intrerrogaccedilatildeo

Por que sou gorda mamatildee (MOSCOVICH 2006 p19)

A narrativa eacute contada em vinte e cinco capiacutetulos duzentas e cinquenta e uma paacuteginas

vinte e dois quilos O primeiro capiacutetulo apresenta em primeira pessoa um entrelaccedilamento

essencial ao conflito da personagem a histoacuteria da origem de sua famiacutelia na Europa passando

fome em vilarejos judeus a histoacuteria de sua Voacute Magra com o prazer da comida e sua proacutepria

histoacuteria de infacircncia com os irmatildeos na hora das refeiccedilotildees

Segue-se ainda nesse capiacutetulo um desabafo com uma lista de aspectos pejorativos do

sujeito gordo Satildeo frases que costumamos ouvir com grande frequecircncia sobre os indiviacuteduos com

excesso de peso e que eles mesmos muitas vezes referem em tom entre o mea culpa e a auto

ironia Esse eacute o tom usado pela narradora falando em sua voz o que atribui ao olhar alheio

Depois de apontar os defeitos dos gordos conta do comeccedilo de seu sacrifiacutecio com as restriccedilotildees

alimentares

Em seguida o escaacuternio daacute lugar agrave lembranccedila da morte de seu pai as consequecircncias que

tal perda teve na famiacutelia e sobretudo na relaccedilatildeo de sua matildee com os filhos Eacute o comeccedilo da voz

acusatoacuteria da narradora trazendo agrave tona fatos e sofrimentos na relaccedilatildeo familiar Aparece a

ausecircncia da matildee no cumprir de sua funccedilatildeo afetiva Seguem-se capiacutetulos de apresentaccedilatildeo da Voacute

Gorda do lado paterno da Voacute Magra e de sua histoacuteria frustrada de amor por um violinista russo

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do avocirc do pai dos irmatildeos de si mesma em vaacuterios tempos da vida e da balanccedila Presente e

passado alternam-se disputando espaccedilo nas paacuteginas porque para a personagem em sua carta agrave

matildee o passado eacute parte do peso em quilos de seu presente

Enquanto passa a limpo sua histoacuteria e suas maacutegoas a narradora vai contando vitoacuterias e

deslizes na dieta dores pela restriccedilatildeo alimentar e alegrias por conseguir emagrecer lentamente A

histoacuteria familiar evolui o momento em que o excesso de peso na infacircncia tornou-se foco de

preocupaccedilatildeo e de imposiccedilatildeo da dieta por parte do pai aparece como fato de destaque A

narradora em zigue-zague transita entre os periacuteodos de vida para encontrar respostas ora em

conversas dirigidas agrave matildee ora em diaacutelogos com seu proacuteprio mundo interno A escrita para a matildee

eacute em essecircncia um passar a limpo para si mesma a proacutepria histoacuteria de seu corpo Gula prazer

afeto e ausecircncia dores e perdas inclusive de maacutegoas e de peso eis o transcorrer da histoacuteria

narrada Esses elementos satildeo o fio condutor da narrativa das primeiras paacuteginas ateacute a evoluccedilatildeo ao

epiacutelogo Parte desse reproduzo abaixo

Mamatildee natildeo preciso perdoaacute-la por nada Natildeo me incomodo mais pela porccedilatildeo presente de

sua lavra e todo o esforccedilo de natildeo mais me incomodar foi por amor que eacute minha cura

Mais cinco quilos a bordo de uma bicicleta cor-de-rosa seratildeo perdidos Recuso-me a

remexer ainda mais no passado Natildeo se angustie mamatildee Noacutes duas sabemos que natildeo

vale a pena-falta que a senhora serenize seus dias e deixe tambeacutem de remexer o passado

Depois que eu colocar o ponto final por favor mamatildee natildeo deixe de recompor sua

alegria seu desejo e sua piedade A senhora perdoaraacute a vida E eu terei esquecido que

cheguei ateacute aqui apesar da senhora

[hellip] (MOSCOVICH 2006 p250)

Destaca-se sobretudo a verossimilhanccedila interna da obra Entre o proacutelogo e o epiacutelogo haacute

muitas histoacuterias contadas em uma soacute compondo uma linha de tempo na cronologia do calendaacuterio

e outra dentro da personagem Afinal de contas o tempo interno tem um ritmo proacuteprio que

obedece acima de tudo agraves leis da memoacuteria

A narradora-personagem consegue compreender suas interrogaccedilotildees ao entremear passado

e presente histoacuteria familiar e individual A narrativa multifacetada natildeo sai dos trilhos e eacute possiacutevel

acompanhar o diaacutelogo da personagem consigo mesma atraveacutes da carta para sua matildee A

descoberta dos elementos alusivos agrave presenccedila e agrave falta de prazer alimentar que permeiam a obra

conduzem ao primeiro aspecto do presente capiacutetulo o que eacute o prazer afinal

60

22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL

Para o psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers o prazer no campo da Fenomenologia

Psiquiaacutetrica pode ser compreendido como a realizaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees

orgacircnicas Para o referido autor o prazer consiste no equiliacutebrio psiacutequico na satisfaccedilatildeo e no bem-

estar Jaacute conforme os autores do artigo Psicopatologia do Prazer Lorenzo Pelizza e Franco

Benazzi o prazer pode ser considerado um fenocircmeno psiacutequico de muacuteltiplas facetas Em termos

geneacutericos esse eacute um forte sentimento que corresponde agrave percepccedilatildeo de uma condiccedilatildeo positiva

fiacutesica ou mental proveniente do organismo

As pesquisas que abordam o prazer satildeo recentes Apenas haacute algumas deacutecadas a ciecircncia

passou a contribuir para evidenciar os efeitos beneacuteficos desse fenocircmeno tanto no sentido proacute-

ativo (como fator que favorece o bem-estar psico-fiacutesico do indiviacuteduo e que promove o processo

de cura da doenccedila) quanto no protetor (como elemento fundamental que fornece ao sujeito os

recursos necessaacuterios para afrontar e superar as experiecircncias negativas e para prevenir o risco de

adoecer) (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

Do ponto de vista do estudo do prazer como elemento saudaacutevel destacamos seu papel

como fator de importante valor motivacional sob o enfoque das teorias evolucionistas

Reduzindo ao maacuteximo a explicaccedilatildeo seria possiacutevel entender seu papel da seguinte forma como

espeacutecie sentimos prazer na alimentaccedilatildeo e na relaccedilatildeo sexual para que mediante esta sensaccedilatildeo

tenhamos estiacutemulo para nutrirmo-nos e procriarmos A gratificaccedilatildeo do ceacuterebro que ocorre

atraveacutes da experiecircncia prazerosa motiva o indiviacuteduo a repetir os comportamentos que a tornam

viaacutevel como o comer Forma-se assim um ciclo no qual a comida promove prazer e este motiva

a procuraacute-la pela resposta cerebral gerando novamente o prazer e assim ocorre a manutenccedilatildeo do

comportamento com sucessivas repeticcedilotildees A propoacutesito desse ciclo os referidos autores

esclarecem

O mecanismo operante de reforccedilorecompensa age em sentido evolucionista para

conduzir os comportamentos adotados na direccedilatildeo de escopos adaptativos que sejam uacuteteis

para garantir a sobrevivecircncia do indiviacuteduo (por exemplo busca de comida ou de aacutegua)

eou a conservaccedilatildeo da espeacutecie (condutas reprodutivas) Para que atinja a eficaacutecia o

estiacutemulo de reforccedilo deve ser capaz de ativar as instacircncias psiacutequicas do prazer e o sistema

neurobioloacutegico de gratificaccedilatildeo cerebral (circuitos dopaminergicos mesoliacutembicos) sendo

deste modo vivido como experiecircncia prazerosa satisfatoacuteria e assumindo assim um

importante valor motivacional (PELIZZA BENAZZI 2008 p298-299)

61

Tal explicaccedilatildeo evolucionista eacute relevante para a compreensatildeo do prazer alimentar Como

espeacutecie devemos sentir prazer ao comer com o propoacutesito de termos estiacutemulo para mantermos a

constacircncia de uma alimentaccedilatildeo regular O prazer eacute o elemento que torna possiacutevel esta constacircncia

O socioacutelogo e escritor brasileiro Carlos Alberto Doacuteria acrescenta um dado relevante nesse

sentido ao mencionar o autor de A fisiologia do gosto Jean Anthelme Brillat-Savarin que

publicou a obra em 1825 relevante na literatura gastronocircmica Nessa ao referir-se aos cinco

sentidos Brillat-Savarin acrescenta o sentido geneacutesico sobre o qual Doacuteria reflete em seu livro A

culinaacuteria materialista

Este uacuteltimo eacute o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro

sendo a sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecie Este sentido diz ele foi ignorado ateacute o

seacuteculo XVIII sendo anexado ao (ou confundido com o) tato Ora a reproduccedilatildeo da

espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo

a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo ao sexo e ao comer eacute o prazer a

busca do agradaacutevel e este eacute o sentido muito especial que ele pretende indicar como

responsaacutevel pela gastronomia (DOacuteRIA 2009 p190 grifo do autor)

Assim a relaccedilatildeo de prazer do indiviacuteduo com a comida eacute tambeacutem de acordo com Brillat-

Savarin uma estrateacutegia de sobrevivecircncia da espeacutecie assim como o sexo A sensaccedilatildeo prazerosa

ligada ao alimento refere-se principalmente agrave percepccedilatildeo deste como tendo gosto agradaacutevel ou

seja ldquo[] aquilo que apraz aos sentidos mobilizados pela alimentaccedilatildeordquo (DORIA 2009 p192)

O estudo da obra de Carlos Alberto Doacuteria abre um campo de reflexatildeo relevante no que

tange ao fenocircmeno do prazer pois o autor o aborda pela perspectiva gastronocircmica referindo o

que torna um alimento prazeroso Ele menciona que de acordo com os modernos teoacutericos do

gosto ldquo[] o agradaacutevel que comemos depende do impacto favoraacutevel sobre todos os cinco

sentidosrdquo (DOacuteRIA 2009 p194)

Para explicar como um alimento se torna agradaacutevel ele comeccedila por definir o mundo

objetivo lsquoo mundo das coisas e das nossas aptidotildees fisioloacutegicas para percebecirc-lorsquo e o mundo

subjetivo lsquodos nossos valores crenccedilas e preferecircncias individuaisrsquo Entatildeo acrescenta o ponto

chave de sua reflexatildeo ldquoTomemos como hipoacutetese que o gosto se forma na relaccedilatildeo entre esses dois

mundos O gosto assim entendido eacute relacional e se refere ao que se passa em torno do ato

fisioloacutegico de comerrdquo (DOacuteRIA 2009 p194) A fim de aprofundar a ideia desta relaccedilatildeo expotildee

Ao explorar a noccedilatildeo de gosto partindo de sua dimensatildeo material isto eacute da relaccedilatildeo que

se estabelece entre o mundo e o homem por intermeacutedio do complexo aparato sensitivo

temos que entender tambeacutem que o gosto varia de indiviacuteduo para indiviacuteduo entre as

62

diferentes idades de um mesmo indiviacuteduo entre as classes sociais de cultura para

cultura e de uma eacutepoca para outra na mesma cultura Sabemos tambeacutem que permanece

um misteacuterio como nasce o desejo intenso de se comer determinado alimento ou como a

monotonia de uma dieta se instaura de modo a repudiarmos o alimento apoacutes um certo

tempo Nada disso se explica por razotildees puramente fisioloacutegicas (DOacuteRIA 2009 p195)

Assim na relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o alimento agradaacutevel ao lsquocomplexo aparato

sensitivorsquo como define Doacuteria existem variaacuteveis como idade e cultura que interferem no modo

como a sensaccedilatildeo prazerosa eacute percebida Quanto ao aspecto cultural por exemplo o autor refere

O gosto partilhado por vaacuterias pessoas ndash sejam membros de uma famiacutelia de uma

comunidade de uma eacutepoca- sugere uma construccedilatildeo coletiva que natildeo se confunde com a

experiecircncia gustativa de cada um O caraacuteter afetivo da cozinha familiar eacute um modelo de

socializaccedilatildeo do gosto que todos conhecemos Ningueacutem faz determinado prato igual a

nossa matildee ou avoacute [] (DOacuteRIA 2009 p195)

Em diversas famiacutelias de uma dada geraccedilatildeo o lsquobife agrave milanesa da voacutersquo eacute emblemaacutetico em

representar a explicaccedilatildeo do autor Ao que parece o prazer reside no preparo pela avoacute mais do

que no prato em si A avoacute de cada famiacutelia seria a responsaacutevel pelo melhor bife agrave milanesa do

mundo de acordo com os respectivos netos Essa percepccedilatildeo reflete o que Doacuteria menciona como

lsquoo caraacuteter afetivo da cozinha familiarrsquo termo que coincide com o papel da Voacute Magra

personagem da obra em estudo neste capiacutetulo Outra consideraccedilatildeo relevante do autor acerca da

construccedilatildeo do universo do gosto eacute a de que este ldquo[] eacute expressatildeo da educaccedilatildeo do paladar e dos

demais sentidos conformados culturalmente para a apreciaccedilatildeo do que comemosrdquo (DOacuteRIA 2009

p196)

Deste modo eacute possiacutevel compreender que aprendemos a gostar do que eacute aceitaacutevel em

determinado contexto social e cultural entretanto temos em primeiro lugar a percepccedilatildeo

bioloacutegica atraveacutes dos cinco sentidos do que devemos levar agrave boca e daquilo que eacute necessaacuterio

evitar em termos de manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Pela aparecircncia e pelo olfato por exemplo um

alimento pode parecer prazeroso e entatildeo adequado ou repulsivo se apresentar sinais de bolor ou

de alteraccedilatildeo de suas caracteriacutesticas conhecidas A respeito dessa avaliaccedilatildeo sobre o que eacute

agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos com fins de alimentaccedilatildeo Doacuteria refere

O gosto caminha em meio a essas preferecircncias e rejeiccedilotildees ajudando a erigir barreiras

que demarcam os limites de determinada cultura ou mesmo as variaccedilotildees individuais

nessa mesma cultura Alimentos tabus natildeo devem ser tocados ou consumidos Por isso

seu sabor eacute tambeacutem repulsivo Assim as sociedades constroem um anteparo que protege

a cultura daquilo que ela considera lsquonatureza hostil (DOacuteRIA 2009 p196)

63

Se de um lado o prazer eacute o elemento bioloacutegico que impulsiona o indiviacuteduo para a

preservaccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do alimento (e da espeacutecie atraveacutes da coacutepula) de outro as

escolhas que condicionam a sensaccedilatildeo prazerosa no campo alimentar ultrapassam a dimensatildeo

corpoacuterea atingindo em boa parte das vezes a esfera cultural atraveacutes da construccedilatildeo coletiva do

gosto O autor apresenta neste aspecto a seguinte reflexatildeo

Podemos imaginar o homem como uma maacutequina bioloacutegica que se relaciona

integralmente com o mundo de tal forma que todos os estiacutemulos que ele internaliza

afetam a totalidade dessa maacutequina O nosso conhecimento estaacute no tato na audiccedilatildeo na

visatildeo no olfato no paladar e tudo isso eacute processado natildeo apenas diretamente como

experiecircncia pessoal mas no acoplamento que mantemos com seres da mesma espeacutecie

(DOacuteRIA 2009 p197)

De acordo com essa exposiccedilatildeo podemos gostar daquele alimento que eacute aceitaacutevel em

nossa cultura e em nosso meio para assim continuarmos pertencendo ao grupo de que somos

parte contemplando a noccedilatildeo que o autor estabelece como o lsquoacoplamento que mantemos com

seres da mesma espeacuteciersquo Ao sentir prazer nos sentimos impelidos a comer algo porque nos

desperta a sensaccedilatildeo agradaacutevel essa experiecircncia eacute em primeiro plano instintiva quando o ldquo[]

elo entre prazerdesprazer se estabelece como base do fenocircmeno da aprendizagem e da aversatildeo a

um sabor a partir do risco que sinaliza para o organismordquo (DOacuteRIA 2009 p205)

Em segundo plano gostamos do que aprendemos que podemos gostar de acordo com a

cultura em que estamos inseridos Nesse contexto cabe ressaltar o fenocircmeno da

neuroplasticidade atraveacutes do qual o ceacuterebro se molda a partir das experiecircncias a que eacute exposto

de acordo com tal ocorrecircncia os mecanismos cerebrais aprendem a responder a determinado

estiacutemulo e criam um espaccedilo de resposta ao mesmo quanto mais vezes exposto a ele Isso pode

acontecer no aprendizado de uma competecircncia como tocar um instrumento musical falar um

idioma ou ateacute mesmo naquele de um novo paladar Aprendemos a gostar de um alimento o que

faz com que a sensaccedilatildeo agradaacutevel obtida ao comermos nos faccedila querer repetir seu consumo

Surge entatildeo a perspectiva do prazer em seu percurso do ponto de partida sauacutede para o

ponto de chegada doenccedila De acordo com Benazzi e Pelizza os mecanismos neurobioloacutegicos

responsaacuteveis pela gratificaccedilatildeo cerebral alimentam-se do prazer e quanto mais recebem mais

demandam que o organismo lhes forneccedila mais e mais sensaccedilotildees prazerosas Essa condiccedilatildeo

manifesta-se apenas em alguns indiviacuteduos cuja carga geneacutetica e aprendizagem cultural

favoreccedilam os comportamentos ditos compulsivos por exemplo Nas pessoas propensas a tal

64

expressatildeo isso ocorre sucessivamente motivo pelo qual o prazer alimentar pode ser natildeo mais um

aliado da sauacutede e da sobrevivecircncia mas sim um algoz a partir de determinado momento Esse

ponto eacute quando o comer se torna excessivo fornecendo de modo incessante e crescente a

gratificaccedilatildeo prazerosa aos mecanismos cerebrais de recompensa

Desfaz-se assim a noccedilatildeo de prazer apresentada por Jaspers anteriormente referida

Quando haacute aumento das sensaccedilotildees prazerosas para saciar a demanda dos centros cerebrais de

gratificaccedilatildeo e natildeo mais para que o prazer esteja calcado lsquono equiliacutebrio psiacutequico e no bem-estarrsquo

pode-se compreender que esse deixou de cumprir sua funccedilatildeo na sauacutede

Quando uma cultura em amplo espectro como a norte-americana aprende a sentir prazer

com a ingesta do fast-food e isso se transmite a outras culturas e ainda mais grave agraves geraccedilotildees

seguintes os problemas de sauacutede atingem dimensotildees catastroacuteficas Esse resultado jaacute eacute possiacutevel

constatar em nosso seacuteculo XXI Compreende-se assim que natildeo apenas o indiviacuteduo pode

adoecer mas a cultura tambeacutem pode adoecer Fortunadamente pensadores do campo da

alimentaccedilatildeo como Michael Pollan tecircm combatido de modo ferrenho essa tendecircncia como o faz

em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo salienta-se tambeacutem o italiano

Carlo Petrini que jaacute na deacutecada de 80 fundou a filosofia do slow food em oposiccedilatildeo ao haacutebito

determinado pelas cadeias de fast-food ao redor do mundo

Cada vez mais o slow food tem ganho espaccedilo na compreensatildeo contemporacircnea sobre o

comer com prazer com sauacutede e com lentidatildeo respeitando o tempo das refeiccedilotildees como um tempo

de interaccedilatildeo familiar e de consciecircncia do alimento que se ingere Referimos nesse sentido o

proacuteprio Pollan responsaacutevel pela defesa de que as famiacutelias voltem a comer em casa como

oportunidade de alimentaccedilatildeo saudaacutevel e de interaccedilatildeo entre os membros do grupo familiar

Entretanto as mudanccedilas causadas pela conscientizaccedilatildeo estatildeo apenas nos primeiros passos os

comportamentos alimentares insalubres ainda representam a maioria ao menos no ocidente As

patologias do prazer ocupam importante espaccedilo no campo das doenccedilas contemporacircneas em

termos psiacutequicos e em suas decorrecircncias fiacutesicas

Tanto a reduccedilatildeo quanto o aumento significativo de experiecircncias prazerosas podem levar agrave

ocorrecircncia de patologias nos acircmbitos fiacutesico e psiacutequico No artigo em estudo Psicopatologia do

prazer lecirc-se ldquoO ser humano frente agrave possibilidade de permitir-se prazeres em alguns casos

pode sentir-se impedido pela preocupaccedilatildeo pela desvalia e pela culpa relativa a eventuais

consequecircncias potencialmente danosas de suas accedilotildeesrdquo (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

65

Esses mesmos autores referem a existecircncia de uma porcentagem significativa de

indiviacuteduos capazes de experimentar sentimentos de baixa autoestima ou de culpa (leve e

transitoacuteria ou ao contraacuterio intensa e mantida) em relaccedilatildeo aos interesses e atividades que lhes

provocam prazer Tais emoccedilotildees desagradaacuteveis viriam em forma e em intensidade e representam

um relevante contraponto agrave sensaccedilatildeo prazerosa podendo inclusive inibir as experiecircncias futuras

de prazer A ausecircncia desse gera mais desvalia e culpa estresse crocircnico e sentimentos de

incapacidade impedindo com que novas vivecircncias potencialmente prazerosas aconteccedilam e assim

ocorre um ciclo com repercussotildees na sauacutede tanto em termos fiacutesicos quanto mentais Os autores

do artigo referem

[] de uma espeacutecie de estressor interno que tais indiviacuteduos transfeririam de uma

situaccedilatildeo a outra dessas circunstacircncias decorreriam entatildeo efeitos negativos sobre sua

sauacutede fiacutesica suas capacidades cognitivas (ex concentraccedilatildeo atenccedilatildeo memoacuteria) e em seu

funcionamento nos campos social e laboral cotidiano Seria possiacutevel referir que o

excesso de culpa ou desvalia determinaria uma condiccedilatildeo de estresse crocircnico capaz de

aumentar significativamente a secreccedilatildeo dos hormocircnios ligados ao estresse com

consequumlecircncias danosas agrave sauacutede fiacutesica e agrave mental (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

Ressaltamos que o contraacuterio tambeacutem ocorre Cabe refletir sobre o desejo exasperado e

absoluto de prazer levada a extremos como nas condiccedilotildees de transtornos alimentares (entre

esses a compulsatildeo alimentar) De acordo com tais autores quando ocorrer uma busca excessiva

de sensaccedilotildees prazerosas mesmo se houver a gratificaccedilatildeo desses prazeres haveraacute riscos para a

sauacutede do indiviacuteduo Nesse caso o prazer em excesso passaraacute a ser o responsaacutevel pelos

sentimentos de culpa desvalia depressatildeo ansiedade e descontrole de impulsos (PELIZZA

BENAZZI 2008)

O prazer em excesso no campo alimentar conduz muitas vezes ao aumento de peso

com prejuiacutezos agrave sauacutede Essas circunstacircncias podem acarretar uma forma de dor emocional

diretamente ligada ao prazer de comer como nos casos de indiviacuteduos que fazem dieta alimentar

por orientaccedilatildeo meacutedica Nesses a restriccedilatildeo imposta representa um importante sofrimento quando

se encontram em sobrepeso ou em condiccedilatildeo de obesidade moacuterbida A exigecircncia de restringir o

que lhes daacute prazer pode ser um motivo de transgressotildees da dieta O resultado eacute o natildeo

emagrecimento ou o engorde ainda maior A seguir vecircm a culpa a desvalia a tristeza e o

desacircnimo todos os antagonistas da sensaccedilatildeo prazerosa Para compensar as emoccedilotildees os

indiviacuteduos socorrem-se com a comida mantendo o ciacuterculo vicioso O equiliacutebrio preconizado por

Jaspers em sua perspectiva sobre o prazer natildeo eacute encontrado

66

Em Por que sou gorda mamatildee o conflito da personagem com o impedimento ao prazer

alimentar estaacute presente em diversos trechos A narradora faz uma dolorosa e agraves vezes bem-

humorada recapitulaccedilatildeo de suas vivecircncias de prazer com a comida e de suas experiecircncias de

dieta de emagrecimento Satildeo narradas tambeacutem suas emoccedilotildees de desvalia e baixa autoestima por

vestir o adjetivo de gorda entretanto muito de sua insatisfaccedilatildeo estaacute no impedimento para comer

o que gosta o que lhe daacute prazer

Haacute uma visatildeo especiacutefica sobre o que eacute o prazer nos indiviacuteduos que apresentam

comportamentos anormais na procura por esta experiecircncia eles referem em diversas ocasiotildees a

percepccedilatildeo que tecircm sobre a comida na qualidade de fonte de prazer para algumas pessoas comer

eacute a uacutenica fonte de prazer possiacutevel Eacute comum referirem nas consultas meacutedicas lsquoou usufruo do

maacuteximo prazer ou natildeo sentirei nenhumrsquo ou lsquose natildeo puder comer todo o pote de sorvete natildeo

como mais nada Ou isto ou nada Me nego a fazer dietarsquo haacute ainda quem refira lsquonatildeo acredito

em dia livre dieta natildeo tem dia livre Isso eacute enganaccedilatildeo porque ningueacutem consegue voltar a comer

direito no outro diarsquo Essas frases demonstram padrotildees culturais de interpretaccedilatildeo do papel da

comida muitas vezes substitutivo de outras necessidades emocionais

Existindo maior resposta positiva aos prazeres aos quais o indiviacuteduo se dirige em

especial nas situaccedilotildees de excesso ocorreraacute ainda maior demanda por parte desses mecanismos

Como resultado surgem sintomas psiquiaacutetricos isolados ou em comorbidade decorrentes do

desequiliacutebrio gerado pela demanda excessiva Haacute ainda as decorrecircncias fiacutesicas de tal

desequiliacutebrio como a obesidade e as doenccedilas a ela associadas o diabetes a hipertensatildeo arterial e

a hipercolesterolemia entre outras Mais cedo ou mais tarde o corpo cobra sua conta dos

excessos quando se perpetuam

23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA

A fisiologia do gosto obra essencial na literatura gastronocircmica citada anteriormente foi

escrita por Jean Anthelme Brillhat-Savarin advogado e juiz francecircs (1755-1826) apaixonado

pelos prazeres da mesa O livro eacute composto por trinta capiacutetulos que o autor intitula lsquoMeditaccedilotildeesrsquo

e um uacuteltimo composto de variedades A fatia destinada agrave reflexatildeo sobre o prazer eacute a meditaccedilatildeo

14 lsquoDo prazer da mesarsquo Sobre a procura pelo prazer em termos gerais Brillat-Savarin refere

67

O homem eacute incontestavelmente dos seres sensitivos que povoam nosso globo o que

experimenta mais sofrimentos A natureza o condenou primitivamente agrave dor pela nudez

de sua pele pela forma de seus peacutes pelo instinto de guerra e destruiccedilatildeo que acompanha

a espeacutecie humana onde quer que ela se encontre

Os animais natildeo foram atingidos por essa maldiccedilatildeo e sem alguns combates causados

pelo instinto de reproduccedilatildeo a dor no estado de natureza seria completamente

desconhecida da maior parte das espeacutecies ao passo que o homem que soacute encontra o

prazer passageiramente e por meio de um pequeno nuacutemero de oacutergatildeos estaacute sempre

exposto em todas as partes do corpo a terriacuteveis sofrimentos

Essa sentenccedila do destino foi agravada em sua execuccedilatildeo por uma seacuterie de doenccedilas

nascidas dos haacutebitos do estado social de modo que o prazer mais satisfatoacuterio que se

possa imaginar seja em intensidade seja em duraccedilatildeo eacute incapaz de compensar as dores

atrozes que acompanham certos distuacuterbios [hellip] Eacute o temor praacutetico da dor que faz o

homem sem se aperceber disso lanccedilar-se com iacutempeto na direccedilatildeo oposta entregando-se

ao pequeno nuacutemero de prazeres que herdou da natureza (BRILLAT-SAVARIN 1995

p167)

Brillat-Savarin aponta que o homem se atira ao prazer para fugir das dores inerentes agrave

espeacutecie Entretanto esse eacute apenas um dos elementos de compreensatildeo do prazer alimentar pois a

sensaccedilatildeo prazerosa decorre tambeacutem de outros fatores presentes em nossa fisiologia e psiquismo

a sociabilidade por exemplo eacute um desses componentes e estaacute envolvida no que o autor

estabelece como o prazer da mesa Ele refere no capiacutetulo lsquoO prazer da mesarsquo uma reflexatildeo

importante sobre a comensalidade a refeiccedilatildeo em conjunto ldquoFoi durante as refeiccedilotildees que devem

ter nascido ou se aperfeiccediloado nossas liacutenguas seja porque era uma ocasiatildeo de reuniatildeo que se

repetia seja porque o lazer que acompanha e segue a refeiccedilatildeo dispotildee naturalmente agrave confianccedila e agrave

loquacidaderdquo (BRILLAT-SAVARIN 1995 p168)

Brillat-Savarin faz uma diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer- relacionando-o agrave satisfaccedilatildeo

da fome atraveacutes do alimento como ocorre com os animais - e o prazer da mesa exclusivo agrave

espeacutecie humana De acordo com esse autor ldquo[] o prazer de comer exige se natildeo a fome ao

menos o apetite o prazer agrave mesa na maioria das vezes independe de ambosrdquo (BRILLAT-

SAVARIN 1995 p170) Esse uacuteltimo representa assim a sociabilidade o conviacutevio agradaacutevel

com aqueles com quem se divide uma refeiccedilatildeo Ainda sobre o prazer da mesa Brillat-Savarin

explicita

[hellip] natildeo comporta arrebatamentos nem ecircxtases nem transportes mas ganha em duraccedilatildeo

o que perde em intensidade e se distingue sobretudo pelo privileacutegio particular de nos

incliner a todos os outros prazeres ou pelo menos de nos consolar por sua perda Com

efeito apoacutes uma boa refeiccedilatildeo o corpo e a alma gozam de um bem-estar especial

Fisicamente ao mesmo tempo em que o ceacuterebro se revigora a face se anima e se colore

os olhos brilham um suave calor se espalha em todos os membros Moralmente o

espiacuterito se aguccedila a imaginaccedilatildeo se aquece os ditos espirituosos nascem e circulam [hellip]

Aliaacutes com frequumlecircncia temos em volta da mesa todas as modificaccedilotildees que a extrema

sociabilidade introduziu entre noacutes o amor a amizade os negoacutecios as especulaccedilotildees o

68

poder as solicitaccedilotildees o protetorado a ambiccedilatildeo a intriga eis por que a convivialidade

tem a ver com tudo eis por que produz frutos de todos os sabores (BRILLAT-

SAVARIN 1995 p170-171)

O trecho acima transcrito expressa que os propoacutesitos para que o prazer da mesa fosse

atingido natildeo eram apenas a amizade e a intenccedilatildeo de conviacutevio entre as pessoas Eacute possiacutevel

verificar que havia tambeacutem entre os objetivos para a partilha das refeiccedilotildees o poder a ambiccedilatildeo e

outros aspectos distantes das alianccedilas de afeto A circunstacircncia do prazer da mesa criava uma

aproximaccedilatildeo maior entre os participantes de disputas poliacuteticas e administrativas favorecendo os

acordos pela ilusoacuteria sensaccedilatildeo de zelo e de alianccedila Nesse periacuteodo o prazer ainda natildeo era

percebido como finalidade e sim como instrumento para a aquisiccedilatildeo de benefiacutecios Segundo

Brillat-Savarin haacute quatro condiccedilotildees para que exista o prazer em uma refeiccedilatildeo

Chegamos portanto a tal progressatildeo alimentar que se os afazeres natildeo nos forccedilassem a

deixar a mesa ou se a necessidade do sono natildeo se interpusesse a duraccedilatildeo das refeiccedilotildees

seria praticamente indefinida e natildeo teriacuteamos nenhum dado certo para determinar o

tempo transcorrido desde o primeiro gole de madeira ateacute o ultimo copo de ponche [hellip]

Desfruta-se o prazer em quase toda sua extensatildeo toda vez que se reuacutenem as quatro

seguintes condiccedilotildees comida ao menos passaacutevel bom vinho comensais agradaacuteveis

tempo suficiente (BRILLAT-SAVARIN 1995 p172-173)

No livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo haacute explicaccedilotildees que muito se assemelham ao exposto

por Brillat-Savarin No capiacutetulo lsquoComer compromete refeiccedilotildees banquetes e festasrsquo o autor Gerd

Althoff expotildee elementos relevantes sobre o papel da refeiccedilatildeo na vida coletiva e social na Idade

Meacutedia

Durante a maior parte da Idade Meacutedia a refeiccedilatildeo e o banquete (convivium) constituiam

o mais eloquumlente siacutembolo de que se dispunha para para expresser o compromisso de

manter relaccedilotildees baseadas na paz e na concoacuterdia A palavra-chave nesse caso eacute

ldquocompromissordquo porque comer e beber junto era uma forma de obrigar-se a satisfazer as

condiccedilotildees que esse tipo de laccedilo implica [] (ALTHOFF 2015 p300)

Acordos e alianccedilas eram entatildeo estabelecidos em banquetes de longa duraccedilatildeo chamados

convivium A relaccedilatildeo de cumplicidade e de compromisso entre os indiviacuteduos estabelecida pela

existecircncia destes eventos natildeo foi por certo o iniacutecio do papel da refeiccedilatildeo partilhada como

elemento agregador entre as pessoas Haacute muitos periacuteodos da histoacuteria como exposto pelos vaacuterios

pesquisadores no livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo em que o comer junto assumiu papel essencial

na comunhatildeo dos membros de uma coletividade sendo a alegria e o prazer algumas das emoccedilotildees

presentes em vaacuterios desses periacuteodos

69

Quando Brillat-Savarin refere quatro condiccedilotildees para desfrutar-se o prazer em uma

refeiccedilatildeo uma dessas eacute que haja lsquocomensais agradaacuteveisrsquo Tal fato nos remete aos elementos da

alianccedila e da paz no conviacutevio entre aqueles que comiam juntos nos banquetes da Idade Meacutedia

mas remete principalmente ao elemento do prazer que aparece atraveacutes do termo lsquoagradaacuteveisrsquo O

prazer eacute um ingrediente necessaacuterio no estabelecimento dessa alianccedila pois propicia que os

indiviacuteduos se comprometam uns com os outros pelo bem-estar que o viacutenculo permite Tal

resultado propicia a constacircncia dessa ligaccedilatildeo importante tambeacutem do ponto de vista poliacutetico na

eacutepoca O bem-estar da refeiccedilatildeo partilhada era entatildeo um meio natildeo um fim era o recurso para a

manutenccedilatildeo da perenidade nas relaccedilotildees garantindo ldquo[] a disposiccedilatildeo de todos os participantes de

cumprirem os deveres dela decorrentesrdquo (ALTHOFF 2015 p309)

Ainda no que tange agrave ocasiatildeo do convivium ressalta-se a forma como as atividades

prazerosas eram proporcionadas com o propoacutesito de reforccedilar a ligaccedilatildeo entre os participantes

Era quase impensaacutevel passar vaacuterios dias natildeo fazendo outra coisa senatildeo comer beber e

trocar presentes mesmo que se atribua aos participantes um apetite e uma inclinaccedilatildeo

para a bebida for a do comum Isso explica que nossas fontes mencionem agraves vezes vaacuterias

atividades paralelas que se poderiam agrupar sob a denominaccedilatildeo de lsquodivertimentos

mundanosrsquo entre os quais os espetaacuteculos dados durante os convivial em que danccedilarinos

(ou danccedilarinas) muacutesicos ambulantes menestreacuteis e poetas distraiam os convivas A

sucessatildeo de pratos e bebidas interrompia-se tambeacutem para permitir aos participantes fazer

um pouco de exerciacutecio Tratava-se de jogos ou agraves vezes de animadas caccediladas

Certamente esses elementos do convivium tinham tambeacutem um valor simboacutelico Viver

algum tempo juntos em paz e partilhar certas atividades criava entre as pessoas o clima

de confianccedila necessaacuterio assegurava-se ao novo parceiro que se desejava a paz e que se

estava disposto a respeitaacute-la e firmava-se o compromisso de continuar a agir assim no

futuro (ALTHOFF 2015 p303)

Assim o prazer afirmava-se como elemento agregador de grande importacircncia na

permanecircncia de viacutenculos Entretanto a finalidade de tais viacutenculos natildeo se concentrava

propriamente no bem-estar em si entre os participantes mas nos benefiacutecios propiciados em

termos de propriedades poder administraccedilatildeo e outros fins de interesse material No convivium

o prazer era oferecido nas atividades de lsquodivertimento mundanorsquo Eacute possiacutevel compreender a

partir desse dado que o prazer da partilha no comer junto da Idade Meacutedia natildeo se aproximava do

prazer com o alimento ou a bebida per se mas com atividades paralelas de divertimento para

entreter os convivas durante os dias de banquete

O prazer entatildeo era ainda um elemento natildeo ligado ao comer pelo sabor da comida assim

como as alianccedilas eram vaacutelidas pelos benefiacutecios que alicerccedilavam natildeo por sua importacircncia para o

bem viver entre os membros de uma coletividade De acordo com Gerd Althoff as relaccedilotildees entre

70

os indiviacuteduos e os costumes como o comer e o beber junto eram de grande importacircncia para a

realidade medieval

Todas as culturas arcaicas recorriam a este meacutetodo para unir uma comunidade

Entretanto os efeitos da refeiccedilatildeo natildeo derivam dela proacutepria De fato na Idade Meacutedia a

refeiccedilatildeo o banquete e a festa serviam para exteriorizar atos administrativos rituais e

portanto convenccedilotildees que serviam para veicular um sentido bem determinado de modo

constrangedor e coercitivo (ALTHOFF 2015 p309)

No capiacutetulo de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo lsquoTempero cozinha e dieteacutetica nos seacuteculos XIV

XV e XVIrsquo haacute relevantes esclarecimentos sobre o papel do prazer no comer e sua importacircncia

para a sauacutede Um dos pontos referidos por seu autor quanto ao papel do uso dos temperos e do

cozinhar os alimentos estaacute relacionado tambeacutem ao prazer alimentar ldquoDe uma maneira geral

todo tempero e todo cozimento ou seja toda cozinha tinha uma dupla funccedilatildeo tornar os

alimentos ao mesmo tempo mais apetitosos saborosos e mais faacuteceis de digerirrdquo (FLANDRIN

2015 p482)

Deste modo falar no prazer de comer torna-se parte da perspectiva histoacuterica desse

periacuteodo quando as especiarias estatildeo no auge de seu reconhecimento Flandrin refere que os

seacuteculos XIV XV e XVI foram o aacutepice de seu papel na cozinha europeacuteia quando esses

ingredientes tinham tambeacutem valor terapecircutico Natildeo se pode referir que o prazer atraveacutes da

comida tenha iniciado nesse periacuteodo histoacuterico mas eacute possiacutevel compreender que esse periacuteodo foi o

iniacutecio do falar em prazer como aspecto favoraacutevel agrave digestatildeo Havia uma aproximaccedilatildeo entre a

gastronomia e a dieteacutetica conforme Jean-Louis Flandrin sugerida no trecho ldquoAos dietistas

interessava o gosto dos alimentos por diversas razotildees Em primeiro lugar porque se digere

melhor aquilo que se come com prazer-como acreditamos ateacute hojerdquo (FLANDRIN 2015 p486)

Compreender o prazer como elemento presente na alimentaccedilatildeo torna-o tambeacutem parte da

sauacutede e do bem-estar do ser humano Esta perspectiva remete ao estabelecido por Karl Jaspers

sobre o prazer Este fenocircmeno seria equivalente agrave satisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas

funccedilotildees orgacircnicas com resultados no equiliacutebrio psiacutequico na percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e no bem-

estar do indiviacuteduo Desse modo ao ler o historiador Jean-Louis Flandrin confirma-se o papel do

prazer na lsquosatisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees orgacircnicasrsquo na concepccedilatildeo do

psicopatologista Jaspers Flandrin conclui o capiacutetulo com a seguinte reflexatildeo

Em resumo cozinhar agravequela eacutepoca assim como hoje era dar aos alimentos os sabores

mais agradaacuteveis- mas agradaacuteveis no acircmbito de uma determinada cultura para um gosto

71

diferente do nosso porque modelado por outras crenccedilas dieteacuteticas outros haacutebitos

alimentares (FLANDRIN 2015 p495)

Falar no prazer de comer entatildeo remete a Karl Jaspers pela concepccedilatildeo meacutedica do prazer

mas tambeacutem a Brillat-Savarin em sua diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer e o prazer da mesa

Para o escritor de A fisiologia do gosto o primeiro eacute de ordem bioloacutegica a meu ver menos ligado

agrave sensaccedilatildeo prazerosa ligada ao sabor e mais associada ao mero saciar da fome o segundo

exclusivo da espeacutecie humana eacute vinculado agrave experiecircncia de conviacutevio agradaacutevel com os comensais

na partilha de uma refeiccedilatildeo

A abordagem da dualidade entre gastronomia e dieteacutetica apontada por Jean-Louis

Flandrin eacute semelhante agravequela da dualidade apontada por Brillat-Savarin o prazer de comer e o

prazer da mesa Talvez essas divisotildees tivessem o propoacutesito de partir o indiviacuteduo em duas

metades a do corpo e a da mente A metade que se satisfaz com o saciar da fome seria entatildeo

diferente da que se apraz da companhia dos amigos agrave mesa A metade que preparava as receitas

pela gastronomia em fins da Idade Meacutedia seria diversa da que seguia as ordens da dieteacutetica

Nesse sentido a visatildeo de Jaspers sobre o prazer eacute a mais completa pois integra a satisfaccedilatildeo

harmocircnica e ordenada das funccedilotildees orgacircnicas ao equiliacutebrio psiacutequico agrave percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e

ao bem-estar do indiviacuteduo

Considerando o prazer alimentar entatildeo como elemento que envolve o corpo e a mente

do saciar agrave fome ao satisfazer o prazer gustativo e social surgem dois novos termos a gula e o

bom gosto

Os seacuteculos XVII e XVIII trouxeram mudanccedilas na relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com o prazer do

gosto Enquanto na Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVII a alimentaccedilatildeo das elites aproximava-

se muito de perto das prescriccedilotildees dos meacutedicos o que se seguiu a partir de entatildeo foi o apagamento

das referecircncias agrave antiga dieteacutetica dando lugar entre cozinheiros e gastrocircnomos agrave harmonia dos

sabores como prioridade Ficou relegado a segundo plano o aspecto de que ldquo[] os sabores eram

ateacute entatildeo ligados tanto a eles como aos meacutedicos sabiamente classificados do mais frio ao mais

quente eles constiuiacuteam uma indicaccedilatildeo segura da natureza dos alimentos e sua digestibilidaderdquo

(FLANDRIN MONTANARI 2015 p548) Um resultado interessante da separaccedilatildeo progressiva

entre cozinha e dieteacutetica foi uma permissatildeo para a gulodice conforme o registro de Histoacuteria da

alimentaccedilatildeo

72

Os refinamentos da cozinha natildeo visam mais manter a boa sauacutede das pessoas mas

satisfazer o gosto dos glutotildees Com uma pequena diferenccedila estes ainda natildeo se

reconhecem como tais e se apresentam como pessoas de paladar apurado apreciadores

de iguarias e peritos na arte de reconhececirc-las (FLANDRIN MONTANARI 2015

p549)

Com o avanccedilo das descobertas e das criaccedilotildees dos cozinheiros e gastrocircnomos o prazer

com os alimentos reveste-se de nova importacircncia a gula Comer torna-se sinocircnimo nesse

contexto de desfrutar do sabor da comida o que muitas vezes eacute partilhado com amigos Para

Brillat-Savarin seria a uniatildeo do prazer de comer e do prazer da mesa O gosto como sentido

fisioloacutegico assume nova representaccedilatildeo eleva-se agrave categoria de bom-gosto com aplicaccedilotildees para

aleacutem dos campos da cozinha De acordo ainda com os organizadores de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo

Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari

O gosto esse sentido de que a natureza dotou o homem e os animais para discernirem o

comestiacutevel do natildeo-comestiacutevel sofreu alias em meados do seacuteculo XVII uma estranha

valorizaccedilatildeo fala-se dele a partir daiacute em sentido figurado a propoacutesito de literature

escultura pintura muacutesica mobiliaacuterio vestuaacuterio etc Em todos esses domiacutenios eacute ele que

permite distinguumlir o bom do ruim o belo do feio eacute o oacutergatildeo caracteriacutestico do lsquohomem de

gostorsquo um dos avatares do homem perfeito Ora essa valorizaccedilatildeo implica uma certa

toleracircncia para com os glutotildees (FLANDRIN MONTANARI 2015 p549)

Bom-gosto gula e prazer satildeo termos que se referem a uma semacircntica do deleite da

experiecircncia gustativa produzida nas cozinhas da eacutepoca com iniacutecio no seacuteculo XVII O indiviacuteduo

comeccedila a perceber a possibilidade de extrair da comida uma espeacutecie de luxuacuteria traduzida pela

gulodice Ele desfruta do sabor do alimento como se estivesse em um climax eis o glutatildeo

Enquanto na alta Idade Meacutedia o prazer nos banquetes vinha das atividades paralelas e seu

propoacutesito natildeo era a experiecircncia prazerosa per se mas a alianccedila e a realizaccedilatildeo de objetivos que

dela resultavam a partir desse seacuteculo o prazer reveste-se de importacircncia nos campos de forno-e-

fogatildeo

Dane-se a dieteacutetica talvez pensassem os sujeitos Gula e prazer eram expressotildees que a

boa comida despertava usufruiacutea deles quem tinha bom-gosto Nascia entatildeo um grupo de

pessoas com os pomposos tiacutetulos de lsquogourmetsrsquo e lsquogastrocircnomosrsquo seguida do surgimento e da

expansatildeo de sua literatura apropriada os tratados de cozinha Um novo modo de vivenciar o

alimento tornava-se cada vez mais abundante Houve um significativo movimento gerado pelo

gosto alimentar ldquoA multiplicaccedilatildeo das artes ligadas agrave alimentaccedilatildeo e das obras teacutecnicas que tratam

delas foi acompanhada sob formas diversas de escritos que fazem a apologia do prazer de comer

e ateacute da glutonaria e da embriaguezrdquo (FLANDRIN MONTANARI 2015 p551)

73

Entretanto tal vivecircncia jaacute existia em menor expressatildeo na Itaacutelia do Quatrocentos Conta-

se que ldquoPlatinardquo o humanista Bartolomeo Sacchi teve relevante papel no prazer de comer no

referido periacuteodo com seu De honesta voluptate

Natildeo soacute este natildeo eacute cozinheiro nem meacutedico [hellip] mas mistura agrave sua documentaccedilatildeo

culinaacuteria e dieteacutetica a lembranccedila nostaacutelgicada alegria que seus amigos e ele

experimentavam ao saborear este ou aquele prato de mestre Martino o grande

cozinheiro romano de meados do seacuteculo acima de tudo ele utiliza isso para defender o

honesto prazer de saborear uma cozinha ao mesmo tempo simples e refinada prazer que

poderiacuteamos hoje classificar como o de um glutatildeo (FLANDRIN MONTANARI 2015

p552)

Por que na eacutepoca de Platina e entatildeo nos seacuteculos XVII e XVIII de efervescecircncia dos

gourmets ou mesmo em nosso seacuteculo XXI a sensaccedilatildeo prazerosa provocada pelo alimento eacute tatildeo

semelhante em sujeitos tatildeo diversos Pelo fato de que o prazer eacute inerente agrave experiecircncia humana

A definiccedilatildeo dada por Jaspers agrave sensaccedilatildeo prazerosa une aspectos da percepccedilatildeo fiacutesica e da

experiecircncia mental integradas Com base em sua definiccedilatildeo e considerando o acima exposto

sobre os termos gula prazer e bom-gosto ocorre a pergunta por que tantos sujeitos de diferentes

eacutepocas vivenciaram o prazer associado agrave comida em especial quando essa assumiu uma

conotaccedilatildeo de importacircncia com o iniacutecio da Gastronomia um termo cognitivo Recorremos a uma

possiacutevel explicaccedilatildeo neurocientiacutefica para esse questionamento a hipoacutetese do ceacuterebro triuno que

abrange a experiecircncia prazerosa como elemento exclusivo do ser humano

A referida hipoacutetese foi proposta pelo meacutedico e neurocientista americano Paul MacLean

em 1970 Segundo tal autor somos compostos grosso modo por trecircs ceacuterebros que trabalham em

colaboraccedilatildeo embora oriundos de diferentes etapas da evoluccedilatildeo das espeacutecies Assim nos

mamiacuteferos superiores existe uma hierarquia de trecircs ceacuterebros em um soacute daiacute o termo triuno De

acordo com a teoria os trecircs operam com diferentes graus de complexidade mas orquestram o

funcionamento humano de forma conjunta O ceacuterebro reptiliano presente desde os reacutepteis ou

arquicoacutertex seria o mais primitivo responsaacutevel pelas questotildees de sobrevivecircncia bioloacutegica como

alimentaccedilatildeo reproduccedilatildeo proteccedilatildeo etc A seguir em termos evolucionistas viria o ceacuterebro

liacutembico ou paleocoacutertex responsaacutevel pela elaboraccedilatildeo das emoccedilotildees como apetite medo raiva

etc presente desde as aves O terceiro e entatildeo o mais evoluiacutedo seria o neocortex responsaacutevel

pela elaboraccedilatildeo dos pensamentos e dos sentimentos e exclusivamente humano

Transpondo essa teoria para o campo alimentar podemos referir o ceacuterebro reptiliano

como responsaacutevel pela fome enquanto o liacutembico seria responsaacutevel pelo desejo por essa ou aquela

74

comida especiacutefica O neocortex viria ao final para dar significado ao que comemos atraveacutes da

compreensatildeo das emoccedilotildees da relaccedilatildeo entre a memoacuteria e o alimento e da atribuiccedilatildeo de conceitos

cognitivos como a noccedilatildeo de bom-gosto No campo gastronocircmico seria possiacutevel entender a

cooperaccedilatildeo dos trecircs ceacuterebros como uma integraccedilatildeo que tem como resultado o prazer de saborear

este ou aquele quitute Saboreamos porque temos fome porque algo nos apetece e nos desperta

desejo por fim porque aprendemos do ponto de vista cognitivo que gostar daquele alimento eacute

permitido e em alguns casos eacute valoroso pois nos torna pertencentes a um grupo como o dos

glutotildees e gourmets Se comer tal alimento for prazeroso isto significa que nossos trecircs ceacuterebros

foram atendidos e estatildeo trabalhando em conjunto Mais uma vez o bem-estar do corpo de da

mente referido por Jaspers

Compreender o prazer que existe como expressatildeo fiacutesica emocional e mental nos

possibilita entender por que esse tambeacutem pode estar associado a patologias nos mesmos

domiacutenios A explicaccedilatildeo estaacute no fato de que para vivenciar esse complexo fenocircmeno eacute preciso

que sejamos humanos e que nossos trecircs ceacuterebros operem em orquestra vulneraacuteveis agraves

experiecircncias positivas ou negativas inexoraacuteveis

24 O PRAZER DA COMIDA

A partir da constataccedilatildeo do engorde e da dieta orientada pelo meacutedico a protagonista de

Por que sou gorda mamatildee lsquopassa a vida a limporsquo em sua memoacuteria Com o propoacutesito de

compreender o porquecirc de seu engorde escreve uma carta para a matildee em trechos ora

confessionais ora acusatoacuterios esperando na correspondecircncia construir para si a resposta ao

longo das lembranccedilas que evoca

O balanccedilo entre o passado e o presente alinha a compreensatildeo sobre o papel dos trajetos de

vida desde a infacircncia no quadro atual de sauacutede Os vinte e dois quilos ou cento e dez tabletes de

manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha satildeo o resultado dos sofrimentos que vivenciou

do afeto que natildeo recebeu e da comida que devorou A dor emocional eacute de fato sua mas talvez

seja tambeacutem heranccedila da Voacute Gorda da Voacute Magra do pai e da matildee Nas histoacuterias entrelaccediladas lecirc-

se uma pesada bagagem de dores ancestrais

Atraveacutes da intersecccedilatildeo entre as vivecircncias eacute possiacutevel ler na obra trecircs tempos

predominantes com fronteiras tecircnues entre si aquele dos antepassados que a protagonista

75

conhece por ouvir contar o tempo da infacircncia que ela narra pelas recordaccedilotildees e o tempo

presente da dieta que provoca as idas e vindas da narrativa a fim de descobrir as causas de seu

aumento de peso As fronteiras satildeo tecircnues pois os trecircs tempos embora diversos no calendaacuterio

misturam-se na personagem ora como lembranccedila ora como reflexatildeo No percurso da obra o

elemento que liga as histoacuterias eacute na maioria das vezes a sensaccedilatildeo prazerosa com a comida

mesmo quando a referecircncia aponta para o contraacuterio sentimentos de culpa pela obesidade e de

revolta pela restriccedilatildeo alimentar

Haacute uma ligaccedilatildeo natural entre o comer e o prazer para aleacutem da rima Desde a

amamentaccedilatildeo a chegada do leite materno eacute acompanhada pelo contato de afeto da matildee com o

bebecirc e pela experiecircncia de prazer fiacutesico associada agrave succcedilatildeo Assim alimento viacutenculo afetivo e

prazer satildeo parte de nossas primeiras memoacuterias e podem permanecer como o tripeacute que daraacute

suporte a muitos de nossos padrotildees de comportamento ao longo da vida Esse tripeacute contudo

pode desestabilizar-se caso haja preponderacircncia de um dos componentes gerando experiecircncias

de sofrimento associadas a tal desequiliacutebrio

A referida situaccedilatildeo aliaacutes estaacute muito bem expressa nessa obra na qual a vivecircncia da

personagem frente ao engordar mostra o quanto o comer em sua vida ocupou muitas vezes os

espaccedilos de amor e de seguranccedila deixados vazios pela ausecircncia desse afeto Sobretudo por parte

dessa matildee o proacuteprio tiacutetulo do livro dirigido a ela sugere que seja vista como culpada pelo

processo de engorde da personagem Em diversas passagens da obra a comida eacute citada como

abundante enquanto a expressatildeo das emoccedilotildees eacute percebida como escassa

Encontramos a posteridade dentro da fartura pela qual devemos agradecer todos os dias

e da qual ainda hoje devemos nos afastar por forccedila da geneacutetica O excesso de comida o

excesso de zelo o excesso dos excessos tudo ficou em noacutes como lembranccedila e como

estoque de uma espeacutecie de amor do qual ainda hoje nos valemos quando o amor falta

minguado (MOSCOVICH 2006 p220)

A vivecircncia do prazer da comida eacute apresentada em diversos fragmentos tanto associados agrave

narradora quanto agrave sua matildee a quem dirige as reflexotildees sua Voacute Magra seu pai e seus irmatildeos

Uma das passagens mais ilustrativas do papel desempenhado pela sensaccedilatildeo prazerosa nesta

narrativa estaacute no trecho de uma viagem O que as personagens experimentam nesta cena parece

muito proacuteximo ao lsquohonesto prazerrsquo referido por Platina mencionado anteriormente Lembrando

de uma viagem em famiacutelia durante um percurso ao Uruguai a protagonista remonta um

momento em que sua matildee ela e os irmatildeos lambuzavam-se com doces no carro

76

[hellip] A senhora de repente deu ordem expressa para que o pai estacionasse ali naquele

ponto bem na frente daquela confeitaria a Carrero O carro nem bem tinha parado nem

bem nossos protestos se haviam esvaiacutedo com a agilidade de seu movimento e a senhora

jaacute entrava na Carrero atraveacutes da porta de vidro porta muito pesada em sua fidalguia de

anos servindo o fino paladar uruguaio Porta que a senhora cruzou duas vezes em toda

sua vida - aquela era a segunda

Ficamos ali os quatro com os narizes achatados de curiosidade contra as janelas do

Ford Natildeo demorou nem bem cinco minutos e a senhora logo apareceu com trecircs garrafas

de Crush de laranja em uma das matildeos e na outra uma bandeja de doces - e me lembro

que o pai soltou uma gargalhada e sacudiu a cabeccedila num gesto de anuecircncia

Os doces foram devorados com seu incentivo feliz as garrafas passavam de matildeo em

matildeo limpava-se a boca com guardanapinhos de papel ou com a manga do casaco A

senhora se empanturrou e nos empanturrou Ningueacutem deu muita bola para os farelos de

massa folhada e para as manchas de doce de leite que ficaram melecando o estofamento

ateacute que voltaacutessemos para casa trecircs dias depois (MOSCOVICH 2006 p72)

Esta eacute a uacutenica cena de prazer compartilhado entre a narradora os irmatildeos e a matildee Eacute a

uacutenica cena tambeacutem em que a matildee aparece permitindo-se o deleite com algazarra com alegria

desfrutando do saborear em famiacutelia os doces da confeitaria A personagem refere que a matildee

cruzara a porta do estabelecimento duas vezes na vida e aquela era a segunda Haacute uma referecircncia

indireta aqui agrave escassa permissatildeo em sua matildee para esse tipo de prazer com farelos e doce de

leite espalhado Uma permissatildeo a si mesma de lambuzar-se com o prazer de partilhar o doce o

afeto a brincadeira O lsquohonesto prazerrsquo de Platina que misturava agrave sensaccedilatildeo prazerosa quem

sabe a alegria entre as pessoas Essa eacute a emoccedilatildeo que habita a cena e natildeo somente a gula pelos

doces

A matildee aparece protagonizando outras duas cenas de prazer alimentar ambas associadas a

uma condiccedilatildeo de sauacutede para a qual precisou fazer um cateterismo Entretanto a sensaccedilatildeo

prazerosa eacute expressa como experiecircncia de permissatildeo individual e natildeo partilhada com a famiacutelia

como no deleite dos doces e do refrigerante no carro A narradora conta sua lembranccedila sobre os

dois episoacutedios vividos pela matildee o primeiro antes do procedimento o segundo apoacutes

Naquela noite depois da cintilografia a senhora devorou meio quilo de patildeo com

manteiga um bule de cafeacute e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Disse que jaacute que

ia morrer comeria o que lhe desse na veneta (MOSCOVICH 2006 p119)

Jaacute em casa a senhora voltou ao tempo do seu rosto e apesar da ferida aberta na virilha

tornou-se de novo uma avoacute E o mais gracioso foi que naquela noite devorou meio

quilo de patildeo com manteiga uns cem gramas de mortadela um pote com azeitonas

pretas e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Me disse que jaacute que natildeo ia morrer

comeria o que lhe desse na telha (MOSCOVICH 2066 p124)

77

Compreende-se como o prazer de comer estaacute vinculado a uma justificativa aceitaacutevel em

uma e em outra ocasiatildeo lsquojaacute que ia morrerrsquo e lsquojaacute que natildeo ia morrerrsquo Natildeo haacute uma vivecircncia da

sensaccedilatildeo prazerosa experimentada pela matildee nesses casos sem uma razatildeo que fundamente a

permissatildeo Outro ponto a salientar estaacute nas frases lsquocomeria o que lhe desse na venetarsquo e lsquocomeria

o que lhe desse na telharsquo em que lsquodar na venetarsquo e lsquodar na telharsquo fazem alusatildeo agrave satisfazer a

vontade o impulso da hora expressotildees ligadas ao prazer Os fragmentos apresentados fornecem

dados para que se possa compreender que na personagem da matildee esse prazer do ldquodar na venetardquo

soacute poderia ser permitido se associado a uma razatildeo muito forte como a possibilidade de ela

morrer no procedimento

Aleacutem das questotildees psiacutequicas da ligaccedilatildeo entre cozinha e prazer existe a influecircncia da

cultura presente nas famiacutelias de acordo com a relaccedilatildeo que seus antepassados estabeleciam com a

comida com o prazer e com os viacutenculos Eacute possiacutevel aprender que um alimento eacute saboroso ou

condenado porque essa informaccedilatildeo passa de uma geraccedilatildeo agrave outra natildeo como uma carga geneacutetica

mas como uma transmissatildeo de aprendizado cultural O que eacute transmitido ao grupo familiar eacute

dependente do significado da comida para os diferentes povos Dentro das famiacutelias haacute tambeacutem

coacutedigos representados pelo alimento muitas vezes compartilhados pelos membros como

acontece entre a protagonista e sua Voacute Magra

Eu imitei a voacute fiz ach e dei um tapinha no ar Natildeo tinha mesmo importacircncia nenhuma

Noacutes duas comeccedilamos a rir De matildeos dadas fomos ateacute a cozinha buscar algo com

bastante accediluacutecar para comer Doces nos deixavam fortes e felizes

Como diz mais um velho ditado avoacutes e netos se datildeo bem porque tecircm um inimigo em

comum (MOSCOVICH 2006 p99)

O episoacutedio refere-se ao conflito entre sua matildee e a Voacute Magra avoacute materna e a

protagonista posiciona-se a favor da avoacute partilhando com ela o prazer de lsquobuscar algo com

bastante accediluacutecar pra comerrsquo Existe clara cumplicidade com a avoacute expressa na frase lsquoDoces nos

deixavam fortes e felizesrsquo Essa mesma comunhatildeo eacute demonstrada nos trechos sobre os passeios

que elas faziam juntas quando a Voacute Magra a levava consigo nas andanccedilas ao centro para vender

roupas na infacircncia da narradora

Ela bem gostava daquela funccedilatildeo ou ao menos aparentava gostar e se aparentava fingia

muito bem Depois de uma boa venda saiacutea exibindo um ar glorioso e altaneiro uma

conquistadora que avanccedila sobre terra remota e me puxando pela matildeo me punha diante

de um copo de guaranaacute- o copo que ela inspecionava muito bem e submetia ao processo

de assepsia com o lencinho- uma garrafa de refrigerante e um mil folhas partido ao meio

davam bem para noacutes duas Tatildeo bem que nem fazia falta a outra metade

78

O que eu aprendi com vovoacute foi bastante aleacutem do que pretendia papai Ela natildeo queria me

mostrar como se ganhava o patildeo natildeo tinha interesse em expor a neta a sofrimento algum

O que a voacute queria mesmo com aquelas excursotildees era a farra de dividir comigo um doce e

um refrigerante a gente se refestelando com creme de confeiteiro Ela pagou com

antecipaccedilatildeo aquelas pequenas felicidades coisa que ela mais amava no mundo

(MOSCOVICH 2006 p91-92)

Para a protagonista e sua Voacute Magra esses passeios representavam mais do que a

oportunidade de saborearem o mil folhas eram a chance de partilharem juntas o prazer de um

coacutedigo que comungavam o sabor doce Ao ler-se as passagens desta avoacute com ela e com seus

irmatildeos ao longo da obra compreende-se que este sabor doce eacute com nitidez o afeto partilhado

entre a Voacute Magra e os netos Para a avoacute o deleite com a comida tem raiacutezes culturais e vivenciais

O livro aponta a fome ancestral como possiacutevel razatildeo de seu prazer com a comida Jaacute no

capiacutetulo um ela apresenta sua Voacute Magra importante referencial em sua histoacuteria com o papel da

comida e com o engorde A obra comeccedila pelo cerne do significado da comida para a famiacutelia a

fome Essa vivecircncia eacute elemento relevante na histoacuteria familiar da protagonista A fim de

corroborar o papel da fome na dimensatildeo que cozinha ocupa na literatura judaica vale apresentar

a contribuiccedilatildeo de Ana Maria Shua em sua obra Risos e emoccedilotildees da cozinha judaica

A comida ocupa um lugar importante na literatura judaica Seguramente porque ocupa

um lugar importante na vida judaica na vida material e tambeacutem por razotildees religiosas

na vida espiritual Acima de tudo os judeus da Europa Oriental tendiam a contar com o

uacutenico adereccedilo capaz de converter em excelente qualquer comida para qualquer paladar a

fome Natildeo chama a atenccedilatildeo desse modo que o tema da comida apareccedila uma e outra vez

entre os sempre famintos personagens de sua literatura (SHUA 2016 p113)

O entendimento da comida como milagre aponta o poder que lhe era atribuiacutedo pela Voacute

Magra conforme narra a protagonista

Para quem vem de uma famiacutelia que nos miseraacuteveis e congelados vilarejos judeus da

Europa passou fome de comer soacute repolho ou soacute batata para a qual naqueles shtetels

carne era uma abstraccedilatildeo que os dentes nem conheceram e que se acostumou a aplacar o

oco do estocircmago com sopa de beterraba ou com aquele mameligue que nada mais era

do que um mingau meio insosso de farinha de milho e aacutegua a obsessatildeo por comida nada

tem ou nada deveria ter de extraordinaacuterio Vovoacute Magra assim como todas as avoacutes

acreditava que a comida era um milagre capaz de moldar crianccedilas em adultos um

homem eacute o peso daquilo que come uma boa refeiccedilatildeo vale a prece por um dia a mais de

vida

O caso era que diante de um prato de comida Vovoacute Magra parecia encontrar o sentido

da existecircncia (MOSCOVICH 2006 p21)

A comida era milagre e sentido da existecircncia para sua avoacute de acordo com a protagonista

entretanto vai aleacutem mostrando a voracidade o apetite o prazer afoito com que aquela comia O

79

aspecto interessante foi a narradora referir-se ao termo lsquodesesperorsquo que denota uma espeacutecie de

sofrimento A avoacute sentiu tanta fome que quando pocircde comer tornou o alimento a resposta para

todas as faltas mesmo as futuras A comida era um modo de prevenccedilatildeo contra a fome que ela

pudesse vir a passar novamente

E comia comia comia

Comia ovos duros comia coalhada comia milho comia carne comia saladas comia

frutas- especialmente laranjas-do-ceacuteu que docinhas natildeo espicaccedilavam o paladar ao

contraacuterio do azedo das laranjas-de-umbigo que ela tambeacutem comia Comia tanto que se

via nela um desespero E de tanto passer fome decerto vovoacute por mais que comesse e se

fartasse natildeo engordava Cinturinha fina seios achatados quadric estreitos heranccedila que

a senhora mamatildee abocanhou e que natildeo me deu

Da vovoacute soacute herdei o apetite ancestral o mesmo que a senhora herdou (MOSCOVICH

2006 p21-23)

O apetite eacute capaz de promover a antecipaccedilatildeo do prazer pela lembranccedila e pelo desejo de

comer determinado alimento aleacutem de estimular a repeticcedilatildeo do que satisfaz pela gratificaccedilatildeo que

o ceacuterebro registra Se tal prato eacute saboroso e lhe apetece o indiviacuteduo vai buscaacute-lo de novo e assim

sucessivamente Por isso a Voacutevoacute Magra lsquocomia comia comiarsquo e lsquocomia tanto que se via nela um

desesperorsquo Entatildeo quando a narradora comeccedila a passagem falando em fome e a conclui

referindo-se ao lsquoapetite ancestralrsquo estaacute dizendo que em sua avoacute a fome transformou-se no prazer

pela comida

Ainda assim havia respeito agraves proibiccedilotildees religiosas ligadas agrave tradiccedilatildeo culinaacuteria judaica A

narradora descreve sobre os haacutebitos alimentares da Voacute Magra ldquoExceto por carne de porco ou

mariscos e outras coisas gosmentas vindas da aacutegua ndash alimentos que a Lei considera impuros e

que portanto eram iguais agrave pedra que se interdita levar agrave boca ndash natildeo havia comida que ela

desprezasserdquo (MOSCOVICH 2006 p21-23)

Entatildeo embora houvesse o respeito agraves restriccedilotildees impostas havia tambeacutem o prazer com os

alimentos permitidos fossem ou natildeo pertencentes agrave culinaacuteria tradicional judaica Eacute neste ponto

que se aproximam os textos da ficccedilatildeo e da teoria fontes de estudo no presente capiacutetulo Natildeo se

nega que haja a proibiccedilatildeo a certos alimentos aspecto em que a obra de Ciacutentia Moscovich foi fiel

agrave cultura culinaacuteria judaica mas a mesma tambeacutem problematizou o espaccedilo de prazer existente na

cozinha de sua tradiccedilatildeo

Outro elemento relevante na anaacutelise da passagem acima eacute o que a narradora refere quando

menciona ter herdado de sua avoacute apenas o lsquoapetite ancestralrsquo Nesse ponto da narrativa atribui

agraves raiacutezes familiares seu gosto pela comida Eacute significativo que a narradora comece o texto falando

80

sobre a fome e o encerre usando o termo apetite pois se pode pensar na fome como uma

necessidade bioloacutegica do corpo que natildeo difere um alimento de outro O propoacutesito da fome eacute ser

saciada No que tange ao apetite pode-se pensar no apetite por algo o que o torna mais

especiacutefico agraves preferecircncias alimentares e desse modo mais proacuteximo ao prazer Foi o que Voacute

Magra descobriu

Eacute visiacutevel seu gosto por essa ou aquela comida sua profunda sensaccedilatildeo prazerosa com

ingredientes e pratos tiacutepicos Natildeo os escolhe apenas para saciar a fome deseja isso sim

satisfazer o apetite deleitar-se Com todas as restriccedilotildees que a tradiccedilatildeo impunha descobriu no

alimento fonte de prazer e com os netos de expressatildeo afetiva Havia tambeacutem um sentido de

aproveitar do alimento tudo o que ele poderia oferecer natildeo desperdiccedilando nada de sua

substacircncia Mesmo com o propoacutesito desse aproveitamento dedicava-se a fazer comidas e doces

saborosos como a narradora lembra no trecho abaixo

E havia aquele creme de laranja que era uma nuvem accedilucarada de sabor contrastante

um nada azedinho rompendo o doce dava ateacute um arrepio Era o jeito de a voacute aproveitar

as frutas que sobravam no mercado Natildeo se pode desperdiccedilar sumo algum mesmo que

as frutas despenquem podres no meio das sobras (MOSCOVICH 2006 p94)

O trecho expressa o fazer culinaacuterio de um doce que deixou lembranccedilas sensoriais na

protagonista expressas por termos como lsquonuvem accedilucarada de sabor contrastantersquo lsquoum nada

azedinho rompendo o docersquo e sobretudo a revelaccedilatildeo de que lsquodava ateacute um arrepiorsquo Entretanto as

escolhas alimentares na cultura judaica natildeo teriam por princiacutepio dar relevacircncia ao prazer mas aos

elementos religiosos Existe um conjunto de regras de idoneidade alimentar na cozinha judaica

chamada kasherut e cada alimento pertencente a tal conjunto e entatildeo permitido eacute chamado

kasher A respeito das tradiccedilotildees religiosas implicadas na alimentaccedilatildeo Ariel Toaff no capiacutetulo

lsquoCozinha judaica cozinhas judaicasrsquo do livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas

esclarece

Afirma-se em geral que as praacuteticas da alimentaccedilatildeo judaica estatildeo essencialmente

enquadradas na oacutetica do sistema religioso fundamentadas em proibiccedilotildees biacuteblicas

ampliadas e interpretadas pelas normativas rabiacutenicas Em outros termos o judeu comeria

alimentos que lhe satildeo permitidos descartando todos aqueles que de uma ou outra forma

entrassem nas categorias explicitamente proibidas pela biacuteblia ou pela hermenecircutica

geralmente extensa da ritualiacutestica posterior Nesse sentido suas escolhas alimentares

deveriam ser consideradas como fundamentos de sua identidade cultural e religiosa A

gama de proibiccedilotildees parece vasta e sem duacutevida condicionante (TOAFF 2009 p179)

81

Eacute interessante observar que mesmo focados na obediecircncia agraves normas havia uma culinaacuteria

rica de prazer dentro da cultura Apesar das influecircncias externas e as proibiccedilotildees religiosas

configurou-se uma cozinha judaica nuclear baseada no gosto Na Europa do seacuteculo XV ou XVI

os alimentos definidos como lsquoagrave hebraicarsquo ou lsquoagrave judiarsquo expressavam ingredientes gosto e aspecto

tipicamente judaicos e eram imediatamente reconhecidos como tal

O marzipatilde e as panquecas com mel e canela o patecirc de fiacutegado gordo os Griben (pedaccedilos

fritos de pele [de ave]) e os salsichotildees de ganso o hamin a carne guisada do Shabatt

com feijotildees e gratildeos-de-bico lsquocom pimenta e alhorsquo as alcachofras fritas lsquoagrave rosarsquo e a

endiacutevia assada no forno com lsquopeixe azulrsquo todos eles alimentos cuja preparaccedilatildeo era

comumente qualificada como lsquoagrave hebreacuteiarsquo natildeo eram decerto chamados desse modo pelo

fato de seu consumo ser permitido ou prescrito aos judeus pelas normas da biacuteblia e dos

rabinos mas porque se reconhecia neles a expressatildeo particular do gosto judaico [hellip] O

fato incontroverso eacute que o gosto gastronocircmico judaico parecia evidentemente diverso

daquele do ambiente cristatildeo circundante (TOAFF 2009 p183)

A evocaccedilatildeo sensorial eacute provocada pelos alimentos judaicos quando ateacute os nomes

despertam curiosidade e imaginaccedilatildeo pela forma e pelo gosto Ali estaacute bem expresso um conjunto

de sabores pertencentes agrave cultura e agrave vivecircncia de prazer associados agrave comida O capiacutetulo de Ariel

Toaff no livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas defende que o gosto e o prazer

na culinaacuteria judaica foram elementos de forccedila suficiente para ultrapassarem as proibiccedilotildees

religiosas aspecto corroborado pelo grande nuacutemero de receitas daquela cultura

O prazer alimentar estaacute associado a esse aspecto cultural de um povo Carlos Alberto

Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira aponta que

Em termos simples todo dia eu acordo me sentindo brasileiro ou espanhol ou tcheco

etc Isso ocorre porque falo uma liacutengua alimento-me de determinada comida sei como

meus compatriotas se comportaratildeo diante de certas situaccedilotildees e assim por diante Haacute um

sentimento multifacetado de pertencimento que me faz nacional (DOacuteRIA 2014 p24)

Esse pertencimento tem como parte culinaacuteria pois identifica gostos e ingredientes de um

povo No caso especiacutefico da culinaacuteria judaica essa caracterizaccedilatildeo ocorre mesmo quando

adaptada a outras culturas e produtos como Toaff aponta Em por que sou gorda Mamatildee a

narradora faz um relato que contempla a cozinha judaica vivenciada em sua infacircncia adaptada agrave

cultura local sem no entanto perder sua principal expressatildeo nos pratos tiacutepicos

Como sempre acreditamos no aprendizado pela dor a fome passou a ser o grande

mestre liccedilatildeo que pai nenhum queria que os filhos aprendessem Atestando que os

tempos haviam mudado e que este naco do Brasil era uma Canaatilde as cozinhas do Bairro

eram usinas de todo tipo de comida

82

Agraves sete da manhatilde mal se pulava da cama e uma nuacutevem aromaacutetica e uacutemida jaacute tinha

invadido a casa As panelas ferviam galinhas as cebolas se atiravam agrave fritura as lacircminas

das facas trituravam ramos de tempero verde colheres de pau puxavam refogados nas

caccedilarolas batalhotildees rechonchudos de almocircndegas se alinhavam nas taacutebuas de carne ao

lado de um fornido regimento de varenikes que logo iam encontrar seu destino na aacutegua

pelando No bairro inteiro cedinho frio ou calor chuva ou sol matildeos zelosas estripavam

peixes recheavam pimentotildees cortavam ovos duros mexiam guisados lavavam arroz

arrancavam folhas dos ramos de louro Tempero lambido na concha da matildeo douravam

batatas raspavam cenouras sovavam massas fatiavam tomates queimavam berinjelas

batiam espinafre amassavam miuacutedos de frango esmagavam dentes de alho Enquanto

pepinos eram enfiados em enormes potes de vidro para a conserva de salmoura

amendoins em trouxas de panos de prato eram batidos a martelo pecircssegos ameixas e

peras se compotavam marmelos de accedilucaravam cremes se encorpavam nacos de

goiaba e punhados de uva em passa enchiam o oco de maccedilatildes vermelhas e lustrosas

(MOSCOVICH 2006 p48-49)

A escolha pelo uso do preteacuterito imperfeito nos atos culinaacuterios ilustra o aspecto rotineiro

com que essas praacuteticas eram realizadas dentro da vida do bairro de predominacircncia judaica Todo

cotidiano era tecido pela manhatilde pelos aromas texturas e costumes que compunham a cultura

local O trecho remete o leitor a um passado que se perpetua atraveacutes dos movimentos vividos nas

cozinhas pelo que a narradora refere como lsquomatildeos zelosasrsquo Haacute no pano de fundo desse

fragmento a ideia da repeticcedilatildeo das accedilotildees como marca de continuidade de haacutebitos gostos e

preferecircncias A narradora prossegue seu relato transmitindo lembranccedilas da cozinha judaica

vivenciadas em seu bairro

Eu feliz na atmosfera lavada das manhatildes mastigando o haacutelito de cafeacute e pasta de dente

gostava de ver as mulheres que vinham da feira livre com sacolas nas quais adejavam

verduras outras traziam suspensas de ponta-cabeccedila galinhas vivas que arregalavam os

olhos redondos num susto de morte Algumas donas de casa elas mesmas fariam o

talho na garganta por onde se esvairia o sangue do bicho enquanto outras mais

piedosas ou covardes ou que seguissem a lei alimentar a kashrut recorriam ao shochet

responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual Todas para um uacutenico lugar a cozinha matriz do

afeto de nossa gente Pratos com nomes esquisitos e tatildeo familiares varenikes beigales

mondales knishes strudels iuchs kasha rossale borscht guefiltefish chrein kishke

kreplach tzimes

Comida para um exeacutercito (MOSCOVICH 2006 p49 grifo do autor)

No trecho acima lecirc-se o aspecto religioso ligado agrave culinaacuteria quando a narradora aborda a

lei alimentar a kashrut e o shochet responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual das galinhas Outro

elemento apontado eacute a referecircncia aos pratos judaicos remetendo agrave ligaccedilatildeo entre cozinha e

pertencimento a um povo elemento cultural referido por Carlos Alberto Doacuteria apresentado

anteriormente Um ponto relevante apontado por esse autor eacute a citaccedilatildeo de Levi Strauss ldquoGestos

aparentemente insignificantes transmitidos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua

insignificacircncia mesma satildeo testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou

83

movimentos figuradosrdquo (DOacuteRIA 2014 p215) Assim eacute possiacutevel compreender os gestos

corporais dos atos culinaacuterios apresentados pela narradora sobre a rotina alimentar em seu bairro

como um importante testemunho da cultura judaica daquele territoacuterio

Aleacutem disso uma frase de grande relevacircncia no fragmento eacute lsquoTodas para um uacutenico lugar a

cozinha matriz do afeto de nossa gentersquo Nessa o viacutenculo entre o comer e o afeto expressa um

importante fator da cultura judaica a essa ligaccedilatildeo estaacute associada tambeacutem a sensaccedilatildeo prazerosa

da comida partilhada Carlos Alberto Doacuteria expotildee a reflexatildeo de Annie Hubbert quando ela

registra

Especialmente nas sociedades onde as representaccedilotildees coletivas passam por livros

religiosos (os judeus os cristatildeos e os muccedilulmanos) o ato de comer aparece ligado ao

amor materno e recusar a comida eacute o mesmo que recusar essa modalidade fundante de

afeto um ato que exprime grande emoccedilatildeo (DOacuteRIA 2014 p204)

Dividir a comida eacute tambeacutem nutrir o sentimento de pertencer ao grupo de fomentar a

permanecircncia dos atos que satildeo parte dos costumes desse grupo como aqueles atos apresentados

no trecho anterior em preteacuterito imperfeito atos culinaacuterios que satildeo parte do cotidiano das

cozinhas do bairro Somam-se alimento afeto rotina cultura prazer pertencimento partilha

continuidade

Ainda sobre o gosto da cozinha judaica Toaff escreve

As mercearias dos guetos pululavam de clientes cristatildeos mais gulosos do que

esfomeados [hellip] A aproximaccedilatildeo dos cristatildeos agraves comidas judaicas era sempre ambiacutegua e

ambivalente atraiacutedos (e ao mesmo tempo desconfiados) por aqueles pratos que podiam

ter significados hereacuteticos imprevistos e por aqueles sabores exoacuteticos que exerciam

veladas seduccedilotildees de transgressatildeo lsquoComer agrave judiarsquo era um pouco como tornar-se judeu

no prazer de um momento sentir de dentro o fasciacutenio daquilo que era difiacutecil (e talvez

impossiacutevel) aprender de fora [hellip] Comer uma alcachofra lsquoagrave judiarsquo ou uma fatia de patildeo

aacutezimo era como fazer uma perigosa e temeraacuteria viagem ao estrangeiro uma espeacutecie de

percurso sedutor da igreja agrave sinagoga da qual poreacutem pretendia-se voltar o mais raacutepido

possiacutevel (TOAFF 2009 p183-184)

Compreende-se assim que a cozinha judaica tinha o apelo sedutor que provocava prazer

ateacute em outras culturas como a cristatilde Isso ocorria por sua forccedila especiacutefica pelo nuacutecleo vasto de

receitas e de modos-de-fazer este ou aquele prato no entanto tal apelo ocorria em grande parte

por simbolizar o proibido e o desconhecido aos cristatildeos Agradava-lhes a transgressatildeo dessa

cozinha tiacutepica seus sabores e significados Natildeo se tratava apenas de apreciar o gosto mas

84

tambeacutem o que tal culinaacuteria representava a um ambiente cultural diverso enfrentar a culpa e

encontrar o prazer do gosto clandestino

Para os proacuteprios judeus a amplitude de receitas e de gostos dos pratos lsquoagrave judiarsquo era tatildeo

arraigada que o gosto era parte de suas escolhas para aleacutem da imposiccedilatildeo religiosa Sobre isso

Toaff reflete ldquoHaacutebitos e tradiccedilotildees alimentares inquietudes irracionais gosto e nostalgias faziam

com que mesmo nos casos extremos o paladar abandonasse o judaiacutesmo muito mais lentamente e

de maacute vontade do que o coraccedilatildeo ou a menterdquo (TOAFF 2009 p185)

Ariel Toaff demonstra o ponto a ser discutido sobre o aspecto cultural dessa culinaacuteria em

relaccedilatildeo ao prazer alimentar as restriccedilotildees e as proibiccedilotildees religiosas de um lado o prazer de

manter vivo o respeito pela tradiccedilatildeo de receitas tiacutepicas lsquoagrave judiarsquo que representam o gosto

alimentar dos judeus de outro Apesar das proibiccedilotildees a essecircncia da cozinha judaica se manteve

atraveacutes de uma vasta quantidade de receitas Eacute possiacutevel compreender isso pelo fato de o prazer

ser um fenocircmeno exclusivamente humano cujas caracteriacutesticas satildeo o equiliacutebrio fisioloacutegico e

psiacutequico que leva ao bem-estar de acordo com o Jaspers Em sendo fenocircmeno humano

pronuncia-se no indiviacuteduo de todos os tempos e de todas as culturas e eacute elemento ateacute mesmo

capaz de sobrepujar um constructo como as proibiccedilotildees religiosas como no caso da cozinha

judaica

O que mais chama a atenccedilatildeo lendo a pesquisa de Ariel Toaff eacute de como o gosto judaico

foi sendo construiacutedo a ponto de configurar-se como uma tradiccedilatildeo culinaacuteria Outro elemento

interessante referido pelo autor satildeo os processos de osmose com outras culturas alimentares a

partir das emigraccedilotildees dos judeus para diferentes territoacuterios O paladar judaico foi adicionando

alimentos agrave sua lista ingredientes e pratos de outras culturas foram sendo incorporados ao seu

gosto

Um trecho que ilustra essa lsquoosmosersquo estaacute no comeccedilo de Por que sou gorda mamatildee

quando a narradora-personagem conta a histoacuteria da chegada de sua famiacutelia ao Brasil e a

aproximaccedilatildeo de seu bisavocirc a um iacutendio proacuteximo agrave moradia da famiacutelia

[hellip] Um desses bugres vovoacute natildeo tinha certeza de que era o mesmo que fora aprisionado

deixou uma tigela de farinha - dependendo da versatildeo um pedaccedilo de carne- na porta da

casa O bisavocirc na mesma tijela e no mesmo lugar ofereceu para o iacutendio uma porccedilatildeo de

aipim cozido (ou uma porccedilatildeo de chulent ou um pedaccedilo de leikech) Tijela vai tijela

volta o bugre fez amizade com o bisavocirc falavam-se de iniacutecio com os dedos Depois

passaram a dividir o mesmo tronco de aacutervore no qual o bisavocirc sentava para o descanso

do final da tarde Depois para o pasmo geral viram o iacutendio vestindo uma camisa e uma

85

calccedila do bisavocirc mesma eacutepoca em que vovoacute viu entrar em casa uma gamela talhada em

madeira e uma cesta em trama de taquaras

Mesmo que mulheres e crianccedilas estivessem proibidas de se aproximar do bugre ele de

posse de uma enxada passou a ajudante nas lides da roccedila e a trazer aacutegua de uma sanga

ali perto Tambeacutem alcanccedilava ervas com as quais o bisavocirc fazia emplastros para as dores

nas juntas e picadas de insetos aleacutem de infusotildees e chaacutes para tosse e vermes

A vovoacute jurava que era verdade quando viram o iacutendio falava iiacutediche

Deram ateacute nome para o homem Chamavam-no Salvador (MOSCOVICH 2006 p65-

66 grifo nosso)

A osmose era natildeo apenas de ingredientes mas de costumes de atitudes de

camaradagens Havia prazer nas trocas e no conviacutevio do bisavocirc com o iacutendio Esse trecho eacute um

dos mais representativos da obra pois expressa de forma muito clara como a cultura judaica foi

permeaacutevel no exemplo narrado agraves influecircncias e agraves gentilezas e escambos do bugre A famiacutelia

comeccedilava sua histoacuteria em terras brasileiras Um trecho que expressa o papel da comida nos

primeiros tempos da famiacutelia no Brasil eacute o que segue

Uns oito nove ou dez anos depois da chegada ao Brasil o bisavocirc tinha abandonado a

colocircnia e enveredado pelos interiores do hemisfeacuterio mascateava Soacute laacute naquela Canaatilde

da fronteira entre o Brasil e o Uruguai terminou a busca de um futuro que seria melhor

mas que natildeo seria dele Havia chocolates Aguila chaja embalado em papel manteiga

morrones queimados na brasa e carne muita que se assava em grelhas sobre braseiro

vivo Tudo isso natildeo chegava agrave casa e agrave mesa da famiacutelia que se alimentava de mameligue

ou farinha de mandioca agrave qual se acrescentava cafeacute com muito accediluacutecar que accediluacutecar natildeo

podia faltar Aos domingos cada um dos filhos recebia um tablete de mariola piteacuteu

envolto em papel celofane a ser poupado ateacute a semana seguinte um pedacinho de cada

vez Ou chupado como se fosse bala que assim durava mais (MOSCOVICH 2006

p71 grifo ou do autor)

Assim haacute trechos em que a protagonista narra as experiecircncias dos antepassados em

zigue-zague com outros em que reflete sobre seu engorde retomando o foco no presente Fala

entatildeo de sua dieta em contraste com a vivecircncia de sua famiacutelia com a fome Bisavoacutes avoacutes e pais

ao sentirem fome comeccedilaram a comer mais quando o alimento tornou-se disponiacutevel a eles no

caso da narradora foi preciso fazer o caminho contraacuterio ao sentir fome comeccedilar a comer menos

A referecircncia lsquoVovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e macarratildeo de letrinhasrsquo

demonstra que a loacutegica de sua avoacute era dar consistecircncia e energia agrave comida fornecendo-lhe fontes

de carbohidrato Assim a perspectiva era contraacuteria agrave restriccedilatildeo alimentar a que estava submetida

pelas orientaccedilotildees do meacutedico

Com o frio comer salada doacutei na alma

Sopa de legumes fazia tempo que natildeo preparava o panelatildeo fervente carne aipo

aboacutebora chuchu cenoura couve cebola espiga de milho cortada em rodelas pequenas

Enquanto escrevo a sopa se agita no fogo e um haacutelito bondoso que eacute cheiro de casa

86

visita todas as peccedilas Espero a hora de submeter noz-moscada ao ralador e de cortar bem

miuacutedo tempero verde e ovos duros Vovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e

macarratildeo de letrinhas (MOSCOVICH 2006 p68)

A heranccedila para o prazer de comer deu-lhe desde a infacircncia a predileccedilatildeo pelos excessos

Porque a lei era o comer Ela comenta

Noacutes as crianccedilas estaacutevamos em fase de crescimento Como durou a tal fase Anos

Crianccedilas em fase de crescimento precisam comer muito bem para ter ossos fortes e

ceacuterebros ativos para o estudo Portanto a mesa do almoccedilo em nossa casa era farta Aliaacutes

a mesa do almoccedilo em nossa casa era um excesso Mas natildeo um excesso fuacutetil natildeo um

supeacuterfluo sem sentido Nossa mesa queria dizer comam vocecircs natildeo precisam passar

fome Fome eu vim passar adiante quando comecei as dietas (MOSCOVICH 2006

p23)

O aprendizado de exceder era associado natildeo apenas agrave saciedade mas ao prazer agrave ideia de

uma lsquomesa felizrsquo como se pode compreender a partir do seguinte fragmento

Se havia cinco pessoas na mesa de bifes deveria haver por baixo dez Para que natildeo

passaacutessemos pela dureza de medir o que estaacutevamos comendo quantos bifes satildeo meus

quantos satildeo seus Se isso acontecesse papai simplesmente natildeo comia bifes para que

mais houvesse para dividir

Numa mesa feliz natildeo se contam os bifes (MOSCOVICH 2006 p24)

O pai preocupado com o engorde dos filhos passou a adotar a imposiccedilatildeo da disciplina

alimentar riacutegida Para a protagonista a cada aumento dos quilos na balanccedila havia uma nova

ordem para o regime A protagonista lembra-se dessa fase e relata na carta para a matildee o periacuteodo

em que o pai determinou que os filhos fizessem dieta

Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre

com o Fairlane rabo-de-peixe A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos enterrado

o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como eram-

mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos ancorava

no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de construir o corpo

de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo fosse do jeito e na

hora em que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH 2006 p93)

Depois de diversas passagens entre passado e presente haacute uma retomada na histoacuteria em

direccedilatildeo agrave ordem paterna para a dieta pela quebra do carro da famiacutelia o tal lsquoFairlane rabo-de-

peixersquo Isso ocorre pelo excesso de peso na protagonista de seus irmatildeos e de suas tias de lado

paterno Frente agrave ameaccedila de dieta ela reinvindica ldquo[hellip] Entrei em pacircnico Dieta era alguma coisa

horrorosa natildeo comer um monte de coisas principalmente massas e doces eu protestei na busca

de meus direitosrdquo (MOSCOVICH 2006 p203) Ao que o pai linhas depois refere ldquo-Vocecircs vatildeo

fazer dieta E vai ser para toda a vidardquo (MOSCOVICH 2006 p204)

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Dieta era assim ordem paterna veredicto imposiccedilatildeo e ameaccedila de perda dos direitos Natildeo

poderia ser algo para o bem para a sauacutede jaacute que restringia o prazer de comer o que se gosta De

um lado a Vovoacute Magra tinha deliacutecias em sua sacola de crocheacute para satisfazer o gosto dos netos

de outro o pai definia categoricamente que a lei da casa era a dieta Da avoacute materna com as

guloseimas estava o afeto do pai com a voz de mando o cuidado com a sauacutede Ambas as

manifestaccedilotildees eram a expressatildeo de amor que cada um deles era capaz de oferecer de acordo com

sua histoacuteria e com sua personalidade

Um elemento importante para a compreensatildeo do engorde da protagonista estaacute em sua

infacircncia quando ao contraacuterio do que ocorreu na vida adulta precisou fazer dieta para engordar

Mais uma vez a Voacute Magra tem papel crucial nesse processo conforme mostra o trecho abaixo

Os que me conhecem soacute agora natildeo acreditam Nem eu acredito Ateacute uns sete ou oito

anos eu era uma crianccedila inapetente Vovoacute Magra chegava em casa com pedaccedilos de

alcatra chuletas ou bifes de fiacutegado cortes que ela havia escolhido com ciecircncia no balcatildeo

do accedilougue do seu Jorge Depois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho

direto para a cozinha e ali direto aos armaacuterios Sentava-me junto agrave mesa de foacutermica

Vovoacute dava de matildeo numa pequena frigideira de alumiacutenio com duas alccedilas de baquelite jaacute

retorcidas pelo calor Aacutegua esponja sabatildeo pano de prato Daiacute um fio de oacuteleo Mazola-

ou Sol Levante aquele que estivesse mais em conta na ocasiatildeo- escorria da lata natildeo

muito o suficiente para que uma poccedila dourada se armazenasse no cocircncavo da frigideira

No balcatildeo da pia vovoacute ordenava o pote de sal uma taacutebua de madeira chaira batedor de

bife a faca de corte e o embrulho de papel pardo no qual seu Jorge tinha riscado o total

a pagar Na abertura do pacote lembro aquele cheiro cru e meio arisco o papel

manchado de sangue da pobre vida extinta A faca era passada na chaira em movimentos

agudos um sibilar que me causava arrepio nos dentes Depois com a lacircmina vovoacute

eliminava nervos sebo e outras impurezas que soacute ela podia identificar Finalmente

espalmava os dedos sobre a peccedila de carne e em talhos saacutebios cortava em fatias Agraves

vezes usava o batedor para domar algum pedaccedilo mais resistente tunda de laccedilo na carne

que batia na madeira que batia na pedra que por seu turno estremecia o balcatildeo e todos

os cocircmodos da casa Uma pitada de sal o oacuteleo tinindo recebia a carne com uma

chiadeira labaredas azuladas salpicavam as fatias- daacute-lhe fumaccedila um nevoeiro que

anunciava a forccedila resistindo agrave morte (MOSCOVICH 2006 p35-36)

A Voacute Magra participava da alimentaccedilatildeo da neta natildeo apenas no preparo dos bifes mas

tambeacutem na extraccedilatildeo do sumo que resultava deles e na oferta do caldo agrave protagonista ainda

crianccedila Percebe-se o zelo da avoacute todo esse processo no qual o alimento representa nutriccedilatildeo

fiacutesica e cuidado afetivo

Dado o susto vovoacute colocava os bifes num prato fundo e com um garfo espremia e

espremia ateacute reunir uma boa quantidade de sumo sanguinolento Um pano ajeitado como

babador e entornando um pouco o prato com uma colher de sobremesa dava-me aos

bocados aquela riqueza nutritiva (MOSCOVICH 2006 p36)

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Ressalta-se o detalhamento com que a narradora apresenta os utensiacutelios de cozinha no

preparo dos bifes e os atos culinaacuterios da Voacute Magra Se natildeo haacute referecircncia direta ao prazer de

comer haacute o conhecimento visceral da avoacute no cozinhar Cada movimento eacute conhecido pelo corpo

e traduzido pelo uso dos utensiacutelios O que marca o trecho eacute o afeto com que a avoacute faz os bifes

para a neta o cuidado que tem com cada nuance do preparo expresso na proacutepria dedicaccedilatildeo e

tambeacutem em especial na frase lsquodepois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho direto

para a cozinharsquo Este eacute um dos trechos emblemaacuteticos da obra em termos de expressatildeo da cozinha

como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico nesta narrativa pois mostra dados como o oacuteleo na frigideira a

destreza com cada instrumento e o zelo no preparo do alimento como reforccedilo nutricional

A narradora segue o relato sobre os bifes que colocam sua matildee em segundo plano

Se vovoacute natildeo vinha o jeito era a senhora mamatildee me sentar na frente do preacutedio reunir

crianccedilas e cachorros da vizinhanccedila ao meu redor e fazendo aviatildeozinho enquanto eu me

distraiacutea me enfiar goela abaixo colheradas de legumes carne e todo o resto que eu

detestava

Natildeo me lembro quando comecei a comer feito gente grande Nunca mais parei

(MOSCOVICH 2006 p36-37)

Haacute uma diferenccedila na percepccedilatildeo da narradora sobre a forma como a Voacute Magra lhe oferecia

a lsquoriqueza nutritivarsquo aos bocados e aquela como a matildee o fazia ao lsquoenfiar goela abaixo

colheradas de legumes carne e todo o resto que eu detestavarsquo O contraste estaacute sobretudo na

expressatildeo do afeto que leva a protagonista o falar em lsquoriqueza nutritivarsquo quando menciona o

cuidado da avoacute e ao referir-se ao termo lsquogoela abaixorsquo sobre o alimento oferecido pela matildee

Possivelmente o prazer de comer tivesse sido originado no afeto ligado ao alimento e ao cuidado

pela avoacute pois eacute das cenas com esta que restaram os principais registros de memoacuteria sugerindo

que a lembranccedila daquele preparo eacute muito mais viva do que aquela da interaccedilatildeo com sua matildee A

frase lsquonunca mais pareirsquo mostra o comportamento de comer como algo que passou a se repetir

sugerindo a presenccedila de prazer que impele agrave repeticcedilatildeo

A partir do ponto em que comeccedilou a comer e entatildeo a engordar junto a seus irmatildeos

instalou-se na famiacutelia a determinaccedilatildeo de regime para os trecircs ordenada pelo pai A protagonista

refere

Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre

com o lsquoFairlane rabo-de-peixersquo A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos

enterrado o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como

eram- mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos

ancorava no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de

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constituir o corpo de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo

fosse do jeito e na hora que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH

2006 p93)

Quando refere lsquoEssa ordem sei agora era o que nos ancorava no mundorsquo estaacute

expressando que sob a perspectiva adulta consegue ver a razatildeo da imposiccedilatildeo do pai ancorar os

filhos no mundo Estabelecia-se uma dicotomia entre a postura da Voacute Magra que partilhava seu

prazer alimentar com os netos e a do pai que assumia a funccedilatildeo de impor normas aos filhos Para

a narradora essa divisatildeo era contundente a bagagem de carinho da avoacute materna era o paraiacuteso a

forccedila da voz paterna era o inferno restringia definia acusava ordenava proibia O livro traz

todo o conflito da narradora personagem em seu tracircnsito por essa dicotomia ao longo da vida ateacute

apresentar os resultados do excesso de comer em seu corpo os terriacuteveis vinte e dois quilos ou

cento e dez tabletes de manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha

A ordem paterna para a dieta transforma-se na idade adulta na ordem do meacutedico

tambeacutem uma voz impositiva ameaccediladora e acusatoacuteria Essa eacute expressa jaacute no proacutelogo quando a

protagonista conta o motivo de sua reflexatildeo sobre a histoacuteria familiar e a pessoal para

compreender o porquecirc de chegar ao excesso de peso

- Vocecirc natildeo estaacute gorda

Certo meu estado natildeo era transitoacuterio a gordura nunca foi um episoacutedio solteiro em

minha vida eu sabia ele nem precisava ir adiante Mas ele foi

- Vamos fazer suas ceacutelulas adiposas murcharem -Pediu minha atenccedilatildeo com a caneta no

ar- sei que parece injusto mas a natureza a fez assim Vocecirc eacute gorda

Uma vez mais de novo (MOSCOVICH 2006 p15)

A uacuteltima frase lsquouma vez mais de novorsquo refere-se possivelmente agrave lembranccedila sobre o

veredito do pai na infacircncia quando mandou que ela e os irmatildeos fizessem dieta O prazer de

comer tornava-se sempre transgressor da ordem sempre um mundo proibido e recheado de

culpas impostas por terceiros Por mais que ela natildeo quisesse sentir as culpas aprendera que

deveria senti-las para afastar-se do prazer

Com a evoluccedilatildeo da dieta conduzida pelo meacutedico a personagem comeccedila a conseguir

emagrecer e a perda de peso vai ganhando por sua vez gosto de vitoacuteria Emagrecer tambeacutem se

torna um prazer o que reflete a sua conscientizaccedilatildeo para a mudanccedila de haacutebitos e mais ainda

para o seu amadurecimento Haacute na protagonista a consciecircncia de sua responsabilidade pelas

escolhas alimentares e pelo resultado da dieta em sua sauacutede A mudanccedila de postura destaca-se

atraveacutes do termo lsquoum deliacuteriorsquo ponto em que se percebe sua capacidade de avaliar o que pode e o

90

que natildeo pode comer sem precisar ouvi-lo de terceiros A personagem conta o que sente

demonstrando sua disposiccedilatildeo para mudar a atitude frente agrave comida

Uma enorme vontade de comer uma daquelas refeiccedilotildees de estivador arroz feijatildeo ovo

frito massa bife na chapa purecirc de batatas salada de tomate e cebola Tudo num uacutenico

prato fundo e transbordante Para beber uma daquelas cervejas pretas docinhas das

quais se dizia que eram boas para mulheres que amamentavam Sobremesa pudim de

leite

Soacute vontade Um deliacuterio

Descobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um punhado de

parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagado Tambeacutem descobri que atum em lata e

dois ovos duros saciam por mais de quatro horas Uma xiacutecara de cafeacute e um pedaccedilo de

queijo enganam a fome por um bom tempo Disso eu sabia mas tinha me esquecido

Fui verificar meu peso um quilo e novecentos gramas a menos (MOSCOVICH 2006

p125-126)

A passagem acima ilustra um periacuteodo da personagem jaacute adulta em seu progresso durante

a dieta Quando ela diz lsquoDescobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um

punhado de parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagadorsquo (MOSCOVICH 2006 p125-126)

estaacute demonstrando que jaacute eacute capaz de encontrar prazer e sabor dentro da dieta ao inveacutes de lutar

com as restriccedilotildees como fez desde a infacircncia Eacute nesse momento que a comida assume um caraacuteter

de transformaccedilatildeo na narrativa a mudanccedila de postura em relaccedilatildeo ao foco de prazer na comida de

uma lauta refeiccedilatildeo ao novo modo de temperar a salada Como resultado a perda de peso

O significado de tal mudanccedila estaacute justamente na conscientizaccedilatildeo que representa Ao dizer

lsquoSoacute vontade Um deliacuteriorsquo a protagonista expressa conhecer os perigos de lsquouma daquelas refeiccedilotildees

de estivadorrsquo como a que descreve Mostrando a mudanccedila de possibilidades estaacute dizendo a si

mesma que compreendeu que eacute preciso mudar a fonte de prazer para atingir o emagrecimento

proposto pelo meacutedico

Nesse momento aliaacutes a ordem natildeo vem mais do pai natildeo vem mais do meacutedico E nem eacute

mais uma ordem Eacute entatildeo uma escolha E o melhor de tudo parte da proacutepria narradora

personagem em seu percurso no anseio do que pede agrave sua matildee no proacutelogo ldquoMamatildee me

endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar esse territoacuterio

metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora Quero voltar a ter um

corpordquo (MOSCOVICH 2006 proacutelogo)

A voz para a matildee eacute na verdade a voz em que ela se permite emitir essa narrativa Em

essecircncia a voz eacute dirigida a si mesma e o pedido para lsquovoltar a ter um corporsquo segue o verbo

querer na primeira pessoa do singular no presente do indicativo Eacute a afirmaccedilatildeo de um desejo de

91

uma escolha Natildeo eacute o pai natildeo eacute o meacutedico natildeo eacute a interlocuccedilatildeo com a matildee A lei agora eacute sua

segue seu proacuteprio querer Da refeiccedilatildeo de estivador agraves alternativas possiacuteveis a narradora mostra o

que compreendeu eacute agente da proacutepria transformaccedilatildeo eacute emissora da proacutepria voz Tem um corpo

sim Mais do que isso tem um novo querer tambeacutem prazeroso e mais saudaacutevel o

emagrecimento

92

3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS

Levantei-me as pernas agora quase firmes desci os degraus da porta ateacute a calccedilada

buscando algo para comer e o que havia no meu raio de visatildeo era uma carrocinha de

pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me desde que horas ele estava ali se

tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda

agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido Cheguei junto dele remexendo a bolsa

agrave procura de uns trocados que tivessem restado da farra de salgadinhos e biscoitos da

Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada desde entatildeo (REZENDE 2014

p147)

Comida eacute alimento nutriccedilatildeo sobrevivecircncia Eacute palavra feita de carne de aboacutebora de

arroz Tangiacutevel Comemos para nutrir as ceacutelulas mas tambeacutem para garantir nossa autonomia

porque comida eacute escolha eacute expressatildeo de si mesmo gosto disso prefiro aquilo Comida eacute

exerciacutecio de liberdade no quando no quanto no onde no que comer E comer eacute matar a fome e

satisfazer o apetite na comida de rua servida no papel pardo ou na mesa posta com talheres

prato copo guardanapo Comemos intransitivos ou transitivos sozinhos ou acompanhados

Comemos para atravessar mais um dia para seguir existindo como oacutergatildeos viacutesceras cinco

sentidos Mastigar salivar engolir digerir metabolizar excretar eis o trajeto da comida atraveacutes

do organismo tornando-se parte de quem somos E comemos para continuar sendo

31 QUARENTA DIAS

Quarenta dias eacute o livro escrito por Maria Valeacuteria Rezende editado pela Editora Record

em 2014 A narrativa traz a histoacuteria de Alice mulher de meia-idade que a pedido de sua filha

muda-se de Joatildeo Pessoa para Porto Alegre A contragosto deixa sua casa e sua vida as amizades

e os afazeres e segue a demanda da filha para que se torne lsquovoacute profissionalrsquo jaacute que a moccedila e seu

esposo decidem ter um filho

A personagem faz a mudanccedila de tudo o que tem caixas e caixas para a nova cidade em

apartamento escolhido e alugado pela filha e o genro No entanto em um jantar na casa do casal

recebe a notiacutecia de que decidiram passar um periacuteodo fora do paiacutes para suas especializaccedilotildees

acadecircmicas Assim adiaram os planos de gravidez motivo pelo qual ela havia abandonado seu

habitat e aceito uma imposiccedilatildeo pelo desejo da moccedila em ser matildee Partiriam em poucos dias logo

apoacutes Alice ter chegado em sua nova moradia

93

No desterro de seu lar e sozinha na capital gauacutecha a personagem transfere seu territoacuterio

de nutriccedilatildeo para a rua para o espaccedilo representado pelo coletivo pela cidade e natildeo para a cozinha

nova e moderna do apartamento Haacute sobretudo um deslocamento primordial na narrativa a

lsquoexpulsatildeorsquo de suas reflexotildees para as paacuteginas do diaacuterioepiacutestola em que Alice escreve de si

dirigindo-se a uma interlocutora Barbie a figura na capa do caderno que encontrara entre as

caixas da mudanccedila

No iniacutecio de sua vida em Porto Alegre esconde-se em casa fingindo ter viajado para o

interior na casa de primos Entatildeo mune-se de um motivo benevolente que usa para justificar

suas caminhadas a qualquer pessoa com quem encontre a busca freneacutetica pelo rapaz conterracircneo

Ciacutecero Arauacutejo perdido no Sul Nessa missatildeo esquece o proacuteprio endereccedilo e decide por viver um

paradoxo casa que natildeo eacute casa rua que natildeo eacute rua Externo que se torna interno porque eacute parte

dela Rua que eacute casa parece em sendo casa na rua encontra abrigo para a solidatildeo na rua

encontra alimento para as fomes que sente Fome de comida sim mas para aleacutem desta a fome de

ser lsquosi mesmarsquo de novo

Sozinha perde-se de si de seus referenciais familiares dos telefones que tem na

memoacuteria dos sentidos de sua proacutepria vida Tem no desaparecido a razatildeo temporaacuteria para sua

andanccedila sem paradeiro Procurar um jovem de sua terra que veio para Porto Alegre eacute uma boa

desculpa para algueacutem que percorre uma cidade em seus pontos mais perigosos ou naqueles mais

dramaacuteticos como o Hospital de Pronto-Socorro Nem vestiacutegio de Ciacutecero mas laacute encontra um

banco de madeira onde pode dormir

Em seus trajetos transfere o espaccedilo ocupado pela cozinha que eacute o de preparar a nutriccedilatildeo

para um espaccedilo coletivo e itinerante Padarias pequenos botecos nas vilas que percorre carrinhos

de pipoca e de cachorro-quente restaurante da rodoviaacuteria em que escuta um sotaque familiar

comida ofertada aos sem-moradia nas madrugadas Sem desejar voltar para casa Alice passa a

habitar a rua Faz amigos ao longo do caminho pessoas que se preocupam mais com ela do que

sua filha Mas isso ela quer esquecer quer apagar e estabelece um objetivo firme de resgatar um

desaparecido pelos recantos mais insoacutelitos e arriscados da cidade

A representaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo itinerante eacute um fator muito consistente na obra

Porque a cozinha eacute territoacuterio fiacutesico definido por moacuteveis objetos e eletrodomeacutesticos que a

compotildeem mas eacute tambeacutem simboacutelico nela vivem nutriccedilatildeo afeto famiacutelia intimidade Transferir

tal importacircncia para o externo para o alheio a si eacute como um transplante ao contraacuterio

94

O deslocamento na representaccedilatildeo dessa forccedila que transcende o objetivo meramente

nutricional expressa a ausecircncia de ninho vivenciada pela personagem Ela escolhe transplantar

sua vida para o lado de fora da porta escolhe a solidatildeo no meio do coletivo para apagar a solidatildeo

em silecircncio dentro das paredes de uma casa (e natildeo um lar) que a filha e o genro definiram para

ela Ao menos assim eacute ela quem escolhe Autonomia O que comer onde viver onde dormir

onde se banhar Por pior que seja o banho na rodoviaacuteria eacute sua voz eacute sua decisatildeo Por pior que

seja a noite no banco duro de madeira do Pronto-Socorro a pipoca do carrinho que fica ali na

frente o natildeo-ter-para-onde-ir fingindo estar na busca desenfreada pelo desaparecido eacute sua

proacutepria voz que precisa escutar Eacute pelo aparecimento de sua identidade perdida que faz

peregrinaccedilotildees pelos becos mais sombrios por onde se propotildee a percorrer

Ao longo do percurso do livro enquanto parece perder-se cada vez mais de seus

referenciais de sua memoacuteria mais firma o passo mais decide onde ir E suas frases no diaacuterio

vatildeo ganhando pontos-finais ao relatar o ocorrido agrave medida em que se lembra e se torna mais

capaz de contar da redescoberta de sua identidade Na crise da personagem atraveacutes desse

desalojamento de um habitat seguro dessa saiacuteda para fora da porta ocorre a habitaccedilatildeo de um

novo espaccedilo o proacuteprio eu Em seus percursos defronta-se com a perda dos referenciais antigos

da casa de sempre da memoacuteria que lhe permitiria voltar para o eixo seguro da nutriccedilatildeo estaacutevel

na intimidade soacutelida da cozinha

Alice desloca-se durante a maior parte da narrativa Desloca-se de sua terra natal para

Porto Alegre e nessa capital transita entre avenidas principais e becos escondidos entre

viadutos e casas de estranhos entre floriculturas e terrenos baldios Desloca-se de si mesma

quando decide natildeo voltar agrave casa escolhida para ela Escolhida eacute voz passiva voz que ela quer

transcender

Distrai-se com a histoacuteria do desaparecimento de Ciacutecero Arauacutejo com a confusatildeo mental

que se instala entre fome-frio-sono-exaustatildeo Tudo isto para natildeo lembrar volta-se para fora e

desse modo esquece o dentro Desloca o foco das confissotildees que faz a si sendo um diaacuterio para

Barbie como um sucessivo contar de eventos e emoccedilotildees em escritos que mais parecem cartas

Mais uma vez dentro e fora se conjugam pois acontecem num simultacircneo mas estatildeo

dissociados Alice dirige para fora suas reflexotildees para um terceiro entatildeo dissocia-se de si para

olhar para si

95

Em um determinado ponto refere ldquoNatildeo Barbie esta noite natildeo dormi em saguatildeo nem em

parque nenhum Natildeo vecirc como estou bem-disposta a sentar-me pegar a caneta e continuar

escrevendo aqui nesta cozinha depois desta noite bem-dormida na suiacutete deste apartamento que

me esforccedilo para aceitar finalmente como meurdquo (REZENDE 2014 p163)

Estaacute dentro de casa mas ainda natildeo faz parte dela em verdade situa-se fora dali no sentir

Demonstra isso quando usa lsquobem-disposta nesta cozinha deste apartamento como meu me

esforccedilo para aceitarrsquo Tal dissociaccedilatildeo identitaacuteria eacute expressa por um permanente desconexatildeo

consigo Perde-se de sua casa e de seus referenciais para descobrir o paradeiro de Ciacutecero Arauacutejo

com o firme propoacutesito de encontrar um motivo que alinhave seus dias em Porto Alegre dentro de

si o sentido estaacute fora de si Nessa desconexatildeo descobre uma Alice nascente

Chega Barbie agora eu paro mesmo que jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia

guria a solidariedade silenciosa mas agora vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a

mal taacute natildeo digo que seja pra sempre quem sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo

a limpo (REZENDE 2014 p245)

Eacute possiacutevel ler que aquilo que estava fora sua narrativa epistolar para a Barbie seraacute

entregue ao mundo da gaveta o interno e passe a habitar esse lsquodomiciacuteliorsquo escondido Entretanto

Alice jaacute internalizou marcas de linguagem regionais como as tachadas em negrito lsquoguriarsquo e lsquotu

natildeo leva a mal taacutersquo significando esse ponto uma transformaccedilatildeo de aspectos de sua identidade a

incorporaccedilatildeo da linguagem oral como proacutepria Internalizou o que estava fora tornou-o seu

tambeacutem passou a sentir-se parte Como resultado guardou no interno na gaveta seu diaacuterio que

sendo comunicaccedilatildeo consigo era dirigido a um interlocutor

Esse eacute o permanente tracircnsito do livro essa dissociaccedilatildeo permeia cada vivecircncia e eacute atraveacutes

dessa mobilidade que Alice pode ver a si mesma e se transformar Sacudida pelo real perigo de

sua itineracircncia permanente aproxima-se do fim de sua busca por um Ciacutecero que nem espera mais

encontrar

Ao longo da narrativa haacute frases sem ponto final no teacutermino dos capiacutetulos e muitas vezes

com ideias inacabadas Um elemento ligado a esse aspecto eacute o das muacuteltiplas linguagens surgem

epiacutegrafes vindas de outros autores contemporacircneos e em vaacuterias partes do livro elementos

graacuteficos aludindo a folhetos colados no diaacuterio Assim a ruptura da linguagem linear adotando

uma expressatildeo proacutepria eacute composta por frases descontiacutenuas e de outras em que a viacutergula daacute

apenas a pausa necessaacuteria ao ritmo da voz sem preocupaccedilotildees formais com a gramaacutetica

Prevalece aliaacutes o registro do informal com letras maiuacutesculas seguindo viacutergulas interrogaccedilotildees

96

no meio da frase sem uma letra maiuacutescula a seguir e assim por diante trazendo muito mais um

lsquocomo se falarsquo do que um lsquocomo se lecircrsquo

Tal elemento alia-se a um projeto graacutefico que apresenta aleacutem de texto imagens para

contemplar a lsquoformarsquo do livro como um diaacuterio Esta complementaridade toca em um tema de

grande relevacircncia no contemporacircneo a ligaccedilatildeo das artes para expressar um todo que ultrapasse

os territoacuterios particulares uma intersecccedilatildeo de saberes e de poeacuteticas que independentes em sua

importacircncia complementem-se As figuras lsquocoladasrsquo no diaacuterio natildeo parecem ter conexatildeo entre si

mas transmitem a ideia de uma escolha Foram postas ali por Alice Natildeo parece haver unidade

entre as imagens Colagem de figuras mas tambeacutem de vinhetas que se tornam epiacutegrafes sem

conexatildeo aparente entre si Essa ausecircncia de conexatildeo eacute possivelmente o que a obra pretende

comunicar com suas dissociaccedilotildees e com as frases descontiacutenuas agrave medida que a personagem

percorre o trajeto da autonomia as frases vatildeo ganhando finalizaccedilatildeo Ela comeccedila a decidir

Nesse livro a ausecircncia de unidade parece representar exatamente o contraacuterio sua

unidade Outro ponto a ser ressaltado eacute o fato de o diaacuterio ser escrito em uma mistura de tempos

natildeo seguindo a cronologia tiacutepica dos diaacuterios Muito do texto referente agrave eacute registrado em olhar

retrospectivo a todo o periacuteodo e natildeo segue uma ordem temporal tiacutepica em que a escrita iacutentima

sucede cada evento Mistura de tempos e de autores escolhidos para as epiacutegrafes e de figuras

selecionadas para compor o percurso lsquograacuteficorsquo da personagem como a nota da padaria a

propaganda da imobiliaacuteria a divulgaccedilatildeo da cliacutenica de traumatologia e por aiacute vai

Quarenta dias acontece no cerne mais cru da capital as vilas as avenidas movimentadas

a rodoviaacuteria os viadutos de moradores de rua os becos as paradas de ocircnibus o pronto-socorro

os cenaacuterios tiacutepicos de apartamento de lsquocidade grandersquo

Alice eacute uma personagem urbana implantada em Porto Alegre sem colar-se agrave cidade mas

que quanto mais se torna moradora de rua mais se torna pertencente ao mapa porto-alegrense

Mesmo sem perceber Faz-se aderida agraves ruas aos becos agraves vilas aos botecos agraves paradas de

ocircnibus onde dorme Eacute fio da trama quer estar fora porque reluta em aceitar a vida que a ela foi

imposta pela filha Neste processo cria uma vida para si cria um olhar para a cidade que vai

habitando No geruacutendio Alice torna-se parte Faz-se parte quando adentra a rua os viadutos

habitados agrave noite os crimes em matagais o cafeacute e o mate e o cachorro-quente oferecidos pelos

voluntaacuterios na madrugada O banho na rodoviaacuteria o banco duro de madeira onde dorme no HPS

Alice vai tomando voz vai tomando-se de sua voz que haacute tempos natildeo ouvia

97

32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS

Fenocircmenos psiacutequicos como a consciecircncia a memoacuteria a emoccedilatildeo o pensamento e o juiacutezo

criacutetico entre outros satildeo estudados principalmente pelo campo da Fenomenologia Psiquiaacutetrica

esses constituem os pilares para a avaliaccedilatildeo do estado mental de um indiviacuteduo O psiquiatra

examina a qualidade da expressatildeo dos mesmos na entrevista com o paciente verificando se estatildeo

dentro da normalidade ou se apresentam desvios compatiacuteveis com um quadro psicopatoloacutegico

Algumas capacidades satildeo compostas por um conjunto desses fenocircmenos e natildeo apenas por um

esse eacute o caso da autonomia

O indiviacuteduo natildeo nasce com autonomia Esta deve ser estimulada pelos pais desde o

momento em que a crianccedila deixa de mamar no peito e comeccedila a receber a alimentaccedilatildeo soacutelida

Brinca de fechar a boca enquanto a colher vem com a papinha O comer eacute a primeira autonomia

depois da dependecircncia representada pela amamentaccedilatildeo Entatildeo a crianccedila aprende a segurar a

colher entatildeo pouco a pouco os outros talheres Aprende a gostar de comer isso ou aquilo a

apontar o que deseja em seu prato A autonomia vai sendo aprendida na infacircncia pelo engatinhar

e pelo caminhar Segue-se o controle dos esfiacutencteres que vai sendo aprendido o limpar-se o

tomar banho o ficar sem os pais no maternal E tantas outras conquistas ensinadas e estimuladas

para a aquisiccedilatildeo dessa capacidade Entretanto limitaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas podem desde o

iniacutecio da vida restringir seu desenvolvimento

Jaspers compreende as manifestaccedilotildees psiacutequicas tendo como base elementos da

Fenomenologia Desse modo a autonomia resultaria de um conjunto de fatores que em bom

funcionamento determinariam a adequada manutenccedilatildeo dessa capacidade Em contrapartida o

neurocientista Antocircnio Damaacutesio eacute apresentado nesta fundamentaccedilatildeo por suas pesquisas

neurobioloacutegicas sobre o fenocircmeno da consciecircncia na qual aponta existir o nuacutecleo da consciecircncia

de si Nesta estaria o cerne para a autonomia

A escolha e a independecircncia paracircmetros que estatildeo associados agrave essa capacidade

necessitam que haja no ser humano em primeiro lugar a consciecircncia e nesta a consciecircncia de

si a escolha e a decisatildeo acontecem no domiacutenio do pensamento mas envolvem tambeacutem as

emoccedilotildees (representadas pelo afeto e o humor) e o juiacutezo criacutetico Por fim a escolha se realiza

atraveacutes de uma accedilatildeo expressa pela conduta Todos esses elementos satildeo fenocircmenos psiacutequicos que

98

compotildeem a capacidade de autonomia de um indiviacuteduo Quando essa se apresenta reduzida por

algum dos paracircmetros indicados avalia-se a presenccedila ou a ausecircncia de normalidade por

conseguinte avalia-se a existecircncia de psicopatologia Os outros fenocircmenos - atenccedilatildeo orientaccedilatildeo

memoacuteria sensopercepccedilatildeo inteligecircncia e linguagem- estatildeo presentes na avaliaccedilatildeo do estado

mental do indiviacuteduo compondo tambeacutem sua autonomia no entanto apresentam-se em grau de

menor relevacircncia para seu desenvolvimento

Aleacutem de escolha independecircncia consciecircncia de si e decisatildeo outras expressotildees podem

ser associadas a seu exerciacutecio liberdade individualidade vontade self eu Em termos

etmoloacutegicos a palavra autonomiacutea procede do latim autonomĭa e esta por sua vez do grego

αὐτονομία (autonomia) formada por αὐτός (autoacutes) que significa lsquomesmorsquo e νόμος (noacutemos) lsquoleirsquo

ou lsquonormarsquo Assim seria possiacutevel compreender que o significado aponta para a noccedilatildeo de

autonomia como lsquoleis para si mesmorsquo ou seja as leis que o proacuteprio indiviacuteduo define para sua

vida

Considerando a autonomia como capacidade eacute necessaacuterio apontar que em casos de

sofrimento psiacutequico essa apresenta-se muitas vezes reduzida pois o sofrer acaba por reduzir a

possibilidade de o indiviacuteduo sentir-se livre para as proacuteprias escolhas Em ateacute que ponto este

quadro representa uma circunstacircncia normal e a partir de qual se torna patoloacutegico O sofrimento

pode resultar de uma crise vital com duraccedilatildeo por um periacuteodo esperado e apresentaccedilatildeo de

sintomas dentro da normalidade ou pode resultar do adoecimento do indiviacuteduo com sintomas

presentes em intensidade maior e por periacuteodo mais longo A restriccedilatildeo da liberdade e portanto da

autonomia ocorreraacute de acordo com o tipo e com a duraccedilatildeo deste sofrimento Tal diminuiccedilatildeo na

narrativa pode ser vista de dois modos como parte do sofrimento psiacutequico vivenciado pela

personagem e como perda real de sua experiecircncia de autonomia jaacute que teve sua vinda ao Sul

definida pela escolha da filha Natildeo por sua decisatildeo Eacute por perceber-se nesta condiccedilatildeo que Alice

parte na direccedilatildeo de sua autonomia para sentir-se livre novamente

Karl Jaspers apresenta elementos relacionados agrave autonomia em sua obra Psicopatologia

geral sem que esse termo propriamente dito seja conceituado ou explicitado A expressatildeo mais

proacutexima eacute a da consciecircncia do eu considerada dentre o que ele estabelece como lsquofenocircmenos

subjetivos da vida psiacutequicarsquo Esta consciecircncia estaacute na base fundamental para o desenvolvimento

da autonomia ao lado de outro fenocircmeno apontado o da lsquoconsciecircncia do corporsquo

99

Na apresentaccedilatildeo da lsquoconsciecircncia do eursquo Jaspers define quatro componentes o primeiro eacute

o sentimento de atividade uma consciecircncia de atividade do eu Este se refere a tudo o que ocorre

na vida psiacutequica e que o indiviacuteduo identifica como seu a exemplo de percepccedilotildees sensaccedilotildees do

corpo lembranccedilas representaccedilotildees pensamentos e sentimentos Todas essas atividades do eu que

o caracterizam satildeo operaccedilotildees pessoais realizadas em si mesmo e identificadas como proacuteprias e

compotildeem o que o autor denomina personalizaccedilatildeo Quando haacute alteraccedilatildeo desses aspectos usa-se o

termo despersonalizaccedilatildeo fenocircmeno que pode ser descrito como o estranhamento do eu a

percepccedilatildeo de que tudo o que ocorre com o indiviacuteduo eacute na verdade alheio ao mesmo

Tal estranhamento ocorre no mundo das percepccedilotildees junto agrave ausecircncia de sensaccedilotildees

normais do proacuteprio corpo agrave incapacidade subjetiva de recordar-se de dados referentes a si agrave

inibiccedilatildeo dos sentimentos e ao automatismo de processos voluntaacuterios Tudo passa a constituir um

conjunto de atividades alheias ao eu e que em condiccedilotildees de normalidade deveriam ser

compreendidas como proacuteprias

O segundo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia da unidade ou seja a

unidade do eu Esta se refere agrave possibilidade de o indiviacuteduo perceber a si mesmo como unidade

ser um soacute no mesmo instante e natildeo como dois seres distintos ainda que atraveacutes de accedilotildees

diferentes (como ouvir a proacutepria voz enquanto fala e reconhecer que eacute sua proacutepria voz) A

alteraccedilatildeo da unidade do eu ocorre quando haacute um desdobramento da percepccedilatildeo de si observando

o eu como se estivesse fora dele

O terceiro componente da consciecircncia do eu eacute a consciecircncia da identidade ou seja a

identidade do eu Com a frase lsquosou o mesmo de antesrsquo refere-se agrave identidade como a consciecircncia

de ser o mesmo indiviacuteduo no seguir do tempo a constacircncia de si proacuteprio A alteraccedilatildeo deste

fenocircmeno leva o paciente a perceber o lsquoeursquo de um periacuteodo de vida como diferente do lsquoeursquo de

outro periacuteodo como antes e depois da instalaccedilatildeo de uma doenccedila psiacutequica por exemplo

O uacuteltimo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia do eu em oposiccedilatildeo ao mundo

externo e ao outro em que o indiviacuteduo eacute capaz de reconhecer a proacutepria identidade e de percebecirc-la

distinta do mundo externo e da identidade de outra pessoa Existe nesse componente a clara

contraposiccedilatildeo entre este indiviacuteduo e o mundo externo

Tais elementos constituem assim a lsquoconsciecircncia do eursquo base para a percepccedilatildeo das

proacuteprias necessidades e desejos neste sentido constituem tambeacutem a base para as escolhas

individuais no plano do pensamento dos sentimentos e das accedilotildees compreendidas pelo indiviacuteduo

100

como proacuteprias a si Ao lado dos componentes apresentados estaacute a consciecircncia do corpo Sobre

essa consciecircncia Jaspers refere

[] sou consciente do meu corpo como de minha existecircncia e contemporaneamente eu o

vejo com os olhos e o toco com as matildeos O corpo eacute a uacutenica parte do mundo que deve ser

sentida ao mesmo tempo pelo interno e percebida na superfiacutecie Esse eacute um objeto para

mim e sou esse mesmo corpo Satildeo duas coisas diferentes como me sinto

corpoereamente e como me percebo como objeto mas as coisas satildeo ligadas de modo

indissoluacutevel (JASPERS 2000 p95)

De acordo com o autor essa deve ser conhecida do ponto de vista fenomenoloacutegico

mediante a percepccedilatildeo de nossa experiecircncia global com nosso corpo Essa consciecircncia estaacute mais

proacutexima agrave lsquoconsciecircncia do eursquo nas atividades musculares e de movimento mais distantes das

sensaccedilotildees associadas ao coraccedilatildeo e agrave circulaccedilatildeo e ainda mais afastadas das sensaccedilotildees oriundas da

atividade vegetativa Enquanto o movimento eacute resultado das funccedilotildees voluntaacuterias os mecanismos

fisioloacutegicos vinculados ao coraccedilatildeo agrave circulaccedilatildeo e agrave atividade vegetativa satildeo inerentes agrave vida do

ponto de vista bioloacutegico e portanto involuntaacuterios A consciecircncia do corpo associada agravequela do

eu eacute referida por Jaspers por determinados fatores

Temos um sentimento especiacutefico da nossa existecircncia corpoacuterea no movimento e no

comportamento na forma na leveza e graccedila ou no peso na falta de agilidade motora na

impressatildeo que desejamos que nosso corpo desperte no outro no estado de fraqueza ou

de forccedila nas alteraccedilotildees da sauacutede [] A experiecircncia do proacuteprio corpo eacute ligada

estritamente do ponto de vista fenomenoloacutegico com a experiecircncia do sentimento das

pulsotildees instintivas da consciecircncia do eu (JASPERS 2000 p96)

Essas duas expressotildees da consciecircncia a do eu e a do corpo compotildeem o indiviacuteduo capaz

de perceber a si mesmo como unidade com uma identidade constante no tempo uacutenica em si

mesma e contraposta ao mundo externo a si e a outras pessoas De acordo tambeacutem com Jaspers

ldquo[] o corpo eacute a realidade da qual se pode dizer eu sou esse mesmordquo (JASPERS 2000 p383) O

autor refere que ldquo[] a situaccedilatildeo fundamental do ser humano eacute a estar no mundo como ser

singular finito ser dependente mas ter a possibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevel limitado

por confins obrigatoacuteriosrdquo (JASPERS 2000 p352) Em tal reflexatildeo a autonomia do indiviacuteduo

estaacute nesta lsquopossibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevelrsquo determinada pelo autor Entretanto ele

define tal possibilidade associada a confins obrigatoacuterios que delimitam o espaccedilo individual

Jaspers estabelece os limites entre autossuficiecircncia e dependecircncia apontando que somos

seres dependentes em nossa realidade e que a autossuficiecircncia completa eacute um ideal inatingiacutevel

101

[] no homem haacute a tendecircncia a imaginar-se um ser ideal que fechado em si seja

autossuficiente e que satisfeito em si mesmo viva sem sentir necessidade de qualquer

coisa do externo porque ele existe em si mesmo em abundacircncia infinita Se o homem

quiser tornar-se tal ser deveraacute compreender de modo draacutestico que eacute simplesmente

dependente em tudo Ele como ser vital tem necessidades que soacute podem ser satisfeitas

pelo externo Ele deve viver e valer na sociedade para participar aos bens necessaacuterios agrave

vida Ele deve viver com outros seres humanos em reciprocidade (JASPERS 2000

p354)

Assim para Jaspers a consciecircncia de si e a consciecircncia do corpo formam a unidade do ser

individual que pode agir em um espaccedilo mutaacutevel no qual o indiviacuteduo eacute consciente se si mesmo e

das proacuteprias accedilotildees mas cuja autossuficiecircncia eacute condicionada a confins obrigatoacuterios a realidade

externa os bens necessaacuterios agrave vida (alimentos moradia recursos econocircmicos para vestir-se e

deslocar-se por exemplo) e os outros indiviacuteduos com quem este interage em suas relaccedilotildees

interpessoais A autonomia assim acontece dentro de um espaccedilo definido por limites reais do

mundo externo

O neurologista e neurocientista Antonio Damaacutesio assim como Jaspers tambeacutem

estabelece uma associaccedilatildeo direta entre a consciecircncia do eu e o corpo O elemento da consciecircncia

do indiviacuteduo sobre si mesmo eacute denominado por ele de Self e eacute parte da estrutura que define

como consciecircncia Damaacutesio parte da comparaccedilatildeo do ser humano com organismos unicelulares e

estabelece

Uma chave para compreendermos os organismos vivos desde aqueles compostos de

uma uacutenica ceacutelula ateacute os formados por bilhotildees de ceacutelulas eacute a definiccedilatildeo de sua fronteira a

separaccedilatildeo entre o que estaacute dentro deles e o que estaacute fora A estrutura do organismo estaacute

dentro da fronteira e a vida do organismo eacute definida pela manutenccedilatildeo dos estados

internos agrave fronteira E a individualidade singular depende dessa fronteira (DAMAacuteSIO

2000 p178)

A referecircncia de Antonio Damaacutesio estaacute de acordo com a perspectiva de Karl Jaspers no

que tange agrave lsquoindividualidade singularrsquo dentro da fronteira separada do mundo externo a parte de

fora dessa fronteira O neurocientista explicita que o indiviacuteduo singular deve apresentar

sobretudo ldquo[] um grau notaacutevel de invariacircncia estrutural para que consiga oferecer uma unidade

de referecircncia no decorrer de longos periacuteodosrdquo acrescentando que ldquo[] de fato continuidade de

referecircncia eacute o que o self precisa proporcionarrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Essa continuidade de

referecircncia coincide com um dos componentes da lsquoconsciecircncia do eursquo definida por Jaspers aquele

em que o indiviacuteduo permanece com a percepccedilatildeo de si mesmo ao longo do tempo

102

O aspecto que se relaciona agrave reflexatildeo sobre a autonomia a partir da leitura de Damaacutesio

encontra-se em tal continuidade ligada por sua vez ao que ele aponta como estabilidade Este

autor refere que ldquo[] quando refletimos acerca do que estaacute por traacutes da noccedilatildeo de self encontramos

a noccedilatildeo do indiviacuteduo singular E quando pensamos no que estaacute por traacutes da singularidade do

indiviacuteduo encontramos a estabilidaderdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Quando se refere agrave noccedilatildeo de

estabilidade Damaacutesio estaacute na verdade apresentando a ideia de que um organismo vivo deve ter

constacircncia em seu meio interno para manter a vida e essa constacircncia pode ser explicada nas

palavras do autor como ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados internos de modo

que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Ao trazer a noccedilatildeo de constacircncia o autor estaacute falando em organismo e sobretudo em

sobrevivecircncia A chave de sua reflexatildeo reside no fato de remeter-se agrave noccedilatildeo de estabilidade dos

paracircmetros do organismo compatiacuteveis com a vida para chegar ao fenocircmeno da consciecircncia do

eu Damaacutesio aponta que

Um organismo simples formado de uma uacutenica ceacutelula digamos uma ameba natildeo apenas

estaacute vivo mas se empenha em continuar vivo Sendo uma criatura sem ceacuterebro e sem

mente a ameba natildeo sabe sobre as intenccedilotildees do seu proacuteprio organismo assim como noacutes

sabemos sobre nossas intenccedilotildees equivalentes [] O que estou tentando mostrar eacute que o

iacutempeto de manter-se vivo natildeo eacute um avanccedilo recente Natildeo eacute uma propriedade exclusiva

dos seres humanos De um modo ou de outro dos organismos simples aos complexos a

maioria dos seres vivos apresenta essa propriedade O que efetivamente varia eacute o grau

em que os organismos tecircm conhecimento desse iacutempeto Poucos deles tecircm Mas o iacutempeto

estaacute presente quer o organismo saiba disso ou natildeo Graccedilas agrave consciecircncia os humanos

satildeo em grande parte cientes dele (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Eacute possiacutevel compreender entatildeo a referida estabilidade como o iacutempeto do organismo em

manter-se vivo nos seres humanos existe a consciecircncia desse iacutempeto O indiviacuteduo singular

como denomina o autor eacute consciente de sua sobrevivecircncia que ocorre no ambiente interno de

sua fronteira ou seja em seu corpo Para conservaacute-la com a estabilidade necessaacuteria agrave

permanecircncia de vida deve manter constantes paracircmetros internos em sua fisiologia Comer

dormir beber liacutequidos proteger-se de extremos de temperatura urinar e defecar algumas das

funccedilotildees que realizamos conscientemente para responder a essa finalidade cumprimos

necessidades vitais respondemos ao iacutempeto do organismo em manter-se vivo mas o realizamos

com o claro propoacutesito de fazecirc-lo Damaacutesio refere que ldquo[] a cada momento o ceacuterebro tem agrave sua

disposiccedilatildeo uma representaccedilatildeo dinacircmica de uma entidade com variaccedilotildees limitadas de estados

possiacuteveis- o corpordquo (DAMAacuteSIO 2000 p186)

103

A consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo portanto estatildeo na base do indiviacuteduo

singular A manutenccedilatildeo do ambiente dentro da fronteira nosso corpo eacute realizada por nossa

consciecircncia no cumprimento de nossas funccedilotildees vitais de certo modo escolhemos cumprir tais

funccedilotildees ao respeitarmos necessidades fisioloacutegicas entre elas comer e dormir Assim

sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas por um elemento em comum a consciecircncia que o

indiviacuteduo tem de si mesmo Entretanto deve-se salientar que a autonomia eacute uma capacidade que

poderaacute existir em maior ou menor grau durante o ciclo vital pois depende das possibilidades

fiacutesicas e psiacutequicas do ser humano em responder agraves exigecircncias da vida dentro de paracircmetros de

normalidade

Alguns elementos podem restringir a capacidade de autonomia sendo o sofrimento

psiacutequico um deles por reduzir a liberdade de o indiviacuteduo em fazer suas escolhas Tal reduccedilatildeo eacute

determinada pelo proacuteprio sofrimento inerente a patologias psiquiaacutetricas ou a crises vitais como

por exemplo a reaccedilatildeo a um evento traumaacutetico

Massimo Biondi em seu livro A mente selvagem um ensaio sobre a normalidade nos

comportamentos humanos apresenta o viacutenculo do sofrimento subjetivo com a reduccedilatildeo da

liberdade Sobre esse tema discute o limite entre normalidade e psicopatologia quando se aborda

o indiviacuteduo que sofre Segundo esse psiquiatra italiano no capiacutetulo intitulado lsquoO sofrimento

subjetivo e a liberdadersquo que o sofrimento subjetivo e a anguacutestia a reduccedilatildeo ou falta de liberdade e

a reduccedilatildeo da vontade satildeo aspectos que invariavelmente acompanham o distuacuterbio psiacutequico quanto

a este pode-se falar da importacircncia da vivecircncia subjetiva de determinado evento ou situaccedilatildeo

existencial para procurar definir os limites entre a normalidade psiacutequica e a patologia

O sofrimento subjetivo termo empregado por esse autor constitui um criteacuterio para

diversos diagnoacutesticos psiquiaacutetricos e tem como eixos principais a experiecircncia subjetiva e aquela

psiacutequica a primeira referente agrave percepccedilatildeo subjetiva de um evento existencial ou de um

sentimento pode ser avaliada apenas indiretamente por suas manifestaccedilotildees e pelo relato do

indiviacuteduo que sofre A segunda em linhas gerais refere-se agrave resposta do indiviacuteduo em termos

psiacutequicos ou seja atraveacutes de alteraccedilotildees dos fenocircmenos do estado mental conduzindo ao

diagnoacutestico Massimo Biondi aponta quatro componentes do que denomina sofrimento psiacutequico

a) Um estado de sofrimento subjetivo mesmo que natildeo espontaneamente referido pela

pessoa em niacutevel verbal b) uma reduccedilatildeo ou perda da liberdade sobre os proacuteprios

pensamentos e sobre as proacuteprias accedilotildees c) uma alteraccedilatildeo do proacuteprio projeto de existecircncia

104

e da capacidade de projetar o futuro d) uma alteraccedilatildeo reduccedilatildeo ou anulaccedilatildeo da vontade

(BIONDI 1996 p40)

O segundo componente relativo agrave reduccedilatildeo ou perda da liberdade eacute elemento comum e

distintivo que atravessa a existecircncia de pessoas com distuacuterbios psiacutequicos Tal elemento eacute um dos

criteacuterios de patologia psiquiaacutetrica de uma relevante instituiccedilatildeo da especialidade mas natildeo estaacute

restrito apenas aos diagnoacutesticos tal perda estaacute associada ao proacuteprio sofrimento Assim podemos

encontrar em indiviacuteduos que atravessam crises vitais essa perda de liberdade significando

reduccedilatildeo da autonomia de algueacutem que atravessa uma situaccedilatildeo de sofrimento subjetivo sem

necessariamente tal quadro constituir alguma patologia psiquiaacutetrica definida

Ainda de acordo com Biondi um indiviacuteduo pode apresentar um distuacuterbio psiquiaacutetrico

como causa de um evento especiacutefico existem quadros em que o evento estressante tem um claro

papel patogecircnico Nesses casos o sofrimento subjetivo gerado pelo evento aparece como

principal mediador que causa favorece e acompanha o estado psicopatoloacutegico Existem

entretanto condiccedilotildees em que o sofrer subjetivo natildeo eacute indicativo de um estado de doenccedila

propriamente dito mas pode estar associado a condiccedilotildees compreendidas dentro da normalidade

Um estado de sofrimento subjetivo decorre por exemplo de situaccedilotildees comuns e

lsquonormaisrsquo como luto perda de trabalho dificuldades afetivas ou conjugais fracasso escolar ou

profissional natildeo necessariamente evoluindo para um quatro de psicopatologia Algumas

situaccedilotildees inclusive satildeo vivenciadas como positivas pelo indiviacuteduo porque reestruturam algum

foco de seu mundo interno conduzindo a uma mudanccedila na percepccedilatildeo de determinadas

experiecircncias Em tais casos o sofrimento pode ser atenuado ou ateacute mesmo ter um valor

construtivo Eacute possiacutevel refletir que nessas condiccedilotildees a perda da liberdade seja temporaacuteria mas

ainda assim leve agrave melhora do indiviacuteduo em sua perspectiva de vida pois o sofrimento eacute

condiccedilatildeo muitas vezes para a tomada de consciecircncia da condiccedilatildeo humana

Por fim cabe referir a ressalva do proacuteprio autor

[] a normalidade natildeo eacute uma condiccedilatildeo caracterizada apenas pela ausecircncia de sofrimento

psiacutequico Muitos acontecimentos comuns da vida fazem sofrer agraves vezes de modo mais

intenso e persistente em situaccedilotildees totalmente normais [] O problema estaacute em

reconhecer o sofrimento normal daquele que define em sentido estrito alguma patologia

psiacutequica (BIONDI 1996 p53-56)

A reflexatildeo sobre a perda da liberdade inerente ao sofrimento psiacutequico em vigecircncia de

uma circunstacircncia normal ou de patologia psiquiaacutetrica inclui o entendimento de que a autonomia

105

estaacute reduzida quando este sofrimento acontece O indiviacuteduo durante o periacuteodo em que sofre eacute

limitado na capacidade de fazer escolhas saudaacuteveis para si e tal limitaccedilatildeo decorre da dor psiacutequica

propriamente dita Aleacutem de ser menos livre pois o que pensa e sente eacute condicionado por essa dor

o indiviacuteduo acometido sente menos vontade como refere Biondi ao mencionar o uacuteltimo dos

quatro componentes do sofrimento psiacutequico Pode-se novamente referir a reduccedilatildeo da autonomia

pois dela faz parte tambeacutem o fato de ter vontades e de dar voz agraves mesmas

33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA

O que nos move ao comer Brillat-Savarin em A fisiologia do gosto apontou o lsquosentido

geneacutesicorsquo ldquo[] o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro sendo a

sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecierdquo (DOacuteRIA 2009 p190) A referecircncia agrave obra claacutessica na

literatura gastronocircmica feita pelo pesquisador Carlos Alberto Doacuteria em seu livro A culinaacuteria

materialista eacute seguida pela seguinte reflexatildeo apresentada por ele

[] ora a reproduccedilatildeo da espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do

indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo

ao sexo e ao comer eacute o prazer a busca do agradaacutevel [] Precisamos nos encontrar com

o alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduos e isso se daacute por dois caminhos

pelo prazer e pela dor

A fome eacute a fonte de dor e nos leva em direccedilatildeo ao alimento o prazer em comer tambeacutem

nos leva em direccedilatildeo ao alimento antes que a dor nos imponha o seu caminho (DOacuteRIA

2009 p190)

lsquoA busca pelo alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduosrsquo nas palavras do autor

estaacute associada agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo precisamos

manter a vida para preservaacute-la motivo pelo qual nos nutrimos e copulamos A procura por

alimentos viaacuteveis eacute da histoacuteria do Homo sapiens assim como no ato de cozinhar

experimentavam-se teacutecnicas que favorecessem a ingestatildeo de animais e vegetais

Neste ponto cabe a reflexatildeo de que a procura por novos alimentos e o desenvolvimento

de modos para preparaacute-los resultou da iniciativa em descobrir novas possibilidades comestiacuteveis

da capacidade fiacutesica de fazecirc-lo e de vaacuterias capacidades deste homo sapiens Seria possiacutevel

compreender entre estas a autonomia conduzindo agrave compreensatildeo de que teria sido esta

capacidade em suas primeiras manifestaccedilotildees uma das responsaacuteveis pela partida em direccedilatildeo a

animais e vegetais para comer

106

Caberia citar tambeacutem a autonomia como responsaacutevel pelo desenvolvimento da descoberta

de cozinhar os alimentos aleacutem de aspectos inerentes agrave proacutepria evoluccedilatildeo da espeacutecie Desse modo

ela pode ter permitido a sobrevivecircncia em condiccedilotildees muitas vezes desfavoraacuteveis pelas escolhas

alimentares que favoreceu Sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas assim desde tempos

ancestrais conforme refere Carlos Alberto Doacuteria no mesmo livro

Assim como ensina o arqueozooacutelogo Jean-Denis Vigne haacute 30 mil anos o homem jaacute natildeo

comia soacute o que o seu ambiente imediato lhe oferecia por facilidade de captura mas ia

atraacutes de alimentos capazes de satisfazer suas imagens mentais mais fortes e expressivas

em termos sociais Especialmente nas regiotildees frias no Paleoliacutetico Superior sua dieta era

composta de animais com pouca disponibilidade de vegetais Jaacute no Mesoliacutetico o clima

se estabiliza e nas regiotildees temperadas comeccedila a apresentar maior utilizaccedilatildeo de vegetais

Entre 8000-9000 aC e 5000 aC desenvolve-se a dieta moderna em que as energias

humanas satildeo providas por lipiacutedeos e gluciacutedeos originados de animais e plantas

domesticadas Pode-se dizer entatildeo que dessa eacutepoca em diante o homem produz tudo

aquilo que come isto eacute produz a si proacuteprio do ponto de vista alimentar (DOacuteRIA 2009

p3)

Doacuteria aponta ainda o viacutenculo entre a dieta humana e o processo de hominizaccedilatildeo como a

aquisiccedilatildeo da postura biacutepede e por fim a expansatildeo do Homo erectus ao moderno Homo sapiens

que exigiu uma dieta suficientemente rica em calorias e nutrientes Aleacutem desse aspecto o autor

refere o domiacutenio do fogo que permitiu cozinhar os alimentos e seus benefiacutecios

O incremento de calorias se deu graccedilas tanto a ambientes mais favoraacuteveis quanto agrave

adoccedilatildeo da culinaacuteria da agricultura e de criteacuterios de seleccedilatildeo de espeacutecies alimentares

Cozinhar tornou os alimentos mais macios e faacuteceis de ingerir e viabilizou o consumo de

vegetais como a batata e a mandioca que na forma crua natildeo podiam ter seus nutrientes

metabolizados pelo corpo humano Desse modo esses carboidratos complexos se

tornaram digestiacuteveis e multiplicaram ao extremo as possibilidades alimentares Em

siacutentese esses procedimentos aliados agrave seleccedilatildeo de espeacutecies vegetais permitiram

incrementar sua produtividade sua digestibilidade e seu conteuacutedo nutricional (DOacuteRIA

2009 p32)

O Homo sapiens munido de maiores capacidades alimentava-se de forma cada vez

melhor no sentido de incrementar sua sobrevivecircncia nutrindo-se com maior variedade e melhor

qualidade da dieta adquiria novas capacidades e aprimorava aquelas jaacute dominadas resultando em

aumento na capacidade de descoberta de novos ingredientes e de preparo dos mesmos Instalava-

se assim um ciacuterculo entre o desenvolvimento de potencialidades tornando-o cada vez mais

capaz de sobreviver mesmo em condiccedilotildees adversas bem como de agir sobre tais condiccedilotildees

Tudo isso favorecia a vida e a reproduccedilatildeo da espeacutecie Sobrevivecircncia e autonomia novamente

aliadas pelo alimento O pesquisador norte-americano Michael Pollan alude a uma observaccedilatildeo de

Winston Churchill sobre a arquitetura ldquoPrimeiro cozinhamos nossa comida depois ela nos

107

cozinhourdquo (POLLAN 2014 p15) Pollan explica esse fenocircmeno ocupado pelo cozinhar em

nossa biologia

Portanto cozinhar nos transformou e natildeo apenas por nos tornar mais sociaacuteveis e

corteses Uma vez que o ato de cozinhar permitiu que expandiacutessemos nossas capacidades

cognitivas agrave custa da capacidade digestiva natildeo havia mais como voltar atraacutes nossos

ceacuterebros grandes e intestinos pequenos dependiam agora de uma dieta agrave base de

alimentos cozidos [] Isso quer dizer que cozinhar tornou-se compulsoacuterio- estaacute por

assim dizer cozido em nossa biologia (POLLAN 2014 p15)

A partir daiacute toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo incluindo o surgimento da gastronomia

conduz progressivamente a um grau de evoluccedilatildeo deste campo que ultrapassa a lsquomerarsquo demanda

pela sobrevivecircncia e preservaccedilatildeo da espeacutecie A sobrevivecircncia ao que parece natildeo ocupa mais o

centro no universo da cozinha O campo das accedilotildees e estudos ligados ao preparo do alimento

chega em nosso seacuteculo XXI em niacuteveis de superespecializaccedilatildeo e de glamourizaccedilatildeo nunca antes

imaginados Este eacute o caso para citar exemplos da Cozinha Molecular e dos programas

televisivos que invadem as casas com a famiacutelia muito mais atenta ao programa sobre comer do

que ao proacuteprio comer Hoje em dia aliaacutes sobreviver natildeo atinge a categoria de prioridade de

muitos indiviacuteduos fervorosos em sua autonomia contemporacircnea no desejo insalubre pelo prazer

da comida ou mesmo na pressa da vida urbana morrem por comer da pior forma possiacutevel

Para compreender esse processo vale refletir sobre como chegamos ateacute aqui A histoacuteria a

ser contada parte do ato de cozinhar que ldquo[] eacute como dizem os antropoacutelogos uma atividade que

nos define como seres humanos - o ato com o qual segundo o filoacutesofo e antropoacutelogo Claude

Levi-Strauss a cultura surgerdquo (POLLAN 2014 p13) Para Leacutevi-Strauss conforme referido por

Michael Pollan ldquo[] cozinhar servia como uma metaacutefora da transformaccedilatildeo humana da natureza

crua para a cultura cozidardquo (POLLAN 2014 p13) A respeito do papel do cozinhar para a

cultura Carlos Alberto Doacuteria refere

O que une as abelhas no coletivo eacute uma interaccedilatildeo quiacutemica chamada trofolaxe Ora aleacutem

da integraccedilatildeo neurosensorial devemos considerar que a trofolaxe humana eacute a linguagem

Eacute por intermeacutedio da linguagem que estamos acoplados com outros seres humanos e eacute

tambeacutem com ela que partilhamos nossas experiecircncias ateacute mesmo atraveacutes de enormes

distacircncias no tempo e no espaccedilo Nessa trofolaxe a relaccedilatildeo com os sabores do mundo se

daacute ao mesmo tempo pelo aparelho gustativo e pela cultura (DOacuteRIA 2009 p197)

Deve-se considerar a vasta gama de fatos da histoacuteria da alimentaccedilatildeo desde a preacute-histoacuteria

ateacute nosso terceiro milecircnio tendo como eixo a transformaccedilatildeo na cultura produzida pelo cozinhar

a fim de compreender as mudanccedilas exponenciais que a cozinha atravessou ateacute chegar agrave sua

108

representaccedilatildeo contemporacircnea Nesse contexto faz-se necessaacuterio definir os pontos de referecircncia

que marcaram a transiccedilatildeo a partir da qual sobreviver parece ter deixado de ocupar o motivo por

que o indiviacuteduo se alimenta

Um dos aspectos que podem ser apontados como referenciais na transiccedilatildeo acima abordada

eacute o iniacutecio da chamada restauraccedilatildeo ou seja o surgimento dos restaurantes dentro do nascimento

da hotelaria Em especial a existecircncia da comida de rua passa a ter um papel significativo neste

sentido A valorizaccedilatildeo da gastronomia cada vez maior desde o seacuteculo XVIII teve tambeacutem

influecircncia no processo ao deslocar para o prazer dos sentidos principalmente o do gosto o

centro de sua atenccedilatildeo

Entretanto haacute um ponto chave para a mudanccedila do foco da comida de aspecto nutricional

e gregaacuterio a fator de risco para as mais variadas doenccedilas fiacutesicas como a obesidade e a

hipertensatildeo arterial e para aquelas psiacutequicas como a anorexia e a bulimia tatildeo vigentes no seacuteculo

XXI Este ponto em sua origem estaacute no processo de industrializaccedilatildeo que culminou com o

deslocamento do comer da mesa do lar para o local de trabalho De que forma este pode

relacionar-se agrave sobrevivecircncia e agrave autonomia focos deste subcapiacutetulo Por dois caminhos o

primeiro refere-se ao fato de que o deslocamento restringiu as possiblidades de alimentaccedilatildeo e os

empregados ficaram submetidos ao que fosse oferecido em seu trabalho portanto com restriccedilatildeo

da autonomia o segundo caminho refere-se agraves ofertas alimentares propiciadas nos locais de

trabalho pouco dirigidas agrave sauacutede do indiviacuteduo e por extensatildeo ao papel nutricional da

alimentaccedilatildeo equivalente agrave sua sobrevivecircncia

Pode-se falar na evoluccedilatildeo dos centros urbanos e de suas demandas e transformaccedilotildees entre

estas a pressa que tambeacutem restringe as escolhas alimentares possiacuteveis Outra vez a restriccedilatildeo da

autonomia e o prejuiacutezo das escolhas agrave sauacutede Da pressa passamos ao fenocircmeno seguinte aquele

que Maacutessimo Montanari e Jean-Louis Flandrin denominam lsquoA McDonaldizaccedilatildeo dos costumesrsquo

no livro Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo do qual satildeo organizadores A pressa leva ao surgimento dos

fast-food pela sociedade norte-mericana estes por sua vez causam uma lista de patologias

cardiovasculares e oncoloacutegicas por exemplo A pressa e os fast-food tornam-se parte do

fenocircmeno de stress que aumenta a pressa e torna rotineira a alimentaccedilatildeo raacutepida reduzindo a

sauacutede e aumentando ainda mais o stress Instala-se o ciacuterculo vicioso da vida moderna O eixo de

nutriccedilatildeo que uma vez focircra o lar tornou-se a rua

109

Retomando um dos elementos discutidos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute possiacutevel perceber o

modo como as referidas mudanccedilas atingem a sobrevivecircncia Damaacutesio refere que para que um

organismo permaneccedila vivo eacute necessaacuterio ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados

internos de modo que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Em seu ensaio sobre a normalidade dos comportamentos humanos Massimo Biondi

apresenta um capiacutetulo em que aborda a normalidade dos padrotildees fisioloacutegicos de sobrevivecircncia

Explica que

O organismo eacute uma entidade viva Sua vida se baseia em processos bioloacutegicos de base

que devem respeitar algumas caracteriacutesticas A vida humana por exemplo eacute possiacutevel

para temperaturas corporais compreendidas entre 30 e 42deg Acima ou abaixo de tais

temperaturas para aleacutem de um certo tempo a vida eacute impossiacutevel []

Tal conceito vale para muitas outras variaacuteveis estudadas em medicina e fisiologia do

peso agrave altura da frequecircncia cardiacuteaca agrave pressatildeo arterial [] da quantidade diaacuteria de

accediluacutecar no sangue agraves caracteriacutesticas da urina

O criteacuterio da norma bioloacutegica assim como concebido aqui refere-se agrave normalidade de

funcionamento de estruturas bioloacutegicas que caracterizam a vida de um organismo e satildeo

compatiacuteveis com a mesma (BIONDI 1996 p169)

O indiviacuteduo do seacuteculo XXI em posse de sua autonomia acaba por fazer escolhas

alimentares contra a proacutepria sobrevivecircncia pois alteram os padrotildees de normalidade compatiacuteveis

com a sauacutede e em uacuteltima instacircncia com a proacutepria vida eacute o caso do impacto de alimentos do

regime fast-food na sauacutede resultando em diabetes hipertensatildeo arterial e sobrepesoobesidade

Tal resultado entre outros deve-se agrave ingestatildeo excessiva de carboidratos gorduras e

trigliceriacutedeos presentes nesta forma lsquodesnutricionalrsquo

A autonomia desse modo que muitas vezes eacute fonte de extrema valorizaccedilatildeo em tempos

nos quais a individualidade ocupa papel central leva o homem contemporacircneo a atacar a

sobrevivecircncia e natildeo mais a preservaacute-la Nesse ponto da histoacuteria da alimentaccedilatildeo sobrevivecircncia e

autonomia afrouxaram o dar as matildeos De acordo com Michael Pollan ldquoPesquisas de opiniatildeo

confirmam que a cada ano cozinhamos menos e compramos mais refeiccedilotildees prontasrdquo

(POLLAN 2014 p11)

Este autor traz reflexotildees relevantes quanto ao paradoxo do papel da cozinha em nossa

contemporaneidade apontando que ao mesmo tempo que o tempo de cozinhar diminui aumenta

o tempo de dedicaccedilatildeo a assistir programas de cozinha na televisatildeo aleacutem de outras modificaccedilotildees

mencionadas por ele sobre as escolhas alimentares O que chama a atenccedilatildeo na obra de Michael

Pollan eacute o fato de ele mencionar o ponto em que chegamos sob a perspectiva de nossa cultura

110

alimentar global Sendo este um pesquisador reconhecido e respeitado internacionalmente eacute

positivo que exponha em tom pungente os resultados de pesquisas e perspectivas no

embasamento de suas reflexotildees Posiciona-se frente a vaacuterios problemas graves ligados ao modo

de comer de nosso tempo ao mencionar a reduccedilatildeo do haacutebito de cozinhar e suas consequecircncias

ldquo[] natildeo eacute surpresa alguma o decliacutenio do haacutebito de cozinhar em casa coincidir com o aumento da

incidecircncia da obesidade e de todas as doenccedilas crocircnicas associadas agrave alimentaccedilatildeordquo (POLLAN

2014 p16)

O elemento apontado por este autor e que se relaciona agrave relaccedilatildeo entre a comida e as

relaccedilotildees interpessoais declara que a refeiccedilatildeo em famiacutelia deu lugar em larga escala ao comer

sozinho Autonomia praticidade e individualismo parecem estar no centro deste fenocircmeno

A ascensatildeo do fast-food e o decliacutenio da comida caseira tambeacutem abalaram a instituiccedilatildeo da

refeiccedilatildeo compartilhada por nos estimularem a comer coisas diferentes com pressa e

muitas vezes sozinhos Pesquisas dizem que estamos dedicando mais tempo agrave

lsquoalimentaccedilatildeo secundaacuteriarsquo que eacute como denominamos esse costume meio constante de

beliscar alimentos embalados e menos tempo agrave lsquoalimentaccedilatildeo primaacuteriarsquo - termo um tanto

deprimente para a instituiccedilatildeo outrora respeitada e conhecida como refeiccedilatildeo

A refeiccedilatildeo compartilhada natildeo eacute algo insignificante Trata-se de um dos fundamentos da

vida em famiacutelia o lugar onde as crianccedilas aprendem a arte da conversaccedilatildeo e adquirem

haacutebitos que caracterizam a civilizaccedilatildeo repartir ouvir ceder a vez administrar

diferenccedilas discutir sem ofender (POLLAN 2014 p16 grifo do autor)

A autonomia agrave eneacutesima potecircncia deixa de ser uma capacidade para tornar-se uma redoma

Acabamos tornando-nos seres livres em excesso talvez Por termos pressa querermos prazeres e

independecircncia extremos sobreviver passou agrave categoria de um lsquotanto fazrsquo em prol do proveito

maacuteximo do instantacircneo Vale retomar a reflexatildeo de Karl Jaspers sobre a consciecircncia do eu

definida por limites externos e reais nossa autossuficiecircncia eacute delimitada pela dependecircncia que

temos de recursos externos como por exemplo os bens alimentares e das pessoas significativas

em nossa vida Dependemos desses bens assim como dos relacionamentos familiares afetivos e

profissionais todos necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia do ponto de vista fiacutesico e psiacutequico

A autonomia conquistada para sobrevivermos na evoluccedilatildeo da espeacutecie chegou a um grau

de importacircncia em nosso universo contemporacircneo que parece ter ultrapassado o instinto de

preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo Viver a liberdade as vontades e

prazeres sobrepuja o proacuteprio sobreviver Autonomia e sobrevivecircncia parecem ter soltado as matildeos

111

34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI

A leitura do romance Quarenta dias permite identificar a cozinha presente em trecircs

periacuteodos principais da narrativa representados respectivamente por trecircs elementos especiacuteficos

O primeiro aparece nas paacuteginas iniciais quando Alice comeccedila a relatar em seu caderno o

periacuteodo que antecedeu a mudanccedila para Porto Alegre lembrando-se do egoiacutesmo de Norinha sua

filha desde quando ainda morava em Joatildeo Pessoa Tais recordaccedilotildees fornecem pistas do

comportamento da moccedila ao determinar as transformaccedilotildees na vida da matildee para satisfazer seus

interesses

O segundo elemento abrange os primeiros dias da chegada de Alice a inconformidade

com a nova moradia onde a cozinha que define como lsquode show-roomrsquo expressa uma atmosfera

impessoal e asseacuteptica agrave qual ela natildeo consegue se adaptar Aparece nesta etapa o choque de sua

nova realidade e a tentativa de aceite de todas as mudanccedilas de vida impostas pela filha

A importacircncia de refletir sobre os dois elementos apresentados acima estaacute no fato de esses

demonstrarem Alice em sua vida em Joatildeo Pessoa e logo na chegada em Porto Alegre Os dois

periacuteodos expressam o comportamento de Norinha como explicaccedilatildeo para sua conduta egoiacutesta em

relaccedilatildeo agrave matildee e expressam tambeacutem a relaccedilatildeo de Alice com a consciecircncia de si mesma e com a

autonomia Assim os dois periacuteodos anteriores agrave procura por Ciacutecero descritos por ela agrave Barbie

em seu caderno anunciam o porquecirc de desejar a retomada de si mesma durante os dias em que

transplanta sua vida para o espaccedilo urbano

O terceiro elemento por fim refere-se ao tema deste capiacutetulo a comida como

representaccedilatildeo da necessidade de autonomia vinculada ao processo de tomada de consciecircncia de

si incluindo suas escolhas necessidades de sobrevivecircncia gostos e memoacuterias gustativas que satildeo

parte de sua identidade Nesse terceiro elemento que ocupa a maior parte da anaacutelise encontra-se

uma cozinha transplantada para o universo urbano espaccedilo que Alice habita nos quarenta dias

Junto agrave comida expressa por carrinhos de pipoca botecos moradias em vilas- onde lhe

oferecem cafeacute chimarratildeo e algo para comer- padarias e um restaurante de rodoviaacuteria estaacute a

representaccedilatildeo de uma vida cujo cenaacuterio eacute o proacuteprio espaccedilo da cidade no dormir no banhar-se no

comer Eacute neste territoacuterio que Alice procura a si mesma enquanto em suas andanccedilas ela pergunta

por um desconhecido Ciacutecero Arauacutejo dentro de si vai encontrando aquela que eacute capaz de tomar as

proacuteprias decisotildees de sobrevivecircncia Progressivamente recupera a consciecircncia de si e as suas

112

vontades Um fator que deve ser ressaltado estaacute incluiacutedo neste terceiro elemento a ligaccedilatildeo

mesmo que efecircmera que Alice estabelece com as demais personagens da narrativa na maior

parte das vezes esta ligaccedilatildeo ocorre por intermeacutedio da comida que oferecem a ela ou que ela

partilha como no caso de Lola e Arturo

Eacute possiacutevel observar que haacute situaccedilotildees em que o cuidado de desconhecidos para com ela

ocorre ao oferecerem um chaacute um cafeacute um biscoito nas casas de vilas por onde passa o mesmo

cuidado eacute feito por Penha que coloca com esmero a mesa para Alice no restaurante da

rodoviaacuteria tratando-a com gentileza e camaradagem ou pela proacutepria Milena que cuida de Alice

com chaacute e canja de galinha no iniacutecio da histoacuteria quando esta teria voltado doente de sua visita a

Jaguaratildeo Ateacute mesmo Zelima que aparece na cena em que a protagonista se engasga com a

pipoca no Hospital de Pronto Socorro tem uma atitude de cuidado e de preocupaccedilatildeo para com

ela oferecendo-lhe aacutegua e acompanhando sua melhora

Estas breves expressotildees de carinho e zelo atraveacutes do alimento representam na obra a

nutriccedilatildeo que o cuidado interpessoal oferece muitas vezes na linguagem do alimento na vivecircncia

de Alice em sua nova vida porto-alegrense A capacidade de despertar sentimentos de cuidado de

afeto e de preocupaccedilatildeo da parte de outras pessoas demonstra caracteriacutesticas de uma Alice que

retoma o contato consigo que se reencontra

Mesmo com todo o trauma que atravessa a personagem eacute capaz de estabelecer viacutenculos

durante seus caminhos ainda que sejam breviacutessimos ilustram um aspecto de sua personalidade

Eacute algo seu que natildeo se perdeu com o roubo de sua autonomia e eacute justamente por seu modo de ser

que vai estabelecendo pontes para chegar a algum desfecho de sua procura durante a histoacuteria

pontes atraveacutes da comunicaccedilatildeo com as pessoas e comunicaccedilatildeo atraveacutes da comida que lhe eacute

servida das informaccedilotildees que lhe satildeo dadas do cuidado amistoso como no caso de Lola e de

Milena

Embora o foco do presente capiacutetulo seja a abordagem da conquista da autonomia da

personagem atraveacutes de suas decisotildees pela sobrevivecircncia eacute importante enfatizar que Alice em sua

vida em Joatildeo Pesssoa tinha tal autonomia Aleacutem de ter criado sua filha praticamente sozinha

tinha apartamento proacuteprio amigos e projetos reconhecimento de sua atividade profissional como

a lsquosensata Professora Poacutelirsquo conforme diversas vezes se denomina durante a narrativa Essa

capacidade sofreu abrupta reduccedilatildeo pela interferecircncia da filha quando definiu que a matildee iria se

transferir para Porto Alegre para cuidar do futuro neto

113

Este eacute entatildeo o primeiro elemento a ser abordado o egoiacutesmo da filha A conduta de

Norinha deveu-se a esse egoiacutesmo ao natildeo pensar no desejo de Alice e sim nos proacuteprios interesses

Apenas quando escreve a longa lsquocartarsquo para Barbie depois de sua jornada pela cidade a

protagonista eacute capaz de se recordar de episoacutedios antigos com a filha Esses eventos jaacute

denunciavam a postura da moccedila desde o comeccedilo da juventude O trecho a seguir mostra uma

dessas recordaccedilotildees

Ainda meio adormecida fechei a janela e voltei pra cama naquela madorna jaacute perto de

acordar de vez e entatildeo comecei a reviver cenas bobas de muito tempo atraacutes sem

importacircncia completamente esquecidas agora niacutetidas em sonho ou na minha memoacuteria

por que seraacutecoisas assim como o dia em que estava um friozinho excepcional pra

Joatildeo Pessoa e resolvi fazer uma sopa quente pro jantar aproveitando umas batatas-

baroas que tinha achado no mercado Batata-baroa saudade do siacutetio do meu avocirc uma

raridade na cidade mais batata inglesa cenoura cebola e caldo de galinha tudo de bom

O cheiro da sopa no fogo jaacute tinha impregnado a casa quando Nora chegou Vai fazer

sopa hoje Matildeiacutenha Que horas Jaacute estaacute pronta se quiser eacute soacute bater no

liquidificadorComo nunca me esperava pra cear pois iacutea correndo pra faculdade

apenas ouvi vagamente que estava mexendo na cozinha enquanto eu assistia agrave novelinha

das seis Tatildeo distraiacuteda com a novela nem percebi que ela jaacute tinha saiacutedo Tudo bem ateacute

que fui tratar de pocircr a mesa pra mim Soacute tinha sobrado menos de uma concha rasa de

sopa Pasme Barbie ela tinha se servido na tigela do feijatildeo Fiquei danada na hora mas

nada a fazer do que usar a imaginaccedilatildeo Jaacute eram quase sete e meia da noite Entatildeo botei

mais um copo dacuteaacutegua com uma colher de maisena meio tablete a mais de caldo de

galinha e cozinhei ali dentro uma porccedilatildeo de massinha pra sopaque bom que tinha em

casa Tomei entatildeo o resultado como se estivesse tudo normal com apenas um leve

gostinho de batata-baroamas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada

de matildeo-de-vaca (REZENDE 2014 p22)

Vale ressaltar a atitude complacente de Alice frente ao egoiacutesmo da filha no episoacutedio

narrado acima expressa pela frase lsquomas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada

de matildeo-de-vacarsquo A seguir outro fragmento em que Norinha se apossava dos chocolates e das

guloseimas da matildee Alice reflete em sua carta para Barbie sua obediecircncia agraves demandas da moccedila

devidas agraves dietas no comprar lsquocoisas estranhasrsquo na feira

Diversos pontos satildeo referidos como o fato de a filha natildeo se sentar mais agrave mesa com ela e

a atitude de desperdiccedilar as gemas de ovo em suas dietas Um aspecto interessante do trecho

abaixo eacute a memoacuteria de sua avoacute fazendo lsquofios dacuteovosrsquo e quindins como marca de afeto e de

partilha pela comida Assim haacute o contraste do alimento ora como representaccedilatildeo do egoiacutesmo da

filha ao lsquoroubarrsquo seus chocolates e as guloseimas ora como expressatildeo do afeto compartilhado

pela avoacute atraveacutes dos doces que fazia

Cabe ainda a reflexatildeo mais uma vez Alice menciona sua complacecircncia para com a filha

nas frases lsquofielmente obedeciarsquo e lsquoeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar

114

discussatildeorsquo Volta-se desse modo para a frase apresentada no primeiro trecho referida acima

lsquonatildeo dei um pio pra natildeo ser chamada de matildeo-de-vacarsquo A postura de Alice em relaccedilatildeo agrave Norinha

tinha sempre um elemento de passividade de obediecircncia agraves normas e aos quereres da filha

anunciando que a postura da uacuteltima em definir a mudanccedila de Alice mesmo contra a vontade desta

era a continuidade de um comportamento mais antigo na relaccedilatildeo entre elas A protagonista conta

agrave Barbie

Vivia acrescentando coisas estranhas nas minhas listas de feira que eu fielmente

obedeciaeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar discussatildeo Claro de

vez em quando ela dava umas escapadas na dieta principalmente comendo meus

chocolates e umas guloseimas de que gosto e comprava pro meu lanche Afinal eu natildeo

estava de dieta Quase natildeo se sentava agrave mesa comigo comia em peacute na cozinha ia pro

quarto dela comer as gororobas dieteacuteticas que fazia ou se enchia soacute de claras de ovo

jogando as gemas fora Parei de tentar aproveitar pois natildeo dava pra tomar gemada todo

dia natildeo eacute e Voacute natildeo estaacute mais neste mundo pra me ensinar a fazer fios dacuteovos ou

quindinse as gemas que Norinha descartava eram branquelas nada daquele amarelo

vivo dos ovos de capoeira do siacutetio Seraacute que ainda existem fios dacuteovos (REZENDE

2014 p23)

O trecho seguinte refere-se ao segundo elemento assinalado ou seja a inconformidade de

Alice com sua nova vida em Porto Alegre no apartamento que natildeo aceita como seu Nas

referecircncias agrave cozinha lsquode show-roomrsquo a protagonista expressa suas impressotildees sobre o local

montado por Norinha para sua habitaccedilatildeo Haacute diversos momentos em que a comida representa seu

desacerto com a vida montada em um territoacuterio sem referecircncias afetivas sem lembranccedilas dos

quais o fragmento abaixo eacute um exemplo

Alice mostra uma resignaccedilatildeo compulsoacuteria com as ordens da filha uma aparente

concordacircncia com as tentativas de Norinha de abater-lhe a autonomia eacute na contrariedade com o

cenaacuterio esteacuteril da cozinha que define como lsquoalheiarsquo e com os alimentos que tem em casa com as

compras que a filha faz e guarda nos armaacuterios e gavetas que se mostra seu modo de perceber e

de sentir as imposiccedilotildees da mesma

A inconformidade com a vida porto-alegrense aparece em diversas situaccedilotildees na chegada

de Alice ao apartamento aleacutem do trecho acima Percebo em vaacuterios pontos a revolta da

protagonista com os detalhes da cozinha como espaccedilo fiacutesico em outros aparece seu lsquodesacertorsquo

atraveacutes de uma voz criacutetica e ateacute mesmo irocircnica com os alimentos gauacutechos

Assumi consciente e disciplinadamente a atitude que eu jaacute vinha ensaiando havia algum

tempo do ET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes muito maiores

que ele Eu continuava a encolher Engoli obediente tudo o que estava posto sobre a

previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de vidro num canto da sala o chaacute as

115

torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar de chimia a

fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial trazido

natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite morno (REZENDE 2014

p41)

Eacute possiacutevel ler a atitude de engolir lsquoobedientersquo o alimento como representativa de sua

percepccedilatildeo sobre si mesma de ldquoET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes

muito maiores do que elerdquo A obediecircncia em comer aqui ilustra a frase ldquoEu continuava a

encolherrdquo Ela natildeo via o que estava sendo posto na mesa como cuidado com sua chegada por

preocupaccedilatildeo genuiacutena com seu bem-estar entendia isto sim como ldquobenevolecircncia de terraacutequeos

muito maioresrdquo A forccedila da comparaccedilatildeo estaacute no fato de que o comer tambeacutem se tornou objeto de

controle da filha a quem ela passava a ldquoobedecerrdquo Passava a ocupar assim o papel que descreve

como ldquofilha da minha filhardquo (REZENDE 2014 p74)

Neste trecho lecirc-se a contrariedade de Alice na referecircncia que faz agrave cozinha como espaccedilo

fiacutesico ldquo[] tudo o que estava posto sobre a previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de

vidro no canto da salardquo (REZENDE 2014 p74) Ainda que se refira agrave mesa como estando na

sala atribui a ela papel conotaccedilatildeo ligada agrave funccedilatildeo da cozinha como extensatildeo desta pois eacute onde

estatildeo na cena os produtos alimentares oferecidos

Na menccedilatildeo que ela faz a esses produtos estaacute expressa tambeacutem a revolta atraveacutes da voz

irocircnica ldquo[] o chaacute as torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar

de chimia a fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial

trazido natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite mornordquo (REZENDE 2014

p41) Assim eacute na cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico que se expressa na chegada de Alice a

Porto Alegre a representaccedilatildeo de sua recusa em aceitar a vida que lhe foi imposta Haacute referecircncias

expliacutecitas agrave sua revolta mas a forma material da contrariedade eacute demonstrada nessa etapa da

narrativa em diversos episoacutedios ligados agrave cozinha

A manhatilde seguinte agrave chegada no apartamento continua tendo essa peccedila da casa como

cenaacuterio da inconformidade de Alice quando Norinha chega com as compras

Naquela primeira manhatilde sem coragem de decifrar os armaacuterios e eletrodomeacutesticos desta

cozinha metida a besta eu ainda de camisola e roupatildeo agrave mesa do canto da sala

preguiccedilosamente acabando de recuperar como cafeacute da manhatilde os restos do lanche da

madrugada que ficaram largados ali bolo torradas amanhecidas chimia queijo serrano

chaacute frio ouvi barulho de chave na fechadura e me assustei Norinha pelo visto agora

detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas tambeacutem da chave da minha

moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha com almoccedilo

Bem paraibano viu Matildeiacutenha pra vocecirc ir se acostumando aos poucos a quentinha

116

equilibrada entre montes de sacolas de compras Pra abastecer a despensa de minha

Maacuteinha adorada que vai ser tratada como uma duquesa pela sua filhinha preferida []

meteu-se diretamente na cozinha Que tive que fazer malabarismos para conseguir passar

no supermercado pra conseguir passar no supermercado e trazer suas compras depois a

gente acerta natildeo se preocupe com isso por hoje vou ter de sair correndo que este dia da

semana eacute sempre pesadiacutessimo na universidade agraves vezes natildeo daacute tempo nem de fazer xixi

(REZENDE 2014 p47-48 grifo nosso)

A frase em grifo representa a percepccedilatildeo de Alice sobre o controle que a filha assumia

sobre sua vida ldquoNorinha pelo visto agora detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas

tambeacutem da chave da minha moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha

com almoccedilordquo (REZENDE 2014 p48) O controle sobre o cardaacutepio expressa a inconformidade

da protagonista com as imposiccedilotildees de Norinha na sua vida por exemplo escolhendo um almoccedilo

lsquobem paraibano viu Matildeiacutenha para vocecirc ir se acostumando aos poucosrsquo como ela refere Aleacutem

deste aspecto as sacolas de compras lsquoPra abastecer a despensa de minha Matildeiacutenha adoradarsquo

tambeacutem satildeo para Alice representativas dos mandos de sua filha

A direccedilatildeo da filha sobre a rotina da personagem ocorre em detalhes cotidianos como de

fazer e de guardar as compras de supermercado na cozinha do apartamento levar a lsquoquentinharsquo

para o almoccedilo e definir na percepccedilatildeo de Alice que ela deve sair agrave rua entre outras condutas

Tais comportamentos ligados agrave alimentaccedilatildeo demonstram a atitude de Norinha interferindo na

autonomia da matildee procurando ceifar sua capacidade de cuidar de uma nova vida naquilo que eacute

mais individual na sobrevivecircncia a nutriccedilatildeo A contrariedade de Alice agrave cozinha do apartamento

reflete em muito a percepccedilatildeo que ela tem deste ao longo da narrativa em suas referecircncias eacute

possiacutevel compreender que se vecirc presa naquilo que por diversas vezes chama de lsquotabuleiro de

xadrezrsquo Em grande parte essa impressatildeo se deve ao aspecto do local mas o sentimento

transcende essa caracteriacutestica no lsquotabuleirorsquo Alice tem sua liberdade tolhida

O trecho a seguir representa a relaccedilatildeo que se estabelece entre elas nesta etapa inicial da

chegada de Alice a Porto Alegre

Fiquei calada soacute olhando com a boca cheia o naco de queijo grande demais difiacutecil de

mastigar e engolir como todo o resto que havia tempos jaacute vinha entalado na minha

garganta Nem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia em meu nome

gritando aqui da cozinha enquanto desensacava os pacotes e escondia as coisas atraacutes de

sei laacute qual dessas dezenas de portinhas brancas por cima desses azulejos pretos [] e

por aiacute foi Norinha perguntando e respondendo por mim ateacute esvaziar a uacuteltima sacola

bater pela uacuteltima vez todas as portas e gavetas dos armaacuterios da geladeira O almoccedilo eacute soacute

esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenha (REZENDE 2014 p48-49)

117

Um dos pontos que deflagram a atitude de Norinha em ceifar a autonomia de Alice estaacute na

frase lsquoO almoccedilo eacute soacute esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenharsquo como se a matildee natildeo soubesse disso

ou natildeo tivesse capacidade de percebecirc-lo sozinha A filha infantiliza a personagem tomando por

ela decisotildees e condutas (como ir ao supermercado e guardar as compras nos armaacuterios da

cozinha) Ateacute mesmo a verbalizaccedilatildeo das respostas eacute feita por ela sem dar agrave Alice a possibilidade

de expressar-se como na frase lsquoNem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia

em meu nome gritando aqui da cozinharsquo

A resposta emocional de Alice a este iniacutecio de sua vida na nova cidade ainda antes da

revelaccedilatildeo de que Norinha e o esposo adiaram os planos de gravidez estaacute representada no

fragmento a seguir

Fiquei laacute Alice diminuindo mais ainda imprensada entre a mesa e a parede nem sei

quanto tempo tentando me convencer de que ela natildeo se meteria mais de surpresa pela

porta adentro e sabendo que pra rua eu natildeo ia como queria minha filha e natildeo ia mesmo

soacute porque era isso que ela tinha ordenado Natildeo ia natildeo de birra sem nenhuma ideia

nem vontade de fazer nada a natildeo ser andar para um lado e outro naquele tabuleiro de

xadrez minhas pernas dissipando a energia acumulada pela raiva olhar as malas ainda

fechadas as portas desses armaacuterios da cozinha fechadas a pilha de caixas fechadas e de

relance a minha cara fechada refletida na enorme televisatildeo da sala em outra menor no

quarto nos vaacuterios espelhos e vidraccedilas espalhados por aiacute O almoccedilo ficou aqui esfriando

no balcatildeo da cozinha ateacute o anoitecer Daiacute engoli aquilo frio mesmo enquanto deixava o

telefone tocar tocar tocar ateacute desistirem (REZENDE 2014 p51)

Entretanto a protagonista encontra em si mesma a capacidade de autonomia que vinha

adormecida desde quando comeccedilou o processo de mudanccedila determinado pela filha Comeccedila a

aceitar as modificaccedilotildees tomar conta da proacutepria rotina decidir adaptar-se ao apartamento e agrave nova

vida A decisatildeo de aceitar a vida imposta pela filha eacute tomada com autonomia com a sensatez que

remonta a lsquosensata professora Poacutelirsquo Alice torna a instalaccedilatildeo em sua nova moradia algo que

parece originar de uma decisatildeo sua e natildeo apenas de uma imposiccedilatildeo de Norinha Entretanto

expressa que a decisatildeo para tal eacute racional assim como a organizaccedilatildeo metoacutedica da casa que

realiza Sugere que estaacute fazendo de conta que esqueceu lsquode todo o restorsquo

E a sensata professora Poacuteli acabou vencendo pelo menos provisoriamente porque

acordei logo cedo disposta a deixar pra laacute o ressentimento ser realista encarar as coisas

como eram agora como gente grande voltar ao meu tamanho normal pulei da cama me

vesti decentemente explorei as provisotildees que Norinha tinha deixado fiz e tomei meu

cafeacute e danei a desmanchar malas e pacotes a encher gavetas prateleiras e cabides tudo

muito bem-arrumado metodicamente pensando soacute naquilo que tinha concretamente

diante de mim esquecida ou fazendo de conta que esquecia de todo o resto Pronto

[] botando ordem fora e dentro de mim pensava Pesquisei nos armaacuterios da cozinha

achei o que precisava fiz um almocinho pus toalha louccedila talher aqui mesmo nessa

118

espeacutecie de mesa sem pernas de pedra preta embutida na parede e comi com certo gosto

depois de natildeo sei quanto tempo de fastio (REZENDE 2014 p52-53)

Quando Alice menciona lsquopesquisei nos armaacuterios da cozinha achei o que precisava fiz

um almocinho pus toalha louccedila talherrsquo estaacute manifestando sua decisatildeo de procurar acostumar-se

aos detalhes da nova rotina como colocar a mesa O trecho a seguir complementa essa tentativa

Subi de volta confiante tinha tomado minha primeira iniciativa depois de tanto tempo

e isso fazia sentir-me melhor Abri mais umas caixas e arrumei o conteuacutedo Fiz almoccedilo

direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada sesta de uma vida

normal li umas paacuteginas de uma revista apanhada no aviatildeo e como sempre cochilei

logo (REZENDE 2014 p61)

A frase lsquofiz o almoccedilo direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada

sesta de uma vida normalrsquo demonstra sua procura por se adaptar ao cotidiano Alice procura

retomar as reacutedeas da nova vida mesmo sendo esta imposta a ela reassumindo seus afazeres

(lsquolimpar a cozinharsquo) e costumes (a lsquosagrada sesta de uma vida normalrsquo) Tudo isso relata agrave Barbie

no caderno posteriormente sabendo que tais posturas representavam apenas a tentativa em

ultrapassar a dor emocional pela saiacuteda de seu habitat em Joatildeo Pessoa A existecircncia compulsoacuteria

volta a aparecer quando eacute convidada para jantar na casa da filha ao mencionar lsquoeu jaacute estava

pegando jeito de me comportar como filha da minha filharsquo conforme se lecirc abaixo

Pois Umberto vai passar aiacute pelas sete horas que eu vou correr pra preparar um

comerzinho bem bom e trazer a senhora pra jantar com a gente botar a conversa em dia

vai ser uma deliacutecia vaacute se aprumar bem bonita que daqui a pouco ele estaacute batendo aiacute

Que remeacutedio senatildeo obedecer Eu jaacute estava pegando jeito de me comportar como filha da

minha filha (REZENDE 2014 p74)

No jantar referido Alice eacute informada por Norinha sobre a viagem do casal para o exterior

postergando o projeto da maternidade motivo de sua mudanccedila para Porto Alegre No primeiro a

lsquolasanha da verdadeirarsquo o lsquomelhor vinho da serra gauacutecharsquo e a lsquocuca de arrasarrsquo satildeo elementos

regionais que a filha oferece como forma ao que parece de apresentar agrave sua matildee as benesses do

territoacuterio em que esta deveraacute habitar no segundo a expressatildeo lsquoe eu soacute com a tarefa de garfar o

que me serviam e emitir de vez em quanto um huuuummm apreciativorsquo exprime a posiccedilatildeo

passiva que a protagonista reconhece assumir frente agraves imposiccedilotildees da filha Neste jantar tem fim

o periacuteodo de interaccedilatildeo de Alice com Norinha na narrativa demarcando a conclusatildeo de uma etapa

da histoacuteria a chegada da personagem agrave cidade

119

A seguir dois fragmentos que retratam a comida como fator de suposta agregaccedilatildeo

familiar mas escondem atraacutes do lsquoFiz jantar especialrsquo o desrespeito e o egoiacutesmo da moccedila quanto

agrave sua matildee Esta ficaraacute sozinha em uma cidade desconhecida sem referecircncias apoacutes ter tido que

abandonar sua terra natal em nome da exigecircncia da filha A atitude de falar da cuca como um

doce de seu completo desconhecimento ilustra agrave escassa familiaridade de Alice com as tradiccedilotildees

da regiatildeo como na frase lsquoum bolo recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima

gostoso de fatorsquo Os trechos definem a atmosfera aparentemente agradaacutevel da refeiccedilatildeo em

famiacutelia imposta por Norinha antes de esta fazer a revelaccedilatildeo que interferiraacute na vida de Alice

culminando na busca de sua autonomia O papel da comida neste ponto do livro eacute o de lsquoadoccedilarrsquo

a personagem para receber a notiacutecia da viagem da filha e do genro

Fiz jantar especial uma lasanha da verdadeira o melhor vinho da serra gauacutecha uma

cuca de arrasar vocecirc vai provar hoje uma cuca tudo receita da minha sogra vai adorar

jaacute estaacute com apetite natildeo eacute soacute de ouvir dizer entatildeo como estaacute sendo sua primeira

semana em Porto Alegre (REZENDE 2014 p74)

Umberto parecendo distraiacutedo dando soacute palpites lacocircnicos sempre concordando com a

mulher dele e eu soacute com a tarefa de garfar o que me serviam e emitir de vez em quando

um huuuummm apreciativo ateacute terminar de comer e aprovar a tal cuca um bolo

recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima gostoso de fato

(REZENDE 2014 p75)

A partir desse jantar Alice volta para sua casa e suspende os contatos com o casal Tem

iniacutecio assim o papel da comida ligada agrave recuperaccedilatildeo da autonomia perdida

Quando sai para a rua imbuiacuteda da missatildeo de procurar por Ciacutecero Alice sabe que sua

decisatildeo ultrapassa a descoberta do rapaz Eacute por si mesma pela capacidade de cuidar de si de

decidir mesmo as questotildees mais baacutesicas de sobrevivecircncia apoacutes Norinha ter tomado conta de sua

vida e de suas resoluccedilotildees Alice decide decidir Nesse sentido passa a guiar-se por suas

necessidades vitais como fome sono e banho por exemplo todos eles transplantados para o

espaccedilo urbano onde decide habitar apenas para natildeo voltar para o lsquotabuleiro de xadrez seu

apartamento

Mesmo quando esquece onde mora a permanecircncia nas ruas continua sendo uma escolha

pois poderia ligar para a prima Elizete que tem seu endereccedilo no entanto opta por natildeo fazecirc-lo

Durante o periacuteodo duas buacutessolas guiam seus rumos a procura por Ciacutecero que daacute sentido agrave

peregrinaccedilatildeo como um aacutelibi para justificar as andanccedilas e o natildeo-retorno para casa e a

120

manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do que escolhe comer de onde decide dormir e banhar-se

por exemplo

Uma das primeiras decisotildees de Alice eacute a de esconder-se em casa nos primeiros dias apoacutes

a revelaccedilatildeo sobre a viagem de Norinha e Umberto para o exterior e o adiamento dos planos que

ocasionaram sua mudanccedila para Porto Alegre

Cinco dias de fartura de letras quase jejum de qualquer outra comida o silecircncio cortado

soacute ateacute o comeccedilo da tarde do segundo dia pela ainda prazerosa estridecircncia do telefone

com perverso gosto de vinganccedila que me enchia a boca e quase me bastava como

simulacro de refeiccedilatildeo (REZENDE 2014 p87)

Protege-se em casa lendo livros e deixando o telefone tocar a nutriccedilatildeo estaacute fora do eixo

da comida nesse sentido pois Alice alimenta-se do isolamento que consegue estabelecer Assim

esse eacute o iniacutecio da retomada de sua autonomia atraveacutes das escolhas que comeccedila a fazer por si de

modo independente ao controle da filha Decide natildeo mais se submeter mesmo que a atender o

telefone A nutriccedilatildeo estaacute baseada na autonomia na independecircncia que retoma mais do que nos

proacuteprios alimentos nesse ponto da narrativa Quando refere lsquocom perverso gosto de vinganccedila que

me enchia a boca e quase me bastava como simulacro de refeiccedilatildeorsquo o que se pode ler eacute que a

salvaguarda da sobrevivecircncia estava apoiada na sua capacidade de reagir agrave filha de impor sua

vontade contrariando a imposiccedilatildeo de Norinha

A histoacuteria sofre a guinada maior quando Alice recebe a incumbecircncia de procurar por

Ciacutecero a missatildeo daacute sentido ao seu caminho aos seus dias A missatildeo de encontrar o rapaz eacute o

fator que move a personagem a sair de seu apartamento e a desafiar-se em espaccedilos urbanos

desconhecidos de uma cidade que ainda eacute para ela uma cidade estranha Este seraacute tambeacutem um

modo de se esconder da filha de Elizete e de todos que a possam encontrar Alice decide

descobrir o paradeiro de Ciacutecero para encontrar consigo mesma Aquela lsquosensata professora Polirsquo

capaz de tomar decisotildees e de gerenciar a proacutepria vida estaacute desaparecida de si

Na partida para a Vila Maria Degolada ela tem o primeiro contato com a comida das ruas

e botecos Ao sair de casa sem ter se alimentado obriga-se a comer para saciar a fome esta eacute a

primeira expressatildeo do comer como decisatildeo de sobrevivecircncia

Passei diante de uma portinha aberta quase invisiacutevel entre duas casas um balcatildeozinho

prateleiras com umas poucas mercadorias e uma caixa de vidro com lamentaacuteveis

empadas e coxinhas ou coisa parecida sobrevoadas por uma mosca preguiccedilosa Era

pouco mais que aqueles fiteiros de rua laacute de Joatildeo Pessoa e pode ter sido por isso entrei e

por pouco natildeo pedi uma tapioca de queijo Pedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer

121

de comer Leite natildeo havia fui soacute de cafeacute e uma coxinha engordurada de anteontem

caloria bastante para eu continuar minha peregrinaccedilatildeo Quem servia era um homem jaacute

idoso nada a ver com as imagens de gauacutecho de churrascaria que eu tinha pregadas na

imaginaccedilatildeo nem alto nem louro nem moreno bigodudo de chapeacuteu preto lenccedilo

vermelho laccedilo no ombro e bombacha bufante Baixinho e coxinho com um resto de

bigode fino um bonezinho achatado na careca camisa branca encardida e um lenccedilo

branco amarrado no pescoccedilo Comi paguei e me animei a perguntar pra onde ficava a tal

Vila Maria Degolada (REZENDE 2014 p96-97)

lsquoPedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer de comerrsquo eacute uma das frases que aponta para

o papel da comida nesse momento da histoacuteria o de saciar a fome O alimento em sua funccedilatildeo

primordial eacute o mote desse trecho jaacute que aqui Alice natildeo quer comer algo saboroso e sim que lhe

forneccedila forccedilas para seguir o percurso

Segui em frente olhando pro chatildeo emburrada passo firme e decidido lsquoCiacutecero Arauacutejo

Vila Maria Degolada Ciacutecero Arauacutejo Vila Maria Degoladarsquo revigorada pelo sal a

gordura e a cafeiacutena ateacute chegar manhatilde alta numa avenida larga sem ter mais nenhuma

ideia de pra que lado ficava o apartamento onde eu devia morar (REZENDE 2014

p97)

A atitude determinada de Alice frente ao objetivo eacute o lsquopasso firme e decididorsquo

complementado pela referecircncia que ela faz ao efeito da comida em seu acircnimo para chegar agrave Vila

Maria Degolada lsquorevigorada pelo sal a gordura e a cafeiacutenarsquo A personagem expressa nessa

uacuteltima frase o reforccedilo ao papel do alimento em saciar a fome e em fornecer energia

Nos caminhos que vai percorrendo junta folhetos de propaganda papeacuteis soltos e

guardanapos todos como base para escrever pedaccedilos de livros que encontra Um desses folhetos

representa a visatildeo de Alice sobre sua avoacute que aproveitava as gemas para preparar doces de sua

origem portuguesa e sobre sua filha que desperdiccedilava as gemas para preparar omeletes de

claras para a dieta Essa evocaccedilatildeo de lembranccedilas em relaccedilatildeo agrave avoacute e agrave filha a partir de uma

divulgaccedilatildeo impressa traz mais uma das funccedilotildees do alimento nessa etapa da histoacuteria aleacutem da

expressatildeo de autonomia o resgate de si atraveacutes das recordaccedilotildees de suas origens Lembrar-se de

sua avoacute eacute remontar uma parte de sua proacutepria construccedilatildeo pessoal e portanto estaacute incluiacutedo na

procura de Alice por sua identidade separada das ordens e determinaccedilotildees de Norinha

Uma ialorixaacute me deu um papelzinho com receita de uma simpatia natildeo exatamente pra

achar filho perdido era pra juntar famiacutelia desunida Mas pode crer que ajuda se tu fizer

com feacute soacute precisa quatro quindinsonde eacute que eu iacutea achar quindins veio-me por um

instante a lembranccedila das gemas de ovo desperdiccediladas por Norinha saudade da minha

avoacute portuguesa exilada laacute no sertatildeo e de seus doces de ovos os quindins que ela

aprendeu a fazer com coco lamentando sempre natildeo poder fazer sua brisa do Lis como a

de Leiria por falta das amecircndoasescrever o pedido pocircr os quindins em cima polvilhar

accediluacutecar cristal e espetar nos doces quatro flores amarelas quatro moedas acender quatro

122

velas e deixar tudo numa praccedila olha aiacute Barbie o papelzinho ficou junto com o resto dos

que se foram acumulando na minha mochila com as costas cheias de frases copiadas de

livros (REZENDE 2014 p116-117)

A necessidade de encontrar consigo mesma estaacute pungente na personagem uma soacute palavra

que remeta a seu passado serve para as recordaccedilotildees surgirem como os lsquoquindinsrsquo que na

verdade natildeo servem como alimento e sim como parte da simpatia Eacute como se a palavra fosse

uma porta para suas lembranccedilas e uma vez aberta faz que muito seja recordado e refletido

Alice segue pela Vila Maria Degolada agrave procura de Ciacutecero e vai tendo contato com

moradores que a ajudam andando pela vila atraacutes de pistas do rapaz Durante as horas que

permanece ali a comunicaccedilatildeo entre ela e as pessoas que a recebem eacute feita em grande parte pelos

alimentos que oferecem para ela comer ou beber Alice descobre novos sabores regionais na

receita ou apenas no nome e sobretudo conhece novas pessoas ao longo do trajeto O que decide

comprar nos botecos ou aceitar nas casas como os salgados os biscoitos ou o cafeacute ralo deve-se

principalmente a satisfazer as necessidades fiacutesicas de fome e sede Mais uma vez a comida

representa a manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Entretanto surge para essa novo papel o de saciar a

necessidade de contato humano de trocas e de interaccedilatildeo social

Nem sei quantos cafeacutes ralos engoli Pra te animar vai bebe nem sei quantas cuias de

chimarratildeo recusei Natildeo sou daqui natildeo sou da Paraiacuteba na minha terra natildeo eacute costume

cheguei haacute pouco ainda natildeo aprendi a tomar Mas logo acostuma que um amargo eacute coisa

boa demais bom pra sauacutede pro estocircmago pra tudo Todos sem falhar queriam ajudar

indicavam uma rua uma viela uma direccedilatildeo onde sim havia gente de lsquolaacutersquo Sei laacute quantas

coxinhas empadas comi e paguei pelas biroscas da Vila Maria Degolada nome que eu

logo parei de usar porque percebi que natildeo era do agrado de ningueacutem ali Ia aprendendo

coisas e nomes a comer dedo-de-negro que logo domestiquei como parente de nossa

sorda cortada em tiras e groacutestolis que identifiquei como a calccedila-virada da minha avoacute

portuguesa Tudo o que me fizesse esquecer Norinha e o apartamento preto e branco me

servia bem (REZENDE 2014 p117)

A passagem pela vila na procura por Ciacutecero tinha outra funccedilatildeo primordial dentro de

Alice a de natildeo retornar para o apartamento e para a vida que lhe foi imposta Com tal propoacutesito

decide prosseguir Percebe-se capaz de fazer escolhas a seu favor quando se pergunta lsquoe agorarsquo

pois responde que voltar para o apartamento natildeo lhe atrai lsquode jeito nenhumrsquo

Jaacute passava um pouco das quatro da tarde eu tinha andado desde as sete da manhatilde

sentando-me raras vezes quando alguma mulher mais atenciosa puxava uma cadeira de

dentro de casa e me oferecia pra descansar na sombra ou em algum boteco o tempo de

comer uma empadinha ou uma cueca-virada E agora Voltar pro apartamento natildeo me

atraiacutea de jeito nenhum Por que natildeo continuar pro novo destino provisoacuterio que me

indicaram Apesar de entatildeo jaacute achar tudo aquilo bastante suspeito (REZENDE 2014

p123)

123

Prosseguindo para o Hospital de Pronto Socorro surgem trecircs cenas relevantes em que o

comer eacute expresso como satisfaccedilatildeo da fome e reestabelecimento do acircnimo na primeira Alice

percebe a fome e decide procurar o que comer na segunda come de forma tatildeo afoita as pipocas

que se engasga na terceira eacute socorrida por Zelima senhora que a ajuda reforccedilando que o

cuidado de terceiros tambeacutem tem uma funccedilatildeo quando o comer eacute representado na obra

1) Cansaccedilo absoluto e fome fincaram-me no meio do saguatildeo zonza olhando aquela

larga porta aberta pra nada Um lugar vago num dos bancos era tudo o que me restava

Ali desabei e fiquei de olhos fechados e a cabeccedila pendendo sobre o peito como tantos

outros sentados naquele natildeo lugar esperando minhas pernas pararem de tremelicar

pensando apenas nelas e na sensaccedilatildeo do meu estocircmago oco Natildeo sei quanto tempo parei

ali Lembro-me de que afinal a fome venceu abri os olhos puxei o celular da bolsa pra

ver as horas a bateria estava descarregada procurei em torno e vi um reloacutegio na parede

do saguatildeo jaacute passava das nove da noite levantei-me as pernas agora quase firmes desci

os degraus da porta ateacute a calccedilada buscando algo pra comer e o que havia no meu raio de

visatildeo era uma carrocinha de pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me

desde que horas ele estava ali se tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia

inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido

Cheguei junto dele remexendo a bolsa agrave procura de uns trocados que tivessem restado da

farra de salgadinhos e biscoitos da Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada

desde entatildeo (REZENDE 2014 p147)

2) Puxei um bolinho de notas de dois reais e umas moedas estendi-as ao homem ele

escolheu o que correspondia ao preccedilo do saco de pipocas e me entregou tudo sem

trocarmos uma palavra Escorei-me no poste junto da carrocinha e enfiei na boca de

uma soacute vez o maior punhado de pipocas que pude sem me importar com as poucas que

escaparam e foram ao chatildeo Engasguei-me a boca seca e cheia tentando segurar a tosse

pra natildeo fazer chover mais pipoca pra todo lado mas natildeo consegui as ex-professora Poacuteli

cuspiu um jorro de piruaacutes tossiu de se acabar encostada num poste de lugar nenhum o

mundo escurecendo (REZENDE 2014 p147-148)

3) Zelima sentou-se ao meu lado segurando fielmente o meio copo de aacutegua e o meio

pacotinho de pipocas e assim que me recompus devolveu-me aquele simulacro de

refeiccedilatildeo dizendo Come que tu estaacute fraca bebe o resto da aacutegua para empurrar Soacute

balancei a cabeccedila obedeci ela recolheu os invoacutelucros vazios e foi jogaacute-los numa lixeira

na calccedilada voltou e sentou-se de novo junto a mim em silecircncio (REZENDE 2014

p148-149)

O percurso tem continuidade na manhatilde seguinte quando decide encontrar uma padaria

onde encontra aleacutem da satisfaccedilatildeo da fome um ambiente onde conversa e ri sobre o

desconhecimento de termos regionais como o nome de lsquocacetinhorsquo para o patildeo francecircs Nutre-se

desse modo do alimento e do contato humano ldquoAprumei o espinhaccedilo apanhei a bolsa e saiacute

novamente com passo firme destino certo uma padariardquo (REZENDE 2014 p159) A

protagonista chega no destino esperado saciando a fome de comida e de afeto

Cafeacute com leite cacetinho na chapa e riso me puseram em quase perfeita forma por

dentro e pelos proacuteximos instantes mas restava um tanto consideraacutevel de dor no corpo e

uma vontade enorme de me deitar e dormir decentemente

124

[] Quando saiacute olhei bem o nome da padaria e da rua pra voltar quando precisasse

encontrar um conhecido amigaacutevel como se eu jaacute soubesse quantas vezes precisaria

voltar (REZENDE 2014 p161)

Alice come quando tem fome dorme quando tem sono Respeita a sobrevivecircncia em sua

procura pelo desconhecido Ciacutecero A vida eacute no espaccedilo da rua do parque das avenidas das

padarias das carrocinhas de pipoca e de cachorro-quente

Quem mais usa orelhatildeo neste mundo ocirc Alice te liga no segundo deles o fio do

telefone pendia cortado mas na mesma esquina havia uma lojinha de venda e conserto

de celulares Sim o homem podia carregar pra mim Pelo menos uma carga raacutepida de

emergecircncia ateacute tu chegar em casa soacute dois pilas senta aiacute Abanquei-me no tamborete

oferecido mas meu estocircmago natildeo queria esperar mais nem um minuto e vi pela porta

uma carrocinha de cachorro-quente do outro lado da esquina Fui laacute e voltei trazendo o

patildeo com salsicha montes de mostarda escorrendo no guardanapo de papel e o luxo de

um saquinho de batata frita uma latinha de refrigerante o tamborete agrave sombra a parede

fresca para encostar as costas Seraacute que cochilei

Paguei agradeci saiacute comprei mais um cachorro-quente da carrocinha e natildeo pensei mais

em telefonar a Elizete nem queria saber endereccedilo nenhum nem voltar pra lugar

nenhum soacute continuar agrave toa Agrave toa Que nada (REZENDE 2014 p170-171)

Alice sabe natildeo estar agrave toa volta a ser dona de suas escolhas sejam elas quais forem Vai

retomando a consciecircncia de si mesma dos referenciais de sua histoacuteria de vida das lembranccedilas

ajudam a reconstruir sua identidade como quando refere a recordaccedilatildeo de lsquoum cafeacute com leite que

ao longo da vida sempre me parecia como soluccedilatildeo para pequenas dores pequenos desconfortosrsquo

Um vento mais frio me fez fugir da sombra procurar um resto de sol com vontade de

tomar alguma coisa quente um cafeacute com leite que ao longo da vida sempre me aparecia

como soluccedilatildeo pra pequenas dores pequenos desconfortos e fui em busca de um bar

lanchonete Achei um botequinho que me serviu leite ralo com cafeacute de garrafa teacutermica

ainda havia de aprender a tomar chimarratildeo mas me bastou

Depois de confortada pela bebida morna e accedilucarada saiacute agrave toa de novo esquecida de

Ciacutecero Arauacutejo [] (REZENDE 2014 p176)

Esquecer-se de Ciacutecero Arauacutejo significa neste ponto da histoacuteria que a aproximaccedilatildeo

consigo mesma torna-se mais importante Essa retomada de si atraveacutes do conforto de uma

lsquobebida morna e accedilucaradarsquo corresponde ao respeito aos seus referenciais de memoacuteria durante a

vida Alice vai remontando dados de si peccedilas de um mosaico desordenado pela mudanccedila de vida

mas que agrave medida que segue um percurso aleatoacuterio ou lsquoagrave toarsquo passa a ser o caminho para o

contato com suas caracteriacutesticas Quanto mais retoma a si mesma menos se ocupa de Ciacutecero

Este ocupar-se de si eacute traduzido pela procura por satisfazer as funccedilotildees vitais mas tambeacutem pelos

pequenos confortos que passa a permitir-se obter como a cena que transcorre na rodoviaacuteria

125

Nesse local o lsquoprato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos colherrsquo eacute a

expressatildeo da mudanccedila da personagem ao longo da histoacuteria pois essa passa a querer saciar a fome

com uma refeiccedilatildeo digna e natildeo mais com lanches de rua O garfo e a faca nesse sentido

representam a imagem de um comer para aleacutem do aspecto de saciar a fome evocam a ideia da

comida no prato posta agrave mesa e natildeo mais agrave rua sentada em um tamborete ou em peacute Eacute

interessante observar a referecircncia que faz ao cachorro-quente paraibano como forma de remontar

suas origens na reconstruccedilatildeo que faz de si

Decerto era preciso pagar e eu tambeacutem precisava comer uma refeiccedilatildeo decente como

havia dois dias natildeo comia impossiacutevel continuar vivendo de salgadinho refrigerante e

cachorro-quente de salsicha Se pelo menos fosse o bom cachorro quente paraibano com

tudo quanto haacute um verdadeiro prato feito dentro de um patildeo muita carne moiacuteda mais a

salsicha se quisesse verdura ovo ou qualquer outra coisa ou tudo junto o que a gente

pedisse aqueles abundantes molhos vermelhos de colorau escorrendo pelos lados

alimentando ou entupindo o freguecircs davam a sensaccedilatildeo de saciedade por um bom tempo

Mas aqui natildeo Eacute um patildeo com uma salsicha e a mostarda fraco demais pra mim eu natildeo

podia mais queria um prato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos de

colher Ali devia haver de tudo mas custava dinheiro (REZENDE 2014 p184)

Ainda na rodoviaacuteria onde consegue tambeacutem tomar banho vai decidindo adotar accedilotildees de

cuidado consigo como a lembranccedila da pasta de dente Progressivamente Alice ocupa-se de

retomar as rotinas de higiene de alimentaccedilatildeo e de sono Mais uma vez menciona a refeiccedilatildeo

completa o lsquogrande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdurarsquo Haacute a

noccedilatildeo de conforto na ideia de comida servida no prato e sobretudo no termo que ela usa

lsquocomida quentinharsquo

Dei-me conta de que pouco importava eu natildeo tinha sabonete nem sabatildeo nenhum mas

me lembrei confortada da pasta de dente que restava do aviatildeo guardada na bolsa pra

depois do grande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdura o

que fosse que eu havia de comer antes de procurar um canto pra dormir (REZENDE

2014 p187-188)

Na evoluccedilatildeo da procura por uma refeiccedilatildeo decente a protagonista encontra o restaurante

de Penha tambeacutem paraibana Descobre a coincidecircncia durante o jantar enquanto ouve a

proprietaacuteria falando ao telefone A forma como recebe a refeiccedilatildeo com o cuidado de Penha em

oferecer-lhe a comida agrave mesa junto agrave constataccedilatildeo de um sotaque familiar fazem com que Alice

se sinta confortada

1) Andei um pouco procurando onde comer e achei um restaurantezinho com um

aspecto muito simples limpo uma mulher com um jeito vagamente familiar do outro

lado do balcatildeo uma oferta Prato Feito R$ 350 Ai Barbie com que apetite me sentei

126

numa das duas mesinhas em frente ao balcatildeo e pedi meu PF uma latinha de refrigerante

Esperei meu olhar desgarrado acompanhando e abandonando cada um que passava

pensei Daiacute a poucos minutos a mulher sem nada dizer com uma das matildeos desdobrou agrave

minha frente uma toalhinha azul engomada a ferro com a outra depositou meu prato

quentinho acreditei ver o vapor subindo da comida talheres limpos enrolados num

guardanapo de papel imaculado um copo impecavelmente limpo a latinha gelada e ateacute

palito que eu nunca usei nem ia usar mas me acrescentavam conforto todos aqueles

adereccedilos em torno da minha fome soacute pra mim bem sentada numa cadeira de encosto as

matildeos limpas me sentindo toda limpa apesar da roupa usada e ataquei o prato com

voracidade tentando conter-me para natildeo comer depressa demais pra aquele prazer durar

bastante (REZENDE 2014 p192)

2) Quando a outra paraibana acabou o telefonema eu me levantei com o prato jaacute vazio o

copo ainda meio cheio me encostei ao balcatildeo e entreguei a louccedila mas continuei ali

tomei mais um gole do meu refrigerante e perguntei Vocecirc eacute da Paraiacuteba natildeo eacute Ela disse

Sou sim como eacute que sabe Ouvi umas palavras matildeiacutenha painho Campinatambeacutem sou

de laacute (REZENDE 2014 p193)

3) Acordei maldormida por conta do frio mas sem dor no corpo a rodoviaacuteria jaacute se

enchendo de gente juntei meus tereacutens e fui tomar cafeacute na bodeguinha de minha

conterracircnea que agravequela hora bem cedo jaacute havia reassumido seu posto (REZENDE

2014 p194)

Alice decide retornar ao restaurante de Penha na manhatilde seguinte permitindo-se tomar o

cafeacute da manhatilde Quando refere lsquobodeguinha da minha conterracircnearsquo jaacute expressa o conforto de

sentir-se familiar agrave Penha como forma de novamente encontrar referecircncia agrave sua Paraiacuteba Assim

como em outros fragmentos jaacute referidos a comida representa natildeo apenas o aspecto vital de

nutriccedilatildeo mas tambeacutem o do contato humano que propicia a exemplo do zelo com que a

proprietaacuteria coloca a mesa para Alice

Satisfeita em suas necessidades a personagem retoma sua busca por Ciacutecero Arauacutejo

seguindo a sugestatildeo dada por Penha para que fosse ao Campo da Tuca Laacute novo aproximaccedilatildeo

com seus referenciais atraveacutes do queijo de manteiga da rapadura e da plaquinha lsquotemos carne de

solrsquo

Procurando por Ciacutecero Alice encontra partes de sua terra Reencontra a si mesma atraveacutes

do contato com conterracircneos como Penha e outros do Campo da Tuca e de alimentos de sua

regiatildeo

Fui dando a volta ao campo de futebol e dei com uma bodeguinha que me cheirou a

nordestina encostei na porta olhei percebi logo o acerto de minha intuiccedilatildeo em cima do

balcatildeo havia uma caixa de vidro com queijo de manteiga e uma pilhazinha de rapaduras

na parede do fundo um cartaz Temos carne de sol Eu natildeo via ningueacutem depois percebi

movimento num canto mais ao fundo algueacutem arrumando prateleiras chamei Por favor

ele veio na hora pra entabular conversa perguntei O senhor tem mesmo carne de sol e

ele pesaroso Acabou esta manhatilde vendi o uacuteltimo pedaccedilo quase guardei pra mim mas a

freguesa antiga amiga laacute da minha terra insistiu e vendi pra ela semana que vem chega

mais se a senhora voltar na quarta ou quinta-feira eacute de certeza que vai ter carne de sol

aqui porque o primo que me manda jaacute despachou estaacute chegando era ateacute pra ter chegado

127

ontem [] olhe tem um queijinho de manteiga de primeira esse acabou de chegar

tenho mais laacute dentro a senhora pode levar quanto quiser esse eacute do bom bota na brasa

na frigideira e fica uma beleza assado natildeo vai se arrepender leve um pedacinho do

queijo pra esperar a carne de sol assim mata a saudade (REZENDE 2014 p200-201)

Alice ouve o sotaque familiar recebe acolhimento nas famiacutelias por onde procura por

Ciacutecero Natildeo encontra pistas dele mas descobre a cada novo trecho pistas de si mesma e de suas

raiacutezes

Suelen me conduziu de casa em casa gente do sertatildeo do litoral da Vaacuterzea do Brejo da

Paraiacuteba uns tantos Ciacuteceros por certo mas nenhuma notiacutecia de Ciacutecero Arauacutejo nem nas

casas de outros Arauacutejos Comi tapioca com coco tomei cafeacute refresco de cajaacute A gente

arranja algueacutem traz e guarda no freezer sempre tem mas natildeo achei Ciacutecero

(REZENDE 2014 p204)

Ela sabe que Ciacutecero eacute um pretexto em sua procura Reconhece que seu propoacutesito principal

natildeo eacute o de encontraacute-lo mas sim o de continuar sobrevivendo pelas proacuteprias pernas tomando as

proacuteprias decisotildees Quando menciona que se forccedilava a crer sabe que sua busca era por si mesma

Salgadinhos e cachorros-quentes mastigados agraves pressas ou com exagerada lentidatildeo a

depender do interesse dos assentos disponiacuteveis ou do cansaccedilo das pernas e as andanccedilas

sem fim com objetivos mentirosos nas quais eu mesma me forccedilava a crer Ciacutecero Arauacutejo

sumindo e reaparecendo segundo seus caprichos e minhas necessidades []

(REZENDE 2014 p213-214)

Em uma nova padaria ela alimenta-se de lsquopatildeo na chapa e cafeacute com leitersquo repete o pedido

para permanecer ali por mais tempo lsquomatutandorsquo Quando refere a si mesma naquela condiccedilatildeo

como lsquoalimentada e decididarsquo mostra que sobrevivecircncia e autonomia estatildeo lado a lado eacute capaz

de cuidar de si e de tomar as proacuteprias decisotildees mesmo que sejam como a de dormir em um sofaacute

ao relento coberta com o plaacutestico-bolha

Andei mais um pouco passei por uma padaria senti fome voltei entrei patildeo na chapa e

cafeacute com leite sentei-me em uma das duas mesinhas com tamboretes pedi mais patildeo

com cafeacute e encompridei minha permanecircncia ali matutando ateacute comeccedilarem a puxar a

primeira porta de ferro Entatildeo alimentada e decidida debaixo de um ceacuteu despejado

voltei ao sofaacute que laacute me esperava deserto deitei-me em cima da bolsa os joelhos

apoiados na mochila presa pelas alccedilas agraves minhas canelas agasalhei-me com meu

plaacutestico-bolha e dormi minha primeira noite ao relento sem nada sobre a cabeccedila senatildeo

estrelas (REZENDE 2014 p217)

A frase jaacute apontada lsquoalimentada e decididarsquo mostra a ideia de que a alimentaccedilatildeo eacute

combustiacutevel de sua sobrevivecircncia e de sua capacidade de decidir por si o que fazer Cada vez

mais a protagonista da narrativa se percebe protagonista da proacutepria vida

128

No seguimento de seus dias na rua Alice encontra Arturo e Lola moradores de rua Com

eles compartilha o lugar de dormir e as refeiccedilotildees interage afeiccediloa-se com amizade Arturo a

quem ela apelida de lsquoChapeleirorsquo acorda-a para que receba dos voluntaacuterios o lanche da

madrugada

Eu dormi Barbie pela primeira vez eu dormi na rua literalmente de verdade a noite

quase toda ateacute comeccedilar a clarear laacute fora Foi o Chapeleiro que me acordou sacudindo

meu ombro com sua fala arrevesada lsquoCha bem a chente do pan y do cafeacute no perde esse

pan com cafeacute dessos pibes eacute bueno eacute quente conforta son pibes Buenosrsquo

A cada parada saltavam jovens dois rapazes e uma moccedila com copos de plaacutestico

garrafas teacutermicas e embrulhinhos de papel pardo distribuindo-os Quando chegou a

minha vez vi primeiro aacutegua quente pras cuias como a do Chapeleiro jaacute a bomba em

riste um pacotinho de erva-mate pra quem pedia e a oferta de cafeacute com leite bem

accedilucarado que eu preferi mais um cacetinho com manteiga e uma espeacutecie de mortadela

ou outro afiambrado qualquer Vou lhe dizer Barbie embora o copinho fino quase

queimasse a matildeo aquilo me pareceu um presente do ceacuteu eu quase sem dinheiro nenhum

e tatildeo longe da padaria do meu amigo pra ir pedir-lhe fiado outro cacetinho na chapa e

um cafeacute com leite (REZENDE 2014 p224)

Lola eacute personagem de grande relevacircncia na narrativa pois estabelece com Alice uma

relaccedilatildeo de amizade e de cuidado Recebe-a em sua casa mesmo com toda precariedade que esta

estrutura tem a oferecer Daacute agrave protagonista a confianccedila de poder dormir laacute quando quiser Alice

retribui compartilhando com ela as refeiccedilotildees que faz Mesmo com pouquiacutessimo dinheiro que

ainda lhe sobra ela divide com Lola a comida que consegue comprar O alimento aleacutem de nutrir

o corpo nutre a amizade funciona como instrumento de partilha e de gratidatildeo pelo acolhimento

que recebe da nova amiga A seguir trecircs fragmentos que ilustram o cuidado muacutetuo entre elas

1) Natildeo tive coragem de fazer perguntas sobre aquilo tudo preferi oferecer-lhe com um

resto de dinheiro que catei nos bolsos e na carteira um cafeacute com patildeo na padaria mais

proacutexima que ela aceitou e comeu com gosto nenhuma de noacutes duas ligando a miacutenima

pros olhares enviesados que nos cercavam Tu vem todo dia dormir aqui tu eacute direita tu

pode aprende o caminho Eu vinha sim sem duacutevida nenhuma e fomos cada uma pro

seu lado eu memorizando pontos de referecircncia pelo caminho (REZENDE 2014 p232)

2) Dormia em seu terraccedilo dividia com ela minhas parcas refeiccedilotildees lia seus livros

embolorados Ela nunca me perguntou mais nada desde o primeiro encontro em que lhe

contei e ela duvidou da minha histoacuteria de filha neto Ciacutecero e tudo mais que ouviu com

um risinho descrente (REZENDE 2014 p236)

3) Guiavam-me o amanhecer e o entardecer a chuva o frio o sol a fome que eu

resolvia com qualquer coisa natildeo mais de dez reais por dia a menor quantia que o caixa

eletrocircnico cuspia agraves vezes suficientes pra mim e pra Lola Dias e dias Nada mais na

minha aparecircncia nem de leve acho me distinguia dos outros (REZENDE 2014

p239)

Ao final da narrativa Alice narra como terminou seus quarenta dias de rua jaacute sem

dinheiro ainda encontra um modo de se alimentar vendendo os livros que comprou mendigando

129

aacutegua em bares Sua condiccedilatildeo deteriorada chega ao limite e entatildeo natildeo mais se parece apenas mas

se torna moradora de rua pela proacutepria escolha de natildeo voltar ao apartamento Natildeo eacute mais guiada

pela procura por Ciacutecero mas sim por aquela de sobreviver

Esmoreci de vez sem banho sem comida rasgada desmantelada deixei-me cair em

mais um banco indiferente aos olhares se eacute que algueacutem me via cochilei e acordei mil

vezes saiacute pra rua tocada pela fome a esmo coragem nenhuma de pedir nas portas de

remexer no lixo vendi no sebo meus livros novos de 199 pela quantia suficiente pra trecircs

cachorros-quentes bebi aacutegua de torneira mendigada em balcotildees de bares Jaacute natildeo tinha

mais nada a perder (REZENDE 2014 p244)

Quem ajuda Alice na decisatildeo de retomar sua vida de voltar a seu apartamento eacute Lola Ao

estimulaacute-la a telefonar para Elizete para pegar o endereccedilo de sua casa Lola cuida de Alice

acordando-a de madrugada e oferecendo-lhe lsquoa metade de um patildeo dormido e uns goles do seu

chimarratildeorsquo Aqui o alimento eacute para dar forccedilas agrave personagem mas eacute acima de tudo representativo

do cuidado e do carinho que se estabelece entre elas Alice reconhece

Ela afinal acreditava mais do que eu me sacudiu no lusco-fusco da madrugada Vai

sai desse buraco isso natildeo eacute pra ti tu soacute natildeo esquece da gente Obedeci sem resistecircncia

Lola me deu a metade de um patildeo dormido uns goles do seu chimarratildeo Toma pra tu

aguentar ateacute laacute levou-me a um orelhatildeo talvez o uacuteltimo que ainda funcionava telefonei

pra Elizete a cobrar tirei-a da cama na madrugada (REZENDE 2014 p245)

Quando refere lsquoobedeci sem resistecircnciarsquo natildeo se trata de uma obediecircncia passiva como

aquela que se instala com a filha no iniacutecio da narrativa eacute sim o resultado de sua quarentena a

compreensatildeo de si mesma e de suas necessidades de sobrevivecircncia que natildeo mais podem ser

satisfeitas na rua pela falta de dinheiro Alice constata que seu percurso em direccedilatildeo agrave si mesma

chega ao fim que jaacute eacute capaz de comeccedilar uma nova vida em Porto Alegre agora com o passo

firme de quem eacute capaz de decidir natildeo mais apenas sobreviver mas viver a rotina como se

apresenta A protagonista natildeo estaacute mais resignada agrave vida que lhe foi imposta mas compreende

que chegou aos proacuteprios limites e que retomou sua autonomia ldquoChega Barbie agora eu paro

mesmo jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia guria a solidariedade silenciosa mas

agora eu vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a mal taacute Natildeo digo que seja pra sempre quem

sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo a limpordquo (REZENDE 2014 p245)

Sem ponto final o paraacutegrafo mostra a caracteriacutestica da narrativa muitas vezes com frases

inacabadas Entretanto aqui a falta do ponto denota a abertura agraves possibilidades do que refere

como lsquopasso tudo a limporsquo Alice assume elementos da linguagem gauacutecha como o uso do lsquoguriarsquo

130

do lsquotursquo e do lsquotaacutersquo expressando a iniciativa pela assimilaccedilatildeo de elementos regionais em sua nova

fase depois de fazer todo o relato de sua mudanccedila de vida nas paacuteginas do diaacuterio

Em todo o percurso de sua procura por si mesma pelo resgate de sua autonomia o

alimento assume diversas conotaccedilotildees Pode-se compreender a cozinha em Quarenta dias como

um fator que marca etapas da histoacuteria de Alice desde a sopa que prepara em Joatildeo Pessoa ateacute o

patildeo dormido que recebe de Lola tanto representada pelo aspecto da comida como por aquele da

mobiacutelia dos instrumentos que satildeo parte do preparar o alimento e do comer Aleacutem disso eacute

possiacutevel transplantar a cozinha para o externo na histoacuteria como representaccedilatildeo da vida que Alice

decide tomar fora da vida que lhe foi imposta A cozinha representa a autonomia e natildeo mais a

obediecircncia agrave filha A consciecircncia do corpo por sua vez as necessidades de fome sede sono e

higiene pessoal que satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa

Cabe compreender a consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo ambas definidas por

Jaspers na procura que a protagonista faz por si mesma a partir da capacidade de tomar decisotildees

a favor do que deseja e precisa e natildeo a favor da filha Aleacutem disso relembra diversos elementos

de sua identidade a partir de referenciais de sua terra encontrados em Porto Alegre como um

sotaque familiar de Penha ou os sabores paraibanos ou mesmo na evocaccedilatildeo dos doces de sua

avoacute que os quindins da simpatia fazem-na evocar A recordaccedilatildeo do cachorro-quente paraibano

que compara com aquele soacute de patildeo e salsicha gauacutecho faz com que as memoacuterias ajudem em sua

reconstruccedilatildeo no que tange agrave consciecircncia de si A consciecircncia do corpo por sua vez pode ser lida

na iniciativa de Alice por satisfazer as necessidades de fome sede sono e higiene pessoal que

satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa

Um ponto de grande importacircncia eacute a interaccedilatildeo com outras pessoas que tambeacutem consiste

em necessidade de sobrevivecircncia Alice sai do isolamento em que passa os primeiros dias do

choque imbuiacuteda de encontrar Ciacutecero Nesta missatildeo conhece pessoas com quem conversa e

partilha mesmo que seja uma breve aproximaccedilatildeo Nutre-se dessas trocas aleacutem da nutriccedilatildeo pelo

alimento Coloca-se em situaccedilotildees em que eacute escutada em que tem sua necessidade atendida como

nas vilas que percorre na procura pelo rapaz nos botecos e restaurantes onde vai recebe o que

pede no restaurante de Penha recebe o zelo de uma mesa posta de Zelima no Pronto-Socorro

recebe cuidado e preocupaccedilatildeo

131

Atraveacutes da necessidade de sobreviver e da missatildeo de descobrir o paradeiro de Ciacutecero

Alice redescobre sua capacidade de tomar as reacutedeas da proacutepria vida que atribuiacutera agrave filha Norinha

logo que chegou em Porto Alegre

132

CONCLUSAtildeO

Italo Calvino ao se referir agrave atividade do escritor afirmou ldquoEscrevemos para tornar

possiacutevel ao mundo natildeo escrito de exprimir-se atraveacutes de noacutesrdquo (DANZI 2007 p140) O que ele

denomina lsquomundo natildeo escritorsquo eacute a proacutepria vida real percebida pelo indiviacuteduo por seus cinco

sentidos e vivenciada atraveacutes das emoccedilotildees e dos pensamentos Desse lsquomundo natildeo escritorsquo

portanto fazem parte o cozinhar e o comer o partilhar as refeiccedilotildees e seus sabores o vincular-se

aos demais entre outras vicissitudes da experiecircncia humana Atraveacutes do ofiacutecio do escritor essas

condiccedilotildees satildeo representadas no texto literaacuterio

A escolha por estudar o universo da cozinha neste contexto permite expressar diversas

perspectivas atraveacutes da literatura Silvana Ghiazza estudiosa das relaccedilotildees entre cozinha e

literatura expotildee que

O alimento enquanto signo significa portanto algo aleacutem de si mesmo media conteuacutedos

ligados ao universo cultural revela conexotildees com a realidade histoacuterico-social com o

conjunto profundo da identidade individual e coletiva constitui em suma um polo de

agregaccedilatildeo de diversas dimensotildees de humanidade torna-se uma forma de linguagem natildeo-

verbal organizando-se em paralelo a outras linguagens em um orgacircnico sistema de

sinais desta forma pode tornar-se entatildeo uma chave de leitura transversal da realidade

Ateacute daquela literaacuteria (GHIAZZA 2015 p19)

De acordo com a mesma autora ldquo[] pode-se falar de comida ou atraveacutes da comidardquo

(GHIAZZA 2015 p20 grifo nosso) No termo lsquoatraveacutesrsquo empregado por Silvana Ghiazza estatildeo

as possiacuteveis aplicaccedilotildees da cozinha na literatura em que a primeira a cozinha eacute um veiacuteculo para

que a segunda a literatura exprima na linguagem do escritor uma seacuterie de circunstacircncias dos

personagens e da trama

Mais uma vez Silvana Ghiazza colabora para a compreensatildeo do sentido da comida e sua

relaccedilatildeo com a literatura quando esclarece

A comida pode ser presente como objeto em sua concreta materialidade no interno da

representaccedilatildeo marcando a natureza realiacutestica da proacutepria estrutura narrativa pode

contribuir a delimitar as coordenadas espaccedilo-temporais fornecendo referecircncias a

produtos pratos haacutebitos de um tempo e de um territoacuterio determinado pode tambeacutem

assumir um significado metafoacuterico mediando conteuacutedos diversos e simboacutelicos A

relaccedilatildeo com o alimento em termos de sua conotaccedilatildeo identitaacuteria pode servir ao autor para

tratar o caraacuteter das personagens e pode tornar-se uma forma de comunicaccedilatildeo

interpessoal uma linguagem natildeo-verbal A comida pode ainda constituir o campo

semacircntico do qual o autor se serve para as escolhas lexicais de sua escritura

(GHIAZZA 2015 p20)

133

A expressatildeo da cozinha no texto literaacuterio serve valendo-nos da referecircncia de Italo

Calvino a que este lsquomundo natildeo escritorsquo se exprima atraveacutes do escritor A partir da leitura da

autora entende-se que esse lsquoexprimir-sersquo poderaacute ocorrer por meio de trecircs funccedilotildees principais a

denotativa a conotativa e a comunicativa Sobre a primeira denotativa Silvana Ghiazza explica

As referecircncias a produtos alimentares a pratos e a receitas assim como a rituais haacutebitos

ou eventos ligados agrave realidade gastronocircmica de um tempo preciso e de um territoacuterio

definido contribuem sem duacutevidas para dar veridicidade verossimilhanccedila agrave narrativa

marcando sua estrutura realiacutestica (GHIAZZA 2015 p24)

As trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea escolhidas para compor o corpus

desta dissertaccedilatildeo apresentam o universo da cozinha atraveacutes da funccedilatildeo denotativa nos elementos

compreendidos como espaccedilo fiacutesico material Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo as

referecircncias agraves tradiccedilotildees culinaacuterias judaicas em seus pratos receitas e praacuteticas satildeo representadas

por essa funccedilatildeo Em O arroz de Palma podemos ler em produtos como o arroz a lata de azeite

de oliva e o bacalhau a presenccedila da cultura portuguesa configurando tal funccedilatildeo em Quarenta

dias a mesma estaria representada pelas carrocinhas de pipoca e de cachorro quente pelas

padarias e comidas de botecos de rua pois satildeo elementos que datildeo verossimilhanccedila agrave estrutura

narrativa em que a personagem passa a habitar as ruas da cidade durante a sua procura

A respeito da funccedilatildeo conotativa em situaccedilatildeo oposta agrave anterior Ghiazza explicita

As referecircncias agrave esfera alimentar natildeo tecircm o escopo de marcar a verossimilhanccedila e o

realismo da obra fornecendo informaccedilotildees do tipo denotativo realistico-referencial mas

servem principalmente para tratar do caraacuteter das personagens para definir a

personalidade atraveacutes de gestos de comportamentos ou de haacutebitos ligados de algum

modo agrave produccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo e ao consumo do alimento (GHIAZZA 2015 p25)

Podemos na funccedilatildeo conotativa mencionar em O arroz de Palma a preparaccedilatildeo do arroz

por Antonio enquanto narra a histoacuteria bem como o papel do arroz na trama considerando seu

caraacuteter simboacutelico como fertilizador da famiacutelia e como elemento presenteado por Palma e Joseacute

Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento Em Por que sou gorda mamatildee a funccedilatildeo

conotativa seria representada pela relaccedilatildeo das personagens com o comer jaacute que tanto no caso da

protagonista como no de sua matildee e no da Voacute Magra tal relaccedilatildeo eacute caracteriacutestica da personalidade

das mesmas entre outros exemplos Em Quarenta dias as escolhas alimentares de Alice satildeo

comportamentos associados agrave sua decisatildeo de permanecer na rua natildeo voltando para casa bem

como de seu desejo por autonomia Na mesma obra tanto o restaurante da conterracircnea Penha

134

quanto ingredientes e comidas da Paraiacuteba com os quais a protagonista tem contato em seus

percursos marcam a ligaccedilatildeo afetiva que ela manteacutem com sua terra natal

Outra das funccedilotildees que Silvana Ghiazza refere eacute a comunicativa relacionada ao papel da

cozinha na comunicaccedilatildeo entre as personagens de uma trama como por exemplo a funccedilatildeo da

comida no compartilhar a mesa

Ainda um outro significado que a comida pode assumir eacute ligado agrave convivialidade agrave sua

funccedilatildeo de meio de comunicaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Desde sempre dividir o alimento

foi de forma diversa mas em todas as sociedades ocasiatildeo para comunicar E esse eacute um

dado verificaacutevel na vida de cada dia em que se espera que o momento da divisatildeo do

alimento seja tambeacutem momento de divisatildeo de pensamentos e de afetos de

aprofundamento do conhecer reciacuteproco Na mesa se fala o eu torna-se noacutes

Tambeacutem na literatura esta realidade ocupa um lugar notaacutevel e as referecircncias agrave comida

desempenham uma funccedilatildeo comunicativa na medida em que oferecem o suporte para

uma troca relacional entre as personagens o alimento e mais em termos gerais as

praacuteticas alimentares podem transformar-se de fato em uma verdadeira linguagem natildeo-

verbal capaz de comunicar mensagens sem a necessidade de palavras [] A comida

torna-se a forma privilegiada de linguagem natildeo-verbal para comunicar o sentimento de

amor em todas as suas formas (GHIAZZA 2015 p26-27)

Nas trecircs obras do corpus encontramos a funccedilatildeo comunicativa quando a comida bem

como as representaccedilotildees da cozinha como espaccedilo fiacutesico satildeo elos de convivecircncia entre as

personagens Palma colhe o arroz da pedra para presenteaacute-lo ao irmatildeo e agrave cunhada e o mesmo

seraacute elemento de ligaccedilatildeo entre a famiacutelia assumindo o arroz o nuacutecleo da trama Antonio durante a

narrativa prepara o que restou do ingrediente para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo de cem anos do

casamento dos pais e do proacuteprio arroz em O arroz de Palma Ateacute mesmo na expressatildeo do amor

fiacutesico o arroz eacute o elemento comunicativo na cena em que Antonio e Isabel inauguram sua

intimidade fiacutesica derramando sobre seus corpos o arroz Em Por que sou gorda mamatildee a Voacute

Magra oferece doces tiacutepicos aos netos em sua sacola de crocheacute enquanto a matildee da protagonista

compartilha com os filhos os doces e o refrigerante dentro do carro na viagem da famiacutelia ao

Uruguai

Assim a representaccedilatildeo da cozinha pode se exprimir no texto literaacuterio como espaccedilo fiacutesico

e simboacutelico termos escolhidos para o presente trabalho ou atraveacutes de suas funccedilotildees denotativa

conotativa e comunicativa conforme Silvana Ghiazza As trecircs obras do corpus tecircm o objetivo de

propor a reflexatildeo sobre as linguagens que a cozinha pode assumir no texto literaacuterio

especificamente no contexto da literatura brasileira contemporacircnea Nossa escolha por estudar o

referido tema decorreu tambeacutem da funccedilatildeo cultural que a cozinha assume na sociedade atraveacutes

dos tempos Rita Rutigliano explica que

135

Desde sempre os escritores utilizam a comida e o comer tambeacutem para falar de outra

coisa As paacuteginas dos livros se sabe portam um patrimocircnio de signos reveladores de

vivecircncias e de sentimentos humanos Nos eacute possiacutevel colher indiacutecios preciosos atraveacutes de

descriccedilotildees dos rituais alimentares (e ateacute mesmo do jejum) que- cobrindo o arco inteiro

entre dois polos- a comida como necessidade de base e como um aspecto da paixatildeo pela

vida-podem se tornar invenccedilatildeo jogo poesia religiatildeo histoacuteria barocircmetro das

experiecircncias pessoais e coletivas metaacutefora social e poliacutetica Em uma palavra cultura

(RUTIGLIANO 2000 p11)

A respeito do papel desempenhado pela cozinha na cultura salientado por Rita

Rutigliano podemos acrescentar o fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo lsquoLa cultura em la

cocinarsquo cujo conselho editorial eacute composto por Marcelo Aacutelvarez Jesuacutes Contreras e Rosaacuterio

Olivas O referido fragmento aparece publicado em um dos livros da coleccedilatildeo pela editora

Catalonia del Nuevo Extremo

A cozinha natildeo eacute soacute um procedimento teacutecnico que permite que os produtos alimentiacutecios

se transformem em pratos e em receitas eacute acima de tudo uma linguagem em que se

expressa a cultura humana Os gostos a esteacutetica as combinaccedilotildees de sabores os

condimentos preferidos e as maneiras agrave mesa satildeo gestos sociais que se relacionam com a

histoacuteria e com a transmissatildeo dos siacutembolos que distinguem uma comunidade da outra

(SARDE MONTECINO 2014)

O fato eacute que das mais diversas formas dentro do referido contexto cultural o universo

culinaacuterio pode ser traduzido na literatura como um fenocircmeno da natureza humana O cozinhar

nos fez humanos A propoacutesito disso Eloisa Palafox refere que as capacidades de cozinhar os

alimentos e de contar histoacuterias distinguem o homo sapiens ambas compotildeem parte primordial de

nossa evoluccedilatildeo A semelhanccedila entre tais praacuteticas estaacute tambeacutem no fato de que permitem a

socializaccedilatildeo entre os indiviacuteduos e a partilha da comida e das histoacuterias Para Michael Pollan

Somos a uacutenica espeacutecie que depende do fogo para manter o corpo aquecido e a uacutenica

espeacutecie que natildeo pode passar sem cozinhar sua comida A esta altura o controle do fogo

jaacute estaacute inscrito nos nossos genes uma questatildeo natildeo mais associada apenas agrave cultura

humana mas sim agrave nossa biologia (POLLAN 2014 p109)

A relaccedilatildeo com o cozinhar vai aleacutem do preparo do alimento no fogo para ingestatildeo Esse eacute

sem duacutevidas o que manteacutem nossa sobrevivecircncia bioloacutegica mas haacute outra habilidade que

aprendemos como espeacutecie graccedilas tambeacutem ao fogo a interaccedilatildeo com os demais que Silvana

Ghiazza relaciona com a funccedilatildeo comunicativa que a cozinha pode ter no texto literaacuterio Pollan

acrescenta agrave exposiccedilatildeo acima a relevacircncia dessa aquisiccedilatildeo em nosso desenvolvimento

136

Sobretudo o fogo que usamos para cozinhar como o que vigio na churrasqueira do meu

quintal tambeacutem ajudou a nos formar como seres sociais lsquoA forccedila do magnetismo social

exercido pelo fogorsquo como diz o historiador Felipe Fernaacutendez-Armesto eacute o que nos

manteacutem juntos e ao fazer isso ele provavelmente mudou o curso da evoluccedilatildeo humana O

fogo usado para cozinhar promoveu a seleccedilatildeo de indiviacuteduos capazes de tolerar outros

indiviacuteduos- fazer contato visual cooperar e compartilhar lsquoQuando o fogo se combinou agrave

comidarsquo escreveu Fernaacutendez-Armesto lsquoum foco quase irresistiacutevel foi criado para a vida

comunalrsquo (na verdade lsquofocorsquo vem da palavra latina focus para lareira braseiro chama)

A forccedila da gravidade social exercida pelo fogo natildeo parece ter diminuiacutedo [] (POLLAN

2014 p109)

Assim somos seres bioloacutegicos e sociais atributos que devemos ao ato de cozinhar A

nossa biologia nos confere o comer pela fome e pelo prazer Esse elemento por sua vez eacute

necessaacuterio para promover a continuidade da sobrevivecircncia individual da mesma forma que o

prazer sexual eacute o estiacutemulo para a preservaccedilatildeo do humano como espeacutecie Cozinhar comer

alimentos cozidos que nos deem nutriccedilatildeo e sensaccedilotildees prazerosas e nos reunirmos com nossos

semelhantes satildeo atributos evolutivos que promoveram a chegada ao seacuteculo XXI

A reuniatildeo com as pessoas proacuteximas resultado do fogo como elemento agregador para

cozinhar os alimentos tornou-nos em termos evolucionaacuterios seres sociais Sendo assim

partilhamos vivecircncias com outros e essas nos propiciam a noccedilatildeo de pertencimento a um grupo

Temos a partir disso a noccedilatildeo de uma identidade singular e plural Somos parte de algo e

acumulamos percepccedilotildees experiecircncias e sentimentos em comum forma-se a memoacuteria coletiva A

memoacuteria individual de modo diverso eacute parte do aparato anatocircmico e fisioloacutegico dos seres

humanos Essa se desenvolve agrave medida que se forma o neocoacutertex ceacuterebro exclusivamente nosso

cooperando com a consciecircncia de noacutes mesmos e entatildeo com a construccedilatildeo da identidade

individual E porque somos capazes de reter informaccedilotildees de arquivaacute-las e de evocaacute-las em

acircmbito individual somos tambeacutem capazes de fazecirc-lo coletivamente ao compormos um grupo

seja uma famiacutelia ou um povo

Uma das principais caracteriacutesticas da memoacuteria na esfera familiar satildeo as histoacuterias que

atravessam geraccedilotildees por serem contadas desde os antepassados Entre essas eacute vaacutelido incluirmos

tambeacutem as receitas de cozinha pois narram o como-se-faz de um prato atraveacutes dos tempos por

parentes de sangue ou de criaccedilatildeo Entre tais histoacuterias podemos tambeacutem referir o papel de um

determinado ingrediente na formaccedilatildeo de uma memoacuteria de famiacutelia como eacute o exemplo em O arroz

de Palma

A memoacuteria individual por sua vez eacute porccedilatildeo imprescindiacutevel de nossa identidade e da

consciecircncia que temos sobre quem somos ela compotildee junto aos demais elementos nossa

137

capacidade de autonomia Jaspers aponta para a impossibilidade de uma independecircncia total em

relaccedilatildeo a outras pessoas pois precisamos das interaccedilotildees de afeto e de trocas com nossos

semelhantes Temos tambeacutem necessidade uns dos outros por aspectos praacuteticos de sobrevivecircncia

indiviacuteduos que plantem que colham que pesquem que vendam que comprem que cozinhem

que consumam e que faccedilam esse ciacuterculo perpetuar-se Seguiremos cozinhando uns para os outros

pelo simples fato de que precisamos comer E partilhar Esse eacute o ponto em Quarenta dias

A protagonista depende de quem prepare o alimento para ela seja o anocircnimo na

carrocinha de cachorro quente na rua seja na mesa posta com esmero que recebe no restaurante

da rodoviaacuteria pela conterracircnea Penha Paradoxalmente o fato de receber do outro a comida eacute o

substrato da retomada de sua autonomia jaacute que a decisatildeo do que comer eacute da proacutepria Alice Nesse

caso o cozinhar tece as interaccedilotildees entre os sujeitos

Os elementos escolhidos para estudo satildeo resultado de nossa capacidade de pensar de

sentir emoccedilotildees de perceber os estiacutemulos externos atraveacutes dos cinco sentidos e de interpretaacute-los

de acordo com a consciecircncia do corpo e de noacutes mesmos A bagagem individual e cultural

fornecida pela memoacuteria faz com que possamos sentir prazer ao saborear uma receita de famiacutelia

porque ela nos faz lembrar de uma avoacute ou de uma tia como ocorre com Antonio ao ler aquela

escrita por Palma em seu caderno Escolhemos o que comer exercendo nossa autonomia

conforme as preferecircncias alimentares que nos identificam considerando a cultura do territoacuterio

onde vivemos Compreende-se entatildeo que os atributos definidos para este trabalho natildeo ocupam

compartimentos estanques mas estatildeo inexoravelmente interligados em noacutes

Pollan reflete sobre a contribuiccedilatildeo de Levi-Strauss nesse aspecto

Segundo Levi-Strauss a distinccedilatildeo entre lsquoo crursquo e lsquoo cozidorsquo serviu a muitas culturas

como a grande alegoria para estabelecer a diferenccedila entre animais e pessoas Em lsquoO cru

e o cozidorsquo ele escreveu lsquocozinhar natildeo apenas marca a transiccedilatildeo da natureza para a

cultura mas por meio dessa accedilatildeo e com a sua ajuda a condiccedilatildeo humana pode ser

definida com todos os seus atributosrsquo Cozinhar transforma a natureza e ao fazer isso

nos eleva acima desse estado tornando-nos humanos (POLLAN 2014 p57)

Na presente dissertaccedilatildeo partiu-se da proposta de estudar a memoacuteria ligada agrave cozinha em

O arroz de Palma o prazer vinculado ao comer em Por que sou gorda mamatildee e a autonomia

associada ao escolher o alimento a partir da percepccedilatildeo da fome em Quarenta dias Essa

separaccedilatildeo se deveu agrave predominacircncia desses atributos em cada uma das obras natildeo os excluindo

138

das demais Como jaacute exposto haacute uma interligaccedilatildeo entre esses em cada um de noacutes Eacute possiacutevel

encontrar nas trecircs narrativas expressotildees dessa conexatildeo

Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo muito se pode refletir sobre as lembranccedilas

da proacutepria narradora-personagem e de sua famiacutelia ou sobre sua autonomia ao decidir pelo que

come Em Quarenta dias a protagonista recorre agrave memoacuteria de sabores e de vivecircncias ao

escrever em seu caderno a retrospectiva de suas andanccedilas aleacutem disso apesar de sua fome ser o

determinante na escolha do que comer Alice sente prazer com a refeiccedilatildeo quentinha e posta na

mesa com esmero no restaurante da rodoviaacuteria ou com o lanche servido na padaria Em O arroz

de Palma os atributos tambeacutem estatildeo entremeados mesmo com o predomiacutenio da memoacuteria para o

estudo dessa obra haacute presenccedila do prazer e da autonomia ao longo das lembranccedilas de Antonio

Um ponto de semelhanccedila entre as trecircs obras eacute o fato de apresentarem todas um narrador-

personagem que protagoniza as vivecircncias A cozinha eacute portanto contada em primeira pessoa

espaccedilo vivencial do narrador A opccedilatildeo por um eu ficcional para narrar as histoacuterias natildeo eacute ao acaso

sendo a cozinha um espaccedilo de tamanha relevacircncia para nossa vida de tanto apelo ao imaginaacuterio e

agraves lembranccedilas nos campos individual e coletivo eacute bem apropriado que quem conte seja a

personagem que a vivenciou atraveacutes das proacuteprias experiecircncias ou da memoacuteria familiar A tal

propoacutesito outro elemento que aproxima as trecircs obras eacute a presenccedila da famiacutelia das personagens

que ocupa posiccedilatildeo relevante na relaccedilatildeo que os protagonistas assumem com a cozinha

Nas trecircs narrativas o narrador-personagem fala de suas emoccedilotildees e vivecircncias e por vezes

fala da famiacutelia e das histoacuterias e lembranccedilas que representam a raiz de muitas experiecircncias com a

cozinha e com o comer A famiacutelia nesse contexto representa o coletivo que eacute apresentado junto

ao individual o sentir e pensar do proacuteprio narrador No livro Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e

Doccediluras essa coexistecircncia entre o singular e o plural eacute um dos elementos abordados em relaccedilatildeo

ao papel da cozinha conforme expresso no trecho abaixo

O ato culinaacuterio eacute ao mesmo tempo uma experiecircncia individual e coletiva uma

oportunidade de autoconhecimento de entrega a mim mesma e simultaneamente de

partilha de doaccedilatildeo de expressatildeo de afetos positivos [hellip] Sobretudo o ato culinaacuterio

representa uma das circunstacircncias mais propiacutecias para experimentar singular e plural

para nos aproximar de noacutes mesmos e daqueles a quem admiramos amamos e que satildeo

parte da nossa histoacuteria (CARDOSO 2012 p13)

139

O termo lsquoato culinaacuteriorsquo refere-se natildeo apenas ao cozinhar mas a toda gama de

comportamentos ligados agrave cozinha como dividir uma refeiccedilatildeo receber doces ou oferecer uma

comida aos demais colocar a mesa e tantas outras possibilidades

A diferenccedila entre as trecircs obras eacute o espaccedilo que a cozinha representa em cada uma Em O

arroz de Palma Antonio faz a narrativa a partir de sua cozinha enquanto prepara o almoccedilo de

celebraccedilatildeo dos cem anos de casamento de seus pais e do saco de estopa com o arroz como

presente aos noivos A cozinha nesse caso eacute apresentada atraveacutes do espaccedilo fiacutesico mas tambeacutem

do ingrediente-protagonista o arroz por outros elementos materiais como os guardanapos da

matildee de Isabel e o caderno de receitas de Antonio e por aqueles imateriais a exemplo da memoacuteria

associada ao cozinhar e das comparaccedilotildees dos pratos culinaacuterios com os estilos de famiacutelias Em

Por que sou gorda mamatildee a cozinha aparece ora como ingredientes ora como espaccedilo fiacutesico

ora como comidas ora como emoccedilotildees revelando histoacuterias da protagonista e de seus antepassados

de origem judaica Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como espaccedilo fiacutesico no novo

apartamento e na vida da protagonista em Joatildeo Pessoa antes da mudanccedila e passa a ser expressa

ao longo da obra pelos bares estabelecimentos e lsquocarrinhosrsquo pelos quais ela passa tambeacutem

representativos do espaccedilo fiacutesico Aleacutem disso a cozinha aparece como espaccedilo simboacutelico de

sobrevivecircncia nessa narrativa essa representaccedilatildeo eacute feita atraveacutes das comidas que Alice escolhe

enquanto anda pelas ruas Deste modo as trecircs obras contemplam ambos os espaccedilos referidos no

propoacutesito desse trabalho

Nas obras a cozinha eacute descrita como espaccedilo fiacutesico - tanto como peccedila da casa quanto

atraveacutes dos eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios ou seja em sua existecircncia material- e como

espaccedilo simboacutelico traduzindo lembranccedilas emoccedilotildees e comportamentos representando o ritual

implicado no cozinhar e comunicando os integrantes de uma famiacutelia

Em relaccedilatildeo ao elemento material da cozinha destaco em O arroz de Palma a cozinha de

onde Antonio narra suas lembranccedilas a panela em que ele prepara o arroz a taacutebua na qual corta os

temperos seu caderno de receitas onde estaacute aquela escrita por Palma os guardanapos da matildee de

Isabel a lata de azeite de Oliva e o mais significativo de todos o proacuteprio arroz presenteado a

Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento A expressatildeo material estaacute presente sobretudo

no espaccedilo fiacutesico e nos elementos citados embora haja menccedilatildeo a comidas como o arroz de

bacalhau preparado para aproximar as famiacutelias a fim de comeccedilar o namoro com Isabel

140

Em Por que sou gorda mamatildee haacute referecircncias agraves comidas e doces judaicos como

aqueles na sacola de crocheacute da Voacute Magra Aleacutem disso em vaacuterias passagens se lecirc descriccedilotildees como

aquela em que os moradores do bairro preparam pratos a partir dos ingredientes nas cozinhas de

suas casas com detalhamento dos atos culinaacuterios e dos instrumentos utilizados Uma das cenas

mais consistentes em demonstrar a cozinha como espaccedilo fiacutesico eacute quando a Voacute Magra prepara os

bifes para a protagonista ali essa representaccedilatildeo natildeo apenas estaacute na cozinha mas tambeacutem nos

utensiacutelios e ingredientes como o oacuteleo que ela usa para o preparo da carne Nessa obra a

predominacircncia da perspectiva material estaacute principalmente nas comidas Outro exemplo eacute a cena

em que a matildee se deleita com os filhos na viagem ao Uruguai comendo doces e refrigerante ou

quando essa faz uma farta refeiccedilatildeo antes do cateterismo e outra depois de sair do hospital Esses

satildeo alguns exemplos da expressatildeo fiacutesica que a cozinha assume na obra de Cintia Moscovich

Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como peccedila da casa de Joatildeo Pessoa e de Porto

Alegre sendo essa uacuteltima expressa com detalhes quanto a eletrodomeacutesticos armaacuterios mesa e

utensiacutelios No periacuteodo em que Alice estaacute na rua o aspecto material da cozinha eacute manifestado

pelas carrocinhas de pipoca e cachorro quente pelos botecos e padarias e pelos alimentos Esses

predominam na narrativa como expressatildeo do espaccedilo fiacutesico ocupado pela cozinha

Quanto ao aspecto simboacutelico representado ressalta-se que ao cozinhar e ao comer

estamos praticando rituais Mircea Eliade na obra jaacute referida nessa dissertaccedilatildeo expotildee que ldquo[]

a principal funccedilatildeo do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e

atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a

educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 2011 p13)

A alimentaccedilatildeo como ritual estaacute presente nas trecircs obras de formas diversas Em O arroz de

Palma estaacute na colheita do arroz na pedra pela Tia Palma bem como na oferta desse aos noivos

como presente de casamento estaacute tambeacutem na canja que ela faz ao irmatildeo com esse mesmo

arroz para que os gratildeos o fertilizem e no almoccedilo em que ela e Maria Romana preparam o arroz

de bacalhau para a integraccedilatildeo das famiacutelias Estaacute tambeacutem em outros pontos da narrativa como no

ponto em que Antonio e Isabel recebem o arroz em seu casamento e quando levam um punhado

desse para sua comunhatildeo fiacutesica no lago

Nessa obra os trecircs exemplos que melhor ilustram a presenccedila do ritual satildeo o ato de

cozinhar que permeia toda a histoacuteria pois enquanto o protagonista prepara o arroz evoca

lembranccedilas e as mistura com imaginaccedilotildees e pensamentos a leitura da receita dedicada a ele em

141

seu caderno de receitas por Palma com recitaccedilotildees a serem praticadas durante o preparo da

comida Por fim a reuniatildeo da famiacutelia nas mesas para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo dos cem anos

do casamento dos pais e do presente do arroz em que haacute dois pontos que aludem ao ritual Tanto

a reuniatildeo da famiacutelia para comer eacute ritualiacutestica quanto tambeacutem o fato de se tratar de uma

comemoraccedilatildeo como foi visto na referecircncia que Ricoeur faz ao elemento mundanidade do par

reflexividademundanidade em sua fenomenologia da memoacuteria

Em Por que sou gorda mamatildee o componente do ritual estaacute principalmente associado ao

comer e ao partilhar o alimento e menos ao cozinhar A oferta de doces na sacola de crocheacute que

a Voacute Magra faz aos netos eacute um dos exemplos dessa partilha assim como a menccedilatildeo que a

protagonista faz agraves refeiccedilotildees agrave mesa em famiacutelia Haacute o aspecto ritual nos doces oferecidos pois

satildeo de origem judaica e ilustram sabores ancestrais dessa cultura

Em Quarenta dias o ritual estaacute presente tambeacutem no comer e em muitos casos nas ofertas

de alimento que Alice recebe em seu percurso pelas vilas Como jaacute mencionado a mesa posta no

restaurante da rodoviaacuteria eacute parte do ritual da alimentaccedilatildeo e a partilha dos lanches entre Alice e

Lola representa a integraccedilatildeo dos indiviacuteduos que compartilham as refeiccedilotildees

Em um periacuteodo da histoacuteria da humanidade em que estamos prestando mais atenccedilatildeo na

gastronomia como espetaacuteculo midiaacutetico essas trecircs narrativas apontam para um retorno da

cozinha como contexto de afeto de memoacuteria de tradiccedilatildeo de construccedilatildeo de significados Michael

Pollan em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo reitera

Estamos falando mais sobre culinaacuteria- e assistindo a programas de culinaacuteria lendo sobre

o assunto e indo a restaurantes onde podemos observar o preparo da comida em tempo

real Vivemos numa era em que cozinheiros profissionais se tornaram celebridades

alguns deles tatildeo famosos quanto atletas ou estrelas de cinema A mesma atividade que

muitas pessoas encaram como um trabalho enfadonho acabou sendo de alguma forma

elevada agrave categoria de esporte popular com puacuteblico proacuteprio [hellip] Por algum motivo

cozinhar eacute diferente O trabalho ou o processo carrega uma forccedila emocional ou

psicoloacutegica da qual natildeo podemos-ou natildeo queremos- nos livrar (POLLAN 2014 p11)

Nas trecircs narrativas lecirc-se o cozinhar cumprindo os propoacutesitos ancestrais que o homem

aprendeu com o domiacutenio do fogo nutrir e agregar No mundo real que Italo Calvino chamou de

lsquomundo natildeo escritorsquo a cozinha promove essas vivecircncias pela transformaccedilatildeo do alimento e pelo

viacutenculo com os outros indiviacuteduos atraveacutes da comida preparada Nas obras escolhidas para o

corpus os espaccedilos fiacutesico e simboacutelico da cozinha tornam-se parte do mundo escrito exprimindo-

se atraveacutes do ofiacutecio de seus autores Reafirma-se assim a perspectiva de Italo Calvino

142

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en la cocina) Fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo Traduccedilatildeo nossa

SHEPHERD Gordon Neurogastronomy how the brain creates flavor and why it matters New

York Columbia University Press 2012 Traduccedilatildeo nossa

SHUA Ana Mariacutea Sobre comida y literatura In ______ Risas y emociones de la cocina judiacutea

Buenos Aires Ediciones B Argenina SA 2016 p 113 Traduccedilatildeo nossa

TOAFF A Cozinha judaica cozinhas judaicas In MONTANARI Massimo (Org) O mundo

na cozinha histoacuteria identidade trocas Satildeo Paulo Senac 2009 p 179-194

Page 5: 0 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL ... · Às receitas de quitutes, de doces, de refeições, escritas a mão em cadernos familiares, ou colhidas da Internet

1

Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda pelos infinitos legados

que constituem meu gosto pela literatura pela cozinha e por sua interface

O som das teclas da maacutequina de escrever do Vocirc Heacutelio o perfume do panelatildeo de chimia de uva

Isabel da Voacute Leacuteia o brilho de sol nos vidros de ambrosia da Voacute Alda

ingredientes da minha escrita e do meu cozinhar

2

AGRADECIMENTOS

Agrave Profa Dra Maria Eunice Moreira pela proposta do tema que me encanta a interface

entre Literatura e Cozinha e seus diaacutelogos com outras aacutereas por todos os ensinamentos nas

disciplinas do Mestrado e na orientaccedilatildeo da escrita da Dissertaccedilatildeo pelo incentivo e pela confianccedila

durante toda a trajetoacuteria

Ao Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena pelo despertar da curiosidade e do gosto pela

literatura brasileira contemporacircnea pela confianccedila e entusiasmo e pela riqueza das sugestotildees

apontadas na Banca de Qualificaccedilatildeo de Mestrado

Agrave Profa Dra Luciana Abreu Jardim pelos ensinamentos transmitidos durante o mini-

curso que ministrou em Caxias do Sul em 2015 intitulado ldquoSobre o pensamento de Julia

Kristeva a experiecircncia-revolta atraveacutes dos cruzamentos de sentidosrdquo de grande relevacircncia para a

construccedilatildeo de minha bagagem adquirida durante o Mestrado

Agrave Profa Dra Leacutea Masina pelos meus dez anos de aprendizado nos seminaacuterios de escrita

literaacuteria por seu papel fundamental no amadurecimento do meu gosto por escrever e pelo carinho

com que conduz o processo de descobertas na literatura

Aos meus pais Ana Cristina e Apolinaacuterio e ao meu irmatildeo Diego pelo estiacutemulo aos meus

percursos e pelo incentivo para que eu sempre abrisse janelas aos horizontes possiacuteveis

Aos amigos de toda a vida Melissa Sharlene e Jaime pela amizade incondicional e pelo

apoio conversas e risadas durante o periacuteodo de escrita da Dissertaccedilatildeo

Ao Marcelo pela partilha dos prazeres da mesa com afeto muitos risos e boa prosa e

pelo estiacutemulo e sugestotildees nos desafios durante os momentos especiais do nosso conviacutevio

3

Aos autores das obras que compotildeem o corpus da Dissertaccedilatildeo Francisco Azevedo Ciacutentia

Moscovich e Maria Valeacuteria Rezende A partir de O arroz de Palma Por que sou gorda mamatildee

e Quarenta dias foi possiacutevel realizar o presente estudo

Agrave bibliotecaacuteria Clarissa Selbach pela disponibilidade e pela excelecircncia durante todo o

percurso da Dissertaccedilatildeo de Mestrado

Aos meus sobrinhos Eacuterico e Lucas por me permitirem voltar a ser crianccedila em nossas

brincadeiras e por participarem do fazer culinaacuterio com alegria de festa

Agrave Tacircnia pelo afeto e pela celebraccedilatildeo de sempre

Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda a quem dedico essa

Dissertaccedilatildeo

4

ldquoFamiacutelia eacute afinidade eacute lsquoagrave moda da casarsquo

E cada casa gosta de preparar a famiacutelia a seu jeitordquo

(AZEVEDO 2008)

5

RESUMO

A presente dissertaccedilatildeo de Mestrado visa analisar a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico no

contexto de trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco

Azevedo (2008) Por que sou gorda mamatildee de Cintia Moscovich (2006) e Quarenta dias de

Maria Valeria Rezende (2014) No estudo de cada obra eacute estabelecida a relaccedilatildeo entre a cozinha e

um dos trecircs seguintes paradigmas respectivamente memoacuteria prazer e autonomia Assim o

trabalho eacute composto por trecircs capiacutetulos intitulados ldquoCozinha e memoacuteriardquo ldquoCozinha e prazerrdquo

ldquoCozinha e autonomiardquo O propoacutesito eacute compreender de que forma a cozinha eacute apresentada nas

narrativas do corpus no contexto dos temas escolhidos Elementos da fenomenologia

psiquiaacutetrica da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo satildeo apresentados em diaacutelogo com a

literatura brasileira contemporacircnea

Palavras-chave Literatura brasileira contemporacircnea Cozinha Comida

6

ABSTRACT

This dissertation aims to analyze the kitchen as a physical and symbolic space within the context

of three works of contemporary Brazilian literature Francisco Azevedorsquos O arroz de Palma

(2008) Cintia Moscovichrsquos Por que sou gorda mamatildee (2006) and Maria Valeria Rezendersquos

Quarenta dias (2014) In each work kitchen is related to one of the following three paradigms

respectively memory pleasure and autonomy Thus this study consists of three chapters entitled

Kitchen and Memory Kitchen and Pleasure and Kitchen and Autonomy Our goal is to

understand how the kitchen is described in the narratives of the corpus in the context of the

selected topics Elements of psychiatric phenomenology sociology and food history are

presented in connection with contemporary Brazilian literature

Keywords Contemporary Brazilian literature Kitchen Food

7

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO 10

1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA 15

11 O ARROZ DE PALMA 15

12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA 19

13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO 34

14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA 42

2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57

21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57

22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL 60

23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA 66

24 O PRAZER DA COMIDA 74

3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS 92

31 QUARENTA DIAS 92

32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS 97

33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA 105

34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI 111

CONCLUSAtildeO 132

REFEREcircNCIAS 142

10

INTRODUCcedilAtildeO

O ato de cozinhar eacute parte ancestral da nossa existecircncia como seres humanos Desde os

tempos primitivos o homem transforma o ingrediente cru em alimento cozido Comemos por

necessidade nutricional mas tambeacutem por outros motivos comemos para sentir prazer com um

bom prato para socializarmos partilhando esse prazer com outras pessoas para evocarmos

lembranccedilas de famiacutelia e as nossas proacuteprias com sabores que fazem parte de nossa bagagem

emotiva Escolhemos o que comer aprendemos a gostar mais desse ou daquele doce somos

conhecidos pelo quitute que preparamos para os amigos Adoramos canela mas detestamos

alecrim A cozinha faz parte da construccedilatildeo de nossa identidade e da memoacuteria que vamos

formando a partir das experiecircncias vivenciadas sozinhos ou em grupo

Um ponto de extrema relevacircncia eacute o fato de que a comida supre as demandas orgacircnicas

manteacutem-nos com energia para enfrentar a rotina e sustenta a sauacutede razotildees pelas quais eacute parte de

nossa autonomia Recebemos o leite materno quando somos ainda dependentes do peito da matildee

a seguir os pais nos alimentam com novos sabores ateacute que passamos a aprender a gostar de

modo individual disso ou daquilo E aprendemos a natildeo gostar daquele guisado de aboacutebora do

almoccedilo ou da salada de cenoura beterraba alface e tomate - que devemos comer porque faz bem

e ponto As escolhas alimentares tornam-se parte de nossa capacidade de dirigirmos nosso Eu e

de compormos nossas preferecircncias Assim natildeo seria exagero referir que tais escolhas nos

identificam pois satildeo um pedaccedilo de quem nos tornamos como indiviacuteduos e como famiacutelia O

alimento torna-se uma fatia das histoacuterias que vivemos e das emoccedilotildees que sentimos

Haacute um aspecto a ser questionado a que nos referimos quando falamos em cozinha Ao

espaccedilo fiacutesico que essa ocupa na casa onde estatildeo o forno e o fogatildeo o refrigerador a pia Aos

utensiacutelios como talheres e pratos panelas eletrodomeacutesticos peneira travessas e assim por

diante Aos ingredientes em parte mantidos na despensa enquanto outros devem permanecer

refrigerados Agraves receitas de quitutes de doces de refeiccedilotildees escritas a matildeo em cadernos

familiares ou colhidas da Internet ou copiadas no programa televisivo de famosos chefs Agraves

recordaccedilotildees de vivecircncias passadas com as avoacutes que nos ensinavam o saber culinaacuterio pelo

claacutessico lsquobotar a matildeo na massarsquo Agrave cultura de um povo pelas comidas que prepara

A cozinha contempla todos esses elementos do simboacutelico ao concreto da antiguidade

mais remota aos tempos hipervelozes de hoje com diversas miacutedias dirigidas aos temas culinaacuterios

11

do conforto emocional que representava ao glamour que vem atingindo com o avanccedilo da

gastronomia como expressatildeo de status social e econocircmico no seacuteculo XXI

Memoacuteria prazer e autonomia lsquoingredientesrsquo relevantes na relaccedilatildeo do ser humano com o

alimento tanto na sua preparaccedilatildeo quanto no ato de comer propriamente dito

Pela importacircncia e significado da cozinha em todos os tempos e em todas as culturas a

presente dissertaccedilatildeo visa discutir seu papel nos acircmbitos fiacutesico e simboacutelico em trecircs obras da

literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco Azevedo (2008) Por que

sou gorda mamatildee de Ciacutentia Moscovich (2006) e Quarenta dias de Maria Valeacuteria Rezende

(2014)

A organizaccedilatildeo eacute composta por trecircs capiacutetulos que mantecircm a mesma estrutura na epiacutegrafe

um trecho emblemaacutetico da obra a ser explorada sob a perspectiva de um dos paradigmas

definidos como memoacuteria prazer e autonomia um fragmento introdutoacuterio para apresentaacute-lo em

sua relaccedilatildeo com a cozinha seguido de quatro subdivisotildees na primeira a apresentaccedilatildeo da obra do

corpus na segunda a fundamentaccedilatildeo teoacuterica do atributo escolhido para cada uma das narrativas

na terceira a reflexatildeo sobre este visto agrave luz de sua relaccedilatildeo com a cozinha na quarta a anaacutelise

das obras especiacuteficas utilizando-se trechos e analisando-os a partir das reflexotildees e estudos jaacute

expostos

O primeiro capiacutetulo intitulado ldquoCozinha e memoacuteria em O arroz de Palmardquo apresenta a

cozinha vinculada agraves histoacuterias familiar e pessoal das personagens o que permite relacionar esse

livro com a pesquisa sobre a memoacuteria tanto a individual como a coletiva O segundo capiacutetulo

intitulado ldquoCozinha e prazer em Por que sou gorda mamatildeerdquo traz a cozinha principalmente

manifesta pela vivecircncia do prazer da comida e suas consequecircncias para a protagonista como o

engorde motivo pelo qual incide sobre o prazer na relaccedilatildeo com a cozinha O terceiro capiacutetulo

intitulado ldquoCozinha e autonomia em Quarenta diasrdquo contempla o estudo dessa obra em que se

revela uma alimentaccedilatildeo vivenciada fora de casa atraveacutes da comida e dos lugares que a oferecem

Ao longo do percurso da personagem atraveacutes da retomada de sua independecircncia o comer eacute uma

das principais representaccedilotildees de sua autonomia nessa narrativa Assim o binocircmio estudado no

uacuteltimo capiacutetulo eacute cozinha e autonomia

O arroz de Palma trata da relevacircncia de um elemento o arroz na histoacuteria de vaacuterias

geraccedilotildees da famiacutelia do protagonista motivo pelo qual este capiacutetulo aborda a relaccedilatildeo entre cozinha

e memoacuteria Considerando-se a memoacuteria um tema estudado por diversos campos do

12

conhecimento a fundamentaccedilatildeo teoacuterica desse capiacutetulo eacute constituiacuteda pelos seguintes autores no

acircmbito filosoacutefico Paul Ricoeur e Gaston Bachelard cultural Aleida Assmann psicopatoloacutegico

Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio Bulbena e Sandro Domenichetti neurocientiacutefico Ivan

Izquierdo e Gordon Shepherd Satildeo tambeacutem referidas reflexotildees de Mircea Eliade na compreensatildeo

do mito As perspectivas do socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan satildeo

apresentadas junto aos autores jaacute referidos na subdivisatildeo que aborda a memoacuteria no contexto da

cozinha

Por que sou gorda mamatildee traz a cozinha ligada ao prazer pelo fato de a narrativa

abordar as sensaccedilotildees prazerosas ligadas agrave comida A fundamentaccedilatildeo teoacuterica abrange as facetas

bioloacutegica e cultural do prazer Na esfera bioloacutegica a reflexatildeo inclui aspectos saudaacuteveis e

psicopatoloacutegicos contendo ideias do psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers e dos psiquiatras

Lorenzo Pelizza e Franco Benazzi na esfera socioloacutegica a reflexatildeo parte da leitura do socioacutelogo

Carlos Alberto Doacuteria em seus livros A subdivisatildeo que apresenta o prazer ligado agrave cozinha eacute

constituiacuteda principalmente por Jean Louis Flandrin Maacutessimo Montanari e Jean-Anthelme Brillat-

Savarin

Quarenta dias expressa a relaccedilatildeo entre cozinha e autonomia pois o comer representa

para a personagem sua decisatildeo de sobrevivecircncia real Ela come porque tem fome necessidade

fisioloacutegica propriamente dita sendo o comer vinculado agraves decisotildees e agrave autonomia para tomaacute-las

elemento-chave na construccedilatildeo de seu percurso Nesse capiacutetulo a cozinha eacute principalmente

expressa pela comida motivo pelo qual este eacute o termo empregado na terceira e quarta

subdivisotildees A fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute composta por contribuiccedilotildees de Karl Jaspers tambeacutem

explorado nos capiacutetulos anteriores por aquelas do neurocientista Antonio Damaacutesio e do

psiquiatra Massimo Biondi Na subdivisatildeo que estabelece viacutenculo entre a comida e a autonomia

expressa como consciecircncia de si apoiamos a anaacutelise no pensamento do socioacutelogo Carlos Alberto

Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan tambeacutem presentes nos capiacutetulos anteriores

A decisatildeo por pesquisar na literatura a expressatildeo da cozinha deve-se ao nosso

questionamento sobre o modo como essa aparece atraveacutes da escrita literaacuteria Que contextos e que

termos satildeo escolhidos pelos escritores para retratar a cozinha como espaccedilos fiacutesico e simboacutelico

em suas obras A escolha recai sobre a literatura brasileira contemporacircnea definindo para o

corpus livros escritos por autores brasileiros em 2006 2008 e 2014 Trecircs livros publicados nas

duas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXI periacuteodo que coincide com a explosatildeo do papel da cozinha

13

em acircmbitos mundial e sem duacutevidas nacional Conforme refere Maria Eunice Moreira no ensaio

ldquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmardquo

Espaccedilo alquiacutemico por sua natureza lugar de transformaccedilatildeo e de transmutaccedilatildeo a cozinha

eacute um dos espaccedilos mais tematizados na atualidade Isso pode ser comprovado pelo

nuacutemero de perioacutedicos especializados em gastronomia variedades de programas de TV e

destaque concedido a chefes e gourmets que se tornaram personagens midiaacuteticos

Diferentes miacutedias hoje divulgam as proezas de cozinheiros especializados que divulgam

suas descobertas culinaacuterias com ingredientes exoacuteticos confeccionando pratos originais

(MOREIRA 2014 p167)

Com a magnitude das expressotildees gastronocircmicas contemporacircneas no mundo e no Brasil eacute

plausiacutevel encontrar na literatura de nosso tempo obras que tragam a cozinha nos seus diversos

domiacutenios ao papel de protagonista A escolha especiacutefica pela literatura brasileira contemporacircnea

resulta de nosso interesse por compreender com que linguagem ela eacute expressa em nosso paiacutes em

nossa literatura em nossa contemporaneidade Ainda de acordo com o ensaio acima referido

sobre O arroz de Palma vale ressaltar

Mas certamente os leitores concordam que no fundo dos bauacutes que cruzaram os mares

entre enxadas e sementes vieram junto bens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre

o antigo e o novo espaccedilo a ser habitado Satildeo esses bens porque falam a linguagem do

mito os mais duradouros e perenes e satildeo eles tambeacutem capazes de inspirar a escrita da

literatura brasileira em tempos de globalizaccedilatildeo (MOREIRA 2014 p174)

Os lsquobens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre o antigo e o novo espaccedilo a ser

habitadorsquo estatildeo presentes em O arroz de Palma e tambeacutem no livro Por que sou gorda mamatildee

Nesse uacuteltimo atraveacutes da representaccedilatildeo de uma famiacutelia de imigrantes judeus e de sua relaccedilatildeo com

a comida e com o prazer de comer Em Quarenta dias a protagonista eacute tambeacutem uma imigrante

mas vinda de outro Estado e de outra cultura no mesmo Paiacutes Assim tambeacutem nessa narrativa haacute

um contraste entre o espaccedilo antigo e o novo a ser habitado a cidade de Porto Alegre eacute o territoacuterio

desconhecido ao qual a narradora personagem deveraacute se adaptar Da mesma forma como

transfere sua moradia para as ruas da cidade enquanto reluta em apropriar-se de sua lsquonova vidarsquo

tambeacutem transfere sua alimentaccedilatildeo para as padarias botecos carrinhos de pipoca e de cachorro

quente pela rua restaurantes e bares de rodoviaacuteria Para ela a decisatildeo de comer eacute resultado da

fome do mero existir como o sono e o banho A cozinha bem como sua vida estatildeo

lsquotransplantadasrsquo para as ruas da cidade

Nas trecircs obras selecionadas para este estudo haacute um papel central desempenhado pela

cozinha a representaccedilatildeo de aspectos da natureza humana como a ligaccedilatildeo com o prazer a

14

memoacuteria e a autonomia como jaacute foi referido Nas narrativas a cozinha o cozinhar e o comer

existem atraveacutes das comidas dos ingredientes de instrumentos e do espaccedilo fiacutesico em si mas satildeo

expressos sobretudo como emoccedilotildees e vivecircncias recuperaccedilatildeo de tradiccedilotildees e expressatildeo de

sentimentos e de memoacuterias Ao escolher o termo lsquocozinharsquo para a representaccedilatildeo global estamos

incluindo o campo de ideias que esse envolve ou seja todo o espaccedilo fiacutesico e os elementos

materiais como eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios as comidas desde o ingredientes e

receitas ateacute os pratos propriamente ditos por fim os elementos simboacutelicos portanto imateriais

como as representaccedilotildees de ritualidade e os elementos psiacutequicos e culturais que envolvem o

cozinhar e o comer

O tiacutetulo ldquoAgrave moda da casardquo remete agraves receitas de um periacuteodo da culinaacuteria em que a

cozinha caseira ocupava papel central na alimentaccedilatildeo familiar Essa envolvia as concepccedilotildees de

lar de famiacutelia de memoacuteria dos pratos que eram partilhados na mesa nas refeiccedilotildees Uma carne de

panela agrave moda da casa eacute aquela feita seguindo o lsquocomo-se-fazrsquo na histoacuteria da famiacutelia A expressatildeo

lembra os cadernos de receitas as cozinhas das avoacutes matildees e tias a memoacuteria e os sabores da

tradiccedilatildeo as noccedilotildees de identidade e de consciecircncia de si como indiviacuteduo singular que eacute parte de

um plural a famiacutelia Todos esses aspectos satildeo presentes nas obras do corpus e portanto estatildeo

incluiacutedos na reflexatildeo sobre o tiacutetulo escolhido

15

1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA

- Como eacute que simples guardanapos satildeo capazes de trazer tanta recordaccedilatildeo

- Porque fizeram histoacuteria satildeo a prova real e dos nove que um grupo de pessoas se reunia

regularmente para celebrar - natildeo importa o quecirc Festejavam a vida e pronto A data

religiosa ou pagatilde era pretexto Podia ser Paacutescoa ou Carnaval Esses guardanapos tecircm

alma Aliaacutes todo ser inanimado passa a ter alma no momento em que se lhe imprime

afeto As coisas tambeacutem aspiram a uma existecircncia sensiacutevel

Francisco Azevedo

A cozinha eacute o espaccedilo onde habitam forno fogatildeo geladeira pia pratos talheres

guardanapos panelas travessas caderno de receitas ingredientes chimia de uva pudim doce de

leite e ambrosia E lembranccedilas Muitos de nossos registros tecircm sabores proacuteprios Recordamos

essa ou aquela vivecircncia porque sua representaccedilatildeo eacute ligada a um gosto a uma textura a um

aroma Houve aquele doce de ovos que experimentamos em uma uacutenica e inesqueciacutevel ocasiatildeo

Vale evocar tambeacutem o faqueiro de uma avoacute presente de casamento ou a panela de fondue

comprada com orgulho fruto do primeiro salaacuterio da monitoria na faculdade No territoacuterio fiacutesico

da cozinha a memoacuteria tem corpo tem existecircncia material atraveacutes dos ingredientes dos

instrumentos dos eletrodomeacutesticos da receita de famiacutelia preparada para o almoccedilo Acima de

tudo a memoacuteria tem respiraccedilatildeo

11 O ARROZ DE PALMA

A escolha do tema cozinha e memoacuteria nasce atraveacutes da leitura da primeira obra definida

para o presente corpus O arroz de Palma de Francisco Azevedo publicada pela Editora Record

em 2008 O significado da cozinha para a nossa experiecircncia subjetiva tem fortes raiacutezes nas

histoacuterias guardadas atraveacutes das lembranccedilas e transmitidas entre as geraccedilotildees Essa obra da

literatura brasileira contemporacircnea propotildee tal resgate com relevante aprofundamento

A narrativa comeccedila pela voz do protagonista Antocircnio narrador personagem que traz ao

leitor em primeira pessoa a histoacuteria de sua famiacutelia os pais receacutem-casados e Palma sua tia

paterna Os trecircs vieram de Viana do Castelo em Portugal para o Brasil no comeccedilo do seacuteculo XX

Entretanto o que Antocircnio vem contar antecede a imigraccedilatildeo o ponto que daacute origem agrave histoacuteria da

obra eacute o casamento dos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana Depois da cerimocircnia Palma

decide juntar todos os gratildeos de arroz atirados aos noivos na lsquoabenccediloada chuva de arrozrsquo

16

torrencial feita de lsquopunhados e mais punhadosrsquo Fez-se lsquochuva branca que natildeo paravarsquo Como se

fosse colheita ela junta gratildeo por gratildeo e coloca todos em um saco de estopa que leva aos receacutem-

casados como seu presente pelo matrimocircnio Surpreendente eacute a reaccedilatildeo de Joseacute Custoacutedio ao

receber a ideia de Palma raivoso desdenha do arroz ofertado pela irmatilde como se fosse presente

de menor valor A esposa Maria Romana contemporiza a situaccedilatildeo mas manteacutem a posiccedilatildeo firme

de que aceitaratildeo o presente E o arroz torna-se a alma dessa famiacutelia Melhor dizendo Palma

torna-se a alma da famiacutelia

A obra eacute composta por cinquenta e nove capiacutetulos curtos trezentas e sessenta e uma

paacuteginas e um calendaacuterio ao final com datas relevantes para a compreensatildeo da passagem do

tempo perspectiva essencial em O arroz de Palma Antocircnio eacute o narrador personagem muito do

que conta sobre a histoacuteria familiar ouviu de sua tia Palma figura de grande importacircncia na

formaccedilatildeo de sua personalidade Ela testemunhou boa parte das vivecircncias em Portugal e na

chegada ao Brasil protagonizou a maioria das cenas que se tornaram lembranccedilas Essas

transformaram-se depois em histoacuterias contadas por Palma e escutadas por Antocircnio

Fazendo zigue-zagues nas geraccedilotildees Antocircnio relembra pontos que conhece de viver e

pontos que sabe por escutar Em momentos da leitura parece estar contando a trama ao leitor

noutros tem-se a sensaccedilatildeo de que as conversas satildeo consigo mesmo a fim de percorrer uma linha

de tempo que faccedila sentido Ele narra de sua cozinha no presente do indicativo enquanto a

memoacuteria percorre outros tempos verbais mas a idade jaacute deixa lacunas Quando faltam

ingredientes na despensa da memoacuteria resta a tentativa de montar histoacuterias possiacuteveis ele compotildee

em um conjunto o que foi vivido e imaginado junto agraves suas reflexotildees atuais agrave beira do fogatildeo

Estaacute preparando a receita tiacutepica de arroz com significado em sua histoacuteria pessoal para a

comemoraccedilatildeo do centenaacuterio do matrimocircnio dos seus pais e do arroz colhido por Palma e

presenteado ao casal

Nas idas e vindas aparece de iniacutecio a fuacuteria de Joseacute Custoacutedio ao ganhar o saco de gratildeos de

arroz dirigida agrave irmatilde Palma Os trecircs vecircm para o Brasil onde ele consegue trabalho em uma

fazenda Mais tarde jaacute com a vida organizada quando o casal tem dificuldades em ter filhos

surge nova fuacuteria quando Palma sugere oferecer-lhe o arroz como forma de ajudar na fecundaccedilatildeo

pelos poderes atribuiacutedos ao ingrediente Ele recusa enraivecido mas Palma e Maria Romana

fazem com que coma o arroz mesmo assim No momento da raiva quebra a lsquoquarta cadeirarsquo que

iraacute reformar para sua irmatilde passada a coacutelera Essa seraacute a cadeira de onde ela contaraacute a Antocircnio as

17

memoacuterias de famiacutelia os remendos de histoacuteria as fantasias e imaginaccedilotildees as dores e intimidades

de sua juventude

A quarta cadeira seraacute seu palco Antocircnio eacute o expectador Cria-se um forte laccedilo entre ele e

a tia pois se torna desde cedo o herdeiro das recordaccedilotildees familiares Essa aproximaccedilatildeo acaba

por distanciaacute-lo dos trecircs irmatildeos Leonor Nicolau e Joaquim enquanto ele eacute mais lsquocaseirorsquo gosta

de ficar ouvindo as histoacuterias da Tia Palma os trecircs satildeo mais agitados apreciam os passeios e as

brincadeiras pelo campo A distacircncia entre ele e os trecircs faz com que a tia o chame de lsquoAntocircnimorsquo

opondo suas caracteriacutesticas agraves dos irmatildeos As diferenccedilas seguiratildeo vida afora o que o protagonista

vai contando em seus percursos

Surge entatildeo seu romance com Isabel filha do patratildeo de seu pai sua ida para o Rio de

Janeiro o noivado com a moccedila e o arroz de bacalhau para celebrar a ocasiatildeo em famiacutelia A

receita foi preparada com o mesmo arroz que serviu para a fertilidade dos pais o mesmo arroz

presenteado por Palma para o casamento deles o mesmo arroz da chuva abenccediloada da cerimocircnia

O arroz testemunha a vida da famiacutelia alinha suas histoacuterias nessa narrativa parece ser a

representaccedilatildeo da memoacuteria familiar Lembranccedila a lembranccedila gratildeo a gratildeo As narrativas vatildeo sendo

transmitidas escutadas digeridas Antes do casamento Antocircnio e Isabel lsquoroubamrsquo um punhado e

levam consigo ao lago abenccediloando o primeiro momento de uniatildeo fiacutesica que partilham Mais uma

vez o arroz participa da ocasiatildeo formando registros de memoacuteria

Casam-se Nascem os filhos Nuno e Rosaacuterio Gecircmeos Seratildeo no entanto muito

diferentes entre si ela objetiva praacutetica ele sensiacutevel Entre casamentos e separaccedilotildees a narrativa

segue trilhada pela voz de Antocircnio em idas e vindas nas deacutecadas entre o casamento dos pais e

seu aniversaacuterio Sempre ao lado de Isabel nos trechos de vida sempre com dificuldades na

ligaccedilatildeo com os irmatildeos Entre o arroz presenteado por Palma no casamento de Joseacute Custoacutedio e

Maria Romana e a receita de arroz preparada por Antocircnio em sua cozinha esse conta os

nascimentos e as mortes relembra a perda de tia Palma recorda-se de vivecircncias dolorosas ao

longo do percurso de cada um e de todos O arroz eacute roubado da vitrine do restaurante de Antocircnio

e Isabel pelos filhos outra porccedilatildeo parece ter sido roubada pela esposa de um dos irmatildeos por

ciuacuteme de seu casamento Mais tarde surge a informaccedilatildeo de que Antocircnio e a cunhada tiveram

uma ligaccedilatildeo afetiva antes de ambos unirem-se a seus pares Voltam a encontrar-se em um ponto

da histoacuteria em uma tarde de braccedilos dados desejos satisfeitos e despedida cordial

18

Muitas satildeo as tramas vividas e recordadas nessa narrativa Antocircnio eacute o narrador

personagem mas a leitura faz o leitor convencer-se o protagonista a bem da verdade eacute o arroz

A tia Palma tem papel decisivo na famiacutelia eacute ela quem daacute a direccedilatildeo em vaacuterios momentos da

histoacuteria nas vidas do irmatildeo Joseacute Custoacutedio da cunhada Maria Romana do sobrinho mais

proacuteximo Antocircnio e de seus irmatildeos Eacute ela quem daacute a direccedilatildeo aos gratildeos de arroz no percurso

desde o casamento em Portugal na Igreja ateacute sua morte contando sempre com a cumplicidade

da cunhada O protagonista segue conversando com a tia em pensamento perguntando suas

opiniotildees e conselhos

Palma transmite histoacuterias o arroz transmite histoacuterias Ao longo de toda a narrativa ambos

vatildeo deixando suas marcas na vida das personagens Em sua cozinha enquanto prepara o arroz

ele une os gratildeos pelo cozimento assim como une as recordaccedilotildees em uma soacute histoacuteria da famiacutelia

Se acaba por esquecer de algo lembra depois ou conta agrave sua moda Lembranccedilas agrave moda da casa

Toda a narrativa eacute tecida com uma linha que atravessa as vivecircncias a metaacutefora feita agraves

famiacutelias como se fossem pratos da culinaacuteria O narrador protagonista traz a imagem de vaacuterios

desses pratos e suas equivalecircncias nos grupos familiares enquanto se lembra dos trechos de vida

entremeados com emoccedilotildees e pensamentos Natildeo eacute possiacutevel alinhar as memoacuterias estatildeo espalhadas

Parte delas remontam etapas de vida outras lugares e pessoas Haacute registros que surgem de

experiecircncias vividas e daquelas que ele conhece apenas por ouvir- em geral de sua tia Palma

sentada na quarta cadeira

Podemos lembrar do que vivemos ou do que imaginamos em nossa maquinaria de

lembranccedilas memoacuteria e imaginaccedilatildeo fundem-se e o que vivenciamos por ouvir contar se torna

tambeacutem parte de nossos registros pessoais Eacute o que se passa com Antocircnio quando conta o que

ouviu de Palma com tal fidelidade que parece ele mesmo ter vivido Escutou imaginou e entatildeo

apropriou-se da histoacuteria com suas proacuteprias cores eacute dele agora a trama contada pela tia Algo

parecido eacute o processo de alquimia de uma receita de cozinha quando eacute transmitida de geraccedilatildeo a

geraccedilatildeo cada novo cozinheiro agrega seu modo de preparar a receita e ela vai assim sendo

transformada pelo tempo e pelas vozes que a leem agrave beira do fogatildeo

19

12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA

O propoacutesito de estudar a memoacuteria neste capiacutetulo eacute o de apresentaacute-la como um processo

inerente agrave constituiccedilatildeo do ser humano Necessitamos deixar registros agraves geraccedilotildees seguintes assim

como seguir rastros dos antepassados Queremos pertencer a uma histoacuteria de famiacutelia e construir a

nossa para ser lembrada e seguida Acima de tudo a memoacuteria eacute parte da identidade

imprescindiacutevel na consciecircncia do indiviacuteduo sobre si mesmo

No campo de estudos da memoacuteria haacute os substratos neuroanatocircmico neurofisioloacutegico e

neuroquiacutemico que a compotildeem sob a perspectiva orgacircnica responsaacuteveis por seu funcionamento

adequado entretanto o foco predominante neste estudo consiste no entendimento da memoacuteria

como processo singular em termos psiacutequicos e plural em termos culturais Devido agraves muacuteltiplas

facetas do tema ampliamos a fundamentaccedilatildeo teoacuterica para os campos fenomenoloacutegico em que

apresentamos as ideias de Paul Ricoeur cultural a partir dos estudos de Aleida Assmann

psicopatoloacutegicas em que satildeo apontadas reflexotildees de Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio

Bulbena e Sandro Domenichetti e neurocientiacuteficas em que fazemos referecircncia aos

neurocientistas Ivan Izquierdo argentino e Gordon Shepherd americano

A cozinha situa-se nas esferas da memoacuteria individual e coletiva A relaccedilatildeo que se

estabelece entre o indiviacuteduo e os aromas que habitam sua memoacuteria como no caso das madeleines

recordadas por Proust a partir de um gatilho eacute de tamanha intimidade que se torna parte de sua

bagagem afetiva Da mesma forma o caderno de receitas de uma avoacute pode atravessar geraccedilotildees

pois os sabores ali registrados evocam lembranccedilas da histoacuteria familiar Ao serem reproduzidos

despertam na memoacuteria de um grupo natildeo apenas a receita original mas toda a constelaccedilatildeo de

emoccedilotildees que envolve essa lembranccedila como a cozinha em que era feita as panelas pratos e

talheres os almoccedilos dominicais na mesa da sala de jantar

As experiecircncias representam os ingredientes para a formaccedilatildeo da memoacuteria Muitas delas

nascem das histoacuterias vivenciadas na cozinha seja atraveacutes da percepccedilatildeo de um gosto do sentir de

uma emoccedilatildeo do ato de mexer um bolo ou de preparar um prato Todas satildeo carimbadas pela

interpretaccedilatildeo pelos sentimentos e pelo significado que cada circunstacircncia assume em nosso

percurso E esse carimbo vira lembranccedila armazenada na despensa da memoacuteria passiacutevel de

transformaccedilotildees ao longo do amadurecimento e das vicissitudes de cada fase de vida Afinal de

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contas a memoacuteria natildeo eacute um registro estaacutetico ela eacute isso sim um processo dinacircmico dependente

de nosso olhar e de nosso viver

Conforme o psicopatologista alematildeo Karl Jaspers a memoacuteria eacute um mecanismo que tem

relaccedilatildeo com o colorido afetivo com o significado das coisas Ele definiu a memoacuteria propriamente

dita como um reservatoacuterio em que novos materiais satildeo integrados pela fixaccedilatildeo e satildeo extraiacutedos agrave

consciecircncia atraveacutes da funccedilatildeo de evocaccedilatildeo para ele a chegada e a partida dos materiais seriam

devidas agraves respectivas funccedilotildees de fixaccedilatildeo e evocaccedilatildeo enquanto a memoacuteria representaria o

reservatoacuterio de disponibilidade permanente (JASPERS 2000 p188) Se pensarmos na cozinha

a memoacuteria seria a despensa onde satildeo postos novos ingredientes e de onde satildeo retirados aqueles

escolhidos para o uso Jaacute de acordo com Bulbena citando Serralonga ldquo[] em termos objetivos

eacute possiacutevel defini-la como a capacidade de adquirir de reter e de utilizar secundariamente uma

experiecircnciardquo (BULBENA 1998 p169)

Bulbena aponta quarto aspectos relevantes na compreensatildeo da memoacuteria como fenocircmeno

humano entre os quais distingue a entrada a manutenccedilatildeo e a saiacuteda das informaccedilotildees em

constante intercacircmbio entre organismo e ambiente o aspecto de transformaccedilatildeo dessas

informaccedilotildees modificando o conteuacutedo que entra no lsquoreservatoacuteriorsquo de Jaspers tanto para o

armazenamento quanto para a futura reproduccedilatildeo desse conteuacutedo o fato de a memoacuteria ser

produzida no contexto de estruturas nervosas que veiculam o processo apontando-se que as

alteraccedilotildees neste resultaratildeo em transtornos em seus mecanismos de fixaccedilatildeo armazenamento e

reproduccedilatildeo O quarto ponto definido pelo autor eacute de grande importacircncia para a finalidade do

presente capiacutetulo a memoacuteria forma parte do conjunto da vida psiacutequica sendo as emoccedilotildees

especialmente relevantes em sua composiccedilatildeo e forma parte tambeacutem da biografia do indiviacuteduo

em que teraacute influecircncia e da qual receberaacute influecircncia tambeacutem

Quando o autor se refere agrave biografia estaacute fazendo menccedilatildeo agraves experiecircncias de vida desse

indiviacuteduo e satildeo essas que muitas vezes ocorreram em sua relaccedilatildeo com o comer e com a cozinha

O dado de a memoacuteria fazer parte da vida psiacutequica eacute significativo sobretudo no que tange agrave

relaccedilatildeo com o campo emocional pois sempre que tais experiecircncias vinculadas ao universo

culinaacuterio ocorrerem haveraacute o processamento da resposta afetiva

A memoacuteria eacute essencialmente parte da vida psiacutequica do ser humano e resultado de

mecanismos cerebrais de controle Eacute considerada uma das funccedilotildees do estado mental dos

indiviacuteduos avaliada no exame psiquiaacutetrico dessas funccedilotildees Bulbena refere que

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etimologicamente a maioria dos autores situa sua origem no termo latino memoacuteria de

significado similar ao atual mas haacute quem atribua a origem agrave palavra gemynd de raiz

anglosaxocircnica que conforme refere significaria mente Assim eacute possiacutevel que a associaccedilatildeo entre

memoacuteria e vida psiacutequica seja representada na proacutepria origem da palavra

Mesmo que a finalidade do presente capiacutetulo seja apresentar a memoacuteria vinculada agraves

vivecircncias de cozinha cabe realizar a abordagem desse mecanismo como fenocircmeno Paul Ricoeur

apresenta a respeito da fenomenologia da memoacuteria seu viacutenculo com a imaginaccedilatildeo O autor

refere que podemos fazer referecircncia a um evento passado ou dizer que temos dele uma imagem

que pode ser quase visual ou auditiva E aponta que a memoacuteria opera em funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo

reforccedilando a perspectiva de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que expressa que ldquo[] a memoacuteria eacute

uma proviacutencia da imaginaccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p25)

Tal aspecto liga-se ao exposto pelo neurocientista Gordon Shepherd que em seu livro

sobre neurogastronomia expotildee ldquoPara muitas pessoas as partes mais importantes do olfato e do

sabor satildeo as memoacuterias que elas evocam e as emoccedilotildees associadas a essasrdquo (SHEPHERD 2012

p174) Olfato e sabor satildeo tambeacutem elementos que evocam imagens de situaccedilotildees vivenciadas mas

imagens construiacutedas pelas caracteriacutesticas psiacutequicas individuais assim pode-se dizer que evocam

a imaginaccedilatildeo

A lembranccedila de um acontecimento do preparo de uma comida ou da ocasiatildeo em que a

saboreamos ocorre atraveacutes da imagem que fazemos dessas circunstacircncias Lembramos com cor

com cheiros com gostos Lembramos imaginando e eacute isso que Paul Ricoeur traz como ponto de

partida Shepherd refere que nossos mecanismos cognitivos tecircm a qualidade de perceber e de

evocar as coisas como um todo integrado a partir de uma fraccedilatildeo (SHEPHERD 2012) o que se

assemelha ao que Ricoeur refere sobre a ligaccedilatildeo mencionada ldquoEacute sob o signo da associaccedilatildeo de

ideias que estaacute situada essa espeacutecie de curto-circuito entre memoacuteria e imaginaccedilatildeo se essas duas

afecccedilotildees estatildeo ligadas por contiguidade evocar uma - portanto imaginar - eacute evocar a outra-

portanto lembrar-se delardquo (RICOEUR 2014 p25) Essa ideia associa-se ao fato de que todos os

registros que os sentidos percebem oriundos do mundo externo ao corpo satildeo traduzidos em

percepccedilotildees e entatildeo em lembranccedilas a serem armazenadas A lembranccedila torna-se uma impressatildeo

da experiecircncia e natildeo seu registro idecircntico uma vez que pode ser compreendida como uma

reconstruccedilatildeo do passado a partir da perspectiva atual O que laacute fixamos natildeo eacute idecircntico ao que no

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presente podemos evocar pois outras vivecircncias se colocam no caminho nos transformam e

modificam nosso modo de recordar o que um dia haviacuteamos registrado

O inconsciente em todo o processo pode guardar a sete chaves algumas das informaccedilotildees

fixadas parte do que vivemos passaraacute a ser liberado ou escondido por sua tutela Lembramos de

algo pela imaginaccedilatildeo do que permaneceu desse algo em nosso mundo interno na compreensatildeo

neurocientiacutefica os registros captados pelos sentidos ficam armazenados em estruturas

especiacuteficas predominantemente no hemisfeacuterio direito quando as lembranccedilas estiverem

conectadas a emoccedilotildees Uma lsquopistarsquo que dermos agrave memoacuteria seja uma figura um som um gosto

um aroma ou uma textura ou uma emoccedilatildeo podem trazer de volta em viagem ultraveloz a cena

arquivada com todas as transformaccedilotildees que o tempo provoca em noacutes

Eacute possiacutevel compreender que a memoacuteria identifica o indiviacuteduo e sua bagagem de

vivecircncias pois soacute nos lembramos do que conhecemos ldquoReconhecer algueacutem significa saber jaacute tecirc-

lo visto antes assim como recordar-se de um acontecimento significa saber que este jaacute ocorreu no

passadordquo (MINKOWSKI 2004 p143) O entendimento sobre suas consideraccedilotildees eacute a de que

uma lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a tonalidade emotiva com que este foi

percebido ou seja a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos

recordaremos dela no futuro porque eacute assim que a conhecemos Sobre tal aspecto Ivan

Izquierdo neurocientista especializado neste campo refere

Podemos afirmar conforme Norberto Bobbio que somos aquilo que recordamos

literalmente Natildeo podemos fazer aquilo que natildeo sabemos nem comunicar nada que

desconheccedilamos isto eacute que natildeo esteja na nossa memoacuteria Tambeacutem natildeo estatildeo agrave nossa

disposiccedilatildeo os conhecimentos inacessiacuteveis nem formam parte de noacutes os episoacutedios dos

quais esquecemos ou os quais nunca atravessamos O acervo de nossas memoacuterias faz

com que cada um de noacutes seja o que eacute um indiviacuteduo um ser para o qual natildeo existe outro

idecircntico (IZQUIERDO 2011 p11 grifo do autor)

O psicopatologista Eugeacutene Minkowski aborda a memoacuteria no capiacutetulo intitulado lsquoO

passadorsquo em seu livro O tempo vivido Tal afirmaccedilatildeo expressa que ela eacute parte de nosso tempo

vivido e atraveacutes da reflexatildeo de Ivan Izquierdo pode-se compreender que ela eacute parte do nosso

tempo de conhecimento vivido A ideia de que a memoacuteria faz de noacutes ldquo[] um ser para o qual natildeo

existe outro idecircnticordquo (IZQUIERDO 2011 p12) reforccedila a noccedilatildeo de que esse fenocircmeno eacute um

elemento inerente a um sujeito uacutenico com suas experiecircncias percepccedilotildees e bagagens Ainda

conforme Ivan Izquierdo ldquo[] o conjunto das memoacuterias de cada um determina aquilo que se

denomina personalidade ou forma de serrdquo (IZQUIERDO 2011 p12) O neurocientista refere que

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as emoccedilotildees e os estados de acircnimo tecircm importante papel no processo da memoacuteria tanto em

termos de aquisiccedilatildeo quanto de formaccedilatildeo e finalmente de evocaccedilatildeo

Falar em emoccedilotildees ou estados de acircnimo remete agrave referecircncia de Minkowski sobre as

tonalidades afetivas O psicopatologista faz alusatildeo ao viacutenculo entre emoccedilotildees e memoacuteria

expressando o modo como o sentir influencia o lembrar Eacute possiacutevel comprender sua ideia da

seguinte forma colocamos a mirada sobre nosso mundo interior para focar em uma fraccedilatildeo do

passado que sentimos presente em noacutes Isso seria equivalente agrave evocaccedilatildeo de uma lembranccedila Ao

percebermos o sentimento ligado a esse tempo anterior essa lembranccedila amplia-se agrave medida que

a encontramos em nosso iacutentimo A conexatildeo emotiva torna a vivecircncia passada cada vez mais

visiacutevel e de contornos niacutetidos como um feixe de luz que ao aumentar expande a aacuterea de

claridade e mostra os detalhes de um terreno

Tal iluminaccedilatildeo reproduz vivecircncias remotas como se fossem situaccedilotildees que nos parecem

recentes pela forccedila emotiva ligada ao evento passado Entretanto nossa impressatildeo sobre tais

eventos pode ser transformada por aspectos psiacutequicos que ocorrem entre o tempo real e o

lembrado modificando a impressatildeo do fato em suas nuances Permanece a essecircncia prazerosa ou

penosa de um fato mas a evocaccedilatildeo da lembranccedila pode tornaacute-la um rosa suave ou um vermelho

vivo Para mudar seu tom contam tanto nosso estado de acircnimo ao vivermos algo quanto ao

lembrarmos esse algo Memoacuteria e emoccedilatildeo assim estatildeo intimamente ligadas entre si em especial

no que concerne agraves nossas experiecircncias de vida

O termo memoacuteria no singular remete-nos a dois eixos um primeiro mais evidente eacute o

tempo o segundo subterracircneo o espaccedilo Tal colocaccedilatildeo vem do fato de que a memoacuteria pode ser

percebida como um espaccedilo subjetivo em nossa vida psiacutequica motivo pelo qual tecemos a

analogia com a imagem da despensa de cozinha Esta eacute de fato um espaccedilo objetivo mas cuja

subjetividade aparece ao revelar muitos aspectos sobre o morador da casa Seria plausiacutevel referir

que a despensa identifica esse sujeito em suas preferecircncias alimentares em sua condiccedilatildeo

econocircmica em sua regularidade nas refeiccedilotildees feitas no lar aleacutem de demonstrar se vive sozinho

ou em famiacutelia se tem haacutebitos saudaacuteveis se manteacutem cuidados com a higiene com o meio-

ambiente com os prazos dos alimentos e por aiacute vai A despensa seria assim a memoacuteria da casa

um espaccedilo onde se colocam os ingredientes onde satildeo armazenados e de onde satildeo retirados para o

uso imediato Nessa analogia os ingredientes remetem-nos agrave imagem das lembranccedilas guardadas

na despensa

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A partir dessa reflexatildeo eacute importante pensar no par lembranccedilas e memoacuteria como uma

relaccedilatildeo entre plural e singular Podem-se estabelecer ainda outras relaccedilotildees como a ideia de que a

memoacuteria maior conteacutem as lembranccedilas menores e muacuteltiplas A primeira representa um amplo

espaccedilo subjetivo para o armazenamento das segundas Uma comparaccedilatildeo mais detalhada colocaria

alguns itens nas estantes mais altas da despensa onde o acesso eacute difiacutecil ou mais ao fundo atraacutes

de elementos que satildeo usados com regularidade Natildeo eacute raro que esses ingredientes em partes

menos visualizadas sejam menos usados enquanto aqueles mais visiacuteveis sejam retirados dali e

consumidos com maior frequecircncia Tanto a regularidade do uso quanto os gostos alimentares

definem os produtos que ficam disponiacuteveis em estantes de mais faacutecil acesso em contraponto os

menos usados entram na categoria dos menos vistos

Aspectos que raramente enxergamos ficam esquecidos na despensa em lugares difiacuteceis e

ateacute passam da validade se natildeo tomamos conhecimento de que estatildeo laacute natildeo iremos evocaacute-los e

acabam por permanecer por um longo periacuteodo no canto mais longiacutenquo daquele espaccedilo Inuacutemeras

vezes esquecemos de usar produtos que guardamos haacute mais tempo e lembramos de acessar os

mais presentes em nossa rotina Aleacutem disso cabe lembrar que haacute estantes ou compartimentos em

uma despensa que servem justamente ao propoacutesito de definiccedilatildeo de categorias as mais

importantes alcanccedilamos estendendo o braccedilo enquanto as de menor relevacircncia recebem acesso

pelo uso da escada domeacutestica da lanterna para a procura ou no caso de estarem nas prateleiras

inferiores de posiccedilotildees fiacutesicas para encontrar o elemento procurado

Ao guardarmos algo que pouco usamos criamos espaccedilos de esquecimento dentro da

memoacuteria Para que resgatemos esses ingredientes haacute elementos como a imagem que nos

despertam para a recordaccedilatildeo de que um dia tomamos contato com ele Mais uma vez surge a

figura do conhecimento preacutevio entatildeo do passado como criteacuterio para o reconhecimento

Reconhecer eacute conhecer novamente voltar a tomar contato

Considerando a partir da analogia estabelecida as lembranccedilas como elemento plural

presente na memoacuteria de caraacuteter singular torna-se necessaacuterio compreender o fenocircmeno da

memoacuteria sob vaacuterias perspectivas Haacute diversos fatores envolvidos no modo como nos lembramos

de algo no porquecirc dessas lembranccedilas tornarem-se de mais faacutecil ou de mais difiacutecil acesso para

quais registros damos mais relevacircncia ao lsquoguardar na despensarsquo e outras variaacuteveis ligadas ao

lembrar e ao esquecer Tais perspectivas natildeo estatildeo divididas mas sim ligadas no texto uma vez

que ao contraacuterio das prateleiras da despensa a memoacuteria eacute um espaccedilo sem divisotildees estabelecidas

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na experiecircncia humana Mesmo do ponto de vista cerebral ela ocupa diversas aacutereas e muacuteltiplos

sistemas sendo resultado de um processo de integraccedilatildeo de estruturas e de funccedilotildees cerebrais

Um aspecto relevante sobre o uso da palavra memoacuteria quando usado no plural estaacute na

literatura Ler as memoacuterias de um autor remete agrave ideia de uma narrativa autobiograacutefica ou

biograacutefica novamente ligando a ideia de memoacuteria ao campo da definiccedilatildeo de identidade

Considero que esse termo seja o de maior importacircncia no conjunto do fenocircmeno pois mesmo que

se trate da memoacuteria de um grupo essa revela seu caraacuteter identitaacuterio

Identidade eacute palavra-chave no campo da memoacuteria O psiquiatra italiano Sandro

Domenichetti apresenta a lembranccedila como ldquo[] experiecircncia que constroacutei a consciecircncia de si e

que define a relaccedilatildeo entre o mundo afetivo e aquele cognitivordquo (DOMENICHETTI 2003 p1)

de acordo com ele entre as funccedilotildees da consciecircncia estaacute a diacrocircnica ou seja a de percepccedilatildeo da

identidade estaacutevel atraveacutes do tempo A consciecircncia entatildeo eacute um elemento central neste campo

Domenichetti refere que esta ldquo[] parece entatildeo configurar-se como um tipo de memoacuteria de si no

tempordquo (DOMENICHETTI 2003 p1) enfatizando a perspectiva de que ldquo[] um senso de si eacute

essencial para que todas as minhas lembranccedilas sejam exatamente as minhas lembranccedilasrdquo

(DOMENICHETTI 2003 p1 grifo do autor)

Outro elemento apontado por este autor tem como base a explanaccedilatildeo de Israel Rosenfeld

meacutedico e pesquisador com atuaccedilatildeo relevante no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti

Roselfield expotildee a continuidade da consciecircncia como derivada da correspondecircncia que o ceacuterebro

estabelece em momentos sucessivos com eventos no espaccedilo e no tempo sendo seu elemento vital

a autoconsciecircncia Para Roselfield

As minhas lembranccedilas emergem da relaccedilatildeo entre meu corpo e a imagem que meu

ceacuterebro tem do meu corpo (uma atividade inconsciente na qual o ceacuterebro constroacutei para si

uma ideia generalizada do corpo ideia que se modifica continuamente) Eacute esta relaccedilatildeo

que cria o senso de lsquosirsquo (DOMENICHETTI 2003 p2)

A fim de corroborar a relaccedilatildeo entre corpo e ceacuterebro estabelecida por Rosenfield

Domenichetti refere-se a Henri Bergson (1859-1941) filoacutesofo e diplomata francecircs cuja obra

destacou-se pelas contribuiccedilotildees no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti

[] o nosso conhecimento da realidade eacute feito de percepccedilotildees impregnadas de

lembranccedilas A memoacuteria de Bergson funciona atraveacutes de operaccedilotildees de coleta de imagens

que progressivamente satildeo produzidas o corpo eacute uma dessas imagens a uacuteltima para ser

exato E se o corpo em geral eacute uma imagem eacute oacutebvio que o eacute tambeacutem o ceacuterebro Este

ligar a percepccedilatildeo a memoacuteria e o corpo com passagens de um a outro atraveacutes da

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dimensatildeo temporal define a construccedilatildeo da funccedilatildeo mental da qual a memoacuteria eacute atributo

fundador como organizaccedilatildeo autoreflexiva que pensa o corpo (DOMENICHETTI 2003

p1)

Pode-se compreender entatildeo corpo e ceacuterebro como palcos onde as imagens da memoacuteria

satildeo encenadas Tais imagens unem-se agraves percepccedilotildees atuais do indiviacuteduo compondo um conjunto

formado pelo antes e o agora ndash passado e presente ndash intrincados Ainda referindo-se agraves

contribuiccedilotildees de Roselfield nesse campo Domenichetti acrescenta

Tambeacutem na visatildeo de Roselfield assim a memoacuteria natildeo pode ser considerada como um

manual de informaccedilotildees mas sobretudo como uma atividade contiacutenua do ceacuterebro Isso se

observa principalmente no caso das imagens Quando recordo a imagem de um evento

da minha infacircncia por exemplo natildeo a extraio de um hipoteacutetico arquivo de imagens

preexistentes devo formar conscientemente uma nova imagem (DOMENICHETTI

2003 p2)

Tais explanaccedilotildees sobre o papel da imagem para a recordaccedilatildeo coincidem com a

perspectiva de Paul Ricoeur em A lembranccedila e a imagem na primeira parte de sua obra jaacute

referida Ele questiona ldquoComo explicar que a lembranccedila retorne em forma de imagem e que a

imaginaccedilatildeo assim mobilizada chegue a revestir-se das formas que escapam agrave funccedilatildeo do irrealrdquo

(RICOEUR 2014 p66)

Para chegar a respostas possiacuteveis ele recorre a Bergson entre outros autores Deste

aponta que ldquoAdoto como hipoacutetese de trabalho a concepccedilatildeo bergsoniana da passagem da

lsquolembranccedila-purarsquo agrave lembranccedila-imagemrdquo (RICOEUR 2014 p67) De acordo com Ricoeur sobre

o trabalho de Bergson ldquoele traz de certo modo a lembranccedila para uma aacuterea de presenccedila

semelhante agrave da percepccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p68) ressaltando da imaginaccedilatildeo o que chama

de ldquofunccedilatildeo visualizanterdquo ou seja ldquosua maneira de dar a verrdquo (RICOEUR 2014 p68) Ricoeur

esclarece que

Eacute como se a forma que Bergson chama intermediaacuteria ou mista da lembranccedila isto eacute a

lembranccedila-imagem a meio-caminho entre lsquolembranccedila-purarsquo e a lembranccedila reinscrita na

percepccedilatildeo no estaacutegio em que o reconhecimento desabrocha no sentimento do deacutejagrave vu

correspondesse a uma forma intermediaacuteria da imaginaccedilatildeo a meio caminho entre a ficccedilatildeo

e a alucinaccedilatildeo a saber o componente imagem da lembranccedila-imagem Portanto eacute

tambeacutem como forma mista que eacute preciso falar da funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo que consiste em

lsquopocircr debaixo dos olhosrsquo funccedilatildeo que podemos chamar ostensiva trata-se de uma

imaginaccedilatildeo que mostra que expotildee que deixa ver (RICOEUR 2014 p70)

Assim o que se tem eacute uma zona de fronteiras pouco demarcadas entre a percepccedilatildeo a

lembranccedila e a imaginaccedilatildeo Ricoeur refere em relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas e diferenccedilas entre as duas

uacuteltimas ldquoCertamente dissemos e repetimos que a imaginaccedilatildeo e a memoacuteria tinham como traccedilo

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comum a presenccedila do ausente e como traccedilo diferencial de um lado a suspensatildeo de toda posiccedilatildeo

de realidade e a visatildeo de um irreal do outro a posiccedilatildeo de um real anteriorrdquo (RICOEUR 2014

p61)

Nesse sentido o papel da percepccedilatildeo eacute o de captar a realidade atraveacutes dos cinco sentidos

para entatildeo formar registros que no futuro seratildeo lembranccedilas As imagens que resgato satildeo

diferentes das que percebi no instante do acontecimento pois se misturam com outros

ingredientes como as emoccedilotildees por exemplo Ricoeur aponta ldquoTeriacuteamos assim a sequecircncia

percepccedilatildeo lembranccedila ficccedilatildeo Um limiar de inatualidade eacute transposto entre lembranccedila e ficccedilatildeordquo

(RICOEUR 2014 p65) Esse limiar de inatualidade expresso por ele como ldquotransposto entre

lembranccedila e ficccedilatildeordquo parece referir-se agrave passagem do tempo que torna as imagens de uma

vivecircncia cada vez mais proacuteximas da imaginaccedilatildeo quanto mais longiacutenquo for o passado

O filoacutesofo Gaston Bachelard em A poeacutetica do espaccedilo ao mencionar as lembranccedilas

associadas ao habitar de uma nova casa expressa o entrelaccedilamento entre a memoacuteria e a

imaginaccedilatildeo

E o devaneio se aprofunda de tal modo que para o sonhador do lar um acircmbito

imemorial se abre para aleacutem da mais antiga memoacuteria A casa como o fogo como a

aacutegua nos permitiraacute evocar na sequecircncia de nossa obra luzes fugidias de devaneio que

iluminam a siacutentese do imemorial com a lembranccedila Nessa regiatildeo longiacutenqua memoacuteria e

imaginaccedilatildeo natildeo se deixam dissociar Ambas trabalham para seu aprofundamento muacutetuo

Ambas constituem na ordem dos valores uma uniatildeo da lembranccedila com a imagem

(BACHELARD 2012 p25)

A relaccedilatildeo entre lembranccedila e imagem em Bachelard encontra-se bem representada atraveacutes

da ideia da casa e do habitar onde esses dois fenocircmenos se fundem Ele menciona a ideia de que

ldquo[] o calendaacuterio da nossa vida soacute pode ser estabelecido em seu processo produtor de imagensrdquo

(BACHELARD 2012 p28) Este calendaacuterio parece ser para o autor as lembranccedilas recordadas

por meio da imagem das cenas vividas e sentidas Bachelard refere que ldquo[] a imagem

estabelece-se numa cooperaccedilatildeo entre o real e o irreal pela participaccedilatildeo da funccedilatildeo do real e da

funccedilatildeo do irrealrdquo (BACHELARD 2012 p73) tecendo uma ligaccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo memoacuteria e

percepccedilatildeo Cabe ressaltar nesse ponto o aspecto de esta uacuteltima ocorrer atraveacutes dos cinco

sentidos veiacuteculo de traduccedilatildeo do mundo externo para o interno Retorna-se ao jaacute apresentado

sobre a relevacircncia do corpo para a memoacuteria Ricoeur menciona a esse respeito

Eacute o elo entre memoacuteria corporal e memoacuteria dos lugares que legitima a tiacutetulo primordial a

dessimplicaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo de sua forma objetivada O corpo constitui desse

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ponto de vista o lugar primordial o aqui em relaccedilatildeo ao qual todos os outros lugares satildeo

laacute (RICOEUR 2014 p59)

Compreender o papel da memoacuteria do corpo conduz agrave identificaccedilatildeo desta dentro da

consciecircncia de si pois diz respeito aos registros deixados pelas vivecircncias com potencial de

serem encenados novamente pelo indiviacuteduo O ato de cozinhar seria um exemplo de como a

memoacuteria corporal faz com que se pratique o ato culinaacuterio como um conhecimento do corpo

muitas vezes executado de forma habitual Ricoeur aponta que ldquo[] a memoacuteria corporal pode ser

lsquoagidarsquo como todas as outras modalidades de haacutebito como a de dirigir um carro que estaacute em meu

poder Ela varia segundo todas as variantes do sentimento de familiaridade ou de estranhezardquo

(RICOEUR 2014 p57) O autor acrescenta

Assim a memoacuteria corporal eacute povoada de lembranccedilas afetadas por diferentes graus de

distanciamento temporal a proacutepria extensatildeo do lapso de tempo decorrido pode ser

percebida sentida na forma de saudade nostalgia [] O momento da recordaccedilatildeo eacute

entatildeo o do reconhecimento (RICOEUR 2014 p57)

Partindo dessa compreensatildeo seria possiacutevel pensar em corpo casa e lugar como espaccedilos

onde a recordaccedilatildeo nasce do mais especiacutefico o corpo ao mais inespeciacutefico o lugar Em todos

esses espaccedilos haacute accedilotildees e vivecircncias que podem constituir lembranccedilas Conforme Ricoeur

A transiccedilatildeo da memoacuteria corporal para a memoacuteria dos lugares eacute assegurada por atos tatildeo

importantes como orientar-se deslocar-se e acima de tudo habitar Eacute na superfiacutecie

habitaacutevel da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado lugares memoraacuteveis

Assim as lsquocoisasrsquo lembradas satildeo intrinsecamente associadas a lugares E natildeo eacute por acaso

que dizemos sobre uma coisa que aconteceu que ela teve lugar Eacute de fato nesse niacutevel

primordial que se constitui o fenocircmeno dos lsquolugares de memoacuteriarsquo (RICOEUR 2014

p57-58)

Essa ideia pode ser corroborada com a perspectiva de Bachelard sobre o habitar

Eacute preciso dizer como habitamos o nosso espaccedilo vital de acordo com todas as dialeacuteticas

da vida como nos enraizamos dia a dia num lsquocanto do mundorsquo

Porque a casa eacute nosso canto do mundo Ela eacute como se diz amiuacutede o nosso primeiro

universo Eacute um verdadeiro cosmos (BACHELARD 2012 p24)

A respeito da relevacircncia da casa para a formaccedilatildeo e o armazenamento das lembranccedilas

Bachelard apresenta contribuiccedilotildees que reforccedilam a visatildeo de Ricoeur sobre o papel dos lugares

para a memoacuteria

Logicamente eacute graccedilas agrave casa que um grande nuacutemero de nossas lembranccedilas estatildeo

guardadas e quando a casa se complica um pouco quando tem um poratildeo e um soacutetatildeo

cantos e corredores nossas lembranccedilas tecircm refuacutegios cada vez mais bem caracterizados

29

A eles regressamos durante toda a vida em nossos devaneios (BACHELARD 2012

p28)

A ideia da memoacuteria associada ao espaccedilo seja corpo casa ou lugar conduz agrave reflexatildeo de

que essa tem uma existecircncia subjetiva interna que eacute representada pelo aspecto objetivo material

externo isso se daacute atraveacutes de vivecircncias associadas sempre a um primeiro espaccedilo o corpoacutereo e a

um segundo mais amplo que eacute o lugar para onde a lembranccedila remete Mais uma vez as

lembranccedilas tecircm imagens de correspondecircncia eacute como se os lugares dessem carne e osso a elas

confirmam sua existecircncia em um tempo e em um espaccedilo que mesmo passado relaciona-se ao

mundo fiacutesico Quanto mais longiacutenquas no tempo mais proacuteximas se encontram da imaginaccedilatildeo

como jaacute visto entretanto ainda assim tecircm um cenaacuterio onde vivem

Examinada como fenocircmeno a memoacuteria tem propriedades que a identificam Ricoeur

estabeleceu trecircs pares de oposiccedilotildees para a compreensatildeo da fenomenologia da memoacuteria o

primeiro deles eacute a dupla haacutebitomemoacuteria sobre a qual refere

O que faz a unidade desse espectro eacute a comunidade da relaccedilatildeo com o tempo Nos dois

casos extremos pressupotildee-se uma experiecircncia anteriormente adquirida mas num caso o

do haacutebito essa aquisiccedilatildeo estaacute incorporada agrave vivecircncia presente natildeo marcada natildeo

declarada como passado no outro caso faz-se referecircncia agrave anterioridade como tal da

aquisiccedilatildeo antiga Nos dois casos por conseguinte continua sendo verdade que a

memoacuteria lsquoeacute do passadorsquo mas conforme dois modos um natildeo marcado outro sim da

referecircncia ao lugar no tempo da experiecircncia inicial

[] A operaccedilatildeo descritiva consiste entatildeo em classificar as experiecircncias relativas agrave

profundidade temporal desde aquelas em que de algum modo o passado adere ao

presente ateacute aquelas em que o passado eacute reconhecido em sua preteridade passada

(RICOEUR 2014 p43)

A segunda dupla de opostos estabelecida por Ricoeur eacute composta pelo par

evocaccedilatildeobusca representado pelos dois trechos abaixo No primeiro a reflexatildeo sobre evocaccedilatildeo

no segundo sobre a busca

1) Entendamos por evocaccedilatildeo o aparecimento atual de uma lembranccedila Eacute a esta que

Aristoacuteteles destinava o termo mneme designando por anamnesis o que chamaremos

mais adiante de busca ou recordaccedilatildeo Ele caracterizava a mneme como pathos como

afecccedilatildeo ocorre que nos lembramos disto ou daquilo nesta ou naquela ocasiatildeo entatildeo

temos uma lembranccedila Portanto eacute em oposiccedilatildeo agrave busca que a evocaccedilatildeo eacute uma

afecccedilatildeo Enquanto tal em outras palavras desconsiderando sua posiccedilatildeo polar a

evocaccedilatildeo traz a carga do enigma que movimentou as investigaccedilotildees de Platatildeo e de

Aristoacuteteles ou seja a presenccedila agora do ausente anteriormente percebido

experimentado aprendido (RICOEUR 2014 p45)

2) Voltemo-nos agora para o outro poacutelo do par evocaccedilatildeobusca Eacute ele que a

denominaccedilatildeo grega da anamnesis designava Platatildeo a mitificara ligando-a a um saber

preacute-natal do qual estariacuteamos afastados por um esquecimento ligado agrave inauguraccedilatildeo da

vida da alma num corpo esquecimento de certo modo natal que faria da busca um

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reaprender do esquecimento Aristoacuteteles [] naturalizou de certo modo a anamnesis

comparando-a agravequilo que na experiecircncia cotidiana chamamos de recordaccedilatildeo [] o

ana de anamnesis significa volta retomada recobramento do que anteriormente foi

visto experimentado ou aprendido portanto de alguma forma significa repeticcedilatildeo

Assim o esquecimento eacute designado obliquamente como aquilo contra o que eacute

dirigido o esforccedilo da recordaccedilatildeo (RICOEUR 2014 p46)

O que Ricoeur propotildee assim com o par evocaccedilatildeobusca eacute a diferenciaccedilatildeo entre a

lembranccedila e a recordaccedilatildeo sendo a primeira segundo ele representativa do surgimento

espontacircneo de um registro gravado na memoacuteria enquanto a segunda seria resultado de uma

procura ativa voluntaacuteria Referindo as ideias de Bergson sobre lsquorecordaccedilatildeo instantacircnearsquo e

lsquorecordaccedilatildeo laboriosarsquo aponta a distinccedilatildeo ldquo[] podendo a recordaccedilatildeo instantacircnea ser considerada

como o grau zero da busca e a recordaccedilatildeo laboriosa e a recordaccedilatildeo laboriosa como sua forma

expressardquo (RICOEUR 2014 p46) Assim a lembranccedila viria de uma evocaccedilatildeo proacutexima ao que

Ricoeur chama de lsquoautomatismorsquo e lsquorecordaccedilatildeo mecacircnicarsquo diferente da recordaccedilatildeo que viria lsquoda

reflexatildeo da reconstituiccedilatildeo inteligentersquo estando ambas ldquo[] intimamente mescladas na

experiecircncia comumrdquo (RICOEUR 2014 p46) Por fim com relaccedilatildeo a esse par Ricoeur refere

Eacute de fato o esforccedilo de recordaccedilatildeo que oferece a melhor ocasiatildeo de fazer lsquomemoacuteria do

esquecimentorsquo para falar com antecipaccedilatildeo como Santo Agostinho A busca da

lembranccedila comprova uma das finalidades principais do ato de memoacuteria a saber lutar

contra o esquecimento arrancar alguns fragmentos de lembranccedila agrave lsquorapacidadersquo do

tempo (Santo Agostinho dixit) ao lsquosepultamentorsquo no esquecimento Natildeo eacute somente o

caraacuteter penoso do esforccedilo de memoacuteria que daacute agrave relaccedilatildeo sua coloraccedilatildeo inquieta mas o

temor de ter esquecido de esquecer de novo de esquecer amanhatilde de cumprir esta ou

aquela tarefa porque amanhatilde seraacute preciso natildeo esquecer [] de se lembrar (RICOEUR

2014 p48)

A terceira dupla de opostos proposta por Ricoeur em sua fenomenologia da memoacuteria eacute

constituiacuteda pela polaridade reflexividademundanidade A respeito do elemento reflexividade

Ricoeur esclarece

Natildeo nos lembramos somente de noacutes vendo experimentando aprendendo mas das

situaccedilotildees do mundo nas quais vimos experimentamos aprendemos Tais situaccedilotildees

implicam o proacuteprio corpo e o corpo dos outros o espaccedilo onde se viveu enfim o

horizonte do mundo e dos mundos sob o qual alguma coisa aconteceu Entre

reflexividade e mundanidade haacute mesmo uma polaridade na medida em que a

reflexividade eacute um rastro irrecusaacutevel da memoacuteria em sua fase declarativa algueacutem diz

lsquoem seu coraccedilatildeorsquo que viu experimentou aprendeu anteriormente sob esse aspecto nada

deve ser negado sobre o pertencimento da memoacuteria agrave esfera de interioridade

(RICOEUR 2014 p53-54)

A mundanidade por sua vez constitui um elemento significativo no estudo deste

capiacutetulo uma vez que contempla a existecircncia dos rituais atraveacutes da abordagem do fenocircmeno da

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comemoraccedilatildeo Ricoeur o associa agrave ldquo[] gestualidade corporal e agrave espacialidade dos rituais que

acompanham os ritmos temporais da celebraccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p60) A associaccedilatildeo do ato

de comemoraccedilatildeo com os rituais eacute explicada por ele

Natildeo haacute efetuaccedilatildeo ritual sem a evocaccedilatildeo de um mito que orienta a lembranccedila para o que eacute

digno de ser comemorado As comemoraccedilotildees satildeo assim espeacutecies de evocaccedilotildees no

sentido de reatualizaccedilatildeo eventos fundadores apoiados pelo lsquochamadorsquo a lembrar-se que

soleniza a cerimocircnia- comemorar observa Casey eacute solenizar tomando seriamente o

passado e celebrando-o em cerimocircnias apropriadas (RICOEUR 2014 p60)

A partir da reflexatildeo de Ricoeur sobre o par reflexividademundanidade e neste uacuteltimo

elemento a presenccedila do ritual cabe salientar o estudioso Mircea Eliade Este em sua obra Mito e

Realidade apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o mito

O mito conta uma histoacuteria sagrada ele relata um acontecimento ocorrido no tempo

primordial o tempo fabuloso do lsquoprinciacutepiorsquo Em outros termos o mito narra como

graccedilas agraves faccedilanhas dos Entes Sobrenaturais uma realidade passou a existir seja uma

realidade total o Cosmo ou apenas um fragmento uma ilha uma espeacutecie vegetal um

comportamento humano uma instituiccedilatildeo Eacute sempre portanto a narrativa de uma

lsquocriaccedilatildeorsquo ele relata de que modo algo foi produzido e comeccedilou a ser O mito fala apenas

do que realmente ocorreu do que se manifestou plenamente (ELIADE 2011 p11)

A relevacircncia dessa consideraccedilatildeo reside em corroborar que ldquo[] pelo fato de relatar as

gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestaccedilatildeo dos seus poderes sagrados o mito se torna o

modelo exemplar de todas as atividades humanas significativasrdquo (ELIADE 2011 p12) A

comemoraccedilatildeo enseja o rito que reencena o mito por isso eacute mencionada na explanaccedilatildeo de Ricoeur

quando se refere aos rituais Mircea Eliade esclarece ldquo[] a principal funccedilatildeo do mito consiste em

revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas tanto a

alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE

2011 p12) Compreende-se assim a comemoraccedilatildeo como a reuniatildeo de grupo ou de um povo

para celebrar a memoacuteria conjunta de seus membros em torno de uma finalidade o rito cuja

origem estaacute no evento original o mito A ideia impliacutecita neste caso eacute a de celebrar em conjunto

a memoacuteria de algo ou seja co-memorar A fim de reforccedilar essa reflexatildeo apontamos outra

explanaccedilatildeo de Eliade

Para o homem das sociedades arcaicas ao contraacuterio o que aconteceu ab origine pode ser

repetido atraveacutes do poder dos ritos Para ele portanto o essencial eacute conhecer os mitos

Essencial natildeo somente porque os mitos lhe oferecem uma explicaccedilatildeo do Mundo e de seu

proacuteprio modo de existir no Mundo mas sobretudo porque ao rememorar os mitos e

reatualiza-los ele eacute capaz de repetir o que os Deuses os Heroacuteis e os Ancestrais fizeram

ab origine Conhecer os mitos eacute aprender o segredo da origem das coisas Em outros

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termos aprende-se natildeo somente como as coisas vieram agrave existecircncia mas tambeacutem onde

encontra-las e como fazer com que reapareccedilam quando desaparecem (ELIADE 2011

p18)

No contexto do presente capiacutetulo interessa ressaltar a compreensatildeo do ritual como

celebraccedilatildeo de uma memoacuteria ancestral por parte de um grupo A ancestralidade dessa memoacuteria

tem em sua raiz o mito que lhe deu origem Tal entendimento tem associaccedilatildeo com o cozinhar e

com o partilhar o alimento com a reuniatildeo da famiacutelia em torno da comida e com a repeticcedilatildeo das

praacuteticas culinaacuterias que mesmo evoluindo ao longo do tempo remontam o primordial tornar cru

em cozido Outro elemento ligado agrave realizaccedilatildeo de rituais associados agrave cozinha estaacute na recitaccedilatildeo

do modo de fazer um prato quando transmitido atraveacutes de uma receita escrita O caminho que

essa percorre entre as geraccedilotildees de uma famiacutelia eacute emblemaacutetico de sua forccedila ritualiacutestica como se

carregasse de forma transgeracional a memoacuteria desse grupo atraveacutes do como-se-faz de uma

determinada praacutetica

Antes da existecircncia da receita no caderno o conhecimento empiacuterico dos antepassados

sobre o fazer culinaacuterio era ensinado oralmente e atraveacutes do proacuteprio fazer quando recitaccedilotildees eram

feitas para que o prato saiacutesse a contento essas eram assim a representaccedilatildeo do ritual naquele

grupo familiar Nesse sentido retomamos Eliade em sua explicaccedilatildeo sobre a recitaccedilatildeo do mito

Em Timor por exemplo quando germina um arrozal dirige-se ao campo algueacutem que

conhece as tradiccedilotildees miacuteticas referentes ao arroz [] Recitando o mito de origem

obriga-se o arroz a crescer tatildeo belo vigoroso e abundante como era quando apareceu

pela primeira vez Natildeo eacute com o fim de lsquoinstruiacute-lorsquo ou ensinar-lhe a maneira como deve

comportar-se que o oficiante lembra ao arroz o modo como foi criado Ele o forccedila

magicamente a retornar agrave origem isto eacute a reiterar sua criaccedilatildeo exemplar (ELIADE

2011 p19)

Esses conhecimentos eram transmitidos junto com a receita ou seja eram parte da

memoacuteria daquele prato em seu papel na tradiccedilatildeo familiar Vale lembrar que a etimologia de

receita estaacute no latim recepta alusivo a receber expressa entatildeo aquilo que se recebe em termos

de ensinamento sobre o fazer de uma comida especiacutefica Haacute diversas expressotildees no folclore da

cozinha que remontam a transmissatildeo do saber culinaacuterio em uma cultura

Haacute diferenccedila entre a memoacuteria individual essa que nos identifica como indiviacuteduos e a

memoacuteria coletiva Como exemplo da uacuteltima cito esse lsquosaber culinaacuterio em uma culturarsquo que

remete agrave compreensatildeo sobre a memoacuteria coletiva no contexto deste capiacutetulo Esta assim como a

individual tem em seu eixo a noccedilatildeo de identidade no caso da memoacuteria de um indiviacuteduo como jaacute

visto refere-se agrave consciecircncia de si mesmo como base daquilo de que ele eacute capaz de se lembrar

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para que as lembranccedilas sejam suas no caso da memoacuteria coletiva este eixo estaacute na identidade do

grupo que a conteacutem pois a memoacuteria e o grupo alimentam-se reciprocamente o grupo se manteacutem

vivo pelas memoacuterias enquanto essas permanecem presentes pela unidade do grupo

A respeito dessa inter-relaccedilatildeo a pesquisadora e professora alematilde Aleida Assmann no

livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo-formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural menciona as ideias

de Maurice Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva referindo que ldquo[] a memoacuteria coletiva assegura

a singularidade e a continuidade de um grupordquo (ASSMANN 2011 p144) e esclarece

Seu interesse voltou-se apenas agrave pergunta sobre o que manteacutem as pessoas unidas em

grupos Deparou assim com o significado agregador das lembranccedilas em comum como

importante elemento de coesatildeo Derivou daiacute a noccedilatildeo da existecircncia de uma lsquomemoacuteria de

gruporsquo Mas as lembranccedilas natildeo se estabilizam somente no grupo O grupo torna estaacuteveis

as lembranccedilas A investigaccedilatildeo de Halbwachs em torno dessa lsquomemoacuteria coletivarsquo resultou

no seguinte a estabilidade da memoacuteria coletiva estaacute vinculada de maneira direta agrave

composiccedilatildeo e subsistecircncia do grupo Se o grupo se dissolve os indiviacuteduos perdem em

sua memoacuteria a parte de lembranccedilas que os fazia assegurarem-se e identificarem-se como

grupo (ASSMANN 2011 p144)

A referecircncia agrave memoacuteria ligada agrave manutenccedilatildeo de um grupo remete novamente agrave ideia no

acircmbito das vivecircncias culinaacuterias das receitas de cozinha transmitidas entre as geraccedilotildees de uma

mesma famiacutelia O elemento que sustenta a presenccedila dessa receita no grupo eacute a memoacuteria que este

tem a respeito do lsquocomo-se-fazrsquo de uma determinada comida Enquanto houver membros dessa

famiacutelia que se interessem em manter a tradiccedilatildeo daquele determinado sabor a memoacuteria seraacute

mantida ao mesmo tempo enquanto houver essa memoacuteria a integraccedilatildeo do grupo permaneceraacute

Segundo Aleida Assmann

Os estudos do historiador francecircs Pierre Nora demonstraram que por traacutes da memoacuteria

coletiva natildeo haacute alma coletiva nem espiacuterito coletivo algum mas tatildeo somente a sociedade

com seus signos e siacutembolos Por meio dos siacutembolos em comum o indiviacuteduo toma parte

de uma memoacuteria e de uma identidade tidas em comum Nora cumpriu na teoria da

memoacuteria o passo que vai do grupo vinculado na coexistecircncia espaccedilo-temporal tema

estudado por Halbwachs agrave comunidade abstrata que se define por meio dos siacutembolos

que abrangem e agregam em niacutevel espacial e temporal Os portadores dessa memoacuteria

coletiva natildeo precisam conhecer-se para apesar disso reinvindicar para si uma identidade

comum (ASSMANN 2011 p145)

Assim como referido sobre o papel de uma receita de famiacutelia como elemento de coesatildeo

entre os membros da mesma atraveacutes das geraccedilotildees situaccedilatildeo semelhante pode ocorrer em relaccedilatildeo

a um determinado ingrediente ou preferecircncia alimentar A transmissatildeo de um saber culinaacuterio e

dos gostos de uma famiacutelia tambeacutem satildeo aspectos que se perpetuam no grupo em funccedilatildeo da

memoacuteria que agrega seus integrantes

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A memoacuteria individual entatildeo manteacutem a identidade por dar ao indiviacuteduo sua caracteriacutestica

singular atraveacutes do tempo nela estatildeo suas impressotildees lembranccedilas e registros que compotildeem a

noccedilatildeo de permanecircncia de quem ele eacute ou seja reforccedilam nele a consciecircncia do eu na duraccedilatildeo de

ciclos que se perpetuam Ele sabe quem eacute em grande parte pelas lembranccedilas que tem de si

Circunstacircncia anaacuteloga ocorre com a memoacuteria coletiva em que o grupo se manteacutem coeso pela

consciecircncia de ser um grupo com lembranccedilas em comum o papel dessas eacute exatamente o de

manter a unidade e a permanecircncia da identidade do conjunto

A memoacuteria individual e a coletiva estatildeo portanto implicadas na vivecircncia culinaacuteria

relaccedilotildees a serem exploradas na divisatildeo que segue

13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO

A relaccedilatildeo entre cozinha e memoacuteria existe devido agrave linguagem Avanccedilando nessa

perspectiva Mariano Garciacutea e Mariana Dimoacutepulos compiladores da obra Escritos sobre la mesa-

Literatura y comida afirmam que ldquo[] a relaccedilatildeo entre linguagem e comida comeccedila desde o

momento em que graccedilas agrave escritura se conservam notiacutecias de como se comia na Antiguidaderdquo

(GARCIacuteA DIMOacutePULOS 2014 p9) Toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo assim eacute conhecida em

virtude do que se registrou ao longo das eacutepocas sob os mais diversos veiacuteculos Esse aspecto eacute

relevante tanto do ponto de vista de Histoacuteria da Humanidade quanto daquele das histoacuterias

familiares atraveacutes de escritos transmitidos de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Em ambos os exemplos os

escritos culinaacuterios satildeo representativos da memoacuteria coletiva

Ainda no que concerne a essa memoacuteria salientamos que ela tem tambeacutem outras

expressotildees presentes no acircmbito identitaacuterio de uma cultura De acordo com Daniela Bunn em sua

obra O alimento na literatura uma questatildeo cultural ldquo[] satildeo assim criados em torno da mesa

modos maneiras e ingredientes que estabelecem uma identidade cultural destinada a representar

um grupo e sua identidaderdquo (BUNN 2016 p28) Tais lsquomodos maneiras e ingredientesrsquo satildeo

elementos que constituem parte da bagagem que pertence a um grupo e agraves geraccedilotildees seguintes

atraveacutes da memoacuteria coletiva Podemos citar como exemplos os ensinamentos culinaacuterios

aprendidos atraveacutes de gestos e de relatos orais e as preferecircncias alimentares de uma famiacutelia ou de

um povo

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Visitando cadernos de receitas antigos que pertenceram a avoacutes matildees e tias percebemos

uma caracteriacutestica em comum a todos eles o elenco de ingredientes com suas medidas e a breve

descriccedilatildeo do lsquocomo-se-fazrsquo apenas para guiar a praacutetica Parece-nos inclusive que eram

anotaccedilotildees que elas faziam para si mesmas para que natildeo esquecessem de um ou outro detalhe e

natildeo registros para serem transmitidos na famiacutelia Ensinavam sim mas in loco na hora em que

estivessem fazendo Mostravam caracteriacutesticas no aspecto do prato sendo feito apontavam para

os ruiacutedos da cebola fritando faziam sentir a textura de uma massa de patildeo o cheiro de um doce

exalando pela cozinha denunciavam a pitada de sal que ainda faltava no arroz soacute de provarem

com a ponta da colher Como sabiam Porque lembravam pelo que um dia aprenderam e mais do

que isso lembravam pelo haacutebito pelo praticar e de forma mais vivencial pelo sentir atraveacutes dos

cinco sentidos

Em Pequeno alfarraacutebio de acepipes e doccediluras haacute um capiacutetulo dedicado agrave cozinha das

avoacutes intitulado lsquoNossas avoacutesrsquo cujo propoacutesito eacute o de refletir de modo especiacutefico sobre a cozinha

que atravessa a memoacuteria e permanece como registro vivo pela referecircncia ao papel que estas

desempenham na memoacuteria de muitas pessoas Os pratos e doces feitos por elas as avoacutes de tantas

geraccedilotildees tornam-se parte das lembranccedilas que deixam na famiacutelia Aleacutem disso as receitas das avoacutes

satildeo emblemaacuteticas da memoacuteria que se manteacutem viva atraveacutes de um grupo que a alimenta a

memoacuteria coletiva conforme referida por Aleida Assmann ao mencionar as ideias de Maurice

Halbwachs

Um dos aspectos mais relevantes dessa lsquocozinha das avoacutesrsquo eacute o modo como tinham no

corpo o conhecimento da praacutetica culinaacuteria No texto lsquoA memoacuteria nas matildeosrsquo eacute referido esse

aspecto

No caso da Voacute Leacuteia e de tantas avoacutes da eacutepoca acho que tinham a memoacuteria nas matildeos

com tudo o que aprendiam e praticavam vida afora No entanto a sabedoria vai aleacutem

Acredito que sentissem vivamente nas etapas os cheiros gostos sons do alimento

aspecto textura pulsaccedilatildeo As matildeos preparavam mas todo corpo participava do feito

culinaacuterio Prestavam atenccedilatildeo estavam de fato presentes na tarefa E assim a memoacuteria era

lsquocarimbadarsquo nas matildeos nos cinco sentidos na emoccedilatildeo de um sabor que alegrava a

cozinha (CARDOSO 2012 p61)

O elemento determinante da memoacuteria das avoacutes cuja vivecircncia culinaacuteria era cotidiana e de

valor reconhecido entre os familiares eacute a praacutetica Sabiam fazer e muitas vezes de modo

intuitivo adaptavam e ateacute criavam receitas por esse conhecimento A lsquomemoacuteria nas matildeosrsquo

consistia em identificar pelo tato que a massa do patildeo estava no ponto quando a pele assim

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determinava E reconheciam isso por um dia ter aprendido mas principalmente porque apoacutes

tantas repeticcedilotildees do lsquocomo-se-fazrsquo foi a pele que passou a identificar este ponto ainda antes do

conhecer cognitivo Tal reflexatildeo conduz ao que refere Ricoeur sobre o par haacutebitomemoacuteria

quando o primeiro elemento do par alude agraves circunstacircncias em que o passado adere ao presente

Um saber adquirido eacute mantido em praacutetica o que torna sua lembranccedila como um fator que integra a

atualidade do fazer e natildeo apenas o passado

Esta memoacuteria das avoacutes que mantinham vivo um modo de conhecer o ato culinaacuterio como

parte de seu saber vivencial ilustra com nitidez a ideia da memoacuteria coletiva jaacute que seu saber era

compartilhado em seu tempo natildeo pela receita escrita mas pela forma como esse era sentido e

atuado na cozinha Agrave medida que as geraccedilotildees que detinham esses conhecimentos antigos foram

terminando suas memoacuterias de forno-e-fogatildeo construiacutedas pela accedilatildeo e pelos sentidos agrave beira do

fogo ou do balcatildeo foram deixando de existir O que ficou para as geraccedilotildees seguintes foi o

conjunto de receitas escritas mas essas natildeo substituem a riqueza de um fazer empiacuterico intuitivo

recordado no corpo

O escritor e pesquisador Michael Pollan faz uma referecircncia interessante nesse sentido ao

advertir que natildeo se deve comer nada que a avoacute natildeo chamaria de comida Essa expressatildeo proposta

no fulcro de uma culinaacuteria dirigida para fora dos lares e feita de alimentos muitas vezes pouco ou

nada saudaacuteveis chama a atenccedilatildeo para o reconhecimento das avoacutes como detentoras de um saber

uacutenico aquele da lsquocomida de verdadersquo

Avoacutes matildees e tias satildeo personagens de grande relevacircncia no aprendizado de cozinha das

geraccedilotildees seguintes Eacute possiacutevel que isso se deva a seu papel ancestral de transmissatildeo de um saber

especiacutefico A memoacuteria dos antepassados constitui o alicerce a fundamentaccedilatildeo da famiacutelia a partir

de experiecircncias e de saberes que um dia foram vivenciados para serem entatildeo narrados ao longo

do tempo agraves proacuteximas geraccedilotildees O socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da

culinaacuteria brasileira tece uma relevante consideraccedilatildeo a esse respeito ldquoOs saberes culinaacuterios

evoluiacuteram como uma heranccedila que se transmite matrilinearmente ndash e os cadernos de receitas das

avoacutes satildeo uma sobrevivecircncia persistente dessa diretrizrdquo (DOacuteRIA 2014 p206)

Doacuteria aborda outro elemento significativo na contribuiccedilatildeo com o papel da memoacuteria na

cozinha a corporeidade Esse fator representa o proacuteprio ato culinaacuterio que eacute exercido pelo corpo

Eacute nele que reside a memoacuteria dos movimentos e dos gestos implicados no preparo do alimento

como bater claras sovar a massa do patildeo picar a cebola etc Neste sentido o autor refere

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O corpo eacute tradicionalmente o principal instrumento do fazer culinaacuterio As ferramentas

da faca ao mais sofisticado equipamento utilizado na culinaacuteria molecular satildeo em geral

expedientes que visam economizar gestos ou conferir-lhes maior precisatildeo mas o

empenho fiacutesico com destreza eacute o primeiro responsaacutevel pelos resultados alcanccedilados []

(DOacuteRIA 2014 p216)

Essa reflexatildeo significa na compreensatildeo da memoacuteria ligada agrave cozinha que eacute o corpo o

principal responsaacutevel pela praacutetica culinaacuteria incluindo qualidades como a destreza mencionada

por Doacuteria A faca poderaacute cortar bem estar afiada mas se o corpo natildeo souber usaacute-la isso de nada

adiantaraacute Tal ponto nos remete agrave ideia da memoacuteria do corpo referida por Ricoeur no que tange

a uma espeacutecie de memoacuteria que pode ser agida na praacutetica habitual do indiviacuteduo fazendo parte de

sua identidade ter domiacutenio de um dado ato culinaacuterio daacute a algueacutem a consciecircncia de que sabe

fazer de que se lembra de que aquele saber eacute parte de si

Assim o ato culinaacuterio aprendido tanto por livros de receitas como pela transmissatildeo oral

por familiares representa a memoacuteria coletiva quando esse ato eacute praticado rotineiramente pelo

sujeito que aprendeu isto contribui para a consciecircncia de si representando o papel da memoacuteria

individual Cabe ressaltar tambeacutem a presenccedila da memoacuteria ancestral que acompanha as vivecircncias

de cozinha A esse propoacutesito Doacuteria refere que ldquoAssim lsquofazer para o outrorsquo ndash essa doaccedilatildeo atraveacutes

de um intermediaacuterio ao mesmo tempo material e simboacutelico como eacute a comida ndash permanece a

marca feminina do cozinhar desde os primeiros tempos da humanidaderdquo (DOacuteRIA 2014 p221)

Tal constataccedilatildeo reforccedila o papel ancestral das avoacutes matildees e tias na transmissatildeo do saber culinaacuterio

A postagem do blog Serendipity in Cucina traz no relato memorialiacutestico sobre a vivecircncia

de sua autora reflexatildeo sobre o componente ritualiacutestico do cozinhar

Haacute alguns anos decidi comeccedilar a fazer a chimia de uvas lsquoda Voacute Leacuteiarsquo a partir das

lembranccedilas que tenho do fazer de minha avoacute materna a quem assisti preparando o doce

inuacutemeras vezes Os dados sobre as proporccedilotildees tais como igual peso das cascas de uva e

do accediluacutecar e aacutegua que cubra soube por uma prima mas meu objetivo principal era o de

seguir a memoacuteria mais de vinte anos depois da uacuteltima vez que a vi fazendo o doce

Entatildeo sempre no veratildeo na eacutepoca dessas uvas repito a experiecircncia Fico em frente agrave

caccedilarola e a coloco em fogo baixo depois da fervura mexendo com a colher de pau em

giros lentos e precisos Percebo a mudanccedila atraveacutes da resistecircncia que o composto faz agrave

colher e assim progressivamente o fazer demanda mais forccedila do braccedilo direito Presto

atenccedilatildeo ao aspecto o roxo cintilante do iniacutecio torna-se mais opaco e fechado o brilho

das cascas da uva Isabel com que eacute feita a chimia diminui agrave medida que essa se

aproxima do resultado final O aroma toma conta da casa toda de forma insidiosa

Identifico que estaacute pronta pela consistecircncia reconheccedilo este momento porque a imagem

de minha avoacute em seus giros da colher de pau eacute parte de minha memoacuteria bem como a

lembranccedila das etapas da receita Quando repito seu movimento com semelhante

vagarosidade e empenho faccedilo-o pela lembranccedila do que assisti entretanto eacute provaacutevel

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que a repeticcedilatildeo se deva tambeacutem ao ritual em que consiste o cozinhar O proacuteprio fato de

estar agrave frente do fogo preparando o alimento eacute por si um ritual (CARDOSO 2015)

Assim o papel da ancestralidade manifesta-se no modo como se vivencia o contato com a

comida tanto no cozinhar quanto no comer e no partilhar a refeiccedilatildeo pessoas afins ou seja esses

atos configuram-se como rituais Retomamos as contribuiccedilotildees de Mircea Eliade para corroborar

essa compreensatildeo especialmente sua referecircncia de que

Apesar das modificaccedilotildees sofridas no decorrer dos tempos os mitos dos lsquoprimitivosrsquo

ainda refletem um estado primordial Trata-se ademais de sociedades onde os mitos

ainda estatildeo vivos onde fundamentam e justificam todo o comportamento e toda a

atividade do homem (ELIADE 2011 p10)

O fazer a comida e aquele do sentar agrave mesa para compartilhaacute-la satildeo desta forma rituais

que praticamos como seres humanos reencenando mitos A expressatildeo dos rituais estaacute em uma

memoacuteria coletiva ancestral que evocamos nessas praacuteticas

Em suma os mitos descrevem as diversas e algumas vezes dramaacuteticas irrupccedilotildees do

sagrado (ou do lsquosobrenaturalrsquo) no Mundo Eacute essa irrupccedilatildeo do sagrado que realmente

fundamenta o Mundo e o converte no que eacute hoje E mais eacute em razatildeo das intervenccedilotildees

dos Entes Sobrenaturais que o homem eacute o que eacute hoje um ser mortal sexuado e cultural

(ELIADE 2011 p11)

No que concerne agrave praacutetica da cozinha tambeacutem o cumprimento de uma receita traz um ato

de recitaccedilatildeo especialmente na parte que se refere ao lsquomodo de fazerrsquo o que conduz agrave reflexatildeo de

que tambeacutem esta eacute parte do ritual que envolve a produccedilatildeo da comida Fala-se em seguir a receita

no sentido de obedececirc-la Ao ler as orientaccedilotildees o que se lecirc eacute a presenccedila de verbos especiacuteficos do

fazer culinaacuterio conjugados no modo imperativo corte refogue asse e assim por diante Este

recitar que muitas vezes eacute falado em voz baixa enquanto se prepara um prato eacute em si um ato

inerente ao fazer culinaacuterio A respeito da recitaccedilatildeo Eliade aponta que

Na maioria dos casos natildeo basta conhecer o mito da origem eacute preciso recitaacute-lo em certo

sentido eacute uma proclamaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo do proacuteprio conhecimento E natildeo eacute soacute

recitando ou celebrando o mito de origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela

atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos O tempo miacutetico

das origens eacute um tempo lsquofortersquo porque foi transfigurado pela presenccedila ativa e criadora

dos Entes Sobrenaturais Ao recitar os mitos reintegra-se agravequele tempo fabuloso e a

pessoa torna-se consequentemente lsquocontemporacircnearsquo de certo modo dos eventos

evocados compartilha da presenccedila dos Deuses ou dos Heroacuteis Numa foacutermula sumaacuteria

poderiacuteamos dizer que ao ldquoviverrdquo os mitos sai-se do tempo profano cronoloacutegico

ingressando num tempo qualitativamente diferente um tempo lsquosagradorsquo ao mesmo

tempo primordial e indefinidamente recuperaacutevel (ELIADE 2011 p21)

39

Carlos Alberto Doacuteria faz uma relevante reflexatildeo sobre a receita culinaacuteria contemplando a

perspectiva desde sua origem ateacute o modo como eacute vista atualmente

Considerando as diferenccedilas tecnoloacutegicas as receitas satildeo sempre prescriccedilotildees sobre o

modo de proceder na cozinha assim como as receitas farmacecircuticas satildeo prescriccedilotildees a

respeito de como os farmacecircuticos devem proceder em seus laboratoacuterios Do ponto de

vista geral ao apontar a unidade receita-cozinha e o modo de lsquoaviamentorsquo estamos

considerando que essa unidade estaacute incrustrada nas demais instituiccedilotildees como a religiatildeo

a famiacutelia o Natal etc (DOacuteRIA 2009 p141)

A receita culinaacuteria eacute entatildeo parte do ritual que envolve as vivecircncias alimentares seja

cozinhar ou comer aleacutem disso essa constitui um relevante material como documento para a

memoacuteria de um local e de uma eacutepoca pois traz em seu vocabulaacuterio e nas accedilotildees que determina

elementos de identificaccedilatildeo que permitem caracterizar sua origem e periacuteodo de vigecircncia A receita

porta consigo a memoacuteria coletiva do contexto de que se origina bem como a memoacuteria

individual de quem a escreve em seu caderno de cozinha e a de quem reconhece nos livros de

receitas pratos que jaacute experimentou

Doacuteria aponta a respeito da memoacuteria implicada nesse tipo de material um aspecto

interessante sobre o papel da memoacuteria contida nos livros culinaacuterios O autor fala a respeito de um

renomado chef internacional Paul Bocuse que eacute contraacuterio agrave praacutetica de receitas lsquoagrave riscarsquo tendo

escrito um livro assim Doacuteria aponta que o chef faz uma ressalva em sua obra orientando ao

leitor que natildeo leve seu conteuacutedo demasiadamente a seacuterio e que ouccedila uma lsquoforccedila desconhecidarsquo

como a inspiraccedilatildeo o que ldquo[] garantiraacute melhores resultados praacuteticosrdquo (DOacuteRIA 2009 p144)

Consideramos por fim que Bocuse tambeacutem estaacute a nos dizer que as suas receitas satildeo

apenas e modestamente o seu modo de fazer aquele prato ou seja elas contecircm a

memoacuteria do seu trabalho como estilo e valor testemunhal e- tambeacutem de modo a

determinar- o livro eacute seu meio de propagaccedilatildeo Visto assim o livro de receitas eacute um

registro de memoacuteria do trabalho que possam ter alguma utilidade para os leitores []

(DOacuteRIA 2009 p144)

Aleacutem dessa referecircncia a Bocuse Doacuteria aponta criticamente a funccedilatildeo da receita para os

que a seguem ldquoEntatildeo se pararmos um minuto para pensar veremos que a receita dentro da

cozinha tem o status de um texto sagrado que nos reduz agrave condiccedilatildeo de seus exagetas

independentemente do grau de preparaccedilatildeo que tenhamos nessa singular teologia alimentarrdquo

(DOacuteRIA 2009 p142) Esse respeito ao texto sagrado eacute de certa forma o cumprimento da

memoacuteria coletiva transmitida atraveacutes dos documentos escritos denominados receitas ao longo do

tempo nessa transmissatildeo ocorrem transformaccedilotildees na forma de execuccedilatildeo dos alimentos

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conforme as modificaccedilotildees culturais de cada eacutepoca ou seja cada periacuteodo e lugar tem seu modo de

interpretar e de realizar as receitas culinaacuterias de acordo com os produtos oferecidos e com as

teacutecnicas vigentes Doacuteria menciona

Por isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculos e as modificaccedilotildees que

introduzimos nas receitas satildeo apenas formas do patildeo continuar existindo mediante as

transformaccedilotildees das receitas Por isso quando seguimos agrave risca uma receita de patildeo natildeo

queremos fazer o patildeo mas uma versatildeo do patildeo que uma tradiccedilatildeo qualquer elaborou

(DOacuteRIA 2009 p147)

Tecidas as consideraccedilotildees a respeito do fazer culinaacuterio consolidado pela memoacuteria coletiva

vale refletir sobre o modo como ele eacute vivenciado atraveacutes da memoacuteria individual Ao contar sobre

a chimia de uvas de sua avoacute apontamos que assistir a seu modo de praticaacute-la foi para a autora o

percurso para aprender a fazecirc-la O lsquocomo-se-fazrsquo guarda as lembranccedilas oriundas da praacutetica

vivenciada pelo ofiacutecio dos cinco sentidos e pelo assistir aos gestos do corpo como os giros lentos

da colher de pau feitos pela avoacute E por tantas outras avoacutes matildees e tias

Assim a memoacuteria coletiva de uma receita culinaacuteria a chimia de uvas Isabel na maneira

como era repetida por muitas pessoas de uma eacutepoca tornou-se tambeacutem memoacuteria individual

Passou a ser parte da identidade da autora do blog pois representa um ponto de identificaccedilatildeo com

sua avoacute pela recordaccedilatildeo marcante de assisti-la fazendo esse doce por isso decidiu fazecirc-lo tempos

depois de seu falecimento seguindo as lembranccedilas do seu fazer A memoacuteria a respeito dos doces

produzidos por ela eacute tatildeo significativa que estaacute registrada em uma crocircnica especiacutefica no jaacute citado

Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e Doccediluras lsquoAs deliacutecias nos vidros de cafeacutersquo a qual

reproduzimos abaixo

Na casa de praia da Voacute Leacuteia e do Vocirc Heacutelio havia milhares de encantos espalhados mas

a cozinha era meu favorito A mesa retangular generosa e lsquoconvidadeirarsquo contava um

universo de histoacuterias de faacutebulas e de sabores mas o que dava uma graccedila especial ao

conjunto era o armaacuterio proacuteximo agrave porta para a varanda Em suas estantes na parte

superior enfeites e guloseimas ali moravam os potes de rapadura de leite

constantemente abastecidos pela voacute Na parte inferior duas portas abriam um territoacuterio

uacutenico respirante Ali vidros de cafeacute daqueles grandes com tampas vermelhas

guardavam geleias chimias e compotas que ela fazia durante o veraneio

Deixaacutevamos para depois a ideia de pedir as receitas tiacutenhamos o propoacutesito de ficar ao

lado quando o panelatildeo estava no fogo tomando nota do lsquocomo-se-fazrsquo mas sem muita

obstinaccedilatildeo Afinal de contas a Voacute estava ali e era a uacutenica que sabia o tim-tim por tim-

tim do ponto das cores dos cheiros que seus feitos adquiriam a cada etapa Entatildeo

tiacutenhamos a fantasia de que ela estaria para sempre renovando as deliacutecias nos vidros de

cafeacute com alquimias de aboacutebora de laranja de uva [] nossa imaginaccedilatildeo percorria

lonjuras no tempo acreditando que seu fazer dos doces seria perene Agora refletindo

sobre por que natildeo peguei nenhuma de suas receitas por que natildeo anotava cada detalhe

41

ocorre-me que esta era uma forma de garantir que ela permaneceria no ofiacutecio que eu

poderia eternamente aprender com ela a fazer suas reliacutequias

Hoje soacute o moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhas conhece o segredo daquelas

inquilinas (CARDOSO 2012 p62)

No texto lecirc-se lsquoo moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhasrsquo mas esse moacutevel eacute a

proacutepria memoacuteria guardando lembranccedilas representadas como lsquoo segredo daquelas inquilinasrsquo A

memoacuteria individual conteacutem segredos pontos que com o passar do tempo natildeo satildeo contados de

acordo com a realidade vivida mas apenas com aquela lembranccedila que permanece atraveacutes das

imagens e de sentimentos muito do que foi percebido nos escapa deixando as cenas como se as

viacutessemos atraveacutes de um vidro embaccedilado Esses satildeo os lsquosegredosrsquo que as portinhas do moacutevel da

cozinha silenciam

Nesse aspecto retomamos a consideraccedilatildeo de Eugegravene Minkowski sobre a memoacuteria

quando esse autor menciona que ldquo[] a lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a

tonalidade emotiva com que este foi percebidordquo (MINKOWSKI 2004 p143) Entende-se assim

que a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos recordaremos dela

no futuro porque eacute assim que a conhecemos

Esses registros existem na memoacuteria e assim constituem parte da consciecircncia do

indiviacuteduo sobre si mesmo Satildeo lembranccedilas que colaboram com a construccedilatildeo da identidade da

autora do texto Chimia da uva Isabel memoacuterias e receita pois ligam-na agrave identificaccedilatildeo com a

avoacute e seu legado culinaacuterio Tal aspecto corrobora o que apresentamos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica

do presente capiacutetulo

As memoacuterias individuais vinculadas agrave cozinha tecircm outro elemento a ser destacado nos

cadernos de receitas muitas vezes haacute referecircncia no tiacutetulo das mesmas a quem fazia tal prato ou

tal doce como especialidade identificando a receita a seu lsquodonorsquo como exemplo cito a lsquotorta de

palmito da Dona Mimi Mororsquo e a lsquopizza de sardinha da Voacute Leiarsquo Satildeo sabores associados agraves

lembranccedilas que temos das proacuteprias cozinheiras como se o saborear e o lembrar de quem

produzia o alimento fossem recordaccedilotildees acopladas

Os tiacutetulos das receitas fazem-nos evocar essas personagens da histoacuteria pessoal Os nomes

presentes no caderno identificam figuras de relevo na vida de quem o guarda assim esse faz

tambeacutem o papel de um aacutelbum de recordaccedilotildees Destacamos nas paacuteginas do livro Pequeno

alfarraacutebio de acepipes e doccediluras que o lsquobolo de melado da Anildarsquo natildeo eacute uma receita qualquer

de bolo de melado mas aquela da qual a autora tem determinada lembranccedila perpetuada pelo

42

colorido afetivo lembra-se do momento em que saboreou a receita pela primeira vez da Anilda

sua autora da cozinha em que o bolo era feito e ateacute mesmo do aroma que deixava na casa apoacutes

sair do forno A receita pode tornar-se entatildeo a narrativa das experiecircncias e das pessoas que

fazem parte delas atraveacutes da memoacuteria que nos permite acessar

Muitos livros de temas culinaacuterios satildeo memorialiacutesticos em acircmbito nacional e

internacional Esse elemento confirma a relaccedilatildeo da cozinha com o sujeito que comete nela seus

atos culinaacuterios mais iacutentimos esta constituiraacute o espaccedilo de memoacuteria de quem teve ali ou em outras

cozinhas de sua vida vivecircncias a serem contadas A outras pessoas ou a si mesmo como faz

Antocircnio ao rememorar sua histoacuteria familiar e pessoal enquanto prepara o arroz para o almoccedilo de

famiacutelia

Na seccedilatildeo seguinte apresentamos a anaacutelise da primeira obra do corpus dessa Dissertaccedilatildeo

de Mestrado O arroz de Palma a fim de propor a relaccedilatildeo entre a cozinha e o fenocircmeno da

memoacuteria a partir dos fragmentos escolhidos

14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA

A obra de Francisco Azevedo O arroz de Palma segue a cronologia da lembranccedila a

narrativa dos acontecimentos de sua histoacuteria pessoal e familiar eacute feita atraveacutes da costura de

tempos costura essa em que o fio que une os tecidos eacute a memoacuteria O protagonista Antonio

narrador-personagem tem oitenta e oito anos e estaacute na cozinha da fazenda de sua infacircncia

preparando um almoccedilo para reunir toda a famiacutelia O prato a ser servido O arroz ofertado por sua

tia Palma aos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana na ocasiatildeo do casamento

Os gratildeos jogados aos noivos na igreja satildeo colhidos da pedra por Palma para a oferta do

presente Esses gratildeos atravessam o oceano de Portugal ao Brasil para onde o casal e Palma vecircm

apoacutes dificuldades financeiras no paiacutes de origem e atravessam tambeacutem as geraccedilotildees O arroz

fertilizaraacute a famiacutelia e suas histoacuterias Eacute para celebrar o aniversaacuterio de 100 anos do casamento dos

pais e do arroz presenteado pela tia que Antonio prepara o almoccedilo com o que ainda haacute do

presente para ser compartilhado com os familiares

A narrativa eacute contada por ele enquanto prepara o prato sob a forma de lembranccedilas do que

viveu e do que ouviu da Tia Palma nas longas conversas que tinham desde seus tempos de

crianccedila O protagonista vai alinhavando essas recordaccedilotildees narrando-as como forma de

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estabelecer uma linha de tempo desde o recebimento do arroz pelos pais ateacute o almoccedilo que

cozinha para a famiacutelia com o mesmo arroz cem anos depois Em alguns pontos da histoacuteria

parece tecer uma interlocuccedilatildeo com o leitor mas o elo entre a memoacuteria e os pensamentos eacute feita

de si para si

Pode-se dividir os trechos escolhidos para a presente anaacutelise em trecircs tempos o que

Antonio narra a partir da atualidade o que ouviu de Tia Palma e o que vivenciou Na primeira

condiccedilatildeo estaacute no presente nas duas outras no passado

Quando evoca as lembranccedilas vive-as com tamanha intensidade que sua narrativa traz

eventos antigos como se fossem atuais e refere-se a si mesmo do seguinte modo ldquoE eu menino

enrugado aqui nesta cozinha ainda viajo presente colorido do indicativordquo (AZEVEDO 2008

p17) O termo lsquomenino enrugadorsquo expressa a ligaccedilatildeo entre os tempos do presente e da memoacuteria

enquanto o lsquocoloridorsquo evoca a forccedila com que as lembranccedilas se manifestam trazendo ao presente

tonalidade marcante

Em toda a narrativa o uso das metaacuteforas culinaacuterias para a representaccedilatildeo de vivecircncias de

percepccedilotildees de sentimentos e de lembranccedilas eacute o elemento principal A cozinha eacute assim a forma

constante de expressatildeo do protagonista aleacutem de ser o espaccedilo fiacutesico onde o romance se

desenvolve pois eacute neste lugar que ele estaacute enquanto tece recordaccedilotildees

No primeiro capiacutetulo do livro Antonio fala durante o preparo do almoccedilo que serviraacute para

a famiacutelia entatildeo na atualidade Lembra-se lsquoTia Palma me ensinou a cozinhar eu era jovemrsquo

ilustrando as reflexotildees feitas na subdivisatildeo anterior sobre a relevacircncia da cozinha das avoacutes e das

tias para a memoacuteria individual pois essas satildeo figuras de referecircncia para a construccedilatildeo da memoacuteria

e por conseguinte da consciecircncia de si Diz Antonio

Eu aqui na fazenda Eu aqui na cozinha quatro e pouco da manhatilde Isabel ainda dorme o

sol ainda demora Eu aqui um velho de 88 anos Para os mais novos o Avocirc Eterno o

que natildeo teve comeccedilo nem teraacute fim o que jaacute veio ao mundo com essa cara enrugada Eu

aqui de avental branco picando o tempero verde Preparo o almoccedilo de famiacutelia Terei

forccedilas 88 dois infinitos verticais Eacute boa idade seraacute uma bela festa Tenho praacutetica Tia

Palma me ensinou a cozinhar eu era jovem (AZEVEDO 2008 p9)

Antonio provoca lsquoAs autoridades querem minhas digitais Elas estatildeo na massa do patildeorsquo o

que conduz a dois aspectos jaacute discutidos o papel da memoacuteria individual na identidade papel que

estaacute impregnado na massa do patildeo ou seja no ato culinaacuterio o outro elemento eacute aquele referido

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por Doacuteria quando menciona lsquoPor isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculosrsquo

expressando a feitura do patildeo como resultado da memoacuteria coletiva e da realizaccedilatildeo de rituais

Eacute na cozinha que eu desembesto e solto os bichos Eacute na cozinha que eu viajo sem

passaporte sem bilhete sem revista em aeroportos As autoridades querem minhas

digitais Elas estatildeo na massa do patildeo Querem minha foto Tenho vaacuterias de frente e de

lado com meus pais e irmatildeos e com os que vieram depois Retratos falados- em voz alta

a famiacutelia toda ao mesmo tempo Destrambelhada famiacutelia Sagrada famiacutelia []

(AZEVEDO 2008 p11)

Ainda nesse capiacutetulo ressaltamos um elemento caracteriacutestico da obra as expressotildees da

cozinha que constituem metaacuteforas agrave composiccedilatildeo das famiacutelias A frase emblemaacutetica empregada

pelo personagem lsquofamiacutelia eacute prato difiacutecil de prepararrsquo apresenta as reflexotildees de Antonio sobre

diferenccedilas e peculiaridades entre familiares Todas as alusotildees agraves divergecircncias entre eles satildeo feitas

tendo como eixo a linguagem usada na culinaacuteria Salientamos um aspecto a aproximaccedilatildeo entre

os termos culinaacuterios e as relaccedilotildees familiares representando cozinha e famiacutelia como estruturas

com pontos de convergecircncia

Preciso me concentrar Eacute essencial Por quecirc Ora que pergunta Famiacutelia eacute prato difiacutecil

de preparar satildeo muitos ingredientes Reunir todos eacute um problema- principalmente no

Natal e Ano-Novo Pouco importa a qualidade da panela fazer uma famiacutelia exige

coragem devoccedilatildeo e paciecircncia Natildeo eacute para qualquer um Os truques os segredos o

imprevisiacutevel Agraves vezes daacute ateacute vontade de desistir Preferimos o desconforto do estocircmago

vazio Preferimos o desconforto do estocircmago vazio Vecircm a preguiccedila a conhecida falta

de imaginaccedilatildeo sobre o que se vai comer e aquele fastio Mas a vida- azeitona verde no

palito- sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite O tempo potildee a mesa

determina o nuacutemero de cadeiras e os lugares Suacutebito feito milagre a famiacutelia estaacute

servida (AZEVEDO 2008 p12)

Durante o preparo do arroz mistura lembranccedilas e devaneios seguindo a comparaccedilatildeo

entre pratos culinaacuterios e famiacutelias

Reuacutena essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida Natildeo haacute pressa Eu

espero Jaacute estatildeo aiacute Todas Oacutetimo Agora ponha o avental pegue a taacutebua a faca mais

afiada e tome alguns cuidados Logo logo vocecirc tambeacutem estaraacute cheirando a alho e a

cebola Natildeo se envergonhe se chorar Famiacutelia eacute prato que emociona E a gente chora

mesmo De alegria de raiva ou de tristeza (AZEVEDO 2008 p12)

Entre ponderaccedilotildees e aconselhamentos Antonio fala de si mesmo ao leitor apresentando

sua visatildeo sobre si como um lsquovelho jaacute meio caducorsquo e lsquoum veterano cozinheirorsquo A alternacircncia

entre recordaccedilotildees do passado ideias do presente e diaacutelogo com o interlocutor eacute um dos elementos

que marca a narrativa

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Enfim receita de famiacutelia natildeo se copia se inventa A gente vai aprendendo aos poucos

improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia A gente cata um registro ali de

algueacutem que sabe e conta e outro aqui que ficou no pedaccedilo de papel Muita coisa se

perde na lembranccedila Principalmente na cabeccedila de um velho jaacute meio caduco como eu O

que este veterano cozinheiro pode dizer eacute que por mais sem graccedila por pior que seja o

paladar famiacutelia eacute prato que vocecirc tem que experimentar e comer Se puder saborear

saboreie Natildeo ligue para etiquetas Passe o patildeo naquele molhinho que ficou na

porcelana na louccedila no alumiacutenio ou no barro Aproveite ao maacuteximo Famiacutelia eacute prato que

quando se acaba nunca mais se repete (AZEVEDO 2008 p14)

Essa mistura de periacuteodos entre passado contado passado vivido e presente eacute marcada

pela referecircncia sobre o ingresso do arroz na histoacuteria da famiacutelia pelas matildeos de Tia Palma Os

tempos misturam-se ora mostrando Antonio em sua cozinha na atualidade ora Joseacute Custoacutedio

Maria Romana e Tia Palma em cenas vividas por eles

Quando Antonio se refere a um evento passado usando um verbo no presente pode-se

compreender que atraveacutes da memoacuteria ingressou em outro tempo de si mesmo ou de sua famiacutelia

A mistura entre lembranccedila e atualidade marca muitos dos relatos pois o limiar entre passado e

presente para o protagonista jaacute eacute impreciso assim como as experiecircncias que viveu e aquelas que

ouviu de Palma

Tia Palma era enfaacutetica ao descrever a cena o arroz que desabou sobre os noivos aacute saiacuteda

da igreja foi torrencial Eram punhados e mais punhados Chuva branca que natildeo parava

Nunca se viu tanta fartura em votos de felicidade (AZEVEDO 2008 p15)

-E tu dizes que Palma eacute que eacute a mal-educada

-Basta assunto encerrado Daacute-se o arroz para algueacutem Palma natildeo precisa saber

-O arroz eacute presente O arroz fica

-Pois estaacute bem Guarda esse maldito presente Com o tempo ele haacute de mofar se encher

de bichos e teraacutes que jogaacute-lo fora

-Ouve bem meu querido Joseacute Custoacutedio este arroz eacute amor e puro amor Natildeo haacute de se

estragar (AZEVEDO 2008 p21)

O protagonista recorda-se das vivecircncias com Tia Palma na cadeira em que essa lhe

contava as histoacuterias sobre o arroz e tantas outras Ouvir Palma era vivido por Antonio como se

assistisse a uma peccedila de teatro

A expressatildeo no rosto natildeo daacute a menor pista A histoacuteria de hoje seraacute triste Que vozes

faraacute Que cenaacuterio me apresentaraacute ao levantar as cortinas A sala de jantar Uma ruela de

Viana do Castelo Seraacute dia SeraacuteTia Palma pigarreia faz pequena pausa comeccedila com

gravidade

Primeiro ato Tarde da noite ela garante O coto de vela colado no tampo da mesa mal

ilumina os rostos Mamatildee e papai apenas alguns meses de casados natildeo tecircm o que

comer Nada nem vegetal nem fruta nem gratildeo nada Em voz baixa respeitosa mamatildee

sugere o arroz A resposta que recebe eacute a fuacuteria o murro na mesa e a gargalhada que

parece pranto

-O arroz de Palma

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Outra sonora gargalhada e laacutegrimas Papai parece fora de si

-O arroz de Palma nunca Castigo maldiccedilatildeo que seja Morro de fome mas aquele arroz

varrido do chatildeo nunca

-O arroz de Palma eacute abenccediloado Arroz plantado na terra caiacutedo do ceacuteu colhido da pedra

(AZEVEDO 2008 p26)

Tia Palma sempre contara a Antonio sobre o papel do arroz para sua histoacuteria familiar

fazendo do sobrinho o herdeiro de suas memoacuterias e do conhecimento a respeito da relevacircncia do

ingrediente para a continuidade da famiacutelia

-A fertilidade de vocecircs estaacute no arroz A benccedilatildeo que haacute onze anos ele recusou

-Eu jurei ao Joseacute que o arroz ficava mas natildeo seria comido Foi o combinado

-Pois eu natildeo jurei nada a ele

Mamatildee acha graccedila meio espantada meio com medo

-Palma Como vais fazer

-Primeiro ponho uma dose cavalar de purgante na comida dele que eacute pra desentupiacute-lo

por traacutes Depois trago-lhe uma comida bem levezinha para que ele se recupereUma

canjinha especial bem magrinha como ele gosta Uma xiacutecara de arroz eacute o quanto basta

-Uma canjinha especial

O trato estaacute feito Os risos e o demorado do abraccedilo selam a cumplicidade (AZEVEDO

2008 p38)

Antonio lembra-se da cena em que quando crianccedila assegurou agrave Tia Palma que gostava

de arroz ingrediente crucial na conduccedilatildeo da narrativa Mostrava assim apreciar as histoacuterias

sobre o arroz contadas por ela e sabia desde entatildeo que esse era um elemento decisivo em sua

famiacutelia

E a cadeira jaacute eacute palco e se estamos assim abraccedilados eacute porque eu tambeacutem estou em cena e

agora a fala eacute minha Eacute a minha estreia Inesperada e tatildeo esperada estreia

-Natildeo fique preocupada Eu gosto de arroz De qualquer jeito grudado ou solto eu gosto

Com toda a verdade possiacutevel encerro a minha parte

-Ateacute puro sem feijatildeo sem nada eu gosto juro (AZEVEDO 2008 p28)

Cabe salientar o papel que esse elemento exerce na histoacuteria De acordo com Maria Eunice

Moreira no ensaio lsquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmarsquo ldquo[] o arroz tem

funccedilatildeo especial na formaccedilatildeo do clatilde como o objeto maacutegico que acompanha a trajetoacuteria da

famiacuteliardquo (MOREIRA 2014 p162) Aleacutem de ser o ingrediente que vem de Portugal e atravessa

as geraccedilotildees eacute presente de matrimocircnio de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana e posteriormente de

Antocircnio e Isabel Eacute o fator que fertiliza o primeiro casal e que reuacutene o segundo no almoccedilo entre

as famiacutelias quando Antonio e Isabel comeccedilam sua aproximaccedilatildeo

Esse almoccedilo comeccedila a partir de uma carta de Antonio ao pai em que anuncia de forma

quase imperceptiacutevel o interesse por Isabel e ao final conta que estaacute levando ingredientes

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especiais na sua viagem agrave fazenda ldquoPS Estou levando boas postas de bacalhau azeite vinho

verde e outras tantas gulodices vindas de Portugalrdquo (AZEVEDO 2008 p85) Tia Palma como

sempre com a percepccedilatildeo aguccedilada aos movimentos dos familiares tem a ideia de aproveitar a

ocasiatildeo para convidar a famiacutelia de Isabel a um almoccedilo de confraternizaccedilatildeo

-Vocecircs natildeo fazem anos de casados no dia da chegada de Antonio Entatildeo Preparamos

um almoccedilo e convidamos o senhor Avelino dona Maria Celeste e Isabel que eacute quem

nos interessa

-Palma os Alves Machado nunca se sentaram conosco agrave mesma mesa Natildeo sei Sinto-me

um pouco constrangida Ainda mais aqui em nossa casa tatildeo modesta Satildeo muito bons e

generosos mas satildeo nossos patrotildees O mundo deles eacute laacute em cima na sede

-O Joseacute Custoacutedio e o senhor Avelino natildeo satildeo tatildeo amigos Entatildeo Qual eacute o problema

Acho inclusive que jaacute deveriacuteamos tecirc-los chamado haacute mais tempo Jaacute ouvi por diversas

vezes dona Maria Celeste dizer que o marido gosta do nosso Joseacute como a um irmatildeo

(AZEVEDO 2008 p87)

Tia Palma e Maria Romana comeccedilam assim a combinar o almoccedilo que ocorre com

sucesso Primeiro passo eacute o de abrir o saco de arroz o que as surpreende pelo estado saudaacutevel dos

gratildeos Sendo Isabel a filha dos donos da fazenda e Antonio o filho do funcionaacuterio de confianccedila

haacute um constrangimento inicial que se desfaz com a partilha da refeiccedilatildeo entre as famiacutelias O arroz

une Portugal e Brasil paiacuteses das duas famiacutelias atraveacutes de ingredientes portugueses e tempero

brasileiro mais uma vez estando representada a cozinha como metaacutefora

Essa ocasiatildeo cujo propoacutesito eacute aproximar famiacutelias e reduzir diferenccedilas representa a

comemoraccedilatildeo de aniversaacuterio de casamento de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana bem como a visita

de Antonio agrave fazenda entatildeo morando no Rio de Janeiro Paul Ricoeur qualifica a comemoraccedilatildeo

dentro da caracteriacutestica mundanidade em par com reflexividade Esta mundanidade estaacute

associada agrave realizaccedilatildeo de rituais conforme jaacute visto Antonio alterna a lembranccedila sobre o relato de

Palma a respeito da combinaccedilatildeo entre ela e sua matildee com sua proacutepria recordaccedilatildeo sobre o almoccedilo

-Perfeito Veja Palma pegue

-Ceacuteus Quase 40 anos e ainda saudaacutevel

Mamatildee beija as matildeos de tia Palma

-Amor verdadeiro natildeo se estraga Eacute para sempre

-Trecircs quilos eacute o quanto basta Daraacute um belo arroz de bacalhau

-Eacute impossiacutevel que Antonio e Isabel natildeo se resolvam

O almoccedilo eacute um sucesso Os Alves Machado chegam um pouco cerimoniosos mas logo

com tantos comes e bebes somos a mesma famiacutelia (AZEVEDO 2008 p88)

O papel do arroz na histoacuteria seraacute tambeacutem o de testemunhar a uniatildeo fiacutesica de Antonio e

Isabel agrave beira do lago antes do casamento

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-Eu sou o dono do arroz que tambeacutem eacute seu dona Isabel

-DonaPor acaso estamos casados

Sim estamos casados O Deus do azul sabe que estamos O lago menor sabe que

estamos O sangue e o arroz sabem que estamos (AZEVEDO 2008 p105)

Outra ocasiatildeo em que o arroz assume papel de ritual eacute quando o casal ganha de Joseacute

Custoacutedio Maria Romana e Palma o presente com nova dedicatoacuteria atualizada revisitando a

primeira feita por Palma Seraacute portanto o herdeiro do arroz ofertado pela Tia Palma a seus pais

junto a Isabel jaacute que o casal ganha o arroz como presente por seu matrimocircnio

Quero distacircncia de religiotildees mas respeito rituais Influecircncia de tia Palma admito Meu

cafeacute da manhatilde eacute sagrado O ritual eacute sempre o mesmo a hora a xiacutecara o pocircr o leite

primeiro o escurececirc-lo depois no ponto certo o abrir o patildeo o tirar o miolo

(AZEVEDO 2008 p127)

Individual ou coletivo o ritual eacute conexatildeo e cumplicidade [] Concluo que haacute sempre

algo de autoritaacuterio nos rituais Mas neles natildeo haveraacute tambeacutem algo que emociona Natildeo

haveraacute algo de belo e poeacutetico (AZEVEDO 2008 p127)

O arroz e todo o simbolismo que envolve na formaccedilatildeo dessa famiacutelia seraacute transmitido a

Antonio e Isabel em ocasiatildeo formal como desejam seus pais e Tia Palma

E o arroz Eacute o arroz Tia Palma quer que a entrega dessa vez ganhe algum ritual

Mamatildee e papai concordam Natildeo satildeo apenas os oito quilos que contam O presente de

casamento tem agora o peso da histoacuteria Portanto natildeo seraacute dado de modo informal

como aconteceu em Viana do Castelo (AZEVEDO 2008 p128)

O ritual de transmissatildeo do arroz eacute celebrado com a dedicatoacuteria atualizada e assinada por

seus pais e por Tia Palma eacute ela que faz a cerimocircnia de entrega ao sobrinho e agrave Isabel repetindo o

gesto feito na oferta do presente a Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu matrimocircnio

-Isabel e Antocircnio meus queridos este arroz que haacute quase 40 anos foi dado como

presente de casamento agrave minha cunhada Maria Romana e ao meu irmatildeo Joseacute Custoacutedio

por nossa vontade agora vos pertence Fazemos votos de que a tradiccedilatildeo continue e de

que todo o amor aqui contido chegue agraves geraccedilotildees futuras

Mamatildee potildee os oacuteculos lecirc a dedicatoacuteria atualizada

lsquoEste arroz-plantado na terra caiacutedo do ceacuteu como o manaacute do deserto e colhido da pedra- eacute

siacutembolo da fertilidade e do eterno amor Essa eacute a nossa benccedilatildeo

Palma Maria Romana e Joseacute Custoacutedio

Fazenda Santo Antocircnio da Uniatildeo em 13 de junho de 1946rsquo

Protegido pelo pano branco o arroz passa agraves nossas matildeos (AZEVEDO 2008 p130-

131)

Ainda no que concerne ao papel do ingrediente como elemento com atributo de ritual estaacute

a cena em que Antonio lecirc a receita em seu caderno do arroz de lentilhas de Tia Palma escrita

por ela com recomendaccedilotildees O aspecto a ser ressaltado nesse ponto estaacute principalmente na

49

forma de apresentaccedilatildeo da receita que indica a importacircncia de recitar os trechos durante a feitura

do prato

Antonio meu querido lava bem as lentilhas em aacutegua corrente enquanto recitas

lsquotrepadeira trepadeirabeijo-te as folhas penadas e as flores violaacuteceas trepadeira

trepadeiranatildeo estou ao fundoestou ao frescoestou agrave beiraeacutes fortuna eacutes sauacutede eacutes

companheiratrepadeira trepadeira eacutes amor amigo eacutes paixatildeo verdadeirarsquo

Feito isso respira fundo trecircs vezes e solte o ar pela boca Deixa teu corpo sentir o

benefiacutecio Potildee as lentilhas em tacho com bastante aacutegua jaacute temperada de sal Leva ao

lume alto ateacute ferver Ao ferver abaixa o lume e deixa cozinhar ateacute que as lentilhas

estejam macias

Escorre a aacutegua da fervura E enquanto ela se vai diz com voz de certeza lsquoaacutegua

fervidaaacutegua de sal e de vidaaacutegua boa que seguetoma teu rumofertilizarsquo

(AZEVEDO 2008 p146-147)

A recomendaccedilatildeo de que faccedila as recitaccedilotildees ao cozinhar o prato traz a reflexatildeo sobre o

exposto por Mircea Eliade sobre a relevacircncia de recitar os mitos exposta anteriormente ldquo[]

recitando ou celebrando o mito da origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela atmosfera

sagradardquo (ELIADE 2011 p21) Haacute outra referecircncia a esse autor que merece ser salientada

pensando-se nos trechos a serem recitados como os cantos a que Eliade se refere ldquoA

recapitulaccedilatildeo atraveacutes dos cantos e da danccedila eacute simultaneamente uma rememoraccedilatildeo e uma

reatualizaccedilatildeo ritual dos eventos miacuteticos essenciais ocorridos desde a Criaccedilatildeordquo (ELIADE 2011

p27)

Laura Esquivel escreve no ensaio intitulado lsquoEl manaacute sagradorsquo em seu livro de ensaios

Iacutentimas suculencias-Tratado filosoacutefico de cocina sua perspectiva sobre a relaccedilatildeo entre a comida

e os rituais corroborando a importacircncia da cozinha como espaccedilo simboacutelico

Talvez natildeo haja muita diferenccedila entre falar de comida e falar de religiotildees Quase em

todas elas umas e outras se faz presente a divindade atraveacutes dos alimentos De fato natildeo

podemos negar que um rito obrigado de quase toda religiatildeo eacute o momento de comer e de

beber a deidade ou para a deidade O sentido profundo da alimentaccedilatildeo em alguma

medida tem a ver com nossa sede de eternidade cifrada na manutenccedilatildeo cotidiana da vida

Talvez por isso todos os deuses tenham deixado sua presenccedila contida nos alimentos

Nesse sentido nos alimentamos para viver e por viver O desfrute da comida tem

lampejos de vida eterna Mas natildeo soacute eacute fundamental o ato em si de comer tambeacutem o eacute a

cerimocircnia que implica preparar e compartilhar os alimentos A cerimocircnia ritual que se

realiza em torno da mesa eacute um ato de profunda e antiga significaccedilatildeo religiosa

(ESQUIVEL 2014 p77)

Entretanto natildeo apenas de comemoraccedilotildees eacute constituiacuteda a funccedilatildeo do arroz na narrativa

Algumas circunstacircncias satildeo provocadas pela representaccedilatildeo desse ingrediente na histoacuteria como as

diferenccedilas entre o protagonista e seus irmatildeos a tentativa de seus filhos Nuno e Rosaacuterio

50

mexerem no gratildeo derrubando-o na vitrine do restaurante e o deflagrar das emoccedilotildees da cunhada

em relaccedilatildeo a Antonio quando esta rouba uma porccedilatildeo do arroz para ter um pedaccedilo de Antonio

consigo

-Senti forte ciuacuteme de Isabel Inveja raiva tudo E ainda por cima era obrigada a

esconder o que sentia Quando vocecirc fez a vitrine iluminada no restaurante soacute pra expor o

arroz passei a acreditar que seria possiacutevel ter ao menos um punhadinho daquela

felicidade

-Vocecirc ainda tem ele

-Natildeo

-Natildeo

-Fiz do meu jeito Preparei ele na aacutegua e sal e comi Antes pedi a Deus que me desse um

pouco de vocecirc tambeacutem Nem que fosse por um dia

Amaacutelia torna a recostar a cabeccedila no meu peito Nada mais eacute dito Ou se eacute dito natildeo deixa

registro Acho que cochilamos Levantamo-nos da cama com o desprendimento de um

encontro rotineiro (AZEVEDO 2008 p217)

Entre rememoraccedilotildees e devaneios Antonio entrelaccedila retalhos do passado agrave sua percepccedilatildeo

sobre o presente a finitude as lembranccedilas recentes que se confundem o fluxo de consciecircncia

Reflete sobre o que faz ali na cozinha preparando o almoccedilo familiar e ao mesmo tempo

reconstroacutei lembranccedilas antigas que compuseram sua atualidade

Se me perguntarem natildeo sei dizer o que comi ontem no almoccedilo Mas sou capaz de

reproduzir diaacutelogos inteiros da minha juventude quando esta fazenda ainda era do

senhor Avelino e eu ainda morava na casa laacute de baixo com tia Palma meus pais e meus

irmatildeos Gozado isso Vaacute entender Memoacuterias antigas Niacutetidas perfeitas cheias de

miacutenimos detalhes cheiros e sons ateacute Inclusive as experiecircncias ancestrais que natildeo vivi

as histoacuterias laacute de Portugal que me foram contadas todas aqui dentro de cor e salteado

Fatos recentes Coitados Vatildeo se segurando em mim como podem (AZEVEDO 2008

p143)

A constataccedilatildeo de seus 88 anos daacute ao protagonista a consciecircncia de sua condiccedilatildeo de idoso

aceitando as falhas de lembranccedila mas natildeo aquelas em sua capacidade como cozinheiro

experiente

Natildeo quero vocecirc metida aqui dentro da cozinha Por favor Isabel Natildeo eacute nada disso Eacute

porque vocecirc fica zanzando para laacute e para caacute Potildee a matildeo prova daacute palpite Me atrapalha

Fico doido natildeo quero Nem vocecirc nem ningueacutem Deixa que eu dou conta do recado

Tantos anos agrave frente laacute do restaurante chefe com vaacuterios precircmios natildeo basta Eacute preciso

mais Idoso coisa nenhuma Dispenso o eufemismo bobo Sou velho isso sim Eu sei

natildeo precisa dizer A vista natildeo ajuda muito nem as pernas nem os reflexos Mas espera

aiacute gagaacute ainda natildeo estou Tenho forccedila nas matildeos Acho que ainda posso mexer uma

panela Quatro panelotildees concordo Fica tranquila que natildeo vou me queimar Nem a

comida (AZEVEDO 2008 p144-145)

51

A capacidade de Antonio com a cozinha comeccedilou com os aprendizados que teve com sua

tia na juventude e consolidou-se com a praacutetica Tal aquisiccedilatildeo lembra o referido sobre o par

memoacuteriahaacutebito na fenomenologia da memoacuteria proposta por Paul Ricoeur A capacidade

representa o elemento haacutebito pois eacute primordialmente construiacuteda a partir da atividade rotineira de

um atributo Talvez por isso na narrativa Antonio aceite as falhas de memoacuteria inerentes ao

envelhecimento mas natildeo a ideia de diminuiccedilatildeo daquilo que eacute seu por meacuterito por conquista com

esforccedilo dedicaccedilatildeo e sobretudo repeticcedilatildeo Antonio recorda-se de quando partiu para encontrar

trabalho na capital certo de que seguiria a atividade de cozinheiro

-O que eacute que significa isso agora Pra quecirc essa mala Antonio -Calma calma que eu natildeo vou pra guerra -Eu sabia Estaacutes indo embora por causa dessa moccedila Isabel E eacute tudo culpa da Palma

-Tenho 21 anos meu pai Sei muito bem o que faccedilo A vida do campo natildeo eacute para mim

Vou para a capital Farei amigos laacute E amigas

-Mas assim tatildeo de repente

-Trabalharei em restaurante conhecerei pessoas influentes ficarei conhecido e serei

proacutespero

-Para quecirc tanto entusiasmo Para lavar pratos Servir mesa

-Tambeacutem Mas natildeo eacute soacute isso Quero cozinhar Quem sabe um dia consigo abrir meu

proacuteprio negoacutecio

Papai se irrita

-Como cozinhar De onde tiraste essa ideia maluca (AZEVEDO 2008 p67)

O aprendizado com a tia eacute representativo da memoacuteria coletiva que se perpetua em um

grupo neste caso o familiar para a manutenccedilatildeo de um saber entre seus membros Essa memoacuteria

coletiva na histoacuteria eacute expressa pelo cozinhar como um conhecimento transmitido mas

principalmente pela histoacuteria que envolve o arroz nessa famiacutelia A narrativa dessa histoacuteria ao

longo das geraccedilotildees constitui tambeacutem a representaccedilatildeo dessa espeacutecie de memoacuteria na famiacutelia de

Antonio

Para aleacutem do que aprendeu com Tia Palma houve o que a praacutetica lhe ensinou

trabalhando em restaurantes ateacute que pudesse montar o proacuteprio negoacutecio Lembra-se de cenas do

percurso que seguiu ldquoO mar de mesas eacute convite agrave aventura Sigo Na copa e na cozinha o

barulho de louccedilas e talheres eacute intempeacuterie A vozearia eacute a marujada a postos que me recebe Esta eacute

a minha gente natildeo tenho duacutevidas Este eacute o meu barco e []rdquo (AZEVEDO 2008 p79)

Antonio tem em Palma seu referencial chamando por ela quando se vecirc em desafios

evocando lembranccedilas dos seus ensinamentos

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Transpiro o nervoso que vem de dentro Tia Palma por favor me ajuda lsquoO que o corpo

potildee para fora nos purificarsquo Saacutebia Tia Palma natildeo me falta nunca A cenoura e a batata jaacute

cortadas os tomates em rodelas e sem as sementes a cebola picada bem miudinha todos

nas respectivas vasilhas Mais alguma coisa Isso e aquilo Pronto acabei Natildeo me

canso Ao fim do expediente ainda haacute focirclego e entusiasmo de sobra Reluto em desfazer

o laccedilo do avental Jaacute (AZEVEDO 2008 p80)

Uma das cenas da obra que ilustra o entrelaccedilamento entre a memoacuteria individual e a

coletiva eacute no enterro dos pais de Isabel quando Antonio canta uma canccedilatildeo tradicional

portuguesa pensando fazecirc-lo em voz baixa como forma de homenagem Enquanto canta suas

memoacuterias tocam-lhe a ponto de natildeo perceber que o faz em voz alta E aqui estaacute o referido

entrelaccedilamento as demais pessoas presentes no enterro tambeacutem se emocionam e cantam em

coro Presentes ali estatildeo as proacuteprias lembranccedilas e aquelas de suas famiacutelias

Numa casa portuguesa fica bem

patildeo e vinho sobre a mesa

Quando agrave porta humildemente bate algueacutem

Senta-se agrave mesa coacutea gente

Fica bem essa fraqueza fica bem

que o povo nunca a desmente

A alegria da pobreza

estaacute nesta grande riqueza

de dar e ficar contente

(AZEVEDO 2008 p193)

Antonio segue a cantoria da muacutesica que pensa estar cantando para si Entatildeo percebe ter

cantado em voz alta e a emoccedilatildeo que causou Letra e muacutesica satildeo parte de sua memoacuteria individual

pela origem da famiacutelia e da memoacuteria coletiva dos presentes ao enterro que cantam com ele a

tradiccedilatildeo

Em algum momento tenho a impressatildeo de que algumas pessoas me acompanham e que

ao final todos ali cantamos juntos emocionados lsquoUma casa portuguesarsquo Volto ao enterro

com aplausos Reflexo condicionado eu mesmo bato palmas Isabel aos prantos me

beija agradecida pela homenagem inesperada Olho ao redor todos choram

copiosamente Natildeo eacute possiacutevel Seraacute que em vez de falar alto comigo mesmo cantei

alto Soacute pode ser (AZEVEDO 2008 p194)

Na volta do enterro o papel da comida em nutrir e acalentar eacute referido atraveacutes da

expressatildeo empregada por Antonio lsquopedimos a ela que nos aqueccedila algo para pocircr no estocircmagorsquo

como segue no trecho abaixo ldquoQuando chegamos em casa Nuno e Rosaacuterio jaacute estatildeo dormindo

Conceiccedilatildeo garante que ficaram quietinhos natildeo deram trabalho algum Pedimos a ela que nos

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aqueccedila algo para pocircr no estocircmago Ela diz que fez uma sopinha de legumes e jaacute nos chamardquo

(AZEVEDO 2008 p194)

O protagonista segue a narrativa evocando lembranccedilas reconstruindo impressotildees

reconhecendo a si mesmo atraveacutes da costura de retalhos da memoacuteria Estaacute em sua cozinha mas

viaja para muitos periacuteodos de sua vida visita a si mesmo em muitas eacutepocas lembra dos pais da

tia dos sogros dos irmatildeos dos filhos ateacute o momento atual Entatildeo na cozinha da fazenda aos 88

anos prepara com esmero os gratildeos de memoacuteria restantes em cozimento nas panelas Antonio

aguarda o encontro do passado com o presente no almoccedilo de famiacutelia Quando esse acontece

todos nas mesas entusiasmo e lembranccedila espalham-se na famiacutelia

Benccedilatildeo vivermos o bastante para poder dividi-lo assim irmatildemente sem conta de

padeiro nem laacutepis engatilhado atraacutes da orelha Olha soacute a cara da Leonor e a do Nicolau e

a do Joaquim Velhos bobos Nem sonhavam que ainda iam provar do arroz de Tia

Palma E agora choram desse jeito Natildeo eacute cebola nada que eu sei Eacute muita lembranccedila e

sonho tudo misturado agrave moda da casa Fiz de propoacutesito para pegar vocecircs de surpresa E

para a Amaacutelia - me pergunto- que gosto teraacute esse segundo arroz Qual o sabor de um

arroz assim permitido e compartilhado A garotada pode achar que somos velhos gagaacutes

e que essa histoacuteria eacute pura invencionice Impossiacutevel um arroz durar tanto a ciecircncia isto a

ciecircncia aquilo Eu natildeo ligo a miacutenima Vocecircs ligam Entatildeo oacutetimo Vamos comer agrave

vontade que haacute arroz para todos Joaquim meu irmatildeo me passa o azeite (AZEVEDO

2008 p352)

No trecho seguinte ao perguntar-se lsquoquantas vezes maisrsquo o protagonista expotildee sua

percepccedilatildeo quanto agrave finitude o tempo que ainda teraacute para novas cenas como aquela ldquoNoacutes

adultos continuamos em volta das mesas agraves voltas com as lembranccedilas Porque nos apetecem

repetimos o doce repetimos o vinho repetimos as histoacuterias Quantas vezes maisrdquo (AZEVEDO

2008 p356)

Ao longo da narrativa Antonio evoca histoacuterias lembranccedilas que lhe surgem

espontaneamente acionadas por outras por devaneios e por emoccedilotildees De acordo com Maria

Eunice Moreira em seu ensaio

A memoacuteria de Antonio organiza a configuraccedilatildeo caoacutetica da accedilatildeo externa dando um

sentido ao amontoado de fatos e episoacutedios jaacute vividos Nessa seleccedilatildeo privilegia natildeo a

memoacuteria anotada e escrita em cadernos ou diaacuterios mas aquela mais viva mais seletiva e

mais afetiva (MOREIRA 2014 p169)

No referido ensaio o fragmento acima corresponde agrave reflexatildeo de Antonio sobre a forma

como suas lembranccedilas lhe aparecem

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A memoacuteria que vai para o diaacuterio fica toda arrumadinha linear dia mecircs e ano Agraves vezes

horas e ateacute minutos constam do registro Mas quando velho a gente vai e consulta o

caderno se espanta com o montatildeo de coisa que jaacute nem faz sentido e estaria apagado natildeo

fosse a tinta A memoacuteria puxada da cabeccedila natildeo Eacute esforccedilo de selecionar soacute o que presta

o que nos eacute querido Natildeo eacute discurso ensaiado e lido Eacute fala de improviso com todos os

erros e tropeccedilos que a ousadia pode causar (AZEVEDO 2008 p248)

O que Antonio estaacute referindo eacute o conjunto de suas lembranccedilas na despensa da memoacuteria

aquelas que o identificam por constituiacuterem etapas de sua vida atraveacutes delas se reconhece

assume a consciecircncia de si Mesmo com o embaralhamento entre lembranccedilas e devaneios o

protagonista faz um balanccedilo de sua existecircncia enquanto prepara o almoccedilo familiar Estaacute na

cozinha porque esta eacute seu refuacutegio seu lugar no mundo Prepara o arroz para compartilhaacute-lo

assim como sua Tia Palma partilhava com ele suas histoacuterias sentada na quarta cadeira Os

trechos a seguir representam com nitidez o papel da comida agrave mesa para Antonio Mais uma vez

estatildeo presentes as lembranccedilas de tempos vividos e o arroz no prato como na frase lsquoo arroz tem

que vir sempre na frentersquo

A descriccedilatildeo de comidas caseiras do esmero de Conceiccedilatildeo ao arrumar a mesa da atitude

de Isabel em servi-lo todos satildeo elementos construiacutedos ao longo do tempo e tecircm como raiz as

experiecircncias familiares transformadas em memoacuteria O lsquocheiro gostoso da comidinha caseirarsquo eacute o

elemento sensorial que o acolhe na atmosfera de casa e simultaneamente o leva a viajar em suas

lembranccedilas O lsquoalmoccedilo de famiacutelia cotidianorsquo eacute o elemento que conduz o protagonista a cenas

semelhantes no passado como quando seus filhos eram crianccedilas Refeiccedilatildeo para Antonio eacute a

famiacutelia na mesa Assim a comida e a famiacutelia mais uma vez estatildeo vinculadas para ele como

sinocircnimos De recordaccedilatildeo de aconchego de partilha do gosto e do cheiro bom

Conceiccedilatildeo chega e anuncia que o almoccedilo estaacute indo para a mesa Graccedilas a Deus Meu

estocircmago jaacute estaacute roncando Puxo Rosaacuterio do sofaacute

-Vamos

E vamos todos levados pelo cheiro gostoso da comidinha caseira Ao nos sentarmos agrave

mesa impossiacutevel natildeo reparar no costumeiro apuro O caimento da toalha Os pratos os

copos os talheres afastados na medida certa Os guardanapos bem dobrados agrave esquerda

A cesta de patildees posta com arte Natildeo eacute almoccedilo para visitas Eacute almoccedilo de famiacutelia

cotidiano- esmero da Conceiccedilatildeo que ama tudo o que faz Laacute vem ela de novo da

cozinha pousa do meu lado a terrina do feijatildeo fumegando me daacute aquele sorriso de

missatildeo bem cumprida

-Botei bastante paio Ontem o senhor ficou revirando a concha dizendo que dava

precircmio para quem encontrasse um (AZEVEDO 2008 p311)

A cena pode ser compreendida sob a perspectiva de Laura Esquivel no ensaio jaacute referido

quando a autora exprime sua visatildeo sobre a comida e a partilha da mesa

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E ainda que natildeo sejamos religiosos creio que para nenhum de noacutes seraacute estranho pensar

que atraveacutes dos aromas que compartilhamos com nossos semelhantes dos sabores dos

alimentos e da substancial presenccedila da divindade neles os seres humanos podemos ter

dia apoacutes dia uma pequena antecipaccedilatildeo do paraiacuteso (ESQUIVEL 2014 p78)

A ideia de Esquivel sobre a lsquoantecipaccedilatildeo do paraiacutesorsquo coincide com o sentimento de

Antonio sobre a cozinha Para o protagonista essa representa a casa o sabor a famiacutelia Simboliza

o que Gaston Bachelard refere na frase ldquoPode-se demonstrar as primitividades imaginaacuterias

mesmo a respeito desse ser soacutelido na memoacuteria que eacute a casa natalrdquo (BACHELARD 2012 p47)

Pode-se complementar essa frase com outra ideia do autor ldquo[] a casa natal eacute uma casa

habitadardquo (BACHELARD 2012 p33) Ao estar na cozinha ou na sala de jantar ao estar sentado

agrave mesa a emoccedilatildeo eacute a de estar em casa naquela que primeiro conheceu como casa a fazenda A

casa natal eacute e sempre seraacute habitada pelas lembranccedilas Esse espaccedilo corresponde a um lugar de

memoacuteria conforme referido por Ricoeur A casa natal eacute um ser soacutelido na memoacuteria porque ela

conteacutem as primeiras vivecircncias afetos impressotildees Eacute ali que a vida comeccedila que se enraiacuteza dali

vecircm as lsquoprimitividades imaginaacuteriasrsquo e as lembranccedilas que tornaratildeo o sujeito em quem ele eacute pela

consciecircncia de si que a memoacuteria propicia

Minha mulher eacute paciente entende como funciono Ela pega meu prato e vai me

servindo um pouco disto um pouco daquilo mas antes de tudo o arroz- indispensaacutevel-

e o feijatildeo por cima Eu sei que natildeo eacute o certo Mas eacute assim que eu gosto o feijatildeo por

cima nunca do lado Se puser o feijatildeo primeiro e depois o montinho do arroz tambeacutem

implico O arroz tem que vir sempre na frente depois o feijatildeo molhando aiacute sim eacute

perfeito Sempre ensinei bons modos aos meus filhos mas nunca os proibi de misturar a

comida toda no prato de uma vez Se eu misturo como proibir Ai se fizeacutessemos isso na

frente de Isabel Bom nem pensar Em dias de ensopadinho de vagem com carninha

moiacuteda ou de chuchu com camaratildeo era verdadeiro supliacutecio Nuno e eu sofriacuteamos

horrores Queriacuteamos porque queriacuteamos misturar tudo de uma vez com o arroz Natildeo

podiacuteamos Era proibido por lei Isabel natildeo transigia Tiacutenhamos que ir misturando aos

pouquinhos puxando com o garfo e aiacute levar agrave boca Depois voltar misturar mais um

pouquinho puxando com o garfo e tornar a levar agrave boca Um sacrifiacutecio Depois de

nossos filhos adultos a lei do proibido misturar foi abolida E cada um liberado para

comer do seu jeitinho informal

Jaacute servido espeto o paio deliacutecia e retomo a conversa (AZEVEDO 2008 p314)

Chega a hora de Antonio apoacutes revisitar histoacuterias vividas e contadas pela memoacuteria Na

cozinha representaccedilatildeo de sua casa natal ele falece ldquoSempre acompanhamos com olhos de

saudade o balatildeo que sobe ceacuteu afora e se mistura no azul Acontece com todos Depois satildeo soacute

histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras Famiacutelia eacute prato que quando se acaba nunca

mais se repeterdquo (AZEVEDO 2008 p361)

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Histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras elementos que aludem agraves lembranccedilas

Mais uma vez a cozinha eacute representada ao falar-se em memoacuteria atraveacutes das lsquoreceitas caseirasrsquo

Essas satildeo registros de quem habitou os campos de forno-e-fogatildeo e deixou por escrito o como-

se-faz O seu

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2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE

A sacola de crochecirc da voacute era perturbadora da ordem ali de dentro ela tirava varenikes

beigales mondales knishes strudels um perfume que ia nos buscar no mais remoto

quarto da casa pratos fundos de louccedila branca e pesada transbordantes de fartura Noacutes

nos reuniacuteamos em torno da mesa em torno da voacute em torno dos pratos - em torno da

comida que ela tratava como uma cerimocircnia de milagre E ela abria os braccedilos para nos

acarinhar a todos e nos beijava com os laacutebios finos o haacutelito de menta e pronunciava

palavras boas palavras de quem traz alviacutessaras feliz como quem pode dar o seio a um

bebecirc minhas crianccedilas a voacute trouxe comida pra vocecircs (MOSCOVICH 2006 p93-94)

Prazer eacute sentimento do corpo Bem-estar e gozo que se quer repetir Puro deleite acorda

os sentidos Onda repentina epifania de cores aromas gostos texturas sons Nasce sem aviso

deixa marcas faz pulsar em ritmo de quero-mais Nasce do encontro amoroso do saborear de um

prato e de tantas outras vivecircncias Estaacute na taccedila do vinho escuro e aveludado na mordida do mil-

folhas ao mesmo tempo crocante e macio O prazer desperta como se fosse dia novo entusiasma

provoca ecoa em cada parte nossa Comida eacute coisa prazerosa toca a vida sensorial alegra ceacutelulas

e anima A cozinha espaccedilo fiacutesico e territoacuterio afetivo evoca gostos desejos lembranccedilas prazer

O preparo das receitas o deleite dos pratos a partilha da mesa as conversas amenas durante a

refeiccedilatildeo todos inerentes ao universo culinaacuterio E depois vem a culpa a roupa que aperta o

regime por ordens meacutedicas Culpa e prazer inimigos entrelaccedilados

21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE

Por que sou gorda mamatildee eacute o romance escrito por Ciacutentia Moscovich em 2006 e

publicado pela Editora Record com uma narradora em primeira pessoa de quem o leitor natildeo

sabe o nome ao longo da obra Ela passa a limpo as histoacuterias de famiacutelia de origem judaica e a

sua proacutepria histoacuteria em uma carta para sua matildee Dessa o leitor tambeacutem natildeo sabe o nome da

primeira agrave uacuteltima paacutegina

O conflito central apresenta a dificuldade da narradora-personagem com seu aumento de

peso vinte e dois quilos em quatro anos e o sofrimento em face da necessidade de fazer dieta

Natildeo se trata apenas das privaccedilotildees de ter de fazer dieta Trata-se da dor emocional por precisar

fazer dieta de novo A repeticcedilatildeo de situaccedilotildees em que o engorde esteve presente em sua vida

ligado ao papel do comer em sua famiacutelia faz com que acuse sua matildee muitas vezes pela situaccedilatildeo

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a que chegou Por essa oferecer comida demais Natildeo Por oferecer afeto de menos Ao contraacuterio

da matildee a Voacute Magra sua avoacute materna eacute muito carinhosa com ela e seus irmatildeos e aleacutem disso

sempre aparece com a sacola de crocheacute plena de doces da cozinha judaica O papel da avoacute parece

ser o de suprir as faltas da matildee e as supre em excesso no que tange ao reforccedilo da gula

A narrativa pode ser a expressatildeo de uma catarse atraveacutes da escrita uma decisatildeo

confessional da narradora ou sua atitude ora acusatoacuteria ora carente na direccedilatildeo de sua matildee Em

uma mistura de cada uma dessas formas o livro traz o entrelaccedilamento das memoacuterias das

emoccedilotildees e das etapas objetivas em sua jornada de emagrecimento como narra a protagonista no

proacutelogo ao expor para sua matildee que a escrita seraacute dirigida a ela

Tenho medo mas estou prestes a pocircr um ponto final e a aticcedilar a pluma das lembranccedilas

Luta contra o gelo do tempo O proacutelogo em seus estertores depois comeccedila

Mamatildee me endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar

esse territoacuterio metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora

Quero voltar a ter um corpo

Haacute um livro a ser escrito e nele os fatos seratildeo fruto da prestidigitaccedilatildeo ainda que

imperfeita Respostas possiacuteveis ilusatildeo para secar as maacutegoas e o corpo O proacutelogo

termina Depois jaacute iniciou Comeccedilo num ponto de intrerrogaccedilatildeo

Por que sou gorda mamatildee (MOSCOVICH 2006 p19)

A narrativa eacute contada em vinte e cinco capiacutetulos duzentas e cinquenta e uma paacuteginas

vinte e dois quilos O primeiro capiacutetulo apresenta em primeira pessoa um entrelaccedilamento

essencial ao conflito da personagem a histoacuteria da origem de sua famiacutelia na Europa passando

fome em vilarejos judeus a histoacuteria de sua Voacute Magra com o prazer da comida e sua proacutepria

histoacuteria de infacircncia com os irmatildeos na hora das refeiccedilotildees

Segue-se ainda nesse capiacutetulo um desabafo com uma lista de aspectos pejorativos do

sujeito gordo Satildeo frases que costumamos ouvir com grande frequecircncia sobre os indiviacuteduos com

excesso de peso e que eles mesmos muitas vezes referem em tom entre o mea culpa e a auto

ironia Esse eacute o tom usado pela narradora falando em sua voz o que atribui ao olhar alheio

Depois de apontar os defeitos dos gordos conta do comeccedilo de seu sacrifiacutecio com as restriccedilotildees

alimentares

Em seguida o escaacuternio daacute lugar agrave lembranccedila da morte de seu pai as consequecircncias que

tal perda teve na famiacutelia e sobretudo na relaccedilatildeo de sua matildee com os filhos Eacute o comeccedilo da voz

acusatoacuteria da narradora trazendo agrave tona fatos e sofrimentos na relaccedilatildeo familiar Aparece a

ausecircncia da matildee no cumprir de sua funccedilatildeo afetiva Seguem-se capiacutetulos de apresentaccedilatildeo da Voacute

Gorda do lado paterno da Voacute Magra e de sua histoacuteria frustrada de amor por um violinista russo

59

do avocirc do pai dos irmatildeos de si mesma em vaacuterios tempos da vida e da balanccedila Presente e

passado alternam-se disputando espaccedilo nas paacuteginas porque para a personagem em sua carta agrave

matildee o passado eacute parte do peso em quilos de seu presente

Enquanto passa a limpo sua histoacuteria e suas maacutegoas a narradora vai contando vitoacuterias e

deslizes na dieta dores pela restriccedilatildeo alimentar e alegrias por conseguir emagrecer lentamente A

histoacuteria familiar evolui o momento em que o excesso de peso na infacircncia tornou-se foco de

preocupaccedilatildeo e de imposiccedilatildeo da dieta por parte do pai aparece como fato de destaque A

narradora em zigue-zague transita entre os periacuteodos de vida para encontrar respostas ora em

conversas dirigidas agrave matildee ora em diaacutelogos com seu proacuteprio mundo interno A escrita para a matildee

eacute em essecircncia um passar a limpo para si mesma a proacutepria histoacuteria de seu corpo Gula prazer

afeto e ausecircncia dores e perdas inclusive de maacutegoas e de peso eis o transcorrer da histoacuteria

narrada Esses elementos satildeo o fio condutor da narrativa das primeiras paacuteginas ateacute a evoluccedilatildeo ao

epiacutelogo Parte desse reproduzo abaixo

Mamatildee natildeo preciso perdoaacute-la por nada Natildeo me incomodo mais pela porccedilatildeo presente de

sua lavra e todo o esforccedilo de natildeo mais me incomodar foi por amor que eacute minha cura

Mais cinco quilos a bordo de uma bicicleta cor-de-rosa seratildeo perdidos Recuso-me a

remexer ainda mais no passado Natildeo se angustie mamatildee Noacutes duas sabemos que natildeo

vale a pena-falta que a senhora serenize seus dias e deixe tambeacutem de remexer o passado

Depois que eu colocar o ponto final por favor mamatildee natildeo deixe de recompor sua

alegria seu desejo e sua piedade A senhora perdoaraacute a vida E eu terei esquecido que

cheguei ateacute aqui apesar da senhora

[hellip] (MOSCOVICH 2006 p250)

Destaca-se sobretudo a verossimilhanccedila interna da obra Entre o proacutelogo e o epiacutelogo haacute

muitas histoacuterias contadas em uma soacute compondo uma linha de tempo na cronologia do calendaacuterio

e outra dentro da personagem Afinal de contas o tempo interno tem um ritmo proacuteprio que

obedece acima de tudo agraves leis da memoacuteria

A narradora-personagem consegue compreender suas interrogaccedilotildees ao entremear passado

e presente histoacuteria familiar e individual A narrativa multifacetada natildeo sai dos trilhos e eacute possiacutevel

acompanhar o diaacutelogo da personagem consigo mesma atraveacutes da carta para sua matildee A

descoberta dos elementos alusivos agrave presenccedila e agrave falta de prazer alimentar que permeiam a obra

conduzem ao primeiro aspecto do presente capiacutetulo o que eacute o prazer afinal

60

22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL

Para o psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers o prazer no campo da Fenomenologia

Psiquiaacutetrica pode ser compreendido como a realizaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees

orgacircnicas Para o referido autor o prazer consiste no equiliacutebrio psiacutequico na satisfaccedilatildeo e no bem-

estar Jaacute conforme os autores do artigo Psicopatologia do Prazer Lorenzo Pelizza e Franco

Benazzi o prazer pode ser considerado um fenocircmeno psiacutequico de muacuteltiplas facetas Em termos

geneacutericos esse eacute um forte sentimento que corresponde agrave percepccedilatildeo de uma condiccedilatildeo positiva

fiacutesica ou mental proveniente do organismo

As pesquisas que abordam o prazer satildeo recentes Apenas haacute algumas deacutecadas a ciecircncia

passou a contribuir para evidenciar os efeitos beneacuteficos desse fenocircmeno tanto no sentido proacute-

ativo (como fator que favorece o bem-estar psico-fiacutesico do indiviacuteduo e que promove o processo

de cura da doenccedila) quanto no protetor (como elemento fundamental que fornece ao sujeito os

recursos necessaacuterios para afrontar e superar as experiecircncias negativas e para prevenir o risco de

adoecer) (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

Do ponto de vista do estudo do prazer como elemento saudaacutevel destacamos seu papel

como fator de importante valor motivacional sob o enfoque das teorias evolucionistas

Reduzindo ao maacuteximo a explicaccedilatildeo seria possiacutevel entender seu papel da seguinte forma como

espeacutecie sentimos prazer na alimentaccedilatildeo e na relaccedilatildeo sexual para que mediante esta sensaccedilatildeo

tenhamos estiacutemulo para nutrirmo-nos e procriarmos A gratificaccedilatildeo do ceacuterebro que ocorre

atraveacutes da experiecircncia prazerosa motiva o indiviacuteduo a repetir os comportamentos que a tornam

viaacutevel como o comer Forma-se assim um ciclo no qual a comida promove prazer e este motiva

a procuraacute-la pela resposta cerebral gerando novamente o prazer e assim ocorre a manutenccedilatildeo do

comportamento com sucessivas repeticcedilotildees A propoacutesito desse ciclo os referidos autores

esclarecem

O mecanismo operante de reforccedilorecompensa age em sentido evolucionista para

conduzir os comportamentos adotados na direccedilatildeo de escopos adaptativos que sejam uacuteteis

para garantir a sobrevivecircncia do indiviacuteduo (por exemplo busca de comida ou de aacutegua)

eou a conservaccedilatildeo da espeacutecie (condutas reprodutivas) Para que atinja a eficaacutecia o

estiacutemulo de reforccedilo deve ser capaz de ativar as instacircncias psiacutequicas do prazer e o sistema

neurobioloacutegico de gratificaccedilatildeo cerebral (circuitos dopaminergicos mesoliacutembicos) sendo

deste modo vivido como experiecircncia prazerosa satisfatoacuteria e assumindo assim um

importante valor motivacional (PELIZZA BENAZZI 2008 p298-299)

61

Tal explicaccedilatildeo evolucionista eacute relevante para a compreensatildeo do prazer alimentar Como

espeacutecie devemos sentir prazer ao comer com o propoacutesito de termos estiacutemulo para mantermos a

constacircncia de uma alimentaccedilatildeo regular O prazer eacute o elemento que torna possiacutevel esta constacircncia

O socioacutelogo e escritor brasileiro Carlos Alberto Doacuteria acrescenta um dado relevante nesse

sentido ao mencionar o autor de A fisiologia do gosto Jean Anthelme Brillat-Savarin que

publicou a obra em 1825 relevante na literatura gastronocircmica Nessa ao referir-se aos cinco

sentidos Brillat-Savarin acrescenta o sentido geneacutesico sobre o qual Doacuteria reflete em seu livro A

culinaacuteria materialista

Este uacuteltimo eacute o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro

sendo a sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecie Este sentido diz ele foi ignorado ateacute o

seacuteculo XVIII sendo anexado ao (ou confundido com o) tato Ora a reproduccedilatildeo da

espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo

a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo ao sexo e ao comer eacute o prazer a

busca do agradaacutevel e este eacute o sentido muito especial que ele pretende indicar como

responsaacutevel pela gastronomia (DOacuteRIA 2009 p190 grifo do autor)

Assim a relaccedilatildeo de prazer do indiviacuteduo com a comida eacute tambeacutem de acordo com Brillat-

Savarin uma estrateacutegia de sobrevivecircncia da espeacutecie assim como o sexo A sensaccedilatildeo prazerosa

ligada ao alimento refere-se principalmente agrave percepccedilatildeo deste como tendo gosto agradaacutevel ou

seja ldquo[] aquilo que apraz aos sentidos mobilizados pela alimentaccedilatildeordquo (DORIA 2009 p192)

O estudo da obra de Carlos Alberto Doacuteria abre um campo de reflexatildeo relevante no que

tange ao fenocircmeno do prazer pois o autor o aborda pela perspectiva gastronocircmica referindo o

que torna um alimento prazeroso Ele menciona que de acordo com os modernos teoacutericos do

gosto ldquo[] o agradaacutevel que comemos depende do impacto favoraacutevel sobre todos os cinco

sentidosrdquo (DOacuteRIA 2009 p194)

Para explicar como um alimento se torna agradaacutevel ele comeccedila por definir o mundo

objetivo lsquoo mundo das coisas e das nossas aptidotildees fisioloacutegicas para percebecirc-lorsquo e o mundo

subjetivo lsquodos nossos valores crenccedilas e preferecircncias individuaisrsquo Entatildeo acrescenta o ponto

chave de sua reflexatildeo ldquoTomemos como hipoacutetese que o gosto se forma na relaccedilatildeo entre esses dois

mundos O gosto assim entendido eacute relacional e se refere ao que se passa em torno do ato

fisioloacutegico de comerrdquo (DOacuteRIA 2009 p194) A fim de aprofundar a ideia desta relaccedilatildeo expotildee

Ao explorar a noccedilatildeo de gosto partindo de sua dimensatildeo material isto eacute da relaccedilatildeo que

se estabelece entre o mundo e o homem por intermeacutedio do complexo aparato sensitivo

temos que entender tambeacutem que o gosto varia de indiviacuteduo para indiviacuteduo entre as

62

diferentes idades de um mesmo indiviacuteduo entre as classes sociais de cultura para

cultura e de uma eacutepoca para outra na mesma cultura Sabemos tambeacutem que permanece

um misteacuterio como nasce o desejo intenso de se comer determinado alimento ou como a

monotonia de uma dieta se instaura de modo a repudiarmos o alimento apoacutes um certo

tempo Nada disso se explica por razotildees puramente fisioloacutegicas (DOacuteRIA 2009 p195)

Assim na relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o alimento agradaacutevel ao lsquocomplexo aparato

sensitivorsquo como define Doacuteria existem variaacuteveis como idade e cultura que interferem no modo

como a sensaccedilatildeo prazerosa eacute percebida Quanto ao aspecto cultural por exemplo o autor refere

O gosto partilhado por vaacuterias pessoas ndash sejam membros de uma famiacutelia de uma

comunidade de uma eacutepoca- sugere uma construccedilatildeo coletiva que natildeo se confunde com a

experiecircncia gustativa de cada um O caraacuteter afetivo da cozinha familiar eacute um modelo de

socializaccedilatildeo do gosto que todos conhecemos Ningueacutem faz determinado prato igual a

nossa matildee ou avoacute [] (DOacuteRIA 2009 p195)

Em diversas famiacutelias de uma dada geraccedilatildeo o lsquobife agrave milanesa da voacutersquo eacute emblemaacutetico em

representar a explicaccedilatildeo do autor Ao que parece o prazer reside no preparo pela avoacute mais do

que no prato em si A avoacute de cada famiacutelia seria a responsaacutevel pelo melhor bife agrave milanesa do

mundo de acordo com os respectivos netos Essa percepccedilatildeo reflete o que Doacuteria menciona como

lsquoo caraacuteter afetivo da cozinha familiarrsquo termo que coincide com o papel da Voacute Magra

personagem da obra em estudo neste capiacutetulo Outra consideraccedilatildeo relevante do autor acerca da

construccedilatildeo do universo do gosto eacute a de que este ldquo[] eacute expressatildeo da educaccedilatildeo do paladar e dos

demais sentidos conformados culturalmente para a apreciaccedilatildeo do que comemosrdquo (DOacuteRIA 2009

p196)

Deste modo eacute possiacutevel compreender que aprendemos a gostar do que eacute aceitaacutevel em

determinado contexto social e cultural entretanto temos em primeiro lugar a percepccedilatildeo

bioloacutegica atraveacutes dos cinco sentidos do que devemos levar agrave boca e daquilo que eacute necessaacuterio

evitar em termos de manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Pela aparecircncia e pelo olfato por exemplo um

alimento pode parecer prazeroso e entatildeo adequado ou repulsivo se apresentar sinais de bolor ou

de alteraccedilatildeo de suas caracteriacutesticas conhecidas A respeito dessa avaliaccedilatildeo sobre o que eacute

agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos com fins de alimentaccedilatildeo Doacuteria refere

O gosto caminha em meio a essas preferecircncias e rejeiccedilotildees ajudando a erigir barreiras

que demarcam os limites de determinada cultura ou mesmo as variaccedilotildees individuais

nessa mesma cultura Alimentos tabus natildeo devem ser tocados ou consumidos Por isso

seu sabor eacute tambeacutem repulsivo Assim as sociedades constroem um anteparo que protege

a cultura daquilo que ela considera lsquonatureza hostil (DOacuteRIA 2009 p196)

63

Se de um lado o prazer eacute o elemento bioloacutegico que impulsiona o indiviacuteduo para a

preservaccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do alimento (e da espeacutecie atraveacutes da coacutepula) de outro as

escolhas que condicionam a sensaccedilatildeo prazerosa no campo alimentar ultrapassam a dimensatildeo

corpoacuterea atingindo em boa parte das vezes a esfera cultural atraveacutes da construccedilatildeo coletiva do

gosto O autor apresenta neste aspecto a seguinte reflexatildeo

Podemos imaginar o homem como uma maacutequina bioloacutegica que se relaciona

integralmente com o mundo de tal forma que todos os estiacutemulos que ele internaliza

afetam a totalidade dessa maacutequina O nosso conhecimento estaacute no tato na audiccedilatildeo na

visatildeo no olfato no paladar e tudo isso eacute processado natildeo apenas diretamente como

experiecircncia pessoal mas no acoplamento que mantemos com seres da mesma espeacutecie

(DOacuteRIA 2009 p197)

De acordo com essa exposiccedilatildeo podemos gostar daquele alimento que eacute aceitaacutevel em

nossa cultura e em nosso meio para assim continuarmos pertencendo ao grupo de que somos

parte contemplando a noccedilatildeo que o autor estabelece como o lsquoacoplamento que mantemos com

seres da mesma espeacuteciersquo Ao sentir prazer nos sentimos impelidos a comer algo porque nos

desperta a sensaccedilatildeo agradaacutevel essa experiecircncia eacute em primeiro plano instintiva quando o ldquo[]

elo entre prazerdesprazer se estabelece como base do fenocircmeno da aprendizagem e da aversatildeo a

um sabor a partir do risco que sinaliza para o organismordquo (DOacuteRIA 2009 p205)

Em segundo plano gostamos do que aprendemos que podemos gostar de acordo com a

cultura em que estamos inseridos Nesse contexto cabe ressaltar o fenocircmeno da

neuroplasticidade atraveacutes do qual o ceacuterebro se molda a partir das experiecircncias a que eacute exposto

de acordo com tal ocorrecircncia os mecanismos cerebrais aprendem a responder a determinado

estiacutemulo e criam um espaccedilo de resposta ao mesmo quanto mais vezes exposto a ele Isso pode

acontecer no aprendizado de uma competecircncia como tocar um instrumento musical falar um

idioma ou ateacute mesmo naquele de um novo paladar Aprendemos a gostar de um alimento o que

faz com que a sensaccedilatildeo agradaacutevel obtida ao comermos nos faccedila querer repetir seu consumo

Surge entatildeo a perspectiva do prazer em seu percurso do ponto de partida sauacutede para o

ponto de chegada doenccedila De acordo com Benazzi e Pelizza os mecanismos neurobioloacutegicos

responsaacuteveis pela gratificaccedilatildeo cerebral alimentam-se do prazer e quanto mais recebem mais

demandam que o organismo lhes forneccedila mais e mais sensaccedilotildees prazerosas Essa condiccedilatildeo

manifesta-se apenas em alguns indiviacuteduos cuja carga geneacutetica e aprendizagem cultural

favoreccedilam os comportamentos ditos compulsivos por exemplo Nas pessoas propensas a tal

64

expressatildeo isso ocorre sucessivamente motivo pelo qual o prazer alimentar pode ser natildeo mais um

aliado da sauacutede e da sobrevivecircncia mas sim um algoz a partir de determinado momento Esse

ponto eacute quando o comer se torna excessivo fornecendo de modo incessante e crescente a

gratificaccedilatildeo prazerosa aos mecanismos cerebrais de recompensa

Desfaz-se assim a noccedilatildeo de prazer apresentada por Jaspers anteriormente referida

Quando haacute aumento das sensaccedilotildees prazerosas para saciar a demanda dos centros cerebrais de

gratificaccedilatildeo e natildeo mais para que o prazer esteja calcado lsquono equiliacutebrio psiacutequico e no bem-estarrsquo

pode-se compreender que esse deixou de cumprir sua funccedilatildeo na sauacutede

Quando uma cultura em amplo espectro como a norte-americana aprende a sentir prazer

com a ingesta do fast-food e isso se transmite a outras culturas e ainda mais grave agraves geraccedilotildees

seguintes os problemas de sauacutede atingem dimensotildees catastroacuteficas Esse resultado jaacute eacute possiacutevel

constatar em nosso seacuteculo XXI Compreende-se assim que natildeo apenas o indiviacuteduo pode

adoecer mas a cultura tambeacutem pode adoecer Fortunadamente pensadores do campo da

alimentaccedilatildeo como Michael Pollan tecircm combatido de modo ferrenho essa tendecircncia como o faz

em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo salienta-se tambeacutem o italiano

Carlo Petrini que jaacute na deacutecada de 80 fundou a filosofia do slow food em oposiccedilatildeo ao haacutebito

determinado pelas cadeias de fast-food ao redor do mundo

Cada vez mais o slow food tem ganho espaccedilo na compreensatildeo contemporacircnea sobre o

comer com prazer com sauacutede e com lentidatildeo respeitando o tempo das refeiccedilotildees como um tempo

de interaccedilatildeo familiar e de consciecircncia do alimento que se ingere Referimos nesse sentido o

proacuteprio Pollan responsaacutevel pela defesa de que as famiacutelias voltem a comer em casa como

oportunidade de alimentaccedilatildeo saudaacutevel e de interaccedilatildeo entre os membros do grupo familiar

Entretanto as mudanccedilas causadas pela conscientizaccedilatildeo estatildeo apenas nos primeiros passos os

comportamentos alimentares insalubres ainda representam a maioria ao menos no ocidente As

patologias do prazer ocupam importante espaccedilo no campo das doenccedilas contemporacircneas em

termos psiacutequicos e em suas decorrecircncias fiacutesicas

Tanto a reduccedilatildeo quanto o aumento significativo de experiecircncias prazerosas podem levar agrave

ocorrecircncia de patologias nos acircmbitos fiacutesico e psiacutequico No artigo em estudo Psicopatologia do

prazer lecirc-se ldquoO ser humano frente agrave possibilidade de permitir-se prazeres em alguns casos

pode sentir-se impedido pela preocupaccedilatildeo pela desvalia e pela culpa relativa a eventuais

consequecircncias potencialmente danosas de suas accedilotildeesrdquo (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

65

Esses mesmos autores referem a existecircncia de uma porcentagem significativa de

indiviacuteduos capazes de experimentar sentimentos de baixa autoestima ou de culpa (leve e

transitoacuteria ou ao contraacuterio intensa e mantida) em relaccedilatildeo aos interesses e atividades que lhes

provocam prazer Tais emoccedilotildees desagradaacuteveis viriam em forma e em intensidade e representam

um relevante contraponto agrave sensaccedilatildeo prazerosa podendo inclusive inibir as experiecircncias futuras

de prazer A ausecircncia desse gera mais desvalia e culpa estresse crocircnico e sentimentos de

incapacidade impedindo com que novas vivecircncias potencialmente prazerosas aconteccedilam e assim

ocorre um ciclo com repercussotildees na sauacutede tanto em termos fiacutesicos quanto mentais Os autores

do artigo referem

[] de uma espeacutecie de estressor interno que tais indiviacuteduos transfeririam de uma

situaccedilatildeo a outra dessas circunstacircncias decorreriam entatildeo efeitos negativos sobre sua

sauacutede fiacutesica suas capacidades cognitivas (ex concentraccedilatildeo atenccedilatildeo memoacuteria) e em seu

funcionamento nos campos social e laboral cotidiano Seria possiacutevel referir que o

excesso de culpa ou desvalia determinaria uma condiccedilatildeo de estresse crocircnico capaz de

aumentar significativamente a secreccedilatildeo dos hormocircnios ligados ao estresse com

consequumlecircncias danosas agrave sauacutede fiacutesica e agrave mental (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)

Ressaltamos que o contraacuterio tambeacutem ocorre Cabe refletir sobre o desejo exasperado e

absoluto de prazer levada a extremos como nas condiccedilotildees de transtornos alimentares (entre

esses a compulsatildeo alimentar) De acordo com tais autores quando ocorrer uma busca excessiva

de sensaccedilotildees prazerosas mesmo se houver a gratificaccedilatildeo desses prazeres haveraacute riscos para a

sauacutede do indiviacuteduo Nesse caso o prazer em excesso passaraacute a ser o responsaacutevel pelos

sentimentos de culpa desvalia depressatildeo ansiedade e descontrole de impulsos (PELIZZA

BENAZZI 2008)

O prazer em excesso no campo alimentar conduz muitas vezes ao aumento de peso

com prejuiacutezos agrave sauacutede Essas circunstacircncias podem acarretar uma forma de dor emocional

diretamente ligada ao prazer de comer como nos casos de indiviacuteduos que fazem dieta alimentar

por orientaccedilatildeo meacutedica Nesses a restriccedilatildeo imposta representa um importante sofrimento quando

se encontram em sobrepeso ou em condiccedilatildeo de obesidade moacuterbida A exigecircncia de restringir o

que lhes daacute prazer pode ser um motivo de transgressotildees da dieta O resultado eacute o natildeo

emagrecimento ou o engorde ainda maior A seguir vecircm a culpa a desvalia a tristeza e o

desacircnimo todos os antagonistas da sensaccedilatildeo prazerosa Para compensar as emoccedilotildees os

indiviacuteduos socorrem-se com a comida mantendo o ciacuterculo vicioso O equiliacutebrio preconizado por

Jaspers em sua perspectiva sobre o prazer natildeo eacute encontrado

66

Em Por que sou gorda mamatildee o conflito da personagem com o impedimento ao prazer

alimentar estaacute presente em diversos trechos A narradora faz uma dolorosa e agraves vezes bem-

humorada recapitulaccedilatildeo de suas vivecircncias de prazer com a comida e de suas experiecircncias de

dieta de emagrecimento Satildeo narradas tambeacutem suas emoccedilotildees de desvalia e baixa autoestima por

vestir o adjetivo de gorda entretanto muito de sua insatisfaccedilatildeo estaacute no impedimento para comer

o que gosta o que lhe daacute prazer

Haacute uma visatildeo especiacutefica sobre o que eacute o prazer nos indiviacuteduos que apresentam

comportamentos anormais na procura por esta experiecircncia eles referem em diversas ocasiotildees a

percepccedilatildeo que tecircm sobre a comida na qualidade de fonte de prazer para algumas pessoas comer

eacute a uacutenica fonte de prazer possiacutevel Eacute comum referirem nas consultas meacutedicas lsquoou usufruo do

maacuteximo prazer ou natildeo sentirei nenhumrsquo ou lsquose natildeo puder comer todo o pote de sorvete natildeo

como mais nada Ou isto ou nada Me nego a fazer dietarsquo haacute ainda quem refira lsquonatildeo acredito

em dia livre dieta natildeo tem dia livre Isso eacute enganaccedilatildeo porque ningueacutem consegue voltar a comer

direito no outro diarsquo Essas frases demonstram padrotildees culturais de interpretaccedilatildeo do papel da

comida muitas vezes substitutivo de outras necessidades emocionais

Existindo maior resposta positiva aos prazeres aos quais o indiviacuteduo se dirige em

especial nas situaccedilotildees de excesso ocorreraacute ainda maior demanda por parte desses mecanismos

Como resultado surgem sintomas psiquiaacutetricos isolados ou em comorbidade decorrentes do

desequiliacutebrio gerado pela demanda excessiva Haacute ainda as decorrecircncias fiacutesicas de tal

desequiliacutebrio como a obesidade e as doenccedilas a ela associadas o diabetes a hipertensatildeo arterial e

a hipercolesterolemia entre outras Mais cedo ou mais tarde o corpo cobra sua conta dos

excessos quando se perpetuam

23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA

A fisiologia do gosto obra essencial na literatura gastronocircmica citada anteriormente foi

escrita por Jean Anthelme Brillhat-Savarin advogado e juiz francecircs (1755-1826) apaixonado

pelos prazeres da mesa O livro eacute composto por trinta capiacutetulos que o autor intitula lsquoMeditaccedilotildeesrsquo

e um uacuteltimo composto de variedades A fatia destinada agrave reflexatildeo sobre o prazer eacute a meditaccedilatildeo

14 lsquoDo prazer da mesarsquo Sobre a procura pelo prazer em termos gerais Brillat-Savarin refere

67

O homem eacute incontestavelmente dos seres sensitivos que povoam nosso globo o que

experimenta mais sofrimentos A natureza o condenou primitivamente agrave dor pela nudez

de sua pele pela forma de seus peacutes pelo instinto de guerra e destruiccedilatildeo que acompanha

a espeacutecie humana onde quer que ela se encontre

Os animais natildeo foram atingidos por essa maldiccedilatildeo e sem alguns combates causados

pelo instinto de reproduccedilatildeo a dor no estado de natureza seria completamente

desconhecida da maior parte das espeacutecies ao passo que o homem que soacute encontra o

prazer passageiramente e por meio de um pequeno nuacutemero de oacutergatildeos estaacute sempre

exposto em todas as partes do corpo a terriacuteveis sofrimentos

Essa sentenccedila do destino foi agravada em sua execuccedilatildeo por uma seacuterie de doenccedilas

nascidas dos haacutebitos do estado social de modo que o prazer mais satisfatoacuterio que se

possa imaginar seja em intensidade seja em duraccedilatildeo eacute incapaz de compensar as dores

atrozes que acompanham certos distuacuterbios [hellip] Eacute o temor praacutetico da dor que faz o

homem sem se aperceber disso lanccedilar-se com iacutempeto na direccedilatildeo oposta entregando-se

ao pequeno nuacutemero de prazeres que herdou da natureza (BRILLAT-SAVARIN 1995

p167)

Brillat-Savarin aponta que o homem se atira ao prazer para fugir das dores inerentes agrave

espeacutecie Entretanto esse eacute apenas um dos elementos de compreensatildeo do prazer alimentar pois a

sensaccedilatildeo prazerosa decorre tambeacutem de outros fatores presentes em nossa fisiologia e psiquismo

a sociabilidade por exemplo eacute um desses componentes e estaacute envolvida no que o autor

estabelece como o prazer da mesa Ele refere no capiacutetulo lsquoO prazer da mesarsquo uma reflexatildeo

importante sobre a comensalidade a refeiccedilatildeo em conjunto ldquoFoi durante as refeiccedilotildees que devem

ter nascido ou se aperfeiccediloado nossas liacutenguas seja porque era uma ocasiatildeo de reuniatildeo que se

repetia seja porque o lazer que acompanha e segue a refeiccedilatildeo dispotildee naturalmente agrave confianccedila e agrave

loquacidaderdquo (BRILLAT-SAVARIN 1995 p168)

Brillat-Savarin faz uma diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer- relacionando-o agrave satisfaccedilatildeo

da fome atraveacutes do alimento como ocorre com os animais - e o prazer da mesa exclusivo agrave

espeacutecie humana De acordo com esse autor ldquo[] o prazer de comer exige se natildeo a fome ao

menos o apetite o prazer agrave mesa na maioria das vezes independe de ambosrdquo (BRILLAT-

SAVARIN 1995 p170) Esse uacuteltimo representa assim a sociabilidade o conviacutevio agradaacutevel

com aqueles com quem se divide uma refeiccedilatildeo Ainda sobre o prazer da mesa Brillat-Savarin

explicita

[hellip] natildeo comporta arrebatamentos nem ecircxtases nem transportes mas ganha em duraccedilatildeo

o que perde em intensidade e se distingue sobretudo pelo privileacutegio particular de nos

incliner a todos os outros prazeres ou pelo menos de nos consolar por sua perda Com

efeito apoacutes uma boa refeiccedilatildeo o corpo e a alma gozam de um bem-estar especial

Fisicamente ao mesmo tempo em que o ceacuterebro se revigora a face se anima e se colore

os olhos brilham um suave calor se espalha em todos os membros Moralmente o

espiacuterito se aguccedila a imaginaccedilatildeo se aquece os ditos espirituosos nascem e circulam [hellip]

Aliaacutes com frequumlecircncia temos em volta da mesa todas as modificaccedilotildees que a extrema

sociabilidade introduziu entre noacutes o amor a amizade os negoacutecios as especulaccedilotildees o

68

poder as solicitaccedilotildees o protetorado a ambiccedilatildeo a intriga eis por que a convivialidade

tem a ver com tudo eis por que produz frutos de todos os sabores (BRILLAT-

SAVARIN 1995 p170-171)

O trecho acima transcrito expressa que os propoacutesitos para que o prazer da mesa fosse

atingido natildeo eram apenas a amizade e a intenccedilatildeo de conviacutevio entre as pessoas Eacute possiacutevel

verificar que havia tambeacutem entre os objetivos para a partilha das refeiccedilotildees o poder a ambiccedilatildeo e

outros aspectos distantes das alianccedilas de afeto A circunstacircncia do prazer da mesa criava uma

aproximaccedilatildeo maior entre os participantes de disputas poliacuteticas e administrativas favorecendo os

acordos pela ilusoacuteria sensaccedilatildeo de zelo e de alianccedila Nesse periacuteodo o prazer ainda natildeo era

percebido como finalidade e sim como instrumento para a aquisiccedilatildeo de benefiacutecios Segundo

Brillat-Savarin haacute quatro condiccedilotildees para que exista o prazer em uma refeiccedilatildeo

Chegamos portanto a tal progressatildeo alimentar que se os afazeres natildeo nos forccedilassem a

deixar a mesa ou se a necessidade do sono natildeo se interpusesse a duraccedilatildeo das refeiccedilotildees

seria praticamente indefinida e natildeo teriacuteamos nenhum dado certo para determinar o

tempo transcorrido desde o primeiro gole de madeira ateacute o ultimo copo de ponche [hellip]

Desfruta-se o prazer em quase toda sua extensatildeo toda vez que se reuacutenem as quatro

seguintes condiccedilotildees comida ao menos passaacutevel bom vinho comensais agradaacuteveis

tempo suficiente (BRILLAT-SAVARIN 1995 p172-173)

No livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo haacute explicaccedilotildees que muito se assemelham ao exposto

por Brillat-Savarin No capiacutetulo lsquoComer compromete refeiccedilotildees banquetes e festasrsquo o autor Gerd

Althoff expotildee elementos relevantes sobre o papel da refeiccedilatildeo na vida coletiva e social na Idade

Meacutedia

Durante a maior parte da Idade Meacutedia a refeiccedilatildeo e o banquete (convivium) constituiam

o mais eloquumlente siacutembolo de que se dispunha para para expresser o compromisso de

manter relaccedilotildees baseadas na paz e na concoacuterdia A palavra-chave nesse caso eacute

ldquocompromissordquo porque comer e beber junto era uma forma de obrigar-se a satisfazer as

condiccedilotildees que esse tipo de laccedilo implica [] (ALTHOFF 2015 p300)

Acordos e alianccedilas eram entatildeo estabelecidos em banquetes de longa duraccedilatildeo chamados

convivium A relaccedilatildeo de cumplicidade e de compromisso entre os indiviacuteduos estabelecida pela

existecircncia destes eventos natildeo foi por certo o iniacutecio do papel da refeiccedilatildeo partilhada como

elemento agregador entre as pessoas Haacute muitos periacuteodos da histoacuteria como exposto pelos vaacuterios

pesquisadores no livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo em que o comer junto assumiu papel essencial

na comunhatildeo dos membros de uma coletividade sendo a alegria e o prazer algumas das emoccedilotildees

presentes em vaacuterios desses periacuteodos

69

Quando Brillat-Savarin refere quatro condiccedilotildees para desfrutar-se o prazer em uma

refeiccedilatildeo uma dessas eacute que haja lsquocomensais agradaacuteveisrsquo Tal fato nos remete aos elementos da

alianccedila e da paz no conviacutevio entre aqueles que comiam juntos nos banquetes da Idade Meacutedia

mas remete principalmente ao elemento do prazer que aparece atraveacutes do termo lsquoagradaacuteveisrsquo O

prazer eacute um ingrediente necessaacuterio no estabelecimento dessa alianccedila pois propicia que os

indiviacuteduos se comprometam uns com os outros pelo bem-estar que o viacutenculo permite Tal

resultado propicia a constacircncia dessa ligaccedilatildeo importante tambeacutem do ponto de vista poliacutetico na

eacutepoca O bem-estar da refeiccedilatildeo partilhada era entatildeo um meio natildeo um fim era o recurso para a

manutenccedilatildeo da perenidade nas relaccedilotildees garantindo ldquo[] a disposiccedilatildeo de todos os participantes de

cumprirem os deveres dela decorrentesrdquo (ALTHOFF 2015 p309)

Ainda no que tange agrave ocasiatildeo do convivium ressalta-se a forma como as atividades

prazerosas eram proporcionadas com o propoacutesito de reforccedilar a ligaccedilatildeo entre os participantes

Era quase impensaacutevel passar vaacuterios dias natildeo fazendo outra coisa senatildeo comer beber e

trocar presentes mesmo que se atribua aos participantes um apetite e uma inclinaccedilatildeo

para a bebida for a do comum Isso explica que nossas fontes mencionem agraves vezes vaacuterias

atividades paralelas que se poderiam agrupar sob a denominaccedilatildeo de lsquodivertimentos

mundanosrsquo entre os quais os espetaacuteculos dados durante os convivial em que danccedilarinos

(ou danccedilarinas) muacutesicos ambulantes menestreacuteis e poetas distraiam os convivas A

sucessatildeo de pratos e bebidas interrompia-se tambeacutem para permitir aos participantes fazer

um pouco de exerciacutecio Tratava-se de jogos ou agraves vezes de animadas caccediladas

Certamente esses elementos do convivium tinham tambeacutem um valor simboacutelico Viver

algum tempo juntos em paz e partilhar certas atividades criava entre as pessoas o clima

de confianccedila necessaacuterio assegurava-se ao novo parceiro que se desejava a paz e que se

estava disposto a respeitaacute-la e firmava-se o compromisso de continuar a agir assim no

futuro (ALTHOFF 2015 p303)

Assim o prazer afirmava-se como elemento agregador de grande importacircncia na

permanecircncia de viacutenculos Entretanto a finalidade de tais viacutenculos natildeo se concentrava

propriamente no bem-estar em si entre os participantes mas nos benefiacutecios propiciados em

termos de propriedades poder administraccedilatildeo e outros fins de interesse material No convivium

o prazer era oferecido nas atividades de lsquodivertimento mundanorsquo Eacute possiacutevel compreender a

partir desse dado que o prazer da partilha no comer junto da Idade Meacutedia natildeo se aproximava do

prazer com o alimento ou a bebida per se mas com atividades paralelas de divertimento para

entreter os convivas durante os dias de banquete

O prazer entatildeo era ainda um elemento natildeo ligado ao comer pelo sabor da comida assim

como as alianccedilas eram vaacutelidas pelos benefiacutecios que alicerccedilavam natildeo por sua importacircncia para o

bem viver entre os membros de uma coletividade De acordo com Gerd Althoff as relaccedilotildees entre

70

os indiviacuteduos e os costumes como o comer e o beber junto eram de grande importacircncia para a

realidade medieval

Todas as culturas arcaicas recorriam a este meacutetodo para unir uma comunidade

Entretanto os efeitos da refeiccedilatildeo natildeo derivam dela proacutepria De fato na Idade Meacutedia a

refeiccedilatildeo o banquete e a festa serviam para exteriorizar atos administrativos rituais e

portanto convenccedilotildees que serviam para veicular um sentido bem determinado de modo

constrangedor e coercitivo (ALTHOFF 2015 p309)

No capiacutetulo de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo lsquoTempero cozinha e dieteacutetica nos seacuteculos XIV

XV e XVIrsquo haacute relevantes esclarecimentos sobre o papel do prazer no comer e sua importacircncia

para a sauacutede Um dos pontos referidos por seu autor quanto ao papel do uso dos temperos e do

cozinhar os alimentos estaacute relacionado tambeacutem ao prazer alimentar ldquoDe uma maneira geral

todo tempero e todo cozimento ou seja toda cozinha tinha uma dupla funccedilatildeo tornar os

alimentos ao mesmo tempo mais apetitosos saborosos e mais faacuteceis de digerirrdquo (FLANDRIN

2015 p482)

Deste modo falar no prazer de comer torna-se parte da perspectiva histoacuterica desse

periacuteodo quando as especiarias estatildeo no auge de seu reconhecimento Flandrin refere que os

seacuteculos XIV XV e XVI foram o aacutepice de seu papel na cozinha europeacuteia quando esses

ingredientes tinham tambeacutem valor terapecircutico Natildeo se pode referir que o prazer atraveacutes da

comida tenha iniciado nesse periacuteodo histoacuterico mas eacute possiacutevel compreender que esse periacuteodo foi o

iniacutecio do falar em prazer como aspecto favoraacutevel agrave digestatildeo Havia uma aproximaccedilatildeo entre a

gastronomia e a dieteacutetica conforme Jean-Louis Flandrin sugerida no trecho ldquoAos dietistas

interessava o gosto dos alimentos por diversas razotildees Em primeiro lugar porque se digere

melhor aquilo que se come com prazer-como acreditamos ateacute hojerdquo (FLANDRIN 2015 p486)

Compreender o prazer como elemento presente na alimentaccedilatildeo torna-o tambeacutem parte da

sauacutede e do bem-estar do ser humano Esta perspectiva remete ao estabelecido por Karl Jaspers

sobre o prazer Este fenocircmeno seria equivalente agrave satisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas

funccedilotildees orgacircnicas com resultados no equiliacutebrio psiacutequico na percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e no bem-

estar do indiviacuteduo Desse modo ao ler o historiador Jean-Louis Flandrin confirma-se o papel do

prazer na lsquosatisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees orgacircnicasrsquo na concepccedilatildeo do

psicopatologista Jaspers Flandrin conclui o capiacutetulo com a seguinte reflexatildeo

Em resumo cozinhar agravequela eacutepoca assim como hoje era dar aos alimentos os sabores

mais agradaacuteveis- mas agradaacuteveis no acircmbito de uma determinada cultura para um gosto

71

diferente do nosso porque modelado por outras crenccedilas dieteacuteticas outros haacutebitos

alimentares (FLANDRIN 2015 p495)

Falar no prazer de comer entatildeo remete a Karl Jaspers pela concepccedilatildeo meacutedica do prazer

mas tambeacutem a Brillat-Savarin em sua diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer e o prazer da mesa

Para o escritor de A fisiologia do gosto o primeiro eacute de ordem bioloacutegica a meu ver menos ligado

agrave sensaccedilatildeo prazerosa ligada ao sabor e mais associada ao mero saciar da fome o segundo

exclusivo da espeacutecie humana eacute vinculado agrave experiecircncia de conviacutevio agradaacutevel com os comensais

na partilha de uma refeiccedilatildeo

A abordagem da dualidade entre gastronomia e dieteacutetica apontada por Jean-Louis

Flandrin eacute semelhante agravequela da dualidade apontada por Brillat-Savarin o prazer de comer e o

prazer da mesa Talvez essas divisotildees tivessem o propoacutesito de partir o indiviacuteduo em duas

metades a do corpo e a da mente A metade que se satisfaz com o saciar da fome seria entatildeo

diferente da que se apraz da companhia dos amigos agrave mesa A metade que preparava as receitas

pela gastronomia em fins da Idade Meacutedia seria diversa da que seguia as ordens da dieteacutetica

Nesse sentido a visatildeo de Jaspers sobre o prazer eacute a mais completa pois integra a satisfaccedilatildeo

harmocircnica e ordenada das funccedilotildees orgacircnicas ao equiliacutebrio psiacutequico agrave percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e

ao bem-estar do indiviacuteduo

Considerando o prazer alimentar entatildeo como elemento que envolve o corpo e a mente

do saciar agrave fome ao satisfazer o prazer gustativo e social surgem dois novos termos a gula e o

bom gosto

Os seacuteculos XVII e XVIII trouxeram mudanccedilas na relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com o prazer do

gosto Enquanto na Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVII a alimentaccedilatildeo das elites aproximava-

se muito de perto das prescriccedilotildees dos meacutedicos o que se seguiu a partir de entatildeo foi o apagamento

das referecircncias agrave antiga dieteacutetica dando lugar entre cozinheiros e gastrocircnomos agrave harmonia dos

sabores como prioridade Ficou relegado a segundo plano o aspecto de que ldquo[] os sabores eram

ateacute entatildeo ligados tanto a eles como aos meacutedicos sabiamente classificados do mais frio ao mais

quente eles constiuiacuteam uma indicaccedilatildeo segura da natureza dos alimentos e sua digestibilidaderdquo

(FLANDRIN MONTANARI 2015 p548) Um resultado interessante da separaccedilatildeo progressiva

entre cozinha e dieteacutetica foi uma permissatildeo para a gulodice conforme o registro de Histoacuteria da

alimentaccedilatildeo

72

Os refinamentos da cozinha natildeo visam mais manter a boa sauacutede das pessoas mas

satisfazer o gosto dos glutotildees Com uma pequena diferenccedila estes ainda natildeo se

reconhecem como tais e se apresentam como pessoas de paladar apurado apreciadores

de iguarias e peritos na arte de reconhececirc-las (FLANDRIN MONTANARI 2015

p549)

Com o avanccedilo das descobertas e das criaccedilotildees dos cozinheiros e gastrocircnomos o prazer

com os alimentos reveste-se de nova importacircncia a gula Comer torna-se sinocircnimo nesse

contexto de desfrutar do sabor da comida o que muitas vezes eacute partilhado com amigos Para

Brillat-Savarin seria a uniatildeo do prazer de comer e do prazer da mesa O gosto como sentido

fisioloacutegico assume nova representaccedilatildeo eleva-se agrave categoria de bom-gosto com aplicaccedilotildees para

aleacutem dos campos da cozinha De acordo ainda com os organizadores de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo

Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari

O gosto esse sentido de que a natureza dotou o homem e os animais para discernirem o

comestiacutevel do natildeo-comestiacutevel sofreu alias em meados do seacuteculo XVII uma estranha

valorizaccedilatildeo fala-se dele a partir daiacute em sentido figurado a propoacutesito de literature

escultura pintura muacutesica mobiliaacuterio vestuaacuterio etc Em todos esses domiacutenios eacute ele que

permite distinguumlir o bom do ruim o belo do feio eacute o oacutergatildeo caracteriacutestico do lsquohomem de

gostorsquo um dos avatares do homem perfeito Ora essa valorizaccedilatildeo implica uma certa

toleracircncia para com os glutotildees (FLANDRIN MONTANARI 2015 p549)

Bom-gosto gula e prazer satildeo termos que se referem a uma semacircntica do deleite da

experiecircncia gustativa produzida nas cozinhas da eacutepoca com iniacutecio no seacuteculo XVII O indiviacuteduo

comeccedila a perceber a possibilidade de extrair da comida uma espeacutecie de luxuacuteria traduzida pela

gulodice Ele desfruta do sabor do alimento como se estivesse em um climax eis o glutatildeo

Enquanto na alta Idade Meacutedia o prazer nos banquetes vinha das atividades paralelas e seu

propoacutesito natildeo era a experiecircncia prazerosa per se mas a alianccedila e a realizaccedilatildeo de objetivos que

dela resultavam a partir desse seacuteculo o prazer reveste-se de importacircncia nos campos de forno-e-

fogatildeo

Dane-se a dieteacutetica talvez pensassem os sujeitos Gula e prazer eram expressotildees que a

boa comida despertava usufruiacutea deles quem tinha bom-gosto Nascia entatildeo um grupo de

pessoas com os pomposos tiacutetulos de lsquogourmetsrsquo e lsquogastrocircnomosrsquo seguida do surgimento e da

expansatildeo de sua literatura apropriada os tratados de cozinha Um novo modo de vivenciar o

alimento tornava-se cada vez mais abundante Houve um significativo movimento gerado pelo

gosto alimentar ldquoA multiplicaccedilatildeo das artes ligadas agrave alimentaccedilatildeo e das obras teacutecnicas que tratam

delas foi acompanhada sob formas diversas de escritos que fazem a apologia do prazer de comer

e ateacute da glutonaria e da embriaguezrdquo (FLANDRIN MONTANARI 2015 p551)

73

Entretanto tal vivecircncia jaacute existia em menor expressatildeo na Itaacutelia do Quatrocentos Conta-

se que ldquoPlatinardquo o humanista Bartolomeo Sacchi teve relevante papel no prazer de comer no

referido periacuteodo com seu De honesta voluptate

Natildeo soacute este natildeo eacute cozinheiro nem meacutedico [hellip] mas mistura agrave sua documentaccedilatildeo

culinaacuteria e dieteacutetica a lembranccedila nostaacutelgicada alegria que seus amigos e ele

experimentavam ao saborear este ou aquele prato de mestre Martino o grande

cozinheiro romano de meados do seacuteculo acima de tudo ele utiliza isso para defender o

honesto prazer de saborear uma cozinha ao mesmo tempo simples e refinada prazer que

poderiacuteamos hoje classificar como o de um glutatildeo (FLANDRIN MONTANARI 2015

p552)

Por que na eacutepoca de Platina e entatildeo nos seacuteculos XVII e XVIII de efervescecircncia dos

gourmets ou mesmo em nosso seacuteculo XXI a sensaccedilatildeo prazerosa provocada pelo alimento eacute tatildeo

semelhante em sujeitos tatildeo diversos Pelo fato de que o prazer eacute inerente agrave experiecircncia humana

A definiccedilatildeo dada por Jaspers agrave sensaccedilatildeo prazerosa une aspectos da percepccedilatildeo fiacutesica e da

experiecircncia mental integradas Com base em sua definiccedilatildeo e considerando o acima exposto

sobre os termos gula prazer e bom-gosto ocorre a pergunta por que tantos sujeitos de diferentes

eacutepocas vivenciaram o prazer associado agrave comida em especial quando essa assumiu uma

conotaccedilatildeo de importacircncia com o iniacutecio da Gastronomia um termo cognitivo Recorremos a uma

possiacutevel explicaccedilatildeo neurocientiacutefica para esse questionamento a hipoacutetese do ceacuterebro triuno que

abrange a experiecircncia prazerosa como elemento exclusivo do ser humano

A referida hipoacutetese foi proposta pelo meacutedico e neurocientista americano Paul MacLean

em 1970 Segundo tal autor somos compostos grosso modo por trecircs ceacuterebros que trabalham em

colaboraccedilatildeo embora oriundos de diferentes etapas da evoluccedilatildeo das espeacutecies Assim nos

mamiacuteferos superiores existe uma hierarquia de trecircs ceacuterebros em um soacute daiacute o termo triuno De

acordo com a teoria os trecircs operam com diferentes graus de complexidade mas orquestram o

funcionamento humano de forma conjunta O ceacuterebro reptiliano presente desde os reacutepteis ou

arquicoacutertex seria o mais primitivo responsaacutevel pelas questotildees de sobrevivecircncia bioloacutegica como

alimentaccedilatildeo reproduccedilatildeo proteccedilatildeo etc A seguir em termos evolucionistas viria o ceacuterebro

liacutembico ou paleocoacutertex responsaacutevel pela elaboraccedilatildeo das emoccedilotildees como apetite medo raiva

etc presente desde as aves O terceiro e entatildeo o mais evoluiacutedo seria o neocortex responsaacutevel

pela elaboraccedilatildeo dos pensamentos e dos sentimentos e exclusivamente humano

Transpondo essa teoria para o campo alimentar podemos referir o ceacuterebro reptiliano

como responsaacutevel pela fome enquanto o liacutembico seria responsaacutevel pelo desejo por essa ou aquela

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comida especiacutefica O neocortex viria ao final para dar significado ao que comemos atraveacutes da

compreensatildeo das emoccedilotildees da relaccedilatildeo entre a memoacuteria e o alimento e da atribuiccedilatildeo de conceitos

cognitivos como a noccedilatildeo de bom-gosto No campo gastronocircmico seria possiacutevel entender a

cooperaccedilatildeo dos trecircs ceacuterebros como uma integraccedilatildeo que tem como resultado o prazer de saborear

este ou aquele quitute Saboreamos porque temos fome porque algo nos apetece e nos desperta

desejo por fim porque aprendemos do ponto de vista cognitivo que gostar daquele alimento eacute

permitido e em alguns casos eacute valoroso pois nos torna pertencentes a um grupo como o dos

glutotildees e gourmets Se comer tal alimento for prazeroso isto significa que nossos trecircs ceacuterebros

foram atendidos e estatildeo trabalhando em conjunto Mais uma vez o bem-estar do corpo de da

mente referido por Jaspers

Compreender o prazer que existe como expressatildeo fiacutesica emocional e mental nos

possibilita entender por que esse tambeacutem pode estar associado a patologias nos mesmos

domiacutenios A explicaccedilatildeo estaacute no fato de que para vivenciar esse complexo fenocircmeno eacute preciso

que sejamos humanos e que nossos trecircs ceacuterebros operem em orquestra vulneraacuteveis agraves

experiecircncias positivas ou negativas inexoraacuteveis

24 O PRAZER DA COMIDA

A partir da constataccedilatildeo do engorde e da dieta orientada pelo meacutedico a protagonista de

Por que sou gorda mamatildee lsquopassa a vida a limporsquo em sua memoacuteria Com o propoacutesito de

compreender o porquecirc de seu engorde escreve uma carta para a matildee em trechos ora

confessionais ora acusatoacuterios esperando na correspondecircncia construir para si a resposta ao

longo das lembranccedilas que evoca

O balanccedilo entre o passado e o presente alinha a compreensatildeo sobre o papel dos trajetos de

vida desde a infacircncia no quadro atual de sauacutede Os vinte e dois quilos ou cento e dez tabletes de

manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha satildeo o resultado dos sofrimentos que vivenciou

do afeto que natildeo recebeu e da comida que devorou A dor emocional eacute de fato sua mas talvez

seja tambeacutem heranccedila da Voacute Gorda da Voacute Magra do pai e da matildee Nas histoacuterias entrelaccediladas lecirc-

se uma pesada bagagem de dores ancestrais

Atraveacutes da intersecccedilatildeo entre as vivecircncias eacute possiacutevel ler na obra trecircs tempos

predominantes com fronteiras tecircnues entre si aquele dos antepassados que a protagonista

75

conhece por ouvir contar o tempo da infacircncia que ela narra pelas recordaccedilotildees e o tempo

presente da dieta que provoca as idas e vindas da narrativa a fim de descobrir as causas de seu

aumento de peso As fronteiras satildeo tecircnues pois os trecircs tempos embora diversos no calendaacuterio

misturam-se na personagem ora como lembranccedila ora como reflexatildeo No percurso da obra o

elemento que liga as histoacuterias eacute na maioria das vezes a sensaccedilatildeo prazerosa com a comida

mesmo quando a referecircncia aponta para o contraacuterio sentimentos de culpa pela obesidade e de

revolta pela restriccedilatildeo alimentar

Haacute uma ligaccedilatildeo natural entre o comer e o prazer para aleacutem da rima Desde a

amamentaccedilatildeo a chegada do leite materno eacute acompanhada pelo contato de afeto da matildee com o

bebecirc e pela experiecircncia de prazer fiacutesico associada agrave succcedilatildeo Assim alimento viacutenculo afetivo e

prazer satildeo parte de nossas primeiras memoacuterias e podem permanecer como o tripeacute que daraacute

suporte a muitos de nossos padrotildees de comportamento ao longo da vida Esse tripeacute contudo

pode desestabilizar-se caso haja preponderacircncia de um dos componentes gerando experiecircncias

de sofrimento associadas a tal desequiliacutebrio

A referida situaccedilatildeo aliaacutes estaacute muito bem expressa nessa obra na qual a vivecircncia da

personagem frente ao engordar mostra o quanto o comer em sua vida ocupou muitas vezes os

espaccedilos de amor e de seguranccedila deixados vazios pela ausecircncia desse afeto Sobretudo por parte

dessa matildee o proacuteprio tiacutetulo do livro dirigido a ela sugere que seja vista como culpada pelo

processo de engorde da personagem Em diversas passagens da obra a comida eacute citada como

abundante enquanto a expressatildeo das emoccedilotildees eacute percebida como escassa

Encontramos a posteridade dentro da fartura pela qual devemos agradecer todos os dias

e da qual ainda hoje devemos nos afastar por forccedila da geneacutetica O excesso de comida o

excesso de zelo o excesso dos excessos tudo ficou em noacutes como lembranccedila e como

estoque de uma espeacutecie de amor do qual ainda hoje nos valemos quando o amor falta

minguado (MOSCOVICH 2006 p220)

A vivecircncia do prazer da comida eacute apresentada em diversos fragmentos tanto associados agrave

narradora quanto agrave sua matildee a quem dirige as reflexotildees sua Voacute Magra seu pai e seus irmatildeos

Uma das passagens mais ilustrativas do papel desempenhado pela sensaccedilatildeo prazerosa nesta

narrativa estaacute no trecho de uma viagem O que as personagens experimentam nesta cena parece

muito proacuteximo ao lsquohonesto prazerrsquo referido por Platina mencionado anteriormente Lembrando

de uma viagem em famiacutelia durante um percurso ao Uruguai a protagonista remonta um

momento em que sua matildee ela e os irmatildeos lambuzavam-se com doces no carro

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[hellip] A senhora de repente deu ordem expressa para que o pai estacionasse ali naquele

ponto bem na frente daquela confeitaria a Carrero O carro nem bem tinha parado nem

bem nossos protestos se haviam esvaiacutedo com a agilidade de seu movimento e a senhora

jaacute entrava na Carrero atraveacutes da porta de vidro porta muito pesada em sua fidalguia de

anos servindo o fino paladar uruguaio Porta que a senhora cruzou duas vezes em toda

sua vida - aquela era a segunda

Ficamos ali os quatro com os narizes achatados de curiosidade contra as janelas do

Ford Natildeo demorou nem bem cinco minutos e a senhora logo apareceu com trecircs garrafas

de Crush de laranja em uma das matildeos e na outra uma bandeja de doces - e me lembro

que o pai soltou uma gargalhada e sacudiu a cabeccedila num gesto de anuecircncia

Os doces foram devorados com seu incentivo feliz as garrafas passavam de matildeo em

matildeo limpava-se a boca com guardanapinhos de papel ou com a manga do casaco A

senhora se empanturrou e nos empanturrou Ningueacutem deu muita bola para os farelos de

massa folhada e para as manchas de doce de leite que ficaram melecando o estofamento

ateacute que voltaacutessemos para casa trecircs dias depois (MOSCOVICH 2006 p72)

Esta eacute a uacutenica cena de prazer compartilhado entre a narradora os irmatildeos e a matildee Eacute a

uacutenica cena tambeacutem em que a matildee aparece permitindo-se o deleite com algazarra com alegria

desfrutando do saborear em famiacutelia os doces da confeitaria A personagem refere que a matildee

cruzara a porta do estabelecimento duas vezes na vida e aquela era a segunda Haacute uma referecircncia

indireta aqui agrave escassa permissatildeo em sua matildee para esse tipo de prazer com farelos e doce de

leite espalhado Uma permissatildeo a si mesma de lambuzar-se com o prazer de partilhar o doce o

afeto a brincadeira O lsquohonesto prazerrsquo de Platina que misturava agrave sensaccedilatildeo prazerosa quem

sabe a alegria entre as pessoas Essa eacute a emoccedilatildeo que habita a cena e natildeo somente a gula pelos

doces

A matildee aparece protagonizando outras duas cenas de prazer alimentar ambas associadas a

uma condiccedilatildeo de sauacutede para a qual precisou fazer um cateterismo Entretanto a sensaccedilatildeo

prazerosa eacute expressa como experiecircncia de permissatildeo individual e natildeo partilhada com a famiacutelia

como no deleite dos doces e do refrigerante no carro A narradora conta sua lembranccedila sobre os

dois episoacutedios vividos pela matildee o primeiro antes do procedimento o segundo apoacutes

Naquela noite depois da cintilografia a senhora devorou meio quilo de patildeo com

manteiga um bule de cafeacute e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Disse que jaacute que

ia morrer comeria o que lhe desse na veneta (MOSCOVICH 2006 p119)

Jaacute em casa a senhora voltou ao tempo do seu rosto e apesar da ferida aberta na virilha

tornou-se de novo uma avoacute E o mais gracioso foi que naquela noite devorou meio

quilo de patildeo com manteiga uns cem gramas de mortadela um pote com azeitonas

pretas e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Me disse que jaacute que natildeo ia morrer

comeria o que lhe desse na telha (MOSCOVICH 2066 p124)

77

Compreende-se como o prazer de comer estaacute vinculado a uma justificativa aceitaacutevel em

uma e em outra ocasiatildeo lsquojaacute que ia morrerrsquo e lsquojaacute que natildeo ia morrerrsquo Natildeo haacute uma vivecircncia da

sensaccedilatildeo prazerosa experimentada pela matildee nesses casos sem uma razatildeo que fundamente a

permissatildeo Outro ponto a salientar estaacute nas frases lsquocomeria o que lhe desse na venetarsquo e lsquocomeria

o que lhe desse na telharsquo em que lsquodar na venetarsquo e lsquodar na telharsquo fazem alusatildeo agrave satisfazer a

vontade o impulso da hora expressotildees ligadas ao prazer Os fragmentos apresentados fornecem

dados para que se possa compreender que na personagem da matildee esse prazer do ldquodar na venetardquo

soacute poderia ser permitido se associado a uma razatildeo muito forte como a possibilidade de ela

morrer no procedimento

Aleacutem das questotildees psiacutequicas da ligaccedilatildeo entre cozinha e prazer existe a influecircncia da

cultura presente nas famiacutelias de acordo com a relaccedilatildeo que seus antepassados estabeleciam com a

comida com o prazer e com os viacutenculos Eacute possiacutevel aprender que um alimento eacute saboroso ou

condenado porque essa informaccedilatildeo passa de uma geraccedilatildeo agrave outra natildeo como uma carga geneacutetica

mas como uma transmissatildeo de aprendizado cultural O que eacute transmitido ao grupo familiar eacute

dependente do significado da comida para os diferentes povos Dentro das famiacutelias haacute tambeacutem

coacutedigos representados pelo alimento muitas vezes compartilhados pelos membros como

acontece entre a protagonista e sua Voacute Magra

Eu imitei a voacute fiz ach e dei um tapinha no ar Natildeo tinha mesmo importacircncia nenhuma

Noacutes duas comeccedilamos a rir De matildeos dadas fomos ateacute a cozinha buscar algo com

bastante accediluacutecar para comer Doces nos deixavam fortes e felizes

Como diz mais um velho ditado avoacutes e netos se datildeo bem porque tecircm um inimigo em

comum (MOSCOVICH 2006 p99)

O episoacutedio refere-se ao conflito entre sua matildee e a Voacute Magra avoacute materna e a

protagonista posiciona-se a favor da avoacute partilhando com ela o prazer de lsquobuscar algo com

bastante accediluacutecar pra comerrsquo Existe clara cumplicidade com a avoacute expressa na frase lsquoDoces nos

deixavam fortes e felizesrsquo Essa mesma comunhatildeo eacute demonstrada nos trechos sobre os passeios

que elas faziam juntas quando a Voacute Magra a levava consigo nas andanccedilas ao centro para vender

roupas na infacircncia da narradora

Ela bem gostava daquela funccedilatildeo ou ao menos aparentava gostar e se aparentava fingia

muito bem Depois de uma boa venda saiacutea exibindo um ar glorioso e altaneiro uma

conquistadora que avanccedila sobre terra remota e me puxando pela matildeo me punha diante

de um copo de guaranaacute- o copo que ela inspecionava muito bem e submetia ao processo

de assepsia com o lencinho- uma garrafa de refrigerante e um mil folhas partido ao meio

davam bem para noacutes duas Tatildeo bem que nem fazia falta a outra metade

78

O que eu aprendi com vovoacute foi bastante aleacutem do que pretendia papai Ela natildeo queria me

mostrar como se ganhava o patildeo natildeo tinha interesse em expor a neta a sofrimento algum

O que a voacute queria mesmo com aquelas excursotildees era a farra de dividir comigo um doce e

um refrigerante a gente se refestelando com creme de confeiteiro Ela pagou com

antecipaccedilatildeo aquelas pequenas felicidades coisa que ela mais amava no mundo

(MOSCOVICH 2006 p91-92)

Para a protagonista e sua Voacute Magra esses passeios representavam mais do que a

oportunidade de saborearem o mil folhas eram a chance de partilharem juntas o prazer de um

coacutedigo que comungavam o sabor doce Ao ler-se as passagens desta avoacute com ela e com seus

irmatildeos ao longo da obra compreende-se que este sabor doce eacute com nitidez o afeto partilhado

entre a Voacute Magra e os netos Para a avoacute o deleite com a comida tem raiacutezes culturais e vivenciais

O livro aponta a fome ancestral como possiacutevel razatildeo de seu prazer com a comida Jaacute no

capiacutetulo um ela apresenta sua Voacute Magra importante referencial em sua histoacuteria com o papel da

comida e com o engorde A obra comeccedila pelo cerne do significado da comida para a famiacutelia a

fome Essa vivecircncia eacute elemento relevante na histoacuteria familiar da protagonista A fim de

corroborar o papel da fome na dimensatildeo que cozinha ocupa na literatura judaica vale apresentar

a contribuiccedilatildeo de Ana Maria Shua em sua obra Risos e emoccedilotildees da cozinha judaica

A comida ocupa um lugar importante na literatura judaica Seguramente porque ocupa

um lugar importante na vida judaica na vida material e tambeacutem por razotildees religiosas

na vida espiritual Acima de tudo os judeus da Europa Oriental tendiam a contar com o

uacutenico adereccedilo capaz de converter em excelente qualquer comida para qualquer paladar a

fome Natildeo chama a atenccedilatildeo desse modo que o tema da comida apareccedila uma e outra vez

entre os sempre famintos personagens de sua literatura (SHUA 2016 p113)

O entendimento da comida como milagre aponta o poder que lhe era atribuiacutedo pela Voacute

Magra conforme narra a protagonista

Para quem vem de uma famiacutelia que nos miseraacuteveis e congelados vilarejos judeus da

Europa passou fome de comer soacute repolho ou soacute batata para a qual naqueles shtetels

carne era uma abstraccedilatildeo que os dentes nem conheceram e que se acostumou a aplacar o

oco do estocircmago com sopa de beterraba ou com aquele mameligue que nada mais era

do que um mingau meio insosso de farinha de milho e aacutegua a obsessatildeo por comida nada

tem ou nada deveria ter de extraordinaacuterio Vovoacute Magra assim como todas as avoacutes

acreditava que a comida era um milagre capaz de moldar crianccedilas em adultos um

homem eacute o peso daquilo que come uma boa refeiccedilatildeo vale a prece por um dia a mais de

vida

O caso era que diante de um prato de comida Vovoacute Magra parecia encontrar o sentido

da existecircncia (MOSCOVICH 2006 p21)

A comida era milagre e sentido da existecircncia para sua avoacute de acordo com a protagonista

entretanto vai aleacutem mostrando a voracidade o apetite o prazer afoito com que aquela comia O

79

aspecto interessante foi a narradora referir-se ao termo lsquodesesperorsquo que denota uma espeacutecie de

sofrimento A avoacute sentiu tanta fome que quando pocircde comer tornou o alimento a resposta para

todas as faltas mesmo as futuras A comida era um modo de prevenccedilatildeo contra a fome que ela

pudesse vir a passar novamente

E comia comia comia

Comia ovos duros comia coalhada comia milho comia carne comia saladas comia

frutas- especialmente laranjas-do-ceacuteu que docinhas natildeo espicaccedilavam o paladar ao

contraacuterio do azedo das laranjas-de-umbigo que ela tambeacutem comia Comia tanto que se

via nela um desespero E de tanto passer fome decerto vovoacute por mais que comesse e se

fartasse natildeo engordava Cinturinha fina seios achatados quadric estreitos heranccedila que

a senhora mamatildee abocanhou e que natildeo me deu

Da vovoacute soacute herdei o apetite ancestral o mesmo que a senhora herdou (MOSCOVICH

2006 p21-23)

O apetite eacute capaz de promover a antecipaccedilatildeo do prazer pela lembranccedila e pelo desejo de

comer determinado alimento aleacutem de estimular a repeticcedilatildeo do que satisfaz pela gratificaccedilatildeo que

o ceacuterebro registra Se tal prato eacute saboroso e lhe apetece o indiviacuteduo vai buscaacute-lo de novo e assim

sucessivamente Por isso a Voacutevoacute Magra lsquocomia comia comiarsquo e lsquocomia tanto que se via nela um

desesperorsquo Entatildeo quando a narradora comeccedila a passagem falando em fome e a conclui

referindo-se ao lsquoapetite ancestralrsquo estaacute dizendo que em sua avoacute a fome transformou-se no prazer

pela comida

Ainda assim havia respeito agraves proibiccedilotildees religiosas ligadas agrave tradiccedilatildeo culinaacuteria judaica A

narradora descreve sobre os haacutebitos alimentares da Voacute Magra ldquoExceto por carne de porco ou

mariscos e outras coisas gosmentas vindas da aacutegua ndash alimentos que a Lei considera impuros e

que portanto eram iguais agrave pedra que se interdita levar agrave boca ndash natildeo havia comida que ela

desprezasserdquo (MOSCOVICH 2006 p21-23)

Entatildeo embora houvesse o respeito agraves restriccedilotildees impostas havia tambeacutem o prazer com os

alimentos permitidos fossem ou natildeo pertencentes agrave culinaacuteria tradicional judaica Eacute neste ponto

que se aproximam os textos da ficccedilatildeo e da teoria fontes de estudo no presente capiacutetulo Natildeo se

nega que haja a proibiccedilatildeo a certos alimentos aspecto em que a obra de Ciacutentia Moscovich foi fiel

agrave cultura culinaacuteria judaica mas a mesma tambeacutem problematizou o espaccedilo de prazer existente na

cozinha de sua tradiccedilatildeo

Outro elemento relevante na anaacutelise da passagem acima eacute o que a narradora refere quando

menciona ter herdado de sua avoacute apenas o lsquoapetite ancestralrsquo Nesse ponto da narrativa atribui

agraves raiacutezes familiares seu gosto pela comida Eacute significativo que a narradora comece o texto falando

80

sobre a fome e o encerre usando o termo apetite pois se pode pensar na fome como uma

necessidade bioloacutegica do corpo que natildeo difere um alimento de outro O propoacutesito da fome eacute ser

saciada No que tange ao apetite pode-se pensar no apetite por algo o que o torna mais

especiacutefico agraves preferecircncias alimentares e desse modo mais proacuteximo ao prazer Foi o que Voacute

Magra descobriu

Eacute visiacutevel seu gosto por essa ou aquela comida sua profunda sensaccedilatildeo prazerosa com

ingredientes e pratos tiacutepicos Natildeo os escolhe apenas para saciar a fome deseja isso sim

satisfazer o apetite deleitar-se Com todas as restriccedilotildees que a tradiccedilatildeo impunha descobriu no

alimento fonte de prazer e com os netos de expressatildeo afetiva Havia tambeacutem um sentido de

aproveitar do alimento tudo o que ele poderia oferecer natildeo desperdiccedilando nada de sua

substacircncia Mesmo com o propoacutesito desse aproveitamento dedicava-se a fazer comidas e doces

saborosos como a narradora lembra no trecho abaixo

E havia aquele creme de laranja que era uma nuvem accedilucarada de sabor contrastante

um nada azedinho rompendo o doce dava ateacute um arrepio Era o jeito de a voacute aproveitar

as frutas que sobravam no mercado Natildeo se pode desperdiccedilar sumo algum mesmo que

as frutas despenquem podres no meio das sobras (MOSCOVICH 2006 p94)

O trecho expressa o fazer culinaacuterio de um doce que deixou lembranccedilas sensoriais na

protagonista expressas por termos como lsquonuvem accedilucarada de sabor contrastantersquo lsquoum nada

azedinho rompendo o docersquo e sobretudo a revelaccedilatildeo de que lsquodava ateacute um arrepiorsquo Entretanto as

escolhas alimentares na cultura judaica natildeo teriam por princiacutepio dar relevacircncia ao prazer mas aos

elementos religiosos Existe um conjunto de regras de idoneidade alimentar na cozinha judaica

chamada kasherut e cada alimento pertencente a tal conjunto e entatildeo permitido eacute chamado

kasher A respeito das tradiccedilotildees religiosas implicadas na alimentaccedilatildeo Ariel Toaff no capiacutetulo

lsquoCozinha judaica cozinhas judaicasrsquo do livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas

esclarece

Afirma-se em geral que as praacuteticas da alimentaccedilatildeo judaica estatildeo essencialmente

enquadradas na oacutetica do sistema religioso fundamentadas em proibiccedilotildees biacuteblicas

ampliadas e interpretadas pelas normativas rabiacutenicas Em outros termos o judeu comeria

alimentos que lhe satildeo permitidos descartando todos aqueles que de uma ou outra forma

entrassem nas categorias explicitamente proibidas pela biacuteblia ou pela hermenecircutica

geralmente extensa da ritualiacutestica posterior Nesse sentido suas escolhas alimentares

deveriam ser consideradas como fundamentos de sua identidade cultural e religiosa A

gama de proibiccedilotildees parece vasta e sem duacutevida condicionante (TOAFF 2009 p179)

81

Eacute interessante observar que mesmo focados na obediecircncia agraves normas havia uma culinaacuteria

rica de prazer dentro da cultura Apesar das influecircncias externas e as proibiccedilotildees religiosas

configurou-se uma cozinha judaica nuclear baseada no gosto Na Europa do seacuteculo XV ou XVI

os alimentos definidos como lsquoagrave hebraicarsquo ou lsquoagrave judiarsquo expressavam ingredientes gosto e aspecto

tipicamente judaicos e eram imediatamente reconhecidos como tal

O marzipatilde e as panquecas com mel e canela o patecirc de fiacutegado gordo os Griben (pedaccedilos

fritos de pele [de ave]) e os salsichotildees de ganso o hamin a carne guisada do Shabatt

com feijotildees e gratildeos-de-bico lsquocom pimenta e alhorsquo as alcachofras fritas lsquoagrave rosarsquo e a

endiacutevia assada no forno com lsquopeixe azulrsquo todos eles alimentos cuja preparaccedilatildeo era

comumente qualificada como lsquoagrave hebreacuteiarsquo natildeo eram decerto chamados desse modo pelo

fato de seu consumo ser permitido ou prescrito aos judeus pelas normas da biacuteblia e dos

rabinos mas porque se reconhecia neles a expressatildeo particular do gosto judaico [hellip] O

fato incontroverso eacute que o gosto gastronocircmico judaico parecia evidentemente diverso

daquele do ambiente cristatildeo circundante (TOAFF 2009 p183)

A evocaccedilatildeo sensorial eacute provocada pelos alimentos judaicos quando ateacute os nomes

despertam curiosidade e imaginaccedilatildeo pela forma e pelo gosto Ali estaacute bem expresso um conjunto

de sabores pertencentes agrave cultura e agrave vivecircncia de prazer associados agrave comida O capiacutetulo de Ariel

Toaff no livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas defende que o gosto e o prazer

na culinaacuteria judaica foram elementos de forccedila suficiente para ultrapassarem as proibiccedilotildees

religiosas aspecto corroborado pelo grande nuacutemero de receitas daquela cultura

O prazer alimentar estaacute associado a esse aspecto cultural de um povo Carlos Alberto

Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira aponta que

Em termos simples todo dia eu acordo me sentindo brasileiro ou espanhol ou tcheco

etc Isso ocorre porque falo uma liacutengua alimento-me de determinada comida sei como

meus compatriotas se comportaratildeo diante de certas situaccedilotildees e assim por diante Haacute um

sentimento multifacetado de pertencimento que me faz nacional (DOacuteRIA 2014 p24)

Esse pertencimento tem como parte culinaacuteria pois identifica gostos e ingredientes de um

povo No caso especiacutefico da culinaacuteria judaica essa caracterizaccedilatildeo ocorre mesmo quando

adaptada a outras culturas e produtos como Toaff aponta Em por que sou gorda Mamatildee a

narradora faz um relato que contempla a cozinha judaica vivenciada em sua infacircncia adaptada agrave

cultura local sem no entanto perder sua principal expressatildeo nos pratos tiacutepicos

Como sempre acreditamos no aprendizado pela dor a fome passou a ser o grande

mestre liccedilatildeo que pai nenhum queria que os filhos aprendessem Atestando que os

tempos haviam mudado e que este naco do Brasil era uma Canaatilde as cozinhas do Bairro

eram usinas de todo tipo de comida

82

Agraves sete da manhatilde mal se pulava da cama e uma nuacutevem aromaacutetica e uacutemida jaacute tinha

invadido a casa As panelas ferviam galinhas as cebolas se atiravam agrave fritura as lacircminas

das facas trituravam ramos de tempero verde colheres de pau puxavam refogados nas

caccedilarolas batalhotildees rechonchudos de almocircndegas se alinhavam nas taacutebuas de carne ao

lado de um fornido regimento de varenikes que logo iam encontrar seu destino na aacutegua

pelando No bairro inteiro cedinho frio ou calor chuva ou sol matildeos zelosas estripavam

peixes recheavam pimentotildees cortavam ovos duros mexiam guisados lavavam arroz

arrancavam folhas dos ramos de louro Tempero lambido na concha da matildeo douravam

batatas raspavam cenouras sovavam massas fatiavam tomates queimavam berinjelas

batiam espinafre amassavam miuacutedos de frango esmagavam dentes de alho Enquanto

pepinos eram enfiados em enormes potes de vidro para a conserva de salmoura

amendoins em trouxas de panos de prato eram batidos a martelo pecircssegos ameixas e

peras se compotavam marmelos de accedilucaravam cremes se encorpavam nacos de

goiaba e punhados de uva em passa enchiam o oco de maccedilatildes vermelhas e lustrosas

(MOSCOVICH 2006 p48-49)

A escolha pelo uso do preteacuterito imperfeito nos atos culinaacuterios ilustra o aspecto rotineiro

com que essas praacuteticas eram realizadas dentro da vida do bairro de predominacircncia judaica Todo

cotidiano era tecido pela manhatilde pelos aromas texturas e costumes que compunham a cultura

local O trecho remete o leitor a um passado que se perpetua atraveacutes dos movimentos vividos nas

cozinhas pelo que a narradora refere como lsquomatildeos zelosasrsquo Haacute no pano de fundo desse

fragmento a ideia da repeticcedilatildeo das accedilotildees como marca de continuidade de haacutebitos gostos e

preferecircncias A narradora prossegue seu relato transmitindo lembranccedilas da cozinha judaica

vivenciadas em seu bairro

Eu feliz na atmosfera lavada das manhatildes mastigando o haacutelito de cafeacute e pasta de dente

gostava de ver as mulheres que vinham da feira livre com sacolas nas quais adejavam

verduras outras traziam suspensas de ponta-cabeccedila galinhas vivas que arregalavam os

olhos redondos num susto de morte Algumas donas de casa elas mesmas fariam o

talho na garganta por onde se esvairia o sangue do bicho enquanto outras mais

piedosas ou covardes ou que seguissem a lei alimentar a kashrut recorriam ao shochet

responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual Todas para um uacutenico lugar a cozinha matriz do

afeto de nossa gente Pratos com nomes esquisitos e tatildeo familiares varenikes beigales

mondales knishes strudels iuchs kasha rossale borscht guefiltefish chrein kishke

kreplach tzimes

Comida para um exeacutercito (MOSCOVICH 2006 p49 grifo do autor)

No trecho acima lecirc-se o aspecto religioso ligado agrave culinaacuteria quando a narradora aborda a

lei alimentar a kashrut e o shochet responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual das galinhas Outro

elemento apontado eacute a referecircncia aos pratos judaicos remetendo agrave ligaccedilatildeo entre cozinha e

pertencimento a um povo elemento cultural referido por Carlos Alberto Doacuteria apresentado

anteriormente Um ponto relevante apontado por esse autor eacute a citaccedilatildeo de Levi Strauss ldquoGestos

aparentemente insignificantes transmitidos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua

insignificacircncia mesma satildeo testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou

83

movimentos figuradosrdquo (DOacuteRIA 2014 p215) Assim eacute possiacutevel compreender os gestos

corporais dos atos culinaacuterios apresentados pela narradora sobre a rotina alimentar em seu bairro

como um importante testemunho da cultura judaica daquele territoacuterio

Aleacutem disso uma frase de grande relevacircncia no fragmento eacute lsquoTodas para um uacutenico lugar a

cozinha matriz do afeto de nossa gentersquo Nessa o viacutenculo entre o comer e o afeto expressa um

importante fator da cultura judaica a essa ligaccedilatildeo estaacute associada tambeacutem a sensaccedilatildeo prazerosa

da comida partilhada Carlos Alberto Doacuteria expotildee a reflexatildeo de Annie Hubbert quando ela

registra

Especialmente nas sociedades onde as representaccedilotildees coletivas passam por livros

religiosos (os judeus os cristatildeos e os muccedilulmanos) o ato de comer aparece ligado ao

amor materno e recusar a comida eacute o mesmo que recusar essa modalidade fundante de

afeto um ato que exprime grande emoccedilatildeo (DOacuteRIA 2014 p204)

Dividir a comida eacute tambeacutem nutrir o sentimento de pertencer ao grupo de fomentar a

permanecircncia dos atos que satildeo parte dos costumes desse grupo como aqueles atos apresentados

no trecho anterior em preteacuterito imperfeito atos culinaacuterios que satildeo parte do cotidiano das

cozinhas do bairro Somam-se alimento afeto rotina cultura prazer pertencimento partilha

continuidade

Ainda sobre o gosto da cozinha judaica Toaff escreve

As mercearias dos guetos pululavam de clientes cristatildeos mais gulosos do que

esfomeados [hellip] A aproximaccedilatildeo dos cristatildeos agraves comidas judaicas era sempre ambiacutegua e

ambivalente atraiacutedos (e ao mesmo tempo desconfiados) por aqueles pratos que podiam

ter significados hereacuteticos imprevistos e por aqueles sabores exoacuteticos que exerciam

veladas seduccedilotildees de transgressatildeo lsquoComer agrave judiarsquo era um pouco como tornar-se judeu

no prazer de um momento sentir de dentro o fasciacutenio daquilo que era difiacutecil (e talvez

impossiacutevel) aprender de fora [hellip] Comer uma alcachofra lsquoagrave judiarsquo ou uma fatia de patildeo

aacutezimo era como fazer uma perigosa e temeraacuteria viagem ao estrangeiro uma espeacutecie de

percurso sedutor da igreja agrave sinagoga da qual poreacutem pretendia-se voltar o mais raacutepido

possiacutevel (TOAFF 2009 p183-184)

Compreende-se assim que a cozinha judaica tinha o apelo sedutor que provocava prazer

ateacute em outras culturas como a cristatilde Isso ocorria por sua forccedila especiacutefica pelo nuacutecleo vasto de

receitas e de modos-de-fazer este ou aquele prato no entanto tal apelo ocorria em grande parte

por simbolizar o proibido e o desconhecido aos cristatildeos Agradava-lhes a transgressatildeo dessa

cozinha tiacutepica seus sabores e significados Natildeo se tratava apenas de apreciar o gosto mas

84

tambeacutem o que tal culinaacuteria representava a um ambiente cultural diverso enfrentar a culpa e

encontrar o prazer do gosto clandestino

Para os proacuteprios judeus a amplitude de receitas e de gostos dos pratos lsquoagrave judiarsquo era tatildeo

arraigada que o gosto era parte de suas escolhas para aleacutem da imposiccedilatildeo religiosa Sobre isso

Toaff reflete ldquoHaacutebitos e tradiccedilotildees alimentares inquietudes irracionais gosto e nostalgias faziam

com que mesmo nos casos extremos o paladar abandonasse o judaiacutesmo muito mais lentamente e

de maacute vontade do que o coraccedilatildeo ou a menterdquo (TOAFF 2009 p185)

Ariel Toaff demonstra o ponto a ser discutido sobre o aspecto cultural dessa culinaacuteria em

relaccedilatildeo ao prazer alimentar as restriccedilotildees e as proibiccedilotildees religiosas de um lado o prazer de

manter vivo o respeito pela tradiccedilatildeo de receitas tiacutepicas lsquoagrave judiarsquo que representam o gosto

alimentar dos judeus de outro Apesar das proibiccedilotildees a essecircncia da cozinha judaica se manteve

atraveacutes de uma vasta quantidade de receitas Eacute possiacutevel compreender isso pelo fato de o prazer

ser um fenocircmeno exclusivamente humano cujas caracteriacutesticas satildeo o equiliacutebrio fisioloacutegico e

psiacutequico que leva ao bem-estar de acordo com o Jaspers Em sendo fenocircmeno humano

pronuncia-se no indiviacuteduo de todos os tempos e de todas as culturas e eacute elemento ateacute mesmo

capaz de sobrepujar um constructo como as proibiccedilotildees religiosas como no caso da cozinha

judaica

O que mais chama a atenccedilatildeo lendo a pesquisa de Ariel Toaff eacute de como o gosto judaico

foi sendo construiacutedo a ponto de configurar-se como uma tradiccedilatildeo culinaacuteria Outro elemento

interessante referido pelo autor satildeo os processos de osmose com outras culturas alimentares a

partir das emigraccedilotildees dos judeus para diferentes territoacuterios O paladar judaico foi adicionando

alimentos agrave sua lista ingredientes e pratos de outras culturas foram sendo incorporados ao seu

gosto

Um trecho que ilustra essa lsquoosmosersquo estaacute no comeccedilo de Por que sou gorda mamatildee

quando a narradora-personagem conta a histoacuteria da chegada de sua famiacutelia ao Brasil e a

aproximaccedilatildeo de seu bisavocirc a um iacutendio proacuteximo agrave moradia da famiacutelia

[hellip] Um desses bugres vovoacute natildeo tinha certeza de que era o mesmo que fora aprisionado

deixou uma tigela de farinha - dependendo da versatildeo um pedaccedilo de carne- na porta da

casa O bisavocirc na mesma tijela e no mesmo lugar ofereceu para o iacutendio uma porccedilatildeo de

aipim cozido (ou uma porccedilatildeo de chulent ou um pedaccedilo de leikech) Tijela vai tijela

volta o bugre fez amizade com o bisavocirc falavam-se de iniacutecio com os dedos Depois

passaram a dividir o mesmo tronco de aacutervore no qual o bisavocirc sentava para o descanso

do final da tarde Depois para o pasmo geral viram o iacutendio vestindo uma camisa e uma

85

calccedila do bisavocirc mesma eacutepoca em que vovoacute viu entrar em casa uma gamela talhada em

madeira e uma cesta em trama de taquaras

Mesmo que mulheres e crianccedilas estivessem proibidas de se aproximar do bugre ele de

posse de uma enxada passou a ajudante nas lides da roccedila e a trazer aacutegua de uma sanga

ali perto Tambeacutem alcanccedilava ervas com as quais o bisavocirc fazia emplastros para as dores

nas juntas e picadas de insetos aleacutem de infusotildees e chaacutes para tosse e vermes

A vovoacute jurava que era verdade quando viram o iacutendio falava iiacutediche

Deram ateacute nome para o homem Chamavam-no Salvador (MOSCOVICH 2006 p65-

66 grifo nosso)

A osmose era natildeo apenas de ingredientes mas de costumes de atitudes de

camaradagens Havia prazer nas trocas e no conviacutevio do bisavocirc com o iacutendio Esse trecho eacute um

dos mais representativos da obra pois expressa de forma muito clara como a cultura judaica foi

permeaacutevel no exemplo narrado agraves influecircncias e agraves gentilezas e escambos do bugre A famiacutelia

comeccedilava sua histoacuteria em terras brasileiras Um trecho que expressa o papel da comida nos

primeiros tempos da famiacutelia no Brasil eacute o que segue

Uns oito nove ou dez anos depois da chegada ao Brasil o bisavocirc tinha abandonado a

colocircnia e enveredado pelos interiores do hemisfeacuterio mascateava Soacute laacute naquela Canaatilde

da fronteira entre o Brasil e o Uruguai terminou a busca de um futuro que seria melhor

mas que natildeo seria dele Havia chocolates Aguila chaja embalado em papel manteiga

morrones queimados na brasa e carne muita que se assava em grelhas sobre braseiro

vivo Tudo isso natildeo chegava agrave casa e agrave mesa da famiacutelia que se alimentava de mameligue

ou farinha de mandioca agrave qual se acrescentava cafeacute com muito accediluacutecar que accediluacutecar natildeo

podia faltar Aos domingos cada um dos filhos recebia um tablete de mariola piteacuteu

envolto em papel celofane a ser poupado ateacute a semana seguinte um pedacinho de cada

vez Ou chupado como se fosse bala que assim durava mais (MOSCOVICH 2006

p71 grifo ou do autor)

Assim haacute trechos em que a protagonista narra as experiecircncias dos antepassados em

zigue-zague com outros em que reflete sobre seu engorde retomando o foco no presente Fala

entatildeo de sua dieta em contraste com a vivecircncia de sua famiacutelia com a fome Bisavoacutes avoacutes e pais

ao sentirem fome comeccedilaram a comer mais quando o alimento tornou-se disponiacutevel a eles no

caso da narradora foi preciso fazer o caminho contraacuterio ao sentir fome comeccedilar a comer menos

A referecircncia lsquoVovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e macarratildeo de letrinhasrsquo

demonstra que a loacutegica de sua avoacute era dar consistecircncia e energia agrave comida fornecendo-lhe fontes

de carbohidrato Assim a perspectiva era contraacuteria agrave restriccedilatildeo alimentar a que estava submetida

pelas orientaccedilotildees do meacutedico

Com o frio comer salada doacutei na alma

Sopa de legumes fazia tempo que natildeo preparava o panelatildeo fervente carne aipo

aboacutebora chuchu cenoura couve cebola espiga de milho cortada em rodelas pequenas

Enquanto escrevo a sopa se agita no fogo e um haacutelito bondoso que eacute cheiro de casa

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visita todas as peccedilas Espero a hora de submeter noz-moscada ao ralador e de cortar bem

miuacutedo tempero verde e ovos duros Vovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e

macarratildeo de letrinhas (MOSCOVICH 2006 p68)

A heranccedila para o prazer de comer deu-lhe desde a infacircncia a predileccedilatildeo pelos excessos

Porque a lei era o comer Ela comenta

Noacutes as crianccedilas estaacutevamos em fase de crescimento Como durou a tal fase Anos

Crianccedilas em fase de crescimento precisam comer muito bem para ter ossos fortes e

ceacuterebros ativos para o estudo Portanto a mesa do almoccedilo em nossa casa era farta Aliaacutes

a mesa do almoccedilo em nossa casa era um excesso Mas natildeo um excesso fuacutetil natildeo um

supeacuterfluo sem sentido Nossa mesa queria dizer comam vocecircs natildeo precisam passar

fome Fome eu vim passar adiante quando comecei as dietas (MOSCOVICH 2006

p23)

O aprendizado de exceder era associado natildeo apenas agrave saciedade mas ao prazer agrave ideia de

uma lsquomesa felizrsquo como se pode compreender a partir do seguinte fragmento

Se havia cinco pessoas na mesa de bifes deveria haver por baixo dez Para que natildeo

passaacutessemos pela dureza de medir o que estaacutevamos comendo quantos bifes satildeo meus

quantos satildeo seus Se isso acontecesse papai simplesmente natildeo comia bifes para que

mais houvesse para dividir

Numa mesa feliz natildeo se contam os bifes (MOSCOVICH 2006 p24)

O pai preocupado com o engorde dos filhos passou a adotar a imposiccedilatildeo da disciplina

alimentar riacutegida Para a protagonista a cada aumento dos quilos na balanccedila havia uma nova

ordem para o regime A protagonista lembra-se dessa fase e relata na carta para a matildee o periacuteodo

em que o pai determinou que os filhos fizessem dieta

Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre

com o Fairlane rabo-de-peixe A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos enterrado

o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como eram-

mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos ancorava

no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de construir o corpo

de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo fosse do jeito e na

hora em que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH 2006 p93)

Depois de diversas passagens entre passado e presente haacute uma retomada na histoacuteria em

direccedilatildeo agrave ordem paterna para a dieta pela quebra do carro da famiacutelia o tal lsquoFairlane rabo-de-

peixersquo Isso ocorre pelo excesso de peso na protagonista de seus irmatildeos e de suas tias de lado

paterno Frente agrave ameaccedila de dieta ela reinvindica ldquo[hellip] Entrei em pacircnico Dieta era alguma coisa

horrorosa natildeo comer um monte de coisas principalmente massas e doces eu protestei na busca

de meus direitosrdquo (MOSCOVICH 2006 p203) Ao que o pai linhas depois refere ldquo-Vocecircs vatildeo

fazer dieta E vai ser para toda a vidardquo (MOSCOVICH 2006 p204)

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Dieta era assim ordem paterna veredicto imposiccedilatildeo e ameaccedila de perda dos direitos Natildeo

poderia ser algo para o bem para a sauacutede jaacute que restringia o prazer de comer o que se gosta De

um lado a Vovoacute Magra tinha deliacutecias em sua sacola de crocheacute para satisfazer o gosto dos netos

de outro o pai definia categoricamente que a lei da casa era a dieta Da avoacute materna com as

guloseimas estava o afeto do pai com a voz de mando o cuidado com a sauacutede Ambas as

manifestaccedilotildees eram a expressatildeo de amor que cada um deles era capaz de oferecer de acordo com

sua histoacuteria e com sua personalidade

Um elemento importante para a compreensatildeo do engorde da protagonista estaacute em sua

infacircncia quando ao contraacuterio do que ocorreu na vida adulta precisou fazer dieta para engordar

Mais uma vez a Voacute Magra tem papel crucial nesse processo conforme mostra o trecho abaixo

Os que me conhecem soacute agora natildeo acreditam Nem eu acredito Ateacute uns sete ou oito

anos eu era uma crianccedila inapetente Vovoacute Magra chegava em casa com pedaccedilos de

alcatra chuletas ou bifes de fiacutegado cortes que ela havia escolhido com ciecircncia no balcatildeo

do accedilougue do seu Jorge Depois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho

direto para a cozinha e ali direto aos armaacuterios Sentava-me junto agrave mesa de foacutermica

Vovoacute dava de matildeo numa pequena frigideira de alumiacutenio com duas alccedilas de baquelite jaacute

retorcidas pelo calor Aacutegua esponja sabatildeo pano de prato Daiacute um fio de oacuteleo Mazola-

ou Sol Levante aquele que estivesse mais em conta na ocasiatildeo- escorria da lata natildeo

muito o suficiente para que uma poccedila dourada se armazenasse no cocircncavo da frigideira

No balcatildeo da pia vovoacute ordenava o pote de sal uma taacutebua de madeira chaira batedor de

bife a faca de corte e o embrulho de papel pardo no qual seu Jorge tinha riscado o total

a pagar Na abertura do pacote lembro aquele cheiro cru e meio arisco o papel

manchado de sangue da pobre vida extinta A faca era passada na chaira em movimentos

agudos um sibilar que me causava arrepio nos dentes Depois com a lacircmina vovoacute

eliminava nervos sebo e outras impurezas que soacute ela podia identificar Finalmente

espalmava os dedos sobre a peccedila de carne e em talhos saacutebios cortava em fatias Agraves

vezes usava o batedor para domar algum pedaccedilo mais resistente tunda de laccedilo na carne

que batia na madeira que batia na pedra que por seu turno estremecia o balcatildeo e todos

os cocircmodos da casa Uma pitada de sal o oacuteleo tinindo recebia a carne com uma

chiadeira labaredas azuladas salpicavam as fatias- daacute-lhe fumaccedila um nevoeiro que

anunciava a forccedila resistindo agrave morte (MOSCOVICH 2006 p35-36)

A Voacute Magra participava da alimentaccedilatildeo da neta natildeo apenas no preparo dos bifes mas

tambeacutem na extraccedilatildeo do sumo que resultava deles e na oferta do caldo agrave protagonista ainda

crianccedila Percebe-se o zelo da avoacute todo esse processo no qual o alimento representa nutriccedilatildeo

fiacutesica e cuidado afetivo

Dado o susto vovoacute colocava os bifes num prato fundo e com um garfo espremia e

espremia ateacute reunir uma boa quantidade de sumo sanguinolento Um pano ajeitado como

babador e entornando um pouco o prato com uma colher de sobremesa dava-me aos

bocados aquela riqueza nutritiva (MOSCOVICH 2006 p36)

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Ressalta-se o detalhamento com que a narradora apresenta os utensiacutelios de cozinha no

preparo dos bifes e os atos culinaacuterios da Voacute Magra Se natildeo haacute referecircncia direta ao prazer de

comer haacute o conhecimento visceral da avoacute no cozinhar Cada movimento eacute conhecido pelo corpo

e traduzido pelo uso dos utensiacutelios O que marca o trecho eacute o afeto com que a avoacute faz os bifes

para a neta o cuidado que tem com cada nuance do preparo expresso na proacutepria dedicaccedilatildeo e

tambeacutem em especial na frase lsquodepois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho direto

para a cozinharsquo Este eacute um dos trechos emblemaacuteticos da obra em termos de expressatildeo da cozinha

como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico nesta narrativa pois mostra dados como o oacuteleo na frigideira a

destreza com cada instrumento e o zelo no preparo do alimento como reforccedilo nutricional

A narradora segue o relato sobre os bifes que colocam sua matildee em segundo plano

Se vovoacute natildeo vinha o jeito era a senhora mamatildee me sentar na frente do preacutedio reunir

crianccedilas e cachorros da vizinhanccedila ao meu redor e fazendo aviatildeozinho enquanto eu me

distraiacutea me enfiar goela abaixo colheradas de legumes carne e todo o resto que eu

detestava

Natildeo me lembro quando comecei a comer feito gente grande Nunca mais parei

(MOSCOVICH 2006 p36-37)

Haacute uma diferenccedila na percepccedilatildeo da narradora sobre a forma como a Voacute Magra lhe oferecia

a lsquoriqueza nutritivarsquo aos bocados e aquela como a matildee o fazia ao lsquoenfiar goela abaixo

colheradas de legumes carne e todo o resto que eu detestavarsquo O contraste estaacute sobretudo na

expressatildeo do afeto que leva a protagonista o falar em lsquoriqueza nutritivarsquo quando menciona o

cuidado da avoacute e ao referir-se ao termo lsquogoela abaixorsquo sobre o alimento oferecido pela matildee

Possivelmente o prazer de comer tivesse sido originado no afeto ligado ao alimento e ao cuidado

pela avoacute pois eacute das cenas com esta que restaram os principais registros de memoacuteria sugerindo

que a lembranccedila daquele preparo eacute muito mais viva do que aquela da interaccedilatildeo com sua matildee A

frase lsquonunca mais pareirsquo mostra o comportamento de comer como algo que passou a se repetir

sugerindo a presenccedila de prazer que impele agrave repeticcedilatildeo

A partir do ponto em que comeccedilou a comer e entatildeo a engordar junto a seus irmatildeos

instalou-se na famiacutelia a determinaccedilatildeo de regime para os trecircs ordenada pelo pai A protagonista

refere

Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre

com o lsquoFairlane rabo-de-peixersquo A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos

enterrado o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como

eram- mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos

ancorava no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de

89

constituir o corpo de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo

fosse do jeito e na hora que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH

2006 p93)

Quando refere lsquoEssa ordem sei agora era o que nos ancorava no mundorsquo estaacute

expressando que sob a perspectiva adulta consegue ver a razatildeo da imposiccedilatildeo do pai ancorar os

filhos no mundo Estabelecia-se uma dicotomia entre a postura da Voacute Magra que partilhava seu

prazer alimentar com os netos e a do pai que assumia a funccedilatildeo de impor normas aos filhos Para

a narradora essa divisatildeo era contundente a bagagem de carinho da avoacute materna era o paraiacuteso a

forccedila da voz paterna era o inferno restringia definia acusava ordenava proibia O livro traz

todo o conflito da narradora personagem em seu tracircnsito por essa dicotomia ao longo da vida ateacute

apresentar os resultados do excesso de comer em seu corpo os terriacuteveis vinte e dois quilos ou

cento e dez tabletes de manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha

A ordem paterna para a dieta transforma-se na idade adulta na ordem do meacutedico

tambeacutem uma voz impositiva ameaccediladora e acusatoacuteria Essa eacute expressa jaacute no proacutelogo quando a

protagonista conta o motivo de sua reflexatildeo sobre a histoacuteria familiar e a pessoal para

compreender o porquecirc de chegar ao excesso de peso

- Vocecirc natildeo estaacute gorda

Certo meu estado natildeo era transitoacuterio a gordura nunca foi um episoacutedio solteiro em

minha vida eu sabia ele nem precisava ir adiante Mas ele foi

- Vamos fazer suas ceacutelulas adiposas murcharem -Pediu minha atenccedilatildeo com a caneta no

ar- sei que parece injusto mas a natureza a fez assim Vocecirc eacute gorda

Uma vez mais de novo (MOSCOVICH 2006 p15)

A uacuteltima frase lsquouma vez mais de novorsquo refere-se possivelmente agrave lembranccedila sobre o

veredito do pai na infacircncia quando mandou que ela e os irmatildeos fizessem dieta O prazer de

comer tornava-se sempre transgressor da ordem sempre um mundo proibido e recheado de

culpas impostas por terceiros Por mais que ela natildeo quisesse sentir as culpas aprendera que

deveria senti-las para afastar-se do prazer

Com a evoluccedilatildeo da dieta conduzida pelo meacutedico a personagem comeccedila a conseguir

emagrecer e a perda de peso vai ganhando por sua vez gosto de vitoacuteria Emagrecer tambeacutem se

torna um prazer o que reflete a sua conscientizaccedilatildeo para a mudanccedila de haacutebitos e mais ainda

para o seu amadurecimento Haacute na protagonista a consciecircncia de sua responsabilidade pelas

escolhas alimentares e pelo resultado da dieta em sua sauacutede A mudanccedila de postura destaca-se

atraveacutes do termo lsquoum deliacuteriorsquo ponto em que se percebe sua capacidade de avaliar o que pode e o

90

que natildeo pode comer sem precisar ouvi-lo de terceiros A personagem conta o que sente

demonstrando sua disposiccedilatildeo para mudar a atitude frente agrave comida

Uma enorme vontade de comer uma daquelas refeiccedilotildees de estivador arroz feijatildeo ovo

frito massa bife na chapa purecirc de batatas salada de tomate e cebola Tudo num uacutenico

prato fundo e transbordante Para beber uma daquelas cervejas pretas docinhas das

quais se dizia que eram boas para mulheres que amamentavam Sobremesa pudim de

leite

Soacute vontade Um deliacuterio

Descobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um punhado de

parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagado Tambeacutem descobri que atum em lata e

dois ovos duros saciam por mais de quatro horas Uma xiacutecara de cafeacute e um pedaccedilo de

queijo enganam a fome por um bom tempo Disso eu sabia mas tinha me esquecido

Fui verificar meu peso um quilo e novecentos gramas a menos (MOSCOVICH 2006

p125-126)

A passagem acima ilustra um periacuteodo da personagem jaacute adulta em seu progresso durante

a dieta Quando ela diz lsquoDescobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um

punhado de parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagadorsquo (MOSCOVICH 2006 p125-126)

estaacute demonstrando que jaacute eacute capaz de encontrar prazer e sabor dentro da dieta ao inveacutes de lutar

com as restriccedilotildees como fez desde a infacircncia Eacute nesse momento que a comida assume um caraacuteter

de transformaccedilatildeo na narrativa a mudanccedila de postura em relaccedilatildeo ao foco de prazer na comida de

uma lauta refeiccedilatildeo ao novo modo de temperar a salada Como resultado a perda de peso

O significado de tal mudanccedila estaacute justamente na conscientizaccedilatildeo que representa Ao dizer

lsquoSoacute vontade Um deliacuteriorsquo a protagonista expressa conhecer os perigos de lsquouma daquelas refeiccedilotildees

de estivadorrsquo como a que descreve Mostrando a mudanccedila de possibilidades estaacute dizendo a si

mesma que compreendeu que eacute preciso mudar a fonte de prazer para atingir o emagrecimento

proposto pelo meacutedico

Nesse momento aliaacutes a ordem natildeo vem mais do pai natildeo vem mais do meacutedico E nem eacute

mais uma ordem Eacute entatildeo uma escolha E o melhor de tudo parte da proacutepria narradora

personagem em seu percurso no anseio do que pede agrave sua matildee no proacutelogo ldquoMamatildee me

endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar esse territoacuterio

metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora Quero voltar a ter um

corpordquo (MOSCOVICH 2006 proacutelogo)

A voz para a matildee eacute na verdade a voz em que ela se permite emitir essa narrativa Em

essecircncia a voz eacute dirigida a si mesma e o pedido para lsquovoltar a ter um corporsquo segue o verbo

querer na primeira pessoa do singular no presente do indicativo Eacute a afirmaccedilatildeo de um desejo de

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uma escolha Natildeo eacute o pai natildeo eacute o meacutedico natildeo eacute a interlocuccedilatildeo com a matildee A lei agora eacute sua

segue seu proacuteprio querer Da refeiccedilatildeo de estivador agraves alternativas possiacuteveis a narradora mostra o

que compreendeu eacute agente da proacutepria transformaccedilatildeo eacute emissora da proacutepria voz Tem um corpo

sim Mais do que isso tem um novo querer tambeacutem prazeroso e mais saudaacutevel o

emagrecimento

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3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS

Levantei-me as pernas agora quase firmes desci os degraus da porta ateacute a calccedilada

buscando algo para comer e o que havia no meu raio de visatildeo era uma carrocinha de

pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me desde que horas ele estava ali se

tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda

agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido Cheguei junto dele remexendo a bolsa

agrave procura de uns trocados que tivessem restado da farra de salgadinhos e biscoitos da

Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada desde entatildeo (REZENDE 2014

p147)

Comida eacute alimento nutriccedilatildeo sobrevivecircncia Eacute palavra feita de carne de aboacutebora de

arroz Tangiacutevel Comemos para nutrir as ceacutelulas mas tambeacutem para garantir nossa autonomia

porque comida eacute escolha eacute expressatildeo de si mesmo gosto disso prefiro aquilo Comida eacute

exerciacutecio de liberdade no quando no quanto no onde no que comer E comer eacute matar a fome e

satisfazer o apetite na comida de rua servida no papel pardo ou na mesa posta com talheres

prato copo guardanapo Comemos intransitivos ou transitivos sozinhos ou acompanhados

Comemos para atravessar mais um dia para seguir existindo como oacutergatildeos viacutesceras cinco

sentidos Mastigar salivar engolir digerir metabolizar excretar eis o trajeto da comida atraveacutes

do organismo tornando-se parte de quem somos E comemos para continuar sendo

31 QUARENTA DIAS

Quarenta dias eacute o livro escrito por Maria Valeacuteria Rezende editado pela Editora Record

em 2014 A narrativa traz a histoacuteria de Alice mulher de meia-idade que a pedido de sua filha

muda-se de Joatildeo Pessoa para Porto Alegre A contragosto deixa sua casa e sua vida as amizades

e os afazeres e segue a demanda da filha para que se torne lsquovoacute profissionalrsquo jaacute que a moccedila e seu

esposo decidem ter um filho

A personagem faz a mudanccedila de tudo o que tem caixas e caixas para a nova cidade em

apartamento escolhido e alugado pela filha e o genro No entanto em um jantar na casa do casal

recebe a notiacutecia de que decidiram passar um periacuteodo fora do paiacutes para suas especializaccedilotildees

acadecircmicas Assim adiaram os planos de gravidez motivo pelo qual ela havia abandonado seu

habitat e aceito uma imposiccedilatildeo pelo desejo da moccedila em ser matildee Partiriam em poucos dias logo

apoacutes Alice ter chegado em sua nova moradia

93

No desterro de seu lar e sozinha na capital gauacutecha a personagem transfere seu territoacuterio

de nutriccedilatildeo para a rua para o espaccedilo representado pelo coletivo pela cidade e natildeo para a cozinha

nova e moderna do apartamento Haacute sobretudo um deslocamento primordial na narrativa a

lsquoexpulsatildeorsquo de suas reflexotildees para as paacuteginas do diaacuterioepiacutestola em que Alice escreve de si

dirigindo-se a uma interlocutora Barbie a figura na capa do caderno que encontrara entre as

caixas da mudanccedila

No iniacutecio de sua vida em Porto Alegre esconde-se em casa fingindo ter viajado para o

interior na casa de primos Entatildeo mune-se de um motivo benevolente que usa para justificar

suas caminhadas a qualquer pessoa com quem encontre a busca freneacutetica pelo rapaz conterracircneo

Ciacutecero Arauacutejo perdido no Sul Nessa missatildeo esquece o proacuteprio endereccedilo e decide por viver um

paradoxo casa que natildeo eacute casa rua que natildeo eacute rua Externo que se torna interno porque eacute parte

dela Rua que eacute casa parece em sendo casa na rua encontra abrigo para a solidatildeo na rua

encontra alimento para as fomes que sente Fome de comida sim mas para aleacutem desta a fome de

ser lsquosi mesmarsquo de novo

Sozinha perde-se de si de seus referenciais familiares dos telefones que tem na

memoacuteria dos sentidos de sua proacutepria vida Tem no desaparecido a razatildeo temporaacuteria para sua

andanccedila sem paradeiro Procurar um jovem de sua terra que veio para Porto Alegre eacute uma boa

desculpa para algueacutem que percorre uma cidade em seus pontos mais perigosos ou naqueles mais

dramaacuteticos como o Hospital de Pronto-Socorro Nem vestiacutegio de Ciacutecero mas laacute encontra um

banco de madeira onde pode dormir

Em seus trajetos transfere o espaccedilo ocupado pela cozinha que eacute o de preparar a nutriccedilatildeo

para um espaccedilo coletivo e itinerante Padarias pequenos botecos nas vilas que percorre carrinhos

de pipoca e de cachorro-quente restaurante da rodoviaacuteria em que escuta um sotaque familiar

comida ofertada aos sem-moradia nas madrugadas Sem desejar voltar para casa Alice passa a

habitar a rua Faz amigos ao longo do caminho pessoas que se preocupam mais com ela do que

sua filha Mas isso ela quer esquecer quer apagar e estabelece um objetivo firme de resgatar um

desaparecido pelos recantos mais insoacutelitos e arriscados da cidade

A representaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo itinerante eacute um fator muito consistente na obra

Porque a cozinha eacute territoacuterio fiacutesico definido por moacuteveis objetos e eletrodomeacutesticos que a

compotildeem mas eacute tambeacutem simboacutelico nela vivem nutriccedilatildeo afeto famiacutelia intimidade Transferir

tal importacircncia para o externo para o alheio a si eacute como um transplante ao contraacuterio

94

O deslocamento na representaccedilatildeo dessa forccedila que transcende o objetivo meramente

nutricional expressa a ausecircncia de ninho vivenciada pela personagem Ela escolhe transplantar

sua vida para o lado de fora da porta escolhe a solidatildeo no meio do coletivo para apagar a solidatildeo

em silecircncio dentro das paredes de uma casa (e natildeo um lar) que a filha e o genro definiram para

ela Ao menos assim eacute ela quem escolhe Autonomia O que comer onde viver onde dormir

onde se banhar Por pior que seja o banho na rodoviaacuteria eacute sua voz eacute sua decisatildeo Por pior que

seja a noite no banco duro de madeira do Pronto-Socorro a pipoca do carrinho que fica ali na

frente o natildeo-ter-para-onde-ir fingindo estar na busca desenfreada pelo desaparecido eacute sua

proacutepria voz que precisa escutar Eacute pelo aparecimento de sua identidade perdida que faz

peregrinaccedilotildees pelos becos mais sombrios por onde se propotildee a percorrer

Ao longo do percurso do livro enquanto parece perder-se cada vez mais de seus

referenciais de sua memoacuteria mais firma o passo mais decide onde ir E suas frases no diaacuterio

vatildeo ganhando pontos-finais ao relatar o ocorrido agrave medida em que se lembra e se torna mais

capaz de contar da redescoberta de sua identidade Na crise da personagem atraveacutes desse

desalojamento de um habitat seguro dessa saiacuteda para fora da porta ocorre a habitaccedilatildeo de um

novo espaccedilo o proacuteprio eu Em seus percursos defronta-se com a perda dos referenciais antigos

da casa de sempre da memoacuteria que lhe permitiria voltar para o eixo seguro da nutriccedilatildeo estaacutevel

na intimidade soacutelida da cozinha

Alice desloca-se durante a maior parte da narrativa Desloca-se de sua terra natal para

Porto Alegre e nessa capital transita entre avenidas principais e becos escondidos entre

viadutos e casas de estranhos entre floriculturas e terrenos baldios Desloca-se de si mesma

quando decide natildeo voltar agrave casa escolhida para ela Escolhida eacute voz passiva voz que ela quer

transcender

Distrai-se com a histoacuteria do desaparecimento de Ciacutecero Arauacutejo com a confusatildeo mental

que se instala entre fome-frio-sono-exaustatildeo Tudo isto para natildeo lembrar volta-se para fora e

desse modo esquece o dentro Desloca o foco das confissotildees que faz a si sendo um diaacuterio para

Barbie como um sucessivo contar de eventos e emoccedilotildees em escritos que mais parecem cartas

Mais uma vez dentro e fora se conjugam pois acontecem num simultacircneo mas estatildeo

dissociados Alice dirige para fora suas reflexotildees para um terceiro entatildeo dissocia-se de si para

olhar para si

95

Em um determinado ponto refere ldquoNatildeo Barbie esta noite natildeo dormi em saguatildeo nem em

parque nenhum Natildeo vecirc como estou bem-disposta a sentar-me pegar a caneta e continuar

escrevendo aqui nesta cozinha depois desta noite bem-dormida na suiacutete deste apartamento que

me esforccedilo para aceitar finalmente como meurdquo (REZENDE 2014 p163)

Estaacute dentro de casa mas ainda natildeo faz parte dela em verdade situa-se fora dali no sentir

Demonstra isso quando usa lsquobem-disposta nesta cozinha deste apartamento como meu me

esforccedilo para aceitarrsquo Tal dissociaccedilatildeo identitaacuteria eacute expressa por um permanente desconexatildeo

consigo Perde-se de sua casa e de seus referenciais para descobrir o paradeiro de Ciacutecero Arauacutejo

com o firme propoacutesito de encontrar um motivo que alinhave seus dias em Porto Alegre dentro de

si o sentido estaacute fora de si Nessa desconexatildeo descobre uma Alice nascente

Chega Barbie agora eu paro mesmo que jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia

guria a solidariedade silenciosa mas agora vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a

mal taacute natildeo digo que seja pra sempre quem sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo

a limpo (REZENDE 2014 p245)

Eacute possiacutevel ler que aquilo que estava fora sua narrativa epistolar para a Barbie seraacute

entregue ao mundo da gaveta o interno e passe a habitar esse lsquodomiciacuteliorsquo escondido Entretanto

Alice jaacute internalizou marcas de linguagem regionais como as tachadas em negrito lsquoguriarsquo e lsquotu

natildeo leva a mal taacutersquo significando esse ponto uma transformaccedilatildeo de aspectos de sua identidade a

incorporaccedilatildeo da linguagem oral como proacutepria Internalizou o que estava fora tornou-o seu

tambeacutem passou a sentir-se parte Como resultado guardou no interno na gaveta seu diaacuterio que

sendo comunicaccedilatildeo consigo era dirigido a um interlocutor

Esse eacute o permanente tracircnsito do livro essa dissociaccedilatildeo permeia cada vivecircncia e eacute atraveacutes

dessa mobilidade que Alice pode ver a si mesma e se transformar Sacudida pelo real perigo de

sua itineracircncia permanente aproxima-se do fim de sua busca por um Ciacutecero que nem espera mais

encontrar

Ao longo da narrativa haacute frases sem ponto final no teacutermino dos capiacutetulos e muitas vezes

com ideias inacabadas Um elemento ligado a esse aspecto eacute o das muacuteltiplas linguagens surgem

epiacutegrafes vindas de outros autores contemporacircneos e em vaacuterias partes do livro elementos

graacuteficos aludindo a folhetos colados no diaacuterio Assim a ruptura da linguagem linear adotando

uma expressatildeo proacutepria eacute composta por frases descontiacutenuas e de outras em que a viacutergula daacute

apenas a pausa necessaacuteria ao ritmo da voz sem preocupaccedilotildees formais com a gramaacutetica

Prevalece aliaacutes o registro do informal com letras maiuacutesculas seguindo viacutergulas interrogaccedilotildees

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no meio da frase sem uma letra maiuacutescula a seguir e assim por diante trazendo muito mais um

lsquocomo se falarsquo do que um lsquocomo se lecircrsquo

Tal elemento alia-se a um projeto graacutefico que apresenta aleacutem de texto imagens para

contemplar a lsquoformarsquo do livro como um diaacuterio Esta complementaridade toca em um tema de

grande relevacircncia no contemporacircneo a ligaccedilatildeo das artes para expressar um todo que ultrapasse

os territoacuterios particulares uma intersecccedilatildeo de saberes e de poeacuteticas que independentes em sua

importacircncia complementem-se As figuras lsquocoladasrsquo no diaacuterio natildeo parecem ter conexatildeo entre si

mas transmitem a ideia de uma escolha Foram postas ali por Alice Natildeo parece haver unidade

entre as imagens Colagem de figuras mas tambeacutem de vinhetas que se tornam epiacutegrafes sem

conexatildeo aparente entre si Essa ausecircncia de conexatildeo eacute possivelmente o que a obra pretende

comunicar com suas dissociaccedilotildees e com as frases descontiacutenuas agrave medida que a personagem

percorre o trajeto da autonomia as frases vatildeo ganhando finalizaccedilatildeo Ela comeccedila a decidir

Nesse livro a ausecircncia de unidade parece representar exatamente o contraacuterio sua

unidade Outro ponto a ser ressaltado eacute o fato de o diaacuterio ser escrito em uma mistura de tempos

natildeo seguindo a cronologia tiacutepica dos diaacuterios Muito do texto referente agrave eacute registrado em olhar

retrospectivo a todo o periacuteodo e natildeo segue uma ordem temporal tiacutepica em que a escrita iacutentima

sucede cada evento Mistura de tempos e de autores escolhidos para as epiacutegrafes e de figuras

selecionadas para compor o percurso lsquograacuteficorsquo da personagem como a nota da padaria a

propaganda da imobiliaacuteria a divulgaccedilatildeo da cliacutenica de traumatologia e por aiacute vai

Quarenta dias acontece no cerne mais cru da capital as vilas as avenidas movimentadas

a rodoviaacuteria os viadutos de moradores de rua os becos as paradas de ocircnibus o pronto-socorro

os cenaacuterios tiacutepicos de apartamento de lsquocidade grandersquo

Alice eacute uma personagem urbana implantada em Porto Alegre sem colar-se agrave cidade mas

que quanto mais se torna moradora de rua mais se torna pertencente ao mapa porto-alegrense

Mesmo sem perceber Faz-se aderida agraves ruas aos becos agraves vilas aos botecos agraves paradas de

ocircnibus onde dorme Eacute fio da trama quer estar fora porque reluta em aceitar a vida que a ela foi

imposta pela filha Neste processo cria uma vida para si cria um olhar para a cidade que vai

habitando No geruacutendio Alice torna-se parte Faz-se parte quando adentra a rua os viadutos

habitados agrave noite os crimes em matagais o cafeacute e o mate e o cachorro-quente oferecidos pelos

voluntaacuterios na madrugada O banho na rodoviaacuteria o banco duro de madeira onde dorme no HPS

Alice vai tomando voz vai tomando-se de sua voz que haacute tempos natildeo ouvia

97

32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS

Fenocircmenos psiacutequicos como a consciecircncia a memoacuteria a emoccedilatildeo o pensamento e o juiacutezo

criacutetico entre outros satildeo estudados principalmente pelo campo da Fenomenologia Psiquiaacutetrica

esses constituem os pilares para a avaliaccedilatildeo do estado mental de um indiviacuteduo O psiquiatra

examina a qualidade da expressatildeo dos mesmos na entrevista com o paciente verificando se estatildeo

dentro da normalidade ou se apresentam desvios compatiacuteveis com um quadro psicopatoloacutegico

Algumas capacidades satildeo compostas por um conjunto desses fenocircmenos e natildeo apenas por um

esse eacute o caso da autonomia

O indiviacuteduo natildeo nasce com autonomia Esta deve ser estimulada pelos pais desde o

momento em que a crianccedila deixa de mamar no peito e comeccedila a receber a alimentaccedilatildeo soacutelida

Brinca de fechar a boca enquanto a colher vem com a papinha O comer eacute a primeira autonomia

depois da dependecircncia representada pela amamentaccedilatildeo Entatildeo a crianccedila aprende a segurar a

colher entatildeo pouco a pouco os outros talheres Aprende a gostar de comer isso ou aquilo a

apontar o que deseja em seu prato A autonomia vai sendo aprendida na infacircncia pelo engatinhar

e pelo caminhar Segue-se o controle dos esfiacutencteres que vai sendo aprendido o limpar-se o

tomar banho o ficar sem os pais no maternal E tantas outras conquistas ensinadas e estimuladas

para a aquisiccedilatildeo dessa capacidade Entretanto limitaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas podem desde o

iniacutecio da vida restringir seu desenvolvimento

Jaspers compreende as manifestaccedilotildees psiacutequicas tendo como base elementos da

Fenomenologia Desse modo a autonomia resultaria de um conjunto de fatores que em bom

funcionamento determinariam a adequada manutenccedilatildeo dessa capacidade Em contrapartida o

neurocientista Antocircnio Damaacutesio eacute apresentado nesta fundamentaccedilatildeo por suas pesquisas

neurobioloacutegicas sobre o fenocircmeno da consciecircncia na qual aponta existir o nuacutecleo da consciecircncia

de si Nesta estaria o cerne para a autonomia

A escolha e a independecircncia paracircmetros que estatildeo associados agrave essa capacidade

necessitam que haja no ser humano em primeiro lugar a consciecircncia e nesta a consciecircncia de

si a escolha e a decisatildeo acontecem no domiacutenio do pensamento mas envolvem tambeacutem as

emoccedilotildees (representadas pelo afeto e o humor) e o juiacutezo criacutetico Por fim a escolha se realiza

atraveacutes de uma accedilatildeo expressa pela conduta Todos esses elementos satildeo fenocircmenos psiacutequicos que

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compotildeem a capacidade de autonomia de um indiviacuteduo Quando essa se apresenta reduzida por

algum dos paracircmetros indicados avalia-se a presenccedila ou a ausecircncia de normalidade por

conseguinte avalia-se a existecircncia de psicopatologia Os outros fenocircmenos - atenccedilatildeo orientaccedilatildeo

memoacuteria sensopercepccedilatildeo inteligecircncia e linguagem- estatildeo presentes na avaliaccedilatildeo do estado

mental do indiviacuteduo compondo tambeacutem sua autonomia no entanto apresentam-se em grau de

menor relevacircncia para seu desenvolvimento

Aleacutem de escolha independecircncia consciecircncia de si e decisatildeo outras expressotildees podem

ser associadas a seu exerciacutecio liberdade individualidade vontade self eu Em termos

etmoloacutegicos a palavra autonomiacutea procede do latim autonomĭa e esta por sua vez do grego

αὐτονομία (autonomia) formada por αὐτός (autoacutes) que significa lsquomesmorsquo e νόμος (noacutemos) lsquoleirsquo

ou lsquonormarsquo Assim seria possiacutevel compreender que o significado aponta para a noccedilatildeo de

autonomia como lsquoleis para si mesmorsquo ou seja as leis que o proacuteprio indiviacuteduo define para sua

vida

Considerando a autonomia como capacidade eacute necessaacuterio apontar que em casos de

sofrimento psiacutequico essa apresenta-se muitas vezes reduzida pois o sofrer acaba por reduzir a

possibilidade de o indiviacuteduo sentir-se livre para as proacuteprias escolhas Em ateacute que ponto este

quadro representa uma circunstacircncia normal e a partir de qual se torna patoloacutegico O sofrimento

pode resultar de uma crise vital com duraccedilatildeo por um periacuteodo esperado e apresentaccedilatildeo de

sintomas dentro da normalidade ou pode resultar do adoecimento do indiviacuteduo com sintomas

presentes em intensidade maior e por periacuteodo mais longo A restriccedilatildeo da liberdade e portanto da

autonomia ocorreraacute de acordo com o tipo e com a duraccedilatildeo deste sofrimento Tal diminuiccedilatildeo na

narrativa pode ser vista de dois modos como parte do sofrimento psiacutequico vivenciado pela

personagem e como perda real de sua experiecircncia de autonomia jaacute que teve sua vinda ao Sul

definida pela escolha da filha Natildeo por sua decisatildeo Eacute por perceber-se nesta condiccedilatildeo que Alice

parte na direccedilatildeo de sua autonomia para sentir-se livre novamente

Karl Jaspers apresenta elementos relacionados agrave autonomia em sua obra Psicopatologia

geral sem que esse termo propriamente dito seja conceituado ou explicitado A expressatildeo mais

proacutexima eacute a da consciecircncia do eu considerada dentre o que ele estabelece como lsquofenocircmenos

subjetivos da vida psiacutequicarsquo Esta consciecircncia estaacute na base fundamental para o desenvolvimento

da autonomia ao lado de outro fenocircmeno apontado o da lsquoconsciecircncia do corporsquo

99

Na apresentaccedilatildeo da lsquoconsciecircncia do eursquo Jaspers define quatro componentes o primeiro eacute

o sentimento de atividade uma consciecircncia de atividade do eu Este se refere a tudo o que ocorre

na vida psiacutequica e que o indiviacuteduo identifica como seu a exemplo de percepccedilotildees sensaccedilotildees do

corpo lembranccedilas representaccedilotildees pensamentos e sentimentos Todas essas atividades do eu que

o caracterizam satildeo operaccedilotildees pessoais realizadas em si mesmo e identificadas como proacuteprias e

compotildeem o que o autor denomina personalizaccedilatildeo Quando haacute alteraccedilatildeo desses aspectos usa-se o

termo despersonalizaccedilatildeo fenocircmeno que pode ser descrito como o estranhamento do eu a

percepccedilatildeo de que tudo o que ocorre com o indiviacuteduo eacute na verdade alheio ao mesmo

Tal estranhamento ocorre no mundo das percepccedilotildees junto agrave ausecircncia de sensaccedilotildees

normais do proacuteprio corpo agrave incapacidade subjetiva de recordar-se de dados referentes a si agrave

inibiccedilatildeo dos sentimentos e ao automatismo de processos voluntaacuterios Tudo passa a constituir um

conjunto de atividades alheias ao eu e que em condiccedilotildees de normalidade deveriam ser

compreendidas como proacuteprias

O segundo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia da unidade ou seja a

unidade do eu Esta se refere agrave possibilidade de o indiviacuteduo perceber a si mesmo como unidade

ser um soacute no mesmo instante e natildeo como dois seres distintos ainda que atraveacutes de accedilotildees

diferentes (como ouvir a proacutepria voz enquanto fala e reconhecer que eacute sua proacutepria voz) A

alteraccedilatildeo da unidade do eu ocorre quando haacute um desdobramento da percepccedilatildeo de si observando

o eu como se estivesse fora dele

O terceiro componente da consciecircncia do eu eacute a consciecircncia da identidade ou seja a

identidade do eu Com a frase lsquosou o mesmo de antesrsquo refere-se agrave identidade como a consciecircncia

de ser o mesmo indiviacuteduo no seguir do tempo a constacircncia de si proacuteprio A alteraccedilatildeo deste

fenocircmeno leva o paciente a perceber o lsquoeursquo de um periacuteodo de vida como diferente do lsquoeursquo de

outro periacuteodo como antes e depois da instalaccedilatildeo de uma doenccedila psiacutequica por exemplo

O uacuteltimo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia do eu em oposiccedilatildeo ao mundo

externo e ao outro em que o indiviacuteduo eacute capaz de reconhecer a proacutepria identidade e de percebecirc-la

distinta do mundo externo e da identidade de outra pessoa Existe nesse componente a clara

contraposiccedilatildeo entre este indiviacuteduo e o mundo externo

Tais elementos constituem assim a lsquoconsciecircncia do eursquo base para a percepccedilatildeo das

proacuteprias necessidades e desejos neste sentido constituem tambeacutem a base para as escolhas

individuais no plano do pensamento dos sentimentos e das accedilotildees compreendidas pelo indiviacuteduo

100

como proacuteprias a si Ao lado dos componentes apresentados estaacute a consciecircncia do corpo Sobre

essa consciecircncia Jaspers refere

[] sou consciente do meu corpo como de minha existecircncia e contemporaneamente eu o

vejo com os olhos e o toco com as matildeos O corpo eacute a uacutenica parte do mundo que deve ser

sentida ao mesmo tempo pelo interno e percebida na superfiacutecie Esse eacute um objeto para

mim e sou esse mesmo corpo Satildeo duas coisas diferentes como me sinto

corpoereamente e como me percebo como objeto mas as coisas satildeo ligadas de modo

indissoluacutevel (JASPERS 2000 p95)

De acordo com o autor essa deve ser conhecida do ponto de vista fenomenoloacutegico

mediante a percepccedilatildeo de nossa experiecircncia global com nosso corpo Essa consciecircncia estaacute mais

proacutexima agrave lsquoconsciecircncia do eursquo nas atividades musculares e de movimento mais distantes das

sensaccedilotildees associadas ao coraccedilatildeo e agrave circulaccedilatildeo e ainda mais afastadas das sensaccedilotildees oriundas da

atividade vegetativa Enquanto o movimento eacute resultado das funccedilotildees voluntaacuterias os mecanismos

fisioloacutegicos vinculados ao coraccedilatildeo agrave circulaccedilatildeo e agrave atividade vegetativa satildeo inerentes agrave vida do

ponto de vista bioloacutegico e portanto involuntaacuterios A consciecircncia do corpo associada agravequela do

eu eacute referida por Jaspers por determinados fatores

Temos um sentimento especiacutefico da nossa existecircncia corpoacuterea no movimento e no

comportamento na forma na leveza e graccedila ou no peso na falta de agilidade motora na

impressatildeo que desejamos que nosso corpo desperte no outro no estado de fraqueza ou

de forccedila nas alteraccedilotildees da sauacutede [] A experiecircncia do proacuteprio corpo eacute ligada

estritamente do ponto de vista fenomenoloacutegico com a experiecircncia do sentimento das

pulsotildees instintivas da consciecircncia do eu (JASPERS 2000 p96)

Essas duas expressotildees da consciecircncia a do eu e a do corpo compotildeem o indiviacuteduo capaz

de perceber a si mesmo como unidade com uma identidade constante no tempo uacutenica em si

mesma e contraposta ao mundo externo a si e a outras pessoas De acordo tambeacutem com Jaspers

ldquo[] o corpo eacute a realidade da qual se pode dizer eu sou esse mesmordquo (JASPERS 2000 p383) O

autor refere que ldquo[] a situaccedilatildeo fundamental do ser humano eacute a estar no mundo como ser

singular finito ser dependente mas ter a possibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevel limitado

por confins obrigatoacuteriosrdquo (JASPERS 2000 p352) Em tal reflexatildeo a autonomia do indiviacuteduo

estaacute nesta lsquopossibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevelrsquo determinada pelo autor Entretanto ele

define tal possibilidade associada a confins obrigatoacuterios que delimitam o espaccedilo individual

Jaspers estabelece os limites entre autossuficiecircncia e dependecircncia apontando que somos

seres dependentes em nossa realidade e que a autossuficiecircncia completa eacute um ideal inatingiacutevel

101

[] no homem haacute a tendecircncia a imaginar-se um ser ideal que fechado em si seja

autossuficiente e que satisfeito em si mesmo viva sem sentir necessidade de qualquer

coisa do externo porque ele existe em si mesmo em abundacircncia infinita Se o homem

quiser tornar-se tal ser deveraacute compreender de modo draacutestico que eacute simplesmente

dependente em tudo Ele como ser vital tem necessidades que soacute podem ser satisfeitas

pelo externo Ele deve viver e valer na sociedade para participar aos bens necessaacuterios agrave

vida Ele deve viver com outros seres humanos em reciprocidade (JASPERS 2000

p354)

Assim para Jaspers a consciecircncia de si e a consciecircncia do corpo formam a unidade do ser

individual que pode agir em um espaccedilo mutaacutevel no qual o indiviacuteduo eacute consciente se si mesmo e

das proacuteprias accedilotildees mas cuja autossuficiecircncia eacute condicionada a confins obrigatoacuterios a realidade

externa os bens necessaacuterios agrave vida (alimentos moradia recursos econocircmicos para vestir-se e

deslocar-se por exemplo) e os outros indiviacuteduos com quem este interage em suas relaccedilotildees

interpessoais A autonomia assim acontece dentro de um espaccedilo definido por limites reais do

mundo externo

O neurologista e neurocientista Antonio Damaacutesio assim como Jaspers tambeacutem

estabelece uma associaccedilatildeo direta entre a consciecircncia do eu e o corpo O elemento da consciecircncia

do indiviacuteduo sobre si mesmo eacute denominado por ele de Self e eacute parte da estrutura que define

como consciecircncia Damaacutesio parte da comparaccedilatildeo do ser humano com organismos unicelulares e

estabelece

Uma chave para compreendermos os organismos vivos desde aqueles compostos de

uma uacutenica ceacutelula ateacute os formados por bilhotildees de ceacutelulas eacute a definiccedilatildeo de sua fronteira a

separaccedilatildeo entre o que estaacute dentro deles e o que estaacute fora A estrutura do organismo estaacute

dentro da fronteira e a vida do organismo eacute definida pela manutenccedilatildeo dos estados

internos agrave fronteira E a individualidade singular depende dessa fronteira (DAMAacuteSIO

2000 p178)

A referecircncia de Antonio Damaacutesio estaacute de acordo com a perspectiva de Karl Jaspers no

que tange agrave lsquoindividualidade singularrsquo dentro da fronteira separada do mundo externo a parte de

fora dessa fronteira O neurocientista explicita que o indiviacuteduo singular deve apresentar

sobretudo ldquo[] um grau notaacutevel de invariacircncia estrutural para que consiga oferecer uma unidade

de referecircncia no decorrer de longos periacuteodosrdquo acrescentando que ldquo[] de fato continuidade de

referecircncia eacute o que o self precisa proporcionarrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Essa continuidade de

referecircncia coincide com um dos componentes da lsquoconsciecircncia do eursquo definida por Jaspers aquele

em que o indiviacuteduo permanece com a percepccedilatildeo de si mesmo ao longo do tempo

102

O aspecto que se relaciona agrave reflexatildeo sobre a autonomia a partir da leitura de Damaacutesio

encontra-se em tal continuidade ligada por sua vez ao que ele aponta como estabilidade Este

autor refere que ldquo[] quando refletimos acerca do que estaacute por traacutes da noccedilatildeo de self encontramos

a noccedilatildeo do indiviacuteduo singular E quando pensamos no que estaacute por traacutes da singularidade do

indiviacuteduo encontramos a estabilidaderdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Quando se refere agrave noccedilatildeo de

estabilidade Damaacutesio estaacute na verdade apresentando a ideia de que um organismo vivo deve ter

constacircncia em seu meio interno para manter a vida e essa constacircncia pode ser explicada nas

palavras do autor como ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados internos de modo

que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Ao trazer a noccedilatildeo de constacircncia o autor estaacute falando em organismo e sobretudo em

sobrevivecircncia A chave de sua reflexatildeo reside no fato de remeter-se agrave noccedilatildeo de estabilidade dos

paracircmetros do organismo compatiacuteveis com a vida para chegar ao fenocircmeno da consciecircncia do

eu Damaacutesio aponta que

Um organismo simples formado de uma uacutenica ceacutelula digamos uma ameba natildeo apenas

estaacute vivo mas se empenha em continuar vivo Sendo uma criatura sem ceacuterebro e sem

mente a ameba natildeo sabe sobre as intenccedilotildees do seu proacuteprio organismo assim como noacutes

sabemos sobre nossas intenccedilotildees equivalentes [] O que estou tentando mostrar eacute que o

iacutempeto de manter-se vivo natildeo eacute um avanccedilo recente Natildeo eacute uma propriedade exclusiva

dos seres humanos De um modo ou de outro dos organismos simples aos complexos a

maioria dos seres vivos apresenta essa propriedade O que efetivamente varia eacute o grau

em que os organismos tecircm conhecimento desse iacutempeto Poucos deles tecircm Mas o iacutempeto

estaacute presente quer o organismo saiba disso ou natildeo Graccedilas agrave consciecircncia os humanos

satildeo em grande parte cientes dele (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Eacute possiacutevel compreender entatildeo a referida estabilidade como o iacutempeto do organismo em

manter-se vivo nos seres humanos existe a consciecircncia desse iacutempeto O indiviacuteduo singular

como denomina o autor eacute consciente de sua sobrevivecircncia que ocorre no ambiente interno de

sua fronteira ou seja em seu corpo Para conservaacute-la com a estabilidade necessaacuteria agrave

permanecircncia de vida deve manter constantes paracircmetros internos em sua fisiologia Comer

dormir beber liacutequidos proteger-se de extremos de temperatura urinar e defecar algumas das

funccedilotildees que realizamos conscientemente para responder a essa finalidade cumprimos

necessidades vitais respondemos ao iacutempeto do organismo em manter-se vivo mas o realizamos

com o claro propoacutesito de fazecirc-lo Damaacutesio refere que ldquo[] a cada momento o ceacuterebro tem agrave sua

disposiccedilatildeo uma representaccedilatildeo dinacircmica de uma entidade com variaccedilotildees limitadas de estados

possiacuteveis- o corpordquo (DAMAacuteSIO 2000 p186)

103

A consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo portanto estatildeo na base do indiviacuteduo

singular A manutenccedilatildeo do ambiente dentro da fronteira nosso corpo eacute realizada por nossa

consciecircncia no cumprimento de nossas funccedilotildees vitais de certo modo escolhemos cumprir tais

funccedilotildees ao respeitarmos necessidades fisioloacutegicas entre elas comer e dormir Assim

sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas por um elemento em comum a consciecircncia que o

indiviacuteduo tem de si mesmo Entretanto deve-se salientar que a autonomia eacute uma capacidade que

poderaacute existir em maior ou menor grau durante o ciclo vital pois depende das possibilidades

fiacutesicas e psiacutequicas do ser humano em responder agraves exigecircncias da vida dentro de paracircmetros de

normalidade

Alguns elementos podem restringir a capacidade de autonomia sendo o sofrimento

psiacutequico um deles por reduzir a liberdade de o indiviacuteduo em fazer suas escolhas Tal reduccedilatildeo eacute

determinada pelo proacuteprio sofrimento inerente a patologias psiquiaacutetricas ou a crises vitais como

por exemplo a reaccedilatildeo a um evento traumaacutetico

Massimo Biondi em seu livro A mente selvagem um ensaio sobre a normalidade nos

comportamentos humanos apresenta o viacutenculo do sofrimento subjetivo com a reduccedilatildeo da

liberdade Sobre esse tema discute o limite entre normalidade e psicopatologia quando se aborda

o indiviacuteduo que sofre Segundo esse psiquiatra italiano no capiacutetulo intitulado lsquoO sofrimento

subjetivo e a liberdadersquo que o sofrimento subjetivo e a anguacutestia a reduccedilatildeo ou falta de liberdade e

a reduccedilatildeo da vontade satildeo aspectos que invariavelmente acompanham o distuacuterbio psiacutequico quanto

a este pode-se falar da importacircncia da vivecircncia subjetiva de determinado evento ou situaccedilatildeo

existencial para procurar definir os limites entre a normalidade psiacutequica e a patologia

O sofrimento subjetivo termo empregado por esse autor constitui um criteacuterio para

diversos diagnoacutesticos psiquiaacutetricos e tem como eixos principais a experiecircncia subjetiva e aquela

psiacutequica a primeira referente agrave percepccedilatildeo subjetiva de um evento existencial ou de um

sentimento pode ser avaliada apenas indiretamente por suas manifestaccedilotildees e pelo relato do

indiviacuteduo que sofre A segunda em linhas gerais refere-se agrave resposta do indiviacuteduo em termos

psiacutequicos ou seja atraveacutes de alteraccedilotildees dos fenocircmenos do estado mental conduzindo ao

diagnoacutestico Massimo Biondi aponta quatro componentes do que denomina sofrimento psiacutequico

a) Um estado de sofrimento subjetivo mesmo que natildeo espontaneamente referido pela

pessoa em niacutevel verbal b) uma reduccedilatildeo ou perda da liberdade sobre os proacuteprios

pensamentos e sobre as proacuteprias accedilotildees c) uma alteraccedilatildeo do proacuteprio projeto de existecircncia

104

e da capacidade de projetar o futuro d) uma alteraccedilatildeo reduccedilatildeo ou anulaccedilatildeo da vontade

(BIONDI 1996 p40)

O segundo componente relativo agrave reduccedilatildeo ou perda da liberdade eacute elemento comum e

distintivo que atravessa a existecircncia de pessoas com distuacuterbios psiacutequicos Tal elemento eacute um dos

criteacuterios de patologia psiquiaacutetrica de uma relevante instituiccedilatildeo da especialidade mas natildeo estaacute

restrito apenas aos diagnoacutesticos tal perda estaacute associada ao proacuteprio sofrimento Assim podemos

encontrar em indiviacuteduos que atravessam crises vitais essa perda de liberdade significando

reduccedilatildeo da autonomia de algueacutem que atravessa uma situaccedilatildeo de sofrimento subjetivo sem

necessariamente tal quadro constituir alguma patologia psiquiaacutetrica definida

Ainda de acordo com Biondi um indiviacuteduo pode apresentar um distuacuterbio psiquiaacutetrico

como causa de um evento especiacutefico existem quadros em que o evento estressante tem um claro

papel patogecircnico Nesses casos o sofrimento subjetivo gerado pelo evento aparece como

principal mediador que causa favorece e acompanha o estado psicopatoloacutegico Existem

entretanto condiccedilotildees em que o sofrer subjetivo natildeo eacute indicativo de um estado de doenccedila

propriamente dito mas pode estar associado a condiccedilotildees compreendidas dentro da normalidade

Um estado de sofrimento subjetivo decorre por exemplo de situaccedilotildees comuns e

lsquonormaisrsquo como luto perda de trabalho dificuldades afetivas ou conjugais fracasso escolar ou

profissional natildeo necessariamente evoluindo para um quatro de psicopatologia Algumas

situaccedilotildees inclusive satildeo vivenciadas como positivas pelo indiviacuteduo porque reestruturam algum

foco de seu mundo interno conduzindo a uma mudanccedila na percepccedilatildeo de determinadas

experiecircncias Em tais casos o sofrimento pode ser atenuado ou ateacute mesmo ter um valor

construtivo Eacute possiacutevel refletir que nessas condiccedilotildees a perda da liberdade seja temporaacuteria mas

ainda assim leve agrave melhora do indiviacuteduo em sua perspectiva de vida pois o sofrimento eacute

condiccedilatildeo muitas vezes para a tomada de consciecircncia da condiccedilatildeo humana

Por fim cabe referir a ressalva do proacuteprio autor

[] a normalidade natildeo eacute uma condiccedilatildeo caracterizada apenas pela ausecircncia de sofrimento

psiacutequico Muitos acontecimentos comuns da vida fazem sofrer agraves vezes de modo mais

intenso e persistente em situaccedilotildees totalmente normais [] O problema estaacute em

reconhecer o sofrimento normal daquele que define em sentido estrito alguma patologia

psiacutequica (BIONDI 1996 p53-56)

A reflexatildeo sobre a perda da liberdade inerente ao sofrimento psiacutequico em vigecircncia de

uma circunstacircncia normal ou de patologia psiquiaacutetrica inclui o entendimento de que a autonomia

105

estaacute reduzida quando este sofrimento acontece O indiviacuteduo durante o periacuteodo em que sofre eacute

limitado na capacidade de fazer escolhas saudaacuteveis para si e tal limitaccedilatildeo decorre da dor psiacutequica

propriamente dita Aleacutem de ser menos livre pois o que pensa e sente eacute condicionado por essa dor

o indiviacuteduo acometido sente menos vontade como refere Biondi ao mencionar o uacuteltimo dos

quatro componentes do sofrimento psiacutequico Pode-se novamente referir a reduccedilatildeo da autonomia

pois dela faz parte tambeacutem o fato de ter vontades e de dar voz agraves mesmas

33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA

O que nos move ao comer Brillat-Savarin em A fisiologia do gosto apontou o lsquosentido

geneacutesicorsquo ldquo[] o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro sendo a

sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecierdquo (DOacuteRIA 2009 p190) A referecircncia agrave obra claacutessica na

literatura gastronocircmica feita pelo pesquisador Carlos Alberto Doacuteria em seu livro A culinaacuteria

materialista eacute seguida pela seguinte reflexatildeo apresentada por ele

[] ora a reproduccedilatildeo da espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do

indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo

ao sexo e ao comer eacute o prazer a busca do agradaacutevel [] Precisamos nos encontrar com

o alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduos e isso se daacute por dois caminhos

pelo prazer e pela dor

A fome eacute a fonte de dor e nos leva em direccedilatildeo ao alimento o prazer em comer tambeacutem

nos leva em direccedilatildeo ao alimento antes que a dor nos imponha o seu caminho (DOacuteRIA

2009 p190)

lsquoA busca pelo alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduosrsquo nas palavras do autor

estaacute associada agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo precisamos

manter a vida para preservaacute-la motivo pelo qual nos nutrimos e copulamos A procura por

alimentos viaacuteveis eacute da histoacuteria do Homo sapiens assim como no ato de cozinhar

experimentavam-se teacutecnicas que favorecessem a ingestatildeo de animais e vegetais

Neste ponto cabe a reflexatildeo de que a procura por novos alimentos e o desenvolvimento

de modos para preparaacute-los resultou da iniciativa em descobrir novas possibilidades comestiacuteveis

da capacidade fiacutesica de fazecirc-lo e de vaacuterias capacidades deste homo sapiens Seria possiacutevel

compreender entre estas a autonomia conduzindo agrave compreensatildeo de que teria sido esta

capacidade em suas primeiras manifestaccedilotildees uma das responsaacuteveis pela partida em direccedilatildeo a

animais e vegetais para comer

106

Caberia citar tambeacutem a autonomia como responsaacutevel pelo desenvolvimento da descoberta

de cozinhar os alimentos aleacutem de aspectos inerentes agrave proacutepria evoluccedilatildeo da espeacutecie Desse modo

ela pode ter permitido a sobrevivecircncia em condiccedilotildees muitas vezes desfavoraacuteveis pelas escolhas

alimentares que favoreceu Sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas assim desde tempos

ancestrais conforme refere Carlos Alberto Doacuteria no mesmo livro

Assim como ensina o arqueozooacutelogo Jean-Denis Vigne haacute 30 mil anos o homem jaacute natildeo

comia soacute o que o seu ambiente imediato lhe oferecia por facilidade de captura mas ia

atraacutes de alimentos capazes de satisfazer suas imagens mentais mais fortes e expressivas

em termos sociais Especialmente nas regiotildees frias no Paleoliacutetico Superior sua dieta era

composta de animais com pouca disponibilidade de vegetais Jaacute no Mesoliacutetico o clima

se estabiliza e nas regiotildees temperadas comeccedila a apresentar maior utilizaccedilatildeo de vegetais

Entre 8000-9000 aC e 5000 aC desenvolve-se a dieta moderna em que as energias

humanas satildeo providas por lipiacutedeos e gluciacutedeos originados de animais e plantas

domesticadas Pode-se dizer entatildeo que dessa eacutepoca em diante o homem produz tudo

aquilo que come isto eacute produz a si proacuteprio do ponto de vista alimentar (DOacuteRIA 2009

p3)

Doacuteria aponta ainda o viacutenculo entre a dieta humana e o processo de hominizaccedilatildeo como a

aquisiccedilatildeo da postura biacutepede e por fim a expansatildeo do Homo erectus ao moderno Homo sapiens

que exigiu uma dieta suficientemente rica em calorias e nutrientes Aleacutem desse aspecto o autor

refere o domiacutenio do fogo que permitiu cozinhar os alimentos e seus benefiacutecios

O incremento de calorias se deu graccedilas tanto a ambientes mais favoraacuteveis quanto agrave

adoccedilatildeo da culinaacuteria da agricultura e de criteacuterios de seleccedilatildeo de espeacutecies alimentares

Cozinhar tornou os alimentos mais macios e faacuteceis de ingerir e viabilizou o consumo de

vegetais como a batata e a mandioca que na forma crua natildeo podiam ter seus nutrientes

metabolizados pelo corpo humano Desse modo esses carboidratos complexos se

tornaram digestiacuteveis e multiplicaram ao extremo as possibilidades alimentares Em

siacutentese esses procedimentos aliados agrave seleccedilatildeo de espeacutecies vegetais permitiram

incrementar sua produtividade sua digestibilidade e seu conteuacutedo nutricional (DOacuteRIA

2009 p32)

O Homo sapiens munido de maiores capacidades alimentava-se de forma cada vez

melhor no sentido de incrementar sua sobrevivecircncia nutrindo-se com maior variedade e melhor

qualidade da dieta adquiria novas capacidades e aprimorava aquelas jaacute dominadas resultando em

aumento na capacidade de descoberta de novos ingredientes e de preparo dos mesmos Instalava-

se assim um ciacuterculo entre o desenvolvimento de potencialidades tornando-o cada vez mais

capaz de sobreviver mesmo em condiccedilotildees adversas bem como de agir sobre tais condiccedilotildees

Tudo isso favorecia a vida e a reproduccedilatildeo da espeacutecie Sobrevivecircncia e autonomia novamente

aliadas pelo alimento O pesquisador norte-americano Michael Pollan alude a uma observaccedilatildeo de

Winston Churchill sobre a arquitetura ldquoPrimeiro cozinhamos nossa comida depois ela nos

107

cozinhourdquo (POLLAN 2014 p15) Pollan explica esse fenocircmeno ocupado pelo cozinhar em

nossa biologia

Portanto cozinhar nos transformou e natildeo apenas por nos tornar mais sociaacuteveis e

corteses Uma vez que o ato de cozinhar permitiu que expandiacutessemos nossas capacidades

cognitivas agrave custa da capacidade digestiva natildeo havia mais como voltar atraacutes nossos

ceacuterebros grandes e intestinos pequenos dependiam agora de uma dieta agrave base de

alimentos cozidos [] Isso quer dizer que cozinhar tornou-se compulsoacuterio- estaacute por

assim dizer cozido em nossa biologia (POLLAN 2014 p15)

A partir daiacute toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo incluindo o surgimento da gastronomia

conduz progressivamente a um grau de evoluccedilatildeo deste campo que ultrapassa a lsquomerarsquo demanda

pela sobrevivecircncia e preservaccedilatildeo da espeacutecie A sobrevivecircncia ao que parece natildeo ocupa mais o

centro no universo da cozinha O campo das accedilotildees e estudos ligados ao preparo do alimento

chega em nosso seacuteculo XXI em niacuteveis de superespecializaccedilatildeo e de glamourizaccedilatildeo nunca antes

imaginados Este eacute o caso para citar exemplos da Cozinha Molecular e dos programas

televisivos que invadem as casas com a famiacutelia muito mais atenta ao programa sobre comer do

que ao proacuteprio comer Hoje em dia aliaacutes sobreviver natildeo atinge a categoria de prioridade de

muitos indiviacuteduos fervorosos em sua autonomia contemporacircnea no desejo insalubre pelo prazer

da comida ou mesmo na pressa da vida urbana morrem por comer da pior forma possiacutevel

Para compreender esse processo vale refletir sobre como chegamos ateacute aqui A histoacuteria a

ser contada parte do ato de cozinhar que ldquo[] eacute como dizem os antropoacutelogos uma atividade que

nos define como seres humanos - o ato com o qual segundo o filoacutesofo e antropoacutelogo Claude

Levi-Strauss a cultura surgerdquo (POLLAN 2014 p13) Para Leacutevi-Strauss conforme referido por

Michael Pollan ldquo[] cozinhar servia como uma metaacutefora da transformaccedilatildeo humana da natureza

crua para a cultura cozidardquo (POLLAN 2014 p13) A respeito do papel do cozinhar para a

cultura Carlos Alberto Doacuteria refere

O que une as abelhas no coletivo eacute uma interaccedilatildeo quiacutemica chamada trofolaxe Ora aleacutem

da integraccedilatildeo neurosensorial devemos considerar que a trofolaxe humana eacute a linguagem

Eacute por intermeacutedio da linguagem que estamos acoplados com outros seres humanos e eacute

tambeacutem com ela que partilhamos nossas experiecircncias ateacute mesmo atraveacutes de enormes

distacircncias no tempo e no espaccedilo Nessa trofolaxe a relaccedilatildeo com os sabores do mundo se

daacute ao mesmo tempo pelo aparelho gustativo e pela cultura (DOacuteRIA 2009 p197)

Deve-se considerar a vasta gama de fatos da histoacuteria da alimentaccedilatildeo desde a preacute-histoacuteria

ateacute nosso terceiro milecircnio tendo como eixo a transformaccedilatildeo na cultura produzida pelo cozinhar

a fim de compreender as mudanccedilas exponenciais que a cozinha atravessou ateacute chegar agrave sua

108

representaccedilatildeo contemporacircnea Nesse contexto faz-se necessaacuterio definir os pontos de referecircncia

que marcaram a transiccedilatildeo a partir da qual sobreviver parece ter deixado de ocupar o motivo por

que o indiviacuteduo se alimenta

Um dos aspectos que podem ser apontados como referenciais na transiccedilatildeo acima abordada

eacute o iniacutecio da chamada restauraccedilatildeo ou seja o surgimento dos restaurantes dentro do nascimento

da hotelaria Em especial a existecircncia da comida de rua passa a ter um papel significativo neste

sentido A valorizaccedilatildeo da gastronomia cada vez maior desde o seacuteculo XVIII teve tambeacutem

influecircncia no processo ao deslocar para o prazer dos sentidos principalmente o do gosto o

centro de sua atenccedilatildeo

Entretanto haacute um ponto chave para a mudanccedila do foco da comida de aspecto nutricional

e gregaacuterio a fator de risco para as mais variadas doenccedilas fiacutesicas como a obesidade e a

hipertensatildeo arterial e para aquelas psiacutequicas como a anorexia e a bulimia tatildeo vigentes no seacuteculo

XXI Este ponto em sua origem estaacute no processo de industrializaccedilatildeo que culminou com o

deslocamento do comer da mesa do lar para o local de trabalho De que forma este pode

relacionar-se agrave sobrevivecircncia e agrave autonomia focos deste subcapiacutetulo Por dois caminhos o

primeiro refere-se ao fato de que o deslocamento restringiu as possiblidades de alimentaccedilatildeo e os

empregados ficaram submetidos ao que fosse oferecido em seu trabalho portanto com restriccedilatildeo

da autonomia o segundo caminho refere-se agraves ofertas alimentares propiciadas nos locais de

trabalho pouco dirigidas agrave sauacutede do indiviacuteduo e por extensatildeo ao papel nutricional da

alimentaccedilatildeo equivalente agrave sua sobrevivecircncia

Pode-se falar na evoluccedilatildeo dos centros urbanos e de suas demandas e transformaccedilotildees entre

estas a pressa que tambeacutem restringe as escolhas alimentares possiacuteveis Outra vez a restriccedilatildeo da

autonomia e o prejuiacutezo das escolhas agrave sauacutede Da pressa passamos ao fenocircmeno seguinte aquele

que Maacutessimo Montanari e Jean-Louis Flandrin denominam lsquoA McDonaldizaccedilatildeo dos costumesrsquo

no livro Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo do qual satildeo organizadores A pressa leva ao surgimento dos

fast-food pela sociedade norte-mericana estes por sua vez causam uma lista de patologias

cardiovasculares e oncoloacutegicas por exemplo A pressa e os fast-food tornam-se parte do

fenocircmeno de stress que aumenta a pressa e torna rotineira a alimentaccedilatildeo raacutepida reduzindo a

sauacutede e aumentando ainda mais o stress Instala-se o ciacuterculo vicioso da vida moderna O eixo de

nutriccedilatildeo que uma vez focircra o lar tornou-se a rua

109

Retomando um dos elementos discutidos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute possiacutevel perceber o

modo como as referidas mudanccedilas atingem a sobrevivecircncia Damaacutesio refere que para que um

organismo permaneccedila vivo eacute necessaacuterio ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados

internos de modo que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)

Em seu ensaio sobre a normalidade dos comportamentos humanos Massimo Biondi

apresenta um capiacutetulo em que aborda a normalidade dos padrotildees fisioloacutegicos de sobrevivecircncia

Explica que

O organismo eacute uma entidade viva Sua vida se baseia em processos bioloacutegicos de base

que devem respeitar algumas caracteriacutesticas A vida humana por exemplo eacute possiacutevel

para temperaturas corporais compreendidas entre 30 e 42deg Acima ou abaixo de tais

temperaturas para aleacutem de um certo tempo a vida eacute impossiacutevel []

Tal conceito vale para muitas outras variaacuteveis estudadas em medicina e fisiologia do

peso agrave altura da frequecircncia cardiacuteaca agrave pressatildeo arterial [] da quantidade diaacuteria de

accediluacutecar no sangue agraves caracteriacutesticas da urina

O criteacuterio da norma bioloacutegica assim como concebido aqui refere-se agrave normalidade de

funcionamento de estruturas bioloacutegicas que caracterizam a vida de um organismo e satildeo

compatiacuteveis com a mesma (BIONDI 1996 p169)

O indiviacuteduo do seacuteculo XXI em posse de sua autonomia acaba por fazer escolhas

alimentares contra a proacutepria sobrevivecircncia pois alteram os padrotildees de normalidade compatiacuteveis

com a sauacutede e em uacuteltima instacircncia com a proacutepria vida eacute o caso do impacto de alimentos do

regime fast-food na sauacutede resultando em diabetes hipertensatildeo arterial e sobrepesoobesidade

Tal resultado entre outros deve-se agrave ingestatildeo excessiva de carboidratos gorduras e

trigliceriacutedeos presentes nesta forma lsquodesnutricionalrsquo

A autonomia desse modo que muitas vezes eacute fonte de extrema valorizaccedilatildeo em tempos

nos quais a individualidade ocupa papel central leva o homem contemporacircneo a atacar a

sobrevivecircncia e natildeo mais a preservaacute-la Nesse ponto da histoacuteria da alimentaccedilatildeo sobrevivecircncia e

autonomia afrouxaram o dar as matildeos De acordo com Michael Pollan ldquoPesquisas de opiniatildeo

confirmam que a cada ano cozinhamos menos e compramos mais refeiccedilotildees prontasrdquo

(POLLAN 2014 p11)

Este autor traz reflexotildees relevantes quanto ao paradoxo do papel da cozinha em nossa

contemporaneidade apontando que ao mesmo tempo que o tempo de cozinhar diminui aumenta

o tempo de dedicaccedilatildeo a assistir programas de cozinha na televisatildeo aleacutem de outras modificaccedilotildees

mencionadas por ele sobre as escolhas alimentares O que chama a atenccedilatildeo na obra de Michael

Pollan eacute o fato de ele mencionar o ponto em que chegamos sob a perspectiva de nossa cultura

110

alimentar global Sendo este um pesquisador reconhecido e respeitado internacionalmente eacute

positivo que exponha em tom pungente os resultados de pesquisas e perspectivas no

embasamento de suas reflexotildees Posiciona-se frente a vaacuterios problemas graves ligados ao modo

de comer de nosso tempo ao mencionar a reduccedilatildeo do haacutebito de cozinhar e suas consequecircncias

ldquo[] natildeo eacute surpresa alguma o decliacutenio do haacutebito de cozinhar em casa coincidir com o aumento da

incidecircncia da obesidade e de todas as doenccedilas crocircnicas associadas agrave alimentaccedilatildeordquo (POLLAN

2014 p16)

O elemento apontado por este autor e que se relaciona agrave relaccedilatildeo entre a comida e as

relaccedilotildees interpessoais declara que a refeiccedilatildeo em famiacutelia deu lugar em larga escala ao comer

sozinho Autonomia praticidade e individualismo parecem estar no centro deste fenocircmeno

A ascensatildeo do fast-food e o decliacutenio da comida caseira tambeacutem abalaram a instituiccedilatildeo da

refeiccedilatildeo compartilhada por nos estimularem a comer coisas diferentes com pressa e

muitas vezes sozinhos Pesquisas dizem que estamos dedicando mais tempo agrave

lsquoalimentaccedilatildeo secundaacuteriarsquo que eacute como denominamos esse costume meio constante de

beliscar alimentos embalados e menos tempo agrave lsquoalimentaccedilatildeo primaacuteriarsquo - termo um tanto

deprimente para a instituiccedilatildeo outrora respeitada e conhecida como refeiccedilatildeo

A refeiccedilatildeo compartilhada natildeo eacute algo insignificante Trata-se de um dos fundamentos da

vida em famiacutelia o lugar onde as crianccedilas aprendem a arte da conversaccedilatildeo e adquirem

haacutebitos que caracterizam a civilizaccedilatildeo repartir ouvir ceder a vez administrar

diferenccedilas discutir sem ofender (POLLAN 2014 p16 grifo do autor)

A autonomia agrave eneacutesima potecircncia deixa de ser uma capacidade para tornar-se uma redoma

Acabamos tornando-nos seres livres em excesso talvez Por termos pressa querermos prazeres e

independecircncia extremos sobreviver passou agrave categoria de um lsquotanto fazrsquo em prol do proveito

maacuteximo do instantacircneo Vale retomar a reflexatildeo de Karl Jaspers sobre a consciecircncia do eu

definida por limites externos e reais nossa autossuficiecircncia eacute delimitada pela dependecircncia que

temos de recursos externos como por exemplo os bens alimentares e das pessoas significativas

em nossa vida Dependemos desses bens assim como dos relacionamentos familiares afetivos e

profissionais todos necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia do ponto de vista fiacutesico e psiacutequico

A autonomia conquistada para sobrevivermos na evoluccedilatildeo da espeacutecie chegou a um grau

de importacircncia em nosso universo contemporacircneo que parece ter ultrapassado o instinto de

preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo Viver a liberdade as vontades e

prazeres sobrepuja o proacuteprio sobreviver Autonomia e sobrevivecircncia parecem ter soltado as matildeos

111

34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI

A leitura do romance Quarenta dias permite identificar a cozinha presente em trecircs

periacuteodos principais da narrativa representados respectivamente por trecircs elementos especiacuteficos

O primeiro aparece nas paacuteginas iniciais quando Alice comeccedila a relatar em seu caderno o

periacuteodo que antecedeu a mudanccedila para Porto Alegre lembrando-se do egoiacutesmo de Norinha sua

filha desde quando ainda morava em Joatildeo Pessoa Tais recordaccedilotildees fornecem pistas do

comportamento da moccedila ao determinar as transformaccedilotildees na vida da matildee para satisfazer seus

interesses

O segundo elemento abrange os primeiros dias da chegada de Alice a inconformidade

com a nova moradia onde a cozinha que define como lsquode show-roomrsquo expressa uma atmosfera

impessoal e asseacuteptica agrave qual ela natildeo consegue se adaptar Aparece nesta etapa o choque de sua

nova realidade e a tentativa de aceite de todas as mudanccedilas de vida impostas pela filha

A importacircncia de refletir sobre os dois elementos apresentados acima estaacute no fato de esses

demonstrarem Alice em sua vida em Joatildeo Pessoa e logo na chegada em Porto Alegre Os dois

periacuteodos expressam o comportamento de Norinha como explicaccedilatildeo para sua conduta egoiacutesta em

relaccedilatildeo agrave matildee e expressam tambeacutem a relaccedilatildeo de Alice com a consciecircncia de si mesma e com a

autonomia Assim os dois periacuteodos anteriores agrave procura por Ciacutecero descritos por ela agrave Barbie

em seu caderno anunciam o porquecirc de desejar a retomada de si mesma durante os dias em que

transplanta sua vida para o espaccedilo urbano

O terceiro elemento por fim refere-se ao tema deste capiacutetulo a comida como

representaccedilatildeo da necessidade de autonomia vinculada ao processo de tomada de consciecircncia de

si incluindo suas escolhas necessidades de sobrevivecircncia gostos e memoacuterias gustativas que satildeo

parte de sua identidade Nesse terceiro elemento que ocupa a maior parte da anaacutelise encontra-se

uma cozinha transplantada para o universo urbano espaccedilo que Alice habita nos quarenta dias

Junto agrave comida expressa por carrinhos de pipoca botecos moradias em vilas- onde lhe

oferecem cafeacute chimarratildeo e algo para comer- padarias e um restaurante de rodoviaacuteria estaacute a

representaccedilatildeo de uma vida cujo cenaacuterio eacute o proacuteprio espaccedilo da cidade no dormir no banhar-se no

comer Eacute neste territoacuterio que Alice procura a si mesma enquanto em suas andanccedilas ela pergunta

por um desconhecido Ciacutecero Arauacutejo dentro de si vai encontrando aquela que eacute capaz de tomar as

proacuteprias decisotildees de sobrevivecircncia Progressivamente recupera a consciecircncia de si e as suas

112

vontades Um fator que deve ser ressaltado estaacute incluiacutedo neste terceiro elemento a ligaccedilatildeo

mesmo que efecircmera que Alice estabelece com as demais personagens da narrativa na maior

parte das vezes esta ligaccedilatildeo ocorre por intermeacutedio da comida que oferecem a ela ou que ela

partilha como no caso de Lola e Arturo

Eacute possiacutevel observar que haacute situaccedilotildees em que o cuidado de desconhecidos para com ela

ocorre ao oferecerem um chaacute um cafeacute um biscoito nas casas de vilas por onde passa o mesmo

cuidado eacute feito por Penha que coloca com esmero a mesa para Alice no restaurante da

rodoviaacuteria tratando-a com gentileza e camaradagem ou pela proacutepria Milena que cuida de Alice

com chaacute e canja de galinha no iniacutecio da histoacuteria quando esta teria voltado doente de sua visita a

Jaguaratildeo Ateacute mesmo Zelima que aparece na cena em que a protagonista se engasga com a

pipoca no Hospital de Pronto Socorro tem uma atitude de cuidado e de preocupaccedilatildeo para com

ela oferecendo-lhe aacutegua e acompanhando sua melhora

Estas breves expressotildees de carinho e zelo atraveacutes do alimento representam na obra a

nutriccedilatildeo que o cuidado interpessoal oferece muitas vezes na linguagem do alimento na vivecircncia

de Alice em sua nova vida porto-alegrense A capacidade de despertar sentimentos de cuidado de

afeto e de preocupaccedilatildeo da parte de outras pessoas demonstra caracteriacutesticas de uma Alice que

retoma o contato consigo que se reencontra

Mesmo com todo o trauma que atravessa a personagem eacute capaz de estabelecer viacutenculos

durante seus caminhos ainda que sejam breviacutessimos ilustram um aspecto de sua personalidade

Eacute algo seu que natildeo se perdeu com o roubo de sua autonomia e eacute justamente por seu modo de ser

que vai estabelecendo pontes para chegar a algum desfecho de sua procura durante a histoacuteria

pontes atraveacutes da comunicaccedilatildeo com as pessoas e comunicaccedilatildeo atraveacutes da comida que lhe eacute

servida das informaccedilotildees que lhe satildeo dadas do cuidado amistoso como no caso de Lola e de

Milena

Embora o foco do presente capiacutetulo seja a abordagem da conquista da autonomia da

personagem atraveacutes de suas decisotildees pela sobrevivecircncia eacute importante enfatizar que Alice em sua

vida em Joatildeo Pesssoa tinha tal autonomia Aleacutem de ter criado sua filha praticamente sozinha

tinha apartamento proacuteprio amigos e projetos reconhecimento de sua atividade profissional como

a lsquosensata Professora Poacutelirsquo conforme diversas vezes se denomina durante a narrativa Essa

capacidade sofreu abrupta reduccedilatildeo pela interferecircncia da filha quando definiu que a matildee iria se

transferir para Porto Alegre para cuidar do futuro neto

113

Este eacute entatildeo o primeiro elemento a ser abordado o egoiacutesmo da filha A conduta de

Norinha deveu-se a esse egoiacutesmo ao natildeo pensar no desejo de Alice e sim nos proacuteprios interesses

Apenas quando escreve a longa lsquocartarsquo para Barbie depois de sua jornada pela cidade a

protagonista eacute capaz de se recordar de episoacutedios antigos com a filha Esses eventos jaacute

denunciavam a postura da moccedila desde o comeccedilo da juventude O trecho a seguir mostra uma

dessas recordaccedilotildees

Ainda meio adormecida fechei a janela e voltei pra cama naquela madorna jaacute perto de

acordar de vez e entatildeo comecei a reviver cenas bobas de muito tempo atraacutes sem

importacircncia completamente esquecidas agora niacutetidas em sonho ou na minha memoacuteria

por que seraacutecoisas assim como o dia em que estava um friozinho excepcional pra

Joatildeo Pessoa e resolvi fazer uma sopa quente pro jantar aproveitando umas batatas-

baroas que tinha achado no mercado Batata-baroa saudade do siacutetio do meu avocirc uma

raridade na cidade mais batata inglesa cenoura cebola e caldo de galinha tudo de bom

O cheiro da sopa no fogo jaacute tinha impregnado a casa quando Nora chegou Vai fazer

sopa hoje Matildeiacutenha Que horas Jaacute estaacute pronta se quiser eacute soacute bater no

liquidificadorComo nunca me esperava pra cear pois iacutea correndo pra faculdade

apenas ouvi vagamente que estava mexendo na cozinha enquanto eu assistia agrave novelinha

das seis Tatildeo distraiacuteda com a novela nem percebi que ela jaacute tinha saiacutedo Tudo bem ateacute

que fui tratar de pocircr a mesa pra mim Soacute tinha sobrado menos de uma concha rasa de

sopa Pasme Barbie ela tinha se servido na tigela do feijatildeo Fiquei danada na hora mas

nada a fazer do que usar a imaginaccedilatildeo Jaacute eram quase sete e meia da noite Entatildeo botei

mais um copo dacuteaacutegua com uma colher de maisena meio tablete a mais de caldo de

galinha e cozinhei ali dentro uma porccedilatildeo de massinha pra sopaque bom que tinha em

casa Tomei entatildeo o resultado como se estivesse tudo normal com apenas um leve

gostinho de batata-baroamas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada

de matildeo-de-vaca (REZENDE 2014 p22)

Vale ressaltar a atitude complacente de Alice frente ao egoiacutesmo da filha no episoacutedio

narrado acima expressa pela frase lsquomas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada

de matildeo-de-vacarsquo A seguir outro fragmento em que Norinha se apossava dos chocolates e das

guloseimas da matildee Alice reflete em sua carta para Barbie sua obediecircncia agraves demandas da moccedila

devidas agraves dietas no comprar lsquocoisas estranhasrsquo na feira

Diversos pontos satildeo referidos como o fato de a filha natildeo se sentar mais agrave mesa com ela e

a atitude de desperdiccedilar as gemas de ovo em suas dietas Um aspecto interessante do trecho

abaixo eacute a memoacuteria de sua avoacute fazendo lsquofios dacuteovosrsquo e quindins como marca de afeto e de

partilha pela comida Assim haacute o contraste do alimento ora como representaccedilatildeo do egoiacutesmo da

filha ao lsquoroubarrsquo seus chocolates e as guloseimas ora como expressatildeo do afeto compartilhado

pela avoacute atraveacutes dos doces que fazia

Cabe ainda a reflexatildeo mais uma vez Alice menciona sua complacecircncia para com a filha

nas frases lsquofielmente obedeciarsquo e lsquoeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar

114

discussatildeorsquo Volta-se desse modo para a frase apresentada no primeiro trecho referida acima

lsquonatildeo dei um pio pra natildeo ser chamada de matildeo-de-vacarsquo A postura de Alice em relaccedilatildeo agrave Norinha

tinha sempre um elemento de passividade de obediecircncia agraves normas e aos quereres da filha

anunciando que a postura da uacuteltima em definir a mudanccedila de Alice mesmo contra a vontade desta

era a continuidade de um comportamento mais antigo na relaccedilatildeo entre elas A protagonista conta

agrave Barbie

Vivia acrescentando coisas estranhas nas minhas listas de feira que eu fielmente

obedeciaeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar discussatildeo Claro de

vez em quando ela dava umas escapadas na dieta principalmente comendo meus

chocolates e umas guloseimas de que gosto e comprava pro meu lanche Afinal eu natildeo

estava de dieta Quase natildeo se sentava agrave mesa comigo comia em peacute na cozinha ia pro

quarto dela comer as gororobas dieteacuteticas que fazia ou se enchia soacute de claras de ovo

jogando as gemas fora Parei de tentar aproveitar pois natildeo dava pra tomar gemada todo

dia natildeo eacute e Voacute natildeo estaacute mais neste mundo pra me ensinar a fazer fios dacuteovos ou

quindinse as gemas que Norinha descartava eram branquelas nada daquele amarelo

vivo dos ovos de capoeira do siacutetio Seraacute que ainda existem fios dacuteovos (REZENDE

2014 p23)

O trecho seguinte refere-se ao segundo elemento assinalado ou seja a inconformidade de

Alice com sua nova vida em Porto Alegre no apartamento que natildeo aceita como seu Nas

referecircncias agrave cozinha lsquode show-roomrsquo a protagonista expressa suas impressotildees sobre o local

montado por Norinha para sua habitaccedilatildeo Haacute diversos momentos em que a comida representa seu

desacerto com a vida montada em um territoacuterio sem referecircncias afetivas sem lembranccedilas dos

quais o fragmento abaixo eacute um exemplo

Alice mostra uma resignaccedilatildeo compulsoacuteria com as ordens da filha uma aparente

concordacircncia com as tentativas de Norinha de abater-lhe a autonomia eacute na contrariedade com o

cenaacuterio esteacuteril da cozinha que define como lsquoalheiarsquo e com os alimentos que tem em casa com as

compras que a filha faz e guarda nos armaacuterios e gavetas que se mostra seu modo de perceber e

de sentir as imposiccedilotildees da mesma

A inconformidade com a vida porto-alegrense aparece em diversas situaccedilotildees na chegada

de Alice ao apartamento aleacutem do trecho acima Percebo em vaacuterios pontos a revolta da

protagonista com os detalhes da cozinha como espaccedilo fiacutesico em outros aparece seu lsquodesacertorsquo

atraveacutes de uma voz criacutetica e ateacute mesmo irocircnica com os alimentos gauacutechos

Assumi consciente e disciplinadamente a atitude que eu jaacute vinha ensaiando havia algum

tempo do ET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes muito maiores

que ele Eu continuava a encolher Engoli obediente tudo o que estava posto sobre a

previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de vidro num canto da sala o chaacute as

115

torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar de chimia a

fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial trazido

natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite morno (REZENDE 2014

p41)

Eacute possiacutevel ler a atitude de engolir lsquoobedientersquo o alimento como representativa de sua

percepccedilatildeo sobre si mesma de ldquoET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes

muito maiores do que elerdquo A obediecircncia em comer aqui ilustra a frase ldquoEu continuava a

encolherrdquo Ela natildeo via o que estava sendo posto na mesa como cuidado com sua chegada por

preocupaccedilatildeo genuiacutena com seu bem-estar entendia isto sim como ldquobenevolecircncia de terraacutequeos

muito maioresrdquo A forccedila da comparaccedilatildeo estaacute no fato de que o comer tambeacutem se tornou objeto de

controle da filha a quem ela passava a ldquoobedecerrdquo Passava a ocupar assim o papel que descreve

como ldquofilha da minha filhardquo (REZENDE 2014 p74)

Neste trecho lecirc-se a contrariedade de Alice na referecircncia que faz agrave cozinha como espaccedilo

fiacutesico ldquo[] tudo o que estava posto sobre a previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de

vidro no canto da salardquo (REZENDE 2014 p74) Ainda que se refira agrave mesa como estando na

sala atribui a ela papel conotaccedilatildeo ligada agrave funccedilatildeo da cozinha como extensatildeo desta pois eacute onde

estatildeo na cena os produtos alimentares oferecidos

Na menccedilatildeo que ela faz a esses produtos estaacute expressa tambeacutem a revolta atraveacutes da voz

irocircnica ldquo[] o chaacute as torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar

de chimia a fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial

trazido natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite mornordquo (REZENDE 2014

p41) Assim eacute na cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico que se expressa na chegada de Alice a

Porto Alegre a representaccedilatildeo de sua recusa em aceitar a vida que lhe foi imposta Haacute referecircncias

expliacutecitas agrave sua revolta mas a forma material da contrariedade eacute demonstrada nessa etapa da

narrativa em diversos episoacutedios ligados agrave cozinha

A manhatilde seguinte agrave chegada no apartamento continua tendo essa peccedila da casa como

cenaacuterio da inconformidade de Alice quando Norinha chega com as compras

Naquela primeira manhatilde sem coragem de decifrar os armaacuterios e eletrodomeacutesticos desta

cozinha metida a besta eu ainda de camisola e roupatildeo agrave mesa do canto da sala

preguiccedilosamente acabando de recuperar como cafeacute da manhatilde os restos do lanche da

madrugada que ficaram largados ali bolo torradas amanhecidas chimia queijo serrano

chaacute frio ouvi barulho de chave na fechadura e me assustei Norinha pelo visto agora

detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas tambeacutem da chave da minha

moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha com almoccedilo

Bem paraibano viu Matildeiacutenha pra vocecirc ir se acostumando aos poucos a quentinha

116

equilibrada entre montes de sacolas de compras Pra abastecer a despensa de minha

Maacuteinha adorada que vai ser tratada como uma duquesa pela sua filhinha preferida []

meteu-se diretamente na cozinha Que tive que fazer malabarismos para conseguir passar

no supermercado pra conseguir passar no supermercado e trazer suas compras depois a

gente acerta natildeo se preocupe com isso por hoje vou ter de sair correndo que este dia da

semana eacute sempre pesadiacutessimo na universidade agraves vezes natildeo daacute tempo nem de fazer xixi

(REZENDE 2014 p47-48 grifo nosso)

A frase em grifo representa a percepccedilatildeo de Alice sobre o controle que a filha assumia

sobre sua vida ldquoNorinha pelo visto agora detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas

tambeacutem da chave da minha moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha

com almoccedilordquo (REZENDE 2014 p48) O controle sobre o cardaacutepio expressa a inconformidade

da protagonista com as imposiccedilotildees de Norinha na sua vida por exemplo escolhendo um almoccedilo

lsquobem paraibano viu Matildeiacutenha para vocecirc ir se acostumando aos poucosrsquo como ela refere Aleacutem

deste aspecto as sacolas de compras lsquoPra abastecer a despensa de minha Matildeiacutenha adoradarsquo

tambeacutem satildeo para Alice representativas dos mandos de sua filha

A direccedilatildeo da filha sobre a rotina da personagem ocorre em detalhes cotidianos como de

fazer e de guardar as compras de supermercado na cozinha do apartamento levar a lsquoquentinharsquo

para o almoccedilo e definir na percepccedilatildeo de Alice que ela deve sair agrave rua entre outras condutas

Tais comportamentos ligados agrave alimentaccedilatildeo demonstram a atitude de Norinha interferindo na

autonomia da matildee procurando ceifar sua capacidade de cuidar de uma nova vida naquilo que eacute

mais individual na sobrevivecircncia a nutriccedilatildeo A contrariedade de Alice agrave cozinha do apartamento

reflete em muito a percepccedilatildeo que ela tem deste ao longo da narrativa em suas referecircncias eacute

possiacutevel compreender que se vecirc presa naquilo que por diversas vezes chama de lsquotabuleiro de

xadrezrsquo Em grande parte essa impressatildeo se deve ao aspecto do local mas o sentimento

transcende essa caracteriacutestica no lsquotabuleirorsquo Alice tem sua liberdade tolhida

O trecho a seguir representa a relaccedilatildeo que se estabelece entre elas nesta etapa inicial da

chegada de Alice a Porto Alegre

Fiquei calada soacute olhando com a boca cheia o naco de queijo grande demais difiacutecil de

mastigar e engolir como todo o resto que havia tempos jaacute vinha entalado na minha

garganta Nem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia em meu nome

gritando aqui da cozinha enquanto desensacava os pacotes e escondia as coisas atraacutes de

sei laacute qual dessas dezenas de portinhas brancas por cima desses azulejos pretos [] e

por aiacute foi Norinha perguntando e respondendo por mim ateacute esvaziar a uacuteltima sacola

bater pela uacuteltima vez todas as portas e gavetas dos armaacuterios da geladeira O almoccedilo eacute soacute

esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenha (REZENDE 2014 p48-49)

117

Um dos pontos que deflagram a atitude de Norinha em ceifar a autonomia de Alice estaacute na

frase lsquoO almoccedilo eacute soacute esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenharsquo como se a matildee natildeo soubesse disso

ou natildeo tivesse capacidade de percebecirc-lo sozinha A filha infantiliza a personagem tomando por

ela decisotildees e condutas (como ir ao supermercado e guardar as compras nos armaacuterios da

cozinha) Ateacute mesmo a verbalizaccedilatildeo das respostas eacute feita por ela sem dar agrave Alice a possibilidade

de expressar-se como na frase lsquoNem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia

em meu nome gritando aqui da cozinharsquo

A resposta emocional de Alice a este iniacutecio de sua vida na nova cidade ainda antes da

revelaccedilatildeo de que Norinha e o esposo adiaram os planos de gravidez estaacute representada no

fragmento a seguir

Fiquei laacute Alice diminuindo mais ainda imprensada entre a mesa e a parede nem sei

quanto tempo tentando me convencer de que ela natildeo se meteria mais de surpresa pela

porta adentro e sabendo que pra rua eu natildeo ia como queria minha filha e natildeo ia mesmo

soacute porque era isso que ela tinha ordenado Natildeo ia natildeo de birra sem nenhuma ideia

nem vontade de fazer nada a natildeo ser andar para um lado e outro naquele tabuleiro de

xadrez minhas pernas dissipando a energia acumulada pela raiva olhar as malas ainda

fechadas as portas desses armaacuterios da cozinha fechadas a pilha de caixas fechadas e de

relance a minha cara fechada refletida na enorme televisatildeo da sala em outra menor no

quarto nos vaacuterios espelhos e vidraccedilas espalhados por aiacute O almoccedilo ficou aqui esfriando

no balcatildeo da cozinha ateacute o anoitecer Daiacute engoli aquilo frio mesmo enquanto deixava o

telefone tocar tocar tocar ateacute desistirem (REZENDE 2014 p51)

Entretanto a protagonista encontra em si mesma a capacidade de autonomia que vinha

adormecida desde quando comeccedilou o processo de mudanccedila determinado pela filha Comeccedila a

aceitar as modificaccedilotildees tomar conta da proacutepria rotina decidir adaptar-se ao apartamento e agrave nova

vida A decisatildeo de aceitar a vida imposta pela filha eacute tomada com autonomia com a sensatez que

remonta a lsquosensata professora Poacutelirsquo Alice torna a instalaccedilatildeo em sua nova moradia algo que

parece originar de uma decisatildeo sua e natildeo apenas de uma imposiccedilatildeo de Norinha Entretanto

expressa que a decisatildeo para tal eacute racional assim como a organizaccedilatildeo metoacutedica da casa que

realiza Sugere que estaacute fazendo de conta que esqueceu lsquode todo o restorsquo

E a sensata professora Poacuteli acabou vencendo pelo menos provisoriamente porque

acordei logo cedo disposta a deixar pra laacute o ressentimento ser realista encarar as coisas

como eram agora como gente grande voltar ao meu tamanho normal pulei da cama me

vesti decentemente explorei as provisotildees que Norinha tinha deixado fiz e tomei meu

cafeacute e danei a desmanchar malas e pacotes a encher gavetas prateleiras e cabides tudo

muito bem-arrumado metodicamente pensando soacute naquilo que tinha concretamente

diante de mim esquecida ou fazendo de conta que esquecia de todo o resto Pronto

[] botando ordem fora e dentro de mim pensava Pesquisei nos armaacuterios da cozinha

achei o que precisava fiz um almocinho pus toalha louccedila talher aqui mesmo nessa

118

espeacutecie de mesa sem pernas de pedra preta embutida na parede e comi com certo gosto

depois de natildeo sei quanto tempo de fastio (REZENDE 2014 p52-53)

Quando Alice menciona lsquopesquisei nos armaacuterios da cozinha achei o que precisava fiz

um almocinho pus toalha louccedila talherrsquo estaacute manifestando sua decisatildeo de procurar acostumar-se

aos detalhes da nova rotina como colocar a mesa O trecho a seguir complementa essa tentativa

Subi de volta confiante tinha tomado minha primeira iniciativa depois de tanto tempo

e isso fazia sentir-me melhor Abri mais umas caixas e arrumei o conteuacutedo Fiz almoccedilo

direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada sesta de uma vida

normal li umas paacuteginas de uma revista apanhada no aviatildeo e como sempre cochilei

logo (REZENDE 2014 p61)

A frase lsquofiz o almoccedilo direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada

sesta de uma vida normalrsquo demonstra sua procura por se adaptar ao cotidiano Alice procura

retomar as reacutedeas da nova vida mesmo sendo esta imposta a ela reassumindo seus afazeres

(lsquolimpar a cozinharsquo) e costumes (a lsquosagrada sesta de uma vida normalrsquo) Tudo isso relata agrave Barbie

no caderno posteriormente sabendo que tais posturas representavam apenas a tentativa em

ultrapassar a dor emocional pela saiacuteda de seu habitat em Joatildeo Pessoa A existecircncia compulsoacuteria

volta a aparecer quando eacute convidada para jantar na casa da filha ao mencionar lsquoeu jaacute estava

pegando jeito de me comportar como filha da minha filharsquo conforme se lecirc abaixo

Pois Umberto vai passar aiacute pelas sete horas que eu vou correr pra preparar um

comerzinho bem bom e trazer a senhora pra jantar com a gente botar a conversa em dia

vai ser uma deliacutecia vaacute se aprumar bem bonita que daqui a pouco ele estaacute batendo aiacute

Que remeacutedio senatildeo obedecer Eu jaacute estava pegando jeito de me comportar como filha da

minha filha (REZENDE 2014 p74)

No jantar referido Alice eacute informada por Norinha sobre a viagem do casal para o exterior

postergando o projeto da maternidade motivo de sua mudanccedila para Porto Alegre No primeiro a

lsquolasanha da verdadeirarsquo o lsquomelhor vinho da serra gauacutecharsquo e a lsquocuca de arrasarrsquo satildeo elementos

regionais que a filha oferece como forma ao que parece de apresentar agrave sua matildee as benesses do

territoacuterio em que esta deveraacute habitar no segundo a expressatildeo lsquoe eu soacute com a tarefa de garfar o

que me serviam e emitir de vez em quanto um huuuummm apreciativorsquo exprime a posiccedilatildeo

passiva que a protagonista reconhece assumir frente agraves imposiccedilotildees da filha Neste jantar tem fim

o periacuteodo de interaccedilatildeo de Alice com Norinha na narrativa demarcando a conclusatildeo de uma etapa

da histoacuteria a chegada da personagem agrave cidade

119

A seguir dois fragmentos que retratam a comida como fator de suposta agregaccedilatildeo

familiar mas escondem atraacutes do lsquoFiz jantar especialrsquo o desrespeito e o egoiacutesmo da moccedila quanto

agrave sua matildee Esta ficaraacute sozinha em uma cidade desconhecida sem referecircncias apoacutes ter tido que

abandonar sua terra natal em nome da exigecircncia da filha A atitude de falar da cuca como um

doce de seu completo desconhecimento ilustra agrave escassa familiaridade de Alice com as tradiccedilotildees

da regiatildeo como na frase lsquoum bolo recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima

gostoso de fatorsquo Os trechos definem a atmosfera aparentemente agradaacutevel da refeiccedilatildeo em

famiacutelia imposta por Norinha antes de esta fazer a revelaccedilatildeo que interferiraacute na vida de Alice

culminando na busca de sua autonomia O papel da comida neste ponto do livro eacute o de lsquoadoccedilarrsquo

a personagem para receber a notiacutecia da viagem da filha e do genro

Fiz jantar especial uma lasanha da verdadeira o melhor vinho da serra gauacutecha uma

cuca de arrasar vocecirc vai provar hoje uma cuca tudo receita da minha sogra vai adorar

jaacute estaacute com apetite natildeo eacute soacute de ouvir dizer entatildeo como estaacute sendo sua primeira

semana em Porto Alegre (REZENDE 2014 p74)

Umberto parecendo distraiacutedo dando soacute palpites lacocircnicos sempre concordando com a

mulher dele e eu soacute com a tarefa de garfar o que me serviam e emitir de vez em quando

um huuuummm apreciativo ateacute terminar de comer e aprovar a tal cuca um bolo

recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima gostoso de fato

(REZENDE 2014 p75)

A partir desse jantar Alice volta para sua casa e suspende os contatos com o casal Tem

iniacutecio assim o papel da comida ligada agrave recuperaccedilatildeo da autonomia perdida

Quando sai para a rua imbuiacuteda da missatildeo de procurar por Ciacutecero Alice sabe que sua

decisatildeo ultrapassa a descoberta do rapaz Eacute por si mesma pela capacidade de cuidar de si de

decidir mesmo as questotildees mais baacutesicas de sobrevivecircncia apoacutes Norinha ter tomado conta de sua

vida e de suas resoluccedilotildees Alice decide decidir Nesse sentido passa a guiar-se por suas

necessidades vitais como fome sono e banho por exemplo todos eles transplantados para o

espaccedilo urbano onde decide habitar apenas para natildeo voltar para o lsquotabuleiro de xadrez seu

apartamento

Mesmo quando esquece onde mora a permanecircncia nas ruas continua sendo uma escolha

pois poderia ligar para a prima Elizete que tem seu endereccedilo no entanto opta por natildeo fazecirc-lo

Durante o periacuteodo duas buacutessolas guiam seus rumos a procura por Ciacutecero que daacute sentido agrave

peregrinaccedilatildeo como um aacutelibi para justificar as andanccedilas e o natildeo-retorno para casa e a

120

manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do que escolhe comer de onde decide dormir e banhar-se

por exemplo

Uma das primeiras decisotildees de Alice eacute a de esconder-se em casa nos primeiros dias apoacutes

a revelaccedilatildeo sobre a viagem de Norinha e Umberto para o exterior e o adiamento dos planos que

ocasionaram sua mudanccedila para Porto Alegre

Cinco dias de fartura de letras quase jejum de qualquer outra comida o silecircncio cortado

soacute ateacute o comeccedilo da tarde do segundo dia pela ainda prazerosa estridecircncia do telefone

com perverso gosto de vinganccedila que me enchia a boca e quase me bastava como

simulacro de refeiccedilatildeo (REZENDE 2014 p87)

Protege-se em casa lendo livros e deixando o telefone tocar a nutriccedilatildeo estaacute fora do eixo

da comida nesse sentido pois Alice alimenta-se do isolamento que consegue estabelecer Assim

esse eacute o iniacutecio da retomada de sua autonomia atraveacutes das escolhas que comeccedila a fazer por si de

modo independente ao controle da filha Decide natildeo mais se submeter mesmo que a atender o

telefone A nutriccedilatildeo estaacute baseada na autonomia na independecircncia que retoma mais do que nos

proacuteprios alimentos nesse ponto da narrativa Quando refere lsquocom perverso gosto de vinganccedila que

me enchia a boca e quase me bastava como simulacro de refeiccedilatildeorsquo o que se pode ler eacute que a

salvaguarda da sobrevivecircncia estava apoiada na sua capacidade de reagir agrave filha de impor sua

vontade contrariando a imposiccedilatildeo de Norinha

A histoacuteria sofre a guinada maior quando Alice recebe a incumbecircncia de procurar por

Ciacutecero a missatildeo daacute sentido ao seu caminho aos seus dias A missatildeo de encontrar o rapaz eacute o

fator que move a personagem a sair de seu apartamento e a desafiar-se em espaccedilos urbanos

desconhecidos de uma cidade que ainda eacute para ela uma cidade estranha Este seraacute tambeacutem um

modo de se esconder da filha de Elizete e de todos que a possam encontrar Alice decide

descobrir o paradeiro de Ciacutecero para encontrar consigo mesma Aquela lsquosensata professora Polirsquo

capaz de tomar decisotildees e de gerenciar a proacutepria vida estaacute desaparecida de si

Na partida para a Vila Maria Degolada ela tem o primeiro contato com a comida das ruas

e botecos Ao sair de casa sem ter se alimentado obriga-se a comer para saciar a fome esta eacute a

primeira expressatildeo do comer como decisatildeo de sobrevivecircncia

Passei diante de uma portinha aberta quase invisiacutevel entre duas casas um balcatildeozinho

prateleiras com umas poucas mercadorias e uma caixa de vidro com lamentaacuteveis

empadas e coxinhas ou coisa parecida sobrevoadas por uma mosca preguiccedilosa Era

pouco mais que aqueles fiteiros de rua laacute de Joatildeo Pessoa e pode ter sido por isso entrei e

por pouco natildeo pedi uma tapioca de queijo Pedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer

121

de comer Leite natildeo havia fui soacute de cafeacute e uma coxinha engordurada de anteontem

caloria bastante para eu continuar minha peregrinaccedilatildeo Quem servia era um homem jaacute

idoso nada a ver com as imagens de gauacutecho de churrascaria que eu tinha pregadas na

imaginaccedilatildeo nem alto nem louro nem moreno bigodudo de chapeacuteu preto lenccedilo

vermelho laccedilo no ombro e bombacha bufante Baixinho e coxinho com um resto de

bigode fino um bonezinho achatado na careca camisa branca encardida e um lenccedilo

branco amarrado no pescoccedilo Comi paguei e me animei a perguntar pra onde ficava a tal

Vila Maria Degolada (REZENDE 2014 p96-97)

lsquoPedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer de comerrsquo eacute uma das frases que aponta para

o papel da comida nesse momento da histoacuteria o de saciar a fome O alimento em sua funccedilatildeo

primordial eacute o mote desse trecho jaacute que aqui Alice natildeo quer comer algo saboroso e sim que lhe

forneccedila forccedilas para seguir o percurso

Segui em frente olhando pro chatildeo emburrada passo firme e decidido lsquoCiacutecero Arauacutejo

Vila Maria Degolada Ciacutecero Arauacutejo Vila Maria Degoladarsquo revigorada pelo sal a

gordura e a cafeiacutena ateacute chegar manhatilde alta numa avenida larga sem ter mais nenhuma

ideia de pra que lado ficava o apartamento onde eu devia morar (REZENDE 2014

p97)

A atitude determinada de Alice frente ao objetivo eacute o lsquopasso firme e decididorsquo

complementado pela referecircncia que ela faz ao efeito da comida em seu acircnimo para chegar agrave Vila

Maria Degolada lsquorevigorada pelo sal a gordura e a cafeiacutenarsquo A personagem expressa nessa

uacuteltima frase o reforccedilo ao papel do alimento em saciar a fome e em fornecer energia

Nos caminhos que vai percorrendo junta folhetos de propaganda papeacuteis soltos e

guardanapos todos como base para escrever pedaccedilos de livros que encontra Um desses folhetos

representa a visatildeo de Alice sobre sua avoacute que aproveitava as gemas para preparar doces de sua

origem portuguesa e sobre sua filha que desperdiccedilava as gemas para preparar omeletes de

claras para a dieta Essa evocaccedilatildeo de lembranccedilas em relaccedilatildeo agrave avoacute e agrave filha a partir de uma

divulgaccedilatildeo impressa traz mais uma das funccedilotildees do alimento nessa etapa da histoacuteria aleacutem da

expressatildeo de autonomia o resgate de si atraveacutes das recordaccedilotildees de suas origens Lembrar-se de

sua avoacute eacute remontar uma parte de sua proacutepria construccedilatildeo pessoal e portanto estaacute incluiacutedo na

procura de Alice por sua identidade separada das ordens e determinaccedilotildees de Norinha

Uma ialorixaacute me deu um papelzinho com receita de uma simpatia natildeo exatamente pra

achar filho perdido era pra juntar famiacutelia desunida Mas pode crer que ajuda se tu fizer

com feacute soacute precisa quatro quindinsonde eacute que eu iacutea achar quindins veio-me por um

instante a lembranccedila das gemas de ovo desperdiccediladas por Norinha saudade da minha

avoacute portuguesa exilada laacute no sertatildeo e de seus doces de ovos os quindins que ela

aprendeu a fazer com coco lamentando sempre natildeo poder fazer sua brisa do Lis como a

de Leiria por falta das amecircndoasescrever o pedido pocircr os quindins em cima polvilhar

accediluacutecar cristal e espetar nos doces quatro flores amarelas quatro moedas acender quatro

122

velas e deixar tudo numa praccedila olha aiacute Barbie o papelzinho ficou junto com o resto dos

que se foram acumulando na minha mochila com as costas cheias de frases copiadas de

livros (REZENDE 2014 p116-117)

A necessidade de encontrar consigo mesma estaacute pungente na personagem uma soacute palavra

que remeta a seu passado serve para as recordaccedilotildees surgirem como os lsquoquindinsrsquo que na

verdade natildeo servem como alimento e sim como parte da simpatia Eacute como se a palavra fosse

uma porta para suas lembranccedilas e uma vez aberta faz que muito seja recordado e refletido

Alice segue pela Vila Maria Degolada agrave procura de Ciacutecero e vai tendo contato com

moradores que a ajudam andando pela vila atraacutes de pistas do rapaz Durante as horas que

permanece ali a comunicaccedilatildeo entre ela e as pessoas que a recebem eacute feita em grande parte pelos

alimentos que oferecem para ela comer ou beber Alice descobre novos sabores regionais na

receita ou apenas no nome e sobretudo conhece novas pessoas ao longo do trajeto O que decide

comprar nos botecos ou aceitar nas casas como os salgados os biscoitos ou o cafeacute ralo deve-se

principalmente a satisfazer as necessidades fiacutesicas de fome e sede Mais uma vez a comida

representa a manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Entretanto surge para essa novo papel o de saciar a

necessidade de contato humano de trocas e de interaccedilatildeo social

Nem sei quantos cafeacutes ralos engoli Pra te animar vai bebe nem sei quantas cuias de

chimarratildeo recusei Natildeo sou daqui natildeo sou da Paraiacuteba na minha terra natildeo eacute costume

cheguei haacute pouco ainda natildeo aprendi a tomar Mas logo acostuma que um amargo eacute coisa

boa demais bom pra sauacutede pro estocircmago pra tudo Todos sem falhar queriam ajudar

indicavam uma rua uma viela uma direccedilatildeo onde sim havia gente de lsquolaacutersquo Sei laacute quantas

coxinhas empadas comi e paguei pelas biroscas da Vila Maria Degolada nome que eu

logo parei de usar porque percebi que natildeo era do agrado de ningueacutem ali Ia aprendendo

coisas e nomes a comer dedo-de-negro que logo domestiquei como parente de nossa

sorda cortada em tiras e groacutestolis que identifiquei como a calccedila-virada da minha avoacute

portuguesa Tudo o que me fizesse esquecer Norinha e o apartamento preto e branco me

servia bem (REZENDE 2014 p117)

A passagem pela vila na procura por Ciacutecero tinha outra funccedilatildeo primordial dentro de

Alice a de natildeo retornar para o apartamento e para a vida que lhe foi imposta Com tal propoacutesito

decide prosseguir Percebe-se capaz de fazer escolhas a seu favor quando se pergunta lsquoe agorarsquo

pois responde que voltar para o apartamento natildeo lhe atrai lsquode jeito nenhumrsquo

Jaacute passava um pouco das quatro da tarde eu tinha andado desde as sete da manhatilde

sentando-me raras vezes quando alguma mulher mais atenciosa puxava uma cadeira de

dentro de casa e me oferecia pra descansar na sombra ou em algum boteco o tempo de

comer uma empadinha ou uma cueca-virada E agora Voltar pro apartamento natildeo me

atraiacutea de jeito nenhum Por que natildeo continuar pro novo destino provisoacuterio que me

indicaram Apesar de entatildeo jaacute achar tudo aquilo bastante suspeito (REZENDE 2014

p123)

123

Prosseguindo para o Hospital de Pronto Socorro surgem trecircs cenas relevantes em que o

comer eacute expresso como satisfaccedilatildeo da fome e reestabelecimento do acircnimo na primeira Alice

percebe a fome e decide procurar o que comer na segunda come de forma tatildeo afoita as pipocas

que se engasga na terceira eacute socorrida por Zelima senhora que a ajuda reforccedilando que o

cuidado de terceiros tambeacutem tem uma funccedilatildeo quando o comer eacute representado na obra

1) Cansaccedilo absoluto e fome fincaram-me no meio do saguatildeo zonza olhando aquela

larga porta aberta pra nada Um lugar vago num dos bancos era tudo o que me restava

Ali desabei e fiquei de olhos fechados e a cabeccedila pendendo sobre o peito como tantos

outros sentados naquele natildeo lugar esperando minhas pernas pararem de tremelicar

pensando apenas nelas e na sensaccedilatildeo do meu estocircmago oco Natildeo sei quanto tempo parei

ali Lembro-me de que afinal a fome venceu abri os olhos puxei o celular da bolsa pra

ver as horas a bateria estava descarregada procurei em torno e vi um reloacutegio na parede

do saguatildeo jaacute passava das nove da noite levantei-me as pernas agora quase firmes desci

os degraus da porta ateacute a calccedilada buscando algo pra comer e o que havia no meu raio de

visatildeo era uma carrocinha de pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me

desde que horas ele estava ali se tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia

inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido

Cheguei junto dele remexendo a bolsa agrave procura de uns trocados que tivessem restado da

farra de salgadinhos e biscoitos da Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada

desde entatildeo (REZENDE 2014 p147)

2) Puxei um bolinho de notas de dois reais e umas moedas estendi-as ao homem ele

escolheu o que correspondia ao preccedilo do saco de pipocas e me entregou tudo sem

trocarmos uma palavra Escorei-me no poste junto da carrocinha e enfiei na boca de

uma soacute vez o maior punhado de pipocas que pude sem me importar com as poucas que

escaparam e foram ao chatildeo Engasguei-me a boca seca e cheia tentando segurar a tosse

pra natildeo fazer chover mais pipoca pra todo lado mas natildeo consegui as ex-professora Poacuteli

cuspiu um jorro de piruaacutes tossiu de se acabar encostada num poste de lugar nenhum o

mundo escurecendo (REZENDE 2014 p147-148)

3) Zelima sentou-se ao meu lado segurando fielmente o meio copo de aacutegua e o meio

pacotinho de pipocas e assim que me recompus devolveu-me aquele simulacro de

refeiccedilatildeo dizendo Come que tu estaacute fraca bebe o resto da aacutegua para empurrar Soacute

balancei a cabeccedila obedeci ela recolheu os invoacutelucros vazios e foi jogaacute-los numa lixeira

na calccedilada voltou e sentou-se de novo junto a mim em silecircncio (REZENDE 2014

p148-149)

O percurso tem continuidade na manhatilde seguinte quando decide encontrar uma padaria

onde encontra aleacutem da satisfaccedilatildeo da fome um ambiente onde conversa e ri sobre o

desconhecimento de termos regionais como o nome de lsquocacetinhorsquo para o patildeo francecircs Nutre-se

desse modo do alimento e do contato humano ldquoAprumei o espinhaccedilo apanhei a bolsa e saiacute

novamente com passo firme destino certo uma padariardquo (REZENDE 2014 p159) A

protagonista chega no destino esperado saciando a fome de comida e de afeto

Cafeacute com leite cacetinho na chapa e riso me puseram em quase perfeita forma por

dentro e pelos proacuteximos instantes mas restava um tanto consideraacutevel de dor no corpo e

uma vontade enorme de me deitar e dormir decentemente

124

[] Quando saiacute olhei bem o nome da padaria e da rua pra voltar quando precisasse

encontrar um conhecido amigaacutevel como se eu jaacute soubesse quantas vezes precisaria

voltar (REZENDE 2014 p161)

Alice come quando tem fome dorme quando tem sono Respeita a sobrevivecircncia em sua

procura pelo desconhecido Ciacutecero A vida eacute no espaccedilo da rua do parque das avenidas das

padarias das carrocinhas de pipoca e de cachorro-quente

Quem mais usa orelhatildeo neste mundo ocirc Alice te liga no segundo deles o fio do

telefone pendia cortado mas na mesma esquina havia uma lojinha de venda e conserto

de celulares Sim o homem podia carregar pra mim Pelo menos uma carga raacutepida de

emergecircncia ateacute tu chegar em casa soacute dois pilas senta aiacute Abanquei-me no tamborete

oferecido mas meu estocircmago natildeo queria esperar mais nem um minuto e vi pela porta

uma carrocinha de cachorro-quente do outro lado da esquina Fui laacute e voltei trazendo o

patildeo com salsicha montes de mostarda escorrendo no guardanapo de papel e o luxo de

um saquinho de batata frita uma latinha de refrigerante o tamborete agrave sombra a parede

fresca para encostar as costas Seraacute que cochilei

Paguei agradeci saiacute comprei mais um cachorro-quente da carrocinha e natildeo pensei mais

em telefonar a Elizete nem queria saber endereccedilo nenhum nem voltar pra lugar

nenhum soacute continuar agrave toa Agrave toa Que nada (REZENDE 2014 p170-171)

Alice sabe natildeo estar agrave toa volta a ser dona de suas escolhas sejam elas quais forem Vai

retomando a consciecircncia de si mesma dos referenciais de sua histoacuteria de vida das lembranccedilas

ajudam a reconstruir sua identidade como quando refere a recordaccedilatildeo de lsquoum cafeacute com leite que

ao longo da vida sempre me parecia como soluccedilatildeo para pequenas dores pequenos desconfortosrsquo

Um vento mais frio me fez fugir da sombra procurar um resto de sol com vontade de

tomar alguma coisa quente um cafeacute com leite que ao longo da vida sempre me aparecia

como soluccedilatildeo pra pequenas dores pequenos desconfortos e fui em busca de um bar

lanchonete Achei um botequinho que me serviu leite ralo com cafeacute de garrafa teacutermica

ainda havia de aprender a tomar chimarratildeo mas me bastou

Depois de confortada pela bebida morna e accedilucarada saiacute agrave toa de novo esquecida de

Ciacutecero Arauacutejo [] (REZENDE 2014 p176)

Esquecer-se de Ciacutecero Arauacutejo significa neste ponto da histoacuteria que a aproximaccedilatildeo

consigo mesma torna-se mais importante Essa retomada de si atraveacutes do conforto de uma

lsquobebida morna e accedilucaradarsquo corresponde ao respeito aos seus referenciais de memoacuteria durante a

vida Alice vai remontando dados de si peccedilas de um mosaico desordenado pela mudanccedila de vida

mas que agrave medida que segue um percurso aleatoacuterio ou lsquoagrave toarsquo passa a ser o caminho para o

contato com suas caracteriacutesticas Quanto mais retoma a si mesma menos se ocupa de Ciacutecero

Este ocupar-se de si eacute traduzido pela procura por satisfazer as funccedilotildees vitais mas tambeacutem pelos

pequenos confortos que passa a permitir-se obter como a cena que transcorre na rodoviaacuteria

125

Nesse local o lsquoprato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos colherrsquo eacute a

expressatildeo da mudanccedila da personagem ao longo da histoacuteria pois essa passa a querer saciar a fome

com uma refeiccedilatildeo digna e natildeo mais com lanches de rua O garfo e a faca nesse sentido

representam a imagem de um comer para aleacutem do aspecto de saciar a fome evocam a ideia da

comida no prato posta agrave mesa e natildeo mais agrave rua sentada em um tamborete ou em peacute Eacute

interessante observar a referecircncia que faz ao cachorro-quente paraibano como forma de remontar

suas origens na reconstruccedilatildeo que faz de si

Decerto era preciso pagar e eu tambeacutem precisava comer uma refeiccedilatildeo decente como

havia dois dias natildeo comia impossiacutevel continuar vivendo de salgadinho refrigerante e

cachorro-quente de salsicha Se pelo menos fosse o bom cachorro quente paraibano com

tudo quanto haacute um verdadeiro prato feito dentro de um patildeo muita carne moiacuteda mais a

salsicha se quisesse verdura ovo ou qualquer outra coisa ou tudo junto o que a gente

pedisse aqueles abundantes molhos vermelhos de colorau escorrendo pelos lados

alimentando ou entupindo o freguecircs davam a sensaccedilatildeo de saciedade por um bom tempo

Mas aqui natildeo Eacute um patildeo com uma salsicha e a mostarda fraco demais pra mim eu natildeo

podia mais queria um prato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos de

colher Ali devia haver de tudo mas custava dinheiro (REZENDE 2014 p184)

Ainda na rodoviaacuteria onde consegue tambeacutem tomar banho vai decidindo adotar accedilotildees de

cuidado consigo como a lembranccedila da pasta de dente Progressivamente Alice ocupa-se de

retomar as rotinas de higiene de alimentaccedilatildeo e de sono Mais uma vez menciona a refeiccedilatildeo

completa o lsquogrande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdurarsquo Haacute a

noccedilatildeo de conforto na ideia de comida servida no prato e sobretudo no termo que ela usa

lsquocomida quentinharsquo

Dei-me conta de que pouco importava eu natildeo tinha sabonete nem sabatildeo nenhum mas

me lembrei confortada da pasta de dente que restava do aviatildeo guardada na bolsa pra

depois do grande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdura o

que fosse que eu havia de comer antes de procurar um canto pra dormir (REZENDE

2014 p187-188)

Na evoluccedilatildeo da procura por uma refeiccedilatildeo decente a protagonista encontra o restaurante

de Penha tambeacutem paraibana Descobre a coincidecircncia durante o jantar enquanto ouve a

proprietaacuteria falando ao telefone A forma como recebe a refeiccedilatildeo com o cuidado de Penha em

oferecer-lhe a comida agrave mesa junto agrave constataccedilatildeo de um sotaque familiar fazem com que Alice

se sinta confortada

1) Andei um pouco procurando onde comer e achei um restaurantezinho com um

aspecto muito simples limpo uma mulher com um jeito vagamente familiar do outro

lado do balcatildeo uma oferta Prato Feito R$ 350 Ai Barbie com que apetite me sentei

126

numa das duas mesinhas em frente ao balcatildeo e pedi meu PF uma latinha de refrigerante

Esperei meu olhar desgarrado acompanhando e abandonando cada um que passava

pensei Daiacute a poucos minutos a mulher sem nada dizer com uma das matildeos desdobrou agrave

minha frente uma toalhinha azul engomada a ferro com a outra depositou meu prato

quentinho acreditei ver o vapor subindo da comida talheres limpos enrolados num

guardanapo de papel imaculado um copo impecavelmente limpo a latinha gelada e ateacute

palito que eu nunca usei nem ia usar mas me acrescentavam conforto todos aqueles

adereccedilos em torno da minha fome soacute pra mim bem sentada numa cadeira de encosto as

matildeos limpas me sentindo toda limpa apesar da roupa usada e ataquei o prato com

voracidade tentando conter-me para natildeo comer depressa demais pra aquele prazer durar

bastante (REZENDE 2014 p192)

2) Quando a outra paraibana acabou o telefonema eu me levantei com o prato jaacute vazio o

copo ainda meio cheio me encostei ao balcatildeo e entreguei a louccedila mas continuei ali

tomei mais um gole do meu refrigerante e perguntei Vocecirc eacute da Paraiacuteba natildeo eacute Ela disse

Sou sim como eacute que sabe Ouvi umas palavras matildeiacutenha painho Campinatambeacutem sou

de laacute (REZENDE 2014 p193)

3) Acordei maldormida por conta do frio mas sem dor no corpo a rodoviaacuteria jaacute se

enchendo de gente juntei meus tereacutens e fui tomar cafeacute na bodeguinha de minha

conterracircnea que agravequela hora bem cedo jaacute havia reassumido seu posto (REZENDE

2014 p194)

Alice decide retornar ao restaurante de Penha na manhatilde seguinte permitindo-se tomar o

cafeacute da manhatilde Quando refere lsquobodeguinha da minha conterracircnearsquo jaacute expressa o conforto de

sentir-se familiar agrave Penha como forma de novamente encontrar referecircncia agrave sua Paraiacuteba Assim

como em outros fragmentos jaacute referidos a comida representa natildeo apenas o aspecto vital de

nutriccedilatildeo mas tambeacutem o do contato humano que propicia a exemplo do zelo com que a

proprietaacuteria coloca a mesa para Alice

Satisfeita em suas necessidades a personagem retoma sua busca por Ciacutecero Arauacutejo

seguindo a sugestatildeo dada por Penha para que fosse ao Campo da Tuca Laacute novo aproximaccedilatildeo

com seus referenciais atraveacutes do queijo de manteiga da rapadura e da plaquinha lsquotemos carne de

solrsquo

Procurando por Ciacutecero Alice encontra partes de sua terra Reencontra a si mesma atraveacutes

do contato com conterracircneos como Penha e outros do Campo da Tuca e de alimentos de sua

regiatildeo

Fui dando a volta ao campo de futebol e dei com uma bodeguinha que me cheirou a

nordestina encostei na porta olhei percebi logo o acerto de minha intuiccedilatildeo em cima do

balcatildeo havia uma caixa de vidro com queijo de manteiga e uma pilhazinha de rapaduras

na parede do fundo um cartaz Temos carne de sol Eu natildeo via ningueacutem depois percebi

movimento num canto mais ao fundo algueacutem arrumando prateleiras chamei Por favor

ele veio na hora pra entabular conversa perguntei O senhor tem mesmo carne de sol e

ele pesaroso Acabou esta manhatilde vendi o uacuteltimo pedaccedilo quase guardei pra mim mas a

freguesa antiga amiga laacute da minha terra insistiu e vendi pra ela semana que vem chega

mais se a senhora voltar na quarta ou quinta-feira eacute de certeza que vai ter carne de sol

aqui porque o primo que me manda jaacute despachou estaacute chegando era ateacute pra ter chegado

127

ontem [] olhe tem um queijinho de manteiga de primeira esse acabou de chegar

tenho mais laacute dentro a senhora pode levar quanto quiser esse eacute do bom bota na brasa

na frigideira e fica uma beleza assado natildeo vai se arrepender leve um pedacinho do

queijo pra esperar a carne de sol assim mata a saudade (REZENDE 2014 p200-201)

Alice ouve o sotaque familiar recebe acolhimento nas famiacutelias por onde procura por

Ciacutecero Natildeo encontra pistas dele mas descobre a cada novo trecho pistas de si mesma e de suas

raiacutezes

Suelen me conduziu de casa em casa gente do sertatildeo do litoral da Vaacuterzea do Brejo da

Paraiacuteba uns tantos Ciacuteceros por certo mas nenhuma notiacutecia de Ciacutecero Arauacutejo nem nas

casas de outros Arauacutejos Comi tapioca com coco tomei cafeacute refresco de cajaacute A gente

arranja algueacutem traz e guarda no freezer sempre tem mas natildeo achei Ciacutecero

(REZENDE 2014 p204)

Ela sabe que Ciacutecero eacute um pretexto em sua procura Reconhece que seu propoacutesito principal

natildeo eacute o de encontraacute-lo mas sim o de continuar sobrevivendo pelas proacuteprias pernas tomando as

proacuteprias decisotildees Quando menciona que se forccedilava a crer sabe que sua busca era por si mesma

Salgadinhos e cachorros-quentes mastigados agraves pressas ou com exagerada lentidatildeo a

depender do interesse dos assentos disponiacuteveis ou do cansaccedilo das pernas e as andanccedilas

sem fim com objetivos mentirosos nas quais eu mesma me forccedilava a crer Ciacutecero Arauacutejo

sumindo e reaparecendo segundo seus caprichos e minhas necessidades []

(REZENDE 2014 p213-214)

Em uma nova padaria ela alimenta-se de lsquopatildeo na chapa e cafeacute com leitersquo repete o pedido

para permanecer ali por mais tempo lsquomatutandorsquo Quando refere a si mesma naquela condiccedilatildeo

como lsquoalimentada e decididarsquo mostra que sobrevivecircncia e autonomia estatildeo lado a lado eacute capaz

de cuidar de si e de tomar as proacuteprias decisotildees mesmo que sejam como a de dormir em um sofaacute

ao relento coberta com o plaacutestico-bolha

Andei mais um pouco passei por uma padaria senti fome voltei entrei patildeo na chapa e

cafeacute com leite sentei-me em uma das duas mesinhas com tamboretes pedi mais patildeo

com cafeacute e encompridei minha permanecircncia ali matutando ateacute comeccedilarem a puxar a

primeira porta de ferro Entatildeo alimentada e decidida debaixo de um ceacuteu despejado

voltei ao sofaacute que laacute me esperava deserto deitei-me em cima da bolsa os joelhos

apoiados na mochila presa pelas alccedilas agraves minhas canelas agasalhei-me com meu

plaacutestico-bolha e dormi minha primeira noite ao relento sem nada sobre a cabeccedila senatildeo

estrelas (REZENDE 2014 p217)

A frase jaacute apontada lsquoalimentada e decididarsquo mostra a ideia de que a alimentaccedilatildeo eacute

combustiacutevel de sua sobrevivecircncia e de sua capacidade de decidir por si o que fazer Cada vez

mais a protagonista da narrativa se percebe protagonista da proacutepria vida

128

No seguimento de seus dias na rua Alice encontra Arturo e Lola moradores de rua Com

eles compartilha o lugar de dormir e as refeiccedilotildees interage afeiccediloa-se com amizade Arturo a

quem ela apelida de lsquoChapeleirorsquo acorda-a para que receba dos voluntaacuterios o lanche da

madrugada

Eu dormi Barbie pela primeira vez eu dormi na rua literalmente de verdade a noite

quase toda ateacute comeccedilar a clarear laacute fora Foi o Chapeleiro que me acordou sacudindo

meu ombro com sua fala arrevesada lsquoCha bem a chente do pan y do cafeacute no perde esse

pan com cafeacute dessos pibes eacute bueno eacute quente conforta son pibes Buenosrsquo

A cada parada saltavam jovens dois rapazes e uma moccedila com copos de plaacutestico

garrafas teacutermicas e embrulhinhos de papel pardo distribuindo-os Quando chegou a

minha vez vi primeiro aacutegua quente pras cuias como a do Chapeleiro jaacute a bomba em

riste um pacotinho de erva-mate pra quem pedia e a oferta de cafeacute com leite bem

accedilucarado que eu preferi mais um cacetinho com manteiga e uma espeacutecie de mortadela

ou outro afiambrado qualquer Vou lhe dizer Barbie embora o copinho fino quase

queimasse a matildeo aquilo me pareceu um presente do ceacuteu eu quase sem dinheiro nenhum

e tatildeo longe da padaria do meu amigo pra ir pedir-lhe fiado outro cacetinho na chapa e

um cafeacute com leite (REZENDE 2014 p224)

Lola eacute personagem de grande relevacircncia na narrativa pois estabelece com Alice uma

relaccedilatildeo de amizade e de cuidado Recebe-a em sua casa mesmo com toda precariedade que esta

estrutura tem a oferecer Daacute agrave protagonista a confianccedila de poder dormir laacute quando quiser Alice

retribui compartilhando com ela as refeiccedilotildees que faz Mesmo com pouquiacutessimo dinheiro que

ainda lhe sobra ela divide com Lola a comida que consegue comprar O alimento aleacutem de nutrir

o corpo nutre a amizade funciona como instrumento de partilha e de gratidatildeo pelo acolhimento

que recebe da nova amiga A seguir trecircs fragmentos que ilustram o cuidado muacutetuo entre elas

1) Natildeo tive coragem de fazer perguntas sobre aquilo tudo preferi oferecer-lhe com um

resto de dinheiro que catei nos bolsos e na carteira um cafeacute com patildeo na padaria mais

proacutexima que ela aceitou e comeu com gosto nenhuma de noacutes duas ligando a miacutenima

pros olhares enviesados que nos cercavam Tu vem todo dia dormir aqui tu eacute direita tu

pode aprende o caminho Eu vinha sim sem duacutevida nenhuma e fomos cada uma pro

seu lado eu memorizando pontos de referecircncia pelo caminho (REZENDE 2014 p232)

2) Dormia em seu terraccedilo dividia com ela minhas parcas refeiccedilotildees lia seus livros

embolorados Ela nunca me perguntou mais nada desde o primeiro encontro em que lhe

contei e ela duvidou da minha histoacuteria de filha neto Ciacutecero e tudo mais que ouviu com

um risinho descrente (REZENDE 2014 p236)

3) Guiavam-me o amanhecer e o entardecer a chuva o frio o sol a fome que eu

resolvia com qualquer coisa natildeo mais de dez reais por dia a menor quantia que o caixa

eletrocircnico cuspia agraves vezes suficientes pra mim e pra Lola Dias e dias Nada mais na

minha aparecircncia nem de leve acho me distinguia dos outros (REZENDE 2014

p239)

Ao final da narrativa Alice narra como terminou seus quarenta dias de rua jaacute sem

dinheiro ainda encontra um modo de se alimentar vendendo os livros que comprou mendigando

129

aacutegua em bares Sua condiccedilatildeo deteriorada chega ao limite e entatildeo natildeo mais se parece apenas mas

se torna moradora de rua pela proacutepria escolha de natildeo voltar ao apartamento Natildeo eacute mais guiada

pela procura por Ciacutecero mas sim por aquela de sobreviver

Esmoreci de vez sem banho sem comida rasgada desmantelada deixei-me cair em

mais um banco indiferente aos olhares se eacute que algueacutem me via cochilei e acordei mil

vezes saiacute pra rua tocada pela fome a esmo coragem nenhuma de pedir nas portas de

remexer no lixo vendi no sebo meus livros novos de 199 pela quantia suficiente pra trecircs

cachorros-quentes bebi aacutegua de torneira mendigada em balcotildees de bares Jaacute natildeo tinha

mais nada a perder (REZENDE 2014 p244)

Quem ajuda Alice na decisatildeo de retomar sua vida de voltar a seu apartamento eacute Lola Ao

estimulaacute-la a telefonar para Elizete para pegar o endereccedilo de sua casa Lola cuida de Alice

acordando-a de madrugada e oferecendo-lhe lsquoa metade de um patildeo dormido e uns goles do seu

chimarratildeorsquo Aqui o alimento eacute para dar forccedilas agrave personagem mas eacute acima de tudo representativo

do cuidado e do carinho que se estabelece entre elas Alice reconhece

Ela afinal acreditava mais do que eu me sacudiu no lusco-fusco da madrugada Vai

sai desse buraco isso natildeo eacute pra ti tu soacute natildeo esquece da gente Obedeci sem resistecircncia

Lola me deu a metade de um patildeo dormido uns goles do seu chimarratildeo Toma pra tu

aguentar ateacute laacute levou-me a um orelhatildeo talvez o uacuteltimo que ainda funcionava telefonei

pra Elizete a cobrar tirei-a da cama na madrugada (REZENDE 2014 p245)

Quando refere lsquoobedeci sem resistecircnciarsquo natildeo se trata de uma obediecircncia passiva como

aquela que se instala com a filha no iniacutecio da narrativa eacute sim o resultado de sua quarentena a

compreensatildeo de si mesma e de suas necessidades de sobrevivecircncia que natildeo mais podem ser

satisfeitas na rua pela falta de dinheiro Alice constata que seu percurso em direccedilatildeo agrave si mesma

chega ao fim que jaacute eacute capaz de comeccedilar uma nova vida em Porto Alegre agora com o passo

firme de quem eacute capaz de decidir natildeo mais apenas sobreviver mas viver a rotina como se

apresenta A protagonista natildeo estaacute mais resignada agrave vida que lhe foi imposta mas compreende

que chegou aos proacuteprios limites e que retomou sua autonomia ldquoChega Barbie agora eu paro

mesmo jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia guria a solidariedade silenciosa mas

agora eu vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a mal taacute Natildeo digo que seja pra sempre quem

sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo a limpordquo (REZENDE 2014 p245)

Sem ponto final o paraacutegrafo mostra a caracteriacutestica da narrativa muitas vezes com frases

inacabadas Entretanto aqui a falta do ponto denota a abertura agraves possibilidades do que refere

como lsquopasso tudo a limporsquo Alice assume elementos da linguagem gauacutecha como o uso do lsquoguriarsquo

130

do lsquotursquo e do lsquotaacutersquo expressando a iniciativa pela assimilaccedilatildeo de elementos regionais em sua nova

fase depois de fazer todo o relato de sua mudanccedila de vida nas paacuteginas do diaacuterio

Em todo o percurso de sua procura por si mesma pelo resgate de sua autonomia o

alimento assume diversas conotaccedilotildees Pode-se compreender a cozinha em Quarenta dias como

um fator que marca etapas da histoacuteria de Alice desde a sopa que prepara em Joatildeo Pessoa ateacute o

patildeo dormido que recebe de Lola tanto representada pelo aspecto da comida como por aquele da

mobiacutelia dos instrumentos que satildeo parte do preparar o alimento e do comer Aleacutem disso eacute

possiacutevel transplantar a cozinha para o externo na histoacuteria como representaccedilatildeo da vida que Alice

decide tomar fora da vida que lhe foi imposta A cozinha representa a autonomia e natildeo mais a

obediecircncia agrave filha A consciecircncia do corpo por sua vez as necessidades de fome sede sono e

higiene pessoal que satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa

Cabe compreender a consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo ambas definidas por

Jaspers na procura que a protagonista faz por si mesma a partir da capacidade de tomar decisotildees

a favor do que deseja e precisa e natildeo a favor da filha Aleacutem disso relembra diversos elementos

de sua identidade a partir de referenciais de sua terra encontrados em Porto Alegre como um

sotaque familiar de Penha ou os sabores paraibanos ou mesmo na evocaccedilatildeo dos doces de sua

avoacute que os quindins da simpatia fazem-na evocar A recordaccedilatildeo do cachorro-quente paraibano

que compara com aquele soacute de patildeo e salsicha gauacutecho faz com que as memoacuterias ajudem em sua

reconstruccedilatildeo no que tange agrave consciecircncia de si A consciecircncia do corpo por sua vez pode ser lida

na iniciativa de Alice por satisfazer as necessidades de fome sede sono e higiene pessoal que

satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa

Um ponto de grande importacircncia eacute a interaccedilatildeo com outras pessoas que tambeacutem consiste

em necessidade de sobrevivecircncia Alice sai do isolamento em que passa os primeiros dias do

choque imbuiacuteda de encontrar Ciacutecero Nesta missatildeo conhece pessoas com quem conversa e

partilha mesmo que seja uma breve aproximaccedilatildeo Nutre-se dessas trocas aleacutem da nutriccedilatildeo pelo

alimento Coloca-se em situaccedilotildees em que eacute escutada em que tem sua necessidade atendida como

nas vilas que percorre na procura pelo rapaz nos botecos e restaurantes onde vai recebe o que

pede no restaurante de Penha recebe o zelo de uma mesa posta de Zelima no Pronto-Socorro

recebe cuidado e preocupaccedilatildeo

131

Atraveacutes da necessidade de sobreviver e da missatildeo de descobrir o paradeiro de Ciacutecero

Alice redescobre sua capacidade de tomar as reacutedeas da proacutepria vida que atribuiacutera agrave filha Norinha

logo que chegou em Porto Alegre

132

CONCLUSAtildeO

Italo Calvino ao se referir agrave atividade do escritor afirmou ldquoEscrevemos para tornar

possiacutevel ao mundo natildeo escrito de exprimir-se atraveacutes de noacutesrdquo (DANZI 2007 p140) O que ele

denomina lsquomundo natildeo escritorsquo eacute a proacutepria vida real percebida pelo indiviacuteduo por seus cinco

sentidos e vivenciada atraveacutes das emoccedilotildees e dos pensamentos Desse lsquomundo natildeo escritorsquo

portanto fazem parte o cozinhar e o comer o partilhar as refeiccedilotildees e seus sabores o vincular-se

aos demais entre outras vicissitudes da experiecircncia humana Atraveacutes do ofiacutecio do escritor essas

condiccedilotildees satildeo representadas no texto literaacuterio

A escolha por estudar o universo da cozinha neste contexto permite expressar diversas

perspectivas atraveacutes da literatura Silvana Ghiazza estudiosa das relaccedilotildees entre cozinha e

literatura expotildee que

O alimento enquanto signo significa portanto algo aleacutem de si mesmo media conteuacutedos

ligados ao universo cultural revela conexotildees com a realidade histoacuterico-social com o

conjunto profundo da identidade individual e coletiva constitui em suma um polo de

agregaccedilatildeo de diversas dimensotildees de humanidade torna-se uma forma de linguagem natildeo-

verbal organizando-se em paralelo a outras linguagens em um orgacircnico sistema de

sinais desta forma pode tornar-se entatildeo uma chave de leitura transversal da realidade

Ateacute daquela literaacuteria (GHIAZZA 2015 p19)

De acordo com a mesma autora ldquo[] pode-se falar de comida ou atraveacutes da comidardquo

(GHIAZZA 2015 p20 grifo nosso) No termo lsquoatraveacutesrsquo empregado por Silvana Ghiazza estatildeo

as possiacuteveis aplicaccedilotildees da cozinha na literatura em que a primeira a cozinha eacute um veiacuteculo para

que a segunda a literatura exprima na linguagem do escritor uma seacuterie de circunstacircncias dos

personagens e da trama

Mais uma vez Silvana Ghiazza colabora para a compreensatildeo do sentido da comida e sua

relaccedilatildeo com a literatura quando esclarece

A comida pode ser presente como objeto em sua concreta materialidade no interno da

representaccedilatildeo marcando a natureza realiacutestica da proacutepria estrutura narrativa pode

contribuir a delimitar as coordenadas espaccedilo-temporais fornecendo referecircncias a

produtos pratos haacutebitos de um tempo e de um territoacuterio determinado pode tambeacutem

assumir um significado metafoacuterico mediando conteuacutedos diversos e simboacutelicos A

relaccedilatildeo com o alimento em termos de sua conotaccedilatildeo identitaacuteria pode servir ao autor para

tratar o caraacuteter das personagens e pode tornar-se uma forma de comunicaccedilatildeo

interpessoal uma linguagem natildeo-verbal A comida pode ainda constituir o campo

semacircntico do qual o autor se serve para as escolhas lexicais de sua escritura

(GHIAZZA 2015 p20)

133

A expressatildeo da cozinha no texto literaacuterio serve valendo-nos da referecircncia de Italo

Calvino a que este lsquomundo natildeo escritorsquo se exprima atraveacutes do escritor A partir da leitura da

autora entende-se que esse lsquoexprimir-sersquo poderaacute ocorrer por meio de trecircs funccedilotildees principais a

denotativa a conotativa e a comunicativa Sobre a primeira denotativa Silvana Ghiazza explica

As referecircncias a produtos alimentares a pratos e a receitas assim como a rituais haacutebitos

ou eventos ligados agrave realidade gastronocircmica de um tempo preciso e de um territoacuterio

definido contribuem sem duacutevidas para dar veridicidade verossimilhanccedila agrave narrativa

marcando sua estrutura realiacutestica (GHIAZZA 2015 p24)

As trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea escolhidas para compor o corpus

desta dissertaccedilatildeo apresentam o universo da cozinha atraveacutes da funccedilatildeo denotativa nos elementos

compreendidos como espaccedilo fiacutesico material Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo as

referecircncias agraves tradiccedilotildees culinaacuterias judaicas em seus pratos receitas e praacuteticas satildeo representadas

por essa funccedilatildeo Em O arroz de Palma podemos ler em produtos como o arroz a lata de azeite

de oliva e o bacalhau a presenccedila da cultura portuguesa configurando tal funccedilatildeo em Quarenta

dias a mesma estaria representada pelas carrocinhas de pipoca e de cachorro quente pelas

padarias e comidas de botecos de rua pois satildeo elementos que datildeo verossimilhanccedila agrave estrutura

narrativa em que a personagem passa a habitar as ruas da cidade durante a sua procura

A respeito da funccedilatildeo conotativa em situaccedilatildeo oposta agrave anterior Ghiazza explicita

As referecircncias agrave esfera alimentar natildeo tecircm o escopo de marcar a verossimilhanccedila e o

realismo da obra fornecendo informaccedilotildees do tipo denotativo realistico-referencial mas

servem principalmente para tratar do caraacuteter das personagens para definir a

personalidade atraveacutes de gestos de comportamentos ou de haacutebitos ligados de algum

modo agrave produccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo e ao consumo do alimento (GHIAZZA 2015 p25)

Podemos na funccedilatildeo conotativa mencionar em O arroz de Palma a preparaccedilatildeo do arroz

por Antonio enquanto narra a histoacuteria bem como o papel do arroz na trama considerando seu

caraacuteter simboacutelico como fertilizador da famiacutelia e como elemento presenteado por Palma e Joseacute

Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento Em Por que sou gorda mamatildee a funccedilatildeo

conotativa seria representada pela relaccedilatildeo das personagens com o comer jaacute que tanto no caso da

protagonista como no de sua matildee e no da Voacute Magra tal relaccedilatildeo eacute caracteriacutestica da personalidade

das mesmas entre outros exemplos Em Quarenta dias as escolhas alimentares de Alice satildeo

comportamentos associados agrave sua decisatildeo de permanecer na rua natildeo voltando para casa bem

como de seu desejo por autonomia Na mesma obra tanto o restaurante da conterracircnea Penha

134

quanto ingredientes e comidas da Paraiacuteba com os quais a protagonista tem contato em seus

percursos marcam a ligaccedilatildeo afetiva que ela manteacutem com sua terra natal

Outra das funccedilotildees que Silvana Ghiazza refere eacute a comunicativa relacionada ao papel da

cozinha na comunicaccedilatildeo entre as personagens de uma trama como por exemplo a funccedilatildeo da

comida no compartilhar a mesa

Ainda um outro significado que a comida pode assumir eacute ligado agrave convivialidade agrave sua

funccedilatildeo de meio de comunicaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Desde sempre dividir o alimento

foi de forma diversa mas em todas as sociedades ocasiatildeo para comunicar E esse eacute um

dado verificaacutevel na vida de cada dia em que se espera que o momento da divisatildeo do

alimento seja tambeacutem momento de divisatildeo de pensamentos e de afetos de

aprofundamento do conhecer reciacuteproco Na mesa se fala o eu torna-se noacutes

Tambeacutem na literatura esta realidade ocupa um lugar notaacutevel e as referecircncias agrave comida

desempenham uma funccedilatildeo comunicativa na medida em que oferecem o suporte para

uma troca relacional entre as personagens o alimento e mais em termos gerais as

praacuteticas alimentares podem transformar-se de fato em uma verdadeira linguagem natildeo-

verbal capaz de comunicar mensagens sem a necessidade de palavras [] A comida

torna-se a forma privilegiada de linguagem natildeo-verbal para comunicar o sentimento de

amor em todas as suas formas (GHIAZZA 2015 p26-27)

Nas trecircs obras do corpus encontramos a funccedilatildeo comunicativa quando a comida bem

como as representaccedilotildees da cozinha como espaccedilo fiacutesico satildeo elos de convivecircncia entre as

personagens Palma colhe o arroz da pedra para presenteaacute-lo ao irmatildeo e agrave cunhada e o mesmo

seraacute elemento de ligaccedilatildeo entre a famiacutelia assumindo o arroz o nuacutecleo da trama Antonio durante a

narrativa prepara o que restou do ingrediente para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo de cem anos do

casamento dos pais e do proacuteprio arroz em O arroz de Palma Ateacute mesmo na expressatildeo do amor

fiacutesico o arroz eacute o elemento comunicativo na cena em que Antonio e Isabel inauguram sua

intimidade fiacutesica derramando sobre seus corpos o arroz Em Por que sou gorda mamatildee a Voacute

Magra oferece doces tiacutepicos aos netos em sua sacola de crocheacute enquanto a matildee da protagonista

compartilha com os filhos os doces e o refrigerante dentro do carro na viagem da famiacutelia ao

Uruguai

Assim a representaccedilatildeo da cozinha pode se exprimir no texto literaacuterio como espaccedilo fiacutesico

e simboacutelico termos escolhidos para o presente trabalho ou atraveacutes de suas funccedilotildees denotativa

conotativa e comunicativa conforme Silvana Ghiazza As trecircs obras do corpus tecircm o objetivo de

propor a reflexatildeo sobre as linguagens que a cozinha pode assumir no texto literaacuterio

especificamente no contexto da literatura brasileira contemporacircnea Nossa escolha por estudar o

referido tema decorreu tambeacutem da funccedilatildeo cultural que a cozinha assume na sociedade atraveacutes

dos tempos Rita Rutigliano explica que

135

Desde sempre os escritores utilizam a comida e o comer tambeacutem para falar de outra

coisa As paacuteginas dos livros se sabe portam um patrimocircnio de signos reveladores de

vivecircncias e de sentimentos humanos Nos eacute possiacutevel colher indiacutecios preciosos atraveacutes de

descriccedilotildees dos rituais alimentares (e ateacute mesmo do jejum) que- cobrindo o arco inteiro

entre dois polos- a comida como necessidade de base e como um aspecto da paixatildeo pela

vida-podem se tornar invenccedilatildeo jogo poesia religiatildeo histoacuteria barocircmetro das

experiecircncias pessoais e coletivas metaacutefora social e poliacutetica Em uma palavra cultura

(RUTIGLIANO 2000 p11)

A respeito do papel desempenhado pela cozinha na cultura salientado por Rita

Rutigliano podemos acrescentar o fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo lsquoLa cultura em la

cocinarsquo cujo conselho editorial eacute composto por Marcelo Aacutelvarez Jesuacutes Contreras e Rosaacuterio

Olivas O referido fragmento aparece publicado em um dos livros da coleccedilatildeo pela editora

Catalonia del Nuevo Extremo

A cozinha natildeo eacute soacute um procedimento teacutecnico que permite que os produtos alimentiacutecios

se transformem em pratos e em receitas eacute acima de tudo uma linguagem em que se

expressa a cultura humana Os gostos a esteacutetica as combinaccedilotildees de sabores os

condimentos preferidos e as maneiras agrave mesa satildeo gestos sociais que se relacionam com a

histoacuteria e com a transmissatildeo dos siacutembolos que distinguem uma comunidade da outra

(SARDE MONTECINO 2014)

O fato eacute que das mais diversas formas dentro do referido contexto cultural o universo

culinaacuterio pode ser traduzido na literatura como um fenocircmeno da natureza humana O cozinhar

nos fez humanos A propoacutesito disso Eloisa Palafox refere que as capacidades de cozinhar os

alimentos e de contar histoacuterias distinguem o homo sapiens ambas compotildeem parte primordial de

nossa evoluccedilatildeo A semelhanccedila entre tais praacuteticas estaacute tambeacutem no fato de que permitem a

socializaccedilatildeo entre os indiviacuteduos e a partilha da comida e das histoacuterias Para Michael Pollan

Somos a uacutenica espeacutecie que depende do fogo para manter o corpo aquecido e a uacutenica

espeacutecie que natildeo pode passar sem cozinhar sua comida A esta altura o controle do fogo

jaacute estaacute inscrito nos nossos genes uma questatildeo natildeo mais associada apenas agrave cultura

humana mas sim agrave nossa biologia (POLLAN 2014 p109)

A relaccedilatildeo com o cozinhar vai aleacutem do preparo do alimento no fogo para ingestatildeo Esse eacute

sem duacutevidas o que manteacutem nossa sobrevivecircncia bioloacutegica mas haacute outra habilidade que

aprendemos como espeacutecie graccedilas tambeacutem ao fogo a interaccedilatildeo com os demais que Silvana

Ghiazza relaciona com a funccedilatildeo comunicativa que a cozinha pode ter no texto literaacuterio Pollan

acrescenta agrave exposiccedilatildeo acima a relevacircncia dessa aquisiccedilatildeo em nosso desenvolvimento

136

Sobretudo o fogo que usamos para cozinhar como o que vigio na churrasqueira do meu

quintal tambeacutem ajudou a nos formar como seres sociais lsquoA forccedila do magnetismo social

exercido pelo fogorsquo como diz o historiador Felipe Fernaacutendez-Armesto eacute o que nos

manteacutem juntos e ao fazer isso ele provavelmente mudou o curso da evoluccedilatildeo humana O

fogo usado para cozinhar promoveu a seleccedilatildeo de indiviacuteduos capazes de tolerar outros

indiviacuteduos- fazer contato visual cooperar e compartilhar lsquoQuando o fogo se combinou agrave

comidarsquo escreveu Fernaacutendez-Armesto lsquoum foco quase irresistiacutevel foi criado para a vida

comunalrsquo (na verdade lsquofocorsquo vem da palavra latina focus para lareira braseiro chama)

A forccedila da gravidade social exercida pelo fogo natildeo parece ter diminuiacutedo [] (POLLAN

2014 p109)

Assim somos seres bioloacutegicos e sociais atributos que devemos ao ato de cozinhar A

nossa biologia nos confere o comer pela fome e pelo prazer Esse elemento por sua vez eacute

necessaacuterio para promover a continuidade da sobrevivecircncia individual da mesma forma que o

prazer sexual eacute o estiacutemulo para a preservaccedilatildeo do humano como espeacutecie Cozinhar comer

alimentos cozidos que nos deem nutriccedilatildeo e sensaccedilotildees prazerosas e nos reunirmos com nossos

semelhantes satildeo atributos evolutivos que promoveram a chegada ao seacuteculo XXI

A reuniatildeo com as pessoas proacuteximas resultado do fogo como elemento agregador para

cozinhar os alimentos tornou-nos em termos evolucionaacuterios seres sociais Sendo assim

partilhamos vivecircncias com outros e essas nos propiciam a noccedilatildeo de pertencimento a um grupo

Temos a partir disso a noccedilatildeo de uma identidade singular e plural Somos parte de algo e

acumulamos percepccedilotildees experiecircncias e sentimentos em comum forma-se a memoacuteria coletiva A

memoacuteria individual de modo diverso eacute parte do aparato anatocircmico e fisioloacutegico dos seres

humanos Essa se desenvolve agrave medida que se forma o neocoacutertex ceacuterebro exclusivamente nosso

cooperando com a consciecircncia de noacutes mesmos e entatildeo com a construccedilatildeo da identidade

individual E porque somos capazes de reter informaccedilotildees de arquivaacute-las e de evocaacute-las em

acircmbito individual somos tambeacutem capazes de fazecirc-lo coletivamente ao compormos um grupo

seja uma famiacutelia ou um povo

Uma das principais caracteriacutesticas da memoacuteria na esfera familiar satildeo as histoacuterias que

atravessam geraccedilotildees por serem contadas desde os antepassados Entre essas eacute vaacutelido incluirmos

tambeacutem as receitas de cozinha pois narram o como-se-faz de um prato atraveacutes dos tempos por

parentes de sangue ou de criaccedilatildeo Entre tais histoacuterias podemos tambeacutem referir o papel de um

determinado ingrediente na formaccedilatildeo de uma memoacuteria de famiacutelia como eacute o exemplo em O arroz

de Palma

A memoacuteria individual por sua vez eacute porccedilatildeo imprescindiacutevel de nossa identidade e da

consciecircncia que temos sobre quem somos ela compotildee junto aos demais elementos nossa

137

capacidade de autonomia Jaspers aponta para a impossibilidade de uma independecircncia total em

relaccedilatildeo a outras pessoas pois precisamos das interaccedilotildees de afeto e de trocas com nossos

semelhantes Temos tambeacutem necessidade uns dos outros por aspectos praacuteticos de sobrevivecircncia

indiviacuteduos que plantem que colham que pesquem que vendam que comprem que cozinhem

que consumam e que faccedilam esse ciacuterculo perpetuar-se Seguiremos cozinhando uns para os outros

pelo simples fato de que precisamos comer E partilhar Esse eacute o ponto em Quarenta dias

A protagonista depende de quem prepare o alimento para ela seja o anocircnimo na

carrocinha de cachorro quente na rua seja na mesa posta com esmero que recebe no restaurante

da rodoviaacuteria pela conterracircnea Penha Paradoxalmente o fato de receber do outro a comida eacute o

substrato da retomada de sua autonomia jaacute que a decisatildeo do que comer eacute da proacutepria Alice Nesse

caso o cozinhar tece as interaccedilotildees entre os sujeitos

Os elementos escolhidos para estudo satildeo resultado de nossa capacidade de pensar de

sentir emoccedilotildees de perceber os estiacutemulos externos atraveacutes dos cinco sentidos e de interpretaacute-los

de acordo com a consciecircncia do corpo e de noacutes mesmos A bagagem individual e cultural

fornecida pela memoacuteria faz com que possamos sentir prazer ao saborear uma receita de famiacutelia

porque ela nos faz lembrar de uma avoacute ou de uma tia como ocorre com Antonio ao ler aquela

escrita por Palma em seu caderno Escolhemos o que comer exercendo nossa autonomia

conforme as preferecircncias alimentares que nos identificam considerando a cultura do territoacuterio

onde vivemos Compreende-se entatildeo que os atributos definidos para este trabalho natildeo ocupam

compartimentos estanques mas estatildeo inexoravelmente interligados em noacutes

Pollan reflete sobre a contribuiccedilatildeo de Levi-Strauss nesse aspecto

Segundo Levi-Strauss a distinccedilatildeo entre lsquoo crursquo e lsquoo cozidorsquo serviu a muitas culturas

como a grande alegoria para estabelecer a diferenccedila entre animais e pessoas Em lsquoO cru

e o cozidorsquo ele escreveu lsquocozinhar natildeo apenas marca a transiccedilatildeo da natureza para a

cultura mas por meio dessa accedilatildeo e com a sua ajuda a condiccedilatildeo humana pode ser

definida com todos os seus atributosrsquo Cozinhar transforma a natureza e ao fazer isso

nos eleva acima desse estado tornando-nos humanos (POLLAN 2014 p57)

Na presente dissertaccedilatildeo partiu-se da proposta de estudar a memoacuteria ligada agrave cozinha em

O arroz de Palma o prazer vinculado ao comer em Por que sou gorda mamatildee e a autonomia

associada ao escolher o alimento a partir da percepccedilatildeo da fome em Quarenta dias Essa

separaccedilatildeo se deveu agrave predominacircncia desses atributos em cada uma das obras natildeo os excluindo

138

das demais Como jaacute exposto haacute uma interligaccedilatildeo entre esses em cada um de noacutes Eacute possiacutevel

encontrar nas trecircs narrativas expressotildees dessa conexatildeo

Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo muito se pode refletir sobre as lembranccedilas

da proacutepria narradora-personagem e de sua famiacutelia ou sobre sua autonomia ao decidir pelo que

come Em Quarenta dias a protagonista recorre agrave memoacuteria de sabores e de vivecircncias ao

escrever em seu caderno a retrospectiva de suas andanccedilas aleacutem disso apesar de sua fome ser o

determinante na escolha do que comer Alice sente prazer com a refeiccedilatildeo quentinha e posta na

mesa com esmero no restaurante da rodoviaacuteria ou com o lanche servido na padaria Em O arroz

de Palma os atributos tambeacutem estatildeo entremeados mesmo com o predomiacutenio da memoacuteria para o

estudo dessa obra haacute presenccedila do prazer e da autonomia ao longo das lembranccedilas de Antonio

Um ponto de semelhanccedila entre as trecircs obras eacute o fato de apresentarem todas um narrador-

personagem que protagoniza as vivecircncias A cozinha eacute portanto contada em primeira pessoa

espaccedilo vivencial do narrador A opccedilatildeo por um eu ficcional para narrar as histoacuterias natildeo eacute ao acaso

sendo a cozinha um espaccedilo de tamanha relevacircncia para nossa vida de tanto apelo ao imaginaacuterio e

agraves lembranccedilas nos campos individual e coletivo eacute bem apropriado que quem conte seja a

personagem que a vivenciou atraveacutes das proacuteprias experiecircncias ou da memoacuteria familiar A tal

propoacutesito outro elemento que aproxima as trecircs obras eacute a presenccedila da famiacutelia das personagens

que ocupa posiccedilatildeo relevante na relaccedilatildeo que os protagonistas assumem com a cozinha

Nas trecircs narrativas o narrador-personagem fala de suas emoccedilotildees e vivecircncias e por vezes

fala da famiacutelia e das histoacuterias e lembranccedilas que representam a raiz de muitas experiecircncias com a

cozinha e com o comer A famiacutelia nesse contexto representa o coletivo que eacute apresentado junto

ao individual o sentir e pensar do proacuteprio narrador No livro Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e

Doccediluras essa coexistecircncia entre o singular e o plural eacute um dos elementos abordados em relaccedilatildeo

ao papel da cozinha conforme expresso no trecho abaixo

O ato culinaacuterio eacute ao mesmo tempo uma experiecircncia individual e coletiva uma

oportunidade de autoconhecimento de entrega a mim mesma e simultaneamente de

partilha de doaccedilatildeo de expressatildeo de afetos positivos [hellip] Sobretudo o ato culinaacuterio

representa uma das circunstacircncias mais propiacutecias para experimentar singular e plural

para nos aproximar de noacutes mesmos e daqueles a quem admiramos amamos e que satildeo

parte da nossa histoacuteria (CARDOSO 2012 p13)

139

O termo lsquoato culinaacuteriorsquo refere-se natildeo apenas ao cozinhar mas a toda gama de

comportamentos ligados agrave cozinha como dividir uma refeiccedilatildeo receber doces ou oferecer uma

comida aos demais colocar a mesa e tantas outras possibilidades

A diferenccedila entre as trecircs obras eacute o espaccedilo que a cozinha representa em cada uma Em O

arroz de Palma Antonio faz a narrativa a partir de sua cozinha enquanto prepara o almoccedilo de

celebraccedilatildeo dos cem anos de casamento de seus pais e do saco de estopa com o arroz como

presente aos noivos A cozinha nesse caso eacute apresentada atraveacutes do espaccedilo fiacutesico mas tambeacutem

do ingrediente-protagonista o arroz por outros elementos materiais como os guardanapos da

matildee de Isabel e o caderno de receitas de Antonio e por aqueles imateriais a exemplo da memoacuteria

associada ao cozinhar e das comparaccedilotildees dos pratos culinaacuterios com os estilos de famiacutelias Em

Por que sou gorda mamatildee a cozinha aparece ora como ingredientes ora como espaccedilo fiacutesico

ora como comidas ora como emoccedilotildees revelando histoacuterias da protagonista e de seus antepassados

de origem judaica Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como espaccedilo fiacutesico no novo

apartamento e na vida da protagonista em Joatildeo Pessoa antes da mudanccedila e passa a ser expressa

ao longo da obra pelos bares estabelecimentos e lsquocarrinhosrsquo pelos quais ela passa tambeacutem

representativos do espaccedilo fiacutesico Aleacutem disso a cozinha aparece como espaccedilo simboacutelico de

sobrevivecircncia nessa narrativa essa representaccedilatildeo eacute feita atraveacutes das comidas que Alice escolhe

enquanto anda pelas ruas Deste modo as trecircs obras contemplam ambos os espaccedilos referidos no

propoacutesito desse trabalho

Nas obras a cozinha eacute descrita como espaccedilo fiacutesico - tanto como peccedila da casa quanto

atraveacutes dos eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios ou seja em sua existecircncia material- e como

espaccedilo simboacutelico traduzindo lembranccedilas emoccedilotildees e comportamentos representando o ritual

implicado no cozinhar e comunicando os integrantes de uma famiacutelia

Em relaccedilatildeo ao elemento material da cozinha destaco em O arroz de Palma a cozinha de

onde Antonio narra suas lembranccedilas a panela em que ele prepara o arroz a taacutebua na qual corta os

temperos seu caderno de receitas onde estaacute aquela escrita por Palma os guardanapos da matildee de

Isabel a lata de azeite de Oliva e o mais significativo de todos o proacuteprio arroz presenteado a

Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento A expressatildeo material estaacute presente sobretudo

no espaccedilo fiacutesico e nos elementos citados embora haja menccedilatildeo a comidas como o arroz de

bacalhau preparado para aproximar as famiacutelias a fim de comeccedilar o namoro com Isabel

140

Em Por que sou gorda mamatildee haacute referecircncias agraves comidas e doces judaicos como

aqueles na sacola de crocheacute da Voacute Magra Aleacutem disso em vaacuterias passagens se lecirc descriccedilotildees como

aquela em que os moradores do bairro preparam pratos a partir dos ingredientes nas cozinhas de

suas casas com detalhamento dos atos culinaacuterios e dos instrumentos utilizados Uma das cenas

mais consistentes em demonstrar a cozinha como espaccedilo fiacutesico eacute quando a Voacute Magra prepara os

bifes para a protagonista ali essa representaccedilatildeo natildeo apenas estaacute na cozinha mas tambeacutem nos

utensiacutelios e ingredientes como o oacuteleo que ela usa para o preparo da carne Nessa obra a

predominacircncia da perspectiva material estaacute principalmente nas comidas Outro exemplo eacute a cena

em que a matildee se deleita com os filhos na viagem ao Uruguai comendo doces e refrigerante ou

quando essa faz uma farta refeiccedilatildeo antes do cateterismo e outra depois de sair do hospital Esses

satildeo alguns exemplos da expressatildeo fiacutesica que a cozinha assume na obra de Cintia Moscovich

Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como peccedila da casa de Joatildeo Pessoa e de Porto

Alegre sendo essa uacuteltima expressa com detalhes quanto a eletrodomeacutesticos armaacuterios mesa e

utensiacutelios No periacuteodo em que Alice estaacute na rua o aspecto material da cozinha eacute manifestado

pelas carrocinhas de pipoca e cachorro quente pelos botecos e padarias e pelos alimentos Esses

predominam na narrativa como expressatildeo do espaccedilo fiacutesico ocupado pela cozinha

Quanto ao aspecto simboacutelico representado ressalta-se que ao cozinhar e ao comer

estamos praticando rituais Mircea Eliade na obra jaacute referida nessa dissertaccedilatildeo expotildee que ldquo[]

a principal funccedilatildeo do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e

atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a

educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 2011 p13)

A alimentaccedilatildeo como ritual estaacute presente nas trecircs obras de formas diversas Em O arroz de

Palma estaacute na colheita do arroz na pedra pela Tia Palma bem como na oferta desse aos noivos

como presente de casamento estaacute tambeacutem na canja que ela faz ao irmatildeo com esse mesmo

arroz para que os gratildeos o fertilizem e no almoccedilo em que ela e Maria Romana preparam o arroz

de bacalhau para a integraccedilatildeo das famiacutelias Estaacute tambeacutem em outros pontos da narrativa como no

ponto em que Antonio e Isabel recebem o arroz em seu casamento e quando levam um punhado

desse para sua comunhatildeo fiacutesica no lago

Nessa obra os trecircs exemplos que melhor ilustram a presenccedila do ritual satildeo o ato de

cozinhar que permeia toda a histoacuteria pois enquanto o protagonista prepara o arroz evoca

lembranccedilas e as mistura com imaginaccedilotildees e pensamentos a leitura da receita dedicada a ele em

141

seu caderno de receitas por Palma com recitaccedilotildees a serem praticadas durante o preparo da

comida Por fim a reuniatildeo da famiacutelia nas mesas para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo dos cem anos

do casamento dos pais e do presente do arroz em que haacute dois pontos que aludem ao ritual Tanto

a reuniatildeo da famiacutelia para comer eacute ritualiacutestica quanto tambeacutem o fato de se tratar de uma

comemoraccedilatildeo como foi visto na referecircncia que Ricoeur faz ao elemento mundanidade do par

reflexividademundanidade em sua fenomenologia da memoacuteria

Em Por que sou gorda mamatildee o componente do ritual estaacute principalmente associado ao

comer e ao partilhar o alimento e menos ao cozinhar A oferta de doces na sacola de crocheacute que

a Voacute Magra faz aos netos eacute um dos exemplos dessa partilha assim como a menccedilatildeo que a

protagonista faz agraves refeiccedilotildees agrave mesa em famiacutelia Haacute o aspecto ritual nos doces oferecidos pois

satildeo de origem judaica e ilustram sabores ancestrais dessa cultura

Em Quarenta dias o ritual estaacute presente tambeacutem no comer e em muitos casos nas ofertas

de alimento que Alice recebe em seu percurso pelas vilas Como jaacute mencionado a mesa posta no

restaurante da rodoviaacuteria eacute parte do ritual da alimentaccedilatildeo e a partilha dos lanches entre Alice e

Lola representa a integraccedilatildeo dos indiviacuteduos que compartilham as refeiccedilotildees

Em um periacuteodo da histoacuteria da humanidade em que estamos prestando mais atenccedilatildeo na

gastronomia como espetaacuteculo midiaacutetico essas trecircs narrativas apontam para um retorno da

cozinha como contexto de afeto de memoacuteria de tradiccedilatildeo de construccedilatildeo de significados Michael

Pollan em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo reitera

Estamos falando mais sobre culinaacuteria- e assistindo a programas de culinaacuteria lendo sobre

o assunto e indo a restaurantes onde podemos observar o preparo da comida em tempo

real Vivemos numa era em que cozinheiros profissionais se tornaram celebridades

alguns deles tatildeo famosos quanto atletas ou estrelas de cinema A mesma atividade que

muitas pessoas encaram como um trabalho enfadonho acabou sendo de alguma forma

elevada agrave categoria de esporte popular com puacuteblico proacuteprio [hellip] Por algum motivo

cozinhar eacute diferente O trabalho ou o processo carrega uma forccedila emocional ou

psicoloacutegica da qual natildeo podemos-ou natildeo queremos- nos livrar (POLLAN 2014 p11)

Nas trecircs narrativas lecirc-se o cozinhar cumprindo os propoacutesitos ancestrais que o homem

aprendeu com o domiacutenio do fogo nutrir e agregar No mundo real que Italo Calvino chamou de

lsquomundo natildeo escritorsquo a cozinha promove essas vivecircncias pela transformaccedilatildeo do alimento e pelo

viacutenculo com os outros indiviacuteduos atraveacutes da comida preparada Nas obras escolhidas para o

corpus os espaccedilos fiacutesico e simboacutelico da cozinha tornam-se parte do mundo escrito exprimindo-

se atraveacutes do ofiacutecio de seus autores Reafirma-se assim a perspectiva de Italo Calvino

142

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