0 pontifÍcia universidade catÓlica do rio grande do sul ... · Às receitas de quitutes, de...
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PONTIFIacuteCIA UNIVERSIDADE CATOacuteLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS
MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA
BETINA MARIANTE CARDOSO
Agrave MODA DA CASA
A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE
SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS
Porto Alegre
1ordm de dezembro de 2016
1
BETINA MARIANTE CARDOSO
Agrave MODA DA CASA
A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE
SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS
Dissertaccedilatildeo apresentada como preacute-requisito para
obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teoria da
Literatura pela Faculdade de Letras da Pontifiacutecia
Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul
Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira
Porto Alegre
1o de dezembro de 2016
0
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)
Ficha catalograacutefica elaborada pela Bibliotecaacuteria Clarissa Jesinska Selbach CRB102051
C268m Cardoso Betina Mariante
Agrave moda da casa a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico em O arroz
de Palma Por que sou gorda mamatildee e Quarenta dias Betina Mariante
Cardoso ndash 2016
144 fls
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio
Grande do Sul
Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira
1 Anaacutelise literaacuteria 2 Literatura brasileira 3 Memoacuteria I Moreira
Maria Eunice II Tiacutetulo
CDD 801
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BETINA MARIANTE CARDOSO
Agrave MODA DA CASA
A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE
SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS
Dissertaccedilatildeo apresentada como preacute-requisito para
obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teoria da
Literatura pela Faculdade de Letras da Pontifiacutecia
Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul
Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira
Aprovada em 01 de dezembro de 2016
BANCA EXAMINADORA
Profa Dra Luciana Abreu Jardim
Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena
Profa Dra Maria Eunice Moreira
Porto Alegre
1o de dezembro de 2016
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Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda pelos infinitos legados
que constituem meu gosto pela literatura pela cozinha e por sua interface
O som das teclas da maacutequina de escrever do Vocirc Heacutelio o perfume do panelatildeo de chimia de uva
Isabel da Voacute Leacuteia o brilho de sol nos vidros de ambrosia da Voacute Alda
ingredientes da minha escrita e do meu cozinhar
2
AGRADECIMENTOS
Agrave Profa Dra Maria Eunice Moreira pela proposta do tema que me encanta a interface
entre Literatura e Cozinha e seus diaacutelogos com outras aacutereas por todos os ensinamentos nas
disciplinas do Mestrado e na orientaccedilatildeo da escrita da Dissertaccedilatildeo pelo incentivo e pela confianccedila
durante toda a trajetoacuteria
Ao Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena pelo despertar da curiosidade e do gosto pela
literatura brasileira contemporacircnea pela confianccedila e entusiasmo e pela riqueza das sugestotildees
apontadas na Banca de Qualificaccedilatildeo de Mestrado
Agrave Profa Dra Luciana Abreu Jardim pelos ensinamentos transmitidos durante o mini-
curso que ministrou em Caxias do Sul em 2015 intitulado ldquoSobre o pensamento de Julia
Kristeva a experiecircncia-revolta atraveacutes dos cruzamentos de sentidosrdquo de grande relevacircncia para a
construccedilatildeo de minha bagagem adquirida durante o Mestrado
Agrave Profa Dra Leacutea Masina pelos meus dez anos de aprendizado nos seminaacuterios de escrita
literaacuteria por seu papel fundamental no amadurecimento do meu gosto por escrever e pelo carinho
com que conduz o processo de descobertas na literatura
Aos meus pais Ana Cristina e Apolinaacuterio e ao meu irmatildeo Diego pelo estiacutemulo aos meus
percursos e pelo incentivo para que eu sempre abrisse janelas aos horizontes possiacuteveis
Aos amigos de toda a vida Melissa Sharlene e Jaime pela amizade incondicional e pelo
apoio conversas e risadas durante o periacuteodo de escrita da Dissertaccedilatildeo
Ao Marcelo pela partilha dos prazeres da mesa com afeto muitos risos e boa prosa e
pelo estiacutemulo e sugestotildees nos desafios durante os momentos especiais do nosso conviacutevio
3
Aos autores das obras que compotildeem o corpus da Dissertaccedilatildeo Francisco Azevedo Ciacutentia
Moscovich e Maria Valeacuteria Rezende A partir de O arroz de Palma Por que sou gorda mamatildee
e Quarenta dias foi possiacutevel realizar o presente estudo
Agrave bibliotecaacuteria Clarissa Selbach pela disponibilidade e pela excelecircncia durante todo o
percurso da Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Aos meus sobrinhos Eacuterico e Lucas por me permitirem voltar a ser crianccedila em nossas
brincadeiras e por participarem do fazer culinaacuterio com alegria de festa
Agrave Tacircnia pelo afeto e pela celebraccedilatildeo de sempre
Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda a quem dedico essa
Dissertaccedilatildeo
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ldquoFamiacutelia eacute afinidade eacute lsquoagrave moda da casarsquo
E cada casa gosta de preparar a famiacutelia a seu jeitordquo
(AZEVEDO 2008)
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RESUMO
A presente dissertaccedilatildeo de Mestrado visa analisar a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico no
contexto de trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco
Azevedo (2008) Por que sou gorda mamatildee de Cintia Moscovich (2006) e Quarenta dias de
Maria Valeria Rezende (2014) No estudo de cada obra eacute estabelecida a relaccedilatildeo entre a cozinha e
um dos trecircs seguintes paradigmas respectivamente memoacuteria prazer e autonomia Assim o
trabalho eacute composto por trecircs capiacutetulos intitulados ldquoCozinha e memoacuteriardquo ldquoCozinha e prazerrdquo
ldquoCozinha e autonomiardquo O propoacutesito eacute compreender de que forma a cozinha eacute apresentada nas
narrativas do corpus no contexto dos temas escolhidos Elementos da fenomenologia
psiquiaacutetrica da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo satildeo apresentados em diaacutelogo com a
literatura brasileira contemporacircnea
Palavras-chave Literatura brasileira contemporacircnea Cozinha Comida
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ABSTRACT
This dissertation aims to analyze the kitchen as a physical and symbolic space within the context
of three works of contemporary Brazilian literature Francisco Azevedorsquos O arroz de Palma
(2008) Cintia Moscovichrsquos Por que sou gorda mamatildee (2006) and Maria Valeria Rezendersquos
Quarenta dias (2014) In each work kitchen is related to one of the following three paradigms
respectively memory pleasure and autonomy Thus this study consists of three chapters entitled
Kitchen and Memory Kitchen and Pleasure and Kitchen and Autonomy Our goal is to
understand how the kitchen is described in the narratives of the corpus in the context of the
selected topics Elements of psychiatric phenomenology sociology and food history are
presented in connection with contemporary Brazilian literature
Keywords Contemporary Brazilian literature Kitchen Food
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SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 10
1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA 15
11 O ARROZ DE PALMA 15
12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA 19
13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO 34
14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA 42
2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57
21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57
22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL 60
23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA 66
24 O PRAZER DA COMIDA 74
3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS 92
31 QUARENTA DIAS 92
32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS 97
33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA 105
34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI 111
CONCLUSAtildeO 132
REFEREcircNCIAS 142
10
INTRODUCcedilAtildeO
O ato de cozinhar eacute parte ancestral da nossa existecircncia como seres humanos Desde os
tempos primitivos o homem transforma o ingrediente cru em alimento cozido Comemos por
necessidade nutricional mas tambeacutem por outros motivos comemos para sentir prazer com um
bom prato para socializarmos partilhando esse prazer com outras pessoas para evocarmos
lembranccedilas de famiacutelia e as nossas proacuteprias com sabores que fazem parte de nossa bagagem
emotiva Escolhemos o que comer aprendemos a gostar mais desse ou daquele doce somos
conhecidos pelo quitute que preparamos para os amigos Adoramos canela mas detestamos
alecrim A cozinha faz parte da construccedilatildeo de nossa identidade e da memoacuteria que vamos
formando a partir das experiecircncias vivenciadas sozinhos ou em grupo
Um ponto de extrema relevacircncia eacute o fato de que a comida supre as demandas orgacircnicas
manteacutem-nos com energia para enfrentar a rotina e sustenta a sauacutede razotildees pelas quais eacute parte de
nossa autonomia Recebemos o leite materno quando somos ainda dependentes do peito da matildee
a seguir os pais nos alimentam com novos sabores ateacute que passamos a aprender a gostar de
modo individual disso ou daquilo E aprendemos a natildeo gostar daquele guisado de aboacutebora do
almoccedilo ou da salada de cenoura beterraba alface e tomate - que devemos comer porque faz bem
e ponto As escolhas alimentares tornam-se parte de nossa capacidade de dirigirmos nosso Eu e
de compormos nossas preferecircncias Assim natildeo seria exagero referir que tais escolhas nos
identificam pois satildeo um pedaccedilo de quem nos tornamos como indiviacuteduos e como famiacutelia O
alimento torna-se uma fatia das histoacuterias que vivemos e das emoccedilotildees que sentimos
Haacute um aspecto a ser questionado a que nos referimos quando falamos em cozinha Ao
espaccedilo fiacutesico que essa ocupa na casa onde estatildeo o forno e o fogatildeo o refrigerador a pia Aos
utensiacutelios como talheres e pratos panelas eletrodomeacutesticos peneira travessas e assim por
diante Aos ingredientes em parte mantidos na despensa enquanto outros devem permanecer
refrigerados Agraves receitas de quitutes de doces de refeiccedilotildees escritas a matildeo em cadernos
familiares ou colhidas da Internet ou copiadas no programa televisivo de famosos chefs Agraves
recordaccedilotildees de vivecircncias passadas com as avoacutes que nos ensinavam o saber culinaacuterio pelo
claacutessico lsquobotar a matildeo na massarsquo Agrave cultura de um povo pelas comidas que prepara
A cozinha contempla todos esses elementos do simboacutelico ao concreto da antiguidade
mais remota aos tempos hipervelozes de hoje com diversas miacutedias dirigidas aos temas culinaacuterios
11
do conforto emocional que representava ao glamour que vem atingindo com o avanccedilo da
gastronomia como expressatildeo de status social e econocircmico no seacuteculo XXI
Memoacuteria prazer e autonomia lsquoingredientesrsquo relevantes na relaccedilatildeo do ser humano com o
alimento tanto na sua preparaccedilatildeo quanto no ato de comer propriamente dito
Pela importacircncia e significado da cozinha em todos os tempos e em todas as culturas a
presente dissertaccedilatildeo visa discutir seu papel nos acircmbitos fiacutesico e simboacutelico em trecircs obras da
literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco Azevedo (2008) Por que
sou gorda mamatildee de Ciacutentia Moscovich (2006) e Quarenta dias de Maria Valeacuteria Rezende
(2014)
A organizaccedilatildeo eacute composta por trecircs capiacutetulos que mantecircm a mesma estrutura na epiacutegrafe
um trecho emblemaacutetico da obra a ser explorada sob a perspectiva de um dos paradigmas
definidos como memoacuteria prazer e autonomia um fragmento introdutoacuterio para apresentaacute-lo em
sua relaccedilatildeo com a cozinha seguido de quatro subdivisotildees na primeira a apresentaccedilatildeo da obra do
corpus na segunda a fundamentaccedilatildeo teoacuterica do atributo escolhido para cada uma das narrativas
na terceira a reflexatildeo sobre este visto agrave luz de sua relaccedilatildeo com a cozinha na quarta a anaacutelise
das obras especiacuteficas utilizando-se trechos e analisando-os a partir das reflexotildees e estudos jaacute
expostos
O primeiro capiacutetulo intitulado ldquoCozinha e memoacuteria em O arroz de Palmardquo apresenta a
cozinha vinculada agraves histoacuterias familiar e pessoal das personagens o que permite relacionar esse
livro com a pesquisa sobre a memoacuteria tanto a individual como a coletiva O segundo capiacutetulo
intitulado ldquoCozinha e prazer em Por que sou gorda mamatildeerdquo traz a cozinha principalmente
manifesta pela vivecircncia do prazer da comida e suas consequecircncias para a protagonista como o
engorde motivo pelo qual incide sobre o prazer na relaccedilatildeo com a cozinha O terceiro capiacutetulo
intitulado ldquoCozinha e autonomia em Quarenta diasrdquo contempla o estudo dessa obra em que se
revela uma alimentaccedilatildeo vivenciada fora de casa atraveacutes da comida e dos lugares que a oferecem
Ao longo do percurso da personagem atraveacutes da retomada de sua independecircncia o comer eacute uma
das principais representaccedilotildees de sua autonomia nessa narrativa Assim o binocircmio estudado no
uacuteltimo capiacutetulo eacute cozinha e autonomia
O arroz de Palma trata da relevacircncia de um elemento o arroz na histoacuteria de vaacuterias
geraccedilotildees da famiacutelia do protagonista motivo pelo qual este capiacutetulo aborda a relaccedilatildeo entre cozinha
e memoacuteria Considerando-se a memoacuteria um tema estudado por diversos campos do
12
conhecimento a fundamentaccedilatildeo teoacuterica desse capiacutetulo eacute constituiacuteda pelos seguintes autores no
acircmbito filosoacutefico Paul Ricoeur e Gaston Bachelard cultural Aleida Assmann psicopatoloacutegico
Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio Bulbena e Sandro Domenichetti neurocientiacutefico Ivan
Izquierdo e Gordon Shepherd Satildeo tambeacutem referidas reflexotildees de Mircea Eliade na compreensatildeo
do mito As perspectivas do socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan satildeo
apresentadas junto aos autores jaacute referidos na subdivisatildeo que aborda a memoacuteria no contexto da
cozinha
Por que sou gorda mamatildee traz a cozinha ligada ao prazer pelo fato de a narrativa
abordar as sensaccedilotildees prazerosas ligadas agrave comida A fundamentaccedilatildeo teoacuterica abrange as facetas
bioloacutegica e cultural do prazer Na esfera bioloacutegica a reflexatildeo inclui aspectos saudaacuteveis e
psicopatoloacutegicos contendo ideias do psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers e dos psiquiatras
Lorenzo Pelizza e Franco Benazzi na esfera socioloacutegica a reflexatildeo parte da leitura do socioacutelogo
Carlos Alberto Doacuteria em seus livros A subdivisatildeo que apresenta o prazer ligado agrave cozinha eacute
constituiacuteda principalmente por Jean Louis Flandrin Maacutessimo Montanari e Jean-Anthelme Brillat-
Savarin
Quarenta dias expressa a relaccedilatildeo entre cozinha e autonomia pois o comer representa
para a personagem sua decisatildeo de sobrevivecircncia real Ela come porque tem fome necessidade
fisioloacutegica propriamente dita sendo o comer vinculado agraves decisotildees e agrave autonomia para tomaacute-las
elemento-chave na construccedilatildeo de seu percurso Nesse capiacutetulo a cozinha eacute principalmente
expressa pela comida motivo pelo qual este eacute o termo empregado na terceira e quarta
subdivisotildees A fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute composta por contribuiccedilotildees de Karl Jaspers tambeacutem
explorado nos capiacutetulos anteriores por aquelas do neurocientista Antonio Damaacutesio e do
psiquiatra Massimo Biondi Na subdivisatildeo que estabelece viacutenculo entre a comida e a autonomia
expressa como consciecircncia de si apoiamos a anaacutelise no pensamento do socioacutelogo Carlos Alberto
Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan tambeacutem presentes nos capiacutetulos anteriores
A decisatildeo por pesquisar na literatura a expressatildeo da cozinha deve-se ao nosso
questionamento sobre o modo como essa aparece atraveacutes da escrita literaacuteria Que contextos e que
termos satildeo escolhidos pelos escritores para retratar a cozinha como espaccedilos fiacutesico e simboacutelico
em suas obras A escolha recai sobre a literatura brasileira contemporacircnea definindo para o
corpus livros escritos por autores brasileiros em 2006 2008 e 2014 Trecircs livros publicados nas
duas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXI periacuteodo que coincide com a explosatildeo do papel da cozinha
13
em acircmbitos mundial e sem duacutevidas nacional Conforme refere Maria Eunice Moreira no ensaio
ldquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmardquo
Espaccedilo alquiacutemico por sua natureza lugar de transformaccedilatildeo e de transmutaccedilatildeo a cozinha
eacute um dos espaccedilos mais tematizados na atualidade Isso pode ser comprovado pelo
nuacutemero de perioacutedicos especializados em gastronomia variedades de programas de TV e
destaque concedido a chefes e gourmets que se tornaram personagens midiaacuteticos
Diferentes miacutedias hoje divulgam as proezas de cozinheiros especializados que divulgam
suas descobertas culinaacuterias com ingredientes exoacuteticos confeccionando pratos originais
(MOREIRA 2014 p167)
Com a magnitude das expressotildees gastronocircmicas contemporacircneas no mundo e no Brasil eacute
plausiacutevel encontrar na literatura de nosso tempo obras que tragam a cozinha nos seus diversos
domiacutenios ao papel de protagonista A escolha especiacutefica pela literatura brasileira contemporacircnea
resulta de nosso interesse por compreender com que linguagem ela eacute expressa em nosso paiacutes em
nossa literatura em nossa contemporaneidade Ainda de acordo com o ensaio acima referido
sobre O arroz de Palma vale ressaltar
Mas certamente os leitores concordam que no fundo dos bauacutes que cruzaram os mares
entre enxadas e sementes vieram junto bens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre
o antigo e o novo espaccedilo a ser habitado Satildeo esses bens porque falam a linguagem do
mito os mais duradouros e perenes e satildeo eles tambeacutem capazes de inspirar a escrita da
literatura brasileira em tempos de globalizaccedilatildeo (MOREIRA 2014 p174)
Os lsquobens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre o antigo e o novo espaccedilo a ser
habitadorsquo estatildeo presentes em O arroz de Palma e tambeacutem no livro Por que sou gorda mamatildee
Nesse uacuteltimo atraveacutes da representaccedilatildeo de uma famiacutelia de imigrantes judeus e de sua relaccedilatildeo com
a comida e com o prazer de comer Em Quarenta dias a protagonista eacute tambeacutem uma imigrante
mas vinda de outro Estado e de outra cultura no mesmo Paiacutes Assim tambeacutem nessa narrativa haacute
um contraste entre o espaccedilo antigo e o novo a ser habitado a cidade de Porto Alegre eacute o territoacuterio
desconhecido ao qual a narradora personagem deveraacute se adaptar Da mesma forma como
transfere sua moradia para as ruas da cidade enquanto reluta em apropriar-se de sua lsquonova vidarsquo
tambeacutem transfere sua alimentaccedilatildeo para as padarias botecos carrinhos de pipoca e de cachorro
quente pela rua restaurantes e bares de rodoviaacuteria Para ela a decisatildeo de comer eacute resultado da
fome do mero existir como o sono e o banho A cozinha bem como sua vida estatildeo
lsquotransplantadasrsquo para as ruas da cidade
Nas trecircs obras selecionadas para este estudo haacute um papel central desempenhado pela
cozinha a representaccedilatildeo de aspectos da natureza humana como a ligaccedilatildeo com o prazer a
14
memoacuteria e a autonomia como jaacute foi referido Nas narrativas a cozinha o cozinhar e o comer
existem atraveacutes das comidas dos ingredientes de instrumentos e do espaccedilo fiacutesico em si mas satildeo
expressos sobretudo como emoccedilotildees e vivecircncias recuperaccedilatildeo de tradiccedilotildees e expressatildeo de
sentimentos e de memoacuterias Ao escolher o termo lsquocozinharsquo para a representaccedilatildeo global estamos
incluindo o campo de ideias que esse envolve ou seja todo o espaccedilo fiacutesico e os elementos
materiais como eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios as comidas desde o ingredientes e
receitas ateacute os pratos propriamente ditos por fim os elementos simboacutelicos portanto imateriais
como as representaccedilotildees de ritualidade e os elementos psiacutequicos e culturais que envolvem o
cozinhar e o comer
O tiacutetulo ldquoAgrave moda da casardquo remete agraves receitas de um periacuteodo da culinaacuteria em que a
cozinha caseira ocupava papel central na alimentaccedilatildeo familiar Essa envolvia as concepccedilotildees de
lar de famiacutelia de memoacuteria dos pratos que eram partilhados na mesa nas refeiccedilotildees Uma carne de
panela agrave moda da casa eacute aquela feita seguindo o lsquocomo-se-fazrsquo na histoacuteria da famiacutelia A expressatildeo
lembra os cadernos de receitas as cozinhas das avoacutes matildees e tias a memoacuteria e os sabores da
tradiccedilatildeo as noccedilotildees de identidade e de consciecircncia de si como indiviacuteduo singular que eacute parte de
um plural a famiacutelia Todos esses aspectos satildeo presentes nas obras do corpus e portanto estatildeo
incluiacutedos na reflexatildeo sobre o tiacutetulo escolhido
15
1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA
- Como eacute que simples guardanapos satildeo capazes de trazer tanta recordaccedilatildeo
- Porque fizeram histoacuteria satildeo a prova real e dos nove que um grupo de pessoas se reunia
regularmente para celebrar - natildeo importa o quecirc Festejavam a vida e pronto A data
religiosa ou pagatilde era pretexto Podia ser Paacutescoa ou Carnaval Esses guardanapos tecircm
alma Aliaacutes todo ser inanimado passa a ter alma no momento em que se lhe imprime
afeto As coisas tambeacutem aspiram a uma existecircncia sensiacutevel
Francisco Azevedo
A cozinha eacute o espaccedilo onde habitam forno fogatildeo geladeira pia pratos talheres
guardanapos panelas travessas caderno de receitas ingredientes chimia de uva pudim doce de
leite e ambrosia E lembranccedilas Muitos de nossos registros tecircm sabores proacuteprios Recordamos
essa ou aquela vivecircncia porque sua representaccedilatildeo eacute ligada a um gosto a uma textura a um
aroma Houve aquele doce de ovos que experimentamos em uma uacutenica e inesqueciacutevel ocasiatildeo
Vale evocar tambeacutem o faqueiro de uma avoacute presente de casamento ou a panela de fondue
comprada com orgulho fruto do primeiro salaacuterio da monitoria na faculdade No territoacuterio fiacutesico
da cozinha a memoacuteria tem corpo tem existecircncia material atraveacutes dos ingredientes dos
instrumentos dos eletrodomeacutesticos da receita de famiacutelia preparada para o almoccedilo Acima de
tudo a memoacuteria tem respiraccedilatildeo
11 O ARROZ DE PALMA
A escolha do tema cozinha e memoacuteria nasce atraveacutes da leitura da primeira obra definida
para o presente corpus O arroz de Palma de Francisco Azevedo publicada pela Editora Record
em 2008 O significado da cozinha para a nossa experiecircncia subjetiva tem fortes raiacutezes nas
histoacuterias guardadas atraveacutes das lembranccedilas e transmitidas entre as geraccedilotildees Essa obra da
literatura brasileira contemporacircnea propotildee tal resgate com relevante aprofundamento
A narrativa comeccedila pela voz do protagonista Antocircnio narrador personagem que traz ao
leitor em primeira pessoa a histoacuteria de sua famiacutelia os pais receacutem-casados e Palma sua tia
paterna Os trecircs vieram de Viana do Castelo em Portugal para o Brasil no comeccedilo do seacuteculo XX
Entretanto o que Antocircnio vem contar antecede a imigraccedilatildeo o ponto que daacute origem agrave histoacuteria da
obra eacute o casamento dos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana Depois da cerimocircnia Palma
decide juntar todos os gratildeos de arroz atirados aos noivos na lsquoabenccediloada chuva de arrozrsquo
16
torrencial feita de lsquopunhados e mais punhadosrsquo Fez-se lsquochuva branca que natildeo paravarsquo Como se
fosse colheita ela junta gratildeo por gratildeo e coloca todos em um saco de estopa que leva aos receacutem-
casados como seu presente pelo matrimocircnio Surpreendente eacute a reaccedilatildeo de Joseacute Custoacutedio ao
receber a ideia de Palma raivoso desdenha do arroz ofertado pela irmatilde como se fosse presente
de menor valor A esposa Maria Romana contemporiza a situaccedilatildeo mas manteacutem a posiccedilatildeo firme
de que aceitaratildeo o presente E o arroz torna-se a alma dessa famiacutelia Melhor dizendo Palma
torna-se a alma da famiacutelia
A obra eacute composta por cinquenta e nove capiacutetulos curtos trezentas e sessenta e uma
paacuteginas e um calendaacuterio ao final com datas relevantes para a compreensatildeo da passagem do
tempo perspectiva essencial em O arroz de Palma Antocircnio eacute o narrador personagem muito do
que conta sobre a histoacuteria familiar ouviu de sua tia Palma figura de grande importacircncia na
formaccedilatildeo de sua personalidade Ela testemunhou boa parte das vivecircncias em Portugal e na
chegada ao Brasil protagonizou a maioria das cenas que se tornaram lembranccedilas Essas
transformaram-se depois em histoacuterias contadas por Palma e escutadas por Antocircnio
Fazendo zigue-zagues nas geraccedilotildees Antocircnio relembra pontos que conhece de viver e
pontos que sabe por escutar Em momentos da leitura parece estar contando a trama ao leitor
noutros tem-se a sensaccedilatildeo de que as conversas satildeo consigo mesmo a fim de percorrer uma linha
de tempo que faccedila sentido Ele narra de sua cozinha no presente do indicativo enquanto a
memoacuteria percorre outros tempos verbais mas a idade jaacute deixa lacunas Quando faltam
ingredientes na despensa da memoacuteria resta a tentativa de montar histoacuterias possiacuteveis ele compotildee
em um conjunto o que foi vivido e imaginado junto agraves suas reflexotildees atuais agrave beira do fogatildeo
Estaacute preparando a receita tiacutepica de arroz com significado em sua histoacuteria pessoal para a
comemoraccedilatildeo do centenaacuterio do matrimocircnio dos seus pais e do arroz colhido por Palma e
presenteado ao casal
Nas idas e vindas aparece de iniacutecio a fuacuteria de Joseacute Custoacutedio ao ganhar o saco de gratildeos de
arroz dirigida agrave irmatilde Palma Os trecircs vecircm para o Brasil onde ele consegue trabalho em uma
fazenda Mais tarde jaacute com a vida organizada quando o casal tem dificuldades em ter filhos
surge nova fuacuteria quando Palma sugere oferecer-lhe o arroz como forma de ajudar na fecundaccedilatildeo
pelos poderes atribuiacutedos ao ingrediente Ele recusa enraivecido mas Palma e Maria Romana
fazem com que coma o arroz mesmo assim No momento da raiva quebra a lsquoquarta cadeirarsquo que
iraacute reformar para sua irmatilde passada a coacutelera Essa seraacute a cadeira de onde ela contaraacute a Antocircnio as
17
memoacuterias de famiacutelia os remendos de histoacuteria as fantasias e imaginaccedilotildees as dores e intimidades
de sua juventude
A quarta cadeira seraacute seu palco Antocircnio eacute o expectador Cria-se um forte laccedilo entre ele e
a tia pois se torna desde cedo o herdeiro das recordaccedilotildees familiares Essa aproximaccedilatildeo acaba
por distanciaacute-lo dos trecircs irmatildeos Leonor Nicolau e Joaquim enquanto ele eacute mais lsquocaseirorsquo gosta
de ficar ouvindo as histoacuterias da Tia Palma os trecircs satildeo mais agitados apreciam os passeios e as
brincadeiras pelo campo A distacircncia entre ele e os trecircs faz com que a tia o chame de lsquoAntocircnimorsquo
opondo suas caracteriacutesticas agraves dos irmatildeos As diferenccedilas seguiratildeo vida afora o que o protagonista
vai contando em seus percursos
Surge entatildeo seu romance com Isabel filha do patratildeo de seu pai sua ida para o Rio de
Janeiro o noivado com a moccedila e o arroz de bacalhau para celebrar a ocasiatildeo em famiacutelia A
receita foi preparada com o mesmo arroz que serviu para a fertilidade dos pais o mesmo arroz
presenteado por Palma para o casamento deles o mesmo arroz da chuva abenccediloada da cerimocircnia
O arroz testemunha a vida da famiacutelia alinha suas histoacuterias nessa narrativa parece ser a
representaccedilatildeo da memoacuteria familiar Lembranccedila a lembranccedila gratildeo a gratildeo As narrativas vatildeo sendo
transmitidas escutadas digeridas Antes do casamento Antocircnio e Isabel lsquoroubamrsquo um punhado e
levam consigo ao lago abenccediloando o primeiro momento de uniatildeo fiacutesica que partilham Mais uma
vez o arroz participa da ocasiatildeo formando registros de memoacuteria
Casam-se Nascem os filhos Nuno e Rosaacuterio Gecircmeos Seratildeo no entanto muito
diferentes entre si ela objetiva praacutetica ele sensiacutevel Entre casamentos e separaccedilotildees a narrativa
segue trilhada pela voz de Antocircnio em idas e vindas nas deacutecadas entre o casamento dos pais e
seu aniversaacuterio Sempre ao lado de Isabel nos trechos de vida sempre com dificuldades na
ligaccedilatildeo com os irmatildeos Entre o arroz presenteado por Palma no casamento de Joseacute Custoacutedio e
Maria Romana e a receita de arroz preparada por Antocircnio em sua cozinha esse conta os
nascimentos e as mortes relembra a perda de tia Palma recorda-se de vivecircncias dolorosas ao
longo do percurso de cada um e de todos O arroz eacute roubado da vitrine do restaurante de Antocircnio
e Isabel pelos filhos outra porccedilatildeo parece ter sido roubada pela esposa de um dos irmatildeos por
ciuacuteme de seu casamento Mais tarde surge a informaccedilatildeo de que Antocircnio e a cunhada tiveram
uma ligaccedilatildeo afetiva antes de ambos unirem-se a seus pares Voltam a encontrar-se em um ponto
da histoacuteria em uma tarde de braccedilos dados desejos satisfeitos e despedida cordial
18
Muitas satildeo as tramas vividas e recordadas nessa narrativa Antocircnio eacute o narrador
personagem mas a leitura faz o leitor convencer-se o protagonista a bem da verdade eacute o arroz
A tia Palma tem papel decisivo na famiacutelia eacute ela quem daacute a direccedilatildeo em vaacuterios momentos da
histoacuteria nas vidas do irmatildeo Joseacute Custoacutedio da cunhada Maria Romana do sobrinho mais
proacuteximo Antocircnio e de seus irmatildeos Eacute ela quem daacute a direccedilatildeo aos gratildeos de arroz no percurso
desde o casamento em Portugal na Igreja ateacute sua morte contando sempre com a cumplicidade
da cunhada O protagonista segue conversando com a tia em pensamento perguntando suas
opiniotildees e conselhos
Palma transmite histoacuterias o arroz transmite histoacuterias Ao longo de toda a narrativa ambos
vatildeo deixando suas marcas na vida das personagens Em sua cozinha enquanto prepara o arroz
ele une os gratildeos pelo cozimento assim como une as recordaccedilotildees em uma soacute histoacuteria da famiacutelia
Se acaba por esquecer de algo lembra depois ou conta agrave sua moda Lembranccedilas agrave moda da casa
Toda a narrativa eacute tecida com uma linha que atravessa as vivecircncias a metaacutefora feita agraves
famiacutelias como se fossem pratos da culinaacuteria O narrador protagonista traz a imagem de vaacuterios
desses pratos e suas equivalecircncias nos grupos familiares enquanto se lembra dos trechos de vida
entremeados com emoccedilotildees e pensamentos Natildeo eacute possiacutevel alinhar as memoacuterias estatildeo espalhadas
Parte delas remontam etapas de vida outras lugares e pessoas Haacute registros que surgem de
experiecircncias vividas e daquelas que ele conhece apenas por ouvir- em geral de sua tia Palma
sentada na quarta cadeira
Podemos lembrar do que vivemos ou do que imaginamos em nossa maquinaria de
lembranccedilas memoacuteria e imaginaccedilatildeo fundem-se e o que vivenciamos por ouvir contar se torna
tambeacutem parte de nossos registros pessoais Eacute o que se passa com Antocircnio quando conta o que
ouviu de Palma com tal fidelidade que parece ele mesmo ter vivido Escutou imaginou e entatildeo
apropriou-se da histoacuteria com suas proacuteprias cores eacute dele agora a trama contada pela tia Algo
parecido eacute o processo de alquimia de uma receita de cozinha quando eacute transmitida de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo cada novo cozinheiro agrega seu modo de preparar a receita e ela vai assim sendo
transformada pelo tempo e pelas vozes que a leem agrave beira do fogatildeo
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12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA
O propoacutesito de estudar a memoacuteria neste capiacutetulo eacute o de apresentaacute-la como um processo
inerente agrave constituiccedilatildeo do ser humano Necessitamos deixar registros agraves geraccedilotildees seguintes assim
como seguir rastros dos antepassados Queremos pertencer a uma histoacuteria de famiacutelia e construir a
nossa para ser lembrada e seguida Acima de tudo a memoacuteria eacute parte da identidade
imprescindiacutevel na consciecircncia do indiviacuteduo sobre si mesmo
No campo de estudos da memoacuteria haacute os substratos neuroanatocircmico neurofisioloacutegico e
neuroquiacutemico que a compotildeem sob a perspectiva orgacircnica responsaacuteveis por seu funcionamento
adequado entretanto o foco predominante neste estudo consiste no entendimento da memoacuteria
como processo singular em termos psiacutequicos e plural em termos culturais Devido agraves muacuteltiplas
facetas do tema ampliamos a fundamentaccedilatildeo teoacuterica para os campos fenomenoloacutegico em que
apresentamos as ideias de Paul Ricoeur cultural a partir dos estudos de Aleida Assmann
psicopatoloacutegicas em que satildeo apontadas reflexotildees de Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio
Bulbena e Sandro Domenichetti e neurocientiacuteficas em que fazemos referecircncia aos
neurocientistas Ivan Izquierdo argentino e Gordon Shepherd americano
A cozinha situa-se nas esferas da memoacuteria individual e coletiva A relaccedilatildeo que se
estabelece entre o indiviacuteduo e os aromas que habitam sua memoacuteria como no caso das madeleines
recordadas por Proust a partir de um gatilho eacute de tamanha intimidade que se torna parte de sua
bagagem afetiva Da mesma forma o caderno de receitas de uma avoacute pode atravessar geraccedilotildees
pois os sabores ali registrados evocam lembranccedilas da histoacuteria familiar Ao serem reproduzidos
despertam na memoacuteria de um grupo natildeo apenas a receita original mas toda a constelaccedilatildeo de
emoccedilotildees que envolve essa lembranccedila como a cozinha em que era feita as panelas pratos e
talheres os almoccedilos dominicais na mesa da sala de jantar
As experiecircncias representam os ingredientes para a formaccedilatildeo da memoacuteria Muitas delas
nascem das histoacuterias vivenciadas na cozinha seja atraveacutes da percepccedilatildeo de um gosto do sentir de
uma emoccedilatildeo do ato de mexer um bolo ou de preparar um prato Todas satildeo carimbadas pela
interpretaccedilatildeo pelos sentimentos e pelo significado que cada circunstacircncia assume em nosso
percurso E esse carimbo vira lembranccedila armazenada na despensa da memoacuteria passiacutevel de
transformaccedilotildees ao longo do amadurecimento e das vicissitudes de cada fase de vida Afinal de
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contas a memoacuteria natildeo eacute um registro estaacutetico ela eacute isso sim um processo dinacircmico dependente
de nosso olhar e de nosso viver
Conforme o psicopatologista alematildeo Karl Jaspers a memoacuteria eacute um mecanismo que tem
relaccedilatildeo com o colorido afetivo com o significado das coisas Ele definiu a memoacuteria propriamente
dita como um reservatoacuterio em que novos materiais satildeo integrados pela fixaccedilatildeo e satildeo extraiacutedos agrave
consciecircncia atraveacutes da funccedilatildeo de evocaccedilatildeo para ele a chegada e a partida dos materiais seriam
devidas agraves respectivas funccedilotildees de fixaccedilatildeo e evocaccedilatildeo enquanto a memoacuteria representaria o
reservatoacuterio de disponibilidade permanente (JASPERS 2000 p188) Se pensarmos na cozinha
a memoacuteria seria a despensa onde satildeo postos novos ingredientes e de onde satildeo retirados aqueles
escolhidos para o uso Jaacute de acordo com Bulbena citando Serralonga ldquo[] em termos objetivos
eacute possiacutevel defini-la como a capacidade de adquirir de reter e de utilizar secundariamente uma
experiecircnciardquo (BULBENA 1998 p169)
Bulbena aponta quarto aspectos relevantes na compreensatildeo da memoacuteria como fenocircmeno
humano entre os quais distingue a entrada a manutenccedilatildeo e a saiacuteda das informaccedilotildees em
constante intercacircmbio entre organismo e ambiente o aspecto de transformaccedilatildeo dessas
informaccedilotildees modificando o conteuacutedo que entra no lsquoreservatoacuteriorsquo de Jaspers tanto para o
armazenamento quanto para a futura reproduccedilatildeo desse conteuacutedo o fato de a memoacuteria ser
produzida no contexto de estruturas nervosas que veiculam o processo apontando-se que as
alteraccedilotildees neste resultaratildeo em transtornos em seus mecanismos de fixaccedilatildeo armazenamento e
reproduccedilatildeo O quarto ponto definido pelo autor eacute de grande importacircncia para a finalidade do
presente capiacutetulo a memoacuteria forma parte do conjunto da vida psiacutequica sendo as emoccedilotildees
especialmente relevantes em sua composiccedilatildeo e forma parte tambeacutem da biografia do indiviacuteduo
em que teraacute influecircncia e da qual receberaacute influecircncia tambeacutem
Quando o autor se refere agrave biografia estaacute fazendo menccedilatildeo agraves experiecircncias de vida desse
indiviacuteduo e satildeo essas que muitas vezes ocorreram em sua relaccedilatildeo com o comer e com a cozinha
O dado de a memoacuteria fazer parte da vida psiacutequica eacute significativo sobretudo no que tange agrave
relaccedilatildeo com o campo emocional pois sempre que tais experiecircncias vinculadas ao universo
culinaacuterio ocorrerem haveraacute o processamento da resposta afetiva
A memoacuteria eacute essencialmente parte da vida psiacutequica do ser humano e resultado de
mecanismos cerebrais de controle Eacute considerada uma das funccedilotildees do estado mental dos
indiviacuteduos avaliada no exame psiquiaacutetrico dessas funccedilotildees Bulbena refere que
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etimologicamente a maioria dos autores situa sua origem no termo latino memoacuteria de
significado similar ao atual mas haacute quem atribua a origem agrave palavra gemynd de raiz
anglosaxocircnica que conforme refere significaria mente Assim eacute possiacutevel que a associaccedilatildeo entre
memoacuteria e vida psiacutequica seja representada na proacutepria origem da palavra
Mesmo que a finalidade do presente capiacutetulo seja apresentar a memoacuteria vinculada agraves
vivecircncias de cozinha cabe realizar a abordagem desse mecanismo como fenocircmeno Paul Ricoeur
apresenta a respeito da fenomenologia da memoacuteria seu viacutenculo com a imaginaccedilatildeo O autor
refere que podemos fazer referecircncia a um evento passado ou dizer que temos dele uma imagem
que pode ser quase visual ou auditiva E aponta que a memoacuteria opera em funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo
reforccedilando a perspectiva de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que expressa que ldquo[] a memoacuteria eacute
uma proviacutencia da imaginaccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p25)
Tal aspecto liga-se ao exposto pelo neurocientista Gordon Shepherd que em seu livro
sobre neurogastronomia expotildee ldquoPara muitas pessoas as partes mais importantes do olfato e do
sabor satildeo as memoacuterias que elas evocam e as emoccedilotildees associadas a essasrdquo (SHEPHERD 2012
p174) Olfato e sabor satildeo tambeacutem elementos que evocam imagens de situaccedilotildees vivenciadas mas
imagens construiacutedas pelas caracteriacutesticas psiacutequicas individuais assim pode-se dizer que evocam
a imaginaccedilatildeo
A lembranccedila de um acontecimento do preparo de uma comida ou da ocasiatildeo em que a
saboreamos ocorre atraveacutes da imagem que fazemos dessas circunstacircncias Lembramos com cor
com cheiros com gostos Lembramos imaginando e eacute isso que Paul Ricoeur traz como ponto de
partida Shepherd refere que nossos mecanismos cognitivos tecircm a qualidade de perceber e de
evocar as coisas como um todo integrado a partir de uma fraccedilatildeo (SHEPHERD 2012) o que se
assemelha ao que Ricoeur refere sobre a ligaccedilatildeo mencionada ldquoEacute sob o signo da associaccedilatildeo de
ideias que estaacute situada essa espeacutecie de curto-circuito entre memoacuteria e imaginaccedilatildeo se essas duas
afecccedilotildees estatildeo ligadas por contiguidade evocar uma - portanto imaginar - eacute evocar a outra-
portanto lembrar-se delardquo (RICOEUR 2014 p25) Essa ideia associa-se ao fato de que todos os
registros que os sentidos percebem oriundos do mundo externo ao corpo satildeo traduzidos em
percepccedilotildees e entatildeo em lembranccedilas a serem armazenadas A lembranccedila torna-se uma impressatildeo
da experiecircncia e natildeo seu registro idecircntico uma vez que pode ser compreendida como uma
reconstruccedilatildeo do passado a partir da perspectiva atual O que laacute fixamos natildeo eacute idecircntico ao que no
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presente podemos evocar pois outras vivecircncias se colocam no caminho nos transformam e
modificam nosso modo de recordar o que um dia haviacuteamos registrado
O inconsciente em todo o processo pode guardar a sete chaves algumas das informaccedilotildees
fixadas parte do que vivemos passaraacute a ser liberado ou escondido por sua tutela Lembramos de
algo pela imaginaccedilatildeo do que permaneceu desse algo em nosso mundo interno na compreensatildeo
neurocientiacutefica os registros captados pelos sentidos ficam armazenados em estruturas
especiacuteficas predominantemente no hemisfeacuterio direito quando as lembranccedilas estiverem
conectadas a emoccedilotildees Uma lsquopistarsquo que dermos agrave memoacuteria seja uma figura um som um gosto
um aroma ou uma textura ou uma emoccedilatildeo podem trazer de volta em viagem ultraveloz a cena
arquivada com todas as transformaccedilotildees que o tempo provoca em noacutes
Eacute possiacutevel compreender que a memoacuteria identifica o indiviacuteduo e sua bagagem de
vivecircncias pois soacute nos lembramos do que conhecemos ldquoReconhecer algueacutem significa saber jaacute tecirc-
lo visto antes assim como recordar-se de um acontecimento significa saber que este jaacute ocorreu no
passadordquo (MINKOWSKI 2004 p143) O entendimento sobre suas consideraccedilotildees eacute a de que
uma lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a tonalidade emotiva com que este foi
percebido ou seja a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos
recordaremos dela no futuro porque eacute assim que a conhecemos Sobre tal aspecto Ivan
Izquierdo neurocientista especializado neste campo refere
Podemos afirmar conforme Norberto Bobbio que somos aquilo que recordamos
literalmente Natildeo podemos fazer aquilo que natildeo sabemos nem comunicar nada que
desconheccedilamos isto eacute que natildeo esteja na nossa memoacuteria Tambeacutem natildeo estatildeo agrave nossa
disposiccedilatildeo os conhecimentos inacessiacuteveis nem formam parte de noacutes os episoacutedios dos
quais esquecemos ou os quais nunca atravessamos O acervo de nossas memoacuterias faz
com que cada um de noacutes seja o que eacute um indiviacuteduo um ser para o qual natildeo existe outro
idecircntico (IZQUIERDO 2011 p11 grifo do autor)
O psicopatologista Eugeacutene Minkowski aborda a memoacuteria no capiacutetulo intitulado lsquoO
passadorsquo em seu livro O tempo vivido Tal afirmaccedilatildeo expressa que ela eacute parte de nosso tempo
vivido e atraveacutes da reflexatildeo de Ivan Izquierdo pode-se compreender que ela eacute parte do nosso
tempo de conhecimento vivido A ideia de que a memoacuteria faz de noacutes ldquo[] um ser para o qual natildeo
existe outro idecircnticordquo (IZQUIERDO 2011 p12) reforccedila a noccedilatildeo de que esse fenocircmeno eacute um
elemento inerente a um sujeito uacutenico com suas experiecircncias percepccedilotildees e bagagens Ainda
conforme Ivan Izquierdo ldquo[] o conjunto das memoacuterias de cada um determina aquilo que se
denomina personalidade ou forma de serrdquo (IZQUIERDO 2011 p12) O neurocientista refere que
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as emoccedilotildees e os estados de acircnimo tecircm importante papel no processo da memoacuteria tanto em
termos de aquisiccedilatildeo quanto de formaccedilatildeo e finalmente de evocaccedilatildeo
Falar em emoccedilotildees ou estados de acircnimo remete agrave referecircncia de Minkowski sobre as
tonalidades afetivas O psicopatologista faz alusatildeo ao viacutenculo entre emoccedilotildees e memoacuteria
expressando o modo como o sentir influencia o lembrar Eacute possiacutevel comprender sua ideia da
seguinte forma colocamos a mirada sobre nosso mundo interior para focar em uma fraccedilatildeo do
passado que sentimos presente em noacutes Isso seria equivalente agrave evocaccedilatildeo de uma lembranccedila Ao
percebermos o sentimento ligado a esse tempo anterior essa lembranccedila amplia-se agrave medida que
a encontramos em nosso iacutentimo A conexatildeo emotiva torna a vivecircncia passada cada vez mais
visiacutevel e de contornos niacutetidos como um feixe de luz que ao aumentar expande a aacuterea de
claridade e mostra os detalhes de um terreno
Tal iluminaccedilatildeo reproduz vivecircncias remotas como se fossem situaccedilotildees que nos parecem
recentes pela forccedila emotiva ligada ao evento passado Entretanto nossa impressatildeo sobre tais
eventos pode ser transformada por aspectos psiacutequicos que ocorrem entre o tempo real e o
lembrado modificando a impressatildeo do fato em suas nuances Permanece a essecircncia prazerosa ou
penosa de um fato mas a evocaccedilatildeo da lembranccedila pode tornaacute-la um rosa suave ou um vermelho
vivo Para mudar seu tom contam tanto nosso estado de acircnimo ao vivermos algo quanto ao
lembrarmos esse algo Memoacuteria e emoccedilatildeo assim estatildeo intimamente ligadas entre si em especial
no que concerne agraves nossas experiecircncias de vida
O termo memoacuteria no singular remete-nos a dois eixos um primeiro mais evidente eacute o
tempo o segundo subterracircneo o espaccedilo Tal colocaccedilatildeo vem do fato de que a memoacuteria pode ser
percebida como um espaccedilo subjetivo em nossa vida psiacutequica motivo pelo qual tecemos a
analogia com a imagem da despensa de cozinha Esta eacute de fato um espaccedilo objetivo mas cuja
subjetividade aparece ao revelar muitos aspectos sobre o morador da casa Seria plausiacutevel referir
que a despensa identifica esse sujeito em suas preferecircncias alimentares em sua condiccedilatildeo
econocircmica em sua regularidade nas refeiccedilotildees feitas no lar aleacutem de demonstrar se vive sozinho
ou em famiacutelia se tem haacutebitos saudaacuteveis se manteacutem cuidados com a higiene com o meio-
ambiente com os prazos dos alimentos e por aiacute vai A despensa seria assim a memoacuteria da casa
um espaccedilo onde se colocam os ingredientes onde satildeo armazenados e de onde satildeo retirados para o
uso imediato Nessa analogia os ingredientes remetem-nos agrave imagem das lembranccedilas guardadas
na despensa
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A partir dessa reflexatildeo eacute importante pensar no par lembranccedilas e memoacuteria como uma
relaccedilatildeo entre plural e singular Podem-se estabelecer ainda outras relaccedilotildees como a ideia de que a
memoacuteria maior conteacutem as lembranccedilas menores e muacuteltiplas A primeira representa um amplo
espaccedilo subjetivo para o armazenamento das segundas Uma comparaccedilatildeo mais detalhada colocaria
alguns itens nas estantes mais altas da despensa onde o acesso eacute difiacutecil ou mais ao fundo atraacutes
de elementos que satildeo usados com regularidade Natildeo eacute raro que esses ingredientes em partes
menos visualizadas sejam menos usados enquanto aqueles mais visiacuteveis sejam retirados dali e
consumidos com maior frequecircncia Tanto a regularidade do uso quanto os gostos alimentares
definem os produtos que ficam disponiacuteveis em estantes de mais faacutecil acesso em contraponto os
menos usados entram na categoria dos menos vistos
Aspectos que raramente enxergamos ficam esquecidos na despensa em lugares difiacuteceis e
ateacute passam da validade se natildeo tomamos conhecimento de que estatildeo laacute natildeo iremos evocaacute-los e
acabam por permanecer por um longo periacuteodo no canto mais longiacutenquo daquele espaccedilo Inuacutemeras
vezes esquecemos de usar produtos que guardamos haacute mais tempo e lembramos de acessar os
mais presentes em nossa rotina Aleacutem disso cabe lembrar que haacute estantes ou compartimentos em
uma despensa que servem justamente ao propoacutesito de definiccedilatildeo de categorias as mais
importantes alcanccedilamos estendendo o braccedilo enquanto as de menor relevacircncia recebem acesso
pelo uso da escada domeacutestica da lanterna para a procura ou no caso de estarem nas prateleiras
inferiores de posiccedilotildees fiacutesicas para encontrar o elemento procurado
Ao guardarmos algo que pouco usamos criamos espaccedilos de esquecimento dentro da
memoacuteria Para que resgatemos esses ingredientes haacute elementos como a imagem que nos
despertam para a recordaccedilatildeo de que um dia tomamos contato com ele Mais uma vez surge a
figura do conhecimento preacutevio entatildeo do passado como criteacuterio para o reconhecimento
Reconhecer eacute conhecer novamente voltar a tomar contato
Considerando a partir da analogia estabelecida as lembranccedilas como elemento plural
presente na memoacuteria de caraacuteter singular torna-se necessaacuterio compreender o fenocircmeno da
memoacuteria sob vaacuterias perspectivas Haacute diversos fatores envolvidos no modo como nos lembramos
de algo no porquecirc dessas lembranccedilas tornarem-se de mais faacutecil ou de mais difiacutecil acesso para
quais registros damos mais relevacircncia ao lsquoguardar na despensarsquo e outras variaacuteveis ligadas ao
lembrar e ao esquecer Tais perspectivas natildeo estatildeo divididas mas sim ligadas no texto uma vez
que ao contraacuterio das prateleiras da despensa a memoacuteria eacute um espaccedilo sem divisotildees estabelecidas
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na experiecircncia humana Mesmo do ponto de vista cerebral ela ocupa diversas aacutereas e muacuteltiplos
sistemas sendo resultado de um processo de integraccedilatildeo de estruturas e de funccedilotildees cerebrais
Um aspecto relevante sobre o uso da palavra memoacuteria quando usado no plural estaacute na
literatura Ler as memoacuterias de um autor remete agrave ideia de uma narrativa autobiograacutefica ou
biograacutefica novamente ligando a ideia de memoacuteria ao campo da definiccedilatildeo de identidade
Considero que esse termo seja o de maior importacircncia no conjunto do fenocircmeno pois mesmo que
se trate da memoacuteria de um grupo essa revela seu caraacuteter identitaacuterio
Identidade eacute palavra-chave no campo da memoacuteria O psiquiatra italiano Sandro
Domenichetti apresenta a lembranccedila como ldquo[] experiecircncia que constroacutei a consciecircncia de si e
que define a relaccedilatildeo entre o mundo afetivo e aquele cognitivordquo (DOMENICHETTI 2003 p1)
de acordo com ele entre as funccedilotildees da consciecircncia estaacute a diacrocircnica ou seja a de percepccedilatildeo da
identidade estaacutevel atraveacutes do tempo A consciecircncia entatildeo eacute um elemento central neste campo
Domenichetti refere que esta ldquo[] parece entatildeo configurar-se como um tipo de memoacuteria de si no
tempordquo (DOMENICHETTI 2003 p1) enfatizando a perspectiva de que ldquo[] um senso de si eacute
essencial para que todas as minhas lembranccedilas sejam exatamente as minhas lembranccedilasrdquo
(DOMENICHETTI 2003 p1 grifo do autor)
Outro elemento apontado por este autor tem como base a explanaccedilatildeo de Israel Rosenfeld
meacutedico e pesquisador com atuaccedilatildeo relevante no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti
Roselfield expotildee a continuidade da consciecircncia como derivada da correspondecircncia que o ceacuterebro
estabelece em momentos sucessivos com eventos no espaccedilo e no tempo sendo seu elemento vital
a autoconsciecircncia Para Roselfield
As minhas lembranccedilas emergem da relaccedilatildeo entre meu corpo e a imagem que meu
ceacuterebro tem do meu corpo (uma atividade inconsciente na qual o ceacuterebro constroacutei para si
uma ideia generalizada do corpo ideia que se modifica continuamente) Eacute esta relaccedilatildeo
que cria o senso de lsquosirsquo (DOMENICHETTI 2003 p2)
A fim de corroborar a relaccedilatildeo entre corpo e ceacuterebro estabelecida por Rosenfield
Domenichetti refere-se a Henri Bergson (1859-1941) filoacutesofo e diplomata francecircs cuja obra
destacou-se pelas contribuiccedilotildees no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti
[] o nosso conhecimento da realidade eacute feito de percepccedilotildees impregnadas de
lembranccedilas A memoacuteria de Bergson funciona atraveacutes de operaccedilotildees de coleta de imagens
que progressivamente satildeo produzidas o corpo eacute uma dessas imagens a uacuteltima para ser
exato E se o corpo em geral eacute uma imagem eacute oacutebvio que o eacute tambeacutem o ceacuterebro Este
ligar a percepccedilatildeo a memoacuteria e o corpo com passagens de um a outro atraveacutes da
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dimensatildeo temporal define a construccedilatildeo da funccedilatildeo mental da qual a memoacuteria eacute atributo
fundador como organizaccedilatildeo autoreflexiva que pensa o corpo (DOMENICHETTI 2003
p1)
Pode-se compreender entatildeo corpo e ceacuterebro como palcos onde as imagens da memoacuteria
satildeo encenadas Tais imagens unem-se agraves percepccedilotildees atuais do indiviacuteduo compondo um conjunto
formado pelo antes e o agora ndash passado e presente ndash intrincados Ainda referindo-se agraves
contribuiccedilotildees de Roselfield nesse campo Domenichetti acrescenta
Tambeacutem na visatildeo de Roselfield assim a memoacuteria natildeo pode ser considerada como um
manual de informaccedilotildees mas sobretudo como uma atividade contiacutenua do ceacuterebro Isso se
observa principalmente no caso das imagens Quando recordo a imagem de um evento
da minha infacircncia por exemplo natildeo a extraio de um hipoteacutetico arquivo de imagens
preexistentes devo formar conscientemente uma nova imagem (DOMENICHETTI
2003 p2)
Tais explanaccedilotildees sobre o papel da imagem para a recordaccedilatildeo coincidem com a
perspectiva de Paul Ricoeur em A lembranccedila e a imagem na primeira parte de sua obra jaacute
referida Ele questiona ldquoComo explicar que a lembranccedila retorne em forma de imagem e que a
imaginaccedilatildeo assim mobilizada chegue a revestir-se das formas que escapam agrave funccedilatildeo do irrealrdquo
(RICOEUR 2014 p66)
Para chegar a respostas possiacuteveis ele recorre a Bergson entre outros autores Deste
aponta que ldquoAdoto como hipoacutetese de trabalho a concepccedilatildeo bergsoniana da passagem da
lsquolembranccedila-purarsquo agrave lembranccedila-imagemrdquo (RICOEUR 2014 p67) De acordo com Ricoeur sobre
o trabalho de Bergson ldquoele traz de certo modo a lembranccedila para uma aacuterea de presenccedila
semelhante agrave da percepccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p68) ressaltando da imaginaccedilatildeo o que chama
de ldquofunccedilatildeo visualizanterdquo ou seja ldquosua maneira de dar a verrdquo (RICOEUR 2014 p68) Ricoeur
esclarece que
Eacute como se a forma que Bergson chama intermediaacuteria ou mista da lembranccedila isto eacute a
lembranccedila-imagem a meio-caminho entre lsquolembranccedila-purarsquo e a lembranccedila reinscrita na
percepccedilatildeo no estaacutegio em que o reconhecimento desabrocha no sentimento do deacutejagrave vu
correspondesse a uma forma intermediaacuteria da imaginaccedilatildeo a meio caminho entre a ficccedilatildeo
e a alucinaccedilatildeo a saber o componente imagem da lembranccedila-imagem Portanto eacute
tambeacutem como forma mista que eacute preciso falar da funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo que consiste em
lsquopocircr debaixo dos olhosrsquo funccedilatildeo que podemos chamar ostensiva trata-se de uma
imaginaccedilatildeo que mostra que expotildee que deixa ver (RICOEUR 2014 p70)
Assim o que se tem eacute uma zona de fronteiras pouco demarcadas entre a percepccedilatildeo a
lembranccedila e a imaginaccedilatildeo Ricoeur refere em relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas e diferenccedilas entre as duas
uacuteltimas ldquoCertamente dissemos e repetimos que a imaginaccedilatildeo e a memoacuteria tinham como traccedilo
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comum a presenccedila do ausente e como traccedilo diferencial de um lado a suspensatildeo de toda posiccedilatildeo
de realidade e a visatildeo de um irreal do outro a posiccedilatildeo de um real anteriorrdquo (RICOEUR 2014
p61)
Nesse sentido o papel da percepccedilatildeo eacute o de captar a realidade atraveacutes dos cinco sentidos
para entatildeo formar registros que no futuro seratildeo lembranccedilas As imagens que resgato satildeo
diferentes das que percebi no instante do acontecimento pois se misturam com outros
ingredientes como as emoccedilotildees por exemplo Ricoeur aponta ldquoTeriacuteamos assim a sequecircncia
percepccedilatildeo lembranccedila ficccedilatildeo Um limiar de inatualidade eacute transposto entre lembranccedila e ficccedilatildeordquo
(RICOEUR 2014 p65) Esse limiar de inatualidade expresso por ele como ldquotransposto entre
lembranccedila e ficccedilatildeordquo parece referir-se agrave passagem do tempo que torna as imagens de uma
vivecircncia cada vez mais proacuteximas da imaginaccedilatildeo quanto mais longiacutenquo for o passado
O filoacutesofo Gaston Bachelard em A poeacutetica do espaccedilo ao mencionar as lembranccedilas
associadas ao habitar de uma nova casa expressa o entrelaccedilamento entre a memoacuteria e a
imaginaccedilatildeo
E o devaneio se aprofunda de tal modo que para o sonhador do lar um acircmbito
imemorial se abre para aleacutem da mais antiga memoacuteria A casa como o fogo como a
aacutegua nos permitiraacute evocar na sequecircncia de nossa obra luzes fugidias de devaneio que
iluminam a siacutentese do imemorial com a lembranccedila Nessa regiatildeo longiacutenqua memoacuteria e
imaginaccedilatildeo natildeo se deixam dissociar Ambas trabalham para seu aprofundamento muacutetuo
Ambas constituem na ordem dos valores uma uniatildeo da lembranccedila com a imagem
(BACHELARD 2012 p25)
A relaccedilatildeo entre lembranccedila e imagem em Bachelard encontra-se bem representada atraveacutes
da ideia da casa e do habitar onde esses dois fenocircmenos se fundem Ele menciona a ideia de que
ldquo[] o calendaacuterio da nossa vida soacute pode ser estabelecido em seu processo produtor de imagensrdquo
(BACHELARD 2012 p28) Este calendaacuterio parece ser para o autor as lembranccedilas recordadas
por meio da imagem das cenas vividas e sentidas Bachelard refere que ldquo[] a imagem
estabelece-se numa cooperaccedilatildeo entre o real e o irreal pela participaccedilatildeo da funccedilatildeo do real e da
funccedilatildeo do irrealrdquo (BACHELARD 2012 p73) tecendo uma ligaccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo memoacuteria e
percepccedilatildeo Cabe ressaltar nesse ponto o aspecto de esta uacuteltima ocorrer atraveacutes dos cinco
sentidos veiacuteculo de traduccedilatildeo do mundo externo para o interno Retorna-se ao jaacute apresentado
sobre a relevacircncia do corpo para a memoacuteria Ricoeur menciona a esse respeito
Eacute o elo entre memoacuteria corporal e memoacuteria dos lugares que legitima a tiacutetulo primordial a
dessimplicaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo de sua forma objetivada O corpo constitui desse
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ponto de vista o lugar primordial o aqui em relaccedilatildeo ao qual todos os outros lugares satildeo
laacute (RICOEUR 2014 p59)
Compreender o papel da memoacuteria do corpo conduz agrave identificaccedilatildeo desta dentro da
consciecircncia de si pois diz respeito aos registros deixados pelas vivecircncias com potencial de
serem encenados novamente pelo indiviacuteduo O ato de cozinhar seria um exemplo de como a
memoacuteria corporal faz com que se pratique o ato culinaacuterio como um conhecimento do corpo
muitas vezes executado de forma habitual Ricoeur aponta que ldquo[] a memoacuteria corporal pode ser
lsquoagidarsquo como todas as outras modalidades de haacutebito como a de dirigir um carro que estaacute em meu
poder Ela varia segundo todas as variantes do sentimento de familiaridade ou de estranhezardquo
(RICOEUR 2014 p57) O autor acrescenta
Assim a memoacuteria corporal eacute povoada de lembranccedilas afetadas por diferentes graus de
distanciamento temporal a proacutepria extensatildeo do lapso de tempo decorrido pode ser
percebida sentida na forma de saudade nostalgia [] O momento da recordaccedilatildeo eacute
entatildeo o do reconhecimento (RICOEUR 2014 p57)
Partindo dessa compreensatildeo seria possiacutevel pensar em corpo casa e lugar como espaccedilos
onde a recordaccedilatildeo nasce do mais especiacutefico o corpo ao mais inespeciacutefico o lugar Em todos
esses espaccedilos haacute accedilotildees e vivecircncias que podem constituir lembranccedilas Conforme Ricoeur
A transiccedilatildeo da memoacuteria corporal para a memoacuteria dos lugares eacute assegurada por atos tatildeo
importantes como orientar-se deslocar-se e acima de tudo habitar Eacute na superfiacutecie
habitaacutevel da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado lugares memoraacuteveis
Assim as lsquocoisasrsquo lembradas satildeo intrinsecamente associadas a lugares E natildeo eacute por acaso
que dizemos sobre uma coisa que aconteceu que ela teve lugar Eacute de fato nesse niacutevel
primordial que se constitui o fenocircmeno dos lsquolugares de memoacuteriarsquo (RICOEUR 2014
p57-58)
Essa ideia pode ser corroborada com a perspectiva de Bachelard sobre o habitar
Eacute preciso dizer como habitamos o nosso espaccedilo vital de acordo com todas as dialeacuteticas
da vida como nos enraizamos dia a dia num lsquocanto do mundorsquo
Porque a casa eacute nosso canto do mundo Ela eacute como se diz amiuacutede o nosso primeiro
universo Eacute um verdadeiro cosmos (BACHELARD 2012 p24)
A respeito da relevacircncia da casa para a formaccedilatildeo e o armazenamento das lembranccedilas
Bachelard apresenta contribuiccedilotildees que reforccedilam a visatildeo de Ricoeur sobre o papel dos lugares
para a memoacuteria
Logicamente eacute graccedilas agrave casa que um grande nuacutemero de nossas lembranccedilas estatildeo
guardadas e quando a casa se complica um pouco quando tem um poratildeo e um soacutetatildeo
cantos e corredores nossas lembranccedilas tecircm refuacutegios cada vez mais bem caracterizados
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A eles regressamos durante toda a vida em nossos devaneios (BACHELARD 2012
p28)
A ideia da memoacuteria associada ao espaccedilo seja corpo casa ou lugar conduz agrave reflexatildeo de
que essa tem uma existecircncia subjetiva interna que eacute representada pelo aspecto objetivo material
externo isso se daacute atraveacutes de vivecircncias associadas sempre a um primeiro espaccedilo o corpoacutereo e a
um segundo mais amplo que eacute o lugar para onde a lembranccedila remete Mais uma vez as
lembranccedilas tecircm imagens de correspondecircncia eacute como se os lugares dessem carne e osso a elas
confirmam sua existecircncia em um tempo e em um espaccedilo que mesmo passado relaciona-se ao
mundo fiacutesico Quanto mais longiacutenquas no tempo mais proacuteximas se encontram da imaginaccedilatildeo
como jaacute visto entretanto ainda assim tecircm um cenaacuterio onde vivem
Examinada como fenocircmeno a memoacuteria tem propriedades que a identificam Ricoeur
estabeleceu trecircs pares de oposiccedilotildees para a compreensatildeo da fenomenologia da memoacuteria o
primeiro deles eacute a dupla haacutebitomemoacuteria sobre a qual refere
O que faz a unidade desse espectro eacute a comunidade da relaccedilatildeo com o tempo Nos dois
casos extremos pressupotildee-se uma experiecircncia anteriormente adquirida mas num caso o
do haacutebito essa aquisiccedilatildeo estaacute incorporada agrave vivecircncia presente natildeo marcada natildeo
declarada como passado no outro caso faz-se referecircncia agrave anterioridade como tal da
aquisiccedilatildeo antiga Nos dois casos por conseguinte continua sendo verdade que a
memoacuteria lsquoeacute do passadorsquo mas conforme dois modos um natildeo marcado outro sim da
referecircncia ao lugar no tempo da experiecircncia inicial
[] A operaccedilatildeo descritiva consiste entatildeo em classificar as experiecircncias relativas agrave
profundidade temporal desde aquelas em que de algum modo o passado adere ao
presente ateacute aquelas em que o passado eacute reconhecido em sua preteridade passada
(RICOEUR 2014 p43)
A segunda dupla de opostos estabelecida por Ricoeur eacute composta pelo par
evocaccedilatildeobusca representado pelos dois trechos abaixo No primeiro a reflexatildeo sobre evocaccedilatildeo
no segundo sobre a busca
1) Entendamos por evocaccedilatildeo o aparecimento atual de uma lembranccedila Eacute a esta que
Aristoacuteteles destinava o termo mneme designando por anamnesis o que chamaremos
mais adiante de busca ou recordaccedilatildeo Ele caracterizava a mneme como pathos como
afecccedilatildeo ocorre que nos lembramos disto ou daquilo nesta ou naquela ocasiatildeo entatildeo
temos uma lembranccedila Portanto eacute em oposiccedilatildeo agrave busca que a evocaccedilatildeo eacute uma
afecccedilatildeo Enquanto tal em outras palavras desconsiderando sua posiccedilatildeo polar a
evocaccedilatildeo traz a carga do enigma que movimentou as investigaccedilotildees de Platatildeo e de
Aristoacuteteles ou seja a presenccedila agora do ausente anteriormente percebido
experimentado aprendido (RICOEUR 2014 p45)
2) Voltemo-nos agora para o outro poacutelo do par evocaccedilatildeobusca Eacute ele que a
denominaccedilatildeo grega da anamnesis designava Platatildeo a mitificara ligando-a a um saber
preacute-natal do qual estariacuteamos afastados por um esquecimento ligado agrave inauguraccedilatildeo da
vida da alma num corpo esquecimento de certo modo natal que faria da busca um
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reaprender do esquecimento Aristoacuteteles [] naturalizou de certo modo a anamnesis
comparando-a agravequilo que na experiecircncia cotidiana chamamos de recordaccedilatildeo [] o
ana de anamnesis significa volta retomada recobramento do que anteriormente foi
visto experimentado ou aprendido portanto de alguma forma significa repeticcedilatildeo
Assim o esquecimento eacute designado obliquamente como aquilo contra o que eacute
dirigido o esforccedilo da recordaccedilatildeo (RICOEUR 2014 p46)
O que Ricoeur propotildee assim com o par evocaccedilatildeobusca eacute a diferenciaccedilatildeo entre a
lembranccedila e a recordaccedilatildeo sendo a primeira segundo ele representativa do surgimento
espontacircneo de um registro gravado na memoacuteria enquanto a segunda seria resultado de uma
procura ativa voluntaacuteria Referindo as ideias de Bergson sobre lsquorecordaccedilatildeo instantacircnearsquo e
lsquorecordaccedilatildeo laboriosarsquo aponta a distinccedilatildeo ldquo[] podendo a recordaccedilatildeo instantacircnea ser considerada
como o grau zero da busca e a recordaccedilatildeo laboriosa e a recordaccedilatildeo laboriosa como sua forma
expressardquo (RICOEUR 2014 p46) Assim a lembranccedila viria de uma evocaccedilatildeo proacutexima ao que
Ricoeur chama de lsquoautomatismorsquo e lsquorecordaccedilatildeo mecacircnicarsquo diferente da recordaccedilatildeo que viria lsquoda
reflexatildeo da reconstituiccedilatildeo inteligentersquo estando ambas ldquo[] intimamente mescladas na
experiecircncia comumrdquo (RICOEUR 2014 p46) Por fim com relaccedilatildeo a esse par Ricoeur refere
Eacute de fato o esforccedilo de recordaccedilatildeo que oferece a melhor ocasiatildeo de fazer lsquomemoacuteria do
esquecimentorsquo para falar com antecipaccedilatildeo como Santo Agostinho A busca da
lembranccedila comprova uma das finalidades principais do ato de memoacuteria a saber lutar
contra o esquecimento arrancar alguns fragmentos de lembranccedila agrave lsquorapacidadersquo do
tempo (Santo Agostinho dixit) ao lsquosepultamentorsquo no esquecimento Natildeo eacute somente o
caraacuteter penoso do esforccedilo de memoacuteria que daacute agrave relaccedilatildeo sua coloraccedilatildeo inquieta mas o
temor de ter esquecido de esquecer de novo de esquecer amanhatilde de cumprir esta ou
aquela tarefa porque amanhatilde seraacute preciso natildeo esquecer [] de se lembrar (RICOEUR
2014 p48)
A terceira dupla de opostos proposta por Ricoeur em sua fenomenologia da memoacuteria eacute
constituiacuteda pela polaridade reflexividademundanidade A respeito do elemento reflexividade
Ricoeur esclarece
Natildeo nos lembramos somente de noacutes vendo experimentando aprendendo mas das
situaccedilotildees do mundo nas quais vimos experimentamos aprendemos Tais situaccedilotildees
implicam o proacuteprio corpo e o corpo dos outros o espaccedilo onde se viveu enfim o
horizonte do mundo e dos mundos sob o qual alguma coisa aconteceu Entre
reflexividade e mundanidade haacute mesmo uma polaridade na medida em que a
reflexividade eacute um rastro irrecusaacutevel da memoacuteria em sua fase declarativa algueacutem diz
lsquoem seu coraccedilatildeorsquo que viu experimentou aprendeu anteriormente sob esse aspecto nada
deve ser negado sobre o pertencimento da memoacuteria agrave esfera de interioridade
(RICOEUR 2014 p53-54)
A mundanidade por sua vez constitui um elemento significativo no estudo deste
capiacutetulo uma vez que contempla a existecircncia dos rituais atraveacutes da abordagem do fenocircmeno da
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comemoraccedilatildeo Ricoeur o associa agrave ldquo[] gestualidade corporal e agrave espacialidade dos rituais que
acompanham os ritmos temporais da celebraccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p60) A associaccedilatildeo do ato
de comemoraccedilatildeo com os rituais eacute explicada por ele
Natildeo haacute efetuaccedilatildeo ritual sem a evocaccedilatildeo de um mito que orienta a lembranccedila para o que eacute
digno de ser comemorado As comemoraccedilotildees satildeo assim espeacutecies de evocaccedilotildees no
sentido de reatualizaccedilatildeo eventos fundadores apoiados pelo lsquochamadorsquo a lembrar-se que
soleniza a cerimocircnia- comemorar observa Casey eacute solenizar tomando seriamente o
passado e celebrando-o em cerimocircnias apropriadas (RICOEUR 2014 p60)
A partir da reflexatildeo de Ricoeur sobre o par reflexividademundanidade e neste uacuteltimo
elemento a presenccedila do ritual cabe salientar o estudioso Mircea Eliade Este em sua obra Mito e
Realidade apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o mito
O mito conta uma histoacuteria sagrada ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial o tempo fabuloso do lsquoprinciacutepiorsquo Em outros termos o mito narra como
graccedilas agraves faccedilanhas dos Entes Sobrenaturais uma realidade passou a existir seja uma
realidade total o Cosmo ou apenas um fragmento uma ilha uma espeacutecie vegetal um
comportamento humano uma instituiccedilatildeo Eacute sempre portanto a narrativa de uma
lsquocriaccedilatildeorsquo ele relata de que modo algo foi produzido e comeccedilou a ser O mito fala apenas
do que realmente ocorreu do que se manifestou plenamente (ELIADE 2011 p11)
A relevacircncia dessa consideraccedilatildeo reside em corroborar que ldquo[] pelo fato de relatar as
gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestaccedilatildeo dos seus poderes sagrados o mito se torna o
modelo exemplar de todas as atividades humanas significativasrdquo (ELIADE 2011 p12) A
comemoraccedilatildeo enseja o rito que reencena o mito por isso eacute mencionada na explanaccedilatildeo de Ricoeur
quando se refere aos rituais Mircea Eliade esclarece ldquo[] a principal funccedilatildeo do mito consiste em
revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas tanto a
alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE
2011 p12) Compreende-se assim a comemoraccedilatildeo como a reuniatildeo de grupo ou de um povo
para celebrar a memoacuteria conjunta de seus membros em torno de uma finalidade o rito cuja
origem estaacute no evento original o mito A ideia impliacutecita neste caso eacute a de celebrar em conjunto
a memoacuteria de algo ou seja co-memorar A fim de reforccedilar essa reflexatildeo apontamos outra
explanaccedilatildeo de Eliade
Para o homem das sociedades arcaicas ao contraacuterio o que aconteceu ab origine pode ser
repetido atraveacutes do poder dos ritos Para ele portanto o essencial eacute conhecer os mitos
Essencial natildeo somente porque os mitos lhe oferecem uma explicaccedilatildeo do Mundo e de seu
proacuteprio modo de existir no Mundo mas sobretudo porque ao rememorar os mitos e
reatualiza-los ele eacute capaz de repetir o que os Deuses os Heroacuteis e os Ancestrais fizeram
ab origine Conhecer os mitos eacute aprender o segredo da origem das coisas Em outros
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termos aprende-se natildeo somente como as coisas vieram agrave existecircncia mas tambeacutem onde
encontra-las e como fazer com que reapareccedilam quando desaparecem (ELIADE 2011
p18)
No contexto do presente capiacutetulo interessa ressaltar a compreensatildeo do ritual como
celebraccedilatildeo de uma memoacuteria ancestral por parte de um grupo A ancestralidade dessa memoacuteria
tem em sua raiz o mito que lhe deu origem Tal entendimento tem associaccedilatildeo com o cozinhar e
com o partilhar o alimento com a reuniatildeo da famiacutelia em torno da comida e com a repeticcedilatildeo das
praacuteticas culinaacuterias que mesmo evoluindo ao longo do tempo remontam o primordial tornar cru
em cozido Outro elemento ligado agrave realizaccedilatildeo de rituais associados agrave cozinha estaacute na recitaccedilatildeo
do modo de fazer um prato quando transmitido atraveacutes de uma receita escrita O caminho que
essa percorre entre as geraccedilotildees de uma famiacutelia eacute emblemaacutetico de sua forccedila ritualiacutestica como se
carregasse de forma transgeracional a memoacuteria desse grupo atraveacutes do como-se-faz de uma
determinada praacutetica
Antes da existecircncia da receita no caderno o conhecimento empiacuterico dos antepassados
sobre o fazer culinaacuterio era ensinado oralmente e atraveacutes do proacuteprio fazer quando recitaccedilotildees eram
feitas para que o prato saiacutesse a contento essas eram assim a representaccedilatildeo do ritual naquele
grupo familiar Nesse sentido retomamos Eliade em sua explicaccedilatildeo sobre a recitaccedilatildeo do mito
Em Timor por exemplo quando germina um arrozal dirige-se ao campo algueacutem que
conhece as tradiccedilotildees miacuteticas referentes ao arroz [] Recitando o mito de origem
obriga-se o arroz a crescer tatildeo belo vigoroso e abundante como era quando apareceu
pela primeira vez Natildeo eacute com o fim de lsquoinstruiacute-lorsquo ou ensinar-lhe a maneira como deve
comportar-se que o oficiante lembra ao arroz o modo como foi criado Ele o forccedila
magicamente a retornar agrave origem isto eacute a reiterar sua criaccedilatildeo exemplar (ELIADE
2011 p19)
Esses conhecimentos eram transmitidos junto com a receita ou seja eram parte da
memoacuteria daquele prato em seu papel na tradiccedilatildeo familiar Vale lembrar que a etimologia de
receita estaacute no latim recepta alusivo a receber expressa entatildeo aquilo que se recebe em termos
de ensinamento sobre o fazer de uma comida especiacutefica Haacute diversas expressotildees no folclore da
cozinha que remontam a transmissatildeo do saber culinaacuterio em uma cultura
Haacute diferenccedila entre a memoacuteria individual essa que nos identifica como indiviacuteduos e a
memoacuteria coletiva Como exemplo da uacuteltima cito esse lsquosaber culinaacuterio em uma culturarsquo que
remete agrave compreensatildeo sobre a memoacuteria coletiva no contexto deste capiacutetulo Esta assim como a
individual tem em seu eixo a noccedilatildeo de identidade no caso da memoacuteria de um indiviacuteduo como jaacute
visto refere-se agrave consciecircncia de si mesmo como base daquilo de que ele eacute capaz de se lembrar
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para que as lembranccedilas sejam suas no caso da memoacuteria coletiva este eixo estaacute na identidade do
grupo que a conteacutem pois a memoacuteria e o grupo alimentam-se reciprocamente o grupo se manteacutem
vivo pelas memoacuterias enquanto essas permanecem presentes pela unidade do grupo
A respeito dessa inter-relaccedilatildeo a pesquisadora e professora alematilde Aleida Assmann no
livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo-formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural menciona as ideias
de Maurice Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva referindo que ldquo[] a memoacuteria coletiva assegura
a singularidade e a continuidade de um grupordquo (ASSMANN 2011 p144) e esclarece
Seu interesse voltou-se apenas agrave pergunta sobre o que manteacutem as pessoas unidas em
grupos Deparou assim com o significado agregador das lembranccedilas em comum como
importante elemento de coesatildeo Derivou daiacute a noccedilatildeo da existecircncia de uma lsquomemoacuteria de
gruporsquo Mas as lembranccedilas natildeo se estabilizam somente no grupo O grupo torna estaacuteveis
as lembranccedilas A investigaccedilatildeo de Halbwachs em torno dessa lsquomemoacuteria coletivarsquo resultou
no seguinte a estabilidade da memoacuteria coletiva estaacute vinculada de maneira direta agrave
composiccedilatildeo e subsistecircncia do grupo Se o grupo se dissolve os indiviacuteduos perdem em
sua memoacuteria a parte de lembranccedilas que os fazia assegurarem-se e identificarem-se como
grupo (ASSMANN 2011 p144)
A referecircncia agrave memoacuteria ligada agrave manutenccedilatildeo de um grupo remete novamente agrave ideia no
acircmbito das vivecircncias culinaacuterias das receitas de cozinha transmitidas entre as geraccedilotildees de uma
mesma famiacutelia O elemento que sustenta a presenccedila dessa receita no grupo eacute a memoacuteria que este
tem a respeito do lsquocomo-se-fazrsquo de uma determinada comida Enquanto houver membros dessa
famiacutelia que se interessem em manter a tradiccedilatildeo daquele determinado sabor a memoacuteria seraacute
mantida ao mesmo tempo enquanto houver essa memoacuteria a integraccedilatildeo do grupo permaneceraacute
Segundo Aleida Assmann
Os estudos do historiador francecircs Pierre Nora demonstraram que por traacutes da memoacuteria
coletiva natildeo haacute alma coletiva nem espiacuterito coletivo algum mas tatildeo somente a sociedade
com seus signos e siacutembolos Por meio dos siacutembolos em comum o indiviacuteduo toma parte
de uma memoacuteria e de uma identidade tidas em comum Nora cumpriu na teoria da
memoacuteria o passo que vai do grupo vinculado na coexistecircncia espaccedilo-temporal tema
estudado por Halbwachs agrave comunidade abstrata que se define por meio dos siacutembolos
que abrangem e agregam em niacutevel espacial e temporal Os portadores dessa memoacuteria
coletiva natildeo precisam conhecer-se para apesar disso reinvindicar para si uma identidade
comum (ASSMANN 2011 p145)
Assim como referido sobre o papel de uma receita de famiacutelia como elemento de coesatildeo
entre os membros da mesma atraveacutes das geraccedilotildees situaccedilatildeo semelhante pode ocorrer em relaccedilatildeo
a um determinado ingrediente ou preferecircncia alimentar A transmissatildeo de um saber culinaacuterio e
dos gostos de uma famiacutelia tambeacutem satildeo aspectos que se perpetuam no grupo em funccedilatildeo da
memoacuteria que agrega seus integrantes
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A memoacuteria individual entatildeo manteacutem a identidade por dar ao indiviacuteduo sua caracteriacutestica
singular atraveacutes do tempo nela estatildeo suas impressotildees lembranccedilas e registros que compotildeem a
noccedilatildeo de permanecircncia de quem ele eacute ou seja reforccedilam nele a consciecircncia do eu na duraccedilatildeo de
ciclos que se perpetuam Ele sabe quem eacute em grande parte pelas lembranccedilas que tem de si
Circunstacircncia anaacuteloga ocorre com a memoacuteria coletiva em que o grupo se manteacutem coeso pela
consciecircncia de ser um grupo com lembranccedilas em comum o papel dessas eacute exatamente o de
manter a unidade e a permanecircncia da identidade do conjunto
A memoacuteria individual e a coletiva estatildeo portanto implicadas na vivecircncia culinaacuteria
relaccedilotildees a serem exploradas na divisatildeo que segue
13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO
A relaccedilatildeo entre cozinha e memoacuteria existe devido agrave linguagem Avanccedilando nessa
perspectiva Mariano Garciacutea e Mariana Dimoacutepulos compiladores da obra Escritos sobre la mesa-
Literatura y comida afirmam que ldquo[] a relaccedilatildeo entre linguagem e comida comeccedila desde o
momento em que graccedilas agrave escritura se conservam notiacutecias de como se comia na Antiguidaderdquo
(GARCIacuteA DIMOacutePULOS 2014 p9) Toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo assim eacute conhecida em
virtude do que se registrou ao longo das eacutepocas sob os mais diversos veiacuteculos Esse aspecto eacute
relevante tanto do ponto de vista de Histoacuteria da Humanidade quanto daquele das histoacuterias
familiares atraveacutes de escritos transmitidos de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Em ambos os exemplos os
escritos culinaacuterios satildeo representativos da memoacuteria coletiva
Ainda no que concerne a essa memoacuteria salientamos que ela tem tambeacutem outras
expressotildees presentes no acircmbito identitaacuterio de uma cultura De acordo com Daniela Bunn em sua
obra O alimento na literatura uma questatildeo cultural ldquo[] satildeo assim criados em torno da mesa
modos maneiras e ingredientes que estabelecem uma identidade cultural destinada a representar
um grupo e sua identidaderdquo (BUNN 2016 p28) Tais lsquomodos maneiras e ingredientesrsquo satildeo
elementos que constituem parte da bagagem que pertence a um grupo e agraves geraccedilotildees seguintes
atraveacutes da memoacuteria coletiva Podemos citar como exemplos os ensinamentos culinaacuterios
aprendidos atraveacutes de gestos e de relatos orais e as preferecircncias alimentares de uma famiacutelia ou de
um povo
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Visitando cadernos de receitas antigos que pertenceram a avoacutes matildees e tias percebemos
uma caracteriacutestica em comum a todos eles o elenco de ingredientes com suas medidas e a breve
descriccedilatildeo do lsquocomo-se-fazrsquo apenas para guiar a praacutetica Parece-nos inclusive que eram
anotaccedilotildees que elas faziam para si mesmas para que natildeo esquecessem de um ou outro detalhe e
natildeo registros para serem transmitidos na famiacutelia Ensinavam sim mas in loco na hora em que
estivessem fazendo Mostravam caracteriacutesticas no aspecto do prato sendo feito apontavam para
os ruiacutedos da cebola fritando faziam sentir a textura de uma massa de patildeo o cheiro de um doce
exalando pela cozinha denunciavam a pitada de sal que ainda faltava no arroz soacute de provarem
com a ponta da colher Como sabiam Porque lembravam pelo que um dia aprenderam e mais do
que isso lembravam pelo haacutebito pelo praticar e de forma mais vivencial pelo sentir atraveacutes dos
cinco sentidos
Em Pequeno alfarraacutebio de acepipes e doccediluras haacute um capiacutetulo dedicado agrave cozinha das
avoacutes intitulado lsquoNossas avoacutesrsquo cujo propoacutesito eacute o de refletir de modo especiacutefico sobre a cozinha
que atravessa a memoacuteria e permanece como registro vivo pela referecircncia ao papel que estas
desempenham na memoacuteria de muitas pessoas Os pratos e doces feitos por elas as avoacutes de tantas
geraccedilotildees tornam-se parte das lembranccedilas que deixam na famiacutelia Aleacutem disso as receitas das avoacutes
satildeo emblemaacuteticas da memoacuteria que se manteacutem viva atraveacutes de um grupo que a alimenta a
memoacuteria coletiva conforme referida por Aleida Assmann ao mencionar as ideias de Maurice
Halbwachs
Um dos aspectos mais relevantes dessa lsquocozinha das avoacutesrsquo eacute o modo como tinham no
corpo o conhecimento da praacutetica culinaacuteria No texto lsquoA memoacuteria nas matildeosrsquo eacute referido esse
aspecto
No caso da Voacute Leacuteia e de tantas avoacutes da eacutepoca acho que tinham a memoacuteria nas matildeos
com tudo o que aprendiam e praticavam vida afora No entanto a sabedoria vai aleacutem
Acredito que sentissem vivamente nas etapas os cheiros gostos sons do alimento
aspecto textura pulsaccedilatildeo As matildeos preparavam mas todo corpo participava do feito
culinaacuterio Prestavam atenccedilatildeo estavam de fato presentes na tarefa E assim a memoacuteria era
lsquocarimbadarsquo nas matildeos nos cinco sentidos na emoccedilatildeo de um sabor que alegrava a
cozinha (CARDOSO 2012 p61)
O elemento determinante da memoacuteria das avoacutes cuja vivecircncia culinaacuteria era cotidiana e de
valor reconhecido entre os familiares eacute a praacutetica Sabiam fazer e muitas vezes de modo
intuitivo adaptavam e ateacute criavam receitas por esse conhecimento A lsquomemoacuteria nas matildeosrsquo
consistia em identificar pelo tato que a massa do patildeo estava no ponto quando a pele assim
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determinava E reconheciam isso por um dia ter aprendido mas principalmente porque apoacutes
tantas repeticcedilotildees do lsquocomo-se-fazrsquo foi a pele que passou a identificar este ponto ainda antes do
conhecer cognitivo Tal reflexatildeo conduz ao que refere Ricoeur sobre o par haacutebitomemoacuteria
quando o primeiro elemento do par alude agraves circunstacircncias em que o passado adere ao presente
Um saber adquirido eacute mantido em praacutetica o que torna sua lembranccedila como um fator que integra a
atualidade do fazer e natildeo apenas o passado
Esta memoacuteria das avoacutes que mantinham vivo um modo de conhecer o ato culinaacuterio como
parte de seu saber vivencial ilustra com nitidez a ideia da memoacuteria coletiva jaacute que seu saber era
compartilhado em seu tempo natildeo pela receita escrita mas pela forma como esse era sentido e
atuado na cozinha Agrave medida que as geraccedilotildees que detinham esses conhecimentos antigos foram
terminando suas memoacuterias de forno-e-fogatildeo construiacutedas pela accedilatildeo e pelos sentidos agrave beira do
fogo ou do balcatildeo foram deixando de existir O que ficou para as geraccedilotildees seguintes foi o
conjunto de receitas escritas mas essas natildeo substituem a riqueza de um fazer empiacuterico intuitivo
recordado no corpo
O escritor e pesquisador Michael Pollan faz uma referecircncia interessante nesse sentido ao
advertir que natildeo se deve comer nada que a avoacute natildeo chamaria de comida Essa expressatildeo proposta
no fulcro de uma culinaacuteria dirigida para fora dos lares e feita de alimentos muitas vezes pouco ou
nada saudaacuteveis chama a atenccedilatildeo para o reconhecimento das avoacutes como detentoras de um saber
uacutenico aquele da lsquocomida de verdadersquo
Avoacutes matildees e tias satildeo personagens de grande relevacircncia no aprendizado de cozinha das
geraccedilotildees seguintes Eacute possiacutevel que isso se deva a seu papel ancestral de transmissatildeo de um saber
especiacutefico A memoacuteria dos antepassados constitui o alicerce a fundamentaccedilatildeo da famiacutelia a partir
de experiecircncias e de saberes que um dia foram vivenciados para serem entatildeo narrados ao longo
do tempo agraves proacuteximas geraccedilotildees O socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da
culinaacuteria brasileira tece uma relevante consideraccedilatildeo a esse respeito ldquoOs saberes culinaacuterios
evoluiacuteram como uma heranccedila que se transmite matrilinearmente ndash e os cadernos de receitas das
avoacutes satildeo uma sobrevivecircncia persistente dessa diretrizrdquo (DOacuteRIA 2014 p206)
Doacuteria aborda outro elemento significativo na contribuiccedilatildeo com o papel da memoacuteria na
cozinha a corporeidade Esse fator representa o proacuteprio ato culinaacuterio que eacute exercido pelo corpo
Eacute nele que reside a memoacuteria dos movimentos e dos gestos implicados no preparo do alimento
como bater claras sovar a massa do patildeo picar a cebola etc Neste sentido o autor refere
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O corpo eacute tradicionalmente o principal instrumento do fazer culinaacuterio As ferramentas
da faca ao mais sofisticado equipamento utilizado na culinaacuteria molecular satildeo em geral
expedientes que visam economizar gestos ou conferir-lhes maior precisatildeo mas o
empenho fiacutesico com destreza eacute o primeiro responsaacutevel pelos resultados alcanccedilados []
(DOacuteRIA 2014 p216)
Essa reflexatildeo significa na compreensatildeo da memoacuteria ligada agrave cozinha que eacute o corpo o
principal responsaacutevel pela praacutetica culinaacuteria incluindo qualidades como a destreza mencionada
por Doacuteria A faca poderaacute cortar bem estar afiada mas se o corpo natildeo souber usaacute-la isso de nada
adiantaraacute Tal ponto nos remete agrave ideia da memoacuteria do corpo referida por Ricoeur no que tange
a uma espeacutecie de memoacuteria que pode ser agida na praacutetica habitual do indiviacuteduo fazendo parte de
sua identidade ter domiacutenio de um dado ato culinaacuterio daacute a algueacutem a consciecircncia de que sabe
fazer de que se lembra de que aquele saber eacute parte de si
Assim o ato culinaacuterio aprendido tanto por livros de receitas como pela transmissatildeo oral
por familiares representa a memoacuteria coletiva quando esse ato eacute praticado rotineiramente pelo
sujeito que aprendeu isto contribui para a consciecircncia de si representando o papel da memoacuteria
individual Cabe ressaltar tambeacutem a presenccedila da memoacuteria ancestral que acompanha as vivecircncias
de cozinha A esse propoacutesito Doacuteria refere que ldquoAssim lsquofazer para o outrorsquo ndash essa doaccedilatildeo atraveacutes
de um intermediaacuterio ao mesmo tempo material e simboacutelico como eacute a comida ndash permanece a
marca feminina do cozinhar desde os primeiros tempos da humanidaderdquo (DOacuteRIA 2014 p221)
Tal constataccedilatildeo reforccedila o papel ancestral das avoacutes matildees e tias na transmissatildeo do saber culinaacuterio
A postagem do blog Serendipity in Cucina traz no relato memorialiacutestico sobre a vivecircncia
de sua autora reflexatildeo sobre o componente ritualiacutestico do cozinhar
Haacute alguns anos decidi comeccedilar a fazer a chimia de uvas lsquoda Voacute Leacuteiarsquo a partir das
lembranccedilas que tenho do fazer de minha avoacute materna a quem assisti preparando o doce
inuacutemeras vezes Os dados sobre as proporccedilotildees tais como igual peso das cascas de uva e
do accediluacutecar e aacutegua que cubra soube por uma prima mas meu objetivo principal era o de
seguir a memoacuteria mais de vinte anos depois da uacuteltima vez que a vi fazendo o doce
Entatildeo sempre no veratildeo na eacutepoca dessas uvas repito a experiecircncia Fico em frente agrave
caccedilarola e a coloco em fogo baixo depois da fervura mexendo com a colher de pau em
giros lentos e precisos Percebo a mudanccedila atraveacutes da resistecircncia que o composto faz agrave
colher e assim progressivamente o fazer demanda mais forccedila do braccedilo direito Presto
atenccedilatildeo ao aspecto o roxo cintilante do iniacutecio torna-se mais opaco e fechado o brilho
das cascas da uva Isabel com que eacute feita a chimia diminui agrave medida que essa se
aproxima do resultado final O aroma toma conta da casa toda de forma insidiosa
Identifico que estaacute pronta pela consistecircncia reconheccedilo este momento porque a imagem
de minha avoacute em seus giros da colher de pau eacute parte de minha memoacuteria bem como a
lembranccedila das etapas da receita Quando repito seu movimento com semelhante
vagarosidade e empenho faccedilo-o pela lembranccedila do que assisti entretanto eacute provaacutevel
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que a repeticcedilatildeo se deva tambeacutem ao ritual em que consiste o cozinhar O proacuteprio fato de
estar agrave frente do fogo preparando o alimento eacute por si um ritual (CARDOSO 2015)
Assim o papel da ancestralidade manifesta-se no modo como se vivencia o contato com a
comida tanto no cozinhar quanto no comer e no partilhar a refeiccedilatildeo pessoas afins ou seja esses
atos configuram-se como rituais Retomamos as contribuiccedilotildees de Mircea Eliade para corroborar
essa compreensatildeo especialmente sua referecircncia de que
Apesar das modificaccedilotildees sofridas no decorrer dos tempos os mitos dos lsquoprimitivosrsquo
ainda refletem um estado primordial Trata-se ademais de sociedades onde os mitos
ainda estatildeo vivos onde fundamentam e justificam todo o comportamento e toda a
atividade do homem (ELIADE 2011 p10)
O fazer a comida e aquele do sentar agrave mesa para compartilhaacute-la satildeo desta forma rituais
que praticamos como seres humanos reencenando mitos A expressatildeo dos rituais estaacute em uma
memoacuteria coletiva ancestral que evocamos nessas praacuteticas
Em suma os mitos descrevem as diversas e algumas vezes dramaacuteticas irrupccedilotildees do
sagrado (ou do lsquosobrenaturalrsquo) no Mundo Eacute essa irrupccedilatildeo do sagrado que realmente
fundamenta o Mundo e o converte no que eacute hoje E mais eacute em razatildeo das intervenccedilotildees
dos Entes Sobrenaturais que o homem eacute o que eacute hoje um ser mortal sexuado e cultural
(ELIADE 2011 p11)
No que concerne agrave praacutetica da cozinha tambeacutem o cumprimento de uma receita traz um ato
de recitaccedilatildeo especialmente na parte que se refere ao lsquomodo de fazerrsquo o que conduz agrave reflexatildeo de
que tambeacutem esta eacute parte do ritual que envolve a produccedilatildeo da comida Fala-se em seguir a receita
no sentido de obedececirc-la Ao ler as orientaccedilotildees o que se lecirc eacute a presenccedila de verbos especiacuteficos do
fazer culinaacuterio conjugados no modo imperativo corte refogue asse e assim por diante Este
recitar que muitas vezes eacute falado em voz baixa enquanto se prepara um prato eacute em si um ato
inerente ao fazer culinaacuterio A respeito da recitaccedilatildeo Eliade aponta que
Na maioria dos casos natildeo basta conhecer o mito da origem eacute preciso recitaacute-lo em certo
sentido eacute uma proclamaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo do proacuteprio conhecimento E natildeo eacute soacute
recitando ou celebrando o mito de origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela
atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos O tempo miacutetico
das origens eacute um tempo lsquofortersquo porque foi transfigurado pela presenccedila ativa e criadora
dos Entes Sobrenaturais Ao recitar os mitos reintegra-se agravequele tempo fabuloso e a
pessoa torna-se consequentemente lsquocontemporacircnearsquo de certo modo dos eventos
evocados compartilha da presenccedila dos Deuses ou dos Heroacuteis Numa foacutermula sumaacuteria
poderiacuteamos dizer que ao ldquoviverrdquo os mitos sai-se do tempo profano cronoloacutegico
ingressando num tempo qualitativamente diferente um tempo lsquosagradorsquo ao mesmo
tempo primordial e indefinidamente recuperaacutevel (ELIADE 2011 p21)
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Carlos Alberto Doacuteria faz uma relevante reflexatildeo sobre a receita culinaacuteria contemplando a
perspectiva desde sua origem ateacute o modo como eacute vista atualmente
Considerando as diferenccedilas tecnoloacutegicas as receitas satildeo sempre prescriccedilotildees sobre o
modo de proceder na cozinha assim como as receitas farmacecircuticas satildeo prescriccedilotildees a
respeito de como os farmacecircuticos devem proceder em seus laboratoacuterios Do ponto de
vista geral ao apontar a unidade receita-cozinha e o modo de lsquoaviamentorsquo estamos
considerando que essa unidade estaacute incrustrada nas demais instituiccedilotildees como a religiatildeo
a famiacutelia o Natal etc (DOacuteRIA 2009 p141)
A receita culinaacuteria eacute entatildeo parte do ritual que envolve as vivecircncias alimentares seja
cozinhar ou comer aleacutem disso essa constitui um relevante material como documento para a
memoacuteria de um local e de uma eacutepoca pois traz em seu vocabulaacuterio e nas accedilotildees que determina
elementos de identificaccedilatildeo que permitem caracterizar sua origem e periacuteodo de vigecircncia A receita
porta consigo a memoacuteria coletiva do contexto de que se origina bem como a memoacuteria
individual de quem a escreve em seu caderno de cozinha e a de quem reconhece nos livros de
receitas pratos que jaacute experimentou
Doacuteria aponta a respeito da memoacuteria implicada nesse tipo de material um aspecto
interessante sobre o papel da memoacuteria contida nos livros culinaacuterios O autor fala a respeito de um
renomado chef internacional Paul Bocuse que eacute contraacuterio agrave praacutetica de receitas lsquoagrave riscarsquo tendo
escrito um livro assim Doacuteria aponta que o chef faz uma ressalva em sua obra orientando ao
leitor que natildeo leve seu conteuacutedo demasiadamente a seacuterio e que ouccedila uma lsquoforccedila desconhecidarsquo
como a inspiraccedilatildeo o que ldquo[] garantiraacute melhores resultados praacuteticosrdquo (DOacuteRIA 2009 p144)
Consideramos por fim que Bocuse tambeacutem estaacute a nos dizer que as suas receitas satildeo
apenas e modestamente o seu modo de fazer aquele prato ou seja elas contecircm a
memoacuteria do seu trabalho como estilo e valor testemunhal e- tambeacutem de modo a
determinar- o livro eacute seu meio de propagaccedilatildeo Visto assim o livro de receitas eacute um
registro de memoacuteria do trabalho que possam ter alguma utilidade para os leitores []
(DOacuteRIA 2009 p144)
Aleacutem dessa referecircncia a Bocuse Doacuteria aponta criticamente a funccedilatildeo da receita para os
que a seguem ldquoEntatildeo se pararmos um minuto para pensar veremos que a receita dentro da
cozinha tem o status de um texto sagrado que nos reduz agrave condiccedilatildeo de seus exagetas
independentemente do grau de preparaccedilatildeo que tenhamos nessa singular teologia alimentarrdquo
(DOacuteRIA 2009 p142) Esse respeito ao texto sagrado eacute de certa forma o cumprimento da
memoacuteria coletiva transmitida atraveacutes dos documentos escritos denominados receitas ao longo do
tempo nessa transmissatildeo ocorrem transformaccedilotildees na forma de execuccedilatildeo dos alimentos
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conforme as modificaccedilotildees culturais de cada eacutepoca ou seja cada periacuteodo e lugar tem seu modo de
interpretar e de realizar as receitas culinaacuterias de acordo com os produtos oferecidos e com as
teacutecnicas vigentes Doacuteria menciona
Por isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculos e as modificaccedilotildees que
introduzimos nas receitas satildeo apenas formas do patildeo continuar existindo mediante as
transformaccedilotildees das receitas Por isso quando seguimos agrave risca uma receita de patildeo natildeo
queremos fazer o patildeo mas uma versatildeo do patildeo que uma tradiccedilatildeo qualquer elaborou
(DOacuteRIA 2009 p147)
Tecidas as consideraccedilotildees a respeito do fazer culinaacuterio consolidado pela memoacuteria coletiva
vale refletir sobre o modo como ele eacute vivenciado atraveacutes da memoacuteria individual Ao contar sobre
a chimia de uvas de sua avoacute apontamos que assistir a seu modo de praticaacute-la foi para a autora o
percurso para aprender a fazecirc-la O lsquocomo-se-fazrsquo guarda as lembranccedilas oriundas da praacutetica
vivenciada pelo ofiacutecio dos cinco sentidos e pelo assistir aos gestos do corpo como os giros lentos
da colher de pau feitos pela avoacute E por tantas outras avoacutes matildees e tias
Assim a memoacuteria coletiva de uma receita culinaacuteria a chimia de uvas Isabel na maneira
como era repetida por muitas pessoas de uma eacutepoca tornou-se tambeacutem memoacuteria individual
Passou a ser parte da identidade da autora do blog pois representa um ponto de identificaccedilatildeo com
sua avoacute pela recordaccedilatildeo marcante de assisti-la fazendo esse doce por isso decidiu fazecirc-lo tempos
depois de seu falecimento seguindo as lembranccedilas do seu fazer A memoacuteria a respeito dos doces
produzidos por ela eacute tatildeo significativa que estaacute registrada em uma crocircnica especiacutefica no jaacute citado
Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e Doccediluras lsquoAs deliacutecias nos vidros de cafeacutersquo a qual
reproduzimos abaixo
Na casa de praia da Voacute Leacuteia e do Vocirc Heacutelio havia milhares de encantos espalhados mas
a cozinha era meu favorito A mesa retangular generosa e lsquoconvidadeirarsquo contava um
universo de histoacuterias de faacutebulas e de sabores mas o que dava uma graccedila especial ao
conjunto era o armaacuterio proacuteximo agrave porta para a varanda Em suas estantes na parte
superior enfeites e guloseimas ali moravam os potes de rapadura de leite
constantemente abastecidos pela voacute Na parte inferior duas portas abriam um territoacuterio
uacutenico respirante Ali vidros de cafeacute daqueles grandes com tampas vermelhas
guardavam geleias chimias e compotas que ela fazia durante o veraneio
Deixaacutevamos para depois a ideia de pedir as receitas tiacutenhamos o propoacutesito de ficar ao
lado quando o panelatildeo estava no fogo tomando nota do lsquocomo-se-fazrsquo mas sem muita
obstinaccedilatildeo Afinal de contas a Voacute estava ali e era a uacutenica que sabia o tim-tim por tim-
tim do ponto das cores dos cheiros que seus feitos adquiriam a cada etapa Entatildeo
tiacutenhamos a fantasia de que ela estaria para sempre renovando as deliacutecias nos vidros de
cafeacute com alquimias de aboacutebora de laranja de uva [] nossa imaginaccedilatildeo percorria
lonjuras no tempo acreditando que seu fazer dos doces seria perene Agora refletindo
sobre por que natildeo peguei nenhuma de suas receitas por que natildeo anotava cada detalhe
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ocorre-me que esta era uma forma de garantir que ela permaneceria no ofiacutecio que eu
poderia eternamente aprender com ela a fazer suas reliacutequias
Hoje soacute o moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhas conhece o segredo daquelas
inquilinas (CARDOSO 2012 p62)
No texto lecirc-se lsquoo moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhasrsquo mas esse moacutevel eacute a
proacutepria memoacuteria guardando lembranccedilas representadas como lsquoo segredo daquelas inquilinasrsquo A
memoacuteria individual conteacutem segredos pontos que com o passar do tempo natildeo satildeo contados de
acordo com a realidade vivida mas apenas com aquela lembranccedila que permanece atraveacutes das
imagens e de sentimentos muito do que foi percebido nos escapa deixando as cenas como se as
viacutessemos atraveacutes de um vidro embaccedilado Esses satildeo os lsquosegredosrsquo que as portinhas do moacutevel da
cozinha silenciam
Nesse aspecto retomamos a consideraccedilatildeo de Eugegravene Minkowski sobre a memoacuteria
quando esse autor menciona que ldquo[] a lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a
tonalidade emotiva com que este foi percebidordquo (MINKOWSKI 2004 p143) Entende-se assim
que a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos recordaremos dela
no futuro porque eacute assim que a conhecemos
Esses registros existem na memoacuteria e assim constituem parte da consciecircncia do
indiviacuteduo sobre si mesmo Satildeo lembranccedilas que colaboram com a construccedilatildeo da identidade da
autora do texto Chimia da uva Isabel memoacuterias e receita pois ligam-na agrave identificaccedilatildeo com a
avoacute e seu legado culinaacuterio Tal aspecto corrobora o que apresentamos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica
do presente capiacutetulo
As memoacuterias individuais vinculadas agrave cozinha tecircm outro elemento a ser destacado nos
cadernos de receitas muitas vezes haacute referecircncia no tiacutetulo das mesmas a quem fazia tal prato ou
tal doce como especialidade identificando a receita a seu lsquodonorsquo como exemplo cito a lsquotorta de
palmito da Dona Mimi Mororsquo e a lsquopizza de sardinha da Voacute Leiarsquo Satildeo sabores associados agraves
lembranccedilas que temos das proacuteprias cozinheiras como se o saborear e o lembrar de quem
produzia o alimento fossem recordaccedilotildees acopladas
Os tiacutetulos das receitas fazem-nos evocar essas personagens da histoacuteria pessoal Os nomes
presentes no caderno identificam figuras de relevo na vida de quem o guarda assim esse faz
tambeacutem o papel de um aacutelbum de recordaccedilotildees Destacamos nas paacuteginas do livro Pequeno
alfarraacutebio de acepipes e doccediluras que o lsquobolo de melado da Anildarsquo natildeo eacute uma receita qualquer
de bolo de melado mas aquela da qual a autora tem determinada lembranccedila perpetuada pelo
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colorido afetivo lembra-se do momento em que saboreou a receita pela primeira vez da Anilda
sua autora da cozinha em que o bolo era feito e ateacute mesmo do aroma que deixava na casa apoacutes
sair do forno A receita pode tornar-se entatildeo a narrativa das experiecircncias e das pessoas que
fazem parte delas atraveacutes da memoacuteria que nos permite acessar
Muitos livros de temas culinaacuterios satildeo memorialiacutesticos em acircmbito nacional e
internacional Esse elemento confirma a relaccedilatildeo da cozinha com o sujeito que comete nela seus
atos culinaacuterios mais iacutentimos esta constituiraacute o espaccedilo de memoacuteria de quem teve ali ou em outras
cozinhas de sua vida vivecircncias a serem contadas A outras pessoas ou a si mesmo como faz
Antocircnio ao rememorar sua histoacuteria familiar e pessoal enquanto prepara o arroz para o almoccedilo de
famiacutelia
Na seccedilatildeo seguinte apresentamos a anaacutelise da primeira obra do corpus dessa Dissertaccedilatildeo
de Mestrado O arroz de Palma a fim de propor a relaccedilatildeo entre a cozinha e o fenocircmeno da
memoacuteria a partir dos fragmentos escolhidos
14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA
A obra de Francisco Azevedo O arroz de Palma segue a cronologia da lembranccedila a
narrativa dos acontecimentos de sua histoacuteria pessoal e familiar eacute feita atraveacutes da costura de
tempos costura essa em que o fio que une os tecidos eacute a memoacuteria O protagonista Antonio
narrador-personagem tem oitenta e oito anos e estaacute na cozinha da fazenda de sua infacircncia
preparando um almoccedilo para reunir toda a famiacutelia O prato a ser servido O arroz ofertado por sua
tia Palma aos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana na ocasiatildeo do casamento
Os gratildeos jogados aos noivos na igreja satildeo colhidos da pedra por Palma para a oferta do
presente Esses gratildeos atravessam o oceano de Portugal ao Brasil para onde o casal e Palma vecircm
apoacutes dificuldades financeiras no paiacutes de origem e atravessam tambeacutem as geraccedilotildees O arroz
fertilizaraacute a famiacutelia e suas histoacuterias Eacute para celebrar o aniversaacuterio de 100 anos do casamento dos
pais e do arroz presenteado pela tia que Antonio prepara o almoccedilo com o que ainda haacute do
presente para ser compartilhado com os familiares
A narrativa eacute contada por ele enquanto prepara o prato sob a forma de lembranccedilas do que
viveu e do que ouviu da Tia Palma nas longas conversas que tinham desde seus tempos de
crianccedila O protagonista vai alinhavando essas recordaccedilotildees narrando-as como forma de
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estabelecer uma linha de tempo desde o recebimento do arroz pelos pais ateacute o almoccedilo que
cozinha para a famiacutelia com o mesmo arroz cem anos depois Em alguns pontos da histoacuteria
parece tecer uma interlocuccedilatildeo com o leitor mas o elo entre a memoacuteria e os pensamentos eacute feita
de si para si
Pode-se dividir os trechos escolhidos para a presente anaacutelise em trecircs tempos o que
Antonio narra a partir da atualidade o que ouviu de Tia Palma e o que vivenciou Na primeira
condiccedilatildeo estaacute no presente nas duas outras no passado
Quando evoca as lembranccedilas vive-as com tamanha intensidade que sua narrativa traz
eventos antigos como se fossem atuais e refere-se a si mesmo do seguinte modo ldquoE eu menino
enrugado aqui nesta cozinha ainda viajo presente colorido do indicativordquo (AZEVEDO 2008
p17) O termo lsquomenino enrugadorsquo expressa a ligaccedilatildeo entre os tempos do presente e da memoacuteria
enquanto o lsquocoloridorsquo evoca a forccedila com que as lembranccedilas se manifestam trazendo ao presente
tonalidade marcante
Em toda a narrativa o uso das metaacuteforas culinaacuterias para a representaccedilatildeo de vivecircncias de
percepccedilotildees de sentimentos e de lembranccedilas eacute o elemento principal A cozinha eacute assim a forma
constante de expressatildeo do protagonista aleacutem de ser o espaccedilo fiacutesico onde o romance se
desenvolve pois eacute neste lugar que ele estaacute enquanto tece recordaccedilotildees
No primeiro capiacutetulo do livro Antonio fala durante o preparo do almoccedilo que serviraacute para
a famiacutelia entatildeo na atualidade Lembra-se lsquoTia Palma me ensinou a cozinhar eu era jovemrsquo
ilustrando as reflexotildees feitas na subdivisatildeo anterior sobre a relevacircncia da cozinha das avoacutes e das
tias para a memoacuteria individual pois essas satildeo figuras de referecircncia para a construccedilatildeo da memoacuteria
e por conseguinte da consciecircncia de si Diz Antonio
Eu aqui na fazenda Eu aqui na cozinha quatro e pouco da manhatilde Isabel ainda dorme o
sol ainda demora Eu aqui um velho de 88 anos Para os mais novos o Avocirc Eterno o
que natildeo teve comeccedilo nem teraacute fim o que jaacute veio ao mundo com essa cara enrugada Eu
aqui de avental branco picando o tempero verde Preparo o almoccedilo de famiacutelia Terei
forccedilas 88 dois infinitos verticais Eacute boa idade seraacute uma bela festa Tenho praacutetica Tia
Palma me ensinou a cozinhar eu era jovem (AZEVEDO 2008 p9)
Antonio provoca lsquoAs autoridades querem minhas digitais Elas estatildeo na massa do patildeorsquo o
que conduz a dois aspectos jaacute discutidos o papel da memoacuteria individual na identidade papel que
estaacute impregnado na massa do patildeo ou seja no ato culinaacuterio o outro elemento eacute aquele referido
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por Doacuteria quando menciona lsquoPor isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculosrsquo
expressando a feitura do patildeo como resultado da memoacuteria coletiva e da realizaccedilatildeo de rituais
Eacute na cozinha que eu desembesto e solto os bichos Eacute na cozinha que eu viajo sem
passaporte sem bilhete sem revista em aeroportos As autoridades querem minhas
digitais Elas estatildeo na massa do patildeo Querem minha foto Tenho vaacuterias de frente e de
lado com meus pais e irmatildeos e com os que vieram depois Retratos falados- em voz alta
a famiacutelia toda ao mesmo tempo Destrambelhada famiacutelia Sagrada famiacutelia []
(AZEVEDO 2008 p11)
Ainda nesse capiacutetulo ressaltamos um elemento caracteriacutestico da obra as expressotildees da
cozinha que constituem metaacuteforas agrave composiccedilatildeo das famiacutelias A frase emblemaacutetica empregada
pelo personagem lsquofamiacutelia eacute prato difiacutecil de prepararrsquo apresenta as reflexotildees de Antonio sobre
diferenccedilas e peculiaridades entre familiares Todas as alusotildees agraves divergecircncias entre eles satildeo feitas
tendo como eixo a linguagem usada na culinaacuteria Salientamos um aspecto a aproximaccedilatildeo entre
os termos culinaacuterios e as relaccedilotildees familiares representando cozinha e famiacutelia como estruturas
com pontos de convergecircncia
Preciso me concentrar Eacute essencial Por quecirc Ora que pergunta Famiacutelia eacute prato difiacutecil
de preparar satildeo muitos ingredientes Reunir todos eacute um problema- principalmente no
Natal e Ano-Novo Pouco importa a qualidade da panela fazer uma famiacutelia exige
coragem devoccedilatildeo e paciecircncia Natildeo eacute para qualquer um Os truques os segredos o
imprevisiacutevel Agraves vezes daacute ateacute vontade de desistir Preferimos o desconforto do estocircmago
vazio Preferimos o desconforto do estocircmago vazio Vecircm a preguiccedila a conhecida falta
de imaginaccedilatildeo sobre o que se vai comer e aquele fastio Mas a vida- azeitona verde no
palito- sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite O tempo potildee a mesa
determina o nuacutemero de cadeiras e os lugares Suacutebito feito milagre a famiacutelia estaacute
servida (AZEVEDO 2008 p12)
Durante o preparo do arroz mistura lembranccedilas e devaneios seguindo a comparaccedilatildeo
entre pratos culinaacuterios e famiacutelias
Reuacutena essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida Natildeo haacute pressa Eu
espero Jaacute estatildeo aiacute Todas Oacutetimo Agora ponha o avental pegue a taacutebua a faca mais
afiada e tome alguns cuidados Logo logo vocecirc tambeacutem estaraacute cheirando a alho e a
cebola Natildeo se envergonhe se chorar Famiacutelia eacute prato que emociona E a gente chora
mesmo De alegria de raiva ou de tristeza (AZEVEDO 2008 p12)
Entre ponderaccedilotildees e aconselhamentos Antonio fala de si mesmo ao leitor apresentando
sua visatildeo sobre si como um lsquovelho jaacute meio caducorsquo e lsquoum veterano cozinheirorsquo A alternacircncia
entre recordaccedilotildees do passado ideias do presente e diaacutelogo com o interlocutor eacute um dos elementos
que marca a narrativa
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Enfim receita de famiacutelia natildeo se copia se inventa A gente vai aprendendo aos poucos
improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia A gente cata um registro ali de
algueacutem que sabe e conta e outro aqui que ficou no pedaccedilo de papel Muita coisa se
perde na lembranccedila Principalmente na cabeccedila de um velho jaacute meio caduco como eu O
que este veterano cozinheiro pode dizer eacute que por mais sem graccedila por pior que seja o
paladar famiacutelia eacute prato que vocecirc tem que experimentar e comer Se puder saborear
saboreie Natildeo ligue para etiquetas Passe o patildeo naquele molhinho que ficou na
porcelana na louccedila no alumiacutenio ou no barro Aproveite ao maacuteximo Famiacutelia eacute prato que
quando se acaba nunca mais se repete (AZEVEDO 2008 p14)
Essa mistura de periacuteodos entre passado contado passado vivido e presente eacute marcada
pela referecircncia sobre o ingresso do arroz na histoacuteria da famiacutelia pelas matildeos de Tia Palma Os
tempos misturam-se ora mostrando Antonio em sua cozinha na atualidade ora Joseacute Custoacutedio
Maria Romana e Tia Palma em cenas vividas por eles
Quando Antonio se refere a um evento passado usando um verbo no presente pode-se
compreender que atraveacutes da memoacuteria ingressou em outro tempo de si mesmo ou de sua famiacutelia
A mistura entre lembranccedila e atualidade marca muitos dos relatos pois o limiar entre passado e
presente para o protagonista jaacute eacute impreciso assim como as experiecircncias que viveu e aquelas que
ouviu de Palma
Tia Palma era enfaacutetica ao descrever a cena o arroz que desabou sobre os noivos aacute saiacuteda
da igreja foi torrencial Eram punhados e mais punhados Chuva branca que natildeo parava
Nunca se viu tanta fartura em votos de felicidade (AZEVEDO 2008 p15)
-E tu dizes que Palma eacute que eacute a mal-educada
-Basta assunto encerrado Daacute-se o arroz para algueacutem Palma natildeo precisa saber
-O arroz eacute presente O arroz fica
-Pois estaacute bem Guarda esse maldito presente Com o tempo ele haacute de mofar se encher
de bichos e teraacutes que jogaacute-lo fora
-Ouve bem meu querido Joseacute Custoacutedio este arroz eacute amor e puro amor Natildeo haacute de se
estragar (AZEVEDO 2008 p21)
O protagonista recorda-se das vivecircncias com Tia Palma na cadeira em que essa lhe
contava as histoacuterias sobre o arroz e tantas outras Ouvir Palma era vivido por Antonio como se
assistisse a uma peccedila de teatro
A expressatildeo no rosto natildeo daacute a menor pista A histoacuteria de hoje seraacute triste Que vozes
faraacute Que cenaacuterio me apresentaraacute ao levantar as cortinas A sala de jantar Uma ruela de
Viana do Castelo Seraacute dia SeraacuteTia Palma pigarreia faz pequena pausa comeccedila com
gravidade
Primeiro ato Tarde da noite ela garante O coto de vela colado no tampo da mesa mal
ilumina os rostos Mamatildee e papai apenas alguns meses de casados natildeo tecircm o que
comer Nada nem vegetal nem fruta nem gratildeo nada Em voz baixa respeitosa mamatildee
sugere o arroz A resposta que recebe eacute a fuacuteria o murro na mesa e a gargalhada que
parece pranto
-O arroz de Palma
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Outra sonora gargalhada e laacutegrimas Papai parece fora de si
-O arroz de Palma nunca Castigo maldiccedilatildeo que seja Morro de fome mas aquele arroz
varrido do chatildeo nunca
-O arroz de Palma eacute abenccediloado Arroz plantado na terra caiacutedo do ceacuteu colhido da pedra
(AZEVEDO 2008 p26)
Tia Palma sempre contara a Antonio sobre o papel do arroz para sua histoacuteria familiar
fazendo do sobrinho o herdeiro de suas memoacuterias e do conhecimento a respeito da relevacircncia do
ingrediente para a continuidade da famiacutelia
-A fertilidade de vocecircs estaacute no arroz A benccedilatildeo que haacute onze anos ele recusou
-Eu jurei ao Joseacute que o arroz ficava mas natildeo seria comido Foi o combinado
-Pois eu natildeo jurei nada a ele
Mamatildee acha graccedila meio espantada meio com medo
-Palma Como vais fazer
-Primeiro ponho uma dose cavalar de purgante na comida dele que eacute pra desentupiacute-lo
por traacutes Depois trago-lhe uma comida bem levezinha para que ele se recupereUma
canjinha especial bem magrinha como ele gosta Uma xiacutecara de arroz eacute o quanto basta
-Uma canjinha especial
O trato estaacute feito Os risos e o demorado do abraccedilo selam a cumplicidade (AZEVEDO
2008 p38)
Antonio lembra-se da cena em que quando crianccedila assegurou agrave Tia Palma que gostava
de arroz ingrediente crucial na conduccedilatildeo da narrativa Mostrava assim apreciar as histoacuterias
sobre o arroz contadas por ela e sabia desde entatildeo que esse era um elemento decisivo em sua
famiacutelia
E a cadeira jaacute eacute palco e se estamos assim abraccedilados eacute porque eu tambeacutem estou em cena e
agora a fala eacute minha Eacute a minha estreia Inesperada e tatildeo esperada estreia
-Natildeo fique preocupada Eu gosto de arroz De qualquer jeito grudado ou solto eu gosto
Com toda a verdade possiacutevel encerro a minha parte
-Ateacute puro sem feijatildeo sem nada eu gosto juro (AZEVEDO 2008 p28)
Cabe salientar o papel que esse elemento exerce na histoacuteria De acordo com Maria Eunice
Moreira no ensaio lsquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmarsquo ldquo[] o arroz tem
funccedilatildeo especial na formaccedilatildeo do clatilde como o objeto maacutegico que acompanha a trajetoacuteria da
famiacuteliardquo (MOREIRA 2014 p162) Aleacutem de ser o ingrediente que vem de Portugal e atravessa
as geraccedilotildees eacute presente de matrimocircnio de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana e posteriormente de
Antocircnio e Isabel Eacute o fator que fertiliza o primeiro casal e que reuacutene o segundo no almoccedilo entre
as famiacutelias quando Antonio e Isabel comeccedilam sua aproximaccedilatildeo
Esse almoccedilo comeccedila a partir de uma carta de Antonio ao pai em que anuncia de forma
quase imperceptiacutevel o interesse por Isabel e ao final conta que estaacute levando ingredientes
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especiais na sua viagem agrave fazenda ldquoPS Estou levando boas postas de bacalhau azeite vinho
verde e outras tantas gulodices vindas de Portugalrdquo (AZEVEDO 2008 p85) Tia Palma como
sempre com a percepccedilatildeo aguccedilada aos movimentos dos familiares tem a ideia de aproveitar a
ocasiatildeo para convidar a famiacutelia de Isabel a um almoccedilo de confraternizaccedilatildeo
-Vocecircs natildeo fazem anos de casados no dia da chegada de Antonio Entatildeo Preparamos
um almoccedilo e convidamos o senhor Avelino dona Maria Celeste e Isabel que eacute quem
nos interessa
-Palma os Alves Machado nunca se sentaram conosco agrave mesma mesa Natildeo sei Sinto-me
um pouco constrangida Ainda mais aqui em nossa casa tatildeo modesta Satildeo muito bons e
generosos mas satildeo nossos patrotildees O mundo deles eacute laacute em cima na sede
-O Joseacute Custoacutedio e o senhor Avelino natildeo satildeo tatildeo amigos Entatildeo Qual eacute o problema
Acho inclusive que jaacute deveriacuteamos tecirc-los chamado haacute mais tempo Jaacute ouvi por diversas
vezes dona Maria Celeste dizer que o marido gosta do nosso Joseacute como a um irmatildeo
(AZEVEDO 2008 p87)
Tia Palma e Maria Romana comeccedilam assim a combinar o almoccedilo que ocorre com
sucesso Primeiro passo eacute o de abrir o saco de arroz o que as surpreende pelo estado saudaacutevel dos
gratildeos Sendo Isabel a filha dos donos da fazenda e Antonio o filho do funcionaacuterio de confianccedila
haacute um constrangimento inicial que se desfaz com a partilha da refeiccedilatildeo entre as famiacutelias O arroz
une Portugal e Brasil paiacuteses das duas famiacutelias atraveacutes de ingredientes portugueses e tempero
brasileiro mais uma vez estando representada a cozinha como metaacutefora
Essa ocasiatildeo cujo propoacutesito eacute aproximar famiacutelias e reduzir diferenccedilas representa a
comemoraccedilatildeo de aniversaacuterio de casamento de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana bem como a visita
de Antonio agrave fazenda entatildeo morando no Rio de Janeiro Paul Ricoeur qualifica a comemoraccedilatildeo
dentro da caracteriacutestica mundanidade em par com reflexividade Esta mundanidade estaacute
associada agrave realizaccedilatildeo de rituais conforme jaacute visto Antonio alterna a lembranccedila sobre o relato de
Palma a respeito da combinaccedilatildeo entre ela e sua matildee com sua proacutepria recordaccedilatildeo sobre o almoccedilo
-Perfeito Veja Palma pegue
-Ceacuteus Quase 40 anos e ainda saudaacutevel
Mamatildee beija as matildeos de tia Palma
-Amor verdadeiro natildeo se estraga Eacute para sempre
-Trecircs quilos eacute o quanto basta Daraacute um belo arroz de bacalhau
-Eacute impossiacutevel que Antonio e Isabel natildeo se resolvam
O almoccedilo eacute um sucesso Os Alves Machado chegam um pouco cerimoniosos mas logo
com tantos comes e bebes somos a mesma famiacutelia (AZEVEDO 2008 p88)
O papel do arroz na histoacuteria seraacute tambeacutem o de testemunhar a uniatildeo fiacutesica de Antonio e
Isabel agrave beira do lago antes do casamento
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-Eu sou o dono do arroz que tambeacutem eacute seu dona Isabel
-DonaPor acaso estamos casados
Sim estamos casados O Deus do azul sabe que estamos O lago menor sabe que
estamos O sangue e o arroz sabem que estamos (AZEVEDO 2008 p105)
Outra ocasiatildeo em que o arroz assume papel de ritual eacute quando o casal ganha de Joseacute
Custoacutedio Maria Romana e Palma o presente com nova dedicatoacuteria atualizada revisitando a
primeira feita por Palma Seraacute portanto o herdeiro do arroz ofertado pela Tia Palma a seus pais
junto a Isabel jaacute que o casal ganha o arroz como presente por seu matrimocircnio
Quero distacircncia de religiotildees mas respeito rituais Influecircncia de tia Palma admito Meu
cafeacute da manhatilde eacute sagrado O ritual eacute sempre o mesmo a hora a xiacutecara o pocircr o leite
primeiro o escurececirc-lo depois no ponto certo o abrir o patildeo o tirar o miolo
(AZEVEDO 2008 p127)
Individual ou coletivo o ritual eacute conexatildeo e cumplicidade [] Concluo que haacute sempre
algo de autoritaacuterio nos rituais Mas neles natildeo haveraacute tambeacutem algo que emociona Natildeo
haveraacute algo de belo e poeacutetico (AZEVEDO 2008 p127)
O arroz e todo o simbolismo que envolve na formaccedilatildeo dessa famiacutelia seraacute transmitido a
Antonio e Isabel em ocasiatildeo formal como desejam seus pais e Tia Palma
E o arroz Eacute o arroz Tia Palma quer que a entrega dessa vez ganhe algum ritual
Mamatildee e papai concordam Natildeo satildeo apenas os oito quilos que contam O presente de
casamento tem agora o peso da histoacuteria Portanto natildeo seraacute dado de modo informal
como aconteceu em Viana do Castelo (AZEVEDO 2008 p128)
O ritual de transmissatildeo do arroz eacute celebrado com a dedicatoacuteria atualizada e assinada por
seus pais e por Tia Palma eacute ela que faz a cerimocircnia de entrega ao sobrinho e agrave Isabel repetindo o
gesto feito na oferta do presente a Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu matrimocircnio
-Isabel e Antocircnio meus queridos este arroz que haacute quase 40 anos foi dado como
presente de casamento agrave minha cunhada Maria Romana e ao meu irmatildeo Joseacute Custoacutedio
por nossa vontade agora vos pertence Fazemos votos de que a tradiccedilatildeo continue e de
que todo o amor aqui contido chegue agraves geraccedilotildees futuras
Mamatildee potildee os oacuteculos lecirc a dedicatoacuteria atualizada
lsquoEste arroz-plantado na terra caiacutedo do ceacuteu como o manaacute do deserto e colhido da pedra- eacute
siacutembolo da fertilidade e do eterno amor Essa eacute a nossa benccedilatildeo
Palma Maria Romana e Joseacute Custoacutedio
Fazenda Santo Antocircnio da Uniatildeo em 13 de junho de 1946rsquo
Protegido pelo pano branco o arroz passa agraves nossas matildeos (AZEVEDO 2008 p130-
131)
Ainda no que concerne ao papel do ingrediente como elemento com atributo de ritual estaacute
a cena em que Antonio lecirc a receita em seu caderno do arroz de lentilhas de Tia Palma escrita
por ela com recomendaccedilotildees O aspecto a ser ressaltado nesse ponto estaacute principalmente na
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forma de apresentaccedilatildeo da receita que indica a importacircncia de recitar os trechos durante a feitura
do prato
Antonio meu querido lava bem as lentilhas em aacutegua corrente enquanto recitas
lsquotrepadeira trepadeirabeijo-te as folhas penadas e as flores violaacuteceas trepadeira
trepadeiranatildeo estou ao fundoestou ao frescoestou agrave beiraeacutes fortuna eacutes sauacutede eacutes
companheiratrepadeira trepadeira eacutes amor amigo eacutes paixatildeo verdadeirarsquo
Feito isso respira fundo trecircs vezes e solte o ar pela boca Deixa teu corpo sentir o
benefiacutecio Potildee as lentilhas em tacho com bastante aacutegua jaacute temperada de sal Leva ao
lume alto ateacute ferver Ao ferver abaixa o lume e deixa cozinhar ateacute que as lentilhas
estejam macias
Escorre a aacutegua da fervura E enquanto ela se vai diz com voz de certeza lsquoaacutegua
fervidaaacutegua de sal e de vidaaacutegua boa que seguetoma teu rumofertilizarsquo
(AZEVEDO 2008 p146-147)
A recomendaccedilatildeo de que faccedila as recitaccedilotildees ao cozinhar o prato traz a reflexatildeo sobre o
exposto por Mircea Eliade sobre a relevacircncia de recitar os mitos exposta anteriormente ldquo[]
recitando ou celebrando o mito da origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela atmosfera
sagradardquo (ELIADE 2011 p21) Haacute outra referecircncia a esse autor que merece ser salientada
pensando-se nos trechos a serem recitados como os cantos a que Eliade se refere ldquoA
recapitulaccedilatildeo atraveacutes dos cantos e da danccedila eacute simultaneamente uma rememoraccedilatildeo e uma
reatualizaccedilatildeo ritual dos eventos miacuteticos essenciais ocorridos desde a Criaccedilatildeordquo (ELIADE 2011
p27)
Laura Esquivel escreve no ensaio intitulado lsquoEl manaacute sagradorsquo em seu livro de ensaios
Iacutentimas suculencias-Tratado filosoacutefico de cocina sua perspectiva sobre a relaccedilatildeo entre a comida
e os rituais corroborando a importacircncia da cozinha como espaccedilo simboacutelico
Talvez natildeo haja muita diferenccedila entre falar de comida e falar de religiotildees Quase em
todas elas umas e outras se faz presente a divindade atraveacutes dos alimentos De fato natildeo
podemos negar que um rito obrigado de quase toda religiatildeo eacute o momento de comer e de
beber a deidade ou para a deidade O sentido profundo da alimentaccedilatildeo em alguma
medida tem a ver com nossa sede de eternidade cifrada na manutenccedilatildeo cotidiana da vida
Talvez por isso todos os deuses tenham deixado sua presenccedila contida nos alimentos
Nesse sentido nos alimentamos para viver e por viver O desfrute da comida tem
lampejos de vida eterna Mas natildeo soacute eacute fundamental o ato em si de comer tambeacutem o eacute a
cerimocircnia que implica preparar e compartilhar os alimentos A cerimocircnia ritual que se
realiza em torno da mesa eacute um ato de profunda e antiga significaccedilatildeo religiosa
(ESQUIVEL 2014 p77)
Entretanto natildeo apenas de comemoraccedilotildees eacute constituiacuteda a funccedilatildeo do arroz na narrativa
Algumas circunstacircncias satildeo provocadas pela representaccedilatildeo desse ingrediente na histoacuteria como as
diferenccedilas entre o protagonista e seus irmatildeos a tentativa de seus filhos Nuno e Rosaacuterio
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mexerem no gratildeo derrubando-o na vitrine do restaurante e o deflagrar das emoccedilotildees da cunhada
em relaccedilatildeo a Antonio quando esta rouba uma porccedilatildeo do arroz para ter um pedaccedilo de Antonio
consigo
-Senti forte ciuacuteme de Isabel Inveja raiva tudo E ainda por cima era obrigada a
esconder o que sentia Quando vocecirc fez a vitrine iluminada no restaurante soacute pra expor o
arroz passei a acreditar que seria possiacutevel ter ao menos um punhadinho daquela
felicidade
-Vocecirc ainda tem ele
-Natildeo
-Natildeo
-Fiz do meu jeito Preparei ele na aacutegua e sal e comi Antes pedi a Deus que me desse um
pouco de vocecirc tambeacutem Nem que fosse por um dia
Amaacutelia torna a recostar a cabeccedila no meu peito Nada mais eacute dito Ou se eacute dito natildeo deixa
registro Acho que cochilamos Levantamo-nos da cama com o desprendimento de um
encontro rotineiro (AZEVEDO 2008 p217)
Entre rememoraccedilotildees e devaneios Antonio entrelaccedila retalhos do passado agrave sua percepccedilatildeo
sobre o presente a finitude as lembranccedilas recentes que se confundem o fluxo de consciecircncia
Reflete sobre o que faz ali na cozinha preparando o almoccedilo familiar e ao mesmo tempo
reconstroacutei lembranccedilas antigas que compuseram sua atualidade
Se me perguntarem natildeo sei dizer o que comi ontem no almoccedilo Mas sou capaz de
reproduzir diaacutelogos inteiros da minha juventude quando esta fazenda ainda era do
senhor Avelino e eu ainda morava na casa laacute de baixo com tia Palma meus pais e meus
irmatildeos Gozado isso Vaacute entender Memoacuterias antigas Niacutetidas perfeitas cheias de
miacutenimos detalhes cheiros e sons ateacute Inclusive as experiecircncias ancestrais que natildeo vivi
as histoacuterias laacute de Portugal que me foram contadas todas aqui dentro de cor e salteado
Fatos recentes Coitados Vatildeo se segurando em mim como podem (AZEVEDO 2008
p143)
A constataccedilatildeo de seus 88 anos daacute ao protagonista a consciecircncia de sua condiccedilatildeo de idoso
aceitando as falhas de lembranccedila mas natildeo aquelas em sua capacidade como cozinheiro
experiente
Natildeo quero vocecirc metida aqui dentro da cozinha Por favor Isabel Natildeo eacute nada disso Eacute
porque vocecirc fica zanzando para laacute e para caacute Potildee a matildeo prova daacute palpite Me atrapalha
Fico doido natildeo quero Nem vocecirc nem ningueacutem Deixa que eu dou conta do recado
Tantos anos agrave frente laacute do restaurante chefe com vaacuterios precircmios natildeo basta Eacute preciso
mais Idoso coisa nenhuma Dispenso o eufemismo bobo Sou velho isso sim Eu sei
natildeo precisa dizer A vista natildeo ajuda muito nem as pernas nem os reflexos Mas espera
aiacute gagaacute ainda natildeo estou Tenho forccedila nas matildeos Acho que ainda posso mexer uma
panela Quatro panelotildees concordo Fica tranquila que natildeo vou me queimar Nem a
comida (AZEVEDO 2008 p144-145)
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A capacidade de Antonio com a cozinha comeccedilou com os aprendizados que teve com sua
tia na juventude e consolidou-se com a praacutetica Tal aquisiccedilatildeo lembra o referido sobre o par
memoacuteriahaacutebito na fenomenologia da memoacuteria proposta por Paul Ricoeur A capacidade
representa o elemento haacutebito pois eacute primordialmente construiacuteda a partir da atividade rotineira de
um atributo Talvez por isso na narrativa Antonio aceite as falhas de memoacuteria inerentes ao
envelhecimento mas natildeo a ideia de diminuiccedilatildeo daquilo que eacute seu por meacuterito por conquista com
esforccedilo dedicaccedilatildeo e sobretudo repeticcedilatildeo Antonio recorda-se de quando partiu para encontrar
trabalho na capital certo de que seguiria a atividade de cozinheiro
-O que eacute que significa isso agora Pra quecirc essa mala Antonio -Calma calma que eu natildeo vou pra guerra -Eu sabia Estaacutes indo embora por causa dessa moccedila Isabel E eacute tudo culpa da Palma
-Tenho 21 anos meu pai Sei muito bem o que faccedilo A vida do campo natildeo eacute para mim
Vou para a capital Farei amigos laacute E amigas
-Mas assim tatildeo de repente
-Trabalharei em restaurante conhecerei pessoas influentes ficarei conhecido e serei
proacutespero
-Para quecirc tanto entusiasmo Para lavar pratos Servir mesa
-Tambeacutem Mas natildeo eacute soacute isso Quero cozinhar Quem sabe um dia consigo abrir meu
proacuteprio negoacutecio
Papai se irrita
-Como cozinhar De onde tiraste essa ideia maluca (AZEVEDO 2008 p67)
O aprendizado com a tia eacute representativo da memoacuteria coletiva que se perpetua em um
grupo neste caso o familiar para a manutenccedilatildeo de um saber entre seus membros Essa memoacuteria
coletiva na histoacuteria eacute expressa pelo cozinhar como um conhecimento transmitido mas
principalmente pela histoacuteria que envolve o arroz nessa famiacutelia A narrativa dessa histoacuteria ao
longo das geraccedilotildees constitui tambeacutem a representaccedilatildeo dessa espeacutecie de memoacuteria na famiacutelia de
Antonio
Para aleacutem do que aprendeu com Tia Palma houve o que a praacutetica lhe ensinou
trabalhando em restaurantes ateacute que pudesse montar o proacuteprio negoacutecio Lembra-se de cenas do
percurso que seguiu ldquoO mar de mesas eacute convite agrave aventura Sigo Na copa e na cozinha o
barulho de louccedilas e talheres eacute intempeacuterie A vozearia eacute a marujada a postos que me recebe Esta eacute
a minha gente natildeo tenho duacutevidas Este eacute o meu barco e []rdquo (AZEVEDO 2008 p79)
Antonio tem em Palma seu referencial chamando por ela quando se vecirc em desafios
evocando lembranccedilas dos seus ensinamentos
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Transpiro o nervoso que vem de dentro Tia Palma por favor me ajuda lsquoO que o corpo
potildee para fora nos purificarsquo Saacutebia Tia Palma natildeo me falta nunca A cenoura e a batata jaacute
cortadas os tomates em rodelas e sem as sementes a cebola picada bem miudinha todos
nas respectivas vasilhas Mais alguma coisa Isso e aquilo Pronto acabei Natildeo me
canso Ao fim do expediente ainda haacute focirclego e entusiasmo de sobra Reluto em desfazer
o laccedilo do avental Jaacute (AZEVEDO 2008 p80)
Uma das cenas da obra que ilustra o entrelaccedilamento entre a memoacuteria individual e a
coletiva eacute no enterro dos pais de Isabel quando Antonio canta uma canccedilatildeo tradicional
portuguesa pensando fazecirc-lo em voz baixa como forma de homenagem Enquanto canta suas
memoacuterias tocam-lhe a ponto de natildeo perceber que o faz em voz alta E aqui estaacute o referido
entrelaccedilamento as demais pessoas presentes no enterro tambeacutem se emocionam e cantam em
coro Presentes ali estatildeo as proacuteprias lembranccedilas e aquelas de suas famiacutelias
Numa casa portuguesa fica bem
patildeo e vinho sobre a mesa
Quando agrave porta humildemente bate algueacutem
Senta-se agrave mesa coacutea gente
Fica bem essa fraqueza fica bem
que o povo nunca a desmente
A alegria da pobreza
estaacute nesta grande riqueza
de dar e ficar contente
(AZEVEDO 2008 p193)
Antonio segue a cantoria da muacutesica que pensa estar cantando para si Entatildeo percebe ter
cantado em voz alta e a emoccedilatildeo que causou Letra e muacutesica satildeo parte de sua memoacuteria individual
pela origem da famiacutelia e da memoacuteria coletiva dos presentes ao enterro que cantam com ele a
tradiccedilatildeo
Em algum momento tenho a impressatildeo de que algumas pessoas me acompanham e que
ao final todos ali cantamos juntos emocionados lsquoUma casa portuguesarsquo Volto ao enterro
com aplausos Reflexo condicionado eu mesmo bato palmas Isabel aos prantos me
beija agradecida pela homenagem inesperada Olho ao redor todos choram
copiosamente Natildeo eacute possiacutevel Seraacute que em vez de falar alto comigo mesmo cantei
alto Soacute pode ser (AZEVEDO 2008 p194)
Na volta do enterro o papel da comida em nutrir e acalentar eacute referido atraveacutes da
expressatildeo empregada por Antonio lsquopedimos a ela que nos aqueccedila algo para pocircr no estocircmagorsquo
como segue no trecho abaixo ldquoQuando chegamos em casa Nuno e Rosaacuterio jaacute estatildeo dormindo
Conceiccedilatildeo garante que ficaram quietinhos natildeo deram trabalho algum Pedimos a ela que nos
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aqueccedila algo para pocircr no estocircmago Ela diz que fez uma sopinha de legumes e jaacute nos chamardquo
(AZEVEDO 2008 p194)
O protagonista segue a narrativa evocando lembranccedilas reconstruindo impressotildees
reconhecendo a si mesmo atraveacutes da costura de retalhos da memoacuteria Estaacute em sua cozinha mas
viaja para muitos periacuteodos de sua vida visita a si mesmo em muitas eacutepocas lembra dos pais da
tia dos sogros dos irmatildeos dos filhos ateacute o momento atual Entatildeo na cozinha da fazenda aos 88
anos prepara com esmero os gratildeos de memoacuteria restantes em cozimento nas panelas Antonio
aguarda o encontro do passado com o presente no almoccedilo de famiacutelia Quando esse acontece
todos nas mesas entusiasmo e lembranccedila espalham-se na famiacutelia
Benccedilatildeo vivermos o bastante para poder dividi-lo assim irmatildemente sem conta de
padeiro nem laacutepis engatilhado atraacutes da orelha Olha soacute a cara da Leonor e a do Nicolau e
a do Joaquim Velhos bobos Nem sonhavam que ainda iam provar do arroz de Tia
Palma E agora choram desse jeito Natildeo eacute cebola nada que eu sei Eacute muita lembranccedila e
sonho tudo misturado agrave moda da casa Fiz de propoacutesito para pegar vocecircs de surpresa E
para a Amaacutelia - me pergunto- que gosto teraacute esse segundo arroz Qual o sabor de um
arroz assim permitido e compartilhado A garotada pode achar que somos velhos gagaacutes
e que essa histoacuteria eacute pura invencionice Impossiacutevel um arroz durar tanto a ciecircncia isto a
ciecircncia aquilo Eu natildeo ligo a miacutenima Vocecircs ligam Entatildeo oacutetimo Vamos comer agrave
vontade que haacute arroz para todos Joaquim meu irmatildeo me passa o azeite (AZEVEDO
2008 p352)
No trecho seguinte ao perguntar-se lsquoquantas vezes maisrsquo o protagonista expotildee sua
percepccedilatildeo quanto agrave finitude o tempo que ainda teraacute para novas cenas como aquela ldquoNoacutes
adultos continuamos em volta das mesas agraves voltas com as lembranccedilas Porque nos apetecem
repetimos o doce repetimos o vinho repetimos as histoacuterias Quantas vezes maisrdquo (AZEVEDO
2008 p356)
Ao longo da narrativa Antonio evoca histoacuterias lembranccedilas que lhe surgem
espontaneamente acionadas por outras por devaneios e por emoccedilotildees De acordo com Maria
Eunice Moreira em seu ensaio
A memoacuteria de Antonio organiza a configuraccedilatildeo caoacutetica da accedilatildeo externa dando um
sentido ao amontoado de fatos e episoacutedios jaacute vividos Nessa seleccedilatildeo privilegia natildeo a
memoacuteria anotada e escrita em cadernos ou diaacuterios mas aquela mais viva mais seletiva e
mais afetiva (MOREIRA 2014 p169)
No referido ensaio o fragmento acima corresponde agrave reflexatildeo de Antonio sobre a forma
como suas lembranccedilas lhe aparecem
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A memoacuteria que vai para o diaacuterio fica toda arrumadinha linear dia mecircs e ano Agraves vezes
horas e ateacute minutos constam do registro Mas quando velho a gente vai e consulta o
caderno se espanta com o montatildeo de coisa que jaacute nem faz sentido e estaria apagado natildeo
fosse a tinta A memoacuteria puxada da cabeccedila natildeo Eacute esforccedilo de selecionar soacute o que presta
o que nos eacute querido Natildeo eacute discurso ensaiado e lido Eacute fala de improviso com todos os
erros e tropeccedilos que a ousadia pode causar (AZEVEDO 2008 p248)
O que Antonio estaacute referindo eacute o conjunto de suas lembranccedilas na despensa da memoacuteria
aquelas que o identificam por constituiacuterem etapas de sua vida atraveacutes delas se reconhece
assume a consciecircncia de si Mesmo com o embaralhamento entre lembranccedilas e devaneios o
protagonista faz um balanccedilo de sua existecircncia enquanto prepara o almoccedilo familiar Estaacute na
cozinha porque esta eacute seu refuacutegio seu lugar no mundo Prepara o arroz para compartilhaacute-lo
assim como sua Tia Palma partilhava com ele suas histoacuterias sentada na quarta cadeira Os
trechos a seguir representam com nitidez o papel da comida agrave mesa para Antonio Mais uma vez
estatildeo presentes as lembranccedilas de tempos vividos e o arroz no prato como na frase lsquoo arroz tem
que vir sempre na frentersquo
A descriccedilatildeo de comidas caseiras do esmero de Conceiccedilatildeo ao arrumar a mesa da atitude
de Isabel em servi-lo todos satildeo elementos construiacutedos ao longo do tempo e tecircm como raiz as
experiecircncias familiares transformadas em memoacuteria O lsquocheiro gostoso da comidinha caseirarsquo eacute o
elemento sensorial que o acolhe na atmosfera de casa e simultaneamente o leva a viajar em suas
lembranccedilas O lsquoalmoccedilo de famiacutelia cotidianorsquo eacute o elemento que conduz o protagonista a cenas
semelhantes no passado como quando seus filhos eram crianccedilas Refeiccedilatildeo para Antonio eacute a
famiacutelia na mesa Assim a comida e a famiacutelia mais uma vez estatildeo vinculadas para ele como
sinocircnimos De recordaccedilatildeo de aconchego de partilha do gosto e do cheiro bom
Conceiccedilatildeo chega e anuncia que o almoccedilo estaacute indo para a mesa Graccedilas a Deus Meu
estocircmago jaacute estaacute roncando Puxo Rosaacuterio do sofaacute
-Vamos
E vamos todos levados pelo cheiro gostoso da comidinha caseira Ao nos sentarmos agrave
mesa impossiacutevel natildeo reparar no costumeiro apuro O caimento da toalha Os pratos os
copos os talheres afastados na medida certa Os guardanapos bem dobrados agrave esquerda
A cesta de patildees posta com arte Natildeo eacute almoccedilo para visitas Eacute almoccedilo de famiacutelia
cotidiano- esmero da Conceiccedilatildeo que ama tudo o que faz Laacute vem ela de novo da
cozinha pousa do meu lado a terrina do feijatildeo fumegando me daacute aquele sorriso de
missatildeo bem cumprida
-Botei bastante paio Ontem o senhor ficou revirando a concha dizendo que dava
precircmio para quem encontrasse um (AZEVEDO 2008 p311)
A cena pode ser compreendida sob a perspectiva de Laura Esquivel no ensaio jaacute referido
quando a autora exprime sua visatildeo sobre a comida e a partilha da mesa
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E ainda que natildeo sejamos religiosos creio que para nenhum de noacutes seraacute estranho pensar
que atraveacutes dos aromas que compartilhamos com nossos semelhantes dos sabores dos
alimentos e da substancial presenccedila da divindade neles os seres humanos podemos ter
dia apoacutes dia uma pequena antecipaccedilatildeo do paraiacuteso (ESQUIVEL 2014 p78)
A ideia de Esquivel sobre a lsquoantecipaccedilatildeo do paraiacutesorsquo coincide com o sentimento de
Antonio sobre a cozinha Para o protagonista essa representa a casa o sabor a famiacutelia Simboliza
o que Gaston Bachelard refere na frase ldquoPode-se demonstrar as primitividades imaginaacuterias
mesmo a respeito desse ser soacutelido na memoacuteria que eacute a casa natalrdquo (BACHELARD 2012 p47)
Pode-se complementar essa frase com outra ideia do autor ldquo[] a casa natal eacute uma casa
habitadardquo (BACHELARD 2012 p33) Ao estar na cozinha ou na sala de jantar ao estar sentado
agrave mesa a emoccedilatildeo eacute a de estar em casa naquela que primeiro conheceu como casa a fazenda A
casa natal eacute e sempre seraacute habitada pelas lembranccedilas Esse espaccedilo corresponde a um lugar de
memoacuteria conforme referido por Ricoeur A casa natal eacute um ser soacutelido na memoacuteria porque ela
conteacutem as primeiras vivecircncias afetos impressotildees Eacute ali que a vida comeccedila que se enraiacuteza dali
vecircm as lsquoprimitividades imaginaacuteriasrsquo e as lembranccedilas que tornaratildeo o sujeito em quem ele eacute pela
consciecircncia de si que a memoacuteria propicia
Minha mulher eacute paciente entende como funciono Ela pega meu prato e vai me
servindo um pouco disto um pouco daquilo mas antes de tudo o arroz- indispensaacutevel-
e o feijatildeo por cima Eu sei que natildeo eacute o certo Mas eacute assim que eu gosto o feijatildeo por
cima nunca do lado Se puser o feijatildeo primeiro e depois o montinho do arroz tambeacutem
implico O arroz tem que vir sempre na frente depois o feijatildeo molhando aiacute sim eacute
perfeito Sempre ensinei bons modos aos meus filhos mas nunca os proibi de misturar a
comida toda no prato de uma vez Se eu misturo como proibir Ai se fizeacutessemos isso na
frente de Isabel Bom nem pensar Em dias de ensopadinho de vagem com carninha
moiacuteda ou de chuchu com camaratildeo era verdadeiro supliacutecio Nuno e eu sofriacuteamos
horrores Queriacuteamos porque queriacuteamos misturar tudo de uma vez com o arroz Natildeo
podiacuteamos Era proibido por lei Isabel natildeo transigia Tiacutenhamos que ir misturando aos
pouquinhos puxando com o garfo e aiacute levar agrave boca Depois voltar misturar mais um
pouquinho puxando com o garfo e tornar a levar agrave boca Um sacrifiacutecio Depois de
nossos filhos adultos a lei do proibido misturar foi abolida E cada um liberado para
comer do seu jeitinho informal
Jaacute servido espeto o paio deliacutecia e retomo a conversa (AZEVEDO 2008 p314)
Chega a hora de Antonio apoacutes revisitar histoacuterias vividas e contadas pela memoacuteria Na
cozinha representaccedilatildeo de sua casa natal ele falece ldquoSempre acompanhamos com olhos de
saudade o balatildeo que sobe ceacuteu afora e se mistura no azul Acontece com todos Depois satildeo soacute
histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras Famiacutelia eacute prato que quando se acaba nunca
mais se repeterdquo (AZEVEDO 2008 p361)
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Histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras elementos que aludem agraves lembranccedilas
Mais uma vez a cozinha eacute representada ao falar-se em memoacuteria atraveacutes das lsquoreceitas caseirasrsquo
Essas satildeo registros de quem habitou os campos de forno-e-fogatildeo e deixou por escrito o como-
se-faz O seu
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2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE
A sacola de crochecirc da voacute era perturbadora da ordem ali de dentro ela tirava varenikes
beigales mondales knishes strudels um perfume que ia nos buscar no mais remoto
quarto da casa pratos fundos de louccedila branca e pesada transbordantes de fartura Noacutes
nos reuniacuteamos em torno da mesa em torno da voacute em torno dos pratos - em torno da
comida que ela tratava como uma cerimocircnia de milagre E ela abria os braccedilos para nos
acarinhar a todos e nos beijava com os laacutebios finos o haacutelito de menta e pronunciava
palavras boas palavras de quem traz alviacutessaras feliz como quem pode dar o seio a um
bebecirc minhas crianccedilas a voacute trouxe comida pra vocecircs (MOSCOVICH 2006 p93-94)
Prazer eacute sentimento do corpo Bem-estar e gozo que se quer repetir Puro deleite acorda
os sentidos Onda repentina epifania de cores aromas gostos texturas sons Nasce sem aviso
deixa marcas faz pulsar em ritmo de quero-mais Nasce do encontro amoroso do saborear de um
prato e de tantas outras vivecircncias Estaacute na taccedila do vinho escuro e aveludado na mordida do mil-
folhas ao mesmo tempo crocante e macio O prazer desperta como se fosse dia novo entusiasma
provoca ecoa em cada parte nossa Comida eacute coisa prazerosa toca a vida sensorial alegra ceacutelulas
e anima A cozinha espaccedilo fiacutesico e territoacuterio afetivo evoca gostos desejos lembranccedilas prazer
O preparo das receitas o deleite dos pratos a partilha da mesa as conversas amenas durante a
refeiccedilatildeo todos inerentes ao universo culinaacuterio E depois vem a culpa a roupa que aperta o
regime por ordens meacutedicas Culpa e prazer inimigos entrelaccedilados
21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE
Por que sou gorda mamatildee eacute o romance escrito por Ciacutentia Moscovich em 2006 e
publicado pela Editora Record com uma narradora em primeira pessoa de quem o leitor natildeo
sabe o nome ao longo da obra Ela passa a limpo as histoacuterias de famiacutelia de origem judaica e a
sua proacutepria histoacuteria em uma carta para sua matildee Dessa o leitor tambeacutem natildeo sabe o nome da
primeira agrave uacuteltima paacutegina
O conflito central apresenta a dificuldade da narradora-personagem com seu aumento de
peso vinte e dois quilos em quatro anos e o sofrimento em face da necessidade de fazer dieta
Natildeo se trata apenas das privaccedilotildees de ter de fazer dieta Trata-se da dor emocional por precisar
fazer dieta de novo A repeticcedilatildeo de situaccedilotildees em que o engorde esteve presente em sua vida
ligado ao papel do comer em sua famiacutelia faz com que acuse sua matildee muitas vezes pela situaccedilatildeo
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a que chegou Por essa oferecer comida demais Natildeo Por oferecer afeto de menos Ao contraacuterio
da matildee a Voacute Magra sua avoacute materna eacute muito carinhosa com ela e seus irmatildeos e aleacutem disso
sempre aparece com a sacola de crocheacute plena de doces da cozinha judaica O papel da avoacute parece
ser o de suprir as faltas da matildee e as supre em excesso no que tange ao reforccedilo da gula
A narrativa pode ser a expressatildeo de uma catarse atraveacutes da escrita uma decisatildeo
confessional da narradora ou sua atitude ora acusatoacuteria ora carente na direccedilatildeo de sua matildee Em
uma mistura de cada uma dessas formas o livro traz o entrelaccedilamento das memoacuterias das
emoccedilotildees e das etapas objetivas em sua jornada de emagrecimento como narra a protagonista no
proacutelogo ao expor para sua matildee que a escrita seraacute dirigida a ela
Tenho medo mas estou prestes a pocircr um ponto final e a aticcedilar a pluma das lembranccedilas
Luta contra o gelo do tempo O proacutelogo em seus estertores depois comeccedila
Mamatildee me endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar
esse territoacuterio metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora
Quero voltar a ter um corpo
Haacute um livro a ser escrito e nele os fatos seratildeo fruto da prestidigitaccedilatildeo ainda que
imperfeita Respostas possiacuteveis ilusatildeo para secar as maacutegoas e o corpo O proacutelogo
termina Depois jaacute iniciou Comeccedilo num ponto de intrerrogaccedilatildeo
Por que sou gorda mamatildee (MOSCOVICH 2006 p19)
A narrativa eacute contada em vinte e cinco capiacutetulos duzentas e cinquenta e uma paacuteginas
vinte e dois quilos O primeiro capiacutetulo apresenta em primeira pessoa um entrelaccedilamento
essencial ao conflito da personagem a histoacuteria da origem de sua famiacutelia na Europa passando
fome em vilarejos judeus a histoacuteria de sua Voacute Magra com o prazer da comida e sua proacutepria
histoacuteria de infacircncia com os irmatildeos na hora das refeiccedilotildees
Segue-se ainda nesse capiacutetulo um desabafo com uma lista de aspectos pejorativos do
sujeito gordo Satildeo frases que costumamos ouvir com grande frequecircncia sobre os indiviacuteduos com
excesso de peso e que eles mesmos muitas vezes referem em tom entre o mea culpa e a auto
ironia Esse eacute o tom usado pela narradora falando em sua voz o que atribui ao olhar alheio
Depois de apontar os defeitos dos gordos conta do comeccedilo de seu sacrifiacutecio com as restriccedilotildees
alimentares
Em seguida o escaacuternio daacute lugar agrave lembranccedila da morte de seu pai as consequecircncias que
tal perda teve na famiacutelia e sobretudo na relaccedilatildeo de sua matildee com os filhos Eacute o comeccedilo da voz
acusatoacuteria da narradora trazendo agrave tona fatos e sofrimentos na relaccedilatildeo familiar Aparece a
ausecircncia da matildee no cumprir de sua funccedilatildeo afetiva Seguem-se capiacutetulos de apresentaccedilatildeo da Voacute
Gorda do lado paterno da Voacute Magra e de sua histoacuteria frustrada de amor por um violinista russo
59
do avocirc do pai dos irmatildeos de si mesma em vaacuterios tempos da vida e da balanccedila Presente e
passado alternam-se disputando espaccedilo nas paacuteginas porque para a personagem em sua carta agrave
matildee o passado eacute parte do peso em quilos de seu presente
Enquanto passa a limpo sua histoacuteria e suas maacutegoas a narradora vai contando vitoacuterias e
deslizes na dieta dores pela restriccedilatildeo alimentar e alegrias por conseguir emagrecer lentamente A
histoacuteria familiar evolui o momento em que o excesso de peso na infacircncia tornou-se foco de
preocupaccedilatildeo e de imposiccedilatildeo da dieta por parte do pai aparece como fato de destaque A
narradora em zigue-zague transita entre os periacuteodos de vida para encontrar respostas ora em
conversas dirigidas agrave matildee ora em diaacutelogos com seu proacuteprio mundo interno A escrita para a matildee
eacute em essecircncia um passar a limpo para si mesma a proacutepria histoacuteria de seu corpo Gula prazer
afeto e ausecircncia dores e perdas inclusive de maacutegoas e de peso eis o transcorrer da histoacuteria
narrada Esses elementos satildeo o fio condutor da narrativa das primeiras paacuteginas ateacute a evoluccedilatildeo ao
epiacutelogo Parte desse reproduzo abaixo
Mamatildee natildeo preciso perdoaacute-la por nada Natildeo me incomodo mais pela porccedilatildeo presente de
sua lavra e todo o esforccedilo de natildeo mais me incomodar foi por amor que eacute minha cura
Mais cinco quilos a bordo de uma bicicleta cor-de-rosa seratildeo perdidos Recuso-me a
remexer ainda mais no passado Natildeo se angustie mamatildee Noacutes duas sabemos que natildeo
vale a pena-falta que a senhora serenize seus dias e deixe tambeacutem de remexer o passado
Depois que eu colocar o ponto final por favor mamatildee natildeo deixe de recompor sua
alegria seu desejo e sua piedade A senhora perdoaraacute a vida E eu terei esquecido que
cheguei ateacute aqui apesar da senhora
[hellip] (MOSCOVICH 2006 p250)
Destaca-se sobretudo a verossimilhanccedila interna da obra Entre o proacutelogo e o epiacutelogo haacute
muitas histoacuterias contadas em uma soacute compondo uma linha de tempo na cronologia do calendaacuterio
e outra dentro da personagem Afinal de contas o tempo interno tem um ritmo proacuteprio que
obedece acima de tudo agraves leis da memoacuteria
A narradora-personagem consegue compreender suas interrogaccedilotildees ao entremear passado
e presente histoacuteria familiar e individual A narrativa multifacetada natildeo sai dos trilhos e eacute possiacutevel
acompanhar o diaacutelogo da personagem consigo mesma atraveacutes da carta para sua matildee A
descoberta dos elementos alusivos agrave presenccedila e agrave falta de prazer alimentar que permeiam a obra
conduzem ao primeiro aspecto do presente capiacutetulo o que eacute o prazer afinal
60
22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL
Para o psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers o prazer no campo da Fenomenologia
Psiquiaacutetrica pode ser compreendido como a realizaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees
orgacircnicas Para o referido autor o prazer consiste no equiliacutebrio psiacutequico na satisfaccedilatildeo e no bem-
estar Jaacute conforme os autores do artigo Psicopatologia do Prazer Lorenzo Pelizza e Franco
Benazzi o prazer pode ser considerado um fenocircmeno psiacutequico de muacuteltiplas facetas Em termos
geneacutericos esse eacute um forte sentimento que corresponde agrave percepccedilatildeo de uma condiccedilatildeo positiva
fiacutesica ou mental proveniente do organismo
As pesquisas que abordam o prazer satildeo recentes Apenas haacute algumas deacutecadas a ciecircncia
passou a contribuir para evidenciar os efeitos beneacuteficos desse fenocircmeno tanto no sentido proacute-
ativo (como fator que favorece o bem-estar psico-fiacutesico do indiviacuteduo e que promove o processo
de cura da doenccedila) quanto no protetor (como elemento fundamental que fornece ao sujeito os
recursos necessaacuterios para afrontar e superar as experiecircncias negativas e para prevenir o risco de
adoecer) (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
Do ponto de vista do estudo do prazer como elemento saudaacutevel destacamos seu papel
como fator de importante valor motivacional sob o enfoque das teorias evolucionistas
Reduzindo ao maacuteximo a explicaccedilatildeo seria possiacutevel entender seu papel da seguinte forma como
espeacutecie sentimos prazer na alimentaccedilatildeo e na relaccedilatildeo sexual para que mediante esta sensaccedilatildeo
tenhamos estiacutemulo para nutrirmo-nos e procriarmos A gratificaccedilatildeo do ceacuterebro que ocorre
atraveacutes da experiecircncia prazerosa motiva o indiviacuteduo a repetir os comportamentos que a tornam
viaacutevel como o comer Forma-se assim um ciclo no qual a comida promove prazer e este motiva
a procuraacute-la pela resposta cerebral gerando novamente o prazer e assim ocorre a manutenccedilatildeo do
comportamento com sucessivas repeticcedilotildees A propoacutesito desse ciclo os referidos autores
esclarecem
O mecanismo operante de reforccedilorecompensa age em sentido evolucionista para
conduzir os comportamentos adotados na direccedilatildeo de escopos adaptativos que sejam uacuteteis
para garantir a sobrevivecircncia do indiviacuteduo (por exemplo busca de comida ou de aacutegua)
eou a conservaccedilatildeo da espeacutecie (condutas reprodutivas) Para que atinja a eficaacutecia o
estiacutemulo de reforccedilo deve ser capaz de ativar as instacircncias psiacutequicas do prazer e o sistema
neurobioloacutegico de gratificaccedilatildeo cerebral (circuitos dopaminergicos mesoliacutembicos) sendo
deste modo vivido como experiecircncia prazerosa satisfatoacuteria e assumindo assim um
importante valor motivacional (PELIZZA BENAZZI 2008 p298-299)
61
Tal explicaccedilatildeo evolucionista eacute relevante para a compreensatildeo do prazer alimentar Como
espeacutecie devemos sentir prazer ao comer com o propoacutesito de termos estiacutemulo para mantermos a
constacircncia de uma alimentaccedilatildeo regular O prazer eacute o elemento que torna possiacutevel esta constacircncia
O socioacutelogo e escritor brasileiro Carlos Alberto Doacuteria acrescenta um dado relevante nesse
sentido ao mencionar o autor de A fisiologia do gosto Jean Anthelme Brillat-Savarin que
publicou a obra em 1825 relevante na literatura gastronocircmica Nessa ao referir-se aos cinco
sentidos Brillat-Savarin acrescenta o sentido geneacutesico sobre o qual Doacuteria reflete em seu livro A
culinaacuteria materialista
Este uacuteltimo eacute o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro
sendo a sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecie Este sentido diz ele foi ignorado ateacute o
seacuteculo XVIII sendo anexado ao (ou confundido com o) tato Ora a reproduccedilatildeo da
espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo
a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo ao sexo e ao comer eacute o prazer a
busca do agradaacutevel e este eacute o sentido muito especial que ele pretende indicar como
responsaacutevel pela gastronomia (DOacuteRIA 2009 p190 grifo do autor)
Assim a relaccedilatildeo de prazer do indiviacuteduo com a comida eacute tambeacutem de acordo com Brillat-
Savarin uma estrateacutegia de sobrevivecircncia da espeacutecie assim como o sexo A sensaccedilatildeo prazerosa
ligada ao alimento refere-se principalmente agrave percepccedilatildeo deste como tendo gosto agradaacutevel ou
seja ldquo[] aquilo que apraz aos sentidos mobilizados pela alimentaccedilatildeordquo (DORIA 2009 p192)
O estudo da obra de Carlos Alberto Doacuteria abre um campo de reflexatildeo relevante no que
tange ao fenocircmeno do prazer pois o autor o aborda pela perspectiva gastronocircmica referindo o
que torna um alimento prazeroso Ele menciona que de acordo com os modernos teoacutericos do
gosto ldquo[] o agradaacutevel que comemos depende do impacto favoraacutevel sobre todos os cinco
sentidosrdquo (DOacuteRIA 2009 p194)
Para explicar como um alimento se torna agradaacutevel ele comeccedila por definir o mundo
objetivo lsquoo mundo das coisas e das nossas aptidotildees fisioloacutegicas para percebecirc-lorsquo e o mundo
subjetivo lsquodos nossos valores crenccedilas e preferecircncias individuaisrsquo Entatildeo acrescenta o ponto
chave de sua reflexatildeo ldquoTomemos como hipoacutetese que o gosto se forma na relaccedilatildeo entre esses dois
mundos O gosto assim entendido eacute relacional e se refere ao que se passa em torno do ato
fisioloacutegico de comerrdquo (DOacuteRIA 2009 p194) A fim de aprofundar a ideia desta relaccedilatildeo expotildee
Ao explorar a noccedilatildeo de gosto partindo de sua dimensatildeo material isto eacute da relaccedilatildeo que
se estabelece entre o mundo e o homem por intermeacutedio do complexo aparato sensitivo
temos que entender tambeacutem que o gosto varia de indiviacuteduo para indiviacuteduo entre as
62
diferentes idades de um mesmo indiviacuteduo entre as classes sociais de cultura para
cultura e de uma eacutepoca para outra na mesma cultura Sabemos tambeacutem que permanece
um misteacuterio como nasce o desejo intenso de se comer determinado alimento ou como a
monotonia de uma dieta se instaura de modo a repudiarmos o alimento apoacutes um certo
tempo Nada disso se explica por razotildees puramente fisioloacutegicas (DOacuteRIA 2009 p195)
Assim na relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o alimento agradaacutevel ao lsquocomplexo aparato
sensitivorsquo como define Doacuteria existem variaacuteveis como idade e cultura que interferem no modo
como a sensaccedilatildeo prazerosa eacute percebida Quanto ao aspecto cultural por exemplo o autor refere
O gosto partilhado por vaacuterias pessoas ndash sejam membros de uma famiacutelia de uma
comunidade de uma eacutepoca- sugere uma construccedilatildeo coletiva que natildeo se confunde com a
experiecircncia gustativa de cada um O caraacuteter afetivo da cozinha familiar eacute um modelo de
socializaccedilatildeo do gosto que todos conhecemos Ningueacutem faz determinado prato igual a
nossa matildee ou avoacute [] (DOacuteRIA 2009 p195)
Em diversas famiacutelias de uma dada geraccedilatildeo o lsquobife agrave milanesa da voacutersquo eacute emblemaacutetico em
representar a explicaccedilatildeo do autor Ao que parece o prazer reside no preparo pela avoacute mais do
que no prato em si A avoacute de cada famiacutelia seria a responsaacutevel pelo melhor bife agrave milanesa do
mundo de acordo com os respectivos netos Essa percepccedilatildeo reflete o que Doacuteria menciona como
lsquoo caraacuteter afetivo da cozinha familiarrsquo termo que coincide com o papel da Voacute Magra
personagem da obra em estudo neste capiacutetulo Outra consideraccedilatildeo relevante do autor acerca da
construccedilatildeo do universo do gosto eacute a de que este ldquo[] eacute expressatildeo da educaccedilatildeo do paladar e dos
demais sentidos conformados culturalmente para a apreciaccedilatildeo do que comemosrdquo (DOacuteRIA 2009
p196)
Deste modo eacute possiacutevel compreender que aprendemos a gostar do que eacute aceitaacutevel em
determinado contexto social e cultural entretanto temos em primeiro lugar a percepccedilatildeo
bioloacutegica atraveacutes dos cinco sentidos do que devemos levar agrave boca e daquilo que eacute necessaacuterio
evitar em termos de manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Pela aparecircncia e pelo olfato por exemplo um
alimento pode parecer prazeroso e entatildeo adequado ou repulsivo se apresentar sinais de bolor ou
de alteraccedilatildeo de suas caracteriacutesticas conhecidas A respeito dessa avaliaccedilatildeo sobre o que eacute
agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos com fins de alimentaccedilatildeo Doacuteria refere
O gosto caminha em meio a essas preferecircncias e rejeiccedilotildees ajudando a erigir barreiras
que demarcam os limites de determinada cultura ou mesmo as variaccedilotildees individuais
nessa mesma cultura Alimentos tabus natildeo devem ser tocados ou consumidos Por isso
seu sabor eacute tambeacutem repulsivo Assim as sociedades constroem um anteparo que protege
a cultura daquilo que ela considera lsquonatureza hostil (DOacuteRIA 2009 p196)
63
Se de um lado o prazer eacute o elemento bioloacutegico que impulsiona o indiviacuteduo para a
preservaccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do alimento (e da espeacutecie atraveacutes da coacutepula) de outro as
escolhas que condicionam a sensaccedilatildeo prazerosa no campo alimentar ultrapassam a dimensatildeo
corpoacuterea atingindo em boa parte das vezes a esfera cultural atraveacutes da construccedilatildeo coletiva do
gosto O autor apresenta neste aspecto a seguinte reflexatildeo
Podemos imaginar o homem como uma maacutequina bioloacutegica que se relaciona
integralmente com o mundo de tal forma que todos os estiacutemulos que ele internaliza
afetam a totalidade dessa maacutequina O nosso conhecimento estaacute no tato na audiccedilatildeo na
visatildeo no olfato no paladar e tudo isso eacute processado natildeo apenas diretamente como
experiecircncia pessoal mas no acoplamento que mantemos com seres da mesma espeacutecie
(DOacuteRIA 2009 p197)
De acordo com essa exposiccedilatildeo podemos gostar daquele alimento que eacute aceitaacutevel em
nossa cultura e em nosso meio para assim continuarmos pertencendo ao grupo de que somos
parte contemplando a noccedilatildeo que o autor estabelece como o lsquoacoplamento que mantemos com
seres da mesma espeacuteciersquo Ao sentir prazer nos sentimos impelidos a comer algo porque nos
desperta a sensaccedilatildeo agradaacutevel essa experiecircncia eacute em primeiro plano instintiva quando o ldquo[]
elo entre prazerdesprazer se estabelece como base do fenocircmeno da aprendizagem e da aversatildeo a
um sabor a partir do risco que sinaliza para o organismordquo (DOacuteRIA 2009 p205)
Em segundo plano gostamos do que aprendemos que podemos gostar de acordo com a
cultura em que estamos inseridos Nesse contexto cabe ressaltar o fenocircmeno da
neuroplasticidade atraveacutes do qual o ceacuterebro se molda a partir das experiecircncias a que eacute exposto
de acordo com tal ocorrecircncia os mecanismos cerebrais aprendem a responder a determinado
estiacutemulo e criam um espaccedilo de resposta ao mesmo quanto mais vezes exposto a ele Isso pode
acontecer no aprendizado de uma competecircncia como tocar um instrumento musical falar um
idioma ou ateacute mesmo naquele de um novo paladar Aprendemos a gostar de um alimento o que
faz com que a sensaccedilatildeo agradaacutevel obtida ao comermos nos faccedila querer repetir seu consumo
Surge entatildeo a perspectiva do prazer em seu percurso do ponto de partida sauacutede para o
ponto de chegada doenccedila De acordo com Benazzi e Pelizza os mecanismos neurobioloacutegicos
responsaacuteveis pela gratificaccedilatildeo cerebral alimentam-se do prazer e quanto mais recebem mais
demandam que o organismo lhes forneccedila mais e mais sensaccedilotildees prazerosas Essa condiccedilatildeo
manifesta-se apenas em alguns indiviacuteduos cuja carga geneacutetica e aprendizagem cultural
favoreccedilam os comportamentos ditos compulsivos por exemplo Nas pessoas propensas a tal
64
expressatildeo isso ocorre sucessivamente motivo pelo qual o prazer alimentar pode ser natildeo mais um
aliado da sauacutede e da sobrevivecircncia mas sim um algoz a partir de determinado momento Esse
ponto eacute quando o comer se torna excessivo fornecendo de modo incessante e crescente a
gratificaccedilatildeo prazerosa aos mecanismos cerebrais de recompensa
Desfaz-se assim a noccedilatildeo de prazer apresentada por Jaspers anteriormente referida
Quando haacute aumento das sensaccedilotildees prazerosas para saciar a demanda dos centros cerebrais de
gratificaccedilatildeo e natildeo mais para que o prazer esteja calcado lsquono equiliacutebrio psiacutequico e no bem-estarrsquo
pode-se compreender que esse deixou de cumprir sua funccedilatildeo na sauacutede
Quando uma cultura em amplo espectro como a norte-americana aprende a sentir prazer
com a ingesta do fast-food e isso se transmite a outras culturas e ainda mais grave agraves geraccedilotildees
seguintes os problemas de sauacutede atingem dimensotildees catastroacuteficas Esse resultado jaacute eacute possiacutevel
constatar em nosso seacuteculo XXI Compreende-se assim que natildeo apenas o indiviacuteduo pode
adoecer mas a cultura tambeacutem pode adoecer Fortunadamente pensadores do campo da
alimentaccedilatildeo como Michael Pollan tecircm combatido de modo ferrenho essa tendecircncia como o faz
em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo salienta-se tambeacutem o italiano
Carlo Petrini que jaacute na deacutecada de 80 fundou a filosofia do slow food em oposiccedilatildeo ao haacutebito
determinado pelas cadeias de fast-food ao redor do mundo
Cada vez mais o slow food tem ganho espaccedilo na compreensatildeo contemporacircnea sobre o
comer com prazer com sauacutede e com lentidatildeo respeitando o tempo das refeiccedilotildees como um tempo
de interaccedilatildeo familiar e de consciecircncia do alimento que se ingere Referimos nesse sentido o
proacuteprio Pollan responsaacutevel pela defesa de que as famiacutelias voltem a comer em casa como
oportunidade de alimentaccedilatildeo saudaacutevel e de interaccedilatildeo entre os membros do grupo familiar
Entretanto as mudanccedilas causadas pela conscientizaccedilatildeo estatildeo apenas nos primeiros passos os
comportamentos alimentares insalubres ainda representam a maioria ao menos no ocidente As
patologias do prazer ocupam importante espaccedilo no campo das doenccedilas contemporacircneas em
termos psiacutequicos e em suas decorrecircncias fiacutesicas
Tanto a reduccedilatildeo quanto o aumento significativo de experiecircncias prazerosas podem levar agrave
ocorrecircncia de patologias nos acircmbitos fiacutesico e psiacutequico No artigo em estudo Psicopatologia do
prazer lecirc-se ldquoO ser humano frente agrave possibilidade de permitir-se prazeres em alguns casos
pode sentir-se impedido pela preocupaccedilatildeo pela desvalia e pela culpa relativa a eventuais
consequecircncias potencialmente danosas de suas accedilotildeesrdquo (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
65
Esses mesmos autores referem a existecircncia de uma porcentagem significativa de
indiviacuteduos capazes de experimentar sentimentos de baixa autoestima ou de culpa (leve e
transitoacuteria ou ao contraacuterio intensa e mantida) em relaccedilatildeo aos interesses e atividades que lhes
provocam prazer Tais emoccedilotildees desagradaacuteveis viriam em forma e em intensidade e representam
um relevante contraponto agrave sensaccedilatildeo prazerosa podendo inclusive inibir as experiecircncias futuras
de prazer A ausecircncia desse gera mais desvalia e culpa estresse crocircnico e sentimentos de
incapacidade impedindo com que novas vivecircncias potencialmente prazerosas aconteccedilam e assim
ocorre um ciclo com repercussotildees na sauacutede tanto em termos fiacutesicos quanto mentais Os autores
do artigo referem
[] de uma espeacutecie de estressor interno que tais indiviacuteduos transfeririam de uma
situaccedilatildeo a outra dessas circunstacircncias decorreriam entatildeo efeitos negativos sobre sua
sauacutede fiacutesica suas capacidades cognitivas (ex concentraccedilatildeo atenccedilatildeo memoacuteria) e em seu
funcionamento nos campos social e laboral cotidiano Seria possiacutevel referir que o
excesso de culpa ou desvalia determinaria uma condiccedilatildeo de estresse crocircnico capaz de
aumentar significativamente a secreccedilatildeo dos hormocircnios ligados ao estresse com
consequumlecircncias danosas agrave sauacutede fiacutesica e agrave mental (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
Ressaltamos que o contraacuterio tambeacutem ocorre Cabe refletir sobre o desejo exasperado e
absoluto de prazer levada a extremos como nas condiccedilotildees de transtornos alimentares (entre
esses a compulsatildeo alimentar) De acordo com tais autores quando ocorrer uma busca excessiva
de sensaccedilotildees prazerosas mesmo se houver a gratificaccedilatildeo desses prazeres haveraacute riscos para a
sauacutede do indiviacuteduo Nesse caso o prazer em excesso passaraacute a ser o responsaacutevel pelos
sentimentos de culpa desvalia depressatildeo ansiedade e descontrole de impulsos (PELIZZA
BENAZZI 2008)
O prazer em excesso no campo alimentar conduz muitas vezes ao aumento de peso
com prejuiacutezos agrave sauacutede Essas circunstacircncias podem acarretar uma forma de dor emocional
diretamente ligada ao prazer de comer como nos casos de indiviacuteduos que fazem dieta alimentar
por orientaccedilatildeo meacutedica Nesses a restriccedilatildeo imposta representa um importante sofrimento quando
se encontram em sobrepeso ou em condiccedilatildeo de obesidade moacuterbida A exigecircncia de restringir o
que lhes daacute prazer pode ser um motivo de transgressotildees da dieta O resultado eacute o natildeo
emagrecimento ou o engorde ainda maior A seguir vecircm a culpa a desvalia a tristeza e o
desacircnimo todos os antagonistas da sensaccedilatildeo prazerosa Para compensar as emoccedilotildees os
indiviacuteduos socorrem-se com a comida mantendo o ciacuterculo vicioso O equiliacutebrio preconizado por
Jaspers em sua perspectiva sobre o prazer natildeo eacute encontrado
66
Em Por que sou gorda mamatildee o conflito da personagem com o impedimento ao prazer
alimentar estaacute presente em diversos trechos A narradora faz uma dolorosa e agraves vezes bem-
humorada recapitulaccedilatildeo de suas vivecircncias de prazer com a comida e de suas experiecircncias de
dieta de emagrecimento Satildeo narradas tambeacutem suas emoccedilotildees de desvalia e baixa autoestima por
vestir o adjetivo de gorda entretanto muito de sua insatisfaccedilatildeo estaacute no impedimento para comer
o que gosta o que lhe daacute prazer
Haacute uma visatildeo especiacutefica sobre o que eacute o prazer nos indiviacuteduos que apresentam
comportamentos anormais na procura por esta experiecircncia eles referem em diversas ocasiotildees a
percepccedilatildeo que tecircm sobre a comida na qualidade de fonte de prazer para algumas pessoas comer
eacute a uacutenica fonte de prazer possiacutevel Eacute comum referirem nas consultas meacutedicas lsquoou usufruo do
maacuteximo prazer ou natildeo sentirei nenhumrsquo ou lsquose natildeo puder comer todo o pote de sorvete natildeo
como mais nada Ou isto ou nada Me nego a fazer dietarsquo haacute ainda quem refira lsquonatildeo acredito
em dia livre dieta natildeo tem dia livre Isso eacute enganaccedilatildeo porque ningueacutem consegue voltar a comer
direito no outro diarsquo Essas frases demonstram padrotildees culturais de interpretaccedilatildeo do papel da
comida muitas vezes substitutivo de outras necessidades emocionais
Existindo maior resposta positiva aos prazeres aos quais o indiviacuteduo se dirige em
especial nas situaccedilotildees de excesso ocorreraacute ainda maior demanda por parte desses mecanismos
Como resultado surgem sintomas psiquiaacutetricos isolados ou em comorbidade decorrentes do
desequiliacutebrio gerado pela demanda excessiva Haacute ainda as decorrecircncias fiacutesicas de tal
desequiliacutebrio como a obesidade e as doenccedilas a ela associadas o diabetes a hipertensatildeo arterial e
a hipercolesterolemia entre outras Mais cedo ou mais tarde o corpo cobra sua conta dos
excessos quando se perpetuam
23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA
A fisiologia do gosto obra essencial na literatura gastronocircmica citada anteriormente foi
escrita por Jean Anthelme Brillhat-Savarin advogado e juiz francecircs (1755-1826) apaixonado
pelos prazeres da mesa O livro eacute composto por trinta capiacutetulos que o autor intitula lsquoMeditaccedilotildeesrsquo
e um uacuteltimo composto de variedades A fatia destinada agrave reflexatildeo sobre o prazer eacute a meditaccedilatildeo
14 lsquoDo prazer da mesarsquo Sobre a procura pelo prazer em termos gerais Brillat-Savarin refere
67
O homem eacute incontestavelmente dos seres sensitivos que povoam nosso globo o que
experimenta mais sofrimentos A natureza o condenou primitivamente agrave dor pela nudez
de sua pele pela forma de seus peacutes pelo instinto de guerra e destruiccedilatildeo que acompanha
a espeacutecie humana onde quer que ela se encontre
Os animais natildeo foram atingidos por essa maldiccedilatildeo e sem alguns combates causados
pelo instinto de reproduccedilatildeo a dor no estado de natureza seria completamente
desconhecida da maior parte das espeacutecies ao passo que o homem que soacute encontra o
prazer passageiramente e por meio de um pequeno nuacutemero de oacutergatildeos estaacute sempre
exposto em todas as partes do corpo a terriacuteveis sofrimentos
Essa sentenccedila do destino foi agravada em sua execuccedilatildeo por uma seacuterie de doenccedilas
nascidas dos haacutebitos do estado social de modo que o prazer mais satisfatoacuterio que se
possa imaginar seja em intensidade seja em duraccedilatildeo eacute incapaz de compensar as dores
atrozes que acompanham certos distuacuterbios [hellip] Eacute o temor praacutetico da dor que faz o
homem sem se aperceber disso lanccedilar-se com iacutempeto na direccedilatildeo oposta entregando-se
ao pequeno nuacutemero de prazeres que herdou da natureza (BRILLAT-SAVARIN 1995
p167)
Brillat-Savarin aponta que o homem se atira ao prazer para fugir das dores inerentes agrave
espeacutecie Entretanto esse eacute apenas um dos elementos de compreensatildeo do prazer alimentar pois a
sensaccedilatildeo prazerosa decorre tambeacutem de outros fatores presentes em nossa fisiologia e psiquismo
a sociabilidade por exemplo eacute um desses componentes e estaacute envolvida no que o autor
estabelece como o prazer da mesa Ele refere no capiacutetulo lsquoO prazer da mesarsquo uma reflexatildeo
importante sobre a comensalidade a refeiccedilatildeo em conjunto ldquoFoi durante as refeiccedilotildees que devem
ter nascido ou se aperfeiccediloado nossas liacutenguas seja porque era uma ocasiatildeo de reuniatildeo que se
repetia seja porque o lazer que acompanha e segue a refeiccedilatildeo dispotildee naturalmente agrave confianccedila e agrave
loquacidaderdquo (BRILLAT-SAVARIN 1995 p168)
Brillat-Savarin faz uma diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer- relacionando-o agrave satisfaccedilatildeo
da fome atraveacutes do alimento como ocorre com os animais - e o prazer da mesa exclusivo agrave
espeacutecie humana De acordo com esse autor ldquo[] o prazer de comer exige se natildeo a fome ao
menos o apetite o prazer agrave mesa na maioria das vezes independe de ambosrdquo (BRILLAT-
SAVARIN 1995 p170) Esse uacuteltimo representa assim a sociabilidade o conviacutevio agradaacutevel
com aqueles com quem se divide uma refeiccedilatildeo Ainda sobre o prazer da mesa Brillat-Savarin
explicita
[hellip] natildeo comporta arrebatamentos nem ecircxtases nem transportes mas ganha em duraccedilatildeo
o que perde em intensidade e se distingue sobretudo pelo privileacutegio particular de nos
incliner a todos os outros prazeres ou pelo menos de nos consolar por sua perda Com
efeito apoacutes uma boa refeiccedilatildeo o corpo e a alma gozam de um bem-estar especial
Fisicamente ao mesmo tempo em que o ceacuterebro se revigora a face se anima e se colore
os olhos brilham um suave calor se espalha em todos os membros Moralmente o
espiacuterito se aguccedila a imaginaccedilatildeo se aquece os ditos espirituosos nascem e circulam [hellip]
Aliaacutes com frequumlecircncia temos em volta da mesa todas as modificaccedilotildees que a extrema
sociabilidade introduziu entre noacutes o amor a amizade os negoacutecios as especulaccedilotildees o
68
poder as solicitaccedilotildees o protetorado a ambiccedilatildeo a intriga eis por que a convivialidade
tem a ver com tudo eis por que produz frutos de todos os sabores (BRILLAT-
SAVARIN 1995 p170-171)
O trecho acima transcrito expressa que os propoacutesitos para que o prazer da mesa fosse
atingido natildeo eram apenas a amizade e a intenccedilatildeo de conviacutevio entre as pessoas Eacute possiacutevel
verificar que havia tambeacutem entre os objetivos para a partilha das refeiccedilotildees o poder a ambiccedilatildeo e
outros aspectos distantes das alianccedilas de afeto A circunstacircncia do prazer da mesa criava uma
aproximaccedilatildeo maior entre os participantes de disputas poliacuteticas e administrativas favorecendo os
acordos pela ilusoacuteria sensaccedilatildeo de zelo e de alianccedila Nesse periacuteodo o prazer ainda natildeo era
percebido como finalidade e sim como instrumento para a aquisiccedilatildeo de benefiacutecios Segundo
Brillat-Savarin haacute quatro condiccedilotildees para que exista o prazer em uma refeiccedilatildeo
Chegamos portanto a tal progressatildeo alimentar que se os afazeres natildeo nos forccedilassem a
deixar a mesa ou se a necessidade do sono natildeo se interpusesse a duraccedilatildeo das refeiccedilotildees
seria praticamente indefinida e natildeo teriacuteamos nenhum dado certo para determinar o
tempo transcorrido desde o primeiro gole de madeira ateacute o ultimo copo de ponche [hellip]
Desfruta-se o prazer em quase toda sua extensatildeo toda vez que se reuacutenem as quatro
seguintes condiccedilotildees comida ao menos passaacutevel bom vinho comensais agradaacuteveis
tempo suficiente (BRILLAT-SAVARIN 1995 p172-173)
No livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo haacute explicaccedilotildees que muito se assemelham ao exposto
por Brillat-Savarin No capiacutetulo lsquoComer compromete refeiccedilotildees banquetes e festasrsquo o autor Gerd
Althoff expotildee elementos relevantes sobre o papel da refeiccedilatildeo na vida coletiva e social na Idade
Meacutedia
Durante a maior parte da Idade Meacutedia a refeiccedilatildeo e o banquete (convivium) constituiam
o mais eloquumlente siacutembolo de que se dispunha para para expresser o compromisso de
manter relaccedilotildees baseadas na paz e na concoacuterdia A palavra-chave nesse caso eacute
ldquocompromissordquo porque comer e beber junto era uma forma de obrigar-se a satisfazer as
condiccedilotildees que esse tipo de laccedilo implica [] (ALTHOFF 2015 p300)
Acordos e alianccedilas eram entatildeo estabelecidos em banquetes de longa duraccedilatildeo chamados
convivium A relaccedilatildeo de cumplicidade e de compromisso entre os indiviacuteduos estabelecida pela
existecircncia destes eventos natildeo foi por certo o iniacutecio do papel da refeiccedilatildeo partilhada como
elemento agregador entre as pessoas Haacute muitos periacuteodos da histoacuteria como exposto pelos vaacuterios
pesquisadores no livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo em que o comer junto assumiu papel essencial
na comunhatildeo dos membros de uma coletividade sendo a alegria e o prazer algumas das emoccedilotildees
presentes em vaacuterios desses periacuteodos
69
Quando Brillat-Savarin refere quatro condiccedilotildees para desfrutar-se o prazer em uma
refeiccedilatildeo uma dessas eacute que haja lsquocomensais agradaacuteveisrsquo Tal fato nos remete aos elementos da
alianccedila e da paz no conviacutevio entre aqueles que comiam juntos nos banquetes da Idade Meacutedia
mas remete principalmente ao elemento do prazer que aparece atraveacutes do termo lsquoagradaacuteveisrsquo O
prazer eacute um ingrediente necessaacuterio no estabelecimento dessa alianccedila pois propicia que os
indiviacuteduos se comprometam uns com os outros pelo bem-estar que o viacutenculo permite Tal
resultado propicia a constacircncia dessa ligaccedilatildeo importante tambeacutem do ponto de vista poliacutetico na
eacutepoca O bem-estar da refeiccedilatildeo partilhada era entatildeo um meio natildeo um fim era o recurso para a
manutenccedilatildeo da perenidade nas relaccedilotildees garantindo ldquo[] a disposiccedilatildeo de todos os participantes de
cumprirem os deveres dela decorrentesrdquo (ALTHOFF 2015 p309)
Ainda no que tange agrave ocasiatildeo do convivium ressalta-se a forma como as atividades
prazerosas eram proporcionadas com o propoacutesito de reforccedilar a ligaccedilatildeo entre os participantes
Era quase impensaacutevel passar vaacuterios dias natildeo fazendo outra coisa senatildeo comer beber e
trocar presentes mesmo que se atribua aos participantes um apetite e uma inclinaccedilatildeo
para a bebida for a do comum Isso explica que nossas fontes mencionem agraves vezes vaacuterias
atividades paralelas que se poderiam agrupar sob a denominaccedilatildeo de lsquodivertimentos
mundanosrsquo entre os quais os espetaacuteculos dados durante os convivial em que danccedilarinos
(ou danccedilarinas) muacutesicos ambulantes menestreacuteis e poetas distraiam os convivas A
sucessatildeo de pratos e bebidas interrompia-se tambeacutem para permitir aos participantes fazer
um pouco de exerciacutecio Tratava-se de jogos ou agraves vezes de animadas caccediladas
Certamente esses elementos do convivium tinham tambeacutem um valor simboacutelico Viver
algum tempo juntos em paz e partilhar certas atividades criava entre as pessoas o clima
de confianccedila necessaacuterio assegurava-se ao novo parceiro que se desejava a paz e que se
estava disposto a respeitaacute-la e firmava-se o compromisso de continuar a agir assim no
futuro (ALTHOFF 2015 p303)
Assim o prazer afirmava-se como elemento agregador de grande importacircncia na
permanecircncia de viacutenculos Entretanto a finalidade de tais viacutenculos natildeo se concentrava
propriamente no bem-estar em si entre os participantes mas nos benefiacutecios propiciados em
termos de propriedades poder administraccedilatildeo e outros fins de interesse material No convivium
o prazer era oferecido nas atividades de lsquodivertimento mundanorsquo Eacute possiacutevel compreender a
partir desse dado que o prazer da partilha no comer junto da Idade Meacutedia natildeo se aproximava do
prazer com o alimento ou a bebida per se mas com atividades paralelas de divertimento para
entreter os convivas durante os dias de banquete
O prazer entatildeo era ainda um elemento natildeo ligado ao comer pelo sabor da comida assim
como as alianccedilas eram vaacutelidas pelos benefiacutecios que alicerccedilavam natildeo por sua importacircncia para o
bem viver entre os membros de uma coletividade De acordo com Gerd Althoff as relaccedilotildees entre
70
os indiviacuteduos e os costumes como o comer e o beber junto eram de grande importacircncia para a
realidade medieval
Todas as culturas arcaicas recorriam a este meacutetodo para unir uma comunidade
Entretanto os efeitos da refeiccedilatildeo natildeo derivam dela proacutepria De fato na Idade Meacutedia a
refeiccedilatildeo o banquete e a festa serviam para exteriorizar atos administrativos rituais e
portanto convenccedilotildees que serviam para veicular um sentido bem determinado de modo
constrangedor e coercitivo (ALTHOFF 2015 p309)
No capiacutetulo de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo lsquoTempero cozinha e dieteacutetica nos seacuteculos XIV
XV e XVIrsquo haacute relevantes esclarecimentos sobre o papel do prazer no comer e sua importacircncia
para a sauacutede Um dos pontos referidos por seu autor quanto ao papel do uso dos temperos e do
cozinhar os alimentos estaacute relacionado tambeacutem ao prazer alimentar ldquoDe uma maneira geral
todo tempero e todo cozimento ou seja toda cozinha tinha uma dupla funccedilatildeo tornar os
alimentos ao mesmo tempo mais apetitosos saborosos e mais faacuteceis de digerirrdquo (FLANDRIN
2015 p482)
Deste modo falar no prazer de comer torna-se parte da perspectiva histoacuterica desse
periacuteodo quando as especiarias estatildeo no auge de seu reconhecimento Flandrin refere que os
seacuteculos XIV XV e XVI foram o aacutepice de seu papel na cozinha europeacuteia quando esses
ingredientes tinham tambeacutem valor terapecircutico Natildeo se pode referir que o prazer atraveacutes da
comida tenha iniciado nesse periacuteodo histoacuterico mas eacute possiacutevel compreender que esse periacuteodo foi o
iniacutecio do falar em prazer como aspecto favoraacutevel agrave digestatildeo Havia uma aproximaccedilatildeo entre a
gastronomia e a dieteacutetica conforme Jean-Louis Flandrin sugerida no trecho ldquoAos dietistas
interessava o gosto dos alimentos por diversas razotildees Em primeiro lugar porque se digere
melhor aquilo que se come com prazer-como acreditamos ateacute hojerdquo (FLANDRIN 2015 p486)
Compreender o prazer como elemento presente na alimentaccedilatildeo torna-o tambeacutem parte da
sauacutede e do bem-estar do ser humano Esta perspectiva remete ao estabelecido por Karl Jaspers
sobre o prazer Este fenocircmeno seria equivalente agrave satisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas
funccedilotildees orgacircnicas com resultados no equiliacutebrio psiacutequico na percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e no bem-
estar do indiviacuteduo Desse modo ao ler o historiador Jean-Louis Flandrin confirma-se o papel do
prazer na lsquosatisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees orgacircnicasrsquo na concepccedilatildeo do
psicopatologista Jaspers Flandrin conclui o capiacutetulo com a seguinte reflexatildeo
Em resumo cozinhar agravequela eacutepoca assim como hoje era dar aos alimentos os sabores
mais agradaacuteveis- mas agradaacuteveis no acircmbito de uma determinada cultura para um gosto
71
diferente do nosso porque modelado por outras crenccedilas dieteacuteticas outros haacutebitos
alimentares (FLANDRIN 2015 p495)
Falar no prazer de comer entatildeo remete a Karl Jaspers pela concepccedilatildeo meacutedica do prazer
mas tambeacutem a Brillat-Savarin em sua diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer e o prazer da mesa
Para o escritor de A fisiologia do gosto o primeiro eacute de ordem bioloacutegica a meu ver menos ligado
agrave sensaccedilatildeo prazerosa ligada ao sabor e mais associada ao mero saciar da fome o segundo
exclusivo da espeacutecie humana eacute vinculado agrave experiecircncia de conviacutevio agradaacutevel com os comensais
na partilha de uma refeiccedilatildeo
A abordagem da dualidade entre gastronomia e dieteacutetica apontada por Jean-Louis
Flandrin eacute semelhante agravequela da dualidade apontada por Brillat-Savarin o prazer de comer e o
prazer da mesa Talvez essas divisotildees tivessem o propoacutesito de partir o indiviacuteduo em duas
metades a do corpo e a da mente A metade que se satisfaz com o saciar da fome seria entatildeo
diferente da que se apraz da companhia dos amigos agrave mesa A metade que preparava as receitas
pela gastronomia em fins da Idade Meacutedia seria diversa da que seguia as ordens da dieteacutetica
Nesse sentido a visatildeo de Jaspers sobre o prazer eacute a mais completa pois integra a satisfaccedilatildeo
harmocircnica e ordenada das funccedilotildees orgacircnicas ao equiliacutebrio psiacutequico agrave percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e
ao bem-estar do indiviacuteduo
Considerando o prazer alimentar entatildeo como elemento que envolve o corpo e a mente
do saciar agrave fome ao satisfazer o prazer gustativo e social surgem dois novos termos a gula e o
bom gosto
Os seacuteculos XVII e XVIII trouxeram mudanccedilas na relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com o prazer do
gosto Enquanto na Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVII a alimentaccedilatildeo das elites aproximava-
se muito de perto das prescriccedilotildees dos meacutedicos o que se seguiu a partir de entatildeo foi o apagamento
das referecircncias agrave antiga dieteacutetica dando lugar entre cozinheiros e gastrocircnomos agrave harmonia dos
sabores como prioridade Ficou relegado a segundo plano o aspecto de que ldquo[] os sabores eram
ateacute entatildeo ligados tanto a eles como aos meacutedicos sabiamente classificados do mais frio ao mais
quente eles constiuiacuteam uma indicaccedilatildeo segura da natureza dos alimentos e sua digestibilidaderdquo
(FLANDRIN MONTANARI 2015 p548) Um resultado interessante da separaccedilatildeo progressiva
entre cozinha e dieteacutetica foi uma permissatildeo para a gulodice conforme o registro de Histoacuteria da
alimentaccedilatildeo
72
Os refinamentos da cozinha natildeo visam mais manter a boa sauacutede das pessoas mas
satisfazer o gosto dos glutotildees Com uma pequena diferenccedila estes ainda natildeo se
reconhecem como tais e se apresentam como pessoas de paladar apurado apreciadores
de iguarias e peritos na arte de reconhececirc-las (FLANDRIN MONTANARI 2015
p549)
Com o avanccedilo das descobertas e das criaccedilotildees dos cozinheiros e gastrocircnomos o prazer
com os alimentos reveste-se de nova importacircncia a gula Comer torna-se sinocircnimo nesse
contexto de desfrutar do sabor da comida o que muitas vezes eacute partilhado com amigos Para
Brillat-Savarin seria a uniatildeo do prazer de comer e do prazer da mesa O gosto como sentido
fisioloacutegico assume nova representaccedilatildeo eleva-se agrave categoria de bom-gosto com aplicaccedilotildees para
aleacutem dos campos da cozinha De acordo ainda com os organizadores de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo
Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari
O gosto esse sentido de que a natureza dotou o homem e os animais para discernirem o
comestiacutevel do natildeo-comestiacutevel sofreu alias em meados do seacuteculo XVII uma estranha
valorizaccedilatildeo fala-se dele a partir daiacute em sentido figurado a propoacutesito de literature
escultura pintura muacutesica mobiliaacuterio vestuaacuterio etc Em todos esses domiacutenios eacute ele que
permite distinguumlir o bom do ruim o belo do feio eacute o oacutergatildeo caracteriacutestico do lsquohomem de
gostorsquo um dos avatares do homem perfeito Ora essa valorizaccedilatildeo implica uma certa
toleracircncia para com os glutotildees (FLANDRIN MONTANARI 2015 p549)
Bom-gosto gula e prazer satildeo termos que se referem a uma semacircntica do deleite da
experiecircncia gustativa produzida nas cozinhas da eacutepoca com iniacutecio no seacuteculo XVII O indiviacuteduo
comeccedila a perceber a possibilidade de extrair da comida uma espeacutecie de luxuacuteria traduzida pela
gulodice Ele desfruta do sabor do alimento como se estivesse em um climax eis o glutatildeo
Enquanto na alta Idade Meacutedia o prazer nos banquetes vinha das atividades paralelas e seu
propoacutesito natildeo era a experiecircncia prazerosa per se mas a alianccedila e a realizaccedilatildeo de objetivos que
dela resultavam a partir desse seacuteculo o prazer reveste-se de importacircncia nos campos de forno-e-
fogatildeo
Dane-se a dieteacutetica talvez pensassem os sujeitos Gula e prazer eram expressotildees que a
boa comida despertava usufruiacutea deles quem tinha bom-gosto Nascia entatildeo um grupo de
pessoas com os pomposos tiacutetulos de lsquogourmetsrsquo e lsquogastrocircnomosrsquo seguida do surgimento e da
expansatildeo de sua literatura apropriada os tratados de cozinha Um novo modo de vivenciar o
alimento tornava-se cada vez mais abundante Houve um significativo movimento gerado pelo
gosto alimentar ldquoA multiplicaccedilatildeo das artes ligadas agrave alimentaccedilatildeo e das obras teacutecnicas que tratam
delas foi acompanhada sob formas diversas de escritos que fazem a apologia do prazer de comer
e ateacute da glutonaria e da embriaguezrdquo (FLANDRIN MONTANARI 2015 p551)
73
Entretanto tal vivecircncia jaacute existia em menor expressatildeo na Itaacutelia do Quatrocentos Conta-
se que ldquoPlatinardquo o humanista Bartolomeo Sacchi teve relevante papel no prazer de comer no
referido periacuteodo com seu De honesta voluptate
Natildeo soacute este natildeo eacute cozinheiro nem meacutedico [hellip] mas mistura agrave sua documentaccedilatildeo
culinaacuteria e dieteacutetica a lembranccedila nostaacutelgicada alegria que seus amigos e ele
experimentavam ao saborear este ou aquele prato de mestre Martino o grande
cozinheiro romano de meados do seacuteculo acima de tudo ele utiliza isso para defender o
honesto prazer de saborear uma cozinha ao mesmo tempo simples e refinada prazer que
poderiacuteamos hoje classificar como o de um glutatildeo (FLANDRIN MONTANARI 2015
p552)
Por que na eacutepoca de Platina e entatildeo nos seacuteculos XVII e XVIII de efervescecircncia dos
gourmets ou mesmo em nosso seacuteculo XXI a sensaccedilatildeo prazerosa provocada pelo alimento eacute tatildeo
semelhante em sujeitos tatildeo diversos Pelo fato de que o prazer eacute inerente agrave experiecircncia humana
A definiccedilatildeo dada por Jaspers agrave sensaccedilatildeo prazerosa une aspectos da percepccedilatildeo fiacutesica e da
experiecircncia mental integradas Com base em sua definiccedilatildeo e considerando o acima exposto
sobre os termos gula prazer e bom-gosto ocorre a pergunta por que tantos sujeitos de diferentes
eacutepocas vivenciaram o prazer associado agrave comida em especial quando essa assumiu uma
conotaccedilatildeo de importacircncia com o iniacutecio da Gastronomia um termo cognitivo Recorremos a uma
possiacutevel explicaccedilatildeo neurocientiacutefica para esse questionamento a hipoacutetese do ceacuterebro triuno que
abrange a experiecircncia prazerosa como elemento exclusivo do ser humano
A referida hipoacutetese foi proposta pelo meacutedico e neurocientista americano Paul MacLean
em 1970 Segundo tal autor somos compostos grosso modo por trecircs ceacuterebros que trabalham em
colaboraccedilatildeo embora oriundos de diferentes etapas da evoluccedilatildeo das espeacutecies Assim nos
mamiacuteferos superiores existe uma hierarquia de trecircs ceacuterebros em um soacute daiacute o termo triuno De
acordo com a teoria os trecircs operam com diferentes graus de complexidade mas orquestram o
funcionamento humano de forma conjunta O ceacuterebro reptiliano presente desde os reacutepteis ou
arquicoacutertex seria o mais primitivo responsaacutevel pelas questotildees de sobrevivecircncia bioloacutegica como
alimentaccedilatildeo reproduccedilatildeo proteccedilatildeo etc A seguir em termos evolucionistas viria o ceacuterebro
liacutembico ou paleocoacutertex responsaacutevel pela elaboraccedilatildeo das emoccedilotildees como apetite medo raiva
etc presente desde as aves O terceiro e entatildeo o mais evoluiacutedo seria o neocortex responsaacutevel
pela elaboraccedilatildeo dos pensamentos e dos sentimentos e exclusivamente humano
Transpondo essa teoria para o campo alimentar podemos referir o ceacuterebro reptiliano
como responsaacutevel pela fome enquanto o liacutembico seria responsaacutevel pelo desejo por essa ou aquela
74
comida especiacutefica O neocortex viria ao final para dar significado ao que comemos atraveacutes da
compreensatildeo das emoccedilotildees da relaccedilatildeo entre a memoacuteria e o alimento e da atribuiccedilatildeo de conceitos
cognitivos como a noccedilatildeo de bom-gosto No campo gastronocircmico seria possiacutevel entender a
cooperaccedilatildeo dos trecircs ceacuterebros como uma integraccedilatildeo que tem como resultado o prazer de saborear
este ou aquele quitute Saboreamos porque temos fome porque algo nos apetece e nos desperta
desejo por fim porque aprendemos do ponto de vista cognitivo que gostar daquele alimento eacute
permitido e em alguns casos eacute valoroso pois nos torna pertencentes a um grupo como o dos
glutotildees e gourmets Se comer tal alimento for prazeroso isto significa que nossos trecircs ceacuterebros
foram atendidos e estatildeo trabalhando em conjunto Mais uma vez o bem-estar do corpo de da
mente referido por Jaspers
Compreender o prazer que existe como expressatildeo fiacutesica emocional e mental nos
possibilita entender por que esse tambeacutem pode estar associado a patologias nos mesmos
domiacutenios A explicaccedilatildeo estaacute no fato de que para vivenciar esse complexo fenocircmeno eacute preciso
que sejamos humanos e que nossos trecircs ceacuterebros operem em orquestra vulneraacuteveis agraves
experiecircncias positivas ou negativas inexoraacuteveis
24 O PRAZER DA COMIDA
A partir da constataccedilatildeo do engorde e da dieta orientada pelo meacutedico a protagonista de
Por que sou gorda mamatildee lsquopassa a vida a limporsquo em sua memoacuteria Com o propoacutesito de
compreender o porquecirc de seu engorde escreve uma carta para a matildee em trechos ora
confessionais ora acusatoacuterios esperando na correspondecircncia construir para si a resposta ao
longo das lembranccedilas que evoca
O balanccedilo entre o passado e o presente alinha a compreensatildeo sobre o papel dos trajetos de
vida desde a infacircncia no quadro atual de sauacutede Os vinte e dois quilos ou cento e dez tabletes de
manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha satildeo o resultado dos sofrimentos que vivenciou
do afeto que natildeo recebeu e da comida que devorou A dor emocional eacute de fato sua mas talvez
seja tambeacutem heranccedila da Voacute Gorda da Voacute Magra do pai e da matildee Nas histoacuterias entrelaccediladas lecirc-
se uma pesada bagagem de dores ancestrais
Atraveacutes da intersecccedilatildeo entre as vivecircncias eacute possiacutevel ler na obra trecircs tempos
predominantes com fronteiras tecircnues entre si aquele dos antepassados que a protagonista
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conhece por ouvir contar o tempo da infacircncia que ela narra pelas recordaccedilotildees e o tempo
presente da dieta que provoca as idas e vindas da narrativa a fim de descobrir as causas de seu
aumento de peso As fronteiras satildeo tecircnues pois os trecircs tempos embora diversos no calendaacuterio
misturam-se na personagem ora como lembranccedila ora como reflexatildeo No percurso da obra o
elemento que liga as histoacuterias eacute na maioria das vezes a sensaccedilatildeo prazerosa com a comida
mesmo quando a referecircncia aponta para o contraacuterio sentimentos de culpa pela obesidade e de
revolta pela restriccedilatildeo alimentar
Haacute uma ligaccedilatildeo natural entre o comer e o prazer para aleacutem da rima Desde a
amamentaccedilatildeo a chegada do leite materno eacute acompanhada pelo contato de afeto da matildee com o
bebecirc e pela experiecircncia de prazer fiacutesico associada agrave succcedilatildeo Assim alimento viacutenculo afetivo e
prazer satildeo parte de nossas primeiras memoacuterias e podem permanecer como o tripeacute que daraacute
suporte a muitos de nossos padrotildees de comportamento ao longo da vida Esse tripeacute contudo
pode desestabilizar-se caso haja preponderacircncia de um dos componentes gerando experiecircncias
de sofrimento associadas a tal desequiliacutebrio
A referida situaccedilatildeo aliaacutes estaacute muito bem expressa nessa obra na qual a vivecircncia da
personagem frente ao engordar mostra o quanto o comer em sua vida ocupou muitas vezes os
espaccedilos de amor e de seguranccedila deixados vazios pela ausecircncia desse afeto Sobretudo por parte
dessa matildee o proacuteprio tiacutetulo do livro dirigido a ela sugere que seja vista como culpada pelo
processo de engorde da personagem Em diversas passagens da obra a comida eacute citada como
abundante enquanto a expressatildeo das emoccedilotildees eacute percebida como escassa
Encontramos a posteridade dentro da fartura pela qual devemos agradecer todos os dias
e da qual ainda hoje devemos nos afastar por forccedila da geneacutetica O excesso de comida o
excesso de zelo o excesso dos excessos tudo ficou em noacutes como lembranccedila e como
estoque de uma espeacutecie de amor do qual ainda hoje nos valemos quando o amor falta
minguado (MOSCOVICH 2006 p220)
A vivecircncia do prazer da comida eacute apresentada em diversos fragmentos tanto associados agrave
narradora quanto agrave sua matildee a quem dirige as reflexotildees sua Voacute Magra seu pai e seus irmatildeos
Uma das passagens mais ilustrativas do papel desempenhado pela sensaccedilatildeo prazerosa nesta
narrativa estaacute no trecho de uma viagem O que as personagens experimentam nesta cena parece
muito proacuteximo ao lsquohonesto prazerrsquo referido por Platina mencionado anteriormente Lembrando
de uma viagem em famiacutelia durante um percurso ao Uruguai a protagonista remonta um
momento em que sua matildee ela e os irmatildeos lambuzavam-se com doces no carro
76
[hellip] A senhora de repente deu ordem expressa para que o pai estacionasse ali naquele
ponto bem na frente daquela confeitaria a Carrero O carro nem bem tinha parado nem
bem nossos protestos se haviam esvaiacutedo com a agilidade de seu movimento e a senhora
jaacute entrava na Carrero atraveacutes da porta de vidro porta muito pesada em sua fidalguia de
anos servindo o fino paladar uruguaio Porta que a senhora cruzou duas vezes em toda
sua vida - aquela era a segunda
Ficamos ali os quatro com os narizes achatados de curiosidade contra as janelas do
Ford Natildeo demorou nem bem cinco minutos e a senhora logo apareceu com trecircs garrafas
de Crush de laranja em uma das matildeos e na outra uma bandeja de doces - e me lembro
que o pai soltou uma gargalhada e sacudiu a cabeccedila num gesto de anuecircncia
Os doces foram devorados com seu incentivo feliz as garrafas passavam de matildeo em
matildeo limpava-se a boca com guardanapinhos de papel ou com a manga do casaco A
senhora se empanturrou e nos empanturrou Ningueacutem deu muita bola para os farelos de
massa folhada e para as manchas de doce de leite que ficaram melecando o estofamento
ateacute que voltaacutessemos para casa trecircs dias depois (MOSCOVICH 2006 p72)
Esta eacute a uacutenica cena de prazer compartilhado entre a narradora os irmatildeos e a matildee Eacute a
uacutenica cena tambeacutem em que a matildee aparece permitindo-se o deleite com algazarra com alegria
desfrutando do saborear em famiacutelia os doces da confeitaria A personagem refere que a matildee
cruzara a porta do estabelecimento duas vezes na vida e aquela era a segunda Haacute uma referecircncia
indireta aqui agrave escassa permissatildeo em sua matildee para esse tipo de prazer com farelos e doce de
leite espalhado Uma permissatildeo a si mesma de lambuzar-se com o prazer de partilhar o doce o
afeto a brincadeira O lsquohonesto prazerrsquo de Platina que misturava agrave sensaccedilatildeo prazerosa quem
sabe a alegria entre as pessoas Essa eacute a emoccedilatildeo que habita a cena e natildeo somente a gula pelos
doces
A matildee aparece protagonizando outras duas cenas de prazer alimentar ambas associadas a
uma condiccedilatildeo de sauacutede para a qual precisou fazer um cateterismo Entretanto a sensaccedilatildeo
prazerosa eacute expressa como experiecircncia de permissatildeo individual e natildeo partilhada com a famiacutelia
como no deleite dos doces e do refrigerante no carro A narradora conta sua lembranccedila sobre os
dois episoacutedios vividos pela matildee o primeiro antes do procedimento o segundo apoacutes
Naquela noite depois da cintilografia a senhora devorou meio quilo de patildeo com
manteiga um bule de cafeacute e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Disse que jaacute que
ia morrer comeria o que lhe desse na veneta (MOSCOVICH 2006 p119)
Jaacute em casa a senhora voltou ao tempo do seu rosto e apesar da ferida aberta na virilha
tornou-se de novo uma avoacute E o mais gracioso foi que naquela noite devorou meio
quilo de patildeo com manteiga uns cem gramas de mortadela um pote com azeitonas
pretas e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Me disse que jaacute que natildeo ia morrer
comeria o que lhe desse na telha (MOSCOVICH 2066 p124)
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Compreende-se como o prazer de comer estaacute vinculado a uma justificativa aceitaacutevel em
uma e em outra ocasiatildeo lsquojaacute que ia morrerrsquo e lsquojaacute que natildeo ia morrerrsquo Natildeo haacute uma vivecircncia da
sensaccedilatildeo prazerosa experimentada pela matildee nesses casos sem uma razatildeo que fundamente a
permissatildeo Outro ponto a salientar estaacute nas frases lsquocomeria o que lhe desse na venetarsquo e lsquocomeria
o que lhe desse na telharsquo em que lsquodar na venetarsquo e lsquodar na telharsquo fazem alusatildeo agrave satisfazer a
vontade o impulso da hora expressotildees ligadas ao prazer Os fragmentos apresentados fornecem
dados para que se possa compreender que na personagem da matildee esse prazer do ldquodar na venetardquo
soacute poderia ser permitido se associado a uma razatildeo muito forte como a possibilidade de ela
morrer no procedimento
Aleacutem das questotildees psiacutequicas da ligaccedilatildeo entre cozinha e prazer existe a influecircncia da
cultura presente nas famiacutelias de acordo com a relaccedilatildeo que seus antepassados estabeleciam com a
comida com o prazer e com os viacutenculos Eacute possiacutevel aprender que um alimento eacute saboroso ou
condenado porque essa informaccedilatildeo passa de uma geraccedilatildeo agrave outra natildeo como uma carga geneacutetica
mas como uma transmissatildeo de aprendizado cultural O que eacute transmitido ao grupo familiar eacute
dependente do significado da comida para os diferentes povos Dentro das famiacutelias haacute tambeacutem
coacutedigos representados pelo alimento muitas vezes compartilhados pelos membros como
acontece entre a protagonista e sua Voacute Magra
Eu imitei a voacute fiz ach e dei um tapinha no ar Natildeo tinha mesmo importacircncia nenhuma
Noacutes duas comeccedilamos a rir De matildeos dadas fomos ateacute a cozinha buscar algo com
bastante accediluacutecar para comer Doces nos deixavam fortes e felizes
Como diz mais um velho ditado avoacutes e netos se datildeo bem porque tecircm um inimigo em
comum (MOSCOVICH 2006 p99)
O episoacutedio refere-se ao conflito entre sua matildee e a Voacute Magra avoacute materna e a
protagonista posiciona-se a favor da avoacute partilhando com ela o prazer de lsquobuscar algo com
bastante accediluacutecar pra comerrsquo Existe clara cumplicidade com a avoacute expressa na frase lsquoDoces nos
deixavam fortes e felizesrsquo Essa mesma comunhatildeo eacute demonstrada nos trechos sobre os passeios
que elas faziam juntas quando a Voacute Magra a levava consigo nas andanccedilas ao centro para vender
roupas na infacircncia da narradora
Ela bem gostava daquela funccedilatildeo ou ao menos aparentava gostar e se aparentava fingia
muito bem Depois de uma boa venda saiacutea exibindo um ar glorioso e altaneiro uma
conquistadora que avanccedila sobre terra remota e me puxando pela matildeo me punha diante
de um copo de guaranaacute- o copo que ela inspecionava muito bem e submetia ao processo
de assepsia com o lencinho- uma garrafa de refrigerante e um mil folhas partido ao meio
davam bem para noacutes duas Tatildeo bem que nem fazia falta a outra metade
78
O que eu aprendi com vovoacute foi bastante aleacutem do que pretendia papai Ela natildeo queria me
mostrar como se ganhava o patildeo natildeo tinha interesse em expor a neta a sofrimento algum
O que a voacute queria mesmo com aquelas excursotildees era a farra de dividir comigo um doce e
um refrigerante a gente se refestelando com creme de confeiteiro Ela pagou com
antecipaccedilatildeo aquelas pequenas felicidades coisa que ela mais amava no mundo
(MOSCOVICH 2006 p91-92)
Para a protagonista e sua Voacute Magra esses passeios representavam mais do que a
oportunidade de saborearem o mil folhas eram a chance de partilharem juntas o prazer de um
coacutedigo que comungavam o sabor doce Ao ler-se as passagens desta avoacute com ela e com seus
irmatildeos ao longo da obra compreende-se que este sabor doce eacute com nitidez o afeto partilhado
entre a Voacute Magra e os netos Para a avoacute o deleite com a comida tem raiacutezes culturais e vivenciais
O livro aponta a fome ancestral como possiacutevel razatildeo de seu prazer com a comida Jaacute no
capiacutetulo um ela apresenta sua Voacute Magra importante referencial em sua histoacuteria com o papel da
comida e com o engorde A obra comeccedila pelo cerne do significado da comida para a famiacutelia a
fome Essa vivecircncia eacute elemento relevante na histoacuteria familiar da protagonista A fim de
corroborar o papel da fome na dimensatildeo que cozinha ocupa na literatura judaica vale apresentar
a contribuiccedilatildeo de Ana Maria Shua em sua obra Risos e emoccedilotildees da cozinha judaica
A comida ocupa um lugar importante na literatura judaica Seguramente porque ocupa
um lugar importante na vida judaica na vida material e tambeacutem por razotildees religiosas
na vida espiritual Acima de tudo os judeus da Europa Oriental tendiam a contar com o
uacutenico adereccedilo capaz de converter em excelente qualquer comida para qualquer paladar a
fome Natildeo chama a atenccedilatildeo desse modo que o tema da comida apareccedila uma e outra vez
entre os sempre famintos personagens de sua literatura (SHUA 2016 p113)
O entendimento da comida como milagre aponta o poder que lhe era atribuiacutedo pela Voacute
Magra conforme narra a protagonista
Para quem vem de uma famiacutelia que nos miseraacuteveis e congelados vilarejos judeus da
Europa passou fome de comer soacute repolho ou soacute batata para a qual naqueles shtetels
carne era uma abstraccedilatildeo que os dentes nem conheceram e que se acostumou a aplacar o
oco do estocircmago com sopa de beterraba ou com aquele mameligue que nada mais era
do que um mingau meio insosso de farinha de milho e aacutegua a obsessatildeo por comida nada
tem ou nada deveria ter de extraordinaacuterio Vovoacute Magra assim como todas as avoacutes
acreditava que a comida era um milagre capaz de moldar crianccedilas em adultos um
homem eacute o peso daquilo que come uma boa refeiccedilatildeo vale a prece por um dia a mais de
vida
O caso era que diante de um prato de comida Vovoacute Magra parecia encontrar o sentido
da existecircncia (MOSCOVICH 2006 p21)
A comida era milagre e sentido da existecircncia para sua avoacute de acordo com a protagonista
entretanto vai aleacutem mostrando a voracidade o apetite o prazer afoito com que aquela comia O
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aspecto interessante foi a narradora referir-se ao termo lsquodesesperorsquo que denota uma espeacutecie de
sofrimento A avoacute sentiu tanta fome que quando pocircde comer tornou o alimento a resposta para
todas as faltas mesmo as futuras A comida era um modo de prevenccedilatildeo contra a fome que ela
pudesse vir a passar novamente
E comia comia comia
Comia ovos duros comia coalhada comia milho comia carne comia saladas comia
frutas- especialmente laranjas-do-ceacuteu que docinhas natildeo espicaccedilavam o paladar ao
contraacuterio do azedo das laranjas-de-umbigo que ela tambeacutem comia Comia tanto que se
via nela um desespero E de tanto passer fome decerto vovoacute por mais que comesse e se
fartasse natildeo engordava Cinturinha fina seios achatados quadric estreitos heranccedila que
a senhora mamatildee abocanhou e que natildeo me deu
Da vovoacute soacute herdei o apetite ancestral o mesmo que a senhora herdou (MOSCOVICH
2006 p21-23)
O apetite eacute capaz de promover a antecipaccedilatildeo do prazer pela lembranccedila e pelo desejo de
comer determinado alimento aleacutem de estimular a repeticcedilatildeo do que satisfaz pela gratificaccedilatildeo que
o ceacuterebro registra Se tal prato eacute saboroso e lhe apetece o indiviacuteduo vai buscaacute-lo de novo e assim
sucessivamente Por isso a Voacutevoacute Magra lsquocomia comia comiarsquo e lsquocomia tanto que se via nela um
desesperorsquo Entatildeo quando a narradora comeccedila a passagem falando em fome e a conclui
referindo-se ao lsquoapetite ancestralrsquo estaacute dizendo que em sua avoacute a fome transformou-se no prazer
pela comida
Ainda assim havia respeito agraves proibiccedilotildees religiosas ligadas agrave tradiccedilatildeo culinaacuteria judaica A
narradora descreve sobre os haacutebitos alimentares da Voacute Magra ldquoExceto por carne de porco ou
mariscos e outras coisas gosmentas vindas da aacutegua ndash alimentos que a Lei considera impuros e
que portanto eram iguais agrave pedra que se interdita levar agrave boca ndash natildeo havia comida que ela
desprezasserdquo (MOSCOVICH 2006 p21-23)
Entatildeo embora houvesse o respeito agraves restriccedilotildees impostas havia tambeacutem o prazer com os
alimentos permitidos fossem ou natildeo pertencentes agrave culinaacuteria tradicional judaica Eacute neste ponto
que se aproximam os textos da ficccedilatildeo e da teoria fontes de estudo no presente capiacutetulo Natildeo se
nega que haja a proibiccedilatildeo a certos alimentos aspecto em que a obra de Ciacutentia Moscovich foi fiel
agrave cultura culinaacuteria judaica mas a mesma tambeacutem problematizou o espaccedilo de prazer existente na
cozinha de sua tradiccedilatildeo
Outro elemento relevante na anaacutelise da passagem acima eacute o que a narradora refere quando
menciona ter herdado de sua avoacute apenas o lsquoapetite ancestralrsquo Nesse ponto da narrativa atribui
agraves raiacutezes familiares seu gosto pela comida Eacute significativo que a narradora comece o texto falando
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sobre a fome e o encerre usando o termo apetite pois se pode pensar na fome como uma
necessidade bioloacutegica do corpo que natildeo difere um alimento de outro O propoacutesito da fome eacute ser
saciada No que tange ao apetite pode-se pensar no apetite por algo o que o torna mais
especiacutefico agraves preferecircncias alimentares e desse modo mais proacuteximo ao prazer Foi o que Voacute
Magra descobriu
Eacute visiacutevel seu gosto por essa ou aquela comida sua profunda sensaccedilatildeo prazerosa com
ingredientes e pratos tiacutepicos Natildeo os escolhe apenas para saciar a fome deseja isso sim
satisfazer o apetite deleitar-se Com todas as restriccedilotildees que a tradiccedilatildeo impunha descobriu no
alimento fonte de prazer e com os netos de expressatildeo afetiva Havia tambeacutem um sentido de
aproveitar do alimento tudo o que ele poderia oferecer natildeo desperdiccedilando nada de sua
substacircncia Mesmo com o propoacutesito desse aproveitamento dedicava-se a fazer comidas e doces
saborosos como a narradora lembra no trecho abaixo
E havia aquele creme de laranja que era uma nuvem accedilucarada de sabor contrastante
um nada azedinho rompendo o doce dava ateacute um arrepio Era o jeito de a voacute aproveitar
as frutas que sobravam no mercado Natildeo se pode desperdiccedilar sumo algum mesmo que
as frutas despenquem podres no meio das sobras (MOSCOVICH 2006 p94)
O trecho expressa o fazer culinaacuterio de um doce que deixou lembranccedilas sensoriais na
protagonista expressas por termos como lsquonuvem accedilucarada de sabor contrastantersquo lsquoum nada
azedinho rompendo o docersquo e sobretudo a revelaccedilatildeo de que lsquodava ateacute um arrepiorsquo Entretanto as
escolhas alimentares na cultura judaica natildeo teriam por princiacutepio dar relevacircncia ao prazer mas aos
elementos religiosos Existe um conjunto de regras de idoneidade alimentar na cozinha judaica
chamada kasherut e cada alimento pertencente a tal conjunto e entatildeo permitido eacute chamado
kasher A respeito das tradiccedilotildees religiosas implicadas na alimentaccedilatildeo Ariel Toaff no capiacutetulo
lsquoCozinha judaica cozinhas judaicasrsquo do livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas
esclarece
Afirma-se em geral que as praacuteticas da alimentaccedilatildeo judaica estatildeo essencialmente
enquadradas na oacutetica do sistema religioso fundamentadas em proibiccedilotildees biacuteblicas
ampliadas e interpretadas pelas normativas rabiacutenicas Em outros termos o judeu comeria
alimentos que lhe satildeo permitidos descartando todos aqueles que de uma ou outra forma
entrassem nas categorias explicitamente proibidas pela biacuteblia ou pela hermenecircutica
geralmente extensa da ritualiacutestica posterior Nesse sentido suas escolhas alimentares
deveriam ser consideradas como fundamentos de sua identidade cultural e religiosa A
gama de proibiccedilotildees parece vasta e sem duacutevida condicionante (TOAFF 2009 p179)
81
Eacute interessante observar que mesmo focados na obediecircncia agraves normas havia uma culinaacuteria
rica de prazer dentro da cultura Apesar das influecircncias externas e as proibiccedilotildees religiosas
configurou-se uma cozinha judaica nuclear baseada no gosto Na Europa do seacuteculo XV ou XVI
os alimentos definidos como lsquoagrave hebraicarsquo ou lsquoagrave judiarsquo expressavam ingredientes gosto e aspecto
tipicamente judaicos e eram imediatamente reconhecidos como tal
O marzipatilde e as panquecas com mel e canela o patecirc de fiacutegado gordo os Griben (pedaccedilos
fritos de pele [de ave]) e os salsichotildees de ganso o hamin a carne guisada do Shabatt
com feijotildees e gratildeos-de-bico lsquocom pimenta e alhorsquo as alcachofras fritas lsquoagrave rosarsquo e a
endiacutevia assada no forno com lsquopeixe azulrsquo todos eles alimentos cuja preparaccedilatildeo era
comumente qualificada como lsquoagrave hebreacuteiarsquo natildeo eram decerto chamados desse modo pelo
fato de seu consumo ser permitido ou prescrito aos judeus pelas normas da biacuteblia e dos
rabinos mas porque se reconhecia neles a expressatildeo particular do gosto judaico [hellip] O
fato incontroverso eacute que o gosto gastronocircmico judaico parecia evidentemente diverso
daquele do ambiente cristatildeo circundante (TOAFF 2009 p183)
A evocaccedilatildeo sensorial eacute provocada pelos alimentos judaicos quando ateacute os nomes
despertam curiosidade e imaginaccedilatildeo pela forma e pelo gosto Ali estaacute bem expresso um conjunto
de sabores pertencentes agrave cultura e agrave vivecircncia de prazer associados agrave comida O capiacutetulo de Ariel
Toaff no livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas defende que o gosto e o prazer
na culinaacuteria judaica foram elementos de forccedila suficiente para ultrapassarem as proibiccedilotildees
religiosas aspecto corroborado pelo grande nuacutemero de receitas daquela cultura
O prazer alimentar estaacute associado a esse aspecto cultural de um povo Carlos Alberto
Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira aponta que
Em termos simples todo dia eu acordo me sentindo brasileiro ou espanhol ou tcheco
etc Isso ocorre porque falo uma liacutengua alimento-me de determinada comida sei como
meus compatriotas se comportaratildeo diante de certas situaccedilotildees e assim por diante Haacute um
sentimento multifacetado de pertencimento que me faz nacional (DOacuteRIA 2014 p24)
Esse pertencimento tem como parte culinaacuteria pois identifica gostos e ingredientes de um
povo No caso especiacutefico da culinaacuteria judaica essa caracterizaccedilatildeo ocorre mesmo quando
adaptada a outras culturas e produtos como Toaff aponta Em por que sou gorda Mamatildee a
narradora faz um relato que contempla a cozinha judaica vivenciada em sua infacircncia adaptada agrave
cultura local sem no entanto perder sua principal expressatildeo nos pratos tiacutepicos
Como sempre acreditamos no aprendizado pela dor a fome passou a ser o grande
mestre liccedilatildeo que pai nenhum queria que os filhos aprendessem Atestando que os
tempos haviam mudado e que este naco do Brasil era uma Canaatilde as cozinhas do Bairro
eram usinas de todo tipo de comida
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Agraves sete da manhatilde mal se pulava da cama e uma nuacutevem aromaacutetica e uacutemida jaacute tinha
invadido a casa As panelas ferviam galinhas as cebolas se atiravam agrave fritura as lacircminas
das facas trituravam ramos de tempero verde colheres de pau puxavam refogados nas
caccedilarolas batalhotildees rechonchudos de almocircndegas se alinhavam nas taacutebuas de carne ao
lado de um fornido regimento de varenikes que logo iam encontrar seu destino na aacutegua
pelando No bairro inteiro cedinho frio ou calor chuva ou sol matildeos zelosas estripavam
peixes recheavam pimentotildees cortavam ovos duros mexiam guisados lavavam arroz
arrancavam folhas dos ramos de louro Tempero lambido na concha da matildeo douravam
batatas raspavam cenouras sovavam massas fatiavam tomates queimavam berinjelas
batiam espinafre amassavam miuacutedos de frango esmagavam dentes de alho Enquanto
pepinos eram enfiados em enormes potes de vidro para a conserva de salmoura
amendoins em trouxas de panos de prato eram batidos a martelo pecircssegos ameixas e
peras se compotavam marmelos de accedilucaravam cremes se encorpavam nacos de
goiaba e punhados de uva em passa enchiam o oco de maccedilatildes vermelhas e lustrosas
(MOSCOVICH 2006 p48-49)
A escolha pelo uso do preteacuterito imperfeito nos atos culinaacuterios ilustra o aspecto rotineiro
com que essas praacuteticas eram realizadas dentro da vida do bairro de predominacircncia judaica Todo
cotidiano era tecido pela manhatilde pelos aromas texturas e costumes que compunham a cultura
local O trecho remete o leitor a um passado que se perpetua atraveacutes dos movimentos vividos nas
cozinhas pelo que a narradora refere como lsquomatildeos zelosasrsquo Haacute no pano de fundo desse
fragmento a ideia da repeticcedilatildeo das accedilotildees como marca de continuidade de haacutebitos gostos e
preferecircncias A narradora prossegue seu relato transmitindo lembranccedilas da cozinha judaica
vivenciadas em seu bairro
Eu feliz na atmosfera lavada das manhatildes mastigando o haacutelito de cafeacute e pasta de dente
gostava de ver as mulheres que vinham da feira livre com sacolas nas quais adejavam
verduras outras traziam suspensas de ponta-cabeccedila galinhas vivas que arregalavam os
olhos redondos num susto de morte Algumas donas de casa elas mesmas fariam o
talho na garganta por onde se esvairia o sangue do bicho enquanto outras mais
piedosas ou covardes ou que seguissem a lei alimentar a kashrut recorriam ao shochet
responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual Todas para um uacutenico lugar a cozinha matriz do
afeto de nossa gente Pratos com nomes esquisitos e tatildeo familiares varenikes beigales
mondales knishes strudels iuchs kasha rossale borscht guefiltefish chrein kishke
kreplach tzimes
Comida para um exeacutercito (MOSCOVICH 2006 p49 grifo do autor)
No trecho acima lecirc-se o aspecto religioso ligado agrave culinaacuteria quando a narradora aborda a
lei alimentar a kashrut e o shochet responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual das galinhas Outro
elemento apontado eacute a referecircncia aos pratos judaicos remetendo agrave ligaccedilatildeo entre cozinha e
pertencimento a um povo elemento cultural referido por Carlos Alberto Doacuteria apresentado
anteriormente Um ponto relevante apontado por esse autor eacute a citaccedilatildeo de Levi Strauss ldquoGestos
aparentemente insignificantes transmitidos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua
insignificacircncia mesma satildeo testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou
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movimentos figuradosrdquo (DOacuteRIA 2014 p215) Assim eacute possiacutevel compreender os gestos
corporais dos atos culinaacuterios apresentados pela narradora sobre a rotina alimentar em seu bairro
como um importante testemunho da cultura judaica daquele territoacuterio
Aleacutem disso uma frase de grande relevacircncia no fragmento eacute lsquoTodas para um uacutenico lugar a
cozinha matriz do afeto de nossa gentersquo Nessa o viacutenculo entre o comer e o afeto expressa um
importante fator da cultura judaica a essa ligaccedilatildeo estaacute associada tambeacutem a sensaccedilatildeo prazerosa
da comida partilhada Carlos Alberto Doacuteria expotildee a reflexatildeo de Annie Hubbert quando ela
registra
Especialmente nas sociedades onde as representaccedilotildees coletivas passam por livros
religiosos (os judeus os cristatildeos e os muccedilulmanos) o ato de comer aparece ligado ao
amor materno e recusar a comida eacute o mesmo que recusar essa modalidade fundante de
afeto um ato que exprime grande emoccedilatildeo (DOacuteRIA 2014 p204)
Dividir a comida eacute tambeacutem nutrir o sentimento de pertencer ao grupo de fomentar a
permanecircncia dos atos que satildeo parte dos costumes desse grupo como aqueles atos apresentados
no trecho anterior em preteacuterito imperfeito atos culinaacuterios que satildeo parte do cotidiano das
cozinhas do bairro Somam-se alimento afeto rotina cultura prazer pertencimento partilha
continuidade
Ainda sobre o gosto da cozinha judaica Toaff escreve
As mercearias dos guetos pululavam de clientes cristatildeos mais gulosos do que
esfomeados [hellip] A aproximaccedilatildeo dos cristatildeos agraves comidas judaicas era sempre ambiacutegua e
ambivalente atraiacutedos (e ao mesmo tempo desconfiados) por aqueles pratos que podiam
ter significados hereacuteticos imprevistos e por aqueles sabores exoacuteticos que exerciam
veladas seduccedilotildees de transgressatildeo lsquoComer agrave judiarsquo era um pouco como tornar-se judeu
no prazer de um momento sentir de dentro o fasciacutenio daquilo que era difiacutecil (e talvez
impossiacutevel) aprender de fora [hellip] Comer uma alcachofra lsquoagrave judiarsquo ou uma fatia de patildeo
aacutezimo era como fazer uma perigosa e temeraacuteria viagem ao estrangeiro uma espeacutecie de
percurso sedutor da igreja agrave sinagoga da qual poreacutem pretendia-se voltar o mais raacutepido
possiacutevel (TOAFF 2009 p183-184)
Compreende-se assim que a cozinha judaica tinha o apelo sedutor que provocava prazer
ateacute em outras culturas como a cristatilde Isso ocorria por sua forccedila especiacutefica pelo nuacutecleo vasto de
receitas e de modos-de-fazer este ou aquele prato no entanto tal apelo ocorria em grande parte
por simbolizar o proibido e o desconhecido aos cristatildeos Agradava-lhes a transgressatildeo dessa
cozinha tiacutepica seus sabores e significados Natildeo se tratava apenas de apreciar o gosto mas
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tambeacutem o que tal culinaacuteria representava a um ambiente cultural diverso enfrentar a culpa e
encontrar o prazer do gosto clandestino
Para os proacuteprios judeus a amplitude de receitas e de gostos dos pratos lsquoagrave judiarsquo era tatildeo
arraigada que o gosto era parte de suas escolhas para aleacutem da imposiccedilatildeo religiosa Sobre isso
Toaff reflete ldquoHaacutebitos e tradiccedilotildees alimentares inquietudes irracionais gosto e nostalgias faziam
com que mesmo nos casos extremos o paladar abandonasse o judaiacutesmo muito mais lentamente e
de maacute vontade do que o coraccedilatildeo ou a menterdquo (TOAFF 2009 p185)
Ariel Toaff demonstra o ponto a ser discutido sobre o aspecto cultural dessa culinaacuteria em
relaccedilatildeo ao prazer alimentar as restriccedilotildees e as proibiccedilotildees religiosas de um lado o prazer de
manter vivo o respeito pela tradiccedilatildeo de receitas tiacutepicas lsquoagrave judiarsquo que representam o gosto
alimentar dos judeus de outro Apesar das proibiccedilotildees a essecircncia da cozinha judaica se manteve
atraveacutes de uma vasta quantidade de receitas Eacute possiacutevel compreender isso pelo fato de o prazer
ser um fenocircmeno exclusivamente humano cujas caracteriacutesticas satildeo o equiliacutebrio fisioloacutegico e
psiacutequico que leva ao bem-estar de acordo com o Jaspers Em sendo fenocircmeno humano
pronuncia-se no indiviacuteduo de todos os tempos e de todas as culturas e eacute elemento ateacute mesmo
capaz de sobrepujar um constructo como as proibiccedilotildees religiosas como no caso da cozinha
judaica
O que mais chama a atenccedilatildeo lendo a pesquisa de Ariel Toaff eacute de como o gosto judaico
foi sendo construiacutedo a ponto de configurar-se como uma tradiccedilatildeo culinaacuteria Outro elemento
interessante referido pelo autor satildeo os processos de osmose com outras culturas alimentares a
partir das emigraccedilotildees dos judeus para diferentes territoacuterios O paladar judaico foi adicionando
alimentos agrave sua lista ingredientes e pratos de outras culturas foram sendo incorporados ao seu
gosto
Um trecho que ilustra essa lsquoosmosersquo estaacute no comeccedilo de Por que sou gorda mamatildee
quando a narradora-personagem conta a histoacuteria da chegada de sua famiacutelia ao Brasil e a
aproximaccedilatildeo de seu bisavocirc a um iacutendio proacuteximo agrave moradia da famiacutelia
[hellip] Um desses bugres vovoacute natildeo tinha certeza de que era o mesmo que fora aprisionado
deixou uma tigela de farinha - dependendo da versatildeo um pedaccedilo de carne- na porta da
casa O bisavocirc na mesma tijela e no mesmo lugar ofereceu para o iacutendio uma porccedilatildeo de
aipim cozido (ou uma porccedilatildeo de chulent ou um pedaccedilo de leikech) Tijela vai tijela
volta o bugre fez amizade com o bisavocirc falavam-se de iniacutecio com os dedos Depois
passaram a dividir o mesmo tronco de aacutervore no qual o bisavocirc sentava para o descanso
do final da tarde Depois para o pasmo geral viram o iacutendio vestindo uma camisa e uma
85
calccedila do bisavocirc mesma eacutepoca em que vovoacute viu entrar em casa uma gamela talhada em
madeira e uma cesta em trama de taquaras
Mesmo que mulheres e crianccedilas estivessem proibidas de se aproximar do bugre ele de
posse de uma enxada passou a ajudante nas lides da roccedila e a trazer aacutegua de uma sanga
ali perto Tambeacutem alcanccedilava ervas com as quais o bisavocirc fazia emplastros para as dores
nas juntas e picadas de insetos aleacutem de infusotildees e chaacutes para tosse e vermes
A vovoacute jurava que era verdade quando viram o iacutendio falava iiacutediche
Deram ateacute nome para o homem Chamavam-no Salvador (MOSCOVICH 2006 p65-
66 grifo nosso)
A osmose era natildeo apenas de ingredientes mas de costumes de atitudes de
camaradagens Havia prazer nas trocas e no conviacutevio do bisavocirc com o iacutendio Esse trecho eacute um
dos mais representativos da obra pois expressa de forma muito clara como a cultura judaica foi
permeaacutevel no exemplo narrado agraves influecircncias e agraves gentilezas e escambos do bugre A famiacutelia
comeccedilava sua histoacuteria em terras brasileiras Um trecho que expressa o papel da comida nos
primeiros tempos da famiacutelia no Brasil eacute o que segue
Uns oito nove ou dez anos depois da chegada ao Brasil o bisavocirc tinha abandonado a
colocircnia e enveredado pelos interiores do hemisfeacuterio mascateava Soacute laacute naquela Canaatilde
da fronteira entre o Brasil e o Uruguai terminou a busca de um futuro que seria melhor
mas que natildeo seria dele Havia chocolates Aguila chaja embalado em papel manteiga
morrones queimados na brasa e carne muita que se assava em grelhas sobre braseiro
vivo Tudo isso natildeo chegava agrave casa e agrave mesa da famiacutelia que se alimentava de mameligue
ou farinha de mandioca agrave qual se acrescentava cafeacute com muito accediluacutecar que accediluacutecar natildeo
podia faltar Aos domingos cada um dos filhos recebia um tablete de mariola piteacuteu
envolto em papel celofane a ser poupado ateacute a semana seguinte um pedacinho de cada
vez Ou chupado como se fosse bala que assim durava mais (MOSCOVICH 2006
p71 grifo ou do autor)
Assim haacute trechos em que a protagonista narra as experiecircncias dos antepassados em
zigue-zague com outros em que reflete sobre seu engorde retomando o foco no presente Fala
entatildeo de sua dieta em contraste com a vivecircncia de sua famiacutelia com a fome Bisavoacutes avoacutes e pais
ao sentirem fome comeccedilaram a comer mais quando o alimento tornou-se disponiacutevel a eles no
caso da narradora foi preciso fazer o caminho contraacuterio ao sentir fome comeccedilar a comer menos
A referecircncia lsquoVovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e macarratildeo de letrinhasrsquo
demonstra que a loacutegica de sua avoacute era dar consistecircncia e energia agrave comida fornecendo-lhe fontes
de carbohidrato Assim a perspectiva era contraacuteria agrave restriccedilatildeo alimentar a que estava submetida
pelas orientaccedilotildees do meacutedico
Com o frio comer salada doacutei na alma
Sopa de legumes fazia tempo que natildeo preparava o panelatildeo fervente carne aipo
aboacutebora chuchu cenoura couve cebola espiga de milho cortada em rodelas pequenas
Enquanto escrevo a sopa se agita no fogo e um haacutelito bondoso que eacute cheiro de casa
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visita todas as peccedilas Espero a hora de submeter noz-moscada ao ralador e de cortar bem
miuacutedo tempero verde e ovos duros Vovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e
macarratildeo de letrinhas (MOSCOVICH 2006 p68)
A heranccedila para o prazer de comer deu-lhe desde a infacircncia a predileccedilatildeo pelos excessos
Porque a lei era o comer Ela comenta
Noacutes as crianccedilas estaacutevamos em fase de crescimento Como durou a tal fase Anos
Crianccedilas em fase de crescimento precisam comer muito bem para ter ossos fortes e
ceacuterebros ativos para o estudo Portanto a mesa do almoccedilo em nossa casa era farta Aliaacutes
a mesa do almoccedilo em nossa casa era um excesso Mas natildeo um excesso fuacutetil natildeo um
supeacuterfluo sem sentido Nossa mesa queria dizer comam vocecircs natildeo precisam passar
fome Fome eu vim passar adiante quando comecei as dietas (MOSCOVICH 2006
p23)
O aprendizado de exceder era associado natildeo apenas agrave saciedade mas ao prazer agrave ideia de
uma lsquomesa felizrsquo como se pode compreender a partir do seguinte fragmento
Se havia cinco pessoas na mesa de bifes deveria haver por baixo dez Para que natildeo
passaacutessemos pela dureza de medir o que estaacutevamos comendo quantos bifes satildeo meus
quantos satildeo seus Se isso acontecesse papai simplesmente natildeo comia bifes para que
mais houvesse para dividir
Numa mesa feliz natildeo se contam os bifes (MOSCOVICH 2006 p24)
O pai preocupado com o engorde dos filhos passou a adotar a imposiccedilatildeo da disciplina
alimentar riacutegida Para a protagonista a cada aumento dos quilos na balanccedila havia uma nova
ordem para o regime A protagonista lembra-se dessa fase e relata na carta para a matildee o periacuteodo
em que o pai determinou que os filhos fizessem dieta
Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre
com o Fairlane rabo-de-peixe A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos enterrado
o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como eram-
mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos ancorava
no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de construir o corpo
de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo fosse do jeito e na
hora em que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH 2006 p93)
Depois de diversas passagens entre passado e presente haacute uma retomada na histoacuteria em
direccedilatildeo agrave ordem paterna para a dieta pela quebra do carro da famiacutelia o tal lsquoFairlane rabo-de-
peixersquo Isso ocorre pelo excesso de peso na protagonista de seus irmatildeos e de suas tias de lado
paterno Frente agrave ameaccedila de dieta ela reinvindica ldquo[hellip] Entrei em pacircnico Dieta era alguma coisa
horrorosa natildeo comer um monte de coisas principalmente massas e doces eu protestei na busca
de meus direitosrdquo (MOSCOVICH 2006 p203) Ao que o pai linhas depois refere ldquo-Vocecircs vatildeo
fazer dieta E vai ser para toda a vidardquo (MOSCOVICH 2006 p204)
87
Dieta era assim ordem paterna veredicto imposiccedilatildeo e ameaccedila de perda dos direitos Natildeo
poderia ser algo para o bem para a sauacutede jaacute que restringia o prazer de comer o que se gosta De
um lado a Vovoacute Magra tinha deliacutecias em sua sacola de crocheacute para satisfazer o gosto dos netos
de outro o pai definia categoricamente que a lei da casa era a dieta Da avoacute materna com as
guloseimas estava o afeto do pai com a voz de mando o cuidado com a sauacutede Ambas as
manifestaccedilotildees eram a expressatildeo de amor que cada um deles era capaz de oferecer de acordo com
sua histoacuteria e com sua personalidade
Um elemento importante para a compreensatildeo do engorde da protagonista estaacute em sua
infacircncia quando ao contraacuterio do que ocorreu na vida adulta precisou fazer dieta para engordar
Mais uma vez a Voacute Magra tem papel crucial nesse processo conforme mostra o trecho abaixo
Os que me conhecem soacute agora natildeo acreditam Nem eu acredito Ateacute uns sete ou oito
anos eu era uma crianccedila inapetente Vovoacute Magra chegava em casa com pedaccedilos de
alcatra chuletas ou bifes de fiacutegado cortes que ela havia escolhido com ciecircncia no balcatildeo
do accedilougue do seu Jorge Depois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho
direto para a cozinha e ali direto aos armaacuterios Sentava-me junto agrave mesa de foacutermica
Vovoacute dava de matildeo numa pequena frigideira de alumiacutenio com duas alccedilas de baquelite jaacute
retorcidas pelo calor Aacutegua esponja sabatildeo pano de prato Daiacute um fio de oacuteleo Mazola-
ou Sol Levante aquele que estivesse mais em conta na ocasiatildeo- escorria da lata natildeo
muito o suficiente para que uma poccedila dourada se armazenasse no cocircncavo da frigideira
No balcatildeo da pia vovoacute ordenava o pote de sal uma taacutebua de madeira chaira batedor de
bife a faca de corte e o embrulho de papel pardo no qual seu Jorge tinha riscado o total
a pagar Na abertura do pacote lembro aquele cheiro cru e meio arisco o papel
manchado de sangue da pobre vida extinta A faca era passada na chaira em movimentos
agudos um sibilar que me causava arrepio nos dentes Depois com a lacircmina vovoacute
eliminava nervos sebo e outras impurezas que soacute ela podia identificar Finalmente
espalmava os dedos sobre a peccedila de carne e em talhos saacutebios cortava em fatias Agraves
vezes usava o batedor para domar algum pedaccedilo mais resistente tunda de laccedilo na carne
que batia na madeira que batia na pedra que por seu turno estremecia o balcatildeo e todos
os cocircmodos da casa Uma pitada de sal o oacuteleo tinindo recebia a carne com uma
chiadeira labaredas azuladas salpicavam as fatias- daacute-lhe fumaccedila um nevoeiro que
anunciava a forccedila resistindo agrave morte (MOSCOVICH 2006 p35-36)
A Voacute Magra participava da alimentaccedilatildeo da neta natildeo apenas no preparo dos bifes mas
tambeacutem na extraccedilatildeo do sumo que resultava deles e na oferta do caldo agrave protagonista ainda
crianccedila Percebe-se o zelo da avoacute todo esse processo no qual o alimento representa nutriccedilatildeo
fiacutesica e cuidado afetivo
Dado o susto vovoacute colocava os bifes num prato fundo e com um garfo espremia e
espremia ateacute reunir uma boa quantidade de sumo sanguinolento Um pano ajeitado como
babador e entornando um pouco o prato com uma colher de sobremesa dava-me aos
bocados aquela riqueza nutritiva (MOSCOVICH 2006 p36)
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Ressalta-se o detalhamento com que a narradora apresenta os utensiacutelios de cozinha no
preparo dos bifes e os atos culinaacuterios da Voacute Magra Se natildeo haacute referecircncia direta ao prazer de
comer haacute o conhecimento visceral da avoacute no cozinhar Cada movimento eacute conhecido pelo corpo
e traduzido pelo uso dos utensiacutelios O que marca o trecho eacute o afeto com que a avoacute faz os bifes
para a neta o cuidado que tem com cada nuance do preparo expresso na proacutepria dedicaccedilatildeo e
tambeacutem em especial na frase lsquodepois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho direto
para a cozinharsquo Este eacute um dos trechos emblemaacuteticos da obra em termos de expressatildeo da cozinha
como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico nesta narrativa pois mostra dados como o oacuteleo na frigideira a
destreza com cada instrumento e o zelo no preparo do alimento como reforccedilo nutricional
A narradora segue o relato sobre os bifes que colocam sua matildee em segundo plano
Se vovoacute natildeo vinha o jeito era a senhora mamatildee me sentar na frente do preacutedio reunir
crianccedilas e cachorros da vizinhanccedila ao meu redor e fazendo aviatildeozinho enquanto eu me
distraiacutea me enfiar goela abaixo colheradas de legumes carne e todo o resto que eu
detestava
Natildeo me lembro quando comecei a comer feito gente grande Nunca mais parei
(MOSCOVICH 2006 p36-37)
Haacute uma diferenccedila na percepccedilatildeo da narradora sobre a forma como a Voacute Magra lhe oferecia
a lsquoriqueza nutritivarsquo aos bocados e aquela como a matildee o fazia ao lsquoenfiar goela abaixo
colheradas de legumes carne e todo o resto que eu detestavarsquo O contraste estaacute sobretudo na
expressatildeo do afeto que leva a protagonista o falar em lsquoriqueza nutritivarsquo quando menciona o
cuidado da avoacute e ao referir-se ao termo lsquogoela abaixorsquo sobre o alimento oferecido pela matildee
Possivelmente o prazer de comer tivesse sido originado no afeto ligado ao alimento e ao cuidado
pela avoacute pois eacute das cenas com esta que restaram os principais registros de memoacuteria sugerindo
que a lembranccedila daquele preparo eacute muito mais viva do que aquela da interaccedilatildeo com sua matildee A
frase lsquonunca mais pareirsquo mostra o comportamento de comer como algo que passou a se repetir
sugerindo a presenccedila de prazer que impele agrave repeticcedilatildeo
A partir do ponto em que comeccedilou a comer e entatildeo a engordar junto a seus irmatildeos
instalou-se na famiacutelia a determinaccedilatildeo de regime para os trecircs ordenada pelo pai A protagonista
refere
Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre
com o lsquoFairlane rabo-de-peixersquo A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos
enterrado o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como
eram- mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos
ancorava no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de
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constituir o corpo de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo
fosse do jeito e na hora que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH
2006 p93)
Quando refere lsquoEssa ordem sei agora era o que nos ancorava no mundorsquo estaacute
expressando que sob a perspectiva adulta consegue ver a razatildeo da imposiccedilatildeo do pai ancorar os
filhos no mundo Estabelecia-se uma dicotomia entre a postura da Voacute Magra que partilhava seu
prazer alimentar com os netos e a do pai que assumia a funccedilatildeo de impor normas aos filhos Para
a narradora essa divisatildeo era contundente a bagagem de carinho da avoacute materna era o paraiacuteso a
forccedila da voz paterna era o inferno restringia definia acusava ordenava proibia O livro traz
todo o conflito da narradora personagem em seu tracircnsito por essa dicotomia ao longo da vida ateacute
apresentar os resultados do excesso de comer em seu corpo os terriacuteveis vinte e dois quilos ou
cento e dez tabletes de manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha
A ordem paterna para a dieta transforma-se na idade adulta na ordem do meacutedico
tambeacutem uma voz impositiva ameaccediladora e acusatoacuteria Essa eacute expressa jaacute no proacutelogo quando a
protagonista conta o motivo de sua reflexatildeo sobre a histoacuteria familiar e a pessoal para
compreender o porquecirc de chegar ao excesso de peso
- Vocecirc natildeo estaacute gorda
Certo meu estado natildeo era transitoacuterio a gordura nunca foi um episoacutedio solteiro em
minha vida eu sabia ele nem precisava ir adiante Mas ele foi
- Vamos fazer suas ceacutelulas adiposas murcharem -Pediu minha atenccedilatildeo com a caneta no
ar- sei que parece injusto mas a natureza a fez assim Vocecirc eacute gorda
Uma vez mais de novo (MOSCOVICH 2006 p15)
A uacuteltima frase lsquouma vez mais de novorsquo refere-se possivelmente agrave lembranccedila sobre o
veredito do pai na infacircncia quando mandou que ela e os irmatildeos fizessem dieta O prazer de
comer tornava-se sempre transgressor da ordem sempre um mundo proibido e recheado de
culpas impostas por terceiros Por mais que ela natildeo quisesse sentir as culpas aprendera que
deveria senti-las para afastar-se do prazer
Com a evoluccedilatildeo da dieta conduzida pelo meacutedico a personagem comeccedila a conseguir
emagrecer e a perda de peso vai ganhando por sua vez gosto de vitoacuteria Emagrecer tambeacutem se
torna um prazer o que reflete a sua conscientizaccedilatildeo para a mudanccedila de haacutebitos e mais ainda
para o seu amadurecimento Haacute na protagonista a consciecircncia de sua responsabilidade pelas
escolhas alimentares e pelo resultado da dieta em sua sauacutede A mudanccedila de postura destaca-se
atraveacutes do termo lsquoum deliacuteriorsquo ponto em que se percebe sua capacidade de avaliar o que pode e o
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que natildeo pode comer sem precisar ouvi-lo de terceiros A personagem conta o que sente
demonstrando sua disposiccedilatildeo para mudar a atitude frente agrave comida
Uma enorme vontade de comer uma daquelas refeiccedilotildees de estivador arroz feijatildeo ovo
frito massa bife na chapa purecirc de batatas salada de tomate e cebola Tudo num uacutenico
prato fundo e transbordante Para beber uma daquelas cervejas pretas docinhas das
quais se dizia que eram boas para mulheres que amamentavam Sobremesa pudim de
leite
Soacute vontade Um deliacuterio
Descobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um punhado de
parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagado Tambeacutem descobri que atum em lata e
dois ovos duros saciam por mais de quatro horas Uma xiacutecara de cafeacute e um pedaccedilo de
queijo enganam a fome por um bom tempo Disso eu sabia mas tinha me esquecido
Fui verificar meu peso um quilo e novecentos gramas a menos (MOSCOVICH 2006
p125-126)
A passagem acima ilustra um periacuteodo da personagem jaacute adulta em seu progresso durante
a dieta Quando ela diz lsquoDescobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um
punhado de parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagadorsquo (MOSCOVICH 2006 p125-126)
estaacute demonstrando que jaacute eacute capaz de encontrar prazer e sabor dentro da dieta ao inveacutes de lutar
com as restriccedilotildees como fez desde a infacircncia Eacute nesse momento que a comida assume um caraacuteter
de transformaccedilatildeo na narrativa a mudanccedila de postura em relaccedilatildeo ao foco de prazer na comida de
uma lauta refeiccedilatildeo ao novo modo de temperar a salada Como resultado a perda de peso
O significado de tal mudanccedila estaacute justamente na conscientizaccedilatildeo que representa Ao dizer
lsquoSoacute vontade Um deliacuteriorsquo a protagonista expressa conhecer os perigos de lsquouma daquelas refeiccedilotildees
de estivadorrsquo como a que descreve Mostrando a mudanccedila de possibilidades estaacute dizendo a si
mesma que compreendeu que eacute preciso mudar a fonte de prazer para atingir o emagrecimento
proposto pelo meacutedico
Nesse momento aliaacutes a ordem natildeo vem mais do pai natildeo vem mais do meacutedico E nem eacute
mais uma ordem Eacute entatildeo uma escolha E o melhor de tudo parte da proacutepria narradora
personagem em seu percurso no anseio do que pede agrave sua matildee no proacutelogo ldquoMamatildee me
endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar esse territoacuterio
metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora Quero voltar a ter um
corpordquo (MOSCOVICH 2006 proacutelogo)
A voz para a matildee eacute na verdade a voz em que ela se permite emitir essa narrativa Em
essecircncia a voz eacute dirigida a si mesma e o pedido para lsquovoltar a ter um corporsquo segue o verbo
querer na primeira pessoa do singular no presente do indicativo Eacute a afirmaccedilatildeo de um desejo de
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uma escolha Natildeo eacute o pai natildeo eacute o meacutedico natildeo eacute a interlocuccedilatildeo com a matildee A lei agora eacute sua
segue seu proacuteprio querer Da refeiccedilatildeo de estivador agraves alternativas possiacuteveis a narradora mostra o
que compreendeu eacute agente da proacutepria transformaccedilatildeo eacute emissora da proacutepria voz Tem um corpo
sim Mais do que isso tem um novo querer tambeacutem prazeroso e mais saudaacutevel o
emagrecimento
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3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS
Levantei-me as pernas agora quase firmes desci os degraus da porta ateacute a calccedilada
buscando algo para comer e o que havia no meu raio de visatildeo era uma carrocinha de
pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me desde que horas ele estava ali se
tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda
agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido Cheguei junto dele remexendo a bolsa
agrave procura de uns trocados que tivessem restado da farra de salgadinhos e biscoitos da
Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada desde entatildeo (REZENDE 2014
p147)
Comida eacute alimento nutriccedilatildeo sobrevivecircncia Eacute palavra feita de carne de aboacutebora de
arroz Tangiacutevel Comemos para nutrir as ceacutelulas mas tambeacutem para garantir nossa autonomia
porque comida eacute escolha eacute expressatildeo de si mesmo gosto disso prefiro aquilo Comida eacute
exerciacutecio de liberdade no quando no quanto no onde no que comer E comer eacute matar a fome e
satisfazer o apetite na comida de rua servida no papel pardo ou na mesa posta com talheres
prato copo guardanapo Comemos intransitivos ou transitivos sozinhos ou acompanhados
Comemos para atravessar mais um dia para seguir existindo como oacutergatildeos viacutesceras cinco
sentidos Mastigar salivar engolir digerir metabolizar excretar eis o trajeto da comida atraveacutes
do organismo tornando-se parte de quem somos E comemos para continuar sendo
31 QUARENTA DIAS
Quarenta dias eacute o livro escrito por Maria Valeacuteria Rezende editado pela Editora Record
em 2014 A narrativa traz a histoacuteria de Alice mulher de meia-idade que a pedido de sua filha
muda-se de Joatildeo Pessoa para Porto Alegre A contragosto deixa sua casa e sua vida as amizades
e os afazeres e segue a demanda da filha para que se torne lsquovoacute profissionalrsquo jaacute que a moccedila e seu
esposo decidem ter um filho
A personagem faz a mudanccedila de tudo o que tem caixas e caixas para a nova cidade em
apartamento escolhido e alugado pela filha e o genro No entanto em um jantar na casa do casal
recebe a notiacutecia de que decidiram passar um periacuteodo fora do paiacutes para suas especializaccedilotildees
acadecircmicas Assim adiaram os planos de gravidez motivo pelo qual ela havia abandonado seu
habitat e aceito uma imposiccedilatildeo pelo desejo da moccedila em ser matildee Partiriam em poucos dias logo
apoacutes Alice ter chegado em sua nova moradia
93
No desterro de seu lar e sozinha na capital gauacutecha a personagem transfere seu territoacuterio
de nutriccedilatildeo para a rua para o espaccedilo representado pelo coletivo pela cidade e natildeo para a cozinha
nova e moderna do apartamento Haacute sobretudo um deslocamento primordial na narrativa a
lsquoexpulsatildeorsquo de suas reflexotildees para as paacuteginas do diaacuterioepiacutestola em que Alice escreve de si
dirigindo-se a uma interlocutora Barbie a figura na capa do caderno que encontrara entre as
caixas da mudanccedila
No iniacutecio de sua vida em Porto Alegre esconde-se em casa fingindo ter viajado para o
interior na casa de primos Entatildeo mune-se de um motivo benevolente que usa para justificar
suas caminhadas a qualquer pessoa com quem encontre a busca freneacutetica pelo rapaz conterracircneo
Ciacutecero Arauacutejo perdido no Sul Nessa missatildeo esquece o proacuteprio endereccedilo e decide por viver um
paradoxo casa que natildeo eacute casa rua que natildeo eacute rua Externo que se torna interno porque eacute parte
dela Rua que eacute casa parece em sendo casa na rua encontra abrigo para a solidatildeo na rua
encontra alimento para as fomes que sente Fome de comida sim mas para aleacutem desta a fome de
ser lsquosi mesmarsquo de novo
Sozinha perde-se de si de seus referenciais familiares dos telefones que tem na
memoacuteria dos sentidos de sua proacutepria vida Tem no desaparecido a razatildeo temporaacuteria para sua
andanccedila sem paradeiro Procurar um jovem de sua terra que veio para Porto Alegre eacute uma boa
desculpa para algueacutem que percorre uma cidade em seus pontos mais perigosos ou naqueles mais
dramaacuteticos como o Hospital de Pronto-Socorro Nem vestiacutegio de Ciacutecero mas laacute encontra um
banco de madeira onde pode dormir
Em seus trajetos transfere o espaccedilo ocupado pela cozinha que eacute o de preparar a nutriccedilatildeo
para um espaccedilo coletivo e itinerante Padarias pequenos botecos nas vilas que percorre carrinhos
de pipoca e de cachorro-quente restaurante da rodoviaacuteria em que escuta um sotaque familiar
comida ofertada aos sem-moradia nas madrugadas Sem desejar voltar para casa Alice passa a
habitar a rua Faz amigos ao longo do caminho pessoas que se preocupam mais com ela do que
sua filha Mas isso ela quer esquecer quer apagar e estabelece um objetivo firme de resgatar um
desaparecido pelos recantos mais insoacutelitos e arriscados da cidade
A representaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo itinerante eacute um fator muito consistente na obra
Porque a cozinha eacute territoacuterio fiacutesico definido por moacuteveis objetos e eletrodomeacutesticos que a
compotildeem mas eacute tambeacutem simboacutelico nela vivem nutriccedilatildeo afeto famiacutelia intimidade Transferir
tal importacircncia para o externo para o alheio a si eacute como um transplante ao contraacuterio
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O deslocamento na representaccedilatildeo dessa forccedila que transcende o objetivo meramente
nutricional expressa a ausecircncia de ninho vivenciada pela personagem Ela escolhe transplantar
sua vida para o lado de fora da porta escolhe a solidatildeo no meio do coletivo para apagar a solidatildeo
em silecircncio dentro das paredes de uma casa (e natildeo um lar) que a filha e o genro definiram para
ela Ao menos assim eacute ela quem escolhe Autonomia O que comer onde viver onde dormir
onde se banhar Por pior que seja o banho na rodoviaacuteria eacute sua voz eacute sua decisatildeo Por pior que
seja a noite no banco duro de madeira do Pronto-Socorro a pipoca do carrinho que fica ali na
frente o natildeo-ter-para-onde-ir fingindo estar na busca desenfreada pelo desaparecido eacute sua
proacutepria voz que precisa escutar Eacute pelo aparecimento de sua identidade perdida que faz
peregrinaccedilotildees pelos becos mais sombrios por onde se propotildee a percorrer
Ao longo do percurso do livro enquanto parece perder-se cada vez mais de seus
referenciais de sua memoacuteria mais firma o passo mais decide onde ir E suas frases no diaacuterio
vatildeo ganhando pontos-finais ao relatar o ocorrido agrave medida em que se lembra e se torna mais
capaz de contar da redescoberta de sua identidade Na crise da personagem atraveacutes desse
desalojamento de um habitat seguro dessa saiacuteda para fora da porta ocorre a habitaccedilatildeo de um
novo espaccedilo o proacuteprio eu Em seus percursos defronta-se com a perda dos referenciais antigos
da casa de sempre da memoacuteria que lhe permitiria voltar para o eixo seguro da nutriccedilatildeo estaacutevel
na intimidade soacutelida da cozinha
Alice desloca-se durante a maior parte da narrativa Desloca-se de sua terra natal para
Porto Alegre e nessa capital transita entre avenidas principais e becos escondidos entre
viadutos e casas de estranhos entre floriculturas e terrenos baldios Desloca-se de si mesma
quando decide natildeo voltar agrave casa escolhida para ela Escolhida eacute voz passiva voz que ela quer
transcender
Distrai-se com a histoacuteria do desaparecimento de Ciacutecero Arauacutejo com a confusatildeo mental
que se instala entre fome-frio-sono-exaustatildeo Tudo isto para natildeo lembrar volta-se para fora e
desse modo esquece o dentro Desloca o foco das confissotildees que faz a si sendo um diaacuterio para
Barbie como um sucessivo contar de eventos e emoccedilotildees em escritos que mais parecem cartas
Mais uma vez dentro e fora se conjugam pois acontecem num simultacircneo mas estatildeo
dissociados Alice dirige para fora suas reflexotildees para um terceiro entatildeo dissocia-se de si para
olhar para si
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Em um determinado ponto refere ldquoNatildeo Barbie esta noite natildeo dormi em saguatildeo nem em
parque nenhum Natildeo vecirc como estou bem-disposta a sentar-me pegar a caneta e continuar
escrevendo aqui nesta cozinha depois desta noite bem-dormida na suiacutete deste apartamento que
me esforccedilo para aceitar finalmente como meurdquo (REZENDE 2014 p163)
Estaacute dentro de casa mas ainda natildeo faz parte dela em verdade situa-se fora dali no sentir
Demonstra isso quando usa lsquobem-disposta nesta cozinha deste apartamento como meu me
esforccedilo para aceitarrsquo Tal dissociaccedilatildeo identitaacuteria eacute expressa por um permanente desconexatildeo
consigo Perde-se de sua casa e de seus referenciais para descobrir o paradeiro de Ciacutecero Arauacutejo
com o firme propoacutesito de encontrar um motivo que alinhave seus dias em Porto Alegre dentro de
si o sentido estaacute fora de si Nessa desconexatildeo descobre uma Alice nascente
Chega Barbie agora eu paro mesmo que jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia
guria a solidariedade silenciosa mas agora vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a
mal taacute natildeo digo que seja pra sempre quem sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo
a limpo (REZENDE 2014 p245)
Eacute possiacutevel ler que aquilo que estava fora sua narrativa epistolar para a Barbie seraacute
entregue ao mundo da gaveta o interno e passe a habitar esse lsquodomiciacuteliorsquo escondido Entretanto
Alice jaacute internalizou marcas de linguagem regionais como as tachadas em negrito lsquoguriarsquo e lsquotu
natildeo leva a mal taacutersquo significando esse ponto uma transformaccedilatildeo de aspectos de sua identidade a
incorporaccedilatildeo da linguagem oral como proacutepria Internalizou o que estava fora tornou-o seu
tambeacutem passou a sentir-se parte Como resultado guardou no interno na gaveta seu diaacuterio que
sendo comunicaccedilatildeo consigo era dirigido a um interlocutor
Esse eacute o permanente tracircnsito do livro essa dissociaccedilatildeo permeia cada vivecircncia e eacute atraveacutes
dessa mobilidade que Alice pode ver a si mesma e se transformar Sacudida pelo real perigo de
sua itineracircncia permanente aproxima-se do fim de sua busca por um Ciacutecero que nem espera mais
encontrar
Ao longo da narrativa haacute frases sem ponto final no teacutermino dos capiacutetulos e muitas vezes
com ideias inacabadas Um elemento ligado a esse aspecto eacute o das muacuteltiplas linguagens surgem
epiacutegrafes vindas de outros autores contemporacircneos e em vaacuterias partes do livro elementos
graacuteficos aludindo a folhetos colados no diaacuterio Assim a ruptura da linguagem linear adotando
uma expressatildeo proacutepria eacute composta por frases descontiacutenuas e de outras em que a viacutergula daacute
apenas a pausa necessaacuteria ao ritmo da voz sem preocupaccedilotildees formais com a gramaacutetica
Prevalece aliaacutes o registro do informal com letras maiuacutesculas seguindo viacutergulas interrogaccedilotildees
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no meio da frase sem uma letra maiuacutescula a seguir e assim por diante trazendo muito mais um
lsquocomo se falarsquo do que um lsquocomo se lecircrsquo
Tal elemento alia-se a um projeto graacutefico que apresenta aleacutem de texto imagens para
contemplar a lsquoformarsquo do livro como um diaacuterio Esta complementaridade toca em um tema de
grande relevacircncia no contemporacircneo a ligaccedilatildeo das artes para expressar um todo que ultrapasse
os territoacuterios particulares uma intersecccedilatildeo de saberes e de poeacuteticas que independentes em sua
importacircncia complementem-se As figuras lsquocoladasrsquo no diaacuterio natildeo parecem ter conexatildeo entre si
mas transmitem a ideia de uma escolha Foram postas ali por Alice Natildeo parece haver unidade
entre as imagens Colagem de figuras mas tambeacutem de vinhetas que se tornam epiacutegrafes sem
conexatildeo aparente entre si Essa ausecircncia de conexatildeo eacute possivelmente o que a obra pretende
comunicar com suas dissociaccedilotildees e com as frases descontiacutenuas agrave medida que a personagem
percorre o trajeto da autonomia as frases vatildeo ganhando finalizaccedilatildeo Ela comeccedila a decidir
Nesse livro a ausecircncia de unidade parece representar exatamente o contraacuterio sua
unidade Outro ponto a ser ressaltado eacute o fato de o diaacuterio ser escrito em uma mistura de tempos
natildeo seguindo a cronologia tiacutepica dos diaacuterios Muito do texto referente agrave eacute registrado em olhar
retrospectivo a todo o periacuteodo e natildeo segue uma ordem temporal tiacutepica em que a escrita iacutentima
sucede cada evento Mistura de tempos e de autores escolhidos para as epiacutegrafes e de figuras
selecionadas para compor o percurso lsquograacuteficorsquo da personagem como a nota da padaria a
propaganda da imobiliaacuteria a divulgaccedilatildeo da cliacutenica de traumatologia e por aiacute vai
Quarenta dias acontece no cerne mais cru da capital as vilas as avenidas movimentadas
a rodoviaacuteria os viadutos de moradores de rua os becos as paradas de ocircnibus o pronto-socorro
os cenaacuterios tiacutepicos de apartamento de lsquocidade grandersquo
Alice eacute uma personagem urbana implantada em Porto Alegre sem colar-se agrave cidade mas
que quanto mais se torna moradora de rua mais se torna pertencente ao mapa porto-alegrense
Mesmo sem perceber Faz-se aderida agraves ruas aos becos agraves vilas aos botecos agraves paradas de
ocircnibus onde dorme Eacute fio da trama quer estar fora porque reluta em aceitar a vida que a ela foi
imposta pela filha Neste processo cria uma vida para si cria um olhar para a cidade que vai
habitando No geruacutendio Alice torna-se parte Faz-se parte quando adentra a rua os viadutos
habitados agrave noite os crimes em matagais o cafeacute e o mate e o cachorro-quente oferecidos pelos
voluntaacuterios na madrugada O banho na rodoviaacuteria o banco duro de madeira onde dorme no HPS
Alice vai tomando voz vai tomando-se de sua voz que haacute tempos natildeo ouvia
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32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS
Fenocircmenos psiacutequicos como a consciecircncia a memoacuteria a emoccedilatildeo o pensamento e o juiacutezo
criacutetico entre outros satildeo estudados principalmente pelo campo da Fenomenologia Psiquiaacutetrica
esses constituem os pilares para a avaliaccedilatildeo do estado mental de um indiviacuteduo O psiquiatra
examina a qualidade da expressatildeo dos mesmos na entrevista com o paciente verificando se estatildeo
dentro da normalidade ou se apresentam desvios compatiacuteveis com um quadro psicopatoloacutegico
Algumas capacidades satildeo compostas por um conjunto desses fenocircmenos e natildeo apenas por um
esse eacute o caso da autonomia
O indiviacuteduo natildeo nasce com autonomia Esta deve ser estimulada pelos pais desde o
momento em que a crianccedila deixa de mamar no peito e comeccedila a receber a alimentaccedilatildeo soacutelida
Brinca de fechar a boca enquanto a colher vem com a papinha O comer eacute a primeira autonomia
depois da dependecircncia representada pela amamentaccedilatildeo Entatildeo a crianccedila aprende a segurar a
colher entatildeo pouco a pouco os outros talheres Aprende a gostar de comer isso ou aquilo a
apontar o que deseja em seu prato A autonomia vai sendo aprendida na infacircncia pelo engatinhar
e pelo caminhar Segue-se o controle dos esfiacutencteres que vai sendo aprendido o limpar-se o
tomar banho o ficar sem os pais no maternal E tantas outras conquistas ensinadas e estimuladas
para a aquisiccedilatildeo dessa capacidade Entretanto limitaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas podem desde o
iniacutecio da vida restringir seu desenvolvimento
Jaspers compreende as manifestaccedilotildees psiacutequicas tendo como base elementos da
Fenomenologia Desse modo a autonomia resultaria de um conjunto de fatores que em bom
funcionamento determinariam a adequada manutenccedilatildeo dessa capacidade Em contrapartida o
neurocientista Antocircnio Damaacutesio eacute apresentado nesta fundamentaccedilatildeo por suas pesquisas
neurobioloacutegicas sobre o fenocircmeno da consciecircncia na qual aponta existir o nuacutecleo da consciecircncia
de si Nesta estaria o cerne para a autonomia
A escolha e a independecircncia paracircmetros que estatildeo associados agrave essa capacidade
necessitam que haja no ser humano em primeiro lugar a consciecircncia e nesta a consciecircncia de
si a escolha e a decisatildeo acontecem no domiacutenio do pensamento mas envolvem tambeacutem as
emoccedilotildees (representadas pelo afeto e o humor) e o juiacutezo criacutetico Por fim a escolha se realiza
atraveacutes de uma accedilatildeo expressa pela conduta Todos esses elementos satildeo fenocircmenos psiacutequicos que
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compotildeem a capacidade de autonomia de um indiviacuteduo Quando essa se apresenta reduzida por
algum dos paracircmetros indicados avalia-se a presenccedila ou a ausecircncia de normalidade por
conseguinte avalia-se a existecircncia de psicopatologia Os outros fenocircmenos - atenccedilatildeo orientaccedilatildeo
memoacuteria sensopercepccedilatildeo inteligecircncia e linguagem- estatildeo presentes na avaliaccedilatildeo do estado
mental do indiviacuteduo compondo tambeacutem sua autonomia no entanto apresentam-se em grau de
menor relevacircncia para seu desenvolvimento
Aleacutem de escolha independecircncia consciecircncia de si e decisatildeo outras expressotildees podem
ser associadas a seu exerciacutecio liberdade individualidade vontade self eu Em termos
etmoloacutegicos a palavra autonomiacutea procede do latim autonomĭa e esta por sua vez do grego
αὐτονομία (autonomia) formada por αὐτός (autoacutes) que significa lsquomesmorsquo e νόμος (noacutemos) lsquoleirsquo
ou lsquonormarsquo Assim seria possiacutevel compreender que o significado aponta para a noccedilatildeo de
autonomia como lsquoleis para si mesmorsquo ou seja as leis que o proacuteprio indiviacuteduo define para sua
vida
Considerando a autonomia como capacidade eacute necessaacuterio apontar que em casos de
sofrimento psiacutequico essa apresenta-se muitas vezes reduzida pois o sofrer acaba por reduzir a
possibilidade de o indiviacuteduo sentir-se livre para as proacuteprias escolhas Em ateacute que ponto este
quadro representa uma circunstacircncia normal e a partir de qual se torna patoloacutegico O sofrimento
pode resultar de uma crise vital com duraccedilatildeo por um periacuteodo esperado e apresentaccedilatildeo de
sintomas dentro da normalidade ou pode resultar do adoecimento do indiviacuteduo com sintomas
presentes em intensidade maior e por periacuteodo mais longo A restriccedilatildeo da liberdade e portanto da
autonomia ocorreraacute de acordo com o tipo e com a duraccedilatildeo deste sofrimento Tal diminuiccedilatildeo na
narrativa pode ser vista de dois modos como parte do sofrimento psiacutequico vivenciado pela
personagem e como perda real de sua experiecircncia de autonomia jaacute que teve sua vinda ao Sul
definida pela escolha da filha Natildeo por sua decisatildeo Eacute por perceber-se nesta condiccedilatildeo que Alice
parte na direccedilatildeo de sua autonomia para sentir-se livre novamente
Karl Jaspers apresenta elementos relacionados agrave autonomia em sua obra Psicopatologia
geral sem que esse termo propriamente dito seja conceituado ou explicitado A expressatildeo mais
proacutexima eacute a da consciecircncia do eu considerada dentre o que ele estabelece como lsquofenocircmenos
subjetivos da vida psiacutequicarsquo Esta consciecircncia estaacute na base fundamental para o desenvolvimento
da autonomia ao lado de outro fenocircmeno apontado o da lsquoconsciecircncia do corporsquo
99
Na apresentaccedilatildeo da lsquoconsciecircncia do eursquo Jaspers define quatro componentes o primeiro eacute
o sentimento de atividade uma consciecircncia de atividade do eu Este se refere a tudo o que ocorre
na vida psiacutequica e que o indiviacuteduo identifica como seu a exemplo de percepccedilotildees sensaccedilotildees do
corpo lembranccedilas representaccedilotildees pensamentos e sentimentos Todas essas atividades do eu que
o caracterizam satildeo operaccedilotildees pessoais realizadas em si mesmo e identificadas como proacuteprias e
compotildeem o que o autor denomina personalizaccedilatildeo Quando haacute alteraccedilatildeo desses aspectos usa-se o
termo despersonalizaccedilatildeo fenocircmeno que pode ser descrito como o estranhamento do eu a
percepccedilatildeo de que tudo o que ocorre com o indiviacuteduo eacute na verdade alheio ao mesmo
Tal estranhamento ocorre no mundo das percepccedilotildees junto agrave ausecircncia de sensaccedilotildees
normais do proacuteprio corpo agrave incapacidade subjetiva de recordar-se de dados referentes a si agrave
inibiccedilatildeo dos sentimentos e ao automatismo de processos voluntaacuterios Tudo passa a constituir um
conjunto de atividades alheias ao eu e que em condiccedilotildees de normalidade deveriam ser
compreendidas como proacuteprias
O segundo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia da unidade ou seja a
unidade do eu Esta se refere agrave possibilidade de o indiviacuteduo perceber a si mesmo como unidade
ser um soacute no mesmo instante e natildeo como dois seres distintos ainda que atraveacutes de accedilotildees
diferentes (como ouvir a proacutepria voz enquanto fala e reconhecer que eacute sua proacutepria voz) A
alteraccedilatildeo da unidade do eu ocorre quando haacute um desdobramento da percepccedilatildeo de si observando
o eu como se estivesse fora dele
O terceiro componente da consciecircncia do eu eacute a consciecircncia da identidade ou seja a
identidade do eu Com a frase lsquosou o mesmo de antesrsquo refere-se agrave identidade como a consciecircncia
de ser o mesmo indiviacuteduo no seguir do tempo a constacircncia de si proacuteprio A alteraccedilatildeo deste
fenocircmeno leva o paciente a perceber o lsquoeursquo de um periacuteodo de vida como diferente do lsquoeursquo de
outro periacuteodo como antes e depois da instalaccedilatildeo de uma doenccedila psiacutequica por exemplo
O uacuteltimo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia do eu em oposiccedilatildeo ao mundo
externo e ao outro em que o indiviacuteduo eacute capaz de reconhecer a proacutepria identidade e de percebecirc-la
distinta do mundo externo e da identidade de outra pessoa Existe nesse componente a clara
contraposiccedilatildeo entre este indiviacuteduo e o mundo externo
Tais elementos constituem assim a lsquoconsciecircncia do eursquo base para a percepccedilatildeo das
proacuteprias necessidades e desejos neste sentido constituem tambeacutem a base para as escolhas
individuais no plano do pensamento dos sentimentos e das accedilotildees compreendidas pelo indiviacuteduo
100
como proacuteprias a si Ao lado dos componentes apresentados estaacute a consciecircncia do corpo Sobre
essa consciecircncia Jaspers refere
[] sou consciente do meu corpo como de minha existecircncia e contemporaneamente eu o
vejo com os olhos e o toco com as matildeos O corpo eacute a uacutenica parte do mundo que deve ser
sentida ao mesmo tempo pelo interno e percebida na superfiacutecie Esse eacute um objeto para
mim e sou esse mesmo corpo Satildeo duas coisas diferentes como me sinto
corpoereamente e como me percebo como objeto mas as coisas satildeo ligadas de modo
indissoluacutevel (JASPERS 2000 p95)
De acordo com o autor essa deve ser conhecida do ponto de vista fenomenoloacutegico
mediante a percepccedilatildeo de nossa experiecircncia global com nosso corpo Essa consciecircncia estaacute mais
proacutexima agrave lsquoconsciecircncia do eursquo nas atividades musculares e de movimento mais distantes das
sensaccedilotildees associadas ao coraccedilatildeo e agrave circulaccedilatildeo e ainda mais afastadas das sensaccedilotildees oriundas da
atividade vegetativa Enquanto o movimento eacute resultado das funccedilotildees voluntaacuterias os mecanismos
fisioloacutegicos vinculados ao coraccedilatildeo agrave circulaccedilatildeo e agrave atividade vegetativa satildeo inerentes agrave vida do
ponto de vista bioloacutegico e portanto involuntaacuterios A consciecircncia do corpo associada agravequela do
eu eacute referida por Jaspers por determinados fatores
Temos um sentimento especiacutefico da nossa existecircncia corpoacuterea no movimento e no
comportamento na forma na leveza e graccedila ou no peso na falta de agilidade motora na
impressatildeo que desejamos que nosso corpo desperte no outro no estado de fraqueza ou
de forccedila nas alteraccedilotildees da sauacutede [] A experiecircncia do proacuteprio corpo eacute ligada
estritamente do ponto de vista fenomenoloacutegico com a experiecircncia do sentimento das
pulsotildees instintivas da consciecircncia do eu (JASPERS 2000 p96)
Essas duas expressotildees da consciecircncia a do eu e a do corpo compotildeem o indiviacuteduo capaz
de perceber a si mesmo como unidade com uma identidade constante no tempo uacutenica em si
mesma e contraposta ao mundo externo a si e a outras pessoas De acordo tambeacutem com Jaspers
ldquo[] o corpo eacute a realidade da qual se pode dizer eu sou esse mesmordquo (JASPERS 2000 p383) O
autor refere que ldquo[] a situaccedilatildeo fundamental do ser humano eacute a estar no mundo como ser
singular finito ser dependente mas ter a possibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevel limitado
por confins obrigatoacuteriosrdquo (JASPERS 2000 p352) Em tal reflexatildeo a autonomia do indiviacuteduo
estaacute nesta lsquopossibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevelrsquo determinada pelo autor Entretanto ele
define tal possibilidade associada a confins obrigatoacuterios que delimitam o espaccedilo individual
Jaspers estabelece os limites entre autossuficiecircncia e dependecircncia apontando que somos
seres dependentes em nossa realidade e que a autossuficiecircncia completa eacute um ideal inatingiacutevel
101
[] no homem haacute a tendecircncia a imaginar-se um ser ideal que fechado em si seja
autossuficiente e que satisfeito em si mesmo viva sem sentir necessidade de qualquer
coisa do externo porque ele existe em si mesmo em abundacircncia infinita Se o homem
quiser tornar-se tal ser deveraacute compreender de modo draacutestico que eacute simplesmente
dependente em tudo Ele como ser vital tem necessidades que soacute podem ser satisfeitas
pelo externo Ele deve viver e valer na sociedade para participar aos bens necessaacuterios agrave
vida Ele deve viver com outros seres humanos em reciprocidade (JASPERS 2000
p354)
Assim para Jaspers a consciecircncia de si e a consciecircncia do corpo formam a unidade do ser
individual que pode agir em um espaccedilo mutaacutevel no qual o indiviacuteduo eacute consciente se si mesmo e
das proacuteprias accedilotildees mas cuja autossuficiecircncia eacute condicionada a confins obrigatoacuterios a realidade
externa os bens necessaacuterios agrave vida (alimentos moradia recursos econocircmicos para vestir-se e
deslocar-se por exemplo) e os outros indiviacuteduos com quem este interage em suas relaccedilotildees
interpessoais A autonomia assim acontece dentro de um espaccedilo definido por limites reais do
mundo externo
O neurologista e neurocientista Antonio Damaacutesio assim como Jaspers tambeacutem
estabelece uma associaccedilatildeo direta entre a consciecircncia do eu e o corpo O elemento da consciecircncia
do indiviacuteduo sobre si mesmo eacute denominado por ele de Self e eacute parte da estrutura que define
como consciecircncia Damaacutesio parte da comparaccedilatildeo do ser humano com organismos unicelulares e
estabelece
Uma chave para compreendermos os organismos vivos desde aqueles compostos de
uma uacutenica ceacutelula ateacute os formados por bilhotildees de ceacutelulas eacute a definiccedilatildeo de sua fronteira a
separaccedilatildeo entre o que estaacute dentro deles e o que estaacute fora A estrutura do organismo estaacute
dentro da fronteira e a vida do organismo eacute definida pela manutenccedilatildeo dos estados
internos agrave fronteira E a individualidade singular depende dessa fronteira (DAMAacuteSIO
2000 p178)
A referecircncia de Antonio Damaacutesio estaacute de acordo com a perspectiva de Karl Jaspers no
que tange agrave lsquoindividualidade singularrsquo dentro da fronteira separada do mundo externo a parte de
fora dessa fronteira O neurocientista explicita que o indiviacuteduo singular deve apresentar
sobretudo ldquo[] um grau notaacutevel de invariacircncia estrutural para que consiga oferecer uma unidade
de referecircncia no decorrer de longos periacuteodosrdquo acrescentando que ldquo[] de fato continuidade de
referecircncia eacute o que o self precisa proporcionarrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Essa continuidade de
referecircncia coincide com um dos componentes da lsquoconsciecircncia do eursquo definida por Jaspers aquele
em que o indiviacuteduo permanece com a percepccedilatildeo de si mesmo ao longo do tempo
102
O aspecto que se relaciona agrave reflexatildeo sobre a autonomia a partir da leitura de Damaacutesio
encontra-se em tal continuidade ligada por sua vez ao que ele aponta como estabilidade Este
autor refere que ldquo[] quando refletimos acerca do que estaacute por traacutes da noccedilatildeo de self encontramos
a noccedilatildeo do indiviacuteduo singular E quando pensamos no que estaacute por traacutes da singularidade do
indiviacuteduo encontramos a estabilidaderdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Quando se refere agrave noccedilatildeo de
estabilidade Damaacutesio estaacute na verdade apresentando a ideia de que um organismo vivo deve ter
constacircncia em seu meio interno para manter a vida e essa constacircncia pode ser explicada nas
palavras do autor como ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados internos de modo
que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Ao trazer a noccedilatildeo de constacircncia o autor estaacute falando em organismo e sobretudo em
sobrevivecircncia A chave de sua reflexatildeo reside no fato de remeter-se agrave noccedilatildeo de estabilidade dos
paracircmetros do organismo compatiacuteveis com a vida para chegar ao fenocircmeno da consciecircncia do
eu Damaacutesio aponta que
Um organismo simples formado de uma uacutenica ceacutelula digamos uma ameba natildeo apenas
estaacute vivo mas se empenha em continuar vivo Sendo uma criatura sem ceacuterebro e sem
mente a ameba natildeo sabe sobre as intenccedilotildees do seu proacuteprio organismo assim como noacutes
sabemos sobre nossas intenccedilotildees equivalentes [] O que estou tentando mostrar eacute que o
iacutempeto de manter-se vivo natildeo eacute um avanccedilo recente Natildeo eacute uma propriedade exclusiva
dos seres humanos De um modo ou de outro dos organismos simples aos complexos a
maioria dos seres vivos apresenta essa propriedade O que efetivamente varia eacute o grau
em que os organismos tecircm conhecimento desse iacutempeto Poucos deles tecircm Mas o iacutempeto
estaacute presente quer o organismo saiba disso ou natildeo Graccedilas agrave consciecircncia os humanos
satildeo em grande parte cientes dele (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Eacute possiacutevel compreender entatildeo a referida estabilidade como o iacutempeto do organismo em
manter-se vivo nos seres humanos existe a consciecircncia desse iacutempeto O indiviacuteduo singular
como denomina o autor eacute consciente de sua sobrevivecircncia que ocorre no ambiente interno de
sua fronteira ou seja em seu corpo Para conservaacute-la com a estabilidade necessaacuteria agrave
permanecircncia de vida deve manter constantes paracircmetros internos em sua fisiologia Comer
dormir beber liacutequidos proteger-se de extremos de temperatura urinar e defecar algumas das
funccedilotildees que realizamos conscientemente para responder a essa finalidade cumprimos
necessidades vitais respondemos ao iacutempeto do organismo em manter-se vivo mas o realizamos
com o claro propoacutesito de fazecirc-lo Damaacutesio refere que ldquo[] a cada momento o ceacuterebro tem agrave sua
disposiccedilatildeo uma representaccedilatildeo dinacircmica de uma entidade com variaccedilotildees limitadas de estados
possiacuteveis- o corpordquo (DAMAacuteSIO 2000 p186)
103
A consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo portanto estatildeo na base do indiviacuteduo
singular A manutenccedilatildeo do ambiente dentro da fronteira nosso corpo eacute realizada por nossa
consciecircncia no cumprimento de nossas funccedilotildees vitais de certo modo escolhemos cumprir tais
funccedilotildees ao respeitarmos necessidades fisioloacutegicas entre elas comer e dormir Assim
sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas por um elemento em comum a consciecircncia que o
indiviacuteduo tem de si mesmo Entretanto deve-se salientar que a autonomia eacute uma capacidade que
poderaacute existir em maior ou menor grau durante o ciclo vital pois depende das possibilidades
fiacutesicas e psiacutequicas do ser humano em responder agraves exigecircncias da vida dentro de paracircmetros de
normalidade
Alguns elementos podem restringir a capacidade de autonomia sendo o sofrimento
psiacutequico um deles por reduzir a liberdade de o indiviacuteduo em fazer suas escolhas Tal reduccedilatildeo eacute
determinada pelo proacuteprio sofrimento inerente a patologias psiquiaacutetricas ou a crises vitais como
por exemplo a reaccedilatildeo a um evento traumaacutetico
Massimo Biondi em seu livro A mente selvagem um ensaio sobre a normalidade nos
comportamentos humanos apresenta o viacutenculo do sofrimento subjetivo com a reduccedilatildeo da
liberdade Sobre esse tema discute o limite entre normalidade e psicopatologia quando se aborda
o indiviacuteduo que sofre Segundo esse psiquiatra italiano no capiacutetulo intitulado lsquoO sofrimento
subjetivo e a liberdadersquo que o sofrimento subjetivo e a anguacutestia a reduccedilatildeo ou falta de liberdade e
a reduccedilatildeo da vontade satildeo aspectos que invariavelmente acompanham o distuacuterbio psiacutequico quanto
a este pode-se falar da importacircncia da vivecircncia subjetiva de determinado evento ou situaccedilatildeo
existencial para procurar definir os limites entre a normalidade psiacutequica e a patologia
O sofrimento subjetivo termo empregado por esse autor constitui um criteacuterio para
diversos diagnoacutesticos psiquiaacutetricos e tem como eixos principais a experiecircncia subjetiva e aquela
psiacutequica a primeira referente agrave percepccedilatildeo subjetiva de um evento existencial ou de um
sentimento pode ser avaliada apenas indiretamente por suas manifestaccedilotildees e pelo relato do
indiviacuteduo que sofre A segunda em linhas gerais refere-se agrave resposta do indiviacuteduo em termos
psiacutequicos ou seja atraveacutes de alteraccedilotildees dos fenocircmenos do estado mental conduzindo ao
diagnoacutestico Massimo Biondi aponta quatro componentes do que denomina sofrimento psiacutequico
a) Um estado de sofrimento subjetivo mesmo que natildeo espontaneamente referido pela
pessoa em niacutevel verbal b) uma reduccedilatildeo ou perda da liberdade sobre os proacuteprios
pensamentos e sobre as proacuteprias accedilotildees c) uma alteraccedilatildeo do proacuteprio projeto de existecircncia
104
e da capacidade de projetar o futuro d) uma alteraccedilatildeo reduccedilatildeo ou anulaccedilatildeo da vontade
(BIONDI 1996 p40)
O segundo componente relativo agrave reduccedilatildeo ou perda da liberdade eacute elemento comum e
distintivo que atravessa a existecircncia de pessoas com distuacuterbios psiacutequicos Tal elemento eacute um dos
criteacuterios de patologia psiquiaacutetrica de uma relevante instituiccedilatildeo da especialidade mas natildeo estaacute
restrito apenas aos diagnoacutesticos tal perda estaacute associada ao proacuteprio sofrimento Assim podemos
encontrar em indiviacuteduos que atravessam crises vitais essa perda de liberdade significando
reduccedilatildeo da autonomia de algueacutem que atravessa uma situaccedilatildeo de sofrimento subjetivo sem
necessariamente tal quadro constituir alguma patologia psiquiaacutetrica definida
Ainda de acordo com Biondi um indiviacuteduo pode apresentar um distuacuterbio psiquiaacutetrico
como causa de um evento especiacutefico existem quadros em que o evento estressante tem um claro
papel patogecircnico Nesses casos o sofrimento subjetivo gerado pelo evento aparece como
principal mediador que causa favorece e acompanha o estado psicopatoloacutegico Existem
entretanto condiccedilotildees em que o sofrer subjetivo natildeo eacute indicativo de um estado de doenccedila
propriamente dito mas pode estar associado a condiccedilotildees compreendidas dentro da normalidade
Um estado de sofrimento subjetivo decorre por exemplo de situaccedilotildees comuns e
lsquonormaisrsquo como luto perda de trabalho dificuldades afetivas ou conjugais fracasso escolar ou
profissional natildeo necessariamente evoluindo para um quatro de psicopatologia Algumas
situaccedilotildees inclusive satildeo vivenciadas como positivas pelo indiviacuteduo porque reestruturam algum
foco de seu mundo interno conduzindo a uma mudanccedila na percepccedilatildeo de determinadas
experiecircncias Em tais casos o sofrimento pode ser atenuado ou ateacute mesmo ter um valor
construtivo Eacute possiacutevel refletir que nessas condiccedilotildees a perda da liberdade seja temporaacuteria mas
ainda assim leve agrave melhora do indiviacuteduo em sua perspectiva de vida pois o sofrimento eacute
condiccedilatildeo muitas vezes para a tomada de consciecircncia da condiccedilatildeo humana
Por fim cabe referir a ressalva do proacuteprio autor
[] a normalidade natildeo eacute uma condiccedilatildeo caracterizada apenas pela ausecircncia de sofrimento
psiacutequico Muitos acontecimentos comuns da vida fazem sofrer agraves vezes de modo mais
intenso e persistente em situaccedilotildees totalmente normais [] O problema estaacute em
reconhecer o sofrimento normal daquele que define em sentido estrito alguma patologia
psiacutequica (BIONDI 1996 p53-56)
A reflexatildeo sobre a perda da liberdade inerente ao sofrimento psiacutequico em vigecircncia de
uma circunstacircncia normal ou de patologia psiquiaacutetrica inclui o entendimento de que a autonomia
105
estaacute reduzida quando este sofrimento acontece O indiviacuteduo durante o periacuteodo em que sofre eacute
limitado na capacidade de fazer escolhas saudaacuteveis para si e tal limitaccedilatildeo decorre da dor psiacutequica
propriamente dita Aleacutem de ser menos livre pois o que pensa e sente eacute condicionado por essa dor
o indiviacuteduo acometido sente menos vontade como refere Biondi ao mencionar o uacuteltimo dos
quatro componentes do sofrimento psiacutequico Pode-se novamente referir a reduccedilatildeo da autonomia
pois dela faz parte tambeacutem o fato de ter vontades e de dar voz agraves mesmas
33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA
O que nos move ao comer Brillat-Savarin em A fisiologia do gosto apontou o lsquosentido
geneacutesicorsquo ldquo[] o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro sendo a
sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecierdquo (DOacuteRIA 2009 p190) A referecircncia agrave obra claacutessica na
literatura gastronocircmica feita pelo pesquisador Carlos Alberto Doacuteria em seu livro A culinaacuteria
materialista eacute seguida pela seguinte reflexatildeo apresentada por ele
[] ora a reproduccedilatildeo da espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do
indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo
ao sexo e ao comer eacute o prazer a busca do agradaacutevel [] Precisamos nos encontrar com
o alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduos e isso se daacute por dois caminhos
pelo prazer e pela dor
A fome eacute a fonte de dor e nos leva em direccedilatildeo ao alimento o prazer em comer tambeacutem
nos leva em direccedilatildeo ao alimento antes que a dor nos imponha o seu caminho (DOacuteRIA
2009 p190)
lsquoA busca pelo alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduosrsquo nas palavras do autor
estaacute associada agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo precisamos
manter a vida para preservaacute-la motivo pelo qual nos nutrimos e copulamos A procura por
alimentos viaacuteveis eacute da histoacuteria do Homo sapiens assim como no ato de cozinhar
experimentavam-se teacutecnicas que favorecessem a ingestatildeo de animais e vegetais
Neste ponto cabe a reflexatildeo de que a procura por novos alimentos e o desenvolvimento
de modos para preparaacute-los resultou da iniciativa em descobrir novas possibilidades comestiacuteveis
da capacidade fiacutesica de fazecirc-lo e de vaacuterias capacidades deste homo sapiens Seria possiacutevel
compreender entre estas a autonomia conduzindo agrave compreensatildeo de que teria sido esta
capacidade em suas primeiras manifestaccedilotildees uma das responsaacuteveis pela partida em direccedilatildeo a
animais e vegetais para comer
106
Caberia citar tambeacutem a autonomia como responsaacutevel pelo desenvolvimento da descoberta
de cozinhar os alimentos aleacutem de aspectos inerentes agrave proacutepria evoluccedilatildeo da espeacutecie Desse modo
ela pode ter permitido a sobrevivecircncia em condiccedilotildees muitas vezes desfavoraacuteveis pelas escolhas
alimentares que favoreceu Sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas assim desde tempos
ancestrais conforme refere Carlos Alberto Doacuteria no mesmo livro
Assim como ensina o arqueozooacutelogo Jean-Denis Vigne haacute 30 mil anos o homem jaacute natildeo
comia soacute o que o seu ambiente imediato lhe oferecia por facilidade de captura mas ia
atraacutes de alimentos capazes de satisfazer suas imagens mentais mais fortes e expressivas
em termos sociais Especialmente nas regiotildees frias no Paleoliacutetico Superior sua dieta era
composta de animais com pouca disponibilidade de vegetais Jaacute no Mesoliacutetico o clima
se estabiliza e nas regiotildees temperadas comeccedila a apresentar maior utilizaccedilatildeo de vegetais
Entre 8000-9000 aC e 5000 aC desenvolve-se a dieta moderna em que as energias
humanas satildeo providas por lipiacutedeos e gluciacutedeos originados de animais e plantas
domesticadas Pode-se dizer entatildeo que dessa eacutepoca em diante o homem produz tudo
aquilo que come isto eacute produz a si proacuteprio do ponto de vista alimentar (DOacuteRIA 2009
p3)
Doacuteria aponta ainda o viacutenculo entre a dieta humana e o processo de hominizaccedilatildeo como a
aquisiccedilatildeo da postura biacutepede e por fim a expansatildeo do Homo erectus ao moderno Homo sapiens
que exigiu uma dieta suficientemente rica em calorias e nutrientes Aleacutem desse aspecto o autor
refere o domiacutenio do fogo que permitiu cozinhar os alimentos e seus benefiacutecios
O incremento de calorias se deu graccedilas tanto a ambientes mais favoraacuteveis quanto agrave
adoccedilatildeo da culinaacuteria da agricultura e de criteacuterios de seleccedilatildeo de espeacutecies alimentares
Cozinhar tornou os alimentos mais macios e faacuteceis de ingerir e viabilizou o consumo de
vegetais como a batata e a mandioca que na forma crua natildeo podiam ter seus nutrientes
metabolizados pelo corpo humano Desse modo esses carboidratos complexos se
tornaram digestiacuteveis e multiplicaram ao extremo as possibilidades alimentares Em
siacutentese esses procedimentos aliados agrave seleccedilatildeo de espeacutecies vegetais permitiram
incrementar sua produtividade sua digestibilidade e seu conteuacutedo nutricional (DOacuteRIA
2009 p32)
O Homo sapiens munido de maiores capacidades alimentava-se de forma cada vez
melhor no sentido de incrementar sua sobrevivecircncia nutrindo-se com maior variedade e melhor
qualidade da dieta adquiria novas capacidades e aprimorava aquelas jaacute dominadas resultando em
aumento na capacidade de descoberta de novos ingredientes e de preparo dos mesmos Instalava-
se assim um ciacuterculo entre o desenvolvimento de potencialidades tornando-o cada vez mais
capaz de sobreviver mesmo em condiccedilotildees adversas bem como de agir sobre tais condiccedilotildees
Tudo isso favorecia a vida e a reproduccedilatildeo da espeacutecie Sobrevivecircncia e autonomia novamente
aliadas pelo alimento O pesquisador norte-americano Michael Pollan alude a uma observaccedilatildeo de
Winston Churchill sobre a arquitetura ldquoPrimeiro cozinhamos nossa comida depois ela nos
107
cozinhourdquo (POLLAN 2014 p15) Pollan explica esse fenocircmeno ocupado pelo cozinhar em
nossa biologia
Portanto cozinhar nos transformou e natildeo apenas por nos tornar mais sociaacuteveis e
corteses Uma vez que o ato de cozinhar permitiu que expandiacutessemos nossas capacidades
cognitivas agrave custa da capacidade digestiva natildeo havia mais como voltar atraacutes nossos
ceacuterebros grandes e intestinos pequenos dependiam agora de uma dieta agrave base de
alimentos cozidos [] Isso quer dizer que cozinhar tornou-se compulsoacuterio- estaacute por
assim dizer cozido em nossa biologia (POLLAN 2014 p15)
A partir daiacute toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo incluindo o surgimento da gastronomia
conduz progressivamente a um grau de evoluccedilatildeo deste campo que ultrapassa a lsquomerarsquo demanda
pela sobrevivecircncia e preservaccedilatildeo da espeacutecie A sobrevivecircncia ao que parece natildeo ocupa mais o
centro no universo da cozinha O campo das accedilotildees e estudos ligados ao preparo do alimento
chega em nosso seacuteculo XXI em niacuteveis de superespecializaccedilatildeo e de glamourizaccedilatildeo nunca antes
imaginados Este eacute o caso para citar exemplos da Cozinha Molecular e dos programas
televisivos que invadem as casas com a famiacutelia muito mais atenta ao programa sobre comer do
que ao proacuteprio comer Hoje em dia aliaacutes sobreviver natildeo atinge a categoria de prioridade de
muitos indiviacuteduos fervorosos em sua autonomia contemporacircnea no desejo insalubre pelo prazer
da comida ou mesmo na pressa da vida urbana morrem por comer da pior forma possiacutevel
Para compreender esse processo vale refletir sobre como chegamos ateacute aqui A histoacuteria a
ser contada parte do ato de cozinhar que ldquo[] eacute como dizem os antropoacutelogos uma atividade que
nos define como seres humanos - o ato com o qual segundo o filoacutesofo e antropoacutelogo Claude
Levi-Strauss a cultura surgerdquo (POLLAN 2014 p13) Para Leacutevi-Strauss conforme referido por
Michael Pollan ldquo[] cozinhar servia como uma metaacutefora da transformaccedilatildeo humana da natureza
crua para a cultura cozidardquo (POLLAN 2014 p13) A respeito do papel do cozinhar para a
cultura Carlos Alberto Doacuteria refere
O que une as abelhas no coletivo eacute uma interaccedilatildeo quiacutemica chamada trofolaxe Ora aleacutem
da integraccedilatildeo neurosensorial devemos considerar que a trofolaxe humana eacute a linguagem
Eacute por intermeacutedio da linguagem que estamos acoplados com outros seres humanos e eacute
tambeacutem com ela que partilhamos nossas experiecircncias ateacute mesmo atraveacutes de enormes
distacircncias no tempo e no espaccedilo Nessa trofolaxe a relaccedilatildeo com os sabores do mundo se
daacute ao mesmo tempo pelo aparelho gustativo e pela cultura (DOacuteRIA 2009 p197)
Deve-se considerar a vasta gama de fatos da histoacuteria da alimentaccedilatildeo desde a preacute-histoacuteria
ateacute nosso terceiro milecircnio tendo como eixo a transformaccedilatildeo na cultura produzida pelo cozinhar
a fim de compreender as mudanccedilas exponenciais que a cozinha atravessou ateacute chegar agrave sua
108
representaccedilatildeo contemporacircnea Nesse contexto faz-se necessaacuterio definir os pontos de referecircncia
que marcaram a transiccedilatildeo a partir da qual sobreviver parece ter deixado de ocupar o motivo por
que o indiviacuteduo se alimenta
Um dos aspectos que podem ser apontados como referenciais na transiccedilatildeo acima abordada
eacute o iniacutecio da chamada restauraccedilatildeo ou seja o surgimento dos restaurantes dentro do nascimento
da hotelaria Em especial a existecircncia da comida de rua passa a ter um papel significativo neste
sentido A valorizaccedilatildeo da gastronomia cada vez maior desde o seacuteculo XVIII teve tambeacutem
influecircncia no processo ao deslocar para o prazer dos sentidos principalmente o do gosto o
centro de sua atenccedilatildeo
Entretanto haacute um ponto chave para a mudanccedila do foco da comida de aspecto nutricional
e gregaacuterio a fator de risco para as mais variadas doenccedilas fiacutesicas como a obesidade e a
hipertensatildeo arterial e para aquelas psiacutequicas como a anorexia e a bulimia tatildeo vigentes no seacuteculo
XXI Este ponto em sua origem estaacute no processo de industrializaccedilatildeo que culminou com o
deslocamento do comer da mesa do lar para o local de trabalho De que forma este pode
relacionar-se agrave sobrevivecircncia e agrave autonomia focos deste subcapiacutetulo Por dois caminhos o
primeiro refere-se ao fato de que o deslocamento restringiu as possiblidades de alimentaccedilatildeo e os
empregados ficaram submetidos ao que fosse oferecido em seu trabalho portanto com restriccedilatildeo
da autonomia o segundo caminho refere-se agraves ofertas alimentares propiciadas nos locais de
trabalho pouco dirigidas agrave sauacutede do indiviacuteduo e por extensatildeo ao papel nutricional da
alimentaccedilatildeo equivalente agrave sua sobrevivecircncia
Pode-se falar na evoluccedilatildeo dos centros urbanos e de suas demandas e transformaccedilotildees entre
estas a pressa que tambeacutem restringe as escolhas alimentares possiacuteveis Outra vez a restriccedilatildeo da
autonomia e o prejuiacutezo das escolhas agrave sauacutede Da pressa passamos ao fenocircmeno seguinte aquele
que Maacutessimo Montanari e Jean-Louis Flandrin denominam lsquoA McDonaldizaccedilatildeo dos costumesrsquo
no livro Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo do qual satildeo organizadores A pressa leva ao surgimento dos
fast-food pela sociedade norte-mericana estes por sua vez causam uma lista de patologias
cardiovasculares e oncoloacutegicas por exemplo A pressa e os fast-food tornam-se parte do
fenocircmeno de stress que aumenta a pressa e torna rotineira a alimentaccedilatildeo raacutepida reduzindo a
sauacutede e aumentando ainda mais o stress Instala-se o ciacuterculo vicioso da vida moderna O eixo de
nutriccedilatildeo que uma vez focircra o lar tornou-se a rua
109
Retomando um dos elementos discutidos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute possiacutevel perceber o
modo como as referidas mudanccedilas atingem a sobrevivecircncia Damaacutesio refere que para que um
organismo permaneccedila vivo eacute necessaacuterio ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados
internos de modo que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Em seu ensaio sobre a normalidade dos comportamentos humanos Massimo Biondi
apresenta um capiacutetulo em que aborda a normalidade dos padrotildees fisioloacutegicos de sobrevivecircncia
Explica que
O organismo eacute uma entidade viva Sua vida se baseia em processos bioloacutegicos de base
que devem respeitar algumas caracteriacutesticas A vida humana por exemplo eacute possiacutevel
para temperaturas corporais compreendidas entre 30 e 42deg Acima ou abaixo de tais
temperaturas para aleacutem de um certo tempo a vida eacute impossiacutevel []
Tal conceito vale para muitas outras variaacuteveis estudadas em medicina e fisiologia do
peso agrave altura da frequecircncia cardiacuteaca agrave pressatildeo arterial [] da quantidade diaacuteria de
accediluacutecar no sangue agraves caracteriacutesticas da urina
O criteacuterio da norma bioloacutegica assim como concebido aqui refere-se agrave normalidade de
funcionamento de estruturas bioloacutegicas que caracterizam a vida de um organismo e satildeo
compatiacuteveis com a mesma (BIONDI 1996 p169)
O indiviacuteduo do seacuteculo XXI em posse de sua autonomia acaba por fazer escolhas
alimentares contra a proacutepria sobrevivecircncia pois alteram os padrotildees de normalidade compatiacuteveis
com a sauacutede e em uacuteltima instacircncia com a proacutepria vida eacute o caso do impacto de alimentos do
regime fast-food na sauacutede resultando em diabetes hipertensatildeo arterial e sobrepesoobesidade
Tal resultado entre outros deve-se agrave ingestatildeo excessiva de carboidratos gorduras e
trigliceriacutedeos presentes nesta forma lsquodesnutricionalrsquo
A autonomia desse modo que muitas vezes eacute fonte de extrema valorizaccedilatildeo em tempos
nos quais a individualidade ocupa papel central leva o homem contemporacircneo a atacar a
sobrevivecircncia e natildeo mais a preservaacute-la Nesse ponto da histoacuteria da alimentaccedilatildeo sobrevivecircncia e
autonomia afrouxaram o dar as matildeos De acordo com Michael Pollan ldquoPesquisas de opiniatildeo
confirmam que a cada ano cozinhamos menos e compramos mais refeiccedilotildees prontasrdquo
(POLLAN 2014 p11)
Este autor traz reflexotildees relevantes quanto ao paradoxo do papel da cozinha em nossa
contemporaneidade apontando que ao mesmo tempo que o tempo de cozinhar diminui aumenta
o tempo de dedicaccedilatildeo a assistir programas de cozinha na televisatildeo aleacutem de outras modificaccedilotildees
mencionadas por ele sobre as escolhas alimentares O que chama a atenccedilatildeo na obra de Michael
Pollan eacute o fato de ele mencionar o ponto em que chegamos sob a perspectiva de nossa cultura
110
alimentar global Sendo este um pesquisador reconhecido e respeitado internacionalmente eacute
positivo que exponha em tom pungente os resultados de pesquisas e perspectivas no
embasamento de suas reflexotildees Posiciona-se frente a vaacuterios problemas graves ligados ao modo
de comer de nosso tempo ao mencionar a reduccedilatildeo do haacutebito de cozinhar e suas consequecircncias
ldquo[] natildeo eacute surpresa alguma o decliacutenio do haacutebito de cozinhar em casa coincidir com o aumento da
incidecircncia da obesidade e de todas as doenccedilas crocircnicas associadas agrave alimentaccedilatildeordquo (POLLAN
2014 p16)
O elemento apontado por este autor e que se relaciona agrave relaccedilatildeo entre a comida e as
relaccedilotildees interpessoais declara que a refeiccedilatildeo em famiacutelia deu lugar em larga escala ao comer
sozinho Autonomia praticidade e individualismo parecem estar no centro deste fenocircmeno
A ascensatildeo do fast-food e o decliacutenio da comida caseira tambeacutem abalaram a instituiccedilatildeo da
refeiccedilatildeo compartilhada por nos estimularem a comer coisas diferentes com pressa e
muitas vezes sozinhos Pesquisas dizem que estamos dedicando mais tempo agrave
lsquoalimentaccedilatildeo secundaacuteriarsquo que eacute como denominamos esse costume meio constante de
beliscar alimentos embalados e menos tempo agrave lsquoalimentaccedilatildeo primaacuteriarsquo - termo um tanto
deprimente para a instituiccedilatildeo outrora respeitada e conhecida como refeiccedilatildeo
A refeiccedilatildeo compartilhada natildeo eacute algo insignificante Trata-se de um dos fundamentos da
vida em famiacutelia o lugar onde as crianccedilas aprendem a arte da conversaccedilatildeo e adquirem
haacutebitos que caracterizam a civilizaccedilatildeo repartir ouvir ceder a vez administrar
diferenccedilas discutir sem ofender (POLLAN 2014 p16 grifo do autor)
A autonomia agrave eneacutesima potecircncia deixa de ser uma capacidade para tornar-se uma redoma
Acabamos tornando-nos seres livres em excesso talvez Por termos pressa querermos prazeres e
independecircncia extremos sobreviver passou agrave categoria de um lsquotanto fazrsquo em prol do proveito
maacuteximo do instantacircneo Vale retomar a reflexatildeo de Karl Jaspers sobre a consciecircncia do eu
definida por limites externos e reais nossa autossuficiecircncia eacute delimitada pela dependecircncia que
temos de recursos externos como por exemplo os bens alimentares e das pessoas significativas
em nossa vida Dependemos desses bens assim como dos relacionamentos familiares afetivos e
profissionais todos necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia do ponto de vista fiacutesico e psiacutequico
A autonomia conquistada para sobrevivermos na evoluccedilatildeo da espeacutecie chegou a um grau
de importacircncia em nosso universo contemporacircneo que parece ter ultrapassado o instinto de
preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo Viver a liberdade as vontades e
prazeres sobrepuja o proacuteprio sobreviver Autonomia e sobrevivecircncia parecem ter soltado as matildeos
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34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI
A leitura do romance Quarenta dias permite identificar a cozinha presente em trecircs
periacuteodos principais da narrativa representados respectivamente por trecircs elementos especiacuteficos
O primeiro aparece nas paacuteginas iniciais quando Alice comeccedila a relatar em seu caderno o
periacuteodo que antecedeu a mudanccedila para Porto Alegre lembrando-se do egoiacutesmo de Norinha sua
filha desde quando ainda morava em Joatildeo Pessoa Tais recordaccedilotildees fornecem pistas do
comportamento da moccedila ao determinar as transformaccedilotildees na vida da matildee para satisfazer seus
interesses
O segundo elemento abrange os primeiros dias da chegada de Alice a inconformidade
com a nova moradia onde a cozinha que define como lsquode show-roomrsquo expressa uma atmosfera
impessoal e asseacuteptica agrave qual ela natildeo consegue se adaptar Aparece nesta etapa o choque de sua
nova realidade e a tentativa de aceite de todas as mudanccedilas de vida impostas pela filha
A importacircncia de refletir sobre os dois elementos apresentados acima estaacute no fato de esses
demonstrarem Alice em sua vida em Joatildeo Pessoa e logo na chegada em Porto Alegre Os dois
periacuteodos expressam o comportamento de Norinha como explicaccedilatildeo para sua conduta egoiacutesta em
relaccedilatildeo agrave matildee e expressam tambeacutem a relaccedilatildeo de Alice com a consciecircncia de si mesma e com a
autonomia Assim os dois periacuteodos anteriores agrave procura por Ciacutecero descritos por ela agrave Barbie
em seu caderno anunciam o porquecirc de desejar a retomada de si mesma durante os dias em que
transplanta sua vida para o espaccedilo urbano
O terceiro elemento por fim refere-se ao tema deste capiacutetulo a comida como
representaccedilatildeo da necessidade de autonomia vinculada ao processo de tomada de consciecircncia de
si incluindo suas escolhas necessidades de sobrevivecircncia gostos e memoacuterias gustativas que satildeo
parte de sua identidade Nesse terceiro elemento que ocupa a maior parte da anaacutelise encontra-se
uma cozinha transplantada para o universo urbano espaccedilo que Alice habita nos quarenta dias
Junto agrave comida expressa por carrinhos de pipoca botecos moradias em vilas- onde lhe
oferecem cafeacute chimarratildeo e algo para comer- padarias e um restaurante de rodoviaacuteria estaacute a
representaccedilatildeo de uma vida cujo cenaacuterio eacute o proacuteprio espaccedilo da cidade no dormir no banhar-se no
comer Eacute neste territoacuterio que Alice procura a si mesma enquanto em suas andanccedilas ela pergunta
por um desconhecido Ciacutecero Arauacutejo dentro de si vai encontrando aquela que eacute capaz de tomar as
proacuteprias decisotildees de sobrevivecircncia Progressivamente recupera a consciecircncia de si e as suas
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vontades Um fator que deve ser ressaltado estaacute incluiacutedo neste terceiro elemento a ligaccedilatildeo
mesmo que efecircmera que Alice estabelece com as demais personagens da narrativa na maior
parte das vezes esta ligaccedilatildeo ocorre por intermeacutedio da comida que oferecem a ela ou que ela
partilha como no caso de Lola e Arturo
Eacute possiacutevel observar que haacute situaccedilotildees em que o cuidado de desconhecidos para com ela
ocorre ao oferecerem um chaacute um cafeacute um biscoito nas casas de vilas por onde passa o mesmo
cuidado eacute feito por Penha que coloca com esmero a mesa para Alice no restaurante da
rodoviaacuteria tratando-a com gentileza e camaradagem ou pela proacutepria Milena que cuida de Alice
com chaacute e canja de galinha no iniacutecio da histoacuteria quando esta teria voltado doente de sua visita a
Jaguaratildeo Ateacute mesmo Zelima que aparece na cena em que a protagonista se engasga com a
pipoca no Hospital de Pronto Socorro tem uma atitude de cuidado e de preocupaccedilatildeo para com
ela oferecendo-lhe aacutegua e acompanhando sua melhora
Estas breves expressotildees de carinho e zelo atraveacutes do alimento representam na obra a
nutriccedilatildeo que o cuidado interpessoal oferece muitas vezes na linguagem do alimento na vivecircncia
de Alice em sua nova vida porto-alegrense A capacidade de despertar sentimentos de cuidado de
afeto e de preocupaccedilatildeo da parte de outras pessoas demonstra caracteriacutesticas de uma Alice que
retoma o contato consigo que se reencontra
Mesmo com todo o trauma que atravessa a personagem eacute capaz de estabelecer viacutenculos
durante seus caminhos ainda que sejam breviacutessimos ilustram um aspecto de sua personalidade
Eacute algo seu que natildeo se perdeu com o roubo de sua autonomia e eacute justamente por seu modo de ser
que vai estabelecendo pontes para chegar a algum desfecho de sua procura durante a histoacuteria
pontes atraveacutes da comunicaccedilatildeo com as pessoas e comunicaccedilatildeo atraveacutes da comida que lhe eacute
servida das informaccedilotildees que lhe satildeo dadas do cuidado amistoso como no caso de Lola e de
Milena
Embora o foco do presente capiacutetulo seja a abordagem da conquista da autonomia da
personagem atraveacutes de suas decisotildees pela sobrevivecircncia eacute importante enfatizar que Alice em sua
vida em Joatildeo Pesssoa tinha tal autonomia Aleacutem de ter criado sua filha praticamente sozinha
tinha apartamento proacuteprio amigos e projetos reconhecimento de sua atividade profissional como
a lsquosensata Professora Poacutelirsquo conforme diversas vezes se denomina durante a narrativa Essa
capacidade sofreu abrupta reduccedilatildeo pela interferecircncia da filha quando definiu que a matildee iria se
transferir para Porto Alegre para cuidar do futuro neto
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Este eacute entatildeo o primeiro elemento a ser abordado o egoiacutesmo da filha A conduta de
Norinha deveu-se a esse egoiacutesmo ao natildeo pensar no desejo de Alice e sim nos proacuteprios interesses
Apenas quando escreve a longa lsquocartarsquo para Barbie depois de sua jornada pela cidade a
protagonista eacute capaz de se recordar de episoacutedios antigos com a filha Esses eventos jaacute
denunciavam a postura da moccedila desde o comeccedilo da juventude O trecho a seguir mostra uma
dessas recordaccedilotildees
Ainda meio adormecida fechei a janela e voltei pra cama naquela madorna jaacute perto de
acordar de vez e entatildeo comecei a reviver cenas bobas de muito tempo atraacutes sem
importacircncia completamente esquecidas agora niacutetidas em sonho ou na minha memoacuteria
por que seraacutecoisas assim como o dia em que estava um friozinho excepcional pra
Joatildeo Pessoa e resolvi fazer uma sopa quente pro jantar aproveitando umas batatas-
baroas que tinha achado no mercado Batata-baroa saudade do siacutetio do meu avocirc uma
raridade na cidade mais batata inglesa cenoura cebola e caldo de galinha tudo de bom
O cheiro da sopa no fogo jaacute tinha impregnado a casa quando Nora chegou Vai fazer
sopa hoje Matildeiacutenha Que horas Jaacute estaacute pronta se quiser eacute soacute bater no
liquidificadorComo nunca me esperava pra cear pois iacutea correndo pra faculdade
apenas ouvi vagamente que estava mexendo na cozinha enquanto eu assistia agrave novelinha
das seis Tatildeo distraiacuteda com a novela nem percebi que ela jaacute tinha saiacutedo Tudo bem ateacute
que fui tratar de pocircr a mesa pra mim Soacute tinha sobrado menos de uma concha rasa de
sopa Pasme Barbie ela tinha se servido na tigela do feijatildeo Fiquei danada na hora mas
nada a fazer do que usar a imaginaccedilatildeo Jaacute eram quase sete e meia da noite Entatildeo botei
mais um copo dacuteaacutegua com uma colher de maisena meio tablete a mais de caldo de
galinha e cozinhei ali dentro uma porccedilatildeo de massinha pra sopaque bom que tinha em
casa Tomei entatildeo o resultado como se estivesse tudo normal com apenas um leve
gostinho de batata-baroamas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada
de matildeo-de-vaca (REZENDE 2014 p22)
Vale ressaltar a atitude complacente de Alice frente ao egoiacutesmo da filha no episoacutedio
narrado acima expressa pela frase lsquomas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada
de matildeo-de-vacarsquo A seguir outro fragmento em que Norinha se apossava dos chocolates e das
guloseimas da matildee Alice reflete em sua carta para Barbie sua obediecircncia agraves demandas da moccedila
devidas agraves dietas no comprar lsquocoisas estranhasrsquo na feira
Diversos pontos satildeo referidos como o fato de a filha natildeo se sentar mais agrave mesa com ela e
a atitude de desperdiccedilar as gemas de ovo em suas dietas Um aspecto interessante do trecho
abaixo eacute a memoacuteria de sua avoacute fazendo lsquofios dacuteovosrsquo e quindins como marca de afeto e de
partilha pela comida Assim haacute o contraste do alimento ora como representaccedilatildeo do egoiacutesmo da
filha ao lsquoroubarrsquo seus chocolates e as guloseimas ora como expressatildeo do afeto compartilhado
pela avoacute atraveacutes dos doces que fazia
Cabe ainda a reflexatildeo mais uma vez Alice menciona sua complacecircncia para com a filha
nas frases lsquofielmente obedeciarsquo e lsquoeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar
114
discussatildeorsquo Volta-se desse modo para a frase apresentada no primeiro trecho referida acima
lsquonatildeo dei um pio pra natildeo ser chamada de matildeo-de-vacarsquo A postura de Alice em relaccedilatildeo agrave Norinha
tinha sempre um elemento de passividade de obediecircncia agraves normas e aos quereres da filha
anunciando que a postura da uacuteltima em definir a mudanccedila de Alice mesmo contra a vontade desta
era a continuidade de um comportamento mais antigo na relaccedilatildeo entre elas A protagonista conta
agrave Barbie
Vivia acrescentando coisas estranhas nas minhas listas de feira que eu fielmente
obedeciaeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar discussatildeo Claro de
vez em quando ela dava umas escapadas na dieta principalmente comendo meus
chocolates e umas guloseimas de que gosto e comprava pro meu lanche Afinal eu natildeo
estava de dieta Quase natildeo se sentava agrave mesa comigo comia em peacute na cozinha ia pro
quarto dela comer as gororobas dieteacuteticas que fazia ou se enchia soacute de claras de ovo
jogando as gemas fora Parei de tentar aproveitar pois natildeo dava pra tomar gemada todo
dia natildeo eacute e Voacute natildeo estaacute mais neste mundo pra me ensinar a fazer fios dacuteovos ou
quindinse as gemas que Norinha descartava eram branquelas nada daquele amarelo
vivo dos ovos de capoeira do siacutetio Seraacute que ainda existem fios dacuteovos (REZENDE
2014 p23)
O trecho seguinte refere-se ao segundo elemento assinalado ou seja a inconformidade de
Alice com sua nova vida em Porto Alegre no apartamento que natildeo aceita como seu Nas
referecircncias agrave cozinha lsquode show-roomrsquo a protagonista expressa suas impressotildees sobre o local
montado por Norinha para sua habitaccedilatildeo Haacute diversos momentos em que a comida representa seu
desacerto com a vida montada em um territoacuterio sem referecircncias afetivas sem lembranccedilas dos
quais o fragmento abaixo eacute um exemplo
Alice mostra uma resignaccedilatildeo compulsoacuteria com as ordens da filha uma aparente
concordacircncia com as tentativas de Norinha de abater-lhe a autonomia eacute na contrariedade com o
cenaacuterio esteacuteril da cozinha que define como lsquoalheiarsquo e com os alimentos que tem em casa com as
compras que a filha faz e guarda nos armaacuterios e gavetas que se mostra seu modo de perceber e
de sentir as imposiccedilotildees da mesma
A inconformidade com a vida porto-alegrense aparece em diversas situaccedilotildees na chegada
de Alice ao apartamento aleacutem do trecho acima Percebo em vaacuterios pontos a revolta da
protagonista com os detalhes da cozinha como espaccedilo fiacutesico em outros aparece seu lsquodesacertorsquo
atraveacutes de uma voz criacutetica e ateacute mesmo irocircnica com os alimentos gauacutechos
Assumi consciente e disciplinadamente a atitude que eu jaacute vinha ensaiando havia algum
tempo do ET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes muito maiores
que ele Eu continuava a encolher Engoli obediente tudo o que estava posto sobre a
previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de vidro num canto da sala o chaacute as
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torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar de chimia a
fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial trazido
natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite morno (REZENDE 2014
p41)
Eacute possiacutevel ler a atitude de engolir lsquoobedientersquo o alimento como representativa de sua
percepccedilatildeo sobre si mesma de ldquoET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes
muito maiores do que elerdquo A obediecircncia em comer aqui ilustra a frase ldquoEu continuava a
encolherrdquo Ela natildeo via o que estava sendo posto na mesa como cuidado com sua chegada por
preocupaccedilatildeo genuiacutena com seu bem-estar entendia isto sim como ldquobenevolecircncia de terraacutequeos
muito maioresrdquo A forccedila da comparaccedilatildeo estaacute no fato de que o comer tambeacutem se tornou objeto de
controle da filha a quem ela passava a ldquoobedecerrdquo Passava a ocupar assim o papel que descreve
como ldquofilha da minha filhardquo (REZENDE 2014 p74)
Neste trecho lecirc-se a contrariedade de Alice na referecircncia que faz agrave cozinha como espaccedilo
fiacutesico ldquo[] tudo o que estava posto sobre a previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de
vidro no canto da salardquo (REZENDE 2014 p74) Ainda que se refira agrave mesa como estando na
sala atribui a ela papel conotaccedilatildeo ligada agrave funccedilatildeo da cozinha como extensatildeo desta pois eacute onde
estatildeo na cena os produtos alimentares oferecidos
Na menccedilatildeo que ela faz a esses produtos estaacute expressa tambeacutem a revolta atraveacutes da voz
irocircnica ldquo[] o chaacute as torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar
de chimia a fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial
trazido natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite mornordquo (REZENDE 2014
p41) Assim eacute na cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico que se expressa na chegada de Alice a
Porto Alegre a representaccedilatildeo de sua recusa em aceitar a vida que lhe foi imposta Haacute referecircncias
expliacutecitas agrave sua revolta mas a forma material da contrariedade eacute demonstrada nessa etapa da
narrativa em diversos episoacutedios ligados agrave cozinha
A manhatilde seguinte agrave chegada no apartamento continua tendo essa peccedila da casa como
cenaacuterio da inconformidade de Alice quando Norinha chega com as compras
Naquela primeira manhatilde sem coragem de decifrar os armaacuterios e eletrodomeacutesticos desta
cozinha metida a besta eu ainda de camisola e roupatildeo agrave mesa do canto da sala
preguiccedilosamente acabando de recuperar como cafeacute da manhatilde os restos do lanche da
madrugada que ficaram largados ali bolo torradas amanhecidas chimia queijo serrano
chaacute frio ouvi barulho de chave na fechadura e me assustei Norinha pelo visto agora
detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas tambeacutem da chave da minha
moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha com almoccedilo
Bem paraibano viu Matildeiacutenha pra vocecirc ir se acostumando aos poucos a quentinha
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equilibrada entre montes de sacolas de compras Pra abastecer a despensa de minha
Maacuteinha adorada que vai ser tratada como uma duquesa pela sua filhinha preferida []
meteu-se diretamente na cozinha Que tive que fazer malabarismos para conseguir passar
no supermercado pra conseguir passar no supermercado e trazer suas compras depois a
gente acerta natildeo se preocupe com isso por hoje vou ter de sair correndo que este dia da
semana eacute sempre pesadiacutessimo na universidade agraves vezes natildeo daacute tempo nem de fazer xixi
(REZENDE 2014 p47-48 grifo nosso)
A frase em grifo representa a percepccedilatildeo de Alice sobre o controle que a filha assumia
sobre sua vida ldquoNorinha pelo visto agora detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas
tambeacutem da chave da minha moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha
com almoccedilordquo (REZENDE 2014 p48) O controle sobre o cardaacutepio expressa a inconformidade
da protagonista com as imposiccedilotildees de Norinha na sua vida por exemplo escolhendo um almoccedilo
lsquobem paraibano viu Matildeiacutenha para vocecirc ir se acostumando aos poucosrsquo como ela refere Aleacutem
deste aspecto as sacolas de compras lsquoPra abastecer a despensa de minha Matildeiacutenha adoradarsquo
tambeacutem satildeo para Alice representativas dos mandos de sua filha
A direccedilatildeo da filha sobre a rotina da personagem ocorre em detalhes cotidianos como de
fazer e de guardar as compras de supermercado na cozinha do apartamento levar a lsquoquentinharsquo
para o almoccedilo e definir na percepccedilatildeo de Alice que ela deve sair agrave rua entre outras condutas
Tais comportamentos ligados agrave alimentaccedilatildeo demonstram a atitude de Norinha interferindo na
autonomia da matildee procurando ceifar sua capacidade de cuidar de uma nova vida naquilo que eacute
mais individual na sobrevivecircncia a nutriccedilatildeo A contrariedade de Alice agrave cozinha do apartamento
reflete em muito a percepccedilatildeo que ela tem deste ao longo da narrativa em suas referecircncias eacute
possiacutevel compreender que se vecirc presa naquilo que por diversas vezes chama de lsquotabuleiro de
xadrezrsquo Em grande parte essa impressatildeo se deve ao aspecto do local mas o sentimento
transcende essa caracteriacutestica no lsquotabuleirorsquo Alice tem sua liberdade tolhida
O trecho a seguir representa a relaccedilatildeo que se estabelece entre elas nesta etapa inicial da
chegada de Alice a Porto Alegre
Fiquei calada soacute olhando com a boca cheia o naco de queijo grande demais difiacutecil de
mastigar e engolir como todo o resto que havia tempos jaacute vinha entalado na minha
garganta Nem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia em meu nome
gritando aqui da cozinha enquanto desensacava os pacotes e escondia as coisas atraacutes de
sei laacute qual dessas dezenas de portinhas brancas por cima desses azulejos pretos [] e
por aiacute foi Norinha perguntando e respondendo por mim ateacute esvaziar a uacuteltima sacola
bater pela uacuteltima vez todas as portas e gavetas dos armaacuterios da geladeira O almoccedilo eacute soacute
esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenha (REZENDE 2014 p48-49)
117
Um dos pontos que deflagram a atitude de Norinha em ceifar a autonomia de Alice estaacute na
frase lsquoO almoccedilo eacute soacute esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenharsquo como se a matildee natildeo soubesse disso
ou natildeo tivesse capacidade de percebecirc-lo sozinha A filha infantiliza a personagem tomando por
ela decisotildees e condutas (como ir ao supermercado e guardar as compras nos armaacuterios da
cozinha) Ateacute mesmo a verbalizaccedilatildeo das respostas eacute feita por ela sem dar agrave Alice a possibilidade
de expressar-se como na frase lsquoNem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia
em meu nome gritando aqui da cozinharsquo
A resposta emocional de Alice a este iniacutecio de sua vida na nova cidade ainda antes da
revelaccedilatildeo de que Norinha e o esposo adiaram os planos de gravidez estaacute representada no
fragmento a seguir
Fiquei laacute Alice diminuindo mais ainda imprensada entre a mesa e a parede nem sei
quanto tempo tentando me convencer de que ela natildeo se meteria mais de surpresa pela
porta adentro e sabendo que pra rua eu natildeo ia como queria minha filha e natildeo ia mesmo
soacute porque era isso que ela tinha ordenado Natildeo ia natildeo de birra sem nenhuma ideia
nem vontade de fazer nada a natildeo ser andar para um lado e outro naquele tabuleiro de
xadrez minhas pernas dissipando a energia acumulada pela raiva olhar as malas ainda
fechadas as portas desses armaacuterios da cozinha fechadas a pilha de caixas fechadas e de
relance a minha cara fechada refletida na enorme televisatildeo da sala em outra menor no
quarto nos vaacuterios espelhos e vidraccedilas espalhados por aiacute O almoccedilo ficou aqui esfriando
no balcatildeo da cozinha ateacute o anoitecer Daiacute engoli aquilo frio mesmo enquanto deixava o
telefone tocar tocar tocar ateacute desistirem (REZENDE 2014 p51)
Entretanto a protagonista encontra em si mesma a capacidade de autonomia que vinha
adormecida desde quando comeccedilou o processo de mudanccedila determinado pela filha Comeccedila a
aceitar as modificaccedilotildees tomar conta da proacutepria rotina decidir adaptar-se ao apartamento e agrave nova
vida A decisatildeo de aceitar a vida imposta pela filha eacute tomada com autonomia com a sensatez que
remonta a lsquosensata professora Poacutelirsquo Alice torna a instalaccedilatildeo em sua nova moradia algo que
parece originar de uma decisatildeo sua e natildeo apenas de uma imposiccedilatildeo de Norinha Entretanto
expressa que a decisatildeo para tal eacute racional assim como a organizaccedilatildeo metoacutedica da casa que
realiza Sugere que estaacute fazendo de conta que esqueceu lsquode todo o restorsquo
E a sensata professora Poacuteli acabou vencendo pelo menos provisoriamente porque
acordei logo cedo disposta a deixar pra laacute o ressentimento ser realista encarar as coisas
como eram agora como gente grande voltar ao meu tamanho normal pulei da cama me
vesti decentemente explorei as provisotildees que Norinha tinha deixado fiz e tomei meu
cafeacute e danei a desmanchar malas e pacotes a encher gavetas prateleiras e cabides tudo
muito bem-arrumado metodicamente pensando soacute naquilo que tinha concretamente
diante de mim esquecida ou fazendo de conta que esquecia de todo o resto Pronto
[] botando ordem fora e dentro de mim pensava Pesquisei nos armaacuterios da cozinha
achei o que precisava fiz um almocinho pus toalha louccedila talher aqui mesmo nessa
118
espeacutecie de mesa sem pernas de pedra preta embutida na parede e comi com certo gosto
depois de natildeo sei quanto tempo de fastio (REZENDE 2014 p52-53)
Quando Alice menciona lsquopesquisei nos armaacuterios da cozinha achei o que precisava fiz
um almocinho pus toalha louccedila talherrsquo estaacute manifestando sua decisatildeo de procurar acostumar-se
aos detalhes da nova rotina como colocar a mesa O trecho a seguir complementa essa tentativa
Subi de volta confiante tinha tomado minha primeira iniciativa depois de tanto tempo
e isso fazia sentir-me melhor Abri mais umas caixas e arrumei o conteuacutedo Fiz almoccedilo
direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada sesta de uma vida
normal li umas paacuteginas de uma revista apanhada no aviatildeo e como sempre cochilei
logo (REZENDE 2014 p61)
A frase lsquofiz o almoccedilo direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada
sesta de uma vida normalrsquo demonstra sua procura por se adaptar ao cotidiano Alice procura
retomar as reacutedeas da nova vida mesmo sendo esta imposta a ela reassumindo seus afazeres
(lsquolimpar a cozinharsquo) e costumes (a lsquosagrada sesta de uma vida normalrsquo) Tudo isso relata agrave Barbie
no caderno posteriormente sabendo que tais posturas representavam apenas a tentativa em
ultrapassar a dor emocional pela saiacuteda de seu habitat em Joatildeo Pessoa A existecircncia compulsoacuteria
volta a aparecer quando eacute convidada para jantar na casa da filha ao mencionar lsquoeu jaacute estava
pegando jeito de me comportar como filha da minha filharsquo conforme se lecirc abaixo
Pois Umberto vai passar aiacute pelas sete horas que eu vou correr pra preparar um
comerzinho bem bom e trazer a senhora pra jantar com a gente botar a conversa em dia
vai ser uma deliacutecia vaacute se aprumar bem bonita que daqui a pouco ele estaacute batendo aiacute
Que remeacutedio senatildeo obedecer Eu jaacute estava pegando jeito de me comportar como filha da
minha filha (REZENDE 2014 p74)
No jantar referido Alice eacute informada por Norinha sobre a viagem do casal para o exterior
postergando o projeto da maternidade motivo de sua mudanccedila para Porto Alegre No primeiro a
lsquolasanha da verdadeirarsquo o lsquomelhor vinho da serra gauacutecharsquo e a lsquocuca de arrasarrsquo satildeo elementos
regionais que a filha oferece como forma ao que parece de apresentar agrave sua matildee as benesses do
territoacuterio em que esta deveraacute habitar no segundo a expressatildeo lsquoe eu soacute com a tarefa de garfar o
que me serviam e emitir de vez em quanto um huuuummm apreciativorsquo exprime a posiccedilatildeo
passiva que a protagonista reconhece assumir frente agraves imposiccedilotildees da filha Neste jantar tem fim
o periacuteodo de interaccedilatildeo de Alice com Norinha na narrativa demarcando a conclusatildeo de uma etapa
da histoacuteria a chegada da personagem agrave cidade
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A seguir dois fragmentos que retratam a comida como fator de suposta agregaccedilatildeo
familiar mas escondem atraacutes do lsquoFiz jantar especialrsquo o desrespeito e o egoiacutesmo da moccedila quanto
agrave sua matildee Esta ficaraacute sozinha em uma cidade desconhecida sem referecircncias apoacutes ter tido que
abandonar sua terra natal em nome da exigecircncia da filha A atitude de falar da cuca como um
doce de seu completo desconhecimento ilustra agrave escassa familiaridade de Alice com as tradiccedilotildees
da regiatildeo como na frase lsquoum bolo recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima
gostoso de fatorsquo Os trechos definem a atmosfera aparentemente agradaacutevel da refeiccedilatildeo em
famiacutelia imposta por Norinha antes de esta fazer a revelaccedilatildeo que interferiraacute na vida de Alice
culminando na busca de sua autonomia O papel da comida neste ponto do livro eacute o de lsquoadoccedilarrsquo
a personagem para receber a notiacutecia da viagem da filha e do genro
Fiz jantar especial uma lasanha da verdadeira o melhor vinho da serra gauacutecha uma
cuca de arrasar vocecirc vai provar hoje uma cuca tudo receita da minha sogra vai adorar
jaacute estaacute com apetite natildeo eacute soacute de ouvir dizer entatildeo como estaacute sendo sua primeira
semana em Porto Alegre (REZENDE 2014 p74)
Umberto parecendo distraiacutedo dando soacute palpites lacocircnicos sempre concordando com a
mulher dele e eu soacute com a tarefa de garfar o que me serviam e emitir de vez em quando
um huuuummm apreciativo ateacute terminar de comer e aprovar a tal cuca um bolo
recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima gostoso de fato
(REZENDE 2014 p75)
A partir desse jantar Alice volta para sua casa e suspende os contatos com o casal Tem
iniacutecio assim o papel da comida ligada agrave recuperaccedilatildeo da autonomia perdida
Quando sai para a rua imbuiacuteda da missatildeo de procurar por Ciacutecero Alice sabe que sua
decisatildeo ultrapassa a descoberta do rapaz Eacute por si mesma pela capacidade de cuidar de si de
decidir mesmo as questotildees mais baacutesicas de sobrevivecircncia apoacutes Norinha ter tomado conta de sua
vida e de suas resoluccedilotildees Alice decide decidir Nesse sentido passa a guiar-se por suas
necessidades vitais como fome sono e banho por exemplo todos eles transplantados para o
espaccedilo urbano onde decide habitar apenas para natildeo voltar para o lsquotabuleiro de xadrez seu
apartamento
Mesmo quando esquece onde mora a permanecircncia nas ruas continua sendo uma escolha
pois poderia ligar para a prima Elizete que tem seu endereccedilo no entanto opta por natildeo fazecirc-lo
Durante o periacuteodo duas buacutessolas guiam seus rumos a procura por Ciacutecero que daacute sentido agrave
peregrinaccedilatildeo como um aacutelibi para justificar as andanccedilas e o natildeo-retorno para casa e a
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manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do que escolhe comer de onde decide dormir e banhar-se
por exemplo
Uma das primeiras decisotildees de Alice eacute a de esconder-se em casa nos primeiros dias apoacutes
a revelaccedilatildeo sobre a viagem de Norinha e Umberto para o exterior e o adiamento dos planos que
ocasionaram sua mudanccedila para Porto Alegre
Cinco dias de fartura de letras quase jejum de qualquer outra comida o silecircncio cortado
soacute ateacute o comeccedilo da tarde do segundo dia pela ainda prazerosa estridecircncia do telefone
com perverso gosto de vinganccedila que me enchia a boca e quase me bastava como
simulacro de refeiccedilatildeo (REZENDE 2014 p87)
Protege-se em casa lendo livros e deixando o telefone tocar a nutriccedilatildeo estaacute fora do eixo
da comida nesse sentido pois Alice alimenta-se do isolamento que consegue estabelecer Assim
esse eacute o iniacutecio da retomada de sua autonomia atraveacutes das escolhas que comeccedila a fazer por si de
modo independente ao controle da filha Decide natildeo mais se submeter mesmo que a atender o
telefone A nutriccedilatildeo estaacute baseada na autonomia na independecircncia que retoma mais do que nos
proacuteprios alimentos nesse ponto da narrativa Quando refere lsquocom perverso gosto de vinganccedila que
me enchia a boca e quase me bastava como simulacro de refeiccedilatildeorsquo o que se pode ler eacute que a
salvaguarda da sobrevivecircncia estava apoiada na sua capacidade de reagir agrave filha de impor sua
vontade contrariando a imposiccedilatildeo de Norinha
A histoacuteria sofre a guinada maior quando Alice recebe a incumbecircncia de procurar por
Ciacutecero a missatildeo daacute sentido ao seu caminho aos seus dias A missatildeo de encontrar o rapaz eacute o
fator que move a personagem a sair de seu apartamento e a desafiar-se em espaccedilos urbanos
desconhecidos de uma cidade que ainda eacute para ela uma cidade estranha Este seraacute tambeacutem um
modo de se esconder da filha de Elizete e de todos que a possam encontrar Alice decide
descobrir o paradeiro de Ciacutecero para encontrar consigo mesma Aquela lsquosensata professora Polirsquo
capaz de tomar decisotildees e de gerenciar a proacutepria vida estaacute desaparecida de si
Na partida para a Vila Maria Degolada ela tem o primeiro contato com a comida das ruas
e botecos Ao sair de casa sem ter se alimentado obriga-se a comer para saciar a fome esta eacute a
primeira expressatildeo do comer como decisatildeo de sobrevivecircncia
Passei diante de uma portinha aberta quase invisiacutevel entre duas casas um balcatildeozinho
prateleiras com umas poucas mercadorias e uma caixa de vidro com lamentaacuteveis
empadas e coxinhas ou coisa parecida sobrevoadas por uma mosca preguiccedilosa Era
pouco mais que aqueles fiteiros de rua laacute de Joatildeo Pessoa e pode ter sido por isso entrei e
por pouco natildeo pedi uma tapioca de queijo Pedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer
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de comer Leite natildeo havia fui soacute de cafeacute e uma coxinha engordurada de anteontem
caloria bastante para eu continuar minha peregrinaccedilatildeo Quem servia era um homem jaacute
idoso nada a ver com as imagens de gauacutecho de churrascaria que eu tinha pregadas na
imaginaccedilatildeo nem alto nem louro nem moreno bigodudo de chapeacuteu preto lenccedilo
vermelho laccedilo no ombro e bombacha bufante Baixinho e coxinho com um resto de
bigode fino um bonezinho achatado na careca camisa branca encardida e um lenccedilo
branco amarrado no pescoccedilo Comi paguei e me animei a perguntar pra onde ficava a tal
Vila Maria Degolada (REZENDE 2014 p96-97)
lsquoPedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer de comerrsquo eacute uma das frases que aponta para
o papel da comida nesse momento da histoacuteria o de saciar a fome O alimento em sua funccedilatildeo
primordial eacute o mote desse trecho jaacute que aqui Alice natildeo quer comer algo saboroso e sim que lhe
forneccedila forccedilas para seguir o percurso
Segui em frente olhando pro chatildeo emburrada passo firme e decidido lsquoCiacutecero Arauacutejo
Vila Maria Degolada Ciacutecero Arauacutejo Vila Maria Degoladarsquo revigorada pelo sal a
gordura e a cafeiacutena ateacute chegar manhatilde alta numa avenida larga sem ter mais nenhuma
ideia de pra que lado ficava o apartamento onde eu devia morar (REZENDE 2014
p97)
A atitude determinada de Alice frente ao objetivo eacute o lsquopasso firme e decididorsquo
complementado pela referecircncia que ela faz ao efeito da comida em seu acircnimo para chegar agrave Vila
Maria Degolada lsquorevigorada pelo sal a gordura e a cafeiacutenarsquo A personagem expressa nessa
uacuteltima frase o reforccedilo ao papel do alimento em saciar a fome e em fornecer energia
Nos caminhos que vai percorrendo junta folhetos de propaganda papeacuteis soltos e
guardanapos todos como base para escrever pedaccedilos de livros que encontra Um desses folhetos
representa a visatildeo de Alice sobre sua avoacute que aproveitava as gemas para preparar doces de sua
origem portuguesa e sobre sua filha que desperdiccedilava as gemas para preparar omeletes de
claras para a dieta Essa evocaccedilatildeo de lembranccedilas em relaccedilatildeo agrave avoacute e agrave filha a partir de uma
divulgaccedilatildeo impressa traz mais uma das funccedilotildees do alimento nessa etapa da histoacuteria aleacutem da
expressatildeo de autonomia o resgate de si atraveacutes das recordaccedilotildees de suas origens Lembrar-se de
sua avoacute eacute remontar uma parte de sua proacutepria construccedilatildeo pessoal e portanto estaacute incluiacutedo na
procura de Alice por sua identidade separada das ordens e determinaccedilotildees de Norinha
Uma ialorixaacute me deu um papelzinho com receita de uma simpatia natildeo exatamente pra
achar filho perdido era pra juntar famiacutelia desunida Mas pode crer que ajuda se tu fizer
com feacute soacute precisa quatro quindinsonde eacute que eu iacutea achar quindins veio-me por um
instante a lembranccedila das gemas de ovo desperdiccediladas por Norinha saudade da minha
avoacute portuguesa exilada laacute no sertatildeo e de seus doces de ovos os quindins que ela
aprendeu a fazer com coco lamentando sempre natildeo poder fazer sua brisa do Lis como a
de Leiria por falta das amecircndoasescrever o pedido pocircr os quindins em cima polvilhar
accediluacutecar cristal e espetar nos doces quatro flores amarelas quatro moedas acender quatro
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velas e deixar tudo numa praccedila olha aiacute Barbie o papelzinho ficou junto com o resto dos
que se foram acumulando na minha mochila com as costas cheias de frases copiadas de
livros (REZENDE 2014 p116-117)
A necessidade de encontrar consigo mesma estaacute pungente na personagem uma soacute palavra
que remeta a seu passado serve para as recordaccedilotildees surgirem como os lsquoquindinsrsquo que na
verdade natildeo servem como alimento e sim como parte da simpatia Eacute como se a palavra fosse
uma porta para suas lembranccedilas e uma vez aberta faz que muito seja recordado e refletido
Alice segue pela Vila Maria Degolada agrave procura de Ciacutecero e vai tendo contato com
moradores que a ajudam andando pela vila atraacutes de pistas do rapaz Durante as horas que
permanece ali a comunicaccedilatildeo entre ela e as pessoas que a recebem eacute feita em grande parte pelos
alimentos que oferecem para ela comer ou beber Alice descobre novos sabores regionais na
receita ou apenas no nome e sobretudo conhece novas pessoas ao longo do trajeto O que decide
comprar nos botecos ou aceitar nas casas como os salgados os biscoitos ou o cafeacute ralo deve-se
principalmente a satisfazer as necessidades fiacutesicas de fome e sede Mais uma vez a comida
representa a manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Entretanto surge para essa novo papel o de saciar a
necessidade de contato humano de trocas e de interaccedilatildeo social
Nem sei quantos cafeacutes ralos engoli Pra te animar vai bebe nem sei quantas cuias de
chimarratildeo recusei Natildeo sou daqui natildeo sou da Paraiacuteba na minha terra natildeo eacute costume
cheguei haacute pouco ainda natildeo aprendi a tomar Mas logo acostuma que um amargo eacute coisa
boa demais bom pra sauacutede pro estocircmago pra tudo Todos sem falhar queriam ajudar
indicavam uma rua uma viela uma direccedilatildeo onde sim havia gente de lsquolaacutersquo Sei laacute quantas
coxinhas empadas comi e paguei pelas biroscas da Vila Maria Degolada nome que eu
logo parei de usar porque percebi que natildeo era do agrado de ningueacutem ali Ia aprendendo
coisas e nomes a comer dedo-de-negro que logo domestiquei como parente de nossa
sorda cortada em tiras e groacutestolis que identifiquei como a calccedila-virada da minha avoacute
portuguesa Tudo o que me fizesse esquecer Norinha e o apartamento preto e branco me
servia bem (REZENDE 2014 p117)
A passagem pela vila na procura por Ciacutecero tinha outra funccedilatildeo primordial dentro de
Alice a de natildeo retornar para o apartamento e para a vida que lhe foi imposta Com tal propoacutesito
decide prosseguir Percebe-se capaz de fazer escolhas a seu favor quando se pergunta lsquoe agorarsquo
pois responde que voltar para o apartamento natildeo lhe atrai lsquode jeito nenhumrsquo
Jaacute passava um pouco das quatro da tarde eu tinha andado desde as sete da manhatilde
sentando-me raras vezes quando alguma mulher mais atenciosa puxava uma cadeira de
dentro de casa e me oferecia pra descansar na sombra ou em algum boteco o tempo de
comer uma empadinha ou uma cueca-virada E agora Voltar pro apartamento natildeo me
atraiacutea de jeito nenhum Por que natildeo continuar pro novo destino provisoacuterio que me
indicaram Apesar de entatildeo jaacute achar tudo aquilo bastante suspeito (REZENDE 2014
p123)
123
Prosseguindo para o Hospital de Pronto Socorro surgem trecircs cenas relevantes em que o
comer eacute expresso como satisfaccedilatildeo da fome e reestabelecimento do acircnimo na primeira Alice
percebe a fome e decide procurar o que comer na segunda come de forma tatildeo afoita as pipocas
que se engasga na terceira eacute socorrida por Zelima senhora que a ajuda reforccedilando que o
cuidado de terceiros tambeacutem tem uma funccedilatildeo quando o comer eacute representado na obra
1) Cansaccedilo absoluto e fome fincaram-me no meio do saguatildeo zonza olhando aquela
larga porta aberta pra nada Um lugar vago num dos bancos era tudo o que me restava
Ali desabei e fiquei de olhos fechados e a cabeccedila pendendo sobre o peito como tantos
outros sentados naquele natildeo lugar esperando minhas pernas pararem de tremelicar
pensando apenas nelas e na sensaccedilatildeo do meu estocircmago oco Natildeo sei quanto tempo parei
ali Lembro-me de que afinal a fome venceu abri os olhos puxei o celular da bolsa pra
ver as horas a bateria estava descarregada procurei em torno e vi um reloacutegio na parede
do saguatildeo jaacute passava das nove da noite levantei-me as pernas agora quase firmes desci
os degraus da porta ateacute a calccedilada buscando algo pra comer e o que havia no meu raio de
visatildeo era uma carrocinha de pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me
desde que horas ele estava ali se tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia
inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido
Cheguei junto dele remexendo a bolsa agrave procura de uns trocados que tivessem restado da
farra de salgadinhos e biscoitos da Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada
desde entatildeo (REZENDE 2014 p147)
2) Puxei um bolinho de notas de dois reais e umas moedas estendi-as ao homem ele
escolheu o que correspondia ao preccedilo do saco de pipocas e me entregou tudo sem
trocarmos uma palavra Escorei-me no poste junto da carrocinha e enfiei na boca de
uma soacute vez o maior punhado de pipocas que pude sem me importar com as poucas que
escaparam e foram ao chatildeo Engasguei-me a boca seca e cheia tentando segurar a tosse
pra natildeo fazer chover mais pipoca pra todo lado mas natildeo consegui as ex-professora Poacuteli
cuspiu um jorro de piruaacutes tossiu de se acabar encostada num poste de lugar nenhum o
mundo escurecendo (REZENDE 2014 p147-148)
3) Zelima sentou-se ao meu lado segurando fielmente o meio copo de aacutegua e o meio
pacotinho de pipocas e assim que me recompus devolveu-me aquele simulacro de
refeiccedilatildeo dizendo Come que tu estaacute fraca bebe o resto da aacutegua para empurrar Soacute
balancei a cabeccedila obedeci ela recolheu os invoacutelucros vazios e foi jogaacute-los numa lixeira
na calccedilada voltou e sentou-se de novo junto a mim em silecircncio (REZENDE 2014
p148-149)
O percurso tem continuidade na manhatilde seguinte quando decide encontrar uma padaria
onde encontra aleacutem da satisfaccedilatildeo da fome um ambiente onde conversa e ri sobre o
desconhecimento de termos regionais como o nome de lsquocacetinhorsquo para o patildeo francecircs Nutre-se
desse modo do alimento e do contato humano ldquoAprumei o espinhaccedilo apanhei a bolsa e saiacute
novamente com passo firme destino certo uma padariardquo (REZENDE 2014 p159) A
protagonista chega no destino esperado saciando a fome de comida e de afeto
Cafeacute com leite cacetinho na chapa e riso me puseram em quase perfeita forma por
dentro e pelos proacuteximos instantes mas restava um tanto consideraacutevel de dor no corpo e
uma vontade enorme de me deitar e dormir decentemente
124
[] Quando saiacute olhei bem o nome da padaria e da rua pra voltar quando precisasse
encontrar um conhecido amigaacutevel como se eu jaacute soubesse quantas vezes precisaria
voltar (REZENDE 2014 p161)
Alice come quando tem fome dorme quando tem sono Respeita a sobrevivecircncia em sua
procura pelo desconhecido Ciacutecero A vida eacute no espaccedilo da rua do parque das avenidas das
padarias das carrocinhas de pipoca e de cachorro-quente
Quem mais usa orelhatildeo neste mundo ocirc Alice te liga no segundo deles o fio do
telefone pendia cortado mas na mesma esquina havia uma lojinha de venda e conserto
de celulares Sim o homem podia carregar pra mim Pelo menos uma carga raacutepida de
emergecircncia ateacute tu chegar em casa soacute dois pilas senta aiacute Abanquei-me no tamborete
oferecido mas meu estocircmago natildeo queria esperar mais nem um minuto e vi pela porta
uma carrocinha de cachorro-quente do outro lado da esquina Fui laacute e voltei trazendo o
patildeo com salsicha montes de mostarda escorrendo no guardanapo de papel e o luxo de
um saquinho de batata frita uma latinha de refrigerante o tamborete agrave sombra a parede
fresca para encostar as costas Seraacute que cochilei
Paguei agradeci saiacute comprei mais um cachorro-quente da carrocinha e natildeo pensei mais
em telefonar a Elizete nem queria saber endereccedilo nenhum nem voltar pra lugar
nenhum soacute continuar agrave toa Agrave toa Que nada (REZENDE 2014 p170-171)
Alice sabe natildeo estar agrave toa volta a ser dona de suas escolhas sejam elas quais forem Vai
retomando a consciecircncia de si mesma dos referenciais de sua histoacuteria de vida das lembranccedilas
ajudam a reconstruir sua identidade como quando refere a recordaccedilatildeo de lsquoum cafeacute com leite que
ao longo da vida sempre me parecia como soluccedilatildeo para pequenas dores pequenos desconfortosrsquo
Um vento mais frio me fez fugir da sombra procurar um resto de sol com vontade de
tomar alguma coisa quente um cafeacute com leite que ao longo da vida sempre me aparecia
como soluccedilatildeo pra pequenas dores pequenos desconfortos e fui em busca de um bar
lanchonete Achei um botequinho que me serviu leite ralo com cafeacute de garrafa teacutermica
ainda havia de aprender a tomar chimarratildeo mas me bastou
Depois de confortada pela bebida morna e accedilucarada saiacute agrave toa de novo esquecida de
Ciacutecero Arauacutejo [] (REZENDE 2014 p176)
Esquecer-se de Ciacutecero Arauacutejo significa neste ponto da histoacuteria que a aproximaccedilatildeo
consigo mesma torna-se mais importante Essa retomada de si atraveacutes do conforto de uma
lsquobebida morna e accedilucaradarsquo corresponde ao respeito aos seus referenciais de memoacuteria durante a
vida Alice vai remontando dados de si peccedilas de um mosaico desordenado pela mudanccedila de vida
mas que agrave medida que segue um percurso aleatoacuterio ou lsquoagrave toarsquo passa a ser o caminho para o
contato com suas caracteriacutesticas Quanto mais retoma a si mesma menos se ocupa de Ciacutecero
Este ocupar-se de si eacute traduzido pela procura por satisfazer as funccedilotildees vitais mas tambeacutem pelos
pequenos confortos que passa a permitir-se obter como a cena que transcorre na rodoviaacuteria
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Nesse local o lsquoprato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos colherrsquo eacute a
expressatildeo da mudanccedila da personagem ao longo da histoacuteria pois essa passa a querer saciar a fome
com uma refeiccedilatildeo digna e natildeo mais com lanches de rua O garfo e a faca nesse sentido
representam a imagem de um comer para aleacutem do aspecto de saciar a fome evocam a ideia da
comida no prato posta agrave mesa e natildeo mais agrave rua sentada em um tamborete ou em peacute Eacute
interessante observar a referecircncia que faz ao cachorro-quente paraibano como forma de remontar
suas origens na reconstruccedilatildeo que faz de si
Decerto era preciso pagar e eu tambeacutem precisava comer uma refeiccedilatildeo decente como
havia dois dias natildeo comia impossiacutevel continuar vivendo de salgadinho refrigerante e
cachorro-quente de salsicha Se pelo menos fosse o bom cachorro quente paraibano com
tudo quanto haacute um verdadeiro prato feito dentro de um patildeo muita carne moiacuteda mais a
salsicha se quisesse verdura ovo ou qualquer outra coisa ou tudo junto o que a gente
pedisse aqueles abundantes molhos vermelhos de colorau escorrendo pelos lados
alimentando ou entupindo o freguecircs davam a sensaccedilatildeo de saciedade por um bom tempo
Mas aqui natildeo Eacute um patildeo com uma salsicha e a mostarda fraco demais pra mim eu natildeo
podia mais queria um prato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos de
colher Ali devia haver de tudo mas custava dinheiro (REZENDE 2014 p184)
Ainda na rodoviaacuteria onde consegue tambeacutem tomar banho vai decidindo adotar accedilotildees de
cuidado consigo como a lembranccedila da pasta de dente Progressivamente Alice ocupa-se de
retomar as rotinas de higiene de alimentaccedilatildeo e de sono Mais uma vez menciona a refeiccedilatildeo
completa o lsquogrande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdurarsquo Haacute a
noccedilatildeo de conforto na ideia de comida servida no prato e sobretudo no termo que ela usa
lsquocomida quentinharsquo
Dei-me conta de que pouco importava eu natildeo tinha sabonete nem sabatildeo nenhum mas
me lembrei confortada da pasta de dente que restava do aviatildeo guardada na bolsa pra
depois do grande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdura o
que fosse que eu havia de comer antes de procurar um canto pra dormir (REZENDE
2014 p187-188)
Na evoluccedilatildeo da procura por uma refeiccedilatildeo decente a protagonista encontra o restaurante
de Penha tambeacutem paraibana Descobre a coincidecircncia durante o jantar enquanto ouve a
proprietaacuteria falando ao telefone A forma como recebe a refeiccedilatildeo com o cuidado de Penha em
oferecer-lhe a comida agrave mesa junto agrave constataccedilatildeo de um sotaque familiar fazem com que Alice
se sinta confortada
1) Andei um pouco procurando onde comer e achei um restaurantezinho com um
aspecto muito simples limpo uma mulher com um jeito vagamente familiar do outro
lado do balcatildeo uma oferta Prato Feito R$ 350 Ai Barbie com que apetite me sentei
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numa das duas mesinhas em frente ao balcatildeo e pedi meu PF uma latinha de refrigerante
Esperei meu olhar desgarrado acompanhando e abandonando cada um que passava
pensei Daiacute a poucos minutos a mulher sem nada dizer com uma das matildeos desdobrou agrave
minha frente uma toalhinha azul engomada a ferro com a outra depositou meu prato
quentinho acreditei ver o vapor subindo da comida talheres limpos enrolados num
guardanapo de papel imaculado um copo impecavelmente limpo a latinha gelada e ateacute
palito que eu nunca usei nem ia usar mas me acrescentavam conforto todos aqueles
adereccedilos em torno da minha fome soacute pra mim bem sentada numa cadeira de encosto as
matildeos limpas me sentindo toda limpa apesar da roupa usada e ataquei o prato com
voracidade tentando conter-me para natildeo comer depressa demais pra aquele prazer durar
bastante (REZENDE 2014 p192)
2) Quando a outra paraibana acabou o telefonema eu me levantei com o prato jaacute vazio o
copo ainda meio cheio me encostei ao balcatildeo e entreguei a louccedila mas continuei ali
tomei mais um gole do meu refrigerante e perguntei Vocecirc eacute da Paraiacuteba natildeo eacute Ela disse
Sou sim como eacute que sabe Ouvi umas palavras matildeiacutenha painho Campinatambeacutem sou
de laacute (REZENDE 2014 p193)
3) Acordei maldormida por conta do frio mas sem dor no corpo a rodoviaacuteria jaacute se
enchendo de gente juntei meus tereacutens e fui tomar cafeacute na bodeguinha de minha
conterracircnea que agravequela hora bem cedo jaacute havia reassumido seu posto (REZENDE
2014 p194)
Alice decide retornar ao restaurante de Penha na manhatilde seguinte permitindo-se tomar o
cafeacute da manhatilde Quando refere lsquobodeguinha da minha conterracircnearsquo jaacute expressa o conforto de
sentir-se familiar agrave Penha como forma de novamente encontrar referecircncia agrave sua Paraiacuteba Assim
como em outros fragmentos jaacute referidos a comida representa natildeo apenas o aspecto vital de
nutriccedilatildeo mas tambeacutem o do contato humano que propicia a exemplo do zelo com que a
proprietaacuteria coloca a mesa para Alice
Satisfeita em suas necessidades a personagem retoma sua busca por Ciacutecero Arauacutejo
seguindo a sugestatildeo dada por Penha para que fosse ao Campo da Tuca Laacute novo aproximaccedilatildeo
com seus referenciais atraveacutes do queijo de manteiga da rapadura e da plaquinha lsquotemos carne de
solrsquo
Procurando por Ciacutecero Alice encontra partes de sua terra Reencontra a si mesma atraveacutes
do contato com conterracircneos como Penha e outros do Campo da Tuca e de alimentos de sua
regiatildeo
Fui dando a volta ao campo de futebol e dei com uma bodeguinha que me cheirou a
nordestina encostei na porta olhei percebi logo o acerto de minha intuiccedilatildeo em cima do
balcatildeo havia uma caixa de vidro com queijo de manteiga e uma pilhazinha de rapaduras
na parede do fundo um cartaz Temos carne de sol Eu natildeo via ningueacutem depois percebi
movimento num canto mais ao fundo algueacutem arrumando prateleiras chamei Por favor
ele veio na hora pra entabular conversa perguntei O senhor tem mesmo carne de sol e
ele pesaroso Acabou esta manhatilde vendi o uacuteltimo pedaccedilo quase guardei pra mim mas a
freguesa antiga amiga laacute da minha terra insistiu e vendi pra ela semana que vem chega
mais se a senhora voltar na quarta ou quinta-feira eacute de certeza que vai ter carne de sol
aqui porque o primo que me manda jaacute despachou estaacute chegando era ateacute pra ter chegado
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ontem [] olhe tem um queijinho de manteiga de primeira esse acabou de chegar
tenho mais laacute dentro a senhora pode levar quanto quiser esse eacute do bom bota na brasa
na frigideira e fica uma beleza assado natildeo vai se arrepender leve um pedacinho do
queijo pra esperar a carne de sol assim mata a saudade (REZENDE 2014 p200-201)
Alice ouve o sotaque familiar recebe acolhimento nas famiacutelias por onde procura por
Ciacutecero Natildeo encontra pistas dele mas descobre a cada novo trecho pistas de si mesma e de suas
raiacutezes
Suelen me conduziu de casa em casa gente do sertatildeo do litoral da Vaacuterzea do Brejo da
Paraiacuteba uns tantos Ciacuteceros por certo mas nenhuma notiacutecia de Ciacutecero Arauacutejo nem nas
casas de outros Arauacutejos Comi tapioca com coco tomei cafeacute refresco de cajaacute A gente
arranja algueacutem traz e guarda no freezer sempre tem mas natildeo achei Ciacutecero
(REZENDE 2014 p204)
Ela sabe que Ciacutecero eacute um pretexto em sua procura Reconhece que seu propoacutesito principal
natildeo eacute o de encontraacute-lo mas sim o de continuar sobrevivendo pelas proacuteprias pernas tomando as
proacuteprias decisotildees Quando menciona que se forccedilava a crer sabe que sua busca era por si mesma
Salgadinhos e cachorros-quentes mastigados agraves pressas ou com exagerada lentidatildeo a
depender do interesse dos assentos disponiacuteveis ou do cansaccedilo das pernas e as andanccedilas
sem fim com objetivos mentirosos nas quais eu mesma me forccedilava a crer Ciacutecero Arauacutejo
sumindo e reaparecendo segundo seus caprichos e minhas necessidades []
(REZENDE 2014 p213-214)
Em uma nova padaria ela alimenta-se de lsquopatildeo na chapa e cafeacute com leitersquo repete o pedido
para permanecer ali por mais tempo lsquomatutandorsquo Quando refere a si mesma naquela condiccedilatildeo
como lsquoalimentada e decididarsquo mostra que sobrevivecircncia e autonomia estatildeo lado a lado eacute capaz
de cuidar de si e de tomar as proacuteprias decisotildees mesmo que sejam como a de dormir em um sofaacute
ao relento coberta com o plaacutestico-bolha
Andei mais um pouco passei por uma padaria senti fome voltei entrei patildeo na chapa e
cafeacute com leite sentei-me em uma das duas mesinhas com tamboretes pedi mais patildeo
com cafeacute e encompridei minha permanecircncia ali matutando ateacute comeccedilarem a puxar a
primeira porta de ferro Entatildeo alimentada e decidida debaixo de um ceacuteu despejado
voltei ao sofaacute que laacute me esperava deserto deitei-me em cima da bolsa os joelhos
apoiados na mochila presa pelas alccedilas agraves minhas canelas agasalhei-me com meu
plaacutestico-bolha e dormi minha primeira noite ao relento sem nada sobre a cabeccedila senatildeo
estrelas (REZENDE 2014 p217)
A frase jaacute apontada lsquoalimentada e decididarsquo mostra a ideia de que a alimentaccedilatildeo eacute
combustiacutevel de sua sobrevivecircncia e de sua capacidade de decidir por si o que fazer Cada vez
mais a protagonista da narrativa se percebe protagonista da proacutepria vida
128
No seguimento de seus dias na rua Alice encontra Arturo e Lola moradores de rua Com
eles compartilha o lugar de dormir e as refeiccedilotildees interage afeiccediloa-se com amizade Arturo a
quem ela apelida de lsquoChapeleirorsquo acorda-a para que receba dos voluntaacuterios o lanche da
madrugada
Eu dormi Barbie pela primeira vez eu dormi na rua literalmente de verdade a noite
quase toda ateacute comeccedilar a clarear laacute fora Foi o Chapeleiro que me acordou sacudindo
meu ombro com sua fala arrevesada lsquoCha bem a chente do pan y do cafeacute no perde esse
pan com cafeacute dessos pibes eacute bueno eacute quente conforta son pibes Buenosrsquo
A cada parada saltavam jovens dois rapazes e uma moccedila com copos de plaacutestico
garrafas teacutermicas e embrulhinhos de papel pardo distribuindo-os Quando chegou a
minha vez vi primeiro aacutegua quente pras cuias como a do Chapeleiro jaacute a bomba em
riste um pacotinho de erva-mate pra quem pedia e a oferta de cafeacute com leite bem
accedilucarado que eu preferi mais um cacetinho com manteiga e uma espeacutecie de mortadela
ou outro afiambrado qualquer Vou lhe dizer Barbie embora o copinho fino quase
queimasse a matildeo aquilo me pareceu um presente do ceacuteu eu quase sem dinheiro nenhum
e tatildeo longe da padaria do meu amigo pra ir pedir-lhe fiado outro cacetinho na chapa e
um cafeacute com leite (REZENDE 2014 p224)
Lola eacute personagem de grande relevacircncia na narrativa pois estabelece com Alice uma
relaccedilatildeo de amizade e de cuidado Recebe-a em sua casa mesmo com toda precariedade que esta
estrutura tem a oferecer Daacute agrave protagonista a confianccedila de poder dormir laacute quando quiser Alice
retribui compartilhando com ela as refeiccedilotildees que faz Mesmo com pouquiacutessimo dinheiro que
ainda lhe sobra ela divide com Lola a comida que consegue comprar O alimento aleacutem de nutrir
o corpo nutre a amizade funciona como instrumento de partilha e de gratidatildeo pelo acolhimento
que recebe da nova amiga A seguir trecircs fragmentos que ilustram o cuidado muacutetuo entre elas
1) Natildeo tive coragem de fazer perguntas sobre aquilo tudo preferi oferecer-lhe com um
resto de dinheiro que catei nos bolsos e na carteira um cafeacute com patildeo na padaria mais
proacutexima que ela aceitou e comeu com gosto nenhuma de noacutes duas ligando a miacutenima
pros olhares enviesados que nos cercavam Tu vem todo dia dormir aqui tu eacute direita tu
pode aprende o caminho Eu vinha sim sem duacutevida nenhuma e fomos cada uma pro
seu lado eu memorizando pontos de referecircncia pelo caminho (REZENDE 2014 p232)
2) Dormia em seu terraccedilo dividia com ela minhas parcas refeiccedilotildees lia seus livros
embolorados Ela nunca me perguntou mais nada desde o primeiro encontro em que lhe
contei e ela duvidou da minha histoacuteria de filha neto Ciacutecero e tudo mais que ouviu com
um risinho descrente (REZENDE 2014 p236)
3) Guiavam-me o amanhecer e o entardecer a chuva o frio o sol a fome que eu
resolvia com qualquer coisa natildeo mais de dez reais por dia a menor quantia que o caixa
eletrocircnico cuspia agraves vezes suficientes pra mim e pra Lola Dias e dias Nada mais na
minha aparecircncia nem de leve acho me distinguia dos outros (REZENDE 2014
p239)
Ao final da narrativa Alice narra como terminou seus quarenta dias de rua jaacute sem
dinheiro ainda encontra um modo de se alimentar vendendo os livros que comprou mendigando
129
aacutegua em bares Sua condiccedilatildeo deteriorada chega ao limite e entatildeo natildeo mais se parece apenas mas
se torna moradora de rua pela proacutepria escolha de natildeo voltar ao apartamento Natildeo eacute mais guiada
pela procura por Ciacutecero mas sim por aquela de sobreviver
Esmoreci de vez sem banho sem comida rasgada desmantelada deixei-me cair em
mais um banco indiferente aos olhares se eacute que algueacutem me via cochilei e acordei mil
vezes saiacute pra rua tocada pela fome a esmo coragem nenhuma de pedir nas portas de
remexer no lixo vendi no sebo meus livros novos de 199 pela quantia suficiente pra trecircs
cachorros-quentes bebi aacutegua de torneira mendigada em balcotildees de bares Jaacute natildeo tinha
mais nada a perder (REZENDE 2014 p244)
Quem ajuda Alice na decisatildeo de retomar sua vida de voltar a seu apartamento eacute Lola Ao
estimulaacute-la a telefonar para Elizete para pegar o endereccedilo de sua casa Lola cuida de Alice
acordando-a de madrugada e oferecendo-lhe lsquoa metade de um patildeo dormido e uns goles do seu
chimarratildeorsquo Aqui o alimento eacute para dar forccedilas agrave personagem mas eacute acima de tudo representativo
do cuidado e do carinho que se estabelece entre elas Alice reconhece
Ela afinal acreditava mais do que eu me sacudiu no lusco-fusco da madrugada Vai
sai desse buraco isso natildeo eacute pra ti tu soacute natildeo esquece da gente Obedeci sem resistecircncia
Lola me deu a metade de um patildeo dormido uns goles do seu chimarratildeo Toma pra tu
aguentar ateacute laacute levou-me a um orelhatildeo talvez o uacuteltimo que ainda funcionava telefonei
pra Elizete a cobrar tirei-a da cama na madrugada (REZENDE 2014 p245)
Quando refere lsquoobedeci sem resistecircnciarsquo natildeo se trata de uma obediecircncia passiva como
aquela que se instala com a filha no iniacutecio da narrativa eacute sim o resultado de sua quarentena a
compreensatildeo de si mesma e de suas necessidades de sobrevivecircncia que natildeo mais podem ser
satisfeitas na rua pela falta de dinheiro Alice constata que seu percurso em direccedilatildeo agrave si mesma
chega ao fim que jaacute eacute capaz de comeccedilar uma nova vida em Porto Alegre agora com o passo
firme de quem eacute capaz de decidir natildeo mais apenas sobreviver mas viver a rotina como se
apresenta A protagonista natildeo estaacute mais resignada agrave vida que lhe foi imposta mas compreende
que chegou aos proacuteprios limites e que retomou sua autonomia ldquoChega Barbie agora eu paro
mesmo jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia guria a solidariedade silenciosa mas
agora eu vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a mal taacute Natildeo digo que seja pra sempre quem
sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo a limpordquo (REZENDE 2014 p245)
Sem ponto final o paraacutegrafo mostra a caracteriacutestica da narrativa muitas vezes com frases
inacabadas Entretanto aqui a falta do ponto denota a abertura agraves possibilidades do que refere
como lsquopasso tudo a limporsquo Alice assume elementos da linguagem gauacutecha como o uso do lsquoguriarsquo
130
do lsquotursquo e do lsquotaacutersquo expressando a iniciativa pela assimilaccedilatildeo de elementos regionais em sua nova
fase depois de fazer todo o relato de sua mudanccedila de vida nas paacuteginas do diaacuterio
Em todo o percurso de sua procura por si mesma pelo resgate de sua autonomia o
alimento assume diversas conotaccedilotildees Pode-se compreender a cozinha em Quarenta dias como
um fator que marca etapas da histoacuteria de Alice desde a sopa que prepara em Joatildeo Pessoa ateacute o
patildeo dormido que recebe de Lola tanto representada pelo aspecto da comida como por aquele da
mobiacutelia dos instrumentos que satildeo parte do preparar o alimento e do comer Aleacutem disso eacute
possiacutevel transplantar a cozinha para o externo na histoacuteria como representaccedilatildeo da vida que Alice
decide tomar fora da vida que lhe foi imposta A cozinha representa a autonomia e natildeo mais a
obediecircncia agrave filha A consciecircncia do corpo por sua vez as necessidades de fome sede sono e
higiene pessoal que satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa
Cabe compreender a consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo ambas definidas por
Jaspers na procura que a protagonista faz por si mesma a partir da capacidade de tomar decisotildees
a favor do que deseja e precisa e natildeo a favor da filha Aleacutem disso relembra diversos elementos
de sua identidade a partir de referenciais de sua terra encontrados em Porto Alegre como um
sotaque familiar de Penha ou os sabores paraibanos ou mesmo na evocaccedilatildeo dos doces de sua
avoacute que os quindins da simpatia fazem-na evocar A recordaccedilatildeo do cachorro-quente paraibano
que compara com aquele soacute de patildeo e salsicha gauacutecho faz com que as memoacuterias ajudem em sua
reconstruccedilatildeo no que tange agrave consciecircncia de si A consciecircncia do corpo por sua vez pode ser lida
na iniciativa de Alice por satisfazer as necessidades de fome sede sono e higiene pessoal que
satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa
Um ponto de grande importacircncia eacute a interaccedilatildeo com outras pessoas que tambeacutem consiste
em necessidade de sobrevivecircncia Alice sai do isolamento em que passa os primeiros dias do
choque imbuiacuteda de encontrar Ciacutecero Nesta missatildeo conhece pessoas com quem conversa e
partilha mesmo que seja uma breve aproximaccedilatildeo Nutre-se dessas trocas aleacutem da nutriccedilatildeo pelo
alimento Coloca-se em situaccedilotildees em que eacute escutada em que tem sua necessidade atendida como
nas vilas que percorre na procura pelo rapaz nos botecos e restaurantes onde vai recebe o que
pede no restaurante de Penha recebe o zelo de uma mesa posta de Zelima no Pronto-Socorro
recebe cuidado e preocupaccedilatildeo
131
Atraveacutes da necessidade de sobreviver e da missatildeo de descobrir o paradeiro de Ciacutecero
Alice redescobre sua capacidade de tomar as reacutedeas da proacutepria vida que atribuiacutera agrave filha Norinha
logo que chegou em Porto Alegre
132
CONCLUSAtildeO
Italo Calvino ao se referir agrave atividade do escritor afirmou ldquoEscrevemos para tornar
possiacutevel ao mundo natildeo escrito de exprimir-se atraveacutes de noacutesrdquo (DANZI 2007 p140) O que ele
denomina lsquomundo natildeo escritorsquo eacute a proacutepria vida real percebida pelo indiviacuteduo por seus cinco
sentidos e vivenciada atraveacutes das emoccedilotildees e dos pensamentos Desse lsquomundo natildeo escritorsquo
portanto fazem parte o cozinhar e o comer o partilhar as refeiccedilotildees e seus sabores o vincular-se
aos demais entre outras vicissitudes da experiecircncia humana Atraveacutes do ofiacutecio do escritor essas
condiccedilotildees satildeo representadas no texto literaacuterio
A escolha por estudar o universo da cozinha neste contexto permite expressar diversas
perspectivas atraveacutes da literatura Silvana Ghiazza estudiosa das relaccedilotildees entre cozinha e
literatura expotildee que
O alimento enquanto signo significa portanto algo aleacutem de si mesmo media conteuacutedos
ligados ao universo cultural revela conexotildees com a realidade histoacuterico-social com o
conjunto profundo da identidade individual e coletiva constitui em suma um polo de
agregaccedilatildeo de diversas dimensotildees de humanidade torna-se uma forma de linguagem natildeo-
verbal organizando-se em paralelo a outras linguagens em um orgacircnico sistema de
sinais desta forma pode tornar-se entatildeo uma chave de leitura transversal da realidade
Ateacute daquela literaacuteria (GHIAZZA 2015 p19)
De acordo com a mesma autora ldquo[] pode-se falar de comida ou atraveacutes da comidardquo
(GHIAZZA 2015 p20 grifo nosso) No termo lsquoatraveacutesrsquo empregado por Silvana Ghiazza estatildeo
as possiacuteveis aplicaccedilotildees da cozinha na literatura em que a primeira a cozinha eacute um veiacuteculo para
que a segunda a literatura exprima na linguagem do escritor uma seacuterie de circunstacircncias dos
personagens e da trama
Mais uma vez Silvana Ghiazza colabora para a compreensatildeo do sentido da comida e sua
relaccedilatildeo com a literatura quando esclarece
A comida pode ser presente como objeto em sua concreta materialidade no interno da
representaccedilatildeo marcando a natureza realiacutestica da proacutepria estrutura narrativa pode
contribuir a delimitar as coordenadas espaccedilo-temporais fornecendo referecircncias a
produtos pratos haacutebitos de um tempo e de um territoacuterio determinado pode tambeacutem
assumir um significado metafoacuterico mediando conteuacutedos diversos e simboacutelicos A
relaccedilatildeo com o alimento em termos de sua conotaccedilatildeo identitaacuteria pode servir ao autor para
tratar o caraacuteter das personagens e pode tornar-se uma forma de comunicaccedilatildeo
interpessoal uma linguagem natildeo-verbal A comida pode ainda constituir o campo
semacircntico do qual o autor se serve para as escolhas lexicais de sua escritura
(GHIAZZA 2015 p20)
133
A expressatildeo da cozinha no texto literaacuterio serve valendo-nos da referecircncia de Italo
Calvino a que este lsquomundo natildeo escritorsquo se exprima atraveacutes do escritor A partir da leitura da
autora entende-se que esse lsquoexprimir-sersquo poderaacute ocorrer por meio de trecircs funccedilotildees principais a
denotativa a conotativa e a comunicativa Sobre a primeira denotativa Silvana Ghiazza explica
As referecircncias a produtos alimentares a pratos e a receitas assim como a rituais haacutebitos
ou eventos ligados agrave realidade gastronocircmica de um tempo preciso e de um territoacuterio
definido contribuem sem duacutevidas para dar veridicidade verossimilhanccedila agrave narrativa
marcando sua estrutura realiacutestica (GHIAZZA 2015 p24)
As trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea escolhidas para compor o corpus
desta dissertaccedilatildeo apresentam o universo da cozinha atraveacutes da funccedilatildeo denotativa nos elementos
compreendidos como espaccedilo fiacutesico material Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo as
referecircncias agraves tradiccedilotildees culinaacuterias judaicas em seus pratos receitas e praacuteticas satildeo representadas
por essa funccedilatildeo Em O arroz de Palma podemos ler em produtos como o arroz a lata de azeite
de oliva e o bacalhau a presenccedila da cultura portuguesa configurando tal funccedilatildeo em Quarenta
dias a mesma estaria representada pelas carrocinhas de pipoca e de cachorro quente pelas
padarias e comidas de botecos de rua pois satildeo elementos que datildeo verossimilhanccedila agrave estrutura
narrativa em que a personagem passa a habitar as ruas da cidade durante a sua procura
A respeito da funccedilatildeo conotativa em situaccedilatildeo oposta agrave anterior Ghiazza explicita
As referecircncias agrave esfera alimentar natildeo tecircm o escopo de marcar a verossimilhanccedila e o
realismo da obra fornecendo informaccedilotildees do tipo denotativo realistico-referencial mas
servem principalmente para tratar do caraacuteter das personagens para definir a
personalidade atraveacutes de gestos de comportamentos ou de haacutebitos ligados de algum
modo agrave produccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo e ao consumo do alimento (GHIAZZA 2015 p25)
Podemos na funccedilatildeo conotativa mencionar em O arroz de Palma a preparaccedilatildeo do arroz
por Antonio enquanto narra a histoacuteria bem como o papel do arroz na trama considerando seu
caraacuteter simboacutelico como fertilizador da famiacutelia e como elemento presenteado por Palma e Joseacute
Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento Em Por que sou gorda mamatildee a funccedilatildeo
conotativa seria representada pela relaccedilatildeo das personagens com o comer jaacute que tanto no caso da
protagonista como no de sua matildee e no da Voacute Magra tal relaccedilatildeo eacute caracteriacutestica da personalidade
das mesmas entre outros exemplos Em Quarenta dias as escolhas alimentares de Alice satildeo
comportamentos associados agrave sua decisatildeo de permanecer na rua natildeo voltando para casa bem
como de seu desejo por autonomia Na mesma obra tanto o restaurante da conterracircnea Penha
134
quanto ingredientes e comidas da Paraiacuteba com os quais a protagonista tem contato em seus
percursos marcam a ligaccedilatildeo afetiva que ela manteacutem com sua terra natal
Outra das funccedilotildees que Silvana Ghiazza refere eacute a comunicativa relacionada ao papel da
cozinha na comunicaccedilatildeo entre as personagens de uma trama como por exemplo a funccedilatildeo da
comida no compartilhar a mesa
Ainda um outro significado que a comida pode assumir eacute ligado agrave convivialidade agrave sua
funccedilatildeo de meio de comunicaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Desde sempre dividir o alimento
foi de forma diversa mas em todas as sociedades ocasiatildeo para comunicar E esse eacute um
dado verificaacutevel na vida de cada dia em que se espera que o momento da divisatildeo do
alimento seja tambeacutem momento de divisatildeo de pensamentos e de afetos de
aprofundamento do conhecer reciacuteproco Na mesa se fala o eu torna-se noacutes
Tambeacutem na literatura esta realidade ocupa um lugar notaacutevel e as referecircncias agrave comida
desempenham uma funccedilatildeo comunicativa na medida em que oferecem o suporte para
uma troca relacional entre as personagens o alimento e mais em termos gerais as
praacuteticas alimentares podem transformar-se de fato em uma verdadeira linguagem natildeo-
verbal capaz de comunicar mensagens sem a necessidade de palavras [] A comida
torna-se a forma privilegiada de linguagem natildeo-verbal para comunicar o sentimento de
amor em todas as suas formas (GHIAZZA 2015 p26-27)
Nas trecircs obras do corpus encontramos a funccedilatildeo comunicativa quando a comida bem
como as representaccedilotildees da cozinha como espaccedilo fiacutesico satildeo elos de convivecircncia entre as
personagens Palma colhe o arroz da pedra para presenteaacute-lo ao irmatildeo e agrave cunhada e o mesmo
seraacute elemento de ligaccedilatildeo entre a famiacutelia assumindo o arroz o nuacutecleo da trama Antonio durante a
narrativa prepara o que restou do ingrediente para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo de cem anos do
casamento dos pais e do proacuteprio arroz em O arroz de Palma Ateacute mesmo na expressatildeo do amor
fiacutesico o arroz eacute o elemento comunicativo na cena em que Antonio e Isabel inauguram sua
intimidade fiacutesica derramando sobre seus corpos o arroz Em Por que sou gorda mamatildee a Voacute
Magra oferece doces tiacutepicos aos netos em sua sacola de crocheacute enquanto a matildee da protagonista
compartilha com os filhos os doces e o refrigerante dentro do carro na viagem da famiacutelia ao
Uruguai
Assim a representaccedilatildeo da cozinha pode se exprimir no texto literaacuterio como espaccedilo fiacutesico
e simboacutelico termos escolhidos para o presente trabalho ou atraveacutes de suas funccedilotildees denotativa
conotativa e comunicativa conforme Silvana Ghiazza As trecircs obras do corpus tecircm o objetivo de
propor a reflexatildeo sobre as linguagens que a cozinha pode assumir no texto literaacuterio
especificamente no contexto da literatura brasileira contemporacircnea Nossa escolha por estudar o
referido tema decorreu tambeacutem da funccedilatildeo cultural que a cozinha assume na sociedade atraveacutes
dos tempos Rita Rutigliano explica que
135
Desde sempre os escritores utilizam a comida e o comer tambeacutem para falar de outra
coisa As paacuteginas dos livros se sabe portam um patrimocircnio de signos reveladores de
vivecircncias e de sentimentos humanos Nos eacute possiacutevel colher indiacutecios preciosos atraveacutes de
descriccedilotildees dos rituais alimentares (e ateacute mesmo do jejum) que- cobrindo o arco inteiro
entre dois polos- a comida como necessidade de base e como um aspecto da paixatildeo pela
vida-podem se tornar invenccedilatildeo jogo poesia religiatildeo histoacuteria barocircmetro das
experiecircncias pessoais e coletivas metaacutefora social e poliacutetica Em uma palavra cultura
(RUTIGLIANO 2000 p11)
A respeito do papel desempenhado pela cozinha na cultura salientado por Rita
Rutigliano podemos acrescentar o fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo lsquoLa cultura em la
cocinarsquo cujo conselho editorial eacute composto por Marcelo Aacutelvarez Jesuacutes Contreras e Rosaacuterio
Olivas O referido fragmento aparece publicado em um dos livros da coleccedilatildeo pela editora
Catalonia del Nuevo Extremo
A cozinha natildeo eacute soacute um procedimento teacutecnico que permite que os produtos alimentiacutecios
se transformem em pratos e em receitas eacute acima de tudo uma linguagem em que se
expressa a cultura humana Os gostos a esteacutetica as combinaccedilotildees de sabores os
condimentos preferidos e as maneiras agrave mesa satildeo gestos sociais que se relacionam com a
histoacuteria e com a transmissatildeo dos siacutembolos que distinguem uma comunidade da outra
(SARDE MONTECINO 2014)
O fato eacute que das mais diversas formas dentro do referido contexto cultural o universo
culinaacuterio pode ser traduzido na literatura como um fenocircmeno da natureza humana O cozinhar
nos fez humanos A propoacutesito disso Eloisa Palafox refere que as capacidades de cozinhar os
alimentos e de contar histoacuterias distinguem o homo sapiens ambas compotildeem parte primordial de
nossa evoluccedilatildeo A semelhanccedila entre tais praacuteticas estaacute tambeacutem no fato de que permitem a
socializaccedilatildeo entre os indiviacuteduos e a partilha da comida e das histoacuterias Para Michael Pollan
Somos a uacutenica espeacutecie que depende do fogo para manter o corpo aquecido e a uacutenica
espeacutecie que natildeo pode passar sem cozinhar sua comida A esta altura o controle do fogo
jaacute estaacute inscrito nos nossos genes uma questatildeo natildeo mais associada apenas agrave cultura
humana mas sim agrave nossa biologia (POLLAN 2014 p109)
A relaccedilatildeo com o cozinhar vai aleacutem do preparo do alimento no fogo para ingestatildeo Esse eacute
sem duacutevidas o que manteacutem nossa sobrevivecircncia bioloacutegica mas haacute outra habilidade que
aprendemos como espeacutecie graccedilas tambeacutem ao fogo a interaccedilatildeo com os demais que Silvana
Ghiazza relaciona com a funccedilatildeo comunicativa que a cozinha pode ter no texto literaacuterio Pollan
acrescenta agrave exposiccedilatildeo acima a relevacircncia dessa aquisiccedilatildeo em nosso desenvolvimento
136
Sobretudo o fogo que usamos para cozinhar como o que vigio na churrasqueira do meu
quintal tambeacutem ajudou a nos formar como seres sociais lsquoA forccedila do magnetismo social
exercido pelo fogorsquo como diz o historiador Felipe Fernaacutendez-Armesto eacute o que nos
manteacutem juntos e ao fazer isso ele provavelmente mudou o curso da evoluccedilatildeo humana O
fogo usado para cozinhar promoveu a seleccedilatildeo de indiviacuteduos capazes de tolerar outros
indiviacuteduos- fazer contato visual cooperar e compartilhar lsquoQuando o fogo se combinou agrave
comidarsquo escreveu Fernaacutendez-Armesto lsquoum foco quase irresistiacutevel foi criado para a vida
comunalrsquo (na verdade lsquofocorsquo vem da palavra latina focus para lareira braseiro chama)
A forccedila da gravidade social exercida pelo fogo natildeo parece ter diminuiacutedo [] (POLLAN
2014 p109)
Assim somos seres bioloacutegicos e sociais atributos que devemos ao ato de cozinhar A
nossa biologia nos confere o comer pela fome e pelo prazer Esse elemento por sua vez eacute
necessaacuterio para promover a continuidade da sobrevivecircncia individual da mesma forma que o
prazer sexual eacute o estiacutemulo para a preservaccedilatildeo do humano como espeacutecie Cozinhar comer
alimentos cozidos que nos deem nutriccedilatildeo e sensaccedilotildees prazerosas e nos reunirmos com nossos
semelhantes satildeo atributos evolutivos que promoveram a chegada ao seacuteculo XXI
A reuniatildeo com as pessoas proacuteximas resultado do fogo como elemento agregador para
cozinhar os alimentos tornou-nos em termos evolucionaacuterios seres sociais Sendo assim
partilhamos vivecircncias com outros e essas nos propiciam a noccedilatildeo de pertencimento a um grupo
Temos a partir disso a noccedilatildeo de uma identidade singular e plural Somos parte de algo e
acumulamos percepccedilotildees experiecircncias e sentimentos em comum forma-se a memoacuteria coletiva A
memoacuteria individual de modo diverso eacute parte do aparato anatocircmico e fisioloacutegico dos seres
humanos Essa se desenvolve agrave medida que se forma o neocoacutertex ceacuterebro exclusivamente nosso
cooperando com a consciecircncia de noacutes mesmos e entatildeo com a construccedilatildeo da identidade
individual E porque somos capazes de reter informaccedilotildees de arquivaacute-las e de evocaacute-las em
acircmbito individual somos tambeacutem capazes de fazecirc-lo coletivamente ao compormos um grupo
seja uma famiacutelia ou um povo
Uma das principais caracteriacutesticas da memoacuteria na esfera familiar satildeo as histoacuterias que
atravessam geraccedilotildees por serem contadas desde os antepassados Entre essas eacute vaacutelido incluirmos
tambeacutem as receitas de cozinha pois narram o como-se-faz de um prato atraveacutes dos tempos por
parentes de sangue ou de criaccedilatildeo Entre tais histoacuterias podemos tambeacutem referir o papel de um
determinado ingrediente na formaccedilatildeo de uma memoacuteria de famiacutelia como eacute o exemplo em O arroz
de Palma
A memoacuteria individual por sua vez eacute porccedilatildeo imprescindiacutevel de nossa identidade e da
consciecircncia que temos sobre quem somos ela compotildee junto aos demais elementos nossa
137
capacidade de autonomia Jaspers aponta para a impossibilidade de uma independecircncia total em
relaccedilatildeo a outras pessoas pois precisamos das interaccedilotildees de afeto e de trocas com nossos
semelhantes Temos tambeacutem necessidade uns dos outros por aspectos praacuteticos de sobrevivecircncia
indiviacuteduos que plantem que colham que pesquem que vendam que comprem que cozinhem
que consumam e que faccedilam esse ciacuterculo perpetuar-se Seguiremos cozinhando uns para os outros
pelo simples fato de que precisamos comer E partilhar Esse eacute o ponto em Quarenta dias
A protagonista depende de quem prepare o alimento para ela seja o anocircnimo na
carrocinha de cachorro quente na rua seja na mesa posta com esmero que recebe no restaurante
da rodoviaacuteria pela conterracircnea Penha Paradoxalmente o fato de receber do outro a comida eacute o
substrato da retomada de sua autonomia jaacute que a decisatildeo do que comer eacute da proacutepria Alice Nesse
caso o cozinhar tece as interaccedilotildees entre os sujeitos
Os elementos escolhidos para estudo satildeo resultado de nossa capacidade de pensar de
sentir emoccedilotildees de perceber os estiacutemulos externos atraveacutes dos cinco sentidos e de interpretaacute-los
de acordo com a consciecircncia do corpo e de noacutes mesmos A bagagem individual e cultural
fornecida pela memoacuteria faz com que possamos sentir prazer ao saborear uma receita de famiacutelia
porque ela nos faz lembrar de uma avoacute ou de uma tia como ocorre com Antonio ao ler aquela
escrita por Palma em seu caderno Escolhemos o que comer exercendo nossa autonomia
conforme as preferecircncias alimentares que nos identificam considerando a cultura do territoacuterio
onde vivemos Compreende-se entatildeo que os atributos definidos para este trabalho natildeo ocupam
compartimentos estanques mas estatildeo inexoravelmente interligados em noacutes
Pollan reflete sobre a contribuiccedilatildeo de Levi-Strauss nesse aspecto
Segundo Levi-Strauss a distinccedilatildeo entre lsquoo crursquo e lsquoo cozidorsquo serviu a muitas culturas
como a grande alegoria para estabelecer a diferenccedila entre animais e pessoas Em lsquoO cru
e o cozidorsquo ele escreveu lsquocozinhar natildeo apenas marca a transiccedilatildeo da natureza para a
cultura mas por meio dessa accedilatildeo e com a sua ajuda a condiccedilatildeo humana pode ser
definida com todos os seus atributosrsquo Cozinhar transforma a natureza e ao fazer isso
nos eleva acima desse estado tornando-nos humanos (POLLAN 2014 p57)
Na presente dissertaccedilatildeo partiu-se da proposta de estudar a memoacuteria ligada agrave cozinha em
O arroz de Palma o prazer vinculado ao comer em Por que sou gorda mamatildee e a autonomia
associada ao escolher o alimento a partir da percepccedilatildeo da fome em Quarenta dias Essa
separaccedilatildeo se deveu agrave predominacircncia desses atributos em cada uma das obras natildeo os excluindo
138
das demais Como jaacute exposto haacute uma interligaccedilatildeo entre esses em cada um de noacutes Eacute possiacutevel
encontrar nas trecircs narrativas expressotildees dessa conexatildeo
Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo muito se pode refletir sobre as lembranccedilas
da proacutepria narradora-personagem e de sua famiacutelia ou sobre sua autonomia ao decidir pelo que
come Em Quarenta dias a protagonista recorre agrave memoacuteria de sabores e de vivecircncias ao
escrever em seu caderno a retrospectiva de suas andanccedilas aleacutem disso apesar de sua fome ser o
determinante na escolha do que comer Alice sente prazer com a refeiccedilatildeo quentinha e posta na
mesa com esmero no restaurante da rodoviaacuteria ou com o lanche servido na padaria Em O arroz
de Palma os atributos tambeacutem estatildeo entremeados mesmo com o predomiacutenio da memoacuteria para o
estudo dessa obra haacute presenccedila do prazer e da autonomia ao longo das lembranccedilas de Antonio
Um ponto de semelhanccedila entre as trecircs obras eacute o fato de apresentarem todas um narrador-
personagem que protagoniza as vivecircncias A cozinha eacute portanto contada em primeira pessoa
espaccedilo vivencial do narrador A opccedilatildeo por um eu ficcional para narrar as histoacuterias natildeo eacute ao acaso
sendo a cozinha um espaccedilo de tamanha relevacircncia para nossa vida de tanto apelo ao imaginaacuterio e
agraves lembranccedilas nos campos individual e coletivo eacute bem apropriado que quem conte seja a
personagem que a vivenciou atraveacutes das proacuteprias experiecircncias ou da memoacuteria familiar A tal
propoacutesito outro elemento que aproxima as trecircs obras eacute a presenccedila da famiacutelia das personagens
que ocupa posiccedilatildeo relevante na relaccedilatildeo que os protagonistas assumem com a cozinha
Nas trecircs narrativas o narrador-personagem fala de suas emoccedilotildees e vivecircncias e por vezes
fala da famiacutelia e das histoacuterias e lembranccedilas que representam a raiz de muitas experiecircncias com a
cozinha e com o comer A famiacutelia nesse contexto representa o coletivo que eacute apresentado junto
ao individual o sentir e pensar do proacuteprio narrador No livro Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e
Doccediluras essa coexistecircncia entre o singular e o plural eacute um dos elementos abordados em relaccedilatildeo
ao papel da cozinha conforme expresso no trecho abaixo
O ato culinaacuterio eacute ao mesmo tempo uma experiecircncia individual e coletiva uma
oportunidade de autoconhecimento de entrega a mim mesma e simultaneamente de
partilha de doaccedilatildeo de expressatildeo de afetos positivos [hellip] Sobretudo o ato culinaacuterio
representa uma das circunstacircncias mais propiacutecias para experimentar singular e plural
para nos aproximar de noacutes mesmos e daqueles a quem admiramos amamos e que satildeo
parte da nossa histoacuteria (CARDOSO 2012 p13)
139
O termo lsquoato culinaacuteriorsquo refere-se natildeo apenas ao cozinhar mas a toda gama de
comportamentos ligados agrave cozinha como dividir uma refeiccedilatildeo receber doces ou oferecer uma
comida aos demais colocar a mesa e tantas outras possibilidades
A diferenccedila entre as trecircs obras eacute o espaccedilo que a cozinha representa em cada uma Em O
arroz de Palma Antonio faz a narrativa a partir de sua cozinha enquanto prepara o almoccedilo de
celebraccedilatildeo dos cem anos de casamento de seus pais e do saco de estopa com o arroz como
presente aos noivos A cozinha nesse caso eacute apresentada atraveacutes do espaccedilo fiacutesico mas tambeacutem
do ingrediente-protagonista o arroz por outros elementos materiais como os guardanapos da
matildee de Isabel e o caderno de receitas de Antonio e por aqueles imateriais a exemplo da memoacuteria
associada ao cozinhar e das comparaccedilotildees dos pratos culinaacuterios com os estilos de famiacutelias Em
Por que sou gorda mamatildee a cozinha aparece ora como ingredientes ora como espaccedilo fiacutesico
ora como comidas ora como emoccedilotildees revelando histoacuterias da protagonista e de seus antepassados
de origem judaica Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como espaccedilo fiacutesico no novo
apartamento e na vida da protagonista em Joatildeo Pessoa antes da mudanccedila e passa a ser expressa
ao longo da obra pelos bares estabelecimentos e lsquocarrinhosrsquo pelos quais ela passa tambeacutem
representativos do espaccedilo fiacutesico Aleacutem disso a cozinha aparece como espaccedilo simboacutelico de
sobrevivecircncia nessa narrativa essa representaccedilatildeo eacute feita atraveacutes das comidas que Alice escolhe
enquanto anda pelas ruas Deste modo as trecircs obras contemplam ambos os espaccedilos referidos no
propoacutesito desse trabalho
Nas obras a cozinha eacute descrita como espaccedilo fiacutesico - tanto como peccedila da casa quanto
atraveacutes dos eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios ou seja em sua existecircncia material- e como
espaccedilo simboacutelico traduzindo lembranccedilas emoccedilotildees e comportamentos representando o ritual
implicado no cozinhar e comunicando os integrantes de uma famiacutelia
Em relaccedilatildeo ao elemento material da cozinha destaco em O arroz de Palma a cozinha de
onde Antonio narra suas lembranccedilas a panela em que ele prepara o arroz a taacutebua na qual corta os
temperos seu caderno de receitas onde estaacute aquela escrita por Palma os guardanapos da matildee de
Isabel a lata de azeite de Oliva e o mais significativo de todos o proacuteprio arroz presenteado a
Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento A expressatildeo material estaacute presente sobretudo
no espaccedilo fiacutesico e nos elementos citados embora haja menccedilatildeo a comidas como o arroz de
bacalhau preparado para aproximar as famiacutelias a fim de comeccedilar o namoro com Isabel
140
Em Por que sou gorda mamatildee haacute referecircncias agraves comidas e doces judaicos como
aqueles na sacola de crocheacute da Voacute Magra Aleacutem disso em vaacuterias passagens se lecirc descriccedilotildees como
aquela em que os moradores do bairro preparam pratos a partir dos ingredientes nas cozinhas de
suas casas com detalhamento dos atos culinaacuterios e dos instrumentos utilizados Uma das cenas
mais consistentes em demonstrar a cozinha como espaccedilo fiacutesico eacute quando a Voacute Magra prepara os
bifes para a protagonista ali essa representaccedilatildeo natildeo apenas estaacute na cozinha mas tambeacutem nos
utensiacutelios e ingredientes como o oacuteleo que ela usa para o preparo da carne Nessa obra a
predominacircncia da perspectiva material estaacute principalmente nas comidas Outro exemplo eacute a cena
em que a matildee se deleita com os filhos na viagem ao Uruguai comendo doces e refrigerante ou
quando essa faz uma farta refeiccedilatildeo antes do cateterismo e outra depois de sair do hospital Esses
satildeo alguns exemplos da expressatildeo fiacutesica que a cozinha assume na obra de Cintia Moscovich
Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como peccedila da casa de Joatildeo Pessoa e de Porto
Alegre sendo essa uacuteltima expressa com detalhes quanto a eletrodomeacutesticos armaacuterios mesa e
utensiacutelios No periacuteodo em que Alice estaacute na rua o aspecto material da cozinha eacute manifestado
pelas carrocinhas de pipoca e cachorro quente pelos botecos e padarias e pelos alimentos Esses
predominam na narrativa como expressatildeo do espaccedilo fiacutesico ocupado pela cozinha
Quanto ao aspecto simboacutelico representado ressalta-se que ao cozinhar e ao comer
estamos praticando rituais Mircea Eliade na obra jaacute referida nessa dissertaccedilatildeo expotildee que ldquo[]
a principal funccedilatildeo do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a
educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 2011 p13)
A alimentaccedilatildeo como ritual estaacute presente nas trecircs obras de formas diversas Em O arroz de
Palma estaacute na colheita do arroz na pedra pela Tia Palma bem como na oferta desse aos noivos
como presente de casamento estaacute tambeacutem na canja que ela faz ao irmatildeo com esse mesmo
arroz para que os gratildeos o fertilizem e no almoccedilo em que ela e Maria Romana preparam o arroz
de bacalhau para a integraccedilatildeo das famiacutelias Estaacute tambeacutem em outros pontos da narrativa como no
ponto em que Antonio e Isabel recebem o arroz em seu casamento e quando levam um punhado
desse para sua comunhatildeo fiacutesica no lago
Nessa obra os trecircs exemplos que melhor ilustram a presenccedila do ritual satildeo o ato de
cozinhar que permeia toda a histoacuteria pois enquanto o protagonista prepara o arroz evoca
lembranccedilas e as mistura com imaginaccedilotildees e pensamentos a leitura da receita dedicada a ele em
141
seu caderno de receitas por Palma com recitaccedilotildees a serem praticadas durante o preparo da
comida Por fim a reuniatildeo da famiacutelia nas mesas para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo dos cem anos
do casamento dos pais e do presente do arroz em que haacute dois pontos que aludem ao ritual Tanto
a reuniatildeo da famiacutelia para comer eacute ritualiacutestica quanto tambeacutem o fato de se tratar de uma
comemoraccedilatildeo como foi visto na referecircncia que Ricoeur faz ao elemento mundanidade do par
reflexividademundanidade em sua fenomenologia da memoacuteria
Em Por que sou gorda mamatildee o componente do ritual estaacute principalmente associado ao
comer e ao partilhar o alimento e menos ao cozinhar A oferta de doces na sacola de crocheacute que
a Voacute Magra faz aos netos eacute um dos exemplos dessa partilha assim como a menccedilatildeo que a
protagonista faz agraves refeiccedilotildees agrave mesa em famiacutelia Haacute o aspecto ritual nos doces oferecidos pois
satildeo de origem judaica e ilustram sabores ancestrais dessa cultura
Em Quarenta dias o ritual estaacute presente tambeacutem no comer e em muitos casos nas ofertas
de alimento que Alice recebe em seu percurso pelas vilas Como jaacute mencionado a mesa posta no
restaurante da rodoviaacuteria eacute parte do ritual da alimentaccedilatildeo e a partilha dos lanches entre Alice e
Lola representa a integraccedilatildeo dos indiviacuteduos que compartilham as refeiccedilotildees
Em um periacuteodo da histoacuteria da humanidade em que estamos prestando mais atenccedilatildeo na
gastronomia como espetaacuteculo midiaacutetico essas trecircs narrativas apontam para um retorno da
cozinha como contexto de afeto de memoacuteria de tradiccedilatildeo de construccedilatildeo de significados Michael
Pollan em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo reitera
Estamos falando mais sobre culinaacuteria- e assistindo a programas de culinaacuteria lendo sobre
o assunto e indo a restaurantes onde podemos observar o preparo da comida em tempo
real Vivemos numa era em que cozinheiros profissionais se tornaram celebridades
alguns deles tatildeo famosos quanto atletas ou estrelas de cinema A mesma atividade que
muitas pessoas encaram como um trabalho enfadonho acabou sendo de alguma forma
elevada agrave categoria de esporte popular com puacuteblico proacuteprio [hellip] Por algum motivo
cozinhar eacute diferente O trabalho ou o processo carrega uma forccedila emocional ou
psicoloacutegica da qual natildeo podemos-ou natildeo queremos- nos livrar (POLLAN 2014 p11)
Nas trecircs narrativas lecirc-se o cozinhar cumprindo os propoacutesitos ancestrais que o homem
aprendeu com o domiacutenio do fogo nutrir e agregar No mundo real que Italo Calvino chamou de
lsquomundo natildeo escritorsquo a cozinha promove essas vivecircncias pela transformaccedilatildeo do alimento e pelo
viacutenculo com os outros indiviacuteduos atraveacutes da comida preparada Nas obras escolhidas para o
corpus os espaccedilos fiacutesico e simboacutelico da cozinha tornam-se parte do mundo escrito exprimindo-
se atraveacutes do ofiacutecio de seus autores Reafirma-se assim a perspectiva de Italo Calvino
142
REFEREcircNCIAS
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1
BETINA MARIANTE CARDOSO
Agrave MODA DA CASA
A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE
SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS
Dissertaccedilatildeo apresentada como preacute-requisito para
obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teoria da
Literatura pela Faculdade de Letras da Pontifiacutecia
Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul
Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira
Porto Alegre
1o de dezembro de 2016
0
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)
Ficha catalograacutefica elaborada pela Bibliotecaacuteria Clarissa Jesinska Selbach CRB102051
C268m Cardoso Betina Mariante
Agrave moda da casa a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico em O arroz
de Palma Por que sou gorda mamatildee e Quarenta dias Betina Mariante
Cardoso ndash 2016
144 fls
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio
Grande do Sul
Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira
1 Anaacutelise literaacuteria 2 Literatura brasileira 3 Memoacuteria I Moreira
Maria Eunice II Tiacutetulo
CDD 801
0
BETINA MARIANTE CARDOSO
Agrave MODA DA CASA
A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE
SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS
Dissertaccedilatildeo apresentada como preacute-requisito para
obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teoria da
Literatura pela Faculdade de Letras da Pontifiacutecia
Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul
Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira
Aprovada em 01 de dezembro de 2016
BANCA EXAMINADORA
Profa Dra Luciana Abreu Jardim
Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena
Profa Dra Maria Eunice Moreira
Porto Alegre
1o de dezembro de 2016
1
Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda pelos infinitos legados
que constituem meu gosto pela literatura pela cozinha e por sua interface
O som das teclas da maacutequina de escrever do Vocirc Heacutelio o perfume do panelatildeo de chimia de uva
Isabel da Voacute Leacuteia o brilho de sol nos vidros de ambrosia da Voacute Alda
ingredientes da minha escrita e do meu cozinhar
2
AGRADECIMENTOS
Agrave Profa Dra Maria Eunice Moreira pela proposta do tema que me encanta a interface
entre Literatura e Cozinha e seus diaacutelogos com outras aacutereas por todos os ensinamentos nas
disciplinas do Mestrado e na orientaccedilatildeo da escrita da Dissertaccedilatildeo pelo incentivo e pela confianccedila
durante toda a trajetoacuteria
Ao Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena pelo despertar da curiosidade e do gosto pela
literatura brasileira contemporacircnea pela confianccedila e entusiasmo e pela riqueza das sugestotildees
apontadas na Banca de Qualificaccedilatildeo de Mestrado
Agrave Profa Dra Luciana Abreu Jardim pelos ensinamentos transmitidos durante o mini-
curso que ministrou em Caxias do Sul em 2015 intitulado ldquoSobre o pensamento de Julia
Kristeva a experiecircncia-revolta atraveacutes dos cruzamentos de sentidosrdquo de grande relevacircncia para a
construccedilatildeo de minha bagagem adquirida durante o Mestrado
Agrave Profa Dra Leacutea Masina pelos meus dez anos de aprendizado nos seminaacuterios de escrita
literaacuteria por seu papel fundamental no amadurecimento do meu gosto por escrever e pelo carinho
com que conduz o processo de descobertas na literatura
Aos meus pais Ana Cristina e Apolinaacuterio e ao meu irmatildeo Diego pelo estiacutemulo aos meus
percursos e pelo incentivo para que eu sempre abrisse janelas aos horizontes possiacuteveis
Aos amigos de toda a vida Melissa Sharlene e Jaime pela amizade incondicional e pelo
apoio conversas e risadas durante o periacuteodo de escrita da Dissertaccedilatildeo
Ao Marcelo pela partilha dos prazeres da mesa com afeto muitos risos e boa prosa e
pelo estiacutemulo e sugestotildees nos desafios durante os momentos especiais do nosso conviacutevio
3
Aos autores das obras que compotildeem o corpus da Dissertaccedilatildeo Francisco Azevedo Ciacutentia
Moscovich e Maria Valeacuteria Rezende A partir de O arroz de Palma Por que sou gorda mamatildee
e Quarenta dias foi possiacutevel realizar o presente estudo
Agrave bibliotecaacuteria Clarissa Selbach pela disponibilidade e pela excelecircncia durante todo o
percurso da Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Aos meus sobrinhos Eacuterico e Lucas por me permitirem voltar a ser crianccedila em nossas
brincadeiras e por participarem do fazer culinaacuterio com alegria de festa
Agrave Tacircnia pelo afeto e pela celebraccedilatildeo de sempre
Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda a quem dedico essa
Dissertaccedilatildeo
4
ldquoFamiacutelia eacute afinidade eacute lsquoagrave moda da casarsquo
E cada casa gosta de preparar a famiacutelia a seu jeitordquo
(AZEVEDO 2008)
5
RESUMO
A presente dissertaccedilatildeo de Mestrado visa analisar a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico no
contexto de trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco
Azevedo (2008) Por que sou gorda mamatildee de Cintia Moscovich (2006) e Quarenta dias de
Maria Valeria Rezende (2014) No estudo de cada obra eacute estabelecida a relaccedilatildeo entre a cozinha e
um dos trecircs seguintes paradigmas respectivamente memoacuteria prazer e autonomia Assim o
trabalho eacute composto por trecircs capiacutetulos intitulados ldquoCozinha e memoacuteriardquo ldquoCozinha e prazerrdquo
ldquoCozinha e autonomiardquo O propoacutesito eacute compreender de que forma a cozinha eacute apresentada nas
narrativas do corpus no contexto dos temas escolhidos Elementos da fenomenologia
psiquiaacutetrica da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo satildeo apresentados em diaacutelogo com a
literatura brasileira contemporacircnea
Palavras-chave Literatura brasileira contemporacircnea Cozinha Comida
6
ABSTRACT
This dissertation aims to analyze the kitchen as a physical and symbolic space within the context
of three works of contemporary Brazilian literature Francisco Azevedorsquos O arroz de Palma
(2008) Cintia Moscovichrsquos Por que sou gorda mamatildee (2006) and Maria Valeria Rezendersquos
Quarenta dias (2014) In each work kitchen is related to one of the following three paradigms
respectively memory pleasure and autonomy Thus this study consists of three chapters entitled
Kitchen and Memory Kitchen and Pleasure and Kitchen and Autonomy Our goal is to
understand how the kitchen is described in the narratives of the corpus in the context of the
selected topics Elements of psychiatric phenomenology sociology and food history are
presented in connection with contemporary Brazilian literature
Keywords Contemporary Brazilian literature Kitchen Food
7
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 10
1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA 15
11 O ARROZ DE PALMA 15
12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA 19
13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO 34
14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA 42
2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57
21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57
22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL 60
23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA 66
24 O PRAZER DA COMIDA 74
3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS 92
31 QUARENTA DIAS 92
32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS 97
33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA 105
34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI 111
CONCLUSAtildeO 132
REFEREcircNCIAS 142
10
INTRODUCcedilAtildeO
O ato de cozinhar eacute parte ancestral da nossa existecircncia como seres humanos Desde os
tempos primitivos o homem transforma o ingrediente cru em alimento cozido Comemos por
necessidade nutricional mas tambeacutem por outros motivos comemos para sentir prazer com um
bom prato para socializarmos partilhando esse prazer com outras pessoas para evocarmos
lembranccedilas de famiacutelia e as nossas proacuteprias com sabores que fazem parte de nossa bagagem
emotiva Escolhemos o que comer aprendemos a gostar mais desse ou daquele doce somos
conhecidos pelo quitute que preparamos para os amigos Adoramos canela mas detestamos
alecrim A cozinha faz parte da construccedilatildeo de nossa identidade e da memoacuteria que vamos
formando a partir das experiecircncias vivenciadas sozinhos ou em grupo
Um ponto de extrema relevacircncia eacute o fato de que a comida supre as demandas orgacircnicas
manteacutem-nos com energia para enfrentar a rotina e sustenta a sauacutede razotildees pelas quais eacute parte de
nossa autonomia Recebemos o leite materno quando somos ainda dependentes do peito da matildee
a seguir os pais nos alimentam com novos sabores ateacute que passamos a aprender a gostar de
modo individual disso ou daquilo E aprendemos a natildeo gostar daquele guisado de aboacutebora do
almoccedilo ou da salada de cenoura beterraba alface e tomate - que devemos comer porque faz bem
e ponto As escolhas alimentares tornam-se parte de nossa capacidade de dirigirmos nosso Eu e
de compormos nossas preferecircncias Assim natildeo seria exagero referir que tais escolhas nos
identificam pois satildeo um pedaccedilo de quem nos tornamos como indiviacuteduos e como famiacutelia O
alimento torna-se uma fatia das histoacuterias que vivemos e das emoccedilotildees que sentimos
Haacute um aspecto a ser questionado a que nos referimos quando falamos em cozinha Ao
espaccedilo fiacutesico que essa ocupa na casa onde estatildeo o forno e o fogatildeo o refrigerador a pia Aos
utensiacutelios como talheres e pratos panelas eletrodomeacutesticos peneira travessas e assim por
diante Aos ingredientes em parte mantidos na despensa enquanto outros devem permanecer
refrigerados Agraves receitas de quitutes de doces de refeiccedilotildees escritas a matildeo em cadernos
familiares ou colhidas da Internet ou copiadas no programa televisivo de famosos chefs Agraves
recordaccedilotildees de vivecircncias passadas com as avoacutes que nos ensinavam o saber culinaacuterio pelo
claacutessico lsquobotar a matildeo na massarsquo Agrave cultura de um povo pelas comidas que prepara
A cozinha contempla todos esses elementos do simboacutelico ao concreto da antiguidade
mais remota aos tempos hipervelozes de hoje com diversas miacutedias dirigidas aos temas culinaacuterios
11
do conforto emocional que representava ao glamour que vem atingindo com o avanccedilo da
gastronomia como expressatildeo de status social e econocircmico no seacuteculo XXI
Memoacuteria prazer e autonomia lsquoingredientesrsquo relevantes na relaccedilatildeo do ser humano com o
alimento tanto na sua preparaccedilatildeo quanto no ato de comer propriamente dito
Pela importacircncia e significado da cozinha em todos os tempos e em todas as culturas a
presente dissertaccedilatildeo visa discutir seu papel nos acircmbitos fiacutesico e simboacutelico em trecircs obras da
literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco Azevedo (2008) Por que
sou gorda mamatildee de Ciacutentia Moscovich (2006) e Quarenta dias de Maria Valeacuteria Rezende
(2014)
A organizaccedilatildeo eacute composta por trecircs capiacutetulos que mantecircm a mesma estrutura na epiacutegrafe
um trecho emblemaacutetico da obra a ser explorada sob a perspectiva de um dos paradigmas
definidos como memoacuteria prazer e autonomia um fragmento introdutoacuterio para apresentaacute-lo em
sua relaccedilatildeo com a cozinha seguido de quatro subdivisotildees na primeira a apresentaccedilatildeo da obra do
corpus na segunda a fundamentaccedilatildeo teoacuterica do atributo escolhido para cada uma das narrativas
na terceira a reflexatildeo sobre este visto agrave luz de sua relaccedilatildeo com a cozinha na quarta a anaacutelise
das obras especiacuteficas utilizando-se trechos e analisando-os a partir das reflexotildees e estudos jaacute
expostos
O primeiro capiacutetulo intitulado ldquoCozinha e memoacuteria em O arroz de Palmardquo apresenta a
cozinha vinculada agraves histoacuterias familiar e pessoal das personagens o que permite relacionar esse
livro com a pesquisa sobre a memoacuteria tanto a individual como a coletiva O segundo capiacutetulo
intitulado ldquoCozinha e prazer em Por que sou gorda mamatildeerdquo traz a cozinha principalmente
manifesta pela vivecircncia do prazer da comida e suas consequecircncias para a protagonista como o
engorde motivo pelo qual incide sobre o prazer na relaccedilatildeo com a cozinha O terceiro capiacutetulo
intitulado ldquoCozinha e autonomia em Quarenta diasrdquo contempla o estudo dessa obra em que se
revela uma alimentaccedilatildeo vivenciada fora de casa atraveacutes da comida e dos lugares que a oferecem
Ao longo do percurso da personagem atraveacutes da retomada de sua independecircncia o comer eacute uma
das principais representaccedilotildees de sua autonomia nessa narrativa Assim o binocircmio estudado no
uacuteltimo capiacutetulo eacute cozinha e autonomia
O arroz de Palma trata da relevacircncia de um elemento o arroz na histoacuteria de vaacuterias
geraccedilotildees da famiacutelia do protagonista motivo pelo qual este capiacutetulo aborda a relaccedilatildeo entre cozinha
e memoacuteria Considerando-se a memoacuteria um tema estudado por diversos campos do
12
conhecimento a fundamentaccedilatildeo teoacuterica desse capiacutetulo eacute constituiacuteda pelos seguintes autores no
acircmbito filosoacutefico Paul Ricoeur e Gaston Bachelard cultural Aleida Assmann psicopatoloacutegico
Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio Bulbena e Sandro Domenichetti neurocientiacutefico Ivan
Izquierdo e Gordon Shepherd Satildeo tambeacutem referidas reflexotildees de Mircea Eliade na compreensatildeo
do mito As perspectivas do socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan satildeo
apresentadas junto aos autores jaacute referidos na subdivisatildeo que aborda a memoacuteria no contexto da
cozinha
Por que sou gorda mamatildee traz a cozinha ligada ao prazer pelo fato de a narrativa
abordar as sensaccedilotildees prazerosas ligadas agrave comida A fundamentaccedilatildeo teoacuterica abrange as facetas
bioloacutegica e cultural do prazer Na esfera bioloacutegica a reflexatildeo inclui aspectos saudaacuteveis e
psicopatoloacutegicos contendo ideias do psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers e dos psiquiatras
Lorenzo Pelizza e Franco Benazzi na esfera socioloacutegica a reflexatildeo parte da leitura do socioacutelogo
Carlos Alberto Doacuteria em seus livros A subdivisatildeo que apresenta o prazer ligado agrave cozinha eacute
constituiacuteda principalmente por Jean Louis Flandrin Maacutessimo Montanari e Jean-Anthelme Brillat-
Savarin
Quarenta dias expressa a relaccedilatildeo entre cozinha e autonomia pois o comer representa
para a personagem sua decisatildeo de sobrevivecircncia real Ela come porque tem fome necessidade
fisioloacutegica propriamente dita sendo o comer vinculado agraves decisotildees e agrave autonomia para tomaacute-las
elemento-chave na construccedilatildeo de seu percurso Nesse capiacutetulo a cozinha eacute principalmente
expressa pela comida motivo pelo qual este eacute o termo empregado na terceira e quarta
subdivisotildees A fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute composta por contribuiccedilotildees de Karl Jaspers tambeacutem
explorado nos capiacutetulos anteriores por aquelas do neurocientista Antonio Damaacutesio e do
psiquiatra Massimo Biondi Na subdivisatildeo que estabelece viacutenculo entre a comida e a autonomia
expressa como consciecircncia de si apoiamos a anaacutelise no pensamento do socioacutelogo Carlos Alberto
Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan tambeacutem presentes nos capiacutetulos anteriores
A decisatildeo por pesquisar na literatura a expressatildeo da cozinha deve-se ao nosso
questionamento sobre o modo como essa aparece atraveacutes da escrita literaacuteria Que contextos e que
termos satildeo escolhidos pelos escritores para retratar a cozinha como espaccedilos fiacutesico e simboacutelico
em suas obras A escolha recai sobre a literatura brasileira contemporacircnea definindo para o
corpus livros escritos por autores brasileiros em 2006 2008 e 2014 Trecircs livros publicados nas
duas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXI periacuteodo que coincide com a explosatildeo do papel da cozinha
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em acircmbitos mundial e sem duacutevidas nacional Conforme refere Maria Eunice Moreira no ensaio
ldquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmardquo
Espaccedilo alquiacutemico por sua natureza lugar de transformaccedilatildeo e de transmutaccedilatildeo a cozinha
eacute um dos espaccedilos mais tematizados na atualidade Isso pode ser comprovado pelo
nuacutemero de perioacutedicos especializados em gastronomia variedades de programas de TV e
destaque concedido a chefes e gourmets que se tornaram personagens midiaacuteticos
Diferentes miacutedias hoje divulgam as proezas de cozinheiros especializados que divulgam
suas descobertas culinaacuterias com ingredientes exoacuteticos confeccionando pratos originais
(MOREIRA 2014 p167)
Com a magnitude das expressotildees gastronocircmicas contemporacircneas no mundo e no Brasil eacute
plausiacutevel encontrar na literatura de nosso tempo obras que tragam a cozinha nos seus diversos
domiacutenios ao papel de protagonista A escolha especiacutefica pela literatura brasileira contemporacircnea
resulta de nosso interesse por compreender com que linguagem ela eacute expressa em nosso paiacutes em
nossa literatura em nossa contemporaneidade Ainda de acordo com o ensaio acima referido
sobre O arroz de Palma vale ressaltar
Mas certamente os leitores concordam que no fundo dos bauacutes que cruzaram os mares
entre enxadas e sementes vieram junto bens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre
o antigo e o novo espaccedilo a ser habitado Satildeo esses bens porque falam a linguagem do
mito os mais duradouros e perenes e satildeo eles tambeacutem capazes de inspirar a escrita da
literatura brasileira em tempos de globalizaccedilatildeo (MOREIRA 2014 p174)
Os lsquobens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre o antigo e o novo espaccedilo a ser
habitadorsquo estatildeo presentes em O arroz de Palma e tambeacutem no livro Por que sou gorda mamatildee
Nesse uacuteltimo atraveacutes da representaccedilatildeo de uma famiacutelia de imigrantes judeus e de sua relaccedilatildeo com
a comida e com o prazer de comer Em Quarenta dias a protagonista eacute tambeacutem uma imigrante
mas vinda de outro Estado e de outra cultura no mesmo Paiacutes Assim tambeacutem nessa narrativa haacute
um contraste entre o espaccedilo antigo e o novo a ser habitado a cidade de Porto Alegre eacute o territoacuterio
desconhecido ao qual a narradora personagem deveraacute se adaptar Da mesma forma como
transfere sua moradia para as ruas da cidade enquanto reluta em apropriar-se de sua lsquonova vidarsquo
tambeacutem transfere sua alimentaccedilatildeo para as padarias botecos carrinhos de pipoca e de cachorro
quente pela rua restaurantes e bares de rodoviaacuteria Para ela a decisatildeo de comer eacute resultado da
fome do mero existir como o sono e o banho A cozinha bem como sua vida estatildeo
lsquotransplantadasrsquo para as ruas da cidade
Nas trecircs obras selecionadas para este estudo haacute um papel central desempenhado pela
cozinha a representaccedilatildeo de aspectos da natureza humana como a ligaccedilatildeo com o prazer a
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memoacuteria e a autonomia como jaacute foi referido Nas narrativas a cozinha o cozinhar e o comer
existem atraveacutes das comidas dos ingredientes de instrumentos e do espaccedilo fiacutesico em si mas satildeo
expressos sobretudo como emoccedilotildees e vivecircncias recuperaccedilatildeo de tradiccedilotildees e expressatildeo de
sentimentos e de memoacuterias Ao escolher o termo lsquocozinharsquo para a representaccedilatildeo global estamos
incluindo o campo de ideias que esse envolve ou seja todo o espaccedilo fiacutesico e os elementos
materiais como eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios as comidas desde o ingredientes e
receitas ateacute os pratos propriamente ditos por fim os elementos simboacutelicos portanto imateriais
como as representaccedilotildees de ritualidade e os elementos psiacutequicos e culturais que envolvem o
cozinhar e o comer
O tiacutetulo ldquoAgrave moda da casardquo remete agraves receitas de um periacuteodo da culinaacuteria em que a
cozinha caseira ocupava papel central na alimentaccedilatildeo familiar Essa envolvia as concepccedilotildees de
lar de famiacutelia de memoacuteria dos pratos que eram partilhados na mesa nas refeiccedilotildees Uma carne de
panela agrave moda da casa eacute aquela feita seguindo o lsquocomo-se-fazrsquo na histoacuteria da famiacutelia A expressatildeo
lembra os cadernos de receitas as cozinhas das avoacutes matildees e tias a memoacuteria e os sabores da
tradiccedilatildeo as noccedilotildees de identidade e de consciecircncia de si como indiviacuteduo singular que eacute parte de
um plural a famiacutelia Todos esses aspectos satildeo presentes nas obras do corpus e portanto estatildeo
incluiacutedos na reflexatildeo sobre o tiacutetulo escolhido
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1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA
- Como eacute que simples guardanapos satildeo capazes de trazer tanta recordaccedilatildeo
- Porque fizeram histoacuteria satildeo a prova real e dos nove que um grupo de pessoas se reunia
regularmente para celebrar - natildeo importa o quecirc Festejavam a vida e pronto A data
religiosa ou pagatilde era pretexto Podia ser Paacutescoa ou Carnaval Esses guardanapos tecircm
alma Aliaacutes todo ser inanimado passa a ter alma no momento em que se lhe imprime
afeto As coisas tambeacutem aspiram a uma existecircncia sensiacutevel
Francisco Azevedo
A cozinha eacute o espaccedilo onde habitam forno fogatildeo geladeira pia pratos talheres
guardanapos panelas travessas caderno de receitas ingredientes chimia de uva pudim doce de
leite e ambrosia E lembranccedilas Muitos de nossos registros tecircm sabores proacuteprios Recordamos
essa ou aquela vivecircncia porque sua representaccedilatildeo eacute ligada a um gosto a uma textura a um
aroma Houve aquele doce de ovos que experimentamos em uma uacutenica e inesqueciacutevel ocasiatildeo
Vale evocar tambeacutem o faqueiro de uma avoacute presente de casamento ou a panela de fondue
comprada com orgulho fruto do primeiro salaacuterio da monitoria na faculdade No territoacuterio fiacutesico
da cozinha a memoacuteria tem corpo tem existecircncia material atraveacutes dos ingredientes dos
instrumentos dos eletrodomeacutesticos da receita de famiacutelia preparada para o almoccedilo Acima de
tudo a memoacuteria tem respiraccedilatildeo
11 O ARROZ DE PALMA
A escolha do tema cozinha e memoacuteria nasce atraveacutes da leitura da primeira obra definida
para o presente corpus O arroz de Palma de Francisco Azevedo publicada pela Editora Record
em 2008 O significado da cozinha para a nossa experiecircncia subjetiva tem fortes raiacutezes nas
histoacuterias guardadas atraveacutes das lembranccedilas e transmitidas entre as geraccedilotildees Essa obra da
literatura brasileira contemporacircnea propotildee tal resgate com relevante aprofundamento
A narrativa comeccedila pela voz do protagonista Antocircnio narrador personagem que traz ao
leitor em primeira pessoa a histoacuteria de sua famiacutelia os pais receacutem-casados e Palma sua tia
paterna Os trecircs vieram de Viana do Castelo em Portugal para o Brasil no comeccedilo do seacuteculo XX
Entretanto o que Antocircnio vem contar antecede a imigraccedilatildeo o ponto que daacute origem agrave histoacuteria da
obra eacute o casamento dos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana Depois da cerimocircnia Palma
decide juntar todos os gratildeos de arroz atirados aos noivos na lsquoabenccediloada chuva de arrozrsquo
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torrencial feita de lsquopunhados e mais punhadosrsquo Fez-se lsquochuva branca que natildeo paravarsquo Como se
fosse colheita ela junta gratildeo por gratildeo e coloca todos em um saco de estopa que leva aos receacutem-
casados como seu presente pelo matrimocircnio Surpreendente eacute a reaccedilatildeo de Joseacute Custoacutedio ao
receber a ideia de Palma raivoso desdenha do arroz ofertado pela irmatilde como se fosse presente
de menor valor A esposa Maria Romana contemporiza a situaccedilatildeo mas manteacutem a posiccedilatildeo firme
de que aceitaratildeo o presente E o arroz torna-se a alma dessa famiacutelia Melhor dizendo Palma
torna-se a alma da famiacutelia
A obra eacute composta por cinquenta e nove capiacutetulos curtos trezentas e sessenta e uma
paacuteginas e um calendaacuterio ao final com datas relevantes para a compreensatildeo da passagem do
tempo perspectiva essencial em O arroz de Palma Antocircnio eacute o narrador personagem muito do
que conta sobre a histoacuteria familiar ouviu de sua tia Palma figura de grande importacircncia na
formaccedilatildeo de sua personalidade Ela testemunhou boa parte das vivecircncias em Portugal e na
chegada ao Brasil protagonizou a maioria das cenas que se tornaram lembranccedilas Essas
transformaram-se depois em histoacuterias contadas por Palma e escutadas por Antocircnio
Fazendo zigue-zagues nas geraccedilotildees Antocircnio relembra pontos que conhece de viver e
pontos que sabe por escutar Em momentos da leitura parece estar contando a trama ao leitor
noutros tem-se a sensaccedilatildeo de que as conversas satildeo consigo mesmo a fim de percorrer uma linha
de tempo que faccedila sentido Ele narra de sua cozinha no presente do indicativo enquanto a
memoacuteria percorre outros tempos verbais mas a idade jaacute deixa lacunas Quando faltam
ingredientes na despensa da memoacuteria resta a tentativa de montar histoacuterias possiacuteveis ele compotildee
em um conjunto o que foi vivido e imaginado junto agraves suas reflexotildees atuais agrave beira do fogatildeo
Estaacute preparando a receita tiacutepica de arroz com significado em sua histoacuteria pessoal para a
comemoraccedilatildeo do centenaacuterio do matrimocircnio dos seus pais e do arroz colhido por Palma e
presenteado ao casal
Nas idas e vindas aparece de iniacutecio a fuacuteria de Joseacute Custoacutedio ao ganhar o saco de gratildeos de
arroz dirigida agrave irmatilde Palma Os trecircs vecircm para o Brasil onde ele consegue trabalho em uma
fazenda Mais tarde jaacute com a vida organizada quando o casal tem dificuldades em ter filhos
surge nova fuacuteria quando Palma sugere oferecer-lhe o arroz como forma de ajudar na fecundaccedilatildeo
pelos poderes atribuiacutedos ao ingrediente Ele recusa enraivecido mas Palma e Maria Romana
fazem com que coma o arroz mesmo assim No momento da raiva quebra a lsquoquarta cadeirarsquo que
iraacute reformar para sua irmatilde passada a coacutelera Essa seraacute a cadeira de onde ela contaraacute a Antocircnio as
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memoacuterias de famiacutelia os remendos de histoacuteria as fantasias e imaginaccedilotildees as dores e intimidades
de sua juventude
A quarta cadeira seraacute seu palco Antocircnio eacute o expectador Cria-se um forte laccedilo entre ele e
a tia pois se torna desde cedo o herdeiro das recordaccedilotildees familiares Essa aproximaccedilatildeo acaba
por distanciaacute-lo dos trecircs irmatildeos Leonor Nicolau e Joaquim enquanto ele eacute mais lsquocaseirorsquo gosta
de ficar ouvindo as histoacuterias da Tia Palma os trecircs satildeo mais agitados apreciam os passeios e as
brincadeiras pelo campo A distacircncia entre ele e os trecircs faz com que a tia o chame de lsquoAntocircnimorsquo
opondo suas caracteriacutesticas agraves dos irmatildeos As diferenccedilas seguiratildeo vida afora o que o protagonista
vai contando em seus percursos
Surge entatildeo seu romance com Isabel filha do patratildeo de seu pai sua ida para o Rio de
Janeiro o noivado com a moccedila e o arroz de bacalhau para celebrar a ocasiatildeo em famiacutelia A
receita foi preparada com o mesmo arroz que serviu para a fertilidade dos pais o mesmo arroz
presenteado por Palma para o casamento deles o mesmo arroz da chuva abenccediloada da cerimocircnia
O arroz testemunha a vida da famiacutelia alinha suas histoacuterias nessa narrativa parece ser a
representaccedilatildeo da memoacuteria familiar Lembranccedila a lembranccedila gratildeo a gratildeo As narrativas vatildeo sendo
transmitidas escutadas digeridas Antes do casamento Antocircnio e Isabel lsquoroubamrsquo um punhado e
levam consigo ao lago abenccediloando o primeiro momento de uniatildeo fiacutesica que partilham Mais uma
vez o arroz participa da ocasiatildeo formando registros de memoacuteria
Casam-se Nascem os filhos Nuno e Rosaacuterio Gecircmeos Seratildeo no entanto muito
diferentes entre si ela objetiva praacutetica ele sensiacutevel Entre casamentos e separaccedilotildees a narrativa
segue trilhada pela voz de Antocircnio em idas e vindas nas deacutecadas entre o casamento dos pais e
seu aniversaacuterio Sempre ao lado de Isabel nos trechos de vida sempre com dificuldades na
ligaccedilatildeo com os irmatildeos Entre o arroz presenteado por Palma no casamento de Joseacute Custoacutedio e
Maria Romana e a receita de arroz preparada por Antocircnio em sua cozinha esse conta os
nascimentos e as mortes relembra a perda de tia Palma recorda-se de vivecircncias dolorosas ao
longo do percurso de cada um e de todos O arroz eacute roubado da vitrine do restaurante de Antocircnio
e Isabel pelos filhos outra porccedilatildeo parece ter sido roubada pela esposa de um dos irmatildeos por
ciuacuteme de seu casamento Mais tarde surge a informaccedilatildeo de que Antocircnio e a cunhada tiveram
uma ligaccedilatildeo afetiva antes de ambos unirem-se a seus pares Voltam a encontrar-se em um ponto
da histoacuteria em uma tarde de braccedilos dados desejos satisfeitos e despedida cordial
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Muitas satildeo as tramas vividas e recordadas nessa narrativa Antocircnio eacute o narrador
personagem mas a leitura faz o leitor convencer-se o protagonista a bem da verdade eacute o arroz
A tia Palma tem papel decisivo na famiacutelia eacute ela quem daacute a direccedilatildeo em vaacuterios momentos da
histoacuteria nas vidas do irmatildeo Joseacute Custoacutedio da cunhada Maria Romana do sobrinho mais
proacuteximo Antocircnio e de seus irmatildeos Eacute ela quem daacute a direccedilatildeo aos gratildeos de arroz no percurso
desde o casamento em Portugal na Igreja ateacute sua morte contando sempre com a cumplicidade
da cunhada O protagonista segue conversando com a tia em pensamento perguntando suas
opiniotildees e conselhos
Palma transmite histoacuterias o arroz transmite histoacuterias Ao longo de toda a narrativa ambos
vatildeo deixando suas marcas na vida das personagens Em sua cozinha enquanto prepara o arroz
ele une os gratildeos pelo cozimento assim como une as recordaccedilotildees em uma soacute histoacuteria da famiacutelia
Se acaba por esquecer de algo lembra depois ou conta agrave sua moda Lembranccedilas agrave moda da casa
Toda a narrativa eacute tecida com uma linha que atravessa as vivecircncias a metaacutefora feita agraves
famiacutelias como se fossem pratos da culinaacuteria O narrador protagonista traz a imagem de vaacuterios
desses pratos e suas equivalecircncias nos grupos familiares enquanto se lembra dos trechos de vida
entremeados com emoccedilotildees e pensamentos Natildeo eacute possiacutevel alinhar as memoacuterias estatildeo espalhadas
Parte delas remontam etapas de vida outras lugares e pessoas Haacute registros que surgem de
experiecircncias vividas e daquelas que ele conhece apenas por ouvir- em geral de sua tia Palma
sentada na quarta cadeira
Podemos lembrar do que vivemos ou do que imaginamos em nossa maquinaria de
lembranccedilas memoacuteria e imaginaccedilatildeo fundem-se e o que vivenciamos por ouvir contar se torna
tambeacutem parte de nossos registros pessoais Eacute o que se passa com Antocircnio quando conta o que
ouviu de Palma com tal fidelidade que parece ele mesmo ter vivido Escutou imaginou e entatildeo
apropriou-se da histoacuteria com suas proacuteprias cores eacute dele agora a trama contada pela tia Algo
parecido eacute o processo de alquimia de uma receita de cozinha quando eacute transmitida de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo cada novo cozinheiro agrega seu modo de preparar a receita e ela vai assim sendo
transformada pelo tempo e pelas vozes que a leem agrave beira do fogatildeo
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12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA
O propoacutesito de estudar a memoacuteria neste capiacutetulo eacute o de apresentaacute-la como um processo
inerente agrave constituiccedilatildeo do ser humano Necessitamos deixar registros agraves geraccedilotildees seguintes assim
como seguir rastros dos antepassados Queremos pertencer a uma histoacuteria de famiacutelia e construir a
nossa para ser lembrada e seguida Acima de tudo a memoacuteria eacute parte da identidade
imprescindiacutevel na consciecircncia do indiviacuteduo sobre si mesmo
No campo de estudos da memoacuteria haacute os substratos neuroanatocircmico neurofisioloacutegico e
neuroquiacutemico que a compotildeem sob a perspectiva orgacircnica responsaacuteveis por seu funcionamento
adequado entretanto o foco predominante neste estudo consiste no entendimento da memoacuteria
como processo singular em termos psiacutequicos e plural em termos culturais Devido agraves muacuteltiplas
facetas do tema ampliamos a fundamentaccedilatildeo teoacuterica para os campos fenomenoloacutegico em que
apresentamos as ideias de Paul Ricoeur cultural a partir dos estudos de Aleida Assmann
psicopatoloacutegicas em que satildeo apontadas reflexotildees de Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio
Bulbena e Sandro Domenichetti e neurocientiacuteficas em que fazemos referecircncia aos
neurocientistas Ivan Izquierdo argentino e Gordon Shepherd americano
A cozinha situa-se nas esferas da memoacuteria individual e coletiva A relaccedilatildeo que se
estabelece entre o indiviacuteduo e os aromas que habitam sua memoacuteria como no caso das madeleines
recordadas por Proust a partir de um gatilho eacute de tamanha intimidade que se torna parte de sua
bagagem afetiva Da mesma forma o caderno de receitas de uma avoacute pode atravessar geraccedilotildees
pois os sabores ali registrados evocam lembranccedilas da histoacuteria familiar Ao serem reproduzidos
despertam na memoacuteria de um grupo natildeo apenas a receita original mas toda a constelaccedilatildeo de
emoccedilotildees que envolve essa lembranccedila como a cozinha em que era feita as panelas pratos e
talheres os almoccedilos dominicais na mesa da sala de jantar
As experiecircncias representam os ingredientes para a formaccedilatildeo da memoacuteria Muitas delas
nascem das histoacuterias vivenciadas na cozinha seja atraveacutes da percepccedilatildeo de um gosto do sentir de
uma emoccedilatildeo do ato de mexer um bolo ou de preparar um prato Todas satildeo carimbadas pela
interpretaccedilatildeo pelos sentimentos e pelo significado que cada circunstacircncia assume em nosso
percurso E esse carimbo vira lembranccedila armazenada na despensa da memoacuteria passiacutevel de
transformaccedilotildees ao longo do amadurecimento e das vicissitudes de cada fase de vida Afinal de
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contas a memoacuteria natildeo eacute um registro estaacutetico ela eacute isso sim um processo dinacircmico dependente
de nosso olhar e de nosso viver
Conforme o psicopatologista alematildeo Karl Jaspers a memoacuteria eacute um mecanismo que tem
relaccedilatildeo com o colorido afetivo com o significado das coisas Ele definiu a memoacuteria propriamente
dita como um reservatoacuterio em que novos materiais satildeo integrados pela fixaccedilatildeo e satildeo extraiacutedos agrave
consciecircncia atraveacutes da funccedilatildeo de evocaccedilatildeo para ele a chegada e a partida dos materiais seriam
devidas agraves respectivas funccedilotildees de fixaccedilatildeo e evocaccedilatildeo enquanto a memoacuteria representaria o
reservatoacuterio de disponibilidade permanente (JASPERS 2000 p188) Se pensarmos na cozinha
a memoacuteria seria a despensa onde satildeo postos novos ingredientes e de onde satildeo retirados aqueles
escolhidos para o uso Jaacute de acordo com Bulbena citando Serralonga ldquo[] em termos objetivos
eacute possiacutevel defini-la como a capacidade de adquirir de reter e de utilizar secundariamente uma
experiecircnciardquo (BULBENA 1998 p169)
Bulbena aponta quarto aspectos relevantes na compreensatildeo da memoacuteria como fenocircmeno
humano entre os quais distingue a entrada a manutenccedilatildeo e a saiacuteda das informaccedilotildees em
constante intercacircmbio entre organismo e ambiente o aspecto de transformaccedilatildeo dessas
informaccedilotildees modificando o conteuacutedo que entra no lsquoreservatoacuteriorsquo de Jaspers tanto para o
armazenamento quanto para a futura reproduccedilatildeo desse conteuacutedo o fato de a memoacuteria ser
produzida no contexto de estruturas nervosas que veiculam o processo apontando-se que as
alteraccedilotildees neste resultaratildeo em transtornos em seus mecanismos de fixaccedilatildeo armazenamento e
reproduccedilatildeo O quarto ponto definido pelo autor eacute de grande importacircncia para a finalidade do
presente capiacutetulo a memoacuteria forma parte do conjunto da vida psiacutequica sendo as emoccedilotildees
especialmente relevantes em sua composiccedilatildeo e forma parte tambeacutem da biografia do indiviacuteduo
em que teraacute influecircncia e da qual receberaacute influecircncia tambeacutem
Quando o autor se refere agrave biografia estaacute fazendo menccedilatildeo agraves experiecircncias de vida desse
indiviacuteduo e satildeo essas que muitas vezes ocorreram em sua relaccedilatildeo com o comer e com a cozinha
O dado de a memoacuteria fazer parte da vida psiacutequica eacute significativo sobretudo no que tange agrave
relaccedilatildeo com o campo emocional pois sempre que tais experiecircncias vinculadas ao universo
culinaacuterio ocorrerem haveraacute o processamento da resposta afetiva
A memoacuteria eacute essencialmente parte da vida psiacutequica do ser humano e resultado de
mecanismos cerebrais de controle Eacute considerada uma das funccedilotildees do estado mental dos
indiviacuteduos avaliada no exame psiquiaacutetrico dessas funccedilotildees Bulbena refere que
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etimologicamente a maioria dos autores situa sua origem no termo latino memoacuteria de
significado similar ao atual mas haacute quem atribua a origem agrave palavra gemynd de raiz
anglosaxocircnica que conforme refere significaria mente Assim eacute possiacutevel que a associaccedilatildeo entre
memoacuteria e vida psiacutequica seja representada na proacutepria origem da palavra
Mesmo que a finalidade do presente capiacutetulo seja apresentar a memoacuteria vinculada agraves
vivecircncias de cozinha cabe realizar a abordagem desse mecanismo como fenocircmeno Paul Ricoeur
apresenta a respeito da fenomenologia da memoacuteria seu viacutenculo com a imaginaccedilatildeo O autor
refere que podemos fazer referecircncia a um evento passado ou dizer que temos dele uma imagem
que pode ser quase visual ou auditiva E aponta que a memoacuteria opera em funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo
reforccedilando a perspectiva de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que expressa que ldquo[] a memoacuteria eacute
uma proviacutencia da imaginaccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p25)
Tal aspecto liga-se ao exposto pelo neurocientista Gordon Shepherd que em seu livro
sobre neurogastronomia expotildee ldquoPara muitas pessoas as partes mais importantes do olfato e do
sabor satildeo as memoacuterias que elas evocam e as emoccedilotildees associadas a essasrdquo (SHEPHERD 2012
p174) Olfato e sabor satildeo tambeacutem elementos que evocam imagens de situaccedilotildees vivenciadas mas
imagens construiacutedas pelas caracteriacutesticas psiacutequicas individuais assim pode-se dizer que evocam
a imaginaccedilatildeo
A lembranccedila de um acontecimento do preparo de uma comida ou da ocasiatildeo em que a
saboreamos ocorre atraveacutes da imagem que fazemos dessas circunstacircncias Lembramos com cor
com cheiros com gostos Lembramos imaginando e eacute isso que Paul Ricoeur traz como ponto de
partida Shepherd refere que nossos mecanismos cognitivos tecircm a qualidade de perceber e de
evocar as coisas como um todo integrado a partir de uma fraccedilatildeo (SHEPHERD 2012) o que se
assemelha ao que Ricoeur refere sobre a ligaccedilatildeo mencionada ldquoEacute sob o signo da associaccedilatildeo de
ideias que estaacute situada essa espeacutecie de curto-circuito entre memoacuteria e imaginaccedilatildeo se essas duas
afecccedilotildees estatildeo ligadas por contiguidade evocar uma - portanto imaginar - eacute evocar a outra-
portanto lembrar-se delardquo (RICOEUR 2014 p25) Essa ideia associa-se ao fato de que todos os
registros que os sentidos percebem oriundos do mundo externo ao corpo satildeo traduzidos em
percepccedilotildees e entatildeo em lembranccedilas a serem armazenadas A lembranccedila torna-se uma impressatildeo
da experiecircncia e natildeo seu registro idecircntico uma vez que pode ser compreendida como uma
reconstruccedilatildeo do passado a partir da perspectiva atual O que laacute fixamos natildeo eacute idecircntico ao que no
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presente podemos evocar pois outras vivecircncias se colocam no caminho nos transformam e
modificam nosso modo de recordar o que um dia haviacuteamos registrado
O inconsciente em todo o processo pode guardar a sete chaves algumas das informaccedilotildees
fixadas parte do que vivemos passaraacute a ser liberado ou escondido por sua tutela Lembramos de
algo pela imaginaccedilatildeo do que permaneceu desse algo em nosso mundo interno na compreensatildeo
neurocientiacutefica os registros captados pelos sentidos ficam armazenados em estruturas
especiacuteficas predominantemente no hemisfeacuterio direito quando as lembranccedilas estiverem
conectadas a emoccedilotildees Uma lsquopistarsquo que dermos agrave memoacuteria seja uma figura um som um gosto
um aroma ou uma textura ou uma emoccedilatildeo podem trazer de volta em viagem ultraveloz a cena
arquivada com todas as transformaccedilotildees que o tempo provoca em noacutes
Eacute possiacutevel compreender que a memoacuteria identifica o indiviacuteduo e sua bagagem de
vivecircncias pois soacute nos lembramos do que conhecemos ldquoReconhecer algueacutem significa saber jaacute tecirc-
lo visto antes assim como recordar-se de um acontecimento significa saber que este jaacute ocorreu no
passadordquo (MINKOWSKI 2004 p143) O entendimento sobre suas consideraccedilotildees eacute a de que
uma lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a tonalidade emotiva com que este foi
percebido ou seja a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos
recordaremos dela no futuro porque eacute assim que a conhecemos Sobre tal aspecto Ivan
Izquierdo neurocientista especializado neste campo refere
Podemos afirmar conforme Norberto Bobbio que somos aquilo que recordamos
literalmente Natildeo podemos fazer aquilo que natildeo sabemos nem comunicar nada que
desconheccedilamos isto eacute que natildeo esteja na nossa memoacuteria Tambeacutem natildeo estatildeo agrave nossa
disposiccedilatildeo os conhecimentos inacessiacuteveis nem formam parte de noacutes os episoacutedios dos
quais esquecemos ou os quais nunca atravessamos O acervo de nossas memoacuterias faz
com que cada um de noacutes seja o que eacute um indiviacuteduo um ser para o qual natildeo existe outro
idecircntico (IZQUIERDO 2011 p11 grifo do autor)
O psicopatologista Eugeacutene Minkowski aborda a memoacuteria no capiacutetulo intitulado lsquoO
passadorsquo em seu livro O tempo vivido Tal afirmaccedilatildeo expressa que ela eacute parte de nosso tempo
vivido e atraveacutes da reflexatildeo de Ivan Izquierdo pode-se compreender que ela eacute parte do nosso
tempo de conhecimento vivido A ideia de que a memoacuteria faz de noacutes ldquo[] um ser para o qual natildeo
existe outro idecircnticordquo (IZQUIERDO 2011 p12) reforccedila a noccedilatildeo de que esse fenocircmeno eacute um
elemento inerente a um sujeito uacutenico com suas experiecircncias percepccedilotildees e bagagens Ainda
conforme Ivan Izquierdo ldquo[] o conjunto das memoacuterias de cada um determina aquilo que se
denomina personalidade ou forma de serrdquo (IZQUIERDO 2011 p12) O neurocientista refere que
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as emoccedilotildees e os estados de acircnimo tecircm importante papel no processo da memoacuteria tanto em
termos de aquisiccedilatildeo quanto de formaccedilatildeo e finalmente de evocaccedilatildeo
Falar em emoccedilotildees ou estados de acircnimo remete agrave referecircncia de Minkowski sobre as
tonalidades afetivas O psicopatologista faz alusatildeo ao viacutenculo entre emoccedilotildees e memoacuteria
expressando o modo como o sentir influencia o lembrar Eacute possiacutevel comprender sua ideia da
seguinte forma colocamos a mirada sobre nosso mundo interior para focar em uma fraccedilatildeo do
passado que sentimos presente em noacutes Isso seria equivalente agrave evocaccedilatildeo de uma lembranccedila Ao
percebermos o sentimento ligado a esse tempo anterior essa lembranccedila amplia-se agrave medida que
a encontramos em nosso iacutentimo A conexatildeo emotiva torna a vivecircncia passada cada vez mais
visiacutevel e de contornos niacutetidos como um feixe de luz que ao aumentar expande a aacuterea de
claridade e mostra os detalhes de um terreno
Tal iluminaccedilatildeo reproduz vivecircncias remotas como se fossem situaccedilotildees que nos parecem
recentes pela forccedila emotiva ligada ao evento passado Entretanto nossa impressatildeo sobre tais
eventos pode ser transformada por aspectos psiacutequicos que ocorrem entre o tempo real e o
lembrado modificando a impressatildeo do fato em suas nuances Permanece a essecircncia prazerosa ou
penosa de um fato mas a evocaccedilatildeo da lembranccedila pode tornaacute-la um rosa suave ou um vermelho
vivo Para mudar seu tom contam tanto nosso estado de acircnimo ao vivermos algo quanto ao
lembrarmos esse algo Memoacuteria e emoccedilatildeo assim estatildeo intimamente ligadas entre si em especial
no que concerne agraves nossas experiecircncias de vida
O termo memoacuteria no singular remete-nos a dois eixos um primeiro mais evidente eacute o
tempo o segundo subterracircneo o espaccedilo Tal colocaccedilatildeo vem do fato de que a memoacuteria pode ser
percebida como um espaccedilo subjetivo em nossa vida psiacutequica motivo pelo qual tecemos a
analogia com a imagem da despensa de cozinha Esta eacute de fato um espaccedilo objetivo mas cuja
subjetividade aparece ao revelar muitos aspectos sobre o morador da casa Seria plausiacutevel referir
que a despensa identifica esse sujeito em suas preferecircncias alimentares em sua condiccedilatildeo
econocircmica em sua regularidade nas refeiccedilotildees feitas no lar aleacutem de demonstrar se vive sozinho
ou em famiacutelia se tem haacutebitos saudaacuteveis se manteacutem cuidados com a higiene com o meio-
ambiente com os prazos dos alimentos e por aiacute vai A despensa seria assim a memoacuteria da casa
um espaccedilo onde se colocam os ingredientes onde satildeo armazenados e de onde satildeo retirados para o
uso imediato Nessa analogia os ingredientes remetem-nos agrave imagem das lembranccedilas guardadas
na despensa
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A partir dessa reflexatildeo eacute importante pensar no par lembranccedilas e memoacuteria como uma
relaccedilatildeo entre plural e singular Podem-se estabelecer ainda outras relaccedilotildees como a ideia de que a
memoacuteria maior conteacutem as lembranccedilas menores e muacuteltiplas A primeira representa um amplo
espaccedilo subjetivo para o armazenamento das segundas Uma comparaccedilatildeo mais detalhada colocaria
alguns itens nas estantes mais altas da despensa onde o acesso eacute difiacutecil ou mais ao fundo atraacutes
de elementos que satildeo usados com regularidade Natildeo eacute raro que esses ingredientes em partes
menos visualizadas sejam menos usados enquanto aqueles mais visiacuteveis sejam retirados dali e
consumidos com maior frequecircncia Tanto a regularidade do uso quanto os gostos alimentares
definem os produtos que ficam disponiacuteveis em estantes de mais faacutecil acesso em contraponto os
menos usados entram na categoria dos menos vistos
Aspectos que raramente enxergamos ficam esquecidos na despensa em lugares difiacuteceis e
ateacute passam da validade se natildeo tomamos conhecimento de que estatildeo laacute natildeo iremos evocaacute-los e
acabam por permanecer por um longo periacuteodo no canto mais longiacutenquo daquele espaccedilo Inuacutemeras
vezes esquecemos de usar produtos que guardamos haacute mais tempo e lembramos de acessar os
mais presentes em nossa rotina Aleacutem disso cabe lembrar que haacute estantes ou compartimentos em
uma despensa que servem justamente ao propoacutesito de definiccedilatildeo de categorias as mais
importantes alcanccedilamos estendendo o braccedilo enquanto as de menor relevacircncia recebem acesso
pelo uso da escada domeacutestica da lanterna para a procura ou no caso de estarem nas prateleiras
inferiores de posiccedilotildees fiacutesicas para encontrar o elemento procurado
Ao guardarmos algo que pouco usamos criamos espaccedilos de esquecimento dentro da
memoacuteria Para que resgatemos esses ingredientes haacute elementos como a imagem que nos
despertam para a recordaccedilatildeo de que um dia tomamos contato com ele Mais uma vez surge a
figura do conhecimento preacutevio entatildeo do passado como criteacuterio para o reconhecimento
Reconhecer eacute conhecer novamente voltar a tomar contato
Considerando a partir da analogia estabelecida as lembranccedilas como elemento plural
presente na memoacuteria de caraacuteter singular torna-se necessaacuterio compreender o fenocircmeno da
memoacuteria sob vaacuterias perspectivas Haacute diversos fatores envolvidos no modo como nos lembramos
de algo no porquecirc dessas lembranccedilas tornarem-se de mais faacutecil ou de mais difiacutecil acesso para
quais registros damos mais relevacircncia ao lsquoguardar na despensarsquo e outras variaacuteveis ligadas ao
lembrar e ao esquecer Tais perspectivas natildeo estatildeo divididas mas sim ligadas no texto uma vez
que ao contraacuterio das prateleiras da despensa a memoacuteria eacute um espaccedilo sem divisotildees estabelecidas
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na experiecircncia humana Mesmo do ponto de vista cerebral ela ocupa diversas aacutereas e muacuteltiplos
sistemas sendo resultado de um processo de integraccedilatildeo de estruturas e de funccedilotildees cerebrais
Um aspecto relevante sobre o uso da palavra memoacuteria quando usado no plural estaacute na
literatura Ler as memoacuterias de um autor remete agrave ideia de uma narrativa autobiograacutefica ou
biograacutefica novamente ligando a ideia de memoacuteria ao campo da definiccedilatildeo de identidade
Considero que esse termo seja o de maior importacircncia no conjunto do fenocircmeno pois mesmo que
se trate da memoacuteria de um grupo essa revela seu caraacuteter identitaacuterio
Identidade eacute palavra-chave no campo da memoacuteria O psiquiatra italiano Sandro
Domenichetti apresenta a lembranccedila como ldquo[] experiecircncia que constroacutei a consciecircncia de si e
que define a relaccedilatildeo entre o mundo afetivo e aquele cognitivordquo (DOMENICHETTI 2003 p1)
de acordo com ele entre as funccedilotildees da consciecircncia estaacute a diacrocircnica ou seja a de percepccedilatildeo da
identidade estaacutevel atraveacutes do tempo A consciecircncia entatildeo eacute um elemento central neste campo
Domenichetti refere que esta ldquo[] parece entatildeo configurar-se como um tipo de memoacuteria de si no
tempordquo (DOMENICHETTI 2003 p1) enfatizando a perspectiva de que ldquo[] um senso de si eacute
essencial para que todas as minhas lembranccedilas sejam exatamente as minhas lembranccedilasrdquo
(DOMENICHETTI 2003 p1 grifo do autor)
Outro elemento apontado por este autor tem como base a explanaccedilatildeo de Israel Rosenfeld
meacutedico e pesquisador com atuaccedilatildeo relevante no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti
Roselfield expotildee a continuidade da consciecircncia como derivada da correspondecircncia que o ceacuterebro
estabelece em momentos sucessivos com eventos no espaccedilo e no tempo sendo seu elemento vital
a autoconsciecircncia Para Roselfield
As minhas lembranccedilas emergem da relaccedilatildeo entre meu corpo e a imagem que meu
ceacuterebro tem do meu corpo (uma atividade inconsciente na qual o ceacuterebro constroacutei para si
uma ideia generalizada do corpo ideia que se modifica continuamente) Eacute esta relaccedilatildeo
que cria o senso de lsquosirsquo (DOMENICHETTI 2003 p2)
A fim de corroborar a relaccedilatildeo entre corpo e ceacuterebro estabelecida por Rosenfield
Domenichetti refere-se a Henri Bergson (1859-1941) filoacutesofo e diplomata francecircs cuja obra
destacou-se pelas contribuiccedilotildees no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti
[] o nosso conhecimento da realidade eacute feito de percepccedilotildees impregnadas de
lembranccedilas A memoacuteria de Bergson funciona atraveacutes de operaccedilotildees de coleta de imagens
que progressivamente satildeo produzidas o corpo eacute uma dessas imagens a uacuteltima para ser
exato E se o corpo em geral eacute uma imagem eacute oacutebvio que o eacute tambeacutem o ceacuterebro Este
ligar a percepccedilatildeo a memoacuteria e o corpo com passagens de um a outro atraveacutes da
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dimensatildeo temporal define a construccedilatildeo da funccedilatildeo mental da qual a memoacuteria eacute atributo
fundador como organizaccedilatildeo autoreflexiva que pensa o corpo (DOMENICHETTI 2003
p1)
Pode-se compreender entatildeo corpo e ceacuterebro como palcos onde as imagens da memoacuteria
satildeo encenadas Tais imagens unem-se agraves percepccedilotildees atuais do indiviacuteduo compondo um conjunto
formado pelo antes e o agora ndash passado e presente ndash intrincados Ainda referindo-se agraves
contribuiccedilotildees de Roselfield nesse campo Domenichetti acrescenta
Tambeacutem na visatildeo de Roselfield assim a memoacuteria natildeo pode ser considerada como um
manual de informaccedilotildees mas sobretudo como uma atividade contiacutenua do ceacuterebro Isso se
observa principalmente no caso das imagens Quando recordo a imagem de um evento
da minha infacircncia por exemplo natildeo a extraio de um hipoteacutetico arquivo de imagens
preexistentes devo formar conscientemente uma nova imagem (DOMENICHETTI
2003 p2)
Tais explanaccedilotildees sobre o papel da imagem para a recordaccedilatildeo coincidem com a
perspectiva de Paul Ricoeur em A lembranccedila e a imagem na primeira parte de sua obra jaacute
referida Ele questiona ldquoComo explicar que a lembranccedila retorne em forma de imagem e que a
imaginaccedilatildeo assim mobilizada chegue a revestir-se das formas que escapam agrave funccedilatildeo do irrealrdquo
(RICOEUR 2014 p66)
Para chegar a respostas possiacuteveis ele recorre a Bergson entre outros autores Deste
aponta que ldquoAdoto como hipoacutetese de trabalho a concepccedilatildeo bergsoniana da passagem da
lsquolembranccedila-purarsquo agrave lembranccedila-imagemrdquo (RICOEUR 2014 p67) De acordo com Ricoeur sobre
o trabalho de Bergson ldquoele traz de certo modo a lembranccedila para uma aacuterea de presenccedila
semelhante agrave da percepccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p68) ressaltando da imaginaccedilatildeo o que chama
de ldquofunccedilatildeo visualizanterdquo ou seja ldquosua maneira de dar a verrdquo (RICOEUR 2014 p68) Ricoeur
esclarece que
Eacute como se a forma que Bergson chama intermediaacuteria ou mista da lembranccedila isto eacute a
lembranccedila-imagem a meio-caminho entre lsquolembranccedila-purarsquo e a lembranccedila reinscrita na
percepccedilatildeo no estaacutegio em que o reconhecimento desabrocha no sentimento do deacutejagrave vu
correspondesse a uma forma intermediaacuteria da imaginaccedilatildeo a meio caminho entre a ficccedilatildeo
e a alucinaccedilatildeo a saber o componente imagem da lembranccedila-imagem Portanto eacute
tambeacutem como forma mista que eacute preciso falar da funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo que consiste em
lsquopocircr debaixo dos olhosrsquo funccedilatildeo que podemos chamar ostensiva trata-se de uma
imaginaccedilatildeo que mostra que expotildee que deixa ver (RICOEUR 2014 p70)
Assim o que se tem eacute uma zona de fronteiras pouco demarcadas entre a percepccedilatildeo a
lembranccedila e a imaginaccedilatildeo Ricoeur refere em relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas e diferenccedilas entre as duas
uacuteltimas ldquoCertamente dissemos e repetimos que a imaginaccedilatildeo e a memoacuteria tinham como traccedilo
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comum a presenccedila do ausente e como traccedilo diferencial de um lado a suspensatildeo de toda posiccedilatildeo
de realidade e a visatildeo de um irreal do outro a posiccedilatildeo de um real anteriorrdquo (RICOEUR 2014
p61)
Nesse sentido o papel da percepccedilatildeo eacute o de captar a realidade atraveacutes dos cinco sentidos
para entatildeo formar registros que no futuro seratildeo lembranccedilas As imagens que resgato satildeo
diferentes das que percebi no instante do acontecimento pois se misturam com outros
ingredientes como as emoccedilotildees por exemplo Ricoeur aponta ldquoTeriacuteamos assim a sequecircncia
percepccedilatildeo lembranccedila ficccedilatildeo Um limiar de inatualidade eacute transposto entre lembranccedila e ficccedilatildeordquo
(RICOEUR 2014 p65) Esse limiar de inatualidade expresso por ele como ldquotransposto entre
lembranccedila e ficccedilatildeordquo parece referir-se agrave passagem do tempo que torna as imagens de uma
vivecircncia cada vez mais proacuteximas da imaginaccedilatildeo quanto mais longiacutenquo for o passado
O filoacutesofo Gaston Bachelard em A poeacutetica do espaccedilo ao mencionar as lembranccedilas
associadas ao habitar de uma nova casa expressa o entrelaccedilamento entre a memoacuteria e a
imaginaccedilatildeo
E o devaneio se aprofunda de tal modo que para o sonhador do lar um acircmbito
imemorial se abre para aleacutem da mais antiga memoacuteria A casa como o fogo como a
aacutegua nos permitiraacute evocar na sequecircncia de nossa obra luzes fugidias de devaneio que
iluminam a siacutentese do imemorial com a lembranccedila Nessa regiatildeo longiacutenqua memoacuteria e
imaginaccedilatildeo natildeo se deixam dissociar Ambas trabalham para seu aprofundamento muacutetuo
Ambas constituem na ordem dos valores uma uniatildeo da lembranccedila com a imagem
(BACHELARD 2012 p25)
A relaccedilatildeo entre lembranccedila e imagem em Bachelard encontra-se bem representada atraveacutes
da ideia da casa e do habitar onde esses dois fenocircmenos se fundem Ele menciona a ideia de que
ldquo[] o calendaacuterio da nossa vida soacute pode ser estabelecido em seu processo produtor de imagensrdquo
(BACHELARD 2012 p28) Este calendaacuterio parece ser para o autor as lembranccedilas recordadas
por meio da imagem das cenas vividas e sentidas Bachelard refere que ldquo[] a imagem
estabelece-se numa cooperaccedilatildeo entre o real e o irreal pela participaccedilatildeo da funccedilatildeo do real e da
funccedilatildeo do irrealrdquo (BACHELARD 2012 p73) tecendo uma ligaccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo memoacuteria e
percepccedilatildeo Cabe ressaltar nesse ponto o aspecto de esta uacuteltima ocorrer atraveacutes dos cinco
sentidos veiacuteculo de traduccedilatildeo do mundo externo para o interno Retorna-se ao jaacute apresentado
sobre a relevacircncia do corpo para a memoacuteria Ricoeur menciona a esse respeito
Eacute o elo entre memoacuteria corporal e memoacuteria dos lugares que legitima a tiacutetulo primordial a
dessimplicaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo de sua forma objetivada O corpo constitui desse
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ponto de vista o lugar primordial o aqui em relaccedilatildeo ao qual todos os outros lugares satildeo
laacute (RICOEUR 2014 p59)
Compreender o papel da memoacuteria do corpo conduz agrave identificaccedilatildeo desta dentro da
consciecircncia de si pois diz respeito aos registros deixados pelas vivecircncias com potencial de
serem encenados novamente pelo indiviacuteduo O ato de cozinhar seria um exemplo de como a
memoacuteria corporal faz com que se pratique o ato culinaacuterio como um conhecimento do corpo
muitas vezes executado de forma habitual Ricoeur aponta que ldquo[] a memoacuteria corporal pode ser
lsquoagidarsquo como todas as outras modalidades de haacutebito como a de dirigir um carro que estaacute em meu
poder Ela varia segundo todas as variantes do sentimento de familiaridade ou de estranhezardquo
(RICOEUR 2014 p57) O autor acrescenta
Assim a memoacuteria corporal eacute povoada de lembranccedilas afetadas por diferentes graus de
distanciamento temporal a proacutepria extensatildeo do lapso de tempo decorrido pode ser
percebida sentida na forma de saudade nostalgia [] O momento da recordaccedilatildeo eacute
entatildeo o do reconhecimento (RICOEUR 2014 p57)
Partindo dessa compreensatildeo seria possiacutevel pensar em corpo casa e lugar como espaccedilos
onde a recordaccedilatildeo nasce do mais especiacutefico o corpo ao mais inespeciacutefico o lugar Em todos
esses espaccedilos haacute accedilotildees e vivecircncias que podem constituir lembranccedilas Conforme Ricoeur
A transiccedilatildeo da memoacuteria corporal para a memoacuteria dos lugares eacute assegurada por atos tatildeo
importantes como orientar-se deslocar-se e acima de tudo habitar Eacute na superfiacutecie
habitaacutevel da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado lugares memoraacuteveis
Assim as lsquocoisasrsquo lembradas satildeo intrinsecamente associadas a lugares E natildeo eacute por acaso
que dizemos sobre uma coisa que aconteceu que ela teve lugar Eacute de fato nesse niacutevel
primordial que se constitui o fenocircmeno dos lsquolugares de memoacuteriarsquo (RICOEUR 2014
p57-58)
Essa ideia pode ser corroborada com a perspectiva de Bachelard sobre o habitar
Eacute preciso dizer como habitamos o nosso espaccedilo vital de acordo com todas as dialeacuteticas
da vida como nos enraizamos dia a dia num lsquocanto do mundorsquo
Porque a casa eacute nosso canto do mundo Ela eacute como se diz amiuacutede o nosso primeiro
universo Eacute um verdadeiro cosmos (BACHELARD 2012 p24)
A respeito da relevacircncia da casa para a formaccedilatildeo e o armazenamento das lembranccedilas
Bachelard apresenta contribuiccedilotildees que reforccedilam a visatildeo de Ricoeur sobre o papel dos lugares
para a memoacuteria
Logicamente eacute graccedilas agrave casa que um grande nuacutemero de nossas lembranccedilas estatildeo
guardadas e quando a casa se complica um pouco quando tem um poratildeo e um soacutetatildeo
cantos e corredores nossas lembranccedilas tecircm refuacutegios cada vez mais bem caracterizados
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A eles regressamos durante toda a vida em nossos devaneios (BACHELARD 2012
p28)
A ideia da memoacuteria associada ao espaccedilo seja corpo casa ou lugar conduz agrave reflexatildeo de
que essa tem uma existecircncia subjetiva interna que eacute representada pelo aspecto objetivo material
externo isso se daacute atraveacutes de vivecircncias associadas sempre a um primeiro espaccedilo o corpoacutereo e a
um segundo mais amplo que eacute o lugar para onde a lembranccedila remete Mais uma vez as
lembranccedilas tecircm imagens de correspondecircncia eacute como se os lugares dessem carne e osso a elas
confirmam sua existecircncia em um tempo e em um espaccedilo que mesmo passado relaciona-se ao
mundo fiacutesico Quanto mais longiacutenquas no tempo mais proacuteximas se encontram da imaginaccedilatildeo
como jaacute visto entretanto ainda assim tecircm um cenaacuterio onde vivem
Examinada como fenocircmeno a memoacuteria tem propriedades que a identificam Ricoeur
estabeleceu trecircs pares de oposiccedilotildees para a compreensatildeo da fenomenologia da memoacuteria o
primeiro deles eacute a dupla haacutebitomemoacuteria sobre a qual refere
O que faz a unidade desse espectro eacute a comunidade da relaccedilatildeo com o tempo Nos dois
casos extremos pressupotildee-se uma experiecircncia anteriormente adquirida mas num caso o
do haacutebito essa aquisiccedilatildeo estaacute incorporada agrave vivecircncia presente natildeo marcada natildeo
declarada como passado no outro caso faz-se referecircncia agrave anterioridade como tal da
aquisiccedilatildeo antiga Nos dois casos por conseguinte continua sendo verdade que a
memoacuteria lsquoeacute do passadorsquo mas conforme dois modos um natildeo marcado outro sim da
referecircncia ao lugar no tempo da experiecircncia inicial
[] A operaccedilatildeo descritiva consiste entatildeo em classificar as experiecircncias relativas agrave
profundidade temporal desde aquelas em que de algum modo o passado adere ao
presente ateacute aquelas em que o passado eacute reconhecido em sua preteridade passada
(RICOEUR 2014 p43)
A segunda dupla de opostos estabelecida por Ricoeur eacute composta pelo par
evocaccedilatildeobusca representado pelos dois trechos abaixo No primeiro a reflexatildeo sobre evocaccedilatildeo
no segundo sobre a busca
1) Entendamos por evocaccedilatildeo o aparecimento atual de uma lembranccedila Eacute a esta que
Aristoacuteteles destinava o termo mneme designando por anamnesis o que chamaremos
mais adiante de busca ou recordaccedilatildeo Ele caracterizava a mneme como pathos como
afecccedilatildeo ocorre que nos lembramos disto ou daquilo nesta ou naquela ocasiatildeo entatildeo
temos uma lembranccedila Portanto eacute em oposiccedilatildeo agrave busca que a evocaccedilatildeo eacute uma
afecccedilatildeo Enquanto tal em outras palavras desconsiderando sua posiccedilatildeo polar a
evocaccedilatildeo traz a carga do enigma que movimentou as investigaccedilotildees de Platatildeo e de
Aristoacuteteles ou seja a presenccedila agora do ausente anteriormente percebido
experimentado aprendido (RICOEUR 2014 p45)
2) Voltemo-nos agora para o outro poacutelo do par evocaccedilatildeobusca Eacute ele que a
denominaccedilatildeo grega da anamnesis designava Platatildeo a mitificara ligando-a a um saber
preacute-natal do qual estariacuteamos afastados por um esquecimento ligado agrave inauguraccedilatildeo da
vida da alma num corpo esquecimento de certo modo natal que faria da busca um
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reaprender do esquecimento Aristoacuteteles [] naturalizou de certo modo a anamnesis
comparando-a agravequilo que na experiecircncia cotidiana chamamos de recordaccedilatildeo [] o
ana de anamnesis significa volta retomada recobramento do que anteriormente foi
visto experimentado ou aprendido portanto de alguma forma significa repeticcedilatildeo
Assim o esquecimento eacute designado obliquamente como aquilo contra o que eacute
dirigido o esforccedilo da recordaccedilatildeo (RICOEUR 2014 p46)
O que Ricoeur propotildee assim com o par evocaccedilatildeobusca eacute a diferenciaccedilatildeo entre a
lembranccedila e a recordaccedilatildeo sendo a primeira segundo ele representativa do surgimento
espontacircneo de um registro gravado na memoacuteria enquanto a segunda seria resultado de uma
procura ativa voluntaacuteria Referindo as ideias de Bergson sobre lsquorecordaccedilatildeo instantacircnearsquo e
lsquorecordaccedilatildeo laboriosarsquo aponta a distinccedilatildeo ldquo[] podendo a recordaccedilatildeo instantacircnea ser considerada
como o grau zero da busca e a recordaccedilatildeo laboriosa e a recordaccedilatildeo laboriosa como sua forma
expressardquo (RICOEUR 2014 p46) Assim a lembranccedila viria de uma evocaccedilatildeo proacutexima ao que
Ricoeur chama de lsquoautomatismorsquo e lsquorecordaccedilatildeo mecacircnicarsquo diferente da recordaccedilatildeo que viria lsquoda
reflexatildeo da reconstituiccedilatildeo inteligentersquo estando ambas ldquo[] intimamente mescladas na
experiecircncia comumrdquo (RICOEUR 2014 p46) Por fim com relaccedilatildeo a esse par Ricoeur refere
Eacute de fato o esforccedilo de recordaccedilatildeo que oferece a melhor ocasiatildeo de fazer lsquomemoacuteria do
esquecimentorsquo para falar com antecipaccedilatildeo como Santo Agostinho A busca da
lembranccedila comprova uma das finalidades principais do ato de memoacuteria a saber lutar
contra o esquecimento arrancar alguns fragmentos de lembranccedila agrave lsquorapacidadersquo do
tempo (Santo Agostinho dixit) ao lsquosepultamentorsquo no esquecimento Natildeo eacute somente o
caraacuteter penoso do esforccedilo de memoacuteria que daacute agrave relaccedilatildeo sua coloraccedilatildeo inquieta mas o
temor de ter esquecido de esquecer de novo de esquecer amanhatilde de cumprir esta ou
aquela tarefa porque amanhatilde seraacute preciso natildeo esquecer [] de se lembrar (RICOEUR
2014 p48)
A terceira dupla de opostos proposta por Ricoeur em sua fenomenologia da memoacuteria eacute
constituiacuteda pela polaridade reflexividademundanidade A respeito do elemento reflexividade
Ricoeur esclarece
Natildeo nos lembramos somente de noacutes vendo experimentando aprendendo mas das
situaccedilotildees do mundo nas quais vimos experimentamos aprendemos Tais situaccedilotildees
implicam o proacuteprio corpo e o corpo dos outros o espaccedilo onde se viveu enfim o
horizonte do mundo e dos mundos sob o qual alguma coisa aconteceu Entre
reflexividade e mundanidade haacute mesmo uma polaridade na medida em que a
reflexividade eacute um rastro irrecusaacutevel da memoacuteria em sua fase declarativa algueacutem diz
lsquoem seu coraccedilatildeorsquo que viu experimentou aprendeu anteriormente sob esse aspecto nada
deve ser negado sobre o pertencimento da memoacuteria agrave esfera de interioridade
(RICOEUR 2014 p53-54)
A mundanidade por sua vez constitui um elemento significativo no estudo deste
capiacutetulo uma vez que contempla a existecircncia dos rituais atraveacutes da abordagem do fenocircmeno da
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comemoraccedilatildeo Ricoeur o associa agrave ldquo[] gestualidade corporal e agrave espacialidade dos rituais que
acompanham os ritmos temporais da celebraccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p60) A associaccedilatildeo do ato
de comemoraccedilatildeo com os rituais eacute explicada por ele
Natildeo haacute efetuaccedilatildeo ritual sem a evocaccedilatildeo de um mito que orienta a lembranccedila para o que eacute
digno de ser comemorado As comemoraccedilotildees satildeo assim espeacutecies de evocaccedilotildees no
sentido de reatualizaccedilatildeo eventos fundadores apoiados pelo lsquochamadorsquo a lembrar-se que
soleniza a cerimocircnia- comemorar observa Casey eacute solenizar tomando seriamente o
passado e celebrando-o em cerimocircnias apropriadas (RICOEUR 2014 p60)
A partir da reflexatildeo de Ricoeur sobre o par reflexividademundanidade e neste uacuteltimo
elemento a presenccedila do ritual cabe salientar o estudioso Mircea Eliade Este em sua obra Mito e
Realidade apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o mito
O mito conta uma histoacuteria sagrada ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial o tempo fabuloso do lsquoprinciacutepiorsquo Em outros termos o mito narra como
graccedilas agraves faccedilanhas dos Entes Sobrenaturais uma realidade passou a existir seja uma
realidade total o Cosmo ou apenas um fragmento uma ilha uma espeacutecie vegetal um
comportamento humano uma instituiccedilatildeo Eacute sempre portanto a narrativa de uma
lsquocriaccedilatildeorsquo ele relata de que modo algo foi produzido e comeccedilou a ser O mito fala apenas
do que realmente ocorreu do que se manifestou plenamente (ELIADE 2011 p11)
A relevacircncia dessa consideraccedilatildeo reside em corroborar que ldquo[] pelo fato de relatar as
gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestaccedilatildeo dos seus poderes sagrados o mito se torna o
modelo exemplar de todas as atividades humanas significativasrdquo (ELIADE 2011 p12) A
comemoraccedilatildeo enseja o rito que reencena o mito por isso eacute mencionada na explanaccedilatildeo de Ricoeur
quando se refere aos rituais Mircea Eliade esclarece ldquo[] a principal funccedilatildeo do mito consiste em
revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas tanto a
alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE
2011 p12) Compreende-se assim a comemoraccedilatildeo como a reuniatildeo de grupo ou de um povo
para celebrar a memoacuteria conjunta de seus membros em torno de uma finalidade o rito cuja
origem estaacute no evento original o mito A ideia impliacutecita neste caso eacute a de celebrar em conjunto
a memoacuteria de algo ou seja co-memorar A fim de reforccedilar essa reflexatildeo apontamos outra
explanaccedilatildeo de Eliade
Para o homem das sociedades arcaicas ao contraacuterio o que aconteceu ab origine pode ser
repetido atraveacutes do poder dos ritos Para ele portanto o essencial eacute conhecer os mitos
Essencial natildeo somente porque os mitos lhe oferecem uma explicaccedilatildeo do Mundo e de seu
proacuteprio modo de existir no Mundo mas sobretudo porque ao rememorar os mitos e
reatualiza-los ele eacute capaz de repetir o que os Deuses os Heroacuteis e os Ancestrais fizeram
ab origine Conhecer os mitos eacute aprender o segredo da origem das coisas Em outros
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termos aprende-se natildeo somente como as coisas vieram agrave existecircncia mas tambeacutem onde
encontra-las e como fazer com que reapareccedilam quando desaparecem (ELIADE 2011
p18)
No contexto do presente capiacutetulo interessa ressaltar a compreensatildeo do ritual como
celebraccedilatildeo de uma memoacuteria ancestral por parte de um grupo A ancestralidade dessa memoacuteria
tem em sua raiz o mito que lhe deu origem Tal entendimento tem associaccedilatildeo com o cozinhar e
com o partilhar o alimento com a reuniatildeo da famiacutelia em torno da comida e com a repeticcedilatildeo das
praacuteticas culinaacuterias que mesmo evoluindo ao longo do tempo remontam o primordial tornar cru
em cozido Outro elemento ligado agrave realizaccedilatildeo de rituais associados agrave cozinha estaacute na recitaccedilatildeo
do modo de fazer um prato quando transmitido atraveacutes de uma receita escrita O caminho que
essa percorre entre as geraccedilotildees de uma famiacutelia eacute emblemaacutetico de sua forccedila ritualiacutestica como se
carregasse de forma transgeracional a memoacuteria desse grupo atraveacutes do como-se-faz de uma
determinada praacutetica
Antes da existecircncia da receita no caderno o conhecimento empiacuterico dos antepassados
sobre o fazer culinaacuterio era ensinado oralmente e atraveacutes do proacuteprio fazer quando recitaccedilotildees eram
feitas para que o prato saiacutesse a contento essas eram assim a representaccedilatildeo do ritual naquele
grupo familiar Nesse sentido retomamos Eliade em sua explicaccedilatildeo sobre a recitaccedilatildeo do mito
Em Timor por exemplo quando germina um arrozal dirige-se ao campo algueacutem que
conhece as tradiccedilotildees miacuteticas referentes ao arroz [] Recitando o mito de origem
obriga-se o arroz a crescer tatildeo belo vigoroso e abundante como era quando apareceu
pela primeira vez Natildeo eacute com o fim de lsquoinstruiacute-lorsquo ou ensinar-lhe a maneira como deve
comportar-se que o oficiante lembra ao arroz o modo como foi criado Ele o forccedila
magicamente a retornar agrave origem isto eacute a reiterar sua criaccedilatildeo exemplar (ELIADE
2011 p19)
Esses conhecimentos eram transmitidos junto com a receita ou seja eram parte da
memoacuteria daquele prato em seu papel na tradiccedilatildeo familiar Vale lembrar que a etimologia de
receita estaacute no latim recepta alusivo a receber expressa entatildeo aquilo que se recebe em termos
de ensinamento sobre o fazer de uma comida especiacutefica Haacute diversas expressotildees no folclore da
cozinha que remontam a transmissatildeo do saber culinaacuterio em uma cultura
Haacute diferenccedila entre a memoacuteria individual essa que nos identifica como indiviacuteduos e a
memoacuteria coletiva Como exemplo da uacuteltima cito esse lsquosaber culinaacuterio em uma culturarsquo que
remete agrave compreensatildeo sobre a memoacuteria coletiva no contexto deste capiacutetulo Esta assim como a
individual tem em seu eixo a noccedilatildeo de identidade no caso da memoacuteria de um indiviacuteduo como jaacute
visto refere-se agrave consciecircncia de si mesmo como base daquilo de que ele eacute capaz de se lembrar
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para que as lembranccedilas sejam suas no caso da memoacuteria coletiva este eixo estaacute na identidade do
grupo que a conteacutem pois a memoacuteria e o grupo alimentam-se reciprocamente o grupo se manteacutem
vivo pelas memoacuterias enquanto essas permanecem presentes pela unidade do grupo
A respeito dessa inter-relaccedilatildeo a pesquisadora e professora alematilde Aleida Assmann no
livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo-formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural menciona as ideias
de Maurice Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva referindo que ldquo[] a memoacuteria coletiva assegura
a singularidade e a continuidade de um grupordquo (ASSMANN 2011 p144) e esclarece
Seu interesse voltou-se apenas agrave pergunta sobre o que manteacutem as pessoas unidas em
grupos Deparou assim com o significado agregador das lembranccedilas em comum como
importante elemento de coesatildeo Derivou daiacute a noccedilatildeo da existecircncia de uma lsquomemoacuteria de
gruporsquo Mas as lembranccedilas natildeo se estabilizam somente no grupo O grupo torna estaacuteveis
as lembranccedilas A investigaccedilatildeo de Halbwachs em torno dessa lsquomemoacuteria coletivarsquo resultou
no seguinte a estabilidade da memoacuteria coletiva estaacute vinculada de maneira direta agrave
composiccedilatildeo e subsistecircncia do grupo Se o grupo se dissolve os indiviacuteduos perdem em
sua memoacuteria a parte de lembranccedilas que os fazia assegurarem-se e identificarem-se como
grupo (ASSMANN 2011 p144)
A referecircncia agrave memoacuteria ligada agrave manutenccedilatildeo de um grupo remete novamente agrave ideia no
acircmbito das vivecircncias culinaacuterias das receitas de cozinha transmitidas entre as geraccedilotildees de uma
mesma famiacutelia O elemento que sustenta a presenccedila dessa receita no grupo eacute a memoacuteria que este
tem a respeito do lsquocomo-se-fazrsquo de uma determinada comida Enquanto houver membros dessa
famiacutelia que se interessem em manter a tradiccedilatildeo daquele determinado sabor a memoacuteria seraacute
mantida ao mesmo tempo enquanto houver essa memoacuteria a integraccedilatildeo do grupo permaneceraacute
Segundo Aleida Assmann
Os estudos do historiador francecircs Pierre Nora demonstraram que por traacutes da memoacuteria
coletiva natildeo haacute alma coletiva nem espiacuterito coletivo algum mas tatildeo somente a sociedade
com seus signos e siacutembolos Por meio dos siacutembolos em comum o indiviacuteduo toma parte
de uma memoacuteria e de uma identidade tidas em comum Nora cumpriu na teoria da
memoacuteria o passo que vai do grupo vinculado na coexistecircncia espaccedilo-temporal tema
estudado por Halbwachs agrave comunidade abstrata que se define por meio dos siacutembolos
que abrangem e agregam em niacutevel espacial e temporal Os portadores dessa memoacuteria
coletiva natildeo precisam conhecer-se para apesar disso reinvindicar para si uma identidade
comum (ASSMANN 2011 p145)
Assim como referido sobre o papel de uma receita de famiacutelia como elemento de coesatildeo
entre os membros da mesma atraveacutes das geraccedilotildees situaccedilatildeo semelhante pode ocorrer em relaccedilatildeo
a um determinado ingrediente ou preferecircncia alimentar A transmissatildeo de um saber culinaacuterio e
dos gostos de uma famiacutelia tambeacutem satildeo aspectos que se perpetuam no grupo em funccedilatildeo da
memoacuteria que agrega seus integrantes
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A memoacuteria individual entatildeo manteacutem a identidade por dar ao indiviacuteduo sua caracteriacutestica
singular atraveacutes do tempo nela estatildeo suas impressotildees lembranccedilas e registros que compotildeem a
noccedilatildeo de permanecircncia de quem ele eacute ou seja reforccedilam nele a consciecircncia do eu na duraccedilatildeo de
ciclos que se perpetuam Ele sabe quem eacute em grande parte pelas lembranccedilas que tem de si
Circunstacircncia anaacuteloga ocorre com a memoacuteria coletiva em que o grupo se manteacutem coeso pela
consciecircncia de ser um grupo com lembranccedilas em comum o papel dessas eacute exatamente o de
manter a unidade e a permanecircncia da identidade do conjunto
A memoacuteria individual e a coletiva estatildeo portanto implicadas na vivecircncia culinaacuteria
relaccedilotildees a serem exploradas na divisatildeo que segue
13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO
A relaccedilatildeo entre cozinha e memoacuteria existe devido agrave linguagem Avanccedilando nessa
perspectiva Mariano Garciacutea e Mariana Dimoacutepulos compiladores da obra Escritos sobre la mesa-
Literatura y comida afirmam que ldquo[] a relaccedilatildeo entre linguagem e comida comeccedila desde o
momento em que graccedilas agrave escritura se conservam notiacutecias de como se comia na Antiguidaderdquo
(GARCIacuteA DIMOacutePULOS 2014 p9) Toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo assim eacute conhecida em
virtude do que se registrou ao longo das eacutepocas sob os mais diversos veiacuteculos Esse aspecto eacute
relevante tanto do ponto de vista de Histoacuteria da Humanidade quanto daquele das histoacuterias
familiares atraveacutes de escritos transmitidos de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Em ambos os exemplos os
escritos culinaacuterios satildeo representativos da memoacuteria coletiva
Ainda no que concerne a essa memoacuteria salientamos que ela tem tambeacutem outras
expressotildees presentes no acircmbito identitaacuterio de uma cultura De acordo com Daniela Bunn em sua
obra O alimento na literatura uma questatildeo cultural ldquo[] satildeo assim criados em torno da mesa
modos maneiras e ingredientes que estabelecem uma identidade cultural destinada a representar
um grupo e sua identidaderdquo (BUNN 2016 p28) Tais lsquomodos maneiras e ingredientesrsquo satildeo
elementos que constituem parte da bagagem que pertence a um grupo e agraves geraccedilotildees seguintes
atraveacutes da memoacuteria coletiva Podemos citar como exemplos os ensinamentos culinaacuterios
aprendidos atraveacutes de gestos e de relatos orais e as preferecircncias alimentares de uma famiacutelia ou de
um povo
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Visitando cadernos de receitas antigos que pertenceram a avoacutes matildees e tias percebemos
uma caracteriacutestica em comum a todos eles o elenco de ingredientes com suas medidas e a breve
descriccedilatildeo do lsquocomo-se-fazrsquo apenas para guiar a praacutetica Parece-nos inclusive que eram
anotaccedilotildees que elas faziam para si mesmas para que natildeo esquecessem de um ou outro detalhe e
natildeo registros para serem transmitidos na famiacutelia Ensinavam sim mas in loco na hora em que
estivessem fazendo Mostravam caracteriacutesticas no aspecto do prato sendo feito apontavam para
os ruiacutedos da cebola fritando faziam sentir a textura de uma massa de patildeo o cheiro de um doce
exalando pela cozinha denunciavam a pitada de sal que ainda faltava no arroz soacute de provarem
com a ponta da colher Como sabiam Porque lembravam pelo que um dia aprenderam e mais do
que isso lembravam pelo haacutebito pelo praticar e de forma mais vivencial pelo sentir atraveacutes dos
cinco sentidos
Em Pequeno alfarraacutebio de acepipes e doccediluras haacute um capiacutetulo dedicado agrave cozinha das
avoacutes intitulado lsquoNossas avoacutesrsquo cujo propoacutesito eacute o de refletir de modo especiacutefico sobre a cozinha
que atravessa a memoacuteria e permanece como registro vivo pela referecircncia ao papel que estas
desempenham na memoacuteria de muitas pessoas Os pratos e doces feitos por elas as avoacutes de tantas
geraccedilotildees tornam-se parte das lembranccedilas que deixam na famiacutelia Aleacutem disso as receitas das avoacutes
satildeo emblemaacuteticas da memoacuteria que se manteacutem viva atraveacutes de um grupo que a alimenta a
memoacuteria coletiva conforme referida por Aleida Assmann ao mencionar as ideias de Maurice
Halbwachs
Um dos aspectos mais relevantes dessa lsquocozinha das avoacutesrsquo eacute o modo como tinham no
corpo o conhecimento da praacutetica culinaacuteria No texto lsquoA memoacuteria nas matildeosrsquo eacute referido esse
aspecto
No caso da Voacute Leacuteia e de tantas avoacutes da eacutepoca acho que tinham a memoacuteria nas matildeos
com tudo o que aprendiam e praticavam vida afora No entanto a sabedoria vai aleacutem
Acredito que sentissem vivamente nas etapas os cheiros gostos sons do alimento
aspecto textura pulsaccedilatildeo As matildeos preparavam mas todo corpo participava do feito
culinaacuterio Prestavam atenccedilatildeo estavam de fato presentes na tarefa E assim a memoacuteria era
lsquocarimbadarsquo nas matildeos nos cinco sentidos na emoccedilatildeo de um sabor que alegrava a
cozinha (CARDOSO 2012 p61)
O elemento determinante da memoacuteria das avoacutes cuja vivecircncia culinaacuteria era cotidiana e de
valor reconhecido entre os familiares eacute a praacutetica Sabiam fazer e muitas vezes de modo
intuitivo adaptavam e ateacute criavam receitas por esse conhecimento A lsquomemoacuteria nas matildeosrsquo
consistia em identificar pelo tato que a massa do patildeo estava no ponto quando a pele assim
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determinava E reconheciam isso por um dia ter aprendido mas principalmente porque apoacutes
tantas repeticcedilotildees do lsquocomo-se-fazrsquo foi a pele que passou a identificar este ponto ainda antes do
conhecer cognitivo Tal reflexatildeo conduz ao que refere Ricoeur sobre o par haacutebitomemoacuteria
quando o primeiro elemento do par alude agraves circunstacircncias em que o passado adere ao presente
Um saber adquirido eacute mantido em praacutetica o que torna sua lembranccedila como um fator que integra a
atualidade do fazer e natildeo apenas o passado
Esta memoacuteria das avoacutes que mantinham vivo um modo de conhecer o ato culinaacuterio como
parte de seu saber vivencial ilustra com nitidez a ideia da memoacuteria coletiva jaacute que seu saber era
compartilhado em seu tempo natildeo pela receita escrita mas pela forma como esse era sentido e
atuado na cozinha Agrave medida que as geraccedilotildees que detinham esses conhecimentos antigos foram
terminando suas memoacuterias de forno-e-fogatildeo construiacutedas pela accedilatildeo e pelos sentidos agrave beira do
fogo ou do balcatildeo foram deixando de existir O que ficou para as geraccedilotildees seguintes foi o
conjunto de receitas escritas mas essas natildeo substituem a riqueza de um fazer empiacuterico intuitivo
recordado no corpo
O escritor e pesquisador Michael Pollan faz uma referecircncia interessante nesse sentido ao
advertir que natildeo se deve comer nada que a avoacute natildeo chamaria de comida Essa expressatildeo proposta
no fulcro de uma culinaacuteria dirigida para fora dos lares e feita de alimentos muitas vezes pouco ou
nada saudaacuteveis chama a atenccedilatildeo para o reconhecimento das avoacutes como detentoras de um saber
uacutenico aquele da lsquocomida de verdadersquo
Avoacutes matildees e tias satildeo personagens de grande relevacircncia no aprendizado de cozinha das
geraccedilotildees seguintes Eacute possiacutevel que isso se deva a seu papel ancestral de transmissatildeo de um saber
especiacutefico A memoacuteria dos antepassados constitui o alicerce a fundamentaccedilatildeo da famiacutelia a partir
de experiecircncias e de saberes que um dia foram vivenciados para serem entatildeo narrados ao longo
do tempo agraves proacuteximas geraccedilotildees O socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da
culinaacuteria brasileira tece uma relevante consideraccedilatildeo a esse respeito ldquoOs saberes culinaacuterios
evoluiacuteram como uma heranccedila que se transmite matrilinearmente ndash e os cadernos de receitas das
avoacutes satildeo uma sobrevivecircncia persistente dessa diretrizrdquo (DOacuteRIA 2014 p206)
Doacuteria aborda outro elemento significativo na contribuiccedilatildeo com o papel da memoacuteria na
cozinha a corporeidade Esse fator representa o proacuteprio ato culinaacuterio que eacute exercido pelo corpo
Eacute nele que reside a memoacuteria dos movimentos e dos gestos implicados no preparo do alimento
como bater claras sovar a massa do patildeo picar a cebola etc Neste sentido o autor refere
37
O corpo eacute tradicionalmente o principal instrumento do fazer culinaacuterio As ferramentas
da faca ao mais sofisticado equipamento utilizado na culinaacuteria molecular satildeo em geral
expedientes que visam economizar gestos ou conferir-lhes maior precisatildeo mas o
empenho fiacutesico com destreza eacute o primeiro responsaacutevel pelos resultados alcanccedilados []
(DOacuteRIA 2014 p216)
Essa reflexatildeo significa na compreensatildeo da memoacuteria ligada agrave cozinha que eacute o corpo o
principal responsaacutevel pela praacutetica culinaacuteria incluindo qualidades como a destreza mencionada
por Doacuteria A faca poderaacute cortar bem estar afiada mas se o corpo natildeo souber usaacute-la isso de nada
adiantaraacute Tal ponto nos remete agrave ideia da memoacuteria do corpo referida por Ricoeur no que tange
a uma espeacutecie de memoacuteria que pode ser agida na praacutetica habitual do indiviacuteduo fazendo parte de
sua identidade ter domiacutenio de um dado ato culinaacuterio daacute a algueacutem a consciecircncia de que sabe
fazer de que se lembra de que aquele saber eacute parte de si
Assim o ato culinaacuterio aprendido tanto por livros de receitas como pela transmissatildeo oral
por familiares representa a memoacuteria coletiva quando esse ato eacute praticado rotineiramente pelo
sujeito que aprendeu isto contribui para a consciecircncia de si representando o papel da memoacuteria
individual Cabe ressaltar tambeacutem a presenccedila da memoacuteria ancestral que acompanha as vivecircncias
de cozinha A esse propoacutesito Doacuteria refere que ldquoAssim lsquofazer para o outrorsquo ndash essa doaccedilatildeo atraveacutes
de um intermediaacuterio ao mesmo tempo material e simboacutelico como eacute a comida ndash permanece a
marca feminina do cozinhar desde os primeiros tempos da humanidaderdquo (DOacuteRIA 2014 p221)
Tal constataccedilatildeo reforccedila o papel ancestral das avoacutes matildees e tias na transmissatildeo do saber culinaacuterio
A postagem do blog Serendipity in Cucina traz no relato memorialiacutestico sobre a vivecircncia
de sua autora reflexatildeo sobre o componente ritualiacutestico do cozinhar
Haacute alguns anos decidi comeccedilar a fazer a chimia de uvas lsquoda Voacute Leacuteiarsquo a partir das
lembranccedilas que tenho do fazer de minha avoacute materna a quem assisti preparando o doce
inuacutemeras vezes Os dados sobre as proporccedilotildees tais como igual peso das cascas de uva e
do accediluacutecar e aacutegua que cubra soube por uma prima mas meu objetivo principal era o de
seguir a memoacuteria mais de vinte anos depois da uacuteltima vez que a vi fazendo o doce
Entatildeo sempre no veratildeo na eacutepoca dessas uvas repito a experiecircncia Fico em frente agrave
caccedilarola e a coloco em fogo baixo depois da fervura mexendo com a colher de pau em
giros lentos e precisos Percebo a mudanccedila atraveacutes da resistecircncia que o composto faz agrave
colher e assim progressivamente o fazer demanda mais forccedila do braccedilo direito Presto
atenccedilatildeo ao aspecto o roxo cintilante do iniacutecio torna-se mais opaco e fechado o brilho
das cascas da uva Isabel com que eacute feita a chimia diminui agrave medida que essa se
aproxima do resultado final O aroma toma conta da casa toda de forma insidiosa
Identifico que estaacute pronta pela consistecircncia reconheccedilo este momento porque a imagem
de minha avoacute em seus giros da colher de pau eacute parte de minha memoacuteria bem como a
lembranccedila das etapas da receita Quando repito seu movimento com semelhante
vagarosidade e empenho faccedilo-o pela lembranccedila do que assisti entretanto eacute provaacutevel
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que a repeticcedilatildeo se deva tambeacutem ao ritual em que consiste o cozinhar O proacuteprio fato de
estar agrave frente do fogo preparando o alimento eacute por si um ritual (CARDOSO 2015)
Assim o papel da ancestralidade manifesta-se no modo como se vivencia o contato com a
comida tanto no cozinhar quanto no comer e no partilhar a refeiccedilatildeo pessoas afins ou seja esses
atos configuram-se como rituais Retomamos as contribuiccedilotildees de Mircea Eliade para corroborar
essa compreensatildeo especialmente sua referecircncia de que
Apesar das modificaccedilotildees sofridas no decorrer dos tempos os mitos dos lsquoprimitivosrsquo
ainda refletem um estado primordial Trata-se ademais de sociedades onde os mitos
ainda estatildeo vivos onde fundamentam e justificam todo o comportamento e toda a
atividade do homem (ELIADE 2011 p10)
O fazer a comida e aquele do sentar agrave mesa para compartilhaacute-la satildeo desta forma rituais
que praticamos como seres humanos reencenando mitos A expressatildeo dos rituais estaacute em uma
memoacuteria coletiva ancestral que evocamos nessas praacuteticas
Em suma os mitos descrevem as diversas e algumas vezes dramaacuteticas irrupccedilotildees do
sagrado (ou do lsquosobrenaturalrsquo) no Mundo Eacute essa irrupccedilatildeo do sagrado que realmente
fundamenta o Mundo e o converte no que eacute hoje E mais eacute em razatildeo das intervenccedilotildees
dos Entes Sobrenaturais que o homem eacute o que eacute hoje um ser mortal sexuado e cultural
(ELIADE 2011 p11)
No que concerne agrave praacutetica da cozinha tambeacutem o cumprimento de uma receita traz um ato
de recitaccedilatildeo especialmente na parte que se refere ao lsquomodo de fazerrsquo o que conduz agrave reflexatildeo de
que tambeacutem esta eacute parte do ritual que envolve a produccedilatildeo da comida Fala-se em seguir a receita
no sentido de obedececirc-la Ao ler as orientaccedilotildees o que se lecirc eacute a presenccedila de verbos especiacuteficos do
fazer culinaacuterio conjugados no modo imperativo corte refogue asse e assim por diante Este
recitar que muitas vezes eacute falado em voz baixa enquanto se prepara um prato eacute em si um ato
inerente ao fazer culinaacuterio A respeito da recitaccedilatildeo Eliade aponta que
Na maioria dos casos natildeo basta conhecer o mito da origem eacute preciso recitaacute-lo em certo
sentido eacute uma proclamaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo do proacuteprio conhecimento E natildeo eacute soacute
recitando ou celebrando o mito de origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela
atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos O tempo miacutetico
das origens eacute um tempo lsquofortersquo porque foi transfigurado pela presenccedila ativa e criadora
dos Entes Sobrenaturais Ao recitar os mitos reintegra-se agravequele tempo fabuloso e a
pessoa torna-se consequentemente lsquocontemporacircnearsquo de certo modo dos eventos
evocados compartilha da presenccedila dos Deuses ou dos Heroacuteis Numa foacutermula sumaacuteria
poderiacuteamos dizer que ao ldquoviverrdquo os mitos sai-se do tempo profano cronoloacutegico
ingressando num tempo qualitativamente diferente um tempo lsquosagradorsquo ao mesmo
tempo primordial e indefinidamente recuperaacutevel (ELIADE 2011 p21)
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Carlos Alberto Doacuteria faz uma relevante reflexatildeo sobre a receita culinaacuteria contemplando a
perspectiva desde sua origem ateacute o modo como eacute vista atualmente
Considerando as diferenccedilas tecnoloacutegicas as receitas satildeo sempre prescriccedilotildees sobre o
modo de proceder na cozinha assim como as receitas farmacecircuticas satildeo prescriccedilotildees a
respeito de como os farmacecircuticos devem proceder em seus laboratoacuterios Do ponto de
vista geral ao apontar a unidade receita-cozinha e o modo de lsquoaviamentorsquo estamos
considerando que essa unidade estaacute incrustrada nas demais instituiccedilotildees como a religiatildeo
a famiacutelia o Natal etc (DOacuteRIA 2009 p141)
A receita culinaacuteria eacute entatildeo parte do ritual que envolve as vivecircncias alimentares seja
cozinhar ou comer aleacutem disso essa constitui um relevante material como documento para a
memoacuteria de um local e de uma eacutepoca pois traz em seu vocabulaacuterio e nas accedilotildees que determina
elementos de identificaccedilatildeo que permitem caracterizar sua origem e periacuteodo de vigecircncia A receita
porta consigo a memoacuteria coletiva do contexto de que se origina bem como a memoacuteria
individual de quem a escreve em seu caderno de cozinha e a de quem reconhece nos livros de
receitas pratos que jaacute experimentou
Doacuteria aponta a respeito da memoacuteria implicada nesse tipo de material um aspecto
interessante sobre o papel da memoacuteria contida nos livros culinaacuterios O autor fala a respeito de um
renomado chef internacional Paul Bocuse que eacute contraacuterio agrave praacutetica de receitas lsquoagrave riscarsquo tendo
escrito um livro assim Doacuteria aponta que o chef faz uma ressalva em sua obra orientando ao
leitor que natildeo leve seu conteuacutedo demasiadamente a seacuterio e que ouccedila uma lsquoforccedila desconhecidarsquo
como a inspiraccedilatildeo o que ldquo[] garantiraacute melhores resultados praacuteticosrdquo (DOacuteRIA 2009 p144)
Consideramos por fim que Bocuse tambeacutem estaacute a nos dizer que as suas receitas satildeo
apenas e modestamente o seu modo de fazer aquele prato ou seja elas contecircm a
memoacuteria do seu trabalho como estilo e valor testemunhal e- tambeacutem de modo a
determinar- o livro eacute seu meio de propagaccedilatildeo Visto assim o livro de receitas eacute um
registro de memoacuteria do trabalho que possam ter alguma utilidade para os leitores []
(DOacuteRIA 2009 p144)
Aleacutem dessa referecircncia a Bocuse Doacuteria aponta criticamente a funccedilatildeo da receita para os
que a seguem ldquoEntatildeo se pararmos um minuto para pensar veremos que a receita dentro da
cozinha tem o status de um texto sagrado que nos reduz agrave condiccedilatildeo de seus exagetas
independentemente do grau de preparaccedilatildeo que tenhamos nessa singular teologia alimentarrdquo
(DOacuteRIA 2009 p142) Esse respeito ao texto sagrado eacute de certa forma o cumprimento da
memoacuteria coletiva transmitida atraveacutes dos documentos escritos denominados receitas ao longo do
tempo nessa transmissatildeo ocorrem transformaccedilotildees na forma de execuccedilatildeo dos alimentos
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conforme as modificaccedilotildees culturais de cada eacutepoca ou seja cada periacuteodo e lugar tem seu modo de
interpretar e de realizar as receitas culinaacuterias de acordo com os produtos oferecidos e com as
teacutecnicas vigentes Doacuteria menciona
Por isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculos e as modificaccedilotildees que
introduzimos nas receitas satildeo apenas formas do patildeo continuar existindo mediante as
transformaccedilotildees das receitas Por isso quando seguimos agrave risca uma receita de patildeo natildeo
queremos fazer o patildeo mas uma versatildeo do patildeo que uma tradiccedilatildeo qualquer elaborou
(DOacuteRIA 2009 p147)
Tecidas as consideraccedilotildees a respeito do fazer culinaacuterio consolidado pela memoacuteria coletiva
vale refletir sobre o modo como ele eacute vivenciado atraveacutes da memoacuteria individual Ao contar sobre
a chimia de uvas de sua avoacute apontamos que assistir a seu modo de praticaacute-la foi para a autora o
percurso para aprender a fazecirc-la O lsquocomo-se-fazrsquo guarda as lembranccedilas oriundas da praacutetica
vivenciada pelo ofiacutecio dos cinco sentidos e pelo assistir aos gestos do corpo como os giros lentos
da colher de pau feitos pela avoacute E por tantas outras avoacutes matildees e tias
Assim a memoacuteria coletiva de uma receita culinaacuteria a chimia de uvas Isabel na maneira
como era repetida por muitas pessoas de uma eacutepoca tornou-se tambeacutem memoacuteria individual
Passou a ser parte da identidade da autora do blog pois representa um ponto de identificaccedilatildeo com
sua avoacute pela recordaccedilatildeo marcante de assisti-la fazendo esse doce por isso decidiu fazecirc-lo tempos
depois de seu falecimento seguindo as lembranccedilas do seu fazer A memoacuteria a respeito dos doces
produzidos por ela eacute tatildeo significativa que estaacute registrada em uma crocircnica especiacutefica no jaacute citado
Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e Doccediluras lsquoAs deliacutecias nos vidros de cafeacutersquo a qual
reproduzimos abaixo
Na casa de praia da Voacute Leacuteia e do Vocirc Heacutelio havia milhares de encantos espalhados mas
a cozinha era meu favorito A mesa retangular generosa e lsquoconvidadeirarsquo contava um
universo de histoacuterias de faacutebulas e de sabores mas o que dava uma graccedila especial ao
conjunto era o armaacuterio proacuteximo agrave porta para a varanda Em suas estantes na parte
superior enfeites e guloseimas ali moravam os potes de rapadura de leite
constantemente abastecidos pela voacute Na parte inferior duas portas abriam um territoacuterio
uacutenico respirante Ali vidros de cafeacute daqueles grandes com tampas vermelhas
guardavam geleias chimias e compotas que ela fazia durante o veraneio
Deixaacutevamos para depois a ideia de pedir as receitas tiacutenhamos o propoacutesito de ficar ao
lado quando o panelatildeo estava no fogo tomando nota do lsquocomo-se-fazrsquo mas sem muita
obstinaccedilatildeo Afinal de contas a Voacute estava ali e era a uacutenica que sabia o tim-tim por tim-
tim do ponto das cores dos cheiros que seus feitos adquiriam a cada etapa Entatildeo
tiacutenhamos a fantasia de que ela estaria para sempre renovando as deliacutecias nos vidros de
cafeacute com alquimias de aboacutebora de laranja de uva [] nossa imaginaccedilatildeo percorria
lonjuras no tempo acreditando que seu fazer dos doces seria perene Agora refletindo
sobre por que natildeo peguei nenhuma de suas receitas por que natildeo anotava cada detalhe
41
ocorre-me que esta era uma forma de garantir que ela permaneceria no ofiacutecio que eu
poderia eternamente aprender com ela a fazer suas reliacutequias
Hoje soacute o moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhas conhece o segredo daquelas
inquilinas (CARDOSO 2012 p62)
No texto lecirc-se lsquoo moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhasrsquo mas esse moacutevel eacute a
proacutepria memoacuteria guardando lembranccedilas representadas como lsquoo segredo daquelas inquilinasrsquo A
memoacuteria individual conteacutem segredos pontos que com o passar do tempo natildeo satildeo contados de
acordo com a realidade vivida mas apenas com aquela lembranccedila que permanece atraveacutes das
imagens e de sentimentos muito do que foi percebido nos escapa deixando as cenas como se as
viacutessemos atraveacutes de um vidro embaccedilado Esses satildeo os lsquosegredosrsquo que as portinhas do moacutevel da
cozinha silenciam
Nesse aspecto retomamos a consideraccedilatildeo de Eugegravene Minkowski sobre a memoacuteria
quando esse autor menciona que ldquo[] a lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a
tonalidade emotiva com que este foi percebidordquo (MINKOWSKI 2004 p143) Entende-se assim
que a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos recordaremos dela
no futuro porque eacute assim que a conhecemos
Esses registros existem na memoacuteria e assim constituem parte da consciecircncia do
indiviacuteduo sobre si mesmo Satildeo lembranccedilas que colaboram com a construccedilatildeo da identidade da
autora do texto Chimia da uva Isabel memoacuterias e receita pois ligam-na agrave identificaccedilatildeo com a
avoacute e seu legado culinaacuterio Tal aspecto corrobora o que apresentamos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica
do presente capiacutetulo
As memoacuterias individuais vinculadas agrave cozinha tecircm outro elemento a ser destacado nos
cadernos de receitas muitas vezes haacute referecircncia no tiacutetulo das mesmas a quem fazia tal prato ou
tal doce como especialidade identificando a receita a seu lsquodonorsquo como exemplo cito a lsquotorta de
palmito da Dona Mimi Mororsquo e a lsquopizza de sardinha da Voacute Leiarsquo Satildeo sabores associados agraves
lembranccedilas que temos das proacuteprias cozinheiras como se o saborear e o lembrar de quem
produzia o alimento fossem recordaccedilotildees acopladas
Os tiacutetulos das receitas fazem-nos evocar essas personagens da histoacuteria pessoal Os nomes
presentes no caderno identificam figuras de relevo na vida de quem o guarda assim esse faz
tambeacutem o papel de um aacutelbum de recordaccedilotildees Destacamos nas paacuteginas do livro Pequeno
alfarraacutebio de acepipes e doccediluras que o lsquobolo de melado da Anildarsquo natildeo eacute uma receita qualquer
de bolo de melado mas aquela da qual a autora tem determinada lembranccedila perpetuada pelo
42
colorido afetivo lembra-se do momento em que saboreou a receita pela primeira vez da Anilda
sua autora da cozinha em que o bolo era feito e ateacute mesmo do aroma que deixava na casa apoacutes
sair do forno A receita pode tornar-se entatildeo a narrativa das experiecircncias e das pessoas que
fazem parte delas atraveacutes da memoacuteria que nos permite acessar
Muitos livros de temas culinaacuterios satildeo memorialiacutesticos em acircmbito nacional e
internacional Esse elemento confirma a relaccedilatildeo da cozinha com o sujeito que comete nela seus
atos culinaacuterios mais iacutentimos esta constituiraacute o espaccedilo de memoacuteria de quem teve ali ou em outras
cozinhas de sua vida vivecircncias a serem contadas A outras pessoas ou a si mesmo como faz
Antocircnio ao rememorar sua histoacuteria familiar e pessoal enquanto prepara o arroz para o almoccedilo de
famiacutelia
Na seccedilatildeo seguinte apresentamos a anaacutelise da primeira obra do corpus dessa Dissertaccedilatildeo
de Mestrado O arroz de Palma a fim de propor a relaccedilatildeo entre a cozinha e o fenocircmeno da
memoacuteria a partir dos fragmentos escolhidos
14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA
A obra de Francisco Azevedo O arroz de Palma segue a cronologia da lembranccedila a
narrativa dos acontecimentos de sua histoacuteria pessoal e familiar eacute feita atraveacutes da costura de
tempos costura essa em que o fio que une os tecidos eacute a memoacuteria O protagonista Antonio
narrador-personagem tem oitenta e oito anos e estaacute na cozinha da fazenda de sua infacircncia
preparando um almoccedilo para reunir toda a famiacutelia O prato a ser servido O arroz ofertado por sua
tia Palma aos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana na ocasiatildeo do casamento
Os gratildeos jogados aos noivos na igreja satildeo colhidos da pedra por Palma para a oferta do
presente Esses gratildeos atravessam o oceano de Portugal ao Brasil para onde o casal e Palma vecircm
apoacutes dificuldades financeiras no paiacutes de origem e atravessam tambeacutem as geraccedilotildees O arroz
fertilizaraacute a famiacutelia e suas histoacuterias Eacute para celebrar o aniversaacuterio de 100 anos do casamento dos
pais e do arroz presenteado pela tia que Antonio prepara o almoccedilo com o que ainda haacute do
presente para ser compartilhado com os familiares
A narrativa eacute contada por ele enquanto prepara o prato sob a forma de lembranccedilas do que
viveu e do que ouviu da Tia Palma nas longas conversas que tinham desde seus tempos de
crianccedila O protagonista vai alinhavando essas recordaccedilotildees narrando-as como forma de
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estabelecer uma linha de tempo desde o recebimento do arroz pelos pais ateacute o almoccedilo que
cozinha para a famiacutelia com o mesmo arroz cem anos depois Em alguns pontos da histoacuteria
parece tecer uma interlocuccedilatildeo com o leitor mas o elo entre a memoacuteria e os pensamentos eacute feita
de si para si
Pode-se dividir os trechos escolhidos para a presente anaacutelise em trecircs tempos o que
Antonio narra a partir da atualidade o que ouviu de Tia Palma e o que vivenciou Na primeira
condiccedilatildeo estaacute no presente nas duas outras no passado
Quando evoca as lembranccedilas vive-as com tamanha intensidade que sua narrativa traz
eventos antigos como se fossem atuais e refere-se a si mesmo do seguinte modo ldquoE eu menino
enrugado aqui nesta cozinha ainda viajo presente colorido do indicativordquo (AZEVEDO 2008
p17) O termo lsquomenino enrugadorsquo expressa a ligaccedilatildeo entre os tempos do presente e da memoacuteria
enquanto o lsquocoloridorsquo evoca a forccedila com que as lembranccedilas se manifestam trazendo ao presente
tonalidade marcante
Em toda a narrativa o uso das metaacuteforas culinaacuterias para a representaccedilatildeo de vivecircncias de
percepccedilotildees de sentimentos e de lembranccedilas eacute o elemento principal A cozinha eacute assim a forma
constante de expressatildeo do protagonista aleacutem de ser o espaccedilo fiacutesico onde o romance se
desenvolve pois eacute neste lugar que ele estaacute enquanto tece recordaccedilotildees
No primeiro capiacutetulo do livro Antonio fala durante o preparo do almoccedilo que serviraacute para
a famiacutelia entatildeo na atualidade Lembra-se lsquoTia Palma me ensinou a cozinhar eu era jovemrsquo
ilustrando as reflexotildees feitas na subdivisatildeo anterior sobre a relevacircncia da cozinha das avoacutes e das
tias para a memoacuteria individual pois essas satildeo figuras de referecircncia para a construccedilatildeo da memoacuteria
e por conseguinte da consciecircncia de si Diz Antonio
Eu aqui na fazenda Eu aqui na cozinha quatro e pouco da manhatilde Isabel ainda dorme o
sol ainda demora Eu aqui um velho de 88 anos Para os mais novos o Avocirc Eterno o
que natildeo teve comeccedilo nem teraacute fim o que jaacute veio ao mundo com essa cara enrugada Eu
aqui de avental branco picando o tempero verde Preparo o almoccedilo de famiacutelia Terei
forccedilas 88 dois infinitos verticais Eacute boa idade seraacute uma bela festa Tenho praacutetica Tia
Palma me ensinou a cozinhar eu era jovem (AZEVEDO 2008 p9)
Antonio provoca lsquoAs autoridades querem minhas digitais Elas estatildeo na massa do patildeorsquo o
que conduz a dois aspectos jaacute discutidos o papel da memoacuteria individual na identidade papel que
estaacute impregnado na massa do patildeo ou seja no ato culinaacuterio o outro elemento eacute aquele referido
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por Doacuteria quando menciona lsquoPor isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculosrsquo
expressando a feitura do patildeo como resultado da memoacuteria coletiva e da realizaccedilatildeo de rituais
Eacute na cozinha que eu desembesto e solto os bichos Eacute na cozinha que eu viajo sem
passaporte sem bilhete sem revista em aeroportos As autoridades querem minhas
digitais Elas estatildeo na massa do patildeo Querem minha foto Tenho vaacuterias de frente e de
lado com meus pais e irmatildeos e com os que vieram depois Retratos falados- em voz alta
a famiacutelia toda ao mesmo tempo Destrambelhada famiacutelia Sagrada famiacutelia []
(AZEVEDO 2008 p11)
Ainda nesse capiacutetulo ressaltamos um elemento caracteriacutestico da obra as expressotildees da
cozinha que constituem metaacuteforas agrave composiccedilatildeo das famiacutelias A frase emblemaacutetica empregada
pelo personagem lsquofamiacutelia eacute prato difiacutecil de prepararrsquo apresenta as reflexotildees de Antonio sobre
diferenccedilas e peculiaridades entre familiares Todas as alusotildees agraves divergecircncias entre eles satildeo feitas
tendo como eixo a linguagem usada na culinaacuteria Salientamos um aspecto a aproximaccedilatildeo entre
os termos culinaacuterios e as relaccedilotildees familiares representando cozinha e famiacutelia como estruturas
com pontos de convergecircncia
Preciso me concentrar Eacute essencial Por quecirc Ora que pergunta Famiacutelia eacute prato difiacutecil
de preparar satildeo muitos ingredientes Reunir todos eacute um problema- principalmente no
Natal e Ano-Novo Pouco importa a qualidade da panela fazer uma famiacutelia exige
coragem devoccedilatildeo e paciecircncia Natildeo eacute para qualquer um Os truques os segredos o
imprevisiacutevel Agraves vezes daacute ateacute vontade de desistir Preferimos o desconforto do estocircmago
vazio Preferimos o desconforto do estocircmago vazio Vecircm a preguiccedila a conhecida falta
de imaginaccedilatildeo sobre o que se vai comer e aquele fastio Mas a vida- azeitona verde no
palito- sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite O tempo potildee a mesa
determina o nuacutemero de cadeiras e os lugares Suacutebito feito milagre a famiacutelia estaacute
servida (AZEVEDO 2008 p12)
Durante o preparo do arroz mistura lembranccedilas e devaneios seguindo a comparaccedilatildeo
entre pratos culinaacuterios e famiacutelias
Reuacutena essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida Natildeo haacute pressa Eu
espero Jaacute estatildeo aiacute Todas Oacutetimo Agora ponha o avental pegue a taacutebua a faca mais
afiada e tome alguns cuidados Logo logo vocecirc tambeacutem estaraacute cheirando a alho e a
cebola Natildeo se envergonhe se chorar Famiacutelia eacute prato que emociona E a gente chora
mesmo De alegria de raiva ou de tristeza (AZEVEDO 2008 p12)
Entre ponderaccedilotildees e aconselhamentos Antonio fala de si mesmo ao leitor apresentando
sua visatildeo sobre si como um lsquovelho jaacute meio caducorsquo e lsquoum veterano cozinheirorsquo A alternacircncia
entre recordaccedilotildees do passado ideias do presente e diaacutelogo com o interlocutor eacute um dos elementos
que marca a narrativa
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Enfim receita de famiacutelia natildeo se copia se inventa A gente vai aprendendo aos poucos
improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia A gente cata um registro ali de
algueacutem que sabe e conta e outro aqui que ficou no pedaccedilo de papel Muita coisa se
perde na lembranccedila Principalmente na cabeccedila de um velho jaacute meio caduco como eu O
que este veterano cozinheiro pode dizer eacute que por mais sem graccedila por pior que seja o
paladar famiacutelia eacute prato que vocecirc tem que experimentar e comer Se puder saborear
saboreie Natildeo ligue para etiquetas Passe o patildeo naquele molhinho que ficou na
porcelana na louccedila no alumiacutenio ou no barro Aproveite ao maacuteximo Famiacutelia eacute prato que
quando se acaba nunca mais se repete (AZEVEDO 2008 p14)
Essa mistura de periacuteodos entre passado contado passado vivido e presente eacute marcada
pela referecircncia sobre o ingresso do arroz na histoacuteria da famiacutelia pelas matildeos de Tia Palma Os
tempos misturam-se ora mostrando Antonio em sua cozinha na atualidade ora Joseacute Custoacutedio
Maria Romana e Tia Palma em cenas vividas por eles
Quando Antonio se refere a um evento passado usando um verbo no presente pode-se
compreender que atraveacutes da memoacuteria ingressou em outro tempo de si mesmo ou de sua famiacutelia
A mistura entre lembranccedila e atualidade marca muitos dos relatos pois o limiar entre passado e
presente para o protagonista jaacute eacute impreciso assim como as experiecircncias que viveu e aquelas que
ouviu de Palma
Tia Palma era enfaacutetica ao descrever a cena o arroz que desabou sobre os noivos aacute saiacuteda
da igreja foi torrencial Eram punhados e mais punhados Chuva branca que natildeo parava
Nunca se viu tanta fartura em votos de felicidade (AZEVEDO 2008 p15)
-E tu dizes que Palma eacute que eacute a mal-educada
-Basta assunto encerrado Daacute-se o arroz para algueacutem Palma natildeo precisa saber
-O arroz eacute presente O arroz fica
-Pois estaacute bem Guarda esse maldito presente Com o tempo ele haacute de mofar se encher
de bichos e teraacutes que jogaacute-lo fora
-Ouve bem meu querido Joseacute Custoacutedio este arroz eacute amor e puro amor Natildeo haacute de se
estragar (AZEVEDO 2008 p21)
O protagonista recorda-se das vivecircncias com Tia Palma na cadeira em que essa lhe
contava as histoacuterias sobre o arroz e tantas outras Ouvir Palma era vivido por Antonio como se
assistisse a uma peccedila de teatro
A expressatildeo no rosto natildeo daacute a menor pista A histoacuteria de hoje seraacute triste Que vozes
faraacute Que cenaacuterio me apresentaraacute ao levantar as cortinas A sala de jantar Uma ruela de
Viana do Castelo Seraacute dia SeraacuteTia Palma pigarreia faz pequena pausa comeccedila com
gravidade
Primeiro ato Tarde da noite ela garante O coto de vela colado no tampo da mesa mal
ilumina os rostos Mamatildee e papai apenas alguns meses de casados natildeo tecircm o que
comer Nada nem vegetal nem fruta nem gratildeo nada Em voz baixa respeitosa mamatildee
sugere o arroz A resposta que recebe eacute a fuacuteria o murro na mesa e a gargalhada que
parece pranto
-O arroz de Palma
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Outra sonora gargalhada e laacutegrimas Papai parece fora de si
-O arroz de Palma nunca Castigo maldiccedilatildeo que seja Morro de fome mas aquele arroz
varrido do chatildeo nunca
-O arroz de Palma eacute abenccediloado Arroz plantado na terra caiacutedo do ceacuteu colhido da pedra
(AZEVEDO 2008 p26)
Tia Palma sempre contara a Antonio sobre o papel do arroz para sua histoacuteria familiar
fazendo do sobrinho o herdeiro de suas memoacuterias e do conhecimento a respeito da relevacircncia do
ingrediente para a continuidade da famiacutelia
-A fertilidade de vocecircs estaacute no arroz A benccedilatildeo que haacute onze anos ele recusou
-Eu jurei ao Joseacute que o arroz ficava mas natildeo seria comido Foi o combinado
-Pois eu natildeo jurei nada a ele
Mamatildee acha graccedila meio espantada meio com medo
-Palma Como vais fazer
-Primeiro ponho uma dose cavalar de purgante na comida dele que eacute pra desentupiacute-lo
por traacutes Depois trago-lhe uma comida bem levezinha para que ele se recupereUma
canjinha especial bem magrinha como ele gosta Uma xiacutecara de arroz eacute o quanto basta
-Uma canjinha especial
O trato estaacute feito Os risos e o demorado do abraccedilo selam a cumplicidade (AZEVEDO
2008 p38)
Antonio lembra-se da cena em que quando crianccedila assegurou agrave Tia Palma que gostava
de arroz ingrediente crucial na conduccedilatildeo da narrativa Mostrava assim apreciar as histoacuterias
sobre o arroz contadas por ela e sabia desde entatildeo que esse era um elemento decisivo em sua
famiacutelia
E a cadeira jaacute eacute palco e se estamos assim abraccedilados eacute porque eu tambeacutem estou em cena e
agora a fala eacute minha Eacute a minha estreia Inesperada e tatildeo esperada estreia
-Natildeo fique preocupada Eu gosto de arroz De qualquer jeito grudado ou solto eu gosto
Com toda a verdade possiacutevel encerro a minha parte
-Ateacute puro sem feijatildeo sem nada eu gosto juro (AZEVEDO 2008 p28)
Cabe salientar o papel que esse elemento exerce na histoacuteria De acordo com Maria Eunice
Moreira no ensaio lsquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmarsquo ldquo[] o arroz tem
funccedilatildeo especial na formaccedilatildeo do clatilde como o objeto maacutegico que acompanha a trajetoacuteria da
famiacuteliardquo (MOREIRA 2014 p162) Aleacutem de ser o ingrediente que vem de Portugal e atravessa
as geraccedilotildees eacute presente de matrimocircnio de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana e posteriormente de
Antocircnio e Isabel Eacute o fator que fertiliza o primeiro casal e que reuacutene o segundo no almoccedilo entre
as famiacutelias quando Antonio e Isabel comeccedilam sua aproximaccedilatildeo
Esse almoccedilo comeccedila a partir de uma carta de Antonio ao pai em que anuncia de forma
quase imperceptiacutevel o interesse por Isabel e ao final conta que estaacute levando ingredientes
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especiais na sua viagem agrave fazenda ldquoPS Estou levando boas postas de bacalhau azeite vinho
verde e outras tantas gulodices vindas de Portugalrdquo (AZEVEDO 2008 p85) Tia Palma como
sempre com a percepccedilatildeo aguccedilada aos movimentos dos familiares tem a ideia de aproveitar a
ocasiatildeo para convidar a famiacutelia de Isabel a um almoccedilo de confraternizaccedilatildeo
-Vocecircs natildeo fazem anos de casados no dia da chegada de Antonio Entatildeo Preparamos
um almoccedilo e convidamos o senhor Avelino dona Maria Celeste e Isabel que eacute quem
nos interessa
-Palma os Alves Machado nunca se sentaram conosco agrave mesma mesa Natildeo sei Sinto-me
um pouco constrangida Ainda mais aqui em nossa casa tatildeo modesta Satildeo muito bons e
generosos mas satildeo nossos patrotildees O mundo deles eacute laacute em cima na sede
-O Joseacute Custoacutedio e o senhor Avelino natildeo satildeo tatildeo amigos Entatildeo Qual eacute o problema
Acho inclusive que jaacute deveriacuteamos tecirc-los chamado haacute mais tempo Jaacute ouvi por diversas
vezes dona Maria Celeste dizer que o marido gosta do nosso Joseacute como a um irmatildeo
(AZEVEDO 2008 p87)
Tia Palma e Maria Romana comeccedilam assim a combinar o almoccedilo que ocorre com
sucesso Primeiro passo eacute o de abrir o saco de arroz o que as surpreende pelo estado saudaacutevel dos
gratildeos Sendo Isabel a filha dos donos da fazenda e Antonio o filho do funcionaacuterio de confianccedila
haacute um constrangimento inicial que se desfaz com a partilha da refeiccedilatildeo entre as famiacutelias O arroz
une Portugal e Brasil paiacuteses das duas famiacutelias atraveacutes de ingredientes portugueses e tempero
brasileiro mais uma vez estando representada a cozinha como metaacutefora
Essa ocasiatildeo cujo propoacutesito eacute aproximar famiacutelias e reduzir diferenccedilas representa a
comemoraccedilatildeo de aniversaacuterio de casamento de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana bem como a visita
de Antonio agrave fazenda entatildeo morando no Rio de Janeiro Paul Ricoeur qualifica a comemoraccedilatildeo
dentro da caracteriacutestica mundanidade em par com reflexividade Esta mundanidade estaacute
associada agrave realizaccedilatildeo de rituais conforme jaacute visto Antonio alterna a lembranccedila sobre o relato de
Palma a respeito da combinaccedilatildeo entre ela e sua matildee com sua proacutepria recordaccedilatildeo sobre o almoccedilo
-Perfeito Veja Palma pegue
-Ceacuteus Quase 40 anos e ainda saudaacutevel
Mamatildee beija as matildeos de tia Palma
-Amor verdadeiro natildeo se estraga Eacute para sempre
-Trecircs quilos eacute o quanto basta Daraacute um belo arroz de bacalhau
-Eacute impossiacutevel que Antonio e Isabel natildeo se resolvam
O almoccedilo eacute um sucesso Os Alves Machado chegam um pouco cerimoniosos mas logo
com tantos comes e bebes somos a mesma famiacutelia (AZEVEDO 2008 p88)
O papel do arroz na histoacuteria seraacute tambeacutem o de testemunhar a uniatildeo fiacutesica de Antonio e
Isabel agrave beira do lago antes do casamento
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-Eu sou o dono do arroz que tambeacutem eacute seu dona Isabel
-DonaPor acaso estamos casados
Sim estamos casados O Deus do azul sabe que estamos O lago menor sabe que
estamos O sangue e o arroz sabem que estamos (AZEVEDO 2008 p105)
Outra ocasiatildeo em que o arroz assume papel de ritual eacute quando o casal ganha de Joseacute
Custoacutedio Maria Romana e Palma o presente com nova dedicatoacuteria atualizada revisitando a
primeira feita por Palma Seraacute portanto o herdeiro do arroz ofertado pela Tia Palma a seus pais
junto a Isabel jaacute que o casal ganha o arroz como presente por seu matrimocircnio
Quero distacircncia de religiotildees mas respeito rituais Influecircncia de tia Palma admito Meu
cafeacute da manhatilde eacute sagrado O ritual eacute sempre o mesmo a hora a xiacutecara o pocircr o leite
primeiro o escurececirc-lo depois no ponto certo o abrir o patildeo o tirar o miolo
(AZEVEDO 2008 p127)
Individual ou coletivo o ritual eacute conexatildeo e cumplicidade [] Concluo que haacute sempre
algo de autoritaacuterio nos rituais Mas neles natildeo haveraacute tambeacutem algo que emociona Natildeo
haveraacute algo de belo e poeacutetico (AZEVEDO 2008 p127)
O arroz e todo o simbolismo que envolve na formaccedilatildeo dessa famiacutelia seraacute transmitido a
Antonio e Isabel em ocasiatildeo formal como desejam seus pais e Tia Palma
E o arroz Eacute o arroz Tia Palma quer que a entrega dessa vez ganhe algum ritual
Mamatildee e papai concordam Natildeo satildeo apenas os oito quilos que contam O presente de
casamento tem agora o peso da histoacuteria Portanto natildeo seraacute dado de modo informal
como aconteceu em Viana do Castelo (AZEVEDO 2008 p128)
O ritual de transmissatildeo do arroz eacute celebrado com a dedicatoacuteria atualizada e assinada por
seus pais e por Tia Palma eacute ela que faz a cerimocircnia de entrega ao sobrinho e agrave Isabel repetindo o
gesto feito na oferta do presente a Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu matrimocircnio
-Isabel e Antocircnio meus queridos este arroz que haacute quase 40 anos foi dado como
presente de casamento agrave minha cunhada Maria Romana e ao meu irmatildeo Joseacute Custoacutedio
por nossa vontade agora vos pertence Fazemos votos de que a tradiccedilatildeo continue e de
que todo o amor aqui contido chegue agraves geraccedilotildees futuras
Mamatildee potildee os oacuteculos lecirc a dedicatoacuteria atualizada
lsquoEste arroz-plantado na terra caiacutedo do ceacuteu como o manaacute do deserto e colhido da pedra- eacute
siacutembolo da fertilidade e do eterno amor Essa eacute a nossa benccedilatildeo
Palma Maria Romana e Joseacute Custoacutedio
Fazenda Santo Antocircnio da Uniatildeo em 13 de junho de 1946rsquo
Protegido pelo pano branco o arroz passa agraves nossas matildeos (AZEVEDO 2008 p130-
131)
Ainda no que concerne ao papel do ingrediente como elemento com atributo de ritual estaacute
a cena em que Antonio lecirc a receita em seu caderno do arroz de lentilhas de Tia Palma escrita
por ela com recomendaccedilotildees O aspecto a ser ressaltado nesse ponto estaacute principalmente na
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forma de apresentaccedilatildeo da receita que indica a importacircncia de recitar os trechos durante a feitura
do prato
Antonio meu querido lava bem as lentilhas em aacutegua corrente enquanto recitas
lsquotrepadeira trepadeirabeijo-te as folhas penadas e as flores violaacuteceas trepadeira
trepadeiranatildeo estou ao fundoestou ao frescoestou agrave beiraeacutes fortuna eacutes sauacutede eacutes
companheiratrepadeira trepadeira eacutes amor amigo eacutes paixatildeo verdadeirarsquo
Feito isso respira fundo trecircs vezes e solte o ar pela boca Deixa teu corpo sentir o
benefiacutecio Potildee as lentilhas em tacho com bastante aacutegua jaacute temperada de sal Leva ao
lume alto ateacute ferver Ao ferver abaixa o lume e deixa cozinhar ateacute que as lentilhas
estejam macias
Escorre a aacutegua da fervura E enquanto ela se vai diz com voz de certeza lsquoaacutegua
fervidaaacutegua de sal e de vidaaacutegua boa que seguetoma teu rumofertilizarsquo
(AZEVEDO 2008 p146-147)
A recomendaccedilatildeo de que faccedila as recitaccedilotildees ao cozinhar o prato traz a reflexatildeo sobre o
exposto por Mircea Eliade sobre a relevacircncia de recitar os mitos exposta anteriormente ldquo[]
recitando ou celebrando o mito da origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela atmosfera
sagradardquo (ELIADE 2011 p21) Haacute outra referecircncia a esse autor que merece ser salientada
pensando-se nos trechos a serem recitados como os cantos a que Eliade se refere ldquoA
recapitulaccedilatildeo atraveacutes dos cantos e da danccedila eacute simultaneamente uma rememoraccedilatildeo e uma
reatualizaccedilatildeo ritual dos eventos miacuteticos essenciais ocorridos desde a Criaccedilatildeordquo (ELIADE 2011
p27)
Laura Esquivel escreve no ensaio intitulado lsquoEl manaacute sagradorsquo em seu livro de ensaios
Iacutentimas suculencias-Tratado filosoacutefico de cocina sua perspectiva sobre a relaccedilatildeo entre a comida
e os rituais corroborando a importacircncia da cozinha como espaccedilo simboacutelico
Talvez natildeo haja muita diferenccedila entre falar de comida e falar de religiotildees Quase em
todas elas umas e outras se faz presente a divindade atraveacutes dos alimentos De fato natildeo
podemos negar que um rito obrigado de quase toda religiatildeo eacute o momento de comer e de
beber a deidade ou para a deidade O sentido profundo da alimentaccedilatildeo em alguma
medida tem a ver com nossa sede de eternidade cifrada na manutenccedilatildeo cotidiana da vida
Talvez por isso todos os deuses tenham deixado sua presenccedila contida nos alimentos
Nesse sentido nos alimentamos para viver e por viver O desfrute da comida tem
lampejos de vida eterna Mas natildeo soacute eacute fundamental o ato em si de comer tambeacutem o eacute a
cerimocircnia que implica preparar e compartilhar os alimentos A cerimocircnia ritual que se
realiza em torno da mesa eacute um ato de profunda e antiga significaccedilatildeo religiosa
(ESQUIVEL 2014 p77)
Entretanto natildeo apenas de comemoraccedilotildees eacute constituiacuteda a funccedilatildeo do arroz na narrativa
Algumas circunstacircncias satildeo provocadas pela representaccedilatildeo desse ingrediente na histoacuteria como as
diferenccedilas entre o protagonista e seus irmatildeos a tentativa de seus filhos Nuno e Rosaacuterio
50
mexerem no gratildeo derrubando-o na vitrine do restaurante e o deflagrar das emoccedilotildees da cunhada
em relaccedilatildeo a Antonio quando esta rouba uma porccedilatildeo do arroz para ter um pedaccedilo de Antonio
consigo
-Senti forte ciuacuteme de Isabel Inveja raiva tudo E ainda por cima era obrigada a
esconder o que sentia Quando vocecirc fez a vitrine iluminada no restaurante soacute pra expor o
arroz passei a acreditar que seria possiacutevel ter ao menos um punhadinho daquela
felicidade
-Vocecirc ainda tem ele
-Natildeo
-Natildeo
-Fiz do meu jeito Preparei ele na aacutegua e sal e comi Antes pedi a Deus que me desse um
pouco de vocecirc tambeacutem Nem que fosse por um dia
Amaacutelia torna a recostar a cabeccedila no meu peito Nada mais eacute dito Ou se eacute dito natildeo deixa
registro Acho que cochilamos Levantamo-nos da cama com o desprendimento de um
encontro rotineiro (AZEVEDO 2008 p217)
Entre rememoraccedilotildees e devaneios Antonio entrelaccedila retalhos do passado agrave sua percepccedilatildeo
sobre o presente a finitude as lembranccedilas recentes que se confundem o fluxo de consciecircncia
Reflete sobre o que faz ali na cozinha preparando o almoccedilo familiar e ao mesmo tempo
reconstroacutei lembranccedilas antigas que compuseram sua atualidade
Se me perguntarem natildeo sei dizer o que comi ontem no almoccedilo Mas sou capaz de
reproduzir diaacutelogos inteiros da minha juventude quando esta fazenda ainda era do
senhor Avelino e eu ainda morava na casa laacute de baixo com tia Palma meus pais e meus
irmatildeos Gozado isso Vaacute entender Memoacuterias antigas Niacutetidas perfeitas cheias de
miacutenimos detalhes cheiros e sons ateacute Inclusive as experiecircncias ancestrais que natildeo vivi
as histoacuterias laacute de Portugal que me foram contadas todas aqui dentro de cor e salteado
Fatos recentes Coitados Vatildeo se segurando em mim como podem (AZEVEDO 2008
p143)
A constataccedilatildeo de seus 88 anos daacute ao protagonista a consciecircncia de sua condiccedilatildeo de idoso
aceitando as falhas de lembranccedila mas natildeo aquelas em sua capacidade como cozinheiro
experiente
Natildeo quero vocecirc metida aqui dentro da cozinha Por favor Isabel Natildeo eacute nada disso Eacute
porque vocecirc fica zanzando para laacute e para caacute Potildee a matildeo prova daacute palpite Me atrapalha
Fico doido natildeo quero Nem vocecirc nem ningueacutem Deixa que eu dou conta do recado
Tantos anos agrave frente laacute do restaurante chefe com vaacuterios precircmios natildeo basta Eacute preciso
mais Idoso coisa nenhuma Dispenso o eufemismo bobo Sou velho isso sim Eu sei
natildeo precisa dizer A vista natildeo ajuda muito nem as pernas nem os reflexos Mas espera
aiacute gagaacute ainda natildeo estou Tenho forccedila nas matildeos Acho que ainda posso mexer uma
panela Quatro panelotildees concordo Fica tranquila que natildeo vou me queimar Nem a
comida (AZEVEDO 2008 p144-145)
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A capacidade de Antonio com a cozinha comeccedilou com os aprendizados que teve com sua
tia na juventude e consolidou-se com a praacutetica Tal aquisiccedilatildeo lembra o referido sobre o par
memoacuteriahaacutebito na fenomenologia da memoacuteria proposta por Paul Ricoeur A capacidade
representa o elemento haacutebito pois eacute primordialmente construiacuteda a partir da atividade rotineira de
um atributo Talvez por isso na narrativa Antonio aceite as falhas de memoacuteria inerentes ao
envelhecimento mas natildeo a ideia de diminuiccedilatildeo daquilo que eacute seu por meacuterito por conquista com
esforccedilo dedicaccedilatildeo e sobretudo repeticcedilatildeo Antonio recorda-se de quando partiu para encontrar
trabalho na capital certo de que seguiria a atividade de cozinheiro
-O que eacute que significa isso agora Pra quecirc essa mala Antonio -Calma calma que eu natildeo vou pra guerra -Eu sabia Estaacutes indo embora por causa dessa moccedila Isabel E eacute tudo culpa da Palma
-Tenho 21 anos meu pai Sei muito bem o que faccedilo A vida do campo natildeo eacute para mim
Vou para a capital Farei amigos laacute E amigas
-Mas assim tatildeo de repente
-Trabalharei em restaurante conhecerei pessoas influentes ficarei conhecido e serei
proacutespero
-Para quecirc tanto entusiasmo Para lavar pratos Servir mesa
-Tambeacutem Mas natildeo eacute soacute isso Quero cozinhar Quem sabe um dia consigo abrir meu
proacuteprio negoacutecio
Papai se irrita
-Como cozinhar De onde tiraste essa ideia maluca (AZEVEDO 2008 p67)
O aprendizado com a tia eacute representativo da memoacuteria coletiva que se perpetua em um
grupo neste caso o familiar para a manutenccedilatildeo de um saber entre seus membros Essa memoacuteria
coletiva na histoacuteria eacute expressa pelo cozinhar como um conhecimento transmitido mas
principalmente pela histoacuteria que envolve o arroz nessa famiacutelia A narrativa dessa histoacuteria ao
longo das geraccedilotildees constitui tambeacutem a representaccedilatildeo dessa espeacutecie de memoacuteria na famiacutelia de
Antonio
Para aleacutem do que aprendeu com Tia Palma houve o que a praacutetica lhe ensinou
trabalhando em restaurantes ateacute que pudesse montar o proacuteprio negoacutecio Lembra-se de cenas do
percurso que seguiu ldquoO mar de mesas eacute convite agrave aventura Sigo Na copa e na cozinha o
barulho de louccedilas e talheres eacute intempeacuterie A vozearia eacute a marujada a postos que me recebe Esta eacute
a minha gente natildeo tenho duacutevidas Este eacute o meu barco e []rdquo (AZEVEDO 2008 p79)
Antonio tem em Palma seu referencial chamando por ela quando se vecirc em desafios
evocando lembranccedilas dos seus ensinamentos
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Transpiro o nervoso que vem de dentro Tia Palma por favor me ajuda lsquoO que o corpo
potildee para fora nos purificarsquo Saacutebia Tia Palma natildeo me falta nunca A cenoura e a batata jaacute
cortadas os tomates em rodelas e sem as sementes a cebola picada bem miudinha todos
nas respectivas vasilhas Mais alguma coisa Isso e aquilo Pronto acabei Natildeo me
canso Ao fim do expediente ainda haacute focirclego e entusiasmo de sobra Reluto em desfazer
o laccedilo do avental Jaacute (AZEVEDO 2008 p80)
Uma das cenas da obra que ilustra o entrelaccedilamento entre a memoacuteria individual e a
coletiva eacute no enterro dos pais de Isabel quando Antonio canta uma canccedilatildeo tradicional
portuguesa pensando fazecirc-lo em voz baixa como forma de homenagem Enquanto canta suas
memoacuterias tocam-lhe a ponto de natildeo perceber que o faz em voz alta E aqui estaacute o referido
entrelaccedilamento as demais pessoas presentes no enterro tambeacutem se emocionam e cantam em
coro Presentes ali estatildeo as proacuteprias lembranccedilas e aquelas de suas famiacutelias
Numa casa portuguesa fica bem
patildeo e vinho sobre a mesa
Quando agrave porta humildemente bate algueacutem
Senta-se agrave mesa coacutea gente
Fica bem essa fraqueza fica bem
que o povo nunca a desmente
A alegria da pobreza
estaacute nesta grande riqueza
de dar e ficar contente
(AZEVEDO 2008 p193)
Antonio segue a cantoria da muacutesica que pensa estar cantando para si Entatildeo percebe ter
cantado em voz alta e a emoccedilatildeo que causou Letra e muacutesica satildeo parte de sua memoacuteria individual
pela origem da famiacutelia e da memoacuteria coletiva dos presentes ao enterro que cantam com ele a
tradiccedilatildeo
Em algum momento tenho a impressatildeo de que algumas pessoas me acompanham e que
ao final todos ali cantamos juntos emocionados lsquoUma casa portuguesarsquo Volto ao enterro
com aplausos Reflexo condicionado eu mesmo bato palmas Isabel aos prantos me
beija agradecida pela homenagem inesperada Olho ao redor todos choram
copiosamente Natildeo eacute possiacutevel Seraacute que em vez de falar alto comigo mesmo cantei
alto Soacute pode ser (AZEVEDO 2008 p194)
Na volta do enterro o papel da comida em nutrir e acalentar eacute referido atraveacutes da
expressatildeo empregada por Antonio lsquopedimos a ela que nos aqueccedila algo para pocircr no estocircmagorsquo
como segue no trecho abaixo ldquoQuando chegamos em casa Nuno e Rosaacuterio jaacute estatildeo dormindo
Conceiccedilatildeo garante que ficaram quietinhos natildeo deram trabalho algum Pedimos a ela que nos
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aqueccedila algo para pocircr no estocircmago Ela diz que fez uma sopinha de legumes e jaacute nos chamardquo
(AZEVEDO 2008 p194)
O protagonista segue a narrativa evocando lembranccedilas reconstruindo impressotildees
reconhecendo a si mesmo atraveacutes da costura de retalhos da memoacuteria Estaacute em sua cozinha mas
viaja para muitos periacuteodos de sua vida visita a si mesmo em muitas eacutepocas lembra dos pais da
tia dos sogros dos irmatildeos dos filhos ateacute o momento atual Entatildeo na cozinha da fazenda aos 88
anos prepara com esmero os gratildeos de memoacuteria restantes em cozimento nas panelas Antonio
aguarda o encontro do passado com o presente no almoccedilo de famiacutelia Quando esse acontece
todos nas mesas entusiasmo e lembranccedila espalham-se na famiacutelia
Benccedilatildeo vivermos o bastante para poder dividi-lo assim irmatildemente sem conta de
padeiro nem laacutepis engatilhado atraacutes da orelha Olha soacute a cara da Leonor e a do Nicolau e
a do Joaquim Velhos bobos Nem sonhavam que ainda iam provar do arroz de Tia
Palma E agora choram desse jeito Natildeo eacute cebola nada que eu sei Eacute muita lembranccedila e
sonho tudo misturado agrave moda da casa Fiz de propoacutesito para pegar vocecircs de surpresa E
para a Amaacutelia - me pergunto- que gosto teraacute esse segundo arroz Qual o sabor de um
arroz assim permitido e compartilhado A garotada pode achar que somos velhos gagaacutes
e que essa histoacuteria eacute pura invencionice Impossiacutevel um arroz durar tanto a ciecircncia isto a
ciecircncia aquilo Eu natildeo ligo a miacutenima Vocecircs ligam Entatildeo oacutetimo Vamos comer agrave
vontade que haacute arroz para todos Joaquim meu irmatildeo me passa o azeite (AZEVEDO
2008 p352)
No trecho seguinte ao perguntar-se lsquoquantas vezes maisrsquo o protagonista expotildee sua
percepccedilatildeo quanto agrave finitude o tempo que ainda teraacute para novas cenas como aquela ldquoNoacutes
adultos continuamos em volta das mesas agraves voltas com as lembranccedilas Porque nos apetecem
repetimos o doce repetimos o vinho repetimos as histoacuterias Quantas vezes maisrdquo (AZEVEDO
2008 p356)
Ao longo da narrativa Antonio evoca histoacuterias lembranccedilas que lhe surgem
espontaneamente acionadas por outras por devaneios e por emoccedilotildees De acordo com Maria
Eunice Moreira em seu ensaio
A memoacuteria de Antonio organiza a configuraccedilatildeo caoacutetica da accedilatildeo externa dando um
sentido ao amontoado de fatos e episoacutedios jaacute vividos Nessa seleccedilatildeo privilegia natildeo a
memoacuteria anotada e escrita em cadernos ou diaacuterios mas aquela mais viva mais seletiva e
mais afetiva (MOREIRA 2014 p169)
No referido ensaio o fragmento acima corresponde agrave reflexatildeo de Antonio sobre a forma
como suas lembranccedilas lhe aparecem
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A memoacuteria que vai para o diaacuterio fica toda arrumadinha linear dia mecircs e ano Agraves vezes
horas e ateacute minutos constam do registro Mas quando velho a gente vai e consulta o
caderno se espanta com o montatildeo de coisa que jaacute nem faz sentido e estaria apagado natildeo
fosse a tinta A memoacuteria puxada da cabeccedila natildeo Eacute esforccedilo de selecionar soacute o que presta
o que nos eacute querido Natildeo eacute discurso ensaiado e lido Eacute fala de improviso com todos os
erros e tropeccedilos que a ousadia pode causar (AZEVEDO 2008 p248)
O que Antonio estaacute referindo eacute o conjunto de suas lembranccedilas na despensa da memoacuteria
aquelas que o identificam por constituiacuterem etapas de sua vida atraveacutes delas se reconhece
assume a consciecircncia de si Mesmo com o embaralhamento entre lembranccedilas e devaneios o
protagonista faz um balanccedilo de sua existecircncia enquanto prepara o almoccedilo familiar Estaacute na
cozinha porque esta eacute seu refuacutegio seu lugar no mundo Prepara o arroz para compartilhaacute-lo
assim como sua Tia Palma partilhava com ele suas histoacuterias sentada na quarta cadeira Os
trechos a seguir representam com nitidez o papel da comida agrave mesa para Antonio Mais uma vez
estatildeo presentes as lembranccedilas de tempos vividos e o arroz no prato como na frase lsquoo arroz tem
que vir sempre na frentersquo
A descriccedilatildeo de comidas caseiras do esmero de Conceiccedilatildeo ao arrumar a mesa da atitude
de Isabel em servi-lo todos satildeo elementos construiacutedos ao longo do tempo e tecircm como raiz as
experiecircncias familiares transformadas em memoacuteria O lsquocheiro gostoso da comidinha caseirarsquo eacute o
elemento sensorial que o acolhe na atmosfera de casa e simultaneamente o leva a viajar em suas
lembranccedilas O lsquoalmoccedilo de famiacutelia cotidianorsquo eacute o elemento que conduz o protagonista a cenas
semelhantes no passado como quando seus filhos eram crianccedilas Refeiccedilatildeo para Antonio eacute a
famiacutelia na mesa Assim a comida e a famiacutelia mais uma vez estatildeo vinculadas para ele como
sinocircnimos De recordaccedilatildeo de aconchego de partilha do gosto e do cheiro bom
Conceiccedilatildeo chega e anuncia que o almoccedilo estaacute indo para a mesa Graccedilas a Deus Meu
estocircmago jaacute estaacute roncando Puxo Rosaacuterio do sofaacute
-Vamos
E vamos todos levados pelo cheiro gostoso da comidinha caseira Ao nos sentarmos agrave
mesa impossiacutevel natildeo reparar no costumeiro apuro O caimento da toalha Os pratos os
copos os talheres afastados na medida certa Os guardanapos bem dobrados agrave esquerda
A cesta de patildees posta com arte Natildeo eacute almoccedilo para visitas Eacute almoccedilo de famiacutelia
cotidiano- esmero da Conceiccedilatildeo que ama tudo o que faz Laacute vem ela de novo da
cozinha pousa do meu lado a terrina do feijatildeo fumegando me daacute aquele sorriso de
missatildeo bem cumprida
-Botei bastante paio Ontem o senhor ficou revirando a concha dizendo que dava
precircmio para quem encontrasse um (AZEVEDO 2008 p311)
A cena pode ser compreendida sob a perspectiva de Laura Esquivel no ensaio jaacute referido
quando a autora exprime sua visatildeo sobre a comida e a partilha da mesa
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E ainda que natildeo sejamos religiosos creio que para nenhum de noacutes seraacute estranho pensar
que atraveacutes dos aromas que compartilhamos com nossos semelhantes dos sabores dos
alimentos e da substancial presenccedila da divindade neles os seres humanos podemos ter
dia apoacutes dia uma pequena antecipaccedilatildeo do paraiacuteso (ESQUIVEL 2014 p78)
A ideia de Esquivel sobre a lsquoantecipaccedilatildeo do paraiacutesorsquo coincide com o sentimento de
Antonio sobre a cozinha Para o protagonista essa representa a casa o sabor a famiacutelia Simboliza
o que Gaston Bachelard refere na frase ldquoPode-se demonstrar as primitividades imaginaacuterias
mesmo a respeito desse ser soacutelido na memoacuteria que eacute a casa natalrdquo (BACHELARD 2012 p47)
Pode-se complementar essa frase com outra ideia do autor ldquo[] a casa natal eacute uma casa
habitadardquo (BACHELARD 2012 p33) Ao estar na cozinha ou na sala de jantar ao estar sentado
agrave mesa a emoccedilatildeo eacute a de estar em casa naquela que primeiro conheceu como casa a fazenda A
casa natal eacute e sempre seraacute habitada pelas lembranccedilas Esse espaccedilo corresponde a um lugar de
memoacuteria conforme referido por Ricoeur A casa natal eacute um ser soacutelido na memoacuteria porque ela
conteacutem as primeiras vivecircncias afetos impressotildees Eacute ali que a vida comeccedila que se enraiacuteza dali
vecircm as lsquoprimitividades imaginaacuteriasrsquo e as lembranccedilas que tornaratildeo o sujeito em quem ele eacute pela
consciecircncia de si que a memoacuteria propicia
Minha mulher eacute paciente entende como funciono Ela pega meu prato e vai me
servindo um pouco disto um pouco daquilo mas antes de tudo o arroz- indispensaacutevel-
e o feijatildeo por cima Eu sei que natildeo eacute o certo Mas eacute assim que eu gosto o feijatildeo por
cima nunca do lado Se puser o feijatildeo primeiro e depois o montinho do arroz tambeacutem
implico O arroz tem que vir sempre na frente depois o feijatildeo molhando aiacute sim eacute
perfeito Sempre ensinei bons modos aos meus filhos mas nunca os proibi de misturar a
comida toda no prato de uma vez Se eu misturo como proibir Ai se fizeacutessemos isso na
frente de Isabel Bom nem pensar Em dias de ensopadinho de vagem com carninha
moiacuteda ou de chuchu com camaratildeo era verdadeiro supliacutecio Nuno e eu sofriacuteamos
horrores Queriacuteamos porque queriacuteamos misturar tudo de uma vez com o arroz Natildeo
podiacuteamos Era proibido por lei Isabel natildeo transigia Tiacutenhamos que ir misturando aos
pouquinhos puxando com o garfo e aiacute levar agrave boca Depois voltar misturar mais um
pouquinho puxando com o garfo e tornar a levar agrave boca Um sacrifiacutecio Depois de
nossos filhos adultos a lei do proibido misturar foi abolida E cada um liberado para
comer do seu jeitinho informal
Jaacute servido espeto o paio deliacutecia e retomo a conversa (AZEVEDO 2008 p314)
Chega a hora de Antonio apoacutes revisitar histoacuterias vividas e contadas pela memoacuteria Na
cozinha representaccedilatildeo de sua casa natal ele falece ldquoSempre acompanhamos com olhos de
saudade o balatildeo que sobe ceacuteu afora e se mistura no azul Acontece com todos Depois satildeo soacute
histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras Famiacutelia eacute prato que quando se acaba nunca
mais se repeterdquo (AZEVEDO 2008 p361)
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Histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras elementos que aludem agraves lembranccedilas
Mais uma vez a cozinha eacute representada ao falar-se em memoacuteria atraveacutes das lsquoreceitas caseirasrsquo
Essas satildeo registros de quem habitou os campos de forno-e-fogatildeo e deixou por escrito o como-
se-faz O seu
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2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE
A sacola de crochecirc da voacute era perturbadora da ordem ali de dentro ela tirava varenikes
beigales mondales knishes strudels um perfume que ia nos buscar no mais remoto
quarto da casa pratos fundos de louccedila branca e pesada transbordantes de fartura Noacutes
nos reuniacuteamos em torno da mesa em torno da voacute em torno dos pratos - em torno da
comida que ela tratava como uma cerimocircnia de milagre E ela abria os braccedilos para nos
acarinhar a todos e nos beijava com os laacutebios finos o haacutelito de menta e pronunciava
palavras boas palavras de quem traz alviacutessaras feliz como quem pode dar o seio a um
bebecirc minhas crianccedilas a voacute trouxe comida pra vocecircs (MOSCOVICH 2006 p93-94)
Prazer eacute sentimento do corpo Bem-estar e gozo que se quer repetir Puro deleite acorda
os sentidos Onda repentina epifania de cores aromas gostos texturas sons Nasce sem aviso
deixa marcas faz pulsar em ritmo de quero-mais Nasce do encontro amoroso do saborear de um
prato e de tantas outras vivecircncias Estaacute na taccedila do vinho escuro e aveludado na mordida do mil-
folhas ao mesmo tempo crocante e macio O prazer desperta como se fosse dia novo entusiasma
provoca ecoa em cada parte nossa Comida eacute coisa prazerosa toca a vida sensorial alegra ceacutelulas
e anima A cozinha espaccedilo fiacutesico e territoacuterio afetivo evoca gostos desejos lembranccedilas prazer
O preparo das receitas o deleite dos pratos a partilha da mesa as conversas amenas durante a
refeiccedilatildeo todos inerentes ao universo culinaacuterio E depois vem a culpa a roupa que aperta o
regime por ordens meacutedicas Culpa e prazer inimigos entrelaccedilados
21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE
Por que sou gorda mamatildee eacute o romance escrito por Ciacutentia Moscovich em 2006 e
publicado pela Editora Record com uma narradora em primeira pessoa de quem o leitor natildeo
sabe o nome ao longo da obra Ela passa a limpo as histoacuterias de famiacutelia de origem judaica e a
sua proacutepria histoacuteria em uma carta para sua matildee Dessa o leitor tambeacutem natildeo sabe o nome da
primeira agrave uacuteltima paacutegina
O conflito central apresenta a dificuldade da narradora-personagem com seu aumento de
peso vinte e dois quilos em quatro anos e o sofrimento em face da necessidade de fazer dieta
Natildeo se trata apenas das privaccedilotildees de ter de fazer dieta Trata-se da dor emocional por precisar
fazer dieta de novo A repeticcedilatildeo de situaccedilotildees em que o engorde esteve presente em sua vida
ligado ao papel do comer em sua famiacutelia faz com que acuse sua matildee muitas vezes pela situaccedilatildeo
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a que chegou Por essa oferecer comida demais Natildeo Por oferecer afeto de menos Ao contraacuterio
da matildee a Voacute Magra sua avoacute materna eacute muito carinhosa com ela e seus irmatildeos e aleacutem disso
sempre aparece com a sacola de crocheacute plena de doces da cozinha judaica O papel da avoacute parece
ser o de suprir as faltas da matildee e as supre em excesso no que tange ao reforccedilo da gula
A narrativa pode ser a expressatildeo de uma catarse atraveacutes da escrita uma decisatildeo
confessional da narradora ou sua atitude ora acusatoacuteria ora carente na direccedilatildeo de sua matildee Em
uma mistura de cada uma dessas formas o livro traz o entrelaccedilamento das memoacuterias das
emoccedilotildees e das etapas objetivas em sua jornada de emagrecimento como narra a protagonista no
proacutelogo ao expor para sua matildee que a escrita seraacute dirigida a ela
Tenho medo mas estou prestes a pocircr um ponto final e a aticcedilar a pluma das lembranccedilas
Luta contra o gelo do tempo O proacutelogo em seus estertores depois comeccedila
Mamatildee me endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar
esse territoacuterio metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora
Quero voltar a ter um corpo
Haacute um livro a ser escrito e nele os fatos seratildeo fruto da prestidigitaccedilatildeo ainda que
imperfeita Respostas possiacuteveis ilusatildeo para secar as maacutegoas e o corpo O proacutelogo
termina Depois jaacute iniciou Comeccedilo num ponto de intrerrogaccedilatildeo
Por que sou gorda mamatildee (MOSCOVICH 2006 p19)
A narrativa eacute contada em vinte e cinco capiacutetulos duzentas e cinquenta e uma paacuteginas
vinte e dois quilos O primeiro capiacutetulo apresenta em primeira pessoa um entrelaccedilamento
essencial ao conflito da personagem a histoacuteria da origem de sua famiacutelia na Europa passando
fome em vilarejos judeus a histoacuteria de sua Voacute Magra com o prazer da comida e sua proacutepria
histoacuteria de infacircncia com os irmatildeos na hora das refeiccedilotildees
Segue-se ainda nesse capiacutetulo um desabafo com uma lista de aspectos pejorativos do
sujeito gordo Satildeo frases que costumamos ouvir com grande frequecircncia sobre os indiviacuteduos com
excesso de peso e que eles mesmos muitas vezes referem em tom entre o mea culpa e a auto
ironia Esse eacute o tom usado pela narradora falando em sua voz o que atribui ao olhar alheio
Depois de apontar os defeitos dos gordos conta do comeccedilo de seu sacrifiacutecio com as restriccedilotildees
alimentares
Em seguida o escaacuternio daacute lugar agrave lembranccedila da morte de seu pai as consequecircncias que
tal perda teve na famiacutelia e sobretudo na relaccedilatildeo de sua matildee com os filhos Eacute o comeccedilo da voz
acusatoacuteria da narradora trazendo agrave tona fatos e sofrimentos na relaccedilatildeo familiar Aparece a
ausecircncia da matildee no cumprir de sua funccedilatildeo afetiva Seguem-se capiacutetulos de apresentaccedilatildeo da Voacute
Gorda do lado paterno da Voacute Magra e de sua histoacuteria frustrada de amor por um violinista russo
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do avocirc do pai dos irmatildeos de si mesma em vaacuterios tempos da vida e da balanccedila Presente e
passado alternam-se disputando espaccedilo nas paacuteginas porque para a personagem em sua carta agrave
matildee o passado eacute parte do peso em quilos de seu presente
Enquanto passa a limpo sua histoacuteria e suas maacutegoas a narradora vai contando vitoacuterias e
deslizes na dieta dores pela restriccedilatildeo alimentar e alegrias por conseguir emagrecer lentamente A
histoacuteria familiar evolui o momento em que o excesso de peso na infacircncia tornou-se foco de
preocupaccedilatildeo e de imposiccedilatildeo da dieta por parte do pai aparece como fato de destaque A
narradora em zigue-zague transita entre os periacuteodos de vida para encontrar respostas ora em
conversas dirigidas agrave matildee ora em diaacutelogos com seu proacuteprio mundo interno A escrita para a matildee
eacute em essecircncia um passar a limpo para si mesma a proacutepria histoacuteria de seu corpo Gula prazer
afeto e ausecircncia dores e perdas inclusive de maacutegoas e de peso eis o transcorrer da histoacuteria
narrada Esses elementos satildeo o fio condutor da narrativa das primeiras paacuteginas ateacute a evoluccedilatildeo ao
epiacutelogo Parte desse reproduzo abaixo
Mamatildee natildeo preciso perdoaacute-la por nada Natildeo me incomodo mais pela porccedilatildeo presente de
sua lavra e todo o esforccedilo de natildeo mais me incomodar foi por amor que eacute minha cura
Mais cinco quilos a bordo de uma bicicleta cor-de-rosa seratildeo perdidos Recuso-me a
remexer ainda mais no passado Natildeo se angustie mamatildee Noacutes duas sabemos que natildeo
vale a pena-falta que a senhora serenize seus dias e deixe tambeacutem de remexer o passado
Depois que eu colocar o ponto final por favor mamatildee natildeo deixe de recompor sua
alegria seu desejo e sua piedade A senhora perdoaraacute a vida E eu terei esquecido que
cheguei ateacute aqui apesar da senhora
[hellip] (MOSCOVICH 2006 p250)
Destaca-se sobretudo a verossimilhanccedila interna da obra Entre o proacutelogo e o epiacutelogo haacute
muitas histoacuterias contadas em uma soacute compondo uma linha de tempo na cronologia do calendaacuterio
e outra dentro da personagem Afinal de contas o tempo interno tem um ritmo proacuteprio que
obedece acima de tudo agraves leis da memoacuteria
A narradora-personagem consegue compreender suas interrogaccedilotildees ao entremear passado
e presente histoacuteria familiar e individual A narrativa multifacetada natildeo sai dos trilhos e eacute possiacutevel
acompanhar o diaacutelogo da personagem consigo mesma atraveacutes da carta para sua matildee A
descoberta dos elementos alusivos agrave presenccedila e agrave falta de prazer alimentar que permeiam a obra
conduzem ao primeiro aspecto do presente capiacutetulo o que eacute o prazer afinal
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22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL
Para o psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers o prazer no campo da Fenomenologia
Psiquiaacutetrica pode ser compreendido como a realizaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees
orgacircnicas Para o referido autor o prazer consiste no equiliacutebrio psiacutequico na satisfaccedilatildeo e no bem-
estar Jaacute conforme os autores do artigo Psicopatologia do Prazer Lorenzo Pelizza e Franco
Benazzi o prazer pode ser considerado um fenocircmeno psiacutequico de muacuteltiplas facetas Em termos
geneacutericos esse eacute um forte sentimento que corresponde agrave percepccedilatildeo de uma condiccedilatildeo positiva
fiacutesica ou mental proveniente do organismo
As pesquisas que abordam o prazer satildeo recentes Apenas haacute algumas deacutecadas a ciecircncia
passou a contribuir para evidenciar os efeitos beneacuteficos desse fenocircmeno tanto no sentido proacute-
ativo (como fator que favorece o bem-estar psico-fiacutesico do indiviacuteduo e que promove o processo
de cura da doenccedila) quanto no protetor (como elemento fundamental que fornece ao sujeito os
recursos necessaacuterios para afrontar e superar as experiecircncias negativas e para prevenir o risco de
adoecer) (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
Do ponto de vista do estudo do prazer como elemento saudaacutevel destacamos seu papel
como fator de importante valor motivacional sob o enfoque das teorias evolucionistas
Reduzindo ao maacuteximo a explicaccedilatildeo seria possiacutevel entender seu papel da seguinte forma como
espeacutecie sentimos prazer na alimentaccedilatildeo e na relaccedilatildeo sexual para que mediante esta sensaccedilatildeo
tenhamos estiacutemulo para nutrirmo-nos e procriarmos A gratificaccedilatildeo do ceacuterebro que ocorre
atraveacutes da experiecircncia prazerosa motiva o indiviacuteduo a repetir os comportamentos que a tornam
viaacutevel como o comer Forma-se assim um ciclo no qual a comida promove prazer e este motiva
a procuraacute-la pela resposta cerebral gerando novamente o prazer e assim ocorre a manutenccedilatildeo do
comportamento com sucessivas repeticcedilotildees A propoacutesito desse ciclo os referidos autores
esclarecem
O mecanismo operante de reforccedilorecompensa age em sentido evolucionista para
conduzir os comportamentos adotados na direccedilatildeo de escopos adaptativos que sejam uacuteteis
para garantir a sobrevivecircncia do indiviacuteduo (por exemplo busca de comida ou de aacutegua)
eou a conservaccedilatildeo da espeacutecie (condutas reprodutivas) Para que atinja a eficaacutecia o
estiacutemulo de reforccedilo deve ser capaz de ativar as instacircncias psiacutequicas do prazer e o sistema
neurobioloacutegico de gratificaccedilatildeo cerebral (circuitos dopaminergicos mesoliacutembicos) sendo
deste modo vivido como experiecircncia prazerosa satisfatoacuteria e assumindo assim um
importante valor motivacional (PELIZZA BENAZZI 2008 p298-299)
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Tal explicaccedilatildeo evolucionista eacute relevante para a compreensatildeo do prazer alimentar Como
espeacutecie devemos sentir prazer ao comer com o propoacutesito de termos estiacutemulo para mantermos a
constacircncia de uma alimentaccedilatildeo regular O prazer eacute o elemento que torna possiacutevel esta constacircncia
O socioacutelogo e escritor brasileiro Carlos Alberto Doacuteria acrescenta um dado relevante nesse
sentido ao mencionar o autor de A fisiologia do gosto Jean Anthelme Brillat-Savarin que
publicou a obra em 1825 relevante na literatura gastronocircmica Nessa ao referir-se aos cinco
sentidos Brillat-Savarin acrescenta o sentido geneacutesico sobre o qual Doacuteria reflete em seu livro A
culinaacuteria materialista
Este uacuteltimo eacute o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro
sendo a sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecie Este sentido diz ele foi ignorado ateacute o
seacuteculo XVIII sendo anexado ao (ou confundido com o) tato Ora a reproduccedilatildeo da
espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo
a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo ao sexo e ao comer eacute o prazer a
busca do agradaacutevel e este eacute o sentido muito especial que ele pretende indicar como
responsaacutevel pela gastronomia (DOacuteRIA 2009 p190 grifo do autor)
Assim a relaccedilatildeo de prazer do indiviacuteduo com a comida eacute tambeacutem de acordo com Brillat-
Savarin uma estrateacutegia de sobrevivecircncia da espeacutecie assim como o sexo A sensaccedilatildeo prazerosa
ligada ao alimento refere-se principalmente agrave percepccedilatildeo deste como tendo gosto agradaacutevel ou
seja ldquo[] aquilo que apraz aos sentidos mobilizados pela alimentaccedilatildeordquo (DORIA 2009 p192)
O estudo da obra de Carlos Alberto Doacuteria abre um campo de reflexatildeo relevante no que
tange ao fenocircmeno do prazer pois o autor o aborda pela perspectiva gastronocircmica referindo o
que torna um alimento prazeroso Ele menciona que de acordo com os modernos teoacutericos do
gosto ldquo[] o agradaacutevel que comemos depende do impacto favoraacutevel sobre todos os cinco
sentidosrdquo (DOacuteRIA 2009 p194)
Para explicar como um alimento se torna agradaacutevel ele comeccedila por definir o mundo
objetivo lsquoo mundo das coisas e das nossas aptidotildees fisioloacutegicas para percebecirc-lorsquo e o mundo
subjetivo lsquodos nossos valores crenccedilas e preferecircncias individuaisrsquo Entatildeo acrescenta o ponto
chave de sua reflexatildeo ldquoTomemos como hipoacutetese que o gosto se forma na relaccedilatildeo entre esses dois
mundos O gosto assim entendido eacute relacional e se refere ao que se passa em torno do ato
fisioloacutegico de comerrdquo (DOacuteRIA 2009 p194) A fim de aprofundar a ideia desta relaccedilatildeo expotildee
Ao explorar a noccedilatildeo de gosto partindo de sua dimensatildeo material isto eacute da relaccedilatildeo que
se estabelece entre o mundo e o homem por intermeacutedio do complexo aparato sensitivo
temos que entender tambeacutem que o gosto varia de indiviacuteduo para indiviacuteduo entre as
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diferentes idades de um mesmo indiviacuteduo entre as classes sociais de cultura para
cultura e de uma eacutepoca para outra na mesma cultura Sabemos tambeacutem que permanece
um misteacuterio como nasce o desejo intenso de se comer determinado alimento ou como a
monotonia de uma dieta se instaura de modo a repudiarmos o alimento apoacutes um certo
tempo Nada disso se explica por razotildees puramente fisioloacutegicas (DOacuteRIA 2009 p195)
Assim na relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o alimento agradaacutevel ao lsquocomplexo aparato
sensitivorsquo como define Doacuteria existem variaacuteveis como idade e cultura que interferem no modo
como a sensaccedilatildeo prazerosa eacute percebida Quanto ao aspecto cultural por exemplo o autor refere
O gosto partilhado por vaacuterias pessoas ndash sejam membros de uma famiacutelia de uma
comunidade de uma eacutepoca- sugere uma construccedilatildeo coletiva que natildeo se confunde com a
experiecircncia gustativa de cada um O caraacuteter afetivo da cozinha familiar eacute um modelo de
socializaccedilatildeo do gosto que todos conhecemos Ningueacutem faz determinado prato igual a
nossa matildee ou avoacute [] (DOacuteRIA 2009 p195)
Em diversas famiacutelias de uma dada geraccedilatildeo o lsquobife agrave milanesa da voacutersquo eacute emblemaacutetico em
representar a explicaccedilatildeo do autor Ao que parece o prazer reside no preparo pela avoacute mais do
que no prato em si A avoacute de cada famiacutelia seria a responsaacutevel pelo melhor bife agrave milanesa do
mundo de acordo com os respectivos netos Essa percepccedilatildeo reflete o que Doacuteria menciona como
lsquoo caraacuteter afetivo da cozinha familiarrsquo termo que coincide com o papel da Voacute Magra
personagem da obra em estudo neste capiacutetulo Outra consideraccedilatildeo relevante do autor acerca da
construccedilatildeo do universo do gosto eacute a de que este ldquo[] eacute expressatildeo da educaccedilatildeo do paladar e dos
demais sentidos conformados culturalmente para a apreciaccedilatildeo do que comemosrdquo (DOacuteRIA 2009
p196)
Deste modo eacute possiacutevel compreender que aprendemos a gostar do que eacute aceitaacutevel em
determinado contexto social e cultural entretanto temos em primeiro lugar a percepccedilatildeo
bioloacutegica atraveacutes dos cinco sentidos do que devemos levar agrave boca e daquilo que eacute necessaacuterio
evitar em termos de manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Pela aparecircncia e pelo olfato por exemplo um
alimento pode parecer prazeroso e entatildeo adequado ou repulsivo se apresentar sinais de bolor ou
de alteraccedilatildeo de suas caracteriacutesticas conhecidas A respeito dessa avaliaccedilatildeo sobre o que eacute
agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos com fins de alimentaccedilatildeo Doacuteria refere
O gosto caminha em meio a essas preferecircncias e rejeiccedilotildees ajudando a erigir barreiras
que demarcam os limites de determinada cultura ou mesmo as variaccedilotildees individuais
nessa mesma cultura Alimentos tabus natildeo devem ser tocados ou consumidos Por isso
seu sabor eacute tambeacutem repulsivo Assim as sociedades constroem um anteparo que protege
a cultura daquilo que ela considera lsquonatureza hostil (DOacuteRIA 2009 p196)
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Se de um lado o prazer eacute o elemento bioloacutegico que impulsiona o indiviacuteduo para a
preservaccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do alimento (e da espeacutecie atraveacutes da coacutepula) de outro as
escolhas que condicionam a sensaccedilatildeo prazerosa no campo alimentar ultrapassam a dimensatildeo
corpoacuterea atingindo em boa parte das vezes a esfera cultural atraveacutes da construccedilatildeo coletiva do
gosto O autor apresenta neste aspecto a seguinte reflexatildeo
Podemos imaginar o homem como uma maacutequina bioloacutegica que se relaciona
integralmente com o mundo de tal forma que todos os estiacutemulos que ele internaliza
afetam a totalidade dessa maacutequina O nosso conhecimento estaacute no tato na audiccedilatildeo na
visatildeo no olfato no paladar e tudo isso eacute processado natildeo apenas diretamente como
experiecircncia pessoal mas no acoplamento que mantemos com seres da mesma espeacutecie
(DOacuteRIA 2009 p197)
De acordo com essa exposiccedilatildeo podemos gostar daquele alimento que eacute aceitaacutevel em
nossa cultura e em nosso meio para assim continuarmos pertencendo ao grupo de que somos
parte contemplando a noccedilatildeo que o autor estabelece como o lsquoacoplamento que mantemos com
seres da mesma espeacuteciersquo Ao sentir prazer nos sentimos impelidos a comer algo porque nos
desperta a sensaccedilatildeo agradaacutevel essa experiecircncia eacute em primeiro plano instintiva quando o ldquo[]
elo entre prazerdesprazer se estabelece como base do fenocircmeno da aprendizagem e da aversatildeo a
um sabor a partir do risco que sinaliza para o organismordquo (DOacuteRIA 2009 p205)
Em segundo plano gostamos do que aprendemos que podemos gostar de acordo com a
cultura em que estamos inseridos Nesse contexto cabe ressaltar o fenocircmeno da
neuroplasticidade atraveacutes do qual o ceacuterebro se molda a partir das experiecircncias a que eacute exposto
de acordo com tal ocorrecircncia os mecanismos cerebrais aprendem a responder a determinado
estiacutemulo e criam um espaccedilo de resposta ao mesmo quanto mais vezes exposto a ele Isso pode
acontecer no aprendizado de uma competecircncia como tocar um instrumento musical falar um
idioma ou ateacute mesmo naquele de um novo paladar Aprendemos a gostar de um alimento o que
faz com que a sensaccedilatildeo agradaacutevel obtida ao comermos nos faccedila querer repetir seu consumo
Surge entatildeo a perspectiva do prazer em seu percurso do ponto de partida sauacutede para o
ponto de chegada doenccedila De acordo com Benazzi e Pelizza os mecanismos neurobioloacutegicos
responsaacuteveis pela gratificaccedilatildeo cerebral alimentam-se do prazer e quanto mais recebem mais
demandam que o organismo lhes forneccedila mais e mais sensaccedilotildees prazerosas Essa condiccedilatildeo
manifesta-se apenas em alguns indiviacuteduos cuja carga geneacutetica e aprendizagem cultural
favoreccedilam os comportamentos ditos compulsivos por exemplo Nas pessoas propensas a tal
64
expressatildeo isso ocorre sucessivamente motivo pelo qual o prazer alimentar pode ser natildeo mais um
aliado da sauacutede e da sobrevivecircncia mas sim um algoz a partir de determinado momento Esse
ponto eacute quando o comer se torna excessivo fornecendo de modo incessante e crescente a
gratificaccedilatildeo prazerosa aos mecanismos cerebrais de recompensa
Desfaz-se assim a noccedilatildeo de prazer apresentada por Jaspers anteriormente referida
Quando haacute aumento das sensaccedilotildees prazerosas para saciar a demanda dos centros cerebrais de
gratificaccedilatildeo e natildeo mais para que o prazer esteja calcado lsquono equiliacutebrio psiacutequico e no bem-estarrsquo
pode-se compreender que esse deixou de cumprir sua funccedilatildeo na sauacutede
Quando uma cultura em amplo espectro como a norte-americana aprende a sentir prazer
com a ingesta do fast-food e isso se transmite a outras culturas e ainda mais grave agraves geraccedilotildees
seguintes os problemas de sauacutede atingem dimensotildees catastroacuteficas Esse resultado jaacute eacute possiacutevel
constatar em nosso seacuteculo XXI Compreende-se assim que natildeo apenas o indiviacuteduo pode
adoecer mas a cultura tambeacutem pode adoecer Fortunadamente pensadores do campo da
alimentaccedilatildeo como Michael Pollan tecircm combatido de modo ferrenho essa tendecircncia como o faz
em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo salienta-se tambeacutem o italiano
Carlo Petrini que jaacute na deacutecada de 80 fundou a filosofia do slow food em oposiccedilatildeo ao haacutebito
determinado pelas cadeias de fast-food ao redor do mundo
Cada vez mais o slow food tem ganho espaccedilo na compreensatildeo contemporacircnea sobre o
comer com prazer com sauacutede e com lentidatildeo respeitando o tempo das refeiccedilotildees como um tempo
de interaccedilatildeo familiar e de consciecircncia do alimento que se ingere Referimos nesse sentido o
proacuteprio Pollan responsaacutevel pela defesa de que as famiacutelias voltem a comer em casa como
oportunidade de alimentaccedilatildeo saudaacutevel e de interaccedilatildeo entre os membros do grupo familiar
Entretanto as mudanccedilas causadas pela conscientizaccedilatildeo estatildeo apenas nos primeiros passos os
comportamentos alimentares insalubres ainda representam a maioria ao menos no ocidente As
patologias do prazer ocupam importante espaccedilo no campo das doenccedilas contemporacircneas em
termos psiacutequicos e em suas decorrecircncias fiacutesicas
Tanto a reduccedilatildeo quanto o aumento significativo de experiecircncias prazerosas podem levar agrave
ocorrecircncia de patologias nos acircmbitos fiacutesico e psiacutequico No artigo em estudo Psicopatologia do
prazer lecirc-se ldquoO ser humano frente agrave possibilidade de permitir-se prazeres em alguns casos
pode sentir-se impedido pela preocupaccedilatildeo pela desvalia e pela culpa relativa a eventuais
consequecircncias potencialmente danosas de suas accedilotildeesrdquo (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
65
Esses mesmos autores referem a existecircncia de uma porcentagem significativa de
indiviacuteduos capazes de experimentar sentimentos de baixa autoestima ou de culpa (leve e
transitoacuteria ou ao contraacuterio intensa e mantida) em relaccedilatildeo aos interesses e atividades que lhes
provocam prazer Tais emoccedilotildees desagradaacuteveis viriam em forma e em intensidade e representam
um relevante contraponto agrave sensaccedilatildeo prazerosa podendo inclusive inibir as experiecircncias futuras
de prazer A ausecircncia desse gera mais desvalia e culpa estresse crocircnico e sentimentos de
incapacidade impedindo com que novas vivecircncias potencialmente prazerosas aconteccedilam e assim
ocorre um ciclo com repercussotildees na sauacutede tanto em termos fiacutesicos quanto mentais Os autores
do artigo referem
[] de uma espeacutecie de estressor interno que tais indiviacuteduos transfeririam de uma
situaccedilatildeo a outra dessas circunstacircncias decorreriam entatildeo efeitos negativos sobre sua
sauacutede fiacutesica suas capacidades cognitivas (ex concentraccedilatildeo atenccedilatildeo memoacuteria) e em seu
funcionamento nos campos social e laboral cotidiano Seria possiacutevel referir que o
excesso de culpa ou desvalia determinaria uma condiccedilatildeo de estresse crocircnico capaz de
aumentar significativamente a secreccedilatildeo dos hormocircnios ligados ao estresse com
consequumlecircncias danosas agrave sauacutede fiacutesica e agrave mental (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
Ressaltamos que o contraacuterio tambeacutem ocorre Cabe refletir sobre o desejo exasperado e
absoluto de prazer levada a extremos como nas condiccedilotildees de transtornos alimentares (entre
esses a compulsatildeo alimentar) De acordo com tais autores quando ocorrer uma busca excessiva
de sensaccedilotildees prazerosas mesmo se houver a gratificaccedilatildeo desses prazeres haveraacute riscos para a
sauacutede do indiviacuteduo Nesse caso o prazer em excesso passaraacute a ser o responsaacutevel pelos
sentimentos de culpa desvalia depressatildeo ansiedade e descontrole de impulsos (PELIZZA
BENAZZI 2008)
O prazer em excesso no campo alimentar conduz muitas vezes ao aumento de peso
com prejuiacutezos agrave sauacutede Essas circunstacircncias podem acarretar uma forma de dor emocional
diretamente ligada ao prazer de comer como nos casos de indiviacuteduos que fazem dieta alimentar
por orientaccedilatildeo meacutedica Nesses a restriccedilatildeo imposta representa um importante sofrimento quando
se encontram em sobrepeso ou em condiccedilatildeo de obesidade moacuterbida A exigecircncia de restringir o
que lhes daacute prazer pode ser um motivo de transgressotildees da dieta O resultado eacute o natildeo
emagrecimento ou o engorde ainda maior A seguir vecircm a culpa a desvalia a tristeza e o
desacircnimo todos os antagonistas da sensaccedilatildeo prazerosa Para compensar as emoccedilotildees os
indiviacuteduos socorrem-se com a comida mantendo o ciacuterculo vicioso O equiliacutebrio preconizado por
Jaspers em sua perspectiva sobre o prazer natildeo eacute encontrado
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Em Por que sou gorda mamatildee o conflito da personagem com o impedimento ao prazer
alimentar estaacute presente em diversos trechos A narradora faz uma dolorosa e agraves vezes bem-
humorada recapitulaccedilatildeo de suas vivecircncias de prazer com a comida e de suas experiecircncias de
dieta de emagrecimento Satildeo narradas tambeacutem suas emoccedilotildees de desvalia e baixa autoestima por
vestir o adjetivo de gorda entretanto muito de sua insatisfaccedilatildeo estaacute no impedimento para comer
o que gosta o que lhe daacute prazer
Haacute uma visatildeo especiacutefica sobre o que eacute o prazer nos indiviacuteduos que apresentam
comportamentos anormais na procura por esta experiecircncia eles referem em diversas ocasiotildees a
percepccedilatildeo que tecircm sobre a comida na qualidade de fonte de prazer para algumas pessoas comer
eacute a uacutenica fonte de prazer possiacutevel Eacute comum referirem nas consultas meacutedicas lsquoou usufruo do
maacuteximo prazer ou natildeo sentirei nenhumrsquo ou lsquose natildeo puder comer todo o pote de sorvete natildeo
como mais nada Ou isto ou nada Me nego a fazer dietarsquo haacute ainda quem refira lsquonatildeo acredito
em dia livre dieta natildeo tem dia livre Isso eacute enganaccedilatildeo porque ningueacutem consegue voltar a comer
direito no outro diarsquo Essas frases demonstram padrotildees culturais de interpretaccedilatildeo do papel da
comida muitas vezes substitutivo de outras necessidades emocionais
Existindo maior resposta positiva aos prazeres aos quais o indiviacuteduo se dirige em
especial nas situaccedilotildees de excesso ocorreraacute ainda maior demanda por parte desses mecanismos
Como resultado surgem sintomas psiquiaacutetricos isolados ou em comorbidade decorrentes do
desequiliacutebrio gerado pela demanda excessiva Haacute ainda as decorrecircncias fiacutesicas de tal
desequiliacutebrio como a obesidade e as doenccedilas a ela associadas o diabetes a hipertensatildeo arterial e
a hipercolesterolemia entre outras Mais cedo ou mais tarde o corpo cobra sua conta dos
excessos quando se perpetuam
23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA
A fisiologia do gosto obra essencial na literatura gastronocircmica citada anteriormente foi
escrita por Jean Anthelme Brillhat-Savarin advogado e juiz francecircs (1755-1826) apaixonado
pelos prazeres da mesa O livro eacute composto por trinta capiacutetulos que o autor intitula lsquoMeditaccedilotildeesrsquo
e um uacuteltimo composto de variedades A fatia destinada agrave reflexatildeo sobre o prazer eacute a meditaccedilatildeo
14 lsquoDo prazer da mesarsquo Sobre a procura pelo prazer em termos gerais Brillat-Savarin refere
67
O homem eacute incontestavelmente dos seres sensitivos que povoam nosso globo o que
experimenta mais sofrimentos A natureza o condenou primitivamente agrave dor pela nudez
de sua pele pela forma de seus peacutes pelo instinto de guerra e destruiccedilatildeo que acompanha
a espeacutecie humana onde quer que ela se encontre
Os animais natildeo foram atingidos por essa maldiccedilatildeo e sem alguns combates causados
pelo instinto de reproduccedilatildeo a dor no estado de natureza seria completamente
desconhecida da maior parte das espeacutecies ao passo que o homem que soacute encontra o
prazer passageiramente e por meio de um pequeno nuacutemero de oacutergatildeos estaacute sempre
exposto em todas as partes do corpo a terriacuteveis sofrimentos
Essa sentenccedila do destino foi agravada em sua execuccedilatildeo por uma seacuterie de doenccedilas
nascidas dos haacutebitos do estado social de modo que o prazer mais satisfatoacuterio que se
possa imaginar seja em intensidade seja em duraccedilatildeo eacute incapaz de compensar as dores
atrozes que acompanham certos distuacuterbios [hellip] Eacute o temor praacutetico da dor que faz o
homem sem se aperceber disso lanccedilar-se com iacutempeto na direccedilatildeo oposta entregando-se
ao pequeno nuacutemero de prazeres que herdou da natureza (BRILLAT-SAVARIN 1995
p167)
Brillat-Savarin aponta que o homem se atira ao prazer para fugir das dores inerentes agrave
espeacutecie Entretanto esse eacute apenas um dos elementos de compreensatildeo do prazer alimentar pois a
sensaccedilatildeo prazerosa decorre tambeacutem de outros fatores presentes em nossa fisiologia e psiquismo
a sociabilidade por exemplo eacute um desses componentes e estaacute envolvida no que o autor
estabelece como o prazer da mesa Ele refere no capiacutetulo lsquoO prazer da mesarsquo uma reflexatildeo
importante sobre a comensalidade a refeiccedilatildeo em conjunto ldquoFoi durante as refeiccedilotildees que devem
ter nascido ou se aperfeiccediloado nossas liacutenguas seja porque era uma ocasiatildeo de reuniatildeo que se
repetia seja porque o lazer que acompanha e segue a refeiccedilatildeo dispotildee naturalmente agrave confianccedila e agrave
loquacidaderdquo (BRILLAT-SAVARIN 1995 p168)
Brillat-Savarin faz uma diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer- relacionando-o agrave satisfaccedilatildeo
da fome atraveacutes do alimento como ocorre com os animais - e o prazer da mesa exclusivo agrave
espeacutecie humana De acordo com esse autor ldquo[] o prazer de comer exige se natildeo a fome ao
menos o apetite o prazer agrave mesa na maioria das vezes independe de ambosrdquo (BRILLAT-
SAVARIN 1995 p170) Esse uacuteltimo representa assim a sociabilidade o conviacutevio agradaacutevel
com aqueles com quem se divide uma refeiccedilatildeo Ainda sobre o prazer da mesa Brillat-Savarin
explicita
[hellip] natildeo comporta arrebatamentos nem ecircxtases nem transportes mas ganha em duraccedilatildeo
o que perde em intensidade e se distingue sobretudo pelo privileacutegio particular de nos
incliner a todos os outros prazeres ou pelo menos de nos consolar por sua perda Com
efeito apoacutes uma boa refeiccedilatildeo o corpo e a alma gozam de um bem-estar especial
Fisicamente ao mesmo tempo em que o ceacuterebro se revigora a face se anima e se colore
os olhos brilham um suave calor se espalha em todos os membros Moralmente o
espiacuterito se aguccedila a imaginaccedilatildeo se aquece os ditos espirituosos nascem e circulam [hellip]
Aliaacutes com frequumlecircncia temos em volta da mesa todas as modificaccedilotildees que a extrema
sociabilidade introduziu entre noacutes o amor a amizade os negoacutecios as especulaccedilotildees o
68
poder as solicitaccedilotildees o protetorado a ambiccedilatildeo a intriga eis por que a convivialidade
tem a ver com tudo eis por que produz frutos de todos os sabores (BRILLAT-
SAVARIN 1995 p170-171)
O trecho acima transcrito expressa que os propoacutesitos para que o prazer da mesa fosse
atingido natildeo eram apenas a amizade e a intenccedilatildeo de conviacutevio entre as pessoas Eacute possiacutevel
verificar que havia tambeacutem entre os objetivos para a partilha das refeiccedilotildees o poder a ambiccedilatildeo e
outros aspectos distantes das alianccedilas de afeto A circunstacircncia do prazer da mesa criava uma
aproximaccedilatildeo maior entre os participantes de disputas poliacuteticas e administrativas favorecendo os
acordos pela ilusoacuteria sensaccedilatildeo de zelo e de alianccedila Nesse periacuteodo o prazer ainda natildeo era
percebido como finalidade e sim como instrumento para a aquisiccedilatildeo de benefiacutecios Segundo
Brillat-Savarin haacute quatro condiccedilotildees para que exista o prazer em uma refeiccedilatildeo
Chegamos portanto a tal progressatildeo alimentar que se os afazeres natildeo nos forccedilassem a
deixar a mesa ou se a necessidade do sono natildeo se interpusesse a duraccedilatildeo das refeiccedilotildees
seria praticamente indefinida e natildeo teriacuteamos nenhum dado certo para determinar o
tempo transcorrido desde o primeiro gole de madeira ateacute o ultimo copo de ponche [hellip]
Desfruta-se o prazer em quase toda sua extensatildeo toda vez que se reuacutenem as quatro
seguintes condiccedilotildees comida ao menos passaacutevel bom vinho comensais agradaacuteveis
tempo suficiente (BRILLAT-SAVARIN 1995 p172-173)
No livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo haacute explicaccedilotildees que muito se assemelham ao exposto
por Brillat-Savarin No capiacutetulo lsquoComer compromete refeiccedilotildees banquetes e festasrsquo o autor Gerd
Althoff expotildee elementos relevantes sobre o papel da refeiccedilatildeo na vida coletiva e social na Idade
Meacutedia
Durante a maior parte da Idade Meacutedia a refeiccedilatildeo e o banquete (convivium) constituiam
o mais eloquumlente siacutembolo de que se dispunha para para expresser o compromisso de
manter relaccedilotildees baseadas na paz e na concoacuterdia A palavra-chave nesse caso eacute
ldquocompromissordquo porque comer e beber junto era uma forma de obrigar-se a satisfazer as
condiccedilotildees que esse tipo de laccedilo implica [] (ALTHOFF 2015 p300)
Acordos e alianccedilas eram entatildeo estabelecidos em banquetes de longa duraccedilatildeo chamados
convivium A relaccedilatildeo de cumplicidade e de compromisso entre os indiviacuteduos estabelecida pela
existecircncia destes eventos natildeo foi por certo o iniacutecio do papel da refeiccedilatildeo partilhada como
elemento agregador entre as pessoas Haacute muitos periacuteodos da histoacuteria como exposto pelos vaacuterios
pesquisadores no livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo em que o comer junto assumiu papel essencial
na comunhatildeo dos membros de uma coletividade sendo a alegria e o prazer algumas das emoccedilotildees
presentes em vaacuterios desses periacuteodos
69
Quando Brillat-Savarin refere quatro condiccedilotildees para desfrutar-se o prazer em uma
refeiccedilatildeo uma dessas eacute que haja lsquocomensais agradaacuteveisrsquo Tal fato nos remete aos elementos da
alianccedila e da paz no conviacutevio entre aqueles que comiam juntos nos banquetes da Idade Meacutedia
mas remete principalmente ao elemento do prazer que aparece atraveacutes do termo lsquoagradaacuteveisrsquo O
prazer eacute um ingrediente necessaacuterio no estabelecimento dessa alianccedila pois propicia que os
indiviacuteduos se comprometam uns com os outros pelo bem-estar que o viacutenculo permite Tal
resultado propicia a constacircncia dessa ligaccedilatildeo importante tambeacutem do ponto de vista poliacutetico na
eacutepoca O bem-estar da refeiccedilatildeo partilhada era entatildeo um meio natildeo um fim era o recurso para a
manutenccedilatildeo da perenidade nas relaccedilotildees garantindo ldquo[] a disposiccedilatildeo de todos os participantes de
cumprirem os deveres dela decorrentesrdquo (ALTHOFF 2015 p309)
Ainda no que tange agrave ocasiatildeo do convivium ressalta-se a forma como as atividades
prazerosas eram proporcionadas com o propoacutesito de reforccedilar a ligaccedilatildeo entre os participantes
Era quase impensaacutevel passar vaacuterios dias natildeo fazendo outra coisa senatildeo comer beber e
trocar presentes mesmo que se atribua aos participantes um apetite e uma inclinaccedilatildeo
para a bebida for a do comum Isso explica que nossas fontes mencionem agraves vezes vaacuterias
atividades paralelas que se poderiam agrupar sob a denominaccedilatildeo de lsquodivertimentos
mundanosrsquo entre os quais os espetaacuteculos dados durante os convivial em que danccedilarinos
(ou danccedilarinas) muacutesicos ambulantes menestreacuteis e poetas distraiam os convivas A
sucessatildeo de pratos e bebidas interrompia-se tambeacutem para permitir aos participantes fazer
um pouco de exerciacutecio Tratava-se de jogos ou agraves vezes de animadas caccediladas
Certamente esses elementos do convivium tinham tambeacutem um valor simboacutelico Viver
algum tempo juntos em paz e partilhar certas atividades criava entre as pessoas o clima
de confianccedila necessaacuterio assegurava-se ao novo parceiro que se desejava a paz e que se
estava disposto a respeitaacute-la e firmava-se o compromisso de continuar a agir assim no
futuro (ALTHOFF 2015 p303)
Assim o prazer afirmava-se como elemento agregador de grande importacircncia na
permanecircncia de viacutenculos Entretanto a finalidade de tais viacutenculos natildeo se concentrava
propriamente no bem-estar em si entre os participantes mas nos benefiacutecios propiciados em
termos de propriedades poder administraccedilatildeo e outros fins de interesse material No convivium
o prazer era oferecido nas atividades de lsquodivertimento mundanorsquo Eacute possiacutevel compreender a
partir desse dado que o prazer da partilha no comer junto da Idade Meacutedia natildeo se aproximava do
prazer com o alimento ou a bebida per se mas com atividades paralelas de divertimento para
entreter os convivas durante os dias de banquete
O prazer entatildeo era ainda um elemento natildeo ligado ao comer pelo sabor da comida assim
como as alianccedilas eram vaacutelidas pelos benefiacutecios que alicerccedilavam natildeo por sua importacircncia para o
bem viver entre os membros de uma coletividade De acordo com Gerd Althoff as relaccedilotildees entre
70
os indiviacuteduos e os costumes como o comer e o beber junto eram de grande importacircncia para a
realidade medieval
Todas as culturas arcaicas recorriam a este meacutetodo para unir uma comunidade
Entretanto os efeitos da refeiccedilatildeo natildeo derivam dela proacutepria De fato na Idade Meacutedia a
refeiccedilatildeo o banquete e a festa serviam para exteriorizar atos administrativos rituais e
portanto convenccedilotildees que serviam para veicular um sentido bem determinado de modo
constrangedor e coercitivo (ALTHOFF 2015 p309)
No capiacutetulo de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo lsquoTempero cozinha e dieteacutetica nos seacuteculos XIV
XV e XVIrsquo haacute relevantes esclarecimentos sobre o papel do prazer no comer e sua importacircncia
para a sauacutede Um dos pontos referidos por seu autor quanto ao papel do uso dos temperos e do
cozinhar os alimentos estaacute relacionado tambeacutem ao prazer alimentar ldquoDe uma maneira geral
todo tempero e todo cozimento ou seja toda cozinha tinha uma dupla funccedilatildeo tornar os
alimentos ao mesmo tempo mais apetitosos saborosos e mais faacuteceis de digerirrdquo (FLANDRIN
2015 p482)
Deste modo falar no prazer de comer torna-se parte da perspectiva histoacuterica desse
periacuteodo quando as especiarias estatildeo no auge de seu reconhecimento Flandrin refere que os
seacuteculos XIV XV e XVI foram o aacutepice de seu papel na cozinha europeacuteia quando esses
ingredientes tinham tambeacutem valor terapecircutico Natildeo se pode referir que o prazer atraveacutes da
comida tenha iniciado nesse periacuteodo histoacuterico mas eacute possiacutevel compreender que esse periacuteodo foi o
iniacutecio do falar em prazer como aspecto favoraacutevel agrave digestatildeo Havia uma aproximaccedilatildeo entre a
gastronomia e a dieteacutetica conforme Jean-Louis Flandrin sugerida no trecho ldquoAos dietistas
interessava o gosto dos alimentos por diversas razotildees Em primeiro lugar porque se digere
melhor aquilo que se come com prazer-como acreditamos ateacute hojerdquo (FLANDRIN 2015 p486)
Compreender o prazer como elemento presente na alimentaccedilatildeo torna-o tambeacutem parte da
sauacutede e do bem-estar do ser humano Esta perspectiva remete ao estabelecido por Karl Jaspers
sobre o prazer Este fenocircmeno seria equivalente agrave satisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas
funccedilotildees orgacircnicas com resultados no equiliacutebrio psiacutequico na percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e no bem-
estar do indiviacuteduo Desse modo ao ler o historiador Jean-Louis Flandrin confirma-se o papel do
prazer na lsquosatisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees orgacircnicasrsquo na concepccedilatildeo do
psicopatologista Jaspers Flandrin conclui o capiacutetulo com a seguinte reflexatildeo
Em resumo cozinhar agravequela eacutepoca assim como hoje era dar aos alimentos os sabores
mais agradaacuteveis- mas agradaacuteveis no acircmbito de uma determinada cultura para um gosto
71
diferente do nosso porque modelado por outras crenccedilas dieteacuteticas outros haacutebitos
alimentares (FLANDRIN 2015 p495)
Falar no prazer de comer entatildeo remete a Karl Jaspers pela concepccedilatildeo meacutedica do prazer
mas tambeacutem a Brillat-Savarin em sua diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer e o prazer da mesa
Para o escritor de A fisiologia do gosto o primeiro eacute de ordem bioloacutegica a meu ver menos ligado
agrave sensaccedilatildeo prazerosa ligada ao sabor e mais associada ao mero saciar da fome o segundo
exclusivo da espeacutecie humana eacute vinculado agrave experiecircncia de conviacutevio agradaacutevel com os comensais
na partilha de uma refeiccedilatildeo
A abordagem da dualidade entre gastronomia e dieteacutetica apontada por Jean-Louis
Flandrin eacute semelhante agravequela da dualidade apontada por Brillat-Savarin o prazer de comer e o
prazer da mesa Talvez essas divisotildees tivessem o propoacutesito de partir o indiviacuteduo em duas
metades a do corpo e a da mente A metade que se satisfaz com o saciar da fome seria entatildeo
diferente da que se apraz da companhia dos amigos agrave mesa A metade que preparava as receitas
pela gastronomia em fins da Idade Meacutedia seria diversa da que seguia as ordens da dieteacutetica
Nesse sentido a visatildeo de Jaspers sobre o prazer eacute a mais completa pois integra a satisfaccedilatildeo
harmocircnica e ordenada das funccedilotildees orgacircnicas ao equiliacutebrio psiacutequico agrave percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e
ao bem-estar do indiviacuteduo
Considerando o prazer alimentar entatildeo como elemento que envolve o corpo e a mente
do saciar agrave fome ao satisfazer o prazer gustativo e social surgem dois novos termos a gula e o
bom gosto
Os seacuteculos XVII e XVIII trouxeram mudanccedilas na relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com o prazer do
gosto Enquanto na Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVII a alimentaccedilatildeo das elites aproximava-
se muito de perto das prescriccedilotildees dos meacutedicos o que se seguiu a partir de entatildeo foi o apagamento
das referecircncias agrave antiga dieteacutetica dando lugar entre cozinheiros e gastrocircnomos agrave harmonia dos
sabores como prioridade Ficou relegado a segundo plano o aspecto de que ldquo[] os sabores eram
ateacute entatildeo ligados tanto a eles como aos meacutedicos sabiamente classificados do mais frio ao mais
quente eles constiuiacuteam uma indicaccedilatildeo segura da natureza dos alimentos e sua digestibilidaderdquo
(FLANDRIN MONTANARI 2015 p548) Um resultado interessante da separaccedilatildeo progressiva
entre cozinha e dieteacutetica foi uma permissatildeo para a gulodice conforme o registro de Histoacuteria da
alimentaccedilatildeo
72
Os refinamentos da cozinha natildeo visam mais manter a boa sauacutede das pessoas mas
satisfazer o gosto dos glutotildees Com uma pequena diferenccedila estes ainda natildeo se
reconhecem como tais e se apresentam como pessoas de paladar apurado apreciadores
de iguarias e peritos na arte de reconhececirc-las (FLANDRIN MONTANARI 2015
p549)
Com o avanccedilo das descobertas e das criaccedilotildees dos cozinheiros e gastrocircnomos o prazer
com os alimentos reveste-se de nova importacircncia a gula Comer torna-se sinocircnimo nesse
contexto de desfrutar do sabor da comida o que muitas vezes eacute partilhado com amigos Para
Brillat-Savarin seria a uniatildeo do prazer de comer e do prazer da mesa O gosto como sentido
fisioloacutegico assume nova representaccedilatildeo eleva-se agrave categoria de bom-gosto com aplicaccedilotildees para
aleacutem dos campos da cozinha De acordo ainda com os organizadores de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo
Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari
O gosto esse sentido de que a natureza dotou o homem e os animais para discernirem o
comestiacutevel do natildeo-comestiacutevel sofreu alias em meados do seacuteculo XVII uma estranha
valorizaccedilatildeo fala-se dele a partir daiacute em sentido figurado a propoacutesito de literature
escultura pintura muacutesica mobiliaacuterio vestuaacuterio etc Em todos esses domiacutenios eacute ele que
permite distinguumlir o bom do ruim o belo do feio eacute o oacutergatildeo caracteriacutestico do lsquohomem de
gostorsquo um dos avatares do homem perfeito Ora essa valorizaccedilatildeo implica uma certa
toleracircncia para com os glutotildees (FLANDRIN MONTANARI 2015 p549)
Bom-gosto gula e prazer satildeo termos que se referem a uma semacircntica do deleite da
experiecircncia gustativa produzida nas cozinhas da eacutepoca com iniacutecio no seacuteculo XVII O indiviacuteduo
comeccedila a perceber a possibilidade de extrair da comida uma espeacutecie de luxuacuteria traduzida pela
gulodice Ele desfruta do sabor do alimento como se estivesse em um climax eis o glutatildeo
Enquanto na alta Idade Meacutedia o prazer nos banquetes vinha das atividades paralelas e seu
propoacutesito natildeo era a experiecircncia prazerosa per se mas a alianccedila e a realizaccedilatildeo de objetivos que
dela resultavam a partir desse seacuteculo o prazer reveste-se de importacircncia nos campos de forno-e-
fogatildeo
Dane-se a dieteacutetica talvez pensassem os sujeitos Gula e prazer eram expressotildees que a
boa comida despertava usufruiacutea deles quem tinha bom-gosto Nascia entatildeo um grupo de
pessoas com os pomposos tiacutetulos de lsquogourmetsrsquo e lsquogastrocircnomosrsquo seguida do surgimento e da
expansatildeo de sua literatura apropriada os tratados de cozinha Um novo modo de vivenciar o
alimento tornava-se cada vez mais abundante Houve um significativo movimento gerado pelo
gosto alimentar ldquoA multiplicaccedilatildeo das artes ligadas agrave alimentaccedilatildeo e das obras teacutecnicas que tratam
delas foi acompanhada sob formas diversas de escritos que fazem a apologia do prazer de comer
e ateacute da glutonaria e da embriaguezrdquo (FLANDRIN MONTANARI 2015 p551)
73
Entretanto tal vivecircncia jaacute existia em menor expressatildeo na Itaacutelia do Quatrocentos Conta-
se que ldquoPlatinardquo o humanista Bartolomeo Sacchi teve relevante papel no prazer de comer no
referido periacuteodo com seu De honesta voluptate
Natildeo soacute este natildeo eacute cozinheiro nem meacutedico [hellip] mas mistura agrave sua documentaccedilatildeo
culinaacuteria e dieteacutetica a lembranccedila nostaacutelgicada alegria que seus amigos e ele
experimentavam ao saborear este ou aquele prato de mestre Martino o grande
cozinheiro romano de meados do seacuteculo acima de tudo ele utiliza isso para defender o
honesto prazer de saborear uma cozinha ao mesmo tempo simples e refinada prazer que
poderiacuteamos hoje classificar como o de um glutatildeo (FLANDRIN MONTANARI 2015
p552)
Por que na eacutepoca de Platina e entatildeo nos seacuteculos XVII e XVIII de efervescecircncia dos
gourmets ou mesmo em nosso seacuteculo XXI a sensaccedilatildeo prazerosa provocada pelo alimento eacute tatildeo
semelhante em sujeitos tatildeo diversos Pelo fato de que o prazer eacute inerente agrave experiecircncia humana
A definiccedilatildeo dada por Jaspers agrave sensaccedilatildeo prazerosa une aspectos da percepccedilatildeo fiacutesica e da
experiecircncia mental integradas Com base em sua definiccedilatildeo e considerando o acima exposto
sobre os termos gula prazer e bom-gosto ocorre a pergunta por que tantos sujeitos de diferentes
eacutepocas vivenciaram o prazer associado agrave comida em especial quando essa assumiu uma
conotaccedilatildeo de importacircncia com o iniacutecio da Gastronomia um termo cognitivo Recorremos a uma
possiacutevel explicaccedilatildeo neurocientiacutefica para esse questionamento a hipoacutetese do ceacuterebro triuno que
abrange a experiecircncia prazerosa como elemento exclusivo do ser humano
A referida hipoacutetese foi proposta pelo meacutedico e neurocientista americano Paul MacLean
em 1970 Segundo tal autor somos compostos grosso modo por trecircs ceacuterebros que trabalham em
colaboraccedilatildeo embora oriundos de diferentes etapas da evoluccedilatildeo das espeacutecies Assim nos
mamiacuteferos superiores existe uma hierarquia de trecircs ceacuterebros em um soacute daiacute o termo triuno De
acordo com a teoria os trecircs operam com diferentes graus de complexidade mas orquestram o
funcionamento humano de forma conjunta O ceacuterebro reptiliano presente desde os reacutepteis ou
arquicoacutertex seria o mais primitivo responsaacutevel pelas questotildees de sobrevivecircncia bioloacutegica como
alimentaccedilatildeo reproduccedilatildeo proteccedilatildeo etc A seguir em termos evolucionistas viria o ceacuterebro
liacutembico ou paleocoacutertex responsaacutevel pela elaboraccedilatildeo das emoccedilotildees como apetite medo raiva
etc presente desde as aves O terceiro e entatildeo o mais evoluiacutedo seria o neocortex responsaacutevel
pela elaboraccedilatildeo dos pensamentos e dos sentimentos e exclusivamente humano
Transpondo essa teoria para o campo alimentar podemos referir o ceacuterebro reptiliano
como responsaacutevel pela fome enquanto o liacutembico seria responsaacutevel pelo desejo por essa ou aquela
74
comida especiacutefica O neocortex viria ao final para dar significado ao que comemos atraveacutes da
compreensatildeo das emoccedilotildees da relaccedilatildeo entre a memoacuteria e o alimento e da atribuiccedilatildeo de conceitos
cognitivos como a noccedilatildeo de bom-gosto No campo gastronocircmico seria possiacutevel entender a
cooperaccedilatildeo dos trecircs ceacuterebros como uma integraccedilatildeo que tem como resultado o prazer de saborear
este ou aquele quitute Saboreamos porque temos fome porque algo nos apetece e nos desperta
desejo por fim porque aprendemos do ponto de vista cognitivo que gostar daquele alimento eacute
permitido e em alguns casos eacute valoroso pois nos torna pertencentes a um grupo como o dos
glutotildees e gourmets Se comer tal alimento for prazeroso isto significa que nossos trecircs ceacuterebros
foram atendidos e estatildeo trabalhando em conjunto Mais uma vez o bem-estar do corpo de da
mente referido por Jaspers
Compreender o prazer que existe como expressatildeo fiacutesica emocional e mental nos
possibilita entender por que esse tambeacutem pode estar associado a patologias nos mesmos
domiacutenios A explicaccedilatildeo estaacute no fato de que para vivenciar esse complexo fenocircmeno eacute preciso
que sejamos humanos e que nossos trecircs ceacuterebros operem em orquestra vulneraacuteveis agraves
experiecircncias positivas ou negativas inexoraacuteveis
24 O PRAZER DA COMIDA
A partir da constataccedilatildeo do engorde e da dieta orientada pelo meacutedico a protagonista de
Por que sou gorda mamatildee lsquopassa a vida a limporsquo em sua memoacuteria Com o propoacutesito de
compreender o porquecirc de seu engorde escreve uma carta para a matildee em trechos ora
confessionais ora acusatoacuterios esperando na correspondecircncia construir para si a resposta ao
longo das lembranccedilas que evoca
O balanccedilo entre o passado e o presente alinha a compreensatildeo sobre o papel dos trajetos de
vida desde a infacircncia no quadro atual de sauacutede Os vinte e dois quilos ou cento e dez tabletes de
manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha satildeo o resultado dos sofrimentos que vivenciou
do afeto que natildeo recebeu e da comida que devorou A dor emocional eacute de fato sua mas talvez
seja tambeacutem heranccedila da Voacute Gorda da Voacute Magra do pai e da matildee Nas histoacuterias entrelaccediladas lecirc-
se uma pesada bagagem de dores ancestrais
Atraveacutes da intersecccedilatildeo entre as vivecircncias eacute possiacutevel ler na obra trecircs tempos
predominantes com fronteiras tecircnues entre si aquele dos antepassados que a protagonista
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conhece por ouvir contar o tempo da infacircncia que ela narra pelas recordaccedilotildees e o tempo
presente da dieta que provoca as idas e vindas da narrativa a fim de descobrir as causas de seu
aumento de peso As fronteiras satildeo tecircnues pois os trecircs tempos embora diversos no calendaacuterio
misturam-se na personagem ora como lembranccedila ora como reflexatildeo No percurso da obra o
elemento que liga as histoacuterias eacute na maioria das vezes a sensaccedilatildeo prazerosa com a comida
mesmo quando a referecircncia aponta para o contraacuterio sentimentos de culpa pela obesidade e de
revolta pela restriccedilatildeo alimentar
Haacute uma ligaccedilatildeo natural entre o comer e o prazer para aleacutem da rima Desde a
amamentaccedilatildeo a chegada do leite materno eacute acompanhada pelo contato de afeto da matildee com o
bebecirc e pela experiecircncia de prazer fiacutesico associada agrave succcedilatildeo Assim alimento viacutenculo afetivo e
prazer satildeo parte de nossas primeiras memoacuterias e podem permanecer como o tripeacute que daraacute
suporte a muitos de nossos padrotildees de comportamento ao longo da vida Esse tripeacute contudo
pode desestabilizar-se caso haja preponderacircncia de um dos componentes gerando experiecircncias
de sofrimento associadas a tal desequiliacutebrio
A referida situaccedilatildeo aliaacutes estaacute muito bem expressa nessa obra na qual a vivecircncia da
personagem frente ao engordar mostra o quanto o comer em sua vida ocupou muitas vezes os
espaccedilos de amor e de seguranccedila deixados vazios pela ausecircncia desse afeto Sobretudo por parte
dessa matildee o proacuteprio tiacutetulo do livro dirigido a ela sugere que seja vista como culpada pelo
processo de engorde da personagem Em diversas passagens da obra a comida eacute citada como
abundante enquanto a expressatildeo das emoccedilotildees eacute percebida como escassa
Encontramos a posteridade dentro da fartura pela qual devemos agradecer todos os dias
e da qual ainda hoje devemos nos afastar por forccedila da geneacutetica O excesso de comida o
excesso de zelo o excesso dos excessos tudo ficou em noacutes como lembranccedila e como
estoque de uma espeacutecie de amor do qual ainda hoje nos valemos quando o amor falta
minguado (MOSCOVICH 2006 p220)
A vivecircncia do prazer da comida eacute apresentada em diversos fragmentos tanto associados agrave
narradora quanto agrave sua matildee a quem dirige as reflexotildees sua Voacute Magra seu pai e seus irmatildeos
Uma das passagens mais ilustrativas do papel desempenhado pela sensaccedilatildeo prazerosa nesta
narrativa estaacute no trecho de uma viagem O que as personagens experimentam nesta cena parece
muito proacuteximo ao lsquohonesto prazerrsquo referido por Platina mencionado anteriormente Lembrando
de uma viagem em famiacutelia durante um percurso ao Uruguai a protagonista remonta um
momento em que sua matildee ela e os irmatildeos lambuzavam-se com doces no carro
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[hellip] A senhora de repente deu ordem expressa para que o pai estacionasse ali naquele
ponto bem na frente daquela confeitaria a Carrero O carro nem bem tinha parado nem
bem nossos protestos se haviam esvaiacutedo com a agilidade de seu movimento e a senhora
jaacute entrava na Carrero atraveacutes da porta de vidro porta muito pesada em sua fidalguia de
anos servindo o fino paladar uruguaio Porta que a senhora cruzou duas vezes em toda
sua vida - aquela era a segunda
Ficamos ali os quatro com os narizes achatados de curiosidade contra as janelas do
Ford Natildeo demorou nem bem cinco minutos e a senhora logo apareceu com trecircs garrafas
de Crush de laranja em uma das matildeos e na outra uma bandeja de doces - e me lembro
que o pai soltou uma gargalhada e sacudiu a cabeccedila num gesto de anuecircncia
Os doces foram devorados com seu incentivo feliz as garrafas passavam de matildeo em
matildeo limpava-se a boca com guardanapinhos de papel ou com a manga do casaco A
senhora se empanturrou e nos empanturrou Ningueacutem deu muita bola para os farelos de
massa folhada e para as manchas de doce de leite que ficaram melecando o estofamento
ateacute que voltaacutessemos para casa trecircs dias depois (MOSCOVICH 2006 p72)
Esta eacute a uacutenica cena de prazer compartilhado entre a narradora os irmatildeos e a matildee Eacute a
uacutenica cena tambeacutem em que a matildee aparece permitindo-se o deleite com algazarra com alegria
desfrutando do saborear em famiacutelia os doces da confeitaria A personagem refere que a matildee
cruzara a porta do estabelecimento duas vezes na vida e aquela era a segunda Haacute uma referecircncia
indireta aqui agrave escassa permissatildeo em sua matildee para esse tipo de prazer com farelos e doce de
leite espalhado Uma permissatildeo a si mesma de lambuzar-se com o prazer de partilhar o doce o
afeto a brincadeira O lsquohonesto prazerrsquo de Platina que misturava agrave sensaccedilatildeo prazerosa quem
sabe a alegria entre as pessoas Essa eacute a emoccedilatildeo que habita a cena e natildeo somente a gula pelos
doces
A matildee aparece protagonizando outras duas cenas de prazer alimentar ambas associadas a
uma condiccedilatildeo de sauacutede para a qual precisou fazer um cateterismo Entretanto a sensaccedilatildeo
prazerosa eacute expressa como experiecircncia de permissatildeo individual e natildeo partilhada com a famiacutelia
como no deleite dos doces e do refrigerante no carro A narradora conta sua lembranccedila sobre os
dois episoacutedios vividos pela matildee o primeiro antes do procedimento o segundo apoacutes
Naquela noite depois da cintilografia a senhora devorou meio quilo de patildeo com
manteiga um bule de cafeacute e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Disse que jaacute que
ia morrer comeria o que lhe desse na veneta (MOSCOVICH 2006 p119)
Jaacute em casa a senhora voltou ao tempo do seu rosto e apesar da ferida aberta na virilha
tornou-se de novo uma avoacute E o mais gracioso foi que naquela noite devorou meio
quilo de patildeo com manteiga uns cem gramas de mortadela um pote com azeitonas
pretas e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Me disse que jaacute que natildeo ia morrer
comeria o que lhe desse na telha (MOSCOVICH 2066 p124)
77
Compreende-se como o prazer de comer estaacute vinculado a uma justificativa aceitaacutevel em
uma e em outra ocasiatildeo lsquojaacute que ia morrerrsquo e lsquojaacute que natildeo ia morrerrsquo Natildeo haacute uma vivecircncia da
sensaccedilatildeo prazerosa experimentada pela matildee nesses casos sem uma razatildeo que fundamente a
permissatildeo Outro ponto a salientar estaacute nas frases lsquocomeria o que lhe desse na venetarsquo e lsquocomeria
o que lhe desse na telharsquo em que lsquodar na venetarsquo e lsquodar na telharsquo fazem alusatildeo agrave satisfazer a
vontade o impulso da hora expressotildees ligadas ao prazer Os fragmentos apresentados fornecem
dados para que se possa compreender que na personagem da matildee esse prazer do ldquodar na venetardquo
soacute poderia ser permitido se associado a uma razatildeo muito forte como a possibilidade de ela
morrer no procedimento
Aleacutem das questotildees psiacutequicas da ligaccedilatildeo entre cozinha e prazer existe a influecircncia da
cultura presente nas famiacutelias de acordo com a relaccedilatildeo que seus antepassados estabeleciam com a
comida com o prazer e com os viacutenculos Eacute possiacutevel aprender que um alimento eacute saboroso ou
condenado porque essa informaccedilatildeo passa de uma geraccedilatildeo agrave outra natildeo como uma carga geneacutetica
mas como uma transmissatildeo de aprendizado cultural O que eacute transmitido ao grupo familiar eacute
dependente do significado da comida para os diferentes povos Dentro das famiacutelias haacute tambeacutem
coacutedigos representados pelo alimento muitas vezes compartilhados pelos membros como
acontece entre a protagonista e sua Voacute Magra
Eu imitei a voacute fiz ach e dei um tapinha no ar Natildeo tinha mesmo importacircncia nenhuma
Noacutes duas comeccedilamos a rir De matildeos dadas fomos ateacute a cozinha buscar algo com
bastante accediluacutecar para comer Doces nos deixavam fortes e felizes
Como diz mais um velho ditado avoacutes e netos se datildeo bem porque tecircm um inimigo em
comum (MOSCOVICH 2006 p99)
O episoacutedio refere-se ao conflito entre sua matildee e a Voacute Magra avoacute materna e a
protagonista posiciona-se a favor da avoacute partilhando com ela o prazer de lsquobuscar algo com
bastante accediluacutecar pra comerrsquo Existe clara cumplicidade com a avoacute expressa na frase lsquoDoces nos
deixavam fortes e felizesrsquo Essa mesma comunhatildeo eacute demonstrada nos trechos sobre os passeios
que elas faziam juntas quando a Voacute Magra a levava consigo nas andanccedilas ao centro para vender
roupas na infacircncia da narradora
Ela bem gostava daquela funccedilatildeo ou ao menos aparentava gostar e se aparentava fingia
muito bem Depois de uma boa venda saiacutea exibindo um ar glorioso e altaneiro uma
conquistadora que avanccedila sobre terra remota e me puxando pela matildeo me punha diante
de um copo de guaranaacute- o copo que ela inspecionava muito bem e submetia ao processo
de assepsia com o lencinho- uma garrafa de refrigerante e um mil folhas partido ao meio
davam bem para noacutes duas Tatildeo bem que nem fazia falta a outra metade
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O que eu aprendi com vovoacute foi bastante aleacutem do que pretendia papai Ela natildeo queria me
mostrar como se ganhava o patildeo natildeo tinha interesse em expor a neta a sofrimento algum
O que a voacute queria mesmo com aquelas excursotildees era a farra de dividir comigo um doce e
um refrigerante a gente se refestelando com creme de confeiteiro Ela pagou com
antecipaccedilatildeo aquelas pequenas felicidades coisa que ela mais amava no mundo
(MOSCOVICH 2006 p91-92)
Para a protagonista e sua Voacute Magra esses passeios representavam mais do que a
oportunidade de saborearem o mil folhas eram a chance de partilharem juntas o prazer de um
coacutedigo que comungavam o sabor doce Ao ler-se as passagens desta avoacute com ela e com seus
irmatildeos ao longo da obra compreende-se que este sabor doce eacute com nitidez o afeto partilhado
entre a Voacute Magra e os netos Para a avoacute o deleite com a comida tem raiacutezes culturais e vivenciais
O livro aponta a fome ancestral como possiacutevel razatildeo de seu prazer com a comida Jaacute no
capiacutetulo um ela apresenta sua Voacute Magra importante referencial em sua histoacuteria com o papel da
comida e com o engorde A obra comeccedila pelo cerne do significado da comida para a famiacutelia a
fome Essa vivecircncia eacute elemento relevante na histoacuteria familiar da protagonista A fim de
corroborar o papel da fome na dimensatildeo que cozinha ocupa na literatura judaica vale apresentar
a contribuiccedilatildeo de Ana Maria Shua em sua obra Risos e emoccedilotildees da cozinha judaica
A comida ocupa um lugar importante na literatura judaica Seguramente porque ocupa
um lugar importante na vida judaica na vida material e tambeacutem por razotildees religiosas
na vida espiritual Acima de tudo os judeus da Europa Oriental tendiam a contar com o
uacutenico adereccedilo capaz de converter em excelente qualquer comida para qualquer paladar a
fome Natildeo chama a atenccedilatildeo desse modo que o tema da comida apareccedila uma e outra vez
entre os sempre famintos personagens de sua literatura (SHUA 2016 p113)
O entendimento da comida como milagre aponta o poder que lhe era atribuiacutedo pela Voacute
Magra conforme narra a protagonista
Para quem vem de uma famiacutelia que nos miseraacuteveis e congelados vilarejos judeus da
Europa passou fome de comer soacute repolho ou soacute batata para a qual naqueles shtetels
carne era uma abstraccedilatildeo que os dentes nem conheceram e que se acostumou a aplacar o
oco do estocircmago com sopa de beterraba ou com aquele mameligue que nada mais era
do que um mingau meio insosso de farinha de milho e aacutegua a obsessatildeo por comida nada
tem ou nada deveria ter de extraordinaacuterio Vovoacute Magra assim como todas as avoacutes
acreditava que a comida era um milagre capaz de moldar crianccedilas em adultos um
homem eacute o peso daquilo que come uma boa refeiccedilatildeo vale a prece por um dia a mais de
vida
O caso era que diante de um prato de comida Vovoacute Magra parecia encontrar o sentido
da existecircncia (MOSCOVICH 2006 p21)
A comida era milagre e sentido da existecircncia para sua avoacute de acordo com a protagonista
entretanto vai aleacutem mostrando a voracidade o apetite o prazer afoito com que aquela comia O
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aspecto interessante foi a narradora referir-se ao termo lsquodesesperorsquo que denota uma espeacutecie de
sofrimento A avoacute sentiu tanta fome que quando pocircde comer tornou o alimento a resposta para
todas as faltas mesmo as futuras A comida era um modo de prevenccedilatildeo contra a fome que ela
pudesse vir a passar novamente
E comia comia comia
Comia ovos duros comia coalhada comia milho comia carne comia saladas comia
frutas- especialmente laranjas-do-ceacuteu que docinhas natildeo espicaccedilavam o paladar ao
contraacuterio do azedo das laranjas-de-umbigo que ela tambeacutem comia Comia tanto que se
via nela um desespero E de tanto passer fome decerto vovoacute por mais que comesse e se
fartasse natildeo engordava Cinturinha fina seios achatados quadric estreitos heranccedila que
a senhora mamatildee abocanhou e que natildeo me deu
Da vovoacute soacute herdei o apetite ancestral o mesmo que a senhora herdou (MOSCOVICH
2006 p21-23)
O apetite eacute capaz de promover a antecipaccedilatildeo do prazer pela lembranccedila e pelo desejo de
comer determinado alimento aleacutem de estimular a repeticcedilatildeo do que satisfaz pela gratificaccedilatildeo que
o ceacuterebro registra Se tal prato eacute saboroso e lhe apetece o indiviacuteduo vai buscaacute-lo de novo e assim
sucessivamente Por isso a Voacutevoacute Magra lsquocomia comia comiarsquo e lsquocomia tanto que se via nela um
desesperorsquo Entatildeo quando a narradora comeccedila a passagem falando em fome e a conclui
referindo-se ao lsquoapetite ancestralrsquo estaacute dizendo que em sua avoacute a fome transformou-se no prazer
pela comida
Ainda assim havia respeito agraves proibiccedilotildees religiosas ligadas agrave tradiccedilatildeo culinaacuteria judaica A
narradora descreve sobre os haacutebitos alimentares da Voacute Magra ldquoExceto por carne de porco ou
mariscos e outras coisas gosmentas vindas da aacutegua ndash alimentos que a Lei considera impuros e
que portanto eram iguais agrave pedra que se interdita levar agrave boca ndash natildeo havia comida que ela
desprezasserdquo (MOSCOVICH 2006 p21-23)
Entatildeo embora houvesse o respeito agraves restriccedilotildees impostas havia tambeacutem o prazer com os
alimentos permitidos fossem ou natildeo pertencentes agrave culinaacuteria tradicional judaica Eacute neste ponto
que se aproximam os textos da ficccedilatildeo e da teoria fontes de estudo no presente capiacutetulo Natildeo se
nega que haja a proibiccedilatildeo a certos alimentos aspecto em que a obra de Ciacutentia Moscovich foi fiel
agrave cultura culinaacuteria judaica mas a mesma tambeacutem problematizou o espaccedilo de prazer existente na
cozinha de sua tradiccedilatildeo
Outro elemento relevante na anaacutelise da passagem acima eacute o que a narradora refere quando
menciona ter herdado de sua avoacute apenas o lsquoapetite ancestralrsquo Nesse ponto da narrativa atribui
agraves raiacutezes familiares seu gosto pela comida Eacute significativo que a narradora comece o texto falando
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sobre a fome e o encerre usando o termo apetite pois se pode pensar na fome como uma
necessidade bioloacutegica do corpo que natildeo difere um alimento de outro O propoacutesito da fome eacute ser
saciada No que tange ao apetite pode-se pensar no apetite por algo o que o torna mais
especiacutefico agraves preferecircncias alimentares e desse modo mais proacuteximo ao prazer Foi o que Voacute
Magra descobriu
Eacute visiacutevel seu gosto por essa ou aquela comida sua profunda sensaccedilatildeo prazerosa com
ingredientes e pratos tiacutepicos Natildeo os escolhe apenas para saciar a fome deseja isso sim
satisfazer o apetite deleitar-se Com todas as restriccedilotildees que a tradiccedilatildeo impunha descobriu no
alimento fonte de prazer e com os netos de expressatildeo afetiva Havia tambeacutem um sentido de
aproveitar do alimento tudo o que ele poderia oferecer natildeo desperdiccedilando nada de sua
substacircncia Mesmo com o propoacutesito desse aproveitamento dedicava-se a fazer comidas e doces
saborosos como a narradora lembra no trecho abaixo
E havia aquele creme de laranja que era uma nuvem accedilucarada de sabor contrastante
um nada azedinho rompendo o doce dava ateacute um arrepio Era o jeito de a voacute aproveitar
as frutas que sobravam no mercado Natildeo se pode desperdiccedilar sumo algum mesmo que
as frutas despenquem podres no meio das sobras (MOSCOVICH 2006 p94)
O trecho expressa o fazer culinaacuterio de um doce que deixou lembranccedilas sensoriais na
protagonista expressas por termos como lsquonuvem accedilucarada de sabor contrastantersquo lsquoum nada
azedinho rompendo o docersquo e sobretudo a revelaccedilatildeo de que lsquodava ateacute um arrepiorsquo Entretanto as
escolhas alimentares na cultura judaica natildeo teriam por princiacutepio dar relevacircncia ao prazer mas aos
elementos religiosos Existe um conjunto de regras de idoneidade alimentar na cozinha judaica
chamada kasherut e cada alimento pertencente a tal conjunto e entatildeo permitido eacute chamado
kasher A respeito das tradiccedilotildees religiosas implicadas na alimentaccedilatildeo Ariel Toaff no capiacutetulo
lsquoCozinha judaica cozinhas judaicasrsquo do livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas
esclarece
Afirma-se em geral que as praacuteticas da alimentaccedilatildeo judaica estatildeo essencialmente
enquadradas na oacutetica do sistema religioso fundamentadas em proibiccedilotildees biacuteblicas
ampliadas e interpretadas pelas normativas rabiacutenicas Em outros termos o judeu comeria
alimentos que lhe satildeo permitidos descartando todos aqueles que de uma ou outra forma
entrassem nas categorias explicitamente proibidas pela biacuteblia ou pela hermenecircutica
geralmente extensa da ritualiacutestica posterior Nesse sentido suas escolhas alimentares
deveriam ser consideradas como fundamentos de sua identidade cultural e religiosa A
gama de proibiccedilotildees parece vasta e sem duacutevida condicionante (TOAFF 2009 p179)
81
Eacute interessante observar que mesmo focados na obediecircncia agraves normas havia uma culinaacuteria
rica de prazer dentro da cultura Apesar das influecircncias externas e as proibiccedilotildees religiosas
configurou-se uma cozinha judaica nuclear baseada no gosto Na Europa do seacuteculo XV ou XVI
os alimentos definidos como lsquoagrave hebraicarsquo ou lsquoagrave judiarsquo expressavam ingredientes gosto e aspecto
tipicamente judaicos e eram imediatamente reconhecidos como tal
O marzipatilde e as panquecas com mel e canela o patecirc de fiacutegado gordo os Griben (pedaccedilos
fritos de pele [de ave]) e os salsichotildees de ganso o hamin a carne guisada do Shabatt
com feijotildees e gratildeos-de-bico lsquocom pimenta e alhorsquo as alcachofras fritas lsquoagrave rosarsquo e a
endiacutevia assada no forno com lsquopeixe azulrsquo todos eles alimentos cuja preparaccedilatildeo era
comumente qualificada como lsquoagrave hebreacuteiarsquo natildeo eram decerto chamados desse modo pelo
fato de seu consumo ser permitido ou prescrito aos judeus pelas normas da biacuteblia e dos
rabinos mas porque se reconhecia neles a expressatildeo particular do gosto judaico [hellip] O
fato incontroverso eacute que o gosto gastronocircmico judaico parecia evidentemente diverso
daquele do ambiente cristatildeo circundante (TOAFF 2009 p183)
A evocaccedilatildeo sensorial eacute provocada pelos alimentos judaicos quando ateacute os nomes
despertam curiosidade e imaginaccedilatildeo pela forma e pelo gosto Ali estaacute bem expresso um conjunto
de sabores pertencentes agrave cultura e agrave vivecircncia de prazer associados agrave comida O capiacutetulo de Ariel
Toaff no livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas defende que o gosto e o prazer
na culinaacuteria judaica foram elementos de forccedila suficiente para ultrapassarem as proibiccedilotildees
religiosas aspecto corroborado pelo grande nuacutemero de receitas daquela cultura
O prazer alimentar estaacute associado a esse aspecto cultural de um povo Carlos Alberto
Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira aponta que
Em termos simples todo dia eu acordo me sentindo brasileiro ou espanhol ou tcheco
etc Isso ocorre porque falo uma liacutengua alimento-me de determinada comida sei como
meus compatriotas se comportaratildeo diante de certas situaccedilotildees e assim por diante Haacute um
sentimento multifacetado de pertencimento que me faz nacional (DOacuteRIA 2014 p24)
Esse pertencimento tem como parte culinaacuteria pois identifica gostos e ingredientes de um
povo No caso especiacutefico da culinaacuteria judaica essa caracterizaccedilatildeo ocorre mesmo quando
adaptada a outras culturas e produtos como Toaff aponta Em por que sou gorda Mamatildee a
narradora faz um relato que contempla a cozinha judaica vivenciada em sua infacircncia adaptada agrave
cultura local sem no entanto perder sua principal expressatildeo nos pratos tiacutepicos
Como sempre acreditamos no aprendizado pela dor a fome passou a ser o grande
mestre liccedilatildeo que pai nenhum queria que os filhos aprendessem Atestando que os
tempos haviam mudado e que este naco do Brasil era uma Canaatilde as cozinhas do Bairro
eram usinas de todo tipo de comida
82
Agraves sete da manhatilde mal se pulava da cama e uma nuacutevem aromaacutetica e uacutemida jaacute tinha
invadido a casa As panelas ferviam galinhas as cebolas se atiravam agrave fritura as lacircminas
das facas trituravam ramos de tempero verde colheres de pau puxavam refogados nas
caccedilarolas batalhotildees rechonchudos de almocircndegas se alinhavam nas taacutebuas de carne ao
lado de um fornido regimento de varenikes que logo iam encontrar seu destino na aacutegua
pelando No bairro inteiro cedinho frio ou calor chuva ou sol matildeos zelosas estripavam
peixes recheavam pimentotildees cortavam ovos duros mexiam guisados lavavam arroz
arrancavam folhas dos ramos de louro Tempero lambido na concha da matildeo douravam
batatas raspavam cenouras sovavam massas fatiavam tomates queimavam berinjelas
batiam espinafre amassavam miuacutedos de frango esmagavam dentes de alho Enquanto
pepinos eram enfiados em enormes potes de vidro para a conserva de salmoura
amendoins em trouxas de panos de prato eram batidos a martelo pecircssegos ameixas e
peras se compotavam marmelos de accedilucaravam cremes se encorpavam nacos de
goiaba e punhados de uva em passa enchiam o oco de maccedilatildes vermelhas e lustrosas
(MOSCOVICH 2006 p48-49)
A escolha pelo uso do preteacuterito imperfeito nos atos culinaacuterios ilustra o aspecto rotineiro
com que essas praacuteticas eram realizadas dentro da vida do bairro de predominacircncia judaica Todo
cotidiano era tecido pela manhatilde pelos aromas texturas e costumes que compunham a cultura
local O trecho remete o leitor a um passado que se perpetua atraveacutes dos movimentos vividos nas
cozinhas pelo que a narradora refere como lsquomatildeos zelosasrsquo Haacute no pano de fundo desse
fragmento a ideia da repeticcedilatildeo das accedilotildees como marca de continuidade de haacutebitos gostos e
preferecircncias A narradora prossegue seu relato transmitindo lembranccedilas da cozinha judaica
vivenciadas em seu bairro
Eu feliz na atmosfera lavada das manhatildes mastigando o haacutelito de cafeacute e pasta de dente
gostava de ver as mulheres que vinham da feira livre com sacolas nas quais adejavam
verduras outras traziam suspensas de ponta-cabeccedila galinhas vivas que arregalavam os
olhos redondos num susto de morte Algumas donas de casa elas mesmas fariam o
talho na garganta por onde se esvairia o sangue do bicho enquanto outras mais
piedosas ou covardes ou que seguissem a lei alimentar a kashrut recorriam ao shochet
responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual Todas para um uacutenico lugar a cozinha matriz do
afeto de nossa gente Pratos com nomes esquisitos e tatildeo familiares varenikes beigales
mondales knishes strudels iuchs kasha rossale borscht guefiltefish chrein kishke
kreplach tzimes
Comida para um exeacutercito (MOSCOVICH 2006 p49 grifo do autor)
No trecho acima lecirc-se o aspecto religioso ligado agrave culinaacuteria quando a narradora aborda a
lei alimentar a kashrut e o shochet responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual das galinhas Outro
elemento apontado eacute a referecircncia aos pratos judaicos remetendo agrave ligaccedilatildeo entre cozinha e
pertencimento a um povo elemento cultural referido por Carlos Alberto Doacuteria apresentado
anteriormente Um ponto relevante apontado por esse autor eacute a citaccedilatildeo de Levi Strauss ldquoGestos
aparentemente insignificantes transmitidos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua
insignificacircncia mesma satildeo testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou
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movimentos figuradosrdquo (DOacuteRIA 2014 p215) Assim eacute possiacutevel compreender os gestos
corporais dos atos culinaacuterios apresentados pela narradora sobre a rotina alimentar em seu bairro
como um importante testemunho da cultura judaica daquele territoacuterio
Aleacutem disso uma frase de grande relevacircncia no fragmento eacute lsquoTodas para um uacutenico lugar a
cozinha matriz do afeto de nossa gentersquo Nessa o viacutenculo entre o comer e o afeto expressa um
importante fator da cultura judaica a essa ligaccedilatildeo estaacute associada tambeacutem a sensaccedilatildeo prazerosa
da comida partilhada Carlos Alberto Doacuteria expotildee a reflexatildeo de Annie Hubbert quando ela
registra
Especialmente nas sociedades onde as representaccedilotildees coletivas passam por livros
religiosos (os judeus os cristatildeos e os muccedilulmanos) o ato de comer aparece ligado ao
amor materno e recusar a comida eacute o mesmo que recusar essa modalidade fundante de
afeto um ato que exprime grande emoccedilatildeo (DOacuteRIA 2014 p204)
Dividir a comida eacute tambeacutem nutrir o sentimento de pertencer ao grupo de fomentar a
permanecircncia dos atos que satildeo parte dos costumes desse grupo como aqueles atos apresentados
no trecho anterior em preteacuterito imperfeito atos culinaacuterios que satildeo parte do cotidiano das
cozinhas do bairro Somam-se alimento afeto rotina cultura prazer pertencimento partilha
continuidade
Ainda sobre o gosto da cozinha judaica Toaff escreve
As mercearias dos guetos pululavam de clientes cristatildeos mais gulosos do que
esfomeados [hellip] A aproximaccedilatildeo dos cristatildeos agraves comidas judaicas era sempre ambiacutegua e
ambivalente atraiacutedos (e ao mesmo tempo desconfiados) por aqueles pratos que podiam
ter significados hereacuteticos imprevistos e por aqueles sabores exoacuteticos que exerciam
veladas seduccedilotildees de transgressatildeo lsquoComer agrave judiarsquo era um pouco como tornar-se judeu
no prazer de um momento sentir de dentro o fasciacutenio daquilo que era difiacutecil (e talvez
impossiacutevel) aprender de fora [hellip] Comer uma alcachofra lsquoagrave judiarsquo ou uma fatia de patildeo
aacutezimo era como fazer uma perigosa e temeraacuteria viagem ao estrangeiro uma espeacutecie de
percurso sedutor da igreja agrave sinagoga da qual poreacutem pretendia-se voltar o mais raacutepido
possiacutevel (TOAFF 2009 p183-184)
Compreende-se assim que a cozinha judaica tinha o apelo sedutor que provocava prazer
ateacute em outras culturas como a cristatilde Isso ocorria por sua forccedila especiacutefica pelo nuacutecleo vasto de
receitas e de modos-de-fazer este ou aquele prato no entanto tal apelo ocorria em grande parte
por simbolizar o proibido e o desconhecido aos cristatildeos Agradava-lhes a transgressatildeo dessa
cozinha tiacutepica seus sabores e significados Natildeo se tratava apenas de apreciar o gosto mas
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tambeacutem o que tal culinaacuteria representava a um ambiente cultural diverso enfrentar a culpa e
encontrar o prazer do gosto clandestino
Para os proacuteprios judeus a amplitude de receitas e de gostos dos pratos lsquoagrave judiarsquo era tatildeo
arraigada que o gosto era parte de suas escolhas para aleacutem da imposiccedilatildeo religiosa Sobre isso
Toaff reflete ldquoHaacutebitos e tradiccedilotildees alimentares inquietudes irracionais gosto e nostalgias faziam
com que mesmo nos casos extremos o paladar abandonasse o judaiacutesmo muito mais lentamente e
de maacute vontade do que o coraccedilatildeo ou a menterdquo (TOAFF 2009 p185)
Ariel Toaff demonstra o ponto a ser discutido sobre o aspecto cultural dessa culinaacuteria em
relaccedilatildeo ao prazer alimentar as restriccedilotildees e as proibiccedilotildees religiosas de um lado o prazer de
manter vivo o respeito pela tradiccedilatildeo de receitas tiacutepicas lsquoagrave judiarsquo que representam o gosto
alimentar dos judeus de outro Apesar das proibiccedilotildees a essecircncia da cozinha judaica se manteve
atraveacutes de uma vasta quantidade de receitas Eacute possiacutevel compreender isso pelo fato de o prazer
ser um fenocircmeno exclusivamente humano cujas caracteriacutesticas satildeo o equiliacutebrio fisioloacutegico e
psiacutequico que leva ao bem-estar de acordo com o Jaspers Em sendo fenocircmeno humano
pronuncia-se no indiviacuteduo de todos os tempos e de todas as culturas e eacute elemento ateacute mesmo
capaz de sobrepujar um constructo como as proibiccedilotildees religiosas como no caso da cozinha
judaica
O que mais chama a atenccedilatildeo lendo a pesquisa de Ariel Toaff eacute de como o gosto judaico
foi sendo construiacutedo a ponto de configurar-se como uma tradiccedilatildeo culinaacuteria Outro elemento
interessante referido pelo autor satildeo os processos de osmose com outras culturas alimentares a
partir das emigraccedilotildees dos judeus para diferentes territoacuterios O paladar judaico foi adicionando
alimentos agrave sua lista ingredientes e pratos de outras culturas foram sendo incorporados ao seu
gosto
Um trecho que ilustra essa lsquoosmosersquo estaacute no comeccedilo de Por que sou gorda mamatildee
quando a narradora-personagem conta a histoacuteria da chegada de sua famiacutelia ao Brasil e a
aproximaccedilatildeo de seu bisavocirc a um iacutendio proacuteximo agrave moradia da famiacutelia
[hellip] Um desses bugres vovoacute natildeo tinha certeza de que era o mesmo que fora aprisionado
deixou uma tigela de farinha - dependendo da versatildeo um pedaccedilo de carne- na porta da
casa O bisavocirc na mesma tijela e no mesmo lugar ofereceu para o iacutendio uma porccedilatildeo de
aipim cozido (ou uma porccedilatildeo de chulent ou um pedaccedilo de leikech) Tijela vai tijela
volta o bugre fez amizade com o bisavocirc falavam-se de iniacutecio com os dedos Depois
passaram a dividir o mesmo tronco de aacutervore no qual o bisavocirc sentava para o descanso
do final da tarde Depois para o pasmo geral viram o iacutendio vestindo uma camisa e uma
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calccedila do bisavocirc mesma eacutepoca em que vovoacute viu entrar em casa uma gamela talhada em
madeira e uma cesta em trama de taquaras
Mesmo que mulheres e crianccedilas estivessem proibidas de se aproximar do bugre ele de
posse de uma enxada passou a ajudante nas lides da roccedila e a trazer aacutegua de uma sanga
ali perto Tambeacutem alcanccedilava ervas com as quais o bisavocirc fazia emplastros para as dores
nas juntas e picadas de insetos aleacutem de infusotildees e chaacutes para tosse e vermes
A vovoacute jurava que era verdade quando viram o iacutendio falava iiacutediche
Deram ateacute nome para o homem Chamavam-no Salvador (MOSCOVICH 2006 p65-
66 grifo nosso)
A osmose era natildeo apenas de ingredientes mas de costumes de atitudes de
camaradagens Havia prazer nas trocas e no conviacutevio do bisavocirc com o iacutendio Esse trecho eacute um
dos mais representativos da obra pois expressa de forma muito clara como a cultura judaica foi
permeaacutevel no exemplo narrado agraves influecircncias e agraves gentilezas e escambos do bugre A famiacutelia
comeccedilava sua histoacuteria em terras brasileiras Um trecho que expressa o papel da comida nos
primeiros tempos da famiacutelia no Brasil eacute o que segue
Uns oito nove ou dez anos depois da chegada ao Brasil o bisavocirc tinha abandonado a
colocircnia e enveredado pelos interiores do hemisfeacuterio mascateava Soacute laacute naquela Canaatilde
da fronteira entre o Brasil e o Uruguai terminou a busca de um futuro que seria melhor
mas que natildeo seria dele Havia chocolates Aguila chaja embalado em papel manteiga
morrones queimados na brasa e carne muita que se assava em grelhas sobre braseiro
vivo Tudo isso natildeo chegava agrave casa e agrave mesa da famiacutelia que se alimentava de mameligue
ou farinha de mandioca agrave qual se acrescentava cafeacute com muito accediluacutecar que accediluacutecar natildeo
podia faltar Aos domingos cada um dos filhos recebia um tablete de mariola piteacuteu
envolto em papel celofane a ser poupado ateacute a semana seguinte um pedacinho de cada
vez Ou chupado como se fosse bala que assim durava mais (MOSCOVICH 2006
p71 grifo ou do autor)
Assim haacute trechos em que a protagonista narra as experiecircncias dos antepassados em
zigue-zague com outros em que reflete sobre seu engorde retomando o foco no presente Fala
entatildeo de sua dieta em contraste com a vivecircncia de sua famiacutelia com a fome Bisavoacutes avoacutes e pais
ao sentirem fome comeccedilaram a comer mais quando o alimento tornou-se disponiacutevel a eles no
caso da narradora foi preciso fazer o caminho contraacuterio ao sentir fome comeccedilar a comer menos
A referecircncia lsquoVovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e macarratildeo de letrinhasrsquo
demonstra que a loacutegica de sua avoacute era dar consistecircncia e energia agrave comida fornecendo-lhe fontes
de carbohidrato Assim a perspectiva era contraacuteria agrave restriccedilatildeo alimentar a que estava submetida
pelas orientaccedilotildees do meacutedico
Com o frio comer salada doacutei na alma
Sopa de legumes fazia tempo que natildeo preparava o panelatildeo fervente carne aipo
aboacutebora chuchu cenoura couve cebola espiga de milho cortada em rodelas pequenas
Enquanto escrevo a sopa se agita no fogo e um haacutelito bondoso que eacute cheiro de casa
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visita todas as peccedilas Espero a hora de submeter noz-moscada ao ralador e de cortar bem
miuacutedo tempero verde e ovos duros Vovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e
macarratildeo de letrinhas (MOSCOVICH 2006 p68)
A heranccedila para o prazer de comer deu-lhe desde a infacircncia a predileccedilatildeo pelos excessos
Porque a lei era o comer Ela comenta
Noacutes as crianccedilas estaacutevamos em fase de crescimento Como durou a tal fase Anos
Crianccedilas em fase de crescimento precisam comer muito bem para ter ossos fortes e
ceacuterebros ativos para o estudo Portanto a mesa do almoccedilo em nossa casa era farta Aliaacutes
a mesa do almoccedilo em nossa casa era um excesso Mas natildeo um excesso fuacutetil natildeo um
supeacuterfluo sem sentido Nossa mesa queria dizer comam vocecircs natildeo precisam passar
fome Fome eu vim passar adiante quando comecei as dietas (MOSCOVICH 2006
p23)
O aprendizado de exceder era associado natildeo apenas agrave saciedade mas ao prazer agrave ideia de
uma lsquomesa felizrsquo como se pode compreender a partir do seguinte fragmento
Se havia cinco pessoas na mesa de bifes deveria haver por baixo dez Para que natildeo
passaacutessemos pela dureza de medir o que estaacutevamos comendo quantos bifes satildeo meus
quantos satildeo seus Se isso acontecesse papai simplesmente natildeo comia bifes para que
mais houvesse para dividir
Numa mesa feliz natildeo se contam os bifes (MOSCOVICH 2006 p24)
O pai preocupado com o engorde dos filhos passou a adotar a imposiccedilatildeo da disciplina
alimentar riacutegida Para a protagonista a cada aumento dos quilos na balanccedila havia uma nova
ordem para o regime A protagonista lembra-se dessa fase e relata na carta para a matildee o periacuteodo
em que o pai determinou que os filhos fizessem dieta
Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre
com o Fairlane rabo-de-peixe A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos enterrado
o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como eram-
mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos ancorava
no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de construir o corpo
de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo fosse do jeito e na
hora em que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH 2006 p93)
Depois de diversas passagens entre passado e presente haacute uma retomada na histoacuteria em
direccedilatildeo agrave ordem paterna para a dieta pela quebra do carro da famiacutelia o tal lsquoFairlane rabo-de-
peixersquo Isso ocorre pelo excesso de peso na protagonista de seus irmatildeos e de suas tias de lado
paterno Frente agrave ameaccedila de dieta ela reinvindica ldquo[hellip] Entrei em pacircnico Dieta era alguma coisa
horrorosa natildeo comer um monte de coisas principalmente massas e doces eu protestei na busca
de meus direitosrdquo (MOSCOVICH 2006 p203) Ao que o pai linhas depois refere ldquo-Vocecircs vatildeo
fazer dieta E vai ser para toda a vidardquo (MOSCOVICH 2006 p204)
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Dieta era assim ordem paterna veredicto imposiccedilatildeo e ameaccedila de perda dos direitos Natildeo
poderia ser algo para o bem para a sauacutede jaacute que restringia o prazer de comer o que se gosta De
um lado a Vovoacute Magra tinha deliacutecias em sua sacola de crocheacute para satisfazer o gosto dos netos
de outro o pai definia categoricamente que a lei da casa era a dieta Da avoacute materna com as
guloseimas estava o afeto do pai com a voz de mando o cuidado com a sauacutede Ambas as
manifestaccedilotildees eram a expressatildeo de amor que cada um deles era capaz de oferecer de acordo com
sua histoacuteria e com sua personalidade
Um elemento importante para a compreensatildeo do engorde da protagonista estaacute em sua
infacircncia quando ao contraacuterio do que ocorreu na vida adulta precisou fazer dieta para engordar
Mais uma vez a Voacute Magra tem papel crucial nesse processo conforme mostra o trecho abaixo
Os que me conhecem soacute agora natildeo acreditam Nem eu acredito Ateacute uns sete ou oito
anos eu era uma crianccedila inapetente Vovoacute Magra chegava em casa com pedaccedilos de
alcatra chuletas ou bifes de fiacutegado cortes que ela havia escolhido com ciecircncia no balcatildeo
do accedilougue do seu Jorge Depois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho
direto para a cozinha e ali direto aos armaacuterios Sentava-me junto agrave mesa de foacutermica
Vovoacute dava de matildeo numa pequena frigideira de alumiacutenio com duas alccedilas de baquelite jaacute
retorcidas pelo calor Aacutegua esponja sabatildeo pano de prato Daiacute um fio de oacuteleo Mazola-
ou Sol Levante aquele que estivesse mais em conta na ocasiatildeo- escorria da lata natildeo
muito o suficiente para que uma poccedila dourada se armazenasse no cocircncavo da frigideira
No balcatildeo da pia vovoacute ordenava o pote de sal uma taacutebua de madeira chaira batedor de
bife a faca de corte e o embrulho de papel pardo no qual seu Jorge tinha riscado o total
a pagar Na abertura do pacote lembro aquele cheiro cru e meio arisco o papel
manchado de sangue da pobre vida extinta A faca era passada na chaira em movimentos
agudos um sibilar que me causava arrepio nos dentes Depois com a lacircmina vovoacute
eliminava nervos sebo e outras impurezas que soacute ela podia identificar Finalmente
espalmava os dedos sobre a peccedila de carne e em talhos saacutebios cortava em fatias Agraves
vezes usava o batedor para domar algum pedaccedilo mais resistente tunda de laccedilo na carne
que batia na madeira que batia na pedra que por seu turno estremecia o balcatildeo e todos
os cocircmodos da casa Uma pitada de sal o oacuteleo tinindo recebia a carne com uma
chiadeira labaredas azuladas salpicavam as fatias- daacute-lhe fumaccedila um nevoeiro que
anunciava a forccedila resistindo agrave morte (MOSCOVICH 2006 p35-36)
A Voacute Magra participava da alimentaccedilatildeo da neta natildeo apenas no preparo dos bifes mas
tambeacutem na extraccedilatildeo do sumo que resultava deles e na oferta do caldo agrave protagonista ainda
crianccedila Percebe-se o zelo da avoacute todo esse processo no qual o alimento representa nutriccedilatildeo
fiacutesica e cuidado afetivo
Dado o susto vovoacute colocava os bifes num prato fundo e com um garfo espremia e
espremia ateacute reunir uma boa quantidade de sumo sanguinolento Um pano ajeitado como
babador e entornando um pouco o prato com uma colher de sobremesa dava-me aos
bocados aquela riqueza nutritiva (MOSCOVICH 2006 p36)
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Ressalta-se o detalhamento com que a narradora apresenta os utensiacutelios de cozinha no
preparo dos bifes e os atos culinaacuterios da Voacute Magra Se natildeo haacute referecircncia direta ao prazer de
comer haacute o conhecimento visceral da avoacute no cozinhar Cada movimento eacute conhecido pelo corpo
e traduzido pelo uso dos utensiacutelios O que marca o trecho eacute o afeto com que a avoacute faz os bifes
para a neta o cuidado que tem com cada nuance do preparo expresso na proacutepria dedicaccedilatildeo e
tambeacutem em especial na frase lsquodepois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho direto
para a cozinharsquo Este eacute um dos trechos emblemaacuteticos da obra em termos de expressatildeo da cozinha
como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico nesta narrativa pois mostra dados como o oacuteleo na frigideira a
destreza com cada instrumento e o zelo no preparo do alimento como reforccedilo nutricional
A narradora segue o relato sobre os bifes que colocam sua matildee em segundo plano
Se vovoacute natildeo vinha o jeito era a senhora mamatildee me sentar na frente do preacutedio reunir
crianccedilas e cachorros da vizinhanccedila ao meu redor e fazendo aviatildeozinho enquanto eu me
distraiacutea me enfiar goela abaixo colheradas de legumes carne e todo o resto que eu
detestava
Natildeo me lembro quando comecei a comer feito gente grande Nunca mais parei
(MOSCOVICH 2006 p36-37)
Haacute uma diferenccedila na percepccedilatildeo da narradora sobre a forma como a Voacute Magra lhe oferecia
a lsquoriqueza nutritivarsquo aos bocados e aquela como a matildee o fazia ao lsquoenfiar goela abaixo
colheradas de legumes carne e todo o resto que eu detestavarsquo O contraste estaacute sobretudo na
expressatildeo do afeto que leva a protagonista o falar em lsquoriqueza nutritivarsquo quando menciona o
cuidado da avoacute e ao referir-se ao termo lsquogoela abaixorsquo sobre o alimento oferecido pela matildee
Possivelmente o prazer de comer tivesse sido originado no afeto ligado ao alimento e ao cuidado
pela avoacute pois eacute das cenas com esta que restaram os principais registros de memoacuteria sugerindo
que a lembranccedila daquele preparo eacute muito mais viva do que aquela da interaccedilatildeo com sua matildee A
frase lsquonunca mais pareirsquo mostra o comportamento de comer como algo que passou a se repetir
sugerindo a presenccedila de prazer que impele agrave repeticcedilatildeo
A partir do ponto em que comeccedilou a comer e entatildeo a engordar junto a seus irmatildeos
instalou-se na famiacutelia a determinaccedilatildeo de regime para os trecircs ordenada pelo pai A protagonista
refere
Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre
com o lsquoFairlane rabo-de-peixersquo A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos
enterrado o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como
eram- mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos
ancorava no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de
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constituir o corpo de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo
fosse do jeito e na hora que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH
2006 p93)
Quando refere lsquoEssa ordem sei agora era o que nos ancorava no mundorsquo estaacute
expressando que sob a perspectiva adulta consegue ver a razatildeo da imposiccedilatildeo do pai ancorar os
filhos no mundo Estabelecia-se uma dicotomia entre a postura da Voacute Magra que partilhava seu
prazer alimentar com os netos e a do pai que assumia a funccedilatildeo de impor normas aos filhos Para
a narradora essa divisatildeo era contundente a bagagem de carinho da avoacute materna era o paraiacuteso a
forccedila da voz paterna era o inferno restringia definia acusava ordenava proibia O livro traz
todo o conflito da narradora personagem em seu tracircnsito por essa dicotomia ao longo da vida ateacute
apresentar os resultados do excesso de comer em seu corpo os terriacuteveis vinte e dois quilos ou
cento e dez tabletes de manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha
A ordem paterna para a dieta transforma-se na idade adulta na ordem do meacutedico
tambeacutem uma voz impositiva ameaccediladora e acusatoacuteria Essa eacute expressa jaacute no proacutelogo quando a
protagonista conta o motivo de sua reflexatildeo sobre a histoacuteria familiar e a pessoal para
compreender o porquecirc de chegar ao excesso de peso
- Vocecirc natildeo estaacute gorda
Certo meu estado natildeo era transitoacuterio a gordura nunca foi um episoacutedio solteiro em
minha vida eu sabia ele nem precisava ir adiante Mas ele foi
- Vamos fazer suas ceacutelulas adiposas murcharem -Pediu minha atenccedilatildeo com a caneta no
ar- sei que parece injusto mas a natureza a fez assim Vocecirc eacute gorda
Uma vez mais de novo (MOSCOVICH 2006 p15)
A uacuteltima frase lsquouma vez mais de novorsquo refere-se possivelmente agrave lembranccedila sobre o
veredito do pai na infacircncia quando mandou que ela e os irmatildeos fizessem dieta O prazer de
comer tornava-se sempre transgressor da ordem sempre um mundo proibido e recheado de
culpas impostas por terceiros Por mais que ela natildeo quisesse sentir as culpas aprendera que
deveria senti-las para afastar-se do prazer
Com a evoluccedilatildeo da dieta conduzida pelo meacutedico a personagem comeccedila a conseguir
emagrecer e a perda de peso vai ganhando por sua vez gosto de vitoacuteria Emagrecer tambeacutem se
torna um prazer o que reflete a sua conscientizaccedilatildeo para a mudanccedila de haacutebitos e mais ainda
para o seu amadurecimento Haacute na protagonista a consciecircncia de sua responsabilidade pelas
escolhas alimentares e pelo resultado da dieta em sua sauacutede A mudanccedila de postura destaca-se
atraveacutes do termo lsquoum deliacuteriorsquo ponto em que se percebe sua capacidade de avaliar o que pode e o
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que natildeo pode comer sem precisar ouvi-lo de terceiros A personagem conta o que sente
demonstrando sua disposiccedilatildeo para mudar a atitude frente agrave comida
Uma enorme vontade de comer uma daquelas refeiccedilotildees de estivador arroz feijatildeo ovo
frito massa bife na chapa purecirc de batatas salada de tomate e cebola Tudo num uacutenico
prato fundo e transbordante Para beber uma daquelas cervejas pretas docinhas das
quais se dizia que eram boas para mulheres que amamentavam Sobremesa pudim de
leite
Soacute vontade Um deliacuterio
Descobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um punhado de
parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagado Tambeacutem descobri que atum em lata e
dois ovos duros saciam por mais de quatro horas Uma xiacutecara de cafeacute e um pedaccedilo de
queijo enganam a fome por um bom tempo Disso eu sabia mas tinha me esquecido
Fui verificar meu peso um quilo e novecentos gramas a menos (MOSCOVICH 2006
p125-126)
A passagem acima ilustra um periacuteodo da personagem jaacute adulta em seu progresso durante
a dieta Quando ela diz lsquoDescobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um
punhado de parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagadorsquo (MOSCOVICH 2006 p125-126)
estaacute demonstrando que jaacute eacute capaz de encontrar prazer e sabor dentro da dieta ao inveacutes de lutar
com as restriccedilotildees como fez desde a infacircncia Eacute nesse momento que a comida assume um caraacuteter
de transformaccedilatildeo na narrativa a mudanccedila de postura em relaccedilatildeo ao foco de prazer na comida de
uma lauta refeiccedilatildeo ao novo modo de temperar a salada Como resultado a perda de peso
O significado de tal mudanccedila estaacute justamente na conscientizaccedilatildeo que representa Ao dizer
lsquoSoacute vontade Um deliacuteriorsquo a protagonista expressa conhecer os perigos de lsquouma daquelas refeiccedilotildees
de estivadorrsquo como a que descreve Mostrando a mudanccedila de possibilidades estaacute dizendo a si
mesma que compreendeu que eacute preciso mudar a fonte de prazer para atingir o emagrecimento
proposto pelo meacutedico
Nesse momento aliaacutes a ordem natildeo vem mais do pai natildeo vem mais do meacutedico E nem eacute
mais uma ordem Eacute entatildeo uma escolha E o melhor de tudo parte da proacutepria narradora
personagem em seu percurso no anseio do que pede agrave sua matildee no proacutelogo ldquoMamatildee me
endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar esse territoacuterio
metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora Quero voltar a ter um
corpordquo (MOSCOVICH 2006 proacutelogo)
A voz para a matildee eacute na verdade a voz em que ela se permite emitir essa narrativa Em
essecircncia a voz eacute dirigida a si mesma e o pedido para lsquovoltar a ter um corporsquo segue o verbo
querer na primeira pessoa do singular no presente do indicativo Eacute a afirmaccedilatildeo de um desejo de
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uma escolha Natildeo eacute o pai natildeo eacute o meacutedico natildeo eacute a interlocuccedilatildeo com a matildee A lei agora eacute sua
segue seu proacuteprio querer Da refeiccedilatildeo de estivador agraves alternativas possiacuteveis a narradora mostra o
que compreendeu eacute agente da proacutepria transformaccedilatildeo eacute emissora da proacutepria voz Tem um corpo
sim Mais do que isso tem um novo querer tambeacutem prazeroso e mais saudaacutevel o
emagrecimento
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3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS
Levantei-me as pernas agora quase firmes desci os degraus da porta ateacute a calccedilada
buscando algo para comer e o que havia no meu raio de visatildeo era uma carrocinha de
pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me desde que horas ele estava ali se
tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda
agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido Cheguei junto dele remexendo a bolsa
agrave procura de uns trocados que tivessem restado da farra de salgadinhos e biscoitos da
Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada desde entatildeo (REZENDE 2014
p147)
Comida eacute alimento nutriccedilatildeo sobrevivecircncia Eacute palavra feita de carne de aboacutebora de
arroz Tangiacutevel Comemos para nutrir as ceacutelulas mas tambeacutem para garantir nossa autonomia
porque comida eacute escolha eacute expressatildeo de si mesmo gosto disso prefiro aquilo Comida eacute
exerciacutecio de liberdade no quando no quanto no onde no que comer E comer eacute matar a fome e
satisfazer o apetite na comida de rua servida no papel pardo ou na mesa posta com talheres
prato copo guardanapo Comemos intransitivos ou transitivos sozinhos ou acompanhados
Comemos para atravessar mais um dia para seguir existindo como oacutergatildeos viacutesceras cinco
sentidos Mastigar salivar engolir digerir metabolizar excretar eis o trajeto da comida atraveacutes
do organismo tornando-se parte de quem somos E comemos para continuar sendo
31 QUARENTA DIAS
Quarenta dias eacute o livro escrito por Maria Valeacuteria Rezende editado pela Editora Record
em 2014 A narrativa traz a histoacuteria de Alice mulher de meia-idade que a pedido de sua filha
muda-se de Joatildeo Pessoa para Porto Alegre A contragosto deixa sua casa e sua vida as amizades
e os afazeres e segue a demanda da filha para que se torne lsquovoacute profissionalrsquo jaacute que a moccedila e seu
esposo decidem ter um filho
A personagem faz a mudanccedila de tudo o que tem caixas e caixas para a nova cidade em
apartamento escolhido e alugado pela filha e o genro No entanto em um jantar na casa do casal
recebe a notiacutecia de que decidiram passar um periacuteodo fora do paiacutes para suas especializaccedilotildees
acadecircmicas Assim adiaram os planos de gravidez motivo pelo qual ela havia abandonado seu
habitat e aceito uma imposiccedilatildeo pelo desejo da moccedila em ser matildee Partiriam em poucos dias logo
apoacutes Alice ter chegado em sua nova moradia
93
No desterro de seu lar e sozinha na capital gauacutecha a personagem transfere seu territoacuterio
de nutriccedilatildeo para a rua para o espaccedilo representado pelo coletivo pela cidade e natildeo para a cozinha
nova e moderna do apartamento Haacute sobretudo um deslocamento primordial na narrativa a
lsquoexpulsatildeorsquo de suas reflexotildees para as paacuteginas do diaacuterioepiacutestola em que Alice escreve de si
dirigindo-se a uma interlocutora Barbie a figura na capa do caderno que encontrara entre as
caixas da mudanccedila
No iniacutecio de sua vida em Porto Alegre esconde-se em casa fingindo ter viajado para o
interior na casa de primos Entatildeo mune-se de um motivo benevolente que usa para justificar
suas caminhadas a qualquer pessoa com quem encontre a busca freneacutetica pelo rapaz conterracircneo
Ciacutecero Arauacutejo perdido no Sul Nessa missatildeo esquece o proacuteprio endereccedilo e decide por viver um
paradoxo casa que natildeo eacute casa rua que natildeo eacute rua Externo que se torna interno porque eacute parte
dela Rua que eacute casa parece em sendo casa na rua encontra abrigo para a solidatildeo na rua
encontra alimento para as fomes que sente Fome de comida sim mas para aleacutem desta a fome de
ser lsquosi mesmarsquo de novo
Sozinha perde-se de si de seus referenciais familiares dos telefones que tem na
memoacuteria dos sentidos de sua proacutepria vida Tem no desaparecido a razatildeo temporaacuteria para sua
andanccedila sem paradeiro Procurar um jovem de sua terra que veio para Porto Alegre eacute uma boa
desculpa para algueacutem que percorre uma cidade em seus pontos mais perigosos ou naqueles mais
dramaacuteticos como o Hospital de Pronto-Socorro Nem vestiacutegio de Ciacutecero mas laacute encontra um
banco de madeira onde pode dormir
Em seus trajetos transfere o espaccedilo ocupado pela cozinha que eacute o de preparar a nutriccedilatildeo
para um espaccedilo coletivo e itinerante Padarias pequenos botecos nas vilas que percorre carrinhos
de pipoca e de cachorro-quente restaurante da rodoviaacuteria em que escuta um sotaque familiar
comida ofertada aos sem-moradia nas madrugadas Sem desejar voltar para casa Alice passa a
habitar a rua Faz amigos ao longo do caminho pessoas que se preocupam mais com ela do que
sua filha Mas isso ela quer esquecer quer apagar e estabelece um objetivo firme de resgatar um
desaparecido pelos recantos mais insoacutelitos e arriscados da cidade
A representaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo itinerante eacute um fator muito consistente na obra
Porque a cozinha eacute territoacuterio fiacutesico definido por moacuteveis objetos e eletrodomeacutesticos que a
compotildeem mas eacute tambeacutem simboacutelico nela vivem nutriccedilatildeo afeto famiacutelia intimidade Transferir
tal importacircncia para o externo para o alheio a si eacute como um transplante ao contraacuterio
94
O deslocamento na representaccedilatildeo dessa forccedila que transcende o objetivo meramente
nutricional expressa a ausecircncia de ninho vivenciada pela personagem Ela escolhe transplantar
sua vida para o lado de fora da porta escolhe a solidatildeo no meio do coletivo para apagar a solidatildeo
em silecircncio dentro das paredes de uma casa (e natildeo um lar) que a filha e o genro definiram para
ela Ao menos assim eacute ela quem escolhe Autonomia O que comer onde viver onde dormir
onde se banhar Por pior que seja o banho na rodoviaacuteria eacute sua voz eacute sua decisatildeo Por pior que
seja a noite no banco duro de madeira do Pronto-Socorro a pipoca do carrinho que fica ali na
frente o natildeo-ter-para-onde-ir fingindo estar na busca desenfreada pelo desaparecido eacute sua
proacutepria voz que precisa escutar Eacute pelo aparecimento de sua identidade perdida que faz
peregrinaccedilotildees pelos becos mais sombrios por onde se propotildee a percorrer
Ao longo do percurso do livro enquanto parece perder-se cada vez mais de seus
referenciais de sua memoacuteria mais firma o passo mais decide onde ir E suas frases no diaacuterio
vatildeo ganhando pontos-finais ao relatar o ocorrido agrave medida em que se lembra e se torna mais
capaz de contar da redescoberta de sua identidade Na crise da personagem atraveacutes desse
desalojamento de um habitat seguro dessa saiacuteda para fora da porta ocorre a habitaccedilatildeo de um
novo espaccedilo o proacuteprio eu Em seus percursos defronta-se com a perda dos referenciais antigos
da casa de sempre da memoacuteria que lhe permitiria voltar para o eixo seguro da nutriccedilatildeo estaacutevel
na intimidade soacutelida da cozinha
Alice desloca-se durante a maior parte da narrativa Desloca-se de sua terra natal para
Porto Alegre e nessa capital transita entre avenidas principais e becos escondidos entre
viadutos e casas de estranhos entre floriculturas e terrenos baldios Desloca-se de si mesma
quando decide natildeo voltar agrave casa escolhida para ela Escolhida eacute voz passiva voz que ela quer
transcender
Distrai-se com a histoacuteria do desaparecimento de Ciacutecero Arauacutejo com a confusatildeo mental
que se instala entre fome-frio-sono-exaustatildeo Tudo isto para natildeo lembrar volta-se para fora e
desse modo esquece o dentro Desloca o foco das confissotildees que faz a si sendo um diaacuterio para
Barbie como um sucessivo contar de eventos e emoccedilotildees em escritos que mais parecem cartas
Mais uma vez dentro e fora se conjugam pois acontecem num simultacircneo mas estatildeo
dissociados Alice dirige para fora suas reflexotildees para um terceiro entatildeo dissocia-se de si para
olhar para si
95
Em um determinado ponto refere ldquoNatildeo Barbie esta noite natildeo dormi em saguatildeo nem em
parque nenhum Natildeo vecirc como estou bem-disposta a sentar-me pegar a caneta e continuar
escrevendo aqui nesta cozinha depois desta noite bem-dormida na suiacutete deste apartamento que
me esforccedilo para aceitar finalmente como meurdquo (REZENDE 2014 p163)
Estaacute dentro de casa mas ainda natildeo faz parte dela em verdade situa-se fora dali no sentir
Demonstra isso quando usa lsquobem-disposta nesta cozinha deste apartamento como meu me
esforccedilo para aceitarrsquo Tal dissociaccedilatildeo identitaacuteria eacute expressa por um permanente desconexatildeo
consigo Perde-se de sua casa e de seus referenciais para descobrir o paradeiro de Ciacutecero Arauacutejo
com o firme propoacutesito de encontrar um motivo que alinhave seus dias em Porto Alegre dentro de
si o sentido estaacute fora de si Nessa desconexatildeo descobre uma Alice nascente
Chega Barbie agora eu paro mesmo que jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia
guria a solidariedade silenciosa mas agora vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a
mal taacute natildeo digo que seja pra sempre quem sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo
a limpo (REZENDE 2014 p245)
Eacute possiacutevel ler que aquilo que estava fora sua narrativa epistolar para a Barbie seraacute
entregue ao mundo da gaveta o interno e passe a habitar esse lsquodomiciacuteliorsquo escondido Entretanto
Alice jaacute internalizou marcas de linguagem regionais como as tachadas em negrito lsquoguriarsquo e lsquotu
natildeo leva a mal taacutersquo significando esse ponto uma transformaccedilatildeo de aspectos de sua identidade a
incorporaccedilatildeo da linguagem oral como proacutepria Internalizou o que estava fora tornou-o seu
tambeacutem passou a sentir-se parte Como resultado guardou no interno na gaveta seu diaacuterio que
sendo comunicaccedilatildeo consigo era dirigido a um interlocutor
Esse eacute o permanente tracircnsito do livro essa dissociaccedilatildeo permeia cada vivecircncia e eacute atraveacutes
dessa mobilidade que Alice pode ver a si mesma e se transformar Sacudida pelo real perigo de
sua itineracircncia permanente aproxima-se do fim de sua busca por um Ciacutecero que nem espera mais
encontrar
Ao longo da narrativa haacute frases sem ponto final no teacutermino dos capiacutetulos e muitas vezes
com ideias inacabadas Um elemento ligado a esse aspecto eacute o das muacuteltiplas linguagens surgem
epiacutegrafes vindas de outros autores contemporacircneos e em vaacuterias partes do livro elementos
graacuteficos aludindo a folhetos colados no diaacuterio Assim a ruptura da linguagem linear adotando
uma expressatildeo proacutepria eacute composta por frases descontiacutenuas e de outras em que a viacutergula daacute
apenas a pausa necessaacuteria ao ritmo da voz sem preocupaccedilotildees formais com a gramaacutetica
Prevalece aliaacutes o registro do informal com letras maiuacutesculas seguindo viacutergulas interrogaccedilotildees
96
no meio da frase sem uma letra maiuacutescula a seguir e assim por diante trazendo muito mais um
lsquocomo se falarsquo do que um lsquocomo se lecircrsquo
Tal elemento alia-se a um projeto graacutefico que apresenta aleacutem de texto imagens para
contemplar a lsquoformarsquo do livro como um diaacuterio Esta complementaridade toca em um tema de
grande relevacircncia no contemporacircneo a ligaccedilatildeo das artes para expressar um todo que ultrapasse
os territoacuterios particulares uma intersecccedilatildeo de saberes e de poeacuteticas que independentes em sua
importacircncia complementem-se As figuras lsquocoladasrsquo no diaacuterio natildeo parecem ter conexatildeo entre si
mas transmitem a ideia de uma escolha Foram postas ali por Alice Natildeo parece haver unidade
entre as imagens Colagem de figuras mas tambeacutem de vinhetas que se tornam epiacutegrafes sem
conexatildeo aparente entre si Essa ausecircncia de conexatildeo eacute possivelmente o que a obra pretende
comunicar com suas dissociaccedilotildees e com as frases descontiacutenuas agrave medida que a personagem
percorre o trajeto da autonomia as frases vatildeo ganhando finalizaccedilatildeo Ela comeccedila a decidir
Nesse livro a ausecircncia de unidade parece representar exatamente o contraacuterio sua
unidade Outro ponto a ser ressaltado eacute o fato de o diaacuterio ser escrito em uma mistura de tempos
natildeo seguindo a cronologia tiacutepica dos diaacuterios Muito do texto referente agrave eacute registrado em olhar
retrospectivo a todo o periacuteodo e natildeo segue uma ordem temporal tiacutepica em que a escrita iacutentima
sucede cada evento Mistura de tempos e de autores escolhidos para as epiacutegrafes e de figuras
selecionadas para compor o percurso lsquograacuteficorsquo da personagem como a nota da padaria a
propaganda da imobiliaacuteria a divulgaccedilatildeo da cliacutenica de traumatologia e por aiacute vai
Quarenta dias acontece no cerne mais cru da capital as vilas as avenidas movimentadas
a rodoviaacuteria os viadutos de moradores de rua os becos as paradas de ocircnibus o pronto-socorro
os cenaacuterios tiacutepicos de apartamento de lsquocidade grandersquo
Alice eacute uma personagem urbana implantada em Porto Alegre sem colar-se agrave cidade mas
que quanto mais se torna moradora de rua mais se torna pertencente ao mapa porto-alegrense
Mesmo sem perceber Faz-se aderida agraves ruas aos becos agraves vilas aos botecos agraves paradas de
ocircnibus onde dorme Eacute fio da trama quer estar fora porque reluta em aceitar a vida que a ela foi
imposta pela filha Neste processo cria uma vida para si cria um olhar para a cidade que vai
habitando No geruacutendio Alice torna-se parte Faz-se parte quando adentra a rua os viadutos
habitados agrave noite os crimes em matagais o cafeacute e o mate e o cachorro-quente oferecidos pelos
voluntaacuterios na madrugada O banho na rodoviaacuteria o banco duro de madeira onde dorme no HPS
Alice vai tomando voz vai tomando-se de sua voz que haacute tempos natildeo ouvia
97
32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS
Fenocircmenos psiacutequicos como a consciecircncia a memoacuteria a emoccedilatildeo o pensamento e o juiacutezo
criacutetico entre outros satildeo estudados principalmente pelo campo da Fenomenologia Psiquiaacutetrica
esses constituem os pilares para a avaliaccedilatildeo do estado mental de um indiviacuteduo O psiquiatra
examina a qualidade da expressatildeo dos mesmos na entrevista com o paciente verificando se estatildeo
dentro da normalidade ou se apresentam desvios compatiacuteveis com um quadro psicopatoloacutegico
Algumas capacidades satildeo compostas por um conjunto desses fenocircmenos e natildeo apenas por um
esse eacute o caso da autonomia
O indiviacuteduo natildeo nasce com autonomia Esta deve ser estimulada pelos pais desde o
momento em que a crianccedila deixa de mamar no peito e comeccedila a receber a alimentaccedilatildeo soacutelida
Brinca de fechar a boca enquanto a colher vem com a papinha O comer eacute a primeira autonomia
depois da dependecircncia representada pela amamentaccedilatildeo Entatildeo a crianccedila aprende a segurar a
colher entatildeo pouco a pouco os outros talheres Aprende a gostar de comer isso ou aquilo a
apontar o que deseja em seu prato A autonomia vai sendo aprendida na infacircncia pelo engatinhar
e pelo caminhar Segue-se o controle dos esfiacutencteres que vai sendo aprendido o limpar-se o
tomar banho o ficar sem os pais no maternal E tantas outras conquistas ensinadas e estimuladas
para a aquisiccedilatildeo dessa capacidade Entretanto limitaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas podem desde o
iniacutecio da vida restringir seu desenvolvimento
Jaspers compreende as manifestaccedilotildees psiacutequicas tendo como base elementos da
Fenomenologia Desse modo a autonomia resultaria de um conjunto de fatores que em bom
funcionamento determinariam a adequada manutenccedilatildeo dessa capacidade Em contrapartida o
neurocientista Antocircnio Damaacutesio eacute apresentado nesta fundamentaccedilatildeo por suas pesquisas
neurobioloacutegicas sobre o fenocircmeno da consciecircncia na qual aponta existir o nuacutecleo da consciecircncia
de si Nesta estaria o cerne para a autonomia
A escolha e a independecircncia paracircmetros que estatildeo associados agrave essa capacidade
necessitam que haja no ser humano em primeiro lugar a consciecircncia e nesta a consciecircncia de
si a escolha e a decisatildeo acontecem no domiacutenio do pensamento mas envolvem tambeacutem as
emoccedilotildees (representadas pelo afeto e o humor) e o juiacutezo criacutetico Por fim a escolha se realiza
atraveacutes de uma accedilatildeo expressa pela conduta Todos esses elementos satildeo fenocircmenos psiacutequicos que
98
compotildeem a capacidade de autonomia de um indiviacuteduo Quando essa se apresenta reduzida por
algum dos paracircmetros indicados avalia-se a presenccedila ou a ausecircncia de normalidade por
conseguinte avalia-se a existecircncia de psicopatologia Os outros fenocircmenos - atenccedilatildeo orientaccedilatildeo
memoacuteria sensopercepccedilatildeo inteligecircncia e linguagem- estatildeo presentes na avaliaccedilatildeo do estado
mental do indiviacuteduo compondo tambeacutem sua autonomia no entanto apresentam-se em grau de
menor relevacircncia para seu desenvolvimento
Aleacutem de escolha independecircncia consciecircncia de si e decisatildeo outras expressotildees podem
ser associadas a seu exerciacutecio liberdade individualidade vontade self eu Em termos
etmoloacutegicos a palavra autonomiacutea procede do latim autonomĭa e esta por sua vez do grego
αὐτονομία (autonomia) formada por αὐτός (autoacutes) que significa lsquomesmorsquo e νόμος (noacutemos) lsquoleirsquo
ou lsquonormarsquo Assim seria possiacutevel compreender que o significado aponta para a noccedilatildeo de
autonomia como lsquoleis para si mesmorsquo ou seja as leis que o proacuteprio indiviacuteduo define para sua
vida
Considerando a autonomia como capacidade eacute necessaacuterio apontar que em casos de
sofrimento psiacutequico essa apresenta-se muitas vezes reduzida pois o sofrer acaba por reduzir a
possibilidade de o indiviacuteduo sentir-se livre para as proacuteprias escolhas Em ateacute que ponto este
quadro representa uma circunstacircncia normal e a partir de qual se torna patoloacutegico O sofrimento
pode resultar de uma crise vital com duraccedilatildeo por um periacuteodo esperado e apresentaccedilatildeo de
sintomas dentro da normalidade ou pode resultar do adoecimento do indiviacuteduo com sintomas
presentes em intensidade maior e por periacuteodo mais longo A restriccedilatildeo da liberdade e portanto da
autonomia ocorreraacute de acordo com o tipo e com a duraccedilatildeo deste sofrimento Tal diminuiccedilatildeo na
narrativa pode ser vista de dois modos como parte do sofrimento psiacutequico vivenciado pela
personagem e como perda real de sua experiecircncia de autonomia jaacute que teve sua vinda ao Sul
definida pela escolha da filha Natildeo por sua decisatildeo Eacute por perceber-se nesta condiccedilatildeo que Alice
parte na direccedilatildeo de sua autonomia para sentir-se livre novamente
Karl Jaspers apresenta elementos relacionados agrave autonomia em sua obra Psicopatologia
geral sem que esse termo propriamente dito seja conceituado ou explicitado A expressatildeo mais
proacutexima eacute a da consciecircncia do eu considerada dentre o que ele estabelece como lsquofenocircmenos
subjetivos da vida psiacutequicarsquo Esta consciecircncia estaacute na base fundamental para o desenvolvimento
da autonomia ao lado de outro fenocircmeno apontado o da lsquoconsciecircncia do corporsquo
99
Na apresentaccedilatildeo da lsquoconsciecircncia do eursquo Jaspers define quatro componentes o primeiro eacute
o sentimento de atividade uma consciecircncia de atividade do eu Este se refere a tudo o que ocorre
na vida psiacutequica e que o indiviacuteduo identifica como seu a exemplo de percepccedilotildees sensaccedilotildees do
corpo lembranccedilas representaccedilotildees pensamentos e sentimentos Todas essas atividades do eu que
o caracterizam satildeo operaccedilotildees pessoais realizadas em si mesmo e identificadas como proacuteprias e
compotildeem o que o autor denomina personalizaccedilatildeo Quando haacute alteraccedilatildeo desses aspectos usa-se o
termo despersonalizaccedilatildeo fenocircmeno que pode ser descrito como o estranhamento do eu a
percepccedilatildeo de que tudo o que ocorre com o indiviacuteduo eacute na verdade alheio ao mesmo
Tal estranhamento ocorre no mundo das percepccedilotildees junto agrave ausecircncia de sensaccedilotildees
normais do proacuteprio corpo agrave incapacidade subjetiva de recordar-se de dados referentes a si agrave
inibiccedilatildeo dos sentimentos e ao automatismo de processos voluntaacuterios Tudo passa a constituir um
conjunto de atividades alheias ao eu e que em condiccedilotildees de normalidade deveriam ser
compreendidas como proacuteprias
O segundo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia da unidade ou seja a
unidade do eu Esta se refere agrave possibilidade de o indiviacuteduo perceber a si mesmo como unidade
ser um soacute no mesmo instante e natildeo como dois seres distintos ainda que atraveacutes de accedilotildees
diferentes (como ouvir a proacutepria voz enquanto fala e reconhecer que eacute sua proacutepria voz) A
alteraccedilatildeo da unidade do eu ocorre quando haacute um desdobramento da percepccedilatildeo de si observando
o eu como se estivesse fora dele
O terceiro componente da consciecircncia do eu eacute a consciecircncia da identidade ou seja a
identidade do eu Com a frase lsquosou o mesmo de antesrsquo refere-se agrave identidade como a consciecircncia
de ser o mesmo indiviacuteduo no seguir do tempo a constacircncia de si proacuteprio A alteraccedilatildeo deste
fenocircmeno leva o paciente a perceber o lsquoeursquo de um periacuteodo de vida como diferente do lsquoeursquo de
outro periacuteodo como antes e depois da instalaccedilatildeo de uma doenccedila psiacutequica por exemplo
O uacuteltimo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia do eu em oposiccedilatildeo ao mundo
externo e ao outro em que o indiviacuteduo eacute capaz de reconhecer a proacutepria identidade e de percebecirc-la
distinta do mundo externo e da identidade de outra pessoa Existe nesse componente a clara
contraposiccedilatildeo entre este indiviacuteduo e o mundo externo
Tais elementos constituem assim a lsquoconsciecircncia do eursquo base para a percepccedilatildeo das
proacuteprias necessidades e desejos neste sentido constituem tambeacutem a base para as escolhas
individuais no plano do pensamento dos sentimentos e das accedilotildees compreendidas pelo indiviacuteduo
100
como proacuteprias a si Ao lado dos componentes apresentados estaacute a consciecircncia do corpo Sobre
essa consciecircncia Jaspers refere
[] sou consciente do meu corpo como de minha existecircncia e contemporaneamente eu o
vejo com os olhos e o toco com as matildeos O corpo eacute a uacutenica parte do mundo que deve ser
sentida ao mesmo tempo pelo interno e percebida na superfiacutecie Esse eacute um objeto para
mim e sou esse mesmo corpo Satildeo duas coisas diferentes como me sinto
corpoereamente e como me percebo como objeto mas as coisas satildeo ligadas de modo
indissoluacutevel (JASPERS 2000 p95)
De acordo com o autor essa deve ser conhecida do ponto de vista fenomenoloacutegico
mediante a percepccedilatildeo de nossa experiecircncia global com nosso corpo Essa consciecircncia estaacute mais
proacutexima agrave lsquoconsciecircncia do eursquo nas atividades musculares e de movimento mais distantes das
sensaccedilotildees associadas ao coraccedilatildeo e agrave circulaccedilatildeo e ainda mais afastadas das sensaccedilotildees oriundas da
atividade vegetativa Enquanto o movimento eacute resultado das funccedilotildees voluntaacuterias os mecanismos
fisioloacutegicos vinculados ao coraccedilatildeo agrave circulaccedilatildeo e agrave atividade vegetativa satildeo inerentes agrave vida do
ponto de vista bioloacutegico e portanto involuntaacuterios A consciecircncia do corpo associada agravequela do
eu eacute referida por Jaspers por determinados fatores
Temos um sentimento especiacutefico da nossa existecircncia corpoacuterea no movimento e no
comportamento na forma na leveza e graccedila ou no peso na falta de agilidade motora na
impressatildeo que desejamos que nosso corpo desperte no outro no estado de fraqueza ou
de forccedila nas alteraccedilotildees da sauacutede [] A experiecircncia do proacuteprio corpo eacute ligada
estritamente do ponto de vista fenomenoloacutegico com a experiecircncia do sentimento das
pulsotildees instintivas da consciecircncia do eu (JASPERS 2000 p96)
Essas duas expressotildees da consciecircncia a do eu e a do corpo compotildeem o indiviacuteduo capaz
de perceber a si mesmo como unidade com uma identidade constante no tempo uacutenica em si
mesma e contraposta ao mundo externo a si e a outras pessoas De acordo tambeacutem com Jaspers
ldquo[] o corpo eacute a realidade da qual se pode dizer eu sou esse mesmordquo (JASPERS 2000 p383) O
autor refere que ldquo[] a situaccedilatildeo fundamental do ser humano eacute a estar no mundo como ser
singular finito ser dependente mas ter a possibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevel limitado
por confins obrigatoacuteriosrdquo (JASPERS 2000 p352) Em tal reflexatildeo a autonomia do indiviacuteduo
estaacute nesta lsquopossibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevelrsquo determinada pelo autor Entretanto ele
define tal possibilidade associada a confins obrigatoacuterios que delimitam o espaccedilo individual
Jaspers estabelece os limites entre autossuficiecircncia e dependecircncia apontando que somos
seres dependentes em nossa realidade e que a autossuficiecircncia completa eacute um ideal inatingiacutevel
101
[] no homem haacute a tendecircncia a imaginar-se um ser ideal que fechado em si seja
autossuficiente e que satisfeito em si mesmo viva sem sentir necessidade de qualquer
coisa do externo porque ele existe em si mesmo em abundacircncia infinita Se o homem
quiser tornar-se tal ser deveraacute compreender de modo draacutestico que eacute simplesmente
dependente em tudo Ele como ser vital tem necessidades que soacute podem ser satisfeitas
pelo externo Ele deve viver e valer na sociedade para participar aos bens necessaacuterios agrave
vida Ele deve viver com outros seres humanos em reciprocidade (JASPERS 2000
p354)
Assim para Jaspers a consciecircncia de si e a consciecircncia do corpo formam a unidade do ser
individual que pode agir em um espaccedilo mutaacutevel no qual o indiviacuteduo eacute consciente se si mesmo e
das proacuteprias accedilotildees mas cuja autossuficiecircncia eacute condicionada a confins obrigatoacuterios a realidade
externa os bens necessaacuterios agrave vida (alimentos moradia recursos econocircmicos para vestir-se e
deslocar-se por exemplo) e os outros indiviacuteduos com quem este interage em suas relaccedilotildees
interpessoais A autonomia assim acontece dentro de um espaccedilo definido por limites reais do
mundo externo
O neurologista e neurocientista Antonio Damaacutesio assim como Jaspers tambeacutem
estabelece uma associaccedilatildeo direta entre a consciecircncia do eu e o corpo O elemento da consciecircncia
do indiviacuteduo sobre si mesmo eacute denominado por ele de Self e eacute parte da estrutura que define
como consciecircncia Damaacutesio parte da comparaccedilatildeo do ser humano com organismos unicelulares e
estabelece
Uma chave para compreendermos os organismos vivos desde aqueles compostos de
uma uacutenica ceacutelula ateacute os formados por bilhotildees de ceacutelulas eacute a definiccedilatildeo de sua fronteira a
separaccedilatildeo entre o que estaacute dentro deles e o que estaacute fora A estrutura do organismo estaacute
dentro da fronteira e a vida do organismo eacute definida pela manutenccedilatildeo dos estados
internos agrave fronteira E a individualidade singular depende dessa fronteira (DAMAacuteSIO
2000 p178)
A referecircncia de Antonio Damaacutesio estaacute de acordo com a perspectiva de Karl Jaspers no
que tange agrave lsquoindividualidade singularrsquo dentro da fronteira separada do mundo externo a parte de
fora dessa fronteira O neurocientista explicita que o indiviacuteduo singular deve apresentar
sobretudo ldquo[] um grau notaacutevel de invariacircncia estrutural para que consiga oferecer uma unidade
de referecircncia no decorrer de longos periacuteodosrdquo acrescentando que ldquo[] de fato continuidade de
referecircncia eacute o que o self precisa proporcionarrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Essa continuidade de
referecircncia coincide com um dos componentes da lsquoconsciecircncia do eursquo definida por Jaspers aquele
em que o indiviacuteduo permanece com a percepccedilatildeo de si mesmo ao longo do tempo
102
O aspecto que se relaciona agrave reflexatildeo sobre a autonomia a partir da leitura de Damaacutesio
encontra-se em tal continuidade ligada por sua vez ao que ele aponta como estabilidade Este
autor refere que ldquo[] quando refletimos acerca do que estaacute por traacutes da noccedilatildeo de self encontramos
a noccedilatildeo do indiviacuteduo singular E quando pensamos no que estaacute por traacutes da singularidade do
indiviacuteduo encontramos a estabilidaderdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Quando se refere agrave noccedilatildeo de
estabilidade Damaacutesio estaacute na verdade apresentando a ideia de que um organismo vivo deve ter
constacircncia em seu meio interno para manter a vida e essa constacircncia pode ser explicada nas
palavras do autor como ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados internos de modo
que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Ao trazer a noccedilatildeo de constacircncia o autor estaacute falando em organismo e sobretudo em
sobrevivecircncia A chave de sua reflexatildeo reside no fato de remeter-se agrave noccedilatildeo de estabilidade dos
paracircmetros do organismo compatiacuteveis com a vida para chegar ao fenocircmeno da consciecircncia do
eu Damaacutesio aponta que
Um organismo simples formado de uma uacutenica ceacutelula digamos uma ameba natildeo apenas
estaacute vivo mas se empenha em continuar vivo Sendo uma criatura sem ceacuterebro e sem
mente a ameba natildeo sabe sobre as intenccedilotildees do seu proacuteprio organismo assim como noacutes
sabemos sobre nossas intenccedilotildees equivalentes [] O que estou tentando mostrar eacute que o
iacutempeto de manter-se vivo natildeo eacute um avanccedilo recente Natildeo eacute uma propriedade exclusiva
dos seres humanos De um modo ou de outro dos organismos simples aos complexos a
maioria dos seres vivos apresenta essa propriedade O que efetivamente varia eacute o grau
em que os organismos tecircm conhecimento desse iacutempeto Poucos deles tecircm Mas o iacutempeto
estaacute presente quer o organismo saiba disso ou natildeo Graccedilas agrave consciecircncia os humanos
satildeo em grande parte cientes dele (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Eacute possiacutevel compreender entatildeo a referida estabilidade como o iacutempeto do organismo em
manter-se vivo nos seres humanos existe a consciecircncia desse iacutempeto O indiviacuteduo singular
como denomina o autor eacute consciente de sua sobrevivecircncia que ocorre no ambiente interno de
sua fronteira ou seja em seu corpo Para conservaacute-la com a estabilidade necessaacuteria agrave
permanecircncia de vida deve manter constantes paracircmetros internos em sua fisiologia Comer
dormir beber liacutequidos proteger-se de extremos de temperatura urinar e defecar algumas das
funccedilotildees que realizamos conscientemente para responder a essa finalidade cumprimos
necessidades vitais respondemos ao iacutempeto do organismo em manter-se vivo mas o realizamos
com o claro propoacutesito de fazecirc-lo Damaacutesio refere que ldquo[] a cada momento o ceacuterebro tem agrave sua
disposiccedilatildeo uma representaccedilatildeo dinacircmica de uma entidade com variaccedilotildees limitadas de estados
possiacuteveis- o corpordquo (DAMAacuteSIO 2000 p186)
103
A consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo portanto estatildeo na base do indiviacuteduo
singular A manutenccedilatildeo do ambiente dentro da fronteira nosso corpo eacute realizada por nossa
consciecircncia no cumprimento de nossas funccedilotildees vitais de certo modo escolhemos cumprir tais
funccedilotildees ao respeitarmos necessidades fisioloacutegicas entre elas comer e dormir Assim
sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas por um elemento em comum a consciecircncia que o
indiviacuteduo tem de si mesmo Entretanto deve-se salientar que a autonomia eacute uma capacidade que
poderaacute existir em maior ou menor grau durante o ciclo vital pois depende das possibilidades
fiacutesicas e psiacutequicas do ser humano em responder agraves exigecircncias da vida dentro de paracircmetros de
normalidade
Alguns elementos podem restringir a capacidade de autonomia sendo o sofrimento
psiacutequico um deles por reduzir a liberdade de o indiviacuteduo em fazer suas escolhas Tal reduccedilatildeo eacute
determinada pelo proacuteprio sofrimento inerente a patologias psiquiaacutetricas ou a crises vitais como
por exemplo a reaccedilatildeo a um evento traumaacutetico
Massimo Biondi em seu livro A mente selvagem um ensaio sobre a normalidade nos
comportamentos humanos apresenta o viacutenculo do sofrimento subjetivo com a reduccedilatildeo da
liberdade Sobre esse tema discute o limite entre normalidade e psicopatologia quando se aborda
o indiviacuteduo que sofre Segundo esse psiquiatra italiano no capiacutetulo intitulado lsquoO sofrimento
subjetivo e a liberdadersquo que o sofrimento subjetivo e a anguacutestia a reduccedilatildeo ou falta de liberdade e
a reduccedilatildeo da vontade satildeo aspectos que invariavelmente acompanham o distuacuterbio psiacutequico quanto
a este pode-se falar da importacircncia da vivecircncia subjetiva de determinado evento ou situaccedilatildeo
existencial para procurar definir os limites entre a normalidade psiacutequica e a patologia
O sofrimento subjetivo termo empregado por esse autor constitui um criteacuterio para
diversos diagnoacutesticos psiquiaacutetricos e tem como eixos principais a experiecircncia subjetiva e aquela
psiacutequica a primeira referente agrave percepccedilatildeo subjetiva de um evento existencial ou de um
sentimento pode ser avaliada apenas indiretamente por suas manifestaccedilotildees e pelo relato do
indiviacuteduo que sofre A segunda em linhas gerais refere-se agrave resposta do indiviacuteduo em termos
psiacutequicos ou seja atraveacutes de alteraccedilotildees dos fenocircmenos do estado mental conduzindo ao
diagnoacutestico Massimo Biondi aponta quatro componentes do que denomina sofrimento psiacutequico
a) Um estado de sofrimento subjetivo mesmo que natildeo espontaneamente referido pela
pessoa em niacutevel verbal b) uma reduccedilatildeo ou perda da liberdade sobre os proacuteprios
pensamentos e sobre as proacuteprias accedilotildees c) uma alteraccedilatildeo do proacuteprio projeto de existecircncia
104
e da capacidade de projetar o futuro d) uma alteraccedilatildeo reduccedilatildeo ou anulaccedilatildeo da vontade
(BIONDI 1996 p40)
O segundo componente relativo agrave reduccedilatildeo ou perda da liberdade eacute elemento comum e
distintivo que atravessa a existecircncia de pessoas com distuacuterbios psiacutequicos Tal elemento eacute um dos
criteacuterios de patologia psiquiaacutetrica de uma relevante instituiccedilatildeo da especialidade mas natildeo estaacute
restrito apenas aos diagnoacutesticos tal perda estaacute associada ao proacuteprio sofrimento Assim podemos
encontrar em indiviacuteduos que atravessam crises vitais essa perda de liberdade significando
reduccedilatildeo da autonomia de algueacutem que atravessa uma situaccedilatildeo de sofrimento subjetivo sem
necessariamente tal quadro constituir alguma patologia psiquiaacutetrica definida
Ainda de acordo com Biondi um indiviacuteduo pode apresentar um distuacuterbio psiquiaacutetrico
como causa de um evento especiacutefico existem quadros em que o evento estressante tem um claro
papel patogecircnico Nesses casos o sofrimento subjetivo gerado pelo evento aparece como
principal mediador que causa favorece e acompanha o estado psicopatoloacutegico Existem
entretanto condiccedilotildees em que o sofrer subjetivo natildeo eacute indicativo de um estado de doenccedila
propriamente dito mas pode estar associado a condiccedilotildees compreendidas dentro da normalidade
Um estado de sofrimento subjetivo decorre por exemplo de situaccedilotildees comuns e
lsquonormaisrsquo como luto perda de trabalho dificuldades afetivas ou conjugais fracasso escolar ou
profissional natildeo necessariamente evoluindo para um quatro de psicopatologia Algumas
situaccedilotildees inclusive satildeo vivenciadas como positivas pelo indiviacuteduo porque reestruturam algum
foco de seu mundo interno conduzindo a uma mudanccedila na percepccedilatildeo de determinadas
experiecircncias Em tais casos o sofrimento pode ser atenuado ou ateacute mesmo ter um valor
construtivo Eacute possiacutevel refletir que nessas condiccedilotildees a perda da liberdade seja temporaacuteria mas
ainda assim leve agrave melhora do indiviacuteduo em sua perspectiva de vida pois o sofrimento eacute
condiccedilatildeo muitas vezes para a tomada de consciecircncia da condiccedilatildeo humana
Por fim cabe referir a ressalva do proacuteprio autor
[] a normalidade natildeo eacute uma condiccedilatildeo caracterizada apenas pela ausecircncia de sofrimento
psiacutequico Muitos acontecimentos comuns da vida fazem sofrer agraves vezes de modo mais
intenso e persistente em situaccedilotildees totalmente normais [] O problema estaacute em
reconhecer o sofrimento normal daquele que define em sentido estrito alguma patologia
psiacutequica (BIONDI 1996 p53-56)
A reflexatildeo sobre a perda da liberdade inerente ao sofrimento psiacutequico em vigecircncia de
uma circunstacircncia normal ou de patologia psiquiaacutetrica inclui o entendimento de que a autonomia
105
estaacute reduzida quando este sofrimento acontece O indiviacuteduo durante o periacuteodo em que sofre eacute
limitado na capacidade de fazer escolhas saudaacuteveis para si e tal limitaccedilatildeo decorre da dor psiacutequica
propriamente dita Aleacutem de ser menos livre pois o que pensa e sente eacute condicionado por essa dor
o indiviacuteduo acometido sente menos vontade como refere Biondi ao mencionar o uacuteltimo dos
quatro componentes do sofrimento psiacutequico Pode-se novamente referir a reduccedilatildeo da autonomia
pois dela faz parte tambeacutem o fato de ter vontades e de dar voz agraves mesmas
33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA
O que nos move ao comer Brillat-Savarin em A fisiologia do gosto apontou o lsquosentido
geneacutesicorsquo ldquo[] o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro sendo a
sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecierdquo (DOacuteRIA 2009 p190) A referecircncia agrave obra claacutessica na
literatura gastronocircmica feita pelo pesquisador Carlos Alberto Doacuteria em seu livro A culinaacuteria
materialista eacute seguida pela seguinte reflexatildeo apresentada por ele
[] ora a reproduccedilatildeo da espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do
indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo
ao sexo e ao comer eacute o prazer a busca do agradaacutevel [] Precisamos nos encontrar com
o alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduos e isso se daacute por dois caminhos
pelo prazer e pela dor
A fome eacute a fonte de dor e nos leva em direccedilatildeo ao alimento o prazer em comer tambeacutem
nos leva em direccedilatildeo ao alimento antes que a dor nos imponha o seu caminho (DOacuteRIA
2009 p190)
lsquoA busca pelo alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduosrsquo nas palavras do autor
estaacute associada agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo precisamos
manter a vida para preservaacute-la motivo pelo qual nos nutrimos e copulamos A procura por
alimentos viaacuteveis eacute da histoacuteria do Homo sapiens assim como no ato de cozinhar
experimentavam-se teacutecnicas que favorecessem a ingestatildeo de animais e vegetais
Neste ponto cabe a reflexatildeo de que a procura por novos alimentos e o desenvolvimento
de modos para preparaacute-los resultou da iniciativa em descobrir novas possibilidades comestiacuteveis
da capacidade fiacutesica de fazecirc-lo e de vaacuterias capacidades deste homo sapiens Seria possiacutevel
compreender entre estas a autonomia conduzindo agrave compreensatildeo de que teria sido esta
capacidade em suas primeiras manifestaccedilotildees uma das responsaacuteveis pela partida em direccedilatildeo a
animais e vegetais para comer
106
Caberia citar tambeacutem a autonomia como responsaacutevel pelo desenvolvimento da descoberta
de cozinhar os alimentos aleacutem de aspectos inerentes agrave proacutepria evoluccedilatildeo da espeacutecie Desse modo
ela pode ter permitido a sobrevivecircncia em condiccedilotildees muitas vezes desfavoraacuteveis pelas escolhas
alimentares que favoreceu Sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas assim desde tempos
ancestrais conforme refere Carlos Alberto Doacuteria no mesmo livro
Assim como ensina o arqueozooacutelogo Jean-Denis Vigne haacute 30 mil anos o homem jaacute natildeo
comia soacute o que o seu ambiente imediato lhe oferecia por facilidade de captura mas ia
atraacutes de alimentos capazes de satisfazer suas imagens mentais mais fortes e expressivas
em termos sociais Especialmente nas regiotildees frias no Paleoliacutetico Superior sua dieta era
composta de animais com pouca disponibilidade de vegetais Jaacute no Mesoliacutetico o clima
se estabiliza e nas regiotildees temperadas comeccedila a apresentar maior utilizaccedilatildeo de vegetais
Entre 8000-9000 aC e 5000 aC desenvolve-se a dieta moderna em que as energias
humanas satildeo providas por lipiacutedeos e gluciacutedeos originados de animais e plantas
domesticadas Pode-se dizer entatildeo que dessa eacutepoca em diante o homem produz tudo
aquilo que come isto eacute produz a si proacuteprio do ponto de vista alimentar (DOacuteRIA 2009
p3)
Doacuteria aponta ainda o viacutenculo entre a dieta humana e o processo de hominizaccedilatildeo como a
aquisiccedilatildeo da postura biacutepede e por fim a expansatildeo do Homo erectus ao moderno Homo sapiens
que exigiu uma dieta suficientemente rica em calorias e nutrientes Aleacutem desse aspecto o autor
refere o domiacutenio do fogo que permitiu cozinhar os alimentos e seus benefiacutecios
O incremento de calorias se deu graccedilas tanto a ambientes mais favoraacuteveis quanto agrave
adoccedilatildeo da culinaacuteria da agricultura e de criteacuterios de seleccedilatildeo de espeacutecies alimentares
Cozinhar tornou os alimentos mais macios e faacuteceis de ingerir e viabilizou o consumo de
vegetais como a batata e a mandioca que na forma crua natildeo podiam ter seus nutrientes
metabolizados pelo corpo humano Desse modo esses carboidratos complexos se
tornaram digestiacuteveis e multiplicaram ao extremo as possibilidades alimentares Em
siacutentese esses procedimentos aliados agrave seleccedilatildeo de espeacutecies vegetais permitiram
incrementar sua produtividade sua digestibilidade e seu conteuacutedo nutricional (DOacuteRIA
2009 p32)
O Homo sapiens munido de maiores capacidades alimentava-se de forma cada vez
melhor no sentido de incrementar sua sobrevivecircncia nutrindo-se com maior variedade e melhor
qualidade da dieta adquiria novas capacidades e aprimorava aquelas jaacute dominadas resultando em
aumento na capacidade de descoberta de novos ingredientes e de preparo dos mesmos Instalava-
se assim um ciacuterculo entre o desenvolvimento de potencialidades tornando-o cada vez mais
capaz de sobreviver mesmo em condiccedilotildees adversas bem como de agir sobre tais condiccedilotildees
Tudo isso favorecia a vida e a reproduccedilatildeo da espeacutecie Sobrevivecircncia e autonomia novamente
aliadas pelo alimento O pesquisador norte-americano Michael Pollan alude a uma observaccedilatildeo de
Winston Churchill sobre a arquitetura ldquoPrimeiro cozinhamos nossa comida depois ela nos
107
cozinhourdquo (POLLAN 2014 p15) Pollan explica esse fenocircmeno ocupado pelo cozinhar em
nossa biologia
Portanto cozinhar nos transformou e natildeo apenas por nos tornar mais sociaacuteveis e
corteses Uma vez que o ato de cozinhar permitiu que expandiacutessemos nossas capacidades
cognitivas agrave custa da capacidade digestiva natildeo havia mais como voltar atraacutes nossos
ceacuterebros grandes e intestinos pequenos dependiam agora de uma dieta agrave base de
alimentos cozidos [] Isso quer dizer que cozinhar tornou-se compulsoacuterio- estaacute por
assim dizer cozido em nossa biologia (POLLAN 2014 p15)
A partir daiacute toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo incluindo o surgimento da gastronomia
conduz progressivamente a um grau de evoluccedilatildeo deste campo que ultrapassa a lsquomerarsquo demanda
pela sobrevivecircncia e preservaccedilatildeo da espeacutecie A sobrevivecircncia ao que parece natildeo ocupa mais o
centro no universo da cozinha O campo das accedilotildees e estudos ligados ao preparo do alimento
chega em nosso seacuteculo XXI em niacuteveis de superespecializaccedilatildeo e de glamourizaccedilatildeo nunca antes
imaginados Este eacute o caso para citar exemplos da Cozinha Molecular e dos programas
televisivos que invadem as casas com a famiacutelia muito mais atenta ao programa sobre comer do
que ao proacuteprio comer Hoje em dia aliaacutes sobreviver natildeo atinge a categoria de prioridade de
muitos indiviacuteduos fervorosos em sua autonomia contemporacircnea no desejo insalubre pelo prazer
da comida ou mesmo na pressa da vida urbana morrem por comer da pior forma possiacutevel
Para compreender esse processo vale refletir sobre como chegamos ateacute aqui A histoacuteria a
ser contada parte do ato de cozinhar que ldquo[] eacute como dizem os antropoacutelogos uma atividade que
nos define como seres humanos - o ato com o qual segundo o filoacutesofo e antropoacutelogo Claude
Levi-Strauss a cultura surgerdquo (POLLAN 2014 p13) Para Leacutevi-Strauss conforme referido por
Michael Pollan ldquo[] cozinhar servia como uma metaacutefora da transformaccedilatildeo humana da natureza
crua para a cultura cozidardquo (POLLAN 2014 p13) A respeito do papel do cozinhar para a
cultura Carlos Alberto Doacuteria refere
O que une as abelhas no coletivo eacute uma interaccedilatildeo quiacutemica chamada trofolaxe Ora aleacutem
da integraccedilatildeo neurosensorial devemos considerar que a trofolaxe humana eacute a linguagem
Eacute por intermeacutedio da linguagem que estamos acoplados com outros seres humanos e eacute
tambeacutem com ela que partilhamos nossas experiecircncias ateacute mesmo atraveacutes de enormes
distacircncias no tempo e no espaccedilo Nessa trofolaxe a relaccedilatildeo com os sabores do mundo se
daacute ao mesmo tempo pelo aparelho gustativo e pela cultura (DOacuteRIA 2009 p197)
Deve-se considerar a vasta gama de fatos da histoacuteria da alimentaccedilatildeo desde a preacute-histoacuteria
ateacute nosso terceiro milecircnio tendo como eixo a transformaccedilatildeo na cultura produzida pelo cozinhar
a fim de compreender as mudanccedilas exponenciais que a cozinha atravessou ateacute chegar agrave sua
108
representaccedilatildeo contemporacircnea Nesse contexto faz-se necessaacuterio definir os pontos de referecircncia
que marcaram a transiccedilatildeo a partir da qual sobreviver parece ter deixado de ocupar o motivo por
que o indiviacuteduo se alimenta
Um dos aspectos que podem ser apontados como referenciais na transiccedilatildeo acima abordada
eacute o iniacutecio da chamada restauraccedilatildeo ou seja o surgimento dos restaurantes dentro do nascimento
da hotelaria Em especial a existecircncia da comida de rua passa a ter um papel significativo neste
sentido A valorizaccedilatildeo da gastronomia cada vez maior desde o seacuteculo XVIII teve tambeacutem
influecircncia no processo ao deslocar para o prazer dos sentidos principalmente o do gosto o
centro de sua atenccedilatildeo
Entretanto haacute um ponto chave para a mudanccedila do foco da comida de aspecto nutricional
e gregaacuterio a fator de risco para as mais variadas doenccedilas fiacutesicas como a obesidade e a
hipertensatildeo arterial e para aquelas psiacutequicas como a anorexia e a bulimia tatildeo vigentes no seacuteculo
XXI Este ponto em sua origem estaacute no processo de industrializaccedilatildeo que culminou com o
deslocamento do comer da mesa do lar para o local de trabalho De que forma este pode
relacionar-se agrave sobrevivecircncia e agrave autonomia focos deste subcapiacutetulo Por dois caminhos o
primeiro refere-se ao fato de que o deslocamento restringiu as possiblidades de alimentaccedilatildeo e os
empregados ficaram submetidos ao que fosse oferecido em seu trabalho portanto com restriccedilatildeo
da autonomia o segundo caminho refere-se agraves ofertas alimentares propiciadas nos locais de
trabalho pouco dirigidas agrave sauacutede do indiviacuteduo e por extensatildeo ao papel nutricional da
alimentaccedilatildeo equivalente agrave sua sobrevivecircncia
Pode-se falar na evoluccedilatildeo dos centros urbanos e de suas demandas e transformaccedilotildees entre
estas a pressa que tambeacutem restringe as escolhas alimentares possiacuteveis Outra vez a restriccedilatildeo da
autonomia e o prejuiacutezo das escolhas agrave sauacutede Da pressa passamos ao fenocircmeno seguinte aquele
que Maacutessimo Montanari e Jean-Louis Flandrin denominam lsquoA McDonaldizaccedilatildeo dos costumesrsquo
no livro Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo do qual satildeo organizadores A pressa leva ao surgimento dos
fast-food pela sociedade norte-mericana estes por sua vez causam uma lista de patologias
cardiovasculares e oncoloacutegicas por exemplo A pressa e os fast-food tornam-se parte do
fenocircmeno de stress que aumenta a pressa e torna rotineira a alimentaccedilatildeo raacutepida reduzindo a
sauacutede e aumentando ainda mais o stress Instala-se o ciacuterculo vicioso da vida moderna O eixo de
nutriccedilatildeo que uma vez focircra o lar tornou-se a rua
109
Retomando um dos elementos discutidos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute possiacutevel perceber o
modo como as referidas mudanccedilas atingem a sobrevivecircncia Damaacutesio refere que para que um
organismo permaneccedila vivo eacute necessaacuterio ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados
internos de modo que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Em seu ensaio sobre a normalidade dos comportamentos humanos Massimo Biondi
apresenta um capiacutetulo em que aborda a normalidade dos padrotildees fisioloacutegicos de sobrevivecircncia
Explica que
O organismo eacute uma entidade viva Sua vida se baseia em processos bioloacutegicos de base
que devem respeitar algumas caracteriacutesticas A vida humana por exemplo eacute possiacutevel
para temperaturas corporais compreendidas entre 30 e 42deg Acima ou abaixo de tais
temperaturas para aleacutem de um certo tempo a vida eacute impossiacutevel []
Tal conceito vale para muitas outras variaacuteveis estudadas em medicina e fisiologia do
peso agrave altura da frequecircncia cardiacuteaca agrave pressatildeo arterial [] da quantidade diaacuteria de
accediluacutecar no sangue agraves caracteriacutesticas da urina
O criteacuterio da norma bioloacutegica assim como concebido aqui refere-se agrave normalidade de
funcionamento de estruturas bioloacutegicas que caracterizam a vida de um organismo e satildeo
compatiacuteveis com a mesma (BIONDI 1996 p169)
O indiviacuteduo do seacuteculo XXI em posse de sua autonomia acaba por fazer escolhas
alimentares contra a proacutepria sobrevivecircncia pois alteram os padrotildees de normalidade compatiacuteveis
com a sauacutede e em uacuteltima instacircncia com a proacutepria vida eacute o caso do impacto de alimentos do
regime fast-food na sauacutede resultando em diabetes hipertensatildeo arterial e sobrepesoobesidade
Tal resultado entre outros deve-se agrave ingestatildeo excessiva de carboidratos gorduras e
trigliceriacutedeos presentes nesta forma lsquodesnutricionalrsquo
A autonomia desse modo que muitas vezes eacute fonte de extrema valorizaccedilatildeo em tempos
nos quais a individualidade ocupa papel central leva o homem contemporacircneo a atacar a
sobrevivecircncia e natildeo mais a preservaacute-la Nesse ponto da histoacuteria da alimentaccedilatildeo sobrevivecircncia e
autonomia afrouxaram o dar as matildeos De acordo com Michael Pollan ldquoPesquisas de opiniatildeo
confirmam que a cada ano cozinhamos menos e compramos mais refeiccedilotildees prontasrdquo
(POLLAN 2014 p11)
Este autor traz reflexotildees relevantes quanto ao paradoxo do papel da cozinha em nossa
contemporaneidade apontando que ao mesmo tempo que o tempo de cozinhar diminui aumenta
o tempo de dedicaccedilatildeo a assistir programas de cozinha na televisatildeo aleacutem de outras modificaccedilotildees
mencionadas por ele sobre as escolhas alimentares O que chama a atenccedilatildeo na obra de Michael
Pollan eacute o fato de ele mencionar o ponto em que chegamos sob a perspectiva de nossa cultura
110
alimentar global Sendo este um pesquisador reconhecido e respeitado internacionalmente eacute
positivo que exponha em tom pungente os resultados de pesquisas e perspectivas no
embasamento de suas reflexotildees Posiciona-se frente a vaacuterios problemas graves ligados ao modo
de comer de nosso tempo ao mencionar a reduccedilatildeo do haacutebito de cozinhar e suas consequecircncias
ldquo[] natildeo eacute surpresa alguma o decliacutenio do haacutebito de cozinhar em casa coincidir com o aumento da
incidecircncia da obesidade e de todas as doenccedilas crocircnicas associadas agrave alimentaccedilatildeordquo (POLLAN
2014 p16)
O elemento apontado por este autor e que se relaciona agrave relaccedilatildeo entre a comida e as
relaccedilotildees interpessoais declara que a refeiccedilatildeo em famiacutelia deu lugar em larga escala ao comer
sozinho Autonomia praticidade e individualismo parecem estar no centro deste fenocircmeno
A ascensatildeo do fast-food e o decliacutenio da comida caseira tambeacutem abalaram a instituiccedilatildeo da
refeiccedilatildeo compartilhada por nos estimularem a comer coisas diferentes com pressa e
muitas vezes sozinhos Pesquisas dizem que estamos dedicando mais tempo agrave
lsquoalimentaccedilatildeo secundaacuteriarsquo que eacute como denominamos esse costume meio constante de
beliscar alimentos embalados e menos tempo agrave lsquoalimentaccedilatildeo primaacuteriarsquo - termo um tanto
deprimente para a instituiccedilatildeo outrora respeitada e conhecida como refeiccedilatildeo
A refeiccedilatildeo compartilhada natildeo eacute algo insignificante Trata-se de um dos fundamentos da
vida em famiacutelia o lugar onde as crianccedilas aprendem a arte da conversaccedilatildeo e adquirem
haacutebitos que caracterizam a civilizaccedilatildeo repartir ouvir ceder a vez administrar
diferenccedilas discutir sem ofender (POLLAN 2014 p16 grifo do autor)
A autonomia agrave eneacutesima potecircncia deixa de ser uma capacidade para tornar-se uma redoma
Acabamos tornando-nos seres livres em excesso talvez Por termos pressa querermos prazeres e
independecircncia extremos sobreviver passou agrave categoria de um lsquotanto fazrsquo em prol do proveito
maacuteximo do instantacircneo Vale retomar a reflexatildeo de Karl Jaspers sobre a consciecircncia do eu
definida por limites externos e reais nossa autossuficiecircncia eacute delimitada pela dependecircncia que
temos de recursos externos como por exemplo os bens alimentares e das pessoas significativas
em nossa vida Dependemos desses bens assim como dos relacionamentos familiares afetivos e
profissionais todos necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia do ponto de vista fiacutesico e psiacutequico
A autonomia conquistada para sobrevivermos na evoluccedilatildeo da espeacutecie chegou a um grau
de importacircncia em nosso universo contemporacircneo que parece ter ultrapassado o instinto de
preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo Viver a liberdade as vontades e
prazeres sobrepuja o proacuteprio sobreviver Autonomia e sobrevivecircncia parecem ter soltado as matildeos
111
34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI
A leitura do romance Quarenta dias permite identificar a cozinha presente em trecircs
periacuteodos principais da narrativa representados respectivamente por trecircs elementos especiacuteficos
O primeiro aparece nas paacuteginas iniciais quando Alice comeccedila a relatar em seu caderno o
periacuteodo que antecedeu a mudanccedila para Porto Alegre lembrando-se do egoiacutesmo de Norinha sua
filha desde quando ainda morava em Joatildeo Pessoa Tais recordaccedilotildees fornecem pistas do
comportamento da moccedila ao determinar as transformaccedilotildees na vida da matildee para satisfazer seus
interesses
O segundo elemento abrange os primeiros dias da chegada de Alice a inconformidade
com a nova moradia onde a cozinha que define como lsquode show-roomrsquo expressa uma atmosfera
impessoal e asseacuteptica agrave qual ela natildeo consegue se adaptar Aparece nesta etapa o choque de sua
nova realidade e a tentativa de aceite de todas as mudanccedilas de vida impostas pela filha
A importacircncia de refletir sobre os dois elementos apresentados acima estaacute no fato de esses
demonstrarem Alice em sua vida em Joatildeo Pessoa e logo na chegada em Porto Alegre Os dois
periacuteodos expressam o comportamento de Norinha como explicaccedilatildeo para sua conduta egoiacutesta em
relaccedilatildeo agrave matildee e expressam tambeacutem a relaccedilatildeo de Alice com a consciecircncia de si mesma e com a
autonomia Assim os dois periacuteodos anteriores agrave procura por Ciacutecero descritos por ela agrave Barbie
em seu caderno anunciam o porquecirc de desejar a retomada de si mesma durante os dias em que
transplanta sua vida para o espaccedilo urbano
O terceiro elemento por fim refere-se ao tema deste capiacutetulo a comida como
representaccedilatildeo da necessidade de autonomia vinculada ao processo de tomada de consciecircncia de
si incluindo suas escolhas necessidades de sobrevivecircncia gostos e memoacuterias gustativas que satildeo
parte de sua identidade Nesse terceiro elemento que ocupa a maior parte da anaacutelise encontra-se
uma cozinha transplantada para o universo urbano espaccedilo que Alice habita nos quarenta dias
Junto agrave comida expressa por carrinhos de pipoca botecos moradias em vilas- onde lhe
oferecem cafeacute chimarratildeo e algo para comer- padarias e um restaurante de rodoviaacuteria estaacute a
representaccedilatildeo de uma vida cujo cenaacuterio eacute o proacuteprio espaccedilo da cidade no dormir no banhar-se no
comer Eacute neste territoacuterio que Alice procura a si mesma enquanto em suas andanccedilas ela pergunta
por um desconhecido Ciacutecero Arauacutejo dentro de si vai encontrando aquela que eacute capaz de tomar as
proacuteprias decisotildees de sobrevivecircncia Progressivamente recupera a consciecircncia de si e as suas
112
vontades Um fator que deve ser ressaltado estaacute incluiacutedo neste terceiro elemento a ligaccedilatildeo
mesmo que efecircmera que Alice estabelece com as demais personagens da narrativa na maior
parte das vezes esta ligaccedilatildeo ocorre por intermeacutedio da comida que oferecem a ela ou que ela
partilha como no caso de Lola e Arturo
Eacute possiacutevel observar que haacute situaccedilotildees em que o cuidado de desconhecidos para com ela
ocorre ao oferecerem um chaacute um cafeacute um biscoito nas casas de vilas por onde passa o mesmo
cuidado eacute feito por Penha que coloca com esmero a mesa para Alice no restaurante da
rodoviaacuteria tratando-a com gentileza e camaradagem ou pela proacutepria Milena que cuida de Alice
com chaacute e canja de galinha no iniacutecio da histoacuteria quando esta teria voltado doente de sua visita a
Jaguaratildeo Ateacute mesmo Zelima que aparece na cena em que a protagonista se engasga com a
pipoca no Hospital de Pronto Socorro tem uma atitude de cuidado e de preocupaccedilatildeo para com
ela oferecendo-lhe aacutegua e acompanhando sua melhora
Estas breves expressotildees de carinho e zelo atraveacutes do alimento representam na obra a
nutriccedilatildeo que o cuidado interpessoal oferece muitas vezes na linguagem do alimento na vivecircncia
de Alice em sua nova vida porto-alegrense A capacidade de despertar sentimentos de cuidado de
afeto e de preocupaccedilatildeo da parte de outras pessoas demonstra caracteriacutesticas de uma Alice que
retoma o contato consigo que se reencontra
Mesmo com todo o trauma que atravessa a personagem eacute capaz de estabelecer viacutenculos
durante seus caminhos ainda que sejam breviacutessimos ilustram um aspecto de sua personalidade
Eacute algo seu que natildeo se perdeu com o roubo de sua autonomia e eacute justamente por seu modo de ser
que vai estabelecendo pontes para chegar a algum desfecho de sua procura durante a histoacuteria
pontes atraveacutes da comunicaccedilatildeo com as pessoas e comunicaccedilatildeo atraveacutes da comida que lhe eacute
servida das informaccedilotildees que lhe satildeo dadas do cuidado amistoso como no caso de Lola e de
Milena
Embora o foco do presente capiacutetulo seja a abordagem da conquista da autonomia da
personagem atraveacutes de suas decisotildees pela sobrevivecircncia eacute importante enfatizar que Alice em sua
vida em Joatildeo Pesssoa tinha tal autonomia Aleacutem de ter criado sua filha praticamente sozinha
tinha apartamento proacuteprio amigos e projetos reconhecimento de sua atividade profissional como
a lsquosensata Professora Poacutelirsquo conforme diversas vezes se denomina durante a narrativa Essa
capacidade sofreu abrupta reduccedilatildeo pela interferecircncia da filha quando definiu que a matildee iria se
transferir para Porto Alegre para cuidar do futuro neto
113
Este eacute entatildeo o primeiro elemento a ser abordado o egoiacutesmo da filha A conduta de
Norinha deveu-se a esse egoiacutesmo ao natildeo pensar no desejo de Alice e sim nos proacuteprios interesses
Apenas quando escreve a longa lsquocartarsquo para Barbie depois de sua jornada pela cidade a
protagonista eacute capaz de se recordar de episoacutedios antigos com a filha Esses eventos jaacute
denunciavam a postura da moccedila desde o comeccedilo da juventude O trecho a seguir mostra uma
dessas recordaccedilotildees
Ainda meio adormecida fechei a janela e voltei pra cama naquela madorna jaacute perto de
acordar de vez e entatildeo comecei a reviver cenas bobas de muito tempo atraacutes sem
importacircncia completamente esquecidas agora niacutetidas em sonho ou na minha memoacuteria
por que seraacutecoisas assim como o dia em que estava um friozinho excepcional pra
Joatildeo Pessoa e resolvi fazer uma sopa quente pro jantar aproveitando umas batatas-
baroas que tinha achado no mercado Batata-baroa saudade do siacutetio do meu avocirc uma
raridade na cidade mais batata inglesa cenoura cebola e caldo de galinha tudo de bom
O cheiro da sopa no fogo jaacute tinha impregnado a casa quando Nora chegou Vai fazer
sopa hoje Matildeiacutenha Que horas Jaacute estaacute pronta se quiser eacute soacute bater no
liquidificadorComo nunca me esperava pra cear pois iacutea correndo pra faculdade
apenas ouvi vagamente que estava mexendo na cozinha enquanto eu assistia agrave novelinha
das seis Tatildeo distraiacuteda com a novela nem percebi que ela jaacute tinha saiacutedo Tudo bem ateacute
que fui tratar de pocircr a mesa pra mim Soacute tinha sobrado menos de uma concha rasa de
sopa Pasme Barbie ela tinha se servido na tigela do feijatildeo Fiquei danada na hora mas
nada a fazer do que usar a imaginaccedilatildeo Jaacute eram quase sete e meia da noite Entatildeo botei
mais um copo dacuteaacutegua com uma colher de maisena meio tablete a mais de caldo de
galinha e cozinhei ali dentro uma porccedilatildeo de massinha pra sopaque bom que tinha em
casa Tomei entatildeo o resultado como se estivesse tudo normal com apenas um leve
gostinho de batata-baroamas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada
de matildeo-de-vaca (REZENDE 2014 p22)
Vale ressaltar a atitude complacente de Alice frente ao egoiacutesmo da filha no episoacutedio
narrado acima expressa pela frase lsquomas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada
de matildeo-de-vacarsquo A seguir outro fragmento em que Norinha se apossava dos chocolates e das
guloseimas da matildee Alice reflete em sua carta para Barbie sua obediecircncia agraves demandas da moccedila
devidas agraves dietas no comprar lsquocoisas estranhasrsquo na feira
Diversos pontos satildeo referidos como o fato de a filha natildeo se sentar mais agrave mesa com ela e
a atitude de desperdiccedilar as gemas de ovo em suas dietas Um aspecto interessante do trecho
abaixo eacute a memoacuteria de sua avoacute fazendo lsquofios dacuteovosrsquo e quindins como marca de afeto e de
partilha pela comida Assim haacute o contraste do alimento ora como representaccedilatildeo do egoiacutesmo da
filha ao lsquoroubarrsquo seus chocolates e as guloseimas ora como expressatildeo do afeto compartilhado
pela avoacute atraveacutes dos doces que fazia
Cabe ainda a reflexatildeo mais uma vez Alice menciona sua complacecircncia para com a filha
nas frases lsquofielmente obedeciarsquo e lsquoeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar
114
discussatildeorsquo Volta-se desse modo para a frase apresentada no primeiro trecho referida acima
lsquonatildeo dei um pio pra natildeo ser chamada de matildeo-de-vacarsquo A postura de Alice em relaccedilatildeo agrave Norinha
tinha sempre um elemento de passividade de obediecircncia agraves normas e aos quereres da filha
anunciando que a postura da uacuteltima em definir a mudanccedila de Alice mesmo contra a vontade desta
era a continuidade de um comportamento mais antigo na relaccedilatildeo entre elas A protagonista conta
agrave Barbie
Vivia acrescentando coisas estranhas nas minhas listas de feira que eu fielmente
obedeciaeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar discussatildeo Claro de
vez em quando ela dava umas escapadas na dieta principalmente comendo meus
chocolates e umas guloseimas de que gosto e comprava pro meu lanche Afinal eu natildeo
estava de dieta Quase natildeo se sentava agrave mesa comigo comia em peacute na cozinha ia pro
quarto dela comer as gororobas dieteacuteticas que fazia ou se enchia soacute de claras de ovo
jogando as gemas fora Parei de tentar aproveitar pois natildeo dava pra tomar gemada todo
dia natildeo eacute e Voacute natildeo estaacute mais neste mundo pra me ensinar a fazer fios dacuteovos ou
quindinse as gemas que Norinha descartava eram branquelas nada daquele amarelo
vivo dos ovos de capoeira do siacutetio Seraacute que ainda existem fios dacuteovos (REZENDE
2014 p23)
O trecho seguinte refere-se ao segundo elemento assinalado ou seja a inconformidade de
Alice com sua nova vida em Porto Alegre no apartamento que natildeo aceita como seu Nas
referecircncias agrave cozinha lsquode show-roomrsquo a protagonista expressa suas impressotildees sobre o local
montado por Norinha para sua habitaccedilatildeo Haacute diversos momentos em que a comida representa seu
desacerto com a vida montada em um territoacuterio sem referecircncias afetivas sem lembranccedilas dos
quais o fragmento abaixo eacute um exemplo
Alice mostra uma resignaccedilatildeo compulsoacuteria com as ordens da filha uma aparente
concordacircncia com as tentativas de Norinha de abater-lhe a autonomia eacute na contrariedade com o
cenaacuterio esteacuteril da cozinha que define como lsquoalheiarsquo e com os alimentos que tem em casa com as
compras que a filha faz e guarda nos armaacuterios e gavetas que se mostra seu modo de perceber e
de sentir as imposiccedilotildees da mesma
A inconformidade com a vida porto-alegrense aparece em diversas situaccedilotildees na chegada
de Alice ao apartamento aleacutem do trecho acima Percebo em vaacuterios pontos a revolta da
protagonista com os detalhes da cozinha como espaccedilo fiacutesico em outros aparece seu lsquodesacertorsquo
atraveacutes de uma voz criacutetica e ateacute mesmo irocircnica com os alimentos gauacutechos
Assumi consciente e disciplinadamente a atitude que eu jaacute vinha ensaiando havia algum
tempo do ET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes muito maiores
que ele Eu continuava a encolher Engoli obediente tudo o que estava posto sobre a
previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de vidro num canto da sala o chaacute as
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torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar de chimia a
fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial trazido
natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite morno (REZENDE 2014
p41)
Eacute possiacutevel ler a atitude de engolir lsquoobedientersquo o alimento como representativa de sua
percepccedilatildeo sobre si mesma de ldquoET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes
muito maiores do que elerdquo A obediecircncia em comer aqui ilustra a frase ldquoEu continuava a
encolherrdquo Ela natildeo via o que estava sendo posto na mesa como cuidado com sua chegada por
preocupaccedilatildeo genuiacutena com seu bem-estar entendia isto sim como ldquobenevolecircncia de terraacutequeos
muito maioresrdquo A forccedila da comparaccedilatildeo estaacute no fato de que o comer tambeacutem se tornou objeto de
controle da filha a quem ela passava a ldquoobedecerrdquo Passava a ocupar assim o papel que descreve
como ldquofilha da minha filhardquo (REZENDE 2014 p74)
Neste trecho lecirc-se a contrariedade de Alice na referecircncia que faz agrave cozinha como espaccedilo
fiacutesico ldquo[] tudo o que estava posto sobre a previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de
vidro no canto da salardquo (REZENDE 2014 p74) Ainda que se refira agrave mesa como estando na
sala atribui a ela papel conotaccedilatildeo ligada agrave funccedilatildeo da cozinha como extensatildeo desta pois eacute onde
estatildeo na cena os produtos alimentares oferecidos
Na menccedilatildeo que ela faz a esses produtos estaacute expressa tambeacutem a revolta atraveacutes da voz
irocircnica ldquo[] o chaacute as torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar
de chimia a fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial
trazido natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite mornordquo (REZENDE 2014
p41) Assim eacute na cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico que se expressa na chegada de Alice a
Porto Alegre a representaccedilatildeo de sua recusa em aceitar a vida que lhe foi imposta Haacute referecircncias
expliacutecitas agrave sua revolta mas a forma material da contrariedade eacute demonstrada nessa etapa da
narrativa em diversos episoacutedios ligados agrave cozinha
A manhatilde seguinte agrave chegada no apartamento continua tendo essa peccedila da casa como
cenaacuterio da inconformidade de Alice quando Norinha chega com as compras
Naquela primeira manhatilde sem coragem de decifrar os armaacuterios e eletrodomeacutesticos desta
cozinha metida a besta eu ainda de camisola e roupatildeo agrave mesa do canto da sala
preguiccedilosamente acabando de recuperar como cafeacute da manhatilde os restos do lanche da
madrugada que ficaram largados ali bolo torradas amanhecidas chimia queijo serrano
chaacute frio ouvi barulho de chave na fechadura e me assustei Norinha pelo visto agora
detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas tambeacutem da chave da minha
moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha com almoccedilo
Bem paraibano viu Matildeiacutenha pra vocecirc ir se acostumando aos poucos a quentinha
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equilibrada entre montes de sacolas de compras Pra abastecer a despensa de minha
Maacuteinha adorada que vai ser tratada como uma duquesa pela sua filhinha preferida []
meteu-se diretamente na cozinha Que tive que fazer malabarismos para conseguir passar
no supermercado pra conseguir passar no supermercado e trazer suas compras depois a
gente acerta natildeo se preocupe com isso por hoje vou ter de sair correndo que este dia da
semana eacute sempre pesadiacutessimo na universidade agraves vezes natildeo daacute tempo nem de fazer xixi
(REZENDE 2014 p47-48 grifo nosso)
A frase em grifo representa a percepccedilatildeo de Alice sobre o controle que a filha assumia
sobre sua vida ldquoNorinha pelo visto agora detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas
tambeacutem da chave da minha moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha
com almoccedilordquo (REZENDE 2014 p48) O controle sobre o cardaacutepio expressa a inconformidade
da protagonista com as imposiccedilotildees de Norinha na sua vida por exemplo escolhendo um almoccedilo
lsquobem paraibano viu Matildeiacutenha para vocecirc ir se acostumando aos poucosrsquo como ela refere Aleacutem
deste aspecto as sacolas de compras lsquoPra abastecer a despensa de minha Matildeiacutenha adoradarsquo
tambeacutem satildeo para Alice representativas dos mandos de sua filha
A direccedilatildeo da filha sobre a rotina da personagem ocorre em detalhes cotidianos como de
fazer e de guardar as compras de supermercado na cozinha do apartamento levar a lsquoquentinharsquo
para o almoccedilo e definir na percepccedilatildeo de Alice que ela deve sair agrave rua entre outras condutas
Tais comportamentos ligados agrave alimentaccedilatildeo demonstram a atitude de Norinha interferindo na
autonomia da matildee procurando ceifar sua capacidade de cuidar de uma nova vida naquilo que eacute
mais individual na sobrevivecircncia a nutriccedilatildeo A contrariedade de Alice agrave cozinha do apartamento
reflete em muito a percepccedilatildeo que ela tem deste ao longo da narrativa em suas referecircncias eacute
possiacutevel compreender que se vecirc presa naquilo que por diversas vezes chama de lsquotabuleiro de
xadrezrsquo Em grande parte essa impressatildeo se deve ao aspecto do local mas o sentimento
transcende essa caracteriacutestica no lsquotabuleirorsquo Alice tem sua liberdade tolhida
O trecho a seguir representa a relaccedilatildeo que se estabelece entre elas nesta etapa inicial da
chegada de Alice a Porto Alegre
Fiquei calada soacute olhando com a boca cheia o naco de queijo grande demais difiacutecil de
mastigar e engolir como todo o resto que havia tempos jaacute vinha entalado na minha
garganta Nem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia em meu nome
gritando aqui da cozinha enquanto desensacava os pacotes e escondia as coisas atraacutes de
sei laacute qual dessas dezenas de portinhas brancas por cima desses azulejos pretos [] e
por aiacute foi Norinha perguntando e respondendo por mim ateacute esvaziar a uacuteltima sacola
bater pela uacuteltima vez todas as portas e gavetas dos armaacuterios da geladeira O almoccedilo eacute soacute
esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenha (REZENDE 2014 p48-49)
117
Um dos pontos que deflagram a atitude de Norinha em ceifar a autonomia de Alice estaacute na
frase lsquoO almoccedilo eacute soacute esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenharsquo como se a matildee natildeo soubesse disso
ou natildeo tivesse capacidade de percebecirc-lo sozinha A filha infantiliza a personagem tomando por
ela decisotildees e condutas (como ir ao supermercado e guardar as compras nos armaacuterios da
cozinha) Ateacute mesmo a verbalizaccedilatildeo das respostas eacute feita por ela sem dar agrave Alice a possibilidade
de expressar-se como na frase lsquoNem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia
em meu nome gritando aqui da cozinharsquo
A resposta emocional de Alice a este iniacutecio de sua vida na nova cidade ainda antes da
revelaccedilatildeo de que Norinha e o esposo adiaram os planos de gravidez estaacute representada no
fragmento a seguir
Fiquei laacute Alice diminuindo mais ainda imprensada entre a mesa e a parede nem sei
quanto tempo tentando me convencer de que ela natildeo se meteria mais de surpresa pela
porta adentro e sabendo que pra rua eu natildeo ia como queria minha filha e natildeo ia mesmo
soacute porque era isso que ela tinha ordenado Natildeo ia natildeo de birra sem nenhuma ideia
nem vontade de fazer nada a natildeo ser andar para um lado e outro naquele tabuleiro de
xadrez minhas pernas dissipando a energia acumulada pela raiva olhar as malas ainda
fechadas as portas desses armaacuterios da cozinha fechadas a pilha de caixas fechadas e de
relance a minha cara fechada refletida na enorme televisatildeo da sala em outra menor no
quarto nos vaacuterios espelhos e vidraccedilas espalhados por aiacute O almoccedilo ficou aqui esfriando
no balcatildeo da cozinha ateacute o anoitecer Daiacute engoli aquilo frio mesmo enquanto deixava o
telefone tocar tocar tocar ateacute desistirem (REZENDE 2014 p51)
Entretanto a protagonista encontra em si mesma a capacidade de autonomia que vinha
adormecida desde quando comeccedilou o processo de mudanccedila determinado pela filha Comeccedila a
aceitar as modificaccedilotildees tomar conta da proacutepria rotina decidir adaptar-se ao apartamento e agrave nova
vida A decisatildeo de aceitar a vida imposta pela filha eacute tomada com autonomia com a sensatez que
remonta a lsquosensata professora Poacutelirsquo Alice torna a instalaccedilatildeo em sua nova moradia algo que
parece originar de uma decisatildeo sua e natildeo apenas de uma imposiccedilatildeo de Norinha Entretanto
expressa que a decisatildeo para tal eacute racional assim como a organizaccedilatildeo metoacutedica da casa que
realiza Sugere que estaacute fazendo de conta que esqueceu lsquode todo o restorsquo
E a sensata professora Poacuteli acabou vencendo pelo menos provisoriamente porque
acordei logo cedo disposta a deixar pra laacute o ressentimento ser realista encarar as coisas
como eram agora como gente grande voltar ao meu tamanho normal pulei da cama me
vesti decentemente explorei as provisotildees que Norinha tinha deixado fiz e tomei meu
cafeacute e danei a desmanchar malas e pacotes a encher gavetas prateleiras e cabides tudo
muito bem-arrumado metodicamente pensando soacute naquilo que tinha concretamente
diante de mim esquecida ou fazendo de conta que esquecia de todo o resto Pronto
[] botando ordem fora e dentro de mim pensava Pesquisei nos armaacuterios da cozinha
achei o que precisava fiz um almocinho pus toalha louccedila talher aqui mesmo nessa
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espeacutecie de mesa sem pernas de pedra preta embutida na parede e comi com certo gosto
depois de natildeo sei quanto tempo de fastio (REZENDE 2014 p52-53)
Quando Alice menciona lsquopesquisei nos armaacuterios da cozinha achei o que precisava fiz
um almocinho pus toalha louccedila talherrsquo estaacute manifestando sua decisatildeo de procurar acostumar-se
aos detalhes da nova rotina como colocar a mesa O trecho a seguir complementa essa tentativa
Subi de volta confiante tinha tomado minha primeira iniciativa depois de tanto tempo
e isso fazia sentir-me melhor Abri mais umas caixas e arrumei o conteuacutedo Fiz almoccedilo
direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada sesta de uma vida
normal li umas paacuteginas de uma revista apanhada no aviatildeo e como sempre cochilei
logo (REZENDE 2014 p61)
A frase lsquofiz o almoccedilo direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada
sesta de uma vida normalrsquo demonstra sua procura por se adaptar ao cotidiano Alice procura
retomar as reacutedeas da nova vida mesmo sendo esta imposta a ela reassumindo seus afazeres
(lsquolimpar a cozinharsquo) e costumes (a lsquosagrada sesta de uma vida normalrsquo) Tudo isso relata agrave Barbie
no caderno posteriormente sabendo que tais posturas representavam apenas a tentativa em
ultrapassar a dor emocional pela saiacuteda de seu habitat em Joatildeo Pessoa A existecircncia compulsoacuteria
volta a aparecer quando eacute convidada para jantar na casa da filha ao mencionar lsquoeu jaacute estava
pegando jeito de me comportar como filha da minha filharsquo conforme se lecirc abaixo
Pois Umberto vai passar aiacute pelas sete horas que eu vou correr pra preparar um
comerzinho bem bom e trazer a senhora pra jantar com a gente botar a conversa em dia
vai ser uma deliacutecia vaacute se aprumar bem bonita que daqui a pouco ele estaacute batendo aiacute
Que remeacutedio senatildeo obedecer Eu jaacute estava pegando jeito de me comportar como filha da
minha filha (REZENDE 2014 p74)
No jantar referido Alice eacute informada por Norinha sobre a viagem do casal para o exterior
postergando o projeto da maternidade motivo de sua mudanccedila para Porto Alegre No primeiro a
lsquolasanha da verdadeirarsquo o lsquomelhor vinho da serra gauacutecharsquo e a lsquocuca de arrasarrsquo satildeo elementos
regionais que a filha oferece como forma ao que parece de apresentar agrave sua matildee as benesses do
territoacuterio em que esta deveraacute habitar no segundo a expressatildeo lsquoe eu soacute com a tarefa de garfar o
que me serviam e emitir de vez em quanto um huuuummm apreciativorsquo exprime a posiccedilatildeo
passiva que a protagonista reconhece assumir frente agraves imposiccedilotildees da filha Neste jantar tem fim
o periacuteodo de interaccedilatildeo de Alice com Norinha na narrativa demarcando a conclusatildeo de uma etapa
da histoacuteria a chegada da personagem agrave cidade
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A seguir dois fragmentos que retratam a comida como fator de suposta agregaccedilatildeo
familiar mas escondem atraacutes do lsquoFiz jantar especialrsquo o desrespeito e o egoiacutesmo da moccedila quanto
agrave sua matildee Esta ficaraacute sozinha em uma cidade desconhecida sem referecircncias apoacutes ter tido que
abandonar sua terra natal em nome da exigecircncia da filha A atitude de falar da cuca como um
doce de seu completo desconhecimento ilustra agrave escassa familiaridade de Alice com as tradiccedilotildees
da regiatildeo como na frase lsquoum bolo recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima
gostoso de fatorsquo Os trechos definem a atmosfera aparentemente agradaacutevel da refeiccedilatildeo em
famiacutelia imposta por Norinha antes de esta fazer a revelaccedilatildeo que interferiraacute na vida de Alice
culminando na busca de sua autonomia O papel da comida neste ponto do livro eacute o de lsquoadoccedilarrsquo
a personagem para receber a notiacutecia da viagem da filha e do genro
Fiz jantar especial uma lasanha da verdadeira o melhor vinho da serra gauacutecha uma
cuca de arrasar vocecirc vai provar hoje uma cuca tudo receita da minha sogra vai adorar
jaacute estaacute com apetite natildeo eacute soacute de ouvir dizer entatildeo como estaacute sendo sua primeira
semana em Porto Alegre (REZENDE 2014 p74)
Umberto parecendo distraiacutedo dando soacute palpites lacocircnicos sempre concordando com a
mulher dele e eu soacute com a tarefa de garfar o que me serviam e emitir de vez em quando
um huuuummm apreciativo ateacute terminar de comer e aprovar a tal cuca um bolo
recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima gostoso de fato
(REZENDE 2014 p75)
A partir desse jantar Alice volta para sua casa e suspende os contatos com o casal Tem
iniacutecio assim o papel da comida ligada agrave recuperaccedilatildeo da autonomia perdida
Quando sai para a rua imbuiacuteda da missatildeo de procurar por Ciacutecero Alice sabe que sua
decisatildeo ultrapassa a descoberta do rapaz Eacute por si mesma pela capacidade de cuidar de si de
decidir mesmo as questotildees mais baacutesicas de sobrevivecircncia apoacutes Norinha ter tomado conta de sua
vida e de suas resoluccedilotildees Alice decide decidir Nesse sentido passa a guiar-se por suas
necessidades vitais como fome sono e banho por exemplo todos eles transplantados para o
espaccedilo urbano onde decide habitar apenas para natildeo voltar para o lsquotabuleiro de xadrez seu
apartamento
Mesmo quando esquece onde mora a permanecircncia nas ruas continua sendo uma escolha
pois poderia ligar para a prima Elizete que tem seu endereccedilo no entanto opta por natildeo fazecirc-lo
Durante o periacuteodo duas buacutessolas guiam seus rumos a procura por Ciacutecero que daacute sentido agrave
peregrinaccedilatildeo como um aacutelibi para justificar as andanccedilas e o natildeo-retorno para casa e a
120
manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do que escolhe comer de onde decide dormir e banhar-se
por exemplo
Uma das primeiras decisotildees de Alice eacute a de esconder-se em casa nos primeiros dias apoacutes
a revelaccedilatildeo sobre a viagem de Norinha e Umberto para o exterior e o adiamento dos planos que
ocasionaram sua mudanccedila para Porto Alegre
Cinco dias de fartura de letras quase jejum de qualquer outra comida o silecircncio cortado
soacute ateacute o comeccedilo da tarde do segundo dia pela ainda prazerosa estridecircncia do telefone
com perverso gosto de vinganccedila que me enchia a boca e quase me bastava como
simulacro de refeiccedilatildeo (REZENDE 2014 p87)
Protege-se em casa lendo livros e deixando o telefone tocar a nutriccedilatildeo estaacute fora do eixo
da comida nesse sentido pois Alice alimenta-se do isolamento que consegue estabelecer Assim
esse eacute o iniacutecio da retomada de sua autonomia atraveacutes das escolhas que comeccedila a fazer por si de
modo independente ao controle da filha Decide natildeo mais se submeter mesmo que a atender o
telefone A nutriccedilatildeo estaacute baseada na autonomia na independecircncia que retoma mais do que nos
proacuteprios alimentos nesse ponto da narrativa Quando refere lsquocom perverso gosto de vinganccedila que
me enchia a boca e quase me bastava como simulacro de refeiccedilatildeorsquo o que se pode ler eacute que a
salvaguarda da sobrevivecircncia estava apoiada na sua capacidade de reagir agrave filha de impor sua
vontade contrariando a imposiccedilatildeo de Norinha
A histoacuteria sofre a guinada maior quando Alice recebe a incumbecircncia de procurar por
Ciacutecero a missatildeo daacute sentido ao seu caminho aos seus dias A missatildeo de encontrar o rapaz eacute o
fator que move a personagem a sair de seu apartamento e a desafiar-se em espaccedilos urbanos
desconhecidos de uma cidade que ainda eacute para ela uma cidade estranha Este seraacute tambeacutem um
modo de se esconder da filha de Elizete e de todos que a possam encontrar Alice decide
descobrir o paradeiro de Ciacutecero para encontrar consigo mesma Aquela lsquosensata professora Polirsquo
capaz de tomar decisotildees e de gerenciar a proacutepria vida estaacute desaparecida de si
Na partida para a Vila Maria Degolada ela tem o primeiro contato com a comida das ruas
e botecos Ao sair de casa sem ter se alimentado obriga-se a comer para saciar a fome esta eacute a
primeira expressatildeo do comer como decisatildeo de sobrevivecircncia
Passei diante de uma portinha aberta quase invisiacutevel entre duas casas um balcatildeozinho
prateleiras com umas poucas mercadorias e uma caixa de vidro com lamentaacuteveis
empadas e coxinhas ou coisa parecida sobrevoadas por uma mosca preguiccedilosa Era
pouco mais que aqueles fiteiros de rua laacute de Joatildeo Pessoa e pode ter sido por isso entrei e
por pouco natildeo pedi uma tapioca de queijo Pedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer
121
de comer Leite natildeo havia fui soacute de cafeacute e uma coxinha engordurada de anteontem
caloria bastante para eu continuar minha peregrinaccedilatildeo Quem servia era um homem jaacute
idoso nada a ver com as imagens de gauacutecho de churrascaria que eu tinha pregadas na
imaginaccedilatildeo nem alto nem louro nem moreno bigodudo de chapeacuteu preto lenccedilo
vermelho laccedilo no ombro e bombacha bufante Baixinho e coxinho com um resto de
bigode fino um bonezinho achatado na careca camisa branca encardida e um lenccedilo
branco amarrado no pescoccedilo Comi paguei e me animei a perguntar pra onde ficava a tal
Vila Maria Degolada (REZENDE 2014 p96-97)
lsquoPedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer de comerrsquo eacute uma das frases que aponta para
o papel da comida nesse momento da histoacuteria o de saciar a fome O alimento em sua funccedilatildeo
primordial eacute o mote desse trecho jaacute que aqui Alice natildeo quer comer algo saboroso e sim que lhe
forneccedila forccedilas para seguir o percurso
Segui em frente olhando pro chatildeo emburrada passo firme e decidido lsquoCiacutecero Arauacutejo
Vila Maria Degolada Ciacutecero Arauacutejo Vila Maria Degoladarsquo revigorada pelo sal a
gordura e a cafeiacutena ateacute chegar manhatilde alta numa avenida larga sem ter mais nenhuma
ideia de pra que lado ficava o apartamento onde eu devia morar (REZENDE 2014
p97)
A atitude determinada de Alice frente ao objetivo eacute o lsquopasso firme e decididorsquo
complementado pela referecircncia que ela faz ao efeito da comida em seu acircnimo para chegar agrave Vila
Maria Degolada lsquorevigorada pelo sal a gordura e a cafeiacutenarsquo A personagem expressa nessa
uacuteltima frase o reforccedilo ao papel do alimento em saciar a fome e em fornecer energia
Nos caminhos que vai percorrendo junta folhetos de propaganda papeacuteis soltos e
guardanapos todos como base para escrever pedaccedilos de livros que encontra Um desses folhetos
representa a visatildeo de Alice sobre sua avoacute que aproveitava as gemas para preparar doces de sua
origem portuguesa e sobre sua filha que desperdiccedilava as gemas para preparar omeletes de
claras para a dieta Essa evocaccedilatildeo de lembranccedilas em relaccedilatildeo agrave avoacute e agrave filha a partir de uma
divulgaccedilatildeo impressa traz mais uma das funccedilotildees do alimento nessa etapa da histoacuteria aleacutem da
expressatildeo de autonomia o resgate de si atraveacutes das recordaccedilotildees de suas origens Lembrar-se de
sua avoacute eacute remontar uma parte de sua proacutepria construccedilatildeo pessoal e portanto estaacute incluiacutedo na
procura de Alice por sua identidade separada das ordens e determinaccedilotildees de Norinha
Uma ialorixaacute me deu um papelzinho com receita de uma simpatia natildeo exatamente pra
achar filho perdido era pra juntar famiacutelia desunida Mas pode crer que ajuda se tu fizer
com feacute soacute precisa quatro quindinsonde eacute que eu iacutea achar quindins veio-me por um
instante a lembranccedila das gemas de ovo desperdiccediladas por Norinha saudade da minha
avoacute portuguesa exilada laacute no sertatildeo e de seus doces de ovos os quindins que ela
aprendeu a fazer com coco lamentando sempre natildeo poder fazer sua brisa do Lis como a
de Leiria por falta das amecircndoasescrever o pedido pocircr os quindins em cima polvilhar
accediluacutecar cristal e espetar nos doces quatro flores amarelas quatro moedas acender quatro
122
velas e deixar tudo numa praccedila olha aiacute Barbie o papelzinho ficou junto com o resto dos
que se foram acumulando na minha mochila com as costas cheias de frases copiadas de
livros (REZENDE 2014 p116-117)
A necessidade de encontrar consigo mesma estaacute pungente na personagem uma soacute palavra
que remeta a seu passado serve para as recordaccedilotildees surgirem como os lsquoquindinsrsquo que na
verdade natildeo servem como alimento e sim como parte da simpatia Eacute como se a palavra fosse
uma porta para suas lembranccedilas e uma vez aberta faz que muito seja recordado e refletido
Alice segue pela Vila Maria Degolada agrave procura de Ciacutecero e vai tendo contato com
moradores que a ajudam andando pela vila atraacutes de pistas do rapaz Durante as horas que
permanece ali a comunicaccedilatildeo entre ela e as pessoas que a recebem eacute feita em grande parte pelos
alimentos que oferecem para ela comer ou beber Alice descobre novos sabores regionais na
receita ou apenas no nome e sobretudo conhece novas pessoas ao longo do trajeto O que decide
comprar nos botecos ou aceitar nas casas como os salgados os biscoitos ou o cafeacute ralo deve-se
principalmente a satisfazer as necessidades fiacutesicas de fome e sede Mais uma vez a comida
representa a manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Entretanto surge para essa novo papel o de saciar a
necessidade de contato humano de trocas e de interaccedilatildeo social
Nem sei quantos cafeacutes ralos engoli Pra te animar vai bebe nem sei quantas cuias de
chimarratildeo recusei Natildeo sou daqui natildeo sou da Paraiacuteba na minha terra natildeo eacute costume
cheguei haacute pouco ainda natildeo aprendi a tomar Mas logo acostuma que um amargo eacute coisa
boa demais bom pra sauacutede pro estocircmago pra tudo Todos sem falhar queriam ajudar
indicavam uma rua uma viela uma direccedilatildeo onde sim havia gente de lsquolaacutersquo Sei laacute quantas
coxinhas empadas comi e paguei pelas biroscas da Vila Maria Degolada nome que eu
logo parei de usar porque percebi que natildeo era do agrado de ningueacutem ali Ia aprendendo
coisas e nomes a comer dedo-de-negro que logo domestiquei como parente de nossa
sorda cortada em tiras e groacutestolis que identifiquei como a calccedila-virada da minha avoacute
portuguesa Tudo o que me fizesse esquecer Norinha e o apartamento preto e branco me
servia bem (REZENDE 2014 p117)
A passagem pela vila na procura por Ciacutecero tinha outra funccedilatildeo primordial dentro de
Alice a de natildeo retornar para o apartamento e para a vida que lhe foi imposta Com tal propoacutesito
decide prosseguir Percebe-se capaz de fazer escolhas a seu favor quando se pergunta lsquoe agorarsquo
pois responde que voltar para o apartamento natildeo lhe atrai lsquode jeito nenhumrsquo
Jaacute passava um pouco das quatro da tarde eu tinha andado desde as sete da manhatilde
sentando-me raras vezes quando alguma mulher mais atenciosa puxava uma cadeira de
dentro de casa e me oferecia pra descansar na sombra ou em algum boteco o tempo de
comer uma empadinha ou uma cueca-virada E agora Voltar pro apartamento natildeo me
atraiacutea de jeito nenhum Por que natildeo continuar pro novo destino provisoacuterio que me
indicaram Apesar de entatildeo jaacute achar tudo aquilo bastante suspeito (REZENDE 2014
p123)
123
Prosseguindo para o Hospital de Pronto Socorro surgem trecircs cenas relevantes em que o
comer eacute expresso como satisfaccedilatildeo da fome e reestabelecimento do acircnimo na primeira Alice
percebe a fome e decide procurar o que comer na segunda come de forma tatildeo afoita as pipocas
que se engasga na terceira eacute socorrida por Zelima senhora que a ajuda reforccedilando que o
cuidado de terceiros tambeacutem tem uma funccedilatildeo quando o comer eacute representado na obra
1) Cansaccedilo absoluto e fome fincaram-me no meio do saguatildeo zonza olhando aquela
larga porta aberta pra nada Um lugar vago num dos bancos era tudo o que me restava
Ali desabei e fiquei de olhos fechados e a cabeccedila pendendo sobre o peito como tantos
outros sentados naquele natildeo lugar esperando minhas pernas pararem de tremelicar
pensando apenas nelas e na sensaccedilatildeo do meu estocircmago oco Natildeo sei quanto tempo parei
ali Lembro-me de que afinal a fome venceu abri os olhos puxei o celular da bolsa pra
ver as horas a bateria estava descarregada procurei em torno e vi um reloacutegio na parede
do saguatildeo jaacute passava das nove da noite levantei-me as pernas agora quase firmes desci
os degraus da porta ateacute a calccedilada buscando algo pra comer e o que havia no meu raio de
visatildeo era uma carrocinha de pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me
desde que horas ele estava ali se tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia
inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido
Cheguei junto dele remexendo a bolsa agrave procura de uns trocados que tivessem restado da
farra de salgadinhos e biscoitos da Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada
desde entatildeo (REZENDE 2014 p147)
2) Puxei um bolinho de notas de dois reais e umas moedas estendi-as ao homem ele
escolheu o que correspondia ao preccedilo do saco de pipocas e me entregou tudo sem
trocarmos uma palavra Escorei-me no poste junto da carrocinha e enfiei na boca de
uma soacute vez o maior punhado de pipocas que pude sem me importar com as poucas que
escaparam e foram ao chatildeo Engasguei-me a boca seca e cheia tentando segurar a tosse
pra natildeo fazer chover mais pipoca pra todo lado mas natildeo consegui as ex-professora Poacuteli
cuspiu um jorro de piruaacutes tossiu de se acabar encostada num poste de lugar nenhum o
mundo escurecendo (REZENDE 2014 p147-148)
3) Zelima sentou-se ao meu lado segurando fielmente o meio copo de aacutegua e o meio
pacotinho de pipocas e assim que me recompus devolveu-me aquele simulacro de
refeiccedilatildeo dizendo Come que tu estaacute fraca bebe o resto da aacutegua para empurrar Soacute
balancei a cabeccedila obedeci ela recolheu os invoacutelucros vazios e foi jogaacute-los numa lixeira
na calccedilada voltou e sentou-se de novo junto a mim em silecircncio (REZENDE 2014
p148-149)
O percurso tem continuidade na manhatilde seguinte quando decide encontrar uma padaria
onde encontra aleacutem da satisfaccedilatildeo da fome um ambiente onde conversa e ri sobre o
desconhecimento de termos regionais como o nome de lsquocacetinhorsquo para o patildeo francecircs Nutre-se
desse modo do alimento e do contato humano ldquoAprumei o espinhaccedilo apanhei a bolsa e saiacute
novamente com passo firme destino certo uma padariardquo (REZENDE 2014 p159) A
protagonista chega no destino esperado saciando a fome de comida e de afeto
Cafeacute com leite cacetinho na chapa e riso me puseram em quase perfeita forma por
dentro e pelos proacuteximos instantes mas restava um tanto consideraacutevel de dor no corpo e
uma vontade enorme de me deitar e dormir decentemente
124
[] Quando saiacute olhei bem o nome da padaria e da rua pra voltar quando precisasse
encontrar um conhecido amigaacutevel como se eu jaacute soubesse quantas vezes precisaria
voltar (REZENDE 2014 p161)
Alice come quando tem fome dorme quando tem sono Respeita a sobrevivecircncia em sua
procura pelo desconhecido Ciacutecero A vida eacute no espaccedilo da rua do parque das avenidas das
padarias das carrocinhas de pipoca e de cachorro-quente
Quem mais usa orelhatildeo neste mundo ocirc Alice te liga no segundo deles o fio do
telefone pendia cortado mas na mesma esquina havia uma lojinha de venda e conserto
de celulares Sim o homem podia carregar pra mim Pelo menos uma carga raacutepida de
emergecircncia ateacute tu chegar em casa soacute dois pilas senta aiacute Abanquei-me no tamborete
oferecido mas meu estocircmago natildeo queria esperar mais nem um minuto e vi pela porta
uma carrocinha de cachorro-quente do outro lado da esquina Fui laacute e voltei trazendo o
patildeo com salsicha montes de mostarda escorrendo no guardanapo de papel e o luxo de
um saquinho de batata frita uma latinha de refrigerante o tamborete agrave sombra a parede
fresca para encostar as costas Seraacute que cochilei
Paguei agradeci saiacute comprei mais um cachorro-quente da carrocinha e natildeo pensei mais
em telefonar a Elizete nem queria saber endereccedilo nenhum nem voltar pra lugar
nenhum soacute continuar agrave toa Agrave toa Que nada (REZENDE 2014 p170-171)
Alice sabe natildeo estar agrave toa volta a ser dona de suas escolhas sejam elas quais forem Vai
retomando a consciecircncia de si mesma dos referenciais de sua histoacuteria de vida das lembranccedilas
ajudam a reconstruir sua identidade como quando refere a recordaccedilatildeo de lsquoum cafeacute com leite que
ao longo da vida sempre me parecia como soluccedilatildeo para pequenas dores pequenos desconfortosrsquo
Um vento mais frio me fez fugir da sombra procurar um resto de sol com vontade de
tomar alguma coisa quente um cafeacute com leite que ao longo da vida sempre me aparecia
como soluccedilatildeo pra pequenas dores pequenos desconfortos e fui em busca de um bar
lanchonete Achei um botequinho que me serviu leite ralo com cafeacute de garrafa teacutermica
ainda havia de aprender a tomar chimarratildeo mas me bastou
Depois de confortada pela bebida morna e accedilucarada saiacute agrave toa de novo esquecida de
Ciacutecero Arauacutejo [] (REZENDE 2014 p176)
Esquecer-se de Ciacutecero Arauacutejo significa neste ponto da histoacuteria que a aproximaccedilatildeo
consigo mesma torna-se mais importante Essa retomada de si atraveacutes do conforto de uma
lsquobebida morna e accedilucaradarsquo corresponde ao respeito aos seus referenciais de memoacuteria durante a
vida Alice vai remontando dados de si peccedilas de um mosaico desordenado pela mudanccedila de vida
mas que agrave medida que segue um percurso aleatoacuterio ou lsquoagrave toarsquo passa a ser o caminho para o
contato com suas caracteriacutesticas Quanto mais retoma a si mesma menos se ocupa de Ciacutecero
Este ocupar-se de si eacute traduzido pela procura por satisfazer as funccedilotildees vitais mas tambeacutem pelos
pequenos confortos que passa a permitir-se obter como a cena que transcorre na rodoviaacuteria
125
Nesse local o lsquoprato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos colherrsquo eacute a
expressatildeo da mudanccedila da personagem ao longo da histoacuteria pois essa passa a querer saciar a fome
com uma refeiccedilatildeo digna e natildeo mais com lanches de rua O garfo e a faca nesse sentido
representam a imagem de um comer para aleacutem do aspecto de saciar a fome evocam a ideia da
comida no prato posta agrave mesa e natildeo mais agrave rua sentada em um tamborete ou em peacute Eacute
interessante observar a referecircncia que faz ao cachorro-quente paraibano como forma de remontar
suas origens na reconstruccedilatildeo que faz de si
Decerto era preciso pagar e eu tambeacutem precisava comer uma refeiccedilatildeo decente como
havia dois dias natildeo comia impossiacutevel continuar vivendo de salgadinho refrigerante e
cachorro-quente de salsicha Se pelo menos fosse o bom cachorro quente paraibano com
tudo quanto haacute um verdadeiro prato feito dentro de um patildeo muita carne moiacuteda mais a
salsicha se quisesse verdura ovo ou qualquer outra coisa ou tudo junto o que a gente
pedisse aqueles abundantes molhos vermelhos de colorau escorrendo pelos lados
alimentando ou entupindo o freguecircs davam a sensaccedilatildeo de saciedade por um bom tempo
Mas aqui natildeo Eacute um patildeo com uma salsicha e a mostarda fraco demais pra mim eu natildeo
podia mais queria um prato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos de
colher Ali devia haver de tudo mas custava dinheiro (REZENDE 2014 p184)
Ainda na rodoviaacuteria onde consegue tambeacutem tomar banho vai decidindo adotar accedilotildees de
cuidado consigo como a lembranccedila da pasta de dente Progressivamente Alice ocupa-se de
retomar as rotinas de higiene de alimentaccedilatildeo e de sono Mais uma vez menciona a refeiccedilatildeo
completa o lsquogrande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdurarsquo Haacute a
noccedilatildeo de conforto na ideia de comida servida no prato e sobretudo no termo que ela usa
lsquocomida quentinharsquo
Dei-me conta de que pouco importava eu natildeo tinha sabonete nem sabatildeo nenhum mas
me lembrei confortada da pasta de dente que restava do aviatildeo guardada na bolsa pra
depois do grande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdura o
que fosse que eu havia de comer antes de procurar um canto pra dormir (REZENDE
2014 p187-188)
Na evoluccedilatildeo da procura por uma refeiccedilatildeo decente a protagonista encontra o restaurante
de Penha tambeacutem paraibana Descobre a coincidecircncia durante o jantar enquanto ouve a
proprietaacuteria falando ao telefone A forma como recebe a refeiccedilatildeo com o cuidado de Penha em
oferecer-lhe a comida agrave mesa junto agrave constataccedilatildeo de um sotaque familiar fazem com que Alice
se sinta confortada
1) Andei um pouco procurando onde comer e achei um restaurantezinho com um
aspecto muito simples limpo uma mulher com um jeito vagamente familiar do outro
lado do balcatildeo uma oferta Prato Feito R$ 350 Ai Barbie com que apetite me sentei
126
numa das duas mesinhas em frente ao balcatildeo e pedi meu PF uma latinha de refrigerante
Esperei meu olhar desgarrado acompanhando e abandonando cada um que passava
pensei Daiacute a poucos minutos a mulher sem nada dizer com uma das matildeos desdobrou agrave
minha frente uma toalhinha azul engomada a ferro com a outra depositou meu prato
quentinho acreditei ver o vapor subindo da comida talheres limpos enrolados num
guardanapo de papel imaculado um copo impecavelmente limpo a latinha gelada e ateacute
palito que eu nunca usei nem ia usar mas me acrescentavam conforto todos aqueles
adereccedilos em torno da minha fome soacute pra mim bem sentada numa cadeira de encosto as
matildeos limpas me sentindo toda limpa apesar da roupa usada e ataquei o prato com
voracidade tentando conter-me para natildeo comer depressa demais pra aquele prazer durar
bastante (REZENDE 2014 p192)
2) Quando a outra paraibana acabou o telefonema eu me levantei com o prato jaacute vazio o
copo ainda meio cheio me encostei ao balcatildeo e entreguei a louccedila mas continuei ali
tomei mais um gole do meu refrigerante e perguntei Vocecirc eacute da Paraiacuteba natildeo eacute Ela disse
Sou sim como eacute que sabe Ouvi umas palavras matildeiacutenha painho Campinatambeacutem sou
de laacute (REZENDE 2014 p193)
3) Acordei maldormida por conta do frio mas sem dor no corpo a rodoviaacuteria jaacute se
enchendo de gente juntei meus tereacutens e fui tomar cafeacute na bodeguinha de minha
conterracircnea que agravequela hora bem cedo jaacute havia reassumido seu posto (REZENDE
2014 p194)
Alice decide retornar ao restaurante de Penha na manhatilde seguinte permitindo-se tomar o
cafeacute da manhatilde Quando refere lsquobodeguinha da minha conterracircnearsquo jaacute expressa o conforto de
sentir-se familiar agrave Penha como forma de novamente encontrar referecircncia agrave sua Paraiacuteba Assim
como em outros fragmentos jaacute referidos a comida representa natildeo apenas o aspecto vital de
nutriccedilatildeo mas tambeacutem o do contato humano que propicia a exemplo do zelo com que a
proprietaacuteria coloca a mesa para Alice
Satisfeita em suas necessidades a personagem retoma sua busca por Ciacutecero Arauacutejo
seguindo a sugestatildeo dada por Penha para que fosse ao Campo da Tuca Laacute novo aproximaccedilatildeo
com seus referenciais atraveacutes do queijo de manteiga da rapadura e da plaquinha lsquotemos carne de
solrsquo
Procurando por Ciacutecero Alice encontra partes de sua terra Reencontra a si mesma atraveacutes
do contato com conterracircneos como Penha e outros do Campo da Tuca e de alimentos de sua
regiatildeo
Fui dando a volta ao campo de futebol e dei com uma bodeguinha que me cheirou a
nordestina encostei na porta olhei percebi logo o acerto de minha intuiccedilatildeo em cima do
balcatildeo havia uma caixa de vidro com queijo de manteiga e uma pilhazinha de rapaduras
na parede do fundo um cartaz Temos carne de sol Eu natildeo via ningueacutem depois percebi
movimento num canto mais ao fundo algueacutem arrumando prateleiras chamei Por favor
ele veio na hora pra entabular conversa perguntei O senhor tem mesmo carne de sol e
ele pesaroso Acabou esta manhatilde vendi o uacuteltimo pedaccedilo quase guardei pra mim mas a
freguesa antiga amiga laacute da minha terra insistiu e vendi pra ela semana que vem chega
mais se a senhora voltar na quarta ou quinta-feira eacute de certeza que vai ter carne de sol
aqui porque o primo que me manda jaacute despachou estaacute chegando era ateacute pra ter chegado
127
ontem [] olhe tem um queijinho de manteiga de primeira esse acabou de chegar
tenho mais laacute dentro a senhora pode levar quanto quiser esse eacute do bom bota na brasa
na frigideira e fica uma beleza assado natildeo vai se arrepender leve um pedacinho do
queijo pra esperar a carne de sol assim mata a saudade (REZENDE 2014 p200-201)
Alice ouve o sotaque familiar recebe acolhimento nas famiacutelias por onde procura por
Ciacutecero Natildeo encontra pistas dele mas descobre a cada novo trecho pistas de si mesma e de suas
raiacutezes
Suelen me conduziu de casa em casa gente do sertatildeo do litoral da Vaacuterzea do Brejo da
Paraiacuteba uns tantos Ciacuteceros por certo mas nenhuma notiacutecia de Ciacutecero Arauacutejo nem nas
casas de outros Arauacutejos Comi tapioca com coco tomei cafeacute refresco de cajaacute A gente
arranja algueacutem traz e guarda no freezer sempre tem mas natildeo achei Ciacutecero
(REZENDE 2014 p204)
Ela sabe que Ciacutecero eacute um pretexto em sua procura Reconhece que seu propoacutesito principal
natildeo eacute o de encontraacute-lo mas sim o de continuar sobrevivendo pelas proacuteprias pernas tomando as
proacuteprias decisotildees Quando menciona que se forccedilava a crer sabe que sua busca era por si mesma
Salgadinhos e cachorros-quentes mastigados agraves pressas ou com exagerada lentidatildeo a
depender do interesse dos assentos disponiacuteveis ou do cansaccedilo das pernas e as andanccedilas
sem fim com objetivos mentirosos nas quais eu mesma me forccedilava a crer Ciacutecero Arauacutejo
sumindo e reaparecendo segundo seus caprichos e minhas necessidades []
(REZENDE 2014 p213-214)
Em uma nova padaria ela alimenta-se de lsquopatildeo na chapa e cafeacute com leitersquo repete o pedido
para permanecer ali por mais tempo lsquomatutandorsquo Quando refere a si mesma naquela condiccedilatildeo
como lsquoalimentada e decididarsquo mostra que sobrevivecircncia e autonomia estatildeo lado a lado eacute capaz
de cuidar de si e de tomar as proacuteprias decisotildees mesmo que sejam como a de dormir em um sofaacute
ao relento coberta com o plaacutestico-bolha
Andei mais um pouco passei por uma padaria senti fome voltei entrei patildeo na chapa e
cafeacute com leite sentei-me em uma das duas mesinhas com tamboretes pedi mais patildeo
com cafeacute e encompridei minha permanecircncia ali matutando ateacute comeccedilarem a puxar a
primeira porta de ferro Entatildeo alimentada e decidida debaixo de um ceacuteu despejado
voltei ao sofaacute que laacute me esperava deserto deitei-me em cima da bolsa os joelhos
apoiados na mochila presa pelas alccedilas agraves minhas canelas agasalhei-me com meu
plaacutestico-bolha e dormi minha primeira noite ao relento sem nada sobre a cabeccedila senatildeo
estrelas (REZENDE 2014 p217)
A frase jaacute apontada lsquoalimentada e decididarsquo mostra a ideia de que a alimentaccedilatildeo eacute
combustiacutevel de sua sobrevivecircncia e de sua capacidade de decidir por si o que fazer Cada vez
mais a protagonista da narrativa se percebe protagonista da proacutepria vida
128
No seguimento de seus dias na rua Alice encontra Arturo e Lola moradores de rua Com
eles compartilha o lugar de dormir e as refeiccedilotildees interage afeiccediloa-se com amizade Arturo a
quem ela apelida de lsquoChapeleirorsquo acorda-a para que receba dos voluntaacuterios o lanche da
madrugada
Eu dormi Barbie pela primeira vez eu dormi na rua literalmente de verdade a noite
quase toda ateacute comeccedilar a clarear laacute fora Foi o Chapeleiro que me acordou sacudindo
meu ombro com sua fala arrevesada lsquoCha bem a chente do pan y do cafeacute no perde esse
pan com cafeacute dessos pibes eacute bueno eacute quente conforta son pibes Buenosrsquo
A cada parada saltavam jovens dois rapazes e uma moccedila com copos de plaacutestico
garrafas teacutermicas e embrulhinhos de papel pardo distribuindo-os Quando chegou a
minha vez vi primeiro aacutegua quente pras cuias como a do Chapeleiro jaacute a bomba em
riste um pacotinho de erva-mate pra quem pedia e a oferta de cafeacute com leite bem
accedilucarado que eu preferi mais um cacetinho com manteiga e uma espeacutecie de mortadela
ou outro afiambrado qualquer Vou lhe dizer Barbie embora o copinho fino quase
queimasse a matildeo aquilo me pareceu um presente do ceacuteu eu quase sem dinheiro nenhum
e tatildeo longe da padaria do meu amigo pra ir pedir-lhe fiado outro cacetinho na chapa e
um cafeacute com leite (REZENDE 2014 p224)
Lola eacute personagem de grande relevacircncia na narrativa pois estabelece com Alice uma
relaccedilatildeo de amizade e de cuidado Recebe-a em sua casa mesmo com toda precariedade que esta
estrutura tem a oferecer Daacute agrave protagonista a confianccedila de poder dormir laacute quando quiser Alice
retribui compartilhando com ela as refeiccedilotildees que faz Mesmo com pouquiacutessimo dinheiro que
ainda lhe sobra ela divide com Lola a comida que consegue comprar O alimento aleacutem de nutrir
o corpo nutre a amizade funciona como instrumento de partilha e de gratidatildeo pelo acolhimento
que recebe da nova amiga A seguir trecircs fragmentos que ilustram o cuidado muacutetuo entre elas
1) Natildeo tive coragem de fazer perguntas sobre aquilo tudo preferi oferecer-lhe com um
resto de dinheiro que catei nos bolsos e na carteira um cafeacute com patildeo na padaria mais
proacutexima que ela aceitou e comeu com gosto nenhuma de noacutes duas ligando a miacutenima
pros olhares enviesados que nos cercavam Tu vem todo dia dormir aqui tu eacute direita tu
pode aprende o caminho Eu vinha sim sem duacutevida nenhuma e fomos cada uma pro
seu lado eu memorizando pontos de referecircncia pelo caminho (REZENDE 2014 p232)
2) Dormia em seu terraccedilo dividia com ela minhas parcas refeiccedilotildees lia seus livros
embolorados Ela nunca me perguntou mais nada desde o primeiro encontro em que lhe
contei e ela duvidou da minha histoacuteria de filha neto Ciacutecero e tudo mais que ouviu com
um risinho descrente (REZENDE 2014 p236)
3) Guiavam-me o amanhecer e o entardecer a chuva o frio o sol a fome que eu
resolvia com qualquer coisa natildeo mais de dez reais por dia a menor quantia que o caixa
eletrocircnico cuspia agraves vezes suficientes pra mim e pra Lola Dias e dias Nada mais na
minha aparecircncia nem de leve acho me distinguia dos outros (REZENDE 2014
p239)
Ao final da narrativa Alice narra como terminou seus quarenta dias de rua jaacute sem
dinheiro ainda encontra um modo de se alimentar vendendo os livros que comprou mendigando
129
aacutegua em bares Sua condiccedilatildeo deteriorada chega ao limite e entatildeo natildeo mais se parece apenas mas
se torna moradora de rua pela proacutepria escolha de natildeo voltar ao apartamento Natildeo eacute mais guiada
pela procura por Ciacutecero mas sim por aquela de sobreviver
Esmoreci de vez sem banho sem comida rasgada desmantelada deixei-me cair em
mais um banco indiferente aos olhares se eacute que algueacutem me via cochilei e acordei mil
vezes saiacute pra rua tocada pela fome a esmo coragem nenhuma de pedir nas portas de
remexer no lixo vendi no sebo meus livros novos de 199 pela quantia suficiente pra trecircs
cachorros-quentes bebi aacutegua de torneira mendigada em balcotildees de bares Jaacute natildeo tinha
mais nada a perder (REZENDE 2014 p244)
Quem ajuda Alice na decisatildeo de retomar sua vida de voltar a seu apartamento eacute Lola Ao
estimulaacute-la a telefonar para Elizete para pegar o endereccedilo de sua casa Lola cuida de Alice
acordando-a de madrugada e oferecendo-lhe lsquoa metade de um patildeo dormido e uns goles do seu
chimarratildeorsquo Aqui o alimento eacute para dar forccedilas agrave personagem mas eacute acima de tudo representativo
do cuidado e do carinho que se estabelece entre elas Alice reconhece
Ela afinal acreditava mais do que eu me sacudiu no lusco-fusco da madrugada Vai
sai desse buraco isso natildeo eacute pra ti tu soacute natildeo esquece da gente Obedeci sem resistecircncia
Lola me deu a metade de um patildeo dormido uns goles do seu chimarratildeo Toma pra tu
aguentar ateacute laacute levou-me a um orelhatildeo talvez o uacuteltimo que ainda funcionava telefonei
pra Elizete a cobrar tirei-a da cama na madrugada (REZENDE 2014 p245)
Quando refere lsquoobedeci sem resistecircnciarsquo natildeo se trata de uma obediecircncia passiva como
aquela que se instala com a filha no iniacutecio da narrativa eacute sim o resultado de sua quarentena a
compreensatildeo de si mesma e de suas necessidades de sobrevivecircncia que natildeo mais podem ser
satisfeitas na rua pela falta de dinheiro Alice constata que seu percurso em direccedilatildeo agrave si mesma
chega ao fim que jaacute eacute capaz de comeccedilar uma nova vida em Porto Alegre agora com o passo
firme de quem eacute capaz de decidir natildeo mais apenas sobreviver mas viver a rotina como se
apresenta A protagonista natildeo estaacute mais resignada agrave vida que lhe foi imposta mas compreende
que chegou aos proacuteprios limites e que retomou sua autonomia ldquoChega Barbie agora eu paro
mesmo jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia guria a solidariedade silenciosa mas
agora eu vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a mal taacute Natildeo digo que seja pra sempre quem
sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo a limpordquo (REZENDE 2014 p245)
Sem ponto final o paraacutegrafo mostra a caracteriacutestica da narrativa muitas vezes com frases
inacabadas Entretanto aqui a falta do ponto denota a abertura agraves possibilidades do que refere
como lsquopasso tudo a limporsquo Alice assume elementos da linguagem gauacutecha como o uso do lsquoguriarsquo
130
do lsquotursquo e do lsquotaacutersquo expressando a iniciativa pela assimilaccedilatildeo de elementos regionais em sua nova
fase depois de fazer todo o relato de sua mudanccedila de vida nas paacuteginas do diaacuterio
Em todo o percurso de sua procura por si mesma pelo resgate de sua autonomia o
alimento assume diversas conotaccedilotildees Pode-se compreender a cozinha em Quarenta dias como
um fator que marca etapas da histoacuteria de Alice desde a sopa que prepara em Joatildeo Pessoa ateacute o
patildeo dormido que recebe de Lola tanto representada pelo aspecto da comida como por aquele da
mobiacutelia dos instrumentos que satildeo parte do preparar o alimento e do comer Aleacutem disso eacute
possiacutevel transplantar a cozinha para o externo na histoacuteria como representaccedilatildeo da vida que Alice
decide tomar fora da vida que lhe foi imposta A cozinha representa a autonomia e natildeo mais a
obediecircncia agrave filha A consciecircncia do corpo por sua vez as necessidades de fome sede sono e
higiene pessoal que satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa
Cabe compreender a consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo ambas definidas por
Jaspers na procura que a protagonista faz por si mesma a partir da capacidade de tomar decisotildees
a favor do que deseja e precisa e natildeo a favor da filha Aleacutem disso relembra diversos elementos
de sua identidade a partir de referenciais de sua terra encontrados em Porto Alegre como um
sotaque familiar de Penha ou os sabores paraibanos ou mesmo na evocaccedilatildeo dos doces de sua
avoacute que os quindins da simpatia fazem-na evocar A recordaccedilatildeo do cachorro-quente paraibano
que compara com aquele soacute de patildeo e salsicha gauacutecho faz com que as memoacuterias ajudem em sua
reconstruccedilatildeo no que tange agrave consciecircncia de si A consciecircncia do corpo por sua vez pode ser lida
na iniciativa de Alice por satisfazer as necessidades de fome sede sono e higiene pessoal que
satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa
Um ponto de grande importacircncia eacute a interaccedilatildeo com outras pessoas que tambeacutem consiste
em necessidade de sobrevivecircncia Alice sai do isolamento em que passa os primeiros dias do
choque imbuiacuteda de encontrar Ciacutecero Nesta missatildeo conhece pessoas com quem conversa e
partilha mesmo que seja uma breve aproximaccedilatildeo Nutre-se dessas trocas aleacutem da nutriccedilatildeo pelo
alimento Coloca-se em situaccedilotildees em que eacute escutada em que tem sua necessidade atendida como
nas vilas que percorre na procura pelo rapaz nos botecos e restaurantes onde vai recebe o que
pede no restaurante de Penha recebe o zelo de uma mesa posta de Zelima no Pronto-Socorro
recebe cuidado e preocupaccedilatildeo
131
Atraveacutes da necessidade de sobreviver e da missatildeo de descobrir o paradeiro de Ciacutecero
Alice redescobre sua capacidade de tomar as reacutedeas da proacutepria vida que atribuiacutera agrave filha Norinha
logo que chegou em Porto Alegre
132
CONCLUSAtildeO
Italo Calvino ao se referir agrave atividade do escritor afirmou ldquoEscrevemos para tornar
possiacutevel ao mundo natildeo escrito de exprimir-se atraveacutes de noacutesrdquo (DANZI 2007 p140) O que ele
denomina lsquomundo natildeo escritorsquo eacute a proacutepria vida real percebida pelo indiviacuteduo por seus cinco
sentidos e vivenciada atraveacutes das emoccedilotildees e dos pensamentos Desse lsquomundo natildeo escritorsquo
portanto fazem parte o cozinhar e o comer o partilhar as refeiccedilotildees e seus sabores o vincular-se
aos demais entre outras vicissitudes da experiecircncia humana Atraveacutes do ofiacutecio do escritor essas
condiccedilotildees satildeo representadas no texto literaacuterio
A escolha por estudar o universo da cozinha neste contexto permite expressar diversas
perspectivas atraveacutes da literatura Silvana Ghiazza estudiosa das relaccedilotildees entre cozinha e
literatura expotildee que
O alimento enquanto signo significa portanto algo aleacutem de si mesmo media conteuacutedos
ligados ao universo cultural revela conexotildees com a realidade histoacuterico-social com o
conjunto profundo da identidade individual e coletiva constitui em suma um polo de
agregaccedilatildeo de diversas dimensotildees de humanidade torna-se uma forma de linguagem natildeo-
verbal organizando-se em paralelo a outras linguagens em um orgacircnico sistema de
sinais desta forma pode tornar-se entatildeo uma chave de leitura transversal da realidade
Ateacute daquela literaacuteria (GHIAZZA 2015 p19)
De acordo com a mesma autora ldquo[] pode-se falar de comida ou atraveacutes da comidardquo
(GHIAZZA 2015 p20 grifo nosso) No termo lsquoatraveacutesrsquo empregado por Silvana Ghiazza estatildeo
as possiacuteveis aplicaccedilotildees da cozinha na literatura em que a primeira a cozinha eacute um veiacuteculo para
que a segunda a literatura exprima na linguagem do escritor uma seacuterie de circunstacircncias dos
personagens e da trama
Mais uma vez Silvana Ghiazza colabora para a compreensatildeo do sentido da comida e sua
relaccedilatildeo com a literatura quando esclarece
A comida pode ser presente como objeto em sua concreta materialidade no interno da
representaccedilatildeo marcando a natureza realiacutestica da proacutepria estrutura narrativa pode
contribuir a delimitar as coordenadas espaccedilo-temporais fornecendo referecircncias a
produtos pratos haacutebitos de um tempo e de um territoacuterio determinado pode tambeacutem
assumir um significado metafoacuterico mediando conteuacutedos diversos e simboacutelicos A
relaccedilatildeo com o alimento em termos de sua conotaccedilatildeo identitaacuteria pode servir ao autor para
tratar o caraacuteter das personagens e pode tornar-se uma forma de comunicaccedilatildeo
interpessoal uma linguagem natildeo-verbal A comida pode ainda constituir o campo
semacircntico do qual o autor se serve para as escolhas lexicais de sua escritura
(GHIAZZA 2015 p20)
133
A expressatildeo da cozinha no texto literaacuterio serve valendo-nos da referecircncia de Italo
Calvino a que este lsquomundo natildeo escritorsquo se exprima atraveacutes do escritor A partir da leitura da
autora entende-se que esse lsquoexprimir-sersquo poderaacute ocorrer por meio de trecircs funccedilotildees principais a
denotativa a conotativa e a comunicativa Sobre a primeira denotativa Silvana Ghiazza explica
As referecircncias a produtos alimentares a pratos e a receitas assim como a rituais haacutebitos
ou eventos ligados agrave realidade gastronocircmica de um tempo preciso e de um territoacuterio
definido contribuem sem duacutevidas para dar veridicidade verossimilhanccedila agrave narrativa
marcando sua estrutura realiacutestica (GHIAZZA 2015 p24)
As trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea escolhidas para compor o corpus
desta dissertaccedilatildeo apresentam o universo da cozinha atraveacutes da funccedilatildeo denotativa nos elementos
compreendidos como espaccedilo fiacutesico material Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo as
referecircncias agraves tradiccedilotildees culinaacuterias judaicas em seus pratos receitas e praacuteticas satildeo representadas
por essa funccedilatildeo Em O arroz de Palma podemos ler em produtos como o arroz a lata de azeite
de oliva e o bacalhau a presenccedila da cultura portuguesa configurando tal funccedilatildeo em Quarenta
dias a mesma estaria representada pelas carrocinhas de pipoca e de cachorro quente pelas
padarias e comidas de botecos de rua pois satildeo elementos que datildeo verossimilhanccedila agrave estrutura
narrativa em que a personagem passa a habitar as ruas da cidade durante a sua procura
A respeito da funccedilatildeo conotativa em situaccedilatildeo oposta agrave anterior Ghiazza explicita
As referecircncias agrave esfera alimentar natildeo tecircm o escopo de marcar a verossimilhanccedila e o
realismo da obra fornecendo informaccedilotildees do tipo denotativo realistico-referencial mas
servem principalmente para tratar do caraacuteter das personagens para definir a
personalidade atraveacutes de gestos de comportamentos ou de haacutebitos ligados de algum
modo agrave produccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo e ao consumo do alimento (GHIAZZA 2015 p25)
Podemos na funccedilatildeo conotativa mencionar em O arroz de Palma a preparaccedilatildeo do arroz
por Antonio enquanto narra a histoacuteria bem como o papel do arroz na trama considerando seu
caraacuteter simboacutelico como fertilizador da famiacutelia e como elemento presenteado por Palma e Joseacute
Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento Em Por que sou gorda mamatildee a funccedilatildeo
conotativa seria representada pela relaccedilatildeo das personagens com o comer jaacute que tanto no caso da
protagonista como no de sua matildee e no da Voacute Magra tal relaccedilatildeo eacute caracteriacutestica da personalidade
das mesmas entre outros exemplos Em Quarenta dias as escolhas alimentares de Alice satildeo
comportamentos associados agrave sua decisatildeo de permanecer na rua natildeo voltando para casa bem
como de seu desejo por autonomia Na mesma obra tanto o restaurante da conterracircnea Penha
134
quanto ingredientes e comidas da Paraiacuteba com os quais a protagonista tem contato em seus
percursos marcam a ligaccedilatildeo afetiva que ela manteacutem com sua terra natal
Outra das funccedilotildees que Silvana Ghiazza refere eacute a comunicativa relacionada ao papel da
cozinha na comunicaccedilatildeo entre as personagens de uma trama como por exemplo a funccedilatildeo da
comida no compartilhar a mesa
Ainda um outro significado que a comida pode assumir eacute ligado agrave convivialidade agrave sua
funccedilatildeo de meio de comunicaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Desde sempre dividir o alimento
foi de forma diversa mas em todas as sociedades ocasiatildeo para comunicar E esse eacute um
dado verificaacutevel na vida de cada dia em que se espera que o momento da divisatildeo do
alimento seja tambeacutem momento de divisatildeo de pensamentos e de afetos de
aprofundamento do conhecer reciacuteproco Na mesa se fala o eu torna-se noacutes
Tambeacutem na literatura esta realidade ocupa um lugar notaacutevel e as referecircncias agrave comida
desempenham uma funccedilatildeo comunicativa na medida em que oferecem o suporte para
uma troca relacional entre as personagens o alimento e mais em termos gerais as
praacuteticas alimentares podem transformar-se de fato em uma verdadeira linguagem natildeo-
verbal capaz de comunicar mensagens sem a necessidade de palavras [] A comida
torna-se a forma privilegiada de linguagem natildeo-verbal para comunicar o sentimento de
amor em todas as suas formas (GHIAZZA 2015 p26-27)
Nas trecircs obras do corpus encontramos a funccedilatildeo comunicativa quando a comida bem
como as representaccedilotildees da cozinha como espaccedilo fiacutesico satildeo elos de convivecircncia entre as
personagens Palma colhe o arroz da pedra para presenteaacute-lo ao irmatildeo e agrave cunhada e o mesmo
seraacute elemento de ligaccedilatildeo entre a famiacutelia assumindo o arroz o nuacutecleo da trama Antonio durante a
narrativa prepara o que restou do ingrediente para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo de cem anos do
casamento dos pais e do proacuteprio arroz em O arroz de Palma Ateacute mesmo na expressatildeo do amor
fiacutesico o arroz eacute o elemento comunicativo na cena em que Antonio e Isabel inauguram sua
intimidade fiacutesica derramando sobre seus corpos o arroz Em Por que sou gorda mamatildee a Voacute
Magra oferece doces tiacutepicos aos netos em sua sacola de crocheacute enquanto a matildee da protagonista
compartilha com os filhos os doces e o refrigerante dentro do carro na viagem da famiacutelia ao
Uruguai
Assim a representaccedilatildeo da cozinha pode se exprimir no texto literaacuterio como espaccedilo fiacutesico
e simboacutelico termos escolhidos para o presente trabalho ou atraveacutes de suas funccedilotildees denotativa
conotativa e comunicativa conforme Silvana Ghiazza As trecircs obras do corpus tecircm o objetivo de
propor a reflexatildeo sobre as linguagens que a cozinha pode assumir no texto literaacuterio
especificamente no contexto da literatura brasileira contemporacircnea Nossa escolha por estudar o
referido tema decorreu tambeacutem da funccedilatildeo cultural que a cozinha assume na sociedade atraveacutes
dos tempos Rita Rutigliano explica que
135
Desde sempre os escritores utilizam a comida e o comer tambeacutem para falar de outra
coisa As paacuteginas dos livros se sabe portam um patrimocircnio de signos reveladores de
vivecircncias e de sentimentos humanos Nos eacute possiacutevel colher indiacutecios preciosos atraveacutes de
descriccedilotildees dos rituais alimentares (e ateacute mesmo do jejum) que- cobrindo o arco inteiro
entre dois polos- a comida como necessidade de base e como um aspecto da paixatildeo pela
vida-podem se tornar invenccedilatildeo jogo poesia religiatildeo histoacuteria barocircmetro das
experiecircncias pessoais e coletivas metaacutefora social e poliacutetica Em uma palavra cultura
(RUTIGLIANO 2000 p11)
A respeito do papel desempenhado pela cozinha na cultura salientado por Rita
Rutigliano podemos acrescentar o fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo lsquoLa cultura em la
cocinarsquo cujo conselho editorial eacute composto por Marcelo Aacutelvarez Jesuacutes Contreras e Rosaacuterio
Olivas O referido fragmento aparece publicado em um dos livros da coleccedilatildeo pela editora
Catalonia del Nuevo Extremo
A cozinha natildeo eacute soacute um procedimento teacutecnico que permite que os produtos alimentiacutecios
se transformem em pratos e em receitas eacute acima de tudo uma linguagem em que se
expressa a cultura humana Os gostos a esteacutetica as combinaccedilotildees de sabores os
condimentos preferidos e as maneiras agrave mesa satildeo gestos sociais que se relacionam com a
histoacuteria e com a transmissatildeo dos siacutembolos que distinguem uma comunidade da outra
(SARDE MONTECINO 2014)
O fato eacute que das mais diversas formas dentro do referido contexto cultural o universo
culinaacuterio pode ser traduzido na literatura como um fenocircmeno da natureza humana O cozinhar
nos fez humanos A propoacutesito disso Eloisa Palafox refere que as capacidades de cozinhar os
alimentos e de contar histoacuterias distinguem o homo sapiens ambas compotildeem parte primordial de
nossa evoluccedilatildeo A semelhanccedila entre tais praacuteticas estaacute tambeacutem no fato de que permitem a
socializaccedilatildeo entre os indiviacuteduos e a partilha da comida e das histoacuterias Para Michael Pollan
Somos a uacutenica espeacutecie que depende do fogo para manter o corpo aquecido e a uacutenica
espeacutecie que natildeo pode passar sem cozinhar sua comida A esta altura o controle do fogo
jaacute estaacute inscrito nos nossos genes uma questatildeo natildeo mais associada apenas agrave cultura
humana mas sim agrave nossa biologia (POLLAN 2014 p109)
A relaccedilatildeo com o cozinhar vai aleacutem do preparo do alimento no fogo para ingestatildeo Esse eacute
sem duacutevidas o que manteacutem nossa sobrevivecircncia bioloacutegica mas haacute outra habilidade que
aprendemos como espeacutecie graccedilas tambeacutem ao fogo a interaccedilatildeo com os demais que Silvana
Ghiazza relaciona com a funccedilatildeo comunicativa que a cozinha pode ter no texto literaacuterio Pollan
acrescenta agrave exposiccedilatildeo acima a relevacircncia dessa aquisiccedilatildeo em nosso desenvolvimento
136
Sobretudo o fogo que usamos para cozinhar como o que vigio na churrasqueira do meu
quintal tambeacutem ajudou a nos formar como seres sociais lsquoA forccedila do magnetismo social
exercido pelo fogorsquo como diz o historiador Felipe Fernaacutendez-Armesto eacute o que nos
manteacutem juntos e ao fazer isso ele provavelmente mudou o curso da evoluccedilatildeo humana O
fogo usado para cozinhar promoveu a seleccedilatildeo de indiviacuteduos capazes de tolerar outros
indiviacuteduos- fazer contato visual cooperar e compartilhar lsquoQuando o fogo se combinou agrave
comidarsquo escreveu Fernaacutendez-Armesto lsquoum foco quase irresistiacutevel foi criado para a vida
comunalrsquo (na verdade lsquofocorsquo vem da palavra latina focus para lareira braseiro chama)
A forccedila da gravidade social exercida pelo fogo natildeo parece ter diminuiacutedo [] (POLLAN
2014 p109)
Assim somos seres bioloacutegicos e sociais atributos que devemos ao ato de cozinhar A
nossa biologia nos confere o comer pela fome e pelo prazer Esse elemento por sua vez eacute
necessaacuterio para promover a continuidade da sobrevivecircncia individual da mesma forma que o
prazer sexual eacute o estiacutemulo para a preservaccedilatildeo do humano como espeacutecie Cozinhar comer
alimentos cozidos que nos deem nutriccedilatildeo e sensaccedilotildees prazerosas e nos reunirmos com nossos
semelhantes satildeo atributos evolutivos que promoveram a chegada ao seacuteculo XXI
A reuniatildeo com as pessoas proacuteximas resultado do fogo como elemento agregador para
cozinhar os alimentos tornou-nos em termos evolucionaacuterios seres sociais Sendo assim
partilhamos vivecircncias com outros e essas nos propiciam a noccedilatildeo de pertencimento a um grupo
Temos a partir disso a noccedilatildeo de uma identidade singular e plural Somos parte de algo e
acumulamos percepccedilotildees experiecircncias e sentimentos em comum forma-se a memoacuteria coletiva A
memoacuteria individual de modo diverso eacute parte do aparato anatocircmico e fisioloacutegico dos seres
humanos Essa se desenvolve agrave medida que se forma o neocoacutertex ceacuterebro exclusivamente nosso
cooperando com a consciecircncia de noacutes mesmos e entatildeo com a construccedilatildeo da identidade
individual E porque somos capazes de reter informaccedilotildees de arquivaacute-las e de evocaacute-las em
acircmbito individual somos tambeacutem capazes de fazecirc-lo coletivamente ao compormos um grupo
seja uma famiacutelia ou um povo
Uma das principais caracteriacutesticas da memoacuteria na esfera familiar satildeo as histoacuterias que
atravessam geraccedilotildees por serem contadas desde os antepassados Entre essas eacute vaacutelido incluirmos
tambeacutem as receitas de cozinha pois narram o como-se-faz de um prato atraveacutes dos tempos por
parentes de sangue ou de criaccedilatildeo Entre tais histoacuterias podemos tambeacutem referir o papel de um
determinado ingrediente na formaccedilatildeo de uma memoacuteria de famiacutelia como eacute o exemplo em O arroz
de Palma
A memoacuteria individual por sua vez eacute porccedilatildeo imprescindiacutevel de nossa identidade e da
consciecircncia que temos sobre quem somos ela compotildee junto aos demais elementos nossa
137
capacidade de autonomia Jaspers aponta para a impossibilidade de uma independecircncia total em
relaccedilatildeo a outras pessoas pois precisamos das interaccedilotildees de afeto e de trocas com nossos
semelhantes Temos tambeacutem necessidade uns dos outros por aspectos praacuteticos de sobrevivecircncia
indiviacuteduos que plantem que colham que pesquem que vendam que comprem que cozinhem
que consumam e que faccedilam esse ciacuterculo perpetuar-se Seguiremos cozinhando uns para os outros
pelo simples fato de que precisamos comer E partilhar Esse eacute o ponto em Quarenta dias
A protagonista depende de quem prepare o alimento para ela seja o anocircnimo na
carrocinha de cachorro quente na rua seja na mesa posta com esmero que recebe no restaurante
da rodoviaacuteria pela conterracircnea Penha Paradoxalmente o fato de receber do outro a comida eacute o
substrato da retomada de sua autonomia jaacute que a decisatildeo do que comer eacute da proacutepria Alice Nesse
caso o cozinhar tece as interaccedilotildees entre os sujeitos
Os elementos escolhidos para estudo satildeo resultado de nossa capacidade de pensar de
sentir emoccedilotildees de perceber os estiacutemulos externos atraveacutes dos cinco sentidos e de interpretaacute-los
de acordo com a consciecircncia do corpo e de noacutes mesmos A bagagem individual e cultural
fornecida pela memoacuteria faz com que possamos sentir prazer ao saborear uma receita de famiacutelia
porque ela nos faz lembrar de uma avoacute ou de uma tia como ocorre com Antonio ao ler aquela
escrita por Palma em seu caderno Escolhemos o que comer exercendo nossa autonomia
conforme as preferecircncias alimentares que nos identificam considerando a cultura do territoacuterio
onde vivemos Compreende-se entatildeo que os atributos definidos para este trabalho natildeo ocupam
compartimentos estanques mas estatildeo inexoravelmente interligados em noacutes
Pollan reflete sobre a contribuiccedilatildeo de Levi-Strauss nesse aspecto
Segundo Levi-Strauss a distinccedilatildeo entre lsquoo crursquo e lsquoo cozidorsquo serviu a muitas culturas
como a grande alegoria para estabelecer a diferenccedila entre animais e pessoas Em lsquoO cru
e o cozidorsquo ele escreveu lsquocozinhar natildeo apenas marca a transiccedilatildeo da natureza para a
cultura mas por meio dessa accedilatildeo e com a sua ajuda a condiccedilatildeo humana pode ser
definida com todos os seus atributosrsquo Cozinhar transforma a natureza e ao fazer isso
nos eleva acima desse estado tornando-nos humanos (POLLAN 2014 p57)
Na presente dissertaccedilatildeo partiu-se da proposta de estudar a memoacuteria ligada agrave cozinha em
O arroz de Palma o prazer vinculado ao comer em Por que sou gorda mamatildee e a autonomia
associada ao escolher o alimento a partir da percepccedilatildeo da fome em Quarenta dias Essa
separaccedilatildeo se deveu agrave predominacircncia desses atributos em cada uma das obras natildeo os excluindo
138
das demais Como jaacute exposto haacute uma interligaccedilatildeo entre esses em cada um de noacutes Eacute possiacutevel
encontrar nas trecircs narrativas expressotildees dessa conexatildeo
Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo muito se pode refletir sobre as lembranccedilas
da proacutepria narradora-personagem e de sua famiacutelia ou sobre sua autonomia ao decidir pelo que
come Em Quarenta dias a protagonista recorre agrave memoacuteria de sabores e de vivecircncias ao
escrever em seu caderno a retrospectiva de suas andanccedilas aleacutem disso apesar de sua fome ser o
determinante na escolha do que comer Alice sente prazer com a refeiccedilatildeo quentinha e posta na
mesa com esmero no restaurante da rodoviaacuteria ou com o lanche servido na padaria Em O arroz
de Palma os atributos tambeacutem estatildeo entremeados mesmo com o predomiacutenio da memoacuteria para o
estudo dessa obra haacute presenccedila do prazer e da autonomia ao longo das lembranccedilas de Antonio
Um ponto de semelhanccedila entre as trecircs obras eacute o fato de apresentarem todas um narrador-
personagem que protagoniza as vivecircncias A cozinha eacute portanto contada em primeira pessoa
espaccedilo vivencial do narrador A opccedilatildeo por um eu ficcional para narrar as histoacuterias natildeo eacute ao acaso
sendo a cozinha um espaccedilo de tamanha relevacircncia para nossa vida de tanto apelo ao imaginaacuterio e
agraves lembranccedilas nos campos individual e coletivo eacute bem apropriado que quem conte seja a
personagem que a vivenciou atraveacutes das proacuteprias experiecircncias ou da memoacuteria familiar A tal
propoacutesito outro elemento que aproxima as trecircs obras eacute a presenccedila da famiacutelia das personagens
que ocupa posiccedilatildeo relevante na relaccedilatildeo que os protagonistas assumem com a cozinha
Nas trecircs narrativas o narrador-personagem fala de suas emoccedilotildees e vivecircncias e por vezes
fala da famiacutelia e das histoacuterias e lembranccedilas que representam a raiz de muitas experiecircncias com a
cozinha e com o comer A famiacutelia nesse contexto representa o coletivo que eacute apresentado junto
ao individual o sentir e pensar do proacuteprio narrador No livro Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e
Doccediluras essa coexistecircncia entre o singular e o plural eacute um dos elementos abordados em relaccedilatildeo
ao papel da cozinha conforme expresso no trecho abaixo
O ato culinaacuterio eacute ao mesmo tempo uma experiecircncia individual e coletiva uma
oportunidade de autoconhecimento de entrega a mim mesma e simultaneamente de
partilha de doaccedilatildeo de expressatildeo de afetos positivos [hellip] Sobretudo o ato culinaacuterio
representa uma das circunstacircncias mais propiacutecias para experimentar singular e plural
para nos aproximar de noacutes mesmos e daqueles a quem admiramos amamos e que satildeo
parte da nossa histoacuteria (CARDOSO 2012 p13)
139
O termo lsquoato culinaacuteriorsquo refere-se natildeo apenas ao cozinhar mas a toda gama de
comportamentos ligados agrave cozinha como dividir uma refeiccedilatildeo receber doces ou oferecer uma
comida aos demais colocar a mesa e tantas outras possibilidades
A diferenccedila entre as trecircs obras eacute o espaccedilo que a cozinha representa em cada uma Em O
arroz de Palma Antonio faz a narrativa a partir de sua cozinha enquanto prepara o almoccedilo de
celebraccedilatildeo dos cem anos de casamento de seus pais e do saco de estopa com o arroz como
presente aos noivos A cozinha nesse caso eacute apresentada atraveacutes do espaccedilo fiacutesico mas tambeacutem
do ingrediente-protagonista o arroz por outros elementos materiais como os guardanapos da
matildee de Isabel e o caderno de receitas de Antonio e por aqueles imateriais a exemplo da memoacuteria
associada ao cozinhar e das comparaccedilotildees dos pratos culinaacuterios com os estilos de famiacutelias Em
Por que sou gorda mamatildee a cozinha aparece ora como ingredientes ora como espaccedilo fiacutesico
ora como comidas ora como emoccedilotildees revelando histoacuterias da protagonista e de seus antepassados
de origem judaica Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como espaccedilo fiacutesico no novo
apartamento e na vida da protagonista em Joatildeo Pessoa antes da mudanccedila e passa a ser expressa
ao longo da obra pelos bares estabelecimentos e lsquocarrinhosrsquo pelos quais ela passa tambeacutem
representativos do espaccedilo fiacutesico Aleacutem disso a cozinha aparece como espaccedilo simboacutelico de
sobrevivecircncia nessa narrativa essa representaccedilatildeo eacute feita atraveacutes das comidas que Alice escolhe
enquanto anda pelas ruas Deste modo as trecircs obras contemplam ambos os espaccedilos referidos no
propoacutesito desse trabalho
Nas obras a cozinha eacute descrita como espaccedilo fiacutesico - tanto como peccedila da casa quanto
atraveacutes dos eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios ou seja em sua existecircncia material- e como
espaccedilo simboacutelico traduzindo lembranccedilas emoccedilotildees e comportamentos representando o ritual
implicado no cozinhar e comunicando os integrantes de uma famiacutelia
Em relaccedilatildeo ao elemento material da cozinha destaco em O arroz de Palma a cozinha de
onde Antonio narra suas lembranccedilas a panela em que ele prepara o arroz a taacutebua na qual corta os
temperos seu caderno de receitas onde estaacute aquela escrita por Palma os guardanapos da matildee de
Isabel a lata de azeite de Oliva e o mais significativo de todos o proacuteprio arroz presenteado a
Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento A expressatildeo material estaacute presente sobretudo
no espaccedilo fiacutesico e nos elementos citados embora haja menccedilatildeo a comidas como o arroz de
bacalhau preparado para aproximar as famiacutelias a fim de comeccedilar o namoro com Isabel
140
Em Por que sou gorda mamatildee haacute referecircncias agraves comidas e doces judaicos como
aqueles na sacola de crocheacute da Voacute Magra Aleacutem disso em vaacuterias passagens se lecirc descriccedilotildees como
aquela em que os moradores do bairro preparam pratos a partir dos ingredientes nas cozinhas de
suas casas com detalhamento dos atos culinaacuterios e dos instrumentos utilizados Uma das cenas
mais consistentes em demonstrar a cozinha como espaccedilo fiacutesico eacute quando a Voacute Magra prepara os
bifes para a protagonista ali essa representaccedilatildeo natildeo apenas estaacute na cozinha mas tambeacutem nos
utensiacutelios e ingredientes como o oacuteleo que ela usa para o preparo da carne Nessa obra a
predominacircncia da perspectiva material estaacute principalmente nas comidas Outro exemplo eacute a cena
em que a matildee se deleita com os filhos na viagem ao Uruguai comendo doces e refrigerante ou
quando essa faz uma farta refeiccedilatildeo antes do cateterismo e outra depois de sair do hospital Esses
satildeo alguns exemplos da expressatildeo fiacutesica que a cozinha assume na obra de Cintia Moscovich
Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como peccedila da casa de Joatildeo Pessoa e de Porto
Alegre sendo essa uacuteltima expressa com detalhes quanto a eletrodomeacutesticos armaacuterios mesa e
utensiacutelios No periacuteodo em que Alice estaacute na rua o aspecto material da cozinha eacute manifestado
pelas carrocinhas de pipoca e cachorro quente pelos botecos e padarias e pelos alimentos Esses
predominam na narrativa como expressatildeo do espaccedilo fiacutesico ocupado pela cozinha
Quanto ao aspecto simboacutelico representado ressalta-se que ao cozinhar e ao comer
estamos praticando rituais Mircea Eliade na obra jaacute referida nessa dissertaccedilatildeo expotildee que ldquo[]
a principal funccedilatildeo do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a
educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 2011 p13)
A alimentaccedilatildeo como ritual estaacute presente nas trecircs obras de formas diversas Em O arroz de
Palma estaacute na colheita do arroz na pedra pela Tia Palma bem como na oferta desse aos noivos
como presente de casamento estaacute tambeacutem na canja que ela faz ao irmatildeo com esse mesmo
arroz para que os gratildeos o fertilizem e no almoccedilo em que ela e Maria Romana preparam o arroz
de bacalhau para a integraccedilatildeo das famiacutelias Estaacute tambeacutem em outros pontos da narrativa como no
ponto em que Antonio e Isabel recebem o arroz em seu casamento e quando levam um punhado
desse para sua comunhatildeo fiacutesica no lago
Nessa obra os trecircs exemplos que melhor ilustram a presenccedila do ritual satildeo o ato de
cozinhar que permeia toda a histoacuteria pois enquanto o protagonista prepara o arroz evoca
lembranccedilas e as mistura com imaginaccedilotildees e pensamentos a leitura da receita dedicada a ele em
141
seu caderno de receitas por Palma com recitaccedilotildees a serem praticadas durante o preparo da
comida Por fim a reuniatildeo da famiacutelia nas mesas para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo dos cem anos
do casamento dos pais e do presente do arroz em que haacute dois pontos que aludem ao ritual Tanto
a reuniatildeo da famiacutelia para comer eacute ritualiacutestica quanto tambeacutem o fato de se tratar de uma
comemoraccedilatildeo como foi visto na referecircncia que Ricoeur faz ao elemento mundanidade do par
reflexividademundanidade em sua fenomenologia da memoacuteria
Em Por que sou gorda mamatildee o componente do ritual estaacute principalmente associado ao
comer e ao partilhar o alimento e menos ao cozinhar A oferta de doces na sacola de crocheacute que
a Voacute Magra faz aos netos eacute um dos exemplos dessa partilha assim como a menccedilatildeo que a
protagonista faz agraves refeiccedilotildees agrave mesa em famiacutelia Haacute o aspecto ritual nos doces oferecidos pois
satildeo de origem judaica e ilustram sabores ancestrais dessa cultura
Em Quarenta dias o ritual estaacute presente tambeacutem no comer e em muitos casos nas ofertas
de alimento que Alice recebe em seu percurso pelas vilas Como jaacute mencionado a mesa posta no
restaurante da rodoviaacuteria eacute parte do ritual da alimentaccedilatildeo e a partilha dos lanches entre Alice e
Lola representa a integraccedilatildeo dos indiviacuteduos que compartilham as refeiccedilotildees
Em um periacuteodo da histoacuteria da humanidade em que estamos prestando mais atenccedilatildeo na
gastronomia como espetaacuteculo midiaacutetico essas trecircs narrativas apontam para um retorno da
cozinha como contexto de afeto de memoacuteria de tradiccedilatildeo de construccedilatildeo de significados Michael
Pollan em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo reitera
Estamos falando mais sobre culinaacuteria- e assistindo a programas de culinaacuteria lendo sobre
o assunto e indo a restaurantes onde podemos observar o preparo da comida em tempo
real Vivemos numa era em que cozinheiros profissionais se tornaram celebridades
alguns deles tatildeo famosos quanto atletas ou estrelas de cinema A mesma atividade que
muitas pessoas encaram como um trabalho enfadonho acabou sendo de alguma forma
elevada agrave categoria de esporte popular com puacuteblico proacuteprio [hellip] Por algum motivo
cozinhar eacute diferente O trabalho ou o processo carrega uma forccedila emocional ou
psicoloacutegica da qual natildeo podemos-ou natildeo queremos- nos livrar (POLLAN 2014 p11)
Nas trecircs narrativas lecirc-se o cozinhar cumprindo os propoacutesitos ancestrais que o homem
aprendeu com o domiacutenio do fogo nutrir e agregar No mundo real que Italo Calvino chamou de
lsquomundo natildeo escritorsquo a cozinha promove essas vivecircncias pela transformaccedilatildeo do alimento e pelo
viacutenculo com os outros indiviacuteduos atraveacutes da comida preparada Nas obras escolhidas para o
corpus os espaccedilos fiacutesico e simboacutelico da cozinha tornam-se parte do mundo escrito exprimindo-
se atraveacutes do ofiacutecio de seus autores Reafirma-se assim a perspectiva de Italo Calvino
142
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SHEPHERD Gordon Neurogastronomy how the brain creates flavor and why it matters New
York Columbia University Press 2012 Traduccedilatildeo nossa
SHUA Ana Mariacutea Sobre comida y literatura In ______ Risas y emociones de la cocina judiacutea
Buenos Aires Ediciones B Argenina SA 2016 p 113 Traduccedilatildeo nossa
TOAFF A Cozinha judaica cozinhas judaicas In MONTANARI Massimo (Org) O mundo
na cozinha histoacuteria identidade trocas Satildeo Paulo Senac 2009 p 179-194
0
Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)
Ficha catalograacutefica elaborada pela Bibliotecaacuteria Clarissa Jesinska Selbach CRB102051
C268m Cardoso Betina Mariante
Agrave moda da casa a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico em O arroz
de Palma Por que sou gorda mamatildee e Quarenta dias Betina Mariante
Cardoso ndash 2016
144 fls
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio
Grande do Sul
Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira
1 Anaacutelise literaacuteria 2 Literatura brasileira 3 Memoacuteria I Moreira
Maria Eunice II Tiacutetulo
CDD 801
0
BETINA MARIANTE CARDOSO
Agrave MODA DA CASA
A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE
SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS
Dissertaccedilatildeo apresentada como preacute-requisito para
obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teoria da
Literatura pela Faculdade de Letras da Pontifiacutecia
Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul
Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira
Aprovada em 01 de dezembro de 2016
BANCA EXAMINADORA
Profa Dra Luciana Abreu Jardim
Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena
Profa Dra Maria Eunice Moreira
Porto Alegre
1o de dezembro de 2016
1
Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda pelos infinitos legados
que constituem meu gosto pela literatura pela cozinha e por sua interface
O som das teclas da maacutequina de escrever do Vocirc Heacutelio o perfume do panelatildeo de chimia de uva
Isabel da Voacute Leacuteia o brilho de sol nos vidros de ambrosia da Voacute Alda
ingredientes da minha escrita e do meu cozinhar
2
AGRADECIMENTOS
Agrave Profa Dra Maria Eunice Moreira pela proposta do tema que me encanta a interface
entre Literatura e Cozinha e seus diaacutelogos com outras aacutereas por todos os ensinamentos nas
disciplinas do Mestrado e na orientaccedilatildeo da escrita da Dissertaccedilatildeo pelo incentivo e pela confianccedila
durante toda a trajetoacuteria
Ao Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena pelo despertar da curiosidade e do gosto pela
literatura brasileira contemporacircnea pela confianccedila e entusiasmo e pela riqueza das sugestotildees
apontadas na Banca de Qualificaccedilatildeo de Mestrado
Agrave Profa Dra Luciana Abreu Jardim pelos ensinamentos transmitidos durante o mini-
curso que ministrou em Caxias do Sul em 2015 intitulado ldquoSobre o pensamento de Julia
Kristeva a experiecircncia-revolta atraveacutes dos cruzamentos de sentidosrdquo de grande relevacircncia para a
construccedilatildeo de minha bagagem adquirida durante o Mestrado
Agrave Profa Dra Leacutea Masina pelos meus dez anos de aprendizado nos seminaacuterios de escrita
literaacuteria por seu papel fundamental no amadurecimento do meu gosto por escrever e pelo carinho
com que conduz o processo de descobertas na literatura
Aos meus pais Ana Cristina e Apolinaacuterio e ao meu irmatildeo Diego pelo estiacutemulo aos meus
percursos e pelo incentivo para que eu sempre abrisse janelas aos horizontes possiacuteveis
Aos amigos de toda a vida Melissa Sharlene e Jaime pela amizade incondicional e pelo
apoio conversas e risadas durante o periacuteodo de escrita da Dissertaccedilatildeo
Ao Marcelo pela partilha dos prazeres da mesa com afeto muitos risos e boa prosa e
pelo estiacutemulo e sugestotildees nos desafios durante os momentos especiais do nosso conviacutevio
3
Aos autores das obras que compotildeem o corpus da Dissertaccedilatildeo Francisco Azevedo Ciacutentia
Moscovich e Maria Valeacuteria Rezende A partir de O arroz de Palma Por que sou gorda mamatildee
e Quarenta dias foi possiacutevel realizar o presente estudo
Agrave bibliotecaacuteria Clarissa Selbach pela disponibilidade e pela excelecircncia durante todo o
percurso da Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Aos meus sobrinhos Eacuterico e Lucas por me permitirem voltar a ser crianccedila em nossas
brincadeiras e por participarem do fazer culinaacuterio com alegria de festa
Agrave Tacircnia pelo afeto e pela celebraccedilatildeo de sempre
Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda a quem dedico essa
Dissertaccedilatildeo
4
ldquoFamiacutelia eacute afinidade eacute lsquoagrave moda da casarsquo
E cada casa gosta de preparar a famiacutelia a seu jeitordquo
(AZEVEDO 2008)
5
RESUMO
A presente dissertaccedilatildeo de Mestrado visa analisar a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico no
contexto de trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco
Azevedo (2008) Por que sou gorda mamatildee de Cintia Moscovich (2006) e Quarenta dias de
Maria Valeria Rezende (2014) No estudo de cada obra eacute estabelecida a relaccedilatildeo entre a cozinha e
um dos trecircs seguintes paradigmas respectivamente memoacuteria prazer e autonomia Assim o
trabalho eacute composto por trecircs capiacutetulos intitulados ldquoCozinha e memoacuteriardquo ldquoCozinha e prazerrdquo
ldquoCozinha e autonomiardquo O propoacutesito eacute compreender de que forma a cozinha eacute apresentada nas
narrativas do corpus no contexto dos temas escolhidos Elementos da fenomenologia
psiquiaacutetrica da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo satildeo apresentados em diaacutelogo com a
literatura brasileira contemporacircnea
Palavras-chave Literatura brasileira contemporacircnea Cozinha Comida
6
ABSTRACT
This dissertation aims to analyze the kitchen as a physical and symbolic space within the context
of three works of contemporary Brazilian literature Francisco Azevedorsquos O arroz de Palma
(2008) Cintia Moscovichrsquos Por que sou gorda mamatildee (2006) and Maria Valeria Rezendersquos
Quarenta dias (2014) In each work kitchen is related to one of the following three paradigms
respectively memory pleasure and autonomy Thus this study consists of three chapters entitled
Kitchen and Memory Kitchen and Pleasure and Kitchen and Autonomy Our goal is to
understand how the kitchen is described in the narratives of the corpus in the context of the
selected topics Elements of psychiatric phenomenology sociology and food history are
presented in connection with contemporary Brazilian literature
Keywords Contemporary Brazilian literature Kitchen Food
7
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 10
1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA 15
11 O ARROZ DE PALMA 15
12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA 19
13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO 34
14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA 42
2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57
21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57
22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL 60
23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA 66
24 O PRAZER DA COMIDA 74
3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS 92
31 QUARENTA DIAS 92
32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS 97
33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA 105
34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI 111
CONCLUSAtildeO 132
REFEREcircNCIAS 142
10
INTRODUCcedilAtildeO
O ato de cozinhar eacute parte ancestral da nossa existecircncia como seres humanos Desde os
tempos primitivos o homem transforma o ingrediente cru em alimento cozido Comemos por
necessidade nutricional mas tambeacutem por outros motivos comemos para sentir prazer com um
bom prato para socializarmos partilhando esse prazer com outras pessoas para evocarmos
lembranccedilas de famiacutelia e as nossas proacuteprias com sabores que fazem parte de nossa bagagem
emotiva Escolhemos o que comer aprendemos a gostar mais desse ou daquele doce somos
conhecidos pelo quitute que preparamos para os amigos Adoramos canela mas detestamos
alecrim A cozinha faz parte da construccedilatildeo de nossa identidade e da memoacuteria que vamos
formando a partir das experiecircncias vivenciadas sozinhos ou em grupo
Um ponto de extrema relevacircncia eacute o fato de que a comida supre as demandas orgacircnicas
manteacutem-nos com energia para enfrentar a rotina e sustenta a sauacutede razotildees pelas quais eacute parte de
nossa autonomia Recebemos o leite materno quando somos ainda dependentes do peito da matildee
a seguir os pais nos alimentam com novos sabores ateacute que passamos a aprender a gostar de
modo individual disso ou daquilo E aprendemos a natildeo gostar daquele guisado de aboacutebora do
almoccedilo ou da salada de cenoura beterraba alface e tomate - que devemos comer porque faz bem
e ponto As escolhas alimentares tornam-se parte de nossa capacidade de dirigirmos nosso Eu e
de compormos nossas preferecircncias Assim natildeo seria exagero referir que tais escolhas nos
identificam pois satildeo um pedaccedilo de quem nos tornamos como indiviacuteduos e como famiacutelia O
alimento torna-se uma fatia das histoacuterias que vivemos e das emoccedilotildees que sentimos
Haacute um aspecto a ser questionado a que nos referimos quando falamos em cozinha Ao
espaccedilo fiacutesico que essa ocupa na casa onde estatildeo o forno e o fogatildeo o refrigerador a pia Aos
utensiacutelios como talheres e pratos panelas eletrodomeacutesticos peneira travessas e assim por
diante Aos ingredientes em parte mantidos na despensa enquanto outros devem permanecer
refrigerados Agraves receitas de quitutes de doces de refeiccedilotildees escritas a matildeo em cadernos
familiares ou colhidas da Internet ou copiadas no programa televisivo de famosos chefs Agraves
recordaccedilotildees de vivecircncias passadas com as avoacutes que nos ensinavam o saber culinaacuterio pelo
claacutessico lsquobotar a matildeo na massarsquo Agrave cultura de um povo pelas comidas que prepara
A cozinha contempla todos esses elementos do simboacutelico ao concreto da antiguidade
mais remota aos tempos hipervelozes de hoje com diversas miacutedias dirigidas aos temas culinaacuterios
11
do conforto emocional que representava ao glamour que vem atingindo com o avanccedilo da
gastronomia como expressatildeo de status social e econocircmico no seacuteculo XXI
Memoacuteria prazer e autonomia lsquoingredientesrsquo relevantes na relaccedilatildeo do ser humano com o
alimento tanto na sua preparaccedilatildeo quanto no ato de comer propriamente dito
Pela importacircncia e significado da cozinha em todos os tempos e em todas as culturas a
presente dissertaccedilatildeo visa discutir seu papel nos acircmbitos fiacutesico e simboacutelico em trecircs obras da
literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco Azevedo (2008) Por que
sou gorda mamatildee de Ciacutentia Moscovich (2006) e Quarenta dias de Maria Valeacuteria Rezende
(2014)
A organizaccedilatildeo eacute composta por trecircs capiacutetulos que mantecircm a mesma estrutura na epiacutegrafe
um trecho emblemaacutetico da obra a ser explorada sob a perspectiva de um dos paradigmas
definidos como memoacuteria prazer e autonomia um fragmento introdutoacuterio para apresentaacute-lo em
sua relaccedilatildeo com a cozinha seguido de quatro subdivisotildees na primeira a apresentaccedilatildeo da obra do
corpus na segunda a fundamentaccedilatildeo teoacuterica do atributo escolhido para cada uma das narrativas
na terceira a reflexatildeo sobre este visto agrave luz de sua relaccedilatildeo com a cozinha na quarta a anaacutelise
das obras especiacuteficas utilizando-se trechos e analisando-os a partir das reflexotildees e estudos jaacute
expostos
O primeiro capiacutetulo intitulado ldquoCozinha e memoacuteria em O arroz de Palmardquo apresenta a
cozinha vinculada agraves histoacuterias familiar e pessoal das personagens o que permite relacionar esse
livro com a pesquisa sobre a memoacuteria tanto a individual como a coletiva O segundo capiacutetulo
intitulado ldquoCozinha e prazer em Por que sou gorda mamatildeerdquo traz a cozinha principalmente
manifesta pela vivecircncia do prazer da comida e suas consequecircncias para a protagonista como o
engorde motivo pelo qual incide sobre o prazer na relaccedilatildeo com a cozinha O terceiro capiacutetulo
intitulado ldquoCozinha e autonomia em Quarenta diasrdquo contempla o estudo dessa obra em que se
revela uma alimentaccedilatildeo vivenciada fora de casa atraveacutes da comida e dos lugares que a oferecem
Ao longo do percurso da personagem atraveacutes da retomada de sua independecircncia o comer eacute uma
das principais representaccedilotildees de sua autonomia nessa narrativa Assim o binocircmio estudado no
uacuteltimo capiacutetulo eacute cozinha e autonomia
O arroz de Palma trata da relevacircncia de um elemento o arroz na histoacuteria de vaacuterias
geraccedilotildees da famiacutelia do protagonista motivo pelo qual este capiacutetulo aborda a relaccedilatildeo entre cozinha
e memoacuteria Considerando-se a memoacuteria um tema estudado por diversos campos do
12
conhecimento a fundamentaccedilatildeo teoacuterica desse capiacutetulo eacute constituiacuteda pelos seguintes autores no
acircmbito filosoacutefico Paul Ricoeur e Gaston Bachelard cultural Aleida Assmann psicopatoloacutegico
Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio Bulbena e Sandro Domenichetti neurocientiacutefico Ivan
Izquierdo e Gordon Shepherd Satildeo tambeacutem referidas reflexotildees de Mircea Eliade na compreensatildeo
do mito As perspectivas do socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan satildeo
apresentadas junto aos autores jaacute referidos na subdivisatildeo que aborda a memoacuteria no contexto da
cozinha
Por que sou gorda mamatildee traz a cozinha ligada ao prazer pelo fato de a narrativa
abordar as sensaccedilotildees prazerosas ligadas agrave comida A fundamentaccedilatildeo teoacuterica abrange as facetas
bioloacutegica e cultural do prazer Na esfera bioloacutegica a reflexatildeo inclui aspectos saudaacuteveis e
psicopatoloacutegicos contendo ideias do psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers e dos psiquiatras
Lorenzo Pelizza e Franco Benazzi na esfera socioloacutegica a reflexatildeo parte da leitura do socioacutelogo
Carlos Alberto Doacuteria em seus livros A subdivisatildeo que apresenta o prazer ligado agrave cozinha eacute
constituiacuteda principalmente por Jean Louis Flandrin Maacutessimo Montanari e Jean-Anthelme Brillat-
Savarin
Quarenta dias expressa a relaccedilatildeo entre cozinha e autonomia pois o comer representa
para a personagem sua decisatildeo de sobrevivecircncia real Ela come porque tem fome necessidade
fisioloacutegica propriamente dita sendo o comer vinculado agraves decisotildees e agrave autonomia para tomaacute-las
elemento-chave na construccedilatildeo de seu percurso Nesse capiacutetulo a cozinha eacute principalmente
expressa pela comida motivo pelo qual este eacute o termo empregado na terceira e quarta
subdivisotildees A fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute composta por contribuiccedilotildees de Karl Jaspers tambeacutem
explorado nos capiacutetulos anteriores por aquelas do neurocientista Antonio Damaacutesio e do
psiquiatra Massimo Biondi Na subdivisatildeo que estabelece viacutenculo entre a comida e a autonomia
expressa como consciecircncia de si apoiamos a anaacutelise no pensamento do socioacutelogo Carlos Alberto
Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan tambeacutem presentes nos capiacutetulos anteriores
A decisatildeo por pesquisar na literatura a expressatildeo da cozinha deve-se ao nosso
questionamento sobre o modo como essa aparece atraveacutes da escrita literaacuteria Que contextos e que
termos satildeo escolhidos pelos escritores para retratar a cozinha como espaccedilos fiacutesico e simboacutelico
em suas obras A escolha recai sobre a literatura brasileira contemporacircnea definindo para o
corpus livros escritos por autores brasileiros em 2006 2008 e 2014 Trecircs livros publicados nas
duas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXI periacuteodo que coincide com a explosatildeo do papel da cozinha
13
em acircmbitos mundial e sem duacutevidas nacional Conforme refere Maria Eunice Moreira no ensaio
ldquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmardquo
Espaccedilo alquiacutemico por sua natureza lugar de transformaccedilatildeo e de transmutaccedilatildeo a cozinha
eacute um dos espaccedilos mais tematizados na atualidade Isso pode ser comprovado pelo
nuacutemero de perioacutedicos especializados em gastronomia variedades de programas de TV e
destaque concedido a chefes e gourmets que se tornaram personagens midiaacuteticos
Diferentes miacutedias hoje divulgam as proezas de cozinheiros especializados que divulgam
suas descobertas culinaacuterias com ingredientes exoacuteticos confeccionando pratos originais
(MOREIRA 2014 p167)
Com a magnitude das expressotildees gastronocircmicas contemporacircneas no mundo e no Brasil eacute
plausiacutevel encontrar na literatura de nosso tempo obras que tragam a cozinha nos seus diversos
domiacutenios ao papel de protagonista A escolha especiacutefica pela literatura brasileira contemporacircnea
resulta de nosso interesse por compreender com que linguagem ela eacute expressa em nosso paiacutes em
nossa literatura em nossa contemporaneidade Ainda de acordo com o ensaio acima referido
sobre O arroz de Palma vale ressaltar
Mas certamente os leitores concordam que no fundo dos bauacutes que cruzaram os mares
entre enxadas e sementes vieram junto bens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre
o antigo e o novo espaccedilo a ser habitado Satildeo esses bens porque falam a linguagem do
mito os mais duradouros e perenes e satildeo eles tambeacutem capazes de inspirar a escrita da
literatura brasileira em tempos de globalizaccedilatildeo (MOREIRA 2014 p174)
Os lsquobens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre o antigo e o novo espaccedilo a ser
habitadorsquo estatildeo presentes em O arroz de Palma e tambeacutem no livro Por que sou gorda mamatildee
Nesse uacuteltimo atraveacutes da representaccedilatildeo de uma famiacutelia de imigrantes judeus e de sua relaccedilatildeo com
a comida e com o prazer de comer Em Quarenta dias a protagonista eacute tambeacutem uma imigrante
mas vinda de outro Estado e de outra cultura no mesmo Paiacutes Assim tambeacutem nessa narrativa haacute
um contraste entre o espaccedilo antigo e o novo a ser habitado a cidade de Porto Alegre eacute o territoacuterio
desconhecido ao qual a narradora personagem deveraacute se adaptar Da mesma forma como
transfere sua moradia para as ruas da cidade enquanto reluta em apropriar-se de sua lsquonova vidarsquo
tambeacutem transfere sua alimentaccedilatildeo para as padarias botecos carrinhos de pipoca e de cachorro
quente pela rua restaurantes e bares de rodoviaacuteria Para ela a decisatildeo de comer eacute resultado da
fome do mero existir como o sono e o banho A cozinha bem como sua vida estatildeo
lsquotransplantadasrsquo para as ruas da cidade
Nas trecircs obras selecionadas para este estudo haacute um papel central desempenhado pela
cozinha a representaccedilatildeo de aspectos da natureza humana como a ligaccedilatildeo com o prazer a
14
memoacuteria e a autonomia como jaacute foi referido Nas narrativas a cozinha o cozinhar e o comer
existem atraveacutes das comidas dos ingredientes de instrumentos e do espaccedilo fiacutesico em si mas satildeo
expressos sobretudo como emoccedilotildees e vivecircncias recuperaccedilatildeo de tradiccedilotildees e expressatildeo de
sentimentos e de memoacuterias Ao escolher o termo lsquocozinharsquo para a representaccedilatildeo global estamos
incluindo o campo de ideias que esse envolve ou seja todo o espaccedilo fiacutesico e os elementos
materiais como eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios as comidas desde o ingredientes e
receitas ateacute os pratos propriamente ditos por fim os elementos simboacutelicos portanto imateriais
como as representaccedilotildees de ritualidade e os elementos psiacutequicos e culturais que envolvem o
cozinhar e o comer
O tiacutetulo ldquoAgrave moda da casardquo remete agraves receitas de um periacuteodo da culinaacuteria em que a
cozinha caseira ocupava papel central na alimentaccedilatildeo familiar Essa envolvia as concepccedilotildees de
lar de famiacutelia de memoacuteria dos pratos que eram partilhados na mesa nas refeiccedilotildees Uma carne de
panela agrave moda da casa eacute aquela feita seguindo o lsquocomo-se-fazrsquo na histoacuteria da famiacutelia A expressatildeo
lembra os cadernos de receitas as cozinhas das avoacutes matildees e tias a memoacuteria e os sabores da
tradiccedilatildeo as noccedilotildees de identidade e de consciecircncia de si como indiviacuteduo singular que eacute parte de
um plural a famiacutelia Todos esses aspectos satildeo presentes nas obras do corpus e portanto estatildeo
incluiacutedos na reflexatildeo sobre o tiacutetulo escolhido
15
1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA
- Como eacute que simples guardanapos satildeo capazes de trazer tanta recordaccedilatildeo
- Porque fizeram histoacuteria satildeo a prova real e dos nove que um grupo de pessoas se reunia
regularmente para celebrar - natildeo importa o quecirc Festejavam a vida e pronto A data
religiosa ou pagatilde era pretexto Podia ser Paacutescoa ou Carnaval Esses guardanapos tecircm
alma Aliaacutes todo ser inanimado passa a ter alma no momento em que se lhe imprime
afeto As coisas tambeacutem aspiram a uma existecircncia sensiacutevel
Francisco Azevedo
A cozinha eacute o espaccedilo onde habitam forno fogatildeo geladeira pia pratos talheres
guardanapos panelas travessas caderno de receitas ingredientes chimia de uva pudim doce de
leite e ambrosia E lembranccedilas Muitos de nossos registros tecircm sabores proacuteprios Recordamos
essa ou aquela vivecircncia porque sua representaccedilatildeo eacute ligada a um gosto a uma textura a um
aroma Houve aquele doce de ovos que experimentamos em uma uacutenica e inesqueciacutevel ocasiatildeo
Vale evocar tambeacutem o faqueiro de uma avoacute presente de casamento ou a panela de fondue
comprada com orgulho fruto do primeiro salaacuterio da monitoria na faculdade No territoacuterio fiacutesico
da cozinha a memoacuteria tem corpo tem existecircncia material atraveacutes dos ingredientes dos
instrumentos dos eletrodomeacutesticos da receita de famiacutelia preparada para o almoccedilo Acima de
tudo a memoacuteria tem respiraccedilatildeo
11 O ARROZ DE PALMA
A escolha do tema cozinha e memoacuteria nasce atraveacutes da leitura da primeira obra definida
para o presente corpus O arroz de Palma de Francisco Azevedo publicada pela Editora Record
em 2008 O significado da cozinha para a nossa experiecircncia subjetiva tem fortes raiacutezes nas
histoacuterias guardadas atraveacutes das lembranccedilas e transmitidas entre as geraccedilotildees Essa obra da
literatura brasileira contemporacircnea propotildee tal resgate com relevante aprofundamento
A narrativa comeccedila pela voz do protagonista Antocircnio narrador personagem que traz ao
leitor em primeira pessoa a histoacuteria de sua famiacutelia os pais receacutem-casados e Palma sua tia
paterna Os trecircs vieram de Viana do Castelo em Portugal para o Brasil no comeccedilo do seacuteculo XX
Entretanto o que Antocircnio vem contar antecede a imigraccedilatildeo o ponto que daacute origem agrave histoacuteria da
obra eacute o casamento dos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana Depois da cerimocircnia Palma
decide juntar todos os gratildeos de arroz atirados aos noivos na lsquoabenccediloada chuva de arrozrsquo
16
torrencial feita de lsquopunhados e mais punhadosrsquo Fez-se lsquochuva branca que natildeo paravarsquo Como se
fosse colheita ela junta gratildeo por gratildeo e coloca todos em um saco de estopa que leva aos receacutem-
casados como seu presente pelo matrimocircnio Surpreendente eacute a reaccedilatildeo de Joseacute Custoacutedio ao
receber a ideia de Palma raivoso desdenha do arroz ofertado pela irmatilde como se fosse presente
de menor valor A esposa Maria Romana contemporiza a situaccedilatildeo mas manteacutem a posiccedilatildeo firme
de que aceitaratildeo o presente E o arroz torna-se a alma dessa famiacutelia Melhor dizendo Palma
torna-se a alma da famiacutelia
A obra eacute composta por cinquenta e nove capiacutetulos curtos trezentas e sessenta e uma
paacuteginas e um calendaacuterio ao final com datas relevantes para a compreensatildeo da passagem do
tempo perspectiva essencial em O arroz de Palma Antocircnio eacute o narrador personagem muito do
que conta sobre a histoacuteria familiar ouviu de sua tia Palma figura de grande importacircncia na
formaccedilatildeo de sua personalidade Ela testemunhou boa parte das vivecircncias em Portugal e na
chegada ao Brasil protagonizou a maioria das cenas que se tornaram lembranccedilas Essas
transformaram-se depois em histoacuterias contadas por Palma e escutadas por Antocircnio
Fazendo zigue-zagues nas geraccedilotildees Antocircnio relembra pontos que conhece de viver e
pontos que sabe por escutar Em momentos da leitura parece estar contando a trama ao leitor
noutros tem-se a sensaccedilatildeo de que as conversas satildeo consigo mesmo a fim de percorrer uma linha
de tempo que faccedila sentido Ele narra de sua cozinha no presente do indicativo enquanto a
memoacuteria percorre outros tempos verbais mas a idade jaacute deixa lacunas Quando faltam
ingredientes na despensa da memoacuteria resta a tentativa de montar histoacuterias possiacuteveis ele compotildee
em um conjunto o que foi vivido e imaginado junto agraves suas reflexotildees atuais agrave beira do fogatildeo
Estaacute preparando a receita tiacutepica de arroz com significado em sua histoacuteria pessoal para a
comemoraccedilatildeo do centenaacuterio do matrimocircnio dos seus pais e do arroz colhido por Palma e
presenteado ao casal
Nas idas e vindas aparece de iniacutecio a fuacuteria de Joseacute Custoacutedio ao ganhar o saco de gratildeos de
arroz dirigida agrave irmatilde Palma Os trecircs vecircm para o Brasil onde ele consegue trabalho em uma
fazenda Mais tarde jaacute com a vida organizada quando o casal tem dificuldades em ter filhos
surge nova fuacuteria quando Palma sugere oferecer-lhe o arroz como forma de ajudar na fecundaccedilatildeo
pelos poderes atribuiacutedos ao ingrediente Ele recusa enraivecido mas Palma e Maria Romana
fazem com que coma o arroz mesmo assim No momento da raiva quebra a lsquoquarta cadeirarsquo que
iraacute reformar para sua irmatilde passada a coacutelera Essa seraacute a cadeira de onde ela contaraacute a Antocircnio as
17
memoacuterias de famiacutelia os remendos de histoacuteria as fantasias e imaginaccedilotildees as dores e intimidades
de sua juventude
A quarta cadeira seraacute seu palco Antocircnio eacute o expectador Cria-se um forte laccedilo entre ele e
a tia pois se torna desde cedo o herdeiro das recordaccedilotildees familiares Essa aproximaccedilatildeo acaba
por distanciaacute-lo dos trecircs irmatildeos Leonor Nicolau e Joaquim enquanto ele eacute mais lsquocaseirorsquo gosta
de ficar ouvindo as histoacuterias da Tia Palma os trecircs satildeo mais agitados apreciam os passeios e as
brincadeiras pelo campo A distacircncia entre ele e os trecircs faz com que a tia o chame de lsquoAntocircnimorsquo
opondo suas caracteriacutesticas agraves dos irmatildeos As diferenccedilas seguiratildeo vida afora o que o protagonista
vai contando em seus percursos
Surge entatildeo seu romance com Isabel filha do patratildeo de seu pai sua ida para o Rio de
Janeiro o noivado com a moccedila e o arroz de bacalhau para celebrar a ocasiatildeo em famiacutelia A
receita foi preparada com o mesmo arroz que serviu para a fertilidade dos pais o mesmo arroz
presenteado por Palma para o casamento deles o mesmo arroz da chuva abenccediloada da cerimocircnia
O arroz testemunha a vida da famiacutelia alinha suas histoacuterias nessa narrativa parece ser a
representaccedilatildeo da memoacuteria familiar Lembranccedila a lembranccedila gratildeo a gratildeo As narrativas vatildeo sendo
transmitidas escutadas digeridas Antes do casamento Antocircnio e Isabel lsquoroubamrsquo um punhado e
levam consigo ao lago abenccediloando o primeiro momento de uniatildeo fiacutesica que partilham Mais uma
vez o arroz participa da ocasiatildeo formando registros de memoacuteria
Casam-se Nascem os filhos Nuno e Rosaacuterio Gecircmeos Seratildeo no entanto muito
diferentes entre si ela objetiva praacutetica ele sensiacutevel Entre casamentos e separaccedilotildees a narrativa
segue trilhada pela voz de Antocircnio em idas e vindas nas deacutecadas entre o casamento dos pais e
seu aniversaacuterio Sempre ao lado de Isabel nos trechos de vida sempre com dificuldades na
ligaccedilatildeo com os irmatildeos Entre o arroz presenteado por Palma no casamento de Joseacute Custoacutedio e
Maria Romana e a receita de arroz preparada por Antocircnio em sua cozinha esse conta os
nascimentos e as mortes relembra a perda de tia Palma recorda-se de vivecircncias dolorosas ao
longo do percurso de cada um e de todos O arroz eacute roubado da vitrine do restaurante de Antocircnio
e Isabel pelos filhos outra porccedilatildeo parece ter sido roubada pela esposa de um dos irmatildeos por
ciuacuteme de seu casamento Mais tarde surge a informaccedilatildeo de que Antocircnio e a cunhada tiveram
uma ligaccedilatildeo afetiva antes de ambos unirem-se a seus pares Voltam a encontrar-se em um ponto
da histoacuteria em uma tarde de braccedilos dados desejos satisfeitos e despedida cordial
18
Muitas satildeo as tramas vividas e recordadas nessa narrativa Antocircnio eacute o narrador
personagem mas a leitura faz o leitor convencer-se o protagonista a bem da verdade eacute o arroz
A tia Palma tem papel decisivo na famiacutelia eacute ela quem daacute a direccedilatildeo em vaacuterios momentos da
histoacuteria nas vidas do irmatildeo Joseacute Custoacutedio da cunhada Maria Romana do sobrinho mais
proacuteximo Antocircnio e de seus irmatildeos Eacute ela quem daacute a direccedilatildeo aos gratildeos de arroz no percurso
desde o casamento em Portugal na Igreja ateacute sua morte contando sempre com a cumplicidade
da cunhada O protagonista segue conversando com a tia em pensamento perguntando suas
opiniotildees e conselhos
Palma transmite histoacuterias o arroz transmite histoacuterias Ao longo de toda a narrativa ambos
vatildeo deixando suas marcas na vida das personagens Em sua cozinha enquanto prepara o arroz
ele une os gratildeos pelo cozimento assim como une as recordaccedilotildees em uma soacute histoacuteria da famiacutelia
Se acaba por esquecer de algo lembra depois ou conta agrave sua moda Lembranccedilas agrave moda da casa
Toda a narrativa eacute tecida com uma linha que atravessa as vivecircncias a metaacutefora feita agraves
famiacutelias como se fossem pratos da culinaacuteria O narrador protagonista traz a imagem de vaacuterios
desses pratos e suas equivalecircncias nos grupos familiares enquanto se lembra dos trechos de vida
entremeados com emoccedilotildees e pensamentos Natildeo eacute possiacutevel alinhar as memoacuterias estatildeo espalhadas
Parte delas remontam etapas de vida outras lugares e pessoas Haacute registros que surgem de
experiecircncias vividas e daquelas que ele conhece apenas por ouvir- em geral de sua tia Palma
sentada na quarta cadeira
Podemos lembrar do que vivemos ou do que imaginamos em nossa maquinaria de
lembranccedilas memoacuteria e imaginaccedilatildeo fundem-se e o que vivenciamos por ouvir contar se torna
tambeacutem parte de nossos registros pessoais Eacute o que se passa com Antocircnio quando conta o que
ouviu de Palma com tal fidelidade que parece ele mesmo ter vivido Escutou imaginou e entatildeo
apropriou-se da histoacuteria com suas proacuteprias cores eacute dele agora a trama contada pela tia Algo
parecido eacute o processo de alquimia de uma receita de cozinha quando eacute transmitida de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo cada novo cozinheiro agrega seu modo de preparar a receita e ela vai assim sendo
transformada pelo tempo e pelas vozes que a leem agrave beira do fogatildeo
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12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA
O propoacutesito de estudar a memoacuteria neste capiacutetulo eacute o de apresentaacute-la como um processo
inerente agrave constituiccedilatildeo do ser humano Necessitamos deixar registros agraves geraccedilotildees seguintes assim
como seguir rastros dos antepassados Queremos pertencer a uma histoacuteria de famiacutelia e construir a
nossa para ser lembrada e seguida Acima de tudo a memoacuteria eacute parte da identidade
imprescindiacutevel na consciecircncia do indiviacuteduo sobre si mesmo
No campo de estudos da memoacuteria haacute os substratos neuroanatocircmico neurofisioloacutegico e
neuroquiacutemico que a compotildeem sob a perspectiva orgacircnica responsaacuteveis por seu funcionamento
adequado entretanto o foco predominante neste estudo consiste no entendimento da memoacuteria
como processo singular em termos psiacutequicos e plural em termos culturais Devido agraves muacuteltiplas
facetas do tema ampliamos a fundamentaccedilatildeo teoacuterica para os campos fenomenoloacutegico em que
apresentamos as ideias de Paul Ricoeur cultural a partir dos estudos de Aleida Assmann
psicopatoloacutegicas em que satildeo apontadas reflexotildees de Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio
Bulbena e Sandro Domenichetti e neurocientiacuteficas em que fazemos referecircncia aos
neurocientistas Ivan Izquierdo argentino e Gordon Shepherd americano
A cozinha situa-se nas esferas da memoacuteria individual e coletiva A relaccedilatildeo que se
estabelece entre o indiviacuteduo e os aromas que habitam sua memoacuteria como no caso das madeleines
recordadas por Proust a partir de um gatilho eacute de tamanha intimidade que se torna parte de sua
bagagem afetiva Da mesma forma o caderno de receitas de uma avoacute pode atravessar geraccedilotildees
pois os sabores ali registrados evocam lembranccedilas da histoacuteria familiar Ao serem reproduzidos
despertam na memoacuteria de um grupo natildeo apenas a receita original mas toda a constelaccedilatildeo de
emoccedilotildees que envolve essa lembranccedila como a cozinha em que era feita as panelas pratos e
talheres os almoccedilos dominicais na mesa da sala de jantar
As experiecircncias representam os ingredientes para a formaccedilatildeo da memoacuteria Muitas delas
nascem das histoacuterias vivenciadas na cozinha seja atraveacutes da percepccedilatildeo de um gosto do sentir de
uma emoccedilatildeo do ato de mexer um bolo ou de preparar um prato Todas satildeo carimbadas pela
interpretaccedilatildeo pelos sentimentos e pelo significado que cada circunstacircncia assume em nosso
percurso E esse carimbo vira lembranccedila armazenada na despensa da memoacuteria passiacutevel de
transformaccedilotildees ao longo do amadurecimento e das vicissitudes de cada fase de vida Afinal de
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contas a memoacuteria natildeo eacute um registro estaacutetico ela eacute isso sim um processo dinacircmico dependente
de nosso olhar e de nosso viver
Conforme o psicopatologista alematildeo Karl Jaspers a memoacuteria eacute um mecanismo que tem
relaccedilatildeo com o colorido afetivo com o significado das coisas Ele definiu a memoacuteria propriamente
dita como um reservatoacuterio em que novos materiais satildeo integrados pela fixaccedilatildeo e satildeo extraiacutedos agrave
consciecircncia atraveacutes da funccedilatildeo de evocaccedilatildeo para ele a chegada e a partida dos materiais seriam
devidas agraves respectivas funccedilotildees de fixaccedilatildeo e evocaccedilatildeo enquanto a memoacuteria representaria o
reservatoacuterio de disponibilidade permanente (JASPERS 2000 p188) Se pensarmos na cozinha
a memoacuteria seria a despensa onde satildeo postos novos ingredientes e de onde satildeo retirados aqueles
escolhidos para o uso Jaacute de acordo com Bulbena citando Serralonga ldquo[] em termos objetivos
eacute possiacutevel defini-la como a capacidade de adquirir de reter e de utilizar secundariamente uma
experiecircnciardquo (BULBENA 1998 p169)
Bulbena aponta quarto aspectos relevantes na compreensatildeo da memoacuteria como fenocircmeno
humano entre os quais distingue a entrada a manutenccedilatildeo e a saiacuteda das informaccedilotildees em
constante intercacircmbio entre organismo e ambiente o aspecto de transformaccedilatildeo dessas
informaccedilotildees modificando o conteuacutedo que entra no lsquoreservatoacuteriorsquo de Jaspers tanto para o
armazenamento quanto para a futura reproduccedilatildeo desse conteuacutedo o fato de a memoacuteria ser
produzida no contexto de estruturas nervosas que veiculam o processo apontando-se que as
alteraccedilotildees neste resultaratildeo em transtornos em seus mecanismos de fixaccedilatildeo armazenamento e
reproduccedilatildeo O quarto ponto definido pelo autor eacute de grande importacircncia para a finalidade do
presente capiacutetulo a memoacuteria forma parte do conjunto da vida psiacutequica sendo as emoccedilotildees
especialmente relevantes em sua composiccedilatildeo e forma parte tambeacutem da biografia do indiviacuteduo
em que teraacute influecircncia e da qual receberaacute influecircncia tambeacutem
Quando o autor se refere agrave biografia estaacute fazendo menccedilatildeo agraves experiecircncias de vida desse
indiviacuteduo e satildeo essas que muitas vezes ocorreram em sua relaccedilatildeo com o comer e com a cozinha
O dado de a memoacuteria fazer parte da vida psiacutequica eacute significativo sobretudo no que tange agrave
relaccedilatildeo com o campo emocional pois sempre que tais experiecircncias vinculadas ao universo
culinaacuterio ocorrerem haveraacute o processamento da resposta afetiva
A memoacuteria eacute essencialmente parte da vida psiacutequica do ser humano e resultado de
mecanismos cerebrais de controle Eacute considerada uma das funccedilotildees do estado mental dos
indiviacuteduos avaliada no exame psiquiaacutetrico dessas funccedilotildees Bulbena refere que
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etimologicamente a maioria dos autores situa sua origem no termo latino memoacuteria de
significado similar ao atual mas haacute quem atribua a origem agrave palavra gemynd de raiz
anglosaxocircnica que conforme refere significaria mente Assim eacute possiacutevel que a associaccedilatildeo entre
memoacuteria e vida psiacutequica seja representada na proacutepria origem da palavra
Mesmo que a finalidade do presente capiacutetulo seja apresentar a memoacuteria vinculada agraves
vivecircncias de cozinha cabe realizar a abordagem desse mecanismo como fenocircmeno Paul Ricoeur
apresenta a respeito da fenomenologia da memoacuteria seu viacutenculo com a imaginaccedilatildeo O autor
refere que podemos fazer referecircncia a um evento passado ou dizer que temos dele uma imagem
que pode ser quase visual ou auditiva E aponta que a memoacuteria opera em funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo
reforccedilando a perspectiva de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que expressa que ldquo[] a memoacuteria eacute
uma proviacutencia da imaginaccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p25)
Tal aspecto liga-se ao exposto pelo neurocientista Gordon Shepherd que em seu livro
sobre neurogastronomia expotildee ldquoPara muitas pessoas as partes mais importantes do olfato e do
sabor satildeo as memoacuterias que elas evocam e as emoccedilotildees associadas a essasrdquo (SHEPHERD 2012
p174) Olfato e sabor satildeo tambeacutem elementos que evocam imagens de situaccedilotildees vivenciadas mas
imagens construiacutedas pelas caracteriacutesticas psiacutequicas individuais assim pode-se dizer que evocam
a imaginaccedilatildeo
A lembranccedila de um acontecimento do preparo de uma comida ou da ocasiatildeo em que a
saboreamos ocorre atraveacutes da imagem que fazemos dessas circunstacircncias Lembramos com cor
com cheiros com gostos Lembramos imaginando e eacute isso que Paul Ricoeur traz como ponto de
partida Shepherd refere que nossos mecanismos cognitivos tecircm a qualidade de perceber e de
evocar as coisas como um todo integrado a partir de uma fraccedilatildeo (SHEPHERD 2012) o que se
assemelha ao que Ricoeur refere sobre a ligaccedilatildeo mencionada ldquoEacute sob o signo da associaccedilatildeo de
ideias que estaacute situada essa espeacutecie de curto-circuito entre memoacuteria e imaginaccedilatildeo se essas duas
afecccedilotildees estatildeo ligadas por contiguidade evocar uma - portanto imaginar - eacute evocar a outra-
portanto lembrar-se delardquo (RICOEUR 2014 p25) Essa ideia associa-se ao fato de que todos os
registros que os sentidos percebem oriundos do mundo externo ao corpo satildeo traduzidos em
percepccedilotildees e entatildeo em lembranccedilas a serem armazenadas A lembranccedila torna-se uma impressatildeo
da experiecircncia e natildeo seu registro idecircntico uma vez que pode ser compreendida como uma
reconstruccedilatildeo do passado a partir da perspectiva atual O que laacute fixamos natildeo eacute idecircntico ao que no
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presente podemos evocar pois outras vivecircncias se colocam no caminho nos transformam e
modificam nosso modo de recordar o que um dia haviacuteamos registrado
O inconsciente em todo o processo pode guardar a sete chaves algumas das informaccedilotildees
fixadas parte do que vivemos passaraacute a ser liberado ou escondido por sua tutela Lembramos de
algo pela imaginaccedilatildeo do que permaneceu desse algo em nosso mundo interno na compreensatildeo
neurocientiacutefica os registros captados pelos sentidos ficam armazenados em estruturas
especiacuteficas predominantemente no hemisfeacuterio direito quando as lembranccedilas estiverem
conectadas a emoccedilotildees Uma lsquopistarsquo que dermos agrave memoacuteria seja uma figura um som um gosto
um aroma ou uma textura ou uma emoccedilatildeo podem trazer de volta em viagem ultraveloz a cena
arquivada com todas as transformaccedilotildees que o tempo provoca em noacutes
Eacute possiacutevel compreender que a memoacuteria identifica o indiviacuteduo e sua bagagem de
vivecircncias pois soacute nos lembramos do que conhecemos ldquoReconhecer algueacutem significa saber jaacute tecirc-
lo visto antes assim como recordar-se de um acontecimento significa saber que este jaacute ocorreu no
passadordquo (MINKOWSKI 2004 p143) O entendimento sobre suas consideraccedilotildees eacute a de que
uma lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a tonalidade emotiva com que este foi
percebido ou seja a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos
recordaremos dela no futuro porque eacute assim que a conhecemos Sobre tal aspecto Ivan
Izquierdo neurocientista especializado neste campo refere
Podemos afirmar conforme Norberto Bobbio que somos aquilo que recordamos
literalmente Natildeo podemos fazer aquilo que natildeo sabemos nem comunicar nada que
desconheccedilamos isto eacute que natildeo esteja na nossa memoacuteria Tambeacutem natildeo estatildeo agrave nossa
disposiccedilatildeo os conhecimentos inacessiacuteveis nem formam parte de noacutes os episoacutedios dos
quais esquecemos ou os quais nunca atravessamos O acervo de nossas memoacuterias faz
com que cada um de noacutes seja o que eacute um indiviacuteduo um ser para o qual natildeo existe outro
idecircntico (IZQUIERDO 2011 p11 grifo do autor)
O psicopatologista Eugeacutene Minkowski aborda a memoacuteria no capiacutetulo intitulado lsquoO
passadorsquo em seu livro O tempo vivido Tal afirmaccedilatildeo expressa que ela eacute parte de nosso tempo
vivido e atraveacutes da reflexatildeo de Ivan Izquierdo pode-se compreender que ela eacute parte do nosso
tempo de conhecimento vivido A ideia de que a memoacuteria faz de noacutes ldquo[] um ser para o qual natildeo
existe outro idecircnticordquo (IZQUIERDO 2011 p12) reforccedila a noccedilatildeo de que esse fenocircmeno eacute um
elemento inerente a um sujeito uacutenico com suas experiecircncias percepccedilotildees e bagagens Ainda
conforme Ivan Izquierdo ldquo[] o conjunto das memoacuterias de cada um determina aquilo que se
denomina personalidade ou forma de serrdquo (IZQUIERDO 2011 p12) O neurocientista refere que
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as emoccedilotildees e os estados de acircnimo tecircm importante papel no processo da memoacuteria tanto em
termos de aquisiccedilatildeo quanto de formaccedilatildeo e finalmente de evocaccedilatildeo
Falar em emoccedilotildees ou estados de acircnimo remete agrave referecircncia de Minkowski sobre as
tonalidades afetivas O psicopatologista faz alusatildeo ao viacutenculo entre emoccedilotildees e memoacuteria
expressando o modo como o sentir influencia o lembrar Eacute possiacutevel comprender sua ideia da
seguinte forma colocamos a mirada sobre nosso mundo interior para focar em uma fraccedilatildeo do
passado que sentimos presente em noacutes Isso seria equivalente agrave evocaccedilatildeo de uma lembranccedila Ao
percebermos o sentimento ligado a esse tempo anterior essa lembranccedila amplia-se agrave medida que
a encontramos em nosso iacutentimo A conexatildeo emotiva torna a vivecircncia passada cada vez mais
visiacutevel e de contornos niacutetidos como um feixe de luz que ao aumentar expande a aacuterea de
claridade e mostra os detalhes de um terreno
Tal iluminaccedilatildeo reproduz vivecircncias remotas como se fossem situaccedilotildees que nos parecem
recentes pela forccedila emotiva ligada ao evento passado Entretanto nossa impressatildeo sobre tais
eventos pode ser transformada por aspectos psiacutequicos que ocorrem entre o tempo real e o
lembrado modificando a impressatildeo do fato em suas nuances Permanece a essecircncia prazerosa ou
penosa de um fato mas a evocaccedilatildeo da lembranccedila pode tornaacute-la um rosa suave ou um vermelho
vivo Para mudar seu tom contam tanto nosso estado de acircnimo ao vivermos algo quanto ao
lembrarmos esse algo Memoacuteria e emoccedilatildeo assim estatildeo intimamente ligadas entre si em especial
no que concerne agraves nossas experiecircncias de vida
O termo memoacuteria no singular remete-nos a dois eixos um primeiro mais evidente eacute o
tempo o segundo subterracircneo o espaccedilo Tal colocaccedilatildeo vem do fato de que a memoacuteria pode ser
percebida como um espaccedilo subjetivo em nossa vida psiacutequica motivo pelo qual tecemos a
analogia com a imagem da despensa de cozinha Esta eacute de fato um espaccedilo objetivo mas cuja
subjetividade aparece ao revelar muitos aspectos sobre o morador da casa Seria plausiacutevel referir
que a despensa identifica esse sujeito em suas preferecircncias alimentares em sua condiccedilatildeo
econocircmica em sua regularidade nas refeiccedilotildees feitas no lar aleacutem de demonstrar se vive sozinho
ou em famiacutelia se tem haacutebitos saudaacuteveis se manteacutem cuidados com a higiene com o meio-
ambiente com os prazos dos alimentos e por aiacute vai A despensa seria assim a memoacuteria da casa
um espaccedilo onde se colocam os ingredientes onde satildeo armazenados e de onde satildeo retirados para o
uso imediato Nessa analogia os ingredientes remetem-nos agrave imagem das lembranccedilas guardadas
na despensa
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A partir dessa reflexatildeo eacute importante pensar no par lembranccedilas e memoacuteria como uma
relaccedilatildeo entre plural e singular Podem-se estabelecer ainda outras relaccedilotildees como a ideia de que a
memoacuteria maior conteacutem as lembranccedilas menores e muacuteltiplas A primeira representa um amplo
espaccedilo subjetivo para o armazenamento das segundas Uma comparaccedilatildeo mais detalhada colocaria
alguns itens nas estantes mais altas da despensa onde o acesso eacute difiacutecil ou mais ao fundo atraacutes
de elementos que satildeo usados com regularidade Natildeo eacute raro que esses ingredientes em partes
menos visualizadas sejam menos usados enquanto aqueles mais visiacuteveis sejam retirados dali e
consumidos com maior frequecircncia Tanto a regularidade do uso quanto os gostos alimentares
definem os produtos que ficam disponiacuteveis em estantes de mais faacutecil acesso em contraponto os
menos usados entram na categoria dos menos vistos
Aspectos que raramente enxergamos ficam esquecidos na despensa em lugares difiacuteceis e
ateacute passam da validade se natildeo tomamos conhecimento de que estatildeo laacute natildeo iremos evocaacute-los e
acabam por permanecer por um longo periacuteodo no canto mais longiacutenquo daquele espaccedilo Inuacutemeras
vezes esquecemos de usar produtos que guardamos haacute mais tempo e lembramos de acessar os
mais presentes em nossa rotina Aleacutem disso cabe lembrar que haacute estantes ou compartimentos em
uma despensa que servem justamente ao propoacutesito de definiccedilatildeo de categorias as mais
importantes alcanccedilamos estendendo o braccedilo enquanto as de menor relevacircncia recebem acesso
pelo uso da escada domeacutestica da lanterna para a procura ou no caso de estarem nas prateleiras
inferiores de posiccedilotildees fiacutesicas para encontrar o elemento procurado
Ao guardarmos algo que pouco usamos criamos espaccedilos de esquecimento dentro da
memoacuteria Para que resgatemos esses ingredientes haacute elementos como a imagem que nos
despertam para a recordaccedilatildeo de que um dia tomamos contato com ele Mais uma vez surge a
figura do conhecimento preacutevio entatildeo do passado como criteacuterio para o reconhecimento
Reconhecer eacute conhecer novamente voltar a tomar contato
Considerando a partir da analogia estabelecida as lembranccedilas como elemento plural
presente na memoacuteria de caraacuteter singular torna-se necessaacuterio compreender o fenocircmeno da
memoacuteria sob vaacuterias perspectivas Haacute diversos fatores envolvidos no modo como nos lembramos
de algo no porquecirc dessas lembranccedilas tornarem-se de mais faacutecil ou de mais difiacutecil acesso para
quais registros damos mais relevacircncia ao lsquoguardar na despensarsquo e outras variaacuteveis ligadas ao
lembrar e ao esquecer Tais perspectivas natildeo estatildeo divididas mas sim ligadas no texto uma vez
que ao contraacuterio das prateleiras da despensa a memoacuteria eacute um espaccedilo sem divisotildees estabelecidas
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na experiecircncia humana Mesmo do ponto de vista cerebral ela ocupa diversas aacutereas e muacuteltiplos
sistemas sendo resultado de um processo de integraccedilatildeo de estruturas e de funccedilotildees cerebrais
Um aspecto relevante sobre o uso da palavra memoacuteria quando usado no plural estaacute na
literatura Ler as memoacuterias de um autor remete agrave ideia de uma narrativa autobiograacutefica ou
biograacutefica novamente ligando a ideia de memoacuteria ao campo da definiccedilatildeo de identidade
Considero que esse termo seja o de maior importacircncia no conjunto do fenocircmeno pois mesmo que
se trate da memoacuteria de um grupo essa revela seu caraacuteter identitaacuterio
Identidade eacute palavra-chave no campo da memoacuteria O psiquiatra italiano Sandro
Domenichetti apresenta a lembranccedila como ldquo[] experiecircncia que constroacutei a consciecircncia de si e
que define a relaccedilatildeo entre o mundo afetivo e aquele cognitivordquo (DOMENICHETTI 2003 p1)
de acordo com ele entre as funccedilotildees da consciecircncia estaacute a diacrocircnica ou seja a de percepccedilatildeo da
identidade estaacutevel atraveacutes do tempo A consciecircncia entatildeo eacute um elemento central neste campo
Domenichetti refere que esta ldquo[] parece entatildeo configurar-se como um tipo de memoacuteria de si no
tempordquo (DOMENICHETTI 2003 p1) enfatizando a perspectiva de que ldquo[] um senso de si eacute
essencial para que todas as minhas lembranccedilas sejam exatamente as minhas lembranccedilasrdquo
(DOMENICHETTI 2003 p1 grifo do autor)
Outro elemento apontado por este autor tem como base a explanaccedilatildeo de Israel Rosenfeld
meacutedico e pesquisador com atuaccedilatildeo relevante no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti
Roselfield expotildee a continuidade da consciecircncia como derivada da correspondecircncia que o ceacuterebro
estabelece em momentos sucessivos com eventos no espaccedilo e no tempo sendo seu elemento vital
a autoconsciecircncia Para Roselfield
As minhas lembranccedilas emergem da relaccedilatildeo entre meu corpo e a imagem que meu
ceacuterebro tem do meu corpo (uma atividade inconsciente na qual o ceacuterebro constroacutei para si
uma ideia generalizada do corpo ideia que se modifica continuamente) Eacute esta relaccedilatildeo
que cria o senso de lsquosirsquo (DOMENICHETTI 2003 p2)
A fim de corroborar a relaccedilatildeo entre corpo e ceacuterebro estabelecida por Rosenfield
Domenichetti refere-se a Henri Bergson (1859-1941) filoacutesofo e diplomata francecircs cuja obra
destacou-se pelas contribuiccedilotildees no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti
[] o nosso conhecimento da realidade eacute feito de percepccedilotildees impregnadas de
lembranccedilas A memoacuteria de Bergson funciona atraveacutes de operaccedilotildees de coleta de imagens
que progressivamente satildeo produzidas o corpo eacute uma dessas imagens a uacuteltima para ser
exato E se o corpo em geral eacute uma imagem eacute oacutebvio que o eacute tambeacutem o ceacuterebro Este
ligar a percepccedilatildeo a memoacuteria e o corpo com passagens de um a outro atraveacutes da
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dimensatildeo temporal define a construccedilatildeo da funccedilatildeo mental da qual a memoacuteria eacute atributo
fundador como organizaccedilatildeo autoreflexiva que pensa o corpo (DOMENICHETTI 2003
p1)
Pode-se compreender entatildeo corpo e ceacuterebro como palcos onde as imagens da memoacuteria
satildeo encenadas Tais imagens unem-se agraves percepccedilotildees atuais do indiviacuteduo compondo um conjunto
formado pelo antes e o agora ndash passado e presente ndash intrincados Ainda referindo-se agraves
contribuiccedilotildees de Roselfield nesse campo Domenichetti acrescenta
Tambeacutem na visatildeo de Roselfield assim a memoacuteria natildeo pode ser considerada como um
manual de informaccedilotildees mas sobretudo como uma atividade contiacutenua do ceacuterebro Isso se
observa principalmente no caso das imagens Quando recordo a imagem de um evento
da minha infacircncia por exemplo natildeo a extraio de um hipoteacutetico arquivo de imagens
preexistentes devo formar conscientemente uma nova imagem (DOMENICHETTI
2003 p2)
Tais explanaccedilotildees sobre o papel da imagem para a recordaccedilatildeo coincidem com a
perspectiva de Paul Ricoeur em A lembranccedila e a imagem na primeira parte de sua obra jaacute
referida Ele questiona ldquoComo explicar que a lembranccedila retorne em forma de imagem e que a
imaginaccedilatildeo assim mobilizada chegue a revestir-se das formas que escapam agrave funccedilatildeo do irrealrdquo
(RICOEUR 2014 p66)
Para chegar a respostas possiacuteveis ele recorre a Bergson entre outros autores Deste
aponta que ldquoAdoto como hipoacutetese de trabalho a concepccedilatildeo bergsoniana da passagem da
lsquolembranccedila-purarsquo agrave lembranccedila-imagemrdquo (RICOEUR 2014 p67) De acordo com Ricoeur sobre
o trabalho de Bergson ldquoele traz de certo modo a lembranccedila para uma aacuterea de presenccedila
semelhante agrave da percepccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p68) ressaltando da imaginaccedilatildeo o que chama
de ldquofunccedilatildeo visualizanterdquo ou seja ldquosua maneira de dar a verrdquo (RICOEUR 2014 p68) Ricoeur
esclarece que
Eacute como se a forma que Bergson chama intermediaacuteria ou mista da lembranccedila isto eacute a
lembranccedila-imagem a meio-caminho entre lsquolembranccedila-purarsquo e a lembranccedila reinscrita na
percepccedilatildeo no estaacutegio em que o reconhecimento desabrocha no sentimento do deacutejagrave vu
correspondesse a uma forma intermediaacuteria da imaginaccedilatildeo a meio caminho entre a ficccedilatildeo
e a alucinaccedilatildeo a saber o componente imagem da lembranccedila-imagem Portanto eacute
tambeacutem como forma mista que eacute preciso falar da funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo que consiste em
lsquopocircr debaixo dos olhosrsquo funccedilatildeo que podemos chamar ostensiva trata-se de uma
imaginaccedilatildeo que mostra que expotildee que deixa ver (RICOEUR 2014 p70)
Assim o que se tem eacute uma zona de fronteiras pouco demarcadas entre a percepccedilatildeo a
lembranccedila e a imaginaccedilatildeo Ricoeur refere em relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas e diferenccedilas entre as duas
uacuteltimas ldquoCertamente dissemos e repetimos que a imaginaccedilatildeo e a memoacuteria tinham como traccedilo
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comum a presenccedila do ausente e como traccedilo diferencial de um lado a suspensatildeo de toda posiccedilatildeo
de realidade e a visatildeo de um irreal do outro a posiccedilatildeo de um real anteriorrdquo (RICOEUR 2014
p61)
Nesse sentido o papel da percepccedilatildeo eacute o de captar a realidade atraveacutes dos cinco sentidos
para entatildeo formar registros que no futuro seratildeo lembranccedilas As imagens que resgato satildeo
diferentes das que percebi no instante do acontecimento pois se misturam com outros
ingredientes como as emoccedilotildees por exemplo Ricoeur aponta ldquoTeriacuteamos assim a sequecircncia
percepccedilatildeo lembranccedila ficccedilatildeo Um limiar de inatualidade eacute transposto entre lembranccedila e ficccedilatildeordquo
(RICOEUR 2014 p65) Esse limiar de inatualidade expresso por ele como ldquotransposto entre
lembranccedila e ficccedilatildeordquo parece referir-se agrave passagem do tempo que torna as imagens de uma
vivecircncia cada vez mais proacuteximas da imaginaccedilatildeo quanto mais longiacutenquo for o passado
O filoacutesofo Gaston Bachelard em A poeacutetica do espaccedilo ao mencionar as lembranccedilas
associadas ao habitar de uma nova casa expressa o entrelaccedilamento entre a memoacuteria e a
imaginaccedilatildeo
E o devaneio se aprofunda de tal modo que para o sonhador do lar um acircmbito
imemorial se abre para aleacutem da mais antiga memoacuteria A casa como o fogo como a
aacutegua nos permitiraacute evocar na sequecircncia de nossa obra luzes fugidias de devaneio que
iluminam a siacutentese do imemorial com a lembranccedila Nessa regiatildeo longiacutenqua memoacuteria e
imaginaccedilatildeo natildeo se deixam dissociar Ambas trabalham para seu aprofundamento muacutetuo
Ambas constituem na ordem dos valores uma uniatildeo da lembranccedila com a imagem
(BACHELARD 2012 p25)
A relaccedilatildeo entre lembranccedila e imagem em Bachelard encontra-se bem representada atraveacutes
da ideia da casa e do habitar onde esses dois fenocircmenos se fundem Ele menciona a ideia de que
ldquo[] o calendaacuterio da nossa vida soacute pode ser estabelecido em seu processo produtor de imagensrdquo
(BACHELARD 2012 p28) Este calendaacuterio parece ser para o autor as lembranccedilas recordadas
por meio da imagem das cenas vividas e sentidas Bachelard refere que ldquo[] a imagem
estabelece-se numa cooperaccedilatildeo entre o real e o irreal pela participaccedilatildeo da funccedilatildeo do real e da
funccedilatildeo do irrealrdquo (BACHELARD 2012 p73) tecendo uma ligaccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo memoacuteria e
percepccedilatildeo Cabe ressaltar nesse ponto o aspecto de esta uacuteltima ocorrer atraveacutes dos cinco
sentidos veiacuteculo de traduccedilatildeo do mundo externo para o interno Retorna-se ao jaacute apresentado
sobre a relevacircncia do corpo para a memoacuteria Ricoeur menciona a esse respeito
Eacute o elo entre memoacuteria corporal e memoacuteria dos lugares que legitima a tiacutetulo primordial a
dessimplicaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo de sua forma objetivada O corpo constitui desse
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ponto de vista o lugar primordial o aqui em relaccedilatildeo ao qual todos os outros lugares satildeo
laacute (RICOEUR 2014 p59)
Compreender o papel da memoacuteria do corpo conduz agrave identificaccedilatildeo desta dentro da
consciecircncia de si pois diz respeito aos registros deixados pelas vivecircncias com potencial de
serem encenados novamente pelo indiviacuteduo O ato de cozinhar seria um exemplo de como a
memoacuteria corporal faz com que se pratique o ato culinaacuterio como um conhecimento do corpo
muitas vezes executado de forma habitual Ricoeur aponta que ldquo[] a memoacuteria corporal pode ser
lsquoagidarsquo como todas as outras modalidades de haacutebito como a de dirigir um carro que estaacute em meu
poder Ela varia segundo todas as variantes do sentimento de familiaridade ou de estranhezardquo
(RICOEUR 2014 p57) O autor acrescenta
Assim a memoacuteria corporal eacute povoada de lembranccedilas afetadas por diferentes graus de
distanciamento temporal a proacutepria extensatildeo do lapso de tempo decorrido pode ser
percebida sentida na forma de saudade nostalgia [] O momento da recordaccedilatildeo eacute
entatildeo o do reconhecimento (RICOEUR 2014 p57)
Partindo dessa compreensatildeo seria possiacutevel pensar em corpo casa e lugar como espaccedilos
onde a recordaccedilatildeo nasce do mais especiacutefico o corpo ao mais inespeciacutefico o lugar Em todos
esses espaccedilos haacute accedilotildees e vivecircncias que podem constituir lembranccedilas Conforme Ricoeur
A transiccedilatildeo da memoacuteria corporal para a memoacuteria dos lugares eacute assegurada por atos tatildeo
importantes como orientar-se deslocar-se e acima de tudo habitar Eacute na superfiacutecie
habitaacutevel da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado lugares memoraacuteveis
Assim as lsquocoisasrsquo lembradas satildeo intrinsecamente associadas a lugares E natildeo eacute por acaso
que dizemos sobre uma coisa que aconteceu que ela teve lugar Eacute de fato nesse niacutevel
primordial que se constitui o fenocircmeno dos lsquolugares de memoacuteriarsquo (RICOEUR 2014
p57-58)
Essa ideia pode ser corroborada com a perspectiva de Bachelard sobre o habitar
Eacute preciso dizer como habitamos o nosso espaccedilo vital de acordo com todas as dialeacuteticas
da vida como nos enraizamos dia a dia num lsquocanto do mundorsquo
Porque a casa eacute nosso canto do mundo Ela eacute como se diz amiuacutede o nosso primeiro
universo Eacute um verdadeiro cosmos (BACHELARD 2012 p24)
A respeito da relevacircncia da casa para a formaccedilatildeo e o armazenamento das lembranccedilas
Bachelard apresenta contribuiccedilotildees que reforccedilam a visatildeo de Ricoeur sobre o papel dos lugares
para a memoacuteria
Logicamente eacute graccedilas agrave casa que um grande nuacutemero de nossas lembranccedilas estatildeo
guardadas e quando a casa se complica um pouco quando tem um poratildeo e um soacutetatildeo
cantos e corredores nossas lembranccedilas tecircm refuacutegios cada vez mais bem caracterizados
29
A eles regressamos durante toda a vida em nossos devaneios (BACHELARD 2012
p28)
A ideia da memoacuteria associada ao espaccedilo seja corpo casa ou lugar conduz agrave reflexatildeo de
que essa tem uma existecircncia subjetiva interna que eacute representada pelo aspecto objetivo material
externo isso se daacute atraveacutes de vivecircncias associadas sempre a um primeiro espaccedilo o corpoacutereo e a
um segundo mais amplo que eacute o lugar para onde a lembranccedila remete Mais uma vez as
lembranccedilas tecircm imagens de correspondecircncia eacute como se os lugares dessem carne e osso a elas
confirmam sua existecircncia em um tempo e em um espaccedilo que mesmo passado relaciona-se ao
mundo fiacutesico Quanto mais longiacutenquas no tempo mais proacuteximas se encontram da imaginaccedilatildeo
como jaacute visto entretanto ainda assim tecircm um cenaacuterio onde vivem
Examinada como fenocircmeno a memoacuteria tem propriedades que a identificam Ricoeur
estabeleceu trecircs pares de oposiccedilotildees para a compreensatildeo da fenomenologia da memoacuteria o
primeiro deles eacute a dupla haacutebitomemoacuteria sobre a qual refere
O que faz a unidade desse espectro eacute a comunidade da relaccedilatildeo com o tempo Nos dois
casos extremos pressupotildee-se uma experiecircncia anteriormente adquirida mas num caso o
do haacutebito essa aquisiccedilatildeo estaacute incorporada agrave vivecircncia presente natildeo marcada natildeo
declarada como passado no outro caso faz-se referecircncia agrave anterioridade como tal da
aquisiccedilatildeo antiga Nos dois casos por conseguinte continua sendo verdade que a
memoacuteria lsquoeacute do passadorsquo mas conforme dois modos um natildeo marcado outro sim da
referecircncia ao lugar no tempo da experiecircncia inicial
[] A operaccedilatildeo descritiva consiste entatildeo em classificar as experiecircncias relativas agrave
profundidade temporal desde aquelas em que de algum modo o passado adere ao
presente ateacute aquelas em que o passado eacute reconhecido em sua preteridade passada
(RICOEUR 2014 p43)
A segunda dupla de opostos estabelecida por Ricoeur eacute composta pelo par
evocaccedilatildeobusca representado pelos dois trechos abaixo No primeiro a reflexatildeo sobre evocaccedilatildeo
no segundo sobre a busca
1) Entendamos por evocaccedilatildeo o aparecimento atual de uma lembranccedila Eacute a esta que
Aristoacuteteles destinava o termo mneme designando por anamnesis o que chamaremos
mais adiante de busca ou recordaccedilatildeo Ele caracterizava a mneme como pathos como
afecccedilatildeo ocorre que nos lembramos disto ou daquilo nesta ou naquela ocasiatildeo entatildeo
temos uma lembranccedila Portanto eacute em oposiccedilatildeo agrave busca que a evocaccedilatildeo eacute uma
afecccedilatildeo Enquanto tal em outras palavras desconsiderando sua posiccedilatildeo polar a
evocaccedilatildeo traz a carga do enigma que movimentou as investigaccedilotildees de Platatildeo e de
Aristoacuteteles ou seja a presenccedila agora do ausente anteriormente percebido
experimentado aprendido (RICOEUR 2014 p45)
2) Voltemo-nos agora para o outro poacutelo do par evocaccedilatildeobusca Eacute ele que a
denominaccedilatildeo grega da anamnesis designava Platatildeo a mitificara ligando-a a um saber
preacute-natal do qual estariacuteamos afastados por um esquecimento ligado agrave inauguraccedilatildeo da
vida da alma num corpo esquecimento de certo modo natal que faria da busca um
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reaprender do esquecimento Aristoacuteteles [] naturalizou de certo modo a anamnesis
comparando-a agravequilo que na experiecircncia cotidiana chamamos de recordaccedilatildeo [] o
ana de anamnesis significa volta retomada recobramento do que anteriormente foi
visto experimentado ou aprendido portanto de alguma forma significa repeticcedilatildeo
Assim o esquecimento eacute designado obliquamente como aquilo contra o que eacute
dirigido o esforccedilo da recordaccedilatildeo (RICOEUR 2014 p46)
O que Ricoeur propotildee assim com o par evocaccedilatildeobusca eacute a diferenciaccedilatildeo entre a
lembranccedila e a recordaccedilatildeo sendo a primeira segundo ele representativa do surgimento
espontacircneo de um registro gravado na memoacuteria enquanto a segunda seria resultado de uma
procura ativa voluntaacuteria Referindo as ideias de Bergson sobre lsquorecordaccedilatildeo instantacircnearsquo e
lsquorecordaccedilatildeo laboriosarsquo aponta a distinccedilatildeo ldquo[] podendo a recordaccedilatildeo instantacircnea ser considerada
como o grau zero da busca e a recordaccedilatildeo laboriosa e a recordaccedilatildeo laboriosa como sua forma
expressardquo (RICOEUR 2014 p46) Assim a lembranccedila viria de uma evocaccedilatildeo proacutexima ao que
Ricoeur chama de lsquoautomatismorsquo e lsquorecordaccedilatildeo mecacircnicarsquo diferente da recordaccedilatildeo que viria lsquoda
reflexatildeo da reconstituiccedilatildeo inteligentersquo estando ambas ldquo[] intimamente mescladas na
experiecircncia comumrdquo (RICOEUR 2014 p46) Por fim com relaccedilatildeo a esse par Ricoeur refere
Eacute de fato o esforccedilo de recordaccedilatildeo que oferece a melhor ocasiatildeo de fazer lsquomemoacuteria do
esquecimentorsquo para falar com antecipaccedilatildeo como Santo Agostinho A busca da
lembranccedila comprova uma das finalidades principais do ato de memoacuteria a saber lutar
contra o esquecimento arrancar alguns fragmentos de lembranccedila agrave lsquorapacidadersquo do
tempo (Santo Agostinho dixit) ao lsquosepultamentorsquo no esquecimento Natildeo eacute somente o
caraacuteter penoso do esforccedilo de memoacuteria que daacute agrave relaccedilatildeo sua coloraccedilatildeo inquieta mas o
temor de ter esquecido de esquecer de novo de esquecer amanhatilde de cumprir esta ou
aquela tarefa porque amanhatilde seraacute preciso natildeo esquecer [] de se lembrar (RICOEUR
2014 p48)
A terceira dupla de opostos proposta por Ricoeur em sua fenomenologia da memoacuteria eacute
constituiacuteda pela polaridade reflexividademundanidade A respeito do elemento reflexividade
Ricoeur esclarece
Natildeo nos lembramos somente de noacutes vendo experimentando aprendendo mas das
situaccedilotildees do mundo nas quais vimos experimentamos aprendemos Tais situaccedilotildees
implicam o proacuteprio corpo e o corpo dos outros o espaccedilo onde se viveu enfim o
horizonte do mundo e dos mundos sob o qual alguma coisa aconteceu Entre
reflexividade e mundanidade haacute mesmo uma polaridade na medida em que a
reflexividade eacute um rastro irrecusaacutevel da memoacuteria em sua fase declarativa algueacutem diz
lsquoem seu coraccedilatildeorsquo que viu experimentou aprendeu anteriormente sob esse aspecto nada
deve ser negado sobre o pertencimento da memoacuteria agrave esfera de interioridade
(RICOEUR 2014 p53-54)
A mundanidade por sua vez constitui um elemento significativo no estudo deste
capiacutetulo uma vez que contempla a existecircncia dos rituais atraveacutes da abordagem do fenocircmeno da
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comemoraccedilatildeo Ricoeur o associa agrave ldquo[] gestualidade corporal e agrave espacialidade dos rituais que
acompanham os ritmos temporais da celebraccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p60) A associaccedilatildeo do ato
de comemoraccedilatildeo com os rituais eacute explicada por ele
Natildeo haacute efetuaccedilatildeo ritual sem a evocaccedilatildeo de um mito que orienta a lembranccedila para o que eacute
digno de ser comemorado As comemoraccedilotildees satildeo assim espeacutecies de evocaccedilotildees no
sentido de reatualizaccedilatildeo eventos fundadores apoiados pelo lsquochamadorsquo a lembrar-se que
soleniza a cerimocircnia- comemorar observa Casey eacute solenizar tomando seriamente o
passado e celebrando-o em cerimocircnias apropriadas (RICOEUR 2014 p60)
A partir da reflexatildeo de Ricoeur sobre o par reflexividademundanidade e neste uacuteltimo
elemento a presenccedila do ritual cabe salientar o estudioso Mircea Eliade Este em sua obra Mito e
Realidade apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o mito
O mito conta uma histoacuteria sagrada ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial o tempo fabuloso do lsquoprinciacutepiorsquo Em outros termos o mito narra como
graccedilas agraves faccedilanhas dos Entes Sobrenaturais uma realidade passou a existir seja uma
realidade total o Cosmo ou apenas um fragmento uma ilha uma espeacutecie vegetal um
comportamento humano uma instituiccedilatildeo Eacute sempre portanto a narrativa de uma
lsquocriaccedilatildeorsquo ele relata de que modo algo foi produzido e comeccedilou a ser O mito fala apenas
do que realmente ocorreu do que se manifestou plenamente (ELIADE 2011 p11)
A relevacircncia dessa consideraccedilatildeo reside em corroborar que ldquo[] pelo fato de relatar as
gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestaccedilatildeo dos seus poderes sagrados o mito se torna o
modelo exemplar de todas as atividades humanas significativasrdquo (ELIADE 2011 p12) A
comemoraccedilatildeo enseja o rito que reencena o mito por isso eacute mencionada na explanaccedilatildeo de Ricoeur
quando se refere aos rituais Mircea Eliade esclarece ldquo[] a principal funccedilatildeo do mito consiste em
revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas tanto a
alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE
2011 p12) Compreende-se assim a comemoraccedilatildeo como a reuniatildeo de grupo ou de um povo
para celebrar a memoacuteria conjunta de seus membros em torno de uma finalidade o rito cuja
origem estaacute no evento original o mito A ideia impliacutecita neste caso eacute a de celebrar em conjunto
a memoacuteria de algo ou seja co-memorar A fim de reforccedilar essa reflexatildeo apontamos outra
explanaccedilatildeo de Eliade
Para o homem das sociedades arcaicas ao contraacuterio o que aconteceu ab origine pode ser
repetido atraveacutes do poder dos ritos Para ele portanto o essencial eacute conhecer os mitos
Essencial natildeo somente porque os mitos lhe oferecem uma explicaccedilatildeo do Mundo e de seu
proacuteprio modo de existir no Mundo mas sobretudo porque ao rememorar os mitos e
reatualiza-los ele eacute capaz de repetir o que os Deuses os Heroacuteis e os Ancestrais fizeram
ab origine Conhecer os mitos eacute aprender o segredo da origem das coisas Em outros
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termos aprende-se natildeo somente como as coisas vieram agrave existecircncia mas tambeacutem onde
encontra-las e como fazer com que reapareccedilam quando desaparecem (ELIADE 2011
p18)
No contexto do presente capiacutetulo interessa ressaltar a compreensatildeo do ritual como
celebraccedilatildeo de uma memoacuteria ancestral por parte de um grupo A ancestralidade dessa memoacuteria
tem em sua raiz o mito que lhe deu origem Tal entendimento tem associaccedilatildeo com o cozinhar e
com o partilhar o alimento com a reuniatildeo da famiacutelia em torno da comida e com a repeticcedilatildeo das
praacuteticas culinaacuterias que mesmo evoluindo ao longo do tempo remontam o primordial tornar cru
em cozido Outro elemento ligado agrave realizaccedilatildeo de rituais associados agrave cozinha estaacute na recitaccedilatildeo
do modo de fazer um prato quando transmitido atraveacutes de uma receita escrita O caminho que
essa percorre entre as geraccedilotildees de uma famiacutelia eacute emblemaacutetico de sua forccedila ritualiacutestica como se
carregasse de forma transgeracional a memoacuteria desse grupo atraveacutes do como-se-faz de uma
determinada praacutetica
Antes da existecircncia da receita no caderno o conhecimento empiacuterico dos antepassados
sobre o fazer culinaacuterio era ensinado oralmente e atraveacutes do proacuteprio fazer quando recitaccedilotildees eram
feitas para que o prato saiacutesse a contento essas eram assim a representaccedilatildeo do ritual naquele
grupo familiar Nesse sentido retomamos Eliade em sua explicaccedilatildeo sobre a recitaccedilatildeo do mito
Em Timor por exemplo quando germina um arrozal dirige-se ao campo algueacutem que
conhece as tradiccedilotildees miacuteticas referentes ao arroz [] Recitando o mito de origem
obriga-se o arroz a crescer tatildeo belo vigoroso e abundante como era quando apareceu
pela primeira vez Natildeo eacute com o fim de lsquoinstruiacute-lorsquo ou ensinar-lhe a maneira como deve
comportar-se que o oficiante lembra ao arroz o modo como foi criado Ele o forccedila
magicamente a retornar agrave origem isto eacute a reiterar sua criaccedilatildeo exemplar (ELIADE
2011 p19)
Esses conhecimentos eram transmitidos junto com a receita ou seja eram parte da
memoacuteria daquele prato em seu papel na tradiccedilatildeo familiar Vale lembrar que a etimologia de
receita estaacute no latim recepta alusivo a receber expressa entatildeo aquilo que se recebe em termos
de ensinamento sobre o fazer de uma comida especiacutefica Haacute diversas expressotildees no folclore da
cozinha que remontam a transmissatildeo do saber culinaacuterio em uma cultura
Haacute diferenccedila entre a memoacuteria individual essa que nos identifica como indiviacuteduos e a
memoacuteria coletiva Como exemplo da uacuteltima cito esse lsquosaber culinaacuterio em uma culturarsquo que
remete agrave compreensatildeo sobre a memoacuteria coletiva no contexto deste capiacutetulo Esta assim como a
individual tem em seu eixo a noccedilatildeo de identidade no caso da memoacuteria de um indiviacuteduo como jaacute
visto refere-se agrave consciecircncia de si mesmo como base daquilo de que ele eacute capaz de se lembrar
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para que as lembranccedilas sejam suas no caso da memoacuteria coletiva este eixo estaacute na identidade do
grupo que a conteacutem pois a memoacuteria e o grupo alimentam-se reciprocamente o grupo se manteacutem
vivo pelas memoacuterias enquanto essas permanecem presentes pela unidade do grupo
A respeito dessa inter-relaccedilatildeo a pesquisadora e professora alematilde Aleida Assmann no
livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo-formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural menciona as ideias
de Maurice Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva referindo que ldquo[] a memoacuteria coletiva assegura
a singularidade e a continuidade de um grupordquo (ASSMANN 2011 p144) e esclarece
Seu interesse voltou-se apenas agrave pergunta sobre o que manteacutem as pessoas unidas em
grupos Deparou assim com o significado agregador das lembranccedilas em comum como
importante elemento de coesatildeo Derivou daiacute a noccedilatildeo da existecircncia de uma lsquomemoacuteria de
gruporsquo Mas as lembranccedilas natildeo se estabilizam somente no grupo O grupo torna estaacuteveis
as lembranccedilas A investigaccedilatildeo de Halbwachs em torno dessa lsquomemoacuteria coletivarsquo resultou
no seguinte a estabilidade da memoacuteria coletiva estaacute vinculada de maneira direta agrave
composiccedilatildeo e subsistecircncia do grupo Se o grupo se dissolve os indiviacuteduos perdem em
sua memoacuteria a parte de lembranccedilas que os fazia assegurarem-se e identificarem-se como
grupo (ASSMANN 2011 p144)
A referecircncia agrave memoacuteria ligada agrave manutenccedilatildeo de um grupo remete novamente agrave ideia no
acircmbito das vivecircncias culinaacuterias das receitas de cozinha transmitidas entre as geraccedilotildees de uma
mesma famiacutelia O elemento que sustenta a presenccedila dessa receita no grupo eacute a memoacuteria que este
tem a respeito do lsquocomo-se-fazrsquo de uma determinada comida Enquanto houver membros dessa
famiacutelia que se interessem em manter a tradiccedilatildeo daquele determinado sabor a memoacuteria seraacute
mantida ao mesmo tempo enquanto houver essa memoacuteria a integraccedilatildeo do grupo permaneceraacute
Segundo Aleida Assmann
Os estudos do historiador francecircs Pierre Nora demonstraram que por traacutes da memoacuteria
coletiva natildeo haacute alma coletiva nem espiacuterito coletivo algum mas tatildeo somente a sociedade
com seus signos e siacutembolos Por meio dos siacutembolos em comum o indiviacuteduo toma parte
de uma memoacuteria e de uma identidade tidas em comum Nora cumpriu na teoria da
memoacuteria o passo que vai do grupo vinculado na coexistecircncia espaccedilo-temporal tema
estudado por Halbwachs agrave comunidade abstrata que se define por meio dos siacutembolos
que abrangem e agregam em niacutevel espacial e temporal Os portadores dessa memoacuteria
coletiva natildeo precisam conhecer-se para apesar disso reinvindicar para si uma identidade
comum (ASSMANN 2011 p145)
Assim como referido sobre o papel de uma receita de famiacutelia como elemento de coesatildeo
entre os membros da mesma atraveacutes das geraccedilotildees situaccedilatildeo semelhante pode ocorrer em relaccedilatildeo
a um determinado ingrediente ou preferecircncia alimentar A transmissatildeo de um saber culinaacuterio e
dos gostos de uma famiacutelia tambeacutem satildeo aspectos que se perpetuam no grupo em funccedilatildeo da
memoacuteria que agrega seus integrantes
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A memoacuteria individual entatildeo manteacutem a identidade por dar ao indiviacuteduo sua caracteriacutestica
singular atraveacutes do tempo nela estatildeo suas impressotildees lembranccedilas e registros que compotildeem a
noccedilatildeo de permanecircncia de quem ele eacute ou seja reforccedilam nele a consciecircncia do eu na duraccedilatildeo de
ciclos que se perpetuam Ele sabe quem eacute em grande parte pelas lembranccedilas que tem de si
Circunstacircncia anaacuteloga ocorre com a memoacuteria coletiva em que o grupo se manteacutem coeso pela
consciecircncia de ser um grupo com lembranccedilas em comum o papel dessas eacute exatamente o de
manter a unidade e a permanecircncia da identidade do conjunto
A memoacuteria individual e a coletiva estatildeo portanto implicadas na vivecircncia culinaacuteria
relaccedilotildees a serem exploradas na divisatildeo que segue
13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO
A relaccedilatildeo entre cozinha e memoacuteria existe devido agrave linguagem Avanccedilando nessa
perspectiva Mariano Garciacutea e Mariana Dimoacutepulos compiladores da obra Escritos sobre la mesa-
Literatura y comida afirmam que ldquo[] a relaccedilatildeo entre linguagem e comida comeccedila desde o
momento em que graccedilas agrave escritura se conservam notiacutecias de como se comia na Antiguidaderdquo
(GARCIacuteA DIMOacutePULOS 2014 p9) Toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo assim eacute conhecida em
virtude do que se registrou ao longo das eacutepocas sob os mais diversos veiacuteculos Esse aspecto eacute
relevante tanto do ponto de vista de Histoacuteria da Humanidade quanto daquele das histoacuterias
familiares atraveacutes de escritos transmitidos de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Em ambos os exemplos os
escritos culinaacuterios satildeo representativos da memoacuteria coletiva
Ainda no que concerne a essa memoacuteria salientamos que ela tem tambeacutem outras
expressotildees presentes no acircmbito identitaacuterio de uma cultura De acordo com Daniela Bunn em sua
obra O alimento na literatura uma questatildeo cultural ldquo[] satildeo assim criados em torno da mesa
modos maneiras e ingredientes que estabelecem uma identidade cultural destinada a representar
um grupo e sua identidaderdquo (BUNN 2016 p28) Tais lsquomodos maneiras e ingredientesrsquo satildeo
elementos que constituem parte da bagagem que pertence a um grupo e agraves geraccedilotildees seguintes
atraveacutes da memoacuteria coletiva Podemos citar como exemplos os ensinamentos culinaacuterios
aprendidos atraveacutes de gestos e de relatos orais e as preferecircncias alimentares de uma famiacutelia ou de
um povo
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Visitando cadernos de receitas antigos que pertenceram a avoacutes matildees e tias percebemos
uma caracteriacutestica em comum a todos eles o elenco de ingredientes com suas medidas e a breve
descriccedilatildeo do lsquocomo-se-fazrsquo apenas para guiar a praacutetica Parece-nos inclusive que eram
anotaccedilotildees que elas faziam para si mesmas para que natildeo esquecessem de um ou outro detalhe e
natildeo registros para serem transmitidos na famiacutelia Ensinavam sim mas in loco na hora em que
estivessem fazendo Mostravam caracteriacutesticas no aspecto do prato sendo feito apontavam para
os ruiacutedos da cebola fritando faziam sentir a textura de uma massa de patildeo o cheiro de um doce
exalando pela cozinha denunciavam a pitada de sal que ainda faltava no arroz soacute de provarem
com a ponta da colher Como sabiam Porque lembravam pelo que um dia aprenderam e mais do
que isso lembravam pelo haacutebito pelo praticar e de forma mais vivencial pelo sentir atraveacutes dos
cinco sentidos
Em Pequeno alfarraacutebio de acepipes e doccediluras haacute um capiacutetulo dedicado agrave cozinha das
avoacutes intitulado lsquoNossas avoacutesrsquo cujo propoacutesito eacute o de refletir de modo especiacutefico sobre a cozinha
que atravessa a memoacuteria e permanece como registro vivo pela referecircncia ao papel que estas
desempenham na memoacuteria de muitas pessoas Os pratos e doces feitos por elas as avoacutes de tantas
geraccedilotildees tornam-se parte das lembranccedilas que deixam na famiacutelia Aleacutem disso as receitas das avoacutes
satildeo emblemaacuteticas da memoacuteria que se manteacutem viva atraveacutes de um grupo que a alimenta a
memoacuteria coletiva conforme referida por Aleida Assmann ao mencionar as ideias de Maurice
Halbwachs
Um dos aspectos mais relevantes dessa lsquocozinha das avoacutesrsquo eacute o modo como tinham no
corpo o conhecimento da praacutetica culinaacuteria No texto lsquoA memoacuteria nas matildeosrsquo eacute referido esse
aspecto
No caso da Voacute Leacuteia e de tantas avoacutes da eacutepoca acho que tinham a memoacuteria nas matildeos
com tudo o que aprendiam e praticavam vida afora No entanto a sabedoria vai aleacutem
Acredito que sentissem vivamente nas etapas os cheiros gostos sons do alimento
aspecto textura pulsaccedilatildeo As matildeos preparavam mas todo corpo participava do feito
culinaacuterio Prestavam atenccedilatildeo estavam de fato presentes na tarefa E assim a memoacuteria era
lsquocarimbadarsquo nas matildeos nos cinco sentidos na emoccedilatildeo de um sabor que alegrava a
cozinha (CARDOSO 2012 p61)
O elemento determinante da memoacuteria das avoacutes cuja vivecircncia culinaacuteria era cotidiana e de
valor reconhecido entre os familiares eacute a praacutetica Sabiam fazer e muitas vezes de modo
intuitivo adaptavam e ateacute criavam receitas por esse conhecimento A lsquomemoacuteria nas matildeosrsquo
consistia em identificar pelo tato que a massa do patildeo estava no ponto quando a pele assim
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determinava E reconheciam isso por um dia ter aprendido mas principalmente porque apoacutes
tantas repeticcedilotildees do lsquocomo-se-fazrsquo foi a pele que passou a identificar este ponto ainda antes do
conhecer cognitivo Tal reflexatildeo conduz ao que refere Ricoeur sobre o par haacutebitomemoacuteria
quando o primeiro elemento do par alude agraves circunstacircncias em que o passado adere ao presente
Um saber adquirido eacute mantido em praacutetica o que torna sua lembranccedila como um fator que integra a
atualidade do fazer e natildeo apenas o passado
Esta memoacuteria das avoacutes que mantinham vivo um modo de conhecer o ato culinaacuterio como
parte de seu saber vivencial ilustra com nitidez a ideia da memoacuteria coletiva jaacute que seu saber era
compartilhado em seu tempo natildeo pela receita escrita mas pela forma como esse era sentido e
atuado na cozinha Agrave medida que as geraccedilotildees que detinham esses conhecimentos antigos foram
terminando suas memoacuterias de forno-e-fogatildeo construiacutedas pela accedilatildeo e pelos sentidos agrave beira do
fogo ou do balcatildeo foram deixando de existir O que ficou para as geraccedilotildees seguintes foi o
conjunto de receitas escritas mas essas natildeo substituem a riqueza de um fazer empiacuterico intuitivo
recordado no corpo
O escritor e pesquisador Michael Pollan faz uma referecircncia interessante nesse sentido ao
advertir que natildeo se deve comer nada que a avoacute natildeo chamaria de comida Essa expressatildeo proposta
no fulcro de uma culinaacuteria dirigida para fora dos lares e feita de alimentos muitas vezes pouco ou
nada saudaacuteveis chama a atenccedilatildeo para o reconhecimento das avoacutes como detentoras de um saber
uacutenico aquele da lsquocomida de verdadersquo
Avoacutes matildees e tias satildeo personagens de grande relevacircncia no aprendizado de cozinha das
geraccedilotildees seguintes Eacute possiacutevel que isso se deva a seu papel ancestral de transmissatildeo de um saber
especiacutefico A memoacuteria dos antepassados constitui o alicerce a fundamentaccedilatildeo da famiacutelia a partir
de experiecircncias e de saberes que um dia foram vivenciados para serem entatildeo narrados ao longo
do tempo agraves proacuteximas geraccedilotildees O socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da
culinaacuteria brasileira tece uma relevante consideraccedilatildeo a esse respeito ldquoOs saberes culinaacuterios
evoluiacuteram como uma heranccedila que se transmite matrilinearmente ndash e os cadernos de receitas das
avoacutes satildeo uma sobrevivecircncia persistente dessa diretrizrdquo (DOacuteRIA 2014 p206)
Doacuteria aborda outro elemento significativo na contribuiccedilatildeo com o papel da memoacuteria na
cozinha a corporeidade Esse fator representa o proacuteprio ato culinaacuterio que eacute exercido pelo corpo
Eacute nele que reside a memoacuteria dos movimentos e dos gestos implicados no preparo do alimento
como bater claras sovar a massa do patildeo picar a cebola etc Neste sentido o autor refere
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O corpo eacute tradicionalmente o principal instrumento do fazer culinaacuterio As ferramentas
da faca ao mais sofisticado equipamento utilizado na culinaacuteria molecular satildeo em geral
expedientes que visam economizar gestos ou conferir-lhes maior precisatildeo mas o
empenho fiacutesico com destreza eacute o primeiro responsaacutevel pelos resultados alcanccedilados []
(DOacuteRIA 2014 p216)
Essa reflexatildeo significa na compreensatildeo da memoacuteria ligada agrave cozinha que eacute o corpo o
principal responsaacutevel pela praacutetica culinaacuteria incluindo qualidades como a destreza mencionada
por Doacuteria A faca poderaacute cortar bem estar afiada mas se o corpo natildeo souber usaacute-la isso de nada
adiantaraacute Tal ponto nos remete agrave ideia da memoacuteria do corpo referida por Ricoeur no que tange
a uma espeacutecie de memoacuteria que pode ser agida na praacutetica habitual do indiviacuteduo fazendo parte de
sua identidade ter domiacutenio de um dado ato culinaacuterio daacute a algueacutem a consciecircncia de que sabe
fazer de que se lembra de que aquele saber eacute parte de si
Assim o ato culinaacuterio aprendido tanto por livros de receitas como pela transmissatildeo oral
por familiares representa a memoacuteria coletiva quando esse ato eacute praticado rotineiramente pelo
sujeito que aprendeu isto contribui para a consciecircncia de si representando o papel da memoacuteria
individual Cabe ressaltar tambeacutem a presenccedila da memoacuteria ancestral que acompanha as vivecircncias
de cozinha A esse propoacutesito Doacuteria refere que ldquoAssim lsquofazer para o outrorsquo ndash essa doaccedilatildeo atraveacutes
de um intermediaacuterio ao mesmo tempo material e simboacutelico como eacute a comida ndash permanece a
marca feminina do cozinhar desde os primeiros tempos da humanidaderdquo (DOacuteRIA 2014 p221)
Tal constataccedilatildeo reforccedila o papel ancestral das avoacutes matildees e tias na transmissatildeo do saber culinaacuterio
A postagem do blog Serendipity in Cucina traz no relato memorialiacutestico sobre a vivecircncia
de sua autora reflexatildeo sobre o componente ritualiacutestico do cozinhar
Haacute alguns anos decidi comeccedilar a fazer a chimia de uvas lsquoda Voacute Leacuteiarsquo a partir das
lembranccedilas que tenho do fazer de minha avoacute materna a quem assisti preparando o doce
inuacutemeras vezes Os dados sobre as proporccedilotildees tais como igual peso das cascas de uva e
do accediluacutecar e aacutegua que cubra soube por uma prima mas meu objetivo principal era o de
seguir a memoacuteria mais de vinte anos depois da uacuteltima vez que a vi fazendo o doce
Entatildeo sempre no veratildeo na eacutepoca dessas uvas repito a experiecircncia Fico em frente agrave
caccedilarola e a coloco em fogo baixo depois da fervura mexendo com a colher de pau em
giros lentos e precisos Percebo a mudanccedila atraveacutes da resistecircncia que o composto faz agrave
colher e assim progressivamente o fazer demanda mais forccedila do braccedilo direito Presto
atenccedilatildeo ao aspecto o roxo cintilante do iniacutecio torna-se mais opaco e fechado o brilho
das cascas da uva Isabel com que eacute feita a chimia diminui agrave medida que essa se
aproxima do resultado final O aroma toma conta da casa toda de forma insidiosa
Identifico que estaacute pronta pela consistecircncia reconheccedilo este momento porque a imagem
de minha avoacute em seus giros da colher de pau eacute parte de minha memoacuteria bem como a
lembranccedila das etapas da receita Quando repito seu movimento com semelhante
vagarosidade e empenho faccedilo-o pela lembranccedila do que assisti entretanto eacute provaacutevel
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que a repeticcedilatildeo se deva tambeacutem ao ritual em que consiste o cozinhar O proacuteprio fato de
estar agrave frente do fogo preparando o alimento eacute por si um ritual (CARDOSO 2015)
Assim o papel da ancestralidade manifesta-se no modo como se vivencia o contato com a
comida tanto no cozinhar quanto no comer e no partilhar a refeiccedilatildeo pessoas afins ou seja esses
atos configuram-se como rituais Retomamos as contribuiccedilotildees de Mircea Eliade para corroborar
essa compreensatildeo especialmente sua referecircncia de que
Apesar das modificaccedilotildees sofridas no decorrer dos tempos os mitos dos lsquoprimitivosrsquo
ainda refletem um estado primordial Trata-se ademais de sociedades onde os mitos
ainda estatildeo vivos onde fundamentam e justificam todo o comportamento e toda a
atividade do homem (ELIADE 2011 p10)
O fazer a comida e aquele do sentar agrave mesa para compartilhaacute-la satildeo desta forma rituais
que praticamos como seres humanos reencenando mitos A expressatildeo dos rituais estaacute em uma
memoacuteria coletiva ancestral que evocamos nessas praacuteticas
Em suma os mitos descrevem as diversas e algumas vezes dramaacuteticas irrupccedilotildees do
sagrado (ou do lsquosobrenaturalrsquo) no Mundo Eacute essa irrupccedilatildeo do sagrado que realmente
fundamenta o Mundo e o converte no que eacute hoje E mais eacute em razatildeo das intervenccedilotildees
dos Entes Sobrenaturais que o homem eacute o que eacute hoje um ser mortal sexuado e cultural
(ELIADE 2011 p11)
No que concerne agrave praacutetica da cozinha tambeacutem o cumprimento de uma receita traz um ato
de recitaccedilatildeo especialmente na parte que se refere ao lsquomodo de fazerrsquo o que conduz agrave reflexatildeo de
que tambeacutem esta eacute parte do ritual que envolve a produccedilatildeo da comida Fala-se em seguir a receita
no sentido de obedececirc-la Ao ler as orientaccedilotildees o que se lecirc eacute a presenccedila de verbos especiacuteficos do
fazer culinaacuterio conjugados no modo imperativo corte refogue asse e assim por diante Este
recitar que muitas vezes eacute falado em voz baixa enquanto se prepara um prato eacute em si um ato
inerente ao fazer culinaacuterio A respeito da recitaccedilatildeo Eliade aponta que
Na maioria dos casos natildeo basta conhecer o mito da origem eacute preciso recitaacute-lo em certo
sentido eacute uma proclamaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo do proacuteprio conhecimento E natildeo eacute soacute
recitando ou celebrando o mito de origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela
atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos O tempo miacutetico
das origens eacute um tempo lsquofortersquo porque foi transfigurado pela presenccedila ativa e criadora
dos Entes Sobrenaturais Ao recitar os mitos reintegra-se agravequele tempo fabuloso e a
pessoa torna-se consequentemente lsquocontemporacircnearsquo de certo modo dos eventos
evocados compartilha da presenccedila dos Deuses ou dos Heroacuteis Numa foacutermula sumaacuteria
poderiacuteamos dizer que ao ldquoviverrdquo os mitos sai-se do tempo profano cronoloacutegico
ingressando num tempo qualitativamente diferente um tempo lsquosagradorsquo ao mesmo
tempo primordial e indefinidamente recuperaacutevel (ELIADE 2011 p21)
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Carlos Alberto Doacuteria faz uma relevante reflexatildeo sobre a receita culinaacuteria contemplando a
perspectiva desde sua origem ateacute o modo como eacute vista atualmente
Considerando as diferenccedilas tecnoloacutegicas as receitas satildeo sempre prescriccedilotildees sobre o
modo de proceder na cozinha assim como as receitas farmacecircuticas satildeo prescriccedilotildees a
respeito de como os farmacecircuticos devem proceder em seus laboratoacuterios Do ponto de
vista geral ao apontar a unidade receita-cozinha e o modo de lsquoaviamentorsquo estamos
considerando que essa unidade estaacute incrustrada nas demais instituiccedilotildees como a religiatildeo
a famiacutelia o Natal etc (DOacuteRIA 2009 p141)
A receita culinaacuteria eacute entatildeo parte do ritual que envolve as vivecircncias alimentares seja
cozinhar ou comer aleacutem disso essa constitui um relevante material como documento para a
memoacuteria de um local e de uma eacutepoca pois traz em seu vocabulaacuterio e nas accedilotildees que determina
elementos de identificaccedilatildeo que permitem caracterizar sua origem e periacuteodo de vigecircncia A receita
porta consigo a memoacuteria coletiva do contexto de que se origina bem como a memoacuteria
individual de quem a escreve em seu caderno de cozinha e a de quem reconhece nos livros de
receitas pratos que jaacute experimentou
Doacuteria aponta a respeito da memoacuteria implicada nesse tipo de material um aspecto
interessante sobre o papel da memoacuteria contida nos livros culinaacuterios O autor fala a respeito de um
renomado chef internacional Paul Bocuse que eacute contraacuterio agrave praacutetica de receitas lsquoagrave riscarsquo tendo
escrito um livro assim Doacuteria aponta que o chef faz uma ressalva em sua obra orientando ao
leitor que natildeo leve seu conteuacutedo demasiadamente a seacuterio e que ouccedila uma lsquoforccedila desconhecidarsquo
como a inspiraccedilatildeo o que ldquo[] garantiraacute melhores resultados praacuteticosrdquo (DOacuteRIA 2009 p144)
Consideramos por fim que Bocuse tambeacutem estaacute a nos dizer que as suas receitas satildeo
apenas e modestamente o seu modo de fazer aquele prato ou seja elas contecircm a
memoacuteria do seu trabalho como estilo e valor testemunhal e- tambeacutem de modo a
determinar- o livro eacute seu meio de propagaccedilatildeo Visto assim o livro de receitas eacute um
registro de memoacuteria do trabalho que possam ter alguma utilidade para os leitores []
(DOacuteRIA 2009 p144)
Aleacutem dessa referecircncia a Bocuse Doacuteria aponta criticamente a funccedilatildeo da receita para os
que a seguem ldquoEntatildeo se pararmos um minuto para pensar veremos que a receita dentro da
cozinha tem o status de um texto sagrado que nos reduz agrave condiccedilatildeo de seus exagetas
independentemente do grau de preparaccedilatildeo que tenhamos nessa singular teologia alimentarrdquo
(DOacuteRIA 2009 p142) Esse respeito ao texto sagrado eacute de certa forma o cumprimento da
memoacuteria coletiva transmitida atraveacutes dos documentos escritos denominados receitas ao longo do
tempo nessa transmissatildeo ocorrem transformaccedilotildees na forma de execuccedilatildeo dos alimentos
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conforme as modificaccedilotildees culturais de cada eacutepoca ou seja cada periacuteodo e lugar tem seu modo de
interpretar e de realizar as receitas culinaacuterias de acordo com os produtos oferecidos e com as
teacutecnicas vigentes Doacuteria menciona
Por isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculos e as modificaccedilotildees que
introduzimos nas receitas satildeo apenas formas do patildeo continuar existindo mediante as
transformaccedilotildees das receitas Por isso quando seguimos agrave risca uma receita de patildeo natildeo
queremos fazer o patildeo mas uma versatildeo do patildeo que uma tradiccedilatildeo qualquer elaborou
(DOacuteRIA 2009 p147)
Tecidas as consideraccedilotildees a respeito do fazer culinaacuterio consolidado pela memoacuteria coletiva
vale refletir sobre o modo como ele eacute vivenciado atraveacutes da memoacuteria individual Ao contar sobre
a chimia de uvas de sua avoacute apontamos que assistir a seu modo de praticaacute-la foi para a autora o
percurso para aprender a fazecirc-la O lsquocomo-se-fazrsquo guarda as lembranccedilas oriundas da praacutetica
vivenciada pelo ofiacutecio dos cinco sentidos e pelo assistir aos gestos do corpo como os giros lentos
da colher de pau feitos pela avoacute E por tantas outras avoacutes matildees e tias
Assim a memoacuteria coletiva de uma receita culinaacuteria a chimia de uvas Isabel na maneira
como era repetida por muitas pessoas de uma eacutepoca tornou-se tambeacutem memoacuteria individual
Passou a ser parte da identidade da autora do blog pois representa um ponto de identificaccedilatildeo com
sua avoacute pela recordaccedilatildeo marcante de assisti-la fazendo esse doce por isso decidiu fazecirc-lo tempos
depois de seu falecimento seguindo as lembranccedilas do seu fazer A memoacuteria a respeito dos doces
produzidos por ela eacute tatildeo significativa que estaacute registrada em uma crocircnica especiacutefica no jaacute citado
Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e Doccediluras lsquoAs deliacutecias nos vidros de cafeacutersquo a qual
reproduzimos abaixo
Na casa de praia da Voacute Leacuteia e do Vocirc Heacutelio havia milhares de encantos espalhados mas
a cozinha era meu favorito A mesa retangular generosa e lsquoconvidadeirarsquo contava um
universo de histoacuterias de faacutebulas e de sabores mas o que dava uma graccedila especial ao
conjunto era o armaacuterio proacuteximo agrave porta para a varanda Em suas estantes na parte
superior enfeites e guloseimas ali moravam os potes de rapadura de leite
constantemente abastecidos pela voacute Na parte inferior duas portas abriam um territoacuterio
uacutenico respirante Ali vidros de cafeacute daqueles grandes com tampas vermelhas
guardavam geleias chimias e compotas que ela fazia durante o veraneio
Deixaacutevamos para depois a ideia de pedir as receitas tiacutenhamos o propoacutesito de ficar ao
lado quando o panelatildeo estava no fogo tomando nota do lsquocomo-se-fazrsquo mas sem muita
obstinaccedilatildeo Afinal de contas a Voacute estava ali e era a uacutenica que sabia o tim-tim por tim-
tim do ponto das cores dos cheiros que seus feitos adquiriam a cada etapa Entatildeo
tiacutenhamos a fantasia de que ela estaria para sempre renovando as deliacutecias nos vidros de
cafeacute com alquimias de aboacutebora de laranja de uva [] nossa imaginaccedilatildeo percorria
lonjuras no tempo acreditando que seu fazer dos doces seria perene Agora refletindo
sobre por que natildeo peguei nenhuma de suas receitas por que natildeo anotava cada detalhe
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ocorre-me que esta era uma forma de garantir que ela permaneceria no ofiacutecio que eu
poderia eternamente aprender com ela a fazer suas reliacutequias
Hoje soacute o moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhas conhece o segredo daquelas
inquilinas (CARDOSO 2012 p62)
No texto lecirc-se lsquoo moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhasrsquo mas esse moacutevel eacute a
proacutepria memoacuteria guardando lembranccedilas representadas como lsquoo segredo daquelas inquilinasrsquo A
memoacuteria individual conteacutem segredos pontos que com o passar do tempo natildeo satildeo contados de
acordo com a realidade vivida mas apenas com aquela lembranccedila que permanece atraveacutes das
imagens e de sentimentos muito do que foi percebido nos escapa deixando as cenas como se as
viacutessemos atraveacutes de um vidro embaccedilado Esses satildeo os lsquosegredosrsquo que as portinhas do moacutevel da
cozinha silenciam
Nesse aspecto retomamos a consideraccedilatildeo de Eugegravene Minkowski sobre a memoacuteria
quando esse autor menciona que ldquo[] a lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a
tonalidade emotiva com que este foi percebidordquo (MINKOWSKI 2004 p143) Entende-se assim
que a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos recordaremos dela
no futuro porque eacute assim que a conhecemos
Esses registros existem na memoacuteria e assim constituem parte da consciecircncia do
indiviacuteduo sobre si mesmo Satildeo lembranccedilas que colaboram com a construccedilatildeo da identidade da
autora do texto Chimia da uva Isabel memoacuterias e receita pois ligam-na agrave identificaccedilatildeo com a
avoacute e seu legado culinaacuterio Tal aspecto corrobora o que apresentamos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica
do presente capiacutetulo
As memoacuterias individuais vinculadas agrave cozinha tecircm outro elemento a ser destacado nos
cadernos de receitas muitas vezes haacute referecircncia no tiacutetulo das mesmas a quem fazia tal prato ou
tal doce como especialidade identificando a receita a seu lsquodonorsquo como exemplo cito a lsquotorta de
palmito da Dona Mimi Mororsquo e a lsquopizza de sardinha da Voacute Leiarsquo Satildeo sabores associados agraves
lembranccedilas que temos das proacuteprias cozinheiras como se o saborear e o lembrar de quem
produzia o alimento fossem recordaccedilotildees acopladas
Os tiacutetulos das receitas fazem-nos evocar essas personagens da histoacuteria pessoal Os nomes
presentes no caderno identificam figuras de relevo na vida de quem o guarda assim esse faz
tambeacutem o papel de um aacutelbum de recordaccedilotildees Destacamos nas paacuteginas do livro Pequeno
alfarraacutebio de acepipes e doccediluras que o lsquobolo de melado da Anildarsquo natildeo eacute uma receita qualquer
de bolo de melado mas aquela da qual a autora tem determinada lembranccedila perpetuada pelo
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colorido afetivo lembra-se do momento em que saboreou a receita pela primeira vez da Anilda
sua autora da cozinha em que o bolo era feito e ateacute mesmo do aroma que deixava na casa apoacutes
sair do forno A receita pode tornar-se entatildeo a narrativa das experiecircncias e das pessoas que
fazem parte delas atraveacutes da memoacuteria que nos permite acessar
Muitos livros de temas culinaacuterios satildeo memorialiacutesticos em acircmbito nacional e
internacional Esse elemento confirma a relaccedilatildeo da cozinha com o sujeito que comete nela seus
atos culinaacuterios mais iacutentimos esta constituiraacute o espaccedilo de memoacuteria de quem teve ali ou em outras
cozinhas de sua vida vivecircncias a serem contadas A outras pessoas ou a si mesmo como faz
Antocircnio ao rememorar sua histoacuteria familiar e pessoal enquanto prepara o arroz para o almoccedilo de
famiacutelia
Na seccedilatildeo seguinte apresentamos a anaacutelise da primeira obra do corpus dessa Dissertaccedilatildeo
de Mestrado O arroz de Palma a fim de propor a relaccedilatildeo entre a cozinha e o fenocircmeno da
memoacuteria a partir dos fragmentos escolhidos
14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA
A obra de Francisco Azevedo O arroz de Palma segue a cronologia da lembranccedila a
narrativa dos acontecimentos de sua histoacuteria pessoal e familiar eacute feita atraveacutes da costura de
tempos costura essa em que o fio que une os tecidos eacute a memoacuteria O protagonista Antonio
narrador-personagem tem oitenta e oito anos e estaacute na cozinha da fazenda de sua infacircncia
preparando um almoccedilo para reunir toda a famiacutelia O prato a ser servido O arroz ofertado por sua
tia Palma aos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana na ocasiatildeo do casamento
Os gratildeos jogados aos noivos na igreja satildeo colhidos da pedra por Palma para a oferta do
presente Esses gratildeos atravessam o oceano de Portugal ao Brasil para onde o casal e Palma vecircm
apoacutes dificuldades financeiras no paiacutes de origem e atravessam tambeacutem as geraccedilotildees O arroz
fertilizaraacute a famiacutelia e suas histoacuterias Eacute para celebrar o aniversaacuterio de 100 anos do casamento dos
pais e do arroz presenteado pela tia que Antonio prepara o almoccedilo com o que ainda haacute do
presente para ser compartilhado com os familiares
A narrativa eacute contada por ele enquanto prepara o prato sob a forma de lembranccedilas do que
viveu e do que ouviu da Tia Palma nas longas conversas que tinham desde seus tempos de
crianccedila O protagonista vai alinhavando essas recordaccedilotildees narrando-as como forma de
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estabelecer uma linha de tempo desde o recebimento do arroz pelos pais ateacute o almoccedilo que
cozinha para a famiacutelia com o mesmo arroz cem anos depois Em alguns pontos da histoacuteria
parece tecer uma interlocuccedilatildeo com o leitor mas o elo entre a memoacuteria e os pensamentos eacute feita
de si para si
Pode-se dividir os trechos escolhidos para a presente anaacutelise em trecircs tempos o que
Antonio narra a partir da atualidade o que ouviu de Tia Palma e o que vivenciou Na primeira
condiccedilatildeo estaacute no presente nas duas outras no passado
Quando evoca as lembranccedilas vive-as com tamanha intensidade que sua narrativa traz
eventos antigos como se fossem atuais e refere-se a si mesmo do seguinte modo ldquoE eu menino
enrugado aqui nesta cozinha ainda viajo presente colorido do indicativordquo (AZEVEDO 2008
p17) O termo lsquomenino enrugadorsquo expressa a ligaccedilatildeo entre os tempos do presente e da memoacuteria
enquanto o lsquocoloridorsquo evoca a forccedila com que as lembranccedilas se manifestam trazendo ao presente
tonalidade marcante
Em toda a narrativa o uso das metaacuteforas culinaacuterias para a representaccedilatildeo de vivecircncias de
percepccedilotildees de sentimentos e de lembranccedilas eacute o elemento principal A cozinha eacute assim a forma
constante de expressatildeo do protagonista aleacutem de ser o espaccedilo fiacutesico onde o romance se
desenvolve pois eacute neste lugar que ele estaacute enquanto tece recordaccedilotildees
No primeiro capiacutetulo do livro Antonio fala durante o preparo do almoccedilo que serviraacute para
a famiacutelia entatildeo na atualidade Lembra-se lsquoTia Palma me ensinou a cozinhar eu era jovemrsquo
ilustrando as reflexotildees feitas na subdivisatildeo anterior sobre a relevacircncia da cozinha das avoacutes e das
tias para a memoacuteria individual pois essas satildeo figuras de referecircncia para a construccedilatildeo da memoacuteria
e por conseguinte da consciecircncia de si Diz Antonio
Eu aqui na fazenda Eu aqui na cozinha quatro e pouco da manhatilde Isabel ainda dorme o
sol ainda demora Eu aqui um velho de 88 anos Para os mais novos o Avocirc Eterno o
que natildeo teve comeccedilo nem teraacute fim o que jaacute veio ao mundo com essa cara enrugada Eu
aqui de avental branco picando o tempero verde Preparo o almoccedilo de famiacutelia Terei
forccedilas 88 dois infinitos verticais Eacute boa idade seraacute uma bela festa Tenho praacutetica Tia
Palma me ensinou a cozinhar eu era jovem (AZEVEDO 2008 p9)
Antonio provoca lsquoAs autoridades querem minhas digitais Elas estatildeo na massa do patildeorsquo o
que conduz a dois aspectos jaacute discutidos o papel da memoacuteria individual na identidade papel que
estaacute impregnado na massa do patildeo ou seja no ato culinaacuterio o outro elemento eacute aquele referido
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por Doacuteria quando menciona lsquoPor isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculosrsquo
expressando a feitura do patildeo como resultado da memoacuteria coletiva e da realizaccedilatildeo de rituais
Eacute na cozinha que eu desembesto e solto os bichos Eacute na cozinha que eu viajo sem
passaporte sem bilhete sem revista em aeroportos As autoridades querem minhas
digitais Elas estatildeo na massa do patildeo Querem minha foto Tenho vaacuterias de frente e de
lado com meus pais e irmatildeos e com os que vieram depois Retratos falados- em voz alta
a famiacutelia toda ao mesmo tempo Destrambelhada famiacutelia Sagrada famiacutelia []
(AZEVEDO 2008 p11)
Ainda nesse capiacutetulo ressaltamos um elemento caracteriacutestico da obra as expressotildees da
cozinha que constituem metaacuteforas agrave composiccedilatildeo das famiacutelias A frase emblemaacutetica empregada
pelo personagem lsquofamiacutelia eacute prato difiacutecil de prepararrsquo apresenta as reflexotildees de Antonio sobre
diferenccedilas e peculiaridades entre familiares Todas as alusotildees agraves divergecircncias entre eles satildeo feitas
tendo como eixo a linguagem usada na culinaacuteria Salientamos um aspecto a aproximaccedilatildeo entre
os termos culinaacuterios e as relaccedilotildees familiares representando cozinha e famiacutelia como estruturas
com pontos de convergecircncia
Preciso me concentrar Eacute essencial Por quecirc Ora que pergunta Famiacutelia eacute prato difiacutecil
de preparar satildeo muitos ingredientes Reunir todos eacute um problema- principalmente no
Natal e Ano-Novo Pouco importa a qualidade da panela fazer uma famiacutelia exige
coragem devoccedilatildeo e paciecircncia Natildeo eacute para qualquer um Os truques os segredos o
imprevisiacutevel Agraves vezes daacute ateacute vontade de desistir Preferimos o desconforto do estocircmago
vazio Preferimos o desconforto do estocircmago vazio Vecircm a preguiccedila a conhecida falta
de imaginaccedilatildeo sobre o que se vai comer e aquele fastio Mas a vida- azeitona verde no
palito- sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite O tempo potildee a mesa
determina o nuacutemero de cadeiras e os lugares Suacutebito feito milagre a famiacutelia estaacute
servida (AZEVEDO 2008 p12)
Durante o preparo do arroz mistura lembranccedilas e devaneios seguindo a comparaccedilatildeo
entre pratos culinaacuterios e famiacutelias
Reuacutena essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida Natildeo haacute pressa Eu
espero Jaacute estatildeo aiacute Todas Oacutetimo Agora ponha o avental pegue a taacutebua a faca mais
afiada e tome alguns cuidados Logo logo vocecirc tambeacutem estaraacute cheirando a alho e a
cebola Natildeo se envergonhe se chorar Famiacutelia eacute prato que emociona E a gente chora
mesmo De alegria de raiva ou de tristeza (AZEVEDO 2008 p12)
Entre ponderaccedilotildees e aconselhamentos Antonio fala de si mesmo ao leitor apresentando
sua visatildeo sobre si como um lsquovelho jaacute meio caducorsquo e lsquoum veterano cozinheirorsquo A alternacircncia
entre recordaccedilotildees do passado ideias do presente e diaacutelogo com o interlocutor eacute um dos elementos
que marca a narrativa
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Enfim receita de famiacutelia natildeo se copia se inventa A gente vai aprendendo aos poucos
improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia A gente cata um registro ali de
algueacutem que sabe e conta e outro aqui que ficou no pedaccedilo de papel Muita coisa se
perde na lembranccedila Principalmente na cabeccedila de um velho jaacute meio caduco como eu O
que este veterano cozinheiro pode dizer eacute que por mais sem graccedila por pior que seja o
paladar famiacutelia eacute prato que vocecirc tem que experimentar e comer Se puder saborear
saboreie Natildeo ligue para etiquetas Passe o patildeo naquele molhinho que ficou na
porcelana na louccedila no alumiacutenio ou no barro Aproveite ao maacuteximo Famiacutelia eacute prato que
quando se acaba nunca mais se repete (AZEVEDO 2008 p14)
Essa mistura de periacuteodos entre passado contado passado vivido e presente eacute marcada
pela referecircncia sobre o ingresso do arroz na histoacuteria da famiacutelia pelas matildeos de Tia Palma Os
tempos misturam-se ora mostrando Antonio em sua cozinha na atualidade ora Joseacute Custoacutedio
Maria Romana e Tia Palma em cenas vividas por eles
Quando Antonio se refere a um evento passado usando um verbo no presente pode-se
compreender que atraveacutes da memoacuteria ingressou em outro tempo de si mesmo ou de sua famiacutelia
A mistura entre lembranccedila e atualidade marca muitos dos relatos pois o limiar entre passado e
presente para o protagonista jaacute eacute impreciso assim como as experiecircncias que viveu e aquelas que
ouviu de Palma
Tia Palma era enfaacutetica ao descrever a cena o arroz que desabou sobre os noivos aacute saiacuteda
da igreja foi torrencial Eram punhados e mais punhados Chuva branca que natildeo parava
Nunca se viu tanta fartura em votos de felicidade (AZEVEDO 2008 p15)
-E tu dizes que Palma eacute que eacute a mal-educada
-Basta assunto encerrado Daacute-se o arroz para algueacutem Palma natildeo precisa saber
-O arroz eacute presente O arroz fica
-Pois estaacute bem Guarda esse maldito presente Com o tempo ele haacute de mofar se encher
de bichos e teraacutes que jogaacute-lo fora
-Ouve bem meu querido Joseacute Custoacutedio este arroz eacute amor e puro amor Natildeo haacute de se
estragar (AZEVEDO 2008 p21)
O protagonista recorda-se das vivecircncias com Tia Palma na cadeira em que essa lhe
contava as histoacuterias sobre o arroz e tantas outras Ouvir Palma era vivido por Antonio como se
assistisse a uma peccedila de teatro
A expressatildeo no rosto natildeo daacute a menor pista A histoacuteria de hoje seraacute triste Que vozes
faraacute Que cenaacuterio me apresentaraacute ao levantar as cortinas A sala de jantar Uma ruela de
Viana do Castelo Seraacute dia SeraacuteTia Palma pigarreia faz pequena pausa comeccedila com
gravidade
Primeiro ato Tarde da noite ela garante O coto de vela colado no tampo da mesa mal
ilumina os rostos Mamatildee e papai apenas alguns meses de casados natildeo tecircm o que
comer Nada nem vegetal nem fruta nem gratildeo nada Em voz baixa respeitosa mamatildee
sugere o arroz A resposta que recebe eacute a fuacuteria o murro na mesa e a gargalhada que
parece pranto
-O arroz de Palma
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Outra sonora gargalhada e laacutegrimas Papai parece fora de si
-O arroz de Palma nunca Castigo maldiccedilatildeo que seja Morro de fome mas aquele arroz
varrido do chatildeo nunca
-O arroz de Palma eacute abenccediloado Arroz plantado na terra caiacutedo do ceacuteu colhido da pedra
(AZEVEDO 2008 p26)
Tia Palma sempre contara a Antonio sobre o papel do arroz para sua histoacuteria familiar
fazendo do sobrinho o herdeiro de suas memoacuterias e do conhecimento a respeito da relevacircncia do
ingrediente para a continuidade da famiacutelia
-A fertilidade de vocecircs estaacute no arroz A benccedilatildeo que haacute onze anos ele recusou
-Eu jurei ao Joseacute que o arroz ficava mas natildeo seria comido Foi o combinado
-Pois eu natildeo jurei nada a ele
Mamatildee acha graccedila meio espantada meio com medo
-Palma Como vais fazer
-Primeiro ponho uma dose cavalar de purgante na comida dele que eacute pra desentupiacute-lo
por traacutes Depois trago-lhe uma comida bem levezinha para que ele se recupereUma
canjinha especial bem magrinha como ele gosta Uma xiacutecara de arroz eacute o quanto basta
-Uma canjinha especial
O trato estaacute feito Os risos e o demorado do abraccedilo selam a cumplicidade (AZEVEDO
2008 p38)
Antonio lembra-se da cena em que quando crianccedila assegurou agrave Tia Palma que gostava
de arroz ingrediente crucial na conduccedilatildeo da narrativa Mostrava assim apreciar as histoacuterias
sobre o arroz contadas por ela e sabia desde entatildeo que esse era um elemento decisivo em sua
famiacutelia
E a cadeira jaacute eacute palco e se estamos assim abraccedilados eacute porque eu tambeacutem estou em cena e
agora a fala eacute minha Eacute a minha estreia Inesperada e tatildeo esperada estreia
-Natildeo fique preocupada Eu gosto de arroz De qualquer jeito grudado ou solto eu gosto
Com toda a verdade possiacutevel encerro a minha parte
-Ateacute puro sem feijatildeo sem nada eu gosto juro (AZEVEDO 2008 p28)
Cabe salientar o papel que esse elemento exerce na histoacuteria De acordo com Maria Eunice
Moreira no ensaio lsquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmarsquo ldquo[] o arroz tem
funccedilatildeo especial na formaccedilatildeo do clatilde como o objeto maacutegico que acompanha a trajetoacuteria da
famiacuteliardquo (MOREIRA 2014 p162) Aleacutem de ser o ingrediente que vem de Portugal e atravessa
as geraccedilotildees eacute presente de matrimocircnio de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana e posteriormente de
Antocircnio e Isabel Eacute o fator que fertiliza o primeiro casal e que reuacutene o segundo no almoccedilo entre
as famiacutelias quando Antonio e Isabel comeccedilam sua aproximaccedilatildeo
Esse almoccedilo comeccedila a partir de uma carta de Antonio ao pai em que anuncia de forma
quase imperceptiacutevel o interesse por Isabel e ao final conta que estaacute levando ingredientes
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especiais na sua viagem agrave fazenda ldquoPS Estou levando boas postas de bacalhau azeite vinho
verde e outras tantas gulodices vindas de Portugalrdquo (AZEVEDO 2008 p85) Tia Palma como
sempre com a percepccedilatildeo aguccedilada aos movimentos dos familiares tem a ideia de aproveitar a
ocasiatildeo para convidar a famiacutelia de Isabel a um almoccedilo de confraternizaccedilatildeo
-Vocecircs natildeo fazem anos de casados no dia da chegada de Antonio Entatildeo Preparamos
um almoccedilo e convidamos o senhor Avelino dona Maria Celeste e Isabel que eacute quem
nos interessa
-Palma os Alves Machado nunca se sentaram conosco agrave mesma mesa Natildeo sei Sinto-me
um pouco constrangida Ainda mais aqui em nossa casa tatildeo modesta Satildeo muito bons e
generosos mas satildeo nossos patrotildees O mundo deles eacute laacute em cima na sede
-O Joseacute Custoacutedio e o senhor Avelino natildeo satildeo tatildeo amigos Entatildeo Qual eacute o problema
Acho inclusive que jaacute deveriacuteamos tecirc-los chamado haacute mais tempo Jaacute ouvi por diversas
vezes dona Maria Celeste dizer que o marido gosta do nosso Joseacute como a um irmatildeo
(AZEVEDO 2008 p87)
Tia Palma e Maria Romana comeccedilam assim a combinar o almoccedilo que ocorre com
sucesso Primeiro passo eacute o de abrir o saco de arroz o que as surpreende pelo estado saudaacutevel dos
gratildeos Sendo Isabel a filha dos donos da fazenda e Antonio o filho do funcionaacuterio de confianccedila
haacute um constrangimento inicial que se desfaz com a partilha da refeiccedilatildeo entre as famiacutelias O arroz
une Portugal e Brasil paiacuteses das duas famiacutelias atraveacutes de ingredientes portugueses e tempero
brasileiro mais uma vez estando representada a cozinha como metaacutefora
Essa ocasiatildeo cujo propoacutesito eacute aproximar famiacutelias e reduzir diferenccedilas representa a
comemoraccedilatildeo de aniversaacuterio de casamento de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana bem como a visita
de Antonio agrave fazenda entatildeo morando no Rio de Janeiro Paul Ricoeur qualifica a comemoraccedilatildeo
dentro da caracteriacutestica mundanidade em par com reflexividade Esta mundanidade estaacute
associada agrave realizaccedilatildeo de rituais conforme jaacute visto Antonio alterna a lembranccedila sobre o relato de
Palma a respeito da combinaccedilatildeo entre ela e sua matildee com sua proacutepria recordaccedilatildeo sobre o almoccedilo
-Perfeito Veja Palma pegue
-Ceacuteus Quase 40 anos e ainda saudaacutevel
Mamatildee beija as matildeos de tia Palma
-Amor verdadeiro natildeo se estraga Eacute para sempre
-Trecircs quilos eacute o quanto basta Daraacute um belo arroz de bacalhau
-Eacute impossiacutevel que Antonio e Isabel natildeo se resolvam
O almoccedilo eacute um sucesso Os Alves Machado chegam um pouco cerimoniosos mas logo
com tantos comes e bebes somos a mesma famiacutelia (AZEVEDO 2008 p88)
O papel do arroz na histoacuteria seraacute tambeacutem o de testemunhar a uniatildeo fiacutesica de Antonio e
Isabel agrave beira do lago antes do casamento
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-Eu sou o dono do arroz que tambeacutem eacute seu dona Isabel
-DonaPor acaso estamos casados
Sim estamos casados O Deus do azul sabe que estamos O lago menor sabe que
estamos O sangue e o arroz sabem que estamos (AZEVEDO 2008 p105)
Outra ocasiatildeo em que o arroz assume papel de ritual eacute quando o casal ganha de Joseacute
Custoacutedio Maria Romana e Palma o presente com nova dedicatoacuteria atualizada revisitando a
primeira feita por Palma Seraacute portanto o herdeiro do arroz ofertado pela Tia Palma a seus pais
junto a Isabel jaacute que o casal ganha o arroz como presente por seu matrimocircnio
Quero distacircncia de religiotildees mas respeito rituais Influecircncia de tia Palma admito Meu
cafeacute da manhatilde eacute sagrado O ritual eacute sempre o mesmo a hora a xiacutecara o pocircr o leite
primeiro o escurececirc-lo depois no ponto certo o abrir o patildeo o tirar o miolo
(AZEVEDO 2008 p127)
Individual ou coletivo o ritual eacute conexatildeo e cumplicidade [] Concluo que haacute sempre
algo de autoritaacuterio nos rituais Mas neles natildeo haveraacute tambeacutem algo que emociona Natildeo
haveraacute algo de belo e poeacutetico (AZEVEDO 2008 p127)
O arroz e todo o simbolismo que envolve na formaccedilatildeo dessa famiacutelia seraacute transmitido a
Antonio e Isabel em ocasiatildeo formal como desejam seus pais e Tia Palma
E o arroz Eacute o arroz Tia Palma quer que a entrega dessa vez ganhe algum ritual
Mamatildee e papai concordam Natildeo satildeo apenas os oito quilos que contam O presente de
casamento tem agora o peso da histoacuteria Portanto natildeo seraacute dado de modo informal
como aconteceu em Viana do Castelo (AZEVEDO 2008 p128)
O ritual de transmissatildeo do arroz eacute celebrado com a dedicatoacuteria atualizada e assinada por
seus pais e por Tia Palma eacute ela que faz a cerimocircnia de entrega ao sobrinho e agrave Isabel repetindo o
gesto feito na oferta do presente a Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu matrimocircnio
-Isabel e Antocircnio meus queridos este arroz que haacute quase 40 anos foi dado como
presente de casamento agrave minha cunhada Maria Romana e ao meu irmatildeo Joseacute Custoacutedio
por nossa vontade agora vos pertence Fazemos votos de que a tradiccedilatildeo continue e de
que todo o amor aqui contido chegue agraves geraccedilotildees futuras
Mamatildee potildee os oacuteculos lecirc a dedicatoacuteria atualizada
lsquoEste arroz-plantado na terra caiacutedo do ceacuteu como o manaacute do deserto e colhido da pedra- eacute
siacutembolo da fertilidade e do eterno amor Essa eacute a nossa benccedilatildeo
Palma Maria Romana e Joseacute Custoacutedio
Fazenda Santo Antocircnio da Uniatildeo em 13 de junho de 1946rsquo
Protegido pelo pano branco o arroz passa agraves nossas matildeos (AZEVEDO 2008 p130-
131)
Ainda no que concerne ao papel do ingrediente como elemento com atributo de ritual estaacute
a cena em que Antonio lecirc a receita em seu caderno do arroz de lentilhas de Tia Palma escrita
por ela com recomendaccedilotildees O aspecto a ser ressaltado nesse ponto estaacute principalmente na
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forma de apresentaccedilatildeo da receita que indica a importacircncia de recitar os trechos durante a feitura
do prato
Antonio meu querido lava bem as lentilhas em aacutegua corrente enquanto recitas
lsquotrepadeira trepadeirabeijo-te as folhas penadas e as flores violaacuteceas trepadeira
trepadeiranatildeo estou ao fundoestou ao frescoestou agrave beiraeacutes fortuna eacutes sauacutede eacutes
companheiratrepadeira trepadeira eacutes amor amigo eacutes paixatildeo verdadeirarsquo
Feito isso respira fundo trecircs vezes e solte o ar pela boca Deixa teu corpo sentir o
benefiacutecio Potildee as lentilhas em tacho com bastante aacutegua jaacute temperada de sal Leva ao
lume alto ateacute ferver Ao ferver abaixa o lume e deixa cozinhar ateacute que as lentilhas
estejam macias
Escorre a aacutegua da fervura E enquanto ela se vai diz com voz de certeza lsquoaacutegua
fervidaaacutegua de sal e de vidaaacutegua boa que seguetoma teu rumofertilizarsquo
(AZEVEDO 2008 p146-147)
A recomendaccedilatildeo de que faccedila as recitaccedilotildees ao cozinhar o prato traz a reflexatildeo sobre o
exposto por Mircea Eliade sobre a relevacircncia de recitar os mitos exposta anteriormente ldquo[]
recitando ou celebrando o mito da origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela atmosfera
sagradardquo (ELIADE 2011 p21) Haacute outra referecircncia a esse autor que merece ser salientada
pensando-se nos trechos a serem recitados como os cantos a que Eliade se refere ldquoA
recapitulaccedilatildeo atraveacutes dos cantos e da danccedila eacute simultaneamente uma rememoraccedilatildeo e uma
reatualizaccedilatildeo ritual dos eventos miacuteticos essenciais ocorridos desde a Criaccedilatildeordquo (ELIADE 2011
p27)
Laura Esquivel escreve no ensaio intitulado lsquoEl manaacute sagradorsquo em seu livro de ensaios
Iacutentimas suculencias-Tratado filosoacutefico de cocina sua perspectiva sobre a relaccedilatildeo entre a comida
e os rituais corroborando a importacircncia da cozinha como espaccedilo simboacutelico
Talvez natildeo haja muita diferenccedila entre falar de comida e falar de religiotildees Quase em
todas elas umas e outras se faz presente a divindade atraveacutes dos alimentos De fato natildeo
podemos negar que um rito obrigado de quase toda religiatildeo eacute o momento de comer e de
beber a deidade ou para a deidade O sentido profundo da alimentaccedilatildeo em alguma
medida tem a ver com nossa sede de eternidade cifrada na manutenccedilatildeo cotidiana da vida
Talvez por isso todos os deuses tenham deixado sua presenccedila contida nos alimentos
Nesse sentido nos alimentamos para viver e por viver O desfrute da comida tem
lampejos de vida eterna Mas natildeo soacute eacute fundamental o ato em si de comer tambeacutem o eacute a
cerimocircnia que implica preparar e compartilhar os alimentos A cerimocircnia ritual que se
realiza em torno da mesa eacute um ato de profunda e antiga significaccedilatildeo religiosa
(ESQUIVEL 2014 p77)
Entretanto natildeo apenas de comemoraccedilotildees eacute constituiacuteda a funccedilatildeo do arroz na narrativa
Algumas circunstacircncias satildeo provocadas pela representaccedilatildeo desse ingrediente na histoacuteria como as
diferenccedilas entre o protagonista e seus irmatildeos a tentativa de seus filhos Nuno e Rosaacuterio
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mexerem no gratildeo derrubando-o na vitrine do restaurante e o deflagrar das emoccedilotildees da cunhada
em relaccedilatildeo a Antonio quando esta rouba uma porccedilatildeo do arroz para ter um pedaccedilo de Antonio
consigo
-Senti forte ciuacuteme de Isabel Inveja raiva tudo E ainda por cima era obrigada a
esconder o que sentia Quando vocecirc fez a vitrine iluminada no restaurante soacute pra expor o
arroz passei a acreditar que seria possiacutevel ter ao menos um punhadinho daquela
felicidade
-Vocecirc ainda tem ele
-Natildeo
-Natildeo
-Fiz do meu jeito Preparei ele na aacutegua e sal e comi Antes pedi a Deus que me desse um
pouco de vocecirc tambeacutem Nem que fosse por um dia
Amaacutelia torna a recostar a cabeccedila no meu peito Nada mais eacute dito Ou se eacute dito natildeo deixa
registro Acho que cochilamos Levantamo-nos da cama com o desprendimento de um
encontro rotineiro (AZEVEDO 2008 p217)
Entre rememoraccedilotildees e devaneios Antonio entrelaccedila retalhos do passado agrave sua percepccedilatildeo
sobre o presente a finitude as lembranccedilas recentes que se confundem o fluxo de consciecircncia
Reflete sobre o que faz ali na cozinha preparando o almoccedilo familiar e ao mesmo tempo
reconstroacutei lembranccedilas antigas que compuseram sua atualidade
Se me perguntarem natildeo sei dizer o que comi ontem no almoccedilo Mas sou capaz de
reproduzir diaacutelogos inteiros da minha juventude quando esta fazenda ainda era do
senhor Avelino e eu ainda morava na casa laacute de baixo com tia Palma meus pais e meus
irmatildeos Gozado isso Vaacute entender Memoacuterias antigas Niacutetidas perfeitas cheias de
miacutenimos detalhes cheiros e sons ateacute Inclusive as experiecircncias ancestrais que natildeo vivi
as histoacuterias laacute de Portugal que me foram contadas todas aqui dentro de cor e salteado
Fatos recentes Coitados Vatildeo se segurando em mim como podem (AZEVEDO 2008
p143)
A constataccedilatildeo de seus 88 anos daacute ao protagonista a consciecircncia de sua condiccedilatildeo de idoso
aceitando as falhas de lembranccedila mas natildeo aquelas em sua capacidade como cozinheiro
experiente
Natildeo quero vocecirc metida aqui dentro da cozinha Por favor Isabel Natildeo eacute nada disso Eacute
porque vocecirc fica zanzando para laacute e para caacute Potildee a matildeo prova daacute palpite Me atrapalha
Fico doido natildeo quero Nem vocecirc nem ningueacutem Deixa que eu dou conta do recado
Tantos anos agrave frente laacute do restaurante chefe com vaacuterios precircmios natildeo basta Eacute preciso
mais Idoso coisa nenhuma Dispenso o eufemismo bobo Sou velho isso sim Eu sei
natildeo precisa dizer A vista natildeo ajuda muito nem as pernas nem os reflexos Mas espera
aiacute gagaacute ainda natildeo estou Tenho forccedila nas matildeos Acho que ainda posso mexer uma
panela Quatro panelotildees concordo Fica tranquila que natildeo vou me queimar Nem a
comida (AZEVEDO 2008 p144-145)
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A capacidade de Antonio com a cozinha comeccedilou com os aprendizados que teve com sua
tia na juventude e consolidou-se com a praacutetica Tal aquisiccedilatildeo lembra o referido sobre o par
memoacuteriahaacutebito na fenomenologia da memoacuteria proposta por Paul Ricoeur A capacidade
representa o elemento haacutebito pois eacute primordialmente construiacuteda a partir da atividade rotineira de
um atributo Talvez por isso na narrativa Antonio aceite as falhas de memoacuteria inerentes ao
envelhecimento mas natildeo a ideia de diminuiccedilatildeo daquilo que eacute seu por meacuterito por conquista com
esforccedilo dedicaccedilatildeo e sobretudo repeticcedilatildeo Antonio recorda-se de quando partiu para encontrar
trabalho na capital certo de que seguiria a atividade de cozinheiro
-O que eacute que significa isso agora Pra quecirc essa mala Antonio -Calma calma que eu natildeo vou pra guerra -Eu sabia Estaacutes indo embora por causa dessa moccedila Isabel E eacute tudo culpa da Palma
-Tenho 21 anos meu pai Sei muito bem o que faccedilo A vida do campo natildeo eacute para mim
Vou para a capital Farei amigos laacute E amigas
-Mas assim tatildeo de repente
-Trabalharei em restaurante conhecerei pessoas influentes ficarei conhecido e serei
proacutespero
-Para quecirc tanto entusiasmo Para lavar pratos Servir mesa
-Tambeacutem Mas natildeo eacute soacute isso Quero cozinhar Quem sabe um dia consigo abrir meu
proacuteprio negoacutecio
Papai se irrita
-Como cozinhar De onde tiraste essa ideia maluca (AZEVEDO 2008 p67)
O aprendizado com a tia eacute representativo da memoacuteria coletiva que se perpetua em um
grupo neste caso o familiar para a manutenccedilatildeo de um saber entre seus membros Essa memoacuteria
coletiva na histoacuteria eacute expressa pelo cozinhar como um conhecimento transmitido mas
principalmente pela histoacuteria que envolve o arroz nessa famiacutelia A narrativa dessa histoacuteria ao
longo das geraccedilotildees constitui tambeacutem a representaccedilatildeo dessa espeacutecie de memoacuteria na famiacutelia de
Antonio
Para aleacutem do que aprendeu com Tia Palma houve o que a praacutetica lhe ensinou
trabalhando em restaurantes ateacute que pudesse montar o proacuteprio negoacutecio Lembra-se de cenas do
percurso que seguiu ldquoO mar de mesas eacute convite agrave aventura Sigo Na copa e na cozinha o
barulho de louccedilas e talheres eacute intempeacuterie A vozearia eacute a marujada a postos que me recebe Esta eacute
a minha gente natildeo tenho duacutevidas Este eacute o meu barco e []rdquo (AZEVEDO 2008 p79)
Antonio tem em Palma seu referencial chamando por ela quando se vecirc em desafios
evocando lembranccedilas dos seus ensinamentos
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Transpiro o nervoso que vem de dentro Tia Palma por favor me ajuda lsquoO que o corpo
potildee para fora nos purificarsquo Saacutebia Tia Palma natildeo me falta nunca A cenoura e a batata jaacute
cortadas os tomates em rodelas e sem as sementes a cebola picada bem miudinha todos
nas respectivas vasilhas Mais alguma coisa Isso e aquilo Pronto acabei Natildeo me
canso Ao fim do expediente ainda haacute focirclego e entusiasmo de sobra Reluto em desfazer
o laccedilo do avental Jaacute (AZEVEDO 2008 p80)
Uma das cenas da obra que ilustra o entrelaccedilamento entre a memoacuteria individual e a
coletiva eacute no enterro dos pais de Isabel quando Antonio canta uma canccedilatildeo tradicional
portuguesa pensando fazecirc-lo em voz baixa como forma de homenagem Enquanto canta suas
memoacuterias tocam-lhe a ponto de natildeo perceber que o faz em voz alta E aqui estaacute o referido
entrelaccedilamento as demais pessoas presentes no enterro tambeacutem se emocionam e cantam em
coro Presentes ali estatildeo as proacuteprias lembranccedilas e aquelas de suas famiacutelias
Numa casa portuguesa fica bem
patildeo e vinho sobre a mesa
Quando agrave porta humildemente bate algueacutem
Senta-se agrave mesa coacutea gente
Fica bem essa fraqueza fica bem
que o povo nunca a desmente
A alegria da pobreza
estaacute nesta grande riqueza
de dar e ficar contente
(AZEVEDO 2008 p193)
Antonio segue a cantoria da muacutesica que pensa estar cantando para si Entatildeo percebe ter
cantado em voz alta e a emoccedilatildeo que causou Letra e muacutesica satildeo parte de sua memoacuteria individual
pela origem da famiacutelia e da memoacuteria coletiva dos presentes ao enterro que cantam com ele a
tradiccedilatildeo
Em algum momento tenho a impressatildeo de que algumas pessoas me acompanham e que
ao final todos ali cantamos juntos emocionados lsquoUma casa portuguesarsquo Volto ao enterro
com aplausos Reflexo condicionado eu mesmo bato palmas Isabel aos prantos me
beija agradecida pela homenagem inesperada Olho ao redor todos choram
copiosamente Natildeo eacute possiacutevel Seraacute que em vez de falar alto comigo mesmo cantei
alto Soacute pode ser (AZEVEDO 2008 p194)
Na volta do enterro o papel da comida em nutrir e acalentar eacute referido atraveacutes da
expressatildeo empregada por Antonio lsquopedimos a ela que nos aqueccedila algo para pocircr no estocircmagorsquo
como segue no trecho abaixo ldquoQuando chegamos em casa Nuno e Rosaacuterio jaacute estatildeo dormindo
Conceiccedilatildeo garante que ficaram quietinhos natildeo deram trabalho algum Pedimos a ela que nos
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aqueccedila algo para pocircr no estocircmago Ela diz que fez uma sopinha de legumes e jaacute nos chamardquo
(AZEVEDO 2008 p194)
O protagonista segue a narrativa evocando lembranccedilas reconstruindo impressotildees
reconhecendo a si mesmo atraveacutes da costura de retalhos da memoacuteria Estaacute em sua cozinha mas
viaja para muitos periacuteodos de sua vida visita a si mesmo em muitas eacutepocas lembra dos pais da
tia dos sogros dos irmatildeos dos filhos ateacute o momento atual Entatildeo na cozinha da fazenda aos 88
anos prepara com esmero os gratildeos de memoacuteria restantes em cozimento nas panelas Antonio
aguarda o encontro do passado com o presente no almoccedilo de famiacutelia Quando esse acontece
todos nas mesas entusiasmo e lembranccedila espalham-se na famiacutelia
Benccedilatildeo vivermos o bastante para poder dividi-lo assim irmatildemente sem conta de
padeiro nem laacutepis engatilhado atraacutes da orelha Olha soacute a cara da Leonor e a do Nicolau e
a do Joaquim Velhos bobos Nem sonhavam que ainda iam provar do arroz de Tia
Palma E agora choram desse jeito Natildeo eacute cebola nada que eu sei Eacute muita lembranccedila e
sonho tudo misturado agrave moda da casa Fiz de propoacutesito para pegar vocecircs de surpresa E
para a Amaacutelia - me pergunto- que gosto teraacute esse segundo arroz Qual o sabor de um
arroz assim permitido e compartilhado A garotada pode achar que somos velhos gagaacutes
e que essa histoacuteria eacute pura invencionice Impossiacutevel um arroz durar tanto a ciecircncia isto a
ciecircncia aquilo Eu natildeo ligo a miacutenima Vocecircs ligam Entatildeo oacutetimo Vamos comer agrave
vontade que haacute arroz para todos Joaquim meu irmatildeo me passa o azeite (AZEVEDO
2008 p352)
No trecho seguinte ao perguntar-se lsquoquantas vezes maisrsquo o protagonista expotildee sua
percepccedilatildeo quanto agrave finitude o tempo que ainda teraacute para novas cenas como aquela ldquoNoacutes
adultos continuamos em volta das mesas agraves voltas com as lembranccedilas Porque nos apetecem
repetimos o doce repetimos o vinho repetimos as histoacuterias Quantas vezes maisrdquo (AZEVEDO
2008 p356)
Ao longo da narrativa Antonio evoca histoacuterias lembranccedilas que lhe surgem
espontaneamente acionadas por outras por devaneios e por emoccedilotildees De acordo com Maria
Eunice Moreira em seu ensaio
A memoacuteria de Antonio organiza a configuraccedilatildeo caoacutetica da accedilatildeo externa dando um
sentido ao amontoado de fatos e episoacutedios jaacute vividos Nessa seleccedilatildeo privilegia natildeo a
memoacuteria anotada e escrita em cadernos ou diaacuterios mas aquela mais viva mais seletiva e
mais afetiva (MOREIRA 2014 p169)
No referido ensaio o fragmento acima corresponde agrave reflexatildeo de Antonio sobre a forma
como suas lembranccedilas lhe aparecem
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A memoacuteria que vai para o diaacuterio fica toda arrumadinha linear dia mecircs e ano Agraves vezes
horas e ateacute minutos constam do registro Mas quando velho a gente vai e consulta o
caderno se espanta com o montatildeo de coisa que jaacute nem faz sentido e estaria apagado natildeo
fosse a tinta A memoacuteria puxada da cabeccedila natildeo Eacute esforccedilo de selecionar soacute o que presta
o que nos eacute querido Natildeo eacute discurso ensaiado e lido Eacute fala de improviso com todos os
erros e tropeccedilos que a ousadia pode causar (AZEVEDO 2008 p248)
O que Antonio estaacute referindo eacute o conjunto de suas lembranccedilas na despensa da memoacuteria
aquelas que o identificam por constituiacuterem etapas de sua vida atraveacutes delas se reconhece
assume a consciecircncia de si Mesmo com o embaralhamento entre lembranccedilas e devaneios o
protagonista faz um balanccedilo de sua existecircncia enquanto prepara o almoccedilo familiar Estaacute na
cozinha porque esta eacute seu refuacutegio seu lugar no mundo Prepara o arroz para compartilhaacute-lo
assim como sua Tia Palma partilhava com ele suas histoacuterias sentada na quarta cadeira Os
trechos a seguir representam com nitidez o papel da comida agrave mesa para Antonio Mais uma vez
estatildeo presentes as lembranccedilas de tempos vividos e o arroz no prato como na frase lsquoo arroz tem
que vir sempre na frentersquo
A descriccedilatildeo de comidas caseiras do esmero de Conceiccedilatildeo ao arrumar a mesa da atitude
de Isabel em servi-lo todos satildeo elementos construiacutedos ao longo do tempo e tecircm como raiz as
experiecircncias familiares transformadas em memoacuteria O lsquocheiro gostoso da comidinha caseirarsquo eacute o
elemento sensorial que o acolhe na atmosfera de casa e simultaneamente o leva a viajar em suas
lembranccedilas O lsquoalmoccedilo de famiacutelia cotidianorsquo eacute o elemento que conduz o protagonista a cenas
semelhantes no passado como quando seus filhos eram crianccedilas Refeiccedilatildeo para Antonio eacute a
famiacutelia na mesa Assim a comida e a famiacutelia mais uma vez estatildeo vinculadas para ele como
sinocircnimos De recordaccedilatildeo de aconchego de partilha do gosto e do cheiro bom
Conceiccedilatildeo chega e anuncia que o almoccedilo estaacute indo para a mesa Graccedilas a Deus Meu
estocircmago jaacute estaacute roncando Puxo Rosaacuterio do sofaacute
-Vamos
E vamos todos levados pelo cheiro gostoso da comidinha caseira Ao nos sentarmos agrave
mesa impossiacutevel natildeo reparar no costumeiro apuro O caimento da toalha Os pratos os
copos os talheres afastados na medida certa Os guardanapos bem dobrados agrave esquerda
A cesta de patildees posta com arte Natildeo eacute almoccedilo para visitas Eacute almoccedilo de famiacutelia
cotidiano- esmero da Conceiccedilatildeo que ama tudo o que faz Laacute vem ela de novo da
cozinha pousa do meu lado a terrina do feijatildeo fumegando me daacute aquele sorriso de
missatildeo bem cumprida
-Botei bastante paio Ontem o senhor ficou revirando a concha dizendo que dava
precircmio para quem encontrasse um (AZEVEDO 2008 p311)
A cena pode ser compreendida sob a perspectiva de Laura Esquivel no ensaio jaacute referido
quando a autora exprime sua visatildeo sobre a comida e a partilha da mesa
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E ainda que natildeo sejamos religiosos creio que para nenhum de noacutes seraacute estranho pensar
que atraveacutes dos aromas que compartilhamos com nossos semelhantes dos sabores dos
alimentos e da substancial presenccedila da divindade neles os seres humanos podemos ter
dia apoacutes dia uma pequena antecipaccedilatildeo do paraiacuteso (ESQUIVEL 2014 p78)
A ideia de Esquivel sobre a lsquoantecipaccedilatildeo do paraiacutesorsquo coincide com o sentimento de
Antonio sobre a cozinha Para o protagonista essa representa a casa o sabor a famiacutelia Simboliza
o que Gaston Bachelard refere na frase ldquoPode-se demonstrar as primitividades imaginaacuterias
mesmo a respeito desse ser soacutelido na memoacuteria que eacute a casa natalrdquo (BACHELARD 2012 p47)
Pode-se complementar essa frase com outra ideia do autor ldquo[] a casa natal eacute uma casa
habitadardquo (BACHELARD 2012 p33) Ao estar na cozinha ou na sala de jantar ao estar sentado
agrave mesa a emoccedilatildeo eacute a de estar em casa naquela que primeiro conheceu como casa a fazenda A
casa natal eacute e sempre seraacute habitada pelas lembranccedilas Esse espaccedilo corresponde a um lugar de
memoacuteria conforme referido por Ricoeur A casa natal eacute um ser soacutelido na memoacuteria porque ela
conteacutem as primeiras vivecircncias afetos impressotildees Eacute ali que a vida comeccedila que se enraiacuteza dali
vecircm as lsquoprimitividades imaginaacuteriasrsquo e as lembranccedilas que tornaratildeo o sujeito em quem ele eacute pela
consciecircncia de si que a memoacuteria propicia
Minha mulher eacute paciente entende como funciono Ela pega meu prato e vai me
servindo um pouco disto um pouco daquilo mas antes de tudo o arroz- indispensaacutevel-
e o feijatildeo por cima Eu sei que natildeo eacute o certo Mas eacute assim que eu gosto o feijatildeo por
cima nunca do lado Se puser o feijatildeo primeiro e depois o montinho do arroz tambeacutem
implico O arroz tem que vir sempre na frente depois o feijatildeo molhando aiacute sim eacute
perfeito Sempre ensinei bons modos aos meus filhos mas nunca os proibi de misturar a
comida toda no prato de uma vez Se eu misturo como proibir Ai se fizeacutessemos isso na
frente de Isabel Bom nem pensar Em dias de ensopadinho de vagem com carninha
moiacuteda ou de chuchu com camaratildeo era verdadeiro supliacutecio Nuno e eu sofriacuteamos
horrores Queriacuteamos porque queriacuteamos misturar tudo de uma vez com o arroz Natildeo
podiacuteamos Era proibido por lei Isabel natildeo transigia Tiacutenhamos que ir misturando aos
pouquinhos puxando com o garfo e aiacute levar agrave boca Depois voltar misturar mais um
pouquinho puxando com o garfo e tornar a levar agrave boca Um sacrifiacutecio Depois de
nossos filhos adultos a lei do proibido misturar foi abolida E cada um liberado para
comer do seu jeitinho informal
Jaacute servido espeto o paio deliacutecia e retomo a conversa (AZEVEDO 2008 p314)
Chega a hora de Antonio apoacutes revisitar histoacuterias vividas e contadas pela memoacuteria Na
cozinha representaccedilatildeo de sua casa natal ele falece ldquoSempre acompanhamos com olhos de
saudade o balatildeo que sobe ceacuteu afora e se mistura no azul Acontece com todos Depois satildeo soacute
histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras Famiacutelia eacute prato que quando se acaba nunca
mais se repeterdquo (AZEVEDO 2008 p361)
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Histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras elementos que aludem agraves lembranccedilas
Mais uma vez a cozinha eacute representada ao falar-se em memoacuteria atraveacutes das lsquoreceitas caseirasrsquo
Essas satildeo registros de quem habitou os campos de forno-e-fogatildeo e deixou por escrito o como-
se-faz O seu
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2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE
A sacola de crochecirc da voacute era perturbadora da ordem ali de dentro ela tirava varenikes
beigales mondales knishes strudels um perfume que ia nos buscar no mais remoto
quarto da casa pratos fundos de louccedila branca e pesada transbordantes de fartura Noacutes
nos reuniacuteamos em torno da mesa em torno da voacute em torno dos pratos - em torno da
comida que ela tratava como uma cerimocircnia de milagre E ela abria os braccedilos para nos
acarinhar a todos e nos beijava com os laacutebios finos o haacutelito de menta e pronunciava
palavras boas palavras de quem traz alviacutessaras feliz como quem pode dar o seio a um
bebecirc minhas crianccedilas a voacute trouxe comida pra vocecircs (MOSCOVICH 2006 p93-94)
Prazer eacute sentimento do corpo Bem-estar e gozo que se quer repetir Puro deleite acorda
os sentidos Onda repentina epifania de cores aromas gostos texturas sons Nasce sem aviso
deixa marcas faz pulsar em ritmo de quero-mais Nasce do encontro amoroso do saborear de um
prato e de tantas outras vivecircncias Estaacute na taccedila do vinho escuro e aveludado na mordida do mil-
folhas ao mesmo tempo crocante e macio O prazer desperta como se fosse dia novo entusiasma
provoca ecoa em cada parte nossa Comida eacute coisa prazerosa toca a vida sensorial alegra ceacutelulas
e anima A cozinha espaccedilo fiacutesico e territoacuterio afetivo evoca gostos desejos lembranccedilas prazer
O preparo das receitas o deleite dos pratos a partilha da mesa as conversas amenas durante a
refeiccedilatildeo todos inerentes ao universo culinaacuterio E depois vem a culpa a roupa que aperta o
regime por ordens meacutedicas Culpa e prazer inimigos entrelaccedilados
21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE
Por que sou gorda mamatildee eacute o romance escrito por Ciacutentia Moscovich em 2006 e
publicado pela Editora Record com uma narradora em primeira pessoa de quem o leitor natildeo
sabe o nome ao longo da obra Ela passa a limpo as histoacuterias de famiacutelia de origem judaica e a
sua proacutepria histoacuteria em uma carta para sua matildee Dessa o leitor tambeacutem natildeo sabe o nome da
primeira agrave uacuteltima paacutegina
O conflito central apresenta a dificuldade da narradora-personagem com seu aumento de
peso vinte e dois quilos em quatro anos e o sofrimento em face da necessidade de fazer dieta
Natildeo se trata apenas das privaccedilotildees de ter de fazer dieta Trata-se da dor emocional por precisar
fazer dieta de novo A repeticcedilatildeo de situaccedilotildees em que o engorde esteve presente em sua vida
ligado ao papel do comer em sua famiacutelia faz com que acuse sua matildee muitas vezes pela situaccedilatildeo
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a que chegou Por essa oferecer comida demais Natildeo Por oferecer afeto de menos Ao contraacuterio
da matildee a Voacute Magra sua avoacute materna eacute muito carinhosa com ela e seus irmatildeos e aleacutem disso
sempre aparece com a sacola de crocheacute plena de doces da cozinha judaica O papel da avoacute parece
ser o de suprir as faltas da matildee e as supre em excesso no que tange ao reforccedilo da gula
A narrativa pode ser a expressatildeo de uma catarse atraveacutes da escrita uma decisatildeo
confessional da narradora ou sua atitude ora acusatoacuteria ora carente na direccedilatildeo de sua matildee Em
uma mistura de cada uma dessas formas o livro traz o entrelaccedilamento das memoacuterias das
emoccedilotildees e das etapas objetivas em sua jornada de emagrecimento como narra a protagonista no
proacutelogo ao expor para sua matildee que a escrita seraacute dirigida a ela
Tenho medo mas estou prestes a pocircr um ponto final e a aticcedilar a pluma das lembranccedilas
Luta contra o gelo do tempo O proacutelogo em seus estertores depois comeccedila
Mamatildee me endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar
esse territoacuterio metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora
Quero voltar a ter um corpo
Haacute um livro a ser escrito e nele os fatos seratildeo fruto da prestidigitaccedilatildeo ainda que
imperfeita Respostas possiacuteveis ilusatildeo para secar as maacutegoas e o corpo O proacutelogo
termina Depois jaacute iniciou Comeccedilo num ponto de intrerrogaccedilatildeo
Por que sou gorda mamatildee (MOSCOVICH 2006 p19)
A narrativa eacute contada em vinte e cinco capiacutetulos duzentas e cinquenta e uma paacuteginas
vinte e dois quilos O primeiro capiacutetulo apresenta em primeira pessoa um entrelaccedilamento
essencial ao conflito da personagem a histoacuteria da origem de sua famiacutelia na Europa passando
fome em vilarejos judeus a histoacuteria de sua Voacute Magra com o prazer da comida e sua proacutepria
histoacuteria de infacircncia com os irmatildeos na hora das refeiccedilotildees
Segue-se ainda nesse capiacutetulo um desabafo com uma lista de aspectos pejorativos do
sujeito gordo Satildeo frases que costumamos ouvir com grande frequecircncia sobre os indiviacuteduos com
excesso de peso e que eles mesmos muitas vezes referem em tom entre o mea culpa e a auto
ironia Esse eacute o tom usado pela narradora falando em sua voz o que atribui ao olhar alheio
Depois de apontar os defeitos dos gordos conta do comeccedilo de seu sacrifiacutecio com as restriccedilotildees
alimentares
Em seguida o escaacuternio daacute lugar agrave lembranccedila da morte de seu pai as consequecircncias que
tal perda teve na famiacutelia e sobretudo na relaccedilatildeo de sua matildee com os filhos Eacute o comeccedilo da voz
acusatoacuteria da narradora trazendo agrave tona fatos e sofrimentos na relaccedilatildeo familiar Aparece a
ausecircncia da matildee no cumprir de sua funccedilatildeo afetiva Seguem-se capiacutetulos de apresentaccedilatildeo da Voacute
Gorda do lado paterno da Voacute Magra e de sua histoacuteria frustrada de amor por um violinista russo
59
do avocirc do pai dos irmatildeos de si mesma em vaacuterios tempos da vida e da balanccedila Presente e
passado alternam-se disputando espaccedilo nas paacuteginas porque para a personagem em sua carta agrave
matildee o passado eacute parte do peso em quilos de seu presente
Enquanto passa a limpo sua histoacuteria e suas maacutegoas a narradora vai contando vitoacuterias e
deslizes na dieta dores pela restriccedilatildeo alimentar e alegrias por conseguir emagrecer lentamente A
histoacuteria familiar evolui o momento em que o excesso de peso na infacircncia tornou-se foco de
preocupaccedilatildeo e de imposiccedilatildeo da dieta por parte do pai aparece como fato de destaque A
narradora em zigue-zague transita entre os periacuteodos de vida para encontrar respostas ora em
conversas dirigidas agrave matildee ora em diaacutelogos com seu proacuteprio mundo interno A escrita para a matildee
eacute em essecircncia um passar a limpo para si mesma a proacutepria histoacuteria de seu corpo Gula prazer
afeto e ausecircncia dores e perdas inclusive de maacutegoas e de peso eis o transcorrer da histoacuteria
narrada Esses elementos satildeo o fio condutor da narrativa das primeiras paacuteginas ateacute a evoluccedilatildeo ao
epiacutelogo Parte desse reproduzo abaixo
Mamatildee natildeo preciso perdoaacute-la por nada Natildeo me incomodo mais pela porccedilatildeo presente de
sua lavra e todo o esforccedilo de natildeo mais me incomodar foi por amor que eacute minha cura
Mais cinco quilos a bordo de uma bicicleta cor-de-rosa seratildeo perdidos Recuso-me a
remexer ainda mais no passado Natildeo se angustie mamatildee Noacutes duas sabemos que natildeo
vale a pena-falta que a senhora serenize seus dias e deixe tambeacutem de remexer o passado
Depois que eu colocar o ponto final por favor mamatildee natildeo deixe de recompor sua
alegria seu desejo e sua piedade A senhora perdoaraacute a vida E eu terei esquecido que
cheguei ateacute aqui apesar da senhora
[hellip] (MOSCOVICH 2006 p250)
Destaca-se sobretudo a verossimilhanccedila interna da obra Entre o proacutelogo e o epiacutelogo haacute
muitas histoacuterias contadas em uma soacute compondo uma linha de tempo na cronologia do calendaacuterio
e outra dentro da personagem Afinal de contas o tempo interno tem um ritmo proacuteprio que
obedece acima de tudo agraves leis da memoacuteria
A narradora-personagem consegue compreender suas interrogaccedilotildees ao entremear passado
e presente histoacuteria familiar e individual A narrativa multifacetada natildeo sai dos trilhos e eacute possiacutevel
acompanhar o diaacutelogo da personagem consigo mesma atraveacutes da carta para sua matildee A
descoberta dos elementos alusivos agrave presenccedila e agrave falta de prazer alimentar que permeiam a obra
conduzem ao primeiro aspecto do presente capiacutetulo o que eacute o prazer afinal
60
22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL
Para o psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers o prazer no campo da Fenomenologia
Psiquiaacutetrica pode ser compreendido como a realizaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees
orgacircnicas Para o referido autor o prazer consiste no equiliacutebrio psiacutequico na satisfaccedilatildeo e no bem-
estar Jaacute conforme os autores do artigo Psicopatologia do Prazer Lorenzo Pelizza e Franco
Benazzi o prazer pode ser considerado um fenocircmeno psiacutequico de muacuteltiplas facetas Em termos
geneacutericos esse eacute um forte sentimento que corresponde agrave percepccedilatildeo de uma condiccedilatildeo positiva
fiacutesica ou mental proveniente do organismo
As pesquisas que abordam o prazer satildeo recentes Apenas haacute algumas deacutecadas a ciecircncia
passou a contribuir para evidenciar os efeitos beneacuteficos desse fenocircmeno tanto no sentido proacute-
ativo (como fator que favorece o bem-estar psico-fiacutesico do indiviacuteduo e que promove o processo
de cura da doenccedila) quanto no protetor (como elemento fundamental que fornece ao sujeito os
recursos necessaacuterios para afrontar e superar as experiecircncias negativas e para prevenir o risco de
adoecer) (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
Do ponto de vista do estudo do prazer como elemento saudaacutevel destacamos seu papel
como fator de importante valor motivacional sob o enfoque das teorias evolucionistas
Reduzindo ao maacuteximo a explicaccedilatildeo seria possiacutevel entender seu papel da seguinte forma como
espeacutecie sentimos prazer na alimentaccedilatildeo e na relaccedilatildeo sexual para que mediante esta sensaccedilatildeo
tenhamos estiacutemulo para nutrirmo-nos e procriarmos A gratificaccedilatildeo do ceacuterebro que ocorre
atraveacutes da experiecircncia prazerosa motiva o indiviacuteduo a repetir os comportamentos que a tornam
viaacutevel como o comer Forma-se assim um ciclo no qual a comida promove prazer e este motiva
a procuraacute-la pela resposta cerebral gerando novamente o prazer e assim ocorre a manutenccedilatildeo do
comportamento com sucessivas repeticcedilotildees A propoacutesito desse ciclo os referidos autores
esclarecem
O mecanismo operante de reforccedilorecompensa age em sentido evolucionista para
conduzir os comportamentos adotados na direccedilatildeo de escopos adaptativos que sejam uacuteteis
para garantir a sobrevivecircncia do indiviacuteduo (por exemplo busca de comida ou de aacutegua)
eou a conservaccedilatildeo da espeacutecie (condutas reprodutivas) Para que atinja a eficaacutecia o
estiacutemulo de reforccedilo deve ser capaz de ativar as instacircncias psiacutequicas do prazer e o sistema
neurobioloacutegico de gratificaccedilatildeo cerebral (circuitos dopaminergicos mesoliacutembicos) sendo
deste modo vivido como experiecircncia prazerosa satisfatoacuteria e assumindo assim um
importante valor motivacional (PELIZZA BENAZZI 2008 p298-299)
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Tal explicaccedilatildeo evolucionista eacute relevante para a compreensatildeo do prazer alimentar Como
espeacutecie devemos sentir prazer ao comer com o propoacutesito de termos estiacutemulo para mantermos a
constacircncia de uma alimentaccedilatildeo regular O prazer eacute o elemento que torna possiacutevel esta constacircncia
O socioacutelogo e escritor brasileiro Carlos Alberto Doacuteria acrescenta um dado relevante nesse
sentido ao mencionar o autor de A fisiologia do gosto Jean Anthelme Brillat-Savarin que
publicou a obra em 1825 relevante na literatura gastronocircmica Nessa ao referir-se aos cinco
sentidos Brillat-Savarin acrescenta o sentido geneacutesico sobre o qual Doacuteria reflete em seu livro A
culinaacuteria materialista
Este uacuteltimo eacute o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro
sendo a sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecie Este sentido diz ele foi ignorado ateacute o
seacuteculo XVIII sendo anexado ao (ou confundido com o) tato Ora a reproduccedilatildeo da
espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo
a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo ao sexo e ao comer eacute o prazer a
busca do agradaacutevel e este eacute o sentido muito especial que ele pretende indicar como
responsaacutevel pela gastronomia (DOacuteRIA 2009 p190 grifo do autor)
Assim a relaccedilatildeo de prazer do indiviacuteduo com a comida eacute tambeacutem de acordo com Brillat-
Savarin uma estrateacutegia de sobrevivecircncia da espeacutecie assim como o sexo A sensaccedilatildeo prazerosa
ligada ao alimento refere-se principalmente agrave percepccedilatildeo deste como tendo gosto agradaacutevel ou
seja ldquo[] aquilo que apraz aos sentidos mobilizados pela alimentaccedilatildeordquo (DORIA 2009 p192)
O estudo da obra de Carlos Alberto Doacuteria abre um campo de reflexatildeo relevante no que
tange ao fenocircmeno do prazer pois o autor o aborda pela perspectiva gastronocircmica referindo o
que torna um alimento prazeroso Ele menciona que de acordo com os modernos teoacutericos do
gosto ldquo[] o agradaacutevel que comemos depende do impacto favoraacutevel sobre todos os cinco
sentidosrdquo (DOacuteRIA 2009 p194)
Para explicar como um alimento se torna agradaacutevel ele comeccedila por definir o mundo
objetivo lsquoo mundo das coisas e das nossas aptidotildees fisioloacutegicas para percebecirc-lorsquo e o mundo
subjetivo lsquodos nossos valores crenccedilas e preferecircncias individuaisrsquo Entatildeo acrescenta o ponto
chave de sua reflexatildeo ldquoTomemos como hipoacutetese que o gosto se forma na relaccedilatildeo entre esses dois
mundos O gosto assim entendido eacute relacional e se refere ao que se passa em torno do ato
fisioloacutegico de comerrdquo (DOacuteRIA 2009 p194) A fim de aprofundar a ideia desta relaccedilatildeo expotildee
Ao explorar a noccedilatildeo de gosto partindo de sua dimensatildeo material isto eacute da relaccedilatildeo que
se estabelece entre o mundo e o homem por intermeacutedio do complexo aparato sensitivo
temos que entender tambeacutem que o gosto varia de indiviacuteduo para indiviacuteduo entre as
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diferentes idades de um mesmo indiviacuteduo entre as classes sociais de cultura para
cultura e de uma eacutepoca para outra na mesma cultura Sabemos tambeacutem que permanece
um misteacuterio como nasce o desejo intenso de se comer determinado alimento ou como a
monotonia de uma dieta se instaura de modo a repudiarmos o alimento apoacutes um certo
tempo Nada disso se explica por razotildees puramente fisioloacutegicas (DOacuteRIA 2009 p195)
Assim na relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o alimento agradaacutevel ao lsquocomplexo aparato
sensitivorsquo como define Doacuteria existem variaacuteveis como idade e cultura que interferem no modo
como a sensaccedilatildeo prazerosa eacute percebida Quanto ao aspecto cultural por exemplo o autor refere
O gosto partilhado por vaacuterias pessoas ndash sejam membros de uma famiacutelia de uma
comunidade de uma eacutepoca- sugere uma construccedilatildeo coletiva que natildeo se confunde com a
experiecircncia gustativa de cada um O caraacuteter afetivo da cozinha familiar eacute um modelo de
socializaccedilatildeo do gosto que todos conhecemos Ningueacutem faz determinado prato igual a
nossa matildee ou avoacute [] (DOacuteRIA 2009 p195)
Em diversas famiacutelias de uma dada geraccedilatildeo o lsquobife agrave milanesa da voacutersquo eacute emblemaacutetico em
representar a explicaccedilatildeo do autor Ao que parece o prazer reside no preparo pela avoacute mais do
que no prato em si A avoacute de cada famiacutelia seria a responsaacutevel pelo melhor bife agrave milanesa do
mundo de acordo com os respectivos netos Essa percepccedilatildeo reflete o que Doacuteria menciona como
lsquoo caraacuteter afetivo da cozinha familiarrsquo termo que coincide com o papel da Voacute Magra
personagem da obra em estudo neste capiacutetulo Outra consideraccedilatildeo relevante do autor acerca da
construccedilatildeo do universo do gosto eacute a de que este ldquo[] eacute expressatildeo da educaccedilatildeo do paladar e dos
demais sentidos conformados culturalmente para a apreciaccedilatildeo do que comemosrdquo (DOacuteRIA 2009
p196)
Deste modo eacute possiacutevel compreender que aprendemos a gostar do que eacute aceitaacutevel em
determinado contexto social e cultural entretanto temos em primeiro lugar a percepccedilatildeo
bioloacutegica atraveacutes dos cinco sentidos do que devemos levar agrave boca e daquilo que eacute necessaacuterio
evitar em termos de manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Pela aparecircncia e pelo olfato por exemplo um
alimento pode parecer prazeroso e entatildeo adequado ou repulsivo se apresentar sinais de bolor ou
de alteraccedilatildeo de suas caracteriacutesticas conhecidas A respeito dessa avaliaccedilatildeo sobre o que eacute
agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos com fins de alimentaccedilatildeo Doacuteria refere
O gosto caminha em meio a essas preferecircncias e rejeiccedilotildees ajudando a erigir barreiras
que demarcam os limites de determinada cultura ou mesmo as variaccedilotildees individuais
nessa mesma cultura Alimentos tabus natildeo devem ser tocados ou consumidos Por isso
seu sabor eacute tambeacutem repulsivo Assim as sociedades constroem um anteparo que protege
a cultura daquilo que ela considera lsquonatureza hostil (DOacuteRIA 2009 p196)
63
Se de um lado o prazer eacute o elemento bioloacutegico que impulsiona o indiviacuteduo para a
preservaccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do alimento (e da espeacutecie atraveacutes da coacutepula) de outro as
escolhas que condicionam a sensaccedilatildeo prazerosa no campo alimentar ultrapassam a dimensatildeo
corpoacuterea atingindo em boa parte das vezes a esfera cultural atraveacutes da construccedilatildeo coletiva do
gosto O autor apresenta neste aspecto a seguinte reflexatildeo
Podemos imaginar o homem como uma maacutequina bioloacutegica que se relaciona
integralmente com o mundo de tal forma que todos os estiacutemulos que ele internaliza
afetam a totalidade dessa maacutequina O nosso conhecimento estaacute no tato na audiccedilatildeo na
visatildeo no olfato no paladar e tudo isso eacute processado natildeo apenas diretamente como
experiecircncia pessoal mas no acoplamento que mantemos com seres da mesma espeacutecie
(DOacuteRIA 2009 p197)
De acordo com essa exposiccedilatildeo podemos gostar daquele alimento que eacute aceitaacutevel em
nossa cultura e em nosso meio para assim continuarmos pertencendo ao grupo de que somos
parte contemplando a noccedilatildeo que o autor estabelece como o lsquoacoplamento que mantemos com
seres da mesma espeacuteciersquo Ao sentir prazer nos sentimos impelidos a comer algo porque nos
desperta a sensaccedilatildeo agradaacutevel essa experiecircncia eacute em primeiro plano instintiva quando o ldquo[]
elo entre prazerdesprazer se estabelece como base do fenocircmeno da aprendizagem e da aversatildeo a
um sabor a partir do risco que sinaliza para o organismordquo (DOacuteRIA 2009 p205)
Em segundo plano gostamos do que aprendemos que podemos gostar de acordo com a
cultura em que estamos inseridos Nesse contexto cabe ressaltar o fenocircmeno da
neuroplasticidade atraveacutes do qual o ceacuterebro se molda a partir das experiecircncias a que eacute exposto
de acordo com tal ocorrecircncia os mecanismos cerebrais aprendem a responder a determinado
estiacutemulo e criam um espaccedilo de resposta ao mesmo quanto mais vezes exposto a ele Isso pode
acontecer no aprendizado de uma competecircncia como tocar um instrumento musical falar um
idioma ou ateacute mesmo naquele de um novo paladar Aprendemos a gostar de um alimento o que
faz com que a sensaccedilatildeo agradaacutevel obtida ao comermos nos faccedila querer repetir seu consumo
Surge entatildeo a perspectiva do prazer em seu percurso do ponto de partida sauacutede para o
ponto de chegada doenccedila De acordo com Benazzi e Pelizza os mecanismos neurobioloacutegicos
responsaacuteveis pela gratificaccedilatildeo cerebral alimentam-se do prazer e quanto mais recebem mais
demandam que o organismo lhes forneccedila mais e mais sensaccedilotildees prazerosas Essa condiccedilatildeo
manifesta-se apenas em alguns indiviacuteduos cuja carga geneacutetica e aprendizagem cultural
favoreccedilam os comportamentos ditos compulsivos por exemplo Nas pessoas propensas a tal
64
expressatildeo isso ocorre sucessivamente motivo pelo qual o prazer alimentar pode ser natildeo mais um
aliado da sauacutede e da sobrevivecircncia mas sim um algoz a partir de determinado momento Esse
ponto eacute quando o comer se torna excessivo fornecendo de modo incessante e crescente a
gratificaccedilatildeo prazerosa aos mecanismos cerebrais de recompensa
Desfaz-se assim a noccedilatildeo de prazer apresentada por Jaspers anteriormente referida
Quando haacute aumento das sensaccedilotildees prazerosas para saciar a demanda dos centros cerebrais de
gratificaccedilatildeo e natildeo mais para que o prazer esteja calcado lsquono equiliacutebrio psiacutequico e no bem-estarrsquo
pode-se compreender que esse deixou de cumprir sua funccedilatildeo na sauacutede
Quando uma cultura em amplo espectro como a norte-americana aprende a sentir prazer
com a ingesta do fast-food e isso se transmite a outras culturas e ainda mais grave agraves geraccedilotildees
seguintes os problemas de sauacutede atingem dimensotildees catastroacuteficas Esse resultado jaacute eacute possiacutevel
constatar em nosso seacuteculo XXI Compreende-se assim que natildeo apenas o indiviacuteduo pode
adoecer mas a cultura tambeacutem pode adoecer Fortunadamente pensadores do campo da
alimentaccedilatildeo como Michael Pollan tecircm combatido de modo ferrenho essa tendecircncia como o faz
em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo salienta-se tambeacutem o italiano
Carlo Petrini que jaacute na deacutecada de 80 fundou a filosofia do slow food em oposiccedilatildeo ao haacutebito
determinado pelas cadeias de fast-food ao redor do mundo
Cada vez mais o slow food tem ganho espaccedilo na compreensatildeo contemporacircnea sobre o
comer com prazer com sauacutede e com lentidatildeo respeitando o tempo das refeiccedilotildees como um tempo
de interaccedilatildeo familiar e de consciecircncia do alimento que se ingere Referimos nesse sentido o
proacuteprio Pollan responsaacutevel pela defesa de que as famiacutelias voltem a comer em casa como
oportunidade de alimentaccedilatildeo saudaacutevel e de interaccedilatildeo entre os membros do grupo familiar
Entretanto as mudanccedilas causadas pela conscientizaccedilatildeo estatildeo apenas nos primeiros passos os
comportamentos alimentares insalubres ainda representam a maioria ao menos no ocidente As
patologias do prazer ocupam importante espaccedilo no campo das doenccedilas contemporacircneas em
termos psiacutequicos e em suas decorrecircncias fiacutesicas
Tanto a reduccedilatildeo quanto o aumento significativo de experiecircncias prazerosas podem levar agrave
ocorrecircncia de patologias nos acircmbitos fiacutesico e psiacutequico No artigo em estudo Psicopatologia do
prazer lecirc-se ldquoO ser humano frente agrave possibilidade de permitir-se prazeres em alguns casos
pode sentir-se impedido pela preocupaccedilatildeo pela desvalia e pela culpa relativa a eventuais
consequecircncias potencialmente danosas de suas accedilotildeesrdquo (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
65
Esses mesmos autores referem a existecircncia de uma porcentagem significativa de
indiviacuteduos capazes de experimentar sentimentos de baixa autoestima ou de culpa (leve e
transitoacuteria ou ao contraacuterio intensa e mantida) em relaccedilatildeo aos interesses e atividades que lhes
provocam prazer Tais emoccedilotildees desagradaacuteveis viriam em forma e em intensidade e representam
um relevante contraponto agrave sensaccedilatildeo prazerosa podendo inclusive inibir as experiecircncias futuras
de prazer A ausecircncia desse gera mais desvalia e culpa estresse crocircnico e sentimentos de
incapacidade impedindo com que novas vivecircncias potencialmente prazerosas aconteccedilam e assim
ocorre um ciclo com repercussotildees na sauacutede tanto em termos fiacutesicos quanto mentais Os autores
do artigo referem
[] de uma espeacutecie de estressor interno que tais indiviacuteduos transfeririam de uma
situaccedilatildeo a outra dessas circunstacircncias decorreriam entatildeo efeitos negativos sobre sua
sauacutede fiacutesica suas capacidades cognitivas (ex concentraccedilatildeo atenccedilatildeo memoacuteria) e em seu
funcionamento nos campos social e laboral cotidiano Seria possiacutevel referir que o
excesso de culpa ou desvalia determinaria uma condiccedilatildeo de estresse crocircnico capaz de
aumentar significativamente a secreccedilatildeo dos hormocircnios ligados ao estresse com
consequumlecircncias danosas agrave sauacutede fiacutesica e agrave mental (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
Ressaltamos que o contraacuterio tambeacutem ocorre Cabe refletir sobre o desejo exasperado e
absoluto de prazer levada a extremos como nas condiccedilotildees de transtornos alimentares (entre
esses a compulsatildeo alimentar) De acordo com tais autores quando ocorrer uma busca excessiva
de sensaccedilotildees prazerosas mesmo se houver a gratificaccedilatildeo desses prazeres haveraacute riscos para a
sauacutede do indiviacuteduo Nesse caso o prazer em excesso passaraacute a ser o responsaacutevel pelos
sentimentos de culpa desvalia depressatildeo ansiedade e descontrole de impulsos (PELIZZA
BENAZZI 2008)
O prazer em excesso no campo alimentar conduz muitas vezes ao aumento de peso
com prejuiacutezos agrave sauacutede Essas circunstacircncias podem acarretar uma forma de dor emocional
diretamente ligada ao prazer de comer como nos casos de indiviacuteduos que fazem dieta alimentar
por orientaccedilatildeo meacutedica Nesses a restriccedilatildeo imposta representa um importante sofrimento quando
se encontram em sobrepeso ou em condiccedilatildeo de obesidade moacuterbida A exigecircncia de restringir o
que lhes daacute prazer pode ser um motivo de transgressotildees da dieta O resultado eacute o natildeo
emagrecimento ou o engorde ainda maior A seguir vecircm a culpa a desvalia a tristeza e o
desacircnimo todos os antagonistas da sensaccedilatildeo prazerosa Para compensar as emoccedilotildees os
indiviacuteduos socorrem-se com a comida mantendo o ciacuterculo vicioso O equiliacutebrio preconizado por
Jaspers em sua perspectiva sobre o prazer natildeo eacute encontrado
66
Em Por que sou gorda mamatildee o conflito da personagem com o impedimento ao prazer
alimentar estaacute presente em diversos trechos A narradora faz uma dolorosa e agraves vezes bem-
humorada recapitulaccedilatildeo de suas vivecircncias de prazer com a comida e de suas experiecircncias de
dieta de emagrecimento Satildeo narradas tambeacutem suas emoccedilotildees de desvalia e baixa autoestima por
vestir o adjetivo de gorda entretanto muito de sua insatisfaccedilatildeo estaacute no impedimento para comer
o que gosta o que lhe daacute prazer
Haacute uma visatildeo especiacutefica sobre o que eacute o prazer nos indiviacuteduos que apresentam
comportamentos anormais na procura por esta experiecircncia eles referem em diversas ocasiotildees a
percepccedilatildeo que tecircm sobre a comida na qualidade de fonte de prazer para algumas pessoas comer
eacute a uacutenica fonte de prazer possiacutevel Eacute comum referirem nas consultas meacutedicas lsquoou usufruo do
maacuteximo prazer ou natildeo sentirei nenhumrsquo ou lsquose natildeo puder comer todo o pote de sorvete natildeo
como mais nada Ou isto ou nada Me nego a fazer dietarsquo haacute ainda quem refira lsquonatildeo acredito
em dia livre dieta natildeo tem dia livre Isso eacute enganaccedilatildeo porque ningueacutem consegue voltar a comer
direito no outro diarsquo Essas frases demonstram padrotildees culturais de interpretaccedilatildeo do papel da
comida muitas vezes substitutivo de outras necessidades emocionais
Existindo maior resposta positiva aos prazeres aos quais o indiviacuteduo se dirige em
especial nas situaccedilotildees de excesso ocorreraacute ainda maior demanda por parte desses mecanismos
Como resultado surgem sintomas psiquiaacutetricos isolados ou em comorbidade decorrentes do
desequiliacutebrio gerado pela demanda excessiva Haacute ainda as decorrecircncias fiacutesicas de tal
desequiliacutebrio como a obesidade e as doenccedilas a ela associadas o diabetes a hipertensatildeo arterial e
a hipercolesterolemia entre outras Mais cedo ou mais tarde o corpo cobra sua conta dos
excessos quando se perpetuam
23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA
A fisiologia do gosto obra essencial na literatura gastronocircmica citada anteriormente foi
escrita por Jean Anthelme Brillhat-Savarin advogado e juiz francecircs (1755-1826) apaixonado
pelos prazeres da mesa O livro eacute composto por trinta capiacutetulos que o autor intitula lsquoMeditaccedilotildeesrsquo
e um uacuteltimo composto de variedades A fatia destinada agrave reflexatildeo sobre o prazer eacute a meditaccedilatildeo
14 lsquoDo prazer da mesarsquo Sobre a procura pelo prazer em termos gerais Brillat-Savarin refere
67
O homem eacute incontestavelmente dos seres sensitivos que povoam nosso globo o que
experimenta mais sofrimentos A natureza o condenou primitivamente agrave dor pela nudez
de sua pele pela forma de seus peacutes pelo instinto de guerra e destruiccedilatildeo que acompanha
a espeacutecie humana onde quer que ela se encontre
Os animais natildeo foram atingidos por essa maldiccedilatildeo e sem alguns combates causados
pelo instinto de reproduccedilatildeo a dor no estado de natureza seria completamente
desconhecida da maior parte das espeacutecies ao passo que o homem que soacute encontra o
prazer passageiramente e por meio de um pequeno nuacutemero de oacutergatildeos estaacute sempre
exposto em todas as partes do corpo a terriacuteveis sofrimentos
Essa sentenccedila do destino foi agravada em sua execuccedilatildeo por uma seacuterie de doenccedilas
nascidas dos haacutebitos do estado social de modo que o prazer mais satisfatoacuterio que se
possa imaginar seja em intensidade seja em duraccedilatildeo eacute incapaz de compensar as dores
atrozes que acompanham certos distuacuterbios [hellip] Eacute o temor praacutetico da dor que faz o
homem sem se aperceber disso lanccedilar-se com iacutempeto na direccedilatildeo oposta entregando-se
ao pequeno nuacutemero de prazeres que herdou da natureza (BRILLAT-SAVARIN 1995
p167)
Brillat-Savarin aponta que o homem se atira ao prazer para fugir das dores inerentes agrave
espeacutecie Entretanto esse eacute apenas um dos elementos de compreensatildeo do prazer alimentar pois a
sensaccedilatildeo prazerosa decorre tambeacutem de outros fatores presentes em nossa fisiologia e psiquismo
a sociabilidade por exemplo eacute um desses componentes e estaacute envolvida no que o autor
estabelece como o prazer da mesa Ele refere no capiacutetulo lsquoO prazer da mesarsquo uma reflexatildeo
importante sobre a comensalidade a refeiccedilatildeo em conjunto ldquoFoi durante as refeiccedilotildees que devem
ter nascido ou se aperfeiccediloado nossas liacutenguas seja porque era uma ocasiatildeo de reuniatildeo que se
repetia seja porque o lazer que acompanha e segue a refeiccedilatildeo dispotildee naturalmente agrave confianccedila e agrave
loquacidaderdquo (BRILLAT-SAVARIN 1995 p168)
Brillat-Savarin faz uma diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer- relacionando-o agrave satisfaccedilatildeo
da fome atraveacutes do alimento como ocorre com os animais - e o prazer da mesa exclusivo agrave
espeacutecie humana De acordo com esse autor ldquo[] o prazer de comer exige se natildeo a fome ao
menos o apetite o prazer agrave mesa na maioria das vezes independe de ambosrdquo (BRILLAT-
SAVARIN 1995 p170) Esse uacuteltimo representa assim a sociabilidade o conviacutevio agradaacutevel
com aqueles com quem se divide uma refeiccedilatildeo Ainda sobre o prazer da mesa Brillat-Savarin
explicita
[hellip] natildeo comporta arrebatamentos nem ecircxtases nem transportes mas ganha em duraccedilatildeo
o que perde em intensidade e se distingue sobretudo pelo privileacutegio particular de nos
incliner a todos os outros prazeres ou pelo menos de nos consolar por sua perda Com
efeito apoacutes uma boa refeiccedilatildeo o corpo e a alma gozam de um bem-estar especial
Fisicamente ao mesmo tempo em que o ceacuterebro se revigora a face se anima e se colore
os olhos brilham um suave calor se espalha em todos os membros Moralmente o
espiacuterito se aguccedila a imaginaccedilatildeo se aquece os ditos espirituosos nascem e circulam [hellip]
Aliaacutes com frequumlecircncia temos em volta da mesa todas as modificaccedilotildees que a extrema
sociabilidade introduziu entre noacutes o amor a amizade os negoacutecios as especulaccedilotildees o
68
poder as solicitaccedilotildees o protetorado a ambiccedilatildeo a intriga eis por que a convivialidade
tem a ver com tudo eis por que produz frutos de todos os sabores (BRILLAT-
SAVARIN 1995 p170-171)
O trecho acima transcrito expressa que os propoacutesitos para que o prazer da mesa fosse
atingido natildeo eram apenas a amizade e a intenccedilatildeo de conviacutevio entre as pessoas Eacute possiacutevel
verificar que havia tambeacutem entre os objetivos para a partilha das refeiccedilotildees o poder a ambiccedilatildeo e
outros aspectos distantes das alianccedilas de afeto A circunstacircncia do prazer da mesa criava uma
aproximaccedilatildeo maior entre os participantes de disputas poliacuteticas e administrativas favorecendo os
acordos pela ilusoacuteria sensaccedilatildeo de zelo e de alianccedila Nesse periacuteodo o prazer ainda natildeo era
percebido como finalidade e sim como instrumento para a aquisiccedilatildeo de benefiacutecios Segundo
Brillat-Savarin haacute quatro condiccedilotildees para que exista o prazer em uma refeiccedilatildeo
Chegamos portanto a tal progressatildeo alimentar que se os afazeres natildeo nos forccedilassem a
deixar a mesa ou se a necessidade do sono natildeo se interpusesse a duraccedilatildeo das refeiccedilotildees
seria praticamente indefinida e natildeo teriacuteamos nenhum dado certo para determinar o
tempo transcorrido desde o primeiro gole de madeira ateacute o ultimo copo de ponche [hellip]
Desfruta-se o prazer em quase toda sua extensatildeo toda vez que se reuacutenem as quatro
seguintes condiccedilotildees comida ao menos passaacutevel bom vinho comensais agradaacuteveis
tempo suficiente (BRILLAT-SAVARIN 1995 p172-173)
No livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo haacute explicaccedilotildees que muito se assemelham ao exposto
por Brillat-Savarin No capiacutetulo lsquoComer compromete refeiccedilotildees banquetes e festasrsquo o autor Gerd
Althoff expotildee elementos relevantes sobre o papel da refeiccedilatildeo na vida coletiva e social na Idade
Meacutedia
Durante a maior parte da Idade Meacutedia a refeiccedilatildeo e o banquete (convivium) constituiam
o mais eloquumlente siacutembolo de que se dispunha para para expresser o compromisso de
manter relaccedilotildees baseadas na paz e na concoacuterdia A palavra-chave nesse caso eacute
ldquocompromissordquo porque comer e beber junto era uma forma de obrigar-se a satisfazer as
condiccedilotildees que esse tipo de laccedilo implica [] (ALTHOFF 2015 p300)
Acordos e alianccedilas eram entatildeo estabelecidos em banquetes de longa duraccedilatildeo chamados
convivium A relaccedilatildeo de cumplicidade e de compromisso entre os indiviacuteduos estabelecida pela
existecircncia destes eventos natildeo foi por certo o iniacutecio do papel da refeiccedilatildeo partilhada como
elemento agregador entre as pessoas Haacute muitos periacuteodos da histoacuteria como exposto pelos vaacuterios
pesquisadores no livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo em que o comer junto assumiu papel essencial
na comunhatildeo dos membros de uma coletividade sendo a alegria e o prazer algumas das emoccedilotildees
presentes em vaacuterios desses periacuteodos
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Quando Brillat-Savarin refere quatro condiccedilotildees para desfrutar-se o prazer em uma
refeiccedilatildeo uma dessas eacute que haja lsquocomensais agradaacuteveisrsquo Tal fato nos remete aos elementos da
alianccedila e da paz no conviacutevio entre aqueles que comiam juntos nos banquetes da Idade Meacutedia
mas remete principalmente ao elemento do prazer que aparece atraveacutes do termo lsquoagradaacuteveisrsquo O
prazer eacute um ingrediente necessaacuterio no estabelecimento dessa alianccedila pois propicia que os
indiviacuteduos se comprometam uns com os outros pelo bem-estar que o viacutenculo permite Tal
resultado propicia a constacircncia dessa ligaccedilatildeo importante tambeacutem do ponto de vista poliacutetico na
eacutepoca O bem-estar da refeiccedilatildeo partilhada era entatildeo um meio natildeo um fim era o recurso para a
manutenccedilatildeo da perenidade nas relaccedilotildees garantindo ldquo[] a disposiccedilatildeo de todos os participantes de
cumprirem os deveres dela decorrentesrdquo (ALTHOFF 2015 p309)
Ainda no que tange agrave ocasiatildeo do convivium ressalta-se a forma como as atividades
prazerosas eram proporcionadas com o propoacutesito de reforccedilar a ligaccedilatildeo entre os participantes
Era quase impensaacutevel passar vaacuterios dias natildeo fazendo outra coisa senatildeo comer beber e
trocar presentes mesmo que se atribua aos participantes um apetite e uma inclinaccedilatildeo
para a bebida for a do comum Isso explica que nossas fontes mencionem agraves vezes vaacuterias
atividades paralelas que se poderiam agrupar sob a denominaccedilatildeo de lsquodivertimentos
mundanosrsquo entre os quais os espetaacuteculos dados durante os convivial em que danccedilarinos
(ou danccedilarinas) muacutesicos ambulantes menestreacuteis e poetas distraiam os convivas A
sucessatildeo de pratos e bebidas interrompia-se tambeacutem para permitir aos participantes fazer
um pouco de exerciacutecio Tratava-se de jogos ou agraves vezes de animadas caccediladas
Certamente esses elementos do convivium tinham tambeacutem um valor simboacutelico Viver
algum tempo juntos em paz e partilhar certas atividades criava entre as pessoas o clima
de confianccedila necessaacuterio assegurava-se ao novo parceiro que se desejava a paz e que se
estava disposto a respeitaacute-la e firmava-se o compromisso de continuar a agir assim no
futuro (ALTHOFF 2015 p303)
Assim o prazer afirmava-se como elemento agregador de grande importacircncia na
permanecircncia de viacutenculos Entretanto a finalidade de tais viacutenculos natildeo se concentrava
propriamente no bem-estar em si entre os participantes mas nos benefiacutecios propiciados em
termos de propriedades poder administraccedilatildeo e outros fins de interesse material No convivium
o prazer era oferecido nas atividades de lsquodivertimento mundanorsquo Eacute possiacutevel compreender a
partir desse dado que o prazer da partilha no comer junto da Idade Meacutedia natildeo se aproximava do
prazer com o alimento ou a bebida per se mas com atividades paralelas de divertimento para
entreter os convivas durante os dias de banquete
O prazer entatildeo era ainda um elemento natildeo ligado ao comer pelo sabor da comida assim
como as alianccedilas eram vaacutelidas pelos benefiacutecios que alicerccedilavam natildeo por sua importacircncia para o
bem viver entre os membros de uma coletividade De acordo com Gerd Althoff as relaccedilotildees entre
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os indiviacuteduos e os costumes como o comer e o beber junto eram de grande importacircncia para a
realidade medieval
Todas as culturas arcaicas recorriam a este meacutetodo para unir uma comunidade
Entretanto os efeitos da refeiccedilatildeo natildeo derivam dela proacutepria De fato na Idade Meacutedia a
refeiccedilatildeo o banquete e a festa serviam para exteriorizar atos administrativos rituais e
portanto convenccedilotildees que serviam para veicular um sentido bem determinado de modo
constrangedor e coercitivo (ALTHOFF 2015 p309)
No capiacutetulo de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo lsquoTempero cozinha e dieteacutetica nos seacuteculos XIV
XV e XVIrsquo haacute relevantes esclarecimentos sobre o papel do prazer no comer e sua importacircncia
para a sauacutede Um dos pontos referidos por seu autor quanto ao papel do uso dos temperos e do
cozinhar os alimentos estaacute relacionado tambeacutem ao prazer alimentar ldquoDe uma maneira geral
todo tempero e todo cozimento ou seja toda cozinha tinha uma dupla funccedilatildeo tornar os
alimentos ao mesmo tempo mais apetitosos saborosos e mais faacuteceis de digerirrdquo (FLANDRIN
2015 p482)
Deste modo falar no prazer de comer torna-se parte da perspectiva histoacuterica desse
periacuteodo quando as especiarias estatildeo no auge de seu reconhecimento Flandrin refere que os
seacuteculos XIV XV e XVI foram o aacutepice de seu papel na cozinha europeacuteia quando esses
ingredientes tinham tambeacutem valor terapecircutico Natildeo se pode referir que o prazer atraveacutes da
comida tenha iniciado nesse periacuteodo histoacuterico mas eacute possiacutevel compreender que esse periacuteodo foi o
iniacutecio do falar em prazer como aspecto favoraacutevel agrave digestatildeo Havia uma aproximaccedilatildeo entre a
gastronomia e a dieteacutetica conforme Jean-Louis Flandrin sugerida no trecho ldquoAos dietistas
interessava o gosto dos alimentos por diversas razotildees Em primeiro lugar porque se digere
melhor aquilo que se come com prazer-como acreditamos ateacute hojerdquo (FLANDRIN 2015 p486)
Compreender o prazer como elemento presente na alimentaccedilatildeo torna-o tambeacutem parte da
sauacutede e do bem-estar do ser humano Esta perspectiva remete ao estabelecido por Karl Jaspers
sobre o prazer Este fenocircmeno seria equivalente agrave satisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas
funccedilotildees orgacircnicas com resultados no equiliacutebrio psiacutequico na percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e no bem-
estar do indiviacuteduo Desse modo ao ler o historiador Jean-Louis Flandrin confirma-se o papel do
prazer na lsquosatisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees orgacircnicasrsquo na concepccedilatildeo do
psicopatologista Jaspers Flandrin conclui o capiacutetulo com a seguinte reflexatildeo
Em resumo cozinhar agravequela eacutepoca assim como hoje era dar aos alimentos os sabores
mais agradaacuteveis- mas agradaacuteveis no acircmbito de uma determinada cultura para um gosto
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diferente do nosso porque modelado por outras crenccedilas dieteacuteticas outros haacutebitos
alimentares (FLANDRIN 2015 p495)
Falar no prazer de comer entatildeo remete a Karl Jaspers pela concepccedilatildeo meacutedica do prazer
mas tambeacutem a Brillat-Savarin em sua diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer e o prazer da mesa
Para o escritor de A fisiologia do gosto o primeiro eacute de ordem bioloacutegica a meu ver menos ligado
agrave sensaccedilatildeo prazerosa ligada ao sabor e mais associada ao mero saciar da fome o segundo
exclusivo da espeacutecie humana eacute vinculado agrave experiecircncia de conviacutevio agradaacutevel com os comensais
na partilha de uma refeiccedilatildeo
A abordagem da dualidade entre gastronomia e dieteacutetica apontada por Jean-Louis
Flandrin eacute semelhante agravequela da dualidade apontada por Brillat-Savarin o prazer de comer e o
prazer da mesa Talvez essas divisotildees tivessem o propoacutesito de partir o indiviacuteduo em duas
metades a do corpo e a da mente A metade que se satisfaz com o saciar da fome seria entatildeo
diferente da que se apraz da companhia dos amigos agrave mesa A metade que preparava as receitas
pela gastronomia em fins da Idade Meacutedia seria diversa da que seguia as ordens da dieteacutetica
Nesse sentido a visatildeo de Jaspers sobre o prazer eacute a mais completa pois integra a satisfaccedilatildeo
harmocircnica e ordenada das funccedilotildees orgacircnicas ao equiliacutebrio psiacutequico agrave percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e
ao bem-estar do indiviacuteduo
Considerando o prazer alimentar entatildeo como elemento que envolve o corpo e a mente
do saciar agrave fome ao satisfazer o prazer gustativo e social surgem dois novos termos a gula e o
bom gosto
Os seacuteculos XVII e XVIII trouxeram mudanccedilas na relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com o prazer do
gosto Enquanto na Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVII a alimentaccedilatildeo das elites aproximava-
se muito de perto das prescriccedilotildees dos meacutedicos o que se seguiu a partir de entatildeo foi o apagamento
das referecircncias agrave antiga dieteacutetica dando lugar entre cozinheiros e gastrocircnomos agrave harmonia dos
sabores como prioridade Ficou relegado a segundo plano o aspecto de que ldquo[] os sabores eram
ateacute entatildeo ligados tanto a eles como aos meacutedicos sabiamente classificados do mais frio ao mais
quente eles constiuiacuteam uma indicaccedilatildeo segura da natureza dos alimentos e sua digestibilidaderdquo
(FLANDRIN MONTANARI 2015 p548) Um resultado interessante da separaccedilatildeo progressiva
entre cozinha e dieteacutetica foi uma permissatildeo para a gulodice conforme o registro de Histoacuteria da
alimentaccedilatildeo
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Os refinamentos da cozinha natildeo visam mais manter a boa sauacutede das pessoas mas
satisfazer o gosto dos glutotildees Com uma pequena diferenccedila estes ainda natildeo se
reconhecem como tais e se apresentam como pessoas de paladar apurado apreciadores
de iguarias e peritos na arte de reconhececirc-las (FLANDRIN MONTANARI 2015
p549)
Com o avanccedilo das descobertas e das criaccedilotildees dos cozinheiros e gastrocircnomos o prazer
com os alimentos reveste-se de nova importacircncia a gula Comer torna-se sinocircnimo nesse
contexto de desfrutar do sabor da comida o que muitas vezes eacute partilhado com amigos Para
Brillat-Savarin seria a uniatildeo do prazer de comer e do prazer da mesa O gosto como sentido
fisioloacutegico assume nova representaccedilatildeo eleva-se agrave categoria de bom-gosto com aplicaccedilotildees para
aleacutem dos campos da cozinha De acordo ainda com os organizadores de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo
Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari
O gosto esse sentido de que a natureza dotou o homem e os animais para discernirem o
comestiacutevel do natildeo-comestiacutevel sofreu alias em meados do seacuteculo XVII uma estranha
valorizaccedilatildeo fala-se dele a partir daiacute em sentido figurado a propoacutesito de literature
escultura pintura muacutesica mobiliaacuterio vestuaacuterio etc Em todos esses domiacutenios eacute ele que
permite distinguumlir o bom do ruim o belo do feio eacute o oacutergatildeo caracteriacutestico do lsquohomem de
gostorsquo um dos avatares do homem perfeito Ora essa valorizaccedilatildeo implica uma certa
toleracircncia para com os glutotildees (FLANDRIN MONTANARI 2015 p549)
Bom-gosto gula e prazer satildeo termos que se referem a uma semacircntica do deleite da
experiecircncia gustativa produzida nas cozinhas da eacutepoca com iniacutecio no seacuteculo XVII O indiviacuteduo
comeccedila a perceber a possibilidade de extrair da comida uma espeacutecie de luxuacuteria traduzida pela
gulodice Ele desfruta do sabor do alimento como se estivesse em um climax eis o glutatildeo
Enquanto na alta Idade Meacutedia o prazer nos banquetes vinha das atividades paralelas e seu
propoacutesito natildeo era a experiecircncia prazerosa per se mas a alianccedila e a realizaccedilatildeo de objetivos que
dela resultavam a partir desse seacuteculo o prazer reveste-se de importacircncia nos campos de forno-e-
fogatildeo
Dane-se a dieteacutetica talvez pensassem os sujeitos Gula e prazer eram expressotildees que a
boa comida despertava usufruiacutea deles quem tinha bom-gosto Nascia entatildeo um grupo de
pessoas com os pomposos tiacutetulos de lsquogourmetsrsquo e lsquogastrocircnomosrsquo seguida do surgimento e da
expansatildeo de sua literatura apropriada os tratados de cozinha Um novo modo de vivenciar o
alimento tornava-se cada vez mais abundante Houve um significativo movimento gerado pelo
gosto alimentar ldquoA multiplicaccedilatildeo das artes ligadas agrave alimentaccedilatildeo e das obras teacutecnicas que tratam
delas foi acompanhada sob formas diversas de escritos que fazem a apologia do prazer de comer
e ateacute da glutonaria e da embriaguezrdquo (FLANDRIN MONTANARI 2015 p551)
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Entretanto tal vivecircncia jaacute existia em menor expressatildeo na Itaacutelia do Quatrocentos Conta-
se que ldquoPlatinardquo o humanista Bartolomeo Sacchi teve relevante papel no prazer de comer no
referido periacuteodo com seu De honesta voluptate
Natildeo soacute este natildeo eacute cozinheiro nem meacutedico [hellip] mas mistura agrave sua documentaccedilatildeo
culinaacuteria e dieteacutetica a lembranccedila nostaacutelgicada alegria que seus amigos e ele
experimentavam ao saborear este ou aquele prato de mestre Martino o grande
cozinheiro romano de meados do seacuteculo acima de tudo ele utiliza isso para defender o
honesto prazer de saborear uma cozinha ao mesmo tempo simples e refinada prazer que
poderiacuteamos hoje classificar como o de um glutatildeo (FLANDRIN MONTANARI 2015
p552)
Por que na eacutepoca de Platina e entatildeo nos seacuteculos XVII e XVIII de efervescecircncia dos
gourmets ou mesmo em nosso seacuteculo XXI a sensaccedilatildeo prazerosa provocada pelo alimento eacute tatildeo
semelhante em sujeitos tatildeo diversos Pelo fato de que o prazer eacute inerente agrave experiecircncia humana
A definiccedilatildeo dada por Jaspers agrave sensaccedilatildeo prazerosa une aspectos da percepccedilatildeo fiacutesica e da
experiecircncia mental integradas Com base em sua definiccedilatildeo e considerando o acima exposto
sobre os termos gula prazer e bom-gosto ocorre a pergunta por que tantos sujeitos de diferentes
eacutepocas vivenciaram o prazer associado agrave comida em especial quando essa assumiu uma
conotaccedilatildeo de importacircncia com o iniacutecio da Gastronomia um termo cognitivo Recorremos a uma
possiacutevel explicaccedilatildeo neurocientiacutefica para esse questionamento a hipoacutetese do ceacuterebro triuno que
abrange a experiecircncia prazerosa como elemento exclusivo do ser humano
A referida hipoacutetese foi proposta pelo meacutedico e neurocientista americano Paul MacLean
em 1970 Segundo tal autor somos compostos grosso modo por trecircs ceacuterebros que trabalham em
colaboraccedilatildeo embora oriundos de diferentes etapas da evoluccedilatildeo das espeacutecies Assim nos
mamiacuteferos superiores existe uma hierarquia de trecircs ceacuterebros em um soacute daiacute o termo triuno De
acordo com a teoria os trecircs operam com diferentes graus de complexidade mas orquestram o
funcionamento humano de forma conjunta O ceacuterebro reptiliano presente desde os reacutepteis ou
arquicoacutertex seria o mais primitivo responsaacutevel pelas questotildees de sobrevivecircncia bioloacutegica como
alimentaccedilatildeo reproduccedilatildeo proteccedilatildeo etc A seguir em termos evolucionistas viria o ceacuterebro
liacutembico ou paleocoacutertex responsaacutevel pela elaboraccedilatildeo das emoccedilotildees como apetite medo raiva
etc presente desde as aves O terceiro e entatildeo o mais evoluiacutedo seria o neocortex responsaacutevel
pela elaboraccedilatildeo dos pensamentos e dos sentimentos e exclusivamente humano
Transpondo essa teoria para o campo alimentar podemos referir o ceacuterebro reptiliano
como responsaacutevel pela fome enquanto o liacutembico seria responsaacutevel pelo desejo por essa ou aquela
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comida especiacutefica O neocortex viria ao final para dar significado ao que comemos atraveacutes da
compreensatildeo das emoccedilotildees da relaccedilatildeo entre a memoacuteria e o alimento e da atribuiccedilatildeo de conceitos
cognitivos como a noccedilatildeo de bom-gosto No campo gastronocircmico seria possiacutevel entender a
cooperaccedilatildeo dos trecircs ceacuterebros como uma integraccedilatildeo que tem como resultado o prazer de saborear
este ou aquele quitute Saboreamos porque temos fome porque algo nos apetece e nos desperta
desejo por fim porque aprendemos do ponto de vista cognitivo que gostar daquele alimento eacute
permitido e em alguns casos eacute valoroso pois nos torna pertencentes a um grupo como o dos
glutotildees e gourmets Se comer tal alimento for prazeroso isto significa que nossos trecircs ceacuterebros
foram atendidos e estatildeo trabalhando em conjunto Mais uma vez o bem-estar do corpo de da
mente referido por Jaspers
Compreender o prazer que existe como expressatildeo fiacutesica emocional e mental nos
possibilita entender por que esse tambeacutem pode estar associado a patologias nos mesmos
domiacutenios A explicaccedilatildeo estaacute no fato de que para vivenciar esse complexo fenocircmeno eacute preciso
que sejamos humanos e que nossos trecircs ceacuterebros operem em orquestra vulneraacuteveis agraves
experiecircncias positivas ou negativas inexoraacuteveis
24 O PRAZER DA COMIDA
A partir da constataccedilatildeo do engorde e da dieta orientada pelo meacutedico a protagonista de
Por que sou gorda mamatildee lsquopassa a vida a limporsquo em sua memoacuteria Com o propoacutesito de
compreender o porquecirc de seu engorde escreve uma carta para a matildee em trechos ora
confessionais ora acusatoacuterios esperando na correspondecircncia construir para si a resposta ao
longo das lembranccedilas que evoca
O balanccedilo entre o passado e o presente alinha a compreensatildeo sobre o papel dos trajetos de
vida desde a infacircncia no quadro atual de sauacutede Os vinte e dois quilos ou cento e dez tabletes de
manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha satildeo o resultado dos sofrimentos que vivenciou
do afeto que natildeo recebeu e da comida que devorou A dor emocional eacute de fato sua mas talvez
seja tambeacutem heranccedila da Voacute Gorda da Voacute Magra do pai e da matildee Nas histoacuterias entrelaccediladas lecirc-
se uma pesada bagagem de dores ancestrais
Atraveacutes da intersecccedilatildeo entre as vivecircncias eacute possiacutevel ler na obra trecircs tempos
predominantes com fronteiras tecircnues entre si aquele dos antepassados que a protagonista
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conhece por ouvir contar o tempo da infacircncia que ela narra pelas recordaccedilotildees e o tempo
presente da dieta que provoca as idas e vindas da narrativa a fim de descobrir as causas de seu
aumento de peso As fronteiras satildeo tecircnues pois os trecircs tempos embora diversos no calendaacuterio
misturam-se na personagem ora como lembranccedila ora como reflexatildeo No percurso da obra o
elemento que liga as histoacuterias eacute na maioria das vezes a sensaccedilatildeo prazerosa com a comida
mesmo quando a referecircncia aponta para o contraacuterio sentimentos de culpa pela obesidade e de
revolta pela restriccedilatildeo alimentar
Haacute uma ligaccedilatildeo natural entre o comer e o prazer para aleacutem da rima Desde a
amamentaccedilatildeo a chegada do leite materno eacute acompanhada pelo contato de afeto da matildee com o
bebecirc e pela experiecircncia de prazer fiacutesico associada agrave succcedilatildeo Assim alimento viacutenculo afetivo e
prazer satildeo parte de nossas primeiras memoacuterias e podem permanecer como o tripeacute que daraacute
suporte a muitos de nossos padrotildees de comportamento ao longo da vida Esse tripeacute contudo
pode desestabilizar-se caso haja preponderacircncia de um dos componentes gerando experiecircncias
de sofrimento associadas a tal desequiliacutebrio
A referida situaccedilatildeo aliaacutes estaacute muito bem expressa nessa obra na qual a vivecircncia da
personagem frente ao engordar mostra o quanto o comer em sua vida ocupou muitas vezes os
espaccedilos de amor e de seguranccedila deixados vazios pela ausecircncia desse afeto Sobretudo por parte
dessa matildee o proacuteprio tiacutetulo do livro dirigido a ela sugere que seja vista como culpada pelo
processo de engorde da personagem Em diversas passagens da obra a comida eacute citada como
abundante enquanto a expressatildeo das emoccedilotildees eacute percebida como escassa
Encontramos a posteridade dentro da fartura pela qual devemos agradecer todos os dias
e da qual ainda hoje devemos nos afastar por forccedila da geneacutetica O excesso de comida o
excesso de zelo o excesso dos excessos tudo ficou em noacutes como lembranccedila e como
estoque de uma espeacutecie de amor do qual ainda hoje nos valemos quando o amor falta
minguado (MOSCOVICH 2006 p220)
A vivecircncia do prazer da comida eacute apresentada em diversos fragmentos tanto associados agrave
narradora quanto agrave sua matildee a quem dirige as reflexotildees sua Voacute Magra seu pai e seus irmatildeos
Uma das passagens mais ilustrativas do papel desempenhado pela sensaccedilatildeo prazerosa nesta
narrativa estaacute no trecho de uma viagem O que as personagens experimentam nesta cena parece
muito proacuteximo ao lsquohonesto prazerrsquo referido por Platina mencionado anteriormente Lembrando
de uma viagem em famiacutelia durante um percurso ao Uruguai a protagonista remonta um
momento em que sua matildee ela e os irmatildeos lambuzavam-se com doces no carro
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[hellip] A senhora de repente deu ordem expressa para que o pai estacionasse ali naquele
ponto bem na frente daquela confeitaria a Carrero O carro nem bem tinha parado nem
bem nossos protestos se haviam esvaiacutedo com a agilidade de seu movimento e a senhora
jaacute entrava na Carrero atraveacutes da porta de vidro porta muito pesada em sua fidalguia de
anos servindo o fino paladar uruguaio Porta que a senhora cruzou duas vezes em toda
sua vida - aquela era a segunda
Ficamos ali os quatro com os narizes achatados de curiosidade contra as janelas do
Ford Natildeo demorou nem bem cinco minutos e a senhora logo apareceu com trecircs garrafas
de Crush de laranja em uma das matildeos e na outra uma bandeja de doces - e me lembro
que o pai soltou uma gargalhada e sacudiu a cabeccedila num gesto de anuecircncia
Os doces foram devorados com seu incentivo feliz as garrafas passavam de matildeo em
matildeo limpava-se a boca com guardanapinhos de papel ou com a manga do casaco A
senhora se empanturrou e nos empanturrou Ningueacutem deu muita bola para os farelos de
massa folhada e para as manchas de doce de leite que ficaram melecando o estofamento
ateacute que voltaacutessemos para casa trecircs dias depois (MOSCOVICH 2006 p72)
Esta eacute a uacutenica cena de prazer compartilhado entre a narradora os irmatildeos e a matildee Eacute a
uacutenica cena tambeacutem em que a matildee aparece permitindo-se o deleite com algazarra com alegria
desfrutando do saborear em famiacutelia os doces da confeitaria A personagem refere que a matildee
cruzara a porta do estabelecimento duas vezes na vida e aquela era a segunda Haacute uma referecircncia
indireta aqui agrave escassa permissatildeo em sua matildee para esse tipo de prazer com farelos e doce de
leite espalhado Uma permissatildeo a si mesma de lambuzar-se com o prazer de partilhar o doce o
afeto a brincadeira O lsquohonesto prazerrsquo de Platina que misturava agrave sensaccedilatildeo prazerosa quem
sabe a alegria entre as pessoas Essa eacute a emoccedilatildeo que habita a cena e natildeo somente a gula pelos
doces
A matildee aparece protagonizando outras duas cenas de prazer alimentar ambas associadas a
uma condiccedilatildeo de sauacutede para a qual precisou fazer um cateterismo Entretanto a sensaccedilatildeo
prazerosa eacute expressa como experiecircncia de permissatildeo individual e natildeo partilhada com a famiacutelia
como no deleite dos doces e do refrigerante no carro A narradora conta sua lembranccedila sobre os
dois episoacutedios vividos pela matildee o primeiro antes do procedimento o segundo apoacutes
Naquela noite depois da cintilografia a senhora devorou meio quilo de patildeo com
manteiga um bule de cafeacute e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Disse que jaacute que
ia morrer comeria o que lhe desse na veneta (MOSCOVICH 2006 p119)
Jaacute em casa a senhora voltou ao tempo do seu rosto e apesar da ferida aberta na virilha
tornou-se de novo uma avoacute E o mais gracioso foi que naquela noite devorou meio
quilo de patildeo com manteiga uns cem gramas de mortadela um pote com azeitonas
pretas e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Me disse que jaacute que natildeo ia morrer
comeria o que lhe desse na telha (MOSCOVICH 2066 p124)
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Compreende-se como o prazer de comer estaacute vinculado a uma justificativa aceitaacutevel em
uma e em outra ocasiatildeo lsquojaacute que ia morrerrsquo e lsquojaacute que natildeo ia morrerrsquo Natildeo haacute uma vivecircncia da
sensaccedilatildeo prazerosa experimentada pela matildee nesses casos sem uma razatildeo que fundamente a
permissatildeo Outro ponto a salientar estaacute nas frases lsquocomeria o que lhe desse na venetarsquo e lsquocomeria
o que lhe desse na telharsquo em que lsquodar na venetarsquo e lsquodar na telharsquo fazem alusatildeo agrave satisfazer a
vontade o impulso da hora expressotildees ligadas ao prazer Os fragmentos apresentados fornecem
dados para que se possa compreender que na personagem da matildee esse prazer do ldquodar na venetardquo
soacute poderia ser permitido se associado a uma razatildeo muito forte como a possibilidade de ela
morrer no procedimento
Aleacutem das questotildees psiacutequicas da ligaccedilatildeo entre cozinha e prazer existe a influecircncia da
cultura presente nas famiacutelias de acordo com a relaccedilatildeo que seus antepassados estabeleciam com a
comida com o prazer e com os viacutenculos Eacute possiacutevel aprender que um alimento eacute saboroso ou
condenado porque essa informaccedilatildeo passa de uma geraccedilatildeo agrave outra natildeo como uma carga geneacutetica
mas como uma transmissatildeo de aprendizado cultural O que eacute transmitido ao grupo familiar eacute
dependente do significado da comida para os diferentes povos Dentro das famiacutelias haacute tambeacutem
coacutedigos representados pelo alimento muitas vezes compartilhados pelos membros como
acontece entre a protagonista e sua Voacute Magra
Eu imitei a voacute fiz ach e dei um tapinha no ar Natildeo tinha mesmo importacircncia nenhuma
Noacutes duas comeccedilamos a rir De matildeos dadas fomos ateacute a cozinha buscar algo com
bastante accediluacutecar para comer Doces nos deixavam fortes e felizes
Como diz mais um velho ditado avoacutes e netos se datildeo bem porque tecircm um inimigo em
comum (MOSCOVICH 2006 p99)
O episoacutedio refere-se ao conflito entre sua matildee e a Voacute Magra avoacute materna e a
protagonista posiciona-se a favor da avoacute partilhando com ela o prazer de lsquobuscar algo com
bastante accediluacutecar pra comerrsquo Existe clara cumplicidade com a avoacute expressa na frase lsquoDoces nos
deixavam fortes e felizesrsquo Essa mesma comunhatildeo eacute demonstrada nos trechos sobre os passeios
que elas faziam juntas quando a Voacute Magra a levava consigo nas andanccedilas ao centro para vender
roupas na infacircncia da narradora
Ela bem gostava daquela funccedilatildeo ou ao menos aparentava gostar e se aparentava fingia
muito bem Depois de uma boa venda saiacutea exibindo um ar glorioso e altaneiro uma
conquistadora que avanccedila sobre terra remota e me puxando pela matildeo me punha diante
de um copo de guaranaacute- o copo que ela inspecionava muito bem e submetia ao processo
de assepsia com o lencinho- uma garrafa de refrigerante e um mil folhas partido ao meio
davam bem para noacutes duas Tatildeo bem que nem fazia falta a outra metade
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O que eu aprendi com vovoacute foi bastante aleacutem do que pretendia papai Ela natildeo queria me
mostrar como se ganhava o patildeo natildeo tinha interesse em expor a neta a sofrimento algum
O que a voacute queria mesmo com aquelas excursotildees era a farra de dividir comigo um doce e
um refrigerante a gente se refestelando com creme de confeiteiro Ela pagou com
antecipaccedilatildeo aquelas pequenas felicidades coisa que ela mais amava no mundo
(MOSCOVICH 2006 p91-92)
Para a protagonista e sua Voacute Magra esses passeios representavam mais do que a
oportunidade de saborearem o mil folhas eram a chance de partilharem juntas o prazer de um
coacutedigo que comungavam o sabor doce Ao ler-se as passagens desta avoacute com ela e com seus
irmatildeos ao longo da obra compreende-se que este sabor doce eacute com nitidez o afeto partilhado
entre a Voacute Magra e os netos Para a avoacute o deleite com a comida tem raiacutezes culturais e vivenciais
O livro aponta a fome ancestral como possiacutevel razatildeo de seu prazer com a comida Jaacute no
capiacutetulo um ela apresenta sua Voacute Magra importante referencial em sua histoacuteria com o papel da
comida e com o engorde A obra comeccedila pelo cerne do significado da comida para a famiacutelia a
fome Essa vivecircncia eacute elemento relevante na histoacuteria familiar da protagonista A fim de
corroborar o papel da fome na dimensatildeo que cozinha ocupa na literatura judaica vale apresentar
a contribuiccedilatildeo de Ana Maria Shua em sua obra Risos e emoccedilotildees da cozinha judaica
A comida ocupa um lugar importante na literatura judaica Seguramente porque ocupa
um lugar importante na vida judaica na vida material e tambeacutem por razotildees religiosas
na vida espiritual Acima de tudo os judeus da Europa Oriental tendiam a contar com o
uacutenico adereccedilo capaz de converter em excelente qualquer comida para qualquer paladar a
fome Natildeo chama a atenccedilatildeo desse modo que o tema da comida apareccedila uma e outra vez
entre os sempre famintos personagens de sua literatura (SHUA 2016 p113)
O entendimento da comida como milagre aponta o poder que lhe era atribuiacutedo pela Voacute
Magra conforme narra a protagonista
Para quem vem de uma famiacutelia que nos miseraacuteveis e congelados vilarejos judeus da
Europa passou fome de comer soacute repolho ou soacute batata para a qual naqueles shtetels
carne era uma abstraccedilatildeo que os dentes nem conheceram e que se acostumou a aplacar o
oco do estocircmago com sopa de beterraba ou com aquele mameligue que nada mais era
do que um mingau meio insosso de farinha de milho e aacutegua a obsessatildeo por comida nada
tem ou nada deveria ter de extraordinaacuterio Vovoacute Magra assim como todas as avoacutes
acreditava que a comida era um milagre capaz de moldar crianccedilas em adultos um
homem eacute o peso daquilo que come uma boa refeiccedilatildeo vale a prece por um dia a mais de
vida
O caso era que diante de um prato de comida Vovoacute Magra parecia encontrar o sentido
da existecircncia (MOSCOVICH 2006 p21)
A comida era milagre e sentido da existecircncia para sua avoacute de acordo com a protagonista
entretanto vai aleacutem mostrando a voracidade o apetite o prazer afoito com que aquela comia O
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aspecto interessante foi a narradora referir-se ao termo lsquodesesperorsquo que denota uma espeacutecie de
sofrimento A avoacute sentiu tanta fome que quando pocircde comer tornou o alimento a resposta para
todas as faltas mesmo as futuras A comida era um modo de prevenccedilatildeo contra a fome que ela
pudesse vir a passar novamente
E comia comia comia
Comia ovos duros comia coalhada comia milho comia carne comia saladas comia
frutas- especialmente laranjas-do-ceacuteu que docinhas natildeo espicaccedilavam o paladar ao
contraacuterio do azedo das laranjas-de-umbigo que ela tambeacutem comia Comia tanto que se
via nela um desespero E de tanto passer fome decerto vovoacute por mais que comesse e se
fartasse natildeo engordava Cinturinha fina seios achatados quadric estreitos heranccedila que
a senhora mamatildee abocanhou e que natildeo me deu
Da vovoacute soacute herdei o apetite ancestral o mesmo que a senhora herdou (MOSCOVICH
2006 p21-23)
O apetite eacute capaz de promover a antecipaccedilatildeo do prazer pela lembranccedila e pelo desejo de
comer determinado alimento aleacutem de estimular a repeticcedilatildeo do que satisfaz pela gratificaccedilatildeo que
o ceacuterebro registra Se tal prato eacute saboroso e lhe apetece o indiviacuteduo vai buscaacute-lo de novo e assim
sucessivamente Por isso a Voacutevoacute Magra lsquocomia comia comiarsquo e lsquocomia tanto que se via nela um
desesperorsquo Entatildeo quando a narradora comeccedila a passagem falando em fome e a conclui
referindo-se ao lsquoapetite ancestralrsquo estaacute dizendo que em sua avoacute a fome transformou-se no prazer
pela comida
Ainda assim havia respeito agraves proibiccedilotildees religiosas ligadas agrave tradiccedilatildeo culinaacuteria judaica A
narradora descreve sobre os haacutebitos alimentares da Voacute Magra ldquoExceto por carne de porco ou
mariscos e outras coisas gosmentas vindas da aacutegua ndash alimentos que a Lei considera impuros e
que portanto eram iguais agrave pedra que se interdita levar agrave boca ndash natildeo havia comida que ela
desprezasserdquo (MOSCOVICH 2006 p21-23)
Entatildeo embora houvesse o respeito agraves restriccedilotildees impostas havia tambeacutem o prazer com os
alimentos permitidos fossem ou natildeo pertencentes agrave culinaacuteria tradicional judaica Eacute neste ponto
que se aproximam os textos da ficccedilatildeo e da teoria fontes de estudo no presente capiacutetulo Natildeo se
nega que haja a proibiccedilatildeo a certos alimentos aspecto em que a obra de Ciacutentia Moscovich foi fiel
agrave cultura culinaacuteria judaica mas a mesma tambeacutem problematizou o espaccedilo de prazer existente na
cozinha de sua tradiccedilatildeo
Outro elemento relevante na anaacutelise da passagem acima eacute o que a narradora refere quando
menciona ter herdado de sua avoacute apenas o lsquoapetite ancestralrsquo Nesse ponto da narrativa atribui
agraves raiacutezes familiares seu gosto pela comida Eacute significativo que a narradora comece o texto falando
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sobre a fome e o encerre usando o termo apetite pois se pode pensar na fome como uma
necessidade bioloacutegica do corpo que natildeo difere um alimento de outro O propoacutesito da fome eacute ser
saciada No que tange ao apetite pode-se pensar no apetite por algo o que o torna mais
especiacutefico agraves preferecircncias alimentares e desse modo mais proacuteximo ao prazer Foi o que Voacute
Magra descobriu
Eacute visiacutevel seu gosto por essa ou aquela comida sua profunda sensaccedilatildeo prazerosa com
ingredientes e pratos tiacutepicos Natildeo os escolhe apenas para saciar a fome deseja isso sim
satisfazer o apetite deleitar-se Com todas as restriccedilotildees que a tradiccedilatildeo impunha descobriu no
alimento fonte de prazer e com os netos de expressatildeo afetiva Havia tambeacutem um sentido de
aproveitar do alimento tudo o que ele poderia oferecer natildeo desperdiccedilando nada de sua
substacircncia Mesmo com o propoacutesito desse aproveitamento dedicava-se a fazer comidas e doces
saborosos como a narradora lembra no trecho abaixo
E havia aquele creme de laranja que era uma nuvem accedilucarada de sabor contrastante
um nada azedinho rompendo o doce dava ateacute um arrepio Era o jeito de a voacute aproveitar
as frutas que sobravam no mercado Natildeo se pode desperdiccedilar sumo algum mesmo que
as frutas despenquem podres no meio das sobras (MOSCOVICH 2006 p94)
O trecho expressa o fazer culinaacuterio de um doce que deixou lembranccedilas sensoriais na
protagonista expressas por termos como lsquonuvem accedilucarada de sabor contrastantersquo lsquoum nada
azedinho rompendo o docersquo e sobretudo a revelaccedilatildeo de que lsquodava ateacute um arrepiorsquo Entretanto as
escolhas alimentares na cultura judaica natildeo teriam por princiacutepio dar relevacircncia ao prazer mas aos
elementos religiosos Existe um conjunto de regras de idoneidade alimentar na cozinha judaica
chamada kasherut e cada alimento pertencente a tal conjunto e entatildeo permitido eacute chamado
kasher A respeito das tradiccedilotildees religiosas implicadas na alimentaccedilatildeo Ariel Toaff no capiacutetulo
lsquoCozinha judaica cozinhas judaicasrsquo do livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas
esclarece
Afirma-se em geral que as praacuteticas da alimentaccedilatildeo judaica estatildeo essencialmente
enquadradas na oacutetica do sistema religioso fundamentadas em proibiccedilotildees biacuteblicas
ampliadas e interpretadas pelas normativas rabiacutenicas Em outros termos o judeu comeria
alimentos que lhe satildeo permitidos descartando todos aqueles que de uma ou outra forma
entrassem nas categorias explicitamente proibidas pela biacuteblia ou pela hermenecircutica
geralmente extensa da ritualiacutestica posterior Nesse sentido suas escolhas alimentares
deveriam ser consideradas como fundamentos de sua identidade cultural e religiosa A
gama de proibiccedilotildees parece vasta e sem duacutevida condicionante (TOAFF 2009 p179)
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Eacute interessante observar que mesmo focados na obediecircncia agraves normas havia uma culinaacuteria
rica de prazer dentro da cultura Apesar das influecircncias externas e as proibiccedilotildees religiosas
configurou-se uma cozinha judaica nuclear baseada no gosto Na Europa do seacuteculo XV ou XVI
os alimentos definidos como lsquoagrave hebraicarsquo ou lsquoagrave judiarsquo expressavam ingredientes gosto e aspecto
tipicamente judaicos e eram imediatamente reconhecidos como tal
O marzipatilde e as panquecas com mel e canela o patecirc de fiacutegado gordo os Griben (pedaccedilos
fritos de pele [de ave]) e os salsichotildees de ganso o hamin a carne guisada do Shabatt
com feijotildees e gratildeos-de-bico lsquocom pimenta e alhorsquo as alcachofras fritas lsquoagrave rosarsquo e a
endiacutevia assada no forno com lsquopeixe azulrsquo todos eles alimentos cuja preparaccedilatildeo era
comumente qualificada como lsquoagrave hebreacuteiarsquo natildeo eram decerto chamados desse modo pelo
fato de seu consumo ser permitido ou prescrito aos judeus pelas normas da biacuteblia e dos
rabinos mas porque se reconhecia neles a expressatildeo particular do gosto judaico [hellip] O
fato incontroverso eacute que o gosto gastronocircmico judaico parecia evidentemente diverso
daquele do ambiente cristatildeo circundante (TOAFF 2009 p183)
A evocaccedilatildeo sensorial eacute provocada pelos alimentos judaicos quando ateacute os nomes
despertam curiosidade e imaginaccedilatildeo pela forma e pelo gosto Ali estaacute bem expresso um conjunto
de sabores pertencentes agrave cultura e agrave vivecircncia de prazer associados agrave comida O capiacutetulo de Ariel
Toaff no livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas defende que o gosto e o prazer
na culinaacuteria judaica foram elementos de forccedila suficiente para ultrapassarem as proibiccedilotildees
religiosas aspecto corroborado pelo grande nuacutemero de receitas daquela cultura
O prazer alimentar estaacute associado a esse aspecto cultural de um povo Carlos Alberto
Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira aponta que
Em termos simples todo dia eu acordo me sentindo brasileiro ou espanhol ou tcheco
etc Isso ocorre porque falo uma liacutengua alimento-me de determinada comida sei como
meus compatriotas se comportaratildeo diante de certas situaccedilotildees e assim por diante Haacute um
sentimento multifacetado de pertencimento que me faz nacional (DOacuteRIA 2014 p24)
Esse pertencimento tem como parte culinaacuteria pois identifica gostos e ingredientes de um
povo No caso especiacutefico da culinaacuteria judaica essa caracterizaccedilatildeo ocorre mesmo quando
adaptada a outras culturas e produtos como Toaff aponta Em por que sou gorda Mamatildee a
narradora faz um relato que contempla a cozinha judaica vivenciada em sua infacircncia adaptada agrave
cultura local sem no entanto perder sua principal expressatildeo nos pratos tiacutepicos
Como sempre acreditamos no aprendizado pela dor a fome passou a ser o grande
mestre liccedilatildeo que pai nenhum queria que os filhos aprendessem Atestando que os
tempos haviam mudado e que este naco do Brasil era uma Canaatilde as cozinhas do Bairro
eram usinas de todo tipo de comida
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Agraves sete da manhatilde mal se pulava da cama e uma nuacutevem aromaacutetica e uacutemida jaacute tinha
invadido a casa As panelas ferviam galinhas as cebolas se atiravam agrave fritura as lacircminas
das facas trituravam ramos de tempero verde colheres de pau puxavam refogados nas
caccedilarolas batalhotildees rechonchudos de almocircndegas se alinhavam nas taacutebuas de carne ao
lado de um fornido regimento de varenikes que logo iam encontrar seu destino na aacutegua
pelando No bairro inteiro cedinho frio ou calor chuva ou sol matildeos zelosas estripavam
peixes recheavam pimentotildees cortavam ovos duros mexiam guisados lavavam arroz
arrancavam folhas dos ramos de louro Tempero lambido na concha da matildeo douravam
batatas raspavam cenouras sovavam massas fatiavam tomates queimavam berinjelas
batiam espinafre amassavam miuacutedos de frango esmagavam dentes de alho Enquanto
pepinos eram enfiados em enormes potes de vidro para a conserva de salmoura
amendoins em trouxas de panos de prato eram batidos a martelo pecircssegos ameixas e
peras se compotavam marmelos de accedilucaravam cremes se encorpavam nacos de
goiaba e punhados de uva em passa enchiam o oco de maccedilatildes vermelhas e lustrosas
(MOSCOVICH 2006 p48-49)
A escolha pelo uso do preteacuterito imperfeito nos atos culinaacuterios ilustra o aspecto rotineiro
com que essas praacuteticas eram realizadas dentro da vida do bairro de predominacircncia judaica Todo
cotidiano era tecido pela manhatilde pelos aromas texturas e costumes que compunham a cultura
local O trecho remete o leitor a um passado que se perpetua atraveacutes dos movimentos vividos nas
cozinhas pelo que a narradora refere como lsquomatildeos zelosasrsquo Haacute no pano de fundo desse
fragmento a ideia da repeticcedilatildeo das accedilotildees como marca de continuidade de haacutebitos gostos e
preferecircncias A narradora prossegue seu relato transmitindo lembranccedilas da cozinha judaica
vivenciadas em seu bairro
Eu feliz na atmosfera lavada das manhatildes mastigando o haacutelito de cafeacute e pasta de dente
gostava de ver as mulheres que vinham da feira livre com sacolas nas quais adejavam
verduras outras traziam suspensas de ponta-cabeccedila galinhas vivas que arregalavam os
olhos redondos num susto de morte Algumas donas de casa elas mesmas fariam o
talho na garganta por onde se esvairia o sangue do bicho enquanto outras mais
piedosas ou covardes ou que seguissem a lei alimentar a kashrut recorriam ao shochet
responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual Todas para um uacutenico lugar a cozinha matriz do
afeto de nossa gente Pratos com nomes esquisitos e tatildeo familiares varenikes beigales
mondales knishes strudels iuchs kasha rossale borscht guefiltefish chrein kishke
kreplach tzimes
Comida para um exeacutercito (MOSCOVICH 2006 p49 grifo do autor)
No trecho acima lecirc-se o aspecto religioso ligado agrave culinaacuteria quando a narradora aborda a
lei alimentar a kashrut e o shochet responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual das galinhas Outro
elemento apontado eacute a referecircncia aos pratos judaicos remetendo agrave ligaccedilatildeo entre cozinha e
pertencimento a um povo elemento cultural referido por Carlos Alberto Doacuteria apresentado
anteriormente Um ponto relevante apontado por esse autor eacute a citaccedilatildeo de Levi Strauss ldquoGestos
aparentemente insignificantes transmitidos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua
insignificacircncia mesma satildeo testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou
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movimentos figuradosrdquo (DOacuteRIA 2014 p215) Assim eacute possiacutevel compreender os gestos
corporais dos atos culinaacuterios apresentados pela narradora sobre a rotina alimentar em seu bairro
como um importante testemunho da cultura judaica daquele territoacuterio
Aleacutem disso uma frase de grande relevacircncia no fragmento eacute lsquoTodas para um uacutenico lugar a
cozinha matriz do afeto de nossa gentersquo Nessa o viacutenculo entre o comer e o afeto expressa um
importante fator da cultura judaica a essa ligaccedilatildeo estaacute associada tambeacutem a sensaccedilatildeo prazerosa
da comida partilhada Carlos Alberto Doacuteria expotildee a reflexatildeo de Annie Hubbert quando ela
registra
Especialmente nas sociedades onde as representaccedilotildees coletivas passam por livros
religiosos (os judeus os cristatildeos e os muccedilulmanos) o ato de comer aparece ligado ao
amor materno e recusar a comida eacute o mesmo que recusar essa modalidade fundante de
afeto um ato que exprime grande emoccedilatildeo (DOacuteRIA 2014 p204)
Dividir a comida eacute tambeacutem nutrir o sentimento de pertencer ao grupo de fomentar a
permanecircncia dos atos que satildeo parte dos costumes desse grupo como aqueles atos apresentados
no trecho anterior em preteacuterito imperfeito atos culinaacuterios que satildeo parte do cotidiano das
cozinhas do bairro Somam-se alimento afeto rotina cultura prazer pertencimento partilha
continuidade
Ainda sobre o gosto da cozinha judaica Toaff escreve
As mercearias dos guetos pululavam de clientes cristatildeos mais gulosos do que
esfomeados [hellip] A aproximaccedilatildeo dos cristatildeos agraves comidas judaicas era sempre ambiacutegua e
ambivalente atraiacutedos (e ao mesmo tempo desconfiados) por aqueles pratos que podiam
ter significados hereacuteticos imprevistos e por aqueles sabores exoacuteticos que exerciam
veladas seduccedilotildees de transgressatildeo lsquoComer agrave judiarsquo era um pouco como tornar-se judeu
no prazer de um momento sentir de dentro o fasciacutenio daquilo que era difiacutecil (e talvez
impossiacutevel) aprender de fora [hellip] Comer uma alcachofra lsquoagrave judiarsquo ou uma fatia de patildeo
aacutezimo era como fazer uma perigosa e temeraacuteria viagem ao estrangeiro uma espeacutecie de
percurso sedutor da igreja agrave sinagoga da qual poreacutem pretendia-se voltar o mais raacutepido
possiacutevel (TOAFF 2009 p183-184)
Compreende-se assim que a cozinha judaica tinha o apelo sedutor que provocava prazer
ateacute em outras culturas como a cristatilde Isso ocorria por sua forccedila especiacutefica pelo nuacutecleo vasto de
receitas e de modos-de-fazer este ou aquele prato no entanto tal apelo ocorria em grande parte
por simbolizar o proibido e o desconhecido aos cristatildeos Agradava-lhes a transgressatildeo dessa
cozinha tiacutepica seus sabores e significados Natildeo se tratava apenas de apreciar o gosto mas
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tambeacutem o que tal culinaacuteria representava a um ambiente cultural diverso enfrentar a culpa e
encontrar o prazer do gosto clandestino
Para os proacuteprios judeus a amplitude de receitas e de gostos dos pratos lsquoagrave judiarsquo era tatildeo
arraigada que o gosto era parte de suas escolhas para aleacutem da imposiccedilatildeo religiosa Sobre isso
Toaff reflete ldquoHaacutebitos e tradiccedilotildees alimentares inquietudes irracionais gosto e nostalgias faziam
com que mesmo nos casos extremos o paladar abandonasse o judaiacutesmo muito mais lentamente e
de maacute vontade do que o coraccedilatildeo ou a menterdquo (TOAFF 2009 p185)
Ariel Toaff demonstra o ponto a ser discutido sobre o aspecto cultural dessa culinaacuteria em
relaccedilatildeo ao prazer alimentar as restriccedilotildees e as proibiccedilotildees religiosas de um lado o prazer de
manter vivo o respeito pela tradiccedilatildeo de receitas tiacutepicas lsquoagrave judiarsquo que representam o gosto
alimentar dos judeus de outro Apesar das proibiccedilotildees a essecircncia da cozinha judaica se manteve
atraveacutes de uma vasta quantidade de receitas Eacute possiacutevel compreender isso pelo fato de o prazer
ser um fenocircmeno exclusivamente humano cujas caracteriacutesticas satildeo o equiliacutebrio fisioloacutegico e
psiacutequico que leva ao bem-estar de acordo com o Jaspers Em sendo fenocircmeno humano
pronuncia-se no indiviacuteduo de todos os tempos e de todas as culturas e eacute elemento ateacute mesmo
capaz de sobrepujar um constructo como as proibiccedilotildees religiosas como no caso da cozinha
judaica
O que mais chama a atenccedilatildeo lendo a pesquisa de Ariel Toaff eacute de como o gosto judaico
foi sendo construiacutedo a ponto de configurar-se como uma tradiccedilatildeo culinaacuteria Outro elemento
interessante referido pelo autor satildeo os processos de osmose com outras culturas alimentares a
partir das emigraccedilotildees dos judeus para diferentes territoacuterios O paladar judaico foi adicionando
alimentos agrave sua lista ingredientes e pratos de outras culturas foram sendo incorporados ao seu
gosto
Um trecho que ilustra essa lsquoosmosersquo estaacute no comeccedilo de Por que sou gorda mamatildee
quando a narradora-personagem conta a histoacuteria da chegada de sua famiacutelia ao Brasil e a
aproximaccedilatildeo de seu bisavocirc a um iacutendio proacuteximo agrave moradia da famiacutelia
[hellip] Um desses bugres vovoacute natildeo tinha certeza de que era o mesmo que fora aprisionado
deixou uma tigela de farinha - dependendo da versatildeo um pedaccedilo de carne- na porta da
casa O bisavocirc na mesma tijela e no mesmo lugar ofereceu para o iacutendio uma porccedilatildeo de
aipim cozido (ou uma porccedilatildeo de chulent ou um pedaccedilo de leikech) Tijela vai tijela
volta o bugre fez amizade com o bisavocirc falavam-se de iniacutecio com os dedos Depois
passaram a dividir o mesmo tronco de aacutervore no qual o bisavocirc sentava para o descanso
do final da tarde Depois para o pasmo geral viram o iacutendio vestindo uma camisa e uma
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calccedila do bisavocirc mesma eacutepoca em que vovoacute viu entrar em casa uma gamela talhada em
madeira e uma cesta em trama de taquaras
Mesmo que mulheres e crianccedilas estivessem proibidas de se aproximar do bugre ele de
posse de uma enxada passou a ajudante nas lides da roccedila e a trazer aacutegua de uma sanga
ali perto Tambeacutem alcanccedilava ervas com as quais o bisavocirc fazia emplastros para as dores
nas juntas e picadas de insetos aleacutem de infusotildees e chaacutes para tosse e vermes
A vovoacute jurava que era verdade quando viram o iacutendio falava iiacutediche
Deram ateacute nome para o homem Chamavam-no Salvador (MOSCOVICH 2006 p65-
66 grifo nosso)
A osmose era natildeo apenas de ingredientes mas de costumes de atitudes de
camaradagens Havia prazer nas trocas e no conviacutevio do bisavocirc com o iacutendio Esse trecho eacute um
dos mais representativos da obra pois expressa de forma muito clara como a cultura judaica foi
permeaacutevel no exemplo narrado agraves influecircncias e agraves gentilezas e escambos do bugre A famiacutelia
comeccedilava sua histoacuteria em terras brasileiras Um trecho que expressa o papel da comida nos
primeiros tempos da famiacutelia no Brasil eacute o que segue
Uns oito nove ou dez anos depois da chegada ao Brasil o bisavocirc tinha abandonado a
colocircnia e enveredado pelos interiores do hemisfeacuterio mascateava Soacute laacute naquela Canaatilde
da fronteira entre o Brasil e o Uruguai terminou a busca de um futuro que seria melhor
mas que natildeo seria dele Havia chocolates Aguila chaja embalado em papel manteiga
morrones queimados na brasa e carne muita que se assava em grelhas sobre braseiro
vivo Tudo isso natildeo chegava agrave casa e agrave mesa da famiacutelia que se alimentava de mameligue
ou farinha de mandioca agrave qual se acrescentava cafeacute com muito accediluacutecar que accediluacutecar natildeo
podia faltar Aos domingos cada um dos filhos recebia um tablete de mariola piteacuteu
envolto em papel celofane a ser poupado ateacute a semana seguinte um pedacinho de cada
vez Ou chupado como se fosse bala que assim durava mais (MOSCOVICH 2006
p71 grifo ou do autor)
Assim haacute trechos em que a protagonista narra as experiecircncias dos antepassados em
zigue-zague com outros em que reflete sobre seu engorde retomando o foco no presente Fala
entatildeo de sua dieta em contraste com a vivecircncia de sua famiacutelia com a fome Bisavoacutes avoacutes e pais
ao sentirem fome comeccedilaram a comer mais quando o alimento tornou-se disponiacutevel a eles no
caso da narradora foi preciso fazer o caminho contraacuterio ao sentir fome comeccedilar a comer menos
A referecircncia lsquoVovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e macarratildeo de letrinhasrsquo
demonstra que a loacutegica de sua avoacute era dar consistecircncia e energia agrave comida fornecendo-lhe fontes
de carbohidrato Assim a perspectiva era contraacuteria agrave restriccedilatildeo alimentar a que estava submetida
pelas orientaccedilotildees do meacutedico
Com o frio comer salada doacutei na alma
Sopa de legumes fazia tempo que natildeo preparava o panelatildeo fervente carne aipo
aboacutebora chuchu cenoura couve cebola espiga de milho cortada em rodelas pequenas
Enquanto escrevo a sopa se agita no fogo e um haacutelito bondoso que eacute cheiro de casa
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visita todas as peccedilas Espero a hora de submeter noz-moscada ao ralador e de cortar bem
miuacutedo tempero verde e ovos duros Vovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e
macarratildeo de letrinhas (MOSCOVICH 2006 p68)
A heranccedila para o prazer de comer deu-lhe desde a infacircncia a predileccedilatildeo pelos excessos
Porque a lei era o comer Ela comenta
Noacutes as crianccedilas estaacutevamos em fase de crescimento Como durou a tal fase Anos
Crianccedilas em fase de crescimento precisam comer muito bem para ter ossos fortes e
ceacuterebros ativos para o estudo Portanto a mesa do almoccedilo em nossa casa era farta Aliaacutes
a mesa do almoccedilo em nossa casa era um excesso Mas natildeo um excesso fuacutetil natildeo um
supeacuterfluo sem sentido Nossa mesa queria dizer comam vocecircs natildeo precisam passar
fome Fome eu vim passar adiante quando comecei as dietas (MOSCOVICH 2006
p23)
O aprendizado de exceder era associado natildeo apenas agrave saciedade mas ao prazer agrave ideia de
uma lsquomesa felizrsquo como se pode compreender a partir do seguinte fragmento
Se havia cinco pessoas na mesa de bifes deveria haver por baixo dez Para que natildeo
passaacutessemos pela dureza de medir o que estaacutevamos comendo quantos bifes satildeo meus
quantos satildeo seus Se isso acontecesse papai simplesmente natildeo comia bifes para que
mais houvesse para dividir
Numa mesa feliz natildeo se contam os bifes (MOSCOVICH 2006 p24)
O pai preocupado com o engorde dos filhos passou a adotar a imposiccedilatildeo da disciplina
alimentar riacutegida Para a protagonista a cada aumento dos quilos na balanccedila havia uma nova
ordem para o regime A protagonista lembra-se dessa fase e relata na carta para a matildee o periacuteodo
em que o pai determinou que os filhos fizessem dieta
Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre
com o Fairlane rabo-de-peixe A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos enterrado
o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como eram-
mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos ancorava
no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de construir o corpo
de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo fosse do jeito e na
hora em que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH 2006 p93)
Depois de diversas passagens entre passado e presente haacute uma retomada na histoacuteria em
direccedilatildeo agrave ordem paterna para a dieta pela quebra do carro da famiacutelia o tal lsquoFairlane rabo-de-
peixersquo Isso ocorre pelo excesso de peso na protagonista de seus irmatildeos e de suas tias de lado
paterno Frente agrave ameaccedila de dieta ela reinvindica ldquo[hellip] Entrei em pacircnico Dieta era alguma coisa
horrorosa natildeo comer um monte de coisas principalmente massas e doces eu protestei na busca
de meus direitosrdquo (MOSCOVICH 2006 p203) Ao que o pai linhas depois refere ldquo-Vocecircs vatildeo
fazer dieta E vai ser para toda a vidardquo (MOSCOVICH 2006 p204)
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Dieta era assim ordem paterna veredicto imposiccedilatildeo e ameaccedila de perda dos direitos Natildeo
poderia ser algo para o bem para a sauacutede jaacute que restringia o prazer de comer o que se gosta De
um lado a Vovoacute Magra tinha deliacutecias em sua sacola de crocheacute para satisfazer o gosto dos netos
de outro o pai definia categoricamente que a lei da casa era a dieta Da avoacute materna com as
guloseimas estava o afeto do pai com a voz de mando o cuidado com a sauacutede Ambas as
manifestaccedilotildees eram a expressatildeo de amor que cada um deles era capaz de oferecer de acordo com
sua histoacuteria e com sua personalidade
Um elemento importante para a compreensatildeo do engorde da protagonista estaacute em sua
infacircncia quando ao contraacuterio do que ocorreu na vida adulta precisou fazer dieta para engordar
Mais uma vez a Voacute Magra tem papel crucial nesse processo conforme mostra o trecho abaixo
Os que me conhecem soacute agora natildeo acreditam Nem eu acredito Ateacute uns sete ou oito
anos eu era uma crianccedila inapetente Vovoacute Magra chegava em casa com pedaccedilos de
alcatra chuletas ou bifes de fiacutegado cortes que ela havia escolhido com ciecircncia no balcatildeo
do accedilougue do seu Jorge Depois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho
direto para a cozinha e ali direto aos armaacuterios Sentava-me junto agrave mesa de foacutermica
Vovoacute dava de matildeo numa pequena frigideira de alumiacutenio com duas alccedilas de baquelite jaacute
retorcidas pelo calor Aacutegua esponja sabatildeo pano de prato Daiacute um fio de oacuteleo Mazola-
ou Sol Levante aquele que estivesse mais em conta na ocasiatildeo- escorria da lata natildeo
muito o suficiente para que uma poccedila dourada se armazenasse no cocircncavo da frigideira
No balcatildeo da pia vovoacute ordenava o pote de sal uma taacutebua de madeira chaira batedor de
bife a faca de corte e o embrulho de papel pardo no qual seu Jorge tinha riscado o total
a pagar Na abertura do pacote lembro aquele cheiro cru e meio arisco o papel
manchado de sangue da pobre vida extinta A faca era passada na chaira em movimentos
agudos um sibilar que me causava arrepio nos dentes Depois com a lacircmina vovoacute
eliminava nervos sebo e outras impurezas que soacute ela podia identificar Finalmente
espalmava os dedos sobre a peccedila de carne e em talhos saacutebios cortava em fatias Agraves
vezes usava o batedor para domar algum pedaccedilo mais resistente tunda de laccedilo na carne
que batia na madeira que batia na pedra que por seu turno estremecia o balcatildeo e todos
os cocircmodos da casa Uma pitada de sal o oacuteleo tinindo recebia a carne com uma
chiadeira labaredas azuladas salpicavam as fatias- daacute-lhe fumaccedila um nevoeiro que
anunciava a forccedila resistindo agrave morte (MOSCOVICH 2006 p35-36)
A Voacute Magra participava da alimentaccedilatildeo da neta natildeo apenas no preparo dos bifes mas
tambeacutem na extraccedilatildeo do sumo que resultava deles e na oferta do caldo agrave protagonista ainda
crianccedila Percebe-se o zelo da avoacute todo esse processo no qual o alimento representa nutriccedilatildeo
fiacutesica e cuidado afetivo
Dado o susto vovoacute colocava os bifes num prato fundo e com um garfo espremia e
espremia ateacute reunir uma boa quantidade de sumo sanguinolento Um pano ajeitado como
babador e entornando um pouco o prato com uma colher de sobremesa dava-me aos
bocados aquela riqueza nutritiva (MOSCOVICH 2006 p36)
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Ressalta-se o detalhamento com que a narradora apresenta os utensiacutelios de cozinha no
preparo dos bifes e os atos culinaacuterios da Voacute Magra Se natildeo haacute referecircncia direta ao prazer de
comer haacute o conhecimento visceral da avoacute no cozinhar Cada movimento eacute conhecido pelo corpo
e traduzido pelo uso dos utensiacutelios O que marca o trecho eacute o afeto com que a avoacute faz os bifes
para a neta o cuidado que tem com cada nuance do preparo expresso na proacutepria dedicaccedilatildeo e
tambeacutem em especial na frase lsquodepois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho direto
para a cozinharsquo Este eacute um dos trechos emblemaacuteticos da obra em termos de expressatildeo da cozinha
como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico nesta narrativa pois mostra dados como o oacuteleo na frigideira a
destreza com cada instrumento e o zelo no preparo do alimento como reforccedilo nutricional
A narradora segue o relato sobre os bifes que colocam sua matildee em segundo plano
Se vovoacute natildeo vinha o jeito era a senhora mamatildee me sentar na frente do preacutedio reunir
crianccedilas e cachorros da vizinhanccedila ao meu redor e fazendo aviatildeozinho enquanto eu me
distraiacutea me enfiar goela abaixo colheradas de legumes carne e todo o resto que eu
detestava
Natildeo me lembro quando comecei a comer feito gente grande Nunca mais parei
(MOSCOVICH 2006 p36-37)
Haacute uma diferenccedila na percepccedilatildeo da narradora sobre a forma como a Voacute Magra lhe oferecia
a lsquoriqueza nutritivarsquo aos bocados e aquela como a matildee o fazia ao lsquoenfiar goela abaixo
colheradas de legumes carne e todo o resto que eu detestavarsquo O contraste estaacute sobretudo na
expressatildeo do afeto que leva a protagonista o falar em lsquoriqueza nutritivarsquo quando menciona o
cuidado da avoacute e ao referir-se ao termo lsquogoela abaixorsquo sobre o alimento oferecido pela matildee
Possivelmente o prazer de comer tivesse sido originado no afeto ligado ao alimento e ao cuidado
pela avoacute pois eacute das cenas com esta que restaram os principais registros de memoacuteria sugerindo
que a lembranccedila daquele preparo eacute muito mais viva do que aquela da interaccedilatildeo com sua matildee A
frase lsquonunca mais pareirsquo mostra o comportamento de comer como algo que passou a se repetir
sugerindo a presenccedila de prazer que impele agrave repeticcedilatildeo
A partir do ponto em que comeccedilou a comer e entatildeo a engordar junto a seus irmatildeos
instalou-se na famiacutelia a determinaccedilatildeo de regime para os trecircs ordenada pelo pai A protagonista
refere
Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre
com o lsquoFairlane rabo-de-peixersquo A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos
enterrado o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como
eram- mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos
ancorava no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de
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constituir o corpo de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo
fosse do jeito e na hora que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH
2006 p93)
Quando refere lsquoEssa ordem sei agora era o que nos ancorava no mundorsquo estaacute
expressando que sob a perspectiva adulta consegue ver a razatildeo da imposiccedilatildeo do pai ancorar os
filhos no mundo Estabelecia-se uma dicotomia entre a postura da Voacute Magra que partilhava seu
prazer alimentar com os netos e a do pai que assumia a funccedilatildeo de impor normas aos filhos Para
a narradora essa divisatildeo era contundente a bagagem de carinho da avoacute materna era o paraiacuteso a
forccedila da voz paterna era o inferno restringia definia acusava ordenava proibia O livro traz
todo o conflito da narradora personagem em seu tracircnsito por essa dicotomia ao longo da vida ateacute
apresentar os resultados do excesso de comer em seu corpo os terriacuteveis vinte e dois quilos ou
cento e dez tabletes de manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha
A ordem paterna para a dieta transforma-se na idade adulta na ordem do meacutedico
tambeacutem uma voz impositiva ameaccediladora e acusatoacuteria Essa eacute expressa jaacute no proacutelogo quando a
protagonista conta o motivo de sua reflexatildeo sobre a histoacuteria familiar e a pessoal para
compreender o porquecirc de chegar ao excesso de peso
- Vocecirc natildeo estaacute gorda
Certo meu estado natildeo era transitoacuterio a gordura nunca foi um episoacutedio solteiro em
minha vida eu sabia ele nem precisava ir adiante Mas ele foi
- Vamos fazer suas ceacutelulas adiposas murcharem -Pediu minha atenccedilatildeo com a caneta no
ar- sei que parece injusto mas a natureza a fez assim Vocecirc eacute gorda
Uma vez mais de novo (MOSCOVICH 2006 p15)
A uacuteltima frase lsquouma vez mais de novorsquo refere-se possivelmente agrave lembranccedila sobre o
veredito do pai na infacircncia quando mandou que ela e os irmatildeos fizessem dieta O prazer de
comer tornava-se sempre transgressor da ordem sempre um mundo proibido e recheado de
culpas impostas por terceiros Por mais que ela natildeo quisesse sentir as culpas aprendera que
deveria senti-las para afastar-se do prazer
Com a evoluccedilatildeo da dieta conduzida pelo meacutedico a personagem comeccedila a conseguir
emagrecer e a perda de peso vai ganhando por sua vez gosto de vitoacuteria Emagrecer tambeacutem se
torna um prazer o que reflete a sua conscientizaccedilatildeo para a mudanccedila de haacutebitos e mais ainda
para o seu amadurecimento Haacute na protagonista a consciecircncia de sua responsabilidade pelas
escolhas alimentares e pelo resultado da dieta em sua sauacutede A mudanccedila de postura destaca-se
atraveacutes do termo lsquoum deliacuteriorsquo ponto em que se percebe sua capacidade de avaliar o que pode e o
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que natildeo pode comer sem precisar ouvi-lo de terceiros A personagem conta o que sente
demonstrando sua disposiccedilatildeo para mudar a atitude frente agrave comida
Uma enorme vontade de comer uma daquelas refeiccedilotildees de estivador arroz feijatildeo ovo
frito massa bife na chapa purecirc de batatas salada de tomate e cebola Tudo num uacutenico
prato fundo e transbordante Para beber uma daquelas cervejas pretas docinhas das
quais se dizia que eram boas para mulheres que amamentavam Sobremesa pudim de
leite
Soacute vontade Um deliacuterio
Descobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um punhado de
parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagado Tambeacutem descobri que atum em lata e
dois ovos duros saciam por mais de quatro horas Uma xiacutecara de cafeacute e um pedaccedilo de
queijo enganam a fome por um bom tempo Disso eu sabia mas tinha me esquecido
Fui verificar meu peso um quilo e novecentos gramas a menos (MOSCOVICH 2006
p125-126)
A passagem acima ilustra um periacuteodo da personagem jaacute adulta em seu progresso durante
a dieta Quando ela diz lsquoDescobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um
punhado de parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagadorsquo (MOSCOVICH 2006 p125-126)
estaacute demonstrando que jaacute eacute capaz de encontrar prazer e sabor dentro da dieta ao inveacutes de lutar
com as restriccedilotildees como fez desde a infacircncia Eacute nesse momento que a comida assume um caraacuteter
de transformaccedilatildeo na narrativa a mudanccedila de postura em relaccedilatildeo ao foco de prazer na comida de
uma lauta refeiccedilatildeo ao novo modo de temperar a salada Como resultado a perda de peso
O significado de tal mudanccedila estaacute justamente na conscientizaccedilatildeo que representa Ao dizer
lsquoSoacute vontade Um deliacuteriorsquo a protagonista expressa conhecer os perigos de lsquouma daquelas refeiccedilotildees
de estivadorrsquo como a que descreve Mostrando a mudanccedila de possibilidades estaacute dizendo a si
mesma que compreendeu que eacute preciso mudar a fonte de prazer para atingir o emagrecimento
proposto pelo meacutedico
Nesse momento aliaacutes a ordem natildeo vem mais do pai natildeo vem mais do meacutedico E nem eacute
mais uma ordem Eacute entatildeo uma escolha E o melhor de tudo parte da proacutepria narradora
personagem em seu percurso no anseio do que pede agrave sua matildee no proacutelogo ldquoMamatildee me
endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar esse territoacuterio
metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora Quero voltar a ter um
corpordquo (MOSCOVICH 2006 proacutelogo)
A voz para a matildee eacute na verdade a voz em que ela se permite emitir essa narrativa Em
essecircncia a voz eacute dirigida a si mesma e o pedido para lsquovoltar a ter um corporsquo segue o verbo
querer na primeira pessoa do singular no presente do indicativo Eacute a afirmaccedilatildeo de um desejo de
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uma escolha Natildeo eacute o pai natildeo eacute o meacutedico natildeo eacute a interlocuccedilatildeo com a matildee A lei agora eacute sua
segue seu proacuteprio querer Da refeiccedilatildeo de estivador agraves alternativas possiacuteveis a narradora mostra o
que compreendeu eacute agente da proacutepria transformaccedilatildeo eacute emissora da proacutepria voz Tem um corpo
sim Mais do que isso tem um novo querer tambeacutem prazeroso e mais saudaacutevel o
emagrecimento
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3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS
Levantei-me as pernas agora quase firmes desci os degraus da porta ateacute a calccedilada
buscando algo para comer e o que havia no meu raio de visatildeo era uma carrocinha de
pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me desde que horas ele estava ali se
tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda
agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido Cheguei junto dele remexendo a bolsa
agrave procura de uns trocados que tivessem restado da farra de salgadinhos e biscoitos da
Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada desde entatildeo (REZENDE 2014
p147)
Comida eacute alimento nutriccedilatildeo sobrevivecircncia Eacute palavra feita de carne de aboacutebora de
arroz Tangiacutevel Comemos para nutrir as ceacutelulas mas tambeacutem para garantir nossa autonomia
porque comida eacute escolha eacute expressatildeo de si mesmo gosto disso prefiro aquilo Comida eacute
exerciacutecio de liberdade no quando no quanto no onde no que comer E comer eacute matar a fome e
satisfazer o apetite na comida de rua servida no papel pardo ou na mesa posta com talheres
prato copo guardanapo Comemos intransitivos ou transitivos sozinhos ou acompanhados
Comemos para atravessar mais um dia para seguir existindo como oacutergatildeos viacutesceras cinco
sentidos Mastigar salivar engolir digerir metabolizar excretar eis o trajeto da comida atraveacutes
do organismo tornando-se parte de quem somos E comemos para continuar sendo
31 QUARENTA DIAS
Quarenta dias eacute o livro escrito por Maria Valeacuteria Rezende editado pela Editora Record
em 2014 A narrativa traz a histoacuteria de Alice mulher de meia-idade que a pedido de sua filha
muda-se de Joatildeo Pessoa para Porto Alegre A contragosto deixa sua casa e sua vida as amizades
e os afazeres e segue a demanda da filha para que se torne lsquovoacute profissionalrsquo jaacute que a moccedila e seu
esposo decidem ter um filho
A personagem faz a mudanccedila de tudo o que tem caixas e caixas para a nova cidade em
apartamento escolhido e alugado pela filha e o genro No entanto em um jantar na casa do casal
recebe a notiacutecia de que decidiram passar um periacuteodo fora do paiacutes para suas especializaccedilotildees
acadecircmicas Assim adiaram os planos de gravidez motivo pelo qual ela havia abandonado seu
habitat e aceito uma imposiccedilatildeo pelo desejo da moccedila em ser matildee Partiriam em poucos dias logo
apoacutes Alice ter chegado em sua nova moradia
93
No desterro de seu lar e sozinha na capital gauacutecha a personagem transfere seu territoacuterio
de nutriccedilatildeo para a rua para o espaccedilo representado pelo coletivo pela cidade e natildeo para a cozinha
nova e moderna do apartamento Haacute sobretudo um deslocamento primordial na narrativa a
lsquoexpulsatildeorsquo de suas reflexotildees para as paacuteginas do diaacuterioepiacutestola em que Alice escreve de si
dirigindo-se a uma interlocutora Barbie a figura na capa do caderno que encontrara entre as
caixas da mudanccedila
No iniacutecio de sua vida em Porto Alegre esconde-se em casa fingindo ter viajado para o
interior na casa de primos Entatildeo mune-se de um motivo benevolente que usa para justificar
suas caminhadas a qualquer pessoa com quem encontre a busca freneacutetica pelo rapaz conterracircneo
Ciacutecero Arauacutejo perdido no Sul Nessa missatildeo esquece o proacuteprio endereccedilo e decide por viver um
paradoxo casa que natildeo eacute casa rua que natildeo eacute rua Externo que se torna interno porque eacute parte
dela Rua que eacute casa parece em sendo casa na rua encontra abrigo para a solidatildeo na rua
encontra alimento para as fomes que sente Fome de comida sim mas para aleacutem desta a fome de
ser lsquosi mesmarsquo de novo
Sozinha perde-se de si de seus referenciais familiares dos telefones que tem na
memoacuteria dos sentidos de sua proacutepria vida Tem no desaparecido a razatildeo temporaacuteria para sua
andanccedila sem paradeiro Procurar um jovem de sua terra que veio para Porto Alegre eacute uma boa
desculpa para algueacutem que percorre uma cidade em seus pontos mais perigosos ou naqueles mais
dramaacuteticos como o Hospital de Pronto-Socorro Nem vestiacutegio de Ciacutecero mas laacute encontra um
banco de madeira onde pode dormir
Em seus trajetos transfere o espaccedilo ocupado pela cozinha que eacute o de preparar a nutriccedilatildeo
para um espaccedilo coletivo e itinerante Padarias pequenos botecos nas vilas que percorre carrinhos
de pipoca e de cachorro-quente restaurante da rodoviaacuteria em que escuta um sotaque familiar
comida ofertada aos sem-moradia nas madrugadas Sem desejar voltar para casa Alice passa a
habitar a rua Faz amigos ao longo do caminho pessoas que se preocupam mais com ela do que
sua filha Mas isso ela quer esquecer quer apagar e estabelece um objetivo firme de resgatar um
desaparecido pelos recantos mais insoacutelitos e arriscados da cidade
A representaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo itinerante eacute um fator muito consistente na obra
Porque a cozinha eacute territoacuterio fiacutesico definido por moacuteveis objetos e eletrodomeacutesticos que a
compotildeem mas eacute tambeacutem simboacutelico nela vivem nutriccedilatildeo afeto famiacutelia intimidade Transferir
tal importacircncia para o externo para o alheio a si eacute como um transplante ao contraacuterio
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O deslocamento na representaccedilatildeo dessa forccedila que transcende o objetivo meramente
nutricional expressa a ausecircncia de ninho vivenciada pela personagem Ela escolhe transplantar
sua vida para o lado de fora da porta escolhe a solidatildeo no meio do coletivo para apagar a solidatildeo
em silecircncio dentro das paredes de uma casa (e natildeo um lar) que a filha e o genro definiram para
ela Ao menos assim eacute ela quem escolhe Autonomia O que comer onde viver onde dormir
onde se banhar Por pior que seja o banho na rodoviaacuteria eacute sua voz eacute sua decisatildeo Por pior que
seja a noite no banco duro de madeira do Pronto-Socorro a pipoca do carrinho que fica ali na
frente o natildeo-ter-para-onde-ir fingindo estar na busca desenfreada pelo desaparecido eacute sua
proacutepria voz que precisa escutar Eacute pelo aparecimento de sua identidade perdida que faz
peregrinaccedilotildees pelos becos mais sombrios por onde se propotildee a percorrer
Ao longo do percurso do livro enquanto parece perder-se cada vez mais de seus
referenciais de sua memoacuteria mais firma o passo mais decide onde ir E suas frases no diaacuterio
vatildeo ganhando pontos-finais ao relatar o ocorrido agrave medida em que se lembra e se torna mais
capaz de contar da redescoberta de sua identidade Na crise da personagem atraveacutes desse
desalojamento de um habitat seguro dessa saiacuteda para fora da porta ocorre a habitaccedilatildeo de um
novo espaccedilo o proacuteprio eu Em seus percursos defronta-se com a perda dos referenciais antigos
da casa de sempre da memoacuteria que lhe permitiria voltar para o eixo seguro da nutriccedilatildeo estaacutevel
na intimidade soacutelida da cozinha
Alice desloca-se durante a maior parte da narrativa Desloca-se de sua terra natal para
Porto Alegre e nessa capital transita entre avenidas principais e becos escondidos entre
viadutos e casas de estranhos entre floriculturas e terrenos baldios Desloca-se de si mesma
quando decide natildeo voltar agrave casa escolhida para ela Escolhida eacute voz passiva voz que ela quer
transcender
Distrai-se com a histoacuteria do desaparecimento de Ciacutecero Arauacutejo com a confusatildeo mental
que se instala entre fome-frio-sono-exaustatildeo Tudo isto para natildeo lembrar volta-se para fora e
desse modo esquece o dentro Desloca o foco das confissotildees que faz a si sendo um diaacuterio para
Barbie como um sucessivo contar de eventos e emoccedilotildees em escritos que mais parecem cartas
Mais uma vez dentro e fora se conjugam pois acontecem num simultacircneo mas estatildeo
dissociados Alice dirige para fora suas reflexotildees para um terceiro entatildeo dissocia-se de si para
olhar para si
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Em um determinado ponto refere ldquoNatildeo Barbie esta noite natildeo dormi em saguatildeo nem em
parque nenhum Natildeo vecirc como estou bem-disposta a sentar-me pegar a caneta e continuar
escrevendo aqui nesta cozinha depois desta noite bem-dormida na suiacutete deste apartamento que
me esforccedilo para aceitar finalmente como meurdquo (REZENDE 2014 p163)
Estaacute dentro de casa mas ainda natildeo faz parte dela em verdade situa-se fora dali no sentir
Demonstra isso quando usa lsquobem-disposta nesta cozinha deste apartamento como meu me
esforccedilo para aceitarrsquo Tal dissociaccedilatildeo identitaacuteria eacute expressa por um permanente desconexatildeo
consigo Perde-se de sua casa e de seus referenciais para descobrir o paradeiro de Ciacutecero Arauacutejo
com o firme propoacutesito de encontrar um motivo que alinhave seus dias em Porto Alegre dentro de
si o sentido estaacute fora de si Nessa desconexatildeo descobre uma Alice nascente
Chega Barbie agora eu paro mesmo que jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia
guria a solidariedade silenciosa mas agora vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a
mal taacute natildeo digo que seja pra sempre quem sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo
a limpo (REZENDE 2014 p245)
Eacute possiacutevel ler que aquilo que estava fora sua narrativa epistolar para a Barbie seraacute
entregue ao mundo da gaveta o interno e passe a habitar esse lsquodomiciacuteliorsquo escondido Entretanto
Alice jaacute internalizou marcas de linguagem regionais como as tachadas em negrito lsquoguriarsquo e lsquotu
natildeo leva a mal taacutersquo significando esse ponto uma transformaccedilatildeo de aspectos de sua identidade a
incorporaccedilatildeo da linguagem oral como proacutepria Internalizou o que estava fora tornou-o seu
tambeacutem passou a sentir-se parte Como resultado guardou no interno na gaveta seu diaacuterio que
sendo comunicaccedilatildeo consigo era dirigido a um interlocutor
Esse eacute o permanente tracircnsito do livro essa dissociaccedilatildeo permeia cada vivecircncia e eacute atraveacutes
dessa mobilidade que Alice pode ver a si mesma e se transformar Sacudida pelo real perigo de
sua itineracircncia permanente aproxima-se do fim de sua busca por um Ciacutecero que nem espera mais
encontrar
Ao longo da narrativa haacute frases sem ponto final no teacutermino dos capiacutetulos e muitas vezes
com ideias inacabadas Um elemento ligado a esse aspecto eacute o das muacuteltiplas linguagens surgem
epiacutegrafes vindas de outros autores contemporacircneos e em vaacuterias partes do livro elementos
graacuteficos aludindo a folhetos colados no diaacuterio Assim a ruptura da linguagem linear adotando
uma expressatildeo proacutepria eacute composta por frases descontiacutenuas e de outras em que a viacutergula daacute
apenas a pausa necessaacuteria ao ritmo da voz sem preocupaccedilotildees formais com a gramaacutetica
Prevalece aliaacutes o registro do informal com letras maiuacutesculas seguindo viacutergulas interrogaccedilotildees
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no meio da frase sem uma letra maiuacutescula a seguir e assim por diante trazendo muito mais um
lsquocomo se falarsquo do que um lsquocomo se lecircrsquo
Tal elemento alia-se a um projeto graacutefico que apresenta aleacutem de texto imagens para
contemplar a lsquoformarsquo do livro como um diaacuterio Esta complementaridade toca em um tema de
grande relevacircncia no contemporacircneo a ligaccedilatildeo das artes para expressar um todo que ultrapasse
os territoacuterios particulares uma intersecccedilatildeo de saberes e de poeacuteticas que independentes em sua
importacircncia complementem-se As figuras lsquocoladasrsquo no diaacuterio natildeo parecem ter conexatildeo entre si
mas transmitem a ideia de uma escolha Foram postas ali por Alice Natildeo parece haver unidade
entre as imagens Colagem de figuras mas tambeacutem de vinhetas que se tornam epiacutegrafes sem
conexatildeo aparente entre si Essa ausecircncia de conexatildeo eacute possivelmente o que a obra pretende
comunicar com suas dissociaccedilotildees e com as frases descontiacutenuas agrave medida que a personagem
percorre o trajeto da autonomia as frases vatildeo ganhando finalizaccedilatildeo Ela comeccedila a decidir
Nesse livro a ausecircncia de unidade parece representar exatamente o contraacuterio sua
unidade Outro ponto a ser ressaltado eacute o fato de o diaacuterio ser escrito em uma mistura de tempos
natildeo seguindo a cronologia tiacutepica dos diaacuterios Muito do texto referente agrave eacute registrado em olhar
retrospectivo a todo o periacuteodo e natildeo segue uma ordem temporal tiacutepica em que a escrita iacutentima
sucede cada evento Mistura de tempos e de autores escolhidos para as epiacutegrafes e de figuras
selecionadas para compor o percurso lsquograacuteficorsquo da personagem como a nota da padaria a
propaganda da imobiliaacuteria a divulgaccedilatildeo da cliacutenica de traumatologia e por aiacute vai
Quarenta dias acontece no cerne mais cru da capital as vilas as avenidas movimentadas
a rodoviaacuteria os viadutos de moradores de rua os becos as paradas de ocircnibus o pronto-socorro
os cenaacuterios tiacutepicos de apartamento de lsquocidade grandersquo
Alice eacute uma personagem urbana implantada em Porto Alegre sem colar-se agrave cidade mas
que quanto mais se torna moradora de rua mais se torna pertencente ao mapa porto-alegrense
Mesmo sem perceber Faz-se aderida agraves ruas aos becos agraves vilas aos botecos agraves paradas de
ocircnibus onde dorme Eacute fio da trama quer estar fora porque reluta em aceitar a vida que a ela foi
imposta pela filha Neste processo cria uma vida para si cria um olhar para a cidade que vai
habitando No geruacutendio Alice torna-se parte Faz-se parte quando adentra a rua os viadutos
habitados agrave noite os crimes em matagais o cafeacute e o mate e o cachorro-quente oferecidos pelos
voluntaacuterios na madrugada O banho na rodoviaacuteria o banco duro de madeira onde dorme no HPS
Alice vai tomando voz vai tomando-se de sua voz que haacute tempos natildeo ouvia
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32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS
Fenocircmenos psiacutequicos como a consciecircncia a memoacuteria a emoccedilatildeo o pensamento e o juiacutezo
criacutetico entre outros satildeo estudados principalmente pelo campo da Fenomenologia Psiquiaacutetrica
esses constituem os pilares para a avaliaccedilatildeo do estado mental de um indiviacuteduo O psiquiatra
examina a qualidade da expressatildeo dos mesmos na entrevista com o paciente verificando se estatildeo
dentro da normalidade ou se apresentam desvios compatiacuteveis com um quadro psicopatoloacutegico
Algumas capacidades satildeo compostas por um conjunto desses fenocircmenos e natildeo apenas por um
esse eacute o caso da autonomia
O indiviacuteduo natildeo nasce com autonomia Esta deve ser estimulada pelos pais desde o
momento em que a crianccedila deixa de mamar no peito e comeccedila a receber a alimentaccedilatildeo soacutelida
Brinca de fechar a boca enquanto a colher vem com a papinha O comer eacute a primeira autonomia
depois da dependecircncia representada pela amamentaccedilatildeo Entatildeo a crianccedila aprende a segurar a
colher entatildeo pouco a pouco os outros talheres Aprende a gostar de comer isso ou aquilo a
apontar o que deseja em seu prato A autonomia vai sendo aprendida na infacircncia pelo engatinhar
e pelo caminhar Segue-se o controle dos esfiacutencteres que vai sendo aprendido o limpar-se o
tomar banho o ficar sem os pais no maternal E tantas outras conquistas ensinadas e estimuladas
para a aquisiccedilatildeo dessa capacidade Entretanto limitaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas podem desde o
iniacutecio da vida restringir seu desenvolvimento
Jaspers compreende as manifestaccedilotildees psiacutequicas tendo como base elementos da
Fenomenologia Desse modo a autonomia resultaria de um conjunto de fatores que em bom
funcionamento determinariam a adequada manutenccedilatildeo dessa capacidade Em contrapartida o
neurocientista Antocircnio Damaacutesio eacute apresentado nesta fundamentaccedilatildeo por suas pesquisas
neurobioloacutegicas sobre o fenocircmeno da consciecircncia na qual aponta existir o nuacutecleo da consciecircncia
de si Nesta estaria o cerne para a autonomia
A escolha e a independecircncia paracircmetros que estatildeo associados agrave essa capacidade
necessitam que haja no ser humano em primeiro lugar a consciecircncia e nesta a consciecircncia de
si a escolha e a decisatildeo acontecem no domiacutenio do pensamento mas envolvem tambeacutem as
emoccedilotildees (representadas pelo afeto e o humor) e o juiacutezo criacutetico Por fim a escolha se realiza
atraveacutes de uma accedilatildeo expressa pela conduta Todos esses elementos satildeo fenocircmenos psiacutequicos que
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compotildeem a capacidade de autonomia de um indiviacuteduo Quando essa se apresenta reduzida por
algum dos paracircmetros indicados avalia-se a presenccedila ou a ausecircncia de normalidade por
conseguinte avalia-se a existecircncia de psicopatologia Os outros fenocircmenos - atenccedilatildeo orientaccedilatildeo
memoacuteria sensopercepccedilatildeo inteligecircncia e linguagem- estatildeo presentes na avaliaccedilatildeo do estado
mental do indiviacuteduo compondo tambeacutem sua autonomia no entanto apresentam-se em grau de
menor relevacircncia para seu desenvolvimento
Aleacutem de escolha independecircncia consciecircncia de si e decisatildeo outras expressotildees podem
ser associadas a seu exerciacutecio liberdade individualidade vontade self eu Em termos
etmoloacutegicos a palavra autonomiacutea procede do latim autonomĭa e esta por sua vez do grego
αὐτονομία (autonomia) formada por αὐτός (autoacutes) que significa lsquomesmorsquo e νόμος (noacutemos) lsquoleirsquo
ou lsquonormarsquo Assim seria possiacutevel compreender que o significado aponta para a noccedilatildeo de
autonomia como lsquoleis para si mesmorsquo ou seja as leis que o proacuteprio indiviacuteduo define para sua
vida
Considerando a autonomia como capacidade eacute necessaacuterio apontar que em casos de
sofrimento psiacutequico essa apresenta-se muitas vezes reduzida pois o sofrer acaba por reduzir a
possibilidade de o indiviacuteduo sentir-se livre para as proacuteprias escolhas Em ateacute que ponto este
quadro representa uma circunstacircncia normal e a partir de qual se torna patoloacutegico O sofrimento
pode resultar de uma crise vital com duraccedilatildeo por um periacuteodo esperado e apresentaccedilatildeo de
sintomas dentro da normalidade ou pode resultar do adoecimento do indiviacuteduo com sintomas
presentes em intensidade maior e por periacuteodo mais longo A restriccedilatildeo da liberdade e portanto da
autonomia ocorreraacute de acordo com o tipo e com a duraccedilatildeo deste sofrimento Tal diminuiccedilatildeo na
narrativa pode ser vista de dois modos como parte do sofrimento psiacutequico vivenciado pela
personagem e como perda real de sua experiecircncia de autonomia jaacute que teve sua vinda ao Sul
definida pela escolha da filha Natildeo por sua decisatildeo Eacute por perceber-se nesta condiccedilatildeo que Alice
parte na direccedilatildeo de sua autonomia para sentir-se livre novamente
Karl Jaspers apresenta elementos relacionados agrave autonomia em sua obra Psicopatologia
geral sem que esse termo propriamente dito seja conceituado ou explicitado A expressatildeo mais
proacutexima eacute a da consciecircncia do eu considerada dentre o que ele estabelece como lsquofenocircmenos
subjetivos da vida psiacutequicarsquo Esta consciecircncia estaacute na base fundamental para o desenvolvimento
da autonomia ao lado de outro fenocircmeno apontado o da lsquoconsciecircncia do corporsquo
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Na apresentaccedilatildeo da lsquoconsciecircncia do eursquo Jaspers define quatro componentes o primeiro eacute
o sentimento de atividade uma consciecircncia de atividade do eu Este se refere a tudo o que ocorre
na vida psiacutequica e que o indiviacuteduo identifica como seu a exemplo de percepccedilotildees sensaccedilotildees do
corpo lembranccedilas representaccedilotildees pensamentos e sentimentos Todas essas atividades do eu que
o caracterizam satildeo operaccedilotildees pessoais realizadas em si mesmo e identificadas como proacuteprias e
compotildeem o que o autor denomina personalizaccedilatildeo Quando haacute alteraccedilatildeo desses aspectos usa-se o
termo despersonalizaccedilatildeo fenocircmeno que pode ser descrito como o estranhamento do eu a
percepccedilatildeo de que tudo o que ocorre com o indiviacuteduo eacute na verdade alheio ao mesmo
Tal estranhamento ocorre no mundo das percepccedilotildees junto agrave ausecircncia de sensaccedilotildees
normais do proacuteprio corpo agrave incapacidade subjetiva de recordar-se de dados referentes a si agrave
inibiccedilatildeo dos sentimentos e ao automatismo de processos voluntaacuterios Tudo passa a constituir um
conjunto de atividades alheias ao eu e que em condiccedilotildees de normalidade deveriam ser
compreendidas como proacuteprias
O segundo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia da unidade ou seja a
unidade do eu Esta se refere agrave possibilidade de o indiviacuteduo perceber a si mesmo como unidade
ser um soacute no mesmo instante e natildeo como dois seres distintos ainda que atraveacutes de accedilotildees
diferentes (como ouvir a proacutepria voz enquanto fala e reconhecer que eacute sua proacutepria voz) A
alteraccedilatildeo da unidade do eu ocorre quando haacute um desdobramento da percepccedilatildeo de si observando
o eu como se estivesse fora dele
O terceiro componente da consciecircncia do eu eacute a consciecircncia da identidade ou seja a
identidade do eu Com a frase lsquosou o mesmo de antesrsquo refere-se agrave identidade como a consciecircncia
de ser o mesmo indiviacuteduo no seguir do tempo a constacircncia de si proacuteprio A alteraccedilatildeo deste
fenocircmeno leva o paciente a perceber o lsquoeursquo de um periacuteodo de vida como diferente do lsquoeursquo de
outro periacuteodo como antes e depois da instalaccedilatildeo de uma doenccedila psiacutequica por exemplo
O uacuteltimo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia do eu em oposiccedilatildeo ao mundo
externo e ao outro em que o indiviacuteduo eacute capaz de reconhecer a proacutepria identidade e de percebecirc-la
distinta do mundo externo e da identidade de outra pessoa Existe nesse componente a clara
contraposiccedilatildeo entre este indiviacuteduo e o mundo externo
Tais elementos constituem assim a lsquoconsciecircncia do eursquo base para a percepccedilatildeo das
proacuteprias necessidades e desejos neste sentido constituem tambeacutem a base para as escolhas
individuais no plano do pensamento dos sentimentos e das accedilotildees compreendidas pelo indiviacuteduo
100
como proacuteprias a si Ao lado dos componentes apresentados estaacute a consciecircncia do corpo Sobre
essa consciecircncia Jaspers refere
[] sou consciente do meu corpo como de minha existecircncia e contemporaneamente eu o
vejo com os olhos e o toco com as matildeos O corpo eacute a uacutenica parte do mundo que deve ser
sentida ao mesmo tempo pelo interno e percebida na superfiacutecie Esse eacute um objeto para
mim e sou esse mesmo corpo Satildeo duas coisas diferentes como me sinto
corpoereamente e como me percebo como objeto mas as coisas satildeo ligadas de modo
indissoluacutevel (JASPERS 2000 p95)
De acordo com o autor essa deve ser conhecida do ponto de vista fenomenoloacutegico
mediante a percepccedilatildeo de nossa experiecircncia global com nosso corpo Essa consciecircncia estaacute mais
proacutexima agrave lsquoconsciecircncia do eursquo nas atividades musculares e de movimento mais distantes das
sensaccedilotildees associadas ao coraccedilatildeo e agrave circulaccedilatildeo e ainda mais afastadas das sensaccedilotildees oriundas da
atividade vegetativa Enquanto o movimento eacute resultado das funccedilotildees voluntaacuterias os mecanismos
fisioloacutegicos vinculados ao coraccedilatildeo agrave circulaccedilatildeo e agrave atividade vegetativa satildeo inerentes agrave vida do
ponto de vista bioloacutegico e portanto involuntaacuterios A consciecircncia do corpo associada agravequela do
eu eacute referida por Jaspers por determinados fatores
Temos um sentimento especiacutefico da nossa existecircncia corpoacuterea no movimento e no
comportamento na forma na leveza e graccedila ou no peso na falta de agilidade motora na
impressatildeo que desejamos que nosso corpo desperte no outro no estado de fraqueza ou
de forccedila nas alteraccedilotildees da sauacutede [] A experiecircncia do proacuteprio corpo eacute ligada
estritamente do ponto de vista fenomenoloacutegico com a experiecircncia do sentimento das
pulsotildees instintivas da consciecircncia do eu (JASPERS 2000 p96)
Essas duas expressotildees da consciecircncia a do eu e a do corpo compotildeem o indiviacuteduo capaz
de perceber a si mesmo como unidade com uma identidade constante no tempo uacutenica em si
mesma e contraposta ao mundo externo a si e a outras pessoas De acordo tambeacutem com Jaspers
ldquo[] o corpo eacute a realidade da qual se pode dizer eu sou esse mesmordquo (JASPERS 2000 p383) O
autor refere que ldquo[] a situaccedilatildeo fundamental do ser humano eacute a estar no mundo como ser
singular finito ser dependente mas ter a possibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevel limitado
por confins obrigatoacuteriosrdquo (JASPERS 2000 p352) Em tal reflexatildeo a autonomia do indiviacuteduo
estaacute nesta lsquopossibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevelrsquo determinada pelo autor Entretanto ele
define tal possibilidade associada a confins obrigatoacuterios que delimitam o espaccedilo individual
Jaspers estabelece os limites entre autossuficiecircncia e dependecircncia apontando que somos
seres dependentes em nossa realidade e que a autossuficiecircncia completa eacute um ideal inatingiacutevel
101
[] no homem haacute a tendecircncia a imaginar-se um ser ideal que fechado em si seja
autossuficiente e que satisfeito em si mesmo viva sem sentir necessidade de qualquer
coisa do externo porque ele existe em si mesmo em abundacircncia infinita Se o homem
quiser tornar-se tal ser deveraacute compreender de modo draacutestico que eacute simplesmente
dependente em tudo Ele como ser vital tem necessidades que soacute podem ser satisfeitas
pelo externo Ele deve viver e valer na sociedade para participar aos bens necessaacuterios agrave
vida Ele deve viver com outros seres humanos em reciprocidade (JASPERS 2000
p354)
Assim para Jaspers a consciecircncia de si e a consciecircncia do corpo formam a unidade do ser
individual que pode agir em um espaccedilo mutaacutevel no qual o indiviacuteduo eacute consciente se si mesmo e
das proacuteprias accedilotildees mas cuja autossuficiecircncia eacute condicionada a confins obrigatoacuterios a realidade
externa os bens necessaacuterios agrave vida (alimentos moradia recursos econocircmicos para vestir-se e
deslocar-se por exemplo) e os outros indiviacuteduos com quem este interage em suas relaccedilotildees
interpessoais A autonomia assim acontece dentro de um espaccedilo definido por limites reais do
mundo externo
O neurologista e neurocientista Antonio Damaacutesio assim como Jaspers tambeacutem
estabelece uma associaccedilatildeo direta entre a consciecircncia do eu e o corpo O elemento da consciecircncia
do indiviacuteduo sobre si mesmo eacute denominado por ele de Self e eacute parte da estrutura que define
como consciecircncia Damaacutesio parte da comparaccedilatildeo do ser humano com organismos unicelulares e
estabelece
Uma chave para compreendermos os organismos vivos desde aqueles compostos de
uma uacutenica ceacutelula ateacute os formados por bilhotildees de ceacutelulas eacute a definiccedilatildeo de sua fronteira a
separaccedilatildeo entre o que estaacute dentro deles e o que estaacute fora A estrutura do organismo estaacute
dentro da fronteira e a vida do organismo eacute definida pela manutenccedilatildeo dos estados
internos agrave fronteira E a individualidade singular depende dessa fronteira (DAMAacuteSIO
2000 p178)
A referecircncia de Antonio Damaacutesio estaacute de acordo com a perspectiva de Karl Jaspers no
que tange agrave lsquoindividualidade singularrsquo dentro da fronteira separada do mundo externo a parte de
fora dessa fronteira O neurocientista explicita que o indiviacuteduo singular deve apresentar
sobretudo ldquo[] um grau notaacutevel de invariacircncia estrutural para que consiga oferecer uma unidade
de referecircncia no decorrer de longos periacuteodosrdquo acrescentando que ldquo[] de fato continuidade de
referecircncia eacute o que o self precisa proporcionarrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Essa continuidade de
referecircncia coincide com um dos componentes da lsquoconsciecircncia do eursquo definida por Jaspers aquele
em que o indiviacuteduo permanece com a percepccedilatildeo de si mesmo ao longo do tempo
102
O aspecto que se relaciona agrave reflexatildeo sobre a autonomia a partir da leitura de Damaacutesio
encontra-se em tal continuidade ligada por sua vez ao que ele aponta como estabilidade Este
autor refere que ldquo[] quando refletimos acerca do que estaacute por traacutes da noccedilatildeo de self encontramos
a noccedilatildeo do indiviacuteduo singular E quando pensamos no que estaacute por traacutes da singularidade do
indiviacuteduo encontramos a estabilidaderdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Quando se refere agrave noccedilatildeo de
estabilidade Damaacutesio estaacute na verdade apresentando a ideia de que um organismo vivo deve ter
constacircncia em seu meio interno para manter a vida e essa constacircncia pode ser explicada nas
palavras do autor como ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados internos de modo
que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Ao trazer a noccedilatildeo de constacircncia o autor estaacute falando em organismo e sobretudo em
sobrevivecircncia A chave de sua reflexatildeo reside no fato de remeter-se agrave noccedilatildeo de estabilidade dos
paracircmetros do organismo compatiacuteveis com a vida para chegar ao fenocircmeno da consciecircncia do
eu Damaacutesio aponta que
Um organismo simples formado de uma uacutenica ceacutelula digamos uma ameba natildeo apenas
estaacute vivo mas se empenha em continuar vivo Sendo uma criatura sem ceacuterebro e sem
mente a ameba natildeo sabe sobre as intenccedilotildees do seu proacuteprio organismo assim como noacutes
sabemos sobre nossas intenccedilotildees equivalentes [] O que estou tentando mostrar eacute que o
iacutempeto de manter-se vivo natildeo eacute um avanccedilo recente Natildeo eacute uma propriedade exclusiva
dos seres humanos De um modo ou de outro dos organismos simples aos complexos a
maioria dos seres vivos apresenta essa propriedade O que efetivamente varia eacute o grau
em que os organismos tecircm conhecimento desse iacutempeto Poucos deles tecircm Mas o iacutempeto
estaacute presente quer o organismo saiba disso ou natildeo Graccedilas agrave consciecircncia os humanos
satildeo em grande parte cientes dele (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Eacute possiacutevel compreender entatildeo a referida estabilidade como o iacutempeto do organismo em
manter-se vivo nos seres humanos existe a consciecircncia desse iacutempeto O indiviacuteduo singular
como denomina o autor eacute consciente de sua sobrevivecircncia que ocorre no ambiente interno de
sua fronteira ou seja em seu corpo Para conservaacute-la com a estabilidade necessaacuteria agrave
permanecircncia de vida deve manter constantes paracircmetros internos em sua fisiologia Comer
dormir beber liacutequidos proteger-se de extremos de temperatura urinar e defecar algumas das
funccedilotildees que realizamos conscientemente para responder a essa finalidade cumprimos
necessidades vitais respondemos ao iacutempeto do organismo em manter-se vivo mas o realizamos
com o claro propoacutesito de fazecirc-lo Damaacutesio refere que ldquo[] a cada momento o ceacuterebro tem agrave sua
disposiccedilatildeo uma representaccedilatildeo dinacircmica de uma entidade com variaccedilotildees limitadas de estados
possiacuteveis- o corpordquo (DAMAacuteSIO 2000 p186)
103
A consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo portanto estatildeo na base do indiviacuteduo
singular A manutenccedilatildeo do ambiente dentro da fronteira nosso corpo eacute realizada por nossa
consciecircncia no cumprimento de nossas funccedilotildees vitais de certo modo escolhemos cumprir tais
funccedilotildees ao respeitarmos necessidades fisioloacutegicas entre elas comer e dormir Assim
sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas por um elemento em comum a consciecircncia que o
indiviacuteduo tem de si mesmo Entretanto deve-se salientar que a autonomia eacute uma capacidade que
poderaacute existir em maior ou menor grau durante o ciclo vital pois depende das possibilidades
fiacutesicas e psiacutequicas do ser humano em responder agraves exigecircncias da vida dentro de paracircmetros de
normalidade
Alguns elementos podem restringir a capacidade de autonomia sendo o sofrimento
psiacutequico um deles por reduzir a liberdade de o indiviacuteduo em fazer suas escolhas Tal reduccedilatildeo eacute
determinada pelo proacuteprio sofrimento inerente a patologias psiquiaacutetricas ou a crises vitais como
por exemplo a reaccedilatildeo a um evento traumaacutetico
Massimo Biondi em seu livro A mente selvagem um ensaio sobre a normalidade nos
comportamentos humanos apresenta o viacutenculo do sofrimento subjetivo com a reduccedilatildeo da
liberdade Sobre esse tema discute o limite entre normalidade e psicopatologia quando se aborda
o indiviacuteduo que sofre Segundo esse psiquiatra italiano no capiacutetulo intitulado lsquoO sofrimento
subjetivo e a liberdadersquo que o sofrimento subjetivo e a anguacutestia a reduccedilatildeo ou falta de liberdade e
a reduccedilatildeo da vontade satildeo aspectos que invariavelmente acompanham o distuacuterbio psiacutequico quanto
a este pode-se falar da importacircncia da vivecircncia subjetiva de determinado evento ou situaccedilatildeo
existencial para procurar definir os limites entre a normalidade psiacutequica e a patologia
O sofrimento subjetivo termo empregado por esse autor constitui um criteacuterio para
diversos diagnoacutesticos psiquiaacutetricos e tem como eixos principais a experiecircncia subjetiva e aquela
psiacutequica a primeira referente agrave percepccedilatildeo subjetiva de um evento existencial ou de um
sentimento pode ser avaliada apenas indiretamente por suas manifestaccedilotildees e pelo relato do
indiviacuteduo que sofre A segunda em linhas gerais refere-se agrave resposta do indiviacuteduo em termos
psiacutequicos ou seja atraveacutes de alteraccedilotildees dos fenocircmenos do estado mental conduzindo ao
diagnoacutestico Massimo Biondi aponta quatro componentes do que denomina sofrimento psiacutequico
a) Um estado de sofrimento subjetivo mesmo que natildeo espontaneamente referido pela
pessoa em niacutevel verbal b) uma reduccedilatildeo ou perda da liberdade sobre os proacuteprios
pensamentos e sobre as proacuteprias accedilotildees c) uma alteraccedilatildeo do proacuteprio projeto de existecircncia
104
e da capacidade de projetar o futuro d) uma alteraccedilatildeo reduccedilatildeo ou anulaccedilatildeo da vontade
(BIONDI 1996 p40)
O segundo componente relativo agrave reduccedilatildeo ou perda da liberdade eacute elemento comum e
distintivo que atravessa a existecircncia de pessoas com distuacuterbios psiacutequicos Tal elemento eacute um dos
criteacuterios de patologia psiquiaacutetrica de uma relevante instituiccedilatildeo da especialidade mas natildeo estaacute
restrito apenas aos diagnoacutesticos tal perda estaacute associada ao proacuteprio sofrimento Assim podemos
encontrar em indiviacuteduos que atravessam crises vitais essa perda de liberdade significando
reduccedilatildeo da autonomia de algueacutem que atravessa uma situaccedilatildeo de sofrimento subjetivo sem
necessariamente tal quadro constituir alguma patologia psiquiaacutetrica definida
Ainda de acordo com Biondi um indiviacuteduo pode apresentar um distuacuterbio psiquiaacutetrico
como causa de um evento especiacutefico existem quadros em que o evento estressante tem um claro
papel patogecircnico Nesses casos o sofrimento subjetivo gerado pelo evento aparece como
principal mediador que causa favorece e acompanha o estado psicopatoloacutegico Existem
entretanto condiccedilotildees em que o sofrer subjetivo natildeo eacute indicativo de um estado de doenccedila
propriamente dito mas pode estar associado a condiccedilotildees compreendidas dentro da normalidade
Um estado de sofrimento subjetivo decorre por exemplo de situaccedilotildees comuns e
lsquonormaisrsquo como luto perda de trabalho dificuldades afetivas ou conjugais fracasso escolar ou
profissional natildeo necessariamente evoluindo para um quatro de psicopatologia Algumas
situaccedilotildees inclusive satildeo vivenciadas como positivas pelo indiviacuteduo porque reestruturam algum
foco de seu mundo interno conduzindo a uma mudanccedila na percepccedilatildeo de determinadas
experiecircncias Em tais casos o sofrimento pode ser atenuado ou ateacute mesmo ter um valor
construtivo Eacute possiacutevel refletir que nessas condiccedilotildees a perda da liberdade seja temporaacuteria mas
ainda assim leve agrave melhora do indiviacuteduo em sua perspectiva de vida pois o sofrimento eacute
condiccedilatildeo muitas vezes para a tomada de consciecircncia da condiccedilatildeo humana
Por fim cabe referir a ressalva do proacuteprio autor
[] a normalidade natildeo eacute uma condiccedilatildeo caracterizada apenas pela ausecircncia de sofrimento
psiacutequico Muitos acontecimentos comuns da vida fazem sofrer agraves vezes de modo mais
intenso e persistente em situaccedilotildees totalmente normais [] O problema estaacute em
reconhecer o sofrimento normal daquele que define em sentido estrito alguma patologia
psiacutequica (BIONDI 1996 p53-56)
A reflexatildeo sobre a perda da liberdade inerente ao sofrimento psiacutequico em vigecircncia de
uma circunstacircncia normal ou de patologia psiquiaacutetrica inclui o entendimento de que a autonomia
105
estaacute reduzida quando este sofrimento acontece O indiviacuteduo durante o periacuteodo em que sofre eacute
limitado na capacidade de fazer escolhas saudaacuteveis para si e tal limitaccedilatildeo decorre da dor psiacutequica
propriamente dita Aleacutem de ser menos livre pois o que pensa e sente eacute condicionado por essa dor
o indiviacuteduo acometido sente menos vontade como refere Biondi ao mencionar o uacuteltimo dos
quatro componentes do sofrimento psiacutequico Pode-se novamente referir a reduccedilatildeo da autonomia
pois dela faz parte tambeacutem o fato de ter vontades e de dar voz agraves mesmas
33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA
O que nos move ao comer Brillat-Savarin em A fisiologia do gosto apontou o lsquosentido
geneacutesicorsquo ldquo[] o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro sendo a
sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecierdquo (DOacuteRIA 2009 p190) A referecircncia agrave obra claacutessica na
literatura gastronocircmica feita pelo pesquisador Carlos Alberto Doacuteria em seu livro A culinaacuteria
materialista eacute seguida pela seguinte reflexatildeo apresentada por ele
[] ora a reproduccedilatildeo da espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do
indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo
ao sexo e ao comer eacute o prazer a busca do agradaacutevel [] Precisamos nos encontrar com
o alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduos e isso se daacute por dois caminhos
pelo prazer e pela dor
A fome eacute a fonte de dor e nos leva em direccedilatildeo ao alimento o prazer em comer tambeacutem
nos leva em direccedilatildeo ao alimento antes que a dor nos imponha o seu caminho (DOacuteRIA
2009 p190)
lsquoA busca pelo alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduosrsquo nas palavras do autor
estaacute associada agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo precisamos
manter a vida para preservaacute-la motivo pelo qual nos nutrimos e copulamos A procura por
alimentos viaacuteveis eacute da histoacuteria do Homo sapiens assim como no ato de cozinhar
experimentavam-se teacutecnicas que favorecessem a ingestatildeo de animais e vegetais
Neste ponto cabe a reflexatildeo de que a procura por novos alimentos e o desenvolvimento
de modos para preparaacute-los resultou da iniciativa em descobrir novas possibilidades comestiacuteveis
da capacidade fiacutesica de fazecirc-lo e de vaacuterias capacidades deste homo sapiens Seria possiacutevel
compreender entre estas a autonomia conduzindo agrave compreensatildeo de que teria sido esta
capacidade em suas primeiras manifestaccedilotildees uma das responsaacuteveis pela partida em direccedilatildeo a
animais e vegetais para comer
106
Caberia citar tambeacutem a autonomia como responsaacutevel pelo desenvolvimento da descoberta
de cozinhar os alimentos aleacutem de aspectos inerentes agrave proacutepria evoluccedilatildeo da espeacutecie Desse modo
ela pode ter permitido a sobrevivecircncia em condiccedilotildees muitas vezes desfavoraacuteveis pelas escolhas
alimentares que favoreceu Sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas assim desde tempos
ancestrais conforme refere Carlos Alberto Doacuteria no mesmo livro
Assim como ensina o arqueozooacutelogo Jean-Denis Vigne haacute 30 mil anos o homem jaacute natildeo
comia soacute o que o seu ambiente imediato lhe oferecia por facilidade de captura mas ia
atraacutes de alimentos capazes de satisfazer suas imagens mentais mais fortes e expressivas
em termos sociais Especialmente nas regiotildees frias no Paleoliacutetico Superior sua dieta era
composta de animais com pouca disponibilidade de vegetais Jaacute no Mesoliacutetico o clima
se estabiliza e nas regiotildees temperadas comeccedila a apresentar maior utilizaccedilatildeo de vegetais
Entre 8000-9000 aC e 5000 aC desenvolve-se a dieta moderna em que as energias
humanas satildeo providas por lipiacutedeos e gluciacutedeos originados de animais e plantas
domesticadas Pode-se dizer entatildeo que dessa eacutepoca em diante o homem produz tudo
aquilo que come isto eacute produz a si proacuteprio do ponto de vista alimentar (DOacuteRIA 2009
p3)
Doacuteria aponta ainda o viacutenculo entre a dieta humana e o processo de hominizaccedilatildeo como a
aquisiccedilatildeo da postura biacutepede e por fim a expansatildeo do Homo erectus ao moderno Homo sapiens
que exigiu uma dieta suficientemente rica em calorias e nutrientes Aleacutem desse aspecto o autor
refere o domiacutenio do fogo que permitiu cozinhar os alimentos e seus benefiacutecios
O incremento de calorias se deu graccedilas tanto a ambientes mais favoraacuteveis quanto agrave
adoccedilatildeo da culinaacuteria da agricultura e de criteacuterios de seleccedilatildeo de espeacutecies alimentares
Cozinhar tornou os alimentos mais macios e faacuteceis de ingerir e viabilizou o consumo de
vegetais como a batata e a mandioca que na forma crua natildeo podiam ter seus nutrientes
metabolizados pelo corpo humano Desse modo esses carboidratos complexos se
tornaram digestiacuteveis e multiplicaram ao extremo as possibilidades alimentares Em
siacutentese esses procedimentos aliados agrave seleccedilatildeo de espeacutecies vegetais permitiram
incrementar sua produtividade sua digestibilidade e seu conteuacutedo nutricional (DOacuteRIA
2009 p32)
O Homo sapiens munido de maiores capacidades alimentava-se de forma cada vez
melhor no sentido de incrementar sua sobrevivecircncia nutrindo-se com maior variedade e melhor
qualidade da dieta adquiria novas capacidades e aprimorava aquelas jaacute dominadas resultando em
aumento na capacidade de descoberta de novos ingredientes e de preparo dos mesmos Instalava-
se assim um ciacuterculo entre o desenvolvimento de potencialidades tornando-o cada vez mais
capaz de sobreviver mesmo em condiccedilotildees adversas bem como de agir sobre tais condiccedilotildees
Tudo isso favorecia a vida e a reproduccedilatildeo da espeacutecie Sobrevivecircncia e autonomia novamente
aliadas pelo alimento O pesquisador norte-americano Michael Pollan alude a uma observaccedilatildeo de
Winston Churchill sobre a arquitetura ldquoPrimeiro cozinhamos nossa comida depois ela nos
107
cozinhourdquo (POLLAN 2014 p15) Pollan explica esse fenocircmeno ocupado pelo cozinhar em
nossa biologia
Portanto cozinhar nos transformou e natildeo apenas por nos tornar mais sociaacuteveis e
corteses Uma vez que o ato de cozinhar permitiu que expandiacutessemos nossas capacidades
cognitivas agrave custa da capacidade digestiva natildeo havia mais como voltar atraacutes nossos
ceacuterebros grandes e intestinos pequenos dependiam agora de uma dieta agrave base de
alimentos cozidos [] Isso quer dizer que cozinhar tornou-se compulsoacuterio- estaacute por
assim dizer cozido em nossa biologia (POLLAN 2014 p15)
A partir daiacute toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo incluindo o surgimento da gastronomia
conduz progressivamente a um grau de evoluccedilatildeo deste campo que ultrapassa a lsquomerarsquo demanda
pela sobrevivecircncia e preservaccedilatildeo da espeacutecie A sobrevivecircncia ao que parece natildeo ocupa mais o
centro no universo da cozinha O campo das accedilotildees e estudos ligados ao preparo do alimento
chega em nosso seacuteculo XXI em niacuteveis de superespecializaccedilatildeo e de glamourizaccedilatildeo nunca antes
imaginados Este eacute o caso para citar exemplos da Cozinha Molecular e dos programas
televisivos que invadem as casas com a famiacutelia muito mais atenta ao programa sobre comer do
que ao proacuteprio comer Hoje em dia aliaacutes sobreviver natildeo atinge a categoria de prioridade de
muitos indiviacuteduos fervorosos em sua autonomia contemporacircnea no desejo insalubre pelo prazer
da comida ou mesmo na pressa da vida urbana morrem por comer da pior forma possiacutevel
Para compreender esse processo vale refletir sobre como chegamos ateacute aqui A histoacuteria a
ser contada parte do ato de cozinhar que ldquo[] eacute como dizem os antropoacutelogos uma atividade que
nos define como seres humanos - o ato com o qual segundo o filoacutesofo e antropoacutelogo Claude
Levi-Strauss a cultura surgerdquo (POLLAN 2014 p13) Para Leacutevi-Strauss conforme referido por
Michael Pollan ldquo[] cozinhar servia como uma metaacutefora da transformaccedilatildeo humana da natureza
crua para a cultura cozidardquo (POLLAN 2014 p13) A respeito do papel do cozinhar para a
cultura Carlos Alberto Doacuteria refere
O que une as abelhas no coletivo eacute uma interaccedilatildeo quiacutemica chamada trofolaxe Ora aleacutem
da integraccedilatildeo neurosensorial devemos considerar que a trofolaxe humana eacute a linguagem
Eacute por intermeacutedio da linguagem que estamos acoplados com outros seres humanos e eacute
tambeacutem com ela que partilhamos nossas experiecircncias ateacute mesmo atraveacutes de enormes
distacircncias no tempo e no espaccedilo Nessa trofolaxe a relaccedilatildeo com os sabores do mundo se
daacute ao mesmo tempo pelo aparelho gustativo e pela cultura (DOacuteRIA 2009 p197)
Deve-se considerar a vasta gama de fatos da histoacuteria da alimentaccedilatildeo desde a preacute-histoacuteria
ateacute nosso terceiro milecircnio tendo como eixo a transformaccedilatildeo na cultura produzida pelo cozinhar
a fim de compreender as mudanccedilas exponenciais que a cozinha atravessou ateacute chegar agrave sua
108
representaccedilatildeo contemporacircnea Nesse contexto faz-se necessaacuterio definir os pontos de referecircncia
que marcaram a transiccedilatildeo a partir da qual sobreviver parece ter deixado de ocupar o motivo por
que o indiviacuteduo se alimenta
Um dos aspectos que podem ser apontados como referenciais na transiccedilatildeo acima abordada
eacute o iniacutecio da chamada restauraccedilatildeo ou seja o surgimento dos restaurantes dentro do nascimento
da hotelaria Em especial a existecircncia da comida de rua passa a ter um papel significativo neste
sentido A valorizaccedilatildeo da gastronomia cada vez maior desde o seacuteculo XVIII teve tambeacutem
influecircncia no processo ao deslocar para o prazer dos sentidos principalmente o do gosto o
centro de sua atenccedilatildeo
Entretanto haacute um ponto chave para a mudanccedila do foco da comida de aspecto nutricional
e gregaacuterio a fator de risco para as mais variadas doenccedilas fiacutesicas como a obesidade e a
hipertensatildeo arterial e para aquelas psiacutequicas como a anorexia e a bulimia tatildeo vigentes no seacuteculo
XXI Este ponto em sua origem estaacute no processo de industrializaccedilatildeo que culminou com o
deslocamento do comer da mesa do lar para o local de trabalho De que forma este pode
relacionar-se agrave sobrevivecircncia e agrave autonomia focos deste subcapiacutetulo Por dois caminhos o
primeiro refere-se ao fato de que o deslocamento restringiu as possiblidades de alimentaccedilatildeo e os
empregados ficaram submetidos ao que fosse oferecido em seu trabalho portanto com restriccedilatildeo
da autonomia o segundo caminho refere-se agraves ofertas alimentares propiciadas nos locais de
trabalho pouco dirigidas agrave sauacutede do indiviacuteduo e por extensatildeo ao papel nutricional da
alimentaccedilatildeo equivalente agrave sua sobrevivecircncia
Pode-se falar na evoluccedilatildeo dos centros urbanos e de suas demandas e transformaccedilotildees entre
estas a pressa que tambeacutem restringe as escolhas alimentares possiacuteveis Outra vez a restriccedilatildeo da
autonomia e o prejuiacutezo das escolhas agrave sauacutede Da pressa passamos ao fenocircmeno seguinte aquele
que Maacutessimo Montanari e Jean-Louis Flandrin denominam lsquoA McDonaldizaccedilatildeo dos costumesrsquo
no livro Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo do qual satildeo organizadores A pressa leva ao surgimento dos
fast-food pela sociedade norte-mericana estes por sua vez causam uma lista de patologias
cardiovasculares e oncoloacutegicas por exemplo A pressa e os fast-food tornam-se parte do
fenocircmeno de stress que aumenta a pressa e torna rotineira a alimentaccedilatildeo raacutepida reduzindo a
sauacutede e aumentando ainda mais o stress Instala-se o ciacuterculo vicioso da vida moderna O eixo de
nutriccedilatildeo que uma vez focircra o lar tornou-se a rua
109
Retomando um dos elementos discutidos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute possiacutevel perceber o
modo como as referidas mudanccedilas atingem a sobrevivecircncia Damaacutesio refere que para que um
organismo permaneccedila vivo eacute necessaacuterio ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados
internos de modo que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Em seu ensaio sobre a normalidade dos comportamentos humanos Massimo Biondi
apresenta um capiacutetulo em que aborda a normalidade dos padrotildees fisioloacutegicos de sobrevivecircncia
Explica que
O organismo eacute uma entidade viva Sua vida se baseia em processos bioloacutegicos de base
que devem respeitar algumas caracteriacutesticas A vida humana por exemplo eacute possiacutevel
para temperaturas corporais compreendidas entre 30 e 42deg Acima ou abaixo de tais
temperaturas para aleacutem de um certo tempo a vida eacute impossiacutevel []
Tal conceito vale para muitas outras variaacuteveis estudadas em medicina e fisiologia do
peso agrave altura da frequecircncia cardiacuteaca agrave pressatildeo arterial [] da quantidade diaacuteria de
accediluacutecar no sangue agraves caracteriacutesticas da urina
O criteacuterio da norma bioloacutegica assim como concebido aqui refere-se agrave normalidade de
funcionamento de estruturas bioloacutegicas que caracterizam a vida de um organismo e satildeo
compatiacuteveis com a mesma (BIONDI 1996 p169)
O indiviacuteduo do seacuteculo XXI em posse de sua autonomia acaba por fazer escolhas
alimentares contra a proacutepria sobrevivecircncia pois alteram os padrotildees de normalidade compatiacuteveis
com a sauacutede e em uacuteltima instacircncia com a proacutepria vida eacute o caso do impacto de alimentos do
regime fast-food na sauacutede resultando em diabetes hipertensatildeo arterial e sobrepesoobesidade
Tal resultado entre outros deve-se agrave ingestatildeo excessiva de carboidratos gorduras e
trigliceriacutedeos presentes nesta forma lsquodesnutricionalrsquo
A autonomia desse modo que muitas vezes eacute fonte de extrema valorizaccedilatildeo em tempos
nos quais a individualidade ocupa papel central leva o homem contemporacircneo a atacar a
sobrevivecircncia e natildeo mais a preservaacute-la Nesse ponto da histoacuteria da alimentaccedilatildeo sobrevivecircncia e
autonomia afrouxaram o dar as matildeos De acordo com Michael Pollan ldquoPesquisas de opiniatildeo
confirmam que a cada ano cozinhamos menos e compramos mais refeiccedilotildees prontasrdquo
(POLLAN 2014 p11)
Este autor traz reflexotildees relevantes quanto ao paradoxo do papel da cozinha em nossa
contemporaneidade apontando que ao mesmo tempo que o tempo de cozinhar diminui aumenta
o tempo de dedicaccedilatildeo a assistir programas de cozinha na televisatildeo aleacutem de outras modificaccedilotildees
mencionadas por ele sobre as escolhas alimentares O que chama a atenccedilatildeo na obra de Michael
Pollan eacute o fato de ele mencionar o ponto em que chegamos sob a perspectiva de nossa cultura
110
alimentar global Sendo este um pesquisador reconhecido e respeitado internacionalmente eacute
positivo que exponha em tom pungente os resultados de pesquisas e perspectivas no
embasamento de suas reflexotildees Posiciona-se frente a vaacuterios problemas graves ligados ao modo
de comer de nosso tempo ao mencionar a reduccedilatildeo do haacutebito de cozinhar e suas consequecircncias
ldquo[] natildeo eacute surpresa alguma o decliacutenio do haacutebito de cozinhar em casa coincidir com o aumento da
incidecircncia da obesidade e de todas as doenccedilas crocircnicas associadas agrave alimentaccedilatildeordquo (POLLAN
2014 p16)
O elemento apontado por este autor e que se relaciona agrave relaccedilatildeo entre a comida e as
relaccedilotildees interpessoais declara que a refeiccedilatildeo em famiacutelia deu lugar em larga escala ao comer
sozinho Autonomia praticidade e individualismo parecem estar no centro deste fenocircmeno
A ascensatildeo do fast-food e o decliacutenio da comida caseira tambeacutem abalaram a instituiccedilatildeo da
refeiccedilatildeo compartilhada por nos estimularem a comer coisas diferentes com pressa e
muitas vezes sozinhos Pesquisas dizem que estamos dedicando mais tempo agrave
lsquoalimentaccedilatildeo secundaacuteriarsquo que eacute como denominamos esse costume meio constante de
beliscar alimentos embalados e menos tempo agrave lsquoalimentaccedilatildeo primaacuteriarsquo - termo um tanto
deprimente para a instituiccedilatildeo outrora respeitada e conhecida como refeiccedilatildeo
A refeiccedilatildeo compartilhada natildeo eacute algo insignificante Trata-se de um dos fundamentos da
vida em famiacutelia o lugar onde as crianccedilas aprendem a arte da conversaccedilatildeo e adquirem
haacutebitos que caracterizam a civilizaccedilatildeo repartir ouvir ceder a vez administrar
diferenccedilas discutir sem ofender (POLLAN 2014 p16 grifo do autor)
A autonomia agrave eneacutesima potecircncia deixa de ser uma capacidade para tornar-se uma redoma
Acabamos tornando-nos seres livres em excesso talvez Por termos pressa querermos prazeres e
independecircncia extremos sobreviver passou agrave categoria de um lsquotanto fazrsquo em prol do proveito
maacuteximo do instantacircneo Vale retomar a reflexatildeo de Karl Jaspers sobre a consciecircncia do eu
definida por limites externos e reais nossa autossuficiecircncia eacute delimitada pela dependecircncia que
temos de recursos externos como por exemplo os bens alimentares e das pessoas significativas
em nossa vida Dependemos desses bens assim como dos relacionamentos familiares afetivos e
profissionais todos necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia do ponto de vista fiacutesico e psiacutequico
A autonomia conquistada para sobrevivermos na evoluccedilatildeo da espeacutecie chegou a um grau
de importacircncia em nosso universo contemporacircneo que parece ter ultrapassado o instinto de
preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo Viver a liberdade as vontades e
prazeres sobrepuja o proacuteprio sobreviver Autonomia e sobrevivecircncia parecem ter soltado as matildeos
111
34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI
A leitura do romance Quarenta dias permite identificar a cozinha presente em trecircs
periacuteodos principais da narrativa representados respectivamente por trecircs elementos especiacuteficos
O primeiro aparece nas paacuteginas iniciais quando Alice comeccedila a relatar em seu caderno o
periacuteodo que antecedeu a mudanccedila para Porto Alegre lembrando-se do egoiacutesmo de Norinha sua
filha desde quando ainda morava em Joatildeo Pessoa Tais recordaccedilotildees fornecem pistas do
comportamento da moccedila ao determinar as transformaccedilotildees na vida da matildee para satisfazer seus
interesses
O segundo elemento abrange os primeiros dias da chegada de Alice a inconformidade
com a nova moradia onde a cozinha que define como lsquode show-roomrsquo expressa uma atmosfera
impessoal e asseacuteptica agrave qual ela natildeo consegue se adaptar Aparece nesta etapa o choque de sua
nova realidade e a tentativa de aceite de todas as mudanccedilas de vida impostas pela filha
A importacircncia de refletir sobre os dois elementos apresentados acima estaacute no fato de esses
demonstrarem Alice em sua vida em Joatildeo Pessoa e logo na chegada em Porto Alegre Os dois
periacuteodos expressam o comportamento de Norinha como explicaccedilatildeo para sua conduta egoiacutesta em
relaccedilatildeo agrave matildee e expressam tambeacutem a relaccedilatildeo de Alice com a consciecircncia de si mesma e com a
autonomia Assim os dois periacuteodos anteriores agrave procura por Ciacutecero descritos por ela agrave Barbie
em seu caderno anunciam o porquecirc de desejar a retomada de si mesma durante os dias em que
transplanta sua vida para o espaccedilo urbano
O terceiro elemento por fim refere-se ao tema deste capiacutetulo a comida como
representaccedilatildeo da necessidade de autonomia vinculada ao processo de tomada de consciecircncia de
si incluindo suas escolhas necessidades de sobrevivecircncia gostos e memoacuterias gustativas que satildeo
parte de sua identidade Nesse terceiro elemento que ocupa a maior parte da anaacutelise encontra-se
uma cozinha transplantada para o universo urbano espaccedilo que Alice habita nos quarenta dias
Junto agrave comida expressa por carrinhos de pipoca botecos moradias em vilas- onde lhe
oferecem cafeacute chimarratildeo e algo para comer- padarias e um restaurante de rodoviaacuteria estaacute a
representaccedilatildeo de uma vida cujo cenaacuterio eacute o proacuteprio espaccedilo da cidade no dormir no banhar-se no
comer Eacute neste territoacuterio que Alice procura a si mesma enquanto em suas andanccedilas ela pergunta
por um desconhecido Ciacutecero Arauacutejo dentro de si vai encontrando aquela que eacute capaz de tomar as
proacuteprias decisotildees de sobrevivecircncia Progressivamente recupera a consciecircncia de si e as suas
112
vontades Um fator que deve ser ressaltado estaacute incluiacutedo neste terceiro elemento a ligaccedilatildeo
mesmo que efecircmera que Alice estabelece com as demais personagens da narrativa na maior
parte das vezes esta ligaccedilatildeo ocorre por intermeacutedio da comida que oferecem a ela ou que ela
partilha como no caso de Lola e Arturo
Eacute possiacutevel observar que haacute situaccedilotildees em que o cuidado de desconhecidos para com ela
ocorre ao oferecerem um chaacute um cafeacute um biscoito nas casas de vilas por onde passa o mesmo
cuidado eacute feito por Penha que coloca com esmero a mesa para Alice no restaurante da
rodoviaacuteria tratando-a com gentileza e camaradagem ou pela proacutepria Milena que cuida de Alice
com chaacute e canja de galinha no iniacutecio da histoacuteria quando esta teria voltado doente de sua visita a
Jaguaratildeo Ateacute mesmo Zelima que aparece na cena em que a protagonista se engasga com a
pipoca no Hospital de Pronto Socorro tem uma atitude de cuidado e de preocupaccedilatildeo para com
ela oferecendo-lhe aacutegua e acompanhando sua melhora
Estas breves expressotildees de carinho e zelo atraveacutes do alimento representam na obra a
nutriccedilatildeo que o cuidado interpessoal oferece muitas vezes na linguagem do alimento na vivecircncia
de Alice em sua nova vida porto-alegrense A capacidade de despertar sentimentos de cuidado de
afeto e de preocupaccedilatildeo da parte de outras pessoas demonstra caracteriacutesticas de uma Alice que
retoma o contato consigo que se reencontra
Mesmo com todo o trauma que atravessa a personagem eacute capaz de estabelecer viacutenculos
durante seus caminhos ainda que sejam breviacutessimos ilustram um aspecto de sua personalidade
Eacute algo seu que natildeo se perdeu com o roubo de sua autonomia e eacute justamente por seu modo de ser
que vai estabelecendo pontes para chegar a algum desfecho de sua procura durante a histoacuteria
pontes atraveacutes da comunicaccedilatildeo com as pessoas e comunicaccedilatildeo atraveacutes da comida que lhe eacute
servida das informaccedilotildees que lhe satildeo dadas do cuidado amistoso como no caso de Lola e de
Milena
Embora o foco do presente capiacutetulo seja a abordagem da conquista da autonomia da
personagem atraveacutes de suas decisotildees pela sobrevivecircncia eacute importante enfatizar que Alice em sua
vida em Joatildeo Pesssoa tinha tal autonomia Aleacutem de ter criado sua filha praticamente sozinha
tinha apartamento proacuteprio amigos e projetos reconhecimento de sua atividade profissional como
a lsquosensata Professora Poacutelirsquo conforme diversas vezes se denomina durante a narrativa Essa
capacidade sofreu abrupta reduccedilatildeo pela interferecircncia da filha quando definiu que a matildee iria se
transferir para Porto Alegre para cuidar do futuro neto
113
Este eacute entatildeo o primeiro elemento a ser abordado o egoiacutesmo da filha A conduta de
Norinha deveu-se a esse egoiacutesmo ao natildeo pensar no desejo de Alice e sim nos proacuteprios interesses
Apenas quando escreve a longa lsquocartarsquo para Barbie depois de sua jornada pela cidade a
protagonista eacute capaz de se recordar de episoacutedios antigos com a filha Esses eventos jaacute
denunciavam a postura da moccedila desde o comeccedilo da juventude O trecho a seguir mostra uma
dessas recordaccedilotildees
Ainda meio adormecida fechei a janela e voltei pra cama naquela madorna jaacute perto de
acordar de vez e entatildeo comecei a reviver cenas bobas de muito tempo atraacutes sem
importacircncia completamente esquecidas agora niacutetidas em sonho ou na minha memoacuteria
por que seraacutecoisas assim como o dia em que estava um friozinho excepcional pra
Joatildeo Pessoa e resolvi fazer uma sopa quente pro jantar aproveitando umas batatas-
baroas que tinha achado no mercado Batata-baroa saudade do siacutetio do meu avocirc uma
raridade na cidade mais batata inglesa cenoura cebola e caldo de galinha tudo de bom
O cheiro da sopa no fogo jaacute tinha impregnado a casa quando Nora chegou Vai fazer
sopa hoje Matildeiacutenha Que horas Jaacute estaacute pronta se quiser eacute soacute bater no
liquidificadorComo nunca me esperava pra cear pois iacutea correndo pra faculdade
apenas ouvi vagamente que estava mexendo na cozinha enquanto eu assistia agrave novelinha
das seis Tatildeo distraiacuteda com a novela nem percebi que ela jaacute tinha saiacutedo Tudo bem ateacute
que fui tratar de pocircr a mesa pra mim Soacute tinha sobrado menos de uma concha rasa de
sopa Pasme Barbie ela tinha se servido na tigela do feijatildeo Fiquei danada na hora mas
nada a fazer do que usar a imaginaccedilatildeo Jaacute eram quase sete e meia da noite Entatildeo botei
mais um copo dacuteaacutegua com uma colher de maisena meio tablete a mais de caldo de
galinha e cozinhei ali dentro uma porccedilatildeo de massinha pra sopaque bom que tinha em
casa Tomei entatildeo o resultado como se estivesse tudo normal com apenas um leve
gostinho de batata-baroamas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada
de matildeo-de-vaca (REZENDE 2014 p22)
Vale ressaltar a atitude complacente de Alice frente ao egoiacutesmo da filha no episoacutedio
narrado acima expressa pela frase lsquomas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada
de matildeo-de-vacarsquo A seguir outro fragmento em que Norinha se apossava dos chocolates e das
guloseimas da matildee Alice reflete em sua carta para Barbie sua obediecircncia agraves demandas da moccedila
devidas agraves dietas no comprar lsquocoisas estranhasrsquo na feira
Diversos pontos satildeo referidos como o fato de a filha natildeo se sentar mais agrave mesa com ela e
a atitude de desperdiccedilar as gemas de ovo em suas dietas Um aspecto interessante do trecho
abaixo eacute a memoacuteria de sua avoacute fazendo lsquofios dacuteovosrsquo e quindins como marca de afeto e de
partilha pela comida Assim haacute o contraste do alimento ora como representaccedilatildeo do egoiacutesmo da
filha ao lsquoroubarrsquo seus chocolates e as guloseimas ora como expressatildeo do afeto compartilhado
pela avoacute atraveacutes dos doces que fazia
Cabe ainda a reflexatildeo mais uma vez Alice menciona sua complacecircncia para com a filha
nas frases lsquofielmente obedeciarsquo e lsquoeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar
114
discussatildeorsquo Volta-se desse modo para a frase apresentada no primeiro trecho referida acima
lsquonatildeo dei um pio pra natildeo ser chamada de matildeo-de-vacarsquo A postura de Alice em relaccedilatildeo agrave Norinha
tinha sempre um elemento de passividade de obediecircncia agraves normas e aos quereres da filha
anunciando que a postura da uacuteltima em definir a mudanccedila de Alice mesmo contra a vontade desta
era a continuidade de um comportamento mais antigo na relaccedilatildeo entre elas A protagonista conta
agrave Barbie
Vivia acrescentando coisas estranhas nas minhas listas de feira que eu fielmente
obedeciaeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar discussatildeo Claro de
vez em quando ela dava umas escapadas na dieta principalmente comendo meus
chocolates e umas guloseimas de que gosto e comprava pro meu lanche Afinal eu natildeo
estava de dieta Quase natildeo se sentava agrave mesa comigo comia em peacute na cozinha ia pro
quarto dela comer as gororobas dieteacuteticas que fazia ou se enchia soacute de claras de ovo
jogando as gemas fora Parei de tentar aproveitar pois natildeo dava pra tomar gemada todo
dia natildeo eacute e Voacute natildeo estaacute mais neste mundo pra me ensinar a fazer fios dacuteovos ou
quindinse as gemas que Norinha descartava eram branquelas nada daquele amarelo
vivo dos ovos de capoeira do siacutetio Seraacute que ainda existem fios dacuteovos (REZENDE
2014 p23)
O trecho seguinte refere-se ao segundo elemento assinalado ou seja a inconformidade de
Alice com sua nova vida em Porto Alegre no apartamento que natildeo aceita como seu Nas
referecircncias agrave cozinha lsquode show-roomrsquo a protagonista expressa suas impressotildees sobre o local
montado por Norinha para sua habitaccedilatildeo Haacute diversos momentos em que a comida representa seu
desacerto com a vida montada em um territoacuterio sem referecircncias afetivas sem lembranccedilas dos
quais o fragmento abaixo eacute um exemplo
Alice mostra uma resignaccedilatildeo compulsoacuteria com as ordens da filha uma aparente
concordacircncia com as tentativas de Norinha de abater-lhe a autonomia eacute na contrariedade com o
cenaacuterio esteacuteril da cozinha que define como lsquoalheiarsquo e com os alimentos que tem em casa com as
compras que a filha faz e guarda nos armaacuterios e gavetas que se mostra seu modo de perceber e
de sentir as imposiccedilotildees da mesma
A inconformidade com a vida porto-alegrense aparece em diversas situaccedilotildees na chegada
de Alice ao apartamento aleacutem do trecho acima Percebo em vaacuterios pontos a revolta da
protagonista com os detalhes da cozinha como espaccedilo fiacutesico em outros aparece seu lsquodesacertorsquo
atraveacutes de uma voz criacutetica e ateacute mesmo irocircnica com os alimentos gauacutechos
Assumi consciente e disciplinadamente a atitude que eu jaacute vinha ensaiando havia algum
tempo do ET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes muito maiores
que ele Eu continuava a encolher Engoli obediente tudo o que estava posto sobre a
previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de vidro num canto da sala o chaacute as
115
torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar de chimia a
fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial trazido
natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite morno (REZENDE 2014
p41)
Eacute possiacutevel ler a atitude de engolir lsquoobedientersquo o alimento como representativa de sua
percepccedilatildeo sobre si mesma de ldquoET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes
muito maiores do que elerdquo A obediecircncia em comer aqui ilustra a frase ldquoEu continuava a
encolherrdquo Ela natildeo via o que estava sendo posto na mesa como cuidado com sua chegada por
preocupaccedilatildeo genuiacutena com seu bem-estar entendia isto sim como ldquobenevolecircncia de terraacutequeos
muito maioresrdquo A forccedila da comparaccedilatildeo estaacute no fato de que o comer tambeacutem se tornou objeto de
controle da filha a quem ela passava a ldquoobedecerrdquo Passava a ocupar assim o papel que descreve
como ldquofilha da minha filhardquo (REZENDE 2014 p74)
Neste trecho lecirc-se a contrariedade de Alice na referecircncia que faz agrave cozinha como espaccedilo
fiacutesico ldquo[] tudo o que estava posto sobre a previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de
vidro no canto da salardquo (REZENDE 2014 p74) Ainda que se refira agrave mesa como estando na
sala atribui a ela papel conotaccedilatildeo ligada agrave funccedilatildeo da cozinha como extensatildeo desta pois eacute onde
estatildeo na cena os produtos alimentares oferecidos
Na menccedilatildeo que ela faz a esses produtos estaacute expressa tambeacutem a revolta atraveacutes da voz
irocircnica ldquo[] o chaacute as torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar
de chimia a fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial
trazido natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite mornordquo (REZENDE 2014
p41) Assim eacute na cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico que se expressa na chegada de Alice a
Porto Alegre a representaccedilatildeo de sua recusa em aceitar a vida que lhe foi imposta Haacute referecircncias
expliacutecitas agrave sua revolta mas a forma material da contrariedade eacute demonstrada nessa etapa da
narrativa em diversos episoacutedios ligados agrave cozinha
A manhatilde seguinte agrave chegada no apartamento continua tendo essa peccedila da casa como
cenaacuterio da inconformidade de Alice quando Norinha chega com as compras
Naquela primeira manhatilde sem coragem de decifrar os armaacuterios e eletrodomeacutesticos desta
cozinha metida a besta eu ainda de camisola e roupatildeo agrave mesa do canto da sala
preguiccedilosamente acabando de recuperar como cafeacute da manhatilde os restos do lanche da
madrugada que ficaram largados ali bolo torradas amanhecidas chimia queijo serrano
chaacute frio ouvi barulho de chave na fechadura e me assustei Norinha pelo visto agora
detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas tambeacutem da chave da minha
moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha com almoccedilo
Bem paraibano viu Matildeiacutenha pra vocecirc ir se acostumando aos poucos a quentinha
116
equilibrada entre montes de sacolas de compras Pra abastecer a despensa de minha
Maacuteinha adorada que vai ser tratada como uma duquesa pela sua filhinha preferida []
meteu-se diretamente na cozinha Que tive que fazer malabarismos para conseguir passar
no supermercado pra conseguir passar no supermercado e trazer suas compras depois a
gente acerta natildeo se preocupe com isso por hoje vou ter de sair correndo que este dia da
semana eacute sempre pesadiacutessimo na universidade agraves vezes natildeo daacute tempo nem de fazer xixi
(REZENDE 2014 p47-48 grifo nosso)
A frase em grifo representa a percepccedilatildeo de Alice sobre o controle que a filha assumia
sobre sua vida ldquoNorinha pelo visto agora detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas
tambeacutem da chave da minha moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha
com almoccedilordquo (REZENDE 2014 p48) O controle sobre o cardaacutepio expressa a inconformidade
da protagonista com as imposiccedilotildees de Norinha na sua vida por exemplo escolhendo um almoccedilo
lsquobem paraibano viu Matildeiacutenha para vocecirc ir se acostumando aos poucosrsquo como ela refere Aleacutem
deste aspecto as sacolas de compras lsquoPra abastecer a despensa de minha Matildeiacutenha adoradarsquo
tambeacutem satildeo para Alice representativas dos mandos de sua filha
A direccedilatildeo da filha sobre a rotina da personagem ocorre em detalhes cotidianos como de
fazer e de guardar as compras de supermercado na cozinha do apartamento levar a lsquoquentinharsquo
para o almoccedilo e definir na percepccedilatildeo de Alice que ela deve sair agrave rua entre outras condutas
Tais comportamentos ligados agrave alimentaccedilatildeo demonstram a atitude de Norinha interferindo na
autonomia da matildee procurando ceifar sua capacidade de cuidar de uma nova vida naquilo que eacute
mais individual na sobrevivecircncia a nutriccedilatildeo A contrariedade de Alice agrave cozinha do apartamento
reflete em muito a percepccedilatildeo que ela tem deste ao longo da narrativa em suas referecircncias eacute
possiacutevel compreender que se vecirc presa naquilo que por diversas vezes chama de lsquotabuleiro de
xadrezrsquo Em grande parte essa impressatildeo se deve ao aspecto do local mas o sentimento
transcende essa caracteriacutestica no lsquotabuleirorsquo Alice tem sua liberdade tolhida
O trecho a seguir representa a relaccedilatildeo que se estabelece entre elas nesta etapa inicial da
chegada de Alice a Porto Alegre
Fiquei calada soacute olhando com a boca cheia o naco de queijo grande demais difiacutecil de
mastigar e engolir como todo o resto que havia tempos jaacute vinha entalado na minha
garganta Nem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia em meu nome
gritando aqui da cozinha enquanto desensacava os pacotes e escondia as coisas atraacutes de
sei laacute qual dessas dezenas de portinhas brancas por cima desses azulejos pretos [] e
por aiacute foi Norinha perguntando e respondendo por mim ateacute esvaziar a uacuteltima sacola
bater pela uacuteltima vez todas as portas e gavetas dos armaacuterios da geladeira O almoccedilo eacute soacute
esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenha (REZENDE 2014 p48-49)
117
Um dos pontos que deflagram a atitude de Norinha em ceifar a autonomia de Alice estaacute na
frase lsquoO almoccedilo eacute soacute esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenharsquo como se a matildee natildeo soubesse disso
ou natildeo tivesse capacidade de percebecirc-lo sozinha A filha infantiliza a personagem tomando por
ela decisotildees e condutas (como ir ao supermercado e guardar as compras nos armaacuterios da
cozinha) Ateacute mesmo a verbalizaccedilatildeo das respostas eacute feita por ela sem dar agrave Alice a possibilidade
de expressar-se como na frase lsquoNem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia
em meu nome gritando aqui da cozinharsquo
A resposta emocional de Alice a este iniacutecio de sua vida na nova cidade ainda antes da
revelaccedilatildeo de que Norinha e o esposo adiaram os planos de gravidez estaacute representada no
fragmento a seguir
Fiquei laacute Alice diminuindo mais ainda imprensada entre a mesa e a parede nem sei
quanto tempo tentando me convencer de que ela natildeo se meteria mais de surpresa pela
porta adentro e sabendo que pra rua eu natildeo ia como queria minha filha e natildeo ia mesmo
soacute porque era isso que ela tinha ordenado Natildeo ia natildeo de birra sem nenhuma ideia
nem vontade de fazer nada a natildeo ser andar para um lado e outro naquele tabuleiro de
xadrez minhas pernas dissipando a energia acumulada pela raiva olhar as malas ainda
fechadas as portas desses armaacuterios da cozinha fechadas a pilha de caixas fechadas e de
relance a minha cara fechada refletida na enorme televisatildeo da sala em outra menor no
quarto nos vaacuterios espelhos e vidraccedilas espalhados por aiacute O almoccedilo ficou aqui esfriando
no balcatildeo da cozinha ateacute o anoitecer Daiacute engoli aquilo frio mesmo enquanto deixava o
telefone tocar tocar tocar ateacute desistirem (REZENDE 2014 p51)
Entretanto a protagonista encontra em si mesma a capacidade de autonomia que vinha
adormecida desde quando comeccedilou o processo de mudanccedila determinado pela filha Comeccedila a
aceitar as modificaccedilotildees tomar conta da proacutepria rotina decidir adaptar-se ao apartamento e agrave nova
vida A decisatildeo de aceitar a vida imposta pela filha eacute tomada com autonomia com a sensatez que
remonta a lsquosensata professora Poacutelirsquo Alice torna a instalaccedilatildeo em sua nova moradia algo que
parece originar de uma decisatildeo sua e natildeo apenas de uma imposiccedilatildeo de Norinha Entretanto
expressa que a decisatildeo para tal eacute racional assim como a organizaccedilatildeo metoacutedica da casa que
realiza Sugere que estaacute fazendo de conta que esqueceu lsquode todo o restorsquo
E a sensata professora Poacuteli acabou vencendo pelo menos provisoriamente porque
acordei logo cedo disposta a deixar pra laacute o ressentimento ser realista encarar as coisas
como eram agora como gente grande voltar ao meu tamanho normal pulei da cama me
vesti decentemente explorei as provisotildees que Norinha tinha deixado fiz e tomei meu
cafeacute e danei a desmanchar malas e pacotes a encher gavetas prateleiras e cabides tudo
muito bem-arrumado metodicamente pensando soacute naquilo que tinha concretamente
diante de mim esquecida ou fazendo de conta que esquecia de todo o resto Pronto
[] botando ordem fora e dentro de mim pensava Pesquisei nos armaacuterios da cozinha
achei o que precisava fiz um almocinho pus toalha louccedila talher aqui mesmo nessa
118
espeacutecie de mesa sem pernas de pedra preta embutida na parede e comi com certo gosto
depois de natildeo sei quanto tempo de fastio (REZENDE 2014 p52-53)
Quando Alice menciona lsquopesquisei nos armaacuterios da cozinha achei o que precisava fiz
um almocinho pus toalha louccedila talherrsquo estaacute manifestando sua decisatildeo de procurar acostumar-se
aos detalhes da nova rotina como colocar a mesa O trecho a seguir complementa essa tentativa
Subi de volta confiante tinha tomado minha primeira iniciativa depois de tanto tempo
e isso fazia sentir-me melhor Abri mais umas caixas e arrumei o conteuacutedo Fiz almoccedilo
direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada sesta de uma vida
normal li umas paacuteginas de uma revista apanhada no aviatildeo e como sempre cochilei
logo (REZENDE 2014 p61)
A frase lsquofiz o almoccedilo direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada
sesta de uma vida normalrsquo demonstra sua procura por se adaptar ao cotidiano Alice procura
retomar as reacutedeas da nova vida mesmo sendo esta imposta a ela reassumindo seus afazeres
(lsquolimpar a cozinharsquo) e costumes (a lsquosagrada sesta de uma vida normalrsquo) Tudo isso relata agrave Barbie
no caderno posteriormente sabendo que tais posturas representavam apenas a tentativa em
ultrapassar a dor emocional pela saiacuteda de seu habitat em Joatildeo Pessoa A existecircncia compulsoacuteria
volta a aparecer quando eacute convidada para jantar na casa da filha ao mencionar lsquoeu jaacute estava
pegando jeito de me comportar como filha da minha filharsquo conforme se lecirc abaixo
Pois Umberto vai passar aiacute pelas sete horas que eu vou correr pra preparar um
comerzinho bem bom e trazer a senhora pra jantar com a gente botar a conversa em dia
vai ser uma deliacutecia vaacute se aprumar bem bonita que daqui a pouco ele estaacute batendo aiacute
Que remeacutedio senatildeo obedecer Eu jaacute estava pegando jeito de me comportar como filha da
minha filha (REZENDE 2014 p74)
No jantar referido Alice eacute informada por Norinha sobre a viagem do casal para o exterior
postergando o projeto da maternidade motivo de sua mudanccedila para Porto Alegre No primeiro a
lsquolasanha da verdadeirarsquo o lsquomelhor vinho da serra gauacutecharsquo e a lsquocuca de arrasarrsquo satildeo elementos
regionais que a filha oferece como forma ao que parece de apresentar agrave sua matildee as benesses do
territoacuterio em que esta deveraacute habitar no segundo a expressatildeo lsquoe eu soacute com a tarefa de garfar o
que me serviam e emitir de vez em quanto um huuuummm apreciativorsquo exprime a posiccedilatildeo
passiva que a protagonista reconhece assumir frente agraves imposiccedilotildees da filha Neste jantar tem fim
o periacuteodo de interaccedilatildeo de Alice com Norinha na narrativa demarcando a conclusatildeo de uma etapa
da histoacuteria a chegada da personagem agrave cidade
119
A seguir dois fragmentos que retratam a comida como fator de suposta agregaccedilatildeo
familiar mas escondem atraacutes do lsquoFiz jantar especialrsquo o desrespeito e o egoiacutesmo da moccedila quanto
agrave sua matildee Esta ficaraacute sozinha em uma cidade desconhecida sem referecircncias apoacutes ter tido que
abandonar sua terra natal em nome da exigecircncia da filha A atitude de falar da cuca como um
doce de seu completo desconhecimento ilustra agrave escassa familiaridade de Alice com as tradiccedilotildees
da regiatildeo como na frase lsquoum bolo recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima
gostoso de fatorsquo Os trechos definem a atmosfera aparentemente agradaacutevel da refeiccedilatildeo em
famiacutelia imposta por Norinha antes de esta fazer a revelaccedilatildeo que interferiraacute na vida de Alice
culminando na busca de sua autonomia O papel da comida neste ponto do livro eacute o de lsquoadoccedilarrsquo
a personagem para receber a notiacutecia da viagem da filha e do genro
Fiz jantar especial uma lasanha da verdadeira o melhor vinho da serra gauacutecha uma
cuca de arrasar vocecirc vai provar hoje uma cuca tudo receita da minha sogra vai adorar
jaacute estaacute com apetite natildeo eacute soacute de ouvir dizer entatildeo como estaacute sendo sua primeira
semana em Porto Alegre (REZENDE 2014 p74)
Umberto parecendo distraiacutedo dando soacute palpites lacocircnicos sempre concordando com a
mulher dele e eu soacute com a tarefa de garfar o que me serviam e emitir de vez em quando
um huuuummm apreciativo ateacute terminar de comer e aprovar a tal cuca um bolo
recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima gostoso de fato
(REZENDE 2014 p75)
A partir desse jantar Alice volta para sua casa e suspende os contatos com o casal Tem
iniacutecio assim o papel da comida ligada agrave recuperaccedilatildeo da autonomia perdida
Quando sai para a rua imbuiacuteda da missatildeo de procurar por Ciacutecero Alice sabe que sua
decisatildeo ultrapassa a descoberta do rapaz Eacute por si mesma pela capacidade de cuidar de si de
decidir mesmo as questotildees mais baacutesicas de sobrevivecircncia apoacutes Norinha ter tomado conta de sua
vida e de suas resoluccedilotildees Alice decide decidir Nesse sentido passa a guiar-se por suas
necessidades vitais como fome sono e banho por exemplo todos eles transplantados para o
espaccedilo urbano onde decide habitar apenas para natildeo voltar para o lsquotabuleiro de xadrez seu
apartamento
Mesmo quando esquece onde mora a permanecircncia nas ruas continua sendo uma escolha
pois poderia ligar para a prima Elizete que tem seu endereccedilo no entanto opta por natildeo fazecirc-lo
Durante o periacuteodo duas buacutessolas guiam seus rumos a procura por Ciacutecero que daacute sentido agrave
peregrinaccedilatildeo como um aacutelibi para justificar as andanccedilas e o natildeo-retorno para casa e a
120
manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do que escolhe comer de onde decide dormir e banhar-se
por exemplo
Uma das primeiras decisotildees de Alice eacute a de esconder-se em casa nos primeiros dias apoacutes
a revelaccedilatildeo sobre a viagem de Norinha e Umberto para o exterior e o adiamento dos planos que
ocasionaram sua mudanccedila para Porto Alegre
Cinco dias de fartura de letras quase jejum de qualquer outra comida o silecircncio cortado
soacute ateacute o comeccedilo da tarde do segundo dia pela ainda prazerosa estridecircncia do telefone
com perverso gosto de vinganccedila que me enchia a boca e quase me bastava como
simulacro de refeiccedilatildeo (REZENDE 2014 p87)
Protege-se em casa lendo livros e deixando o telefone tocar a nutriccedilatildeo estaacute fora do eixo
da comida nesse sentido pois Alice alimenta-se do isolamento que consegue estabelecer Assim
esse eacute o iniacutecio da retomada de sua autonomia atraveacutes das escolhas que comeccedila a fazer por si de
modo independente ao controle da filha Decide natildeo mais se submeter mesmo que a atender o
telefone A nutriccedilatildeo estaacute baseada na autonomia na independecircncia que retoma mais do que nos
proacuteprios alimentos nesse ponto da narrativa Quando refere lsquocom perverso gosto de vinganccedila que
me enchia a boca e quase me bastava como simulacro de refeiccedilatildeorsquo o que se pode ler eacute que a
salvaguarda da sobrevivecircncia estava apoiada na sua capacidade de reagir agrave filha de impor sua
vontade contrariando a imposiccedilatildeo de Norinha
A histoacuteria sofre a guinada maior quando Alice recebe a incumbecircncia de procurar por
Ciacutecero a missatildeo daacute sentido ao seu caminho aos seus dias A missatildeo de encontrar o rapaz eacute o
fator que move a personagem a sair de seu apartamento e a desafiar-se em espaccedilos urbanos
desconhecidos de uma cidade que ainda eacute para ela uma cidade estranha Este seraacute tambeacutem um
modo de se esconder da filha de Elizete e de todos que a possam encontrar Alice decide
descobrir o paradeiro de Ciacutecero para encontrar consigo mesma Aquela lsquosensata professora Polirsquo
capaz de tomar decisotildees e de gerenciar a proacutepria vida estaacute desaparecida de si
Na partida para a Vila Maria Degolada ela tem o primeiro contato com a comida das ruas
e botecos Ao sair de casa sem ter se alimentado obriga-se a comer para saciar a fome esta eacute a
primeira expressatildeo do comer como decisatildeo de sobrevivecircncia
Passei diante de uma portinha aberta quase invisiacutevel entre duas casas um balcatildeozinho
prateleiras com umas poucas mercadorias e uma caixa de vidro com lamentaacuteveis
empadas e coxinhas ou coisa parecida sobrevoadas por uma mosca preguiccedilosa Era
pouco mais que aqueles fiteiros de rua laacute de Joatildeo Pessoa e pode ter sido por isso entrei e
por pouco natildeo pedi uma tapioca de queijo Pedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer
121
de comer Leite natildeo havia fui soacute de cafeacute e uma coxinha engordurada de anteontem
caloria bastante para eu continuar minha peregrinaccedilatildeo Quem servia era um homem jaacute
idoso nada a ver com as imagens de gauacutecho de churrascaria que eu tinha pregadas na
imaginaccedilatildeo nem alto nem louro nem moreno bigodudo de chapeacuteu preto lenccedilo
vermelho laccedilo no ombro e bombacha bufante Baixinho e coxinho com um resto de
bigode fino um bonezinho achatado na careca camisa branca encardida e um lenccedilo
branco amarrado no pescoccedilo Comi paguei e me animei a perguntar pra onde ficava a tal
Vila Maria Degolada (REZENDE 2014 p96-97)
lsquoPedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer de comerrsquo eacute uma das frases que aponta para
o papel da comida nesse momento da histoacuteria o de saciar a fome O alimento em sua funccedilatildeo
primordial eacute o mote desse trecho jaacute que aqui Alice natildeo quer comer algo saboroso e sim que lhe
forneccedila forccedilas para seguir o percurso
Segui em frente olhando pro chatildeo emburrada passo firme e decidido lsquoCiacutecero Arauacutejo
Vila Maria Degolada Ciacutecero Arauacutejo Vila Maria Degoladarsquo revigorada pelo sal a
gordura e a cafeiacutena ateacute chegar manhatilde alta numa avenida larga sem ter mais nenhuma
ideia de pra que lado ficava o apartamento onde eu devia morar (REZENDE 2014
p97)
A atitude determinada de Alice frente ao objetivo eacute o lsquopasso firme e decididorsquo
complementado pela referecircncia que ela faz ao efeito da comida em seu acircnimo para chegar agrave Vila
Maria Degolada lsquorevigorada pelo sal a gordura e a cafeiacutenarsquo A personagem expressa nessa
uacuteltima frase o reforccedilo ao papel do alimento em saciar a fome e em fornecer energia
Nos caminhos que vai percorrendo junta folhetos de propaganda papeacuteis soltos e
guardanapos todos como base para escrever pedaccedilos de livros que encontra Um desses folhetos
representa a visatildeo de Alice sobre sua avoacute que aproveitava as gemas para preparar doces de sua
origem portuguesa e sobre sua filha que desperdiccedilava as gemas para preparar omeletes de
claras para a dieta Essa evocaccedilatildeo de lembranccedilas em relaccedilatildeo agrave avoacute e agrave filha a partir de uma
divulgaccedilatildeo impressa traz mais uma das funccedilotildees do alimento nessa etapa da histoacuteria aleacutem da
expressatildeo de autonomia o resgate de si atraveacutes das recordaccedilotildees de suas origens Lembrar-se de
sua avoacute eacute remontar uma parte de sua proacutepria construccedilatildeo pessoal e portanto estaacute incluiacutedo na
procura de Alice por sua identidade separada das ordens e determinaccedilotildees de Norinha
Uma ialorixaacute me deu um papelzinho com receita de uma simpatia natildeo exatamente pra
achar filho perdido era pra juntar famiacutelia desunida Mas pode crer que ajuda se tu fizer
com feacute soacute precisa quatro quindinsonde eacute que eu iacutea achar quindins veio-me por um
instante a lembranccedila das gemas de ovo desperdiccediladas por Norinha saudade da minha
avoacute portuguesa exilada laacute no sertatildeo e de seus doces de ovos os quindins que ela
aprendeu a fazer com coco lamentando sempre natildeo poder fazer sua brisa do Lis como a
de Leiria por falta das amecircndoasescrever o pedido pocircr os quindins em cima polvilhar
accediluacutecar cristal e espetar nos doces quatro flores amarelas quatro moedas acender quatro
122
velas e deixar tudo numa praccedila olha aiacute Barbie o papelzinho ficou junto com o resto dos
que se foram acumulando na minha mochila com as costas cheias de frases copiadas de
livros (REZENDE 2014 p116-117)
A necessidade de encontrar consigo mesma estaacute pungente na personagem uma soacute palavra
que remeta a seu passado serve para as recordaccedilotildees surgirem como os lsquoquindinsrsquo que na
verdade natildeo servem como alimento e sim como parte da simpatia Eacute como se a palavra fosse
uma porta para suas lembranccedilas e uma vez aberta faz que muito seja recordado e refletido
Alice segue pela Vila Maria Degolada agrave procura de Ciacutecero e vai tendo contato com
moradores que a ajudam andando pela vila atraacutes de pistas do rapaz Durante as horas que
permanece ali a comunicaccedilatildeo entre ela e as pessoas que a recebem eacute feita em grande parte pelos
alimentos que oferecem para ela comer ou beber Alice descobre novos sabores regionais na
receita ou apenas no nome e sobretudo conhece novas pessoas ao longo do trajeto O que decide
comprar nos botecos ou aceitar nas casas como os salgados os biscoitos ou o cafeacute ralo deve-se
principalmente a satisfazer as necessidades fiacutesicas de fome e sede Mais uma vez a comida
representa a manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Entretanto surge para essa novo papel o de saciar a
necessidade de contato humano de trocas e de interaccedilatildeo social
Nem sei quantos cafeacutes ralos engoli Pra te animar vai bebe nem sei quantas cuias de
chimarratildeo recusei Natildeo sou daqui natildeo sou da Paraiacuteba na minha terra natildeo eacute costume
cheguei haacute pouco ainda natildeo aprendi a tomar Mas logo acostuma que um amargo eacute coisa
boa demais bom pra sauacutede pro estocircmago pra tudo Todos sem falhar queriam ajudar
indicavam uma rua uma viela uma direccedilatildeo onde sim havia gente de lsquolaacutersquo Sei laacute quantas
coxinhas empadas comi e paguei pelas biroscas da Vila Maria Degolada nome que eu
logo parei de usar porque percebi que natildeo era do agrado de ningueacutem ali Ia aprendendo
coisas e nomes a comer dedo-de-negro que logo domestiquei como parente de nossa
sorda cortada em tiras e groacutestolis que identifiquei como a calccedila-virada da minha avoacute
portuguesa Tudo o que me fizesse esquecer Norinha e o apartamento preto e branco me
servia bem (REZENDE 2014 p117)
A passagem pela vila na procura por Ciacutecero tinha outra funccedilatildeo primordial dentro de
Alice a de natildeo retornar para o apartamento e para a vida que lhe foi imposta Com tal propoacutesito
decide prosseguir Percebe-se capaz de fazer escolhas a seu favor quando se pergunta lsquoe agorarsquo
pois responde que voltar para o apartamento natildeo lhe atrai lsquode jeito nenhumrsquo
Jaacute passava um pouco das quatro da tarde eu tinha andado desde as sete da manhatilde
sentando-me raras vezes quando alguma mulher mais atenciosa puxava uma cadeira de
dentro de casa e me oferecia pra descansar na sombra ou em algum boteco o tempo de
comer uma empadinha ou uma cueca-virada E agora Voltar pro apartamento natildeo me
atraiacutea de jeito nenhum Por que natildeo continuar pro novo destino provisoacuterio que me
indicaram Apesar de entatildeo jaacute achar tudo aquilo bastante suspeito (REZENDE 2014
p123)
123
Prosseguindo para o Hospital de Pronto Socorro surgem trecircs cenas relevantes em que o
comer eacute expresso como satisfaccedilatildeo da fome e reestabelecimento do acircnimo na primeira Alice
percebe a fome e decide procurar o que comer na segunda come de forma tatildeo afoita as pipocas
que se engasga na terceira eacute socorrida por Zelima senhora que a ajuda reforccedilando que o
cuidado de terceiros tambeacutem tem uma funccedilatildeo quando o comer eacute representado na obra
1) Cansaccedilo absoluto e fome fincaram-me no meio do saguatildeo zonza olhando aquela
larga porta aberta pra nada Um lugar vago num dos bancos era tudo o que me restava
Ali desabei e fiquei de olhos fechados e a cabeccedila pendendo sobre o peito como tantos
outros sentados naquele natildeo lugar esperando minhas pernas pararem de tremelicar
pensando apenas nelas e na sensaccedilatildeo do meu estocircmago oco Natildeo sei quanto tempo parei
ali Lembro-me de que afinal a fome venceu abri os olhos puxei o celular da bolsa pra
ver as horas a bateria estava descarregada procurei em torno e vi um reloacutegio na parede
do saguatildeo jaacute passava das nove da noite levantei-me as pernas agora quase firmes desci
os degraus da porta ateacute a calccedilada buscando algo pra comer e o que havia no meu raio de
visatildeo era uma carrocinha de pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me
desde que horas ele estava ali se tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia
inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido
Cheguei junto dele remexendo a bolsa agrave procura de uns trocados que tivessem restado da
farra de salgadinhos e biscoitos da Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada
desde entatildeo (REZENDE 2014 p147)
2) Puxei um bolinho de notas de dois reais e umas moedas estendi-as ao homem ele
escolheu o que correspondia ao preccedilo do saco de pipocas e me entregou tudo sem
trocarmos uma palavra Escorei-me no poste junto da carrocinha e enfiei na boca de
uma soacute vez o maior punhado de pipocas que pude sem me importar com as poucas que
escaparam e foram ao chatildeo Engasguei-me a boca seca e cheia tentando segurar a tosse
pra natildeo fazer chover mais pipoca pra todo lado mas natildeo consegui as ex-professora Poacuteli
cuspiu um jorro de piruaacutes tossiu de se acabar encostada num poste de lugar nenhum o
mundo escurecendo (REZENDE 2014 p147-148)
3) Zelima sentou-se ao meu lado segurando fielmente o meio copo de aacutegua e o meio
pacotinho de pipocas e assim que me recompus devolveu-me aquele simulacro de
refeiccedilatildeo dizendo Come que tu estaacute fraca bebe o resto da aacutegua para empurrar Soacute
balancei a cabeccedila obedeci ela recolheu os invoacutelucros vazios e foi jogaacute-los numa lixeira
na calccedilada voltou e sentou-se de novo junto a mim em silecircncio (REZENDE 2014
p148-149)
O percurso tem continuidade na manhatilde seguinte quando decide encontrar uma padaria
onde encontra aleacutem da satisfaccedilatildeo da fome um ambiente onde conversa e ri sobre o
desconhecimento de termos regionais como o nome de lsquocacetinhorsquo para o patildeo francecircs Nutre-se
desse modo do alimento e do contato humano ldquoAprumei o espinhaccedilo apanhei a bolsa e saiacute
novamente com passo firme destino certo uma padariardquo (REZENDE 2014 p159) A
protagonista chega no destino esperado saciando a fome de comida e de afeto
Cafeacute com leite cacetinho na chapa e riso me puseram em quase perfeita forma por
dentro e pelos proacuteximos instantes mas restava um tanto consideraacutevel de dor no corpo e
uma vontade enorme de me deitar e dormir decentemente
124
[] Quando saiacute olhei bem o nome da padaria e da rua pra voltar quando precisasse
encontrar um conhecido amigaacutevel como se eu jaacute soubesse quantas vezes precisaria
voltar (REZENDE 2014 p161)
Alice come quando tem fome dorme quando tem sono Respeita a sobrevivecircncia em sua
procura pelo desconhecido Ciacutecero A vida eacute no espaccedilo da rua do parque das avenidas das
padarias das carrocinhas de pipoca e de cachorro-quente
Quem mais usa orelhatildeo neste mundo ocirc Alice te liga no segundo deles o fio do
telefone pendia cortado mas na mesma esquina havia uma lojinha de venda e conserto
de celulares Sim o homem podia carregar pra mim Pelo menos uma carga raacutepida de
emergecircncia ateacute tu chegar em casa soacute dois pilas senta aiacute Abanquei-me no tamborete
oferecido mas meu estocircmago natildeo queria esperar mais nem um minuto e vi pela porta
uma carrocinha de cachorro-quente do outro lado da esquina Fui laacute e voltei trazendo o
patildeo com salsicha montes de mostarda escorrendo no guardanapo de papel e o luxo de
um saquinho de batata frita uma latinha de refrigerante o tamborete agrave sombra a parede
fresca para encostar as costas Seraacute que cochilei
Paguei agradeci saiacute comprei mais um cachorro-quente da carrocinha e natildeo pensei mais
em telefonar a Elizete nem queria saber endereccedilo nenhum nem voltar pra lugar
nenhum soacute continuar agrave toa Agrave toa Que nada (REZENDE 2014 p170-171)
Alice sabe natildeo estar agrave toa volta a ser dona de suas escolhas sejam elas quais forem Vai
retomando a consciecircncia de si mesma dos referenciais de sua histoacuteria de vida das lembranccedilas
ajudam a reconstruir sua identidade como quando refere a recordaccedilatildeo de lsquoum cafeacute com leite que
ao longo da vida sempre me parecia como soluccedilatildeo para pequenas dores pequenos desconfortosrsquo
Um vento mais frio me fez fugir da sombra procurar um resto de sol com vontade de
tomar alguma coisa quente um cafeacute com leite que ao longo da vida sempre me aparecia
como soluccedilatildeo pra pequenas dores pequenos desconfortos e fui em busca de um bar
lanchonete Achei um botequinho que me serviu leite ralo com cafeacute de garrafa teacutermica
ainda havia de aprender a tomar chimarratildeo mas me bastou
Depois de confortada pela bebida morna e accedilucarada saiacute agrave toa de novo esquecida de
Ciacutecero Arauacutejo [] (REZENDE 2014 p176)
Esquecer-se de Ciacutecero Arauacutejo significa neste ponto da histoacuteria que a aproximaccedilatildeo
consigo mesma torna-se mais importante Essa retomada de si atraveacutes do conforto de uma
lsquobebida morna e accedilucaradarsquo corresponde ao respeito aos seus referenciais de memoacuteria durante a
vida Alice vai remontando dados de si peccedilas de um mosaico desordenado pela mudanccedila de vida
mas que agrave medida que segue um percurso aleatoacuterio ou lsquoagrave toarsquo passa a ser o caminho para o
contato com suas caracteriacutesticas Quanto mais retoma a si mesma menos se ocupa de Ciacutecero
Este ocupar-se de si eacute traduzido pela procura por satisfazer as funccedilotildees vitais mas tambeacutem pelos
pequenos confortos que passa a permitir-se obter como a cena que transcorre na rodoviaacuteria
125
Nesse local o lsquoprato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos colherrsquo eacute a
expressatildeo da mudanccedila da personagem ao longo da histoacuteria pois essa passa a querer saciar a fome
com uma refeiccedilatildeo digna e natildeo mais com lanches de rua O garfo e a faca nesse sentido
representam a imagem de um comer para aleacutem do aspecto de saciar a fome evocam a ideia da
comida no prato posta agrave mesa e natildeo mais agrave rua sentada em um tamborete ou em peacute Eacute
interessante observar a referecircncia que faz ao cachorro-quente paraibano como forma de remontar
suas origens na reconstruccedilatildeo que faz de si
Decerto era preciso pagar e eu tambeacutem precisava comer uma refeiccedilatildeo decente como
havia dois dias natildeo comia impossiacutevel continuar vivendo de salgadinho refrigerante e
cachorro-quente de salsicha Se pelo menos fosse o bom cachorro quente paraibano com
tudo quanto haacute um verdadeiro prato feito dentro de um patildeo muita carne moiacuteda mais a
salsicha se quisesse verdura ovo ou qualquer outra coisa ou tudo junto o que a gente
pedisse aqueles abundantes molhos vermelhos de colorau escorrendo pelos lados
alimentando ou entupindo o freguecircs davam a sensaccedilatildeo de saciedade por um bom tempo
Mas aqui natildeo Eacute um patildeo com uma salsicha e a mostarda fraco demais pra mim eu natildeo
podia mais queria um prato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos de
colher Ali devia haver de tudo mas custava dinheiro (REZENDE 2014 p184)
Ainda na rodoviaacuteria onde consegue tambeacutem tomar banho vai decidindo adotar accedilotildees de
cuidado consigo como a lembranccedila da pasta de dente Progressivamente Alice ocupa-se de
retomar as rotinas de higiene de alimentaccedilatildeo e de sono Mais uma vez menciona a refeiccedilatildeo
completa o lsquogrande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdurarsquo Haacute a
noccedilatildeo de conforto na ideia de comida servida no prato e sobretudo no termo que ela usa
lsquocomida quentinharsquo
Dei-me conta de que pouco importava eu natildeo tinha sabonete nem sabatildeo nenhum mas
me lembrei confortada da pasta de dente que restava do aviatildeo guardada na bolsa pra
depois do grande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdura o
que fosse que eu havia de comer antes de procurar um canto pra dormir (REZENDE
2014 p187-188)
Na evoluccedilatildeo da procura por uma refeiccedilatildeo decente a protagonista encontra o restaurante
de Penha tambeacutem paraibana Descobre a coincidecircncia durante o jantar enquanto ouve a
proprietaacuteria falando ao telefone A forma como recebe a refeiccedilatildeo com o cuidado de Penha em
oferecer-lhe a comida agrave mesa junto agrave constataccedilatildeo de um sotaque familiar fazem com que Alice
se sinta confortada
1) Andei um pouco procurando onde comer e achei um restaurantezinho com um
aspecto muito simples limpo uma mulher com um jeito vagamente familiar do outro
lado do balcatildeo uma oferta Prato Feito R$ 350 Ai Barbie com que apetite me sentei
126
numa das duas mesinhas em frente ao balcatildeo e pedi meu PF uma latinha de refrigerante
Esperei meu olhar desgarrado acompanhando e abandonando cada um que passava
pensei Daiacute a poucos minutos a mulher sem nada dizer com uma das matildeos desdobrou agrave
minha frente uma toalhinha azul engomada a ferro com a outra depositou meu prato
quentinho acreditei ver o vapor subindo da comida talheres limpos enrolados num
guardanapo de papel imaculado um copo impecavelmente limpo a latinha gelada e ateacute
palito que eu nunca usei nem ia usar mas me acrescentavam conforto todos aqueles
adereccedilos em torno da minha fome soacute pra mim bem sentada numa cadeira de encosto as
matildeos limpas me sentindo toda limpa apesar da roupa usada e ataquei o prato com
voracidade tentando conter-me para natildeo comer depressa demais pra aquele prazer durar
bastante (REZENDE 2014 p192)
2) Quando a outra paraibana acabou o telefonema eu me levantei com o prato jaacute vazio o
copo ainda meio cheio me encostei ao balcatildeo e entreguei a louccedila mas continuei ali
tomei mais um gole do meu refrigerante e perguntei Vocecirc eacute da Paraiacuteba natildeo eacute Ela disse
Sou sim como eacute que sabe Ouvi umas palavras matildeiacutenha painho Campinatambeacutem sou
de laacute (REZENDE 2014 p193)
3) Acordei maldormida por conta do frio mas sem dor no corpo a rodoviaacuteria jaacute se
enchendo de gente juntei meus tereacutens e fui tomar cafeacute na bodeguinha de minha
conterracircnea que agravequela hora bem cedo jaacute havia reassumido seu posto (REZENDE
2014 p194)
Alice decide retornar ao restaurante de Penha na manhatilde seguinte permitindo-se tomar o
cafeacute da manhatilde Quando refere lsquobodeguinha da minha conterracircnearsquo jaacute expressa o conforto de
sentir-se familiar agrave Penha como forma de novamente encontrar referecircncia agrave sua Paraiacuteba Assim
como em outros fragmentos jaacute referidos a comida representa natildeo apenas o aspecto vital de
nutriccedilatildeo mas tambeacutem o do contato humano que propicia a exemplo do zelo com que a
proprietaacuteria coloca a mesa para Alice
Satisfeita em suas necessidades a personagem retoma sua busca por Ciacutecero Arauacutejo
seguindo a sugestatildeo dada por Penha para que fosse ao Campo da Tuca Laacute novo aproximaccedilatildeo
com seus referenciais atraveacutes do queijo de manteiga da rapadura e da plaquinha lsquotemos carne de
solrsquo
Procurando por Ciacutecero Alice encontra partes de sua terra Reencontra a si mesma atraveacutes
do contato com conterracircneos como Penha e outros do Campo da Tuca e de alimentos de sua
regiatildeo
Fui dando a volta ao campo de futebol e dei com uma bodeguinha que me cheirou a
nordestina encostei na porta olhei percebi logo o acerto de minha intuiccedilatildeo em cima do
balcatildeo havia uma caixa de vidro com queijo de manteiga e uma pilhazinha de rapaduras
na parede do fundo um cartaz Temos carne de sol Eu natildeo via ningueacutem depois percebi
movimento num canto mais ao fundo algueacutem arrumando prateleiras chamei Por favor
ele veio na hora pra entabular conversa perguntei O senhor tem mesmo carne de sol e
ele pesaroso Acabou esta manhatilde vendi o uacuteltimo pedaccedilo quase guardei pra mim mas a
freguesa antiga amiga laacute da minha terra insistiu e vendi pra ela semana que vem chega
mais se a senhora voltar na quarta ou quinta-feira eacute de certeza que vai ter carne de sol
aqui porque o primo que me manda jaacute despachou estaacute chegando era ateacute pra ter chegado
127
ontem [] olhe tem um queijinho de manteiga de primeira esse acabou de chegar
tenho mais laacute dentro a senhora pode levar quanto quiser esse eacute do bom bota na brasa
na frigideira e fica uma beleza assado natildeo vai se arrepender leve um pedacinho do
queijo pra esperar a carne de sol assim mata a saudade (REZENDE 2014 p200-201)
Alice ouve o sotaque familiar recebe acolhimento nas famiacutelias por onde procura por
Ciacutecero Natildeo encontra pistas dele mas descobre a cada novo trecho pistas de si mesma e de suas
raiacutezes
Suelen me conduziu de casa em casa gente do sertatildeo do litoral da Vaacuterzea do Brejo da
Paraiacuteba uns tantos Ciacuteceros por certo mas nenhuma notiacutecia de Ciacutecero Arauacutejo nem nas
casas de outros Arauacutejos Comi tapioca com coco tomei cafeacute refresco de cajaacute A gente
arranja algueacutem traz e guarda no freezer sempre tem mas natildeo achei Ciacutecero
(REZENDE 2014 p204)
Ela sabe que Ciacutecero eacute um pretexto em sua procura Reconhece que seu propoacutesito principal
natildeo eacute o de encontraacute-lo mas sim o de continuar sobrevivendo pelas proacuteprias pernas tomando as
proacuteprias decisotildees Quando menciona que se forccedilava a crer sabe que sua busca era por si mesma
Salgadinhos e cachorros-quentes mastigados agraves pressas ou com exagerada lentidatildeo a
depender do interesse dos assentos disponiacuteveis ou do cansaccedilo das pernas e as andanccedilas
sem fim com objetivos mentirosos nas quais eu mesma me forccedilava a crer Ciacutecero Arauacutejo
sumindo e reaparecendo segundo seus caprichos e minhas necessidades []
(REZENDE 2014 p213-214)
Em uma nova padaria ela alimenta-se de lsquopatildeo na chapa e cafeacute com leitersquo repete o pedido
para permanecer ali por mais tempo lsquomatutandorsquo Quando refere a si mesma naquela condiccedilatildeo
como lsquoalimentada e decididarsquo mostra que sobrevivecircncia e autonomia estatildeo lado a lado eacute capaz
de cuidar de si e de tomar as proacuteprias decisotildees mesmo que sejam como a de dormir em um sofaacute
ao relento coberta com o plaacutestico-bolha
Andei mais um pouco passei por uma padaria senti fome voltei entrei patildeo na chapa e
cafeacute com leite sentei-me em uma das duas mesinhas com tamboretes pedi mais patildeo
com cafeacute e encompridei minha permanecircncia ali matutando ateacute comeccedilarem a puxar a
primeira porta de ferro Entatildeo alimentada e decidida debaixo de um ceacuteu despejado
voltei ao sofaacute que laacute me esperava deserto deitei-me em cima da bolsa os joelhos
apoiados na mochila presa pelas alccedilas agraves minhas canelas agasalhei-me com meu
plaacutestico-bolha e dormi minha primeira noite ao relento sem nada sobre a cabeccedila senatildeo
estrelas (REZENDE 2014 p217)
A frase jaacute apontada lsquoalimentada e decididarsquo mostra a ideia de que a alimentaccedilatildeo eacute
combustiacutevel de sua sobrevivecircncia e de sua capacidade de decidir por si o que fazer Cada vez
mais a protagonista da narrativa se percebe protagonista da proacutepria vida
128
No seguimento de seus dias na rua Alice encontra Arturo e Lola moradores de rua Com
eles compartilha o lugar de dormir e as refeiccedilotildees interage afeiccediloa-se com amizade Arturo a
quem ela apelida de lsquoChapeleirorsquo acorda-a para que receba dos voluntaacuterios o lanche da
madrugada
Eu dormi Barbie pela primeira vez eu dormi na rua literalmente de verdade a noite
quase toda ateacute comeccedilar a clarear laacute fora Foi o Chapeleiro que me acordou sacudindo
meu ombro com sua fala arrevesada lsquoCha bem a chente do pan y do cafeacute no perde esse
pan com cafeacute dessos pibes eacute bueno eacute quente conforta son pibes Buenosrsquo
A cada parada saltavam jovens dois rapazes e uma moccedila com copos de plaacutestico
garrafas teacutermicas e embrulhinhos de papel pardo distribuindo-os Quando chegou a
minha vez vi primeiro aacutegua quente pras cuias como a do Chapeleiro jaacute a bomba em
riste um pacotinho de erva-mate pra quem pedia e a oferta de cafeacute com leite bem
accedilucarado que eu preferi mais um cacetinho com manteiga e uma espeacutecie de mortadela
ou outro afiambrado qualquer Vou lhe dizer Barbie embora o copinho fino quase
queimasse a matildeo aquilo me pareceu um presente do ceacuteu eu quase sem dinheiro nenhum
e tatildeo longe da padaria do meu amigo pra ir pedir-lhe fiado outro cacetinho na chapa e
um cafeacute com leite (REZENDE 2014 p224)
Lola eacute personagem de grande relevacircncia na narrativa pois estabelece com Alice uma
relaccedilatildeo de amizade e de cuidado Recebe-a em sua casa mesmo com toda precariedade que esta
estrutura tem a oferecer Daacute agrave protagonista a confianccedila de poder dormir laacute quando quiser Alice
retribui compartilhando com ela as refeiccedilotildees que faz Mesmo com pouquiacutessimo dinheiro que
ainda lhe sobra ela divide com Lola a comida que consegue comprar O alimento aleacutem de nutrir
o corpo nutre a amizade funciona como instrumento de partilha e de gratidatildeo pelo acolhimento
que recebe da nova amiga A seguir trecircs fragmentos que ilustram o cuidado muacutetuo entre elas
1) Natildeo tive coragem de fazer perguntas sobre aquilo tudo preferi oferecer-lhe com um
resto de dinheiro que catei nos bolsos e na carteira um cafeacute com patildeo na padaria mais
proacutexima que ela aceitou e comeu com gosto nenhuma de noacutes duas ligando a miacutenima
pros olhares enviesados que nos cercavam Tu vem todo dia dormir aqui tu eacute direita tu
pode aprende o caminho Eu vinha sim sem duacutevida nenhuma e fomos cada uma pro
seu lado eu memorizando pontos de referecircncia pelo caminho (REZENDE 2014 p232)
2) Dormia em seu terraccedilo dividia com ela minhas parcas refeiccedilotildees lia seus livros
embolorados Ela nunca me perguntou mais nada desde o primeiro encontro em que lhe
contei e ela duvidou da minha histoacuteria de filha neto Ciacutecero e tudo mais que ouviu com
um risinho descrente (REZENDE 2014 p236)
3) Guiavam-me o amanhecer e o entardecer a chuva o frio o sol a fome que eu
resolvia com qualquer coisa natildeo mais de dez reais por dia a menor quantia que o caixa
eletrocircnico cuspia agraves vezes suficientes pra mim e pra Lola Dias e dias Nada mais na
minha aparecircncia nem de leve acho me distinguia dos outros (REZENDE 2014
p239)
Ao final da narrativa Alice narra como terminou seus quarenta dias de rua jaacute sem
dinheiro ainda encontra um modo de se alimentar vendendo os livros que comprou mendigando
129
aacutegua em bares Sua condiccedilatildeo deteriorada chega ao limite e entatildeo natildeo mais se parece apenas mas
se torna moradora de rua pela proacutepria escolha de natildeo voltar ao apartamento Natildeo eacute mais guiada
pela procura por Ciacutecero mas sim por aquela de sobreviver
Esmoreci de vez sem banho sem comida rasgada desmantelada deixei-me cair em
mais um banco indiferente aos olhares se eacute que algueacutem me via cochilei e acordei mil
vezes saiacute pra rua tocada pela fome a esmo coragem nenhuma de pedir nas portas de
remexer no lixo vendi no sebo meus livros novos de 199 pela quantia suficiente pra trecircs
cachorros-quentes bebi aacutegua de torneira mendigada em balcotildees de bares Jaacute natildeo tinha
mais nada a perder (REZENDE 2014 p244)
Quem ajuda Alice na decisatildeo de retomar sua vida de voltar a seu apartamento eacute Lola Ao
estimulaacute-la a telefonar para Elizete para pegar o endereccedilo de sua casa Lola cuida de Alice
acordando-a de madrugada e oferecendo-lhe lsquoa metade de um patildeo dormido e uns goles do seu
chimarratildeorsquo Aqui o alimento eacute para dar forccedilas agrave personagem mas eacute acima de tudo representativo
do cuidado e do carinho que se estabelece entre elas Alice reconhece
Ela afinal acreditava mais do que eu me sacudiu no lusco-fusco da madrugada Vai
sai desse buraco isso natildeo eacute pra ti tu soacute natildeo esquece da gente Obedeci sem resistecircncia
Lola me deu a metade de um patildeo dormido uns goles do seu chimarratildeo Toma pra tu
aguentar ateacute laacute levou-me a um orelhatildeo talvez o uacuteltimo que ainda funcionava telefonei
pra Elizete a cobrar tirei-a da cama na madrugada (REZENDE 2014 p245)
Quando refere lsquoobedeci sem resistecircnciarsquo natildeo se trata de uma obediecircncia passiva como
aquela que se instala com a filha no iniacutecio da narrativa eacute sim o resultado de sua quarentena a
compreensatildeo de si mesma e de suas necessidades de sobrevivecircncia que natildeo mais podem ser
satisfeitas na rua pela falta de dinheiro Alice constata que seu percurso em direccedilatildeo agrave si mesma
chega ao fim que jaacute eacute capaz de comeccedilar uma nova vida em Porto Alegre agora com o passo
firme de quem eacute capaz de decidir natildeo mais apenas sobreviver mas viver a rotina como se
apresenta A protagonista natildeo estaacute mais resignada agrave vida que lhe foi imposta mas compreende
que chegou aos proacuteprios limites e que retomou sua autonomia ldquoChega Barbie agora eu paro
mesmo jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia guria a solidariedade silenciosa mas
agora eu vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a mal taacute Natildeo digo que seja pra sempre quem
sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo a limpordquo (REZENDE 2014 p245)
Sem ponto final o paraacutegrafo mostra a caracteriacutestica da narrativa muitas vezes com frases
inacabadas Entretanto aqui a falta do ponto denota a abertura agraves possibilidades do que refere
como lsquopasso tudo a limporsquo Alice assume elementos da linguagem gauacutecha como o uso do lsquoguriarsquo
130
do lsquotursquo e do lsquotaacutersquo expressando a iniciativa pela assimilaccedilatildeo de elementos regionais em sua nova
fase depois de fazer todo o relato de sua mudanccedila de vida nas paacuteginas do diaacuterio
Em todo o percurso de sua procura por si mesma pelo resgate de sua autonomia o
alimento assume diversas conotaccedilotildees Pode-se compreender a cozinha em Quarenta dias como
um fator que marca etapas da histoacuteria de Alice desde a sopa que prepara em Joatildeo Pessoa ateacute o
patildeo dormido que recebe de Lola tanto representada pelo aspecto da comida como por aquele da
mobiacutelia dos instrumentos que satildeo parte do preparar o alimento e do comer Aleacutem disso eacute
possiacutevel transplantar a cozinha para o externo na histoacuteria como representaccedilatildeo da vida que Alice
decide tomar fora da vida que lhe foi imposta A cozinha representa a autonomia e natildeo mais a
obediecircncia agrave filha A consciecircncia do corpo por sua vez as necessidades de fome sede sono e
higiene pessoal que satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa
Cabe compreender a consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo ambas definidas por
Jaspers na procura que a protagonista faz por si mesma a partir da capacidade de tomar decisotildees
a favor do que deseja e precisa e natildeo a favor da filha Aleacutem disso relembra diversos elementos
de sua identidade a partir de referenciais de sua terra encontrados em Porto Alegre como um
sotaque familiar de Penha ou os sabores paraibanos ou mesmo na evocaccedilatildeo dos doces de sua
avoacute que os quindins da simpatia fazem-na evocar A recordaccedilatildeo do cachorro-quente paraibano
que compara com aquele soacute de patildeo e salsicha gauacutecho faz com que as memoacuterias ajudem em sua
reconstruccedilatildeo no que tange agrave consciecircncia de si A consciecircncia do corpo por sua vez pode ser lida
na iniciativa de Alice por satisfazer as necessidades de fome sede sono e higiene pessoal que
satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa
Um ponto de grande importacircncia eacute a interaccedilatildeo com outras pessoas que tambeacutem consiste
em necessidade de sobrevivecircncia Alice sai do isolamento em que passa os primeiros dias do
choque imbuiacuteda de encontrar Ciacutecero Nesta missatildeo conhece pessoas com quem conversa e
partilha mesmo que seja uma breve aproximaccedilatildeo Nutre-se dessas trocas aleacutem da nutriccedilatildeo pelo
alimento Coloca-se em situaccedilotildees em que eacute escutada em que tem sua necessidade atendida como
nas vilas que percorre na procura pelo rapaz nos botecos e restaurantes onde vai recebe o que
pede no restaurante de Penha recebe o zelo de uma mesa posta de Zelima no Pronto-Socorro
recebe cuidado e preocupaccedilatildeo
131
Atraveacutes da necessidade de sobreviver e da missatildeo de descobrir o paradeiro de Ciacutecero
Alice redescobre sua capacidade de tomar as reacutedeas da proacutepria vida que atribuiacutera agrave filha Norinha
logo que chegou em Porto Alegre
132
CONCLUSAtildeO
Italo Calvino ao se referir agrave atividade do escritor afirmou ldquoEscrevemos para tornar
possiacutevel ao mundo natildeo escrito de exprimir-se atraveacutes de noacutesrdquo (DANZI 2007 p140) O que ele
denomina lsquomundo natildeo escritorsquo eacute a proacutepria vida real percebida pelo indiviacuteduo por seus cinco
sentidos e vivenciada atraveacutes das emoccedilotildees e dos pensamentos Desse lsquomundo natildeo escritorsquo
portanto fazem parte o cozinhar e o comer o partilhar as refeiccedilotildees e seus sabores o vincular-se
aos demais entre outras vicissitudes da experiecircncia humana Atraveacutes do ofiacutecio do escritor essas
condiccedilotildees satildeo representadas no texto literaacuterio
A escolha por estudar o universo da cozinha neste contexto permite expressar diversas
perspectivas atraveacutes da literatura Silvana Ghiazza estudiosa das relaccedilotildees entre cozinha e
literatura expotildee que
O alimento enquanto signo significa portanto algo aleacutem de si mesmo media conteuacutedos
ligados ao universo cultural revela conexotildees com a realidade histoacuterico-social com o
conjunto profundo da identidade individual e coletiva constitui em suma um polo de
agregaccedilatildeo de diversas dimensotildees de humanidade torna-se uma forma de linguagem natildeo-
verbal organizando-se em paralelo a outras linguagens em um orgacircnico sistema de
sinais desta forma pode tornar-se entatildeo uma chave de leitura transversal da realidade
Ateacute daquela literaacuteria (GHIAZZA 2015 p19)
De acordo com a mesma autora ldquo[] pode-se falar de comida ou atraveacutes da comidardquo
(GHIAZZA 2015 p20 grifo nosso) No termo lsquoatraveacutesrsquo empregado por Silvana Ghiazza estatildeo
as possiacuteveis aplicaccedilotildees da cozinha na literatura em que a primeira a cozinha eacute um veiacuteculo para
que a segunda a literatura exprima na linguagem do escritor uma seacuterie de circunstacircncias dos
personagens e da trama
Mais uma vez Silvana Ghiazza colabora para a compreensatildeo do sentido da comida e sua
relaccedilatildeo com a literatura quando esclarece
A comida pode ser presente como objeto em sua concreta materialidade no interno da
representaccedilatildeo marcando a natureza realiacutestica da proacutepria estrutura narrativa pode
contribuir a delimitar as coordenadas espaccedilo-temporais fornecendo referecircncias a
produtos pratos haacutebitos de um tempo e de um territoacuterio determinado pode tambeacutem
assumir um significado metafoacuterico mediando conteuacutedos diversos e simboacutelicos A
relaccedilatildeo com o alimento em termos de sua conotaccedilatildeo identitaacuteria pode servir ao autor para
tratar o caraacuteter das personagens e pode tornar-se uma forma de comunicaccedilatildeo
interpessoal uma linguagem natildeo-verbal A comida pode ainda constituir o campo
semacircntico do qual o autor se serve para as escolhas lexicais de sua escritura
(GHIAZZA 2015 p20)
133
A expressatildeo da cozinha no texto literaacuterio serve valendo-nos da referecircncia de Italo
Calvino a que este lsquomundo natildeo escritorsquo se exprima atraveacutes do escritor A partir da leitura da
autora entende-se que esse lsquoexprimir-sersquo poderaacute ocorrer por meio de trecircs funccedilotildees principais a
denotativa a conotativa e a comunicativa Sobre a primeira denotativa Silvana Ghiazza explica
As referecircncias a produtos alimentares a pratos e a receitas assim como a rituais haacutebitos
ou eventos ligados agrave realidade gastronocircmica de um tempo preciso e de um territoacuterio
definido contribuem sem duacutevidas para dar veridicidade verossimilhanccedila agrave narrativa
marcando sua estrutura realiacutestica (GHIAZZA 2015 p24)
As trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea escolhidas para compor o corpus
desta dissertaccedilatildeo apresentam o universo da cozinha atraveacutes da funccedilatildeo denotativa nos elementos
compreendidos como espaccedilo fiacutesico material Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo as
referecircncias agraves tradiccedilotildees culinaacuterias judaicas em seus pratos receitas e praacuteticas satildeo representadas
por essa funccedilatildeo Em O arroz de Palma podemos ler em produtos como o arroz a lata de azeite
de oliva e o bacalhau a presenccedila da cultura portuguesa configurando tal funccedilatildeo em Quarenta
dias a mesma estaria representada pelas carrocinhas de pipoca e de cachorro quente pelas
padarias e comidas de botecos de rua pois satildeo elementos que datildeo verossimilhanccedila agrave estrutura
narrativa em que a personagem passa a habitar as ruas da cidade durante a sua procura
A respeito da funccedilatildeo conotativa em situaccedilatildeo oposta agrave anterior Ghiazza explicita
As referecircncias agrave esfera alimentar natildeo tecircm o escopo de marcar a verossimilhanccedila e o
realismo da obra fornecendo informaccedilotildees do tipo denotativo realistico-referencial mas
servem principalmente para tratar do caraacuteter das personagens para definir a
personalidade atraveacutes de gestos de comportamentos ou de haacutebitos ligados de algum
modo agrave produccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo e ao consumo do alimento (GHIAZZA 2015 p25)
Podemos na funccedilatildeo conotativa mencionar em O arroz de Palma a preparaccedilatildeo do arroz
por Antonio enquanto narra a histoacuteria bem como o papel do arroz na trama considerando seu
caraacuteter simboacutelico como fertilizador da famiacutelia e como elemento presenteado por Palma e Joseacute
Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento Em Por que sou gorda mamatildee a funccedilatildeo
conotativa seria representada pela relaccedilatildeo das personagens com o comer jaacute que tanto no caso da
protagonista como no de sua matildee e no da Voacute Magra tal relaccedilatildeo eacute caracteriacutestica da personalidade
das mesmas entre outros exemplos Em Quarenta dias as escolhas alimentares de Alice satildeo
comportamentos associados agrave sua decisatildeo de permanecer na rua natildeo voltando para casa bem
como de seu desejo por autonomia Na mesma obra tanto o restaurante da conterracircnea Penha
134
quanto ingredientes e comidas da Paraiacuteba com os quais a protagonista tem contato em seus
percursos marcam a ligaccedilatildeo afetiva que ela manteacutem com sua terra natal
Outra das funccedilotildees que Silvana Ghiazza refere eacute a comunicativa relacionada ao papel da
cozinha na comunicaccedilatildeo entre as personagens de uma trama como por exemplo a funccedilatildeo da
comida no compartilhar a mesa
Ainda um outro significado que a comida pode assumir eacute ligado agrave convivialidade agrave sua
funccedilatildeo de meio de comunicaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Desde sempre dividir o alimento
foi de forma diversa mas em todas as sociedades ocasiatildeo para comunicar E esse eacute um
dado verificaacutevel na vida de cada dia em que se espera que o momento da divisatildeo do
alimento seja tambeacutem momento de divisatildeo de pensamentos e de afetos de
aprofundamento do conhecer reciacuteproco Na mesa se fala o eu torna-se noacutes
Tambeacutem na literatura esta realidade ocupa um lugar notaacutevel e as referecircncias agrave comida
desempenham uma funccedilatildeo comunicativa na medida em que oferecem o suporte para
uma troca relacional entre as personagens o alimento e mais em termos gerais as
praacuteticas alimentares podem transformar-se de fato em uma verdadeira linguagem natildeo-
verbal capaz de comunicar mensagens sem a necessidade de palavras [] A comida
torna-se a forma privilegiada de linguagem natildeo-verbal para comunicar o sentimento de
amor em todas as suas formas (GHIAZZA 2015 p26-27)
Nas trecircs obras do corpus encontramos a funccedilatildeo comunicativa quando a comida bem
como as representaccedilotildees da cozinha como espaccedilo fiacutesico satildeo elos de convivecircncia entre as
personagens Palma colhe o arroz da pedra para presenteaacute-lo ao irmatildeo e agrave cunhada e o mesmo
seraacute elemento de ligaccedilatildeo entre a famiacutelia assumindo o arroz o nuacutecleo da trama Antonio durante a
narrativa prepara o que restou do ingrediente para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo de cem anos do
casamento dos pais e do proacuteprio arroz em O arroz de Palma Ateacute mesmo na expressatildeo do amor
fiacutesico o arroz eacute o elemento comunicativo na cena em que Antonio e Isabel inauguram sua
intimidade fiacutesica derramando sobre seus corpos o arroz Em Por que sou gorda mamatildee a Voacute
Magra oferece doces tiacutepicos aos netos em sua sacola de crocheacute enquanto a matildee da protagonista
compartilha com os filhos os doces e o refrigerante dentro do carro na viagem da famiacutelia ao
Uruguai
Assim a representaccedilatildeo da cozinha pode se exprimir no texto literaacuterio como espaccedilo fiacutesico
e simboacutelico termos escolhidos para o presente trabalho ou atraveacutes de suas funccedilotildees denotativa
conotativa e comunicativa conforme Silvana Ghiazza As trecircs obras do corpus tecircm o objetivo de
propor a reflexatildeo sobre as linguagens que a cozinha pode assumir no texto literaacuterio
especificamente no contexto da literatura brasileira contemporacircnea Nossa escolha por estudar o
referido tema decorreu tambeacutem da funccedilatildeo cultural que a cozinha assume na sociedade atraveacutes
dos tempos Rita Rutigliano explica que
135
Desde sempre os escritores utilizam a comida e o comer tambeacutem para falar de outra
coisa As paacuteginas dos livros se sabe portam um patrimocircnio de signos reveladores de
vivecircncias e de sentimentos humanos Nos eacute possiacutevel colher indiacutecios preciosos atraveacutes de
descriccedilotildees dos rituais alimentares (e ateacute mesmo do jejum) que- cobrindo o arco inteiro
entre dois polos- a comida como necessidade de base e como um aspecto da paixatildeo pela
vida-podem se tornar invenccedilatildeo jogo poesia religiatildeo histoacuteria barocircmetro das
experiecircncias pessoais e coletivas metaacutefora social e poliacutetica Em uma palavra cultura
(RUTIGLIANO 2000 p11)
A respeito do papel desempenhado pela cozinha na cultura salientado por Rita
Rutigliano podemos acrescentar o fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo lsquoLa cultura em la
cocinarsquo cujo conselho editorial eacute composto por Marcelo Aacutelvarez Jesuacutes Contreras e Rosaacuterio
Olivas O referido fragmento aparece publicado em um dos livros da coleccedilatildeo pela editora
Catalonia del Nuevo Extremo
A cozinha natildeo eacute soacute um procedimento teacutecnico que permite que os produtos alimentiacutecios
se transformem em pratos e em receitas eacute acima de tudo uma linguagem em que se
expressa a cultura humana Os gostos a esteacutetica as combinaccedilotildees de sabores os
condimentos preferidos e as maneiras agrave mesa satildeo gestos sociais que se relacionam com a
histoacuteria e com a transmissatildeo dos siacutembolos que distinguem uma comunidade da outra
(SARDE MONTECINO 2014)
O fato eacute que das mais diversas formas dentro do referido contexto cultural o universo
culinaacuterio pode ser traduzido na literatura como um fenocircmeno da natureza humana O cozinhar
nos fez humanos A propoacutesito disso Eloisa Palafox refere que as capacidades de cozinhar os
alimentos e de contar histoacuterias distinguem o homo sapiens ambas compotildeem parte primordial de
nossa evoluccedilatildeo A semelhanccedila entre tais praacuteticas estaacute tambeacutem no fato de que permitem a
socializaccedilatildeo entre os indiviacuteduos e a partilha da comida e das histoacuterias Para Michael Pollan
Somos a uacutenica espeacutecie que depende do fogo para manter o corpo aquecido e a uacutenica
espeacutecie que natildeo pode passar sem cozinhar sua comida A esta altura o controle do fogo
jaacute estaacute inscrito nos nossos genes uma questatildeo natildeo mais associada apenas agrave cultura
humana mas sim agrave nossa biologia (POLLAN 2014 p109)
A relaccedilatildeo com o cozinhar vai aleacutem do preparo do alimento no fogo para ingestatildeo Esse eacute
sem duacutevidas o que manteacutem nossa sobrevivecircncia bioloacutegica mas haacute outra habilidade que
aprendemos como espeacutecie graccedilas tambeacutem ao fogo a interaccedilatildeo com os demais que Silvana
Ghiazza relaciona com a funccedilatildeo comunicativa que a cozinha pode ter no texto literaacuterio Pollan
acrescenta agrave exposiccedilatildeo acima a relevacircncia dessa aquisiccedilatildeo em nosso desenvolvimento
136
Sobretudo o fogo que usamos para cozinhar como o que vigio na churrasqueira do meu
quintal tambeacutem ajudou a nos formar como seres sociais lsquoA forccedila do magnetismo social
exercido pelo fogorsquo como diz o historiador Felipe Fernaacutendez-Armesto eacute o que nos
manteacutem juntos e ao fazer isso ele provavelmente mudou o curso da evoluccedilatildeo humana O
fogo usado para cozinhar promoveu a seleccedilatildeo de indiviacuteduos capazes de tolerar outros
indiviacuteduos- fazer contato visual cooperar e compartilhar lsquoQuando o fogo se combinou agrave
comidarsquo escreveu Fernaacutendez-Armesto lsquoum foco quase irresistiacutevel foi criado para a vida
comunalrsquo (na verdade lsquofocorsquo vem da palavra latina focus para lareira braseiro chama)
A forccedila da gravidade social exercida pelo fogo natildeo parece ter diminuiacutedo [] (POLLAN
2014 p109)
Assim somos seres bioloacutegicos e sociais atributos que devemos ao ato de cozinhar A
nossa biologia nos confere o comer pela fome e pelo prazer Esse elemento por sua vez eacute
necessaacuterio para promover a continuidade da sobrevivecircncia individual da mesma forma que o
prazer sexual eacute o estiacutemulo para a preservaccedilatildeo do humano como espeacutecie Cozinhar comer
alimentos cozidos que nos deem nutriccedilatildeo e sensaccedilotildees prazerosas e nos reunirmos com nossos
semelhantes satildeo atributos evolutivos que promoveram a chegada ao seacuteculo XXI
A reuniatildeo com as pessoas proacuteximas resultado do fogo como elemento agregador para
cozinhar os alimentos tornou-nos em termos evolucionaacuterios seres sociais Sendo assim
partilhamos vivecircncias com outros e essas nos propiciam a noccedilatildeo de pertencimento a um grupo
Temos a partir disso a noccedilatildeo de uma identidade singular e plural Somos parte de algo e
acumulamos percepccedilotildees experiecircncias e sentimentos em comum forma-se a memoacuteria coletiva A
memoacuteria individual de modo diverso eacute parte do aparato anatocircmico e fisioloacutegico dos seres
humanos Essa se desenvolve agrave medida que se forma o neocoacutertex ceacuterebro exclusivamente nosso
cooperando com a consciecircncia de noacutes mesmos e entatildeo com a construccedilatildeo da identidade
individual E porque somos capazes de reter informaccedilotildees de arquivaacute-las e de evocaacute-las em
acircmbito individual somos tambeacutem capazes de fazecirc-lo coletivamente ao compormos um grupo
seja uma famiacutelia ou um povo
Uma das principais caracteriacutesticas da memoacuteria na esfera familiar satildeo as histoacuterias que
atravessam geraccedilotildees por serem contadas desde os antepassados Entre essas eacute vaacutelido incluirmos
tambeacutem as receitas de cozinha pois narram o como-se-faz de um prato atraveacutes dos tempos por
parentes de sangue ou de criaccedilatildeo Entre tais histoacuterias podemos tambeacutem referir o papel de um
determinado ingrediente na formaccedilatildeo de uma memoacuteria de famiacutelia como eacute o exemplo em O arroz
de Palma
A memoacuteria individual por sua vez eacute porccedilatildeo imprescindiacutevel de nossa identidade e da
consciecircncia que temos sobre quem somos ela compotildee junto aos demais elementos nossa
137
capacidade de autonomia Jaspers aponta para a impossibilidade de uma independecircncia total em
relaccedilatildeo a outras pessoas pois precisamos das interaccedilotildees de afeto e de trocas com nossos
semelhantes Temos tambeacutem necessidade uns dos outros por aspectos praacuteticos de sobrevivecircncia
indiviacuteduos que plantem que colham que pesquem que vendam que comprem que cozinhem
que consumam e que faccedilam esse ciacuterculo perpetuar-se Seguiremos cozinhando uns para os outros
pelo simples fato de que precisamos comer E partilhar Esse eacute o ponto em Quarenta dias
A protagonista depende de quem prepare o alimento para ela seja o anocircnimo na
carrocinha de cachorro quente na rua seja na mesa posta com esmero que recebe no restaurante
da rodoviaacuteria pela conterracircnea Penha Paradoxalmente o fato de receber do outro a comida eacute o
substrato da retomada de sua autonomia jaacute que a decisatildeo do que comer eacute da proacutepria Alice Nesse
caso o cozinhar tece as interaccedilotildees entre os sujeitos
Os elementos escolhidos para estudo satildeo resultado de nossa capacidade de pensar de
sentir emoccedilotildees de perceber os estiacutemulos externos atraveacutes dos cinco sentidos e de interpretaacute-los
de acordo com a consciecircncia do corpo e de noacutes mesmos A bagagem individual e cultural
fornecida pela memoacuteria faz com que possamos sentir prazer ao saborear uma receita de famiacutelia
porque ela nos faz lembrar de uma avoacute ou de uma tia como ocorre com Antonio ao ler aquela
escrita por Palma em seu caderno Escolhemos o que comer exercendo nossa autonomia
conforme as preferecircncias alimentares que nos identificam considerando a cultura do territoacuterio
onde vivemos Compreende-se entatildeo que os atributos definidos para este trabalho natildeo ocupam
compartimentos estanques mas estatildeo inexoravelmente interligados em noacutes
Pollan reflete sobre a contribuiccedilatildeo de Levi-Strauss nesse aspecto
Segundo Levi-Strauss a distinccedilatildeo entre lsquoo crursquo e lsquoo cozidorsquo serviu a muitas culturas
como a grande alegoria para estabelecer a diferenccedila entre animais e pessoas Em lsquoO cru
e o cozidorsquo ele escreveu lsquocozinhar natildeo apenas marca a transiccedilatildeo da natureza para a
cultura mas por meio dessa accedilatildeo e com a sua ajuda a condiccedilatildeo humana pode ser
definida com todos os seus atributosrsquo Cozinhar transforma a natureza e ao fazer isso
nos eleva acima desse estado tornando-nos humanos (POLLAN 2014 p57)
Na presente dissertaccedilatildeo partiu-se da proposta de estudar a memoacuteria ligada agrave cozinha em
O arroz de Palma o prazer vinculado ao comer em Por que sou gorda mamatildee e a autonomia
associada ao escolher o alimento a partir da percepccedilatildeo da fome em Quarenta dias Essa
separaccedilatildeo se deveu agrave predominacircncia desses atributos em cada uma das obras natildeo os excluindo
138
das demais Como jaacute exposto haacute uma interligaccedilatildeo entre esses em cada um de noacutes Eacute possiacutevel
encontrar nas trecircs narrativas expressotildees dessa conexatildeo
Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo muito se pode refletir sobre as lembranccedilas
da proacutepria narradora-personagem e de sua famiacutelia ou sobre sua autonomia ao decidir pelo que
come Em Quarenta dias a protagonista recorre agrave memoacuteria de sabores e de vivecircncias ao
escrever em seu caderno a retrospectiva de suas andanccedilas aleacutem disso apesar de sua fome ser o
determinante na escolha do que comer Alice sente prazer com a refeiccedilatildeo quentinha e posta na
mesa com esmero no restaurante da rodoviaacuteria ou com o lanche servido na padaria Em O arroz
de Palma os atributos tambeacutem estatildeo entremeados mesmo com o predomiacutenio da memoacuteria para o
estudo dessa obra haacute presenccedila do prazer e da autonomia ao longo das lembranccedilas de Antonio
Um ponto de semelhanccedila entre as trecircs obras eacute o fato de apresentarem todas um narrador-
personagem que protagoniza as vivecircncias A cozinha eacute portanto contada em primeira pessoa
espaccedilo vivencial do narrador A opccedilatildeo por um eu ficcional para narrar as histoacuterias natildeo eacute ao acaso
sendo a cozinha um espaccedilo de tamanha relevacircncia para nossa vida de tanto apelo ao imaginaacuterio e
agraves lembranccedilas nos campos individual e coletivo eacute bem apropriado que quem conte seja a
personagem que a vivenciou atraveacutes das proacuteprias experiecircncias ou da memoacuteria familiar A tal
propoacutesito outro elemento que aproxima as trecircs obras eacute a presenccedila da famiacutelia das personagens
que ocupa posiccedilatildeo relevante na relaccedilatildeo que os protagonistas assumem com a cozinha
Nas trecircs narrativas o narrador-personagem fala de suas emoccedilotildees e vivecircncias e por vezes
fala da famiacutelia e das histoacuterias e lembranccedilas que representam a raiz de muitas experiecircncias com a
cozinha e com o comer A famiacutelia nesse contexto representa o coletivo que eacute apresentado junto
ao individual o sentir e pensar do proacuteprio narrador No livro Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e
Doccediluras essa coexistecircncia entre o singular e o plural eacute um dos elementos abordados em relaccedilatildeo
ao papel da cozinha conforme expresso no trecho abaixo
O ato culinaacuterio eacute ao mesmo tempo uma experiecircncia individual e coletiva uma
oportunidade de autoconhecimento de entrega a mim mesma e simultaneamente de
partilha de doaccedilatildeo de expressatildeo de afetos positivos [hellip] Sobretudo o ato culinaacuterio
representa uma das circunstacircncias mais propiacutecias para experimentar singular e plural
para nos aproximar de noacutes mesmos e daqueles a quem admiramos amamos e que satildeo
parte da nossa histoacuteria (CARDOSO 2012 p13)
139
O termo lsquoato culinaacuteriorsquo refere-se natildeo apenas ao cozinhar mas a toda gama de
comportamentos ligados agrave cozinha como dividir uma refeiccedilatildeo receber doces ou oferecer uma
comida aos demais colocar a mesa e tantas outras possibilidades
A diferenccedila entre as trecircs obras eacute o espaccedilo que a cozinha representa em cada uma Em O
arroz de Palma Antonio faz a narrativa a partir de sua cozinha enquanto prepara o almoccedilo de
celebraccedilatildeo dos cem anos de casamento de seus pais e do saco de estopa com o arroz como
presente aos noivos A cozinha nesse caso eacute apresentada atraveacutes do espaccedilo fiacutesico mas tambeacutem
do ingrediente-protagonista o arroz por outros elementos materiais como os guardanapos da
matildee de Isabel e o caderno de receitas de Antonio e por aqueles imateriais a exemplo da memoacuteria
associada ao cozinhar e das comparaccedilotildees dos pratos culinaacuterios com os estilos de famiacutelias Em
Por que sou gorda mamatildee a cozinha aparece ora como ingredientes ora como espaccedilo fiacutesico
ora como comidas ora como emoccedilotildees revelando histoacuterias da protagonista e de seus antepassados
de origem judaica Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como espaccedilo fiacutesico no novo
apartamento e na vida da protagonista em Joatildeo Pessoa antes da mudanccedila e passa a ser expressa
ao longo da obra pelos bares estabelecimentos e lsquocarrinhosrsquo pelos quais ela passa tambeacutem
representativos do espaccedilo fiacutesico Aleacutem disso a cozinha aparece como espaccedilo simboacutelico de
sobrevivecircncia nessa narrativa essa representaccedilatildeo eacute feita atraveacutes das comidas que Alice escolhe
enquanto anda pelas ruas Deste modo as trecircs obras contemplam ambos os espaccedilos referidos no
propoacutesito desse trabalho
Nas obras a cozinha eacute descrita como espaccedilo fiacutesico - tanto como peccedila da casa quanto
atraveacutes dos eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios ou seja em sua existecircncia material- e como
espaccedilo simboacutelico traduzindo lembranccedilas emoccedilotildees e comportamentos representando o ritual
implicado no cozinhar e comunicando os integrantes de uma famiacutelia
Em relaccedilatildeo ao elemento material da cozinha destaco em O arroz de Palma a cozinha de
onde Antonio narra suas lembranccedilas a panela em que ele prepara o arroz a taacutebua na qual corta os
temperos seu caderno de receitas onde estaacute aquela escrita por Palma os guardanapos da matildee de
Isabel a lata de azeite de Oliva e o mais significativo de todos o proacuteprio arroz presenteado a
Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento A expressatildeo material estaacute presente sobretudo
no espaccedilo fiacutesico e nos elementos citados embora haja menccedilatildeo a comidas como o arroz de
bacalhau preparado para aproximar as famiacutelias a fim de comeccedilar o namoro com Isabel
140
Em Por que sou gorda mamatildee haacute referecircncias agraves comidas e doces judaicos como
aqueles na sacola de crocheacute da Voacute Magra Aleacutem disso em vaacuterias passagens se lecirc descriccedilotildees como
aquela em que os moradores do bairro preparam pratos a partir dos ingredientes nas cozinhas de
suas casas com detalhamento dos atos culinaacuterios e dos instrumentos utilizados Uma das cenas
mais consistentes em demonstrar a cozinha como espaccedilo fiacutesico eacute quando a Voacute Magra prepara os
bifes para a protagonista ali essa representaccedilatildeo natildeo apenas estaacute na cozinha mas tambeacutem nos
utensiacutelios e ingredientes como o oacuteleo que ela usa para o preparo da carne Nessa obra a
predominacircncia da perspectiva material estaacute principalmente nas comidas Outro exemplo eacute a cena
em que a matildee se deleita com os filhos na viagem ao Uruguai comendo doces e refrigerante ou
quando essa faz uma farta refeiccedilatildeo antes do cateterismo e outra depois de sair do hospital Esses
satildeo alguns exemplos da expressatildeo fiacutesica que a cozinha assume na obra de Cintia Moscovich
Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como peccedila da casa de Joatildeo Pessoa e de Porto
Alegre sendo essa uacuteltima expressa com detalhes quanto a eletrodomeacutesticos armaacuterios mesa e
utensiacutelios No periacuteodo em que Alice estaacute na rua o aspecto material da cozinha eacute manifestado
pelas carrocinhas de pipoca e cachorro quente pelos botecos e padarias e pelos alimentos Esses
predominam na narrativa como expressatildeo do espaccedilo fiacutesico ocupado pela cozinha
Quanto ao aspecto simboacutelico representado ressalta-se que ao cozinhar e ao comer
estamos praticando rituais Mircea Eliade na obra jaacute referida nessa dissertaccedilatildeo expotildee que ldquo[]
a principal funccedilatildeo do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a
educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 2011 p13)
A alimentaccedilatildeo como ritual estaacute presente nas trecircs obras de formas diversas Em O arroz de
Palma estaacute na colheita do arroz na pedra pela Tia Palma bem como na oferta desse aos noivos
como presente de casamento estaacute tambeacutem na canja que ela faz ao irmatildeo com esse mesmo
arroz para que os gratildeos o fertilizem e no almoccedilo em que ela e Maria Romana preparam o arroz
de bacalhau para a integraccedilatildeo das famiacutelias Estaacute tambeacutem em outros pontos da narrativa como no
ponto em que Antonio e Isabel recebem o arroz em seu casamento e quando levam um punhado
desse para sua comunhatildeo fiacutesica no lago
Nessa obra os trecircs exemplos que melhor ilustram a presenccedila do ritual satildeo o ato de
cozinhar que permeia toda a histoacuteria pois enquanto o protagonista prepara o arroz evoca
lembranccedilas e as mistura com imaginaccedilotildees e pensamentos a leitura da receita dedicada a ele em
141
seu caderno de receitas por Palma com recitaccedilotildees a serem praticadas durante o preparo da
comida Por fim a reuniatildeo da famiacutelia nas mesas para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo dos cem anos
do casamento dos pais e do presente do arroz em que haacute dois pontos que aludem ao ritual Tanto
a reuniatildeo da famiacutelia para comer eacute ritualiacutestica quanto tambeacutem o fato de se tratar de uma
comemoraccedilatildeo como foi visto na referecircncia que Ricoeur faz ao elemento mundanidade do par
reflexividademundanidade em sua fenomenologia da memoacuteria
Em Por que sou gorda mamatildee o componente do ritual estaacute principalmente associado ao
comer e ao partilhar o alimento e menos ao cozinhar A oferta de doces na sacola de crocheacute que
a Voacute Magra faz aos netos eacute um dos exemplos dessa partilha assim como a menccedilatildeo que a
protagonista faz agraves refeiccedilotildees agrave mesa em famiacutelia Haacute o aspecto ritual nos doces oferecidos pois
satildeo de origem judaica e ilustram sabores ancestrais dessa cultura
Em Quarenta dias o ritual estaacute presente tambeacutem no comer e em muitos casos nas ofertas
de alimento que Alice recebe em seu percurso pelas vilas Como jaacute mencionado a mesa posta no
restaurante da rodoviaacuteria eacute parte do ritual da alimentaccedilatildeo e a partilha dos lanches entre Alice e
Lola representa a integraccedilatildeo dos indiviacuteduos que compartilham as refeiccedilotildees
Em um periacuteodo da histoacuteria da humanidade em que estamos prestando mais atenccedilatildeo na
gastronomia como espetaacuteculo midiaacutetico essas trecircs narrativas apontam para um retorno da
cozinha como contexto de afeto de memoacuteria de tradiccedilatildeo de construccedilatildeo de significados Michael
Pollan em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo reitera
Estamos falando mais sobre culinaacuteria- e assistindo a programas de culinaacuteria lendo sobre
o assunto e indo a restaurantes onde podemos observar o preparo da comida em tempo
real Vivemos numa era em que cozinheiros profissionais se tornaram celebridades
alguns deles tatildeo famosos quanto atletas ou estrelas de cinema A mesma atividade que
muitas pessoas encaram como um trabalho enfadonho acabou sendo de alguma forma
elevada agrave categoria de esporte popular com puacuteblico proacuteprio [hellip] Por algum motivo
cozinhar eacute diferente O trabalho ou o processo carrega uma forccedila emocional ou
psicoloacutegica da qual natildeo podemos-ou natildeo queremos- nos livrar (POLLAN 2014 p11)
Nas trecircs narrativas lecirc-se o cozinhar cumprindo os propoacutesitos ancestrais que o homem
aprendeu com o domiacutenio do fogo nutrir e agregar No mundo real que Italo Calvino chamou de
lsquomundo natildeo escritorsquo a cozinha promove essas vivecircncias pela transformaccedilatildeo do alimento e pelo
viacutenculo com os outros indiviacuteduos atraveacutes da comida preparada Nas obras escolhidas para o
corpus os espaccedilos fiacutesico e simboacutelico da cozinha tornam-se parte do mundo escrito exprimindo-
se atraveacutes do ofiacutecio de seus autores Reafirma-se assim a perspectiva de Italo Calvino
142
REFEREcircNCIAS
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0
BETINA MARIANTE CARDOSO
Agrave MODA DA CASA
A COZINHA COMO ESPACcedilO FIacuteSICO E SIMBOacuteLICO EM O ARROZ DE PALMA POR QUE
SOU GORDA MAMAtildeE E QUARENTA DIAS
Dissertaccedilatildeo apresentada como preacute-requisito para
obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Teoria da
Literatura pela Faculdade de Letras da Pontifiacutecia
Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul
Orientadora Profa Dra Maria Eunice Moreira
Aprovada em 01 de dezembro de 2016
BANCA EXAMINADORA
Profa Dra Luciana Abreu Jardim
Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena
Profa Dra Maria Eunice Moreira
Porto Alegre
1o de dezembro de 2016
1
Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda pelos infinitos legados
que constituem meu gosto pela literatura pela cozinha e por sua interface
O som das teclas da maacutequina de escrever do Vocirc Heacutelio o perfume do panelatildeo de chimia de uva
Isabel da Voacute Leacuteia o brilho de sol nos vidros de ambrosia da Voacute Alda
ingredientes da minha escrita e do meu cozinhar
2
AGRADECIMENTOS
Agrave Profa Dra Maria Eunice Moreira pela proposta do tema que me encanta a interface
entre Literatura e Cozinha e seus diaacutelogos com outras aacutereas por todos os ensinamentos nas
disciplinas do Mestrado e na orientaccedilatildeo da escrita da Dissertaccedilatildeo pelo incentivo e pela confianccedila
durante toda a trajetoacuteria
Ao Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena pelo despertar da curiosidade e do gosto pela
literatura brasileira contemporacircnea pela confianccedila e entusiasmo e pela riqueza das sugestotildees
apontadas na Banca de Qualificaccedilatildeo de Mestrado
Agrave Profa Dra Luciana Abreu Jardim pelos ensinamentos transmitidos durante o mini-
curso que ministrou em Caxias do Sul em 2015 intitulado ldquoSobre o pensamento de Julia
Kristeva a experiecircncia-revolta atraveacutes dos cruzamentos de sentidosrdquo de grande relevacircncia para a
construccedilatildeo de minha bagagem adquirida durante o Mestrado
Agrave Profa Dra Leacutea Masina pelos meus dez anos de aprendizado nos seminaacuterios de escrita
literaacuteria por seu papel fundamental no amadurecimento do meu gosto por escrever e pelo carinho
com que conduz o processo de descobertas na literatura
Aos meus pais Ana Cristina e Apolinaacuterio e ao meu irmatildeo Diego pelo estiacutemulo aos meus
percursos e pelo incentivo para que eu sempre abrisse janelas aos horizontes possiacuteveis
Aos amigos de toda a vida Melissa Sharlene e Jaime pela amizade incondicional e pelo
apoio conversas e risadas durante o periacuteodo de escrita da Dissertaccedilatildeo
Ao Marcelo pela partilha dos prazeres da mesa com afeto muitos risos e boa prosa e
pelo estiacutemulo e sugestotildees nos desafios durante os momentos especiais do nosso conviacutevio
3
Aos autores das obras que compotildeem o corpus da Dissertaccedilatildeo Francisco Azevedo Ciacutentia
Moscovich e Maria Valeacuteria Rezende A partir de O arroz de Palma Por que sou gorda mamatildee
e Quarenta dias foi possiacutevel realizar o presente estudo
Agrave bibliotecaacuteria Clarissa Selbach pela disponibilidade e pela excelecircncia durante todo o
percurso da Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Aos meus sobrinhos Eacuterico e Lucas por me permitirem voltar a ser crianccedila em nossas
brincadeiras e por participarem do fazer culinaacuterio com alegria de festa
Agrave Tacircnia pelo afeto e pela celebraccedilatildeo de sempre
Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda a quem dedico essa
Dissertaccedilatildeo
4
ldquoFamiacutelia eacute afinidade eacute lsquoagrave moda da casarsquo
E cada casa gosta de preparar a famiacutelia a seu jeitordquo
(AZEVEDO 2008)
5
RESUMO
A presente dissertaccedilatildeo de Mestrado visa analisar a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico no
contexto de trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco
Azevedo (2008) Por que sou gorda mamatildee de Cintia Moscovich (2006) e Quarenta dias de
Maria Valeria Rezende (2014) No estudo de cada obra eacute estabelecida a relaccedilatildeo entre a cozinha e
um dos trecircs seguintes paradigmas respectivamente memoacuteria prazer e autonomia Assim o
trabalho eacute composto por trecircs capiacutetulos intitulados ldquoCozinha e memoacuteriardquo ldquoCozinha e prazerrdquo
ldquoCozinha e autonomiardquo O propoacutesito eacute compreender de que forma a cozinha eacute apresentada nas
narrativas do corpus no contexto dos temas escolhidos Elementos da fenomenologia
psiquiaacutetrica da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo satildeo apresentados em diaacutelogo com a
literatura brasileira contemporacircnea
Palavras-chave Literatura brasileira contemporacircnea Cozinha Comida
6
ABSTRACT
This dissertation aims to analyze the kitchen as a physical and symbolic space within the context
of three works of contemporary Brazilian literature Francisco Azevedorsquos O arroz de Palma
(2008) Cintia Moscovichrsquos Por que sou gorda mamatildee (2006) and Maria Valeria Rezendersquos
Quarenta dias (2014) In each work kitchen is related to one of the following three paradigms
respectively memory pleasure and autonomy Thus this study consists of three chapters entitled
Kitchen and Memory Kitchen and Pleasure and Kitchen and Autonomy Our goal is to
understand how the kitchen is described in the narratives of the corpus in the context of the
selected topics Elements of psychiatric phenomenology sociology and food history are
presented in connection with contemporary Brazilian literature
Keywords Contemporary Brazilian literature Kitchen Food
7
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 10
1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA 15
11 O ARROZ DE PALMA 15
12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA 19
13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO 34
14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA 42
2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57
21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57
22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL 60
23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA 66
24 O PRAZER DA COMIDA 74
3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS 92
31 QUARENTA DIAS 92
32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS 97
33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA 105
34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI 111
CONCLUSAtildeO 132
REFEREcircNCIAS 142
10
INTRODUCcedilAtildeO
O ato de cozinhar eacute parte ancestral da nossa existecircncia como seres humanos Desde os
tempos primitivos o homem transforma o ingrediente cru em alimento cozido Comemos por
necessidade nutricional mas tambeacutem por outros motivos comemos para sentir prazer com um
bom prato para socializarmos partilhando esse prazer com outras pessoas para evocarmos
lembranccedilas de famiacutelia e as nossas proacuteprias com sabores que fazem parte de nossa bagagem
emotiva Escolhemos o que comer aprendemos a gostar mais desse ou daquele doce somos
conhecidos pelo quitute que preparamos para os amigos Adoramos canela mas detestamos
alecrim A cozinha faz parte da construccedilatildeo de nossa identidade e da memoacuteria que vamos
formando a partir das experiecircncias vivenciadas sozinhos ou em grupo
Um ponto de extrema relevacircncia eacute o fato de que a comida supre as demandas orgacircnicas
manteacutem-nos com energia para enfrentar a rotina e sustenta a sauacutede razotildees pelas quais eacute parte de
nossa autonomia Recebemos o leite materno quando somos ainda dependentes do peito da matildee
a seguir os pais nos alimentam com novos sabores ateacute que passamos a aprender a gostar de
modo individual disso ou daquilo E aprendemos a natildeo gostar daquele guisado de aboacutebora do
almoccedilo ou da salada de cenoura beterraba alface e tomate - que devemos comer porque faz bem
e ponto As escolhas alimentares tornam-se parte de nossa capacidade de dirigirmos nosso Eu e
de compormos nossas preferecircncias Assim natildeo seria exagero referir que tais escolhas nos
identificam pois satildeo um pedaccedilo de quem nos tornamos como indiviacuteduos e como famiacutelia O
alimento torna-se uma fatia das histoacuterias que vivemos e das emoccedilotildees que sentimos
Haacute um aspecto a ser questionado a que nos referimos quando falamos em cozinha Ao
espaccedilo fiacutesico que essa ocupa na casa onde estatildeo o forno e o fogatildeo o refrigerador a pia Aos
utensiacutelios como talheres e pratos panelas eletrodomeacutesticos peneira travessas e assim por
diante Aos ingredientes em parte mantidos na despensa enquanto outros devem permanecer
refrigerados Agraves receitas de quitutes de doces de refeiccedilotildees escritas a matildeo em cadernos
familiares ou colhidas da Internet ou copiadas no programa televisivo de famosos chefs Agraves
recordaccedilotildees de vivecircncias passadas com as avoacutes que nos ensinavam o saber culinaacuterio pelo
claacutessico lsquobotar a matildeo na massarsquo Agrave cultura de um povo pelas comidas que prepara
A cozinha contempla todos esses elementos do simboacutelico ao concreto da antiguidade
mais remota aos tempos hipervelozes de hoje com diversas miacutedias dirigidas aos temas culinaacuterios
11
do conforto emocional que representava ao glamour que vem atingindo com o avanccedilo da
gastronomia como expressatildeo de status social e econocircmico no seacuteculo XXI
Memoacuteria prazer e autonomia lsquoingredientesrsquo relevantes na relaccedilatildeo do ser humano com o
alimento tanto na sua preparaccedilatildeo quanto no ato de comer propriamente dito
Pela importacircncia e significado da cozinha em todos os tempos e em todas as culturas a
presente dissertaccedilatildeo visa discutir seu papel nos acircmbitos fiacutesico e simboacutelico em trecircs obras da
literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco Azevedo (2008) Por que
sou gorda mamatildee de Ciacutentia Moscovich (2006) e Quarenta dias de Maria Valeacuteria Rezende
(2014)
A organizaccedilatildeo eacute composta por trecircs capiacutetulos que mantecircm a mesma estrutura na epiacutegrafe
um trecho emblemaacutetico da obra a ser explorada sob a perspectiva de um dos paradigmas
definidos como memoacuteria prazer e autonomia um fragmento introdutoacuterio para apresentaacute-lo em
sua relaccedilatildeo com a cozinha seguido de quatro subdivisotildees na primeira a apresentaccedilatildeo da obra do
corpus na segunda a fundamentaccedilatildeo teoacuterica do atributo escolhido para cada uma das narrativas
na terceira a reflexatildeo sobre este visto agrave luz de sua relaccedilatildeo com a cozinha na quarta a anaacutelise
das obras especiacuteficas utilizando-se trechos e analisando-os a partir das reflexotildees e estudos jaacute
expostos
O primeiro capiacutetulo intitulado ldquoCozinha e memoacuteria em O arroz de Palmardquo apresenta a
cozinha vinculada agraves histoacuterias familiar e pessoal das personagens o que permite relacionar esse
livro com a pesquisa sobre a memoacuteria tanto a individual como a coletiva O segundo capiacutetulo
intitulado ldquoCozinha e prazer em Por que sou gorda mamatildeerdquo traz a cozinha principalmente
manifesta pela vivecircncia do prazer da comida e suas consequecircncias para a protagonista como o
engorde motivo pelo qual incide sobre o prazer na relaccedilatildeo com a cozinha O terceiro capiacutetulo
intitulado ldquoCozinha e autonomia em Quarenta diasrdquo contempla o estudo dessa obra em que se
revela uma alimentaccedilatildeo vivenciada fora de casa atraveacutes da comida e dos lugares que a oferecem
Ao longo do percurso da personagem atraveacutes da retomada de sua independecircncia o comer eacute uma
das principais representaccedilotildees de sua autonomia nessa narrativa Assim o binocircmio estudado no
uacuteltimo capiacutetulo eacute cozinha e autonomia
O arroz de Palma trata da relevacircncia de um elemento o arroz na histoacuteria de vaacuterias
geraccedilotildees da famiacutelia do protagonista motivo pelo qual este capiacutetulo aborda a relaccedilatildeo entre cozinha
e memoacuteria Considerando-se a memoacuteria um tema estudado por diversos campos do
12
conhecimento a fundamentaccedilatildeo teoacuterica desse capiacutetulo eacute constituiacuteda pelos seguintes autores no
acircmbito filosoacutefico Paul Ricoeur e Gaston Bachelard cultural Aleida Assmann psicopatoloacutegico
Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio Bulbena e Sandro Domenichetti neurocientiacutefico Ivan
Izquierdo e Gordon Shepherd Satildeo tambeacutem referidas reflexotildees de Mircea Eliade na compreensatildeo
do mito As perspectivas do socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan satildeo
apresentadas junto aos autores jaacute referidos na subdivisatildeo que aborda a memoacuteria no contexto da
cozinha
Por que sou gorda mamatildee traz a cozinha ligada ao prazer pelo fato de a narrativa
abordar as sensaccedilotildees prazerosas ligadas agrave comida A fundamentaccedilatildeo teoacuterica abrange as facetas
bioloacutegica e cultural do prazer Na esfera bioloacutegica a reflexatildeo inclui aspectos saudaacuteveis e
psicopatoloacutegicos contendo ideias do psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers e dos psiquiatras
Lorenzo Pelizza e Franco Benazzi na esfera socioloacutegica a reflexatildeo parte da leitura do socioacutelogo
Carlos Alberto Doacuteria em seus livros A subdivisatildeo que apresenta o prazer ligado agrave cozinha eacute
constituiacuteda principalmente por Jean Louis Flandrin Maacutessimo Montanari e Jean-Anthelme Brillat-
Savarin
Quarenta dias expressa a relaccedilatildeo entre cozinha e autonomia pois o comer representa
para a personagem sua decisatildeo de sobrevivecircncia real Ela come porque tem fome necessidade
fisioloacutegica propriamente dita sendo o comer vinculado agraves decisotildees e agrave autonomia para tomaacute-las
elemento-chave na construccedilatildeo de seu percurso Nesse capiacutetulo a cozinha eacute principalmente
expressa pela comida motivo pelo qual este eacute o termo empregado na terceira e quarta
subdivisotildees A fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute composta por contribuiccedilotildees de Karl Jaspers tambeacutem
explorado nos capiacutetulos anteriores por aquelas do neurocientista Antonio Damaacutesio e do
psiquiatra Massimo Biondi Na subdivisatildeo que estabelece viacutenculo entre a comida e a autonomia
expressa como consciecircncia de si apoiamos a anaacutelise no pensamento do socioacutelogo Carlos Alberto
Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan tambeacutem presentes nos capiacutetulos anteriores
A decisatildeo por pesquisar na literatura a expressatildeo da cozinha deve-se ao nosso
questionamento sobre o modo como essa aparece atraveacutes da escrita literaacuteria Que contextos e que
termos satildeo escolhidos pelos escritores para retratar a cozinha como espaccedilos fiacutesico e simboacutelico
em suas obras A escolha recai sobre a literatura brasileira contemporacircnea definindo para o
corpus livros escritos por autores brasileiros em 2006 2008 e 2014 Trecircs livros publicados nas
duas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXI periacuteodo que coincide com a explosatildeo do papel da cozinha
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em acircmbitos mundial e sem duacutevidas nacional Conforme refere Maria Eunice Moreira no ensaio
ldquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmardquo
Espaccedilo alquiacutemico por sua natureza lugar de transformaccedilatildeo e de transmutaccedilatildeo a cozinha
eacute um dos espaccedilos mais tematizados na atualidade Isso pode ser comprovado pelo
nuacutemero de perioacutedicos especializados em gastronomia variedades de programas de TV e
destaque concedido a chefes e gourmets que se tornaram personagens midiaacuteticos
Diferentes miacutedias hoje divulgam as proezas de cozinheiros especializados que divulgam
suas descobertas culinaacuterias com ingredientes exoacuteticos confeccionando pratos originais
(MOREIRA 2014 p167)
Com a magnitude das expressotildees gastronocircmicas contemporacircneas no mundo e no Brasil eacute
plausiacutevel encontrar na literatura de nosso tempo obras que tragam a cozinha nos seus diversos
domiacutenios ao papel de protagonista A escolha especiacutefica pela literatura brasileira contemporacircnea
resulta de nosso interesse por compreender com que linguagem ela eacute expressa em nosso paiacutes em
nossa literatura em nossa contemporaneidade Ainda de acordo com o ensaio acima referido
sobre O arroz de Palma vale ressaltar
Mas certamente os leitores concordam que no fundo dos bauacutes que cruzaram os mares
entre enxadas e sementes vieram junto bens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre
o antigo e o novo espaccedilo a ser habitado Satildeo esses bens porque falam a linguagem do
mito os mais duradouros e perenes e satildeo eles tambeacutem capazes de inspirar a escrita da
literatura brasileira em tempos de globalizaccedilatildeo (MOREIRA 2014 p174)
Os lsquobens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre o antigo e o novo espaccedilo a ser
habitadorsquo estatildeo presentes em O arroz de Palma e tambeacutem no livro Por que sou gorda mamatildee
Nesse uacuteltimo atraveacutes da representaccedilatildeo de uma famiacutelia de imigrantes judeus e de sua relaccedilatildeo com
a comida e com o prazer de comer Em Quarenta dias a protagonista eacute tambeacutem uma imigrante
mas vinda de outro Estado e de outra cultura no mesmo Paiacutes Assim tambeacutem nessa narrativa haacute
um contraste entre o espaccedilo antigo e o novo a ser habitado a cidade de Porto Alegre eacute o territoacuterio
desconhecido ao qual a narradora personagem deveraacute se adaptar Da mesma forma como
transfere sua moradia para as ruas da cidade enquanto reluta em apropriar-se de sua lsquonova vidarsquo
tambeacutem transfere sua alimentaccedilatildeo para as padarias botecos carrinhos de pipoca e de cachorro
quente pela rua restaurantes e bares de rodoviaacuteria Para ela a decisatildeo de comer eacute resultado da
fome do mero existir como o sono e o banho A cozinha bem como sua vida estatildeo
lsquotransplantadasrsquo para as ruas da cidade
Nas trecircs obras selecionadas para este estudo haacute um papel central desempenhado pela
cozinha a representaccedilatildeo de aspectos da natureza humana como a ligaccedilatildeo com o prazer a
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memoacuteria e a autonomia como jaacute foi referido Nas narrativas a cozinha o cozinhar e o comer
existem atraveacutes das comidas dos ingredientes de instrumentos e do espaccedilo fiacutesico em si mas satildeo
expressos sobretudo como emoccedilotildees e vivecircncias recuperaccedilatildeo de tradiccedilotildees e expressatildeo de
sentimentos e de memoacuterias Ao escolher o termo lsquocozinharsquo para a representaccedilatildeo global estamos
incluindo o campo de ideias que esse envolve ou seja todo o espaccedilo fiacutesico e os elementos
materiais como eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios as comidas desde o ingredientes e
receitas ateacute os pratos propriamente ditos por fim os elementos simboacutelicos portanto imateriais
como as representaccedilotildees de ritualidade e os elementos psiacutequicos e culturais que envolvem o
cozinhar e o comer
O tiacutetulo ldquoAgrave moda da casardquo remete agraves receitas de um periacuteodo da culinaacuteria em que a
cozinha caseira ocupava papel central na alimentaccedilatildeo familiar Essa envolvia as concepccedilotildees de
lar de famiacutelia de memoacuteria dos pratos que eram partilhados na mesa nas refeiccedilotildees Uma carne de
panela agrave moda da casa eacute aquela feita seguindo o lsquocomo-se-fazrsquo na histoacuteria da famiacutelia A expressatildeo
lembra os cadernos de receitas as cozinhas das avoacutes matildees e tias a memoacuteria e os sabores da
tradiccedilatildeo as noccedilotildees de identidade e de consciecircncia de si como indiviacuteduo singular que eacute parte de
um plural a famiacutelia Todos esses aspectos satildeo presentes nas obras do corpus e portanto estatildeo
incluiacutedos na reflexatildeo sobre o tiacutetulo escolhido
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1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA
- Como eacute que simples guardanapos satildeo capazes de trazer tanta recordaccedilatildeo
- Porque fizeram histoacuteria satildeo a prova real e dos nove que um grupo de pessoas se reunia
regularmente para celebrar - natildeo importa o quecirc Festejavam a vida e pronto A data
religiosa ou pagatilde era pretexto Podia ser Paacutescoa ou Carnaval Esses guardanapos tecircm
alma Aliaacutes todo ser inanimado passa a ter alma no momento em que se lhe imprime
afeto As coisas tambeacutem aspiram a uma existecircncia sensiacutevel
Francisco Azevedo
A cozinha eacute o espaccedilo onde habitam forno fogatildeo geladeira pia pratos talheres
guardanapos panelas travessas caderno de receitas ingredientes chimia de uva pudim doce de
leite e ambrosia E lembranccedilas Muitos de nossos registros tecircm sabores proacuteprios Recordamos
essa ou aquela vivecircncia porque sua representaccedilatildeo eacute ligada a um gosto a uma textura a um
aroma Houve aquele doce de ovos que experimentamos em uma uacutenica e inesqueciacutevel ocasiatildeo
Vale evocar tambeacutem o faqueiro de uma avoacute presente de casamento ou a panela de fondue
comprada com orgulho fruto do primeiro salaacuterio da monitoria na faculdade No territoacuterio fiacutesico
da cozinha a memoacuteria tem corpo tem existecircncia material atraveacutes dos ingredientes dos
instrumentos dos eletrodomeacutesticos da receita de famiacutelia preparada para o almoccedilo Acima de
tudo a memoacuteria tem respiraccedilatildeo
11 O ARROZ DE PALMA
A escolha do tema cozinha e memoacuteria nasce atraveacutes da leitura da primeira obra definida
para o presente corpus O arroz de Palma de Francisco Azevedo publicada pela Editora Record
em 2008 O significado da cozinha para a nossa experiecircncia subjetiva tem fortes raiacutezes nas
histoacuterias guardadas atraveacutes das lembranccedilas e transmitidas entre as geraccedilotildees Essa obra da
literatura brasileira contemporacircnea propotildee tal resgate com relevante aprofundamento
A narrativa comeccedila pela voz do protagonista Antocircnio narrador personagem que traz ao
leitor em primeira pessoa a histoacuteria de sua famiacutelia os pais receacutem-casados e Palma sua tia
paterna Os trecircs vieram de Viana do Castelo em Portugal para o Brasil no comeccedilo do seacuteculo XX
Entretanto o que Antocircnio vem contar antecede a imigraccedilatildeo o ponto que daacute origem agrave histoacuteria da
obra eacute o casamento dos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana Depois da cerimocircnia Palma
decide juntar todos os gratildeos de arroz atirados aos noivos na lsquoabenccediloada chuva de arrozrsquo
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torrencial feita de lsquopunhados e mais punhadosrsquo Fez-se lsquochuva branca que natildeo paravarsquo Como se
fosse colheita ela junta gratildeo por gratildeo e coloca todos em um saco de estopa que leva aos receacutem-
casados como seu presente pelo matrimocircnio Surpreendente eacute a reaccedilatildeo de Joseacute Custoacutedio ao
receber a ideia de Palma raivoso desdenha do arroz ofertado pela irmatilde como se fosse presente
de menor valor A esposa Maria Romana contemporiza a situaccedilatildeo mas manteacutem a posiccedilatildeo firme
de que aceitaratildeo o presente E o arroz torna-se a alma dessa famiacutelia Melhor dizendo Palma
torna-se a alma da famiacutelia
A obra eacute composta por cinquenta e nove capiacutetulos curtos trezentas e sessenta e uma
paacuteginas e um calendaacuterio ao final com datas relevantes para a compreensatildeo da passagem do
tempo perspectiva essencial em O arroz de Palma Antocircnio eacute o narrador personagem muito do
que conta sobre a histoacuteria familiar ouviu de sua tia Palma figura de grande importacircncia na
formaccedilatildeo de sua personalidade Ela testemunhou boa parte das vivecircncias em Portugal e na
chegada ao Brasil protagonizou a maioria das cenas que se tornaram lembranccedilas Essas
transformaram-se depois em histoacuterias contadas por Palma e escutadas por Antocircnio
Fazendo zigue-zagues nas geraccedilotildees Antocircnio relembra pontos que conhece de viver e
pontos que sabe por escutar Em momentos da leitura parece estar contando a trama ao leitor
noutros tem-se a sensaccedilatildeo de que as conversas satildeo consigo mesmo a fim de percorrer uma linha
de tempo que faccedila sentido Ele narra de sua cozinha no presente do indicativo enquanto a
memoacuteria percorre outros tempos verbais mas a idade jaacute deixa lacunas Quando faltam
ingredientes na despensa da memoacuteria resta a tentativa de montar histoacuterias possiacuteveis ele compotildee
em um conjunto o que foi vivido e imaginado junto agraves suas reflexotildees atuais agrave beira do fogatildeo
Estaacute preparando a receita tiacutepica de arroz com significado em sua histoacuteria pessoal para a
comemoraccedilatildeo do centenaacuterio do matrimocircnio dos seus pais e do arroz colhido por Palma e
presenteado ao casal
Nas idas e vindas aparece de iniacutecio a fuacuteria de Joseacute Custoacutedio ao ganhar o saco de gratildeos de
arroz dirigida agrave irmatilde Palma Os trecircs vecircm para o Brasil onde ele consegue trabalho em uma
fazenda Mais tarde jaacute com a vida organizada quando o casal tem dificuldades em ter filhos
surge nova fuacuteria quando Palma sugere oferecer-lhe o arroz como forma de ajudar na fecundaccedilatildeo
pelos poderes atribuiacutedos ao ingrediente Ele recusa enraivecido mas Palma e Maria Romana
fazem com que coma o arroz mesmo assim No momento da raiva quebra a lsquoquarta cadeirarsquo que
iraacute reformar para sua irmatilde passada a coacutelera Essa seraacute a cadeira de onde ela contaraacute a Antocircnio as
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memoacuterias de famiacutelia os remendos de histoacuteria as fantasias e imaginaccedilotildees as dores e intimidades
de sua juventude
A quarta cadeira seraacute seu palco Antocircnio eacute o expectador Cria-se um forte laccedilo entre ele e
a tia pois se torna desde cedo o herdeiro das recordaccedilotildees familiares Essa aproximaccedilatildeo acaba
por distanciaacute-lo dos trecircs irmatildeos Leonor Nicolau e Joaquim enquanto ele eacute mais lsquocaseirorsquo gosta
de ficar ouvindo as histoacuterias da Tia Palma os trecircs satildeo mais agitados apreciam os passeios e as
brincadeiras pelo campo A distacircncia entre ele e os trecircs faz com que a tia o chame de lsquoAntocircnimorsquo
opondo suas caracteriacutesticas agraves dos irmatildeos As diferenccedilas seguiratildeo vida afora o que o protagonista
vai contando em seus percursos
Surge entatildeo seu romance com Isabel filha do patratildeo de seu pai sua ida para o Rio de
Janeiro o noivado com a moccedila e o arroz de bacalhau para celebrar a ocasiatildeo em famiacutelia A
receita foi preparada com o mesmo arroz que serviu para a fertilidade dos pais o mesmo arroz
presenteado por Palma para o casamento deles o mesmo arroz da chuva abenccediloada da cerimocircnia
O arroz testemunha a vida da famiacutelia alinha suas histoacuterias nessa narrativa parece ser a
representaccedilatildeo da memoacuteria familiar Lembranccedila a lembranccedila gratildeo a gratildeo As narrativas vatildeo sendo
transmitidas escutadas digeridas Antes do casamento Antocircnio e Isabel lsquoroubamrsquo um punhado e
levam consigo ao lago abenccediloando o primeiro momento de uniatildeo fiacutesica que partilham Mais uma
vez o arroz participa da ocasiatildeo formando registros de memoacuteria
Casam-se Nascem os filhos Nuno e Rosaacuterio Gecircmeos Seratildeo no entanto muito
diferentes entre si ela objetiva praacutetica ele sensiacutevel Entre casamentos e separaccedilotildees a narrativa
segue trilhada pela voz de Antocircnio em idas e vindas nas deacutecadas entre o casamento dos pais e
seu aniversaacuterio Sempre ao lado de Isabel nos trechos de vida sempre com dificuldades na
ligaccedilatildeo com os irmatildeos Entre o arroz presenteado por Palma no casamento de Joseacute Custoacutedio e
Maria Romana e a receita de arroz preparada por Antocircnio em sua cozinha esse conta os
nascimentos e as mortes relembra a perda de tia Palma recorda-se de vivecircncias dolorosas ao
longo do percurso de cada um e de todos O arroz eacute roubado da vitrine do restaurante de Antocircnio
e Isabel pelos filhos outra porccedilatildeo parece ter sido roubada pela esposa de um dos irmatildeos por
ciuacuteme de seu casamento Mais tarde surge a informaccedilatildeo de que Antocircnio e a cunhada tiveram
uma ligaccedilatildeo afetiva antes de ambos unirem-se a seus pares Voltam a encontrar-se em um ponto
da histoacuteria em uma tarde de braccedilos dados desejos satisfeitos e despedida cordial
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Muitas satildeo as tramas vividas e recordadas nessa narrativa Antocircnio eacute o narrador
personagem mas a leitura faz o leitor convencer-se o protagonista a bem da verdade eacute o arroz
A tia Palma tem papel decisivo na famiacutelia eacute ela quem daacute a direccedilatildeo em vaacuterios momentos da
histoacuteria nas vidas do irmatildeo Joseacute Custoacutedio da cunhada Maria Romana do sobrinho mais
proacuteximo Antocircnio e de seus irmatildeos Eacute ela quem daacute a direccedilatildeo aos gratildeos de arroz no percurso
desde o casamento em Portugal na Igreja ateacute sua morte contando sempre com a cumplicidade
da cunhada O protagonista segue conversando com a tia em pensamento perguntando suas
opiniotildees e conselhos
Palma transmite histoacuterias o arroz transmite histoacuterias Ao longo de toda a narrativa ambos
vatildeo deixando suas marcas na vida das personagens Em sua cozinha enquanto prepara o arroz
ele une os gratildeos pelo cozimento assim como une as recordaccedilotildees em uma soacute histoacuteria da famiacutelia
Se acaba por esquecer de algo lembra depois ou conta agrave sua moda Lembranccedilas agrave moda da casa
Toda a narrativa eacute tecida com uma linha que atravessa as vivecircncias a metaacutefora feita agraves
famiacutelias como se fossem pratos da culinaacuteria O narrador protagonista traz a imagem de vaacuterios
desses pratos e suas equivalecircncias nos grupos familiares enquanto se lembra dos trechos de vida
entremeados com emoccedilotildees e pensamentos Natildeo eacute possiacutevel alinhar as memoacuterias estatildeo espalhadas
Parte delas remontam etapas de vida outras lugares e pessoas Haacute registros que surgem de
experiecircncias vividas e daquelas que ele conhece apenas por ouvir- em geral de sua tia Palma
sentada na quarta cadeira
Podemos lembrar do que vivemos ou do que imaginamos em nossa maquinaria de
lembranccedilas memoacuteria e imaginaccedilatildeo fundem-se e o que vivenciamos por ouvir contar se torna
tambeacutem parte de nossos registros pessoais Eacute o que se passa com Antocircnio quando conta o que
ouviu de Palma com tal fidelidade que parece ele mesmo ter vivido Escutou imaginou e entatildeo
apropriou-se da histoacuteria com suas proacuteprias cores eacute dele agora a trama contada pela tia Algo
parecido eacute o processo de alquimia de uma receita de cozinha quando eacute transmitida de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo cada novo cozinheiro agrega seu modo de preparar a receita e ela vai assim sendo
transformada pelo tempo e pelas vozes que a leem agrave beira do fogatildeo
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12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA
O propoacutesito de estudar a memoacuteria neste capiacutetulo eacute o de apresentaacute-la como um processo
inerente agrave constituiccedilatildeo do ser humano Necessitamos deixar registros agraves geraccedilotildees seguintes assim
como seguir rastros dos antepassados Queremos pertencer a uma histoacuteria de famiacutelia e construir a
nossa para ser lembrada e seguida Acima de tudo a memoacuteria eacute parte da identidade
imprescindiacutevel na consciecircncia do indiviacuteduo sobre si mesmo
No campo de estudos da memoacuteria haacute os substratos neuroanatocircmico neurofisioloacutegico e
neuroquiacutemico que a compotildeem sob a perspectiva orgacircnica responsaacuteveis por seu funcionamento
adequado entretanto o foco predominante neste estudo consiste no entendimento da memoacuteria
como processo singular em termos psiacutequicos e plural em termos culturais Devido agraves muacuteltiplas
facetas do tema ampliamos a fundamentaccedilatildeo teoacuterica para os campos fenomenoloacutegico em que
apresentamos as ideias de Paul Ricoeur cultural a partir dos estudos de Aleida Assmann
psicopatoloacutegicas em que satildeo apontadas reflexotildees de Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio
Bulbena e Sandro Domenichetti e neurocientiacuteficas em que fazemos referecircncia aos
neurocientistas Ivan Izquierdo argentino e Gordon Shepherd americano
A cozinha situa-se nas esferas da memoacuteria individual e coletiva A relaccedilatildeo que se
estabelece entre o indiviacuteduo e os aromas que habitam sua memoacuteria como no caso das madeleines
recordadas por Proust a partir de um gatilho eacute de tamanha intimidade que se torna parte de sua
bagagem afetiva Da mesma forma o caderno de receitas de uma avoacute pode atravessar geraccedilotildees
pois os sabores ali registrados evocam lembranccedilas da histoacuteria familiar Ao serem reproduzidos
despertam na memoacuteria de um grupo natildeo apenas a receita original mas toda a constelaccedilatildeo de
emoccedilotildees que envolve essa lembranccedila como a cozinha em que era feita as panelas pratos e
talheres os almoccedilos dominicais na mesa da sala de jantar
As experiecircncias representam os ingredientes para a formaccedilatildeo da memoacuteria Muitas delas
nascem das histoacuterias vivenciadas na cozinha seja atraveacutes da percepccedilatildeo de um gosto do sentir de
uma emoccedilatildeo do ato de mexer um bolo ou de preparar um prato Todas satildeo carimbadas pela
interpretaccedilatildeo pelos sentimentos e pelo significado que cada circunstacircncia assume em nosso
percurso E esse carimbo vira lembranccedila armazenada na despensa da memoacuteria passiacutevel de
transformaccedilotildees ao longo do amadurecimento e das vicissitudes de cada fase de vida Afinal de
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contas a memoacuteria natildeo eacute um registro estaacutetico ela eacute isso sim um processo dinacircmico dependente
de nosso olhar e de nosso viver
Conforme o psicopatologista alematildeo Karl Jaspers a memoacuteria eacute um mecanismo que tem
relaccedilatildeo com o colorido afetivo com o significado das coisas Ele definiu a memoacuteria propriamente
dita como um reservatoacuterio em que novos materiais satildeo integrados pela fixaccedilatildeo e satildeo extraiacutedos agrave
consciecircncia atraveacutes da funccedilatildeo de evocaccedilatildeo para ele a chegada e a partida dos materiais seriam
devidas agraves respectivas funccedilotildees de fixaccedilatildeo e evocaccedilatildeo enquanto a memoacuteria representaria o
reservatoacuterio de disponibilidade permanente (JASPERS 2000 p188) Se pensarmos na cozinha
a memoacuteria seria a despensa onde satildeo postos novos ingredientes e de onde satildeo retirados aqueles
escolhidos para o uso Jaacute de acordo com Bulbena citando Serralonga ldquo[] em termos objetivos
eacute possiacutevel defini-la como a capacidade de adquirir de reter e de utilizar secundariamente uma
experiecircnciardquo (BULBENA 1998 p169)
Bulbena aponta quarto aspectos relevantes na compreensatildeo da memoacuteria como fenocircmeno
humano entre os quais distingue a entrada a manutenccedilatildeo e a saiacuteda das informaccedilotildees em
constante intercacircmbio entre organismo e ambiente o aspecto de transformaccedilatildeo dessas
informaccedilotildees modificando o conteuacutedo que entra no lsquoreservatoacuteriorsquo de Jaspers tanto para o
armazenamento quanto para a futura reproduccedilatildeo desse conteuacutedo o fato de a memoacuteria ser
produzida no contexto de estruturas nervosas que veiculam o processo apontando-se que as
alteraccedilotildees neste resultaratildeo em transtornos em seus mecanismos de fixaccedilatildeo armazenamento e
reproduccedilatildeo O quarto ponto definido pelo autor eacute de grande importacircncia para a finalidade do
presente capiacutetulo a memoacuteria forma parte do conjunto da vida psiacutequica sendo as emoccedilotildees
especialmente relevantes em sua composiccedilatildeo e forma parte tambeacutem da biografia do indiviacuteduo
em que teraacute influecircncia e da qual receberaacute influecircncia tambeacutem
Quando o autor se refere agrave biografia estaacute fazendo menccedilatildeo agraves experiecircncias de vida desse
indiviacuteduo e satildeo essas que muitas vezes ocorreram em sua relaccedilatildeo com o comer e com a cozinha
O dado de a memoacuteria fazer parte da vida psiacutequica eacute significativo sobretudo no que tange agrave
relaccedilatildeo com o campo emocional pois sempre que tais experiecircncias vinculadas ao universo
culinaacuterio ocorrerem haveraacute o processamento da resposta afetiva
A memoacuteria eacute essencialmente parte da vida psiacutequica do ser humano e resultado de
mecanismos cerebrais de controle Eacute considerada uma das funccedilotildees do estado mental dos
indiviacuteduos avaliada no exame psiquiaacutetrico dessas funccedilotildees Bulbena refere que
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etimologicamente a maioria dos autores situa sua origem no termo latino memoacuteria de
significado similar ao atual mas haacute quem atribua a origem agrave palavra gemynd de raiz
anglosaxocircnica que conforme refere significaria mente Assim eacute possiacutevel que a associaccedilatildeo entre
memoacuteria e vida psiacutequica seja representada na proacutepria origem da palavra
Mesmo que a finalidade do presente capiacutetulo seja apresentar a memoacuteria vinculada agraves
vivecircncias de cozinha cabe realizar a abordagem desse mecanismo como fenocircmeno Paul Ricoeur
apresenta a respeito da fenomenologia da memoacuteria seu viacutenculo com a imaginaccedilatildeo O autor
refere que podemos fazer referecircncia a um evento passado ou dizer que temos dele uma imagem
que pode ser quase visual ou auditiva E aponta que a memoacuteria opera em funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo
reforccedilando a perspectiva de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que expressa que ldquo[] a memoacuteria eacute
uma proviacutencia da imaginaccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p25)
Tal aspecto liga-se ao exposto pelo neurocientista Gordon Shepherd que em seu livro
sobre neurogastronomia expotildee ldquoPara muitas pessoas as partes mais importantes do olfato e do
sabor satildeo as memoacuterias que elas evocam e as emoccedilotildees associadas a essasrdquo (SHEPHERD 2012
p174) Olfato e sabor satildeo tambeacutem elementos que evocam imagens de situaccedilotildees vivenciadas mas
imagens construiacutedas pelas caracteriacutesticas psiacutequicas individuais assim pode-se dizer que evocam
a imaginaccedilatildeo
A lembranccedila de um acontecimento do preparo de uma comida ou da ocasiatildeo em que a
saboreamos ocorre atraveacutes da imagem que fazemos dessas circunstacircncias Lembramos com cor
com cheiros com gostos Lembramos imaginando e eacute isso que Paul Ricoeur traz como ponto de
partida Shepherd refere que nossos mecanismos cognitivos tecircm a qualidade de perceber e de
evocar as coisas como um todo integrado a partir de uma fraccedilatildeo (SHEPHERD 2012) o que se
assemelha ao que Ricoeur refere sobre a ligaccedilatildeo mencionada ldquoEacute sob o signo da associaccedilatildeo de
ideias que estaacute situada essa espeacutecie de curto-circuito entre memoacuteria e imaginaccedilatildeo se essas duas
afecccedilotildees estatildeo ligadas por contiguidade evocar uma - portanto imaginar - eacute evocar a outra-
portanto lembrar-se delardquo (RICOEUR 2014 p25) Essa ideia associa-se ao fato de que todos os
registros que os sentidos percebem oriundos do mundo externo ao corpo satildeo traduzidos em
percepccedilotildees e entatildeo em lembranccedilas a serem armazenadas A lembranccedila torna-se uma impressatildeo
da experiecircncia e natildeo seu registro idecircntico uma vez que pode ser compreendida como uma
reconstruccedilatildeo do passado a partir da perspectiva atual O que laacute fixamos natildeo eacute idecircntico ao que no
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presente podemos evocar pois outras vivecircncias se colocam no caminho nos transformam e
modificam nosso modo de recordar o que um dia haviacuteamos registrado
O inconsciente em todo o processo pode guardar a sete chaves algumas das informaccedilotildees
fixadas parte do que vivemos passaraacute a ser liberado ou escondido por sua tutela Lembramos de
algo pela imaginaccedilatildeo do que permaneceu desse algo em nosso mundo interno na compreensatildeo
neurocientiacutefica os registros captados pelos sentidos ficam armazenados em estruturas
especiacuteficas predominantemente no hemisfeacuterio direito quando as lembranccedilas estiverem
conectadas a emoccedilotildees Uma lsquopistarsquo que dermos agrave memoacuteria seja uma figura um som um gosto
um aroma ou uma textura ou uma emoccedilatildeo podem trazer de volta em viagem ultraveloz a cena
arquivada com todas as transformaccedilotildees que o tempo provoca em noacutes
Eacute possiacutevel compreender que a memoacuteria identifica o indiviacuteduo e sua bagagem de
vivecircncias pois soacute nos lembramos do que conhecemos ldquoReconhecer algueacutem significa saber jaacute tecirc-
lo visto antes assim como recordar-se de um acontecimento significa saber que este jaacute ocorreu no
passadordquo (MINKOWSKI 2004 p143) O entendimento sobre suas consideraccedilotildees eacute a de que
uma lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a tonalidade emotiva com que este foi
percebido ou seja a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos
recordaremos dela no futuro porque eacute assim que a conhecemos Sobre tal aspecto Ivan
Izquierdo neurocientista especializado neste campo refere
Podemos afirmar conforme Norberto Bobbio que somos aquilo que recordamos
literalmente Natildeo podemos fazer aquilo que natildeo sabemos nem comunicar nada que
desconheccedilamos isto eacute que natildeo esteja na nossa memoacuteria Tambeacutem natildeo estatildeo agrave nossa
disposiccedilatildeo os conhecimentos inacessiacuteveis nem formam parte de noacutes os episoacutedios dos
quais esquecemos ou os quais nunca atravessamos O acervo de nossas memoacuterias faz
com que cada um de noacutes seja o que eacute um indiviacuteduo um ser para o qual natildeo existe outro
idecircntico (IZQUIERDO 2011 p11 grifo do autor)
O psicopatologista Eugeacutene Minkowski aborda a memoacuteria no capiacutetulo intitulado lsquoO
passadorsquo em seu livro O tempo vivido Tal afirmaccedilatildeo expressa que ela eacute parte de nosso tempo
vivido e atraveacutes da reflexatildeo de Ivan Izquierdo pode-se compreender que ela eacute parte do nosso
tempo de conhecimento vivido A ideia de que a memoacuteria faz de noacutes ldquo[] um ser para o qual natildeo
existe outro idecircnticordquo (IZQUIERDO 2011 p12) reforccedila a noccedilatildeo de que esse fenocircmeno eacute um
elemento inerente a um sujeito uacutenico com suas experiecircncias percepccedilotildees e bagagens Ainda
conforme Ivan Izquierdo ldquo[] o conjunto das memoacuterias de cada um determina aquilo que se
denomina personalidade ou forma de serrdquo (IZQUIERDO 2011 p12) O neurocientista refere que
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as emoccedilotildees e os estados de acircnimo tecircm importante papel no processo da memoacuteria tanto em
termos de aquisiccedilatildeo quanto de formaccedilatildeo e finalmente de evocaccedilatildeo
Falar em emoccedilotildees ou estados de acircnimo remete agrave referecircncia de Minkowski sobre as
tonalidades afetivas O psicopatologista faz alusatildeo ao viacutenculo entre emoccedilotildees e memoacuteria
expressando o modo como o sentir influencia o lembrar Eacute possiacutevel comprender sua ideia da
seguinte forma colocamos a mirada sobre nosso mundo interior para focar em uma fraccedilatildeo do
passado que sentimos presente em noacutes Isso seria equivalente agrave evocaccedilatildeo de uma lembranccedila Ao
percebermos o sentimento ligado a esse tempo anterior essa lembranccedila amplia-se agrave medida que
a encontramos em nosso iacutentimo A conexatildeo emotiva torna a vivecircncia passada cada vez mais
visiacutevel e de contornos niacutetidos como um feixe de luz que ao aumentar expande a aacuterea de
claridade e mostra os detalhes de um terreno
Tal iluminaccedilatildeo reproduz vivecircncias remotas como se fossem situaccedilotildees que nos parecem
recentes pela forccedila emotiva ligada ao evento passado Entretanto nossa impressatildeo sobre tais
eventos pode ser transformada por aspectos psiacutequicos que ocorrem entre o tempo real e o
lembrado modificando a impressatildeo do fato em suas nuances Permanece a essecircncia prazerosa ou
penosa de um fato mas a evocaccedilatildeo da lembranccedila pode tornaacute-la um rosa suave ou um vermelho
vivo Para mudar seu tom contam tanto nosso estado de acircnimo ao vivermos algo quanto ao
lembrarmos esse algo Memoacuteria e emoccedilatildeo assim estatildeo intimamente ligadas entre si em especial
no que concerne agraves nossas experiecircncias de vida
O termo memoacuteria no singular remete-nos a dois eixos um primeiro mais evidente eacute o
tempo o segundo subterracircneo o espaccedilo Tal colocaccedilatildeo vem do fato de que a memoacuteria pode ser
percebida como um espaccedilo subjetivo em nossa vida psiacutequica motivo pelo qual tecemos a
analogia com a imagem da despensa de cozinha Esta eacute de fato um espaccedilo objetivo mas cuja
subjetividade aparece ao revelar muitos aspectos sobre o morador da casa Seria plausiacutevel referir
que a despensa identifica esse sujeito em suas preferecircncias alimentares em sua condiccedilatildeo
econocircmica em sua regularidade nas refeiccedilotildees feitas no lar aleacutem de demonstrar se vive sozinho
ou em famiacutelia se tem haacutebitos saudaacuteveis se manteacutem cuidados com a higiene com o meio-
ambiente com os prazos dos alimentos e por aiacute vai A despensa seria assim a memoacuteria da casa
um espaccedilo onde se colocam os ingredientes onde satildeo armazenados e de onde satildeo retirados para o
uso imediato Nessa analogia os ingredientes remetem-nos agrave imagem das lembranccedilas guardadas
na despensa
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A partir dessa reflexatildeo eacute importante pensar no par lembranccedilas e memoacuteria como uma
relaccedilatildeo entre plural e singular Podem-se estabelecer ainda outras relaccedilotildees como a ideia de que a
memoacuteria maior conteacutem as lembranccedilas menores e muacuteltiplas A primeira representa um amplo
espaccedilo subjetivo para o armazenamento das segundas Uma comparaccedilatildeo mais detalhada colocaria
alguns itens nas estantes mais altas da despensa onde o acesso eacute difiacutecil ou mais ao fundo atraacutes
de elementos que satildeo usados com regularidade Natildeo eacute raro que esses ingredientes em partes
menos visualizadas sejam menos usados enquanto aqueles mais visiacuteveis sejam retirados dali e
consumidos com maior frequecircncia Tanto a regularidade do uso quanto os gostos alimentares
definem os produtos que ficam disponiacuteveis em estantes de mais faacutecil acesso em contraponto os
menos usados entram na categoria dos menos vistos
Aspectos que raramente enxergamos ficam esquecidos na despensa em lugares difiacuteceis e
ateacute passam da validade se natildeo tomamos conhecimento de que estatildeo laacute natildeo iremos evocaacute-los e
acabam por permanecer por um longo periacuteodo no canto mais longiacutenquo daquele espaccedilo Inuacutemeras
vezes esquecemos de usar produtos que guardamos haacute mais tempo e lembramos de acessar os
mais presentes em nossa rotina Aleacutem disso cabe lembrar que haacute estantes ou compartimentos em
uma despensa que servem justamente ao propoacutesito de definiccedilatildeo de categorias as mais
importantes alcanccedilamos estendendo o braccedilo enquanto as de menor relevacircncia recebem acesso
pelo uso da escada domeacutestica da lanterna para a procura ou no caso de estarem nas prateleiras
inferiores de posiccedilotildees fiacutesicas para encontrar o elemento procurado
Ao guardarmos algo que pouco usamos criamos espaccedilos de esquecimento dentro da
memoacuteria Para que resgatemos esses ingredientes haacute elementos como a imagem que nos
despertam para a recordaccedilatildeo de que um dia tomamos contato com ele Mais uma vez surge a
figura do conhecimento preacutevio entatildeo do passado como criteacuterio para o reconhecimento
Reconhecer eacute conhecer novamente voltar a tomar contato
Considerando a partir da analogia estabelecida as lembranccedilas como elemento plural
presente na memoacuteria de caraacuteter singular torna-se necessaacuterio compreender o fenocircmeno da
memoacuteria sob vaacuterias perspectivas Haacute diversos fatores envolvidos no modo como nos lembramos
de algo no porquecirc dessas lembranccedilas tornarem-se de mais faacutecil ou de mais difiacutecil acesso para
quais registros damos mais relevacircncia ao lsquoguardar na despensarsquo e outras variaacuteveis ligadas ao
lembrar e ao esquecer Tais perspectivas natildeo estatildeo divididas mas sim ligadas no texto uma vez
que ao contraacuterio das prateleiras da despensa a memoacuteria eacute um espaccedilo sem divisotildees estabelecidas
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na experiecircncia humana Mesmo do ponto de vista cerebral ela ocupa diversas aacutereas e muacuteltiplos
sistemas sendo resultado de um processo de integraccedilatildeo de estruturas e de funccedilotildees cerebrais
Um aspecto relevante sobre o uso da palavra memoacuteria quando usado no plural estaacute na
literatura Ler as memoacuterias de um autor remete agrave ideia de uma narrativa autobiograacutefica ou
biograacutefica novamente ligando a ideia de memoacuteria ao campo da definiccedilatildeo de identidade
Considero que esse termo seja o de maior importacircncia no conjunto do fenocircmeno pois mesmo que
se trate da memoacuteria de um grupo essa revela seu caraacuteter identitaacuterio
Identidade eacute palavra-chave no campo da memoacuteria O psiquiatra italiano Sandro
Domenichetti apresenta a lembranccedila como ldquo[] experiecircncia que constroacutei a consciecircncia de si e
que define a relaccedilatildeo entre o mundo afetivo e aquele cognitivordquo (DOMENICHETTI 2003 p1)
de acordo com ele entre as funccedilotildees da consciecircncia estaacute a diacrocircnica ou seja a de percepccedilatildeo da
identidade estaacutevel atraveacutes do tempo A consciecircncia entatildeo eacute um elemento central neste campo
Domenichetti refere que esta ldquo[] parece entatildeo configurar-se como um tipo de memoacuteria de si no
tempordquo (DOMENICHETTI 2003 p1) enfatizando a perspectiva de que ldquo[] um senso de si eacute
essencial para que todas as minhas lembranccedilas sejam exatamente as minhas lembranccedilasrdquo
(DOMENICHETTI 2003 p1 grifo do autor)
Outro elemento apontado por este autor tem como base a explanaccedilatildeo de Israel Rosenfeld
meacutedico e pesquisador com atuaccedilatildeo relevante no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti
Roselfield expotildee a continuidade da consciecircncia como derivada da correspondecircncia que o ceacuterebro
estabelece em momentos sucessivos com eventos no espaccedilo e no tempo sendo seu elemento vital
a autoconsciecircncia Para Roselfield
As minhas lembranccedilas emergem da relaccedilatildeo entre meu corpo e a imagem que meu
ceacuterebro tem do meu corpo (uma atividade inconsciente na qual o ceacuterebro constroacutei para si
uma ideia generalizada do corpo ideia que se modifica continuamente) Eacute esta relaccedilatildeo
que cria o senso de lsquosirsquo (DOMENICHETTI 2003 p2)
A fim de corroborar a relaccedilatildeo entre corpo e ceacuterebro estabelecida por Rosenfield
Domenichetti refere-se a Henri Bergson (1859-1941) filoacutesofo e diplomata francecircs cuja obra
destacou-se pelas contribuiccedilotildees no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti
[] o nosso conhecimento da realidade eacute feito de percepccedilotildees impregnadas de
lembranccedilas A memoacuteria de Bergson funciona atraveacutes de operaccedilotildees de coleta de imagens
que progressivamente satildeo produzidas o corpo eacute uma dessas imagens a uacuteltima para ser
exato E se o corpo em geral eacute uma imagem eacute oacutebvio que o eacute tambeacutem o ceacuterebro Este
ligar a percepccedilatildeo a memoacuteria e o corpo com passagens de um a outro atraveacutes da
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dimensatildeo temporal define a construccedilatildeo da funccedilatildeo mental da qual a memoacuteria eacute atributo
fundador como organizaccedilatildeo autoreflexiva que pensa o corpo (DOMENICHETTI 2003
p1)
Pode-se compreender entatildeo corpo e ceacuterebro como palcos onde as imagens da memoacuteria
satildeo encenadas Tais imagens unem-se agraves percepccedilotildees atuais do indiviacuteduo compondo um conjunto
formado pelo antes e o agora ndash passado e presente ndash intrincados Ainda referindo-se agraves
contribuiccedilotildees de Roselfield nesse campo Domenichetti acrescenta
Tambeacutem na visatildeo de Roselfield assim a memoacuteria natildeo pode ser considerada como um
manual de informaccedilotildees mas sobretudo como uma atividade contiacutenua do ceacuterebro Isso se
observa principalmente no caso das imagens Quando recordo a imagem de um evento
da minha infacircncia por exemplo natildeo a extraio de um hipoteacutetico arquivo de imagens
preexistentes devo formar conscientemente uma nova imagem (DOMENICHETTI
2003 p2)
Tais explanaccedilotildees sobre o papel da imagem para a recordaccedilatildeo coincidem com a
perspectiva de Paul Ricoeur em A lembranccedila e a imagem na primeira parte de sua obra jaacute
referida Ele questiona ldquoComo explicar que a lembranccedila retorne em forma de imagem e que a
imaginaccedilatildeo assim mobilizada chegue a revestir-se das formas que escapam agrave funccedilatildeo do irrealrdquo
(RICOEUR 2014 p66)
Para chegar a respostas possiacuteveis ele recorre a Bergson entre outros autores Deste
aponta que ldquoAdoto como hipoacutetese de trabalho a concepccedilatildeo bergsoniana da passagem da
lsquolembranccedila-purarsquo agrave lembranccedila-imagemrdquo (RICOEUR 2014 p67) De acordo com Ricoeur sobre
o trabalho de Bergson ldquoele traz de certo modo a lembranccedila para uma aacuterea de presenccedila
semelhante agrave da percepccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p68) ressaltando da imaginaccedilatildeo o que chama
de ldquofunccedilatildeo visualizanterdquo ou seja ldquosua maneira de dar a verrdquo (RICOEUR 2014 p68) Ricoeur
esclarece que
Eacute como se a forma que Bergson chama intermediaacuteria ou mista da lembranccedila isto eacute a
lembranccedila-imagem a meio-caminho entre lsquolembranccedila-purarsquo e a lembranccedila reinscrita na
percepccedilatildeo no estaacutegio em que o reconhecimento desabrocha no sentimento do deacutejagrave vu
correspondesse a uma forma intermediaacuteria da imaginaccedilatildeo a meio caminho entre a ficccedilatildeo
e a alucinaccedilatildeo a saber o componente imagem da lembranccedila-imagem Portanto eacute
tambeacutem como forma mista que eacute preciso falar da funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo que consiste em
lsquopocircr debaixo dos olhosrsquo funccedilatildeo que podemos chamar ostensiva trata-se de uma
imaginaccedilatildeo que mostra que expotildee que deixa ver (RICOEUR 2014 p70)
Assim o que se tem eacute uma zona de fronteiras pouco demarcadas entre a percepccedilatildeo a
lembranccedila e a imaginaccedilatildeo Ricoeur refere em relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas e diferenccedilas entre as duas
uacuteltimas ldquoCertamente dissemos e repetimos que a imaginaccedilatildeo e a memoacuteria tinham como traccedilo
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comum a presenccedila do ausente e como traccedilo diferencial de um lado a suspensatildeo de toda posiccedilatildeo
de realidade e a visatildeo de um irreal do outro a posiccedilatildeo de um real anteriorrdquo (RICOEUR 2014
p61)
Nesse sentido o papel da percepccedilatildeo eacute o de captar a realidade atraveacutes dos cinco sentidos
para entatildeo formar registros que no futuro seratildeo lembranccedilas As imagens que resgato satildeo
diferentes das que percebi no instante do acontecimento pois se misturam com outros
ingredientes como as emoccedilotildees por exemplo Ricoeur aponta ldquoTeriacuteamos assim a sequecircncia
percepccedilatildeo lembranccedila ficccedilatildeo Um limiar de inatualidade eacute transposto entre lembranccedila e ficccedilatildeordquo
(RICOEUR 2014 p65) Esse limiar de inatualidade expresso por ele como ldquotransposto entre
lembranccedila e ficccedilatildeordquo parece referir-se agrave passagem do tempo que torna as imagens de uma
vivecircncia cada vez mais proacuteximas da imaginaccedilatildeo quanto mais longiacutenquo for o passado
O filoacutesofo Gaston Bachelard em A poeacutetica do espaccedilo ao mencionar as lembranccedilas
associadas ao habitar de uma nova casa expressa o entrelaccedilamento entre a memoacuteria e a
imaginaccedilatildeo
E o devaneio se aprofunda de tal modo que para o sonhador do lar um acircmbito
imemorial se abre para aleacutem da mais antiga memoacuteria A casa como o fogo como a
aacutegua nos permitiraacute evocar na sequecircncia de nossa obra luzes fugidias de devaneio que
iluminam a siacutentese do imemorial com a lembranccedila Nessa regiatildeo longiacutenqua memoacuteria e
imaginaccedilatildeo natildeo se deixam dissociar Ambas trabalham para seu aprofundamento muacutetuo
Ambas constituem na ordem dos valores uma uniatildeo da lembranccedila com a imagem
(BACHELARD 2012 p25)
A relaccedilatildeo entre lembranccedila e imagem em Bachelard encontra-se bem representada atraveacutes
da ideia da casa e do habitar onde esses dois fenocircmenos se fundem Ele menciona a ideia de que
ldquo[] o calendaacuterio da nossa vida soacute pode ser estabelecido em seu processo produtor de imagensrdquo
(BACHELARD 2012 p28) Este calendaacuterio parece ser para o autor as lembranccedilas recordadas
por meio da imagem das cenas vividas e sentidas Bachelard refere que ldquo[] a imagem
estabelece-se numa cooperaccedilatildeo entre o real e o irreal pela participaccedilatildeo da funccedilatildeo do real e da
funccedilatildeo do irrealrdquo (BACHELARD 2012 p73) tecendo uma ligaccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo memoacuteria e
percepccedilatildeo Cabe ressaltar nesse ponto o aspecto de esta uacuteltima ocorrer atraveacutes dos cinco
sentidos veiacuteculo de traduccedilatildeo do mundo externo para o interno Retorna-se ao jaacute apresentado
sobre a relevacircncia do corpo para a memoacuteria Ricoeur menciona a esse respeito
Eacute o elo entre memoacuteria corporal e memoacuteria dos lugares que legitima a tiacutetulo primordial a
dessimplicaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo de sua forma objetivada O corpo constitui desse
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ponto de vista o lugar primordial o aqui em relaccedilatildeo ao qual todos os outros lugares satildeo
laacute (RICOEUR 2014 p59)
Compreender o papel da memoacuteria do corpo conduz agrave identificaccedilatildeo desta dentro da
consciecircncia de si pois diz respeito aos registros deixados pelas vivecircncias com potencial de
serem encenados novamente pelo indiviacuteduo O ato de cozinhar seria um exemplo de como a
memoacuteria corporal faz com que se pratique o ato culinaacuterio como um conhecimento do corpo
muitas vezes executado de forma habitual Ricoeur aponta que ldquo[] a memoacuteria corporal pode ser
lsquoagidarsquo como todas as outras modalidades de haacutebito como a de dirigir um carro que estaacute em meu
poder Ela varia segundo todas as variantes do sentimento de familiaridade ou de estranhezardquo
(RICOEUR 2014 p57) O autor acrescenta
Assim a memoacuteria corporal eacute povoada de lembranccedilas afetadas por diferentes graus de
distanciamento temporal a proacutepria extensatildeo do lapso de tempo decorrido pode ser
percebida sentida na forma de saudade nostalgia [] O momento da recordaccedilatildeo eacute
entatildeo o do reconhecimento (RICOEUR 2014 p57)
Partindo dessa compreensatildeo seria possiacutevel pensar em corpo casa e lugar como espaccedilos
onde a recordaccedilatildeo nasce do mais especiacutefico o corpo ao mais inespeciacutefico o lugar Em todos
esses espaccedilos haacute accedilotildees e vivecircncias que podem constituir lembranccedilas Conforme Ricoeur
A transiccedilatildeo da memoacuteria corporal para a memoacuteria dos lugares eacute assegurada por atos tatildeo
importantes como orientar-se deslocar-se e acima de tudo habitar Eacute na superfiacutecie
habitaacutevel da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado lugares memoraacuteveis
Assim as lsquocoisasrsquo lembradas satildeo intrinsecamente associadas a lugares E natildeo eacute por acaso
que dizemos sobre uma coisa que aconteceu que ela teve lugar Eacute de fato nesse niacutevel
primordial que se constitui o fenocircmeno dos lsquolugares de memoacuteriarsquo (RICOEUR 2014
p57-58)
Essa ideia pode ser corroborada com a perspectiva de Bachelard sobre o habitar
Eacute preciso dizer como habitamos o nosso espaccedilo vital de acordo com todas as dialeacuteticas
da vida como nos enraizamos dia a dia num lsquocanto do mundorsquo
Porque a casa eacute nosso canto do mundo Ela eacute como se diz amiuacutede o nosso primeiro
universo Eacute um verdadeiro cosmos (BACHELARD 2012 p24)
A respeito da relevacircncia da casa para a formaccedilatildeo e o armazenamento das lembranccedilas
Bachelard apresenta contribuiccedilotildees que reforccedilam a visatildeo de Ricoeur sobre o papel dos lugares
para a memoacuteria
Logicamente eacute graccedilas agrave casa que um grande nuacutemero de nossas lembranccedilas estatildeo
guardadas e quando a casa se complica um pouco quando tem um poratildeo e um soacutetatildeo
cantos e corredores nossas lembranccedilas tecircm refuacutegios cada vez mais bem caracterizados
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A eles regressamos durante toda a vida em nossos devaneios (BACHELARD 2012
p28)
A ideia da memoacuteria associada ao espaccedilo seja corpo casa ou lugar conduz agrave reflexatildeo de
que essa tem uma existecircncia subjetiva interna que eacute representada pelo aspecto objetivo material
externo isso se daacute atraveacutes de vivecircncias associadas sempre a um primeiro espaccedilo o corpoacutereo e a
um segundo mais amplo que eacute o lugar para onde a lembranccedila remete Mais uma vez as
lembranccedilas tecircm imagens de correspondecircncia eacute como se os lugares dessem carne e osso a elas
confirmam sua existecircncia em um tempo e em um espaccedilo que mesmo passado relaciona-se ao
mundo fiacutesico Quanto mais longiacutenquas no tempo mais proacuteximas se encontram da imaginaccedilatildeo
como jaacute visto entretanto ainda assim tecircm um cenaacuterio onde vivem
Examinada como fenocircmeno a memoacuteria tem propriedades que a identificam Ricoeur
estabeleceu trecircs pares de oposiccedilotildees para a compreensatildeo da fenomenologia da memoacuteria o
primeiro deles eacute a dupla haacutebitomemoacuteria sobre a qual refere
O que faz a unidade desse espectro eacute a comunidade da relaccedilatildeo com o tempo Nos dois
casos extremos pressupotildee-se uma experiecircncia anteriormente adquirida mas num caso o
do haacutebito essa aquisiccedilatildeo estaacute incorporada agrave vivecircncia presente natildeo marcada natildeo
declarada como passado no outro caso faz-se referecircncia agrave anterioridade como tal da
aquisiccedilatildeo antiga Nos dois casos por conseguinte continua sendo verdade que a
memoacuteria lsquoeacute do passadorsquo mas conforme dois modos um natildeo marcado outro sim da
referecircncia ao lugar no tempo da experiecircncia inicial
[] A operaccedilatildeo descritiva consiste entatildeo em classificar as experiecircncias relativas agrave
profundidade temporal desde aquelas em que de algum modo o passado adere ao
presente ateacute aquelas em que o passado eacute reconhecido em sua preteridade passada
(RICOEUR 2014 p43)
A segunda dupla de opostos estabelecida por Ricoeur eacute composta pelo par
evocaccedilatildeobusca representado pelos dois trechos abaixo No primeiro a reflexatildeo sobre evocaccedilatildeo
no segundo sobre a busca
1) Entendamos por evocaccedilatildeo o aparecimento atual de uma lembranccedila Eacute a esta que
Aristoacuteteles destinava o termo mneme designando por anamnesis o que chamaremos
mais adiante de busca ou recordaccedilatildeo Ele caracterizava a mneme como pathos como
afecccedilatildeo ocorre que nos lembramos disto ou daquilo nesta ou naquela ocasiatildeo entatildeo
temos uma lembranccedila Portanto eacute em oposiccedilatildeo agrave busca que a evocaccedilatildeo eacute uma
afecccedilatildeo Enquanto tal em outras palavras desconsiderando sua posiccedilatildeo polar a
evocaccedilatildeo traz a carga do enigma que movimentou as investigaccedilotildees de Platatildeo e de
Aristoacuteteles ou seja a presenccedila agora do ausente anteriormente percebido
experimentado aprendido (RICOEUR 2014 p45)
2) Voltemo-nos agora para o outro poacutelo do par evocaccedilatildeobusca Eacute ele que a
denominaccedilatildeo grega da anamnesis designava Platatildeo a mitificara ligando-a a um saber
preacute-natal do qual estariacuteamos afastados por um esquecimento ligado agrave inauguraccedilatildeo da
vida da alma num corpo esquecimento de certo modo natal que faria da busca um
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reaprender do esquecimento Aristoacuteteles [] naturalizou de certo modo a anamnesis
comparando-a agravequilo que na experiecircncia cotidiana chamamos de recordaccedilatildeo [] o
ana de anamnesis significa volta retomada recobramento do que anteriormente foi
visto experimentado ou aprendido portanto de alguma forma significa repeticcedilatildeo
Assim o esquecimento eacute designado obliquamente como aquilo contra o que eacute
dirigido o esforccedilo da recordaccedilatildeo (RICOEUR 2014 p46)
O que Ricoeur propotildee assim com o par evocaccedilatildeobusca eacute a diferenciaccedilatildeo entre a
lembranccedila e a recordaccedilatildeo sendo a primeira segundo ele representativa do surgimento
espontacircneo de um registro gravado na memoacuteria enquanto a segunda seria resultado de uma
procura ativa voluntaacuteria Referindo as ideias de Bergson sobre lsquorecordaccedilatildeo instantacircnearsquo e
lsquorecordaccedilatildeo laboriosarsquo aponta a distinccedilatildeo ldquo[] podendo a recordaccedilatildeo instantacircnea ser considerada
como o grau zero da busca e a recordaccedilatildeo laboriosa e a recordaccedilatildeo laboriosa como sua forma
expressardquo (RICOEUR 2014 p46) Assim a lembranccedila viria de uma evocaccedilatildeo proacutexima ao que
Ricoeur chama de lsquoautomatismorsquo e lsquorecordaccedilatildeo mecacircnicarsquo diferente da recordaccedilatildeo que viria lsquoda
reflexatildeo da reconstituiccedilatildeo inteligentersquo estando ambas ldquo[] intimamente mescladas na
experiecircncia comumrdquo (RICOEUR 2014 p46) Por fim com relaccedilatildeo a esse par Ricoeur refere
Eacute de fato o esforccedilo de recordaccedilatildeo que oferece a melhor ocasiatildeo de fazer lsquomemoacuteria do
esquecimentorsquo para falar com antecipaccedilatildeo como Santo Agostinho A busca da
lembranccedila comprova uma das finalidades principais do ato de memoacuteria a saber lutar
contra o esquecimento arrancar alguns fragmentos de lembranccedila agrave lsquorapacidadersquo do
tempo (Santo Agostinho dixit) ao lsquosepultamentorsquo no esquecimento Natildeo eacute somente o
caraacuteter penoso do esforccedilo de memoacuteria que daacute agrave relaccedilatildeo sua coloraccedilatildeo inquieta mas o
temor de ter esquecido de esquecer de novo de esquecer amanhatilde de cumprir esta ou
aquela tarefa porque amanhatilde seraacute preciso natildeo esquecer [] de se lembrar (RICOEUR
2014 p48)
A terceira dupla de opostos proposta por Ricoeur em sua fenomenologia da memoacuteria eacute
constituiacuteda pela polaridade reflexividademundanidade A respeito do elemento reflexividade
Ricoeur esclarece
Natildeo nos lembramos somente de noacutes vendo experimentando aprendendo mas das
situaccedilotildees do mundo nas quais vimos experimentamos aprendemos Tais situaccedilotildees
implicam o proacuteprio corpo e o corpo dos outros o espaccedilo onde se viveu enfim o
horizonte do mundo e dos mundos sob o qual alguma coisa aconteceu Entre
reflexividade e mundanidade haacute mesmo uma polaridade na medida em que a
reflexividade eacute um rastro irrecusaacutevel da memoacuteria em sua fase declarativa algueacutem diz
lsquoem seu coraccedilatildeorsquo que viu experimentou aprendeu anteriormente sob esse aspecto nada
deve ser negado sobre o pertencimento da memoacuteria agrave esfera de interioridade
(RICOEUR 2014 p53-54)
A mundanidade por sua vez constitui um elemento significativo no estudo deste
capiacutetulo uma vez que contempla a existecircncia dos rituais atraveacutes da abordagem do fenocircmeno da
31
comemoraccedilatildeo Ricoeur o associa agrave ldquo[] gestualidade corporal e agrave espacialidade dos rituais que
acompanham os ritmos temporais da celebraccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p60) A associaccedilatildeo do ato
de comemoraccedilatildeo com os rituais eacute explicada por ele
Natildeo haacute efetuaccedilatildeo ritual sem a evocaccedilatildeo de um mito que orienta a lembranccedila para o que eacute
digno de ser comemorado As comemoraccedilotildees satildeo assim espeacutecies de evocaccedilotildees no
sentido de reatualizaccedilatildeo eventos fundadores apoiados pelo lsquochamadorsquo a lembrar-se que
soleniza a cerimocircnia- comemorar observa Casey eacute solenizar tomando seriamente o
passado e celebrando-o em cerimocircnias apropriadas (RICOEUR 2014 p60)
A partir da reflexatildeo de Ricoeur sobre o par reflexividademundanidade e neste uacuteltimo
elemento a presenccedila do ritual cabe salientar o estudioso Mircea Eliade Este em sua obra Mito e
Realidade apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o mito
O mito conta uma histoacuteria sagrada ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial o tempo fabuloso do lsquoprinciacutepiorsquo Em outros termos o mito narra como
graccedilas agraves faccedilanhas dos Entes Sobrenaturais uma realidade passou a existir seja uma
realidade total o Cosmo ou apenas um fragmento uma ilha uma espeacutecie vegetal um
comportamento humano uma instituiccedilatildeo Eacute sempre portanto a narrativa de uma
lsquocriaccedilatildeorsquo ele relata de que modo algo foi produzido e comeccedilou a ser O mito fala apenas
do que realmente ocorreu do que se manifestou plenamente (ELIADE 2011 p11)
A relevacircncia dessa consideraccedilatildeo reside em corroborar que ldquo[] pelo fato de relatar as
gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestaccedilatildeo dos seus poderes sagrados o mito se torna o
modelo exemplar de todas as atividades humanas significativasrdquo (ELIADE 2011 p12) A
comemoraccedilatildeo enseja o rito que reencena o mito por isso eacute mencionada na explanaccedilatildeo de Ricoeur
quando se refere aos rituais Mircea Eliade esclarece ldquo[] a principal funccedilatildeo do mito consiste em
revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas tanto a
alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE
2011 p12) Compreende-se assim a comemoraccedilatildeo como a reuniatildeo de grupo ou de um povo
para celebrar a memoacuteria conjunta de seus membros em torno de uma finalidade o rito cuja
origem estaacute no evento original o mito A ideia impliacutecita neste caso eacute a de celebrar em conjunto
a memoacuteria de algo ou seja co-memorar A fim de reforccedilar essa reflexatildeo apontamos outra
explanaccedilatildeo de Eliade
Para o homem das sociedades arcaicas ao contraacuterio o que aconteceu ab origine pode ser
repetido atraveacutes do poder dos ritos Para ele portanto o essencial eacute conhecer os mitos
Essencial natildeo somente porque os mitos lhe oferecem uma explicaccedilatildeo do Mundo e de seu
proacuteprio modo de existir no Mundo mas sobretudo porque ao rememorar os mitos e
reatualiza-los ele eacute capaz de repetir o que os Deuses os Heroacuteis e os Ancestrais fizeram
ab origine Conhecer os mitos eacute aprender o segredo da origem das coisas Em outros
32
termos aprende-se natildeo somente como as coisas vieram agrave existecircncia mas tambeacutem onde
encontra-las e como fazer com que reapareccedilam quando desaparecem (ELIADE 2011
p18)
No contexto do presente capiacutetulo interessa ressaltar a compreensatildeo do ritual como
celebraccedilatildeo de uma memoacuteria ancestral por parte de um grupo A ancestralidade dessa memoacuteria
tem em sua raiz o mito que lhe deu origem Tal entendimento tem associaccedilatildeo com o cozinhar e
com o partilhar o alimento com a reuniatildeo da famiacutelia em torno da comida e com a repeticcedilatildeo das
praacuteticas culinaacuterias que mesmo evoluindo ao longo do tempo remontam o primordial tornar cru
em cozido Outro elemento ligado agrave realizaccedilatildeo de rituais associados agrave cozinha estaacute na recitaccedilatildeo
do modo de fazer um prato quando transmitido atraveacutes de uma receita escrita O caminho que
essa percorre entre as geraccedilotildees de uma famiacutelia eacute emblemaacutetico de sua forccedila ritualiacutestica como se
carregasse de forma transgeracional a memoacuteria desse grupo atraveacutes do como-se-faz de uma
determinada praacutetica
Antes da existecircncia da receita no caderno o conhecimento empiacuterico dos antepassados
sobre o fazer culinaacuterio era ensinado oralmente e atraveacutes do proacuteprio fazer quando recitaccedilotildees eram
feitas para que o prato saiacutesse a contento essas eram assim a representaccedilatildeo do ritual naquele
grupo familiar Nesse sentido retomamos Eliade em sua explicaccedilatildeo sobre a recitaccedilatildeo do mito
Em Timor por exemplo quando germina um arrozal dirige-se ao campo algueacutem que
conhece as tradiccedilotildees miacuteticas referentes ao arroz [] Recitando o mito de origem
obriga-se o arroz a crescer tatildeo belo vigoroso e abundante como era quando apareceu
pela primeira vez Natildeo eacute com o fim de lsquoinstruiacute-lorsquo ou ensinar-lhe a maneira como deve
comportar-se que o oficiante lembra ao arroz o modo como foi criado Ele o forccedila
magicamente a retornar agrave origem isto eacute a reiterar sua criaccedilatildeo exemplar (ELIADE
2011 p19)
Esses conhecimentos eram transmitidos junto com a receita ou seja eram parte da
memoacuteria daquele prato em seu papel na tradiccedilatildeo familiar Vale lembrar que a etimologia de
receita estaacute no latim recepta alusivo a receber expressa entatildeo aquilo que se recebe em termos
de ensinamento sobre o fazer de uma comida especiacutefica Haacute diversas expressotildees no folclore da
cozinha que remontam a transmissatildeo do saber culinaacuterio em uma cultura
Haacute diferenccedila entre a memoacuteria individual essa que nos identifica como indiviacuteduos e a
memoacuteria coletiva Como exemplo da uacuteltima cito esse lsquosaber culinaacuterio em uma culturarsquo que
remete agrave compreensatildeo sobre a memoacuteria coletiva no contexto deste capiacutetulo Esta assim como a
individual tem em seu eixo a noccedilatildeo de identidade no caso da memoacuteria de um indiviacuteduo como jaacute
visto refere-se agrave consciecircncia de si mesmo como base daquilo de que ele eacute capaz de se lembrar
33
para que as lembranccedilas sejam suas no caso da memoacuteria coletiva este eixo estaacute na identidade do
grupo que a conteacutem pois a memoacuteria e o grupo alimentam-se reciprocamente o grupo se manteacutem
vivo pelas memoacuterias enquanto essas permanecem presentes pela unidade do grupo
A respeito dessa inter-relaccedilatildeo a pesquisadora e professora alematilde Aleida Assmann no
livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo-formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural menciona as ideias
de Maurice Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva referindo que ldquo[] a memoacuteria coletiva assegura
a singularidade e a continuidade de um grupordquo (ASSMANN 2011 p144) e esclarece
Seu interesse voltou-se apenas agrave pergunta sobre o que manteacutem as pessoas unidas em
grupos Deparou assim com o significado agregador das lembranccedilas em comum como
importante elemento de coesatildeo Derivou daiacute a noccedilatildeo da existecircncia de uma lsquomemoacuteria de
gruporsquo Mas as lembranccedilas natildeo se estabilizam somente no grupo O grupo torna estaacuteveis
as lembranccedilas A investigaccedilatildeo de Halbwachs em torno dessa lsquomemoacuteria coletivarsquo resultou
no seguinte a estabilidade da memoacuteria coletiva estaacute vinculada de maneira direta agrave
composiccedilatildeo e subsistecircncia do grupo Se o grupo se dissolve os indiviacuteduos perdem em
sua memoacuteria a parte de lembranccedilas que os fazia assegurarem-se e identificarem-se como
grupo (ASSMANN 2011 p144)
A referecircncia agrave memoacuteria ligada agrave manutenccedilatildeo de um grupo remete novamente agrave ideia no
acircmbito das vivecircncias culinaacuterias das receitas de cozinha transmitidas entre as geraccedilotildees de uma
mesma famiacutelia O elemento que sustenta a presenccedila dessa receita no grupo eacute a memoacuteria que este
tem a respeito do lsquocomo-se-fazrsquo de uma determinada comida Enquanto houver membros dessa
famiacutelia que se interessem em manter a tradiccedilatildeo daquele determinado sabor a memoacuteria seraacute
mantida ao mesmo tempo enquanto houver essa memoacuteria a integraccedilatildeo do grupo permaneceraacute
Segundo Aleida Assmann
Os estudos do historiador francecircs Pierre Nora demonstraram que por traacutes da memoacuteria
coletiva natildeo haacute alma coletiva nem espiacuterito coletivo algum mas tatildeo somente a sociedade
com seus signos e siacutembolos Por meio dos siacutembolos em comum o indiviacuteduo toma parte
de uma memoacuteria e de uma identidade tidas em comum Nora cumpriu na teoria da
memoacuteria o passo que vai do grupo vinculado na coexistecircncia espaccedilo-temporal tema
estudado por Halbwachs agrave comunidade abstrata que se define por meio dos siacutembolos
que abrangem e agregam em niacutevel espacial e temporal Os portadores dessa memoacuteria
coletiva natildeo precisam conhecer-se para apesar disso reinvindicar para si uma identidade
comum (ASSMANN 2011 p145)
Assim como referido sobre o papel de uma receita de famiacutelia como elemento de coesatildeo
entre os membros da mesma atraveacutes das geraccedilotildees situaccedilatildeo semelhante pode ocorrer em relaccedilatildeo
a um determinado ingrediente ou preferecircncia alimentar A transmissatildeo de um saber culinaacuterio e
dos gostos de uma famiacutelia tambeacutem satildeo aspectos que se perpetuam no grupo em funccedilatildeo da
memoacuteria que agrega seus integrantes
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A memoacuteria individual entatildeo manteacutem a identidade por dar ao indiviacuteduo sua caracteriacutestica
singular atraveacutes do tempo nela estatildeo suas impressotildees lembranccedilas e registros que compotildeem a
noccedilatildeo de permanecircncia de quem ele eacute ou seja reforccedilam nele a consciecircncia do eu na duraccedilatildeo de
ciclos que se perpetuam Ele sabe quem eacute em grande parte pelas lembranccedilas que tem de si
Circunstacircncia anaacuteloga ocorre com a memoacuteria coletiva em que o grupo se manteacutem coeso pela
consciecircncia de ser um grupo com lembranccedilas em comum o papel dessas eacute exatamente o de
manter a unidade e a permanecircncia da identidade do conjunto
A memoacuteria individual e a coletiva estatildeo portanto implicadas na vivecircncia culinaacuteria
relaccedilotildees a serem exploradas na divisatildeo que segue
13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO
A relaccedilatildeo entre cozinha e memoacuteria existe devido agrave linguagem Avanccedilando nessa
perspectiva Mariano Garciacutea e Mariana Dimoacutepulos compiladores da obra Escritos sobre la mesa-
Literatura y comida afirmam que ldquo[] a relaccedilatildeo entre linguagem e comida comeccedila desde o
momento em que graccedilas agrave escritura se conservam notiacutecias de como se comia na Antiguidaderdquo
(GARCIacuteA DIMOacutePULOS 2014 p9) Toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo assim eacute conhecida em
virtude do que se registrou ao longo das eacutepocas sob os mais diversos veiacuteculos Esse aspecto eacute
relevante tanto do ponto de vista de Histoacuteria da Humanidade quanto daquele das histoacuterias
familiares atraveacutes de escritos transmitidos de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Em ambos os exemplos os
escritos culinaacuterios satildeo representativos da memoacuteria coletiva
Ainda no que concerne a essa memoacuteria salientamos que ela tem tambeacutem outras
expressotildees presentes no acircmbito identitaacuterio de uma cultura De acordo com Daniela Bunn em sua
obra O alimento na literatura uma questatildeo cultural ldquo[] satildeo assim criados em torno da mesa
modos maneiras e ingredientes que estabelecem uma identidade cultural destinada a representar
um grupo e sua identidaderdquo (BUNN 2016 p28) Tais lsquomodos maneiras e ingredientesrsquo satildeo
elementos que constituem parte da bagagem que pertence a um grupo e agraves geraccedilotildees seguintes
atraveacutes da memoacuteria coletiva Podemos citar como exemplos os ensinamentos culinaacuterios
aprendidos atraveacutes de gestos e de relatos orais e as preferecircncias alimentares de uma famiacutelia ou de
um povo
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Visitando cadernos de receitas antigos que pertenceram a avoacutes matildees e tias percebemos
uma caracteriacutestica em comum a todos eles o elenco de ingredientes com suas medidas e a breve
descriccedilatildeo do lsquocomo-se-fazrsquo apenas para guiar a praacutetica Parece-nos inclusive que eram
anotaccedilotildees que elas faziam para si mesmas para que natildeo esquecessem de um ou outro detalhe e
natildeo registros para serem transmitidos na famiacutelia Ensinavam sim mas in loco na hora em que
estivessem fazendo Mostravam caracteriacutesticas no aspecto do prato sendo feito apontavam para
os ruiacutedos da cebola fritando faziam sentir a textura de uma massa de patildeo o cheiro de um doce
exalando pela cozinha denunciavam a pitada de sal que ainda faltava no arroz soacute de provarem
com a ponta da colher Como sabiam Porque lembravam pelo que um dia aprenderam e mais do
que isso lembravam pelo haacutebito pelo praticar e de forma mais vivencial pelo sentir atraveacutes dos
cinco sentidos
Em Pequeno alfarraacutebio de acepipes e doccediluras haacute um capiacutetulo dedicado agrave cozinha das
avoacutes intitulado lsquoNossas avoacutesrsquo cujo propoacutesito eacute o de refletir de modo especiacutefico sobre a cozinha
que atravessa a memoacuteria e permanece como registro vivo pela referecircncia ao papel que estas
desempenham na memoacuteria de muitas pessoas Os pratos e doces feitos por elas as avoacutes de tantas
geraccedilotildees tornam-se parte das lembranccedilas que deixam na famiacutelia Aleacutem disso as receitas das avoacutes
satildeo emblemaacuteticas da memoacuteria que se manteacutem viva atraveacutes de um grupo que a alimenta a
memoacuteria coletiva conforme referida por Aleida Assmann ao mencionar as ideias de Maurice
Halbwachs
Um dos aspectos mais relevantes dessa lsquocozinha das avoacutesrsquo eacute o modo como tinham no
corpo o conhecimento da praacutetica culinaacuteria No texto lsquoA memoacuteria nas matildeosrsquo eacute referido esse
aspecto
No caso da Voacute Leacuteia e de tantas avoacutes da eacutepoca acho que tinham a memoacuteria nas matildeos
com tudo o que aprendiam e praticavam vida afora No entanto a sabedoria vai aleacutem
Acredito que sentissem vivamente nas etapas os cheiros gostos sons do alimento
aspecto textura pulsaccedilatildeo As matildeos preparavam mas todo corpo participava do feito
culinaacuterio Prestavam atenccedilatildeo estavam de fato presentes na tarefa E assim a memoacuteria era
lsquocarimbadarsquo nas matildeos nos cinco sentidos na emoccedilatildeo de um sabor que alegrava a
cozinha (CARDOSO 2012 p61)
O elemento determinante da memoacuteria das avoacutes cuja vivecircncia culinaacuteria era cotidiana e de
valor reconhecido entre os familiares eacute a praacutetica Sabiam fazer e muitas vezes de modo
intuitivo adaptavam e ateacute criavam receitas por esse conhecimento A lsquomemoacuteria nas matildeosrsquo
consistia em identificar pelo tato que a massa do patildeo estava no ponto quando a pele assim
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determinava E reconheciam isso por um dia ter aprendido mas principalmente porque apoacutes
tantas repeticcedilotildees do lsquocomo-se-fazrsquo foi a pele que passou a identificar este ponto ainda antes do
conhecer cognitivo Tal reflexatildeo conduz ao que refere Ricoeur sobre o par haacutebitomemoacuteria
quando o primeiro elemento do par alude agraves circunstacircncias em que o passado adere ao presente
Um saber adquirido eacute mantido em praacutetica o que torna sua lembranccedila como um fator que integra a
atualidade do fazer e natildeo apenas o passado
Esta memoacuteria das avoacutes que mantinham vivo um modo de conhecer o ato culinaacuterio como
parte de seu saber vivencial ilustra com nitidez a ideia da memoacuteria coletiva jaacute que seu saber era
compartilhado em seu tempo natildeo pela receita escrita mas pela forma como esse era sentido e
atuado na cozinha Agrave medida que as geraccedilotildees que detinham esses conhecimentos antigos foram
terminando suas memoacuterias de forno-e-fogatildeo construiacutedas pela accedilatildeo e pelos sentidos agrave beira do
fogo ou do balcatildeo foram deixando de existir O que ficou para as geraccedilotildees seguintes foi o
conjunto de receitas escritas mas essas natildeo substituem a riqueza de um fazer empiacuterico intuitivo
recordado no corpo
O escritor e pesquisador Michael Pollan faz uma referecircncia interessante nesse sentido ao
advertir que natildeo se deve comer nada que a avoacute natildeo chamaria de comida Essa expressatildeo proposta
no fulcro de uma culinaacuteria dirigida para fora dos lares e feita de alimentos muitas vezes pouco ou
nada saudaacuteveis chama a atenccedilatildeo para o reconhecimento das avoacutes como detentoras de um saber
uacutenico aquele da lsquocomida de verdadersquo
Avoacutes matildees e tias satildeo personagens de grande relevacircncia no aprendizado de cozinha das
geraccedilotildees seguintes Eacute possiacutevel que isso se deva a seu papel ancestral de transmissatildeo de um saber
especiacutefico A memoacuteria dos antepassados constitui o alicerce a fundamentaccedilatildeo da famiacutelia a partir
de experiecircncias e de saberes que um dia foram vivenciados para serem entatildeo narrados ao longo
do tempo agraves proacuteximas geraccedilotildees O socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da
culinaacuteria brasileira tece uma relevante consideraccedilatildeo a esse respeito ldquoOs saberes culinaacuterios
evoluiacuteram como uma heranccedila que se transmite matrilinearmente ndash e os cadernos de receitas das
avoacutes satildeo uma sobrevivecircncia persistente dessa diretrizrdquo (DOacuteRIA 2014 p206)
Doacuteria aborda outro elemento significativo na contribuiccedilatildeo com o papel da memoacuteria na
cozinha a corporeidade Esse fator representa o proacuteprio ato culinaacuterio que eacute exercido pelo corpo
Eacute nele que reside a memoacuteria dos movimentos e dos gestos implicados no preparo do alimento
como bater claras sovar a massa do patildeo picar a cebola etc Neste sentido o autor refere
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O corpo eacute tradicionalmente o principal instrumento do fazer culinaacuterio As ferramentas
da faca ao mais sofisticado equipamento utilizado na culinaacuteria molecular satildeo em geral
expedientes que visam economizar gestos ou conferir-lhes maior precisatildeo mas o
empenho fiacutesico com destreza eacute o primeiro responsaacutevel pelos resultados alcanccedilados []
(DOacuteRIA 2014 p216)
Essa reflexatildeo significa na compreensatildeo da memoacuteria ligada agrave cozinha que eacute o corpo o
principal responsaacutevel pela praacutetica culinaacuteria incluindo qualidades como a destreza mencionada
por Doacuteria A faca poderaacute cortar bem estar afiada mas se o corpo natildeo souber usaacute-la isso de nada
adiantaraacute Tal ponto nos remete agrave ideia da memoacuteria do corpo referida por Ricoeur no que tange
a uma espeacutecie de memoacuteria que pode ser agida na praacutetica habitual do indiviacuteduo fazendo parte de
sua identidade ter domiacutenio de um dado ato culinaacuterio daacute a algueacutem a consciecircncia de que sabe
fazer de que se lembra de que aquele saber eacute parte de si
Assim o ato culinaacuterio aprendido tanto por livros de receitas como pela transmissatildeo oral
por familiares representa a memoacuteria coletiva quando esse ato eacute praticado rotineiramente pelo
sujeito que aprendeu isto contribui para a consciecircncia de si representando o papel da memoacuteria
individual Cabe ressaltar tambeacutem a presenccedila da memoacuteria ancestral que acompanha as vivecircncias
de cozinha A esse propoacutesito Doacuteria refere que ldquoAssim lsquofazer para o outrorsquo ndash essa doaccedilatildeo atraveacutes
de um intermediaacuterio ao mesmo tempo material e simboacutelico como eacute a comida ndash permanece a
marca feminina do cozinhar desde os primeiros tempos da humanidaderdquo (DOacuteRIA 2014 p221)
Tal constataccedilatildeo reforccedila o papel ancestral das avoacutes matildees e tias na transmissatildeo do saber culinaacuterio
A postagem do blog Serendipity in Cucina traz no relato memorialiacutestico sobre a vivecircncia
de sua autora reflexatildeo sobre o componente ritualiacutestico do cozinhar
Haacute alguns anos decidi comeccedilar a fazer a chimia de uvas lsquoda Voacute Leacuteiarsquo a partir das
lembranccedilas que tenho do fazer de minha avoacute materna a quem assisti preparando o doce
inuacutemeras vezes Os dados sobre as proporccedilotildees tais como igual peso das cascas de uva e
do accediluacutecar e aacutegua que cubra soube por uma prima mas meu objetivo principal era o de
seguir a memoacuteria mais de vinte anos depois da uacuteltima vez que a vi fazendo o doce
Entatildeo sempre no veratildeo na eacutepoca dessas uvas repito a experiecircncia Fico em frente agrave
caccedilarola e a coloco em fogo baixo depois da fervura mexendo com a colher de pau em
giros lentos e precisos Percebo a mudanccedila atraveacutes da resistecircncia que o composto faz agrave
colher e assim progressivamente o fazer demanda mais forccedila do braccedilo direito Presto
atenccedilatildeo ao aspecto o roxo cintilante do iniacutecio torna-se mais opaco e fechado o brilho
das cascas da uva Isabel com que eacute feita a chimia diminui agrave medida que essa se
aproxima do resultado final O aroma toma conta da casa toda de forma insidiosa
Identifico que estaacute pronta pela consistecircncia reconheccedilo este momento porque a imagem
de minha avoacute em seus giros da colher de pau eacute parte de minha memoacuteria bem como a
lembranccedila das etapas da receita Quando repito seu movimento com semelhante
vagarosidade e empenho faccedilo-o pela lembranccedila do que assisti entretanto eacute provaacutevel
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que a repeticcedilatildeo se deva tambeacutem ao ritual em que consiste o cozinhar O proacuteprio fato de
estar agrave frente do fogo preparando o alimento eacute por si um ritual (CARDOSO 2015)
Assim o papel da ancestralidade manifesta-se no modo como se vivencia o contato com a
comida tanto no cozinhar quanto no comer e no partilhar a refeiccedilatildeo pessoas afins ou seja esses
atos configuram-se como rituais Retomamos as contribuiccedilotildees de Mircea Eliade para corroborar
essa compreensatildeo especialmente sua referecircncia de que
Apesar das modificaccedilotildees sofridas no decorrer dos tempos os mitos dos lsquoprimitivosrsquo
ainda refletem um estado primordial Trata-se ademais de sociedades onde os mitos
ainda estatildeo vivos onde fundamentam e justificam todo o comportamento e toda a
atividade do homem (ELIADE 2011 p10)
O fazer a comida e aquele do sentar agrave mesa para compartilhaacute-la satildeo desta forma rituais
que praticamos como seres humanos reencenando mitos A expressatildeo dos rituais estaacute em uma
memoacuteria coletiva ancestral que evocamos nessas praacuteticas
Em suma os mitos descrevem as diversas e algumas vezes dramaacuteticas irrupccedilotildees do
sagrado (ou do lsquosobrenaturalrsquo) no Mundo Eacute essa irrupccedilatildeo do sagrado que realmente
fundamenta o Mundo e o converte no que eacute hoje E mais eacute em razatildeo das intervenccedilotildees
dos Entes Sobrenaturais que o homem eacute o que eacute hoje um ser mortal sexuado e cultural
(ELIADE 2011 p11)
No que concerne agrave praacutetica da cozinha tambeacutem o cumprimento de uma receita traz um ato
de recitaccedilatildeo especialmente na parte que se refere ao lsquomodo de fazerrsquo o que conduz agrave reflexatildeo de
que tambeacutem esta eacute parte do ritual que envolve a produccedilatildeo da comida Fala-se em seguir a receita
no sentido de obedececirc-la Ao ler as orientaccedilotildees o que se lecirc eacute a presenccedila de verbos especiacuteficos do
fazer culinaacuterio conjugados no modo imperativo corte refogue asse e assim por diante Este
recitar que muitas vezes eacute falado em voz baixa enquanto se prepara um prato eacute em si um ato
inerente ao fazer culinaacuterio A respeito da recitaccedilatildeo Eliade aponta que
Na maioria dos casos natildeo basta conhecer o mito da origem eacute preciso recitaacute-lo em certo
sentido eacute uma proclamaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo do proacuteprio conhecimento E natildeo eacute soacute
recitando ou celebrando o mito de origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela
atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos O tempo miacutetico
das origens eacute um tempo lsquofortersquo porque foi transfigurado pela presenccedila ativa e criadora
dos Entes Sobrenaturais Ao recitar os mitos reintegra-se agravequele tempo fabuloso e a
pessoa torna-se consequentemente lsquocontemporacircnearsquo de certo modo dos eventos
evocados compartilha da presenccedila dos Deuses ou dos Heroacuteis Numa foacutermula sumaacuteria
poderiacuteamos dizer que ao ldquoviverrdquo os mitos sai-se do tempo profano cronoloacutegico
ingressando num tempo qualitativamente diferente um tempo lsquosagradorsquo ao mesmo
tempo primordial e indefinidamente recuperaacutevel (ELIADE 2011 p21)
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Carlos Alberto Doacuteria faz uma relevante reflexatildeo sobre a receita culinaacuteria contemplando a
perspectiva desde sua origem ateacute o modo como eacute vista atualmente
Considerando as diferenccedilas tecnoloacutegicas as receitas satildeo sempre prescriccedilotildees sobre o
modo de proceder na cozinha assim como as receitas farmacecircuticas satildeo prescriccedilotildees a
respeito de como os farmacecircuticos devem proceder em seus laboratoacuterios Do ponto de
vista geral ao apontar a unidade receita-cozinha e o modo de lsquoaviamentorsquo estamos
considerando que essa unidade estaacute incrustrada nas demais instituiccedilotildees como a religiatildeo
a famiacutelia o Natal etc (DOacuteRIA 2009 p141)
A receita culinaacuteria eacute entatildeo parte do ritual que envolve as vivecircncias alimentares seja
cozinhar ou comer aleacutem disso essa constitui um relevante material como documento para a
memoacuteria de um local e de uma eacutepoca pois traz em seu vocabulaacuterio e nas accedilotildees que determina
elementos de identificaccedilatildeo que permitem caracterizar sua origem e periacuteodo de vigecircncia A receita
porta consigo a memoacuteria coletiva do contexto de que se origina bem como a memoacuteria
individual de quem a escreve em seu caderno de cozinha e a de quem reconhece nos livros de
receitas pratos que jaacute experimentou
Doacuteria aponta a respeito da memoacuteria implicada nesse tipo de material um aspecto
interessante sobre o papel da memoacuteria contida nos livros culinaacuterios O autor fala a respeito de um
renomado chef internacional Paul Bocuse que eacute contraacuterio agrave praacutetica de receitas lsquoagrave riscarsquo tendo
escrito um livro assim Doacuteria aponta que o chef faz uma ressalva em sua obra orientando ao
leitor que natildeo leve seu conteuacutedo demasiadamente a seacuterio e que ouccedila uma lsquoforccedila desconhecidarsquo
como a inspiraccedilatildeo o que ldquo[] garantiraacute melhores resultados praacuteticosrdquo (DOacuteRIA 2009 p144)
Consideramos por fim que Bocuse tambeacutem estaacute a nos dizer que as suas receitas satildeo
apenas e modestamente o seu modo de fazer aquele prato ou seja elas contecircm a
memoacuteria do seu trabalho como estilo e valor testemunhal e- tambeacutem de modo a
determinar- o livro eacute seu meio de propagaccedilatildeo Visto assim o livro de receitas eacute um
registro de memoacuteria do trabalho que possam ter alguma utilidade para os leitores []
(DOacuteRIA 2009 p144)
Aleacutem dessa referecircncia a Bocuse Doacuteria aponta criticamente a funccedilatildeo da receita para os
que a seguem ldquoEntatildeo se pararmos um minuto para pensar veremos que a receita dentro da
cozinha tem o status de um texto sagrado que nos reduz agrave condiccedilatildeo de seus exagetas
independentemente do grau de preparaccedilatildeo que tenhamos nessa singular teologia alimentarrdquo
(DOacuteRIA 2009 p142) Esse respeito ao texto sagrado eacute de certa forma o cumprimento da
memoacuteria coletiva transmitida atraveacutes dos documentos escritos denominados receitas ao longo do
tempo nessa transmissatildeo ocorrem transformaccedilotildees na forma de execuccedilatildeo dos alimentos
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conforme as modificaccedilotildees culturais de cada eacutepoca ou seja cada periacuteodo e lugar tem seu modo de
interpretar e de realizar as receitas culinaacuterias de acordo com os produtos oferecidos e com as
teacutecnicas vigentes Doacuteria menciona
Por isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculos e as modificaccedilotildees que
introduzimos nas receitas satildeo apenas formas do patildeo continuar existindo mediante as
transformaccedilotildees das receitas Por isso quando seguimos agrave risca uma receita de patildeo natildeo
queremos fazer o patildeo mas uma versatildeo do patildeo que uma tradiccedilatildeo qualquer elaborou
(DOacuteRIA 2009 p147)
Tecidas as consideraccedilotildees a respeito do fazer culinaacuterio consolidado pela memoacuteria coletiva
vale refletir sobre o modo como ele eacute vivenciado atraveacutes da memoacuteria individual Ao contar sobre
a chimia de uvas de sua avoacute apontamos que assistir a seu modo de praticaacute-la foi para a autora o
percurso para aprender a fazecirc-la O lsquocomo-se-fazrsquo guarda as lembranccedilas oriundas da praacutetica
vivenciada pelo ofiacutecio dos cinco sentidos e pelo assistir aos gestos do corpo como os giros lentos
da colher de pau feitos pela avoacute E por tantas outras avoacutes matildees e tias
Assim a memoacuteria coletiva de uma receita culinaacuteria a chimia de uvas Isabel na maneira
como era repetida por muitas pessoas de uma eacutepoca tornou-se tambeacutem memoacuteria individual
Passou a ser parte da identidade da autora do blog pois representa um ponto de identificaccedilatildeo com
sua avoacute pela recordaccedilatildeo marcante de assisti-la fazendo esse doce por isso decidiu fazecirc-lo tempos
depois de seu falecimento seguindo as lembranccedilas do seu fazer A memoacuteria a respeito dos doces
produzidos por ela eacute tatildeo significativa que estaacute registrada em uma crocircnica especiacutefica no jaacute citado
Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e Doccediluras lsquoAs deliacutecias nos vidros de cafeacutersquo a qual
reproduzimos abaixo
Na casa de praia da Voacute Leacuteia e do Vocirc Heacutelio havia milhares de encantos espalhados mas
a cozinha era meu favorito A mesa retangular generosa e lsquoconvidadeirarsquo contava um
universo de histoacuterias de faacutebulas e de sabores mas o que dava uma graccedila especial ao
conjunto era o armaacuterio proacuteximo agrave porta para a varanda Em suas estantes na parte
superior enfeites e guloseimas ali moravam os potes de rapadura de leite
constantemente abastecidos pela voacute Na parte inferior duas portas abriam um territoacuterio
uacutenico respirante Ali vidros de cafeacute daqueles grandes com tampas vermelhas
guardavam geleias chimias e compotas que ela fazia durante o veraneio
Deixaacutevamos para depois a ideia de pedir as receitas tiacutenhamos o propoacutesito de ficar ao
lado quando o panelatildeo estava no fogo tomando nota do lsquocomo-se-fazrsquo mas sem muita
obstinaccedilatildeo Afinal de contas a Voacute estava ali e era a uacutenica que sabia o tim-tim por tim-
tim do ponto das cores dos cheiros que seus feitos adquiriam a cada etapa Entatildeo
tiacutenhamos a fantasia de que ela estaria para sempre renovando as deliacutecias nos vidros de
cafeacute com alquimias de aboacutebora de laranja de uva [] nossa imaginaccedilatildeo percorria
lonjuras no tempo acreditando que seu fazer dos doces seria perene Agora refletindo
sobre por que natildeo peguei nenhuma de suas receitas por que natildeo anotava cada detalhe
41
ocorre-me que esta era uma forma de garantir que ela permaneceria no ofiacutecio que eu
poderia eternamente aprender com ela a fazer suas reliacutequias
Hoje soacute o moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhas conhece o segredo daquelas
inquilinas (CARDOSO 2012 p62)
No texto lecirc-se lsquoo moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhasrsquo mas esse moacutevel eacute a
proacutepria memoacuteria guardando lembranccedilas representadas como lsquoo segredo daquelas inquilinasrsquo A
memoacuteria individual conteacutem segredos pontos que com o passar do tempo natildeo satildeo contados de
acordo com a realidade vivida mas apenas com aquela lembranccedila que permanece atraveacutes das
imagens e de sentimentos muito do que foi percebido nos escapa deixando as cenas como se as
viacutessemos atraveacutes de um vidro embaccedilado Esses satildeo os lsquosegredosrsquo que as portinhas do moacutevel da
cozinha silenciam
Nesse aspecto retomamos a consideraccedilatildeo de Eugegravene Minkowski sobre a memoacuteria
quando esse autor menciona que ldquo[] a lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a
tonalidade emotiva com que este foi percebidordquo (MINKOWSKI 2004 p143) Entende-se assim
que a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos recordaremos dela
no futuro porque eacute assim que a conhecemos
Esses registros existem na memoacuteria e assim constituem parte da consciecircncia do
indiviacuteduo sobre si mesmo Satildeo lembranccedilas que colaboram com a construccedilatildeo da identidade da
autora do texto Chimia da uva Isabel memoacuterias e receita pois ligam-na agrave identificaccedilatildeo com a
avoacute e seu legado culinaacuterio Tal aspecto corrobora o que apresentamos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica
do presente capiacutetulo
As memoacuterias individuais vinculadas agrave cozinha tecircm outro elemento a ser destacado nos
cadernos de receitas muitas vezes haacute referecircncia no tiacutetulo das mesmas a quem fazia tal prato ou
tal doce como especialidade identificando a receita a seu lsquodonorsquo como exemplo cito a lsquotorta de
palmito da Dona Mimi Mororsquo e a lsquopizza de sardinha da Voacute Leiarsquo Satildeo sabores associados agraves
lembranccedilas que temos das proacuteprias cozinheiras como se o saborear e o lembrar de quem
produzia o alimento fossem recordaccedilotildees acopladas
Os tiacutetulos das receitas fazem-nos evocar essas personagens da histoacuteria pessoal Os nomes
presentes no caderno identificam figuras de relevo na vida de quem o guarda assim esse faz
tambeacutem o papel de um aacutelbum de recordaccedilotildees Destacamos nas paacuteginas do livro Pequeno
alfarraacutebio de acepipes e doccediluras que o lsquobolo de melado da Anildarsquo natildeo eacute uma receita qualquer
de bolo de melado mas aquela da qual a autora tem determinada lembranccedila perpetuada pelo
42
colorido afetivo lembra-se do momento em que saboreou a receita pela primeira vez da Anilda
sua autora da cozinha em que o bolo era feito e ateacute mesmo do aroma que deixava na casa apoacutes
sair do forno A receita pode tornar-se entatildeo a narrativa das experiecircncias e das pessoas que
fazem parte delas atraveacutes da memoacuteria que nos permite acessar
Muitos livros de temas culinaacuterios satildeo memorialiacutesticos em acircmbito nacional e
internacional Esse elemento confirma a relaccedilatildeo da cozinha com o sujeito que comete nela seus
atos culinaacuterios mais iacutentimos esta constituiraacute o espaccedilo de memoacuteria de quem teve ali ou em outras
cozinhas de sua vida vivecircncias a serem contadas A outras pessoas ou a si mesmo como faz
Antocircnio ao rememorar sua histoacuteria familiar e pessoal enquanto prepara o arroz para o almoccedilo de
famiacutelia
Na seccedilatildeo seguinte apresentamos a anaacutelise da primeira obra do corpus dessa Dissertaccedilatildeo
de Mestrado O arroz de Palma a fim de propor a relaccedilatildeo entre a cozinha e o fenocircmeno da
memoacuteria a partir dos fragmentos escolhidos
14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA
A obra de Francisco Azevedo O arroz de Palma segue a cronologia da lembranccedila a
narrativa dos acontecimentos de sua histoacuteria pessoal e familiar eacute feita atraveacutes da costura de
tempos costura essa em que o fio que une os tecidos eacute a memoacuteria O protagonista Antonio
narrador-personagem tem oitenta e oito anos e estaacute na cozinha da fazenda de sua infacircncia
preparando um almoccedilo para reunir toda a famiacutelia O prato a ser servido O arroz ofertado por sua
tia Palma aos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana na ocasiatildeo do casamento
Os gratildeos jogados aos noivos na igreja satildeo colhidos da pedra por Palma para a oferta do
presente Esses gratildeos atravessam o oceano de Portugal ao Brasil para onde o casal e Palma vecircm
apoacutes dificuldades financeiras no paiacutes de origem e atravessam tambeacutem as geraccedilotildees O arroz
fertilizaraacute a famiacutelia e suas histoacuterias Eacute para celebrar o aniversaacuterio de 100 anos do casamento dos
pais e do arroz presenteado pela tia que Antonio prepara o almoccedilo com o que ainda haacute do
presente para ser compartilhado com os familiares
A narrativa eacute contada por ele enquanto prepara o prato sob a forma de lembranccedilas do que
viveu e do que ouviu da Tia Palma nas longas conversas que tinham desde seus tempos de
crianccedila O protagonista vai alinhavando essas recordaccedilotildees narrando-as como forma de
43
estabelecer uma linha de tempo desde o recebimento do arroz pelos pais ateacute o almoccedilo que
cozinha para a famiacutelia com o mesmo arroz cem anos depois Em alguns pontos da histoacuteria
parece tecer uma interlocuccedilatildeo com o leitor mas o elo entre a memoacuteria e os pensamentos eacute feita
de si para si
Pode-se dividir os trechos escolhidos para a presente anaacutelise em trecircs tempos o que
Antonio narra a partir da atualidade o que ouviu de Tia Palma e o que vivenciou Na primeira
condiccedilatildeo estaacute no presente nas duas outras no passado
Quando evoca as lembranccedilas vive-as com tamanha intensidade que sua narrativa traz
eventos antigos como se fossem atuais e refere-se a si mesmo do seguinte modo ldquoE eu menino
enrugado aqui nesta cozinha ainda viajo presente colorido do indicativordquo (AZEVEDO 2008
p17) O termo lsquomenino enrugadorsquo expressa a ligaccedilatildeo entre os tempos do presente e da memoacuteria
enquanto o lsquocoloridorsquo evoca a forccedila com que as lembranccedilas se manifestam trazendo ao presente
tonalidade marcante
Em toda a narrativa o uso das metaacuteforas culinaacuterias para a representaccedilatildeo de vivecircncias de
percepccedilotildees de sentimentos e de lembranccedilas eacute o elemento principal A cozinha eacute assim a forma
constante de expressatildeo do protagonista aleacutem de ser o espaccedilo fiacutesico onde o romance se
desenvolve pois eacute neste lugar que ele estaacute enquanto tece recordaccedilotildees
No primeiro capiacutetulo do livro Antonio fala durante o preparo do almoccedilo que serviraacute para
a famiacutelia entatildeo na atualidade Lembra-se lsquoTia Palma me ensinou a cozinhar eu era jovemrsquo
ilustrando as reflexotildees feitas na subdivisatildeo anterior sobre a relevacircncia da cozinha das avoacutes e das
tias para a memoacuteria individual pois essas satildeo figuras de referecircncia para a construccedilatildeo da memoacuteria
e por conseguinte da consciecircncia de si Diz Antonio
Eu aqui na fazenda Eu aqui na cozinha quatro e pouco da manhatilde Isabel ainda dorme o
sol ainda demora Eu aqui um velho de 88 anos Para os mais novos o Avocirc Eterno o
que natildeo teve comeccedilo nem teraacute fim o que jaacute veio ao mundo com essa cara enrugada Eu
aqui de avental branco picando o tempero verde Preparo o almoccedilo de famiacutelia Terei
forccedilas 88 dois infinitos verticais Eacute boa idade seraacute uma bela festa Tenho praacutetica Tia
Palma me ensinou a cozinhar eu era jovem (AZEVEDO 2008 p9)
Antonio provoca lsquoAs autoridades querem minhas digitais Elas estatildeo na massa do patildeorsquo o
que conduz a dois aspectos jaacute discutidos o papel da memoacuteria individual na identidade papel que
estaacute impregnado na massa do patildeo ou seja no ato culinaacuterio o outro elemento eacute aquele referido
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por Doacuteria quando menciona lsquoPor isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculosrsquo
expressando a feitura do patildeo como resultado da memoacuteria coletiva e da realizaccedilatildeo de rituais
Eacute na cozinha que eu desembesto e solto os bichos Eacute na cozinha que eu viajo sem
passaporte sem bilhete sem revista em aeroportos As autoridades querem minhas
digitais Elas estatildeo na massa do patildeo Querem minha foto Tenho vaacuterias de frente e de
lado com meus pais e irmatildeos e com os que vieram depois Retratos falados- em voz alta
a famiacutelia toda ao mesmo tempo Destrambelhada famiacutelia Sagrada famiacutelia []
(AZEVEDO 2008 p11)
Ainda nesse capiacutetulo ressaltamos um elemento caracteriacutestico da obra as expressotildees da
cozinha que constituem metaacuteforas agrave composiccedilatildeo das famiacutelias A frase emblemaacutetica empregada
pelo personagem lsquofamiacutelia eacute prato difiacutecil de prepararrsquo apresenta as reflexotildees de Antonio sobre
diferenccedilas e peculiaridades entre familiares Todas as alusotildees agraves divergecircncias entre eles satildeo feitas
tendo como eixo a linguagem usada na culinaacuteria Salientamos um aspecto a aproximaccedilatildeo entre
os termos culinaacuterios e as relaccedilotildees familiares representando cozinha e famiacutelia como estruturas
com pontos de convergecircncia
Preciso me concentrar Eacute essencial Por quecirc Ora que pergunta Famiacutelia eacute prato difiacutecil
de preparar satildeo muitos ingredientes Reunir todos eacute um problema- principalmente no
Natal e Ano-Novo Pouco importa a qualidade da panela fazer uma famiacutelia exige
coragem devoccedilatildeo e paciecircncia Natildeo eacute para qualquer um Os truques os segredos o
imprevisiacutevel Agraves vezes daacute ateacute vontade de desistir Preferimos o desconforto do estocircmago
vazio Preferimos o desconforto do estocircmago vazio Vecircm a preguiccedila a conhecida falta
de imaginaccedilatildeo sobre o que se vai comer e aquele fastio Mas a vida- azeitona verde no
palito- sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite O tempo potildee a mesa
determina o nuacutemero de cadeiras e os lugares Suacutebito feito milagre a famiacutelia estaacute
servida (AZEVEDO 2008 p12)
Durante o preparo do arroz mistura lembranccedilas e devaneios seguindo a comparaccedilatildeo
entre pratos culinaacuterios e famiacutelias
Reuacutena essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida Natildeo haacute pressa Eu
espero Jaacute estatildeo aiacute Todas Oacutetimo Agora ponha o avental pegue a taacutebua a faca mais
afiada e tome alguns cuidados Logo logo vocecirc tambeacutem estaraacute cheirando a alho e a
cebola Natildeo se envergonhe se chorar Famiacutelia eacute prato que emociona E a gente chora
mesmo De alegria de raiva ou de tristeza (AZEVEDO 2008 p12)
Entre ponderaccedilotildees e aconselhamentos Antonio fala de si mesmo ao leitor apresentando
sua visatildeo sobre si como um lsquovelho jaacute meio caducorsquo e lsquoum veterano cozinheirorsquo A alternacircncia
entre recordaccedilotildees do passado ideias do presente e diaacutelogo com o interlocutor eacute um dos elementos
que marca a narrativa
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Enfim receita de famiacutelia natildeo se copia se inventa A gente vai aprendendo aos poucos
improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia A gente cata um registro ali de
algueacutem que sabe e conta e outro aqui que ficou no pedaccedilo de papel Muita coisa se
perde na lembranccedila Principalmente na cabeccedila de um velho jaacute meio caduco como eu O
que este veterano cozinheiro pode dizer eacute que por mais sem graccedila por pior que seja o
paladar famiacutelia eacute prato que vocecirc tem que experimentar e comer Se puder saborear
saboreie Natildeo ligue para etiquetas Passe o patildeo naquele molhinho que ficou na
porcelana na louccedila no alumiacutenio ou no barro Aproveite ao maacuteximo Famiacutelia eacute prato que
quando se acaba nunca mais se repete (AZEVEDO 2008 p14)
Essa mistura de periacuteodos entre passado contado passado vivido e presente eacute marcada
pela referecircncia sobre o ingresso do arroz na histoacuteria da famiacutelia pelas matildeos de Tia Palma Os
tempos misturam-se ora mostrando Antonio em sua cozinha na atualidade ora Joseacute Custoacutedio
Maria Romana e Tia Palma em cenas vividas por eles
Quando Antonio se refere a um evento passado usando um verbo no presente pode-se
compreender que atraveacutes da memoacuteria ingressou em outro tempo de si mesmo ou de sua famiacutelia
A mistura entre lembranccedila e atualidade marca muitos dos relatos pois o limiar entre passado e
presente para o protagonista jaacute eacute impreciso assim como as experiecircncias que viveu e aquelas que
ouviu de Palma
Tia Palma era enfaacutetica ao descrever a cena o arroz que desabou sobre os noivos aacute saiacuteda
da igreja foi torrencial Eram punhados e mais punhados Chuva branca que natildeo parava
Nunca se viu tanta fartura em votos de felicidade (AZEVEDO 2008 p15)
-E tu dizes que Palma eacute que eacute a mal-educada
-Basta assunto encerrado Daacute-se o arroz para algueacutem Palma natildeo precisa saber
-O arroz eacute presente O arroz fica
-Pois estaacute bem Guarda esse maldito presente Com o tempo ele haacute de mofar se encher
de bichos e teraacutes que jogaacute-lo fora
-Ouve bem meu querido Joseacute Custoacutedio este arroz eacute amor e puro amor Natildeo haacute de se
estragar (AZEVEDO 2008 p21)
O protagonista recorda-se das vivecircncias com Tia Palma na cadeira em que essa lhe
contava as histoacuterias sobre o arroz e tantas outras Ouvir Palma era vivido por Antonio como se
assistisse a uma peccedila de teatro
A expressatildeo no rosto natildeo daacute a menor pista A histoacuteria de hoje seraacute triste Que vozes
faraacute Que cenaacuterio me apresentaraacute ao levantar as cortinas A sala de jantar Uma ruela de
Viana do Castelo Seraacute dia SeraacuteTia Palma pigarreia faz pequena pausa comeccedila com
gravidade
Primeiro ato Tarde da noite ela garante O coto de vela colado no tampo da mesa mal
ilumina os rostos Mamatildee e papai apenas alguns meses de casados natildeo tecircm o que
comer Nada nem vegetal nem fruta nem gratildeo nada Em voz baixa respeitosa mamatildee
sugere o arroz A resposta que recebe eacute a fuacuteria o murro na mesa e a gargalhada que
parece pranto
-O arroz de Palma
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Outra sonora gargalhada e laacutegrimas Papai parece fora de si
-O arroz de Palma nunca Castigo maldiccedilatildeo que seja Morro de fome mas aquele arroz
varrido do chatildeo nunca
-O arroz de Palma eacute abenccediloado Arroz plantado na terra caiacutedo do ceacuteu colhido da pedra
(AZEVEDO 2008 p26)
Tia Palma sempre contara a Antonio sobre o papel do arroz para sua histoacuteria familiar
fazendo do sobrinho o herdeiro de suas memoacuterias e do conhecimento a respeito da relevacircncia do
ingrediente para a continuidade da famiacutelia
-A fertilidade de vocecircs estaacute no arroz A benccedilatildeo que haacute onze anos ele recusou
-Eu jurei ao Joseacute que o arroz ficava mas natildeo seria comido Foi o combinado
-Pois eu natildeo jurei nada a ele
Mamatildee acha graccedila meio espantada meio com medo
-Palma Como vais fazer
-Primeiro ponho uma dose cavalar de purgante na comida dele que eacute pra desentupiacute-lo
por traacutes Depois trago-lhe uma comida bem levezinha para que ele se recupereUma
canjinha especial bem magrinha como ele gosta Uma xiacutecara de arroz eacute o quanto basta
-Uma canjinha especial
O trato estaacute feito Os risos e o demorado do abraccedilo selam a cumplicidade (AZEVEDO
2008 p38)
Antonio lembra-se da cena em que quando crianccedila assegurou agrave Tia Palma que gostava
de arroz ingrediente crucial na conduccedilatildeo da narrativa Mostrava assim apreciar as histoacuterias
sobre o arroz contadas por ela e sabia desde entatildeo que esse era um elemento decisivo em sua
famiacutelia
E a cadeira jaacute eacute palco e se estamos assim abraccedilados eacute porque eu tambeacutem estou em cena e
agora a fala eacute minha Eacute a minha estreia Inesperada e tatildeo esperada estreia
-Natildeo fique preocupada Eu gosto de arroz De qualquer jeito grudado ou solto eu gosto
Com toda a verdade possiacutevel encerro a minha parte
-Ateacute puro sem feijatildeo sem nada eu gosto juro (AZEVEDO 2008 p28)
Cabe salientar o papel que esse elemento exerce na histoacuteria De acordo com Maria Eunice
Moreira no ensaio lsquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmarsquo ldquo[] o arroz tem
funccedilatildeo especial na formaccedilatildeo do clatilde como o objeto maacutegico que acompanha a trajetoacuteria da
famiacuteliardquo (MOREIRA 2014 p162) Aleacutem de ser o ingrediente que vem de Portugal e atravessa
as geraccedilotildees eacute presente de matrimocircnio de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana e posteriormente de
Antocircnio e Isabel Eacute o fator que fertiliza o primeiro casal e que reuacutene o segundo no almoccedilo entre
as famiacutelias quando Antonio e Isabel comeccedilam sua aproximaccedilatildeo
Esse almoccedilo comeccedila a partir de uma carta de Antonio ao pai em que anuncia de forma
quase imperceptiacutevel o interesse por Isabel e ao final conta que estaacute levando ingredientes
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especiais na sua viagem agrave fazenda ldquoPS Estou levando boas postas de bacalhau azeite vinho
verde e outras tantas gulodices vindas de Portugalrdquo (AZEVEDO 2008 p85) Tia Palma como
sempre com a percepccedilatildeo aguccedilada aos movimentos dos familiares tem a ideia de aproveitar a
ocasiatildeo para convidar a famiacutelia de Isabel a um almoccedilo de confraternizaccedilatildeo
-Vocecircs natildeo fazem anos de casados no dia da chegada de Antonio Entatildeo Preparamos
um almoccedilo e convidamos o senhor Avelino dona Maria Celeste e Isabel que eacute quem
nos interessa
-Palma os Alves Machado nunca se sentaram conosco agrave mesma mesa Natildeo sei Sinto-me
um pouco constrangida Ainda mais aqui em nossa casa tatildeo modesta Satildeo muito bons e
generosos mas satildeo nossos patrotildees O mundo deles eacute laacute em cima na sede
-O Joseacute Custoacutedio e o senhor Avelino natildeo satildeo tatildeo amigos Entatildeo Qual eacute o problema
Acho inclusive que jaacute deveriacuteamos tecirc-los chamado haacute mais tempo Jaacute ouvi por diversas
vezes dona Maria Celeste dizer que o marido gosta do nosso Joseacute como a um irmatildeo
(AZEVEDO 2008 p87)
Tia Palma e Maria Romana comeccedilam assim a combinar o almoccedilo que ocorre com
sucesso Primeiro passo eacute o de abrir o saco de arroz o que as surpreende pelo estado saudaacutevel dos
gratildeos Sendo Isabel a filha dos donos da fazenda e Antonio o filho do funcionaacuterio de confianccedila
haacute um constrangimento inicial que se desfaz com a partilha da refeiccedilatildeo entre as famiacutelias O arroz
une Portugal e Brasil paiacuteses das duas famiacutelias atraveacutes de ingredientes portugueses e tempero
brasileiro mais uma vez estando representada a cozinha como metaacutefora
Essa ocasiatildeo cujo propoacutesito eacute aproximar famiacutelias e reduzir diferenccedilas representa a
comemoraccedilatildeo de aniversaacuterio de casamento de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana bem como a visita
de Antonio agrave fazenda entatildeo morando no Rio de Janeiro Paul Ricoeur qualifica a comemoraccedilatildeo
dentro da caracteriacutestica mundanidade em par com reflexividade Esta mundanidade estaacute
associada agrave realizaccedilatildeo de rituais conforme jaacute visto Antonio alterna a lembranccedila sobre o relato de
Palma a respeito da combinaccedilatildeo entre ela e sua matildee com sua proacutepria recordaccedilatildeo sobre o almoccedilo
-Perfeito Veja Palma pegue
-Ceacuteus Quase 40 anos e ainda saudaacutevel
Mamatildee beija as matildeos de tia Palma
-Amor verdadeiro natildeo se estraga Eacute para sempre
-Trecircs quilos eacute o quanto basta Daraacute um belo arroz de bacalhau
-Eacute impossiacutevel que Antonio e Isabel natildeo se resolvam
O almoccedilo eacute um sucesso Os Alves Machado chegam um pouco cerimoniosos mas logo
com tantos comes e bebes somos a mesma famiacutelia (AZEVEDO 2008 p88)
O papel do arroz na histoacuteria seraacute tambeacutem o de testemunhar a uniatildeo fiacutesica de Antonio e
Isabel agrave beira do lago antes do casamento
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-Eu sou o dono do arroz que tambeacutem eacute seu dona Isabel
-DonaPor acaso estamos casados
Sim estamos casados O Deus do azul sabe que estamos O lago menor sabe que
estamos O sangue e o arroz sabem que estamos (AZEVEDO 2008 p105)
Outra ocasiatildeo em que o arroz assume papel de ritual eacute quando o casal ganha de Joseacute
Custoacutedio Maria Romana e Palma o presente com nova dedicatoacuteria atualizada revisitando a
primeira feita por Palma Seraacute portanto o herdeiro do arroz ofertado pela Tia Palma a seus pais
junto a Isabel jaacute que o casal ganha o arroz como presente por seu matrimocircnio
Quero distacircncia de religiotildees mas respeito rituais Influecircncia de tia Palma admito Meu
cafeacute da manhatilde eacute sagrado O ritual eacute sempre o mesmo a hora a xiacutecara o pocircr o leite
primeiro o escurececirc-lo depois no ponto certo o abrir o patildeo o tirar o miolo
(AZEVEDO 2008 p127)
Individual ou coletivo o ritual eacute conexatildeo e cumplicidade [] Concluo que haacute sempre
algo de autoritaacuterio nos rituais Mas neles natildeo haveraacute tambeacutem algo que emociona Natildeo
haveraacute algo de belo e poeacutetico (AZEVEDO 2008 p127)
O arroz e todo o simbolismo que envolve na formaccedilatildeo dessa famiacutelia seraacute transmitido a
Antonio e Isabel em ocasiatildeo formal como desejam seus pais e Tia Palma
E o arroz Eacute o arroz Tia Palma quer que a entrega dessa vez ganhe algum ritual
Mamatildee e papai concordam Natildeo satildeo apenas os oito quilos que contam O presente de
casamento tem agora o peso da histoacuteria Portanto natildeo seraacute dado de modo informal
como aconteceu em Viana do Castelo (AZEVEDO 2008 p128)
O ritual de transmissatildeo do arroz eacute celebrado com a dedicatoacuteria atualizada e assinada por
seus pais e por Tia Palma eacute ela que faz a cerimocircnia de entrega ao sobrinho e agrave Isabel repetindo o
gesto feito na oferta do presente a Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu matrimocircnio
-Isabel e Antocircnio meus queridos este arroz que haacute quase 40 anos foi dado como
presente de casamento agrave minha cunhada Maria Romana e ao meu irmatildeo Joseacute Custoacutedio
por nossa vontade agora vos pertence Fazemos votos de que a tradiccedilatildeo continue e de
que todo o amor aqui contido chegue agraves geraccedilotildees futuras
Mamatildee potildee os oacuteculos lecirc a dedicatoacuteria atualizada
lsquoEste arroz-plantado na terra caiacutedo do ceacuteu como o manaacute do deserto e colhido da pedra- eacute
siacutembolo da fertilidade e do eterno amor Essa eacute a nossa benccedilatildeo
Palma Maria Romana e Joseacute Custoacutedio
Fazenda Santo Antocircnio da Uniatildeo em 13 de junho de 1946rsquo
Protegido pelo pano branco o arroz passa agraves nossas matildeos (AZEVEDO 2008 p130-
131)
Ainda no que concerne ao papel do ingrediente como elemento com atributo de ritual estaacute
a cena em que Antonio lecirc a receita em seu caderno do arroz de lentilhas de Tia Palma escrita
por ela com recomendaccedilotildees O aspecto a ser ressaltado nesse ponto estaacute principalmente na
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forma de apresentaccedilatildeo da receita que indica a importacircncia de recitar os trechos durante a feitura
do prato
Antonio meu querido lava bem as lentilhas em aacutegua corrente enquanto recitas
lsquotrepadeira trepadeirabeijo-te as folhas penadas e as flores violaacuteceas trepadeira
trepadeiranatildeo estou ao fundoestou ao frescoestou agrave beiraeacutes fortuna eacutes sauacutede eacutes
companheiratrepadeira trepadeira eacutes amor amigo eacutes paixatildeo verdadeirarsquo
Feito isso respira fundo trecircs vezes e solte o ar pela boca Deixa teu corpo sentir o
benefiacutecio Potildee as lentilhas em tacho com bastante aacutegua jaacute temperada de sal Leva ao
lume alto ateacute ferver Ao ferver abaixa o lume e deixa cozinhar ateacute que as lentilhas
estejam macias
Escorre a aacutegua da fervura E enquanto ela se vai diz com voz de certeza lsquoaacutegua
fervidaaacutegua de sal e de vidaaacutegua boa que seguetoma teu rumofertilizarsquo
(AZEVEDO 2008 p146-147)
A recomendaccedilatildeo de que faccedila as recitaccedilotildees ao cozinhar o prato traz a reflexatildeo sobre o
exposto por Mircea Eliade sobre a relevacircncia de recitar os mitos exposta anteriormente ldquo[]
recitando ou celebrando o mito da origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela atmosfera
sagradardquo (ELIADE 2011 p21) Haacute outra referecircncia a esse autor que merece ser salientada
pensando-se nos trechos a serem recitados como os cantos a que Eliade se refere ldquoA
recapitulaccedilatildeo atraveacutes dos cantos e da danccedila eacute simultaneamente uma rememoraccedilatildeo e uma
reatualizaccedilatildeo ritual dos eventos miacuteticos essenciais ocorridos desde a Criaccedilatildeordquo (ELIADE 2011
p27)
Laura Esquivel escreve no ensaio intitulado lsquoEl manaacute sagradorsquo em seu livro de ensaios
Iacutentimas suculencias-Tratado filosoacutefico de cocina sua perspectiva sobre a relaccedilatildeo entre a comida
e os rituais corroborando a importacircncia da cozinha como espaccedilo simboacutelico
Talvez natildeo haja muita diferenccedila entre falar de comida e falar de religiotildees Quase em
todas elas umas e outras se faz presente a divindade atraveacutes dos alimentos De fato natildeo
podemos negar que um rito obrigado de quase toda religiatildeo eacute o momento de comer e de
beber a deidade ou para a deidade O sentido profundo da alimentaccedilatildeo em alguma
medida tem a ver com nossa sede de eternidade cifrada na manutenccedilatildeo cotidiana da vida
Talvez por isso todos os deuses tenham deixado sua presenccedila contida nos alimentos
Nesse sentido nos alimentamos para viver e por viver O desfrute da comida tem
lampejos de vida eterna Mas natildeo soacute eacute fundamental o ato em si de comer tambeacutem o eacute a
cerimocircnia que implica preparar e compartilhar os alimentos A cerimocircnia ritual que se
realiza em torno da mesa eacute um ato de profunda e antiga significaccedilatildeo religiosa
(ESQUIVEL 2014 p77)
Entretanto natildeo apenas de comemoraccedilotildees eacute constituiacuteda a funccedilatildeo do arroz na narrativa
Algumas circunstacircncias satildeo provocadas pela representaccedilatildeo desse ingrediente na histoacuteria como as
diferenccedilas entre o protagonista e seus irmatildeos a tentativa de seus filhos Nuno e Rosaacuterio
50
mexerem no gratildeo derrubando-o na vitrine do restaurante e o deflagrar das emoccedilotildees da cunhada
em relaccedilatildeo a Antonio quando esta rouba uma porccedilatildeo do arroz para ter um pedaccedilo de Antonio
consigo
-Senti forte ciuacuteme de Isabel Inveja raiva tudo E ainda por cima era obrigada a
esconder o que sentia Quando vocecirc fez a vitrine iluminada no restaurante soacute pra expor o
arroz passei a acreditar que seria possiacutevel ter ao menos um punhadinho daquela
felicidade
-Vocecirc ainda tem ele
-Natildeo
-Natildeo
-Fiz do meu jeito Preparei ele na aacutegua e sal e comi Antes pedi a Deus que me desse um
pouco de vocecirc tambeacutem Nem que fosse por um dia
Amaacutelia torna a recostar a cabeccedila no meu peito Nada mais eacute dito Ou se eacute dito natildeo deixa
registro Acho que cochilamos Levantamo-nos da cama com o desprendimento de um
encontro rotineiro (AZEVEDO 2008 p217)
Entre rememoraccedilotildees e devaneios Antonio entrelaccedila retalhos do passado agrave sua percepccedilatildeo
sobre o presente a finitude as lembranccedilas recentes que se confundem o fluxo de consciecircncia
Reflete sobre o que faz ali na cozinha preparando o almoccedilo familiar e ao mesmo tempo
reconstroacutei lembranccedilas antigas que compuseram sua atualidade
Se me perguntarem natildeo sei dizer o que comi ontem no almoccedilo Mas sou capaz de
reproduzir diaacutelogos inteiros da minha juventude quando esta fazenda ainda era do
senhor Avelino e eu ainda morava na casa laacute de baixo com tia Palma meus pais e meus
irmatildeos Gozado isso Vaacute entender Memoacuterias antigas Niacutetidas perfeitas cheias de
miacutenimos detalhes cheiros e sons ateacute Inclusive as experiecircncias ancestrais que natildeo vivi
as histoacuterias laacute de Portugal que me foram contadas todas aqui dentro de cor e salteado
Fatos recentes Coitados Vatildeo se segurando em mim como podem (AZEVEDO 2008
p143)
A constataccedilatildeo de seus 88 anos daacute ao protagonista a consciecircncia de sua condiccedilatildeo de idoso
aceitando as falhas de lembranccedila mas natildeo aquelas em sua capacidade como cozinheiro
experiente
Natildeo quero vocecirc metida aqui dentro da cozinha Por favor Isabel Natildeo eacute nada disso Eacute
porque vocecirc fica zanzando para laacute e para caacute Potildee a matildeo prova daacute palpite Me atrapalha
Fico doido natildeo quero Nem vocecirc nem ningueacutem Deixa que eu dou conta do recado
Tantos anos agrave frente laacute do restaurante chefe com vaacuterios precircmios natildeo basta Eacute preciso
mais Idoso coisa nenhuma Dispenso o eufemismo bobo Sou velho isso sim Eu sei
natildeo precisa dizer A vista natildeo ajuda muito nem as pernas nem os reflexos Mas espera
aiacute gagaacute ainda natildeo estou Tenho forccedila nas matildeos Acho que ainda posso mexer uma
panela Quatro panelotildees concordo Fica tranquila que natildeo vou me queimar Nem a
comida (AZEVEDO 2008 p144-145)
51
A capacidade de Antonio com a cozinha comeccedilou com os aprendizados que teve com sua
tia na juventude e consolidou-se com a praacutetica Tal aquisiccedilatildeo lembra o referido sobre o par
memoacuteriahaacutebito na fenomenologia da memoacuteria proposta por Paul Ricoeur A capacidade
representa o elemento haacutebito pois eacute primordialmente construiacuteda a partir da atividade rotineira de
um atributo Talvez por isso na narrativa Antonio aceite as falhas de memoacuteria inerentes ao
envelhecimento mas natildeo a ideia de diminuiccedilatildeo daquilo que eacute seu por meacuterito por conquista com
esforccedilo dedicaccedilatildeo e sobretudo repeticcedilatildeo Antonio recorda-se de quando partiu para encontrar
trabalho na capital certo de que seguiria a atividade de cozinheiro
-O que eacute que significa isso agora Pra quecirc essa mala Antonio -Calma calma que eu natildeo vou pra guerra -Eu sabia Estaacutes indo embora por causa dessa moccedila Isabel E eacute tudo culpa da Palma
-Tenho 21 anos meu pai Sei muito bem o que faccedilo A vida do campo natildeo eacute para mim
Vou para a capital Farei amigos laacute E amigas
-Mas assim tatildeo de repente
-Trabalharei em restaurante conhecerei pessoas influentes ficarei conhecido e serei
proacutespero
-Para quecirc tanto entusiasmo Para lavar pratos Servir mesa
-Tambeacutem Mas natildeo eacute soacute isso Quero cozinhar Quem sabe um dia consigo abrir meu
proacuteprio negoacutecio
Papai se irrita
-Como cozinhar De onde tiraste essa ideia maluca (AZEVEDO 2008 p67)
O aprendizado com a tia eacute representativo da memoacuteria coletiva que se perpetua em um
grupo neste caso o familiar para a manutenccedilatildeo de um saber entre seus membros Essa memoacuteria
coletiva na histoacuteria eacute expressa pelo cozinhar como um conhecimento transmitido mas
principalmente pela histoacuteria que envolve o arroz nessa famiacutelia A narrativa dessa histoacuteria ao
longo das geraccedilotildees constitui tambeacutem a representaccedilatildeo dessa espeacutecie de memoacuteria na famiacutelia de
Antonio
Para aleacutem do que aprendeu com Tia Palma houve o que a praacutetica lhe ensinou
trabalhando em restaurantes ateacute que pudesse montar o proacuteprio negoacutecio Lembra-se de cenas do
percurso que seguiu ldquoO mar de mesas eacute convite agrave aventura Sigo Na copa e na cozinha o
barulho de louccedilas e talheres eacute intempeacuterie A vozearia eacute a marujada a postos que me recebe Esta eacute
a minha gente natildeo tenho duacutevidas Este eacute o meu barco e []rdquo (AZEVEDO 2008 p79)
Antonio tem em Palma seu referencial chamando por ela quando se vecirc em desafios
evocando lembranccedilas dos seus ensinamentos
52
Transpiro o nervoso que vem de dentro Tia Palma por favor me ajuda lsquoO que o corpo
potildee para fora nos purificarsquo Saacutebia Tia Palma natildeo me falta nunca A cenoura e a batata jaacute
cortadas os tomates em rodelas e sem as sementes a cebola picada bem miudinha todos
nas respectivas vasilhas Mais alguma coisa Isso e aquilo Pronto acabei Natildeo me
canso Ao fim do expediente ainda haacute focirclego e entusiasmo de sobra Reluto em desfazer
o laccedilo do avental Jaacute (AZEVEDO 2008 p80)
Uma das cenas da obra que ilustra o entrelaccedilamento entre a memoacuteria individual e a
coletiva eacute no enterro dos pais de Isabel quando Antonio canta uma canccedilatildeo tradicional
portuguesa pensando fazecirc-lo em voz baixa como forma de homenagem Enquanto canta suas
memoacuterias tocam-lhe a ponto de natildeo perceber que o faz em voz alta E aqui estaacute o referido
entrelaccedilamento as demais pessoas presentes no enterro tambeacutem se emocionam e cantam em
coro Presentes ali estatildeo as proacuteprias lembranccedilas e aquelas de suas famiacutelias
Numa casa portuguesa fica bem
patildeo e vinho sobre a mesa
Quando agrave porta humildemente bate algueacutem
Senta-se agrave mesa coacutea gente
Fica bem essa fraqueza fica bem
que o povo nunca a desmente
A alegria da pobreza
estaacute nesta grande riqueza
de dar e ficar contente
(AZEVEDO 2008 p193)
Antonio segue a cantoria da muacutesica que pensa estar cantando para si Entatildeo percebe ter
cantado em voz alta e a emoccedilatildeo que causou Letra e muacutesica satildeo parte de sua memoacuteria individual
pela origem da famiacutelia e da memoacuteria coletiva dos presentes ao enterro que cantam com ele a
tradiccedilatildeo
Em algum momento tenho a impressatildeo de que algumas pessoas me acompanham e que
ao final todos ali cantamos juntos emocionados lsquoUma casa portuguesarsquo Volto ao enterro
com aplausos Reflexo condicionado eu mesmo bato palmas Isabel aos prantos me
beija agradecida pela homenagem inesperada Olho ao redor todos choram
copiosamente Natildeo eacute possiacutevel Seraacute que em vez de falar alto comigo mesmo cantei
alto Soacute pode ser (AZEVEDO 2008 p194)
Na volta do enterro o papel da comida em nutrir e acalentar eacute referido atraveacutes da
expressatildeo empregada por Antonio lsquopedimos a ela que nos aqueccedila algo para pocircr no estocircmagorsquo
como segue no trecho abaixo ldquoQuando chegamos em casa Nuno e Rosaacuterio jaacute estatildeo dormindo
Conceiccedilatildeo garante que ficaram quietinhos natildeo deram trabalho algum Pedimos a ela que nos
53
aqueccedila algo para pocircr no estocircmago Ela diz que fez uma sopinha de legumes e jaacute nos chamardquo
(AZEVEDO 2008 p194)
O protagonista segue a narrativa evocando lembranccedilas reconstruindo impressotildees
reconhecendo a si mesmo atraveacutes da costura de retalhos da memoacuteria Estaacute em sua cozinha mas
viaja para muitos periacuteodos de sua vida visita a si mesmo em muitas eacutepocas lembra dos pais da
tia dos sogros dos irmatildeos dos filhos ateacute o momento atual Entatildeo na cozinha da fazenda aos 88
anos prepara com esmero os gratildeos de memoacuteria restantes em cozimento nas panelas Antonio
aguarda o encontro do passado com o presente no almoccedilo de famiacutelia Quando esse acontece
todos nas mesas entusiasmo e lembranccedila espalham-se na famiacutelia
Benccedilatildeo vivermos o bastante para poder dividi-lo assim irmatildemente sem conta de
padeiro nem laacutepis engatilhado atraacutes da orelha Olha soacute a cara da Leonor e a do Nicolau e
a do Joaquim Velhos bobos Nem sonhavam que ainda iam provar do arroz de Tia
Palma E agora choram desse jeito Natildeo eacute cebola nada que eu sei Eacute muita lembranccedila e
sonho tudo misturado agrave moda da casa Fiz de propoacutesito para pegar vocecircs de surpresa E
para a Amaacutelia - me pergunto- que gosto teraacute esse segundo arroz Qual o sabor de um
arroz assim permitido e compartilhado A garotada pode achar que somos velhos gagaacutes
e que essa histoacuteria eacute pura invencionice Impossiacutevel um arroz durar tanto a ciecircncia isto a
ciecircncia aquilo Eu natildeo ligo a miacutenima Vocecircs ligam Entatildeo oacutetimo Vamos comer agrave
vontade que haacute arroz para todos Joaquim meu irmatildeo me passa o azeite (AZEVEDO
2008 p352)
No trecho seguinte ao perguntar-se lsquoquantas vezes maisrsquo o protagonista expotildee sua
percepccedilatildeo quanto agrave finitude o tempo que ainda teraacute para novas cenas como aquela ldquoNoacutes
adultos continuamos em volta das mesas agraves voltas com as lembranccedilas Porque nos apetecem
repetimos o doce repetimos o vinho repetimos as histoacuterias Quantas vezes maisrdquo (AZEVEDO
2008 p356)
Ao longo da narrativa Antonio evoca histoacuterias lembranccedilas que lhe surgem
espontaneamente acionadas por outras por devaneios e por emoccedilotildees De acordo com Maria
Eunice Moreira em seu ensaio
A memoacuteria de Antonio organiza a configuraccedilatildeo caoacutetica da accedilatildeo externa dando um
sentido ao amontoado de fatos e episoacutedios jaacute vividos Nessa seleccedilatildeo privilegia natildeo a
memoacuteria anotada e escrita em cadernos ou diaacuterios mas aquela mais viva mais seletiva e
mais afetiva (MOREIRA 2014 p169)
No referido ensaio o fragmento acima corresponde agrave reflexatildeo de Antonio sobre a forma
como suas lembranccedilas lhe aparecem
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A memoacuteria que vai para o diaacuterio fica toda arrumadinha linear dia mecircs e ano Agraves vezes
horas e ateacute minutos constam do registro Mas quando velho a gente vai e consulta o
caderno se espanta com o montatildeo de coisa que jaacute nem faz sentido e estaria apagado natildeo
fosse a tinta A memoacuteria puxada da cabeccedila natildeo Eacute esforccedilo de selecionar soacute o que presta
o que nos eacute querido Natildeo eacute discurso ensaiado e lido Eacute fala de improviso com todos os
erros e tropeccedilos que a ousadia pode causar (AZEVEDO 2008 p248)
O que Antonio estaacute referindo eacute o conjunto de suas lembranccedilas na despensa da memoacuteria
aquelas que o identificam por constituiacuterem etapas de sua vida atraveacutes delas se reconhece
assume a consciecircncia de si Mesmo com o embaralhamento entre lembranccedilas e devaneios o
protagonista faz um balanccedilo de sua existecircncia enquanto prepara o almoccedilo familiar Estaacute na
cozinha porque esta eacute seu refuacutegio seu lugar no mundo Prepara o arroz para compartilhaacute-lo
assim como sua Tia Palma partilhava com ele suas histoacuterias sentada na quarta cadeira Os
trechos a seguir representam com nitidez o papel da comida agrave mesa para Antonio Mais uma vez
estatildeo presentes as lembranccedilas de tempos vividos e o arroz no prato como na frase lsquoo arroz tem
que vir sempre na frentersquo
A descriccedilatildeo de comidas caseiras do esmero de Conceiccedilatildeo ao arrumar a mesa da atitude
de Isabel em servi-lo todos satildeo elementos construiacutedos ao longo do tempo e tecircm como raiz as
experiecircncias familiares transformadas em memoacuteria O lsquocheiro gostoso da comidinha caseirarsquo eacute o
elemento sensorial que o acolhe na atmosfera de casa e simultaneamente o leva a viajar em suas
lembranccedilas O lsquoalmoccedilo de famiacutelia cotidianorsquo eacute o elemento que conduz o protagonista a cenas
semelhantes no passado como quando seus filhos eram crianccedilas Refeiccedilatildeo para Antonio eacute a
famiacutelia na mesa Assim a comida e a famiacutelia mais uma vez estatildeo vinculadas para ele como
sinocircnimos De recordaccedilatildeo de aconchego de partilha do gosto e do cheiro bom
Conceiccedilatildeo chega e anuncia que o almoccedilo estaacute indo para a mesa Graccedilas a Deus Meu
estocircmago jaacute estaacute roncando Puxo Rosaacuterio do sofaacute
-Vamos
E vamos todos levados pelo cheiro gostoso da comidinha caseira Ao nos sentarmos agrave
mesa impossiacutevel natildeo reparar no costumeiro apuro O caimento da toalha Os pratos os
copos os talheres afastados na medida certa Os guardanapos bem dobrados agrave esquerda
A cesta de patildees posta com arte Natildeo eacute almoccedilo para visitas Eacute almoccedilo de famiacutelia
cotidiano- esmero da Conceiccedilatildeo que ama tudo o que faz Laacute vem ela de novo da
cozinha pousa do meu lado a terrina do feijatildeo fumegando me daacute aquele sorriso de
missatildeo bem cumprida
-Botei bastante paio Ontem o senhor ficou revirando a concha dizendo que dava
precircmio para quem encontrasse um (AZEVEDO 2008 p311)
A cena pode ser compreendida sob a perspectiva de Laura Esquivel no ensaio jaacute referido
quando a autora exprime sua visatildeo sobre a comida e a partilha da mesa
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E ainda que natildeo sejamos religiosos creio que para nenhum de noacutes seraacute estranho pensar
que atraveacutes dos aromas que compartilhamos com nossos semelhantes dos sabores dos
alimentos e da substancial presenccedila da divindade neles os seres humanos podemos ter
dia apoacutes dia uma pequena antecipaccedilatildeo do paraiacuteso (ESQUIVEL 2014 p78)
A ideia de Esquivel sobre a lsquoantecipaccedilatildeo do paraiacutesorsquo coincide com o sentimento de
Antonio sobre a cozinha Para o protagonista essa representa a casa o sabor a famiacutelia Simboliza
o que Gaston Bachelard refere na frase ldquoPode-se demonstrar as primitividades imaginaacuterias
mesmo a respeito desse ser soacutelido na memoacuteria que eacute a casa natalrdquo (BACHELARD 2012 p47)
Pode-se complementar essa frase com outra ideia do autor ldquo[] a casa natal eacute uma casa
habitadardquo (BACHELARD 2012 p33) Ao estar na cozinha ou na sala de jantar ao estar sentado
agrave mesa a emoccedilatildeo eacute a de estar em casa naquela que primeiro conheceu como casa a fazenda A
casa natal eacute e sempre seraacute habitada pelas lembranccedilas Esse espaccedilo corresponde a um lugar de
memoacuteria conforme referido por Ricoeur A casa natal eacute um ser soacutelido na memoacuteria porque ela
conteacutem as primeiras vivecircncias afetos impressotildees Eacute ali que a vida comeccedila que se enraiacuteza dali
vecircm as lsquoprimitividades imaginaacuteriasrsquo e as lembranccedilas que tornaratildeo o sujeito em quem ele eacute pela
consciecircncia de si que a memoacuteria propicia
Minha mulher eacute paciente entende como funciono Ela pega meu prato e vai me
servindo um pouco disto um pouco daquilo mas antes de tudo o arroz- indispensaacutevel-
e o feijatildeo por cima Eu sei que natildeo eacute o certo Mas eacute assim que eu gosto o feijatildeo por
cima nunca do lado Se puser o feijatildeo primeiro e depois o montinho do arroz tambeacutem
implico O arroz tem que vir sempre na frente depois o feijatildeo molhando aiacute sim eacute
perfeito Sempre ensinei bons modos aos meus filhos mas nunca os proibi de misturar a
comida toda no prato de uma vez Se eu misturo como proibir Ai se fizeacutessemos isso na
frente de Isabel Bom nem pensar Em dias de ensopadinho de vagem com carninha
moiacuteda ou de chuchu com camaratildeo era verdadeiro supliacutecio Nuno e eu sofriacuteamos
horrores Queriacuteamos porque queriacuteamos misturar tudo de uma vez com o arroz Natildeo
podiacuteamos Era proibido por lei Isabel natildeo transigia Tiacutenhamos que ir misturando aos
pouquinhos puxando com o garfo e aiacute levar agrave boca Depois voltar misturar mais um
pouquinho puxando com o garfo e tornar a levar agrave boca Um sacrifiacutecio Depois de
nossos filhos adultos a lei do proibido misturar foi abolida E cada um liberado para
comer do seu jeitinho informal
Jaacute servido espeto o paio deliacutecia e retomo a conversa (AZEVEDO 2008 p314)
Chega a hora de Antonio apoacutes revisitar histoacuterias vividas e contadas pela memoacuteria Na
cozinha representaccedilatildeo de sua casa natal ele falece ldquoSempre acompanhamos com olhos de
saudade o balatildeo que sobe ceacuteu afora e se mistura no azul Acontece com todos Depois satildeo soacute
histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras Famiacutelia eacute prato que quando se acaba nunca
mais se repeterdquo (AZEVEDO 2008 p361)
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Histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras elementos que aludem agraves lembranccedilas
Mais uma vez a cozinha eacute representada ao falar-se em memoacuteria atraveacutes das lsquoreceitas caseirasrsquo
Essas satildeo registros de quem habitou os campos de forno-e-fogatildeo e deixou por escrito o como-
se-faz O seu
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2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE
A sacola de crochecirc da voacute era perturbadora da ordem ali de dentro ela tirava varenikes
beigales mondales knishes strudels um perfume que ia nos buscar no mais remoto
quarto da casa pratos fundos de louccedila branca e pesada transbordantes de fartura Noacutes
nos reuniacuteamos em torno da mesa em torno da voacute em torno dos pratos - em torno da
comida que ela tratava como uma cerimocircnia de milagre E ela abria os braccedilos para nos
acarinhar a todos e nos beijava com os laacutebios finos o haacutelito de menta e pronunciava
palavras boas palavras de quem traz alviacutessaras feliz como quem pode dar o seio a um
bebecirc minhas crianccedilas a voacute trouxe comida pra vocecircs (MOSCOVICH 2006 p93-94)
Prazer eacute sentimento do corpo Bem-estar e gozo que se quer repetir Puro deleite acorda
os sentidos Onda repentina epifania de cores aromas gostos texturas sons Nasce sem aviso
deixa marcas faz pulsar em ritmo de quero-mais Nasce do encontro amoroso do saborear de um
prato e de tantas outras vivecircncias Estaacute na taccedila do vinho escuro e aveludado na mordida do mil-
folhas ao mesmo tempo crocante e macio O prazer desperta como se fosse dia novo entusiasma
provoca ecoa em cada parte nossa Comida eacute coisa prazerosa toca a vida sensorial alegra ceacutelulas
e anima A cozinha espaccedilo fiacutesico e territoacuterio afetivo evoca gostos desejos lembranccedilas prazer
O preparo das receitas o deleite dos pratos a partilha da mesa as conversas amenas durante a
refeiccedilatildeo todos inerentes ao universo culinaacuterio E depois vem a culpa a roupa que aperta o
regime por ordens meacutedicas Culpa e prazer inimigos entrelaccedilados
21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE
Por que sou gorda mamatildee eacute o romance escrito por Ciacutentia Moscovich em 2006 e
publicado pela Editora Record com uma narradora em primeira pessoa de quem o leitor natildeo
sabe o nome ao longo da obra Ela passa a limpo as histoacuterias de famiacutelia de origem judaica e a
sua proacutepria histoacuteria em uma carta para sua matildee Dessa o leitor tambeacutem natildeo sabe o nome da
primeira agrave uacuteltima paacutegina
O conflito central apresenta a dificuldade da narradora-personagem com seu aumento de
peso vinte e dois quilos em quatro anos e o sofrimento em face da necessidade de fazer dieta
Natildeo se trata apenas das privaccedilotildees de ter de fazer dieta Trata-se da dor emocional por precisar
fazer dieta de novo A repeticcedilatildeo de situaccedilotildees em que o engorde esteve presente em sua vida
ligado ao papel do comer em sua famiacutelia faz com que acuse sua matildee muitas vezes pela situaccedilatildeo
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a que chegou Por essa oferecer comida demais Natildeo Por oferecer afeto de menos Ao contraacuterio
da matildee a Voacute Magra sua avoacute materna eacute muito carinhosa com ela e seus irmatildeos e aleacutem disso
sempre aparece com a sacola de crocheacute plena de doces da cozinha judaica O papel da avoacute parece
ser o de suprir as faltas da matildee e as supre em excesso no que tange ao reforccedilo da gula
A narrativa pode ser a expressatildeo de uma catarse atraveacutes da escrita uma decisatildeo
confessional da narradora ou sua atitude ora acusatoacuteria ora carente na direccedilatildeo de sua matildee Em
uma mistura de cada uma dessas formas o livro traz o entrelaccedilamento das memoacuterias das
emoccedilotildees e das etapas objetivas em sua jornada de emagrecimento como narra a protagonista no
proacutelogo ao expor para sua matildee que a escrita seraacute dirigida a ela
Tenho medo mas estou prestes a pocircr um ponto final e a aticcedilar a pluma das lembranccedilas
Luta contra o gelo do tempo O proacutelogo em seus estertores depois comeccedila
Mamatildee me endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar
esse territoacuterio metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora
Quero voltar a ter um corpo
Haacute um livro a ser escrito e nele os fatos seratildeo fruto da prestidigitaccedilatildeo ainda que
imperfeita Respostas possiacuteveis ilusatildeo para secar as maacutegoas e o corpo O proacutelogo
termina Depois jaacute iniciou Comeccedilo num ponto de intrerrogaccedilatildeo
Por que sou gorda mamatildee (MOSCOVICH 2006 p19)
A narrativa eacute contada em vinte e cinco capiacutetulos duzentas e cinquenta e uma paacuteginas
vinte e dois quilos O primeiro capiacutetulo apresenta em primeira pessoa um entrelaccedilamento
essencial ao conflito da personagem a histoacuteria da origem de sua famiacutelia na Europa passando
fome em vilarejos judeus a histoacuteria de sua Voacute Magra com o prazer da comida e sua proacutepria
histoacuteria de infacircncia com os irmatildeos na hora das refeiccedilotildees
Segue-se ainda nesse capiacutetulo um desabafo com uma lista de aspectos pejorativos do
sujeito gordo Satildeo frases que costumamos ouvir com grande frequecircncia sobre os indiviacuteduos com
excesso de peso e que eles mesmos muitas vezes referem em tom entre o mea culpa e a auto
ironia Esse eacute o tom usado pela narradora falando em sua voz o que atribui ao olhar alheio
Depois de apontar os defeitos dos gordos conta do comeccedilo de seu sacrifiacutecio com as restriccedilotildees
alimentares
Em seguida o escaacuternio daacute lugar agrave lembranccedila da morte de seu pai as consequecircncias que
tal perda teve na famiacutelia e sobretudo na relaccedilatildeo de sua matildee com os filhos Eacute o comeccedilo da voz
acusatoacuteria da narradora trazendo agrave tona fatos e sofrimentos na relaccedilatildeo familiar Aparece a
ausecircncia da matildee no cumprir de sua funccedilatildeo afetiva Seguem-se capiacutetulos de apresentaccedilatildeo da Voacute
Gorda do lado paterno da Voacute Magra e de sua histoacuteria frustrada de amor por um violinista russo
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do avocirc do pai dos irmatildeos de si mesma em vaacuterios tempos da vida e da balanccedila Presente e
passado alternam-se disputando espaccedilo nas paacuteginas porque para a personagem em sua carta agrave
matildee o passado eacute parte do peso em quilos de seu presente
Enquanto passa a limpo sua histoacuteria e suas maacutegoas a narradora vai contando vitoacuterias e
deslizes na dieta dores pela restriccedilatildeo alimentar e alegrias por conseguir emagrecer lentamente A
histoacuteria familiar evolui o momento em que o excesso de peso na infacircncia tornou-se foco de
preocupaccedilatildeo e de imposiccedilatildeo da dieta por parte do pai aparece como fato de destaque A
narradora em zigue-zague transita entre os periacuteodos de vida para encontrar respostas ora em
conversas dirigidas agrave matildee ora em diaacutelogos com seu proacuteprio mundo interno A escrita para a matildee
eacute em essecircncia um passar a limpo para si mesma a proacutepria histoacuteria de seu corpo Gula prazer
afeto e ausecircncia dores e perdas inclusive de maacutegoas e de peso eis o transcorrer da histoacuteria
narrada Esses elementos satildeo o fio condutor da narrativa das primeiras paacuteginas ateacute a evoluccedilatildeo ao
epiacutelogo Parte desse reproduzo abaixo
Mamatildee natildeo preciso perdoaacute-la por nada Natildeo me incomodo mais pela porccedilatildeo presente de
sua lavra e todo o esforccedilo de natildeo mais me incomodar foi por amor que eacute minha cura
Mais cinco quilos a bordo de uma bicicleta cor-de-rosa seratildeo perdidos Recuso-me a
remexer ainda mais no passado Natildeo se angustie mamatildee Noacutes duas sabemos que natildeo
vale a pena-falta que a senhora serenize seus dias e deixe tambeacutem de remexer o passado
Depois que eu colocar o ponto final por favor mamatildee natildeo deixe de recompor sua
alegria seu desejo e sua piedade A senhora perdoaraacute a vida E eu terei esquecido que
cheguei ateacute aqui apesar da senhora
[hellip] (MOSCOVICH 2006 p250)
Destaca-se sobretudo a verossimilhanccedila interna da obra Entre o proacutelogo e o epiacutelogo haacute
muitas histoacuterias contadas em uma soacute compondo uma linha de tempo na cronologia do calendaacuterio
e outra dentro da personagem Afinal de contas o tempo interno tem um ritmo proacuteprio que
obedece acima de tudo agraves leis da memoacuteria
A narradora-personagem consegue compreender suas interrogaccedilotildees ao entremear passado
e presente histoacuteria familiar e individual A narrativa multifacetada natildeo sai dos trilhos e eacute possiacutevel
acompanhar o diaacutelogo da personagem consigo mesma atraveacutes da carta para sua matildee A
descoberta dos elementos alusivos agrave presenccedila e agrave falta de prazer alimentar que permeiam a obra
conduzem ao primeiro aspecto do presente capiacutetulo o que eacute o prazer afinal
60
22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL
Para o psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers o prazer no campo da Fenomenologia
Psiquiaacutetrica pode ser compreendido como a realizaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees
orgacircnicas Para o referido autor o prazer consiste no equiliacutebrio psiacutequico na satisfaccedilatildeo e no bem-
estar Jaacute conforme os autores do artigo Psicopatologia do Prazer Lorenzo Pelizza e Franco
Benazzi o prazer pode ser considerado um fenocircmeno psiacutequico de muacuteltiplas facetas Em termos
geneacutericos esse eacute um forte sentimento que corresponde agrave percepccedilatildeo de uma condiccedilatildeo positiva
fiacutesica ou mental proveniente do organismo
As pesquisas que abordam o prazer satildeo recentes Apenas haacute algumas deacutecadas a ciecircncia
passou a contribuir para evidenciar os efeitos beneacuteficos desse fenocircmeno tanto no sentido proacute-
ativo (como fator que favorece o bem-estar psico-fiacutesico do indiviacuteduo e que promove o processo
de cura da doenccedila) quanto no protetor (como elemento fundamental que fornece ao sujeito os
recursos necessaacuterios para afrontar e superar as experiecircncias negativas e para prevenir o risco de
adoecer) (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
Do ponto de vista do estudo do prazer como elemento saudaacutevel destacamos seu papel
como fator de importante valor motivacional sob o enfoque das teorias evolucionistas
Reduzindo ao maacuteximo a explicaccedilatildeo seria possiacutevel entender seu papel da seguinte forma como
espeacutecie sentimos prazer na alimentaccedilatildeo e na relaccedilatildeo sexual para que mediante esta sensaccedilatildeo
tenhamos estiacutemulo para nutrirmo-nos e procriarmos A gratificaccedilatildeo do ceacuterebro que ocorre
atraveacutes da experiecircncia prazerosa motiva o indiviacuteduo a repetir os comportamentos que a tornam
viaacutevel como o comer Forma-se assim um ciclo no qual a comida promove prazer e este motiva
a procuraacute-la pela resposta cerebral gerando novamente o prazer e assim ocorre a manutenccedilatildeo do
comportamento com sucessivas repeticcedilotildees A propoacutesito desse ciclo os referidos autores
esclarecem
O mecanismo operante de reforccedilorecompensa age em sentido evolucionista para
conduzir os comportamentos adotados na direccedilatildeo de escopos adaptativos que sejam uacuteteis
para garantir a sobrevivecircncia do indiviacuteduo (por exemplo busca de comida ou de aacutegua)
eou a conservaccedilatildeo da espeacutecie (condutas reprodutivas) Para que atinja a eficaacutecia o
estiacutemulo de reforccedilo deve ser capaz de ativar as instacircncias psiacutequicas do prazer e o sistema
neurobioloacutegico de gratificaccedilatildeo cerebral (circuitos dopaminergicos mesoliacutembicos) sendo
deste modo vivido como experiecircncia prazerosa satisfatoacuteria e assumindo assim um
importante valor motivacional (PELIZZA BENAZZI 2008 p298-299)
61
Tal explicaccedilatildeo evolucionista eacute relevante para a compreensatildeo do prazer alimentar Como
espeacutecie devemos sentir prazer ao comer com o propoacutesito de termos estiacutemulo para mantermos a
constacircncia de uma alimentaccedilatildeo regular O prazer eacute o elemento que torna possiacutevel esta constacircncia
O socioacutelogo e escritor brasileiro Carlos Alberto Doacuteria acrescenta um dado relevante nesse
sentido ao mencionar o autor de A fisiologia do gosto Jean Anthelme Brillat-Savarin que
publicou a obra em 1825 relevante na literatura gastronocircmica Nessa ao referir-se aos cinco
sentidos Brillat-Savarin acrescenta o sentido geneacutesico sobre o qual Doacuteria reflete em seu livro A
culinaacuteria materialista
Este uacuteltimo eacute o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro
sendo a sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecie Este sentido diz ele foi ignorado ateacute o
seacuteculo XVIII sendo anexado ao (ou confundido com o) tato Ora a reproduccedilatildeo da
espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo
a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo ao sexo e ao comer eacute o prazer a
busca do agradaacutevel e este eacute o sentido muito especial que ele pretende indicar como
responsaacutevel pela gastronomia (DOacuteRIA 2009 p190 grifo do autor)
Assim a relaccedilatildeo de prazer do indiviacuteduo com a comida eacute tambeacutem de acordo com Brillat-
Savarin uma estrateacutegia de sobrevivecircncia da espeacutecie assim como o sexo A sensaccedilatildeo prazerosa
ligada ao alimento refere-se principalmente agrave percepccedilatildeo deste como tendo gosto agradaacutevel ou
seja ldquo[] aquilo que apraz aos sentidos mobilizados pela alimentaccedilatildeordquo (DORIA 2009 p192)
O estudo da obra de Carlos Alberto Doacuteria abre um campo de reflexatildeo relevante no que
tange ao fenocircmeno do prazer pois o autor o aborda pela perspectiva gastronocircmica referindo o
que torna um alimento prazeroso Ele menciona que de acordo com os modernos teoacutericos do
gosto ldquo[] o agradaacutevel que comemos depende do impacto favoraacutevel sobre todos os cinco
sentidosrdquo (DOacuteRIA 2009 p194)
Para explicar como um alimento se torna agradaacutevel ele comeccedila por definir o mundo
objetivo lsquoo mundo das coisas e das nossas aptidotildees fisioloacutegicas para percebecirc-lorsquo e o mundo
subjetivo lsquodos nossos valores crenccedilas e preferecircncias individuaisrsquo Entatildeo acrescenta o ponto
chave de sua reflexatildeo ldquoTomemos como hipoacutetese que o gosto se forma na relaccedilatildeo entre esses dois
mundos O gosto assim entendido eacute relacional e se refere ao que se passa em torno do ato
fisioloacutegico de comerrdquo (DOacuteRIA 2009 p194) A fim de aprofundar a ideia desta relaccedilatildeo expotildee
Ao explorar a noccedilatildeo de gosto partindo de sua dimensatildeo material isto eacute da relaccedilatildeo que
se estabelece entre o mundo e o homem por intermeacutedio do complexo aparato sensitivo
temos que entender tambeacutem que o gosto varia de indiviacuteduo para indiviacuteduo entre as
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diferentes idades de um mesmo indiviacuteduo entre as classes sociais de cultura para
cultura e de uma eacutepoca para outra na mesma cultura Sabemos tambeacutem que permanece
um misteacuterio como nasce o desejo intenso de se comer determinado alimento ou como a
monotonia de uma dieta se instaura de modo a repudiarmos o alimento apoacutes um certo
tempo Nada disso se explica por razotildees puramente fisioloacutegicas (DOacuteRIA 2009 p195)
Assim na relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o alimento agradaacutevel ao lsquocomplexo aparato
sensitivorsquo como define Doacuteria existem variaacuteveis como idade e cultura que interferem no modo
como a sensaccedilatildeo prazerosa eacute percebida Quanto ao aspecto cultural por exemplo o autor refere
O gosto partilhado por vaacuterias pessoas ndash sejam membros de uma famiacutelia de uma
comunidade de uma eacutepoca- sugere uma construccedilatildeo coletiva que natildeo se confunde com a
experiecircncia gustativa de cada um O caraacuteter afetivo da cozinha familiar eacute um modelo de
socializaccedilatildeo do gosto que todos conhecemos Ningueacutem faz determinado prato igual a
nossa matildee ou avoacute [] (DOacuteRIA 2009 p195)
Em diversas famiacutelias de uma dada geraccedilatildeo o lsquobife agrave milanesa da voacutersquo eacute emblemaacutetico em
representar a explicaccedilatildeo do autor Ao que parece o prazer reside no preparo pela avoacute mais do
que no prato em si A avoacute de cada famiacutelia seria a responsaacutevel pelo melhor bife agrave milanesa do
mundo de acordo com os respectivos netos Essa percepccedilatildeo reflete o que Doacuteria menciona como
lsquoo caraacuteter afetivo da cozinha familiarrsquo termo que coincide com o papel da Voacute Magra
personagem da obra em estudo neste capiacutetulo Outra consideraccedilatildeo relevante do autor acerca da
construccedilatildeo do universo do gosto eacute a de que este ldquo[] eacute expressatildeo da educaccedilatildeo do paladar e dos
demais sentidos conformados culturalmente para a apreciaccedilatildeo do que comemosrdquo (DOacuteRIA 2009
p196)
Deste modo eacute possiacutevel compreender que aprendemos a gostar do que eacute aceitaacutevel em
determinado contexto social e cultural entretanto temos em primeiro lugar a percepccedilatildeo
bioloacutegica atraveacutes dos cinco sentidos do que devemos levar agrave boca e daquilo que eacute necessaacuterio
evitar em termos de manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Pela aparecircncia e pelo olfato por exemplo um
alimento pode parecer prazeroso e entatildeo adequado ou repulsivo se apresentar sinais de bolor ou
de alteraccedilatildeo de suas caracteriacutesticas conhecidas A respeito dessa avaliaccedilatildeo sobre o que eacute
agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos com fins de alimentaccedilatildeo Doacuteria refere
O gosto caminha em meio a essas preferecircncias e rejeiccedilotildees ajudando a erigir barreiras
que demarcam os limites de determinada cultura ou mesmo as variaccedilotildees individuais
nessa mesma cultura Alimentos tabus natildeo devem ser tocados ou consumidos Por isso
seu sabor eacute tambeacutem repulsivo Assim as sociedades constroem um anteparo que protege
a cultura daquilo que ela considera lsquonatureza hostil (DOacuteRIA 2009 p196)
63
Se de um lado o prazer eacute o elemento bioloacutegico que impulsiona o indiviacuteduo para a
preservaccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do alimento (e da espeacutecie atraveacutes da coacutepula) de outro as
escolhas que condicionam a sensaccedilatildeo prazerosa no campo alimentar ultrapassam a dimensatildeo
corpoacuterea atingindo em boa parte das vezes a esfera cultural atraveacutes da construccedilatildeo coletiva do
gosto O autor apresenta neste aspecto a seguinte reflexatildeo
Podemos imaginar o homem como uma maacutequina bioloacutegica que se relaciona
integralmente com o mundo de tal forma que todos os estiacutemulos que ele internaliza
afetam a totalidade dessa maacutequina O nosso conhecimento estaacute no tato na audiccedilatildeo na
visatildeo no olfato no paladar e tudo isso eacute processado natildeo apenas diretamente como
experiecircncia pessoal mas no acoplamento que mantemos com seres da mesma espeacutecie
(DOacuteRIA 2009 p197)
De acordo com essa exposiccedilatildeo podemos gostar daquele alimento que eacute aceitaacutevel em
nossa cultura e em nosso meio para assim continuarmos pertencendo ao grupo de que somos
parte contemplando a noccedilatildeo que o autor estabelece como o lsquoacoplamento que mantemos com
seres da mesma espeacuteciersquo Ao sentir prazer nos sentimos impelidos a comer algo porque nos
desperta a sensaccedilatildeo agradaacutevel essa experiecircncia eacute em primeiro plano instintiva quando o ldquo[]
elo entre prazerdesprazer se estabelece como base do fenocircmeno da aprendizagem e da aversatildeo a
um sabor a partir do risco que sinaliza para o organismordquo (DOacuteRIA 2009 p205)
Em segundo plano gostamos do que aprendemos que podemos gostar de acordo com a
cultura em que estamos inseridos Nesse contexto cabe ressaltar o fenocircmeno da
neuroplasticidade atraveacutes do qual o ceacuterebro se molda a partir das experiecircncias a que eacute exposto
de acordo com tal ocorrecircncia os mecanismos cerebrais aprendem a responder a determinado
estiacutemulo e criam um espaccedilo de resposta ao mesmo quanto mais vezes exposto a ele Isso pode
acontecer no aprendizado de uma competecircncia como tocar um instrumento musical falar um
idioma ou ateacute mesmo naquele de um novo paladar Aprendemos a gostar de um alimento o que
faz com que a sensaccedilatildeo agradaacutevel obtida ao comermos nos faccedila querer repetir seu consumo
Surge entatildeo a perspectiva do prazer em seu percurso do ponto de partida sauacutede para o
ponto de chegada doenccedila De acordo com Benazzi e Pelizza os mecanismos neurobioloacutegicos
responsaacuteveis pela gratificaccedilatildeo cerebral alimentam-se do prazer e quanto mais recebem mais
demandam que o organismo lhes forneccedila mais e mais sensaccedilotildees prazerosas Essa condiccedilatildeo
manifesta-se apenas em alguns indiviacuteduos cuja carga geneacutetica e aprendizagem cultural
favoreccedilam os comportamentos ditos compulsivos por exemplo Nas pessoas propensas a tal
64
expressatildeo isso ocorre sucessivamente motivo pelo qual o prazer alimentar pode ser natildeo mais um
aliado da sauacutede e da sobrevivecircncia mas sim um algoz a partir de determinado momento Esse
ponto eacute quando o comer se torna excessivo fornecendo de modo incessante e crescente a
gratificaccedilatildeo prazerosa aos mecanismos cerebrais de recompensa
Desfaz-se assim a noccedilatildeo de prazer apresentada por Jaspers anteriormente referida
Quando haacute aumento das sensaccedilotildees prazerosas para saciar a demanda dos centros cerebrais de
gratificaccedilatildeo e natildeo mais para que o prazer esteja calcado lsquono equiliacutebrio psiacutequico e no bem-estarrsquo
pode-se compreender que esse deixou de cumprir sua funccedilatildeo na sauacutede
Quando uma cultura em amplo espectro como a norte-americana aprende a sentir prazer
com a ingesta do fast-food e isso se transmite a outras culturas e ainda mais grave agraves geraccedilotildees
seguintes os problemas de sauacutede atingem dimensotildees catastroacuteficas Esse resultado jaacute eacute possiacutevel
constatar em nosso seacuteculo XXI Compreende-se assim que natildeo apenas o indiviacuteduo pode
adoecer mas a cultura tambeacutem pode adoecer Fortunadamente pensadores do campo da
alimentaccedilatildeo como Michael Pollan tecircm combatido de modo ferrenho essa tendecircncia como o faz
em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo salienta-se tambeacutem o italiano
Carlo Petrini que jaacute na deacutecada de 80 fundou a filosofia do slow food em oposiccedilatildeo ao haacutebito
determinado pelas cadeias de fast-food ao redor do mundo
Cada vez mais o slow food tem ganho espaccedilo na compreensatildeo contemporacircnea sobre o
comer com prazer com sauacutede e com lentidatildeo respeitando o tempo das refeiccedilotildees como um tempo
de interaccedilatildeo familiar e de consciecircncia do alimento que se ingere Referimos nesse sentido o
proacuteprio Pollan responsaacutevel pela defesa de que as famiacutelias voltem a comer em casa como
oportunidade de alimentaccedilatildeo saudaacutevel e de interaccedilatildeo entre os membros do grupo familiar
Entretanto as mudanccedilas causadas pela conscientizaccedilatildeo estatildeo apenas nos primeiros passos os
comportamentos alimentares insalubres ainda representam a maioria ao menos no ocidente As
patologias do prazer ocupam importante espaccedilo no campo das doenccedilas contemporacircneas em
termos psiacutequicos e em suas decorrecircncias fiacutesicas
Tanto a reduccedilatildeo quanto o aumento significativo de experiecircncias prazerosas podem levar agrave
ocorrecircncia de patologias nos acircmbitos fiacutesico e psiacutequico No artigo em estudo Psicopatologia do
prazer lecirc-se ldquoO ser humano frente agrave possibilidade de permitir-se prazeres em alguns casos
pode sentir-se impedido pela preocupaccedilatildeo pela desvalia e pela culpa relativa a eventuais
consequecircncias potencialmente danosas de suas accedilotildeesrdquo (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
65
Esses mesmos autores referem a existecircncia de uma porcentagem significativa de
indiviacuteduos capazes de experimentar sentimentos de baixa autoestima ou de culpa (leve e
transitoacuteria ou ao contraacuterio intensa e mantida) em relaccedilatildeo aos interesses e atividades que lhes
provocam prazer Tais emoccedilotildees desagradaacuteveis viriam em forma e em intensidade e representam
um relevante contraponto agrave sensaccedilatildeo prazerosa podendo inclusive inibir as experiecircncias futuras
de prazer A ausecircncia desse gera mais desvalia e culpa estresse crocircnico e sentimentos de
incapacidade impedindo com que novas vivecircncias potencialmente prazerosas aconteccedilam e assim
ocorre um ciclo com repercussotildees na sauacutede tanto em termos fiacutesicos quanto mentais Os autores
do artigo referem
[] de uma espeacutecie de estressor interno que tais indiviacuteduos transfeririam de uma
situaccedilatildeo a outra dessas circunstacircncias decorreriam entatildeo efeitos negativos sobre sua
sauacutede fiacutesica suas capacidades cognitivas (ex concentraccedilatildeo atenccedilatildeo memoacuteria) e em seu
funcionamento nos campos social e laboral cotidiano Seria possiacutevel referir que o
excesso de culpa ou desvalia determinaria uma condiccedilatildeo de estresse crocircnico capaz de
aumentar significativamente a secreccedilatildeo dos hormocircnios ligados ao estresse com
consequumlecircncias danosas agrave sauacutede fiacutesica e agrave mental (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
Ressaltamos que o contraacuterio tambeacutem ocorre Cabe refletir sobre o desejo exasperado e
absoluto de prazer levada a extremos como nas condiccedilotildees de transtornos alimentares (entre
esses a compulsatildeo alimentar) De acordo com tais autores quando ocorrer uma busca excessiva
de sensaccedilotildees prazerosas mesmo se houver a gratificaccedilatildeo desses prazeres haveraacute riscos para a
sauacutede do indiviacuteduo Nesse caso o prazer em excesso passaraacute a ser o responsaacutevel pelos
sentimentos de culpa desvalia depressatildeo ansiedade e descontrole de impulsos (PELIZZA
BENAZZI 2008)
O prazer em excesso no campo alimentar conduz muitas vezes ao aumento de peso
com prejuiacutezos agrave sauacutede Essas circunstacircncias podem acarretar uma forma de dor emocional
diretamente ligada ao prazer de comer como nos casos de indiviacuteduos que fazem dieta alimentar
por orientaccedilatildeo meacutedica Nesses a restriccedilatildeo imposta representa um importante sofrimento quando
se encontram em sobrepeso ou em condiccedilatildeo de obesidade moacuterbida A exigecircncia de restringir o
que lhes daacute prazer pode ser um motivo de transgressotildees da dieta O resultado eacute o natildeo
emagrecimento ou o engorde ainda maior A seguir vecircm a culpa a desvalia a tristeza e o
desacircnimo todos os antagonistas da sensaccedilatildeo prazerosa Para compensar as emoccedilotildees os
indiviacuteduos socorrem-se com a comida mantendo o ciacuterculo vicioso O equiliacutebrio preconizado por
Jaspers em sua perspectiva sobre o prazer natildeo eacute encontrado
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Em Por que sou gorda mamatildee o conflito da personagem com o impedimento ao prazer
alimentar estaacute presente em diversos trechos A narradora faz uma dolorosa e agraves vezes bem-
humorada recapitulaccedilatildeo de suas vivecircncias de prazer com a comida e de suas experiecircncias de
dieta de emagrecimento Satildeo narradas tambeacutem suas emoccedilotildees de desvalia e baixa autoestima por
vestir o adjetivo de gorda entretanto muito de sua insatisfaccedilatildeo estaacute no impedimento para comer
o que gosta o que lhe daacute prazer
Haacute uma visatildeo especiacutefica sobre o que eacute o prazer nos indiviacuteduos que apresentam
comportamentos anormais na procura por esta experiecircncia eles referem em diversas ocasiotildees a
percepccedilatildeo que tecircm sobre a comida na qualidade de fonte de prazer para algumas pessoas comer
eacute a uacutenica fonte de prazer possiacutevel Eacute comum referirem nas consultas meacutedicas lsquoou usufruo do
maacuteximo prazer ou natildeo sentirei nenhumrsquo ou lsquose natildeo puder comer todo o pote de sorvete natildeo
como mais nada Ou isto ou nada Me nego a fazer dietarsquo haacute ainda quem refira lsquonatildeo acredito
em dia livre dieta natildeo tem dia livre Isso eacute enganaccedilatildeo porque ningueacutem consegue voltar a comer
direito no outro diarsquo Essas frases demonstram padrotildees culturais de interpretaccedilatildeo do papel da
comida muitas vezes substitutivo de outras necessidades emocionais
Existindo maior resposta positiva aos prazeres aos quais o indiviacuteduo se dirige em
especial nas situaccedilotildees de excesso ocorreraacute ainda maior demanda por parte desses mecanismos
Como resultado surgem sintomas psiquiaacutetricos isolados ou em comorbidade decorrentes do
desequiliacutebrio gerado pela demanda excessiva Haacute ainda as decorrecircncias fiacutesicas de tal
desequiliacutebrio como a obesidade e as doenccedilas a ela associadas o diabetes a hipertensatildeo arterial e
a hipercolesterolemia entre outras Mais cedo ou mais tarde o corpo cobra sua conta dos
excessos quando se perpetuam
23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA
A fisiologia do gosto obra essencial na literatura gastronocircmica citada anteriormente foi
escrita por Jean Anthelme Brillhat-Savarin advogado e juiz francecircs (1755-1826) apaixonado
pelos prazeres da mesa O livro eacute composto por trinta capiacutetulos que o autor intitula lsquoMeditaccedilotildeesrsquo
e um uacuteltimo composto de variedades A fatia destinada agrave reflexatildeo sobre o prazer eacute a meditaccedilatildeo
14 lsquoDo prazer da mesarsquo Sobre a procura pelo prazer em termos gerais Brillat-Savarin refere
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O homem eacute incontestavelmente dos seres sensitivos que povoam nosso globo o que
experimenta mais sofrimentos A natureza o condenou primitivamente agrave dor pela nudez
de sua pele pela forma de seus peacutes pelo instinto de guerra e destruiccedilatildeo que acompanha
a espeacutecie humana onde quer que ela se encontre
Os animais natildeo foram atingidos por essa maldiccedilatildeo e sem alguns combates causados
pelo instinto de reproduccedilatildeo a dor no estado de natureza seria completamente
desconhecida da maior parte das espeacutecies ao passo que o homem que soacute encontra o
prazer passageiramente e por meio de um pequeno nuacutemero de oacutergatildeos estaacute sempre
exposto em todas as partes do corpo a terriacuteveis sofrimentos
Essa sentenccedila do destino foi agravada em sua execuccedilatildeo por uma seacuterie de doenccedilas
nascidas dos haacutebitos do estado social de modo que o prazer mais satisfatoacuterio que se
possa imaginar seja em intensidade seja em duraccedilatildeo eacute incapaz de compensar as dores
atrozes que acompanham certos distuacuterbios [hellip] Eacute o temor praacutetico da dor que faz o
homem sem se aperceber disso lanccedilar-se com iacutempeto na direccedilatildeo oposta entregando-se
ao pequeno nuacutemero de prazeres que herdou da natureza (BRILLAT-SAVARIN 1995
p167)
Brillat-Savarin aponta que o homem se atira ao prazer para fugir das dores inerentes agrave
espeacutecie Entretanto esse eacute apenas um dos elementos de compreensatildeo do prazer alimentar pois a
sensaccedilatildeo prazerosa decorre tambeacutem de outros fatores presentes em nossa fisiologia e psiquismo
a sociabilidade por exemplo eacute um desses componentes e estaacute envolvida no que o autor
estabelece como o prazer da mesa Ele refere no capiacutetulo lsquoO prazer da mesarsquo uma reflexatildeo
importante sobre a comensalidade a refeiccedilatildeo em conjunto ldquoFoi durante as refeiccedilotildees que devem
ter nascido ou se aperfeiccediloado nossas liacutenguas seja porque era uma ocasiatildeo de reuniatildeo que se
repetia seja porque o lazer que acompanha e segue a refeiccedilatildeo dispotildee naturalmente agrave confianccedila e agrave
loquacidaderdquo (BRILLAT-SAVARIN 1995 p168)
Brillat-Savarin faz uma diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer- relacionando-o agrave satisfaccedilatildeo
da fome atraveacutes do alimento como ocorre com os animais - e o prazer da mesa exclusivo agrave
espeacutecie humana De acordo com esse autor ldquo[] o prazer de comer exige se natildeo a fome ao
menos o apetite o prazer agrave mesa na maioria das vezes independe de ambosrdquo (BRILLAT-
SAVARIN 1995 p170) Esse uacuteltimo representa assim a sociabilidade o conviacutevio agradaacutevel
com aqueles com quem se divide uma refeiccedilatildeo Ainda sobre o prazer da mesa Brillat-Savarin
explicita
[hellip] natildeo comporta arrebatamentos nem ecircxtases nem transportes mas ganha em duraccedilatildeo
o que perde em intensidade e se distingue sobretudo pelo privileacutegio particular de nos
incliner a todos os outros prazeres ou pelo menos de nos consolar por sua perda Com
efeito apoacutes uma boa refeiccedilatildeo o corpo e a alma gozam de um bem-estar especial
Fisicamente ao mesmo tempo em que o ceacuterebro se revigora a face se anima e se colore
os olhos brilham um suave calor se espalha em todos os membros Moralmente o
espiacuterito se aguccedila a imaginaccedilatildeo se aquece os ditos espirituosos nascem e circulam [hellip]
Aliaacutes com frequumlecircncia temos em volta da mesa todas as modificaccedilotildees que a extrema
sociabilidade introduziu entre noacutes o amor a amizade os negoacutecios as especulaccedilotildees o
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poder as solicitaccedilotildees o protetorado a ambiccedilatildeo a intriga eis por que a convivialidade
tem a ver com tudo eis por que produz frutos de todos os sabores (BRILLAT-
SAVARIN 1995 p170-171)
O trecho acima transcrito expressa que os propoacutesitos para que o prazer da mesa fosse
atingido natildeo eram apenas a amizade e a intenccedilatildeo de conviacutevio entre as pessoas Eacute possiacutevel
verificar que havia tambeacutem entre os objetivos para a partilha das refeiccedilotildees o poder a ambiccedilatildeo e
outros aspectos distantes das alianccedilas de afeto A circunstacircncia do prazer da mesa criava uma
aproximaccedilatildeo maior entre os participantes de disputas poliacuteticas e administrativas favorecendo os
acordos pela ilusoacuteria sensaccedilatildeo de zelo e de alianccedila Nesse periacuteodo o prazer ainda natildeo era
percebido como finalidade e sim como instrumento para a aquisiccedilatildeo de benefiacutecios Segundo
Brillat-Savarin haacute quatro condiccedilotildees para que exista o prazer em uma refeiccedilatildeo
Chegamos portanto a tal progressatildeo alimentar que se os afazeres natildeo nos forccedilassem a
deixar a mesa ou se a necessidade do sono natildeo se interpusesse a duraccedilatildeo das refeiccedilotildees
seria praticamente indefinida e natildeo teriacuteamos nenhum dado certo para determinar o
tempo transcorrido desde o primeiro gole de madeira ateacute o ultimo copo de ponche [hellip]
Desfruta-se o prazer em quase toda sua extensatildeo toda vez que se reuacutenem as quatro
seguintes condiccedilotildees comida ao menos passaacutevel bom vinho comensais agradaacuteveis
tempo suficiente (BRILLAT-SAVARIN 1995 p172-173)
No livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo haacute explicaccedilotildees que muito se assemelham ao exposto
por Brillat-Savarin No capiacutetulo lsquoComer compromete refeiccedilotildees banquetes e festasrsquo o autor Gerd
Althoff expotildee elementos relevantes sobre o papel da refeiccedilatildeo na vida coletiva e social na Idade
Meacutedia
Durante a maior parte da Idade Meacutedia a refeiccedilatildeo e o banquete (convivium) constituiam
o mais eloquumlente siacutembolo de que se dispunha para para expresser o compromisso de
manter relaccedilotildees baseadas na paz e na concoacuterdia A palavra-chave nesse caso eacute
ldquocompromissordquo porque comer e beber junto era uma forma de obrigar-se a satisfazer as
condiccedilotildees que esse tipo de laccedilo implica [] (ALTHOFF 2015 p300)
Acordos e alianccedilas eram entatildeo estabelecidos em banquetes de longa duraccedilatildeo chamados
convivium A relaccedilatildeo de cumplicidade e de compromisso entre os indiviacuteduos estabelecida pela
existecircncia destes eventos natildeo foi por certo o iniacutecio do papel da refeiccedilatildeo partilhada como
elemento agregador entre as pessoas Haacute muitos periacuteodos da histoacuteria como exposto pelos vaacuterios
pesquisadores no livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo em que o comer junto assumiu papel essencial
na comunhatildeo dos membros de uma coletividade sendo a alegria e o prazer algumas das emoccedilotildees
presentes em vaacuterios desses periacuteodos
69
Quando Brillat-Savarin refere quatro condiccedilotildees para desfrutar-se o prazer em uma
refeiccedilatildeo uma dessas eacute que haja lsquocomensais agradaacuteveisrsquo Tal fato nos remete aos elementos da
alianccedila e da paz no conviacutevio entre aqueles que comiam juntos nos banquetes da Idade Meacutedia
mas remete principalmente ao elemento do prazer que aparece atraveacutes do termo lsquoagradaacuteveisrsquo O
prazer eacute um ingrediente necessaacuterio no estabelecimento dessa alianccedila pois propicia que os
indiviacuteduos se comprometam uns com os outros pelo bem-estar que o viacutenculo permite Tal
resultado propicia a constacircncia dessa ligaccedilatildeo importante tambeacutem do ponto de vista poliacutetico na
eacutepoca O bem-estar da refeiccedilatildeo partilhada era entatildeo um meio natildeo um fim era o recurso para a
manutenccedilatildeo da perenidade nas relaccedilotildees garantindo ldquo[] a disposiccedilatildeo de todos os participantes de
cumprirem os deveres dela decorrentesrdquo (ALTHOFF 2015 p309)
Ainda no que tange agrave ocasiatildeo do convivium ressalta-se a forma como as atividades
prazerosas eram proporcionadas com o propoacutesito de reforccedilar a ligaccedilatildeo entre os participantes
Era quase impensaacutevel passar vaacuterios dias natildeo fazendo outra coisa senatildeo comer beber e
trocar presentes mesmo que se atribua aos participantes um apetite e uma inclinaccedilatildeo
para a bebida for a do comum Isso explica que nossas fontes mencionem agraves vezes vaacuterias
atividades paralelas que se poderiam agrupar sob a denominaccedilatildeo de lsquodivertimentos
mundanosrsquo entre os quais os espetaacuteculos dados durante os convivial em que danccedilarinos
(ou danccedilarinas) muacutesicos ambulantes menestreacuteis e poetas distraiam os convivas A
sucessatildeo de pratos e bebidas interrompia-se tambeacutem para permitir aos participantes fazer
um pouco de exerciacutecio Tratava-se de jogos ou agraves vezes de animadas caccediladas
Certamente esses elementos do convivium tinham tambeacutem um valor simboacutelico Viver
algum tempo juntos em paz e partilhar certas atividades criava entre as pessoas o clima
de confianccedila necessaacuterio assegurava-se ao novo parceiro que se desejava a paz e que se
estava disposto a respeitaacute-la e firmava-se o compromisso de continuar a agir assim no
futuro (ALTHOFF 2015 p303)
Assim o prazer afirmava-se como elemento agregador de grande importacircncia na
permanecircncia de viacutenculos Entretanto a finalidade de tais viacutenculos natildeo se concentrava
propriamente no bem-estar em si entre os participantes mas nos benefiacutecios propiciados em
termos de propriedades poder administraccedilatildeo e outros fins de interesse material No convivium
o prazer era oferecido nas atividades de lsquodivertimento mundanorsquo Eacute possiacutevel compreender a
partir desse dado que o prazer da partilha no comer junto da Idade Meacutedia natildeo se aproximava do
prazer com o alimento ou a bebida per se mas com atividades paralelas de divertimento para
entreter os convivas durante os dias de banquete
O prazer entatildeo era ainda um elemento natildeo ligado ao comer pelo sabor da comida assim
como as alianccedilas eram vaacutelidas pelos benefiacutecios que alicerccedilavam natildeo por sua importacircncia para o
bem viver entre os membros de uma coletividade De acordo com Gerd Althoff as relaccedilotildees entre
70
os indiviacuteduos e os costumes como o comer e o beber junto eram de grande importacircncia para a
realidade medieval
Todas as culturas arcaicas recorriam a este meacutetodo para unir uma comunidade
Entretanto os efeitos da refeiccedilatildeo natildeo derivam dela proacutepria De fato na Idade Meacutedia a
refeiccedilatildeo o banquete e a festa serviam para exteriorizar atos administrativos rituais e
portanto convenccedilotildees que serviam para veicular um sentido bem determinado de modo
constrangedor e coercitivo (ALTHOFF 2015 p309)
No capiacutetulo de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo lsquoTempero cozinha e dieteacutetica nos seacuteculos XIV
XV e XVIrsquo haacute relevantes esclarecimentos sobre o papel do prazer no comer e sua importacircncia
para a sauacutede Um dos pontos referidos por seu autor quanto ao papel do uso dos temperos e do
cozinhar os alimentos estaacute relacionado tambeacutem ao prazer alimentar ldquoDe uma maneira geral
todo tempero e todo cozimento ou seja toda cozinha tinha uma dupla funccedilatildeo tornar os
alimentos ao mesmo tempo mais apetitosos saborosos e mais faacuteceis de digerirrdquo (FLANDRIN
2015 p482)
Deste modo falar no prazer de comer torna-se parte da perspectiva histoacuterica desse
periacuteodo quando as especiarias estatildeo no auge de seu reconhecimento Flandrin refere que os
seacuteculos XIV XV e XVI foram o aacutepice de seu papel na cozinha europeacuteia quando esses
ingredientes tinham tambeacutem valor terapecircutico Natildeo se pode referir que o prazer atraveacutes da
comida tenha iniciado nesse periacuteodo histoacuterico mas eacute possiacutevel compreender que esse periacuteodo foi o
iniacutecio do falar em prazer como aspecto favoraacutevel agrave digestatildeo Havia uma aproximaccedilatildeo entre a
gastronomia e a dieteacutetica conforme Jean-Louis Flandrin sugerida no trecho ldquoAos dietistas
interessava o gosto dos alimentos por diversas razotildees Em primeiro lugar porque se digere
melhor aquilo que se come com prazer-como acreditamos ateacute hojerdquo (FLANDRIN 2015 p486)
Compreender o prazer como elemento presente na alimentaccedilatildeo torna-o tambeacutem parte da
sauacutede e do bem-estar do ser humano Esta perspectiva remete ao estabelecido por Karl Jaspers
sobre o prazer Este fenocircmeno seria equivalente agrave satisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas
funccedilotildees orgacircnicas com resultados no equiliacutebrio psiacutequico na percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e no bem-
estar do indiviacuteduo Desse modo ao ler o historiador Jean-Louis Flandrin confirma-se o papel do
prazer na lsquosatisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees orgacircnicasrsquo na concepccedilatildeo do
psicopatologista Jaspers Flandrin conclui o capiacutetulo com a seguinte reflexatildeo
Em resumo cozinhar agravequela eacutepoca assim como hoje era dar aos alimentos os sabores
mais agradaacuteveis- mas agradaacuteveis no acircmbito de uma determinada cultura para um gosto
71
diferente do nosso porque modelado por outras crenccedilas dieteacuteticas outros haacutebitos
alimentares (FLANDRIN 2015 p495)
Falar no prazer de comer entatildeo remete a Karl Jaspers pela concepccedilatildeo meacutedica do prazer
mas tambeacutem a Brillat-Savarin em sua diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer e o prazer da mesa
Para o escritor de A fisiologia do gosto o primeiro eacute de ordem bioloacutegica a meu ver menos ligado
agrave sensaccedilatildeo prazerosa ligada ao sabor e mais associada ao mero saciar da fome o segundo
exclusivo da espeacutecie humana eacute vinculado agrave experiecircncia de conviacutevio agradaacutevel com os comensais
na partilha de uma refeiccedilatildeo
A abordagem da dualidade entre gastronomia e dieteacutetica apontada por Jean-Louis
Flandrin eacute semelhante agravequela da dualidade apontada por Brillat-Savarin o prazer de comer e o
prazer da mesa Talvez essas divisotildees tivessem o propoacutesito de partir o indiviacuteduo em duas
metades a do corpo e a da mente A metade que se satisfaz com o saciar da fome seria entatildeo
diferente da que se apraz da companhia dos amigos agrave mesa A metade que preparava as receitas
pela gastronomia em fins da Idade Meacutedia seria diversa da que seguia as ordens da dieteacutetica
Nesse sentido a visatildeo de Jaspers sobre o prazer eacute a mais completa pois integra a satisfaccedilatildeo
harmocircnica e ordenada das funccedilotildees orgacircnicas ao equiliacutebrio psiacutequico agrave percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e
ao bem-estar do indiviacuteduo
Considerando o prazer alimentar entatildeo como elemento que envolve o corpo e a mente
do saciar agrave fome ao satisfazer o prazer gustativo e social surgem dois novos termos a gula e o
bom gosto
Os seacuteculos XVII e XVIII trouxeram mudanccedilas na relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com o prazer do
gosto Enquanto na Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVII a alimentaccedilatildeo das elites aproximava-
se muito de perto das prescriccedilotildees dos meacutedicos o que se seguiu a partir de entatildeo foi o apagamento
das referecircncias agrave antiga dieteacutetica dando lugar entre cozinheiros e gastrocircnomos agrave harmonia dos
sabores como prioridade Ficou relegado a segundo plano o aspecto de que ldquo[] os sabores eram
ateacute entatildeo ligados tanto a eles como aos meacutedicos sabiamente classificados do mais frio ao mais
quente eles constiuiacuteam uma indicaccedilatildeo segura da natureza dos alimentos e sua digestibilidaderdquo
(FLANDRIN MONTANARI 2015 p548) Um resultado interessante da separaccedilatildeo progressiva
entre cozinha e dieteacutetica foi uma permissatildeo para a gulodice conforme o registro de Histoacuteria da
alimentaccedilatildeo
72
Os refinamentos da cozinha natildeo visam mais manter a boa sauacutede das pessoas mas
satisfazer o gosto dos glutotildees Com uma pequena diferenccedila estes ainda natildeo se
reconhecem como tais e se apresentam como pessoas de paladar apurado apreciadores
de iguarias e peritos na arte de reconhececirc-las (FLANDRIN MONTANARI 2015
p549)
Com o avanccedilo das descobertas e das criaccedilotildees dos cozinheiros e gastrocircnomos o prazer
com os alimentos reveste-se de nova importacircncia a gula Comer torna-se sinocircnimo nesse
contexto de desfrutar do sabor da comida o que muitas vezes eacute partilhado com amigos Para
Brillat-Savarin seria a uniatildeo do prazer de comer e do prazer da mesa O gosto como sentido
fisioloacutegico assume nova representaccedilatildeo eleva-se agrave categoria de bom-gosto com aplicaccedilotildees para
aleacutem dos campos da cozinha De acordo ainda com os organizadores de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo
Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari
O gosto esse sentido de que a natureza dotou o homem e os animais para discernirem o
comestiacutevel do natildeo-comestiacutevel sofreu alias em meados do seacuteculo XVII uma estranha
valorizaccedilatildeo fala-se dele a partir daiacute em sentido figurado a propoacutesito de literature
escultura pintura muacutesica mobiliaacuterio vestuaacuterio etc Em todos esses domiacutenios eacute ele que
permite distinguumlir o bom do ruim o belo do feio eacute o oacutergatildeo caracteriacutestico do lsquohomem de
gostorsquo um dos avatares do homem perfeito Ora essa valorizaccedilatildeo implica uma certa
toleracircncia para com os glutotildees (FLANDRIN MONTANARI 2015 p549)
Bom-gosto gula e prazer satildeo termos que se referem a uma semacircntica do deleite da
experiecircncia gustativa produzida nas cozinhas da eacutepoca com iniacutecio no seacuteculo XVII O indiviacuteduo
comeccedila a perceber a possibilidade de extrair da comida uma espeacutecie de luxuacuteria traduzida pela
gulodice Ele desfruta do sabor do alimento como se estivesse em um climax eis o glutatildeo
Enquanto na alta Idade Meacutedia o prazer nos banquetes vinha das atividades paralelas e seu
propoacutesito natildeo era a experiecircncia prazerosa per se mas a alianccedila e a realizaccedilatildeo de objetivos que
dela resultavam a partir desse seacuteculo o prazer reveste-se de importacircncia nos campos de forno-e-
fogatildeo
Dane-se a dieteacutetica talvez pensassem os sujeitos Gula e prazer eram expressotildees que a
boa comida despertava usufruiacutea deles quem tinha bom-gosto Nascia entatildeo um grupo de
pessoas com os pomposos tiacutetulos de lsquogourmetsrsquo e lsquogastrocircnomosrsquo seguida do surgimento e da
expansatildeo de sua literatura apropriada os tratados de cozinha Um novo modo de vivenciar o
alimento tornava-se cada vez mais abundante Houve um significativo movimento gerado pelo
gosto alimentar ldquoA multiplicaccedilatildeo das artes ligadas agrave alimentaccedilatildeo e das obras teacutecnicas que tratam
delas foi acompanhada sob formas diversas de escritos que fazem a apologia do prazer de comer
e ateacute da glutonaria e da embriaguezrdquo (FLANDRIN MONTANARI 2015 p551)
73
Entretanto tal vivecircncia jaacute existia em menor expressatildeo na Itaacutelia do Quatrocentos Conta-
se que ldquoPlatinardquo o humanista Bartolomeo Sacchi teve relevante papel no prazer de comer no
referido periacuteodo com seu De honesta voluptate
Natildeo soacute este natildeo eacute cozinheiro nem meacutedico [hellip] mas mistura agrave sua documentaccedilatildeo
culinaacuteria e dieteacutetica a lembranccedila nostaacutelgicada alegria que seus amigos e ele
experimentavam ao saborear este ou aquele prato de mestre Martino o grande
cozinheiro romano de meados do seacuteculo acima de tudo ele utiliza isso para defender o
honesto prazer de saborear uma cozinha ao mesmo tempo simples e refinada prazer que
poderiacuteamos hoje classificar como o de um glutatildeo (FLANDRIN MONTANARI 2015
p552)
Por que na eacutepoca de Platina e entatildeo nos seacuteculos XVII e XVIII de efervescecircncia dos
gourmets ou mesmo em nosso seacuteculo XXI a sensaccedilatildeo prazerosa provocada pelo alimento eacute tatildeo
semelhante em sujeitos tatildeo diversos Pelo fato de que o prazer eacute inerente agrave experiecircncia humana
A definiccedilatildeo dada por Jaspers agrave sensaccedilatildeo prazerosa une aspectos da percepccedilatildeo fiacutesica e da
experiecircncia mental integradas Com base em sua definiccedilatildeo e considerando o acima exposto
sobre os termos gula prazer e bom-gosto ocorre a pergunta por que tantos sujeitos de diferentes
eacutepocas vivenciaram o prazer associado agrave comida em especial quando essa assumiu uma
conotaccedilatildeo de importacircncia com o iniacutecio da Gastronomia um termo cognitivo Recorremos a uma
possiacutevel explicaccedilatildeo neurocientiacutefica para esse questionamento a hipoacutetese do ceacuterebro triuno que
abrange a experiecircncia prazerosa como elemento exclusivo do ser humano
A referida hipoacutetese foi proposta pelo meacutedico e neurocientista americano Paul MacLean
em 1970 Segundo tal autor somos compostos grosso modo por trecircs ceacuterebros que trabalham em
colaboraccedilatildeo embora oriundos de diferentes etapas da evoluccedilatildeo das espeacutecies Assim nos
mamiacuteferos superiores existe uma hierarquia de trecircs ceacuterebros em um soacute daiacute o termo triuno De
acordo com a teoria os trecircs operam com diferentes graus de complexidade mas orquestram o
funcionamento humano de forma conjunta O ceacuterebro reptiliano presente desde os reacutepteis ou
arquicoacutertex seria o mais primitivo responsaacutevel pelas questotildees de sobrevivecircncia bioloacutegica como
alimentaccedilatildeo reproduccedilatildeo proteccedilatildeo etc A seguir em termos evolucionistas viria o ceacuterebro
liacutembico ou paleocoacutertex responsaacutevel pela elaboraccedilatildeo das emoccedilotildees como apetite medo raiva
etc presente desde as aves O terceiro e entatildeo o mais evoluiacutedo seria o neocortex responsaacutevel
pela elaboraccedilatildeo dos pensamentos e dos sentimentos e exclusivamente humano
Transpondo essa teoria para o campo alimentar podemos referir o ceacuterebro reptiliano
como responsaacutevel pela fome enquanto o liacutembico seria responsaacutevel pelo desejo por essa ou aquela
74
comida especiacutefica O neocortex viria ao final para dar significado ao que comemos atraveacutes da
compreensatildeo das emoccedilotildees da relaccedilatildeo entre a memoacuteria e o alimento e da atribuiccedilatildeo de conceitos
cognitivos como a noccedilatildeo de bom-gosto No campo gastronocircmico seria possiacutevel entender a
cooperaccedilatildeo dos trecircs ceacuterebros como uma integraccedilatildeo que tem como resultado o prazer de saborear
este ou aquele quitute Saboreamos porque temos fome porque algo nos apetece e nos desperta
desejo por fim porque aprendemos do ponto de vista cognitivo que gostar daquele alimento eacute
permitido e em alguns casos eacute valoroso pois nos torna pertencentes a um grupo como o dos
glutotildees e gourmets Se comer tal alimento for prazeroso isto significa que nossos trecircs ceacuterebros
foram atendidos e estatildeo trabalhando em conjunto Mais uma vez o bem-estar do corpo de da
mente referido por Jaspers
Compreender o prazer que existe como expressatildeo fiacutesica emocional e mental nos
possibilita entender por que esse tambeacutem pode estar associado a patologias nos mesmos
domiacutenios A explicaccedilatildeo estaacute no fato de que para vivenciar esse complexo fenocircmeno eacute preciso
que sejamos humanos e que nossos trecircs ceacuterebros operem em orquestra vulneraacuteveis agraves
experiecircncias positivas ou negativas inexoraacuteveis
24 O PRAZER DA COMIDA
A partir da constataccedilatildeo do engorde e da dieta orientada pelo meacutedico a protagonista de
Por que sou gorda mamatildee lsquopassa a vida a limporsquo em sua memoacuteria Com o propoacutesito de
compreender o porquecirc de seu engorde escreve uma carta para a matildee em trechos ora
confessionais ora acusatoacuterios esperando na correspondecircncia construir para si a resposta ao
longo das lembranccedilas que evoca
O balanccedilo entre o passado e o presente alinha a compreensatildeo sobre o papel dos trajetos de
vida desde a infacircncia no quadro atual de sauacutede Os vinte e dois quilos ou cento e dez tabletes de
manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha satildeo o resultado dos sofrimentos que vivenciou
do afeto que natildeo recebeu e da comida que devorou A dor emocional eacute de fato sua mas talvez
seja tambeacutem heranccedila da Voacute Gorda da Voacute Magra do pai e da matildee Nas histoacuterias entrelaccediladas lecirc-
se uma pesada bagagem de dores ancestrais
Atraveacutes da intersecccedilatildeo entre as vivecircncias eacute possiacutevel ler na obra trecircs tempos
predominantes com fronteiras tecircnues entre si aquele dos antepassados que a protagonista
75
conhece por ouvir contar o tempo da infacircncia que ela narra pelas recordaccedilotildees e o tempo
presente da dieta que provoca as idas e vindas da narrativa a fim de descobrir as causas de seu
aumento de peso As fronteiras satildeo tecircnues pois os trecircs tempos embora diversos no calendaacuterio
misturam-se na personagem ora como lembranccedila ora como reflexatildeo No percurso da obra o
elemento que liga as histoacuterias eacute na maioria das vezes a sensaccedilatildeo prazerosa com a comida
mesmo quando a referecircncia aponta para o contraacuterio sentimentos de culpa pela obesidade e de
revolta pela restriccedilatildeo alimentar
Haacute uma ligaccedilatildeo natural entre o comer e o prazer para aleacutem da rima Desde a
amamentaccedilatildeo a chegada do leite materno eacute acompanhada pelo contato de afeto da matildee com o
bebecirc e pela experiecircncia de prazer fiacutesico associada agrave succcedilatildeo Assim alimento viacutenculo afetivo e
prazer satildeo parte de nossas primeiras memoacuterias e podem permanecer como o tripeacute que daraacute
suporte a muitos de nossos padrotildees de comportamento ao longo da vida Esse tripeacute contudo
pode desestabilizar-se caso haja preponderacircncia de um dos componentes gerando experiecircncias
de sofrimento associadas a tal desequiliacutebrio
A referida situaccedilatildeo aliaacutes estaacute muito bem expressa nessa obra na qual a vivecircncia da
personagem frente ao engordar mostra o quanto o comer em sua vida ocupou muitas vezes os
espaccedilos de amor e de seguranccedila deixados vazios pela ausecircncia desse afeto Sobretudo por parte
dessa matildee o proacuteprio tiacutetulo do livro dirigido a ela sugere que seja vista como culpada pelo
processo de engorde da personagem Em diversas passagens da obra a comida eacute citada como
abundante enquanto a expressatildeo das emoccedilotildees eacute percebida como escassa
Encontramos a posteridade dentro da fartura pela qual devemos agradecer todos os dias
e da qual ainda hoje devemos nos afastar por forccedila da geneacutetica O excesso de comida o
excesso de zelo o excesso dos excessos tudo ficou em noacutes como lembranccedila e como
estoque de uma espeacutecie de amor do qual ainda hoje nos valemos quando o amor falta
minguado (MOSCOVICH 2006 p220)
A vivecircncia do prazer da comida eacute apresentada em diversos fragmentos tanto associados agrave
narradora quanto agrave sua matildee a quem dirige as reflexotildees sua Voacute Magra seu pai e seus irmatildeos
Uma das passagens mais ilustrativas do papel desempenhado pela sensaccedilatildeo prazerosa nesta
narrativa estaacute no trecho de uma viagem O que as personagens experimentam nesta cena parece
muito proacuteximo ao lsquohonesto prazerrsquo referido por Platina mencionado anteriormente Lembrando
de uma viagem em famiacutelia durante um percurso ao Uruguai a protagonista remonta um
momento em que sua matildee ela e os irmatildeos lambuzavam-se com doces no carro
76
[hellip] A senhora de repente deu ordem expressa para que o pai estacionasse ali naquele
ponto bem na frente daquela confeitaria a Carrero O carro nem bem tinha parado nem
bem nossos protestos se haviam esvaiacutedo com a agilidade de seu movimento e a senhora
jaacute entrava na Carrero atraveacutes da porta de vidro porta muito pesada em sua fidalguia de
anos servindo o fino paladar uruguaio Porta que a senhora cruzou duas vezes em toda
sua vida - aquela era a segunda
Ficamos ali os quatro com os narizes achatados de curiosidade contra as janelas do
Ford Natildeo demorou nem bem cinco minutos e a senhora logo apareceu com trecircs garrafas
de Crush de laranja em uma das matildeos e na outra uma bandeja de doces - e me lembro
que o pai soltou uma gargalhada e sacudiu a cabeccedila num gesto de anuecircncia
Os doces foram devorados com seu incentivo feliz as garrafas passavam de matildeo em
matildeo limpava-se a boca com guardanapinhos de papel ou com a manga do casaco A
senhora se empanturrou e nos empanturrou Ningueacutem deu muita bola para os farelos de
massa folhada e para as manchas de doce de leite que ficaram melecando o estofamento
ateacute que voltaacutessemos para casa trecircs dias depois (MOSCOVICH 2006 p72)
Esta eacute a uacutenica cena de prazer compartilhado entre a narradora os irmatildeos e a matildee Eacute a
uacutenica cena tambeacutem em que a matildee aparece permitindo-se o deleite com algazarra com alegria
desfrutando do saborear em famiacutelia os doces da confeitaria A personagem refere que a matildee
cruzara a porta do estabelecimento duas vezes na vida e aquela era a segunda Haacute uma referecircncia
indireta aqui agrave escassa permissatildeo em sua matildee para esse tipo de prazer com farelos e doce de
leite espalhado Uma permissatildeo a si mesma de lambuzar-se com o prazer de partilhar o doce o
afeto a brincadeira O lsquohonesto prazerrsquo de Platina que misturava agrave sensaccedilatildeo prazerosa quem
sabe a alegria entre as pessoas Essa eacute a emoccedilatildeo que habita a cena e natildeo somente a gula pelos
doces
A matildee aparece protagonizando outras duas cenas de prazer alimentar ambas associadas a
uma condiccedilatildeo de sauacutede para a qual precisou fazer um cateterismo Entretanto a sensaccedilatildeo
prazerosa eacute expressa como experiecircncia de permissatildeo individual e natildeo partilhada com a famiacutelia
como no deleite dos doces e do refrigerante no carro A narradora conta sua lembranccedila sobre os
dois episoacutedios vividos pela matildee o primeiro antes do procedimento o segundo apoacutes
Naquela noite depois da cintilografia a senhora devorou meio quilo de patildeo com
manteiga um bule de cafeacute e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Disse que jaacute que
ia morrer comeria o que lhe desse na veneta (MOSCOVICH 2006 p119)
Jaacute em casa a senhora voltou ao tempo do seu rosto e apesar da ferida aberta na virilha
tornou-se de novo uma avoacute E o mais gracioso foi que naquela noite devorou meio
quilo de patildeo com manteiga uns cem gramas de mortadela um pote com azeitonas
pretas e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Me disse que jaacute que natildeo ia morrer
comeria o que lhe desse na telha (MOSCOVICH 2066 p124)
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Compreende-se como o prazer de comer estaacute vinculado a uma justificativa aceitaacutevel em
uma e em outra ocasiatildeo lsquojaacute que ia morrerrsquo e lsquojaacute que natildeo ia morrerrsquo Natildeo haacute uma vivecircncia da
sensaccedilatildeo prazerosa experimentada pela matildee nesses casos sem uma razatildeo que fundamente a
permissatildeo Outro ponto a salientar estaacute nas frases lsquocomeria o que lhe desse na venetarsquo e lsquocomeria
o que lhe desse na telharsquo em que lsquodar na venetarsquo e lsquodar na telharsquo fazem alusatildeo agrave satisfazer a
vontade o impulso da hora expressotildees ligadas ao prazer Os fragmentos apresentados fornecem
dados para que se possa compreender que na personagem da matildee esse prazer do ldquodar na venetardquo
soacute poderia ser permitido se associado a uma razatildeo muito forte como a possibilidade de ela
morrer no procedimento
Aleacutem das questotildees psiacutequicas da ligaccedilatildeo entre cozinha e prazer existe a influecircncia da
cultura presente nas famiacutelias de acordo com a relaccedilatildeo que seus antepassados estabeleciam com a
comida com o prazer e com os viacutenculos Eacute possiacutevel aprender que um alimento eacute saboroso ou
condenado porque essa informaccedilatildeo passa de uma geraccedilatildeo agrave outra natildeo como uma carga geneacutetica
mas como uma transmissatildeo de aprendizado cultural O que eacute transmitido ao grupo familiar eacute
dependente do significado da comida para os diferentes povos Dentro das famiacutelias haacute tambeacutem
coacutedigos representados pelo alimento muitas vezes compartilhados pelos membros como
acontece entre a protagonista e sua Voacute Magra
Eu imitei a voacute fiz ach e dei um tapinha no ar Natildeo tinha mesmo importacircncia nenhuma
Noacutes duas comeccedilamos a rir De matildeos dadas fomos ateacute a cozinha buscar algo com
bastante accediluacutecar para comer Doces nos deixavam fortes e felizes
Como diz mais um velho ditado avoacutes e netos se datildeo bem porque tecircm um inimigo em
comum (MOSCOVICH 2006 p99)
O episoacutedio refere-se ao conflito entre sua matildee e a Voacute Magra avoacute materna e a
protagonista posiciona-se a favor da avoacute partilhando com ela o prazer de lsquobuscar algo com
bastante accediluacutecar pra comerrsquo Existe clara cumplicidade com a avoacute expressa na frase lsquoDoces nos
deixavam fortes e felizesrsquo Essa mesma comunhatildeo eacute demonstrada nos trechos sobre os passeios
que elas faziam juntas quando a Voacute Magra a levava consigo nas andanccedilas ao centro para vender
roupas na infacircncia da narradora
Ela bem gostava daquela funccedilatildeo ou ao menos aparentava gostar e se aparentava fingia
muito bem Depois de uma boa venda saiacutea exibindo um ar glorioso e altaneiro uma
conquistadora que avanccedila sobre terra remota e me puxando pela matildeo me punha diante
de um copo de guaranaacute- o copo que ela inspecionava muito bem e submetia ao processo
de assepsia com o lencinho- uma garrafa de refrigerante e um mil folhas partido ao meio
davam bem para noacutes duas Tatildeo bem que nem fazia falta a outra metade
78
O que eu aprendi com vovoacute foi bastante aleacutem do que pretendia papai Ela natildeo queria me
mostrar como se ganhava o patildeo natildeo tinha interesse em expor a neta a sofrimento algum
O que a voacute queria mesmo com aquelas excursotildees era a farra de dividir comigo um doce e
um refrigerante a gente se refestelando com creme de confeiteiro Ela pagou com
antecipaccedilatildeo aquelas pequenas felicidades coisa que ela mais amava no mundo
(MOSCOVICH 2006 p91-92)
Para a protagonista e sua Voacute Magra esses passeios representavam mais do que a
oportunidade de saborearem o mil folhas eram a chance de partilharem juntas o prazer de um
coacutedigo que comungavam o sabor doce Ao ler-se as passagens desta avoacute com ela e com seus
irmatildeos ao longo da obra compreende-se que este sabor doce eacute com nitidez o afeto partilhado
entre a Voacute Magra e os netos Para a avoacute o deleite com a comida tem raiacutezes culturais e vivenciais
O livro aponta a fome ancestral como possiacutevel razatildeo de seu prazer com a comida Jaacute no
capiacutetulo um ela apresenta sua Voacute Magra importante referencial em sua histoacuteria com o papel da
comida e com o engorde A obra comeccedila pelo cerne do significado da comida para a famiacutelia a
fome Essa vivecircncia eacute elemento relevante na histoacuteria familiar da protagonista A fim de
corroborar o papel da fome na dimensatildeo que cozinha ocupa na literatura judaica vale apresentar
a contribuiccedilatildeo de Ana Maria Shua em sua obra Risos e emoccedilotildees da cozinha judaica
A comida ocupa um lugar importante na literatura judaica Seguramente porque ocupa
um lugar importante na vida judaica na vida material e tambeacutem por razotildees religiosas
na vida espiritual Acima de tudo os judeus da Europa Oriental tendiam a contar com o
uacutenico adereccedilo capaz de converter em excelente qualquer comida para qualquer paladar a
fome Natildeo chama a atenccedilatildeo desse modo que o tema da comida apareccedila uma e outra vez
entre os sempre famintos personagens de sua literatura (SHUA 2016 p113)
O entendimento da comida como milagre aponta o poder que lhe era atribuiacutedo pela Voacute
Magra conforme narra a protagonista
Para quem vem de uma famiacutelia que nos miseraacuteveis e congelados vilarejos judeus da
Europa passou fome de comer soacute repolho ou soacute batata para a qual naqueles shtetels
carne era uma abstraccedilatildeo que os dentes nem conheceram e que se acostumou a aplacar o
oco do estocircmago com sopa de beterraba ou com aquele mameligue que nada mais era
do que um mingau meio insosso de farinha de milho e aacutegua a obsessatildeo por comida nada
tem ou nada deveria ter de extraordinaacuterio Vovoacute Magra assim como todas as avoacutes
acreditava que a comida era um milagre capaz de moldar crianccedilas em adultos um
homem eacute o peso daquilo que come uma boa refeiccedilatildeo vale a prece por um dia a mais de
vida
O caso era que diante de um prato de comida Vovoacute Magra parecia encontrar o sentido
da existecircncia (MOSCOVICH 2006 p21)
A comida era milagre e sentido da existecircncia para sua avoacute de acordo com a protagonista
entretanto vai aleacutem mostrando a voracidade o apetite o prazer afoito com que aquela comia O
79
aspecto interessante foi a narradora referir-se ao termo lsquodesesperorsquo que denota uma espeacutecie de
sofrimento A avoacute sentiu tanta fome que quando pocircde comer tornou o alimento a resposta para
todas as faltas mesmo as futuras A comida era um modo de prevenccedilatildeo contra a fome que ela
pudesse vir a passar novamente
E comia comia comia
Comia ovos duros comia coalhada comia milho comia carne comia saladas comia
frutas- especialmente laranjas-do-ceacuteu que docinhas natildeo espicaccedilavam o paladar ao
contraacuterio do azedo das laranjas-de-umbigo que ela tambeacutem comia Comia tanto que se
via nela um desespero E de tanto passer fome decerto vovoacute por mais que comesse e se
fartasse natildeo engordava Cinturinha fina seios achatados quadric estreitos heranccedila que
a senhora mamatildee abocanhou e que natildeo me deu
Da vovoacute soacute herdei o apetite ancestral o mesmo que a senhora herdou (MOSCOVICH
2006 p21-23)
O apetite eacute capaz de promover a antecipaccedilatildeo do prazer pela lembranccedila e pelo desejo de
comer determinado alimento aleacutem de estimular a repeticcedilatildeo do que satisfaz pela gratificaccedilatildeo que
o ceacuterebro registra Se tal prato eacute saboroso e lhe apetece o indiviacuteduo vai buscaacute-lo de novo e assim
sucessivamente Por isso a Voacutevoacute Magra lsquocomia comia comiarsquo e lsquocomia tanto que se via nela um
desesperorsquo Entatildeo quando a narradora comeccedila a passagem falando em fome e a conclui
referindo-se ao lsquoapetite ancestralrsquo estaacute dizendo que em sua avoacute a fome transformou-se no prazer
pela comida
Ainda assim havia respeito agraves proibiccedilotildees religiosas ligadas agrave tradiccedilatildeo culinaacuteria judaica A
narradora descreve sobre os haacutebitos alimentares da Voacute Magra ldquoExceto por carne de porco ou
mariscos e outras coisas gosmentas vindas da aacutegua ndash alimentos que a Lei considera impuros e
que portanto eram iguais agrave pedra que se interdita levar agrave boca ndash natildeo havia comida que ela
desprezasserdquo (MOSCOVICH 2006 p21-23)
Entatildeo embora houvesse o respeito agraves restriccedilotildees impostas havia tambeacutem o prazer com os
alimentos permitidos fossem ou natildeo pertencentes agrave culinaacuteria tradicional judaica Eacute neste ponto
que se aproximam os textos da ficccedilatildeo e da teoria fontes de estudo no presente capiacutetulo Natildeo se
nega que haja a proibiccedilatildeo a certos alimentos aspecto em que a obra de Ciacutentia Moscovich foi fiel
agrave cultura culinaacuteria judaica mas a mesma tambeacutem problematizou o espaccedilo de prazer existente na
cozinha de sua tradiccedilatildeo
Outro elemento relevante na anaacutelise da passagem acima eacute o que a narradora refere quando
menciona ter herdado de sua avoacute apenas o lsquoapetite ancestralrsquo Nesse ponto da narrativa atribui
agraves raiacutezes familiares seu gosto pela comida Eacute significativo que a narradora comece o texto falando
80
sobre a fome e o encerre usando o termo apetite pois se pode pensar na fome como uma
necessidade bioloacutegica do corpo que natildeo difere um alimento de outro O propoacutesito da fome eacute ser
saciada No que tange ao apetite pode-se pensar no apetite por algo o que o torna mais
especiacutefico agraves preferecircncias alimentares e desse modo mais proacuteximo ao prazer Foi o que Voacute
Magra descobriu
Eacute visiacutevel seu gosto por essa ou aquela comida sua profunda sensaccedilatildeo prazerosa com
ingredientes e pratos tiacutepicos Natildeo os escolhe apenas para saciar a fome deseja isso sim
satisfazer o apetite deleitar-se Com todas as restriccedilotildees que a tradiccedilatildeo impunha descobriu no
alimento fonte de prazer e com os netos de expressatildeo afetiva Havia tambeacutem um sentido de
aproveitar do alimento tudo o que ele poderia oferecer natildeo desperdiccedilando nada de sua
substacircncia Mesmo com o propoacutesito desse aproveitamento dedicava-se a fazer comidas e doces
saborosos como a narradora lembra no trecho abaixo
E havia aquele creme de laranja que era uma nuvem accedilucarada de sabor contrastante
um nada azedinho rompendo o doce dava ateacute um arrepio Era o jeito de a voacute aproveitar
as frutas que sobravam no mercado Natildeo se pode desperdiccedilar sumo algum mesmo que
as frutas despenquem podres no meio das sobras (MOSCOVICH 2006 p94)
O trecho expressa o fazer culinaacuterio de um doce que deixou lembranccedilas sensoriais na
protagonista expressas por termos como lsquonuvem accedilucarada de sabor contrastantersquo lsquoum nada
azedinho rompendo o docersquo e sobretudo a revelaccedilatildeo de que lsquodava ateacute um arrepiorsquo Entretanto as
escolhas alimentares na cultura judaica natildeo teriam por princiacutepio dar relevacircncia ao prazer mas aos
elementos religiosos Existe um conjunto de regras de idoneidade alimentar na cozinha judaica
chamada kasherut e cada alimento pertencente a tal conjunto e entatildeo permitido eacute chamado
kasher A respeito das tradiccedilotildees religiosas implicadas na alimentaccedilatildeo Ariel Toaff no capiacutetulo
lsquoCozinha judaica cozinhas judaicasrsquo do livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas
esclarece
Afirma-se em geral que as praacuteticas da alimentaccedilatildeo judaica estatildeo essencialmente
enquadradas na oacutetica do sistema religioso fundamentadas em proibiccedilotildees biacuteblicas
ampliadas e interpretadas pelas normativas rabiacutenicas Em outros termos o judeu comeria
alimentos que lhe satildeo permitidos descartando todos aqueles que de uma ou outra forma
entrassem nas categorias explicitamente proibidas pela biacuteblia ou pela hermenecircutica
geralmente extensa da ritualiacutestica posterior Nesse sentido suas escolhas alimentares
deveriam ser consideradas como fundamentos de sua identidade cultural e religiosa A
gama de proibiccedilotildees parece vasta e sem duacutevida condicionante (TOAFF 2009 p179)
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Eacute interessante observar que mesmo focados na obediecircncia agraves normas havia uma culinaacuteria
rica de prazer dentro da cultura Apesar das influecircncias externas e as proibiccedilotildees religiosas
configurou-se uma cozinha judaica nuclear baseada no gosto Na Europa do seacuteculo XV ou XVI
os alimentos definidos como lsquoagrave hebraicarsquo ou lsquoagrave judiarsquo expressavam ingredientes gosto e aspecto
tipicamente judaicos e eram imediatamente reconhecidos como tal
O marzipatilde e as panquecas com mel e canela o patecirc de fiacutegado gordo os Griben (pedaccedilos
fritos de pele [de ave]) e os salsichotildees de ganso o hamin a carne guisada do Shabatt
com feijotildees e gratildeos-de-bico lsquocom pimenta e alhorsquo as alcachofras fritas lsquoagrave rosarsquo e a
endiacutevia assada no forno com lsquopeixe azulrsquo todos eles alimentos cuja preparaccedilatildeo era
comumente qualificada como lsquoagrave hebreacuteiarsquo natildeo eram decerto chamados desse modo pelo
fato de seu consumo ser permitido ou prescrito aos judeus pelas normas da biacuteblia e dos
rabinos mas porque se reconhecia neles a expressatildeo particular do gosto judaico [hellip] O
fato incontroverso eacute que o gosto gastronocircmico judaico parecia evidentemente diverso
daquele do ambiente cristatildeo circundante (TOAFF 2009 p183)
A evocaccedilatildeo sensorial eacute provocada pelos alimentos judaicos quando ateacute os nomes
despertam curiosidade e imaginaccedilatildeo pela forma e pelo gosto Ali estaacute bem expresso um conjunto
de sabores pertencentes agrave cultura e agrave vivecircncia de prazer associados agrave comida O capiacutetulo de Ariel
Toaff no livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas defende que o gosto e o prazer
na culinaacuteria judaica foram elementos de forccedila suficiente para ultrapassarem as proibiccedilotildees
religiosas aspecto corroborado pelo grande nuacutemero de receitas daquela cultura
O prazer alimentar estaacute associado a esse aspecto cultural de um povo Carlos Alberto
Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira aponta que
Em termos simples todo dia eu acordo me sentindo brasileiro ou espanhol ou tcheco
etc Isso ocorre porque falo uma liacutengua alimento-me de determinada comida sei como
meus compatriotas se comportaratildeo diante de certas situaccedilotildees e assim por diante Haacute um
sentimento multifacetado de pertencimento que me faz nacional (DOacuteRIA 2014 p24)
Esse pertencimento tem como parte culinaacuteria pois identifica gostos e ingredientes de um
povo No caso especiacutefico da culinaacuteria judaica essa caracterizaccedilatildeo ocorre mesmo quando
adaptada a outras culturas e produtos como Toaff aponta Em por que sou gorda Mamatildee a
narradora faz um relato que contempla a cozinha judaica vivenciada em sua infacircncia adaptada agrave
cultura local sem no entanto perder sua principal expressatildeo nos pratos tiacutepicos
Como sempre acreditamos no aprendizado pela dor a fome passou a ser o grande
mestre liccedilatildeo que pai nenhum queria que os filhos aprendessem Atestando que os
tempos haviam mudado e que este naco do Brasil era uma Canaatilde as cozinhas do Bairro
eram usinas de todo tipo de comida
82
Agraves sete da manhatilde mal se pulava da cama e uma nuacutevem aromaacutetica e uacutemida jaacute tinha
invadido a casa As panelas ferviam galinhas as cebolas se atiravam agrave fritura as lacircminas
das facas trituravam ramos de tempero verde colheres de pau puxavam refogados nas
caccedilarolas batalhotildees rechonchudos de almocircndegas se alinhavam nas taacutebuas de carne ao
lado de um fornido regimento de varenikes que logo iam encontrar seu destino na aacutegua
pelando No bairro inteiro cedinho frio ou calor chuva ou sol matildeos zelosas estripavam
peixes recheavam pimentotildees cortavam ovos duros mexiam guisados lavavam arroz
arrancavam folhas dos ramos de louro Tempero lambido na concha da matildeo douravam
batatas raspavam cenouras sovavam massas fatiavam tomates queimavam berinjelas
batiam espinafre amassavam miuacutedos de frango esmagavam dentes de alho Enquanto
pepinos eram enfiados em enormes potes de vidro para a conserva de salmoura
amendoins em trouxas de panos de prato eram batidos a martelo pecircssegos ameixas e
peras se compotavam marmelos de accedilucaravam cremes se encorpavam nacos de
goiaba e punhados de uva em passa enchiam o oco de maccedilatildes vermelhas e lustrosas
(MOSCOVICH 2006 p48-49)
A escolha pelo uso do preteacuterito imperfeito nos atos culinaacuterios ilustra o aspecto rotineiro
com que essas praacuteticas eram realizadas dentro da vida do bairro de predominacircncia judaica Todo
cotidiano era tecido pela manhatilde pelos aromas texturas e costumes que compunham a cultura
local O trecho remete o leitor a um passado que se perpetua atraveacutes dos movimentos vividos nas
cozinhas pelo que a narradora refere como lsquomatildeos zelosasrsquo Haacute no pano de fundo desse
fragmento a ideia da repeticcedilatildeo das accedilotildees como marca de continuidade de haacutebitos gostos e
preferecircncias A narradora prossegue seu relato transmitindo lembranccedilas da cozinha judaica
vivenciadas em seu bairro
Eu feliz na atmosfera lavada das manhatildes mastigando o haacutelito de cafeacute e pasta de dente
gostava de ver as mulheres que vinham da feira livre com sacolas nas quais adejavam
verduras outras traziam suspensas de ponta-cabeccedila galinhas vivas que arregalavam os
olhos redondos num susto de morte Algumas donas de casa elas mesmas fariam o
talho na garganta por onde se esvairia o sangue do bicho enquanto outras mais
piedosas ou covardes ou que seguissem a lei alimentar a kashrut recorriam ao shochet
responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual Todas para um uacutenico lugar a cozinha matriz do
afeto de nossa gente Pratos com nomes esquisitos e tatildeo familiares varenikes beigales
mondales knishes strudels iuchs kasha rossale borscht guefiltefish chrein kishke
kreplach tzimes
Comida para um exeacutercito (MOSCOVICH 2006 p49 grifo do autor)
No trecho acima lecirc-se o aspecto religioso ligado agrave culinaacuteria quando a narradora aborda a
lei alimentar a kashrut e o shochet responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual das galinhas Outro
elemento apontado eacute a referecircncia aos pratos judaicos remetendo agrave ligaccedilatildeo entre cozinha e
pertencimento a um povo elemento cultural referido por Carlos Alberto Doacuteria apresentado
anteriormente Um ponto relevante apontado por esse autor eacute a citaccedilatildeo de Levi Strauss ldquoGestos
aparentemente insignificantes transmitidos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua
insignificacircncia mesma satildeo testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou
83
movimentos figuradosrdquo (DOacuteRIA 2014 p215) Assim eacute possiacutevel compreender os gestos
corporais dos atos culinaacuterios apresentados pela narradora sobre a rotina alimentar em seu bairro
como um importante testemunho da cultura judaica daquele territoacuterio
Aleacutem disso uma frase de grande relevacircncia no fragmento eacute lsquoTodas para um uacutenico lugar a
cozinha matriz do afeto de nossa gentersquo Nessa o viacutenculo entre o comer e o afeto expressa um
importante fator da cultura judaica a essa ligaccedilatildeo estaacute associada tambeacutem a sensaccedilatildeo prazerosa
da comida partilhada Carlos Alberto Doacuteria expotildee a reflexatildeo de Annie Hubbert quando ela
registra
Especialmente nas sociedades onde as representaccedilotildees coletivas passam por livros
religiosos (os judeus os cristatildeos e os muccedilulmanos) o ato de comer aparece ligado ao
amor materno e recusar a comida eacute o mesmo que recusar essa modalidade fundante de
afeto um ato que exprime grande emoccedilatildeo (DOacuteRIA 2014 p204)
Dividir a comida eacute tambeacutem nutrir o sentimento de pertencer ao grupo de fomentar a
permanecircncia dos atos que satildeo parte dos costumes desse grupo como aqueles atos apresentados
no trecho anterior em preteacuterito imperfeito atos culinaacuterios que satildeo parte do cotidiano das
cozinhas do bairro Somam-se alimento afeto rotina cultura prazer pertencimento partilha
continuidade
Ainda sobre o gosto da cozinha judaica Toaff escreve
As mercearias dos guetos pululavam de clientes cristatildeos mais gulosos do que
esfomeados [hellip] A aproximaccedilatildeo dos cristatildeos agraves comidas judaicas era sempre ambiacutegua e
ambivalente atraiacutedos (e ao mesmo tempo desconfiados) por aqueles pratos que podiam
ter significados hereacuteticos imprevistos e por aqueles sabores exoacuteticos que exerciam
veladas seduccedilotildees de transgressatildeo lsquoComer agrave judiarsquo era um pouco como tornar-se judeu
no prazer de um momento sentir de dentro o fasciacutenio daquilo que era difiacutecil (e talvez
impossiacutevel) aprender de fora [hellip] Comer uma alcachofra lsquoagrave judiarsquo ou uma fatia de patildeo
aacutezimo era como fazer uma perigosa e temeraacuteria viagem ao estrangeiro uma espeacutecie de
percurso sedutor da igreja agrave sinagoga da qual poreacutem pretendia-se voltar o mais raacutepido
possiacutevel (TOAFF 2009 p183-184)
Compreende-se assim que a cozinha judaica tinha o apelo sedutor que provocava prazer
ateacute em outras culturas como a cristatilde Isso ocorria por sua forccedila especiacutefica pelo nuacutecleo vasto de
receitas e de modos-de-fazer este ou aquele prato no entanto tal apelo ocorria em grande parte
por simbolizar o proibido e o desconhecido aos cristatildeos Agradava-lhes a transgressatildeo dessa
cozinha tiacutepica seus sabores e significados Natildeo se tratava apenas de apreciar o gosto mas
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tambeacutem o que tal culinaacuteria representava a um ambiente cultural diverso enfrentar a culpa e
encontrar o prazer do gosto clandestino
Para os proacuteprios judeus a amplitude de receitas e de gostos dos pratos lsquoagrave judiarsquo era tatildeo
arraigada que o gosto era parte de suas escolhas para aleacutem da imposiccedilatildeo religiosa Sobre isso
Toaff reflete ldquoHaacutebitos e tradiccedilotildees alimentares inquietudes irracionais gosto e nostalgias faziam
com que mesmo nos casos extremos o paladar abandonasse o judaiacutesmo muito mais lentamente e
de maacute vontade do que o coraccedilatildeo ou a menterdquo (TOAFF 2009 p185)
Ariel Toaff demonstra o ponto a ser discutido sobre o aspecto cultural dessa culinaacuteria em
relaccedilatildeo ao prazer alimentar as restriccedilotildees e as proibiccedilotildees religiosas de um lado o prazer de
manter vivo o respeito pela tradiccedilatildeo de receitas tiacutepicas lsquoagrave judiarsquo que representam o gosto
alimentar dos judeus de outro Apesar das proibiccedilotildees a essecircncia da cozinha judaica se manteve
atraveacutes de uma vasta quantidade de receitas Eacute possiacutevel compreender isso pelo fato de o prazer
ser um fenocircmeno exclusivamente humano cujas caracteriacutesticas satildeo o equiliacutebrio fisioloacutegico e
psiacutequico que leva ao bem-estar de acordo com o Jaspers Em sendo fenocircmeno humano
pronuncia-se no indiviacuteduo de todos os tempos e de todas as culturas e eacute elemento ateacute mesmo
capaz de sobrepujar um constructo como as proibiccedilotildees religiosas como no caso da cozinha
judaica
O que mais chama a atenccedilatildeo lendo a pesquisa de Ariel Toaff eacute de como o gosto judaico
foi sendo construiacutedo a ponto de configurar-se como uma tradiccedilatildeo culinaacuteria Outro elemento
interessante referido pelo autor satildeo os processos de osmose com outras culturas alimentares a
partir das emigraccedilotildees dos judeus para diferentes territoacuterios O paladar judaico foi adicionando
alimentos agrave sua lista ingredientes e pratos de outras culturas foram sendo incorporados ao seu
gosto
Um trecho que ilustra essa lsquoosmosersquo estaacute no comeccedilo de Por que sou gorda mamatildee
quando a narradora-personagem conta a histoacuteria da chegada de sua famiacutelia ao Brasil e a
aproximaccedilatildeo de seu bisavocirc a um iacutendio proacuteximo agrave moradia da famiacutelia
[hellip] Um desses bugres vovoacute natildeo tinha certeza de que era o mesmo que fora aprisionado
deixou uma tigela de farinha - dependendo da versatildeo um pedaccedilo de carne- na porta da
casa O bisavocirc na mesma tijela e no mesmo lugar ofereceu para o iacutendio uma porccedilatildeo de
aipim cozido (ou uma porccedilatildeo de chulent ou um pedaccedilo de leikech) Tijela vai tijela
volta o bugre fez amizade com o bisavocirc falavam-se de iniacutecio com os dedos Depois
passaram a dividir o mesmo tronco de aacutervore no qual o bisavocirc sentava para o descanso
do final da tarde Depois para o pasmo geral viram o iacutendio vestindo uma camisa e uma
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calccedila do bisavocirc mesma eacutepoca em que vovoacute viu entrar em casa uma gamela talhada em
madeira e uma cesta em trama de taquaras
Mesmo que mulheres e crianccedilas estivessem proibidas de se aproximar do bugre ele de
posse de uma enxada passou a ajudante nas lides da roccedila e a trazer aacutegua de uma sanga
ali perto Tambeacutem alcanccedilava ervas com as quais o bisavocirc fazia emplastros para as dores
nas juntas e picadas de insetos aleacutem de infusotildees e chaacutes para tosse e vermes
A vovoacute jurava que era verdade quando viram o iacutendio falava iiacutediche
Deram ateacute nome para o homem Chamavam-no Salvador (MOSCOVICH 2006 p65-
66 grifo nosso)
A osmose era natildeo apenas de ingredientes mas de costumes de atitudes de
camaradagens Havia prazer nas trocas e no conviacutevio do bisavocirc com o iacutendio Esse trecho eacute um
dos mais representativos da obra pois expressa de forma muito clara como a cultura judaica foi
permeaacutevel no exemplo narrado agraves influecircncias e agraves gentilezas e escambos do bugre A famiacutelia
comeccedilava sua histoacuteria em terras brasileiras Um trecho que expressa o papel da comida nos
primeiros tempos da famiacutelia no Brasil eacute o que segue
Uns oito nove ou dez anos depois da chegada ao Brasil o bisavocirc tinha abandonado a
colocircnia e enveredado pelos interiores do hemisfeacuterio mascateava Soacute laacute naquela Canaatilde
da fronteira entre o Brasil e o Uruguai terminou a busca de um futuro que seria melhor
mas que natildeo seria dele Havia chocolates Aguila chaja embalado em papel manteiga
morrones queimados na brasa e carne muita que se assava em grelhas sobre braseiro
vivo Tudo isso natildeo chegava agrave casa e agrave mesa da famiacutelia que se alimentava de mameligue
ou farinha de mandioca agrave qual se acrescentava cafeacute com muito accediluacutecar que accediluacutecar natildeo
podia faltar Aos domingos cada um dos filhos recebia um tablete de mariola piteacuteu
envolto em papel celofane a ser poupado ateacute a semana seguinte um pedacinho de cada
vez Ou chupado como se fosse bala que assim durava mais (MOSCOVICH 2006
p71 grifo ou do autor)
Assim haacute trechos em que a protagonista narra as experiecircncias dos antepassados em
zigue-zague com outros em que reflete sobre seu engorde retomando o foco no presente Fala
entatildeo de sua dieta em contraste com a vivecircncia de sua famiacutelia com a fome Bisavoacutes avoacutes e pais
ao sentirem fome comeccedilaram a comer mais quando o alimento tornou-se disponiacutevel a eles no
caso da narradora foi preciso fazer o caminho contraacuterio ao sentir fome comeccedilar a comer menos
A referecircncia lsquoVovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e macarratildeo de letrinhasrsquo
demonstra que a loacutegica de sua avoacute era dar consistecircncia e energia agrave comida fornecendo-lhe fontes
de carbohidrato Assim a perspectiva era contraacuteria agrave restriccedilatildeo alimentar a que estava submetida
pelas orientaccedilotildees do meacutedico
Com o frio comer salada doacutei na alma
Sopa de legumes fazia tempo que natildeo preparava o panelatildeo fervente carne aipo
aboacutebora chuchu cenoura couve cebola espiga de milho cortada em rodelas pequenas
Enquanto escrevo a sopa se agita no fogo e um haacutelito bondoso que eacute cheiro de casa
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visita todas as peccedilas Espero a hora de submeter noz-moscada ao ralador e de cortar bem
miuacutedo tempero verde e ovos duros Vovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e
macarratildeo de letrinhas (MOSCOVICH 2006 p68)
A heranccedila para o prazer de comer deu-lhe desde a infacircncia a predileccedilatildeo pelos excessos
Porque a lei era o comer Ela comenta
Noacutes as crianccedilas estaacutevamos em fase de crescimento Como durou a tal fase Anos
Crianccedilas em fase de crescimento precisam comer muito bem para ter ossos fortes e
ceacuterebros ativos para o estudo Portanto a mesa do almoccedilo em nossa casa era farta Aliaacutes
a mesa do almoccedilo em nossa casa era um excesso Mas natildeo um excesso fuacutetil natildeo um
supeacuterfluo sem sentido Nossa mesa queria dizer comam vocecircs natildeo precisam passar
fome Fome eu vim passar adiante quando comecei as dietas (MOSCOVICH 2006
p23)
O aprendizado de exceder era associado natildeo apenas agrave saciedade mas ao prazer agrave ideia de
uma lsquomesa felizrsquo como se pode compreender a partir do seguinte fragmento
Se havia cinco pessoas na mesa de bifes deveria haver por baixo dez Para que natildeo
passaacutessemos pela dureza de medir o que estaacutevamos comendo quantos bifes satildeo meus
quantos satildeo seus Se isso acontecesse papai simplesmente natildeo comia bifes para que
mais houvesse para dividir
Numa mesa feliz natildeo se contam os bifes (MOSCOVICH 2006 p24)
O pai preocupado com o engorde dos filhos passou a adotar a imposiccedilatildeo da disciplina
alimentar riacutegida Para a protagonista a cada aumento dos quilos na balanccedila havia uma nova
ordem para o regime A protagonista lembra-se dessa fase e relata na carta para a matildee o periacuteodo
em que o pai determinou que os filhos fizessem dieta
Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre
com o Fairlane rabo-de-peixe A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos enterrado
o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como eram-
mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos ancorava
no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de construir o corpo
de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo fosse do jeito e na
hora em que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH 2006 p93)
Depois de diversas passagens entre passado e presente haacute uma retomada na histoacuteria em
direccedilatildeo agrave ordem paterna para a dieta pela quebra do carro da famiacutelia o tal lsquoFairlane rabo-de-
peixersquo Isso ocorre pelo excesso de peso na protagonista de seus irmatildeos e de suas tias de lado
paterno Frente agrave ameaccedila de dieta ela reinvindica ldquo[hellip] Entrei em pacircnico Dieta era alguma coisa
horrorosa natildeo comer um monte de coisas principalmente massas e doces eu protestei na busca
de meus direitosrdquo (MOSCOVICH 2006 p203) Ao que o pai linhas depois refere ldquo-Vocecircs vatildeo
fazer dieta E vai ser para toda a vidardquo (MOSCOVICH 2006 p204)
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Dieta era assim ordem paterna veredicto imposiccedilatildeo e ameaccedila de perda dos direitos Natildeo
poderia ser algo para o bem para a sauacutede jaacute que restringia o prazer de comer o que se gosta De
um lado a Vovoacute Magra tinha deliacutecias em sua sacola de crocheacute para satisfazer o gosto dos netos
de outro o pai definia categoricamente que a lei da casa era a dieta Da avoacute materna com as
guloseimas estava o afeto do pai com a voz de mando o cuidado com a sauacutede Ambas as
manifestaccedilotildees eram a expressatildeo de amor que cada um deles era capaz de oferecer de acordo com
sua histoacuteria e com sua personalidade
Um elemento importante para a compreensatildeo do engorde da protagonista estaacute em sua
infacircncia quando ao contraacuterio do que ocorreu na vida adulta precisou fazer dieta para engordar
Mais uma vez a Voacute Magra tem papel crucial nesse processo conforme mostra o trecho abaixo
Os que me conhecem soacute agora natildeo acreditam Nem eu acredito Ateacute uns sete ou oito
anos eu era uma crianccedila inapetente Vovoacute Magra chegava em casa com pedaccedilos de
alcatra chuletas ou bifes de fiacutegado cortes que ela havia escolhido com ciecircncia no balcatildeo
do accedilougue do seu Jorge Depois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho
direto para a cozinha e ali direto aos armaacuterios Sentava-me junto agrave mesa de foacutermica
Vovoacute dava de matildeo numa pequena frigideira de alumiacutenio com duas alccedilas de baquelite jaacute
retorcidas pelo calor Aacutegua esponja sabatildeo pano de prato Daiacute um fio de oacuteleo Mazola-
ou Sol Levante aquele que estivesse mais em conta na ocasiatildeo- escorria da lata natildeo
muito o suficiente para que uma poccedila dourada se armazenasse no cocircncavo da frigideira
No balcatildeo da pia vovoacute ordenava o pote de sal uma taacutebua de madeira chaira batedor de
bife a faca de corte e o embrulho de papel pardo no qual seu Jorge tinha riscado o total
a pagar Na abertura do pacote lembro aquele cheiro cru e meio arisco o papel
manchado de sangue da pobre vida extinta A faca era passada na chaira em movimentos
agudos um sibilar que me causava arrepio nos dentes Depois com a lacircmina vovoacute
eliminava nervos sebo e outras impurezas que soacute ela podia identificar Finalmente
espalmava os dedos sobre a peccedila de carne e em talhos saacutebios cortava em fatias Agraves
vezes usava o batedor para domar algum pedaccedilo mais resistente tunda de laccedilo na carne
que batia na madeira que batia na pedra que por seu turno estremecia o balcatildeo e todos
os cocircmodos da casa Uma pitada de sal o oacuteleo tinindo recebia a carne com uma
chiadeira labaredas azuladas salpicavam as fatias- daacute-lhe fumaccedila um nevoeiro que
anunciava a forccedila resistindo agrave morte (MOSCOVICH 2006 p35-36)
A Voacute Magra participava da alimentaccedilatildeo da neta natildeo apenas no preparo dos bifes mas
tambeacutem na extraccedilatildeo do sumo que resultava deles e na oferta do caldo agrave protagonista ainda
crianccedila Percebe-se o zelo da avoacute todo esse processo no qual o alimento representa nutriccedilatildeo
fiacutesica e cuidado afetivo
Dado o susto vovoacute colocava os bifes num prato fundo e com um garfo espremia e
espremia ateacute reunir uma boa quantidade de sumo sanguinolento Um pano ajeitado como
babador e entornando um pouco o prato com uma colher de sobremesa dava-me aos
bocados aquela riqueza nutritiva (MOSCOVICH 2006 p36)
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Ressalta-se o detalhamento com que a narradora apresenta os utensiacutelios de cozinha no
preparo dos bifes e os atos culinaacuterios da Voacute Magra Se natildeo haacute referecircncia direta ao prazer de
comer haacute o conhecimento visceral da avoacute no cozinhar Cada movimento eacute conhecido pelo corpo
e traduzido pelo uso dos utensiacutelios O que marca o trecho eacute o afeto com que a avoacute faz os bifes
para a neta o cuidado que tem com cada nuance do preparo expresso na proacutepria dedicaccedilatildeo e
tambeacutem em especial na frase lsquodepois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho direto
para a cozinharsquo Este eacute um dos trechos emblemaacuteticos da obra em termos de expressatildeo da cozinha
como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico nesta narrativa pois mostra dados como o oacuteleo na frigideira a
destreza com cada instrumento e o zelo no preparo do alimento como reforccedilo nutricional
A narradora segue o relato sobre os bifes que colocam sua matildee em segundo plano
Se vovoacute natildeo vinha o jeito era a senhora mamatildee me sentar na frente do preacutedio reunir
crianccedilas e cachorros da vizinhanccedila ao meu redor e fazendo aviatildeozinho enquanto eu me
distraiacutea me enfiar goela abaixo colheradas de legumes carne e todo o resto que eu
detestava
Natildeo me lembro quando comecei a comer feito gente grande Nunca mais parei
(MOSCOVICH 2006 p36-37)
Haacute uma diferenccedila na percepccedilatildeo da narradora sobre a forma como a Voacute Magra lhe oferecia
a lsquoriqueza nutritivarsquo aos bocados e aquela como a matildee o fazia ao lsquoenfiar goela abaixo
colheradas de legumes carne e todo o resto que eu detestavarsquo O contraste estaacute sobretudo na
expressatildeo do afeto que leva a protagonista o falar em lsquoriqueza nutritivarsquo quando menciona o
cuidado da avoacute e ao referir-se ao termo lsquogoela abaixorsquo sobre o alimento oferecido pela matildee
Possivelmente o prazer de comer tivesse sido originado no afeto ligado ao alimento e ao cuidado
pela avoacute pois eacute das cenas com esta que restaram os principais registros de memoacuteria sugerindo
que a lembranccedila daquele preparo eacute muito mais viva do que aquela da interaccedilatildeo com sua matildee A
frase lsquonunca mais pareirsquo mostra o comportamento de comer como algo que passou a se repetir
sugerindo a presenccedila de prazer que impele agrave repeticcedilatildeo
A partir do ponto em que comeccedilou a comer e entatildeo a engordar junto a seus irmatildeos
instalou-se na famiacutelia a determinaccedilatildeo de regime para os trecircs ordenada pelo pai A protagonista
refere
Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre
com o lsquoFairlane rabo-de-peixersquo A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos
enterrado o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como
eram- mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos
ancorava no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de
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constituir o corpo de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo
fosse do jeito e na hora que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH
2006 p93)
Quando refere lsquoEssa ordem sei agora era o que nos ancorava no mundorsquo estaacute
expressando que sob a perspectiva adulta consegue ver a razatildeo da imposiccedilatildeo do pai ancorar os
filhos no mundo Estabelecia-se uma dicotomia entre a postura da Voacute Magra que partilhava seu
prazer alimentar com os netos e a do pai que assumia a funccedilatildeo de impor normas aos filhos Para
a narradora essa divisatildeo era contundente a bagagem de carinho da avoacute materna era o paraiacuteso a
forccedila da voz paterna era o inferno restringia definia acusava ordenava proibia O livro traz
todo o conflito da narradora personagem em seu tracircnsito por essa dicotomia ao longo da vida ateacute
apresentar os resultados do excesso de comer em seu corpo os terriacuteveis vinte e dois quilos ou
cento e dez tabletes de manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha
A ordem paterna para a dieta transforma-se na idade adulta na ordem do meacutedico
tambeacutem uma voz impositiva ameaccediladora e acusatoacuteria Essa eacute expressa jaacute no proacutelogo quando a
protagonista conta o motivo de sua reflexatildeo sobre a histoacuteria familiar e a pessoal para
compreender o porquecirc de chegar ao excesso de peso
- Vocecirc natildeo estaacute gorda
Certo meu estado natildeo era transitoacuterio a gordura nunca foi um episoacutedio solteiro em
minha vida eu sabia ele nem precisava ir adiante Mas ele foi
- Vamos fazer suas ceacutelulas adiposas murcharem -Pediu minha atenccedilatildeo com a caneta no
ar- sei que parece injusto mas a natureza a fez assim Vocecirc eacute gorda
Uma vez mais de novo (MOSCOVICH 2006 p15)
A uacuteltima frase lsquouma vez mais de novorsquo refere-se possivelmente agrave lembranccedila sobre o
veredito do pai na infacircncia quando mandou que ela e os irmatildeos fizessem dieta O prazer de
comer tornava-se sempre transgressor da ordem sempre um mundo proibido e recheado de
culpas impostas por terceiros Por mais que ela natildeo quisesse sentir as culpas aprendera que
deveria senti-las para afastar-se do prazer
Com a evoluccedilatildeo da dieta conduzida pelo meacutedico a personagem comeccedila a conseguir
emagrecer e a perda de peso vai ganhando por sua vez gosto de vitoacuteria Emagrecer tambeacutem se
torna um prazer o que reflete a sua conscientizaccedilatildeo para a mudanccedila de haacutebitos e mais ainda
para o seu amadurecimento Haacute na protagonista a consciecircncia de sua responsabilidade pelas
escolhas alimentares e pelo resultado da dieta em sua sauacutede A mudanccedila de postura destaca-se
atraveacutes do termo lsquoum deliacuteriorsquo ponto em que se percebe sua capacidade de avaliar o que pode e o
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que natildeo pode comer sem precisar ouvi-lo de terceiros A personagem conta o que sente
demonstrando sua disposiccedilatildeo para mudar a atitude frente agrave comida
Uma enorme vontade de comer uma daquelas refeiccedilotildees de estivador arroz feijatildeo ovo
frito massa bife na chapa purecirc de batatas salada de tomate e cebola Tudo num uacutenico
prato fundo e transbordante Para beber uma daquelas cervejas pretas docinhas das
quais se dizia que eram boas para mulheres que amamentavam Sobremesa pudim de
leite
Soacute vontade Um deliacuterio
Descobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um punhado de
parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagado Tambeacutem descobri que atum em lata e
dois ovos duros saciam por mais de quatro horas Uma xiacutecara de cafeacute e um pedaccedilo de
queijo enganam a fome por um bom tempo Disso eu sabia mas tinha me esquecido
Fui verificar meu peso um quilo e novecentos gramas a menos (MOSCOVICH 2006
p125-126)
A passagem acima ilustra um periacuteodo da personagem jaacute adulta em seu progresso durante
a dieta Quando ela diz lsquoDescobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um
punhado de parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagadorsquo (MOSCOVICH 2006 p125-126)
estaacute demonstrando que jaacute eacute capaz de encontrar prazer e sabor dentro da dieta ao inveacutes de lutar
com as restriccedilotildees como fez desde a infacircncia Eacute nesse momento que a comida assume um caraacuteter
de transformaccedilatildeo na narrativa a mudanccedila de postura em relaccedilatildeo ao foco de prazer na comida de
uma lauta refeiccedilatildeo ao novo modo de temperar a salada Como resultado a perda de peso
O significado de tal mudanccedila estaacute justamente na conscientizaccedilatildeo que representa Ao dizer
lsquoSoacute vontade Um deliacuteriorsquo a protagonista expressa conhecer os perigos de lsquouma daquelas refeiccedilotildees
de estivadorrsquo como a que descreve Mostrando a mudanccedila de possibilidades estaacute dizendo a si
mesma que compreendeu que eacute preciso mudar a fonte de prazer para atingir o emagrecimento
proposto pelo meacutedico
Nesse momento aliaacutes a ordem natildeo vem mais do pai natildeo vem mais do meacutedico E nem eacute
mais uma ordem Eacute entatildeo uma escolha E o melhor de tudo parte da proacutepria narradora
personagem em seu percurso no anseio do que pede agrave sua matildee no proacutelogo ldquoMamatildee me
endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar esse territoacuterio
metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora Quero voltar a ter um
corpordquo (MOSCOVICH 2006 proacutelogo)
A voz para a matildee eacute na verdade a voz em que ela se permite emitir essa narrativa Em
essecircncia a voz eacute dirigida a si mesma e o pedido para lsquovoltar a ter um corporsquo segue o verbo
querer na primeira pessoa do singular no presente do indicativo Eacute a afirmaccedilatildeo de um desejo de
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uma escolha Natildeo eacute o pai natildeo eacute o meacutedico natildeo eacute a interlocuccedilatildeo com a matildee A lei agora eacute sua
segue seu proacuteprio querer Da refeiccedilatildeo de estivador agraves alternativas possiacuteveis a narradora mostra o
que compreendeu eacute agente da proacutepria transformaccedilatildeo eacute emissora da proacutepria voz Tem um corpo
sim Mais do que isso tem um novo querer tambeacutem prazeroso e mais saudaacutevel o
emagrecimento
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3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS
Levantei-me as pernas agora quase firmes desci os degraus da porta ateacute a calccedilada
buscando algo para comer e o que havia no meu raio de visatildeo era uma carrocinha de
pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me desde que horas ele estava ali se
tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda
agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido Cheguei junto dele remexendo a bolsa
agrave procura de uns trocados que tivessem restado da farra de salgadinhos e biscoitos da
Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada desde entatildeo (REZENDE 2014
p147)
Comida eacute alimento nutriccedilatildeo sobrevivecircncia Eacute palavra feita de carne de aboacutebora de
arroz Tangiacutevel Comemos para nutrir as ceacutelulas mas tambeacutem para garantir nossa autonomia
porque comida eacute escolha eacute expressatildeo de si mesmo gosto disso prefiro aquilo Comida eacute
exerciacutecio de liberdade no quando no quanto no onde no que comer E comer eacute matar a fome e
satisfazer o apetite na comida de rua servida no papel pardo ou na mesa posta com talheres
prato copo guardanapo Comemos intransitivos ou transitivos sozinhos ou acompanhados
Comemos para atravessar mais um dia para seguir existindo como oacutergatildeos viacutesceras cinco
sentidos Mastigar salivar engolir digerir metabolizar excretar eis o trajeto da comida atraveacutes
do organismo tornando-se parte de quem somos E comemos para continuar sendo
31 QUARENTA DIAS
Quarenta dias eacute o livro escrito por Maria Valeacuteria Rezende editado pela Editora Record
em 2014 A narrativa traz a histoacuteria de Alice mulher de meia-idade que a pedido de sua filha
muda-se de Joatildeo Pessoa para Porto Alegre A contragosto deixa sua casa e sua vida as amizades
e os afazeres e segue a demanda da filha para que se torne lsquovoacute profissionalrsquo jaacute que a moccedila e seu
esposo decidem ter um filho
A personagem faz a mudanccedila de tudo o que tem caixas e caixas para a nova cidade em
apartamento escolhido e alugado pela filha e o genro No entanto em um jantar na casa do casal
recebe a notiacutecia de que decidiram passar um periacuteodo fora do paiacutes para suas especializaccedilotildees
acadecircmicas Assim adiaram os planos de gravidez motivo pelo qual ela havia abandonado seu
habitat e aceito uma imposiccedilatildeo pelo desejo da moccedila em ser matildee Partiriam em poucos dias logo
apoacutes Alice ter chegado em sua nova moradia
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No desterro de seu lar e sozinha na capital gauacutecha a personagem transfere seu territoacuterio
de nutriccedilatildeo para a rua para o espaccedilo representado pelo coletivo pela cidade e natildeo para a cozinha
nova e moderna do apartamento Haacute sobretudo um deslocamento primordial na narrativa a
lsquoexpulsatildeorsquo de suas reflexotildees para as paacuteginas do diaacuterioepiacutestola em que Alice escreve de si
dirigindo-se a uma interlocutora Barbie a figura na capa do caderno que encontrara entre as
caixas da mudanccedila
No iniacutecio de sua vida em Porto Alegre esconde-se em casa fingindo ter viajado para o
interior na casa de primos Entatildeo mune-se de um motivo benevolente que usa para justificar
suas caminhadas a qualquer pessoa com quem encontre a busca freneacutetica pelo rapaz conterracircneo
Ciacutecero Arauacutejo perdido no Sul Nessa missatildeo esquece o proacuteprio endereccedilo e decide por viver um
paradoxo casa que natildeo eacute casa rua que natildeo eacute rua Externo que se torna interno porque eacute parte
dela Rua que eacute casa parece em sendo casa na rua encontra abrigo para a solidatildeo na rua
encontra alimento para as fomes que sente Fome de comida sim mas para aleacutem desta a fome de
ser lsquosi mesmarsquo de novo
Sozinha perde-se de si de seus referenciais familiares dos telefones que tem na
memoacuteria dos sentidos de sua proacutepria vida Tem no desaparecido a razatildeo temporaacuteria para sua
andanccedila sem paradeiro Procurar um jovem de sua terra que veio para Porto Alegre eacute uma boa
desculpa para algueacutem que percorre uma cidade em seus pontos mais perigosos ou naqueles mais
dramaacuteticos como o Hospital de Pronto-Socorro Nem vestiacutegio de Ciacutecero mas laacute encontra um
banco de madeira onde pode dormir
Em seus trajetos transfere o espaccedilo ocupado pela cozinha que eacute o de preparar a nutriccedilatildeo
para um espaccedilo coletivo e itinerante Padarias pequenos botecos nas vilas que percorre carrinhos
de pipoca e de cachorro-quente restaurante da rodoviaacuteria em que escuta um sotaque familiar
comida ofertada aos sem-moradia nas madrugadas Sem desejar voltar para casa Alice passa a
habitar a rua Faz amigos ao longo do caminho pessoas que se preocupam mais com ela do que
sua filha Mas isso ela quer esquecer quer apagar e estabelece um objetivo firme de resgatar um
desaparecido pelos recantos mais insoacutelitos e arriscados da cidade
A representaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo itinerante eacute um fator muito consistente na obra
Porque a cozinha eacute territoacuterio fiacutesico definido por moacuteveis objetos e eletrodomeacutesticos que a
compotildeem mas eacute tambeacutem simboacutelico nela vivem nutriccedilatildeo afeto famiacutelia intimidade Transferir
tal importacircncia para o externo para o alheio a si eacute como um transplante ao contraacuterio
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O deslocamento na representaccedilatildeo dessa forccedila que transcende o objetivo meramente
nutricional expressa a ausecircncia de ninho vivenciada pela personagem Ela escolhe transplantar
sua vida para o lado de fora da porta escolhe a solidatildeo no meio do coletivo para apagar a solidatildeo
em silecircncio dentro das paredes de uma casa (e natildeo um lar) que a filha e o genro definiram para
ela Ao menos assim eacute ela quem escolhe Autonomia O que comer onde viver onde dormir
onde se banhar Por pior que seja o banho na rodoviaacuteria eacute sua voz eacute sua decisatildeo Por pior que
seja a noite no banco duro de madeira do Pronto-Socorro a pipoca do carrinho que fica ali na
frente o natildeo-ter-para-onde-ir fingindo estar na busca desenfreada pelo desaparecido eacute sua
proacutepria voz que precisa escutar Eacute pelo aparecimento de sua identidade perdida que faz
peregrinaccedilotildees pelos becos mais sombrios por onde se propotildee a percorrer
Ao longo do percurso do livro enquanto parece perder-se cada vez mais de seus
referenciais de sua memoacuteria mais firma o passo mais decide onde ir E suas frases no diaacuterio
vatildeo ganhando pontos-finais ao relatar o ocorrido agrave medida em que se lembra e se torna mais
capaz de contar da redescoberta de sua identidade Na crise da personagem atraveacutes desse
desalojamento de um habitat seguro dessa saiacuteda para fora da porta ocorre a habitaccedilatildeo de um
novo espaccedilo o proacuteprio eu Em seus percursos defronta-se com a perda dos referenciais antigos
da casa de sempre da memoacuteria que lhe permitiria voltar para o eixo seguro da nutriccedilatildeo estaacutevel
na intimidade soacutelida da cozinha
Alice desloca-se durante a maior parte da narrativa Desloca-se de sua terra natal para
Porto Alegre e nessa capital transita entre avenidas principais e becos escondidos entre
viadutos e casas de estranhos entre floriculturas e terrenos baldios Desloca-se de si mesma
quando decide natildeo voltar agrave casa escolhida para ela Escolhida eacute voz passiva voz que ela quer
transcender
Distrai-se com a histoacuteria do desaparecimento de Ciacutecero Arauacutejo com a confusatildeo mental
que se instala entre fome-frio-sono-exaustatildeo Tudo isto para natildeo lembrar volta-se para fora e
desse modo esquece o dentro Desloca o foco das confissotildees que faz a si sendo um diaacuterio para
Barbie como um sucessivo contar de eventos e emoccedilotildees em escritos que mais parecem cartas
Mais uma vez dentro e fora se conjugam pois acontecem num simultacircneo mas estatildeo
dissociados Alice dirige para fora suas reflexotildees para um terceiro entatildeo dissocia-se de si para
olhar para si
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Em um determinado ponto refere ldquoNatildeo Barbie esta noite natildeo dormi em saguatildeo nem em
parque nenhum Natildeo vecirc como estou bem-disposta a sentar-me pegar a caneta e continuar
escrevendo aqui nesta cozinha depois desta noite bem-dormida na suiacutete deste apartamento que
me esforccedilo para aceitar finalmente como meurdquo (REZENDE 2014 p163)
Estaacute dentro de casa mas ainda natildeo faz parte dela em verdade situa-se fora dali no sentir
Demonstra isso quando usa lsquobem-disposta nesta cozinha deste apartamento como meu me
esforccedilo para aceitarrsquo Tal dissociaccedilatildeo identitaacuteria eacute expressa por um permanente desconexatildeo
consigo Perde-se de sua casa e de seus referenciais para descobrir o paradeiro de Ciacutecero Arauacutejo
com o firme propoacutesito de encontrar um motivo que alinhave seus dias em Porto Alegre dentro de
si o sentido estaacute fora de si Nessa desconexatildeo descobre uma Alice nascente
Chega Barbie agora eu paro mesmo que jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia
guria a solidariedade silenciosa mas agora vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a
mal taacute natildeo digo que seja pra sempre quem sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo
a limpo (REZENDE 2014 p245)
Eacute possiacutevel ler que aquilo que estava fora sua narrativa epistolar para a Barbie seraacute
entregue ao mundo da gaveta o interno e passe a habitar esse lsquodomiciacuteliorsquo escondido Entretanto
Alice jaacute internalizou marcas de linguagem regionais como as tachadas em negrito lsquoguriarsquo e lsquotu
natildeo leva a mal taacutersquo significando esse ponto uma transformaccedilatildeo de aspectos de sua identidade a
incorporaccedilatildeo da linguagem oral como proacutepria Internalizou o que estava fora tornou-o seu
tambeacutem passou a sentir-se parte Como resultado guardou no interno na gaveta seu diaacuterio que
sendo comunicaccedilatildeo consigo era dirigido a um interlocutor
Esse eacute o permanente tracircnsito do livro essa dissociaccedilatildeo permeia cada vivecircncia e eacute atraveacutes
dessa mobilidade que Alice pode ver a si mesma e se transformar Sacudida pelo real perigo de
sua itineracircncia permanente aproxima-se do fim de sua busca por um Ciacutecero que nem espera mais
encontrar
Ao longo da narrativa haacute frases sem ponto final no teacutermino dos capiacutetulos e muitas vezes
com ideias inacabadas Um elemento ligado a esse aspecto eacute o das muacuteltiplas linguagens surgem
epiacutegrafes vindas de outros autores contemporacircneos e em vaacuterias partes do livro elementos
graacuteficos aludindo a folhetos colados no diaacuterio Assim a ruptura da linguagem linear adotando
uma expressatildeo proacutepria eacute composta por frases descontiacutenuas e de outras em que a viacutergula daacute
apenas a pausa necessaacuteria ao ritmo da voz sem preocupaccedilotildees formais com a gramaacutetica
Prevalece aliaacutes o registro do informal com letras maiuacutesculas seguindo viacutergulas interrogaccedilotildees
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no meio da frase sem uma letra maiuacutescula a seguir e assim por diante trazendo muito mais um
lsquocomo se falarsquo do que um lsquocomo se lecircrsquo
Tal elemento alia-se a um projeto graacutefico que apresenta aleacutem de texto imagens para
contemplar a lsquoformarsquo do livro como um diaacuterio Esta complementaridade toca em um tema de
grande relevacircncia no contemporacircneo a ligaccedilatildeo das artes para expressar um todo que ultrapasse
os territoacuterios particulares uma intersecccedilatildeo de saberes e de poeacuteticas que independentes em sua
importacircncia complementem-se As figuras lsquocoladasrsquo no diaacuterio natildeo parecem ter conexatildeo entre si
mas transmitem a ideia de uma escolha Foram postas ali por Alice Natildeo parece haver unidade
entre as imagens Colagem de figuras mas tambeacutem de vinhetas que se tornam epiacutegrafes sem
conexatildeo aparente entre si Essa ausecircncia de conexatildeo eacute possivelmente o que a obra pretende
comunicar com suas dissociaccedilotildees e com as frases descontiacutenuas agrave medida que a personagem
percorre o trajeto da autonomia as frases vatildeo ganhando finalizaccedilatildeo Ela comeccedila a decidir
Nesse livro a ausecircncia de unidade parece representar exatamente o contraacuterio sua
unidade Outro ponto a ser ressaltado eacute o fato de o diaacuterio ser escrito em uma mistura de tempos
natildeo seguindo a cronologia tiacutepica dos diaacuterios Muito do texto referente agrave eacute registrado em olhar
retrospectivo a todo o periacuteodo e natildeo segue uma ordem temporal tiacutepica em que a escrita iacutentima
sucede cada evento Mistura de tempos e de autores escolhidos para as epiacutegrafes e de figuras
selecionadas para compor o percurso lsquograacuteficorsquo da personagem como a nota da padaria a
propaganda da imobiliaacuteria a divulgaccedilatildeo da cliacutenica de traumatologia e por aiacute vai
Quarenta dias acontece no cerne mais cru da capital as vilas as avenidas movimentadas
a rodoviaacuteria os viadutos de moradores de rua os becos as paradas de ocircnibus o pronto-socorro
os cenaacuterios tiacutepicos de apartamento de lsquocidade grandersquo
Alice eacute uma personagem urbana implantada em Porto Alegre sem colar-se agrave cidade mas
que quanto mais se torna moradora de rua mais se torna pertencente ao mapa porto-alegrense
Mesmo sem perceber Faz-se aderida agraves ruas aos becos agraves vilas aos botecos agraves paradas de
ocircnibus onde dorme Eacute fio da trama quer estar fora porque reluta em aceitar a vida que a ela foi
imposta pela filha Neste processo cria uma vida para si cria um olhar para a cidade que vai
habitando No geruacutendio Alice torna-se parte Faz-se parte quando adentra a rua os viadutos
habitados agrave noite os crimes em matagais o cafeacute e o mate e o cachorro-quente oferecidos pelos
voluntaacuterios na madrugada O banho na rodoviaacuteria o banco duro de madeira onde dorme no HPS
Alice vai tomando voz vai tomando-se de sua voz que haacute tempos natildeo ouvia
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32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS
Fenocircmenos psiacutequicos como a consciecircncia a memoacuteria a emoccedilatildeo o pensamento e o juiacutezo
criacutetico entre outros satildeo estudados principalmente pelo campo da Fenomenologia Psiquiaacutetrica
esses constituem os pilares para a avaliaccedilatildeo do estado mental de um indiviacuteduo O psiquiatra
examina a qualidade da expressatildeo dos mesmos na entrevista com o paciente verificando se estatildeo
dentro da normalidade ou se apresentam desvios compatiacuteveis com um quadro psicopatoloacutegico
Algumas capacidades satildeo compostas por um conjunto desses fenocircmenos e natildeo apenas por um
esse eacute o caso da autonomia
O indiviacuteduo natildeo nasce com autonomia Esta deve ser estimulada pelos pais desde o
momento em que a crianccedila deixa de mamar no peito e comeccedila a receber a alimentaccedilatildeo soacutelida
Brinca de fechar a boca enquanto a colher vem com a papinha O comer eacute a primeira autonomia
depois da dependecircncia representada pela amamentaccedilatildeo Entatildeo a crianccedila aprende a segurar a
colher entatildeo pouco a pouco os outros talheres Aprende a gostar de comer isso ou aquilo a
apontar o que deseja em seu prato A autonomia vai sendo aprendida na infacircncia pelo engatinhar
e pelo caminhar Segue-se o controle dos esfiacutencteres que vai sendo aprendido o limpar-se o
tomar banho o ficar sem os pais no maternal E tantas outras conquistas ensinadas e estimuladas
para a aquisiccedilatildeo dessa capacidade Entretanto limitaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas podem desde o
iniacutecio da vida restringir seu desenvolvimento
Jaspers compreende as manifestaccedilotildees psiacutequicas tendo como base elementos da
Fenomenologia Desse modo a autonomia resultaria de um conjunto de fatores que em bom
funcionamento determinariam a adequada manutenccedilatildeo dessa capacidade Em contrapartida o
neurocientista Antocircnio Damaacutesio eacute apresentado nesta fundamentaccedilatildeo por suas pesquisas
neurobioloacutegicas sobre o fenocircmeno da consciecircncia na qual aponta existir o nuacutecleo da consciecircncia
de si Nesta estaria o cerne para a autonomia
A escolha e a independecircncia paracircmetros que estatildeo associados agrave essa capacidade
necessitam que haja no ser humano em primeiro lugar a consciecircncia e nesta a consciecircncia de
si a escolha e a decisatildeo acontecem no domiacutenio do pensamento mas envolvem tambeacutem as
emoccedilotildees (representadas pelo afeto e o humor) e o juiacutezo criacutetico Por fim a escolha se realiza
atraveacutes de uma accedilatildeo expressa pela conduta Todos esses elementos satildeo fenocircmenos psiacutequicos que
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compotildeem a capacidade de autonomia de um indiviacuteduo Quando essa se apresenta reduzida por
algum dos paracircmetros indicados avalia-se a presenccedila ou a ausecircncia de normalidade por
conseguinte avalia-se a existecircncia de psicopatologia Os outros fenocircmenos - atenccedilatildeo orientaccedilatildeo
memoacuteria sensopercepccedilatildeo inteligecircncia e linguagem- estatildeo presentes na avaliaccedilatildeo do estado
mental do indiviacuteduo compondo tambeacutem sua autonomia no entanto apresentam-se em grau de
menor relevacircncia para seu desenvolvimento
Aleacutem de escolha independecircncia consciecircncia de si e decisatildeo outras expressotildees podem
ser associadas a seu exerciacutecio liberdade individualidade vontade self eu Em termos
etmoloacutegicos a palavra autonomiacutea procede do latim autonomĭa e esta por sua vez do grego
αὐτονομία (autonomia) formada por αὐτός (autoacutes) que significa lsquomesmorsquo e νόμος (noacutemos) lsquoleirsquo
ou lsquonormarsquo Assim seria possiacutevel compreender que o significado aponta para a noccedilatildeo de
autonomia como lsquoleis para si mesmorsquo ou seja as leis que o proacuteprio indiviacuteduo define para sua
vida
Considerando a autonomia como capacidade eacute necessaacuterio apontar que em casos de
sofrimento psiacutequico essa apresenta-se muitas vezes reduzida pois o sofrer acaba por reduzir a
possibilidade de o indiviacuteduo sentir-se livre para as proacuteprias escolhas Em ateacute que ponto este
quadro representa uma circunstacircncia normal e a partir de qual se torna patoloacutegico O sofrimento
pode resultar de uma crise vital com duraccedilatildeo por um periacuteodo esperado e apresentaccedilatildeo de
sintomas dentro da normalidade ou pode resultar do adoecimento do indiviacuteduo com sintomas
presentes em intensidade maior e por periacuteodo mais longo A restriccedilatildeo da liberdade e portanto da
autonomia ocorreraacute de acordo com o tipo e com a duraccedilatildeo deste sofrimento Tal diminuiccedilatildeo na
narrativa pode ser vista de dois modos como parte do sofrimento psiacutequico vivenciado pela
personagem e como perda real de sua experiecircncia de autonomia jaacute que teve sua vinda ao Sul
definida pela escolha da filha Natildeo por sua decisatildeo Eacute por perceber-se nesta condiccedilatildeo que Alice
parte na direccedilatildeo de sua autonomia para sentir-se livre novamente
Karl Jaspers apresenta elementos relacionados agrave autonomia em sua obra Psicopatologia
geral sem que esse termo propriamente dito seja conceituado ou explicitado A expressatildeo mais
proacutexima eacute a da consciecircncia do eu considerada dentre o que ele estabelece como lsquofenocircmenos
subjetivos da vida psiacutequicarsquo Esta consciecircncia estaacute na base fundamental para o desenvolvimento
da autonomia ao lado de outro fenocircmeno apontado o da lsquoconsciecircncia do corporsquo
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Na apresentaccedilatildeo da lsquoconsciecircncia do eursquo Jaspers define quatro componentes o primeiro eacute
o sentimento de atividade uma consciecircncia de atividade do eu Este se refere a tudo o que ocorre
na vida psiacutequica e que o indiviacuteduo identifica como seu a exemplo de percepccedilotildees sensaccedilotildees do
corpo lembranccedilas representaccedilotildees pensamentos e sentimentos Todas essas atividades do eu que
o caracterizam satildeo operaccedilotildees pessoais realizadas em si mesmo e identificadas como proacuteprias e
compotildeem o que o autor denomina personalizaccedilatildeo Quando haacute alteraccedilatildeo desses aspectos usa-se o
termo despersonalizaccedilatildeo fenocircmeno que pode ser descrito como o estranhamento do eu a
percepccedilatildeo de que tudo o que ocorre com o indiviacuteduo eacute na verdade alheio ao mesmo
Tal estranhamento ocorre no mundo das percepccedilotildees junto agrave ausecircncia de sensaccedilotildees
normais do proacuteprio corpo agrave incapacidade subjetiva de recordar-se de dados referentes a si agrave
inibiccedilatildeo dos sentimentos e ao automatismo de processos voluntaacuterios Tudo passa a constituir um
conjunto de atividades alheias ao eu e que em condiccedilotildees de normalidade deveriam ser
compreendidas como proacuteprias
O segundo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia da unidade ou seja a
unidade do eu Esta se refere agrave possibilidade de o indiviacuteduo perceber a si mesmo como unidade
ser um soacute no mesmo instante e natildeo como dois seres distintos ainda que atraveacutes de accedilotildees
diferentes (como ouvir a proacutepria voz enquanto fala e reconhecer que eacute sua proacutepria voz) A
alteraccedilatildeo da unidade do eu ocorre quando haacute um desdobramento da percepccedilatildeo de si observando
o eu como se estivesse fora dele
O terceiro componente da consciecircncia do eu eacute a consciecircncia da identidade ou seja a
identidade do eu Com a frase lsquosou o mesmo de antesrsquo refere-se agrave identidade como a consciecircncia
de ser o mesmo indiviacuteduo no seguir do tempo a constacircncia de si proacuteprio A alteraccedilatildeo deste
fenocircmeno leva o paciente a perceber o lsquoeursquo de um periacuteodo de vida como diferente do lsquoeursquo de
outro periacuteodo como antes e depois da instalaccedilatildeo de uma doenccedila psiacutequica por exemplo
O uacuteltimo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia do eu em oposiccedilatildeo ao mundo
externo e ao outro em que o indiviacuteduo eacute capaz de reconhecer a proacutepria identidade e de percebecirc-la
distinta do mundo externo e da identidade de outra pessoa Existe nesse componente a clara
contraposiccedilatildeo entre este indiviacuteduo e o mundo externo
Tais elementos constituem assim a lsquoconsciecircncia do eursquo base para a percepccedilatildeo das
proacuteprias necessidades e desejos neste sentido constituem tambeacutem a base para as escolhas
individuais no plano do pensamento dos sentimentos e das accedilotildees compreendidas pelo indiviacuteduo
100
como proacuteprias a si Ao lado dos componentes apresentados estaacute a consciecircncia do corpo Sobre
essa consciecircncia Jaspers refere
[] sou consciente do meu corpo como de minha existecircncia e contemporaneamente eu o
vejo com os olhos e o toco com as matildeos O corpo eacute a uacutenica parte do mundo que deve ser
sentida ao mesmo tempo pelo interno e percebida na superfiacutecie Esse eacute um objeto para
mim e sou esse mesmo corpo Satildeo duas coisas diferentes como me sinto
corpoereamente e como me percebo como objeto mas as coisas satildeo ligadas de modo
indissoluacutevel (JASPERS 2000 p95)
De acordo com o autor essa deve ser conhecida do ponto de vista fenomenoloacutegico
mediante a percepccedilatildeo de nossa experiecircncia global com nosso corpo Essa consciecircncia estaacute mais
proacutexima agrave lsquoconsciecircncia do eursquo nas atividades musculares e de movimento mais distantes das
sensaccedilotildees associadas ao coraccedilatildeo e agrave circulaccedilatildeo e ainda mais afastadas das sensaccedilotildees oriundas da
atividade vegetativa Enquanto o movimento eacute resultado das funccedilotildees voluntaacuterias os mecanismos
fisioloacutegicos vinculados ao coraccedilatildeo agrave circulaccedilatildeo e agrave atividade vegetativa satildeo inerentes agrave vida do
ponto de vista bioloacutegico e portanto involuntaacuterios A consciecircncia do corpo associada agravequela do
eu eacute referida por Jaspers por determinados fatores
Temos um sentimento especiacutefico da nossa existecircncia corpoacuterea no movimento e no
comportamento na forma na leveza e graccedila ou no peso na falta de agilidade motora na
impressatildeo que desejamos que nosso corpo desperte no outro no estado de fraqueza ou
de forccedila nas alteraccedilotildees da sauacutede [] A experiecircncia do proacuteprio corpo eacute ligada
estritamente do ponto de vista fenomenoloacutegico com a experiecircncia do sentimento das
pulsotildees instintivas da consciecircncia do eu (JASPERS 2000 p96)
Essas duas expressotildees da consciecircncia a do eu e a do corpo compotildeem o indiviacuteduo capaz
de perceber a si mesmo como unidade com uma identidade constante no tempo uacutenica em si
mesma e contraposta ao mundo externo a si e a outras pessoas De acordo tambeacutem com Jaspers
ldquo[] o corpo eacute a realidade da qual se pode dizer eu sou esse mesmordquo (JASPERS 2000 p383) O
autor refere que ldquo[] a situaccedilatildeo fundamental do ser humano eacute a estar no mundo como ser
singular finito ser dependente mas ter a possibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevel limitado
por confins obrigatoacuteriosrdquo (JASPERS 2000 p352) Em tal reflexatildeo a autonomia do indiviacuteduo
estaacute nesta lsquopossibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevelrsquo determinada pelo autor Entretanto ele
define tal possibilidade associada a confins obrigatoacuterios que delimitam o espaccedilo individual
Jaspers estabelece os limites entre autossuficiecircncia e dependecircncia apontando que somos
seres dependentes em nossa realidade e que a autossuficiecircncia completa eacute um ideal inatingiacutevel
101
[] no homem haacute a tendecircncia a imaginar-se um ser ideal que fechado em si seja
autossuficiente e que satisfeito em si mesmo viva sem sentir necessidade de qualquer
coisa do externo porque ele existe em si mesmo em abundacircncia infinita Se o homem
quiser tornar-se tal ser deveraacute compreender de modo draacutestico que eacute simplesmente
dependente em tudo Ele como ser vital tem necessidades que soacute podem ser satisfeitas
pelo externo Ele deve viver e valer na sociedade para participar aos bens necessaacuterios agrave
vida Ele deve viver com outros seres humanos em reciprocidade (JASPERS 2000
p354)
Assim para Jaspers a consciecircncia de si e a consciecircncia do corpo formam a unidade do ser
individual que pode agir em um espaccedilo mutaacutevel no qual o indiviacuteduo eacute consciente se si mesmo e
das proacuteprias accedilotildees mas cuja autossuficiecircncia eacute condicionada a confins obrigatoacuterios a realidade
externa os bens necessaacuterios agrave vida (alimentos moradia recursos econocircmicos para vestir-se e
deslocar-se por exemplo) e os outros indiviacuteduos com quem este interage em suas relaccedilotildees
interpessoais A autonomia assim acontece dentro de um espaccedilo definido por limites reais do
mundo externo
O neurologista e neurocientista Antonio Damaacutesio assim como Jaspers tambeacutem
estabelece uma associaccedilatildeo direta entre a consciecircncia do eu e o corpo O elemento da consciecircncia
do indiviacuteduo sobre si mesmo eacute denominado por ele de Self e eacute parte da estrutura que define
como consciecircncia Damaacutesio parte da comparaccedilatildeo do ser humano com organismos unicelulares e
estabelece
Uma chave para compreendermos os organismos vivos desde aqueles compostos de
uma uacutenica ceacutelula ateacute os formados por bilhotildees de ceacutelulas eacute a definiccedilatildeo de sua fronteira a
separaccedilatildeo entre o que estaacute dentro deles e o que estaacute fora A estrutura do organismo estaacute
dentro da fronteira e a vida do organismo eacute definida pela manutenccedilatildeo dos estados
internos agrave fronteira E a individualidade singular depende dessa fronteira (DAMAacuteSIO
2000 p178)
A referecircncia de Antonio Damaacutesio estaacute de acordo com a perspectiva de Karl Jaspers no
que tange agrave lsquoindividualidade singularrsquo dentro da fronteira separada do mundo externo a parte de
fora dessa fronteira O neurocientista explicita que o indiviacuteduo singular deve apresentar
sobretudo ldquo[] um grau notaacutevel de invariacircncia estrutural para que consiga oferecer uma unidade
de referecircncia no decorrer de longos periacuteodosrdquo acrescentando que ldquo[] de fato continuidade de
referecircncia eacute o que o self precisa proporcionarrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Essa continuidade de
referecircncia coincide com um dos componentes da lsquoconsciecircncia do eursquo definida por Jaspers aquele
em que o indiviacuteduo permanece com a percepccedilatildeo de si mesmo ao longo do tempo
102
O aspecto que se relaciona agrave reflexatildeo sobre a autonomia a partir da leitura de Damaacutesio
encontra-se em tal continuidade ligada por sua vez ao que ele aponta como estabilidade Este
autor refere que ldquo[] quando refletimos acerca do que estaacute por traacutes da noccedilatildeo de self encontramos
a noccedilatildeo do indiviacuteduo singular E quando pensamos no que estaacute por traacutes da singularidade do
indiviacuteduo encontramos a estabilidaderdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Quando se refere agrave noccedilatildeo de
estabilidade Damaacutesio estaacute na verdade apresentando a ideia de que um organismo vivo deve ter
constacircncia em seu meio interno para manter a vida e essa constacircncia pode ser explicada nas
palavras do autor como ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados internos de modo
que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Ao trazer a noccedilatildeo de constacircncia o autor estaacute falando em organismo e sobretudo em
sobrevivecircncia A chave de sua reflexatildeo reside no fato de remeter-se agrave noccedilatildeo de estabilidade dos
paracircmetros do organismo compatiacuteveis com a vida para chegar ao fenocircmeno da consciecircncia do
eu Damaacutesio aponta que
Um organismo simples formado de uma uacutenica ceacutelula digamos uma ameba natildeo apenas
estaacute vivo mas se empenha em continuar vivo Sendo uma criatura sem ceacuterebro e sem
mente a ameba natildeo sabe sobre as intenccedilotildees do seu proacuteprio organismo assim como noacutes
sabemos sobre nossas intenccedilotildees equivalentes [] O que estou tentando mostrar eacute que o
iacutempeto de manter-se vivo natildeo eacute um avanccedilo recente Natildeo eacute uma propriedade exclusiva
dos seres humanos De um modo ou de outro dos organismos simples aos complexos a
maioria dos seres vivos apresenta essa propriedade O que efetivamente varia eacute o grau
em que os organismos tecircm conhecimento desse iacutempeto Poucos deles tecircm Mas o iacutempeto
estaacute presente quer o organismo saiba disso ou natildeo Graccedilas agrave consciecircncia os humanos
satildeo em grande parte cientes dele (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Eacute possiacutevel compreender entatildeo a referida estabilidade como o iacutempeto do organismo em
manter-se vivo nos seres humanos existe a consciecircncia desse iacutempeto O indiviacuteduo singular
como denomina o autor eacute consciente de sua sobrevivecircncia que ocorre no ambiente interno de
sua fronteira ou seja em seu corpo Para conservaacute-la com a estabilidade necessaacuteria agrave
permanecircncia de vida deve manter constantes paracircmetros internos em sua fisiologia Comer
dormir beber liacutequidos proteger-se de extremos de temperatura urinar e defecar algumas das
funccedilotildees que realizamos conscientemente para responder a essa finalidade cumprimos
necessidades vitais respondemos ao iacutempeto do organismo em manter-se vivo mas o realizamos
com o claro propoacutesito de fazecirc-lo Damaacutesio refere que ldquo[] a cada momento o ceacuterebro tem agrave sua
disposiccedilatildeo uma representaccedilatildeo dinacircmica de uma entidade com variaccedilotildees limitadas de estados
possiacuteveis- o corpordquo (DAMAacuteSIO 2000 p186)
103
A consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo portanto estatildeo na base do indiviacuteduo
singular A manutenccedilatildeo do ambiente dentro da fronteira nosso corpo eacute realizada por nossa
consciecircncia no cumprimento de nossas funccedilotildees vitais de certo modo escolhemos cumprir tais
funccedilotildees ao respeitarmos necessidades fisioloacutegicas entre elas comer e dormir Assim
sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas por um elemento em comum a consciecircncia que o
indiviacuteduo tem de si mesmo Entretanto deve-se salientar que a autonomia eacute uma capacidade que
poderaacute existir em maior ou menor grau durante o ciclo vital pois depende das possibilidades
fiacutesicas e psiacutequicas do ser humano em responder agraves exigecircncias da vida dentro de paracircmetros de
normalidade
Alguns elementos podem restringir a capacidade de autonomia sendo o sofrimento
psiacutequico um deles por reduzir a liberdade de o indiviacuteduo em fazer suas escolhas Tal reduccedilatildeo eacute
determinada pelo proacuteprio sofrimento inerente a patologias psiquiaacutetricas ou a crises vitais como
por exemplo a reaccedilatildeo a um evento traumaacutetico
Massimo Biondi em seu livro A mente selvagem um ensaio sobre a normalidade nos
comportamentos humanos apresenta o viacutenculo do sofrimento subjetivo com a reduccedilatildeo da
liberdade Sobre esse tema discute o limite entre normalidade e psicopatologia quando se aborda
o indiviacuteduo que sofre Segundo esse psiquiatra italiano no capiacutetulo intitulado lsquoO sofrimento
subjetivo e a liberdadersquo que o sofrimento subjetivo e a anguacutestia a reduccedilatildeo ou falta de liberdade e
a reduccedilatildeo da vontade satildeo aspectos que invariavelmente acompanham o distuacuterbio psiacutequico quanto
a este pode-se falar da importacircncia da vivecircncia subjetiva de determinado evento ou situaccedilatildeo
existencial para procurar definir os limites entre a normalidade psiacutequica e a patologia
O sofrimento subjetivo termo empregado por esse autor constitui um criteacuterio para
diversos diagnoacutesticos psiquiaacutetricos e tem como eixos principais a experiecircncia subjetiva e aquela
psiacutequica a primeira referente agrave percepccedilatildeo subjetiva de um evento existencial ou de um
sentimento pode ser avaliada apenas indiretamente por suas manifestaccedilotildees e pelo relato do
indiviacuteduo que sofre A segunda em linhas gerais refere-se agrave resposta do indiviacuteduo em termos
psiacutequicos ou seja atraveacutes de alteraccedilotildees dos fenocircmenos do estado mental conduzindo ao
diagnoacutestico Massimo Biondi aponta quatro componentes do que denomina sofrimento psiacutequico
a) Um estado de sofrimento subjetivo mesmo que natildeo espontaneamente referido pela
pessoa em niacutevel verbal b) uma reduccedilatildeo ou perda da liberdade sobre os proacuteprios
pensamentos e sobre as proacuteprias accedilotildees c) uma alteraccedilatildeo do proacuteprio projeto de existecircncia
104
e da capacidade de projetar o futuro d) uma alteraccedilatildeo reduccedilatildeo ou anulaccedilatildeo da vontade
(BIONDI 1996 p40)
O segundo componente relativo agrave reduccedilatildeo ou perda da liberdade eacute elemento comum e
distintivo que atravessa a existecircncia de pessoas com distuacuterbios psiacutequicos Tal elemento eacute um dos
criteacuterios de patologia psiquiaacutetrica de uma relevante instituiccedilatildeo da especialidade mas natildeo estaacute
restrito apenas aos diagnoacutesticos tal perda estaacute associada ao proacuteprio sofrimento Assim podemos
encontrar em indiviacuteduos que atravessam crises vitais essa perda de liberdade significando
reduccedilatildeo da autonomia de algueacutem que atravessa uma situaccedilatildeo de sofrimento subjetivo sem
necessariamente tal quadro constituir alguma patologia psiquiaacutetrica definida
Ainda de acordo com Biondi um indiviacuteduo pode apresentar um distuacuterbio psiquiaacutetrico
como causa de um evento especiacutefico existem quadros em que o evento estressante tem um claro
papel patogecircnico Nesses casos o sofrimento subjetivo gerado pelo evento aparece como
principal mediador que causa favorece e acompanha o estado psicopatoloacutegico Existem
entretanto condiccedilotildees em que o sofrer subjetivo natildeo eacute indicativo de um estado de doenccedila
propriamente dito mas pode estar associado a condiccedilotildees compreendidas dentro da normalidade
Um estado de sofrimento subjetivo decorre por exemplo de situaccedilotildees comuns e
lsquonormaisrsquo como luto perda de trabalho dificuldades afetivas ou conjugais fracasso escolar ou
profissional natildeo necessariamente evoluindo para um quatro de psicopatologia Algumas
situaccedilotildees inclusive satildeo vivenciadas como positivas pelo indiviacuteduo porque reestruturam algum
foco de seu mundo interno conduzindo a uma mudanccedila na percepccedilatildeo de determinadas
experiecircncias Em tais casos o sofrimento pode ser atenuado ou ateacute mesmo ter um valor
construtivo Eacute possiacutevel refletir que nessas condiccedilotildees a perda da liberdade seja temporaacuteria mas
ainda assim leve agrave melhora do indiviacuteduo em sua perspectiva de vida pois o sofrimento eacute
condiccedilatildeo muitas vezes para a tomada de consciecircncia da condiccedilatildeo humana
Por fim cabe referir a ressalva do proacuteprio autor
[] a normalidade natildeo eacute uma condiccedilatildeo caracterizada apenas pela ausecircncia de sofrimento
psiacutequico Muitos acontecimentos comuns da vida fazem sofrer agraves vezes de modo mais
intenso e persistente em situaccedilotildees totalmente normais [] O problema estaacute em
reconhecer o sofrimento normal daquele que define em sentido estrito alguma patologia
psiacutequica (BIONDI 1996 p53-56)
A reflexatildeo sobre a perda da liberdade inerente ao sofrimento psiacutequico em vigecircncia de
uma circunstacircncia normal ou de patologia psiquiaacutetrica inclui o entendimento de que a autonomia
105
estaacute reduzida quando este sofrimento acontece O indiviacuteduo durante o periacuteodo em que sofre eacute
limitado na capacidade de fazer escolhas saudaacuteveis para si e tal limitaccedilatildeo decorre da dor psiacutequica
propriamente dita Aleacutem de ser menos livre pois o que pensa e sente eacute condicionado por essa dor
o indiviacuteduo acometido sente menos vontade como refere Biondi ao mencionar o uacuteltimo dos
quatro componentes do sofrimento psiacutequico Pode-se novamente referir a reduccedilatildeo da autonomia
pois dela faz parte tambeacutem o fato de ter vontades e de dar voz agraves mesmas
33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA
O que nos move ao comer Brillat-Savarin em A fisiologia do gosto apontou o lsquosentido
geneacutesicorsquo ldquo[] o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro sendo a
sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecierdquo (DOacuteRIA 2009 p190) A referecircncia agrave obra claacutessica na
literatura gastronocircmica feita pelo pesquisador Carlos Alberto Doacuteria em seu livro A culinaacuteria
materialista eacute seguida pela seguinte reflexatildeo apresentada por ele
[] ora a reproduccedilatildeo da espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do
indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo
ao sexo e ao comer eacute o prazer a busca do agradaacutevel [] Precisamos nos encontrar com
o alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduos e isso se daacute por dois caminhos
pelo prazer e pela dor
A fome eacute a fonte de dor e nos leva em direccedilatildeo ao alimento o prazer em comer tambeacutem
nos leva em direccedilatildeo ao alimento antes que a dor nos imponha o seu caminho (DOacuteRIA
2009 p190)
lsquoA busca pelo alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduosrsquo nas palavras do autor
estaacute associada agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo precisamos
manter a vida para preservaacute-la motivo pelo qual nos nutrimos e copulamos A procura por
alimentos viaacuteveis eacute da histoacuteria do Homo sapiens assim como no ato de cozinhar
experimentavam-se teacutecnicas que favorecessem a ingestatildeo de animais e vegetais
Neste ponto cabe a reflexatildeo de que a procura por novos alimentos e o desenvolvimento
de modos para preparaacute-los resultou da iniciativa em descobrir novas possibilidades comestiacuteveis
da capacidade fiacutesica de fazecirc-lo e de vaacuterias capacidades deste homo sapiens Seria possiacutevel
compreender entre estas a autonomia conduzindo agrave compreensatildeo de que teria sido esta
capacidade em suas primeiras manifestaccedilotildees uma das responsaacuteveis pela partida em direccedilatildeo a
animais e vegetais para comer
106
Caberia citar tambeacutem a autonomia como responsaacutevel pelo desenvolvimento da descoberta
de cozinhar os alimentos aleacutem de aspectos inerentes agrave proacutepria evoluccedilatildeo da espeacutecie Desse modo
ela pode ter permitido a sobrevivecircncia em condiccedilotildees muitas vezes desfavoraacuteveis pelas escolhas
alimentares que favoreceu Sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas assim desde tempos
ancestrais conforme refere Carlos Alberto Doacuteria no mesmo livro
Assim como ensina o arqueozooacutelogo Jean-Denis Vigne haacute 30 mil anos o homem jaacute natildeo
comia soacute o que o seu ambiente imediato lhe oferecia por facilidade de captura mas ia
atraacutes de alimentos capazes de satisfazer suas imagens mentais mais fortes e expressivas
em termos sociais Especialmente nas regiotildees frias no Paleoliacutetico Superior sua dieta era
composta de animais com pouca disponibilidade de vegetais Jaacute no Mesoliacutetico o clima
se estabiliza e nas regiotildees temperadas comeccedila a apresentar maior utilizaccedilatildeo de vegetais
Entre 8000-9000 aC e 5000 aC desenvolve-se a dieta moderna em que as energias
humanas satildeo providas por lipiacutedeos e gluciacutedeos originados de animais e plantas
domesticadas Pode-se dizer entatildeo que dessa eacutepoca em diante o homem produz tudo
aquilo que come isto eacute produz a si proacuteprio do ponto de vista alimentar (DOacuteRIA 2009
p3)
Doacuteria aponta ainda o viacutenculo entre a dieta humana e o processo de hominizaccedilatildeo como a
aquisiccedilatildeo da postura biacutepede e por fim a expansatildeo do Homo erectus ao moderno Homo sapiens
que exigiu uma dieta suficientemente rica em calorias e nutrientes Aleacutem desse aspecto o autor
refere o domiacutenio do fogo que permitiu cozinhar os alimentos e seus benefiacutecios
O incremento de calorias se deu graccedilas tanto a ambientes mais favoraacuteveis quanto agrave
adoccedilatildeo da culinaacuteria da agricultura e de criteacuterios de seleccedilatildeo de espeacutecies alimentares
Cozinhar tornou os alimentos mais macios e faacuteceis de ingerir e viabilizou o consumo de
vegetais como a batata e a mandioca que na forma crua natildeo podiam ter seus nutrientes
metabolizados pelo corpo humano Desse modo esses carboidratos complexos se
tornaram digestiacuteveis e multiplicaram ao extremo as possibilidades alimentares Em
siacutentese esses procedimentos aliados agrave seleccedilatildeo de espeacutecies vegetais permitiram
incrementar sua produtividade sua digestibilidade e seu conteuacutedo nutricional (DOacuteRIA
2009 p32)
O Homo sapiens munido de maiores capacidades alimentava-se de forma cada vez
melhor no sentido de incrementar sua sobrevivecircncia nutrindo-se com maior variedade e melhor
qualidade da dieta adquiria novas capacidades e aprimorava aquelas jaacute dominadas resultando em
aumento na capacidade de descoberta de novos ingredientes e de preparo dos mesmos Instalava-
se assim um ciacuterculo entre o desenvolvimento de potencialidades tornando-o cada vez mais
capaz de sobreviver mesmo em condiccedilotildees adversas bem como de agir sobre tais condiccedilotildees
Tudo isso favorecia a vida e a reproduccedilatildeo da espeacutecie Sobrevivecircncia e autonomia novamente
aliadas pelo alimento O pesquisador norte-americano Michael Pollan alude a uma observaccedilatildeo de
Winston Churchill sobre a arquitetura ldquoPrimeiro cozinhamos nossa comida depois ela nos
107
cozinhourdquo (POLLAN 2014 p15) Pollan explica esse fenocircmeno ocupado pelo cozinhar em
nossa biologia
Portanto cozinhar nos transformou e natildeo apenas por nos tornar mais sociaacuteveis e
corteses Uma vez que o ato de cozinhar permitiu que expandiacutessemos nossas capacidades
cognitivas agrave custa da capacidade digestiva natildeo havia mais como voltar atraacutes nossos
ceacuterebros grandes e intestinos pequenos dependiam agora de uma dieta agrave base de
alimentos cozidos [] Isso quer dizer que cozinhar tornou-se compulsoacuterio- estaacute por
assim dizer cozido em nossa biologia (POLLAN 2014 p15)
A partir daiacute toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo incluindo o surgimento da gastronomia
conduz progressivamente a um grau de evoluccedilatildeo deste campo que ultrapassa a lsquomerarsquo demanda
pela sobrevivecircncia e preservaccedilatildeo da espeacutecie A sobrevivecircncia ao que parece natildeo ocupa mais o
centro no universo da cozinha O campo das accedilotildees e estudos ligados ao preparo do alimento
chega em nosso seacuteculo XXI em niacuteveis de superespecializaccedilatildeo e de glamourizaccedilatildeo nunca antes
imaginados Este eacute o caso para citar exemplos da Cozinha Molecular e dos programas
televisivos que invadem as casas com a famiacutelia muito mais atenta ao programa sobre comer do
que ao proacuteprio comer Hoje em dia aliaacutes sobreviver natildeo atinge a categoria de prioridade de
muitos indiviacuteduos fervorosos em sua autonomia contemporacircnea no desejo insalubre pelo prazer
da comida ou mesmo na pressa da vida urbana morrem por comer da pior forma possiacutevel
Para compreender esse processo vale refletir sobre como chegamos ateacute aqui A histoacuteria a
ser contada parte do ato de cozinhar que ldquo[] eacute como dizem os antropoacutelogos uma atividade que
nos define como seres humanos - o ato com o qual segundo o filoacutesofo e antropoacutelogo Claude
Levi-Strauss a cultura surgerdquo (POLLAN 2014 p13) Para Leacutevi-Strauss conforme referido por
Michael Pollan ldquo[] cozinhar servia como uma metaacutefora da transformaccedilatildeo humana da natureza
crua para a cultura cozidardquo (POLLAN 2014 p13) A respeito do papel do cozinhar para a
cultura Carlos Alberto Doacuteria refere
O que une as abelhas no coletivo eacute uma interaccedilatildeo quiacutemica chamada trofolaxe Ora aleacutem
da integraccedilatildeo neurosensorial devemos considerar que a trofolaxe humana eacute a linguagem
Eacute por intermeacutedio da linguagem que estamos acoplados com outros seres humanos e eacute
tambeacutem com ela que partilhamos nossas experiecircncias ateacute mesmo atraveacutes de enormes
distacircncias no tempo e no espaccedilo Nessa trofolaxe a relaccedilatildeo com os sabores do mundo se
daacute ao mesmo tempo pelo aparelho gustativo e pela cultura (DOacuteRIA 2009 p197)
Deve-se considerar a vasta gama de fatos da histoacuteria da alimentaccedilatildeo desde a preacute-histoacuteria
ateacute nosso terceiro milecircnio tendo como eixo a transformaccedilatildeo na cultura produzida pelo cozinhar
a fim de compreender as mudanccedilas exponenciais que a cozinha atravessou ateacute chegar agrave sua
108
representaccedilatildeo contemporacircnea Nesse contexto faz-se necessaacuterio definir os pontos de referecircncia
que marcaram a transiccedilatildeo a partir da qual sobreviver parece ter deixado de ocupar o motivo por
que o indiviacuteduo se alimenta
Um dos aspectos que podem ser apontados como referenciais na transiccedilatildeo acima abordada
eacute o iniacutecio da chamada restauraccedilatildeo ou seja o surgimento dos restaurantes dentro do nascimento
da hotelaria Em especial a existecircncia da comida de rua passa a ter um papel significativo neste
sentido A valorizaccedilatildeo da gastronomia cada vez maior desde o seacuteculo XVIII teve tambeacutem
influecircncia no processo ao deslocar para o prazer dos sentidos principalmente o do gosto o
centro de sua atenccedilatildeo
Entretanto haacute um ponto chave para a mudanccedila do foco da comida de aspecto nutricional
e gregaacuterio a fator de risco para as mais variadas doenccedilas fiacutesicas como a obesidade e a
hipertensatildeo arterial e para aquelas psiacutequicas como a anorexia e a bulimia tatildeo vigentes no seacuteculo
XXI Este ponto em sua origem estaacute no processo de industrializaccedilatildeo que culminou com o
deslocamento do comer da mesa do lar para o local de trabalho De que forma este pode
relacionar-se agrave sobrevivecircncia e agrave autonomia focos deste subcapiacutetulo Por dois caminhos o
primeiro refere-se ao fato de que o deslocamento restringiu as possiblidades de alimentaccedilatildeo e os
empregados ficaram submetidos ao que fosse oferecido em seu trabalho portanto com restriccedilatildeo
da autonomia o segundo caminho refere-se agraves ofertas alimentares propiciadas nos locais de
trabalho pouco dirigidas agrave sauacutede do indiviacuteduo e por extensatildeo ao papel nutricional da
alimentaccedilatildeo equivalente agrave sua sobrevivecircncia
Pode-se falar na evoluccedilatildeo dos centros urbanos e de suas demandas e transformaccedilotildees entre
estas a pressa que tambeacutem restringe as escolhas alimentares possiacuteveis Outra vez a restriccedilatildeo da
autonomia e o prejuiacutezo das escolhas agrave sauacutede Da pressa passamos ao fenocircmeno seguinte aquele
que Maacutessimo Montanari e Jean-Louis Flandrin denominam lsquoA McDonaldizaccedilatildeo dos costumesrsquo
no livro Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo do qual satildeo organizadores A pressa leva ao surgimento dos
fast-food pela sociedade norte-mericana estes por sua vez causam uma lista de patologias
cardiovasculares e oncoloacutegicas por exemplo A pressa e os fast-food tornam-se parte do
fenocircmeno de stress que aumenta a pressa e torna rotineira a alimentaccedilatildeo raacutepida reduzindo a
sauacutede e aumentando ainda mais o stress Instala-se o ciacuterculo vicioso da vida moderna O eixo de
nutriccedilatildeo que uma vez focircra o lar tornou-se a rua
109
Retomando um dos elementos discutidos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute possiacutevel perceber o
modo como as referidas mudanccedilas atingem a sobrevivecircncia Damaacutesio refere que para que um
organismo permaneccedila vivo eacute necessaacuterio ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados
internos de modo que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Em seu ensaio sobre a normalidade dos comportamentos humanos Massimo Biondi
apresenta um capiacutetulo em que aborda a normalidade dos padrotildees fisioloacutegicos de sobrevivecircncia
Explica que
O organismo eacute uma entidade viva Sua vida se baseia em processos bioloacutegicos de base
que devem respeitar algumas caracteriacutesticas A vida humana por exemplo eacute possiacutevel
para temperaturas corporais compreendidas entre 30 e 42deg Acima ou abaixo de tais
temperaturas para aleacutem de um certo tempo a vida eacute impossiacutevel []
Tal conceito vale para muitas outras variaacuteveis estudadas em medicina e fisiologia do
peso agrave altura da frequecircncia cardiacuteaca agrave pressatildeo arterial [] da quantidade diaacuteria de
accediluacutecar no sangue agraves caracteriacutesticas da urina
O criteacuterio da norma bioloacutegica assim como concebido aqui refere-se agrave normalidade de
funcionamento de estruturas bioloacutegicas que caracterizam a vida de um organismo e satildeo
compatiacuteveis com a mesma (BIONDI 1996 p169)
O indiviacuteduo do seacuteculo XXI em posse de sua autonomia acaba por fazer escolhas
alimentares contra a proacutepria sobrevivecircncia pois alteram os padrotildees de normalidade compatiacuteveis
com a sauacutede e em uacuteltima instacircncia com a proacutepria vida eacute o caso do impacto de alimentos do
regime fast-food na sauacutede resultando em diabetes hipertensatildeo arterial e sobrepesoobesidade
Tal resultado entre outros deve-se agrave ingestatildeo excessiva de carboidratos gorduras e
trigliceriacutedeos presentes nesta forma lsquodesnutricionalrsquo
A autonomia desse modo que muitas vezes eacute fonte de extrema valorizaccedilatildeo em tempos
nos quais a individualidade ocupa papel central leva o homem contemporacircneo a atacar a
sobrevivecircncia e natildeo mais a preservaacute-la Nesse ponto da histoacuteria da alimentaccedilatildeo sobrevivecircncia e
autonomia afrouxaram o dar as matildeos De acordo com Michael Pollan ldquoPesquisas de opiniatildeo
confirmam que a cada ano cozinhamos menos e compramos mais refeiccedilotildees prontasrdquo
(POLLAN 2014 p11)
Este autor traz reflexotildees relevantes quanto ao paradoxo do papel da cozinha em nossa
contemporaneidade apontando que ao mesmo tempo que o tempo de cozinhar diminui aumenta
o tempo de dedicaccedilatildeo a assistir programas de cozinha na televisatildeo aleacutem de outras modificaccedilotildees
mencionadas por ele sobre as escolhas alimentares O que chama a atenccedilatildeo na obra de Michael
Pollan eacute o fato de ele mencionar o ponto em que chegamos sob a perspectiva de nossa cultura
110
alimentar global Sendo este um pesquisador reconhecido e respeitado internacionalmente eacute
positivo que exponha em tom pungente os resultados de pesquisas e perspectivas no
embasamento de suas reflexotildees Posiciona-se frente a vaacuterios problemas graves ligados ao modo
de comer de nosso tempo ao mencionar a reduccedilatildeo do haacutebito de cozinhar e suas consequecircncias
ldquo[] natildeo eacute surpresa alguma o decliacutenio do haacutebito de cozinhar em casa coincidir com o aumento da
incidecircncia da obesidade e de todas as doenccedilas crocircnicas associadas agrave alimentaccedilatildeordquo (POLLAN
2014 p16)
O elemento apontado por este autor e que se relaciona agrave relaccedilatildeo entre a comida e as
relaccedilotildees interpessoais declara que a refeiccedilatildeo em famiacutelia deu lugar em larga escala ao comer
sozinho Autonomia praticidade e individualismo parecem estar no centro deste fenocircmeno
A ascensatildeo do fast-food e o decliacutenio da comida caseira tambeacutem abalaram a instituiccedilatildeo da
refeiccedilatildeo compartilhada por nos estimularem a comer coisas diferentes com pressa e
muitas vezes sozinhos Pesquisas dizem que estamos dedicando mais tempo agrave
lsquoalimentaccedilatildeo secundaacuteriarsquo que eacute como denominamos esse costume meio constante de
beliscar alimentos embalados e menos tempo agrave lsquoalimentaccedilatildeo primaacuteriarsquo - termo um tanto
deprimente para a instituiccedilatildeo outrora respeitada e conhecida como refeiccedilatildeo
A refeiccedilatildeo compartilhada natildeo eacute algo insignificante Trata-se de um dos fundamentos da
vida em famiacutelia o lugar onde as crianccedilas aprendem a arte da conversaccedilatildeo e adquirem
haacutebitos que caracterizam a civilizaccedilatildeo repartir ouvir ceder a vez administrar
diferenccedilas discutir sem ofender (POLLAN 2014 p16 grifo do autor)
A autonomia agrave eneacutesima potecircncia deixa de ser uma capacidade para tornar-se uma redoma
Acabamos tornando-nos seres livres em excesso talvez Por termos pressa querermos prazeres e
independecircncia extremos sobreviver passou agrave categoria de um lsquotanto fazrsquo em prol do proveito
maacuteximo do instantacircneo Vale retomar a reflexatildeo de Karl Jaspers sobre a consciecircncia do eu
definida por limites externos e reais nossa autossuficiecircncia eacute delimitada pela dependecircncia que
temos de recursos externos como por exemplo os bens alimentares e das pessoas significativas
em nossa vida Dependemos desses bens assim como dos relacionamentos familiares afetivos e
profissionais todos necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia do ponto de vista fiacutesico e psiacutequico
A autonomia conquistada para sobrevivermos na evoluccedilatildeo da espeacutecie chegou a um grau
de importacircncia em nosso universo contemporacircneo que parece ter ultrapassado o instinto de
preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo Viver a liberdade as vontades e
prazeres sobrepuja o proacuteprio sobreviver Autonomia e sobrevivecircncia parecem ter soltado as matildeos
111
34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI
A leitura do romance Quarenta dias permite identificar a cozinha presente em trecircs
periacuteodos principais da narrativa representados respectivamente por trecircs elementos especiacuteficos
O primeiro aparece nas paacuteginas iniciais quando Alice comeccedila a relatar em seu caderno o
periacuteodo que antecedeu a mudanccedila para Porto Alegre lembrando-se do egoiacutesmo de Norinha sua
filha desde quando ainda morava em Joatildeo Pessoa Tais recordaccedilotildees fornecem pistas do
comportamento da moccedila ao determinar as transformaccedilotildees na vida da matildee para satisfazer seus
interesses
O segundo elemento abrange os primeiros dias da chegada de Alice a inconformidade
com a nova moradia onde a cozinha que define como lsquode show-roomrsquo expressa uma atmosfera
impessoal e asseacuteptica agrave qual ela natildeo consegue se adaptar Aparece nesta etapa o choque de sua
nova realidade e a tentativa de aceite de todas as mudanccedilas de vida impostas pela filha
A importacircncia de refletir sobre os dois elementos apresentados acima estaacute no fato de esses
demonstrarem Alice em sua vida em Joatildeo Pessoa e logo na chegada em Porto Alegre Os dois
periacuteodos expressam o comportamento de Norinha como explicaccedilatildeo para sua conduta egoiacutesta em
relaccedilatildeo agrave matildee e expressam tambeacutem a relaccedilatildeo de Alice com a consciecircncia de si mesma e com a
autonomia Assim os dois periacuteodos anteriores agrave procura por Ciacutecero descritos por ela agrave Barbie
em seu caderno anunciam o porquecirc de desejar a retomada de si mesma durante os dias em que
transplanta sua vida para o espaccedilo urbano
O terceiro elemento por fim refere-se ao tema deste capiacutetulo a comida como
representaccedilatildeo da necessidade de autonomia vinculada ao processo de tomada de consciecircncia de
si incluindo suas escolhas necessidades de sobrevivecircncia gostos e memoacuterias gustativas que satildeo
parte de sua identidade Nesse terceiro elemento que ocupa a maior parte da anaacutelise encontra-se
uma cozinha transplantada para o universo urbano espaccedilo que Alice habita nos quarenta dias
Junto agrave comida expressa por carrinhos de pipoca botecos moradias em vilas- onde lhe
oferecem cafeacute chimarratildeo e algo para comer- padarias e um restaurante de rodoviaacuteria estaacute a
representaccedilatildeo de uma vida cujo cenaacuterio eacute o proacuteprio espaccedilo da cidade no dormir no banhar-se no
comer Eacute neste territoacuterio que Alice procura a si mesma enquanto em suas andanccedilas ela pergunta
por um desconhecido Ciacutecero Arauacutejo dentro de si vai encontrando aquela que eacute capaz de tomar as
proacuteprias decisotildees de sobrevivecircncia Progressivamente recupera a consciecircncia de si e as suas
112
vontades Um fator que deve ser ressaltado estaacute incluiacutedo neste terceiro elemento a ligaccedilatildeo
mesmo que efecircmera que Alice estabelece com as demais personagens da narrativa na maior
parte das vezes esta ligaccedilatildeo ocorre por intermeacutedio da comida que oferecem a ela ou que ela
partilha como no caso de Lola e Arturo
Eacute possiacutevel observar que haacute situaccedilotildees em que o cuidado de desconhecidos para com ela
ocorre ao oferecerem um chaacute um cafeacute um biscoito nas casas de vilas por onde passa o mesmo
cuidado eacute feito por Penha que coloca com esmero a mesa para Alice no restaurante da
rodoviaacuteria tratando-a com gentileza e camaradagem ou pela proacutepria Milena que cuida de Alice
com chaacute e canja de galinha no iniacutecio da histoacuteria quando esta teria voltado doente de sua visita a
Jaguaratildeo Ateacute mesmo Zelima que aparece na cena em que a protagonista se engasga com a
pipoca no Hospital de Pronto Socorro tem uma atitude de cuidado e de preocupaccedilatildeo para com
ela oferecendo-lhe aacutegua e acompanhando sua melhora
Estas breves expressotildees de carinho e zelo atraveacutes do alimento representam na obra a
nutriccedilatildeo que o cuidado interpessoal oferece muitas vezes na linguagem do alimento na vivecircncia
de Alice em sua nova vida porto-alegrense A capacidade de despertar sentimentos de cuidado de
afeto e de preocupaccedilatildeo da parte de outras pessoas demonstra caracteriacutesticas de uma Alice que
retoma o contato consigo que se reencontra
Mesmo com todo o trauma que atravessa a personagem eacute capaz de estabelecer viacutenculos
durante seus caminhos ainda que sejam breviacutessimos ilustram um aspecto de sua personalidade
Eacute algo seu que natildeo se perdeu com o roubo de sua autonomia e eacute justamente por seu modo de ser
que vai estabelecendo pontes para chegar a algum desfecho de sua procura durante a histoacuteria
pontes atraveacutes da comunicaccedilatildeo com as pessoas e comunicaccedilatildeo atraveacutes da comida que lhe eacute
servida das informaccedilotildees que lhe satildeo dadas do cuidado amistoso como no caso de Lola e de
Milena
Embora o foco do presente capiacutetulo seja a abordagem da conquista da autonomia da
personagem atraveacutes de suas decisotildees pela sobrevivecircncia eacute importante enfatizar que Alice em sua
vida em Joatildeo Pesssoa tinha tal autonomia Aleacutem de ter criado sua filha praticamente sozinha
tinha apartamento proacuteprio amigos e projetos reconhecimento de sua atividade profissional como
a lsquosensata Professora Poacutelirsquo conforme diversas vezes se denomina durante a narrativa Essa
capacidade sofreu abrupta reduccedilatildeo pela interferecircncia da filha quando definiu que a matildee iria se
transferir para Porto Alegre para cuidar do futuro neto
113
Este eacute entatildeo o primeiro elemento a ser abordado o egoiacutesmo da filha A conduta de
Norinha deveu-se a esse egoiacutesmo ao natildeo pensar no desejo de Alice e sim nos proacuteprios interesses
Apenas quando escreve a longa lsquocartarsquo para Barbie depois de sua jornada pela cidade a
protagonista eacute capaz de se recordar de episoacutedios antigos com a filha Esses eventos jaacute
denunciavam a postura da moccedila desde o comeccedilo da juventude O trecho a seguir mostra uma
dessas recordaccedilotildees
Ainda meio adormecida fechei a janela e voltei pra cama naquela madorna jaacute perto de
acordar de vez e entatildeo comecei a reviver cenas bobas de muito tempo atraacutes sem
importacircncia completamente esquecidas agora niacutetidas em sonho ou na minha memoacuteria
por que seraacutecoisas assim como o dia em que estava um friozinho excepcional pra
Joatildeo Pessoa e resolvi fazer uma sopa quente pro jantar aproveitando umas batatas-
baroas que tinha achado no mercado Batata-baroa saudade do siacutetio do meu avocirc uma
raridade na cidade mais batata inglesa cenoura cebola e caldo de galinha tudo de bom
O cheiro da sopa no fogo jaacute tinha impregnado a casa quando Nora chegou Vai fazer
sopa hoje Matildeiacutenha Que horas Jaacute estaacute pronta se quiser eacute soacute bater no
liquidificadorComo nunca me esperava pra cear pois iacutea correndo pra faculdade
apenas ouvi vagamente que estava mexendo na cozinha enquanto eu assistia agrave novelinha
das seis Tatildeo distraiacuteda com a novela nem percebi que ela jaacute tinha saiacutedo Tudo bem ateacute
que fui tratar de pocircr a mesa pra mim Soacute tinha sobrado menos de uma concha rasa de
sopa Pasme Barbie ela tinha se servido na tigela do feijatildeo Fiquei danada na hora mas
nada a fazer do que usar a imaginaccedilatildeo Jaacute eram quase sete e meia da noite Entatildeo botei
mais um copo dacuteaacutegua com uma colher de maisena meio tablete a mais de caldo de
galinha e cozinhei ali dentro uma porccedilatildeo de massinha pra sopaque bom que tinha em
casa Tomei entatildeo o resultado como se estivesse tudo normal com apenas um leve
gostinho de batata-baroamas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada
de matildeo-de-vaca (REZENDE 2014 p22)
Vale ressaltar a atitude complacente de Alice frente ao egoiacutesmo da filha no episoacutedio
narrado acima expressa pela frase lsquomas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada
de matildeo-de-vacarsquo A seguir outro fragmento em que Norinha se apossava dos chocolates e das
guloseimas da matildee Alice reflete em sua carta para Barbie sua obediecircncia agraves demandas da moccedila
devidas agraves dietas no comprar lsquocoisas estranhasrsquo na feira
Diversos pontos satildeo referidos como o fato de a filha natildeo se sentar mais agrave mesa com ela e
a atitude de desperdiccedilar as gemas de ovo em suas dietas Um aspecto interessante do trecho
abaixo eacute a memoacuteria de sua avoacute fazendo lsquofios dacuteovosrsquo e quindins como marca de afeto e de
partilha pela comida Assim haacute o contraste do alimento ora como representaccedilatildeo do egoiacutesmo da
filha ao lsquoroubarrsquo seus chocolates e as guloseimas ora como expressatildeo do afeto compartilhado
pela avoacute atraveacutes dos doces que fazia
Cabe ainda a reflexatildeo mais uma vez Alice menciona sua complacecircncia para com a filha
nas frases lsquofielmente obedeciarsquo e lsquoeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar
114
discussatildeorsquo Volta-se desse modo para a frase apresentada no primeiro trecho referida acima
lsquonatildeo dei um pio pra natildeo ser chamada de matildeo-de-vacarsquo A postura de Alice em relaccedilatildeo agrave Norinha
tinha sempre um elemento de passividade de obediecircncia agraves normas e aos quereres da filha
anunciando que a postura da uacuteltima em definir a mudanccedila de Alice mesmo contra a vontade desta
era a continuidade de um comportamento mais antigo na relaccedilatildeo entre elas A protagonista conta
agrave Barbie
Vivia acrescentando coisas estranhas nas minhas listas de feira que eu fielmente
obedeciaeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar discussatildeo Claro de
vez em quando ela dava umas escapadas na dieta principalmente comendo meus
chocolates e umas guloseimas de que gosto e comprava pro meu lanche Afinal eu natildeo
estava de dieta Quase natildeo se sentava agrave mesa comigo comia em peacute na cozinha ia pro
quarto dela comer as gororobas dieteacuteticas que fazia ou se enchia soacute de claras de ovo
jogando as gemas fora Parei de tentar aproveitar pois natildeo dava pra tomar gemada todo
dia natildeo eacute e Voacute natildeo estaacute mais neste mundo pra me ensinar a fazer fios dacuteovos ou
quindinse as gemas que Norinha descartava eram branquelas nada daquele amarelo
vivo dos ovos de capoeira do siacutetio Seraacute que ainda existem fios dacuteovos (REZENDE
2014 p23)
O trecho seguinte refere-se ao segundo elemento assinalado ou seja a inconformidade de
Alice com sua nova vida em Porto Alegre no apartamento que natildeo aceita como seu Nas
referecircncias agrave cozinha lsquode show-roomrsquo a protagonista expressa suas impressotildees sobre o local
montado por Norinha para sua habitaccedilatildeo Haacute diversos momentos em que a comida representa seu
desacerto com a vida montada em um territoacuterio sem referecircncias afetivas sem lembranccedilas dos
quais o fragmento abaixo eacute um exemplo
Alice mostra uma resignaccedilatildeo compulsoacuteria com as ordens da filha uma aparente
concordacircncia com as tentativas de Norinha de abater-lhe a autonomia eacute na contrariedade com o
cenaacuterio esteacuteril da cozinha que define como lsquoalheiarsquo e com os alimentos que tem em casa com as
compras que a filha faz e guarda nos armaacuterios e gavetas que se mostra seu modo de perceber e
de sentir as imposiccedilotildees da mesma
A inconformidade com a vida porto-alegrense aparece em diversas situaccedilotildees na chegada
de Alice ao apartamento aleacutem do trecho acima Percebo em vaacuterios pontos a revolta da
protagonista com os detalhes da cozinha como espaccedilo fiacutesico em outros aparece seu lsquodesacertorsquo
atraveacutes de uma voz criacutetica e ateacute mesmo irocircnica com os alimentos gauacutechos
Assumi consciente e disciplinadamente a atitude que eu jaacute vinha ensaiando havia algum
tempo do ET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes muito maiores
que ele Eu continuava a encolher Engoli obediente tudo o que estava posto sobre a
previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de vidro num canto da sala o chaacute as
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torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar de chimia a
fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial trazido
natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite morno (REZENDE 2014
p41)
Eacute possiacutevel ler a atitude de engolir lsquoobedientersquo o alimento como representativa de sua
percepccedilatildeo sobre si mesma de ldquoET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes
muito maiores do que elerdquo A obediecircncia em comer aqui ilustra a frase ldquoEu continuava a
encolherrdquo Ela natildeo via o que estava sendo posto na mesa como cuidado com sua chegada por
preocupaccedilatildeo genuiacutena com seu bem-estar entendia isto sim como ldquobenevolecircncia de terraacutequeos
muito maioresrdquo A forccedila da comparaccedilatildeo estaacute no fato de que o comer tambeacutem se tornou objeto de
controle da filha a quem ela passava a ldquoobedecerrdquo Passava a ocupar assim o papel que descreve
como ldquofilha da minha filhardquo (REZENDE 2014 p74)
Neste trecho lecirc-se a contrariedade de Alice na referecircncia que faz agrave cozinha como espaccedilo
fiacutesico ldquo[] tudo o que estava posto sobre a previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de
vidro no canto da salardquo (REZENDE 2014 p74) Ainda que se refira agrave mesa como estando na
sala atribui a ela papel conotaccedilatildeo ligada agrave funccedilatildeo da cozinha como extensatildeo desta pois eacute onde
estatildeo na cena os produtos alimentares oferecidos
Na menccedilatildeo que ela faz a esses produtos estaacute expressa tambeacutem a revolta atraveacutes da voz
irocircnica ldquo[] o chaacute as torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar
de chimia a fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial
trazido natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite mornordquo (REZENDE 2014
p41) Assim eacute na cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico que se expressa na chegada de Alice a
Porto Alegre a representaccedilatildeo de sua recusa em aceitar a vida que lhe foi imposta Haacute referecircncias
expliacutecitas agrave sua revolta mas a forma material da contrariedade eacute demonstrada nessa etapa da
narrativa em diversos episoacutedios ligados agrave cozinha
A manhatilde seguinte agrave chegada no apartamento continua tendo essa peccedila da casa como
cenaacuterio da inconformidade de Alice quando Norinha chega com as compras
Naquela primeira manhatilde sem coragem de decifrar os armaacuterios e eletrodomeacutesticos desta
cozinha metida a besta eu ainda de camisola e roupatildeo agrave mesa do canto da sala
preguiccedilosamente acabando de recuperar como cafeacute da manhatilde os restos do lanche da
madrugada que ficaram largados ali bolo torradas amanhecidas chimia queijo serrano
chaacute frio ouvi barulho de chave na fechadura e me assustei Norinha pelo visto agora
detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas tambeacutem da chave da minha
moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha com almoccedilo
Bem paraibano viu Matildeiacutenha pra vocecirc ir se acostumando aos poucos a quentinha
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equilibrada entre montes de sacolas de compras Pra abastecer a despensa de minha
Maacuteinha adorada que vai ser tratada como uma duquesa pela sua filhinha preferida []
meteu-se diretamente na cozinha Que tive que fazer malabarismos para conseguir passar
no supermercado pra conseguir passar no supermercado e trazer suas compras depois a
gente acerta natildeo se preocupe com isso por hoje vou ter de sair correndo que este dia da
semana eacute sempre pesadiacutessimo na universidade agraves vezes natildeo daacute tempo nem de fazer xixi
(REZENDE 2014 p47-48 grifo nosso)
A frase em grifo representa a percepccedilatildeo de Alice sobre o controle que a filha assumia
sobre sua vida ldquoNorinha pelo visto agora detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas
tambeacutem da chave da minha moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha
com almoccedilordquo (REZENDE 2014 p48) O controle sobre o cardaacutepio expressa a inconformidade
da protagonista com as imposiccedilotildees de Norinha na sua vida por exemplo escolhendo um almoccedilo
lsquobem paraibano viu Matildeiacutenha para vocecirc ir se acostumando aos poucosrsquo como ela refere Aleacutem
deste aspecto as sacolas de compras lsquoPra abastecer a despensa de minha Matildeiacutenha adoradarsquo
tambeacutem satildeo para Alice representativas dos mandos de sua filha
A direccedilatildeo da filha sobre a rotina da personagem ocorre em detalhes cotidianos como de
fazer e de guardar as compras de supermercado na cozinha do apartamento levar a lsquoquentinharsquo
para o almoccedilo e definir na percepccedilatildeo de Alice que ela deve sair agrave rua entre outras condutas
Tais comportamentos ligados agrave alimentaccedilatildeo demonstram a atitude de Norinha interferindo na
autonomia da matildee procurando ceifar sua capacidade de cuidar de uma nova vida naquilo que eacute
mais individual na sobrevivecircncia a nutriccedilatildeo A contrariedade de Alice agrave cozinha do apartamento
reflete em muito a percepccedilatildeo que ela tem deste ao longo da narrativa em suas referecircncias eacute
possiacutevel compreender que se vecirc presa naquilo que por diversas vezes chama de lsquotabuleiro de
xadrezrsquo Em grande parte essa impressatildeo se deve ao aspecto do local mas o sentimento
transcende essa caracteriacutestica no lsquotabuleirorsquo Alice tem sua liberdade tolhida
O trecho a seguir representa a relaccedilatildeo que se estabelece entre elas nesta etapa inicial da
chegada de Alice a Porto Alegre
Fiquei calada soacute olhando com a boca cheia o naco de queijo grande demais difiacutecil de
mastigar e engolir como todo o resto que havia tempos jaacute vinha entalado na minha
garganta Nem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia em meu nome
gritando aqui da cozinha enquanto desensacava os pacotes e escondia as coisas atraacutes de
sei laacute qual dessas dezenas de portinhas brancas por cima desses azulejos pretos [] e
por aiacute foi Norinha perguntando e respondendo por mim ateacute esvaziar a uacuteltima sacola
bater pela uacuteltima vez todas as portas e gavetas dos armaacuterios da geladeira O almoccedilo eacute soacute
esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenha (REZENDE 2014 p48-49)
117
Um dos pontos que deflagram a atitude de Norinha em ceifar a autonomia de Alice estaacute na
frase lsquoO almoccedilo eacute soacute esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenharsquo como se a matildee natildeo soubesse disso
ou natildeo tivesse capacidade de percebecirc-lo sozinha A filha infantiliza a personagem tomando por
ela decisotildees e condutas (como ir ao supermercado e guardar as compras nos armaacuterios da
cozinha) Ateacute mesmo a verbalizaccedilatildeo das respostas eacute feita por ela sem dar agrave Alice a possibilidade
de expressar-se como na frase lsquoNem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia
em meu nome gritando aqui da cozinharsquo
A resposta emocional de Alice a este iniacutecio de sua vida na nova cidade ainda antes da
revelaccedilatildeo de que Norinha e o esposo adiaram os planos de gravidez estaacute representada no
fragmento a seguir
Fiquei laacute Alice diminuindo mais ainda imprensada entre a mesa e a parede nem sei
quanto tempo tentando me convencer de que ela natildeo se meteria mais de surpresa pela
porta adentro e sabendo que pra rua eu natildeo ia como queria minha filha e natildeo ia mesmo
soacute porque era isso que ela tinha ordenado Natildeo ia natildeo de birra sem nenhuma ideia
nem vontade de fazer nada a natildeo ser andar para um lado e outro naquele tabuleiro de
xadrez minhas pernas dissipando a energia acumulada pela raiva olhar as malas ainda
fechadas as portas desses armaacuterios da cozinha fechadas a pilha de caixas fechadas e de
relance a minha cara fechada refletida na enorme televisatildeo da sala em outra menor no
quarto nos vaacuterios espelhos e vidraccedilas espalhados por aiacute O almoccedilo ficou aqui esfriando
no balcatildeo da cozinha ateacute o anoitecer Daiacute engoli aquilo frio mesmo enquanto deixava o
telefone tocar tocar tocar ateacute desistirem (REZENDE 2014 p51)
Entretanto a protagonista encontra em si mesma a capacidade de autonomia que vinha
adormecida desde quando comeccedilou o processo de mudanccedila determinado pela filha Comeccedila a
aceitar as modificaccedilotildees tomar conta da proacutepria rotina decidir adaptar-se ao apartamento e agrave nova
vida A decisatildeo de aceitar a vida imposta pela filha eacute tomada com autonomia com a sensatez que
remonta a lsquosensata professora Poacutelirsquo Alice torna a instalaccedilatildeo em sua nova moradia algo que
parece originar de uma decisatildeo sua e natildeo apenas de uma imposiccedilatildeo de Norinha Entretanto
expressa que a decisatildeo para tal eacute racional assim como a organizaccedilatildeo metoacutedica da casa que
realiza Sugere que estaacute fazendo de conta que esqueceu lsquode todo o restorsquo
E a sensata professora Poacuteli acabou vencendo pelo menos provisoriamente porque
acordei logo cedo disposta a deixar pra laacute o ressentimento ser realista encarar as coisas
como eram agora como gente grande voltar ao meu tamanho normal pulei da cama me
vesti decentemente explorei as provisotildees que Norinha tinha deixado fiz e tomei meu
cafeacute e danei a desmanchar malas e pacotes a encher gavetas prateleiras e cabides tudo
muito bem-arrumado metodicamente pensando soacute naquilo que tinha concretamente
diante de mim esquecida ou fazendo de conta que esquecia de todo o resto Pronto
[] botando ordem fora e dentro de mim pensava Pesquisei nos armaacuterios da cozinha
achei o que precisava fiz um almocinho pus toalha louccedila talher aqui mesmo nessa
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espeacutecie de mesa sem pernas de pedra preta embutida na parede e comi com certo gosto
depois de natildeo sei quanto tempo de fastio (REZENDE 2014 p52-53)
Quando Alice menciona lsquopesquisei nos armaacuterios da cozinha achei o que precisava fiz
um almocinho pus toalha louccedila talherrsquo estaacute manifestando sua decisatildeo de procurar acostumar-se
aos detalhes da nova rotina como colocar a mesa O trecho a seguir complementa essa tentativa
Subi de volta confiante tinha tomado minha primeira iniciativa depois de tanto tempo
e isso fazia sentir-me melhor Abri mais umas caixas e arrumei o conteuacutedo Fiz almoccedilo
direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada sesta de uma vida
normal li umas paacuteginas de uma revista apanhada no aviatildeo e como sempre cochilei
logo (REZENDE 2014 p61)
A frase lsquofiz o almoccedilo direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada
sesta de uma vida normalrsquo demonstra sua procura por se adaptar ao cotidiano Alice procura
retomar as reacutedeas da nova vida mesmo sendo esta imposta a ela reassumindo seus afazeres
(lsquolimpar a cozinharsquo) e costumes (a lsquosagrada sesta de uma vida normalrsquo) Tudo isso relata agrave Barbie
no caderno posteriormente sabendo que tais posturas representavam apenas a tentativa em
ultrapassar a dor emocional pela saiacuteda de seu habitat em Joatildeo Pessoa A existecircncia compulsoacuteria
volta a aparecer quando eacute convidada para jantar na casa da filha ao mencionar lsquoeu jaacute estava
pegando jeito de me comportar como filha da minha filharsquo conforme se lecirc abaixo
Pois Umberto vai passar aiacute pelas sete horas que eu vou correr pra preparar um
comerzinho bem bom e trazer a senhora pra jantar com a gente botar a conversa em dia
vai ser uma deliacutecia vaacute se aprumar bem bonita que daqui a pouco ele estaacute batendo aiacute
Que remeacutedio senatildeo obedecer Eu jaacute estava pegando jeito de me comportar como filha da
minha filha (REZENDE 2014 p74)
No jantar referido Alice eacute informada por Norinha sobre a viagem do casal para o exterior
postergando o projeto da maternidade motivo de sua mudanccedila para Porto Alegre No primeiro a
lsquolasanha da verdadeirarsquo o lsquomelhor vinho da serra gauacutecharsquo e a lsquocuca de arrasarrsquo satildeo elementos
regionais que a filha oferece como forma ao que parece de apresentar agrave sua matildee as benesses do
territoacuterio em que esta deveraacute habitar no segundo a expressatildeo lsquoe eu soacute com a tarefa de garfar o
que me serviam e emitir de vez em quanto um huuuummm apreciativorsquo exprime a posiccedilatildeo
passiva que a protagonista reconhece assumir frente agraves imposiccedilotildees da filha Neste jantar tem fim
o periacuteodo de interaccedilatildeo de Alice com Norinha na narrativa demarcando a conclusatildeo de uma etapa
da histoacuteria a chegada da personagem agrave cidade
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A seguir dois fragmentos que retratam a comida como fator de suposta agregaccedilatildeo
familiar mas escondem atraacutes do lsquoFiz jantar especialrsquo o desrespeito e o egoiacutesmo da moccedila quanto
agrave sua matildee Esta ficaraacute sozinha em uma cidade desconhecida sem referecircncias apoacutes ter tido que
abandonar sua terra natal em nome da exigecircncia da filha A atitude de falar da cuca como um
doce de seu completo desconhecimento ilustra agrave escassa familiaridade de Alice com as tradiccedilotildees
da regiatildeo como na frase lsquoum bolo recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima
gostoso de fatorsquo Os trechos definem a atmosfera aparentemente agradaacutevel da refeiccedilatildeo em
famiacutelia imposta por Norinha antes de esta fazer a revelaccedilatildeo que interferiraacute na vida de Alice
culminando na busca de sua autonomia O papel da comida neste ponto do livro eacute o de lsquoadoccedilarrsquo
a personagem para receber a notiacutecia da viagem da filha e do genro
Fiz jantar especial uma lasanha da verdadeira o melhor vinho da serra gauacutecha uma
cuca de arrasar vocecirc vai provar hoje uma cuca tudo receita da minha sogra vai adorar
jaacute estaacute com apetite natildeo eacute soacute de ouvir dizer entatildeo como estaacute sendo sua primeira
semana em Porto Alegre (REZENDE 2014 p74)
Umberto parecendo distraiacutedo dando soacute palpites lacocircnicos sempre concordando com a
mulher dele e eu soacute com a tarefa de garfar o que me serviam e emitir de vez em quando
um huuuummm apreciativo ateacute terminar de comer e aprovar a tal cuca um bolo
recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima gostoso de fato
(REZENDE 2014 p75)
A partir desse jantar Alice volta para sua casa e suspende os contatos com o casal Tem
iniacutecio assim o papel da comida ligada agrave recuperaccedilatildeo da autonomia perdida
Quando sai para a rua imbuiacuteda da missatildeo de procurar por Ciacutecero Alice sabe que sua
decisatildeo ultrapassa a descoberta do rapaz Eacute por si mesma pela capacidade de cuidar de si de
decidir mesmo as questotildees mais baacutesicas de sobrevivecircncia apoacutes Norinha ter tomado conta de sua
vida e de suas resoluccedilotildees Alice decide decidir Nesse sentido passa a guiar-se por suas
necessidades vitais como fome sono e banho por exemplo todos eles transplantados para o
espaccedilo urbano onde decide habitar apenas para natildeo voltar para o lsquotabuleiro de xadrez seu
apartamento
Mesmo quando esquece onde mora a permanecircncia nas ruas continua sendo uma escolha
pois poderia ligar para a prima Elizete que tem seu endereccedilo no entanto opta por natildeo fazecirc-lo
Durante o periacuteodo duas buacutessolas guiam seus rumos a procura por Ciacutecero que daacute sentido agrave
peregrinaccedilatildeo como um aacutelibi para justificar as andanccedilas e o natildeo-retorno para casa e a
120
manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do que escolhe comer de onde decide dormir e banhar-se
por exemplo
Uma das primeiras decisotildees de Alice eacute a de esconder-se em casa nos primeiros dias apoacutes
a revelaccedilatildeo sobre a viagem de Norinha e Umberto para o exterior e o adiamento dos planos que
ocasionaram sua mudanccedila para Porto Alegre
Cinco dias de fartura de letras quase jejum de qualquer outra comida o silecircncio cortado
soacute ateacute o comeccedilo da tarde do segundo dia pela ainda prazerosa estridecircncia do telefone
com perverso gosto de vinganccedila que me enchia a boca e quase me bastava como
simulacro de refeiccedilatildeo (REZENDE 2014 p87)
Protege-se em casa lendo livros e deixando o telefone tocar a nutriccedilatildeo estaacute fora do eixo
da comida nesse sentido pois Alice alimenta-se do isolamento que consegue estabelecer Assim
esse eacute o iniacutecio da retomada de sua autonomia atraveacutes das escolhas que comeccedila a fazer por si de
modo independente ao controle da filha Decide natildeo mais se submeter mesmo que a atender o
telefone A nutriccedilatildeo estaacute baseada na autonomia na independecircncia que retoma mais do que nos
proacuteprios alimentos nesse ponto da narrativa Quando refere lsquocom perverso gosto de vinganccedila que
me enchia a boca e quase me bastava como simulacro de refeiccedilatildeorsquo o que se pode ler eacute que a
salvaguarda da sobrevivecircncia estava apoiada na sua capacidade de reagir agrave filha de impor sua
vontade contrariando a imposiccedilatildeo de Norinha
A histoacuteria sofre a guinada maior quando Alice recebe a incumbecircncia de procurar por
Ciacutecero a missatildeo daacute sentido ao seu caminho aos seus dias A missatildeo de encontrar o rapaz eacute o
fator que move a personagem a sair de seu apartamento e a desafiar-se em espaccedilos urbanos
desconhecidos de uma cidade que ainda eacute para ela uma cidade estranha Este seraacute tambeacutem um
modo de se esconder da filha de Elizete e de todos que a possam encontrar Alice decide
descobrir o paradeiro de Ciacutecero para encontrar consigo mesma Aquela lsquosensata professora Polirsquo
capaz de tomar decisotildees e de gerenciar a proacutepria vida estaacute desaparecida de si
Na partida para a Vila Maria Degolada ela tem o primeiro contato com a comida das ruas
e botecos Ao sair de casa sem ter se alimentado obriga-se a comer para saciar a fome esta eacute a
primeira expressatildeo do comer como decisatildeo de sobrevivecircncia
Passei diante de uma portinha aberta quase invisiacutevel entre duas casas um balcatildeozinho
prateleiras com umas poucas mercadorias e uma caixa de vidro com lamentaacuteveis
empadas e coxinhas ou coisa parecida sobrevoadas por uma mosca preguiccedilosa Era
pouco mais que aqueles fiteiros de rua laacute de Joatildeo Pessoa e pode ter sido por isso entrei e
por pouco natildeo pedi uma tapioca de queijo Pedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer
121
de comer Leite natildeo havia fui soacute de cafeacute e uma coxinha engordurada de anteontem
caloria bastante para eu continuar minha peregrinaccedilatildeo Quem servia era um homem jaacute
idoso nada a ver com as imagens de gauacutecho de churrascaria que eu tinha pregadas na
imaginaccedilatildeo nem alto nem louro nem moreno bigodudo de chapeacuteu preto lenccedilo
vermelho laccedilo no ombro e bombacha bufante Baixinho e coxinho com um resto de
bigode fino um bonezinho achatado na careca camisa branca encardida e um lenccedilo
branco amarrado no pescoccedilo Comi paguei e me animei a perguntar pra onde ficava a tal
Vila Maria Degolada (REZENDE 2014 p96-97)
lsquoPedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer de comerrsquo eacute uma das frases que aponta para
o papel da comida nesse momento da histoacuteria o de saciar a fome O alimento em sua funccedilatildeo
primordial eacute o mote desse trecho jaacute que aqui Alice natildeo quer comer algo saboroso e sim que lhe
forneccedila forccedilas para seguir o percurso
Segui em frente olhando pro chatildeo emburrada passo firme e decidido lsquoCiacutecero Arauacutejo
Vila Maria Degolada Ciacutecero Arauacutejo Vila Maria Degoladarsquo revigorada pelo sal a
gordura e a cafeiacutena ateacute chegar manhatilde alta numa avenida larga sem ter mais nenhuma
ideia de pra que lado ficava o apartamento onde eu devia morar (REZENDE 2014
p97)
A atitude determinada de Alice frente ao objetivo eacute o lsquopasso firme e decididorsquo
complementado pela referecircncia que ela faz ao efeito da comida em seu acircnimo para chegar agrave Vila
Maria Degolada lsquorevigorada pelo sal a gordura e a cafeiacutenarsquo A personagem expressa nessa
uacuteltima frase o reforccedilo ao papel do alimento em saciar a fome e em fornecer energia
Nos caminhos que vai percorrendo junta folhetos de propaganda papeacuteis soltos e
guardanapos todos como base para escrever pedaccedilos de livros que encontra Um desses folhetos
representa a visatildeo de Alice sobre sua avoacute que aproveitava as gemas para preparar doces de sua
origem portuguesa e sobre sua filha que desperdiccedilava as gemas para preparar omeletes de
claras para a dieta Essa evocaccedilatildeo de lembranccedilas em relaccedilatildeo agrave avoacute e agrave filha a partir de uma
divulgaccedilatildeo impressa traz mais uma das funccedilotildees do alimento nessa etapa da histoacuteria aleacutem da
expressatildeo de autonomia o resgate de si atraveacutes das recordaccedilotildees de suas origens Lembrar-se de
sua avoacute eacute remontar uma parte de sua proacutepria construccedilatildeo pessoal e portanto estaacute incluiacutedo na
procura de Alice por sua identidade separada das ordens e determinaccedilotildees de Norinha
Uma ialorixaacute me deu um papelzinho com receita de uma simpatia natildeo exatamente pra
achar filho perdido era pra juntar famiacutelia desunida Mas pode crer que ajuda se tu fizer
com feacute soacute precisa quatro quindinsonde eacute que eu iacutea achar quindins veio-me por um
instante a lembranccedila das gemas de ovo desperdiccediladas por Norinha saudade da minha
avoacute portuguesa exilada laacute no sertatildeo e de seus doces de ovos os quindins que ela
aprendeu a fazer com coco lamentando sempre natildeo poder fazer sua brisa do Lis como a
de Leiria por falta das amecircndoasescrever o pedido pocircr os quindins em cima polvilhar
accediluacutecar cristal e espetar nos doces quatro flores amarelas quatro moedas acender quatro
122
velas e deixar tudo numa praccedila olha aiacute Barbie o papelzinho ficou junto com o resto dos
que se foram acumulando na minha mochila com as costas cheias de frases copiadas de
livros (REZENDE 2014 p116-117)
A necessidade de encontrar consigo mesma estaacute pungente na personagem uma soacute palavra
que remeta a seu passado serve para as recordaccedilotildees surgirem como os lsquoquindinsrsquo que na
verdade natildeo servem como alimento e sim como parte da simpatia Eacute como se a palavra fosse
uma porta para suas lembranccedilas e uma vez aberta faz que muito seja recordado e refletido
Alice segue pela Vila Maria Degolada agrave procura de Ciacutecero e vai tendo contato com
moradores que a ajudam andando pela vila atraacutes de pistas do rapaz Durante as horas que
permanece ali a comunicaccedilatildeo entre ela e as pessoas que a recebem eacute feita em grande parte pelos
alimentos que oferecem para ela comer ou beber Alice descobre novos sabores regionais na
receita ou apenas no nome e sobretudo conhece novas pessoas ao longo do trajeto O que decide
comprar nos botecos ou aceitar nas casas como os salgados os biscoitos ou o cafeacute ralo deve-se
principalmente a satisfazer as necessidades fiacutesicas de fome e sede Mais uma vez a comida
representa a manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Entretanto surge para essa novo papel o de saciar a
necessidade de contato humano de trocas e de interaccedilatildeo social
Nem sei quantos cafeacutes ralos engoli Pra te animar vai bebe nem sei quantas cuias de
chimarratildeo recusei Natildeo sou daqui natildeo sou da Paraiacuteba na minha terra natildeo eacute costume
cheguei haacute pouco ainda natildeo aprendi a tomar Mas logo acostuma que um amargo eacute coisa
boa demais bom pra sauacutede pro estocircmago pra tudo Todos sem falhar queriam ajudar
indicavam uma rua uma viela uma direccedilatildeo onde sim havia gente de lsquolaacutersquo Sei laacute quantas
coxinhas empadas comi e paguei pelas biroscas da Vila Maria Degolada nome que eu
logo parei de usar porque percebi que natildeo era do agrado de ningueacutem ali Ia aprendendo
coisas e nomes a comer dedo-de-negro que logo domestiquei como parente de nossa
sorda cortada em tiras e groacutestolis que identifiquei como a calccedila-virada da minha avoacute
portuguesa Tudo o que me fizesse esquecer Norinha e o apartamento preto e branco me
servia bem (REZENDE 2014 p117)
A passagem pela vila na procura por Ciacutecero tinha outra funccedilatildeo primordial dentro de
Alice a de natildeo retornar para o apartamento e para a vida que lhe foi imposta Com tal propoacutesito
decide prosseguir Percebe-se capaz de fazer escolhas a seu favor quando se pergunta lsquoe agorarsquo
pois responde que voltar para o apartamento natildeo lhe atrai lsquode jeito nenhumrsquo
Jaacute passava um pouco das quatro da tarde eu tinha andado desde as sete da manhatilde
sentando-me raras vezes quando alguma mulher mais atenciosa puxava uma cadeira de
dentro de casa e me oferecia pra descansar na sombra ou em algum boteco o tempo de
comer uma empadinha ou uma cueca-virada E agora Voltar pro apartamento natildeo me
atraiacutea de jeito nenhum Por que natildeo continuar pro novo destino provisoacuterio que me
indicaram Apesar de entatildeo jaacute achar tudo aquilo bastante suspeito (REZENDE 2014
p123)
123
Prosseguindo para o Hospital de Pronto Socorro surgem trecircs cenas relevantes em que o
comer eacute expresso como satisfaccedilatildeo da fome e reestabelecimento do acircnimo na primeira Alice
percebe a fome e decide procurar o que comer na segunda come de forma tatildeo afoita as pipocas
que se engasga na terceira eacute socorrida por Zelima senhora que a ajuda reforccedilando que o
cuidado de terceiros tambeacutem tem uma funccedilatildeo quando o comer eacute representado na obra
1) Cansaccedilo absoluto e fome fincaram-me no meio do saguatildeo zonza olhando aquela
larga porta aberta pra nada Um lugar vago num dos bancos era tudo o que me restava
Ali desabei e fiquei de olhos fechados e a cabeccedila pendendo sobre o peito como tantos
outros sentados naquele natildeo lugar esperando minhas pernas pararem de tremelicar
pensando apenas nelas e na sensaccedilatildeo do meu estocircmago oco Natildeo sei quanto tempo parei
ali Lembro-me de que afinal a fome venceu abri os olhos puxei o celular da bolsa pra
ver as horas a bateria estava descarregada procurei em torno e vi um reloacutegio na parede
do saguatildeo jaacute passava das nove da noite levantei-me as pernas agora quase firmes desci
os degraus da porta ateacute a calccedilada buscando algo pra comer e o que havia no meu raio de
visatildeo era uma carrocinha de pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me
desde que horas ele estava ali se tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia
inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido
Cheguei junto dele remexendo a bolsa agrave procura de uns trocados que tivessem restado da
farra de salgadinhos e biscoitos da Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada
desde entatildeo (REZENDE 2014 p147)
2) Puxei um bolinho de notas de dois reais e umas moedas estendi-as ao homem ele
escolheu o que correspondia ao preccedilo do saco de pipocas e me entregou tudo sem
trocarmos uma palavra Escorei-me no poste junto da carrocinha e enfiei na boca de
uma soacute vez o maior punhado de pipocas que pude sem me importar com as poucas que
escaparam e foram ao chatildeo Engasguei-me a boca seca e cheia tentando segurar a tosse
pra natildeo fazer chover mais pipoca pra todo lado mas natildeo consegui as ex-professora Poacuteli
cuspiu um jorro de piruaacutes tossiu de se acabar encostada num poste de lugar nenhum o
mundo escurecendo (REZENDE 2014 p147-148)
3) Zelima sentou-se ao meu lado segurando fielmente o meio copo de aacutegua e o meio
pacotinho de pipocas e assim que me recompus devolveu-me aquele simulacro de
refeiccedilatildeo dizendo Come que tu estaacute fraca bebe o resto da aacutegua para empurrar Soacute
balancei a cabeccedila obedeci ela recolheu os invoacutelucros vazios e foi jogaacute-los numa lixeira
na calccedilada voltou e sentou-se de novo junto a mim em silecircncio (REZENDE 2014
p148-149)
O percurso tem continuidade na manhatilde seguinte quando decide encontrar uma padaria
onde encontra aleacutem da satisfaccedilatildeo da fome um ambiente onde conversa e ri sobre o
desconhecimento de termos regionais como o nome de lsquocacetinhorsquo para o patildeo francecircs Nutre-se
desse modo do alimento e do contato humano ldquoAprumei o espinhaccedilo apanhei a bolsa e saiacute
novamente com passo firme destino certo uma padariardquo (REZENDE 2014 p159) A
protagonista chega no destino esperado saciando a fome de comida e de afeto
Cafeacute com leite cacetinho na chapa e riso me puseram em quase perfeita forma por
dentro e pelos proacuteximos instantes mas restava um tanto consideraacutevel de dor no corpo e
uma vontade enorme de me deitar e dormir decentemente
124
[] Quando saiacute olhei bem o nome da padaria e da rua pra voltar quando precisasse
encontrar um conhecido amigaacutevel como se eu jaacute soubesse quantas vezes precisaria
voltar (REZENDE 2014 p161)
Alice come quando tem fome dorme quando tem sono Respeita a sobrevivecircncia em sua
procura pelo desconhecido Ciacutecero A vida eacute no espaccedilo da rua do parque das avenidas das
padarias das carrocinhas de pipoca e de cachorro-quente
Quem mais usa orelhatildeo neste mundo ocirc Alice te liga no segundo deles o fio do
telefone pendia cortado mas na mesma esquina havia uma lojinha de venda e conserto
de celulares Sim o homem podia carregar pra mim Pelo menos uma carga raacutepida de
emergecircncia ateacute tu chegar em casa soacute dois pilas senta aiacute Abanquei-me no tamborete
oferecido mas meu estocircmago natildeo queria esperar mais nem um minuto e vi pela porta
uma carrocinha de cachorro-quente do outro lado da esquina Fui laacute e voltei trazendo o
patildeo com salsicha montes de mostarda escorrendo no guardanapo de papel e o luxo de
um saquinho de batata frita uma latinha de refrigerante o tamborete agrave sombra a parede
fresca para encostar as costas Seraacute que cochilei
Paguei agradeci saiacute comprei mais um cachorro-quente da carrocinha e natildeo pensei mais
em telefonar a Elizete nem queria saber endereccedilo nenhum nem voltar pra lugar
nenhum soacute continuar agrave toa Agrave toa Que nada (REZENDE 2014 p170-171)
Alice sabe natildeo estar agrave toa volta a ser dona de suas escolhas sejam elas quais forem Vai
retomando a consciecircncia de si mesma dos referenciais de sua histoacuteria de vida das lembranccedilas
ajudam a reconstruir sua identidade como quando refere a recordaccedilatildeo de lsquoum cafeacute com leite que
ao longo da vida sempre me parecia como soluccedilatildeo para pequenas dores pequenos desconfortosrsquo
Um vento mais frio me fez fugir da sombra procurar um resto de sol com vontade de
tomar alguma coisa quente um cafeacute com leite que ao longo da vida sempre me aparecia
como soluccedilatildeo pra pequenas dores pequenos desconfortos e fui em busca de um bar
lanchonete Achei um botequinho que me serviu leite ralo com cafeacute de garrafa teacutermica
ainda havia de aprender a tomar chimarratildeo mas me bastou
Depois de confortada pela bebida morna e accedilucarada saiacute agrave toa de novo esquecida de
Ciacutecero Arauacutejo [] (REZENDE 2014 p176)
Esquecer-se de Ciacutecero Arauacutejo significa neste ponto da histoacuteria que a aproximaccedilatildeo
consigo mesma torna-se mais importante Essa retomada de si atraveacutes do conforto de uma
lsquobebida morna e accedilucaradarsquo corresponde ao respeito aos seus referenciais de memoacuteria durante a
vida Alice vai remontando dados de si peccedilas de um mosaico desordenado pela mudanccedila de vida
mas que agrave medida que segue um percurso aleatoacuterio ou lsquoagrave toarsquo passa a ser o caminho para o
contato com suas caracteriacutesticas Quanto mais retoma a si mesma menos se ocupa de Ciacutecero
Este ocupar-se de si eacute traduzido pela procura por satisfazer as funccedilotildees vitais mas tambeacutem pelos
pequenos confortos que passa a permitir-se obter como a cena que transcorre na rodoviaacuteria
125
Nesse local o lsquoprato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos colherrsquo eacute a
expressatildeo da mudanccedila da personagem ao longo da histoacuteria pois essa passa a querer saciar a fome
com uma refeiccedilatildeo digna e natildeo mais com lanches de rua O garfo e a faca nesse sentido
representam a imagem de um comer para aleacutem do aspecto de saciar a fome evocam a ideia da
comida no prato posta agrave mesa e natildeo mais agrave rua sentada em um tamborete ou em peacute Eacute
interessante observar a referecircncia que faz ao cachorro-quente paraibano como forma de remontar
suas origens na reconstruccedilatildeo que faz de si
Decerto era preciso pagar e eu tambeacutem precisava comer uma refeiccedilatildeo decente como
havia dois dias natildeo comia impossiacutevel continuar vivendo de salgadinho refrigerante e
cachorro-quente de salsicha Se pelo menos fosse o bom cachorro quente paraibano com
tudo quanto haacute um verdadeiro prato feito dentro de um patildeo muita carne moiacuteda mais a
salsicha se quisesse verdura ovo ou qualquer outra coisa ou tudo junto o que a gente
pedisse aqueles abundantes molhos vermelhos de colorau escorrendo pelos lados
alimentando ou entupindo o freguecircs davam a sensaccedilatildeo de saciedade por um bom tempo
Mas aqui natildeo Eacute um patildeo com uma salsicha e a mostarda fraco demais pra mim eu natildeo
podia mais queria um prato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos de
colher Ali devia haver de tudo mas custava dinheiro (REZENDE 2014 p184)
Ainda na rodoviaacuteria onde consegue tambeacutem tomar banho vai decidindo adotar accedilotildees de
cuidado consigo como a lembranccedila da pasta de dente Progressivamente Alice ocupa-se de
retomar as rotinas de higiene de alimentaccedilatildeo e de sono Mais uma vez menciona a refeiccedilatildeo
completa o lsquogrande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdurarsquo Haacute a
noccedilatildeo de conforto na ideia de comida servida no prato e sobretudo no termo que ela usa
lsquocomida quentinharsquo
Dei-me conta de que pouco importava eu natildeo tinha sabonete nem sabatildeo nenhum mas
me lembrei confortada da pasta de dente que restava do aviatildeo guardada na bolsa pra
depois do grande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdura o
que fosse que eu havia de comer antes de procurar um canto pra dormir (REZENDE
2014 p187-188)
Na evoluccedilatildeo da procura por uma refeiccedilatildeo decente a protagonista encontra o restaurante
de Penha tambeacutem paraibana Descobre a coincidecircncia durante o jantar enquanto ouve a
proprietaacuteria falando ao telefone A forma como recebe a refeiccedilatildeo com o cuidado de Penha em
oferecer-lhe a comida agrave mesa junto agrave constataccedilatildeo de um sotaque familiar fazem com que Alice
se sinta confortada
1) Andei um pouco procurando onde comer e achei um restaurantezinho com um
aspecto muito simples limpo uma mulher com um jeito vagamente familiar do outro
lado do balcatildeo uma oferta Prato Feito R$ 350 Ai Barbie com que apetite me sentei
126
numa das duas mesinhas em frente ao balcatildeo e pedi meu PF uma latinha de refrigerante
Esperei meu olhar desgarrado acompanhando e abandonando cada um que passava
pensei Daiacute a poucos minutos a mulher sem nada dizer com uma das matildeos desdobrou agrave
minha frente uma toalhinha azul engomada a ferro com a outra depositou meu prato
quentinho acreditei ver o vapor subindo da comida talheres limpos enrolados num
guardanapo de papel imaculado um copo impecavelmente limpo a latinha gelada e ateacute
palito que eu nunca usei nem ia usar mas me acrescentavam conforto todos aqueles
adereccedilos em torno da minha fome soacute pra mim bem sentada numa cadeira de encosto as
matildeos limpas me sentindo toda limpa apesar da roupa usada e ataquei o prato com
voracidade tentando conter-me para natildeo comer depressa demais pra aquele prazer durar
bastante (REZENDE 2014 p192)
2) Quando a outra paraibana acabou o telefonema eu me levantei com o prato jaacute vazio o
copo ainda meio cheio me encostei ao balcatildeo e entreguei a louccedila mas continuei ali
tomei mais um gole do meu refrigerante e perguntei Vocecirc eacute da Paraiacuteba natildeo eacute Ela disse
Sou sim como eacute que sabe Ouvi umas palavras matildeiacutenha painho Campinatambeacutem sou
de laacute (REZENDE 2014 p193)
3) Acordei maldormida por conta do frio mas sem dor no corpo a rodoviaacuteria jaacute se
enchendo de gente juntei meus tereacutens e fui tomar cafeacute na bodeguinha de minha
conterracircnea que agravequela hora bem cedo jaacute havia reassumido seu posto (REZENDE
2014 p194)
Alice decide retornar ao restaurante de Penha na manhatilde seguinte permitindo-se tomar o
cafeacute da manhatilde Quando refere lsquobodeguinha da minha conterracircnearsquo jaacute expressa o conforto de
sentir-se familiar agrave Penha como forma de novamente encontrar referecircncia agrave sua Paraiacuteba Assim
como em outros fragmentos jaacute referidos a comida representa natildeo apenas o aspecto vital de
nutriccedilatildeo mas tambeacutem o do contato humano que propicia a exemplo do zelo com que a
proprietaacuteria coloca a mesa para Alice
Satisfeita em suas necessidades a personagem retoma sua busca por Ciacutecero Arauacutejo
seguindo a sugestatildeo dada por Penha para que fosse ao Campo da Tuca Laacute novo aproximaccedilatildeo
com seus referenciais atraveacutes do queijo de manteiga da rapadura e da plaquinha lsquotemos carne de
solrsquo
Procurando por Ciacutecero Alice encontra partes de sua terra Reencontra a si mesma atraveacutes
do contato com conterracircneos como Penha e outros do Campo da Tuca e de alimentos de sua
regiatildeo
Fui dando a volta ao campo de futebol e dei com uma bodeguinha que me cheirou a
nordestina encostei na porta olhei percebi logo o acerto de minha intuiccedilatildeo em cima do
balcatildeo havia uma caixa de vidro com queijo de manteiga e uma pilhazinha de rapaduras
na parede do fundo um cartaz Temos carne de sol Eu natildeo via ningueacutem depois percebi
movimento num canto mais ao fundo algueacutem arrumando prateleiras chamei Por favor
ele veio na hora pra entabular conversa perguntei O senhor tem mesmo carne de sol e
ele pesaroso Acabou esta manhatilde vendi o uacuteltimo pedaccedilo quase guardei pra mim mas a
freguesa antiga amiga laacute da minha terra insistiu e vendi pra ela semana que vem chega
mais se a senhora voltar na quarta ou quinta-feira eacute de certeza que vai ter carne de sol
aqui porque o primo que me manda jaacute despachou estaacute chegando era ateacute pra ter chegado
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ontem [] olhe tem um queijinho de manteiga de primeira esse acabou de chegar
tenho mais laacute dentro a senhora pode levar quanto quiser esse eacute do bom bota na brasa
na frigideira e fica uma beleza assado natildeo vai se arrepender leve um pedacinho do
queijo pra esperar a carne de sol assim mata a saudade (REZENDE 2014 p200-201)
Alice ouve o sotaque familiar recebe acolhimento nas famiacutelias por onde procura por
Ciacutecero Natildeo encontra pistas dele mas descobre a cada novo trecho pistas de si mesma e de suas
raiacutezes
Suelen me conduziu de casa em casa gente do sertatildeo do litoral da Vaacuterzea do Brejo da
Paraiacuteba uns tantos Ciacuteceros por certo mas nenhuma notiacutecia de Ciacutecero Arauacutejo nem nas
casas de outros Arauacutejos Comi tapioca com coco tomei cafeacute refresco de cajaacute A gente
arranja algueacutem traz e guarda no freezer sempre tem mas natildeo achei Ciacutecero
(REZENDE 2014 p204)
Ela sabe que Ciacutecero eacute um pretexto em sua procura Reconhece que seu propoacutesito principal
natildeo eacute o de encontraacute-lo mas sim o de continuar sobrevivendo pelas proacuteprias pernas tomando as
proacuteprias decisotildees Quando menciona que se forccedilava a crer sabe que sua busca era por si mesma
Salgadinhos e cachorros-quentes mastigados agraves pressas ou com exagerada lentidatildeo a
depender do interesse dos assentos disponiacuteveis ou do cansaccedilo das pernas e as andanccedilas
sem fim com objetivos mentirosos nas quais eu mesma me forccedilava a crer Ciacutecero Arauacutejo
sumindo e reaparecendo segundo seus caprichos e minhas necessidades []
(REZENDE 2014 p213-214)
Em uma nova padaria ela alimenta-se de lsquopatildeo na chapa e cafeacute com leitersquo repete o pedido
para permanecer ali por mais tempo lsquomatutandorsquo Quando refere a si mesma naquela condiccedilatildeo
como lsquoalimentada e decididarsquo mostra que sobrevivecircncia e autonomia estatildeo lado a lado eacute capaz
de cuidar de si e de tomar as proacuteprias decisotildees mesmo que sejam como a de dormir em um sofaacute
ao relento coberta com o plaacutestico-bolha
Andei mais um pouco passei por uma padaria senti fome voltei entrei patildeo na chapa e
cafeacute com leite sentei-me em uma das duas mesinhas com tamboretes pedi mais patildeo
com cafeacute e encompridei minha permanecircncia ali matutando ateacute comeccedilarem a puxar a
primeira porta de ferro Entatildeo alimentada e decidida debaixo de um ceacuteu despejado
voltei ao sofaacute que laacute me esperava deserto deitei-me em cima da bolsa os joelhos
apoiados na mochila presa pelas alccedilas agraves minhas canelas agasalhei-me com meu
plaacutestico-bolha e dormi minha primeira noite ao relento sem nada sobre a cabeccedila senatildeo
estrelas (REZENDE 2014 p217)
A frase jaacute apontada lsquoalimentada e decididarsquo mostra a ideia de que a alimentaccedilatildeo eacute
combustiacutevel de sua sobrevivecircncia e de sua capacidade de decidir por si o que fazer Cada vez
mais a protagonista da narrativa se percebe protagonista da proacutepria vida
128
No seguimento de seus dias na rua Alice encontra Arturo e Lola moradores de rua Com
eles compartilha o lugar de dormir e as refeiccedilotildees interage afeiccediloa-se com amizade Arturo a
quem ela apelida de lsquoChapeleirorsquo acorda-a para que receba dos voluntaacuterios o lanche da
madrugada
Eu dormi Barbie pela primeira vez eu dormi na rua literalmente de verdade a noite
quase toda ateacute comeccedilar a clarear laacute fora Foi o Chapeleiro que me acordou sacudindo
meu ombro com sua fala arrevesada lsquoCha bem a chente do pan y do cafeacute no perde esse
pan com cafeacute dessos pibes eacute bueno eacute quente conforta son pibes Buenosrsquo
A cada parada saltavam jovens dois rapazes e uma moccedila com copos de plaacutestico
garrafas teacutermicas e embrulhinhos de papel pardo distribuindo-os Quando chegou a
minha vez vi primeiro aacutegua quente pras cuias como a do Chapeleiro jaacute a bomba em
riste um pacotinho de erva-mate pra quem pedia e a oferta de cafeacute com leite bem
accedilucarado que eu preferi mais um cacetinho com manteiga e uma espeacutecie de mortadela
ou outro afiambrado qualquer Vou lhe dizer Barbie embora o copinho fino quase
queimasse a matildeo aquilo me pareceu um presente do ceacuteu eu quase sem dinheiro nenhum
e tatildeo longe da padaria do meu amigo pra ir pedir-lhe fiado outro cacetinho na chapa e
um cafeacute com leite (REZENDE 2014 p224)
Lola eacute personagem de grande relevacircncia na narrativa pois estabelece com Alice uma
relaccedilatildeo de amizade e de cuidado Recebe-a em sua casa mesmo com toda precariedade que esta
estrutura tem a oferecer Daacute agrave protagonista a confianccedila de poder dormir laacute quando quiser Alice
retribui compartilhando com ela as refeiccedilotildees que faz Mesmo com pouquiacutessimo dinheiro que
ainda lhe sobra ela divide com Lola a comida que consegue comprar O alimento aleacutem de nutrir
o corpo nutre a amizade funciona como instrumento de partilha e de gratidatildeo pelo acolhimento
que recebe da nova amiga A seguir trecircs fragmentos que ilustram o cuidado muacutetuo entre elas
1) Natildeo tive coragem de fazer perguntas sobre aquilo tudo preferi oferecer-lhe com um
resto de dinheiro que catei nos bolsos e na carteira um cafeacute com patildeo na padaria mais
proacutexima que ela aceitou e comeu com gosto nenhuma de noacutes duas ligando a miacutenima
pros olhares enviesados que nos cercavam Tu vem todo dia dormir aqui tu eacute direita tu
pode aprende o caminho Eu vinha sim sem duacutevida nenhuma e fomos cada uma pro
seu lado eu memorizando pontos de referecircncia pelo caminho (REZENDE 2014 p232)
2) Dormia em seu terraccedilo dividia com ela minhas parcas refeiccedilotildees lia seus livros
embolorados Ela nunca me perguntou mais nada desde o primeiro encontro em que lhe
contei e ela duvidou da minha histoacuteria de filha neto Ciacutecero e tudo mais que ouviu com
um risinho descrente (REZENDE 2014 p236)
3) Guiavam-me o amanhecer e o entardecer a chuva o frio o sol a fome que eu
resolvia com qualquer coisa natildeo mais de dez reais por dia a menor quantia que o caixa
eletrocircnico cuspia agraves vezes suficientes pra mim e pra Lola Dias e dias Nada mais na
minha aparecircncia nem de leve acho me distinguia dos outros (REZENDE 2014
p239)
Ao final da narrativa Alice narra como terminou seus quarenta dias de rua jaacute sem
dinheiro ainda encontra um modo de se alimentar vendendo os livros que comprou mendigando
129
aacutegua em bares Sua condiccedilatildeo deteriorada chega ao limite e entatildeo natildeo mais se parece apenas mas
se torna moradora de rua pela proacutepria escolha de natildeo voltar ao apartamento Natildeo eacute mais guiada
pela procura por Ciacutecero mas sim por aquela de sobreviver
Esmoreci de vez sem banho sem comida rasgada desmantelada deixei-me cair em
mais um banco indiferente aos olhares se eacute que algueacutem me via cochilei e acordei mil
vezes saiacute pra rua tocada pela fome a esmo coragem nenhuma de pedir nas portas de
remexer no lixo vendi no sebo meus livros novos de 199 pela quantia suficiente pra trecircs
cachorros-quentes bebi aacutegua de torneira mendigada em balcotildees de bares Jaacute natildeo tinha
mais nada a perder (REZENDE 2014 p244)
Quem ajuda Alice na decisatildeo de retomar sua vida de voltar a seu apartamento eacute Lola Ao
estimulaacute-la a telefonar para Elizete para pegar o endereccedilo de sua casa Lola cuida de Alice
acordando-a de madrugada e oferecendo-lhe lsquoa metade de um patildeo dormido e uns goles do seu
chimarratildeorsquo Aqui o alimento eacute para dar forccedilas agrave personagem mas eacute acima de tudo representativo
do cuidado e do carinho que se estabelece entre elas Alice reconhece
Ela afinal acreditava mais do que eu me sacudiu no lusco-fusco da madrugada Vai
sai desse buraco isso natildeo eacute pra ti tu soacute natildeo esquece da gente Obedeci sem resistecircncia
Lola me deu a metade de um patildeo dormido uns goles do seu chimarratildeo Toma pra tu
aguentar ateacute laacute levou-me a um orelhatildeo talvez o uacuteltimo que ainda funcionava telefonei
pra Elizete a cobrar tirei-a da cama na madrugada (REZENDE 2014 p245)
Quando refere lsquoobedeci sem resistecircnciarsquo natildeo se trata de uma obediecircncia passiva como
aquela que se instala com a filha no iniacutecio da narrativa eacute sim o resultado de sua quarentena a
compreensatildeo de si mesma e de suas necessidades de sobrevivecircncia que natildeo mais podem ser
satisfeitas na rua pela falta de dinheiro Alice constata que seu percurso em direccedilatildeo agrave si mesma
chega ao fim que jaacute eacute capaz de comeccedilar uma nova vida em Porto Alegre agora com o passo
firme de quem eacute capaz de decidir natildeo mais apenas sobreviver mas viver a rotina como se
apresenta A protagonista natildeo estaacute mais resignada agrave vida que lhe foi imposta mas compreende
que chegou aos proacuteprios limites e que retomou sua autonomia ldquoChega Barbie agora eu paro
mesmo jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia guria a solidariedade silenciosa mas
agora eu vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a mal taacute Natildeo digo que seja pra sempre quem
sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo a limpordquo (REZENDE 2014 p245)
Sem ponto final o paraacutegrafo mostra a caracteriacutestica da narrativa muitas vezes com frases
inacabadas Entretanto aqui a falta do ponto denota a abertura agraves possibilidades do que refere
como lsquopasso tudo a limporsquo Alice assume elementos da linguagem gauacutecha como o uso do lsquoguriarsquo
130
do lsquotursquo e do lsquotaacutersquo expressando a iniciativa pela assimilaccedilatildeo de elementos regionais em sua nova
fase depois de fazer todo o relato de sua mudanccedila de vida nas paacuteginas do diaacuterio
Em todo o percurso de sua procura por si mesma pelo resgate de sua autonomia o
alimento assume diversas conotaccedilotildees Pode-se compreender a cozinha em Quarenta dias como
um fator que marca etapas da histoacuteria de Alice desde a sopa que prepara em Joatildeo Pessoa ateacute o
patildeo dormido que recebe de Lola tanto representada pelo aspecto da comida como por aquele da
mobiacutelia dos instrumentos que satildeo parte do preparar o alimento e do comer Aleacutem disso eacute
possiacutevel transplantar a cozinha para o externo na histoacuteria como representaccedilatildeo da vida que Alice
decide tomar fora da vida que lhe foi imposta A cozinha representa a autonomia e natildeo mais a
obediecircncia agrave filha A consciecircncia do corpo por sua vez as necessidades de fome sede sono e
higiene pessoal que satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa
Cabe compreender a consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo ambas definidas por
Jaspers na procura que a protagonista faz por si mesma a partir da capacidade de tomar decisotildees
a favor do que deseja e precisa e natildeo a favor da filha Aleacutem disso relembra diversos elementos
de sua identidade a partir de referenciais de sua terra encontrados em Porto Alegre como um
sotaque familiar de Penha ou os sabores paraibanos ou mesmo na evocaccedilatildeo dos doces de sua
avoacute que os quindins da simpatia fazem-na evocar A recordaccedilatildeo do cachorro-quente paraibano
que compara com aquele soacute de patildeo e salsicha gauacutecho faz com que as memoacuterias ajudem em sua
reconstruccedilatildeo no que tange agrave consciecircncia de si A consciecircncia do corpo por sua vez pode ser lida
na iniciativa de Alice por satisfazer as necessidades de fome sede sono e higiene pessoal que
satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa
Um ponto de grande importacircncia eacute a interaccedilatildeo com outras pessoas que tambeacutem consiste
em necessidade de sobrevivecircncia Alice sai do isolamento em que passa os primeiros dias do
choque imbuiacuteda de encontrar Ciacutecero Nesta missatildeo conhece pessoas com quem conversa e
partilha mesmo que seja uma breve aproximaccedilatildeo Nutre-se dessas trocas aleacutem da nutriccedilatildeo pelo
alimento Coloca-se em situaccedilotildees em que eacute escutada em que tem sua necessidade atendida como
nas vilas que percorre na procura pelo rapaz nos botecos e restaurantes onde vai recebe o que
pede no restaurante de Penha recebe o zelo de uma mesa posta de Zelima no Pronto-Socorro
recebe cuidado e preocupaccedilatildeo
131
Atraveacutes da necessidade de sobreviver e da missatildeo de descobrir o paradeiro de Ciacutecero
Alice redescobre sua capacidade de tomar as reacutedeas da proacutepria vida que atribuiacutera agrave filha Norinha
logo que chegou em Porto Alegre
132
CONCLUSAtildeO
Italo Calvino ao se referir agrave atividade do escritor afirmou ldquoEscrevemos para tornar
possiacutevel ao mundo natildeo escrito de exprimir-se atraveacutes de noacutesrdquo (DANZI 2007 p140) O que ele
denomina lsquomundo natildeo escritorsquo eacute a proacutepria vida real percebida pelo indiviacuteduo por seus cinco
sentidos e vivenciada atraveacutes das emoccedilotildees e dos pensamentos Desse lsquomundo natildeo escritorsquo
portanto fazem parte o cozinhar e o comer o partilhar as refeiccedilotildees e seus sabores o vincular-se
aos demais entre outras vicissitudes da experiecircncia humana Atraveacutes do ofiacutecio do escritor essas
condiccedilotildees satildeo representadas no texto literaacuterio
A escolha por estudar o universo da cozinha neste contexto permite expressar diversas
perspectivas atraveacutes da literatura Silvana Ghiazza estudiosa das relaccedilotildees entre cozinha e
literatura expotildee que
O alimento enquanto signo significa portanto algo aleacutem de si mesmo media conteuacutedos
ligados ao universo cultural revela conexotildees com a realidade histoacuterico-social com o
conjunto profundo da identidade individual e coletiva constitui em suma um polo de
agregaccedilatildeo de diversas dimensotildees de humanidade torna-se uma forma de linguagem natildeo-
verbal organizando-se em paralelo a outras linguagens em um orgacircnico sistema de
sinais desta forma pode tornar-se entatildeo uma chave de leitura transversal da realidade
Ateacute daquela literaacuteria (GHIAZZA 2015 p19)
De acordo com a mesma autora ldquo[] pode-se falar de comida ou atraveacutes da comidardquo
(GHIAZZA 2015 p20 grifo nosso) No termo lsquoatraveacutesrsquo empregado por Silvana Ghiazza estatildeo
as possiacuteveis aplicaccedilotildees da cozinha na literatura em que a primeira a cozinha eacute um veiacuteculo para
que a segunda a literatura exprima na linguagem do escritor uma seacuterie de circunstacircncias dos
personagens e da trama
Mais uma vez Silvana Ghiazza colabora para a compreensatildeo do sentido da comida e sua
relaccedilatildeo com a literatura quando esclarece
A comida pode ser presente como objeto em sua concreta materialidade no interno da
representaccedilatildeo marcando a natureza realiacutestica da proacutepria estrutura narrativa pode
contribuir a delimitar as coordenadas espaccedilo-temporais fornecendo referecircncias a
produtos pratos haacutebitos de um tempo e de um territoacuterio determinado pode tambeacutem
assumir um significado metafoacuterico mediando conteuacutedos diversos e simboacutelicos A
relaccedilatildeo com o alimento em termos de sua conotaccedilatildeo identitaacuteria pode servir ao autor para
tratar o caraacuteter das personagens e pode tornar-se uma forma de comunicaccedilatildeo
interpessoal uma linguagem natildeo-verbal A comida pode ainda constituir o campo
semacircntico do qual o autor se serve para as escolhas lexicais de sua escritura
(GHIAZZA 2015 p20)
133
A expressatildeo da cozinha no texto literaacuterio serve valendo-nos da referecircncia de Italo
Calvino a que este lsquomundo natildeo escritorsquo se exprima atraveacutes do escritor A partir da leitura da
autora entende-se que esse lsquoexprimir-sersquo poderaacute ocorrer por meio de trecircs funccedilotildees principais a
denotativa a conotativa e a comunicativa Sobre a primeira denotativa Silvana Ghiazza explica
As referecircncias a produtos alimentares a pratos e a receitas assim como a rituais haacutebitos
ou eventos ligados agrave realidade gastronocircmica de um tempo preciso e de um territoacuterio
definido contribuem sem duacutevidas para dar veridicidade verossimilhanccedila agrave narrativa
marcando sua estrutura realiacutestica (GHIAZZA 2015 p24)
As trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea escolhidas para compor o corpus
desta dissertaccedilatildeo apresentam o universo da cozinha atraveacutes da funccedilatildeo denotativa nos elementos
compreendidos como espaccedilo fiacutesico material Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo as
referecircncias agraves tradiccedilotildees culinaacuterias judaicas em seus pratos receitas e praacuteticas satildeo representadas
por essa funccedilatildeo Em O arroz de Palma podemos ler em produtos como o arroz a lata de azeite
de oliva e o bacalhau a presenccedila da cultura portuguesa configurando tal funccedilatildeo em Quarenta
dias a mesma estaria representada pelas carrocinhas de pipoca e de cachorro quente pelas
padarias e comidas de botecos de rua pois satildeo elementos que datildeo verossimilhanccedila agrave estrutura
narrativa em que a personagem passa a habitar as ruas da cidade durante a sua procura
A respeito da funccedilatildeo conotativa em situaccedilatildeo oposta agrave anterior Ghiazza explicita
As referecircncias agrave esfera alimentar natildeo tecircm o escopo de marcar a verossimilhanccedila e o
realismo da obra fornecendo informaccedilotildees do tipo denotativo realistico-referencial mas
servem principalmente para tratar do caraacuteter das personagens para definir a
personalidade atraveacutes de gestos de comportamentos ou de haacutebitos ligados de algum
modo agrave produccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo e ao consumo do alimento (GHIAZZA 2015 p25)
Podemos na funccedilatildeo conotativa mencionar em O arroz de Palma a preparaccedilatildeo do arroz
por Antonio enquanto narra a histoacuteria bem como o papel do arroz na trama considerando seu
caraacuteter simboacutelico como fertilizador da famiacutelia e como elemento presenteado por Palma e Joseacute
Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento Em Por que sou gorda mamatildee a funccedilatildeo
conotativa seria representada pela relaccedilatildeo das personagens com o comer jaacute que tanto no caso da
protagonista como no de sua matildee e no da Voacute Magra tal relaccedilatildeo eacute caracteriacutestica da personalidade
das mesmas entre outros exemplos Em Quarenta dias as escolhas alimentares de Alice satildeo
comportamentos associados agrave sua decisatildeo de permanecer na rua natildeo voltando para casa bem
como de seu desejo por autonomia Na mesma obra tanto o restaurante da conterracircnea Penha
134
quanto ingredientes e comidas da Paraiacuteba com os quais a protagonista tem contato em seus
percursos marcam a ligaccedilatildeo afetiva que ela manteacutem com sua terra natal
Outra das funccedilotildees que Silvana Ghiazza refere eacute a comunicativa relacionada ao papel da
cozinha na comunicaccedilatildeo entre as personagens de uma trama como por exemplo a funccedilatildeo da
comida no compartilhar a mesa
Ainda um outro significado que a comida pode assumir eacute ligado agrave convivialidade agrave sua
funccedilatildeo de meio de comunicaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Desde sempre dividir o alimento
foi de forma diversa mas em todas as sociedades ocasiatildeo para comunicar E esse eacute um
dado verificaacutevel na vida de cada dia em que se espera que o momento da divisatildeo do
alimento seja tambeacutem momento de divisatildeo de pensamentos e de afetos de
aprofundamento do conhecer reciacuteproco Na mesa se fala o eu torna-se noacutes
Tambeacutem na literatura esta realidade ocupa um lugar notaacutevel e as referecircncias agrave comida
desempenham uma funccedilatildeo comunicativa na medida em que oferecem o suporte para
uma troca relacional entre as personagens o alimento e mais em termos gerais as
praacuteticas alimentares podem transformar-se de fato em uma verdadeira linguagem natildeo-
verbal capaz de comunicar mensagens sem a necessidade de palavras [] A comida
torna-se a forma privilegiada de linguagem natildeo-verbal para comunicar o sentimento de
amor em todas as suas formas (GHIAZZA 2015 p26-27)
Nas trecircs obras do corpus encontramos a funccedilatildeo comunicativa quando a comida bem
como as representaccedilotildees da cozinha como espaccedilo fiacutesico satildeo elos de convivecircncia entre as
personagens Palma colhe o arroz da pedra para presenteaacute-lo ao irmatildeo e agrave cunhada e o mesmo
seraacute elemento de ligaccedilatildeo entre a famiacutelia assumindo o arroz o nuacutecleo da trama Antonio durante a
narrativa prepara o que restou do ingrediente para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo de cem anos do
casamento dos pais e do proacuteprio arroz em O arroz de Palma Ateacute mesmo na expressatildeo do amor
fiacutesico o arroz eacute o elemento comunicativo na cena em que Antonio e Isabel inauguram sua
intimidade fiacutesica derramando sobre seus corpos o arroz Em Por que sou gorda mamatildee a Voacute
Magra oferece doces tiacutepicos aos netos em sua sacola de crocheacute enquanto a matildee da protagonista
compartilha com os filhos os doces e o refrigerante dentro do carro na viagem da famiacutelia ao
Uruguai
Assim a representaccedilatildeo da cozinha pode se exprimir no texto literaacuterio como espaccedilo fiacutesico
e simboacutelico termos escolhidos para o presente trabalho ou atraveacutes de suas funccedilotildees denotativa
conotativa e comunicativa conforme Silvana Ghiazza As trecircs obras do corpus tecircm o objetivo de
propor a reflexatildeo sobre as linguagens que a cozinha pode assumir no texto literaacuterio
especificamente no contexto da literatura brasileira contemporacircnea Nossa escolha por estudar o
referido tema decorreu tambeacutem da funccedilatildeo cultural que a cozinha assume na sociedade atraveacutes
dos tempos Rita Rutigliano explica que
135
Desde sempre os escritores utilizam a comida e o comer tambeacutem para falar de outra
coisa As paacuteginas dos livros se sabe portam um patrimocircnio de signos reveladores de
vivecircncias e de sentimentos humanos Nos eacute possiacutevel colher indiacutecios preciosos atraveacutes de
descriccedilotildees dos rituais alimentares (e ateacute mesmo do jejum) que- cobrindo o arco inteiro
entre dois polos- a comida como necessidade de base e como um aspecto da paixatildeo pela
vida-podem se tornar invenccedilatildeo jogo poesia religiatildeo histoacuteria barocircmetro das
experiecircncias pessoais e coletivas metaacutefora social e poliacutetica Em uma palavra cultura
(RUTIGLIANO 2000 p11)
A respeito do papel desempenhado pela cozinha na cultura salientado por Rita
Rutigliano podemos acrescentar o fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo lsquoLa cultura em la
cocinarsquo cujo conselho editorial eacute composto por Marcelo Aacutelvarez Jesuacutes Contreras e Rosaacuterio
Olivas O referido fragmento aparece publicado em um dos livros da coleccedilatildeo pela editora
Catalonia del Nuevo Extremo
A cozinha natildeo eacute soacute um procedimento teacutecnico que permite que os produtos alimentiacutecios
se transformem em pratos e em receitas eacute acima de tudo uma linguagem em que se
expressa a cultura humana Os gostos a esteacutetica as combinaccedilotildees de sabores os
condimentos preferidos e as maneiras agrave mesa satildeo gestos sociais que se relacionam com a
histoacuteria e com a transmissatildeo dos siacutembolos que distinguem uma comunidade da outra
(SARDE MONTECINO 2014)
O fato eacute que das mais diversas formas dentro do referido contexto cultural o universo
culinaacuterio pode ser traduzido na literatura como um fenocircmeno da natureza humana O cozinhar
nos fez humanos A propoacutesito disso Eloisa Palafox refere que as capacidades de cozinhar os
alimentos e de contar histoacuterias distinguem o homo sapiens ambas compotildeem parte primordial de
nossa evoluccedilatildeo A semelhanccedila entre tais praacuteticas estaacute tambeacutem no fato de que permitem a
socializaccedilatildeo entre os indiviacuteduos e a partilha da comida e das histoacuterias Para Michael Pollan
Somos a uacutenica espeacutecie que depende do fogo para manter o corpo aquecido e a uacutenica
espeacutecie que natildeo pode passar sem cozinhar sua comida A esta altura o controle do fogo
jaacute estaacute inscrito nos nossos genes uma questatildeo natildeo mais associada apenas agrave cultura
humana mas sim agrave nossa biologia (POLLAN 2014 p109)
A relaccedilatildeo com o cozinhar vai aleacutem do preparo do alimento no fogo para ingestatildeo Esse eacute
sem duacutevidas o que manteacutem nossa sobrevivecircncia bioloacutegica mas haacute outra habilidade que
aprendemos como espeacutecie graccedilas tambeacutem ao fogo a interaccedilatildeo com os demais que Silvana
Ghiazza relaciona com a funccedilatildeo comunicativa que a cozinha pode ter no texto literaacuterio Pollan
acrescenta agrave exposiccedilatildeo acima a relevacircncia dessa aquisiccedilatildeo em nosso desenvolvimento
136
Sobretudo o fogo que usamos para cozinhar como o que vigio na churrasqueira do meu
quintal tambeacutem ajudou a nos formar como seres sociais lsquoA forccedila do magnetismo social
exercido pelo fogorsquo como diz o historiador Felipe Fernaacutendez-Armesto eacute o que nos
manteacutem juntos e ao fazer isso ele provavelmente mudou o curso da evoluccedilatildeo humana O
fogo usado para cozinhar promoveu a seleccedilatildeo de indiviacuteduos capazes de tolerar outros
indiviacuteduos- fazer contato visual cooperar e compartilhar lsquoQuando o fogo se combinou agrave
comidarsquo escreveu Fernaacutendez-Armesto lsquoum foco quase irresistiacutevel foi criado para a vida
comunalrsquo (na verdade lsquofocorsquo vem da palavra latina focus para lareira braseiro chama)
A forccedila da gravidade social exercida pelo fogo natildeo parece ter diminuiacutedo [] (POLLAN
2014 p109)
Assim somos seres bioloacutegicos e sociais atributos que devemos ao ato de cozinhar A
nossa biologia nos confere o comer pela fome e pelo prazer Esse elemento por sua vez eacute
necessaacuterio para promover a continuidade da sobrevivecircncia individual da mesma forma que o
prazer sexual eacute o estiacutemulo para a preservaccedilatildeo do humano como espeacutecie Cozinhar comer
alimentos cozidos que nos deem nutriccedilatildeo e sensaccedilotildees prazerosas e nos reunirmos com nossos
semelhantes satildeo atributos evolutivos que promoveram a chegada ao seacuteculo XXI
A reuniatildeo com as pessoas proacuteximas resultado do fogo como elemento agregador para
cozinhar os alimentos tornou-nos em termos evolucionaacuterios seres sociais Sendo assim
partilhamos vivecircncias com outros e essas nos propiciam a noccedilatildeo de pertencimento a um grupo
Temos a partir disso a noccedilatildeo de uma identidade singular e plural Somos parte de algo e
acumulamos percepccedilotildees experiecircncias e sentimentos em comum forma-se a memoacuteria coletiva A
memoacuteria individual de modo diverso eacute parte do aparato anatocircmico e fisioloacutegico dos seres
humanos Essa se desenvolve agrave medida que se forma o neocoacutertex ceacuterebro exclusivamente nosso
cooperando com a consciecircncia de noacutes mesmos e entatildeo com a construccedilatildeo da identidade
individual E porque somos capazes de reter informaccedilotildees de arquivaacute-las e de evocaacute-las em
acircmbito individual somos tambeacutem capazes de fazecirc-lo coletivamente ao compormos um grupo
seja uma famiacutelia ou um povo
Uma das principais caracteriacutesticas da memoacuteria na esfera familiar satildeo as histoacuterias que
atravessam geraccedilotildees por serem contadas desde os antepassados Entre essas eacute vaacutelido incluirmos
tambeacutem as receitas de cozinha pois narram o como-se-faz de um prato atraveacutes dos tempos por
parentes de sangue ou de criaccedilatildeo Entre tais histoacuterias podemos tambeacutem referir o papel de um
determinado ingrediente na formaccedilatildeo de uma memoacuteria de famiacutelia como eacute o exemplo em O arroz
de Palma
A memoacuteria individual por sua vez eacute porccedilatildeo imprescindiacutevel de nossa identidade e da
consciecircncia que temos sobre quem somos ela compotildee junto aos demais elementos nossa
137
capacidade de autonomia Jaspers aponta para a impossibilidade de uma independecircncia total em
relaccedilatildeo a outras pessoas pois precisamos das interaccedilotildees de afeto e de trocas com nossos
semelhantes Temos tambeacutem necessidade uns dos outros por aspectos praacuteticos de sobrevivecircncia
indiviacuteduos que plantem que colham que pesquem que vendam que comprem que cozinhem
que consumam e que faccedilam esse ciacuterculo perpetuar-se Seguiremos cozinhando uns para os outros
pelo simples fato de que precisamos comer E partilhar Esse eacute o ponto em Quarenta dias
A protagonista depende de quem prepare o alimento para ela seja o anocircnimo na
carrocinha de cachorro quente na rua seja na mesa posta com esmero que recebe no restaurante
da rodoviaacuteria pela conterracircnea Penha Paradoxalmente o fato de receber do outro a comida eacute o
substrato da retomada de sua autonomia jaacute que a decisatildeo do que comer eacute da proacutepria Alice Nesse
caso o cozinhar tece as interaccedilotildees entre os sujeitos
Os elementos escolhidos para estudo satildeo resultado de nossa capacidade de pensar de
sentir emoccedilotildees de perceber os estiacutemulos externos atraveacutes dos cinco sentidos e de interpretaacute-los
de acordo com a consciecircncia do corpo e de noacutes mesmos A bagagem individual e cultural
fornecida pela memoacuteria faz com que possamos sentir prazer ao saborear uma receita de famiacutelia
porque ela nos faz lembrar de uma avoacute ou de uma tia como ocorre com Antonio ao ler aquela
escrita por Palma em seu caderno Escolhemos o que comer exercendo nossa autonomia
conforme as preferecircncias alimentares que nos identificam considerando a cultura do territoacuterio
onde vivemos Compreende-se entatildeo que os atributos definidos para este trabalho natildeo ocupam
compartimentos estanques mas estatildeo inexoravelmente interligados em noacutes
Pollan reflete sobre a contribuiccedilatildeo de Levi-Strauss nesse aspecto
Segundo Levi-Strauss a distinccedilatildeo entre lsquoo crursquo e lsquoo cozidorsquo serviu a muitas culturas
como a grande alegoria para estabelecer a diferenccedila entre animais e pessoas Em lsquoO cru
e o cozidorsquo ele escreveu lsquocozinhar natildeo apenas marca a transiccedilatildeo da natureza para a
cultura mas por meio dessa accedilatildeo e com a sua ajuda a condiccedilatildeo humana pode ser
definida com todos os seus atributosrsquo Cozinhar transforma a natureza e ao fazer isso
nos eleva acima desse estado tornando-nos humanos (POLLAN 2014 p57)
Na presente dissertaccedilatildeo partiu-se da proposta de estudar a memoacuteria ligada agrave cozinha em
O arroz de Palma o prazer vinculado ao comer em Por que sou gorda mamatildee e a autonomia
associada ao escolher o alimento a partir da percepccedilatildeo da fome em Quarenta dias Essa
separaccedilatildeo se deveu agrave predominacircncia desses atributos em cada uma das obras natildeo os excluindo
138
das demais Como jaacute exposto haacute uma interligaccedilatildeo entre esses em cada um de noacutes Eacute possiacutevel
encontrar nas trecircs narrativas expressotildees dessa conexatildeo
Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo muito se pode refletir sobre as lembranccedilas
da proacutepria narradora-personagem e de sua famiacutelia ou sobre sua autonomia ao decidir pelo que
come Em Quarenta dias a protagonista recorre agrave memoacuteria de sabores e de vivecircncias ao
escrever em seu caderno a retrospectiva de suas andanccedilas aleacutem disso apesar de sua fome ser o
determinante na escolha do que comer Alice sente prazer com a refeiccedilatildeo quentinha e posta na
mesa com esmero no restaurante da rodoviaacuteria ou com o lanche servido na padaria Em O arroz
de Palma os atributos tambeacutem estatildeo entremeados mesmo com o predomiacutenio da memoacuteria para o
estudo dessa obra haacute presenccedila do prazer e da autonomia ao longo das lembranccedilas de Antonio
Um ponto de semelhanccedila entre as trecircs obras eacute o fato de apresentarem todas um narrador-
personagem que protagoniza as vivecircncias A cozinha eacute portanto contada em primeira pessoa
espaccedilo vivencial do narrador A opccedilatildeo por um eu ficcional para narrar as histoacuterias natildeo eacute ao acaso
sendo a cozinha um espaccedilo de tamanha relevacircncia para nossa vida de tanto apelo ao imaginaacuterio e
agraves lembranccedilas nos campos individual e coletivo eacute bem apropriado que quem conte seja a
personagem que a vivenciou atraveacutes das proacuteprias experiecircncias ou da memoacuteria familiar A tal
propoacutesito outro elemento que aproxima as trecircs obras eacute a presenccedila da famiacutelia das personagens
que ocupa posiccedilatildeo relevante na relaccedilatildeo que os protagonistas assumem com a cozinha
Nas trecircs narrativas o narrador-personagem fala de suas emoccedilotildees e vivecircncias e por vezes
fala da famiacutelia e das histoacuterias e lembranccedilas que representam a raiz de muitas experiecircncias com a
cozinha e com o comer A famiacutelia nesse contexto representa o coletivo que eacute apresentado junto
ao individual o sentir e pensar do proacuteprio narrador No livro Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e
Doccediluras essa coexistecircncia entre o singular e o plural eacute um dos elementos abordados em relaccedilatildeo
ao papel da cozinha conforme expresso no trecho abaixo
O ato culinaacuterio eacute ao mesmo tempo uma experiecircncia individual e coletiva uma
oportunidade de autoconhecimento de entrega a mim mesma e simultaneamente de
partilha de doaccedilatildeo de expressatildeo de afetos positivos [hellip] Sobretudo o ato culinaacuterio
representa uma das circunstacircncias mais propiacutecias para experimentar singular e plural
para nos aproximar de noacutes mesmos e daqueles a quem admiramos amamos e que satildeo
parte da nossa histoacuteria (CARDOSO 2012 p13)
139
O termo lsquoato culinaacuteriorsquo refere-se natildeo apenas ao cozinhar mas a toda gama de
comportamentos ligados agrave cozinha como dividir uma refeiccedilatildeo receber doces ou oferecer uma
comida aos demais colocar a mesa e tantas outras possibilidades
A diferenccedila entre as trecircs obras eacute o espaccedilo que a cozinha representa em cada uma Em O
arroz de Palma Antonio faz a narrativa a partir de sua cozinha enquanto prepara o almoccedilo de
celebraccedilatildeo dos cem anos de casamento de seus pais e do saco de estopa com o arroz como
presente aos noivos A cozinha nesse caso eacute apresentada atraveacutes do espaccedilo fiacutesico mas tambeacutem
do ingrediente-protagonista o arroz por outros elementos materiais como os guardanapos da
matildee de Isabel e o caderno de receitas de Antonio e por aqueles imateriais a exemplo da memoacuteria
associada ao cozinhar e das comparaccedilotildees dos pratos culinaacuterios com os estilos de famiacutelias Em
Por que sou gorda mamatildee a cozinha aparece ora como ingredientes ora como espaccedilo fiacutesico
ora como comidas ora como emoccedilotildees revelando histoacuterias da protagonista e de seus antepassados
de origem judaica Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como espaccedilo fiacutesico no novo
apartamento e na vida da protagonista em Joatildeo Pessoa antes da mudanccedila e passa a ser expressa
ao longo da obra pelos bares estabelecimentos e lsquocarrinhosrsquo pelos quais ela passa tambeacutem
representativos do espaccedilo fiacutesico Aleacutem disso a cozinha aparece como espaccedilo simboacutelico de
sobrevivecircncia nessa narrativa essa representaccedilatildeo eacute feita atraveacutes das comidas que Alice escolhe
enquanto anda pelas ruas Deste modo as trecircs obras contemplam ambos os espaccedilos referidos no
propoacutesito desse trabalho
Nas obras a cozinha eacute descrita como espaccedilo fiacutesico - tanto como peccedila da casa quanto
atraveacutes dos eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios ou seja em sua existecircncia material- e como
espaccedilo simboacutelico traduzindo lembranccedilas emoccedilotildees e comportamentos representando o ritual
implicado no cozinhar e comunicando os integrantes de uma famiacutelia
Em relaccedilatildeo ao elemento material da cozinha destaco em O arroz de Palma a cozinha de
onde Antonio narra suas lembranccedilas a panela em que ele prepara o arroz a taacutebua na qual corta os
temperos seu caderno de receitas onde estaacute aquela escrita por Palma os guardanapos da matildee de
Isabel a lata de azeite de Oliva e o mais significativo de todos o proacuteprio arroz presenteado a
Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento A expressatildeo material estaacute presente sobretudo
no espaccedilo fiacutesico e nos elementos citados embora haja menccedilatildeo a comidas como o arroz de
bacalhau preparado para aproximar as famiacutelias a fim de comeccedilar o namoro com Isabel
140
Em Por que sou gorda mamatildee haacute referecircncias agraves comidas e doces judaicos como
aqueles na sacola de crocheacute da Voacute Magra Aleacutem disso em vaacuterias passagens se lecirc descriccedilotildees como
aquela em que os moradores do bairro preparam pratos a partir dos ingredientes nas cozinhas de
suas casas com detalhamento dos atos culinaacuterios e dos instrumentos utilizados Uma das cenas
mais consistentes em demonstrar a cozinha como espaccedilo fiacutesico eacute quando a Voacute Magra prepara os
bifes para a protagonista ali essa representaccedilatildeo natildeo apenas estaacute na cozinha mas tambeacutem nos
utensiacutelios e ingredientes como o oacuteleo que ela usa para o preparo da carne Nessa obra a
predominacircncia da perspectiva material estaacute principalmente nas comidas Outro exemplo eacute a cena
em que a matildee se deleita com os filhos na viagem ao Uruguai comendo doces e refrigerante ou
quando essa faz uma farta refeiccedilatildeo antes do cateterismo e outra depois de sair do hospital Esses
satildeo alguns exemplos da expressatildeo fiacutesica que a cozinha assume na obra de Cintia Moscovich
Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como peccedila da casa de Joatildeo Pessoa e de Porto
Alegre sendo essa uacuteltima expressa com detalhes quanto a eletrodomeacutesticos armaacuterios mesa e
utensiacutelios No periacuteodo em que Alice estaacute na rua o aspecto material da cozinha eacute manifestado
pelas carrocinhas de pipoca e cachorro quente pelos botecos e padarias e pelos alimentos Esses
predominam na narrativa como expressatildeo do espaccedilo fiacutesico ocupado pela cozinha
Quanto ao aspecto simboacutelico representado ressalta-se que ao cozinhar e ao comer
estamos praticando rituais Mircea Eliade na obra jaacute referida nessa dissertaccedilatildeo expotildee que ldquo[]
a principal funccedilatildeo do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a
educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 2011 p13)
A alimentaccedilatildeo como ritual estaacute presente nas trecircs obras de formas diversas Em O arroz de
Palma estaacute na colheita do arroz na pedra pela Tia Palma bem como na oferta desse aos noivos
como presente de casamento estaacute tambeacutem na canja que ela faz ao irmatildeo com esse mesmo
arroz para que os gratildeos o fertilizem e no almoccedilo em que ela e Maria Romana preparam o arroz
de bacalhau para a integraccedilatildeo das famiacutelias Estaacute tambeacutem em outros pontos da narrativa como no
ponto em que Antonio e Isabel recebem o arroz em seu casamento e quando levam um punhado
desse para sua comunhatildeo fiacutesica no lago
Nessa obra os trecircs exemplos que melhor ilustram a presenccedila do ritual satildeo o ato de
cozinhar que permeia toda a histoacuteria pois enquanto o protagonista prepara o arroz evoca
lembranccedilas e as mistura com imaginaccedilotildees e pensamentos a leitura da receita dedicada a ele em
141
seu caderno de receitas por Palma com recitaccedilotildees a serem praticadas durante o preparo da
comida Por fim a reuniatildeo da famiacutelia nas mesas para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo dos cem anos
do casamento dos pais e do presente do arroz em que haacute dois pontos que aludem ao ritual Tanto
a reuniatildeo da famiacutelia para comer eacute ritualiacutestica quanto tambeacutem o fato de se tratar de uma
comemoraccedilatildeo como foi visto na referecircncia que Ricoeur faz ao elemento mundanidade do par
reflexividademundanidade em sua fenomenologia da memoacuteria
Em Por que sou gorda mamatildee o componente do ritual estaacute principalmente associado ao
comer e ao partilhar o alimento e menos ao cozinhar A oferta de doces na sacola de crocheacute que
a Voacute Magra faz aos netos eacute um dos exemplos dessa partilha assim como a menccedilatildeo que a
protagonista faz agraves refeiccedilotildees agrave mesa em famiacutelia Haacute o aspecto ritual nos doces oferecidos pois
satildeo de origem judaica e ilustram sabores ancestrais dessa cultura
Em Quarenta dias o ritual estaacute presente tambeacutem no comer e em muitos casos nas ofertas
de alimento que Alice recebe em seu percurso pelas vilas Como jaacute mencionado a mesa posta no
restaurante da rodoviaacuteria eacute parte do ritual da alimentaccedilatildeo e a partilha dos lanches entre Alice e
Lola representa a integraccedilatildeo dos indiviacuteduos que compartilham as refeiccedilotildees
Em um periacuteodo da histoacuteria da humanidade em que estamos prestando mais atenccedilatildeo na
gastronomia como espetaacuteculo midiaacutetico essas trecircs narrativas apontam para um retorno da
cozinha como contexto de afeto de memoacuteria de tradiccedilatildeo de construccedilatildeo de significados Michael
Pollan em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo reitera
Estamos falando mais sobre culinaacuteria- e assistindo a programas de culinaacuteria lendo sobre
o assunto e indo a restaurantes onde podemos observar o preparo da comida em tempo
real Vivemos numa era em que cozinheiros profissionais se tornaram celebridades
alguns deles tatildeo famosos quanto atletas ou estrelas de cinema A mesma atividade que
muitas pessoas encaram como um trabalho enfadonho acabou sendo de alguma forma
elevada agrave categoria de esporte popular com puacuteblico proacuteprio [hellip] Por algum motivo
cozinhar eacute diferente O trabalho ou o processo carrega uma forccedila emocional ou
psicoloacutegica da qual natildeo podemos-ou natildeo queremos- nos livrar (POLLAN 2014 p11)
Nas trecircs narrativas lecirc-se o cozinhar cumprindo os propoacutesitos ancestrais que o homem
aprendeu com o domiacutenio do fogo nutrir e agregar No mundo real que Italo Calvino chamou de
lsquomundo natildeo escritorsquo a cozinha promove essas vivecircncias pela transformaccedilatildeo do alimento e pelo
viacutenculo com os outros indiviacuteduos atraveacutes da comida preparada Nas obras escolhidas para o
corpus os espaccedilos fiacutesico e simboacutelico da cozinha tornam-se parte do mundo escrito exprimindo-
se atraveacutes do ofiacutecio de seus autores Reafirma-se assim a perspectiva de Italo Calvino
142
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1
Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda pelos infinitos legados
que constituem meu gosto pela literatura pela cozinha e por sua interface
O som das teclas da maacutequina de escrever do Vocirc Heacutelio o perfume do panelatildeo de chimia de uva
Isabel da Voacute Leacuteia o brilho de sol nos vidros de ambrosia da Voacute Alda
ingredientes da minha escrita e do meu cozinhar
2
AGRADECIMENTOS
Agrave Profa Dra Maria Eunice Moreira pela proposta do tema que me encanta a interface
entre Literatura e Cozinha e seus diaacutelogos com outras aacutereas por todos os ensinamentos nas
disciplinas do Mestrado e na orientaccedilatildeo da escrita da Dissertaccedilatildeo pelo incentivo e pela confianccedila
durante toda a trajetoacuteria
Ao Prof Dr Ricardo Arauacutejo Barberena pelo despertar da curiosidade e do gosto pela
literatura brasileira contemporacircnea pela confianccedila e entusiasmo e pela riqueza das sugestotildees
apontadas na Banca de Qualificaccedilatildeo de Mestrado
Agrave Profa Dra Luciana Abreu Jardim pelos ensinamentos transmitidos durante o mini-
curso que ministrou em Caxias do Sul em 2015 intitulado ldquoSobre o pensamento de Julia
Kristeva a experiecircncia-revolta atraveacutes dos cruzamentos de sentidosrdquo de grande relevacircncia para a
construccedilatildeo de minha bagagem adquirida durante o Mestrado
Agrave Profa Dra Leacutea Masina pelos meus dez anos de aprendizado nos seminaacuterios de escrita
literaacuteria por seu papel fundamental no amadurecimento do meu gosto por escrever e pelo carinho
com que conduz o processo de descobertas na literatura
Aos meus pais Ana Cristina e Apolinaacuterio e ao meu irmatildeo Diego pelo estiacutemulo aos meus
percursos e pelo incentivo para que eu sempre abrisse janelas aos horizontes possiacuteveis
Aos amigos de toda a vida Melissa Sharlene e Jaime pela amizade incondicional e pelo
apoio conversas e risadas durante o periacuteodo de escrita da Dissertaccedilatildeo
Ao Marcelo pela partilha dos prazeres da mesa com afeto muitos risos e boa prosa e
pelo estiacutemulo e sugestotildees nos desafios durante os momentos especiais do nosso conviacutevio
3
Aos autores das obras que compotildeem o corpus da Dissertaccedilatildeo Francisco Azevedo Ciacutentia
Moscovich e Maria Valeacuteria Rezende A partir de O arroz de Palma Por que sou gorda mamatildee
e Quarenta dias foi possiacutevel realizar o presente estudo
Agrave bibliotecaacuteria Clarissa Selbach pela disponibilidade e pela excelecircncia durante todo o
percurso da Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Aos meus sobrinhos Eacuterico e Lucas por me permitirem voltar a ser crianccedila em nossas
brincadeiras e por participarem do fazer culinaacuterio com alegria de festa
Agrave Tacircnia pelo afeto e pela celebraccedilatildeo de sempre
Aos meus avoacutes (in memoriam) Vocirc Heacutelio Voacute Leacuteia e Voacute Alda a quem dedico essa
Dissertaccedilatildeo
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ldquoFamiacutelia eacute afinidade eacute lsquoagrave moda da casarsquo
E cada casa gosta de preparar a famiacutelia a seu jeitordquo
(AZEVEDO 2008)
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RESUMO
A presente dissertaccedilatildeo de Mestrado visa analisar a cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico no
contexto de trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco
Azevedo (2008) Por que sou gorda mamatildee de Cintia Moscovich (2006) e Quarenta dias de
Maria Valeria Rezende (2014) No estudo de cada obra eacute estabelecida a relaccedilatildeo entre a cozinha e
um dos trecircs seguintes paradigmas respectivamente memoacuteria prazer e autonomia Assim o
trabalho eacute composto por trecircs capiacutetulos intitulados ldquoCozinha e memoacuteriardquo ldquoCozinha e prazerrdquo
ldquoCozinha e autonomiardquo O propoacutesito eacute compreender de que forma a cozinha eacute apresentada nas
narrativas do corpus no contexto dos temas escolhidos Elementos da fenomenologia
psiquiaacutetrica da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo satildeo apresentados em diaacutelogo com a
literatura brasileira contemporacircnea
Palavras-chave Literatura brasileira contemporacircnea Cozinha Comida
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ABSTRACT
This dissertation aims to analyze the kitchen as a physical and symbolic space within the context
of three works of contemporary Brazilian literature Francisco Azevedorsquos O arroz de Palma
(2008) Cintia Moscovichrsquos Por que sou gorda mamatildee (2006) and Maria Valeria Rezendersquos
Quarenta dias (2014) In each work kitchen is related to one of the following three paradigms
respectively memory pleasure and autonomy Thus this study consists of three chapters entitled
Kitchen and Memory Kitchen and Pleasure and Kitchen and Autonomy Our goal is to
understand how the kitchen is described in the narratives of the corpus in the context of the
selected topics Elements of psychiatric phenomenology sociology and food history are
presented in connection with contemporary Brazilian literature
Keywords Contemporary Brazilian literature Kitchen Food
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SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 10
1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA 15
11 O ARROZ DE PALMA 15
12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA 19
13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO 34
14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA 42
2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57
21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE 57
22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL 60
23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA 66
24 O PRAZER DA COMIDA 74
3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS 92
31 QUARENTA DIAS 92
32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS 97
33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA 105
34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI 111
CONCLUSAtildeO 132
REFEREcircNCIAS 142
10
INTRODUCcedilAtildeO
O ato de cozinhar eacute parte ancestral da nossa existecircncia como seres humanos Desde os
tempos primitivos o homem transforma o ingrediente cru em alimento cozido Comemos por
necessidade nutricional mas tambeacutem por outros motivos comemos para sentir prazer com um
bom prato para socializarmos partilhando esse prazer com outras pessoas para evocarmos
lembranccedilas de famiacutelia e as nossas proacuteprias com sabores que fazem parte de nossa bagagem
emotiva Escolhemos o que comer aprendemos a gostar mais desse ou daquele doce somos
conhecidos pelo quitute que preparamos para os amigos Adoramos canela mas detestamos
alecrim A cozinha faz parte da construccedilatildeo de nossa identidade e da memoacuteria que vamos
formando a partir das experiecircncias vivenciadas sozinhos ou em grupo
Um ponto de extrema relevacircncia eacute o fato de que a comida supre as demandas orgacircnicas
manteacutem-nos com energia para enfrentar a rotina e sustenta a sauacutede razotildees pelas quais eacute parte de
nossa autonomia Recebemos o leite materno quando somos ainda dependentes do peito da matildee
a seguir os pais nos alimentam com novos sabores ateacute que passamos a aprender a gostar de
modo individual disso ou daquilo E aprendemos a natildeo gostar daquele guisado de aboacutebora do
almoccedilo ou da salada de cenoura beterraba alface e tomate - que devemos comer porque faz bem
e ponto As escolhas alimentares tornam-se parte de nossa capacidade de dirigirmos nosso Eu e
de compormos nossas preferecircncias Assim natildeo seria exagero referir que tais escolhas nos
identificam pois satildeo um pedaccedilo de quem nos tornamos como indiviacuteduos e como famiacutelia O
alimento torna-se uma fatia das histoacuterias que vivemos e das emoccedilotildees que sentimos
Haacute um aspecto a ser questionado a que nos referimos quando falamos em cozinha Ao
espaccedilo fiacutesico que essa ocupa na casa onde estatildeo o forno e o fogatildeo o refrigerador a pia Aos
utensiacutelios como talheres e pratos panelas eletrodomeacutesticos peneira travessas e assim por
diante Aos ingredientes em parte mantidos na despensa enquanto outros devem permanecer
refrigerados Agraves receitas de quitutes de doces de refeiccedilotildees escritas a matildeo em cadernos
familiares ou colhidas da Internet ou copiadas no programa televisivo de famosos chefs Agraves
recordaccedilotildees de vivecircncias passadas com as avoacutes que nos ensinavam o saber culinaacuterio pelo
claacutessico lsquobotar a matildeo na massarsquo Agrave cultura de um povo pelas comidas que prepara
A cozinha contempla todos esses elementos do simboacutelico ao concreto da antiguidade
mais remota aos tempos hipervelozes de hoje com diversas miacutedias dirigidas aos temas culinaacuterios
11
do conforto emocional que representava ao glamour que vem atingindo com o avanccedilo da
gastronomia como expressatildeo de status social e econocircmico no seacuteculo XXI
Memoacuteria prazer e autonomia lsquoingredientesrsquo relevantes na relaccedilatildeo do ser humano com o
alimento tanto na sua preparaccedilatildeo quanto no ato de comer propriamente dito
Pela importacircncia e significado da cozinha em todos os tempos e em todas as culturas a
presente dissertaccedilatildeo visa discutir seu papel nos acircmbitos fiacutesico e simboacutelico em trecircs obras da
literatura brasileira contemporacircnea O arroz de Palma de Francisco Azevedo (2008) Por que
sou gorda mamatildee de Ciacutentia Moscovich (2006) e Quarenta dias de Maria Valeacuteria Rezende
(2014)
A organizaccedilatildeo eacute composta por trecircs capiacutetulos que mantecircm a mesma estrutura na epiacutegrafe
um trecho emblemaacutetico da obra a ser explorada sob a perspectiva de um dos paradigmas
definidos como memoacuteria prazer e autonomia um fragmento introdutoacuterio para apresentaacute-lo em
sua relaccedilatildeo com a cozinha seguido de quatro subdivisotildees na primeira a apresentaccedilatildeo da obra do
corpus na segunda a fundamentaccedilatildeo teoacuterica do atributo escolhido para cada uma das narrativas
na terceira a reflexatildeo sobre este visto agrave luz de sua relaccedilatildeo com a cozinha na quarta a anaacutelise
das obras especiacuteficas utilizando-se trechos e analisando-os a partir das reflexotildees e estudos jaacute
expostos
O primeiro capiacutetulo intitulado ldquoCozinha e memoacuteria em O arroz de Palmardquo apresenta a
cozinha vinculada agraves histoacuterias familiar e pessoal das personagens o que permite relacionar esse
livro com a pesquisa sobre a memoacuteria tanto a individual como a coletiva O segundo capiacutetulo
intitulado ldquoCozinha e prazer em Por que sou gorda mamatildeerdquo traz a cozinha principalmente
manifesta pela vivecircncia do prazer da comida e suas consequecircncias para a protagonista como o
engorde motivo pelo qual incide sobre o prazer na relaccedilatildeo com a cozinha O terceiro capiacutetulo
intitulado ldquoCozinha e autonomia em Quarenta diasrdquo contempla o estudo dessa obra em que se
revela uma alimentaccedilatildeo vivenciada fora de casa atraveacutes da comida e dos lugares que a oferecem
Ao longo do percurso da personagem atraveacutes da retomada de sua independecircncia o comer eacute uma
das principais representaccedilotildees de sua autonomia nessa narrativa Assim o binocircmio estudado no
uacuteltimo capiacutetulo eacute cozinha e autonomia
O arroz de Palma trata da relevacircncia de um elemento o arroz na histoacuteria de vaacuterias
geraccedilotildees da famiacutelia do protagonista motivo pelo qual este capiacutetulo aborda a relaccedilatildeo entre cozinha
e memoacuteria Considerando-se a memoacuteria um tema estudado por diversos campos do
12
conhecimento a fundamentaccedilatildeo teoacuterica desse capiacutetulo eacute constituiacuteda pelos seguintes autores no
acircmbito filosoacutefico Paul Ricoeur e Gaston Bachelard cultural Aleida Assmann psicopatoloacutegico
Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio Bulbena e Sandro Domenichetti neurocientiacutefico Ivan
Izquierdo e Gordon Shepherd Satildeo tambeacutem referidas reflexotildees de Mircea Eliade na compreensatildeo
do mito As perspectivas do socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan satildeo
apresentadas junto aos autores jaacute referidos na subdivisatildeo que aborda a memoacuteria no contexto da
cozinha
Por que sou gorda mamatildee traz a cozinha ligada ao prazer pelo fato de a narrativa
abordar as sensaccedilotildees prazerosas ligadas agrave comida A fundamentaccedilatildeo teoacuterica abrange as facetas
bioloacutegica e cultural do prazer Na esfera bioloacutegica a reflexatildeo inclui aspectos saudaacuteveis e
psicopatoloacutegicos contendo ideias do psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers e dos psiquiatras
Lorenzo Pelizza e Franco Benazzi na esfera socioloacutegica a reflexatildeo parte da leitura do socioacutelogo
Carlos Alberto Doacuteria em seus livros A subdivisatildeo que apresenta o prazer ligado agrave cozinha eacute
constituiacuteda principalmente por Jean Louis Flandrin Maacutessimo Montanari e Jean-Anthelme Brillat-
Savarin
Quarenta dias expressa a relaccedilatildeo entre cozinha e autonomia pois o comer representa
para a personagem sua decisatildeo de sobrevivecircncia real Ela come porque tem fome necessidade
fisioloacutegica propriamente dita sendo o comer vinculado agraves decisotildees e agrave autonomia para tomaacute-las
elemento-chave na construccedilatildeo de seu percurso Nesse capiacutetulo a cozinha eacute principalmente
expressa pela comida motivo pelo qual este eacute o termo empregado na terceira e quarta
subdivisotildees A fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute composta por contribuiccedilotildees de Karl Jaspers tambeacutem
explorado nos capiacutetulos anteriores por aquelas do neurocientista Antonio Damaacutesio e do
psiquiatra Massimo Biondi Na subdivisatildeo que estabelece viacutenculo entre a comida e a autonomia
expressa como consciecircncia de si apoiamos a anaacutelise no pensamento do socioacutelogo Carlos Alberto
Doacuteria e do pesquisador Michael Pollan tambeacutem presentes nos capiacutetulos anteriores
A decisatildeo por pesquisar na literatura a expressatildeo da cozinha deve-se ao nosso
questionamento sobre o modo como essa aparece atraveacutes da escrita literaacuteria Que contextos e que
termos satildeo escolhidos pelos escritores para retratar a cozinha como espaccedilos fiacutesico e simboacutelico
em suas obras A escolha recai sobre a literatura brasileira contemporacircnea definindo para o
corpus livros escritos por autores brasileiros em 2006 2008 e 2014 Trecircs livros publicados nas
duas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXI periacuteodo que coincide com a explosatildeo do papel da cozinha
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em acircmbitos mundial e sem duacutevidas nacional Conforme refere Maria Eunice Moreira no ensaio
ldquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmardquo
Espaccedilo alquiacutemico por sua natureza lugar de transformaccedilatildeo e de transmutaccedilatildeo a cozinha
eacute um dos espaccedilos mais tematizados na atualidade Isso pode ser comprovado pelo
nuacutemero de perioacutedicos especializados em gastronomia variedades de programas de TV e
destaque concedido a chefes e gourmets que se tornaram personagens midiaacuteticos
Diferentes miacutedias hoje divulgam as proezas de cozinheiros especializados que divulgam
suas descobertas culinaacuterias com ingredientes exoacuteticos confeccionando pratos originais
(MOREIRA 2014 p167)
Com a magnitude das expressotildees gastronocircmicas contemporacircneas no mundo e no Brasil eacute
plausiacutevel encontrar na literatura de nosso tempo obras que tragam a cozinha nos seus diversos
domiacutenios ao papel de protagonista A escolha especiacutefica pela literatura brasileira contemporacircnea
resulta de nosso interesse por compreender com que linguagem ela eacute expressa em nosso paiacutes em
nossa literatura em nossa contemporaneidade Ainda de acordo com o ensaio acima referido
sobre O arroz de Palma vale ressaltar
Mas certamente os leitores concordam que no fundo dos bauacutes que cruzaram os mares
entre enxadas e sementes vieram junto bens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre
o antigo e o novo espaccedilo a ser habitado Satildeo esses bens porque falam a linguagem do
mito os mais duradouros e perenes e satildeo eles tambeacutem capazes de inspirar a escrita da
literatura brasileira em tempos de globalizaccedilatildeo (MOREIRA 2014 p174)
Os lsquobens simboacutelicos que perpetuaram a ligaccedilatildeo entre o antigo e o novo espaccedilo a ser
habitadorsquo estatildeo presentes em O arroz de Palma e tambeacutem no livro Por que sou gorda mamatildee
Nesse uacuteltimo atraveacutes da representaccedilatildeo de uma famiacutelia de imigrantes judeus e de sua relaccedilatildeo com
a comida e com o prazer de comer Em Quarenta dias a protagonista eacute tambeacutem uma imigrante
mas vinda de outro Estado e de outra cultura no mesmo Paiacutes Assim tambeacutem nessa narrativa haacute
um contraste entre o espaccedilo antigo e o novo a ser habitado a cidade de Porto Alegre eacute o territoacuterio
desconhecido ao qual a narradora personagem deveraacute se adaptar Da mesma forma como
transfere sua moradia para as ruas da cidade enquanto reluta em apropriar-se de sua lsquonova vidarsquo
tambeacutem transfere sua alimentaccedilatildeo para as padarias botecos carrinhos de pipoca e de cachorro
quente pela rua restaurantes e bares de rodoviaacuteria Para ela a decisatildeo de comer eacute resultado da
fome do mero existir como o sono e o banho A cozinha bem como sua vida estatildeo
lsquotransplantadasrsquo para as ruas da cidade
Nas trecircs obras selecionadas para este estudo haacute um papel central desempenhado pela
cozinha a representaccedilatildeo de aspectos da natureza humana como a ligaccedilatildeo com o prazer a
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memoacuteria e a autonomia como jaacute foi referido Nas narrativas a cozinha o cozinhar e o comer
existem atraveacutes das comidas dos ingredientes de instrumentos e do espaccedilo fiacutesico em si mas satildeo
expressos sobretudo como emoccedilotildees e vivecircncias recuperaccedilatildeo de tradiccedilotildees e expressatildeo de
sentimentos e de memoacuterias Ao escolher o termo lsquocozinharsquo para a representaccedilatildeo global estamos
incluindo o campo de ideias que esse envolve ou seja todo o espaccedilo fiacutesico e os elementos
materiais como eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios as comidas desde o ingredientes e
receitas ateacute os pratos propriamente ditos por fim os elementos simboacutelicos portanto imateriais
como as representaccedilotildees de ritualidade e os elementos psiacutequicos e culturais que envolvem o
cozinhar e o comer
O tiacutetulo ldquoAgrave moda da casardquo remete agraves receitas de um periacuteodo da culinaacuteria em que a
cozinha caseira ocupava papel central na alimentaccedilatildeo familiar Essa envolvia as concepccedilotildees de
lar de famiacutelia de memoacuteria dos pratos que eram partilhados na mesa nas refeiccedilotildees Uma carne de
panela agrave moda da casa eacute aquela feita seguindo o lsquocomo-se-fazrsquo na histoacuteria da famiacutelia A expressatildeo
lembra os cadernos de receitas as cozinhas das avoacutes matildees e tias a memoacuteria e os sabores da
tradiccedilatildeo as noccedilotildees de identidade e de consciecircncia de si como indiviacuteduo singular que eacute parte de
um plural a famiacutelia Todos esses aspectos satildeo presentes nas obras do corpus e portanto estatildeo
incluiacutedos na reflexatildeo sobre o tiacutetulo escolhido
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1 COZINHA E MEMOacuteRIA EM O ARROZ DE PALMA
- Como eacute que simples guardanapos satildeo capazes de trazer tanta recordaccedilatildeo
- Porque fizeram histoacuteria satildeo a prova real e dos nove que um grupo de pessoas se reunia
regularmente para celebrar - natildeo importa o quecirc Festejavam a vida e pronto A data
religiosa ou pagatilde era pretexto Podia ser Paacutescoa ou Carnaval Esses guardanapos tecircm
alma Aliaacutes todo ser inanimado passa a ter alma no momento em que se lhe imprime
afeto As coisas tambeacutem aspiram a uma existecircncia sensiacutevel
Francisco Azevedo
A cozinha eacute o espaccedilo onde habitam forno fogatildeo geladeira pia pratos talheres
guardanapos panelas travessas caderno de receitas ingredientes chimia de uva pudim doce de
leite e ambrosia E lembranccedilas Muitos de nossos registros tecircm sabores proacuteprios Recordamos
essa ou aquela vivecircncia porque sua representaccedilatildeo eacute ligada a um gosto a uma textura a um
aroma Houve aquele doce de ovos que experimentamos em uma uacutenica e inesqueciacutevel ocasiatildeo
Vale evocar tambeacutem o faqueiro de uma avoacute presente de casamento ou a panela de fondue
comprada com orgulho fruto do primeiro salaacuterio da monitoria na faculdade No territoacuterio fiacutesico
da cozinha a memoacuteria tem corpo tem existecircncia material atraveacutes dos ingredientes dos
instrumentos dos eletrodomeacutesticos da receita de famiacutelia preparada para o almoccedilo Acima de
tudo a memoacuteria tem respiraccedilatildeo
11 O ARROZ DE PALMA
A escolha do tema cozinha e memoacuteria nasce atraveacutes da leitura da primeira obra definida
para o presente corpus O arroz de Palma de Francisco Azevedo publicada pela Editora Record
em 2008 O significado da cozinha para a nossa experiecircncia subjetiva tem fortes raiacutezes nas
histoacuterias guardadas atraveacutes das lembranccedilas e transmitidas entre as geraccedilotildees Essa obra da
literatura brasileira contemporacircnea propotildee tal resgate com relevante aprofundamento
A narrativa comeccedila pela voz do protagonista Antocircnio narrador personagem que traz ao
leitor em primeira pessoa a histoacuteria de sua famiacutelia os pais receacutem-casados e Palma sua tia
paterna Os trecircs vieram de Viana do Castelo em Portugal para o Brasil no comeccedilo do seacuteculo XX
Entretanto o que Antocircnio vem contar antecede a imigraccedilatildeo o ponto que daacute origem agrave histoacuteria da
obra eacute o casamento dos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana Depois da cerimocircnia Palma
decide juntar todos os gratildeos de arroz atirados aos noivos na lsquoabenccediloada chuva de arrozrsquo
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torrencial feita de lsquopunhados e mais punhadosrsquo Fez-se lsquochuva branca que natildeo paravarsquo Como se
fosse colheita ela junta gratildeo por gratildeo e coloca todos em um saco de estopa que leva aos receacutem-
casados como seu presente pelo matrimocircnio Surpreendente eacute a reaccedilatildeo de Joseacute Custoacutedio ao
receber a ideia de Palma raivoso desdenha do arroz ofertado pela irmatilde como se fosse presente
de menor valor A esposa Maria Romana contemporiza a situaccedilatildeo mas manteacutem a posiccedilatildeo firme
de que aceitaratildeo o presente E o arroz torna-se a alma dessa famiacutelia Melhor dizendo Palma
torna-se a alma da famiacutelia
A obra eacute composta por cinquenta e nove capiacutetulos curtos trezentas e sessenta e uma
paacuteginas e um calendaacuterio ao final com datas relevantes para a compreensatildeo da passagem do
tempo perspectiva essencial em O arroz de Palma Antocircnio eacute o narrador personagem muito do
que conta sobre a histoacuteria familiar ouviu de sua tia Palma figura de grande importacircncia na
formaccedilatildeo de sua personalidade Ela testemunhou boa parte das vivecircncias em Portugal e na
chegada ao Brasil protagonizou a maioria das cenas que se tornaram lembranccedilas Essas
transformaram-se depois em histoacuterias contadas por Palma e escutadas por Antocircnio
Fazendo zigue-zagues nas geraccedilotildees Antocircnio relembra pontos que conhece de viver e
pontos que sabe por escutar Em momentos da leitura parece estar contando a trama ao leitor
noutros tem-se a sensaccedilatildeo de que as conversas satildeo consigo mesmo a fim de percorrer uma linha
de tempo que faccedila sentido Ele narra de sua cozinha no presente do indicativo enquanto a
memoacuteria percorre outros tempos verbais mas a idade jaacute deixa lacunas Quando faltam
ingredientes na despensa da memoacuteria resta a tentativa de montar histoacuterias possiacuteveis ele compotildee
em um conjunto o que foi vivido e imaginado junto agraves suas reflexotildees atuais agrave beira do fogatildeo
Estaacute preparando a receita tiacutepica de arroz com significado em sua histoacuteria pessoal para a
comemoraccedilatildeo do centenaacuterio do matrimocircnio dos seus pais e do arroz colhido por Palma e
presenteado ao casal
Nas idas e vindas aparece de iniacutecio a fuacuteria de Joseacute Custoacutedio ao ganhar o saco de gratildeos de
arroz dirigida agrave irmatilde Palma Os trecircs vecircm para o Brasil onde ele consegue trabalho em uma
fazenda Mais tarde jaacute com a vida organizada quando o casal tem dificuldades em ter filhos
surge nova fuacuteria quando Palma sugere oferecer-lhe o arroz como forma de ajudar na fecundaccedilatildeo
pelos poderes atribuiacutedos ao ingrediente Ele recusa enraivecido mas Palma e Maria Romana
fazem com que coma o arroz mesmo assim No momento da raiva quebra a lsquoquarta cadeirarsquo que
iraacute reformar para sua irmatilde passada a coacutelera Essa seraacute a cadeira de onde ela contaraacute a Antocircnio as
17
memoacuterias de famiacutelia os remendos de histoacuteria as fantasias e imaginaccedilotildees as dores e intimidades
de sua juventude
A quarta cadeira seraacute seu palco Antocircnio eacute o expectador Cria-se um forte laccedilo entre ele e
a tia pois se torna desde cedo o herdeiro das recordaccedilotildees familiares Essa aproximaccedilatildeo acaba
por distanciaacute-lo dos trecircs irmatildeos Leonor Nicolau e Joaquim enquanto ele eacute mais lsquocaseirorsquo gosta
de ficar ouvindo as histoacuterias da Tia Palma os trecircs satildeo mais agitados apreciam os passeios e as
brincadeiras pelo campo A distacircncia entre ele e os trecircs faz com que a tia o chame de lsquoAntocircnimorsquo
opondo suas caracteriacutesticas agraves dos irmatildeos As diferenccedilas seguiratildeo vida afora o que o protagonista
vai contando em seus percursos
Surge entatildeo seu romance com Isabel filha do patratildeo de seu pai sua ida para o Rio de
Janeiro o noivado com a moccedila e o arroz de bacalhau para celebrar a ocasiatildeo em famiacutelia A
receita foi preparada com o mesmo arroz que serviu para a fertilidade dos pais o mesmo arroz
presenteado por Palma para o casamento deles o mesmo arroz da chuva abenccediloada da cerimocircnia
O arroz testemunha a vida da famiacutelia alinha suas histoacuterias nessa narrativa parece ser a
representaccedilatildeo da memoacuteria familiar Lembranccedila a lembranccedila gratildeo a gratildeo As narrativas vatildeo sendo
transmitidas escutadas digeridas Antes do casamento Antocircnio e Isabel lsquoroubamrsquo um punhado e
levam consigo ao lago abenccediloando o primeiro momento de uniatildeo fiacutesica que partilham Mais uma
vez o arroz participa da ocasiatildeo formando registros de memoacuteria
Casam-se Nascem os filhos Nuno e Rosaacuterio Gecircmeos Seratildeo no entanto muito
diferentes entre si ela objetiva praacutetica ele sensiacutevel Entre casamentos e separaccedilotildees a narrativa
segue trilhada pela voz de Antocircnio em idas e vindas nas deacutecadas entre o casamento dos pais e
seu aniversaacuterio Sempre ao lado de Isabel nos trechos de vida sempre com dificuldades na
ligaccedilatildeo com os irmatildeos Entre o arroz presenteado por Palma no casamento de Joseacute Custoacutedio e
Maria Romana e a receita de arroz preparada por Antocircnio em sua cozinha esse conta os
nascimentos e as mortes relembra a perda de tia Palma recorda-se de vivecircncias dolorosas ao
longo do percurso de cada um e de todos O arroz eacute roubado da vitrine do restaurante de Antocircnio
e Isabel pelos filhos outra porccedilatildeo parece ter sido roubada pela esposa de um dos irmatildeos por
ciuacuteme de seu casamento Mais tarde surge a informaccedilatildeo de que Antocircnio e a cunhada tiveram
uma ligaccedilatildeo afetiva antes de ambos unirem-se a seus pares Voltam a encontrar-se em um ponto
da histoacuteria em uma tarde de braccedilos dados desejos satisfeitos e despedida cordial
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Muitas satildeo as tramas vividas e recordadas nessa narrativa Antocircnio eacute o narrador
personagem mas a leitura faz o leitor convencer-se o protagonista a bem da verdade eacute o arroz
A tia Palma tem papel decisivo na famiacutelia eacute ela quem daacute a direccedilatildeo em vaacuterios momentos da
histoacuteria nas vidas do irmatildeo Joseacute Custoacutedio da cunhada Maria Romana do sobrinho mais
proacuteximo Antocircnio e de seus irmatildeos Eacute ela quem daacute a direccedilatildeo aos gratildeos de arroz no percurso
desde o casamento em Portugal na Igreja ateacute sua morte contando sempre com a cumplicidade
da cunhada O protagonista segue conversando com a tia em pensamento perguntando suas
opiniotildees e conselhos
Palma transmite histoacuterias o arroz transmite histoacuterias Ao longo de toda a narrativa ambos
vatildeo deixando suas marcas na vida das personagens Em sua cozinha enquanto prepara o arroz
ele une os gratildeos pelo cozimento assim como une as recordaccedilotildees em uma soacute histoacuteria da famiacutelia
Se acaba por esquecer de algo lembra depois ou conta agrave sua moda Lembranccedilas agrave moda da casa
Toda a narrativa eacute tecida com uma linha que atravessa as vivecircncias a metaacutefora feita agraves
famiacutelias como se fossem pratos da culinaacuteria O narrador protagonista traz a imagem de vaacuterios
desses pratos e suas equivalecircncias nos grupos familiares enquanto se lembra dos trechos de vida
entremeados com emoccedilotildees e pensamentos Natildeo eacute possiacutevel alinhar as memoacuterias estatildeo espalhadas
Parte delas remontam etapas de vida outras lugares e pessoas Haacute registros que surgem de
experiecircncias vividas e daquelas que ele conhece apenas por ouvir- em geral de sua tia Palma
sentada na quarta cadeira
Podemos lembrar do que vivemos ou do que imaginamos em nossa maquinaria de
lembranccedilas memoacuteria e imaginaccedilatildeo fundem-se e o que vivenciamos por ouvir contar se torna
tambeacutem parte de nossos registros pessoais Eacute o que se passa com Antocircnio quando conta o que
ouviu de Palma com tal fidelidade que parece ele mesmo ter vivido Escutou imaginou e entatildeo
apropriou-se da histoacuteria com suas proacuteprias cores eacute dele agora a trama contada pela tia Algo
parecido eacute o processo de alquimia de uma receita de cozinha quando eacute transmitida de geraccedilatildeo a
geraccedilatildeo cada novo cozinheiro agrega seu modo de preparar a receita e ela vai assim sendo
transformada pelo tempo e pelas vozes que a leem agrave beira do fogatildeo
19
12 OS INGREDIENTES DA DESPENSA AS LEMBRANCcedilAS E A MEMOacuteRIA
O propoacutesito de estudar a memoacuteria neste capiacutetulo eacute o de apresentaacute-la como um processo
inerente agrave constituiccedilatildeo do ser humano Necessitamos deixar registros agraves geraccedilotildees seguintes assim
como seguir rastros dos antepassados Queremos pertencer a uma histoacuteria de famiacutelia e construir a
nossa para ser lembrada e seguida Acima de tudo a memoacuteria eacute parte da identidade
imprescindiacutevel na consciecircncia do indiviacuteduo sobre si mesmo
No campo de estudos da memoacuteria haacute os substratos neuroanatocircmico neurofisioloacutegico e
neuroquiacutemico que a compotildeem sob a perspectiva orgacircnica responsaacuteveis por seu funcionamento
adequado entretanto o foco predominante neste estudo consiste no entendimento da memoacuteria
como processo singular em termos psiacutequicos e plural em termos culturais Devido agraves muacuteltiplas
facetas do tema ampliamos a fundamentaccedilatildeo teoacuterica para os campos fenomenoloacutegico em que
apresentamos as ideias de Paul Ricoeur cultural a partir dos estudos de Aleida Assmann
psicopatoloacutegicas em que satildeo apontadas reflexotildees de Karl Jaspers Eugeacutene Minkowski Antonio
Bulbena e Sandro Domenichetti e neurocientiacuteficas em que fazemos referecircncia aos
neurocientistas Ivan Izquierdo argentino e Gordon Shepherd americano
A cozinha situa-se nas esferas da memoacuteria individual e coletiva A relaccedilatildeo que se
estabelece entre o indiviacuteduo e os aromas que habitam sua memoacuteria como no caso das madeleines
recordadas por Proust a partir de um gatilho eacute de tamanha intimidade que se torna parte de sua
bagagem afetiva Da mesma forma o caderno de receitas de uma avoacute pode atravessar geraccedilotildees
pois os sabores ali registrados evocam lembranccedilas da histoacuteria familiar Ao serem reproduzidos
despertam na memoacuteria de um grupo natildeo apenas a receita original mas toda a constelaccedilatildeo de
emoccedilotildees que envolve essa lembranccedila como a cozinha em que era feita as panelas pratos e
talheres os almoccedilos dominicais na mesa da sala de jantar
As experiecircncias representam os ingredientes para a formaccedilatildeo da memoacuteria Muitas delas
nascem das histoacuterias vivenciadas na cozinha seja atraveacutes da percepccedilatildeo de um gosto do sentir de
uma emoccedilatildeo do ato de mexer um bolo ou de preparar um prato Todas satildeo carimbadas pela
interpretaccedilatildeo pelos sentimentos e pelo significado que cada circunstacircncia assume em nosso
percurso E esse carimbo vira lembranccedila armazenada na despensa da memoacuteria passiacutevel de
transformaccedilotildees ao longo do amadurecimento e das vicissitudes de cada fase de vida Afinal de
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contas a memoacuteria natildeo eacute um registro estaacutetico ela eacute isso sim um processo dinacircmico dependente
de nosso olhar e de nosso viver
Conforme o psicopatologista alematildeo Karl Jaspers a memoacuteria eacute um mecanismo que tem
relaccedilatildeo com o colorido afetivo com o significado das coisas Ele definiu a memoacuteria propriamente
dita como um reservatoacuterio em que novos materiais satildeo integrados pela fixaccedilatildeo e satildeo extraiacutedos agrave
consciecircncia atraveacutes da funccedilatildeo de evocaccedilatildeo para ele a chegada e a partida dos materiais seriam
devidas agraves respectivas funccedilotildees de fixaccedilatildeo e evocaccedilatildeo enquanto a memoacuteria representaria o
reservatoacuterio de disponibilidade permanente (JASPERS 2000 p188) Se pensarmos na cozinha
a memoacuteria seria a despensa onde satildeo postos novos ingredientes e de onde satildeo retirados aqueles
escolhidos para o uso Jaacute de acordo com Bulbena citando Serralonga ldquo[] em termos objetivos
eacute possiacutevel defini-la como a capacidade de adquirir de reter e de utilizar secundariamente uma
experiecircnciardquo (BULBENA 1998 p169)
Bulbena aponta quarto aspectos relevantes na compreensatildeo da memoacuteria como fenocircmeno
humano entre os quais distingue a entrada a manutenccedilatildeo e a saiacuteda das informaccedilotildees em
constante intercacircmbio entre organismo e ambiente o aspecto de transformaccedilatildeo dessas
informaccedilotildees modificando o conteuacutedo que entra no lsquoreservatoacuteriorsquo de Jaspers tanto para o
armazenamento quanto para a futura reproduccedilatildeo desse conteuacutedo o fato de a memoacuteria ser
produzida no contexto de estruturas nervosas que veiculam o processo apontando-se que as
alteraccedilotildees neste resultaratildeo em transtornos em seus mecanismos de fixaccedilatildeo armazenamento e
reproduccedilatildeo O quarto ponto definido pelo autor eacute de grande importacircncia para a finalidade do
presente capiacutetulo a memoacuteria forma parte do conjunto da vida psiacutequica sendo as emoccedilotildees
especialmente relevantes em sua composiccedilatildeo e forma parte tambeacutem da biografia do indiviacuteduo
em que teraacute influecircncia e da qual receberaacute influecircncia tambeacutem
Quando o autor se refere agrave biografia estaacute fazendo menccedilatildeo agraves experiecircncias de vida desse
indiviacuteduo e satildeo essas que muitas vezes ocorreram em sua relaccedilatildeo com o comer e com a cozinha
O dado de a memoacuteria fazer parte da vida psiacutequica eacute significativo sobretudo no que tange agrave
relaccedilatildeo com o campo emocional pois sempre que tais experiecircncias vinculadas ao universo
culinaacuterio ocorrerem haveraacute o processamento da resposta afetiva
A memoacuteria eacute essencialmente parte da vida psiacutequica do ser humano e resultado de
mecanismos cerebrais de controle Eacute considerada uma das funccedilotildees do estado mental dos
indiviacuteduos avaliada no exame psiquiaacutetrico dessas funccedilotildees Bulbena refere que
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etimologicamente a maioria dos autores situa sua origem no termo latino memoacuteria de
significado similar ao atual mas haacute quem atribua a origem agrave palavra gemynd de raiz
anglosaxocircnica que conforme refere significaria mente Assim eacute possiacutevel que a associaccedilatildeo entre
memoacuteria e vida psiacutequica seja representada na proacutepria origem da palavra
Mesmo que a finalidade do presente capiacutetulo seja apresentar a memoacuteria vinculada agraves
vivecircncias de cozinha cabe realizar a abordagem desse mecanismo como fenocircmeno Paul Ricoeur
apresenta a respeito da fenomenologia da memoacuteria seu viacutenculo com a imaginaccedilatildeo O autor
refere que podemos fazer referecircncia a um evento passado ou dizer que temos dele uma imagem
que pode ser quase visual ou auditiva E aponta que a memoacuteria opera em funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo
reforccedilando a perspectiva de uma longa tradiccedilatildeo filosoacutefica que expressa que ldquo[] a memoacuteria eacute
uma proviacutencia da imaginaccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p25)
Tal aspecto liga-se ao exposto pelo neurocientista Gordon Shepherd que em seu livro
sobre neurogastronomia expotildee ldquoPara muitas pessoas as partes mais importantes do olfato e do
sabor satildeo as memoacuterias que elas evocam e as emoccedilotildees associadas a essasrdquo (SHEPHERD 2012
p174) Olfato e sabor satildeo tambeacutem elementos que evocam imagens de situaccedilotildees vivenciadas mas
imagens construiacutedas pelas caracteriacutesticas psiacutequicas individuais assim pode-se dizer que evocam
a imaginaccedilatildeo
A lembranccedila de um acontecimento do preparo de uma comida ou da ocasiatildeo em que a
saboreamos ocorre atraveacutes da imagem que fazemos dessas circunstacircncias Lembramos com cor
com cheiros com gostos Lembramos imaginando e eacute isso que Paul Ricoeur traz como ponto de
partida Shepherd refere que nossos mecanismos cognitivos tecircm a qualidade de perceber e de
evocar as coisas como um todo integrado a partir de uma fraccedilatildeo (SHEPHERD 2012) o que se
assemelha ao que Ricoeur refere sobre a ligaccedilatildeo mencionada ldquoEacute sob o signo da associaccedilatildeo de
ideias que estaacute situada essa espeacutecie de curto-circuito entre memoacuteria e imaginaccedilatildeo se essas duas
afecccedilotildees estatildeo ligadas por contiguidade evocar uma - portanto imaginar - eacute evocar a outra-
portanto lembrar-se delardquo (RICOEUR 2014 p25) Essa ideia associa-se ao fato de que todos os
registros que os sentidos percebem oriundos do mundo externo ao corpo satildeo traduzidos em
percepccedilotildees e entatildeo em lembranccedilas a serem armazenadas A lembranccedila torna-se uma impressatildeo
da experiecircncia e natildeo seu registro idecircntico uma vez que pode ser compreendida como uma
reconstruccedilatildeo do passado a partir da perspectiva atual O que laacute fixamos natildeo eacute idecircntico ao que no
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presente podemos evocar pois outras vivecircncias se colocam no caminho nos transformam e
modificam nosso modo de recordar o que um dia haviacuteamos registrado
O inconsciente em todo o processo pode guardar a sete chaves algumas das informaccedilotildees
fixadas parte do que vivemos passaraacute a ser liberado ou escondido por sua tutela Lembramos de
algo pela imaginaccedilatildeo do que permaneceu desse algo em nosso mundo interno na compreensatildeo
neurocientiacutefica os registros captados pelos sentidos ficam armazenados em estruturas
especiacuteficas predominantemente no hemisfeacuterio direito quando as lembranccedilas estiverem
conectadas a emoccedilotildees Uma lsquopistarsquo que dermos agrave memoacuteria seja uma figura um som um gosto
um aroma ou uma textura ou uma emoccedilatildeo podem trazer de volta em viagem ultraveloz a cena
arquivada com todas as transformaccedilotildees que o tempo provoca em noacutes
Eacute possiacutevel compreender que a memoacuteria identifica o indiviacuteduo e sua bagagem de
vivecircncias pois soacute nos lembramos do que conhecemos ldquoReconhecer algueacutem significa saber jaacute tecirc-
lo visto antes assim como recordar-se de um acontecimento significa saber que este jaacute ocorreu no
passadordquo (MINKOWSKI 2004 p143) O entendimento sobre suas consideraccedilotildees eacute a de que
uma lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a tonalidade emotiva com que este foi
percebido ou seja a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos
recordaremos dela no futuro porque eacute assim que a conhecemos Sobre tal aspecto Ivan
Izquierdo neurocientista especializado neste campo refere
Podemos afirmar conforme Norberto Bobbio que somos aquilo que recordamos
literalmente Natildeo podemos fazer aquilo que natildeo sabemos nem comunicar nada que
desconheccedilamos isto eacute que natildeo esteja na nossa memoacuteria Tambeacutem natildeo estatildeo agrave nossa
disposiccedilatildeo os conhecimentos inacessiacuteveis nem formam parte de noacutes os episoacutedios dos
quais esquecemos ou os quais nunca atravessamos O acervo de nossas memoacuterias faz
com que cada um de noacutes seja o que eacute um indiviacuteduo um ser para o qual natildeo existe outro
idecircntico (IZQUIERDO 2011 p11 grifo do autor)
O psicopatologista Eugeacutene Minkowski aborda a memoacuteria no capiacutetulo intitulado lsquoO
passadorsquo em seu livro O tempo vivido Tal afirmaccedilatildeo expressa que ela eacute parte de nosso tempo
vivido e atraveacutes da reflexatildeo de Ivan Izquierdo pode-se compreender que ela eacute parte do nosso
tempo de conhecimento vivido A ideia de que a memoacuteria faz de noacutes ldquo[] um ser para o qual natildeo
existe outro idecircnticordquo (IZQUIERDO 2011 p12) reforccedila a noccedilatildeo de que esse fenocircmeno eacute um
elemento inerente a um sujeito uacutenico com suas experiecircncias percepccedilotildees e bagagens Ainda
conforme Ivan Izquierdo ldquo[] o conjunto das memoacuterias de cada um determina aquilo que se
denomina personalidade ou forma de serrdquo (IZQUIERDO 2011 p12) O neurocientista refere que
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as emoccedilotildees e os estados de acircnimo tecircm importante papel no processo da memoacuteria tanto em
termos de aquisiccedilatildeo quanto de formaccedilatildeo e finalmente de evocaccedilatildeo
Falar em emoccedilotildees ou estados de acircnimo remete agrave referecircncia de Minkowski sobre as
tonalidades afetivas O psicopatologista faz alusatildeo ao viacutenculo entre emoccedilotildees e memoacuteria
expressando o modo como o sentir influencia o lembrar Eacute possiacutevel comprender sua ideia da
seguinte forma colocamos a mirada sobre nosso mundo interior para focar em uma fraccedilatildeo do
passado que sentimos presente em noacutes Isso seria equivalente agrave evocaccedilatildeo de uma lembranccedila Ao
percebermos o sentimento ligado a esse tempo anterior essa lembranccedila amplia-se agrave medida que
a encontramos em nosso iacutentimo A conexatildeo emotiva torna a vivecircncia passada cada vez mais
visiacutevel e de contornos niacutetidos como um feixe de luz que ao aumentar expande a aacuterea de
claridade e mostra os detalhes de um terreno
Tal iluminaccedilatildeo reproduz vivecircncias remotas como se fossem situaccedilotildees que nos parecem
recentes pela forccedila emotiva ligada ao evento passado Entretanto nossa impressatildeo sobre tais
eventos pode ser transformada por aspectos psiacutequicos que ocorrem entre o tempo real e o
lembrado modificando a impressatildeo do fato em suas nuances Permanece a essecircncia prazerosa ou
penosa de um fato mas a evocaccedilatildeo da lembranccedila pode tornaacute-la um rosa suave ou um vermelho
vivo Para mudar seu tom contam tanto nosso estado de acircnimo ao vivermos algo quanto ao
lembrarmos esse algo Memoacuteria e emoccedilatildeo assim estatildeo intimamente ligadas entre si em especial
no que concerne agraves nossas experiecircncias de vida
O termo memoacuteria no singular remete-nos a dois eixos um primeiro mais evidente eacute o
tempo o segundo subterracircneo o espaccedilo Tal colocaccedilatildeo vem do fato de que a memoacuteria pode ser
percebida como um espaccedilo subjetivo em nossa vida psiacutequica motivo pelo qual tecemos a
analogia com a imagem da despensa de cozinha Esta eacute de fato um espaccedilo objetivo mas cuja
subjetividade aparece ao revelar muitos aspectos sobre o morador da casa Seria plausiacutevel referir
que a despensa identifica esse sujeito em suas preferecircncias alimentares em sua condiccedilatildeo
econocircmica em sua regularidade nas refeiccedilotildees feitas no lar aleacutem de demonstrar se vive sozinho
ou em famiacutelia se tem haacutebitos saudaacuteveis se manteacutem cuidados com a higiene com o meio-
ambiente com os prazos dos alimentos e por aiacute vai A despensa seria assim a memoacuteria da casa
um espaccedilo onde se colocam os ingredientes onde satildeo armazenados e de onde satildeo retirados para o
uso imediato Nessa analogia os ingredientes remetem-nos agrave imagem das lembranccedilas guardadas
na despensa
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A partir dessa reflexatildeo eacute importante pensar no par lembranccedilas e memoacuteria como uma
relaccedilatildeo entre plural e singular Podem-se estabelecer ainda outras relaccedilotildees como a ideia de que a
memoacuteria maior conteacutem as lembranccedilas menores e muacuteltiplas A primeira representa um amplo
espaccedilo subjetivo para o armazenamento das segundas Uma comparaccedilatildeo mais detalhada colocaria
alguns itens nas estantes mais altas da despensa onde o acesso eacute difiacutecil ou mais ao fundo atraacutes
de elementos que satildeo usados com regularidade Natildeo eacute raro que esses ingredientes em partes
menos visualizadas sejam menos usados enquanto aqueles mais visiacuteveis sejam retirados dali e
consumidos com maior frequecircncia Tanto a regularidade do uso quanto os gostos alimentares
definem os produtos que ficam disponiacuteveis em estantes de mais faacutecil acesso em contraponto os
menos usados entram na categoria dos menos vistos
Aspectos que raramente enxergamos ficam esquecidos na despensa em lugares difiacuteceis e
ateacute passam da validade se natildeo tomamos conhecimento de que estatildeo laacute natildeo iremos evocaacute-los e
acabam por permanecer por um longo periacuteodo no canto mais longiacutenquo daquele espaccedilo Inuacutemeras
vezes esquecemos de usar produtos que guardamos haacute mais tempo e lembramos de acessar os
mais presentes em nossa rotina Aleacutem disso cabe lembrar que haacute estantes ou compartimentos em
uma despensa que servem justamente ao propoacutesito de definiccedilatildeo de categorias as mais
importantes alcanccedilamos estendendo o braccedilo enquanto as de menor relevacircncia recebem acesso
pelo uso da escada domeacutestica da lanterna para a procura ou no caso de estarem nas prateleiras
inferiores de posiccedilotildees fiacutesicas para encontrar o elemento procurado
Ao guardarmos algo que pouco usamos criamos espaccedilos de esquecimento dentro da
memoacuteria Para que resgatemos esses ingredientes haacute elementos como a imagem que nos
despertam para a recordaccedilatildeo de que um dia tomamos contato com ele Mais uma vez surge a
figura do conhecimento preacutevio entatildeo do passado como criteacuterio para o reconhecimento
Reconhecer eacute conhecer novamente voltar a tomar contato
Considerando a partir da analogia estabelecida as lembranccedilas como elemento plural
presente na memoacuteria de caraacuteter singular torna-se necessaacuterio compreender o fenocircmeno da
memoacuteria sob vaacuterias perspectivas Haacute diversos fatores envolvidos no modo como nos lembramos
de algo no porquecirc dessas lembranccedilas tornarem-se de mais faacutecil ou de mais difiacutecil acesso para
quais registros damos mais relevacircncia ao lsquoguardar na despensarsquo e outras variaacuteveis ligadas ao
lembrar e ao esquecer Tais perspectivas natildeo estatildeo divididas mas sim ligadas no texto uma vez
que ao contraacuterio das prateleiras da despensa a memoacuteria eacute um espaccedilo sem divisotildees estabelecidas
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na experiecircncia humana Mesmo do ponto de vista cerebral ela ocupa diversas aacutereas e muacuteltiplos
sistemas sendo resultado de um processo de integraccedilatildeo de estruturas e de funccedilotildees cerebrais
Um aspecto relevante sobre o uso da palavra memoacuteria quando usado no plural estaacute na
literatura Ler as memoacuterias de um autor remete agrave ideia de uma narrativa autobiograacutefica ou
biograacutefica novamente ligando a ideia de memoacuteria ao campo da definiccedilatildeo de identidade
Considero que esse termo seja o de maior importacircncia no conjunto do fenocircmeno pois mesmo que
se trate da memoacuteria de um grupo essa revela seu caraacuteter identitaacuterio
Identidade eacute palavra-chave no campo da memoacuteria O psiquiatra italiano Sandro
Domenichetti apresenta a lembranccedila como ldquo[] experiecircncia que constroacutei a consciecircncia de si e
que define a relaccedilatildeo entre o mundo afetivo e aquele cognitivordquo (DOMENICHETTI 2003 p1)
de acordo com ele entre as funccedilotildees da consciecircncia estaacute a diacrocircnica ou seja a de percepccedilatildeo da
identidade estaacutevel atraveacutes do tempo A consciecircncia entatildeo eacute um elemento central neste campo
Domenichetti refere que esta ldquo[] parece entatildeo configurar-se como um tipo de memoacuteria de si no
tempordquo (DOMENICHETTI 2003 p1) enfatizando a perspectiva de que ldquo[] um senso de si eacute
essencial para que todas as minhas lembranccedilas sejam exatamente as minhas lembranccedilasrdquo
(DOMENICHETTI 2003 p1 grifo do autor)
Outro elemento apontado por este autor tem como base a explanaccedilatildeo de Israel Rosenfeld
meacutedico e pesquisador com atuaccedilatildeo relevante no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti
Roselfield expotildee a continuidade da consciecircncia como derivada da correspondecircncia que o ceacuterebro
estabelece em momentos sucessivos com eventos no espaccedilo e no tempo sendo seu elemento vital
a autoconsciecircncia Para Roselfield
As minhas lembranccedilas emergem da relaccedilatildeo entre meu corpo e a imagem que meu
ceacuterebro tem do meu corpo (uma atividade inconsciente na qual o ceacuterebro constroacutei para si
uma ideia generalizada do corpo ideia que se modifica continuamente) Eacute esta relaccedilatildeo
que cria o senso de lsquosirsquo (DOMENICHETTI 2003 p2)
A fim de corroborar a relaccedilatildeo entre corpo e ceacuterebro estabelecida por Rosenfield
Domenichetti refere-se a Henri Bergson (1859-1941) filoacutesofo e diplomata francecircs cuja obra
destacou-se pelas contribuiccedilotildees no campo da memoacuteria Conforme Domenichetti
[] o nosso conhecimento da realidade eacute feito de percepccedilotildees impregnadas de
lembranccedilas A memoacuteria de Bergson funciona atraveacutes de operaccedilotildees de coleta de imagens
que progressivamente satildeo produzidas o corpo eacute uma dessas imagens a uacuteltima para ser
exato E se o corpo em geral eacute uma imagem eacute oacutebvio que o eacute tambeacutem o ceacuterebro Este
ligar a percepccedilatildeo a memoacuteria e o corpo com passagens de um a outro atraveacutes da
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dimensatildeo temporal define a construccedilatildeo da funccedilatildeo mental da qual a memoacuteria eacute atributo
fundador como organizaccedilatildeo autoreflexiva que pensa o corpo (DOMENICHETTI 2003
p1)
Pode-se compreender entatildeo corpo e ceacuterebro como palcos onde as imagens da memoacuteria
satildeo encenadas Tais imagens unem-se agraves percepccedilotildees atuais do indiviacuteduo compondo um conjunto
formado pelo antes e o agora ndash passado e presente ndash intrincados Ainda referindo-se agraves
contribuiccedilotildees de Roselfield nesse campo Domenichetti acrescenta
Tambeacutem na visatildeo de Roselfield assim a memoacuteria natildeo pode ser considerada como um
manual de informaccedilotildees mas sobretudo como uma atividade contiacutenua do ceacuterebro Isso se
observa principalmente no caso das imagens Quando recordo a imagem de um evento
da minha infacircncia por exemplo natildeo a extraio de um hipoteacutetico arquivo de imagens
preexistentes devo formar conscientemente uma nova imagem (DOMENICHETTI
2003 p2)
Tais explanaccedilotildees sobre o papel da imagem para a recordaccedilatildeo coincidem com a
perspectiva de Paul Ricoeur em A lembranccedila e a imagem na primeira parte de sua obra jaacute
referida Ele questiona ldquoComo explicar que a lembranccedila retorne em forma de imagem e que a
imaginaccedilatildeo assim mobilizada chegue a revestir-se das formas que escapam agrave funccedilatildeo do irrealrdquo
(RICOEUR 2014 p66)
Para chegar a respostas possiacuteveis ele recorre a Bergson entre outros autores Deste
aponta que ldquoAdoto como hipoacutetese de trabalho a concepccedilatildeo bergsoniana da passagem da
lsquolembranccedila-purarsquo agrave lembranccedila-imagemrdquo (RICOEUR 2014 p67) De acordo com Ricoeur sobre
o trabalho de Bergson ldquoele traz de certo modo a lembranccedila para uma aacuterea de presenccedila
semelhante agrave da percepccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p68) ressaltando da imaginaccedilatildeo o que chama
de ldquofunccedilatildeo visualizanterdquo ou seja ldquosua maneira de dar a verrdquo (RICOEUR 2014 p68) Ricoeur
esclarece que
Eacute como se a forma que Bergson chama intermediaacuteria ou mista da lembranccedila isto eacute a
lembranccedila-imagem a meio-caminho entre lsquolembranccedila-purarsquo e a lembranccedila reinscrita na
percepccedilatildeo no estaacutegio em que o reconhecimento desabrocha no sentimento do deacutejagrave vu
correspondesse a uma forma intermediaacuteria da imaginaccedilatildeo a meio caminho entre a ficccedilatildeo
e a alucinaccedilatildeo a saber o componente imagem da lembranccedila-imagem Portanto eacute
tambeacutem como forma mista que eacute preciso falar da funccedilatildeo da imaginaccedilatildeo que consiste em
lsquopocircr debaixo dos olhosrsquo funccedilatildeo que podemos chamar ostensiva trata-se de uma
imaginaccedilatildeo que mostra que expotildee que deixa ver (RICOEUR 2014 p70)
Assim o que se tem eacute uma zona de fronteiras pouco demarcadas entre a percepccedilatildeo a
lembranccedila e a imaginaccedilatildeo Ricoeur refere em relaccedilatildeo agraves semelhanccedilas e diferenccedilas entre as duas
uacuteltimas ldquoCertamente dissemos e repetimos que a imaginaccedilatildeo e a memoacuteria tinham como traccedilo
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comum a presenccedila do ausente e como traccedilo diferencial de um lado a suspensatildeo de toda posiccedilatildeo
de realidade e a visatildeo de um irreal do outro a posiccedilatildeo de um real anteriorrdquo (RICOEUR 2014
p61)
Nesse sentido o papel da percepccedilatildeo eacute o de captar a realidade atraveacutes dos cinco sentidos
para entatildeo formar registros que no futuro seratildeo lembranccedilas As imagens que resgato satildeo
diferentes das que percebi no instante do acontecimento pois se misturam com outros
ingredientes como as emoccedilotildees por exemplo Ricoeur aponta ldquoTeriacuteamos assim a sequecircncia
percepccedilatildeo lembranccedila ficccedilatildeo Um limiar de inatualidade eacute transposto entre lembranccedila e ficccedilatildeordquo
(RICOEUR 2014 p65) Esse limiar de inatualidade expresso por ele como ldquotransposto entre
lembranccedila e ficccedilatildeordquo parece referir-se agrave passagem do tempo que torna as imagens de uma
vivecircncia cada vez mais proacuteximas da imaginaccedilatildeo quanto mais longiacutenquo for o passado
O filoacutesofo Gaston Bachelard em A poeacutetica do espaccedilo ao mencionar as lembranccedilas
associadas ao habitar de uma nova casa expressa o entrelaccedilamento entre a memoacuteria e a
imaginaccedilatildeo
E o devaneio se aprofunda de tal modo que para o sonhador do lar um acircmbito
imemorial se abre para aleacutem da mais antiga memoacuteria A casa como o fogo como a
aacutegua nos permitiraacute evocar na sequecircncia de nossa obra luzes fugidias de devaneio que
iluminam a siacutentese do imemorial com a lembranccedila Nessa regiatildeo longiacutenqua memoacuteria e
imaginaccedilatildeo natildeo se deixam dissociar Ambas trabalham para seu aprofundamento muacutetuo
Ambas constituem na ordem dos valores uma uniatildeo da lembranccedila com a imagem
(BACHELARD 2012 p25)
A relaccedilatildeo entre lembranccedila e imagem em Bachelard encontra-se bem representada atraveacutes
da ideia da casa e do habitar onde esses dois fenocircmenos se fundem Ele menciona a ideia de que
ldquo[] o calendaacuterio da nossa vida soacute pode ser estabelecido em seu processo produtor de imagensrdquo
(BACHELARD 2012 p28) Este calendaacuterio parece ser para o autor as lembranccedilas recordadas
por meio da imagem das cenas vividas e sentidas Bachelard refere que ldquo[] a imagem
estabelece-se numa cooperaccedilatildeo entre o real e o irreal pela participaccedilatildeo da funccedilatildeo do real e da
funccedilatildeo do irrealrdquo (BACHELARD 2012 p73) tecendo uma ligaccedilatildeo entre imaginaccedilatildeo memoacuteria e
percepccedilatildeo Cabe ressaltar nesse ponto o aspecto de esta uacuteltima ocorrer atraveacutes dos cinco
sentidos veiacuteculo de traduccedilatildeo do mundo externo para o interno Retorna-se ao jaacute apresentado
sobre a relevacircncia do corpo para a memoacuteria Ricoeur menciona a esse respeito
Eacute o elo entre memoacuteria corporal e memoacuteria dos lugares que legitima a tiacutetulo primordial a
dessimplicaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo de sua forma objetivada O corpo constitui desse
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ponto de vista o lugar primordial o aqui em relaccedilatildeo ao qual todos os outros lugares satildeo
laacute (RICOEUR 2014 p59)
Compreender o papel da memoacuteria do corpo conduz agrave identificaccedilatildeo desta dentro da
consciecircncia de si pois diz respeito aos registros deixados pelas vivecircncias com potencial de
serem encenados novamente pelo indiviacuteduo O ato de cozinhar seria um exemplo de como a
memoacuteria corporal faz com que se pratique o ato culinaacuterio como um conhecimento do corpo
muitas vezes executado de forma habitual Ricoeur aponta que ldquo[] a memoacuteria corporal pode ser
lsquoagidarsquo como todas as outras modalidades de haacutebito como a de dirigir um carro que estaacute em meu
poder Ela varia segundo todas as variantes do sentimento de familiaridade ou de estranhezardquo
(RICOEUR 2014 p57) O autor acrescenta
Assim a memoacuteria corporal eacute povoada de lembranccedilas afetadas por diferentes graus de
distanciamento temporal a proacutepria extensatildeo do lapso de tempo decorrido pode ser
percebida sentida na forma de saudade nostalgia [] O momento da recordaccedilatildeo eacute
entatildeo o do reconhecimento (RICOEUR 2014 p57)
Partindo dessa compreensatildeo seria possiacutevel pensar em corpo casa e lugar como espaccedilos
onde a recordaccedilatildeo nasce do mais especiacutefico o corpo ao mais inespeciacutefico o lugar Em todos
esses espaccedilos haacute accedilotildees e vivecircncias que podem constituir lembranccedilas Conforme Ricoeur
A transiccedilatildeo da memoacuteria corporal para a memoacuteria dos lugares eacute assegurada por atos tatildeo
importantes como orientar-se deslocar-se e acima de tudo habitar Eacute na superfiacutecie
habitaacutevel da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado lugares memoraacuteveis
Assim as lsquocoisasrsquo lembradas satildeo intrinsecamente associadas a lugares E natildeo eacute por acaso
que dizemos sobre uma coisa que aconteceu que ela teve lugar Eacute de fato nesse niacutevel
primordial que se constitui o fenocircmeno dos lsquolugares de memoacuteriarsquo (RICOEUR 2014
p57-58)
Essa ideia pode ser corroborada com a perspectiva de Bachelard sobre o habitar
Eacute preciso dizer como habitamos o nosso espaccedilo vital de acordo com todas as dialeacuteticas
da vida como nos enraizamos dia a dia num lsquocanto do mundorsquo
Porque a casa eacute nosso canto do mundo Ela eacute como se diz amiuacutede o nosso primeiro
universo Eacute um verdadeiro cosmos (BACHELARD 2012 p24)
A respeito da relevacircncia da casa para a formaccedilatildeo e o armazenamento das lembranccedilas
Bachelard apresenta contribuiccedilotildees que reforccedilam a visatildeo de Ricoeur sobre o papel dos lugares
para a memoacuteria
Logicamente eacute graccedilas agrave casa que um grande nuacutemero de nossas lembranccedilas estatildeo
guardadas e quando a casa se complica um pouco quando tem um poratildeo e um soacutetatildeo
cantos e corredores nossas lembranccedilas tecircm refuacutegios cada vez mais bem caracterizados
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A eles regressamos durante toda a vida em nossos devaneios (BACHELARD 2012
p28)
A ideia da memoacuteria associada ao espaccedilo seja corpo casa ou lugar conduz agrave reflexatildeo de
que essa tem uma existecircncia subjetiva interna que eacute representada pelo aspecto objetivo material
externo isso se daacute atraveacutes de vivecircncias associadas sempre a um primeiro espaccedilo o corpoacutereo e a
um segundo mais amplo que eacute o lugar para onde a lembranccedila remete Mais uma vez as
lembranccedilas tecircm imagens de correspondecircncia eacute como se os lugares dessem carne e osso a elas
confirmam sua existecircncia em um tempo e em um espaccedilo que mesmo passado relaciona-se ao
mundo fiacutesico Quanto mais longiacutenquas no tempo mais proacuteximas se encontram da imaginaccedilatildeo
como jaacute visto entretanto ainda assim tecircm um cenaacuterio onde vivem
Examinada como fenocircmeno a memoacuteria tem propriedades que a identificam Ricoeur
estabeleceu trecircs pares de oposiccedilotildees para a compreensatildeo da fenomenologia da memoacuteria o
primeiro deles eacute a dupla haacutebitomemoacuteria sobre a qual refere
O que faz a unidade desse espectro eacute a comunidade da relaccedilatildeo com o tempo Nos dois
casos extremos pressupotildee-se uma experiecircncia anteriormente adquirida mas num caso o
do haacutebito essa aquisiccedilatildeo estaacute incorporada agrave vivecircncia presente natildeo marcada natildeo
declarada como passado no outro caso faz-se referecircncia agrave anterioridade como tal da
aquisiccedilatildeo antiga Nos dois casos por conseguinte continua sendo verdade que a
memoacuteria lsquoeacute do passadorsquo mas conforme dois modos um natildeo marcado outro sim da
referecircncia ao lugar no tempo da experiecircncia inicial
[] A operaccedilatildeo descritiva consiste entatildeo em classificar as experiecircncias relativas agrave
profundidade temporal desde aquelas em que de algum modo o passado adere ao
presente ateacute aquelas em que o passado eacute reconhecido em sua preteridade passada
(RICOEUR 2014 p43)
A segunda dupla de opostos estabelecida por Ricoeur eacute composta pelo par
evocaccedilatildeobusca representado pelos dois trechos abaixo No primeiro a reflexatildeo sobre evocaccedilatildeo
no segundo sobre a busca
1) Entendamos por evocaccedilatildeo o aparecimento atual de uma lembranccedila Eacute a esta que
Aristoacuteteles destinava o termo mneme designando por anamnesis o que chamaremos
mais adiante de busca ou recordaccedilatildeo Ele caracterizava a mneme como pathos como
afecccedilatildeo ocorre que nos lembramos disto ou daquilo nesta ou naquela ocasiatildeo entatildeo
temos uma lembranccedila Portanto eacute em oposiccedilatildeo agrave busca que a evocaccedilatildeo eacute uma
afecccedilatildeo Enquanto tal em outras palavras desconsiderando sua posiccedilatildeo polar a
evocaccedilatildeo traz a carga do enigma que movimentou as investigaccedilotildees de Platatildeo e de
Aristoacuteteles ou seja a presenccedila agora do ausente anteriormente percebido
experimentado aprendido (RICOEUR 2014 p45)
2) Voltemo-nos agora para o outro poacutelo do par evocaccedilatildeobusca Eacute ele que a
denominaccedilatildeo grega da anamnesis designava Platatildeo a mitificara ligando-a a um saber
preacute-natal do qual estariacuteamos afastados por um esquecimento ligado agrave inauguraccedilatildeo da
vida da alma num corpo esquecimento de certo modo natal que faria da busca um
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reaprender do esquecimento Aristoacuteteles [] naturalizou de certo modo a anamnesis
comparando-a agravequilo que na experiecircncia cotidiana chamamos de recordaccedilatildeo [] o
ana de anamnesis significa volta retomada recobramento do que anteriormente foi
visto experimentado ou aprendido portanto de alguma forma significa repeticcedilatildeo
Assim o esquecimento eacute designado obliquamente como aquilo contra o que eacute
dirigido o esforccedilo da recordaccedilatildeo (RICOEUR 2014 p46)
O que Ricoeur propotildee assim com o par evocaccedilatildeobusca eacute a diferenciaccedilatildeo entre a
lembranccedila e a recordaccedilatildeo sendo a primeira segundo ele representativa do surgimento
espontacircneo de um registro gravado na memoacuteria enquanto a segunda seria resultado de uma
procura ativa voluntaacuteria Referindo as ideias de Bergson sobre lsquorecordaccedilatildeo instantacircnearsquo e
lsquorecordaccedilatildeo laboriosarsquo aponta a distinccedilatildeo ldquo[] podendo a recordaccedilatildeo instantacircnea ser considerada
como o grau zero da busca e a recordaccedilatildeo laboriosa e a recordaccedilatildeo laboriosa como sua forma
expressardquo (RICOEUR 2014 p46) Assim a lembranccedila viria de uma evocaccedilatildeo proacutexima ao que
Ricoeur chama de lsquoautomatismorsquo e lsquorecordaccedilatildeo mecacircnicarsquo diferente da recordaccedilatildeo que viria lsquoda
reflexatildeo da reconstituiccedilatildeo inteligentersquo estando ambas ldquo[] intimamente mescladas na
experiecircncia comumrdquo (RICOEUR 2014 p46) Por fim com relaccedilatildeo a esse par Ricoeur refere
Eacute de fato o esforccedilo de recordaccedilatildeo que oferece a melhor ocasiatildeo de fazer lsquomemoacuteria do
esquecimentorsquo para falar com antecipaccedilatildeo como Santo Agostinho A busca da
lembranccedila comprova uma das finalidades principais do ato de memoacuteria a saber lutar
contra o esquecimento arrancar alguns fragmentos de lembranccedila agrave lsquorapacidadersquo do
tempo (Santo Agostinho dixit) ao lsquosepultamentorsquo no esquecimento Natildeo eacute somente o
caraacuteter penoso do esforccedilo de memoacuteria que daacute agrave relaccedilatildeo sua coloraccedilatildeo inquieta mas o
temor de ter esquecido de esquecer de novo de esquecer amanhatilde de cumprir esta ou
aquela tarefa porque amanhatilde seraacute preciso natildeo esquecer [] de se lembrar (RICOEUR
2014 p48)
A terceira dupla de opostos proposta por Ricoeur em sua fenomenologia da memoacuteria eacute
constituiacuteda pela polaridade reflexividademundanidade A respeito do elemento reflexividade
Ricoeur esclarece
Natildeo nos lembramos somente de noacutes vendo experimentando aprendendo mas das
situaccedilotildees do mundo nas quais vimos experimentamos aprendemos Tais situaccedilotildees
implicam o proacuteprio corpo e o corpo dos outros o espaccedilo onde se viveu enfim o
horizonte do mundo e dos mundos sob o qual alguma coisa aconteceu Entre
reflexividade e mundanidade haacute mesmo uma polaridade na medida em que a
reflexividade eacute um rastro irrecusaacutevel da memoacuteria em sua fase declarativa algueacutem diz
lsquoem seu coraccedilatildeorsquo que viu experimentou aprendeu anteriormente sob esse aspecto nada
deve ser negado sobre o pertencimento da memoacuteria agrave esfera de interioridade
(RICOEUR 2014 p53-54)
A mundanidade por sua vez constitui um elemento significativo no estudo deste
capiacutetulo uma vez que contempla a existecircncia dos rituais atraveacutes da abordagem do fenocircmeno da
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comemoraccedilatildeo Ricoeur o associa agrave ldquo[] gestualidade corporal e agrave espacialidade dos rituais que
acompanham os ritmos temporais da celebraccedilatildeordquo (RICOEUR 2014 p60) A associaccedilatildeo do ato
de comemoraccedilatildeo com os rituais eacute explicada por ele
Natildeo haacute efetuaccedilatildeo ritual sem a evocaccedilatildeo de um mito que orienta a lembranccedila para o que eacute
digno de ser comemorado As comemoraccedilotildees satildeo assim espeacutecies de evocaccedilotildees no
sentido de reatualizaccedilatildeo eventos fundadores apoiados pelo lsquochamadorsquo a lembrar-se que
soleniza a cerimocircnia- comemorar observa Casey eacute solenizar tomando seriamente o
passado e celebrando-o em cerimocircnias apropriadas (RICOEUR 2014 p60)
A partir da reflexatildeo de Ricoeur sobre o par reflexividademundanidade e neste uacuteltimo
elemento a presenccedila do ritual cabe salientar o estudioso Mircea Eliade Este em sua obra Mito e
Realidade apresenta uma definiccedilatildeo do que eacute o mito
O mito conta uma histoacuteria sagrada ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial o tempo fabuloso do lsquoprinciacutepiorsquo Em outros termos o mito narra como
graccedilas agraves faccedilanhas dos Entes Sobrenaturais uma realidade passou a existir seja uma
realidade total o Cosmo ou apenas um fragmento uma ilha uma espeacutecie vegetal um
comportamento humano uma instituiccedilatildeo Eacute sempre portanto a narrativa de uma
lsquocriaccedilatildeorsquo ele relata de que modo algo foi produzido e comeccedilou a ser O mito fala apenas
do que realmente ocorreu do que se manifestou plenamente (ELIADE 2011 p11)
A relevacircncia dessa consideraccedilatildeo reside em corroborar que ldquo[] pelo fato de relatar as
gesta dos Entes Sobrenaturais e a manifestaccedilatildeo dos seus poderes sagrados o mito se torna o
modelo exemplar de todas as atividades humanas significativasrdquo (ELIADE 2011 p12) A
comemoraccedilatildeo enseja o rito que reencena o mito por isso eacute mencionada na explanaccedilatildeo de Ricoeur
quando se refere aos rituais Mircea Eliade esclarece ldquo[] a principal funccedilatildeo do mito consiste em
revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas tanto a
alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE
2011 p12) Compreende-se assim a comemoraccedilatildeo como a reuniatildeo de grupo ou de um povo
para celebrar a memoacuteria conjunta de seus membros em torno de uma finalidade o rito cuja
origem estaacute no evento original o mito A ideia impliacutecita neste caso eacute a de celebrar em conjunto
a memoacuteria de algo ou seja co-memorar A fim de reforccedilar essa reflexatildeo apontamos outra
explanaccedilatildeo de Eliade
Para o homem das sociedades arcaicas ao contraacuterio o que aconteceu ab origine pode ser
repetido atraveacutes do poder dos ritos Para ele portanto o essencial eacute conhecer os mitos
Essencial natildeo somente porque os mitos lhe oferecem uma explicaccedilatildeo do Mundo e de seu
proacuteprio modo de existir no Mundo mas sobretudo porque ao rememorar os mitos e
reatualiza-los ele eacute capaz de repetir o que os Deuses os Heroacuteis e os Ancestrais fizeram
ab origine Conhecer os mitos eacute aprender o segredo da origem das coisas Em outros
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termos aprende-se natildeo somente como as coisas vieram agrave existecircncia mas tambeacutem onde
encontra-las e como fazer com que reapareccedilam quando desaparecem (ELIADE 2011
p18)
No contexto do presente capiacutetulo interessa ressaltar a compreensatildeo do ritual como
celebraccedilatildeo de uma memoacuteria ancestral por parte de um grupo A ancestralidade dessa memoacuteria
tem em sua raiz o mito que lhe deu origem Tal entendimento tem associaccedilatildeo com o cozinhar e
com o partilhar o alimento com a reuniatildeo da famiacutelia em torno da comida e com a repeticcedilatildeo das
praacuteticas culinaacuterias que mesmo evoluindo ao longo do tempo remontam o primordial tornar cru
em cozido Outro elemento ligado agrave realizaccedilatildeo de rituais associados agrave cozinha estaacute na recitaccedilatildeo
do modo de fazer um prato quando transmitido atraveacutes de uma receita escrita O caminho que
essa percorre entre as geraccedilotildees de uma famiacutelia eacute emblemaacutetico de sua forccedila ritualiacutestica como se
carregasse de forma transgeracional a memoacuteria desse grupo atraveacutes do como-se-faz de uma
determinada praacutetica
Antes da existecircncia da receita no caderno o conhecimento empiacuterico dos antepassados
sobre o fazer culinaacuterio era ensinado oralmente e atraveacutes do proacuteprio fazer quando recitaccedilotildees eram
feitas para que o prato saiacutesse a contento essas eram assim a representaccedilatildeo do ritual naquele
grupo familiar Nesse sentido retomamos Eliade em sua explicaccedilatildeo sobre a recitaccedilatildeo do mito
Em Timor por exemplo quando germina um arrozal dirige-se ao campo algueacutem que
conhece as tradiccedilotildees miacuteticas referentes ao arroz [] Recitando o mito de origem
obriga-se o arroz a crescer tatildeo belo vigoroso e abundante como era quando apareceu
pela primeira vez Natildeo eacute com o fim de lsquoinstruiacute-lorsquo ou ensinar-lhe a maneira como deve
comportar-se que o oficiante lembra ao arroz o modo como foi criado Ele o forccedila
magicamente a retornar agrave origem isto eacute a reiterar sua criaccedilatildeo exemplar (ELIADE
2011 p19)
Esses conhecimentos eram transmitidos junto com a receita ou seja eram parte da
memoacuteria daquele prato em seu papel na tradiccedilatildeo familiar Vale lembrar que a etimologia de
receita estaacute no latim recepta alusivo a receber expressa entatildeo aquilo que se recebe em termos
de ensinamento sobre o fazer de uma comida especiacutefica Haacute diversas expressotildees no folclore da
cozinha que remontam a transmissatildeo do saber culinaacuterio em uma cultura
Haacute diferenccedila entre a memoacuteria individual essa que nos identifica como indiviacuteduos e a
memoacuteria coletiva Como exemplo da uacuteltima cito esse lsquosaber culinaacuterio em uma culturarsquo que
remete agrave compreensatildeo sobre a memoacuteria coletiva no contexto deste capiacutetulo Esta assim como a
individual tem em seu eixo a noccedilatildeo de identidade no caso da memoacuteria de um indiviacuteduo como jaacute
visto refere-se agrave consciecircncia de si mesmo como base daquilo de que ele eacute capaz de se lembrar
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para que as lembranccedilas sejam suas no caso da memoacuteria coletiva este eixo estaacute na identidade do
grupo que a conteacutem pois a memoacuteria e o grupo alimentam-se reciprocamente o grupo se manteacutem
vivo pelas memoacuterias enquanto essas permanecem presentes pela unidade do grupo
A respeito dessa inter-relaccedilatildeo a pesquisadora e professora alematilde Aleida Assmann no
livro Espaccedilos da recordaccedilatildeo-formas e transformaccedilotildees da memoacuteria cultural menciona as ideias
de Maurice Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva referindo que ldquo[] a memoacuteria coletiva assegura
a singularidade e a continuidade de um grupordquo (ASSMANN 2011 p144) e esclarece
Seu interesse voltou-se apenas agrave pergunta sobre o que manteacutem as pessoas unidas em
grupos Deparou assim com o significado agregador das lembranccedilas em comum como
importante elemento de coesatildeo Derivou daiacute a noccedilatildeo da existecircncia de uma lsquomemoacuteria de
gruporsquo Mas as lembranccedilas natildeo se estabilizam somente no grupo O grupo torna estaacuteveis
as lembranccedilas A investigaccedilatildeo de Halbwachs em torno dessa lsquomemoacuteria coletivarsquo resultou
no seguinte a estabilidade da memoacuteria coletiva estaacute vinculada de maneira direta agrave
composiccedilatildeo e subsistecircncia do grupo Se o grupo se dissolve os indiviacuteduos perdem em
sua memoacuteria a parte de lembranccedilas que os fazia assegurarem-se e identificarem-se como
grupo (ASSMANN 2011 p144)
A referecircncia agrave memoacuteria ligada agrave manutenccedilatildeo de um grupo remete novamente agrave ideia no
acircmbito das vivecircncias culinaacuterias das receitas de cozinha transmitidas entre as geraccedilotildees de uma
mesma famiacutelia O elemento que sustenta a presenccedila dessa receita no grupo eacute a memoacuteria que este
tem a respeito do lsquocomo-se-fazrsquo de uma determinada comida Enquanto houver membros dessa
famiacutelia que se interessem em manter a tradiccedilatildeo daquele determinado sabor a memoacuteria seraacute
mantida ao mesmo tempo enquanto houver essa memoacuteria a integraccedilatildeo do grupo permaneceraacute
Segundo Aleida Assmann
Os estudos do historiador francecircs Pierre Nora demonstraram que por traacutes da memoacuteria
coletiva natildeo haacute alma coletiva nem espiacuterito coletivo algum mas tatildeo somente a sociedade
com seus signos e siacutembolos Por meio dos siacutembolos em comum o indiviacuteduo toma parte
de uma memoacuteria e de uma identidade tidas em comum Nora cumpriu na teoria da
memoacuteria o passo que vai do grupo vinculado na coexistecircncia espaccedilo-temporal tema
estudado por Halbwachs agrave comunidade abstrata que se define por meio dos siacutembolos
que abrangem e agregam em niacutevel espacial e temporal Os portadores dessa memoacuteria
coletiva natildeo precisam conhecer-se para apesar disso reinvindicar para si uma identidade
comum (ASSMANN 2011 p145)
Assim como referido sobre o papel de uma receita de famiacutelia como elemento de coesatildeo
entre os membros da mesma atraveacutes das geraccedilotildees situaccedilatildeo semelhante pode ocorrer em relaccedilatildeo
a um determinado ingrediente ou preferecircncia alimentar A transmissatildeo de um saber culinaacuterio e
dos gostos de uma famiacutelia tambeacutem satildeo aspectos que se perpetuam no grupo em funccedilatildeo da
memoacuteria que agrega seus integrantes
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A memoacuteria individual entatildeo manteacutem a identidade por dar ao indiviacuteduo sua caracteriacutestica
singular atraveacutes do tempo nela estatildeo suas impressotildees lembranccedilas e registros que compotildeem a
noccedilatildeo de permanecircncia de quem ele eacute ou seja reforccedilam nele a consciecircncia do eu na duraccedilatildeo de
ciclos que se perpetuam Ele sabe quem eacute em grande parte pelas lembranccedilas que tem de si
Circunstacircncia anaacuteloga ocorre com a memoacuteria coletiva em que o grupo se manteacutem coeso pela
consciecircncia de ser um grupo com lembranccedilas em comum o papel dessas eacute exatamente o de
manter a unidade e a permanecircncia da identidade do conjunto
A memoacuteria individual e a coletiva estatildeo portanto implicadas na vivecircncia culinaacuteria
relaccedilotildees a serem exploradas na divisatildeo que segue
13 A COZINHA COMO CENAacuteRIO DE VIVEcircNCIAS O INDIVIDUAL E O COLETIVO
A relaccedilatildeo entre cozinha e memoacuteria existe devido agrave linguagem Avanccedilando nessa
perspectiva Mariano Garciacutea e Mariana Dimoacutepulos compiladores da obra Escritos sobre la mesa-
Literatura y comida afirmam que ldquo[] a relaccedilatildeo entre linguagem e comida comeccedila desde o
momento em que graccedilas agrave escritura se conservam notiacutecias de como se comia na Antiguidaderdquo
(GARCIacuteA DIMOacutePULOS 2014 p9) Toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo assim eacute conhecida em
virtude do que se registrou ao longo das eacutepocas sob os mais diversos veiacuteculos Esse aspecto eacute
relevante tanto do ponto de vista de Histoacuteria da Humanidade quanto daquele das histoacuterias
familiares atraveacutes de escritos transmitidos de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Em ambos os exemplos os
escritos culinaacuterios satildeo representativos da memoacuteria coletiva
Ainda no que concerne a essa memoacuteria salientamos que ela tem tambeacutem outras
expressotildees presentes no acircmbito identitaacuterio de uma cultura De acordo com Daniela Bunn em sua
obra O alimento na literatura uma questatildeo cultural ldquo[] satildeo assim criados em torno da mesa
modos maneiras e ingredientes que estabelecem uma identidade cultural destinada a representar
um grupo e sua identidaderdquo (BUNN 2016 p28) Tais lsquomodos maneiras e ingredientesrsquo satildeo
elementos que constituem parte da bagagem que pertence a um grupo e agraves geraccedilotildees seguintes
atraveacutes da memoacuteria coletiva Podemos citar como exemplos os ensinamentos culinaacuterios
aprendidos atraveacutes de gestos e de relatos orais e as preferecircncias alimentares de uma famiacutelia ou de
um povo
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Visitando cadernos de receitas antigos que pertenceram a avoacutes matildees e tias percebemos
uma caracteriacutestica em comum a todos eles o elenco de ingredientes com suas medidas e a breve
descriccedilatildeo do lsquocomo-se-fazrsquo apenas para guiar a praacutetica Parece-nos inclusive que eram
anotaccedilotildees que elas faziam para si mesmas para que natildeo esquecessem de um ou outro detalhe e
natildeo registros para serem transmitidos na famiacutelia Ensinavam sim mas in loco na hora em que
estivessem fazendo Mostravam caracteriacutesticas no aspecto do prato sendo feito apontavam para
os ruiacutedos da cebola fritando faziam sentir a textura de uma massa de patildeo o cheiro de um doce
exalando pela cozinha denunciavam a pitada de sal que ainda faltava no arroz soacute de provarem
com a ponta da colher Como sabiam Porque lembravam pelo que um dia aprenderam e mais do
que isso lembravam pelo haacutebito pelo praticar e de forma mais vivencial pelo sentir atraveacutes dos
cinco sentidos
Em Pequeno alfarraacutebio de acepipes e doccediluras haacute um capiacutetulo dedicado agrave cozinha das
avoacutes intitulado lsquoNossas avoacutesrsquo cujo propoacutesito eacute o de refletir de modo especiacutefico sobre a cozinha
que atravessa a memoacuteria e permanece como registro vivo pela referecircncia ao papel que estas
desempenham na memoacuteria de muitas pessoas Os pratos e doces feitos por elas as avoacutes de tantas
geraccedilotildees tornam-se parte das lembranccedilas que deixam na famiacutelia Aleacutem disso as receitas das avoacutes
satildeo emblemaacuteticas da memoacuteria que se manteacutem viva atraveacutes de um grupo que a alimenta a
memoacuteria coletiva conforme referida por Aleida Assmann ao mencionar as ideias de Maurice
Halbwachs
Um dos aspectos mais relevantes dessa lsquocozinha das avoacutesrsquo eacute o modo como tinham no
corpo o conhecimento da praacutetica culinaacuteria No texto lsquoA memoacuteria nas matildeosrsquo eacute referido esse
aspecto
No caso da Voacute Leacuteia e de tantas avoacutes da eacutepoca acho que tinham a memoacuteria nas matildeos
com tudo o que aprendiam e praticavam vida afora No entanto a sabedoria vai aleacutem
Acredito que sentissem vivamente nas etapas os cheiros gostos sons do alimento
aspecto textura pulsaccedilatildeo As matildeos preparavam mas todo corpo participava do feito
culinaacuterio Prestavam atenccedilatildeo estavam de fato presentes na tarefa E assim a memoacuteria era
lsquocarimbadarsquo nas matildeos nos cinco sentidos na emoccedilatildeo de um sabor que alegrava a
cozinha (CARDOSO 2012 p61)
O elemento determinante da memoacuteria das avoacutes cuja vivecircncia culinaacuteria era cotidiana e de
valor reconhecido entre os familiares eacute a praacutetica Sabiam fazer e muitas vezes de modo
intuitivo adaptavam e ateacute criavam receitas por esse conhecimento A lsquomemoacuteria nas matildeosrsquo
consistia em identificar pelo tato que a massa do patildeo estava no ponto quando a pele assim
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determinava E reconheciam isso por um dia ter aprendido mas principalmente porque apoacutes
tantas repeticcedilotildees do lsquocomo-se-fazrsquo foi a pele que passou a identificar este ponto ainda antes do
conhecer cognitivo Tal reflexatildeo conduz ao que refere Ricoeur sobre o par haacutebitomemoacuteria
quando o primeiro elemento do par alude agraves circunstacircncias em que o passado adere ao presente
Um saber adquirido eacute mantido em praacutetica o que torna sua lembranccedila como um fator que integra a
atualidade do fazer e natildeo apenas o passado
Esta memoacuteria das avoacutes que mantinham vivo um modo de conhecer o ato culinaacuterio como
parte de seu saber vivencial ilustra com nitidez a ideia da memoacuteria coletiva jaacute que seu saber era
compartilhado em seu tempo natildeo pela receita escrita mas pela forma como esse era sentido e
atuado na cozinha Agrave medida que as geraccedilotildees que detinham esses conhecimentos antigos foram
terminando suas memoacuterias de forno-e-fogatildeo construiacutedas pela accedilatildeo e pelos sentidos agrave beira do
fogo ou do balcatildeo foram deixando de existir O que ficou para as geraccedilotildees seguintes foi o
conjunto de receitas escritas mas essas natildeo substituem a riqueza de um fazer empiacuterico intuitivo
recordado no corpo
O escritor e pesquisador Michael Pollan faz uma referecircncia interessante nesse sentido ao
advertir que natildeo se deve comer nada que a avoacute natildeo chamaria de comida Essa expressatildeo proposta
no fulcro de uma culinaacuteria dirigida para fora dos lares e feita de alimentos muitas vezes pouco ou
nada saudaacuteveis chama a atenccedilatildeo para o reconhecimento das avoacutes como detentoras de um saber
uacutenico aquele da lsquocomida de verdadersquo
Avoacutes matildees e tias satildeo personagens de grande relevacircncia no aprendizado de cozinha das
geraccedilotildees seguintes Eacute possiacutevel que isso se deva a seu papel ancestral de transmissatildeo de um saber
especiacutefico A memoacuteria dos antepassados constitui o alicerce a fundamentaccedilatildeo da famiacutelia a partir
de experiecircncias e de saberes que um dia foram vivenciados para serem entatildeo narrados ao longo
do tempo agraves proacuteximas geraccedilotildees O socioacutelogo Carlos Alberto Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da
culinaacuteria brasileira tece uma relevante consideraccedilatildeo a esse respeito ldquoOs saberes culinaacuterios
evoluiacuteram como uma heranccedila que se transmite matrilinearmente ndash e os cadernos de receitas das
avoacutes satildeo uma sobrevivecircncia persistente dessa diretrizrdquo (DOacuteRIA 2014 p206)
Doacuteria aborda outro elemento significativo na contribuiccedilatildeo com o papel da memoacuteria na
cozinha a corporeidade Esse fator representa o proacuteprio ato culinaacuterio que eacute exercido pelo corpo
Eacute nele que reside a memoacuteria dos movimentos e dos gestos implicados no preparo do alimento
como bater claras sovar a massa do patildeo picar a cebola etc Neste sentido o autor refere
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O corpo eacute tradicionalmente o principal instrumento do fazer culinaacuterio As ferramentas
da faca ao mais sofisticado equipamento utilizado na culinaacuteria molecular satildeo em geral
expedientes que visam economizar gestos ou conferir-lhes maior precisatildeo mas o
empenho fiacutesico com destreza eacute o primeiro responsaacutevel pelos resultados alcanccedilados []
(DOacuteRIA 2014 p216)
Essa reflexatildeo significa na compreensatildeo da memoacuteria ligada agrave cozinha que eacute o corpo o
principal responsaacutevel pela praacutetica culinaacuteria incluindo qualidades como a destreza mencionada
por Doacuteria A faca poderaacute cortar bem estar afiada mas se o corpo natildeo souber usaacute-la isso de nada
adiantaraacute Tal ponto nos remete agrave ideia da memoacuteria do corpo referida por Ricoeur no que tange
a uma espeacutecie de memoacuteria que pode ser agida na praacutetica habitual do indiviacuteduo fazendo parte de
sua identidade ter domiacutenio de um dado ato culinaacuterio daacute a algueacutem a consciecircncia de que sabe
fazer de que se lembra de que aquele saber eacute parte de si
Assim o ato culinaacuterio aprendido tanto por livros de receitas como pela transmissatildeo oral
por familiares representa a memoacuteria coletiva quando esse ato eacute praticado rotineiramente pelo
sujeito que aprendeu isto contribui para a consciecircncia de si representando o papel da memoacuteria
individual Cabe ressaltar tambeacutem a presenccedila da memoacuteria ancestral que acompanha as vivecircncias
de cozinha A esse propoacutesito Doacuteria refere que ldquoAssim lsquofazer para o outrorsquo ndash essa doaccedilatildeo atraveacutes
de um intermediaacuterio ao mesmo tempo material e simboacutelico como eacute a comida ndash permanece a
marca feminina do cozinhar desde os primeiros tempos da humanidaderdquo (DOacuteRIA 2014 p221)
Tal constataccedilatildeo reforccedila o papel ancestral das avoacutes matildees e tias na transmissatildeo do saber culinaacuterio
A postagem do blog Serendipity in Cucina traz no relato memorialiacutestico sobre a vivecircncia
de sua autora reflexatildeo sobre o componente ritualiacutestico do cozinhar
Haacute alguns anos decidi comeccedilar a fazer a chimia de uvas lsquoda Voacute Leacuteiarsquo a partir das
lembranccedilas que tenho do fazer de minha avoacute materna a quem assisti preparando o doce
inuacutemeras vezes Os dados sobre as proporccedilotildees tais como igual peso das cascas de uva e
do accediluacutecar e aacutegua que cubra soube por uma prima mas meu objetivo principal era o de
seguir a memoacuteria mais de vinte anos depois da uacuteltima vez que a vi fazendo o doce
Entatildeo sempre no veratildeo na eacutepoca dessas uvas repito a experiecircncia Fico em frente agrave
caccedilarola e a coloco em fogo baixo depois da fervura mexendo com a colher de pau em
giros lentos e precisos Percebo a mudanccedila atraveacutes da resistecircncia que o composto faz agrave
colher e assim progressivamente o fazer demanda mais forccedila do braccedilo direito Presto
atenccedilatildeo ao aspecto o roxo cintilante do iniacutecio torna-se mais opaco e fechado o brilho
das cascas da uva Isabel com que eacute feita a chimia diminui agrave medida que essa se
aproxima do resultado final O aroma toma conta da casa toda de forma insidiosa
Identifico que estaacute pronta pela consistecircncia reconheccedilo este momento porque a imagem
de minha avoacute em seus giros da colher de pau eacute parte de minha memoacuteria bem como a
lembranccedila das etapas da receita Quando repito seu movimento com semelhante
vagarosidade e empenho faccedilo-o pela lembranccedila do que assisti entretanto eacute provaacutevel
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que a repeticcedilatildeo se deva tambeacutem ao ritual em que consiste o cozinhar O proacuteprio fato de
estar agrave frente do fogo preparando o alimento eacute por si um ritual (CARDOSO 2015)
Assim o papel da ancestralidade manifesta-se no modo como se vivencia o contato com a
comida tanto no cozinhar quanto no comer e no partilhar a refeiccedilatildeo pessoas afins ou seja esses
atos configuram-se como rituais Retomamos as contribuiccedilotildees de Mircea Eliade para corroborar
essa compreensatildeo especialmente sua referecircncia de que
Apesar das modificaccedilotildees sofridas no decorrer dos tempos os mitos dos lsquoprimitivosrsquo
ainda refletem um estado primordial Trata-se ademais de sociedades onde os mitos
ainda estatildeo vivos onde fundamentam e justificam todo o comportamento e toda a
atividade do homem (ELIADE 2011 p10)
O fazer a comida e aquele do sentar agrave mesa para compartilhaacute-la satildeo desta forma rituais
que praticamos como seres humanos reencenando mitos A expressatildeo dos rituais estaacute em uma
memoacuteria coletiva ancestral que evocamos nessas praacuteticas
Em suma os mitos descrevem as diversas e algumas vezes dramaacuteticas irrupccedilotildees do
sagrado (ou do lsquosobrenaturalrsquo) no Mundo Eacute essa irrupccedilatildeo do sagrado que realmente
fundamenta o Mundo e o converte no que eacute hoje E mais eacute em razatildeo das intervenccedilotildees
dos Entes Sobrenaturais que o homem eacute o que eacute hoje um ser mortal sexuado e cultural
(ELIADE 2011 p11)
No que concerne agrave praacutetica da cozinha tambeacutem o cumprimento de uma receita traz um ato
de recitaccedilatildeo especialmente na parte que se refere ao lsquomodo de fazerrsquo o que conduz agrave reflexatildeo de
que tambeacutem esta eacute parte do ritual que envolve a produccedilatildeo da comida Fala-se em seguir a receita
no sentido de obedececirc-la Ao ler as orientaccedilotildees o que se lecirc eacute a presenccedila de verbos especiacuteficos do
fazer culinaacuterio conjugados no modo imperativo corte refogue asse e assim por diante Este
recitar que muitas vezes eacute falado em voz baixa enquanto se prepara um prato eacute em si um ato
inerente ao fazer culinaacuterio A respeito da recitaccedilatildeo Eliade aponta que
Na maioria dos casos natildeo basta conhecer o mito da origem eacute preciso recitaacute-lo em certo
sentido eacute uma proclamaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo do proacuteprio conhecimento E natildeo eacute soacute
recitando ou celebrando o mito de origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela
atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos O tempo miacutetico
das origens eacute um tempo lsquofortersquo porque foi transfigurado pela presenccedila ativa e criadora
dos Entes Sobrenaturais Ao recitar os mitos reintegra-se agravequele tempo fabuloso e a
pessoa torna-se consequentemente lsquocontemporacircnearsquo de certo modo dos eventos
evocados compartilha da presenccedila dos Deuses ou dos Heroacuteis Numa foacutermula sumaacuteria
poderiacuteamos dizer que ao ldquoviverrdquo os mitos sai-se do tempo profano cronoloacutegico
ingressando num tempo qualitativamente diferente um tempo lsquosagradorsquo ao mesmo
tempo primordial e indefinidamente recuperaacutevel (ELIADE 2011 p21)
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Carlos Alberto Doacuteria faz uma relevante reflexatildeo sobre a receita culinaacuteria contemplando a
perspectiva desde sua origem ateacute o modo como eacute vista atualmente
Considerando as diferenccedilas tecnoloacutegicas as receitas satildeo sempre prescriccedilotildees sobre o
modo de proceder na cozinha assim como as receitas farmacecircuticas satildeo prescriccedilotildees a
respeito de como os farmacecircuticos devem proceder em seus laboratoacuterios Do ponto de
vista geral ao apontar a unidade receita-cozinha e o modo de lsquoaviamentorsquo estamos
considerando que essa unidade estaacute incrustrada nas demais instituiccedilotildees como a religiatildeo
a famiacutelia o Natal etc (DOacuteRIA 2009 p141)
A receita culinaacuteria eacute entatildeo parte do ritual que envolve as vivecircncias alimentares seja
cozinhar ou comer aleacutem disso essa constitui um relevante material como documento para a
memoacuteria de um local e de uma eacutepoca pois traz em seu vocabulaacuterio e nas accedilotildees que determina
elementos de identificaccedilatildeo que permitem caracterizar sua origem e periacuteodo de vigecircncia A receita
porta consigo a memoacuteria coletiva do contexto de que se origina bem como a memoacuteria
individual de quem a escreve em seu caderno de cozinha e a de quem reconhece nos livros de
receitas pratos que jaacute experimentou
Doacuteria aponta a respeito da memoacuteria implicada nesse tipo de material um aspecto
interessante sobre o papel da memoacuteria contida nos livros culinaacuterios O autor fala a respeito de um
renomado chef internacional Paul Bocuse que eacute contraacuterio agrave praacutetica de receitas lsquoagrave riscarsquo tendo
escrito um livro assim Doacuteria aponta que o chef faz uma ressalva em sua obra orientando ao
leitor que natildeo leve seu conteuacutedo demasiadamente a seacuterio e que ouccedila uma lsquoforccedila desconhecidarsquo
como a inspiraccedilatildeo o que ldquo[] garantiraacute melhores resultados praacuteticosrdquo (DOacuteRIA 2009 p144)
Consideramos por fim que Bocuse tambeacutem estaacute a nos dizer que as suas receitas satildeo
apenas e modestamente o seu modo de fazer aquele prato ou seja elas contecircm a
memoacuteria do seu trabalho como estilo e valor testemunhal e- tambeacutem de modo a
determinar- o livro eacute seu meio de propagaccedilatildeo Visto assim o livro de receitas eacute um
registro de memoacuteria do trabalho que possam ter alguma utilidade para os leitores []
(DOacuteRIA 2009 p144)
Aleacutem dessa referecircncia a Bocuse Doacuteria aponta criticamente a funccedilatildeo da receita para os
que a seguem ldquoEntatildeo se pararmos um minuto para pensar veremos que a receita dentro da
cozinha tem o status de um texto sagrado que nos reduz agrave condiccedilatildeo de seus exagetas
independentemente do grau de preparaccedilatildeo que tenhamos nessa singular teologia alimentarrdquo
(DOacuteRIA 2009 p142) Esse respeito ao texto sagrado eacute de certa forma o cumprimento da
memoacuteria coletiva transmitida atraveacutes dos documentos escritos denominados receitas ao longo do
tempo nessa transmissatildeo ocorrem transformaccedilotildees na forma de execuccedilatildeo dos alimentos
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conforme as modificaccedilotildees culturais de cada eacutepoca ou seja cada periacuteodo e lugar tem seu modo de
interpretar e de realizar as receitas culinaacuterias de acordo com os produtos oferecidos e com as
teacutecnicas vigentes Doacuteria menciona
Por isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculos e as modificaccedilotildees que
introduzimos nas receitas satildeo apenas formas do patildeo continuar existindo mediante as
transformaccedilotildees das receitas Por isso quando seguimos agrave risca uma receita de patildeo natildeo
queremos fazer o patildeo mas uma versatildeo do patildeo que uma tradiccedilatildeo qualquer elaborou
(DOacuteRIA 2009 p147)
Tecidas as consideraccedilotildees a respeito do fazer culinaacuterio consolidado pela memoacuteria coletiva
vale refletir sobre o modo como ele eacute vivenciado atraveacutes da memoacuteria individual Ao contar sobre
a chimia de uvas de sua avoacute apontamos que assistir a seu modo de praticaacute-la foi para a autora o
percurso para aprender a fazecirc-la O lsquocomo-se-fazrsquo guarda as lembranccedilas oriundas da praacutetica
vivenciada pelo ofiacutecio dos cinco sentidos e pelo assistir aos gestos do corpo como os giros lentos
da colher de pau feitos pela avoacute E por tantas outras avoacutes matildees e tias
Assim a memoacuteria coletiva de uma receita culinaacuteria a chimia de uvas Isabel na maneira
como era repetida por muitas pessoas de uma eacutepoca tornou-se tambeacutem memoacuteria individual
Passou a ser parte da identidade da autora do blog pois representa um ponto de identificaccedilatildeo com
sua avoacute pela recordaccedilatildeo marcante de assisti-la fazendo esse doce por isso decidiu fazecirc-lo tempos
depois de seu falecimento seguindo as lembranccedilas do seu fazer A memoacuteria a respeito dos doces
produzidos por ela eacute tatildeo significativa que estaacute registrada em uma crocircnica especiacutefica no jaacute citado
Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e Doccediluras lsquoAs deliacutecias nos vidros de cafeacutersquo a qual
reproduzimos abaixo
Na casa de praia da Voacute Leacuteia e do Vocirc Heacutelio havia milhares de encantos espalhados mas
a cozinha era meu favorito A mesa retangular generosa e lsquoconvidadeirarsquo contava um
universo de histoacuterias de faacutebulas e de sabores mas o que dava uma graccedila especial ao
conjunto era o armaacuterio proacuteximo agrave porta para a varanda Em suas estantes na parte
superior enfeites e guloseimas ali moravam os potes de rapadura de leite
constantemente abastecidos pela voacute Na parte inferior duas portas abriam um territoacuterio
uacutenico respirante Ali vidros de cafeacute daqueles grandes com tampas vermelhas
guardavam geleias chimias e compotas que ela fazia durante o veraneio
Deixaacutevamos para depois a ideia de pedir as receitas tiacutenhamos o propoacutesito de ficar ao
lado quando o panelatildeo estava no fogo tomando nota do lsquocomo-se-fazrsquo mas sem muita
obstinaccedilatildeo Afinal de contas a Voacute estava ali e era a uacutenica que sabia o tim-tim por tim-
tim do ponto das cores dos cheiros que seus feitos adquiriam a cada etapa Entatildeo
tiacutenhamos a fantasia de que ela estaria para sempre renovando as deliacutecias nos vidros de
cafeacute com alquimias de aboacutebora de laranja de uva [] nossa imaginaccedilatildeo percorria
lonjuras no tempo acreditando que seu fazer dos doces seria perene Agora refletindo
sobre por que natildeo peguei nenhuma de suas receitas por que natildeo anotava cada detalhe
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ocorre-me que esta era uma forma de garantir que ela permaneceria no ofiacutecio que eu
poderia eternamente aprender com ela a fazer suas reliacutequias
Hoje soacute o moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhas conhece o segredo daquelas
inquilinas (CARDOSO 2012 p62)
No texto lecirc-se lsquoo moacutevel da cozinha silenciado pelas portinhasrsquo mas esse moacutevel eacute a
proacutepria memoacuteria guardando lembranccedilas representadas como lsquoo segredo daquelas inquilinasrsquo A
memoacuteria individual conteacutem segredos pontos que com o passar do tempo natildeo satildeo contados de
acordo com a realidade vivida mas apenas com aquela lembranccedila que permanece atraveacutes das
imagens e de sentimentos muito do que foi percebido nos escapa deixando as cenas como se as
viacutessemos atraveacutes de um vidro embaccedilado Esses satildeo os lsquosegredosrsquo que as portinhas do moacutevel da
cozinha silenciam
Nesse aspecto retomamos a consideraccedilatildeo de Eugegravene Minkowski sobre a memoacuteria
quando esse autor menciona que ldquo[] a lembranccedila pode reproduzir um fato do passado com a
tonalidade emotiva com que este foi percebidordquo (MINKOWSKI 2004 p143) Entende-se assim
que a mesma tonalidade que colore a experiecircncia iraacute colorir o modo como nos recordaremos dela
no futuro porque eacute assim que a conhecemos
Esses registros existem na memoacuteria e assim constituem parte da consciecircncia do
indiviacuteduo sobre si mesmo Satildeo lembranccedilas que colaboram com a construccedilatildeo da identidade da
autora do texto Chimia da uva Isabel memoacuterias e receita pois ligam-na agrave identificaccedilatildeo com a
avoacute e seu legado culinaacuterio Tal aspecto corrobora o que apresentamos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica
do presente capiacutetulo
As memoacuterias individuais vinculadas agrave cozinha tecircm outro elemento a ser destacado nos
cadernos de receitas muitas vezes haacute referecircncia no tiacutetulo das mesmas a quem fazia tal prato ou
tal doce como especialidade identificando a receita a seu lsquodonorsquo como exemplo cito a lsquotorta de
palmito da Dona Mimi Mororsquo e a lsquopizza de sardinha da Voacute Leiarsquo Satildeo sabores associados agraves
lembranccedilas que temos das proacuteprias cozinheiras como se o saborear e o lembrar de quem
produzia o alimento fossem recordaccedilotildees acopladas
Os tiacutetulos das receitas fazem-nos evocar essas personagens da histoacuteria pessoal Os nomes
presentes no caderno identificam figuras de relevo na vida de quem o guarda assim esse faz
tambeacutem o papel de um aacutelbum de recordaccedilotildees Destacamos nas paacuteginas do livro Pequeno
alfarraacutebio de acepipes e doccediluras que o lsquobolo de melado da Anildarsquo natildeo eacute uma receita qualquer
de bolo de melado mas aquela da qual a autora tem determinada lembranccedila perpetuada pelo
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colorido afetivo lembra-se do momento em que saboreou a receita pela primeira vez da Anilda
sua autora da cozinha em que o bolo era feito e ateacute mesmo do aroma que deixava na casa apoacutes
sair do forno A receita pode tornar-se entatildeo a narrativa das experiecircncias e das pessoas que
fazem parte delas atraveacutes da memoacuteria que nos permite acessar
Muitos livros de temas culinaacuterios satildeo memorialiacutesticos em acircmbito nacional e
internacional Esse elemento confirma a relaccedilatildeo da cozinha com o sujeito que comete nela seus
atos culinaacuterios mais iacutentimos esta constituiraacute o espaccedilo de memoacuteria de quem teve ali ou em outras
cozinhas de sua vida vivecircncias a serem contadas A outras pessoas ou a si mesmo como faz
Antocircnio ao rememorar sua histoacuteria familiar e pessoal enquanto prepara o arroz para o almoccedilo de
famiacutelia
Na seccedilatildeo seguinte apresentamos a anaacutelise da primeira obra do corpus dessa Dissertaccedilatildeo
de Mestrado O arroz de Palma a fim de propor a relaccedilatildeo entre a cozinha e o fenocircmeno da
memoacuteria a partir dos fragmentos escolhidos
14 A MEMOacuteRIA NA COZINHA
A obra de Francisco Azevedo O arroz de Palma segue a cronologia da lembranccedila a
narrativa dos acontecimentos de sua histoacuteria pessoal e familiar eacute feita atraveacutes da costura de
tempos costura essa em que o fio que une os tecidos eacute a memoacuteria O protagonista Antonio
narrador-personagem tem oitenta e oito anos e estaacute na cozinha da fazenda de sua infacircncia
preparando um almoccedilo para reunir toda a famiacutelia O prato a ser servido O arroz ofertado por sua
tia Palma aos seus pais Joseacute Custoacutedio e Maria Romana na ocasiatildeo do casamento
Os gratildeos jogados aos noivos na igreja satildeo colhidos da pedra por Palma para a oferta do
presente Esses gratildeos atravessam o oceano de Portugal ao Brasil para onde o casal e Palma vecircm
apoacutes dificuldades financeiras no paiacutes de origem e atravessam tambeacutem as geraccedilotildees O arroz
fertilizaraacute a famiacutelia e suas histoacuterias Eacute para celebrar o aniversaacuterio de 100 anos do casamento dos
pais e do arroz presenteado pela tia que Antonio prepara o almoccedilo com o que ainda haacute do
presente para ser compartilhado com os familiares
A narrativa eacute contada por ele enquanto prepara o prato sob a forma de lembranccedilas do que
viveu e do que ouviu da Tia Palma nas longas conversas que tinham desde seus tempos de
crianccedila O protagonista vai alinhavando essas recordaccedilotildees narrando-as como forma de
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estabelecer uma linha de tempo desde o recebimento do arroz pelos pais ateacute o almoccedilo que
cozinha para a famiacutelia com o mesmo arroz cem anos depois Em alguns pontos da histoacuteria
parece tecer uma interlocuccedilatildeo com o leitor mas o elo entre a memoacuteria e os pensamentos eacute feita
de si para si
Pode-se dividir os trechos escolhidos para a presente anaacutelise em trecircs tempos o que
Antonio narra a partir da atualidade o que ouviu de Tia Palma e o que vivenciou Na primeira
condiccedilatildeo estaacute no presente nas duas outras no passado
Quando evoca as lembranccedilas vive-as com tamanha intensidade que sua narrativa traz
eventos antigos como se fossem atuais e refere-se a si mesmo do seguinte modo ldquoE eu menino
enrugado aqui nesta cozinha ainda viajo presente colorido do indicativordquo (AZEVEDO 2008
p17) O termo lsquomenino enrugadorsquo expressa a ligaccedilatildeo entre os tempos do presente e da memoacuteria
enquanto o lsquocoloridorsquo evoca a forccedila com que as lembranccedilas se manifestam trazendo ao presente
tonalidade marcante
Em toda a narrativa o uso das metaacuteforas culinaacuterias para a representaccedilatildeo de vivecircncias de
percepccedilotildees de sentimentos e de lembranccedilas eacute o elemento principal A cozinha eacute assim a forma
constante de expressatildeo do protagonista aleacutem de ser o espaccedilo fiacutesico onde o romance se
desenvolve pois eacute neste lugar que ele estaacute enquanto tece recordaccedilotildees
No primeiro capiacutetulo do livro Antonio fala durante o preparo do almoccedilo que serviraacute para
a famiacutelia entatildeo na atualidade Lembra-se lsquoTia Palma me ensinou a cozinhar eu era jovemrsquo
ilustrando as reflexotildees feitas na subdivisatildeo anterior sobre a relevacircncia da cozinha das avoacutes e das
tias para a memoacuteria individual pois essas satildeo figuras de referecircncia para a construccedilatildeo da memoacuteria
e por conseguinte da consciecircncia de si Diz Antonio
Eu aqui na fazenda Eu aqui na cozinha quatro e pouco da manhatilde Isabel ainda dorme o
sol ainda demora Eu aqui um velho de 88 anos Para os mais novos o Avocirc Eterno o
que natildeo teve comeccedilo nem teraacute fim o que jaacute veio ao mundo com essa cara enrugada Eu
aqui de avental branco picando o tempero verde Preparo o almoccedilo de famiacutelia Terei
forccedilas 88 dois infinitos verticais Eacute boa idade seraacute uma bela festa Tenho praacutetica Tia
Palma me ensinou a cozinhar eu era jovem (AZEVEDO 2008 p9)
Antonio provoca lsquoAs autoridades querem minhas digitais Elas estatildeo na massa do patildeorsquo o
que conduz a dois aspectos jaacute discutidos o papel da memoacuteria individual na identidade papel que
estaacute impregnado na massa do patildeo ou seja no ato culinaacuterio o outro elemento eacute aquele referido
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por Doacuteria quando menciona lsquoPor isso fazemos patildeo ele existe dentro de noacutes haacute seacuteculosrsquo
expressando a feitura do patildeo como resultado da memoacuteria coletiva e da realizaccedilatildeo de rituais
Eacute na cozinha que eu desembesto e solto os bichos Eacute na cozinha que eu viajo sem
passaporte sem bilhete sem revista em aeroportos As autoridades querem minhas
digitais Elas estatildeo na massa do patildeo Querem minha foto Tenho vaacuterias de frente e de
lado com meus pais e irmatildeos e com os que vieram depois Retratos falados- em voz alta
a famiacutelia toda ao mesmo tempo Destrambelhada famiacutelia Sagrada famiacutelia []
(AZEVEDO 2008 p11)
Ainda nesse capiacutetulo ressaltamos um elemento caracteriacutestico da obra as expressotildees da
cozinha que constituem metaacuteforas agrave composiccedilatildeo das famiacutelias A frase emblemaacutetica empregada
pelo personagem lsquofamiacutelia eacute prato difiacutecil de prepararrsquo apresenta as reflexotildees de Antonio sobre
diferenccedilas e peculiaridades entre familiares Todas as alusotildees agraves divergecircncias entre eles satildeo feitas
tendo como eixo a linguagem usada na culinaacuteria Salientamos um aspecto a aproximaccedilatildeo entre
os termos culinaacuterios e as relaccedilotildees familiares representando cozinha e famiacutelia como estruturas
com pontos de convergecircncia
Preciso me concentrar Eacute essencial Por quecirc Ora que pergunta Famiacutelia eacute prato difiacutecil
de preparar satildeo muitos ingredientes Reunir todos eacute um problema- principalmente no
Natal e Ano-Novo Pouco importa a qualidade da panela fazer uma famiacutelia exige
coragem devoccedilatildeo e paciecircncia Natildeo eacute para qualquer um Os truques os segredos o
imprevisiacutevel Agraves vezes daacute ateacute vontade de desistir Preferimos o desconforto do estocircmago
vazio Preferimos o desconforto do estocircmago vazio Vecircm a preguiccedila a conhecida falta
de imaginaccedilatildeo sobre o que se vai comer e aquele fastio Mas a vida- azeitona verde no
palito- sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite O tempo potildee a mesa
determina o nuacutemero de cadeiras e os lugares Suacutebito feito milagre a famiacutelia estaacute
servida (AZEVEDO 2008 p12)
Durante o preparo do arroz mistura lembranccedilas e devaneios seguindo a comparaccedilatildeo
entre pratos culinaacuterios e famiacutelias
Reuacutena essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida Natildeo haacute pressa Eu
espero Jaacute estatildeo aiacute Todas Oacutetimo Agora ponha o avental pegue a taacutebua a faca mais
afiada e tome alguns cuidados Logo logo vocecirc tambeacutem estaraacute cheirando a alho e a
cebola Natildeo se envergonhe se chorar Famiacutelia eacute prato que emociona E a gente chora
mesmo De alegria de raiva ou de tristeza (AZEVEDO 2008 p12)
Entre ponderaccedilotildees e aconselhamentos Antonio fala de si mesmo ao leitor apresentando
sua visatildeo sobre si como um lsquovelho jaacute meio caducorsquo e lsquoum veterano cozinheirorsquo A alternacircncia
entre recordaccedilotildees do passado ideias do presente e diaacutelogo com o interlocutor eacute um dos elementos
que marca a narrativa
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Enfim receita de famiacutelia natildeo se copia se inventa A gente vai aprendendo aos poucos
improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia A gente cata um registro ali de
algueacutem que sabe e conta e outro aqui que ficou no pedaccedilo de papel Muita coisa se
perde na lembranccedila Principalmente na cabeccedila de um velho jaacute meio caduco como eu O
que este veterano cozinheiro pode dizer eacute que por mais sem graccedila por pior que seja o
paladar famiacutelia eacute prato que vocecirc tem que experimentar e comer Se puder saborear
saboreie Natildeo ligue para etiquetas Passe o patildeo naquele molhinho que ficou na
porcelana na louccedila no alumiacutenio ou no barro Aproveite ao maacuteximo Famiacutelia eacute prato que
quando se acaba nunca mais se repete (AZEVEDO 2008 p14)
Essa mistura de periacuteodos entre passado contado passado vivido e presente eacute marcada
pela referecircncia sobre o ingresso do arroz na histoacuteria da famiacutelia pelas matildeos de Tia Palma Os
tempos misturam-se ora mostrando Antonio em sua cozinha na atualidade ora Joseacute Custoacutedio
Maria Romana e Tia Palma em cenas vividas por eles
Quando Antonio se refere a um evento passado usando um verbo no presente pode-se
compreender que atraveacutes da memoacuteria ingressou em outro tempo de si mesmo ou de sua famiacutelia
A mistura entre lembranccedila e atualidade marca muitos dos relatos pois o limiar entre passado e
presente para o protagonista jaacute eacute impreciso assim como as experiecircncias que viveu e aquelas que
ouviu de Palma
Tia Palma era enfaacutetica ao descrever a cena o arroz que desabou sobre os noivos aacute saiacuteda
da igreja foi torrencial Eram punhados e mais punhados Chuva branca que natildeo parava
Nunca se viu tanta fartura em votos de felicidade (AZEVEDO 2008 p15)
-E tu dizes que Palma eacute que eacute a mal-educada
-Basta assunto encerrado Daacute-se o arroz para algueacutem Palma natildeo precisa saber
-O arroz eacute presente O arroz fica
-Pois estaacute bem Guarda esse maldito presente Com o tempo ele haacute de mofar se encher
de bichos e teraacutes que jogaacute-lo fora
-Ouve bem meu querido Joseacute Custoacutedio este arroz eacute amor e puro amor Natildeo haacute de se
estragar (AZEVEDO 2008 p21)
O protagonista recorda-se das vivecircncias com Tia Palma na cadeira em que essa lhe
contava as histoacuterias sobre o arroz e tantas outras Ouvir Palma era vivido por Antonio como se
assistisse a uma peccedila de teatro
A expressatildeo no rosto natildeo daacute a menor pista A histoacuteria de hoje seraacute triste Que vozes
faraacute Que cenaacuterio me apresentaraacute ao levantar as cortinas A sala de jantar Uma ruela de
Viana do Castelo Seraacute dia SeraacuteTia Palma pigarreia faz pequena pausa comeccedila com
gravidade
Primeiro ato Tarde da noite ela garante O coto de vela colado no tampo da mesa mal
ilumina os rostos Mamatildee e papai apenas alguns meses de casados natildeo tecircm o que
comer Nada nem vegetal nem fruta nem gratildeo nada Em voz baixa respeitosa mamatildee
sugere o arroz A resposta que recebe eacute a fuacuteria o murro na mesa e a gargalhada que
parece pranto
-O arroz de Palma
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Outra sonora gargalhada e laacutegrimas Papai parece fora de si
-O arroz de Palma nunca Castigo maldiccedilatildeo que seja Morro de fome mas aquele arroz
varrido do chatildeo nunca
-O arroz de Palma eacute abenccediloado Arroz plantado na terra caiacutedo do ceacuteu colhido da pedra
(AZEVEDO 2008 p26)
Tia Palma sempre contara a Antonio sobre o papel do arroz para sua histoacuteria familiar
fazendo do sobrinho o herdeiro de suas memoacuterias e do conhecimento a respeito da relevacircncia do
ingrediente para a continuidade da famiacutelia
-A fertilidade de vocecircs estaacute no arroz A benccedilatildeo que haacute onze anos ele recusou
-Eu jurei ao Joseacute que o arroz ficava mas natildeo seria comido Foi o combinado
-Pois eu natildeo jurei nada a ele
Mamatildee acha graccedila meio espantada meio com medo
-Palma Como vais fazer
-Primeiro ponho uma dose cavalar de purgante na comida dele que eacute pra desentupiacute-lo
por traacutes Depois trago-lhe uma comida bem levezinha para que ele se recupereUma
canjinha especial bem magrinha como ele gosta Uma xiacutecara de arroz eacute o quanto basta
-Uma canjinha especial
O trato estaacute feito Os risos e o demorado do abraccedilo selam a cumplicidade (AZEVEDO
2008 p38)
Antonio lembra-se da cena em que quando crianccedila assegurou agrave Tia Palma que gostava
de arroz ingrediente crucial na conduccedilatildeo da narrativa Mostrava assim apreciar as histoacuterias
sobre o arroz contadas por ela e sabia desde entatildeo que esse era um elemento decisivo em sua
famiacutelia
E a cadeira jaacute eacute palco e se estamos assim abraccedilados eacute porque eu tambeacutem estou em cena e
agora a fala eacute minha Eacute a minha estreia Inesperada e tatildeo esperada estreia
-Natildeo fique preocupada Eu gosto de arroz De qualquer jeito grudado ou solto eu gosto
Com toda a verdade possiacutevel encerro a minha parte
-Ateacute puro sem feijatildeo sem nada eu gosto juro (AZEVEDO 2008 p28)
Cabe salientar o papel que esse elemento exerce na histoacuteria De acordo com Maria Eunice
Moreira no ensaio lsquoDe cozinhas sabores e famiacutelias em O arroz de Palmarsquo ldquo[] o arroz tem
funccedilatildeo especial na formaccedilatildeo do clatilde como o objeto maacutegico que acompanha a trajetoacuteria da
famiacuteliardquo (MOREIRA 2014 p162) Aleacutem de ser o ingrediente que vem de Portugal e atravessa
as geraccedilotildees eacute presente de matrimocircnio de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana e posteriormente de
Antocircnio e Isabel Eacute o fator que fertiliza o primeiro casal e que reuacutene o segundo no almoccedilo entre
as famiacutelias quando Antonio e Isabel comeccedilam sua aproximaccedilatildeo
Esse almoccedilo comeccedila a partir de uma carta de Antonio ao pai em que anuncia de forma
quase imperceptiacutevel o interesse por Isabel e ao final conta que estaacute levando ingredientes
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especiais na sua viagem agrave fazenda ldquoPS Estou levando boas postas de bacalhau azeite vinho
verde e outras tantas gulodices vindas de Portugalrdquo (AZEVEDO 2008 p85) Tia Palma como
sempre com a percepccedilatildeo aguccedilada aos movimentos dos familiares tem a ideia de aproveitar a
ocasiatildeo para convidar a famiacutelia de Isabel a um almoccedilo de confraternizaccedilatildeo
-Vocecircs natildeo fazem anos de casados no dia da chegada de Antonio Entatildeo Preparamos
um almoccedilo e convidamos o senhor Avelino dona Maria Celeste e Isabel que eacute quem
nos interessa
-Palma os Alves Machado nunca se sentaram conosco agrave mesma mesa Natildeo sei Sinto-me
um pouco constrangida Ainda mais aqui em nossa casa tatildeo modesta Satildeo muito bons e
generosos mas satildeo nossos patrotildees O mundo deles eacute laacute em cima na sede
-O Joseacute Custoacutedio e o senhor Avelino natildeo satildeo tatildeo amigos Entatildeo Qual eacute o problema
Acho inclusive que jaacute deveriacuteamos tecirc-los chamado haacute mais tempo Jaacute ouvi por diversas
vezes dona Maria Celeste dizer que o marido gosta do nosso Joseacute como a um irmatildeo
(AZEVEDO 2008 p87)
Tia Palma e Maria Romana comeccedilam assim a combinar o almoccedilo que ocorre com
sucesso Primeiro passo eacute o de abrir o saco de arroz o que as surpreende pelo estado saudaacutevel dos
gratildeos Sendo Isabel a filha dos donos da fazenda e Antonio o filho do funcionaacuterio de confianccedila
haacute um constrangimento inicial que se desfaz com a partilha da refeiccedilatildeo entre as famiacutelias O arroz
une Portugal e Brasil paiacuteses das duas famiacutelias atraveacutes de ingredientes portugueses e tempero
brasileiro mais uma vez estando representada a cozinha como metaacutefora
Essa ocasiatildeo cujo propoacutesito eacute aproximar famiacutelias e reduzir diferenccedilas representa a
comemoraccedilatildeo de aniversaacuterio de casamento de Joseacute Custoacutedio e Maria Romana bem como a visita
de Antonio agrave fazenda entatildeo morando no Rio de Janeiro Paul Ricoeur qualifica a comemoraccedilatildeo
dentro da caracteriacutestica mundanidade em par com reflexividade Esta mundanidade estaacute
associada agrave realizaccedilatildeo de rituais conforme jaacute visto Antonio alterna a lembranccedila sobre o relato de
Palma a respeito da combinaccedilatildeo entre ela e sua matildee com sua proacutepria recordaccedilatildeo sobre o almoccedilo
-Perfeito Veja Palma pegue
-Ceacuteus Quase 40 anos e ainda saudaacutevel
Mamatildee beija as matildeos de tia Palma
-Amor verdadeiro natildeo se estraga Eacute para sempre
-Trecircs quilos eacute o quanto basta Daraacute um belo arroz de bacalhau
-Eacute impossiacutevel que Antonio e Isabel natildeo se resolvam
O almoccedilo eacute um sucesso Os Alves Machado chegam um pouco cerimoniosos mas logo
com tantos comes e bebes somos a mesma famiacutelia (AZEVEDO 2008 p88)
O papel do arroz na histoacuteria seraacute tambeacutem o de testemunhar a uniatildeo fiacutesica de Antonio e
Isabel agrave beira do lago antes do casamento
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-Eu sou o dono do arroz que tambeacutem eacute seu dona Isabel
-DonaPor acaso estamos casados
Sim estamos casados O Deus do azul sabe que estamos O lago menor sabe que
estamos O sangue e o arroz sabem que estamos (AZEVEDO 2008 p105)
Outra ocasiatildeo em que o arroz assume papel de ritual eacute quando o casal ganha de Joseacute
Custoacutedio Maria Romana e Palma o presente com nova dedicatoacuteria atualizada revisitando a
primeira feita por Palma Seraacute portanto o herdeiro do arroz ofertado pela Tia Palma a seus pais
junto a Isabel jaacute que o casal ganha o arroz como presente por seu matrimocircnio
Quero distacircncia de religiotildees mas respeito rituais Influecircncia de tia Palma admito Meu
cafeacute da manhatilde eacute sagrado O ritual eacute sempre o mesmo a hora a xiacutecara o pocircr o leite
primeiro o escurececirc-lo depois no ponto certo o abrir o patildeo o tirar o miolo
(AZEVEDO 2008 p127)
Individual ou coletivo o ritual eacute conexatildeo e cumplicidade [] Concluo que haacute sempre
algo de autoritaacuterio nos rituais Mas neles natildeo haveraacute tambeacutem algo que emociona Natildeo
haveraacute algo de belo e poeacutetico (AZEVEDO 2008 p127)
O arroz e todo o simbolismo que envolve na formaccedilatildeo dessa famiacutelia seraacute transmitido a
Antonio e Isabel em ocasiatildeo formal como desejam seus pais e Tia Palma
E o arroz Eacute o arroz Tia Palma quer que a entrega dessa vez ganhe algum ritual
Mamatildee e papai concordam Natildeo satildeo apenas os oito quilos que contam O presente de
casamento tem agora o peso da histoacuteria Portanto natildeo seraacute dado de modo informal
como aconteceu em Viana do Castelo (AZEVEDO 2008 p128)
O ritual de transmissatildeo do arroz eacute celebrado com a dedicatoacuteria atualizada e assinada por
seus pais e por Tia Palma eacute ela que faz a cerimocircnia de entrega ao sobrinho e agrave Isabel repetindo o
gesto feito na oferta do presente a Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu matrimocircnio
-Isabel e Antocircnio meus queridos este arroz que haacute quase 40 anos foi dado como
presente de casamento agrave minha cunhada Maria Romana e ao meu irmatildeo Joseacute Custoacutedio
por nossa vontade agora vos pertence Fazemos votos de que a tradiccedilatildeo continue e de
que todo o amor aqui contido chegue agraves geraccedilotildees futuras
Mamatildee potildee os oacuteculos lecirc a dedicatoacuteria atualizada
lsquoEste arroz-plantado na terra caiacutedo do ceacuteu como o manaacute do deserto e colhido da pedra- eacute
siacutembolo da fertilidade e do eterno amor Essa eacute a nossa benccedilatildeo
Palma Maria Romana e Joseacute Custoacutedio
Fazenda Santo Antocircnio da Uniatildeo em 13 de junho de 1946rsquo
Protegido pelo pano branco o arroz passa agraves nossas matildeos (AZEVEDO 2008 p130-
131)
Ainda no que concerne ao papel do ingrediente como elemento com atributo de ritual estaacute
a cena em que Antonio lecirc a receita em seu caderno do arroz de lentilhas de Tia Palma escrita
por ela com recomendaccedilotildees O aspecto a ser ressaltado nesse ponto estaacute principalmente na
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forma de apresentaccedilatildeo da receita que indica a importacircncia de recitar os trechos durante a feitura
do prato
Antonio meu querido lava bem as lentilhas em aacutegua corrente enquanto recitas
lsquotrepadeira trepadeirabeijo-te as folhas penadas e as flores violaacuteceas trepadeira
trepadeiranatildeo estou ao fundoestou ao frescoestou agrave beiraeacutes fortuna eacutes sauacutede eacutes
companheiratrepadeira trepadeira eacutes amor amigo eacutes paixatildeo verdadeirarsquo
Feito isso respira fundo trecircs vezes e solte o ar pela boca Deixa teu corpo sentir o
benefiacutecio Potildee as lentilhas em tacho com bastante aacutegua jaacute temperada de sal Leva ao
lume alto ateacute ferver Ao ferver abaixa o lume e deixa cozinhar ateacute que as lentilhas
estejam macias
Escorre a aacutegua da fervura E enquanto ela se vai diz com voz de certeza lsquoaacutegua
fervidaaacutegua de sal e de vidaaacutegua boa que seguetoma teu rumofertilizarsquo
(AZEVEDO 2008 p146-147)
A recomendaccedilatildeo de que faccedila as recitaccedilotildees ao cozinhar o prato traz a reflexatildeo sobre o
exposto por Mircea Eliade sobre a relevacircncia de recitar os mitos exposta anteriormente ldquo[]
recitando ou celebrando o mito da origem o indiviacuteduo deixa-se impregnar pela atmosfera
sagradardquo (ELIADE 2011 p21) Haacute outra referecircncia a esse autor que merece ser salientada
pensando-se nos trechos a serem recitados como os cantos a que Eliade se refere ldquoA
recapitulaccedilatildeo atraveacutes dos cantos e da danccedila eacute simultaneamente uma rememoraccedilatildeo e uma
reatualizaccedilatildeo ritual dos eventos miacuteticos essenciais ocorridos desde a Criaccedilatildeordquo (ELIADE 2011
p27)
Laura Esquivel escreve no ensaio intitulado lsquoEl manaacute sagradorsquo em seu livro de ensaios
Iacutentimas suculencias-Tratado filosoacutefico de cocina sua perspectiva sobre a relaccedilatildeo entre a comida
e os rituais corroborando a importacircncia da cozinha como espaccedilo simboacutelico
Talvez natildeo haja muita diferenccedila entre falar de comida e falar de religiotildees Quase em
todas elas umas e outras se faz presente a divindade atraveacutes dos alimentos De fato natildeo
podemos negar que um rito obrigado de quase toda religiatildeo eacute o momento de comer e de
beber a deidade ou para a deidade O sentido profundo da alimentaccedilatildeo em alguma
medida tem a ver com nossa sede de eternidade cifrada na manutenccedilatildeo cotidiana da vida
Talvez por isso todos os deuses tenham deixado sua presenccedila contida nos alimentos
Nesse sentido nos alimentamos para viver e por viver O desfrute da comida tem
lampejos de vida eterna Mas natildeo soacute eacute fundamental o ato em si de comer tambeacutem o eacute a
cerimocircnia que implica preparar e compartilhar os alimentos A cerimocircnia ritual que se
realiza em torno da mesa eacute um ato de profunda e antiga significaccedilatildeo religiosa
(ESQUIVEL 2014 p77)
Entretanto natildeo apenas de comemoraccedilotildees eacute constituiacuteda a funccedilatildeo do arroz na narrativa
Algumas circunstacircncias satildeo provocadas pela representaccedilatildeo desse ingrediente na histoacuteria como as
diferenccedilas entre o protagonista e seus irmatildeos a tentativa de seus filhos Nuno e Rosaacuterio
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mexerem no gratildeo derrubando-o na vitrine do restaurante e o deflagrar das emoccedilotildees da cunhada
em relaccedilatildeo a Antonio quando esta rouba uma porccedilatildeo do arroz para ter um pedaccedilo de Antonio
consigo
-Senti forte ciuacuteme de Isabel Inveja raiva tudo E ainda por cima era obrigada a
esconder o que sentia Quando vocecirc fez a vitrine iluminada no restaurante soacute pra expor o
arroz passei a acreditar que seria possiacutevel ter ao menos um punhadinho daquela
felicidade
-Vocecirc ainda tem ele
-Natildeo
-Natildeo
-Fiz do meu jeito Preparei ele na aacutegua e sal e comi Antes pedi a Deus que me desse um
pouco de vocecirc tambeacutem Nem que fosse por um dia
Amaacutelia torna a recostar a cabeccedila no meu peito Nada mais eacute dito Ou se eacute dito natildeo deixa
registro Acho que cochilamos Levantamo-nos da cama com o desprendimento de um
encontro rotineiro (AZEVEDO 2008 p217)
Entre rememoraccedilotildees e devaneios Antonio entrelaccedila retalhos do passado agrave sua percepccedilatildeo
sobre o presente a finitude as lembranccedilas recentes que se confundem o fluxo de consciecircncia
Reflete sobre o que faz ali na cozinha preparando o almoccedilo familiar e ao mesmo tempo
reconstroacutei lembranccedilas antigas que compuseram sua atualidade
Se me perguntarem natildeo sei dizer o que comi ontem no almoccedilo Mas sou capaz de
reproduzir diaacutelogos inteiros da minha juventude quando esta fazenda ainda era do
senhor Avelino e eu ainda morava na casa laacute de baixo com tia Palma meus pais e meus
irmatildeos Gozado isso Vaacute entender Memoacuterias antigas Niacutetidas perfeitas cheias de
miacutenimos detalhes cheiros e sons ateacute Inclusive as experiecircncias ancestrais que natildeo vivi
as histoacuterias laacute de Portugal que me foram contadas todas aqui dentro de cor e salteado
Fatos recentes Coitados Vatildeo se segurando em mim como podem (AZEVEDO 2008
p143)
A constataccedilatildeo de seus 88 anos daacute ao protagonista a consciecircncia de sua condiccedilatildeo de idoso
aceitando as falhas de lembranccedila mas natildeo aquelas em sua capacidade como cozinheiro
experiente
Natildeo quero vocecirc metida aqui dentro da cozinha Por favor Isabel Natildeo eacute nada disso Eacute
porque vocecirc fica zanzando para laacute e para caacute Potildee a matildeo prova daacute palpite Me atrapalha
Fico doido natildeo quero Nem vocecirc nem ningueacutem Deixa que eu dou conta do recado
Tantos anos agrave frente laacute do restaurante chefe com vaacuterios precircmios natildeo basta Eacute preciso
mais Idoso coisa nenhuma Dispenso o eufemismo bobo Sou velho isso sim Eu sei
natildeo precisa dizer A vista natildeo ajuda muito nem as pernas nem os reflexos Mas espera
aiacute gagaacute ainda natildeo estou Tenho forccedila nas matildeos Acho que ainda posso mexer uma
panela Quatro panelotildees concordo Fica tranquila que natildeo vou me queimar Nem a
comida (AZEVEDO 2008 p144-145)
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A capacidade de Antonio com a cozinha comeccedilou com os aprendizados que teve com sua
tia na juventude e consolidou-se com a praacutetica Tal aquisiccedilatildeo lembra o referido sobre o par
memoacuteriahaacutebito na fenomenologia da memoacuteria proposta por Paul Ricoeur A capacidade
representa o elemento haacutebito pois eacute primordialmente construiacuteda a partir da atividade rotineira de
um atributo Talvez por isso na narrativa Antonio aceite as falhas de memoacuteria inerentes ao
envelhecimento mas natildeo a ideia de diminuiccedilatildeo daquilo que eacute seu por meacuterito por conquista com
esforccedilo dedicaccedilatildeo e sobretudo repeticcedilatildeo Antonio recorda-se de quando partiu para encontrar
trabalho na capital certo de que seguiria a atividade de cozinheiro
-O que eacute que significa isso agora Pra quecirc essa mala Antonio -Calma calma que eu natildeo vou pra guerra -Eu sabia Estaacutes indo embora por causa dessa moccedila Isabel E eacute tudo culpa da Palma
-Tenho 21 anos meu pai Sei muito bem o que faccedilo A vida do campo natildeo eacute para mim
Vou para a capital Farei amigos laacute E amigas
-Mas assim tatildeo de repente
-Trabalharei em restaurante conhecerei pessoas influentes ficarei conhecido e serei
proacutespero
-Para quecirc tanto entusiasmo Para lavar pratos Servir mesa
-Tambeacutem Mas natildeo eacute soacute isso Quero cozinhar Quem sabe um dia consigo abrir meu
proacuteprio negoacutecio
Papai se irrita
-Como cozinhar De onde tiraste essa ideia maluca (AZEVEDO 2008 p67)
O aprendizado com a tia eacute representativo da memoacuteria coletiva que se perpetua em um
grupo neste caso o familiar para a manutenccedilatildeo de um saber entre seus membros Essa memoacuteria
coletiva na histoacuteria eacute expressa pelo cozinhar como um conhecimento transmitido mas
principalmente pela histoacuteria que envolve o arroz nessa famiacutelia A narrativa dessa histoacuteria ao
longo das geraccedilotildees constitui tambeacutem a representaccedilatildeo dessa espeacutecie de memoacuteria na famiacutelia de
Antonio
Para aleacutem do que aprendeu com Tia Palma houve o que a praacutetica lhe ensinou
trabalhando em restaurantes ateacute que pudesse montar o proacuteprio negoacutecio Lembra-se de cenas do
percurso que seguiu ldquoO mar de mesas eacute convite agrave aventura Sigo Na copa e na cozinha o
barulho de louccedilas e talheres eacute intempeacuterie A vozearia eacute a marujada a postos que me recebe Esta eacute
a minha gente natildeo tenho duacutevidas Este eacute o meu barco e []rdquo (AZEVEDO 2008 p79)
Antonio tem em Palma seu referencial chamando por ela quando se vecirc em desafios
evocando lembranccedilas dos seus ensinamentos
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Transpiro o nervoso que vem de dentro Tia Palma por favor me ajuda lsquoO que o corpo
potildee para fora nos purificarsquo Saacutebia Tia Palma natildeo me falta nunca A cenoura e a batata jaacute
cortadas os tomates em rodelas e sem as sementes a cebola picada bem miudinha todos
nas respectivas vasilhas Mais alguma coisa Isso e aquilo Pronto acabei Natildeo me
canso Ao fim do expediente ainda haacute focirclego e entusiasmo de sobra Reluto em desfazer
o laccedilo do avental Jaacute (AZEVEDO 2008 p80)
Uma das cenas da obra que ilustra o entrelaccedilamento entre a memoacuteria individual e a
coletiva eacute no enterro dos pais de Isabel quando Antonio canta uma canccedilatildeo tradicional
portuguesa pensando fazecirc-lo em voz baixa como forma de homenagem Enquanto canta suas
memoacuterias tocam-lhe a ponto de natildeo perceber que o faz em voz alta E aqui estaacute o referido
entrelaccedilamento as demais pessoas presentes no enterro tambeacutem se emocionam e cantam em
coro Presentes ali estatildeo as proacuteprias lembranccedilas e aquelas de suas famiacutelias
Numa casa portuguesa fica bem
patildeo e vinho sobre a mesa
Quando agrave porta humildemente bate algueacutem
Senta-se agrave mesa coacutea gente
Fica bem essa fraqueza fica bem
que o povo nunca a desmente
A alegria da pobreza
estaacute nesta grande riqueza
de dar e ficar contente
(AZEVEDO 2008 p193)
Antonio segue a cantoria da muacutesica que pensa estar cantando para si Entatildeo percebe ter
cantado em voz alta e a emoccedilatildeo que causou Letra e muacutesica satildeo parte de sua memoacuteria individual
pela origem da famiacutelia e da memoacuteria coletiva dos presentes ao enterro que cantam com ele a
tradiccedilatildeo
Em algum momento tenho a impressatildeo de que algumas pessoas me acompanham e que
ao final todos ali cantamos juntos emocionados lsquoUma casa portuguesarsquo Volto ao enterro
com aplausos Reflexo condicionado eu mesmo bato palmas Isabel aos prantos me
beija agradecida pela homenagem inesperada Olho ao redor todos choram
copiosamente Natildeo eacute possiacutevel Seraacute que em vez de falar alto comigo mesmo cantei
alto Soacute pode ser (AZEVEDO 2008 p194)
Na volta do enterro o papel da comida em nutrir e acalentar eacute referido atraveacutes da
expressatildeo empregada por Antonio lsquopedimos a ela que nos aqueccedila algo para pocircr no estocircmagorsquo
como segue no trecho abaixo ldquoQuando chegamos em casa Nuno e Rosaacuterio jaacute estatildeo dormindo
Conceiccedilatildeo garante que ficaram quietinhos natildeo deram trabalho algum Pedimos a ela que nos
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aqueccedila algo para pocircr no estocircmago Ela diz que fez uma sopinha de legumes e jaacute nos chamardquo
(AZEVEDO 2008 p194)
O protagonista segue a narrativa evocando lembranccedilas reconstruindo impressotildees
reconhecendo a si mesmo atraveacutes da costura de retalhos da memoacuteria Estaacute em sua cozinha mas
viaja para muitos periacuteodos de sua vida visita a si mesmo em muitas eacutepocas lembra dos pais da
tia dos sogros dos irmatildeos dos filhos ateacute o momento atual Entatildeo na cozinha da fazenda aos 88
anos prepara com esmero os gratildeos de memoacuteria restantes em cozimento nas panelas Antonio
aguarda o encontro do passado com o presente no almoccedilo de famiacutelia Quando esse acontece
todos nas mesas entusiasmo e lembranccedila espalham-se na famiacutelia
Benccedilatildeo vivermos o bastante para poder dividi-lo assim irmatildemente sem conta de
padeiro nem laacutepis engatilhado atraacutes da orelha Olha soacute a cara da Leonor e a do Nicolau e
a do Joaquim Velhos bobos Nem sonhavam que ainda iam provar do arroz de Tia
Palma E agora choram desse jeito Natildeo eacute cebola nada que eu sei Eacute muita lembranccedila e
sonho tudo misturado agrave moda da casa Fiz de propoacutesito para pegar vocecircs de surpresa E
para a Amaacutelia - me pergunto- que gosto teraacute esse segundo arroz Qual o sabor de um
arroz assim permitido e compartilhado A garotada pode achar que somos velhos gagaacutes
e que essa histoacuteria eacute pura invencionice Impossiacutevel um arroz durar tanto a ciecircncia isto a
ciecircncia aquilo Eu natildeo ligo a miacutenima Vocecircs ligam Entatildeo oacutetimo Vamos comer agrave
vontade que haacute arroz para todos Joaquim meu irmatildeo me passa o azeite (AZEVEDO
2008 p352)
No trecho seguinte ao perguntar-se lsquoquantas vezes maisrsquo o protagonista expotildee sua
percepccedilatildeo quanto agrave finitude o tempo que ainda teraacute para novas cenas como aquela ldquoNoacutes
adultos continuamos em volta das mesas agraves voltas com as lembranccedilas Porque nos apetecem
repetimos o doce repetimos o vinho repetimos as histoacuterias Quantas vezes maisrdquo (AZEVEDO
2008 p356)
Ao longo da narrativa Antonio evoca histoacuterias lembranccedilas que lhe surgem
espontaneamente acionadas por outras por devaneios e por emoccedilotildees De acordo com Maria
Eunice Moreira em seu ensaio
A memoacuteria de Antonio organiza a configuraccedilatildeo caoacutetica da accedilatildeo externa dando um
sentido ao amontoado de fatos e episoacutedios jaacute vividos Nessa seleccedilatildeo privilegia natildeo a
memoacuteria anotada e escrita em cadernos ou diaacuterios mas aquela mais viva mais seletiva e
mais afetiva (MOREIRA 2014 p169)
No referido ensaio o fragmento acima corresponde agrave reflexatildeo de Antonio sobre a forma
como suas lembranccedilas lhe aparecem
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A memoacuteria que vai para o diaacuterio fica toda arrumadinha linear dia mecircs e ano Agraves vezes
horas e ateacute minutos constam do registro Mas quando velho a gente vai e consulta o
caderno se espanta com o montatildeo de coisa que jaacute nem faz sentido e estaria apagado natildeo
fosse a tinta A memoacuteria puxada da cabeccedila natildeo Eacute esforccedilo de selecionar soacute o que presta
o que nos eacute querido Natildeo eacute discurso ensaiado e lido Eacute fala de improviso com todos os
erros e tropeccedilos que a ousadia pode causar (AZEVEDO 2008 p248)
O que Antonio estaacute referindo eacute o conjunto de suas lembranccedilas na despensa da memoacuteria
aquelas que o identificam por constituiacuterem etapas de sua vida atraveacutes delas se reconhece
assume a consciecircncia de si Mesmo com o embaralhamento entre lembranccedilas e devaneios o
protagonista faz um balanccedilo de sua existecircncia enquanto prepara o almoccedilo familiar Estaacute na
cozinha porque esta eacute seu refuacutegio seu lugar no mundo Prepara o arroz para compartilhaacute-lo
assim como sua Tia Palma partilhava com ele suas histoacuterias sentada na quarta cadeira Os
trechos a seguir representam com nitidez o papel da comida agrave mesa para Antonio Mais uma vez
estatildeo presentes as lembranccedilas de tempos vividos e o arroz no prato como na frase lsquoo arroz tem
que vir sempre na frentersquo
A descriccedilatildeo de comidas caseiras do esmero de Conceiccedilatildeo ao arrumar a mesa da atitude
de Isabel em servi-lo todos satildeo elementos construiacutedos ao longo do tempo e tecircm como raiz as
experiecircncias familiares transformadas em memoacuteria O lsquocheiro gostoso da comidinha caseirarsquo eacute o
elemento sensorial que o acolhe na atmosfera de casa e simultaneamente o leva a viajar em suas
lembranccedilas O lsquoalmoccedilo de famiacutelia cotidianorsquo eacute o elemento que conduz o protagonista a cenas
semelhantes no passado como quando seus filhos eram crianccedilas Refeiccedilatildeo para Antonio eacute a
famiacutelia na mesa Assim a comida e a famiacutelia mais uma vez estatildeo vinculadas para ele como
sinocircnimos De recordaccedilatildeo de aconchego de partilha do gosto e do cheiro bom
Conceiccedilatildeo chega e anuncia que o almoccedilo estaacute indo para a mesa Graccedilas a Deus Meu
estocircmago jaacute estaacute roncando Puxo Rosaacuterio do sofaacute
-Vamos
E vamos todos levados pelo cheiro gostoso da comidinha caseira Ao nos sentarmos agrave
mesa impossiacutevel natildeo reparar no costumeiro apuro O caimento da toalha Os pratos os
copos os talheres afastados na medida certa Os guardanapos bem dobrados agrave esquerda
A cesta de patildees posta com arte Natildeo eacute almoccedilo para visitas Eacute almoccedilo de famiacutelia
cotidiano- esmero da Conceiccedilatildeo que ama tudo o que faz Laacute vem ela de novo da
cozinha pousa do meu lado a terrina do feijatildeo fumegando me daacute aquele sorriso de
missatildeo bem cumprida
-Botei bastante paio Ontem o senhor ficou revirando a concha dizendo que dava
precircmio para quem encontrasse um (AZEVEDO 2008 p311)
A cena pode ser compreendida sob a perspectiva de Laura Esquivel no ensaio jaacute referido
quando a autora exprime sua visatildeo sobre a comida e a partilha da mesa
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E ainda que natildeo sejamos religiosos creio que para nenhum de noacutes seraacute estranho pensar
que atraveacutes dos aromas que compartilhamos com nossos semelhantes dos sabores dos
alimentos e da substancial presenccedila da divindade neles os seres humanos podemos ter
dia apoacutes dia uma pequena antecipaccedilatildeo do paraiacuteso (ESQUIVEL 2014 p78)
A ideia de Esquivel sobre a lsquoantecipaccedilatildeo do paraiacutesorsquo coincide com o sentimento de
Antonio sobre a cozinha Para o protagonista essa representa a casa o sabor a famiacutelia Simboliza
o que Gaston Bachelard refere na frase ldquoPode-se demonstrar as primitividades imaginaacuterias
mesmo a respeito desse ser soacutelido na memoacuteria que eacute a casa natalrdquo (BACHELARD 2012 p47)
Pode-se complementar essa frase com outra ideia do autor ldquo[] a casa natal eacute uma casa
habitadardquo (BACHELARD 2012 p33) Ao estar na cozinha ou na sala de jantar ao estar sentado
agrave mesa a emoccedilatildeo eacute a de estar em casa naquela que primeiro conheceu como casa a fazenda A
casa natal eacute e sempre seraacute habitada pelas lembranccedilas Esse espaccedilo corresponde a um lugar de
memoacuteria conforme referido por Ricoeur A casa natal eacute um ser soacutelido na memoacuteria porque ela
conteacutem as primeiras vivecircncias afetos impressotildees Eacute ali que a vida comeccedila que se enraiacuteza dali
vecircm as lsquoprimitividades imaginaacuteriasrsquo e as lembranccedilas que tornaratildeo o sujeito em quem ele eacute pela
consciecircncia de si que a memoacuteria propicia
Minha mulher eacute paciente entende como funciono Ela pega meu prato e vai me
servindo um pouco disto um pouco daquilo mas antes de tudo o arroz- indispensaacutevel-
e o feijatildeo por cima Eu sei que natildeo eacute o certo Mas eacute assim que eu gosto o feijatildeo por
cima nunca do lado Se puser o feijatildeo primeiro e depois o montinho do arroz tambeacutem
implico O arroz tem que vir sempre na frente depois o feijatildeo molhando aiacute sim eacute
perfeito Sempre ensinei bons modos aos meus filhos mas nunca os proibi de misturar a
comida toda no prato de uma vez Se eu misturo como proibir Ai se fizeacutessemos isso na
frente de Isabel Bom nem pensar Em dias de ensopadinho de vagem com carninha
moiacuteda ou de chuchu com camaratildeo era verdadeiro supliacutecio Nuno e eu sofriacuteamos
horrores Queriacuteamos porque queriacuteamos misturar tudo de uma vez com o arroz Natildeo
podiacuteamos Era proibido por lei Isabel natildeo transigia Tiacutenhamos que ir misturando aos
pouquinhos puxando com o garfo e aiacute levar agrave boca Depois voltar misturar mais um
pouquinho puxando com o garfo e tornar a levar agrave boca Um sacrifiacutecio Depois de
nossos filhos adultos a lei do proibido misturar foi abolida E cada um liberado para
comer do seu jeitinho informal
Jaacute servido espeto o paio deliacutecia e retomo a conversa (AZEVEDO 2008 p314)
Chega a hora de Antonio apoacutes revisitar histoacuterias vividas e contadas pela memoacuteria Na
cozinha representaccedilatildeo de sua casa natal ele falece ldquoSempre acompanhamos com olhos de
saudade o balatildeo que sobe ceacuteu afora e se mistura no azul Acontece com todos Depois satildeo soacute
histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras Famiacutelia eacute prato que quando se acaba nunca
mais se repeterdquo (AZEVEDO 2008 p361)
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Histoacuterias uns poucos retratos e receitas caseiras elementos que aludem agraves lembranccedilas
Mais uma vez a cozinha eacute representada ao falar-se em memoacuteria atraveacutes das lsquoreceitas caseirasrsquo
Essas satildeo registros de quem habitou os campos de forno-e-fogatildeo e deixou por escrito o como-
se-faz O seu
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2 COZINHA E PRAZER EM POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE
A sacola de crochecirc da voacute era perturbadora da ordem ali de dentro ela tirava varenikes
beigales mondales knishes strudels um perfume que ia nos buscar no mais remoto
quarto da casa pratos fundos de louccedila branca e pesada transbordantes de fartura Noacutes
nos reuniacuteamos em torno da mesa em torno da voacute em torno dos pratos - em torno da
comida que ela tratava como uma cerimocircnia de milagre E ela abria os braccedilos para nos
acarinhar a todos e nos beijava com os laacutebios finos o haacutelito de menta e pronunciava
palavras boas palavras de quem traz alviacutessaras feliz como quem pode dar o seio a um
bebecirc minhas crianccedilas a voacute trouxe comida pra vocecircs (MOSCOVICH 2006 p93-94)
Prazer eacute sentimento do corpo Bem-estar e gozo que se quer repetir Puro deleite acorda
os sentidos Onda repentina epifania de cores aromas gostos texturas sons Nasce sem aviso
deixa marcas faz pulsar em ritmo de quero-mais Nasce do encontro amoroso do saborear de um
prato e de tantas outras vivecircncias Estaacute na taccedila do vinho escuro e aveludado na mordida do mil-
folhas ao mesmo tempo crocante e macio O prazer desperta como se fosse dia novo entusiasma
provoca ecoa em cada parte nossa Comida eacute coisa prazerosa toca a vida sensorial alegra ceacutelulas
e anima A cozinha espaccedilo fiacutesico e territoacuterio afetivo evoca gostos desejos lembranccedilas prazer
O preparo das receitas o deleite dos pratos a partilha da mesa as conversas amenas durante a
refeiccedilatildeo todos inerentes ao universo culinaacuterio E depois vem a culpa a roupa que aperta o
regime por ordens meacutedicas Culpa e prazer inimigos entrelaccedilados
21 POR QUE SOU GORDA MAMAtildeE
Por que sou gorda mamatildee eacute o romance escrito por Ciacutentia Moscovich em 2006 e
publicado pela Editora Record com uma narradora em primeira pessoa de quem o leitor natildeo
sabe o nome ao longo da obra Ela passa a limpo as histoacuterias de famiacutelia de origem judaica e a
sua proacutepria histoacuteria em uma carta para sua matildee Dessa o leitor tambeacutem natildeo sabe o nome da
primeira agrave uacuteltima paacutegina
O conflito central apresenta a dificuldade da narradora-personagem com seu aumento de
peso vinte e dois quilos em quatro anos e o sofrimento em face da necessidade de fazer dieta
Natildeo se trata apenas das privaccedilotildees de ter de fazer dieta Trata-se da dor emocional por precisar
fazer dieta de novo A repeticcedilatildeo de situaccedilotildees em que o engorde esteve presente em sua vida
ligado ao papel do comer em sua famiacutelia faz com que acuse sua matildee muitas vezes pela situaccedilatildeo
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a que chegou Por essa oferecer comida demais Natildeo Por oferecer afeto de menos Ao contraacuterio
da matildee a Voacute Magra sua avoacute materna eacute muito carinhosa com ela e seus irmatildeos e aleacutem disso
sempre aparece com a sacola de crocheacute plena de doces da cozinha judaica O papel da avoacute parece
ser o de suprir as faltas da matildee e as supre em excesso no que tange ao reforccedilo da gula
A narrativa pode ser a expressatildeo de uma catarse atraveacutes da escrita uma decisatildeo
confessional da narradora ou sua atitude ora acusatoacuteria ora carente na direccedilatildeo de sua matildee Em
uma mistura de cada uma dessas formas o livro traz o entrelaccedilamento das memoacuterias das
emoccedilotildees e das etapas objetivas em sua jornada de emagrecimento como narra a protagonista no
proacutelogo ao expor para sua matildee que a escrita seraacute dirigida a ela
Tenho medo mas estou prestes a pocircr um ponto final e a aticcedilar a pluma das lembranccedilas
Luta contra o gelo do tempo O proacutelogo em seus estertores depois comeccedila
Mamatildee me endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar
esse territoacuterio metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora
Quero voltar a ter um corpo
Haacute um livro a ser escrito e nele os fatos seratildeo fruto da prestidigitaccedilatildeo ainda que
imperfeita Respostas possiacuteveis ilusatildeo para secar as maacutegoas e o corpo O proacutelogo
termina Depois jaacute iniciou Comeccedilo num ponto de intrerrogaccedilatildeo
Por que sou gorda mamatildee (MOSCOVICH 2006 p19)
A narrativa eacute contada em vinte e cinco capiacutetulos duzentas e cinquenta e uma paacuteginas
vinte e dois quilos O primeiro capiacutetulo apresenta em primeira pessoa um entrelaccedilamento
essencial ao conflito da personagem a histoacuteria da origem de sua famiacutelia na Europa passando
fome em vilarejos judeus a histoacuteria de sua Voacute Magra com o prazer da comida e sua proacutepria
histoacuteria de infacircncia com os irmatildeos na hora das refeiccedilotildees
Segue-se ainda nesse capiacutetulo um desabafo com uma lista de aspectos pejorativos do
sujeito gordo Satildeo frases que costumamos ouvir com grande frequecircncia sobre os indiviacuteduos com
excesso de peso e que eles mesmos muitas vezes referem em tom entre o mea culpa e a auto
ironia Esse eacute o tom usado pela narradora falando em sua voz o que atribui ao olhar alheio
Depois de apontar os defeitos dos gordos conta do comeccedilo de seu sacrifiacutecio com as restriccedilotildees
alimentares
Em seguida o escaacuternio daacute lugar agrave lembranccedila da morte de seu pai as consequecircncias que
tal perda teve na famiacutelia e sobretudo na relaccedilatildeo de sua matildee com os filhos Eacute o comeccedilo da voz
acusatoacuteria da narradora trazendo agrave tona fatos e sofrimentos na relaccedilatildeo familiar Aparece a
ausecircncia da matildee no cumprir de sua funccedilatildeo afetiva Seguem-se capiacutetulos de apresentaccedilatildeo da Voacute
Gorda do lado paterno da Voacute Magra e de sua histoacuteria frustrada de amor por um violinista russo
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do avocirc do pai dos irmatildeos de si mesma em vaacuterios tempos da vida e da balanccedila Presente e
passado alternam-se disputando espaccedilo nas paacuteginas porque para a personagem em sua carta agrave
matildee o passado eacute parte do peso em quilos de seu presente
Enquanto passa a limpo sua histoacuteria e suas maacutegoas a narradora vai contando vitoacuterias e
deslizes na dieta dores pela restriccedilatildeo alimentar e alegrias por conseguir emagrecer lentamente A
histoacuteria familiar evolui o momento em que o excesso de peso na infacircncia tornou-se foco de
preocupaccedilatildeo e de imposiccedilatildeo da dieta por parte do pai aparece como fato de destaque A
narradora em zigue-zague transita entre os periacuteodos de vida para encontrar respostas ora em
conversas dirigidas agrave matildee ora em diaacutelogos com seu proacuteprio mundo interno A escrita para a matildee
eacute em essecircncia um passar a limpo para si mesma a proacutepria histoacuteria de seu corpo Gula prazer
afeto e ausecircncia dores e perdas inclusive de maacutegoas e de peso eis o transcorrer da histoacuteria
narrada Esses elementos satildeo o fio condutor da narrativa das primeiras paacuteginas ateacute a evoluccedilatildeo ao
epiacutelogo Parte desse reproduzo abaixo
Mamatildee natildeo preciso perdoaacute-la por nada Natildeo me incomodo mais pela porccedilatildeo presente de
sua lavra e todo o esforccedilo de natildeo mais me incomodar foi por amor que eacute minha cura
Mais cinco quilos a bordo de uma bicicleta cor-de-rosa seratildeo perdidos Recuso-me a
remexer ainda mais no passado Natildeo se angustie mamatildee Noacutes duas sabemos que natildeo
vale a pena-falta que a senhora serenize seus dias e deixe tambeacutem de remexer o passado
Depois que eu colocar o ponto final por favor mamatildee natildeo deixe de recompor sua
alegria seu desejo e sua piedade A senhora perdoaraacute a vida E eu terei esquecido que
cheguei ateacute aqui apesar da senhora
[hellip] (MOSCOVICH 2006 p250)
Destaca-se sobretudo a verossimilhanccedila interna da obra Entre o proacutelogo e o epiacutelogo haacute
muitas histoacuterias contadas em uma soacute compondo uma linha de tempo na cronologia do calendaacuterio
e outra dentro da personagem Afinal de contas o tempo interno tem um ritmo proacuteprio que
obedece acima de tudo agraves leis da memoacuteria
A narradora-personagem consegue compreender suas interrogaccedilotildees ao entremear passado
e presente histoacuteria familiar e individual A narrativa multifacetada natildeo sai dos trilhos e eacute possiacutevel
acompanhar o diaacutelogo da personagem consigo mesma atraveacutes da carta para sua matildee A
descoberta dos elementos alusivos agrave presenccedila e agrave falta de prazer alimentar que permeiam a obra
conduzem ao primeiro aspecto do presente capiacutetulo o que eacute o prazer afinal
60
22 O PRAZER COMO FENOcircMENO BIOLOacuteGICO E CULTURAL
Para o psiquiatra e psicopatologista Karl Jaspers o prazer no campo da Fenomenologia
Psiquiaacutetrica pode ser compreendido como a realizaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees
orgacircnicas Para o referido autor o prazer consiste no equiliacutebrio psiacutequico na satisfaccedilatildeo e no bem-
estar Jaacute conforme os autores do artigo Psicopatologia do Prazer Lorenzo Pelizza e Franco
Benazzi o prazer pode ser considerado um fenocircmeno psiacutequico de muacuteltiplas facetas Em termos
geneacutericos esse eacute um forte sentimento que corresponde agrave percepccedilatildeo de uma condiccedilatildeo positiva
fiacutesica ou mental proveniente do organismo
As pesquisas que abordam o prazer satildeo recentes Apenas haacute algumas deacutecadas a ciecircncia
passou a contribuir para evidenciar os efeitos beneacuteficos desse fenocircmeno tanto no sentido proacute-
ativo (como fator que favorece o bem-estar psico-fiacutesico do indiviacuteduo e que promove o processo
de cura da doenccedila) quanto no protetor (como elemento fundamental que fornece ao sujeito os
recursos necessaacuterios para afrontar e superar as experiecircncias negativas e para prevenir o risco de
adoecer) (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
Do ponto de vista do estudo do prazer como elemento saudaacutevel destacamos seu papel
como fator de importante valor motivacional sob o enfoque das teorias evolucionistas
Reduzindo ao maacuteximo a explicaccedilatildeo seria possiacutevel entender seu papel da seguinte forma como
espeacutecie sentimos prazer na alimentaccedilatildeo e na relaccedilatildeo sexual para que mediante esta sensaccedilatildeo
tenhamos estiacutemulo para nutrirmo-nos e procriarmos A gratificaccedilatildeo do ceacuterebro que ocorre
atraveacutes da experiecircncia prazerosa motiva o indiviacuteduo a repetir os comportamentos que a tornam
viaacutevel como o comer Forma-se assim um ciclo no qual a comida promove prazer e este motiva
a procuraacute-la pela resposta cerebral gerando novamente o prazer e assim ocorre a manutenccedilatildeo do
comportamento com sucessivas repeticcedilotildees A propoacutesito desse ciclo os referidos autores
esclarecem
O mecanismo operante de reforccedilorecompensa age em sentido evolucionista para
conduzir os comportamentos adotados na direccedilatildeo de escopos adaptativos que sejam uacuteteis
para garantir a sobrevivecircncia do indiviacuteduo (por exemplo busca de comida ou de aacutegua)
eou a conservaccedilatildeo da espeacutecie (condutas reprodutivas) Para que atinja a eficaacutecia o
estiacutemulo de reforccedilo deve ser capaz de ativar as instacircncias psiacutequicas do prazer e o sistema
neurobioloacutegico de gratificaccedilatildeo cerebral (circuitos dopaminergicos mesoliacutembicos) sendo
deste modo vivido como experiecircncia prazerosa satisfatoacuteria e assumindo assim um
importante valor motivacional (PELIZZA BENAZZI 2008 p298-299)
61
Tal explicaccedilatildeo evolucionista eacute relevante para a compreensatildeo do prazer alimentar Como
espeacutecie devemos sentir prazer ao comer com o propoacutesito de termos estiacutemulo para mantermos a
constacircncia de uma alimentaccedilatildeo regular O prazer eacute o elemento que torna possiacutevel esta constacircncia
O socioacutelogo e escritor brasileiro Carlos Alberto Doacuteria acrescenta um dado relevante nesse
sentido ao mencionar o autor de A fisiologia do gosto Jean Anthelme Brillat-Savarin que
publicou a obra em 1825 relevante na literatura gastronocircmica Nessa ao referir-se aos cinco
sentidos Brillat-Savarin acrescenta o sentido geneacutesico sobre o qual Doacuteria reflete em seu livro A
culinaacuteria materialista
Este uacuteltimo eacute o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro
sendo a sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecie Este sentido diz ele foi ignorado ateacute o
seacuteculo XVIII sendo anexado ao (ou confundido com o) tato Ora a reproduccedilatildeo da
espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo
a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo ao sexo e ao comer eacute o prazer a
busca do agradaacutevel e este eacute o sentido muito especial que ele pretende indicar como
responsaacutevel pela gastronomia (DOacuteRIA 2009 p190 grifo do autor)
Assim a relaccedilatildeo de prazer do indiviacuteduo com a comida eacute tambeacutem de acordo com Brillat-
Savarin uma estrateacutegia de sobrevivecircncia da espeacutecie assim como o sexo A sensaccedilatildeo prazerosa
ligada ao alimento refere-se principalmente agrave percepccedilatildeo deste como tendo gosto agradaacutevel ou
seja ldquo[] aquilo que apraz aos sentidos mobilizados pela alimentaccedilatildeordquo (DORIA 2009 p192)
O estudo da obra de Carlos Alberto Doacuteria abre um campo de reflexatildeo relevante no que
tange ao fenocircmeno do prazer pois o autor o aborda pela perspectiva gastronocircmica referindo o
que torna um alimento prazeroso Ele menciona que de acordo com os modernos teoacutericos do
gosto ldquo[] o agradaacutevel que comemos depende do impacto favoraacutevel sobre todos os cinco
sentidosrdquo (DOacuteRIA 2009 p194)
Para explicar como um alimento se torna agradaacutevel ele comeccedila por definir o mundo
objetivo lsquoo mundo das coisas e das nossas aptidotildees fisioloacutegicas para percebecirc-lorsquo e o mundo
subjetivo lsquodos nossos valores crenccedilas e preferecircncias individuaisrsquo Entatildeo acrescenta o ponto
chave de sua reflexatildeo ldquoTomemos como hipoacutetese que o gosto se forma na relaccedilatildeo entre esses dois
mundos O gosto assim entendido eacute relacional e se refere ao que se passa em torno do ato
fisioloacutegico de comerrdquo (DOacuteRIA 2009 p194) A fim de aprofundar a ideia desta relaccedilatildeo expotildee
Ao explorar a noccedilatildeo de gosto partindo de sua dimensatildeo material isto eacute da relaccedilatildeo que
se estabelece entre o mundo e o homem por intermeacutedio do complexo aparato sensitivo
temos que entender tambeacutem que o gosto varia de indiviacuteduo para indiviacuteduo entre as
62
diferentes idades de um mesmo indiviacuteduo entre as classes sociais de cultura para
cultura e de uma eacutepoca para outra na mesma cultura Sabemos tambeacutem que permanece
um misteacuterio como nasce o desejo intenso de se comer determinado alimento ou como a
monotonia de uma dieta se instaura de modo a repudiarmos o alimento apoacutes um certo
tempo Nada disso se explica por razotildees puramente fisioloacutegicas (DOacuteRIA 2009 p195)
Assim na relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e o alimento agradaacutevel ao lsquocomplexo aparato
sensitivorsquo como define Doacuteria existem variaacuteveis como idade e cultura que interferem no modo
como a sensaccedilatildeo prazerosa eacute percebida Quanto ao aspecto cultural por exemplo o autor refere
O gosto partilhado por vaacuterias pessoas ndash sejam membros de uma famiacutelia de uma
comunidade de uma eacutepoca- sugere uma construccedilatildeo coletiva que natildeo se confunde com a
experiecircncia gustativa de cada um O caraacuteter afetivo da cozinha familiar eacute um modelo de
socializaccedilatildeo do gosto que todos conhecemos Ningueacutem faz determinado prato igual a
nossa matildee ou avoacute [] (DOacuteRIA 2009 p195)
Em diversas famiacutelias de uma dada geraccedilatildeo o lsquobife agrave milanesa da voacutersquo eacute emblemaacutetico em
representar a explicaccedilatildeo do autor Ao que parece o prazer reside no preparo pela avoacute mais do
que no prato em si A avoacute de cada famiacutelia seria a responsaacutevel pelo melhor bife agrave milanesa do
mundo de acordo com os respectivos netos Essa percepccedilatildeo reflete o que Doacuteria menciona como
lsquoo caraacuteter afetivo da cozinha familiarrsquo termo que coincide com o papel da Voacute Magra
personagem da obra em estudo neste capiacutetulo Outra consideraccedilatildeo relevante do autor acerca da
construccedilatildeo do universo do gosto eacute a de que este ldquo[] eacute expressatildeo da educaccedilatildeo do paladar e dos
demais sentidos conformados culturalmente para a apreciaccedilatildeo do que comemosrdquo (DOacuteRIA 2009
p196)
Deste modo eacute possiacutevel compreender que aprendemos a gostar do que eacute aceitaacutevel em
determinado contexto social e cultural entretanto temos em primeiro lugar a percepccedilatildeo
bioloacutegica atraveacutes dos cinco sentidos do que devemos levar agrave boca e daquilo que eacute necessaacuterio
evitar em termos de manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Pela aparecircncia e pelo olfato por exemplo um
alimento pode parecer prazeroso e entatildeo adequado ou repulsivo se apresentar sinais de bolor ou
de alteraccedilatildeo de suas caracteriacutesticas conhecidas A respeito dessa avaliaccedilatildeo sobre o que eacute
agradaacutevel ou desagradaacutevel aos sentidos com fins de alimentaccedilatildeo Doacuteria refere
O gosto caminha em meio a essas preferecircncias e rejeiccedilotildees ajudando a erigir barreiras
que demarcam os limites de determinada cultura ou mesmo as variaccedilotildees individuais
nessa mesma cultura Alimentos tabus natildeo devem ser tocados ou consumidos Por isso
seu sabor eacute tambeacutem repulsivo Assim as sociedades constroem um anteparo que protege
a cultura daquilo que ela considera lsquonatureza hostil (DOacuteRIA 2009 p196)
63
Se de um lado o prazer eacute o elemento bioloacutegico que impulsiona o indiviacuteduo para a
preservaccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do alimento (e da espeacutecie atraveacutes da coacutepula) de outro as
escolhas que condicionam a sensaccedilatildeo prazerosa no campo alimentar ultrapassam a dimensatildeo
corpoacuterea atingindo em boa parte das vezes a esfera cultural atraveacutes da construccedilatildeo coletiva do
gosto O autor apresenta neste aspecto a seguinte reflexatildeo
Podemos imaginar o homem como uma maacutequina bioloacutegica que se relaciona
integralmente com o mundo de tal forma que todos os estiacutemulos que ele internaliza
afetam a totalidade dessa maacutequina O nosso conhecimento estaacute no tato na audiccedilatildeo na
visatildeo no olfato no paladar e tudo isso eacute processado natildeo apenas diretamente como
experiecircncia pessoal mas no acoplamento que mantemos com seres da mesma espeacutecie
(DOacuteRIA 2009 p197)
De acordo com essa exposiccedilatildeo podemos gostar daquele alimento que eacute aceitaacutevel em
nossa cultura e em nosso meio para assim continuarmos pertencendo ao grupo de que somos
parte contemplando a noccedilatildeo que o autor estabelece como o lsquoacoplamento que mantemos com
seres da mesma espeacuteciersquo Ao sentir prazer nos sentimos impelidos a comer algo porque nos
desperta a sensaccedilatildeo agradaacutevel essa experiecircncia eacute em primeiro plano instintiva quando o ldquo[]
elo entre prazerdesprazer se estabelece como base do fenocircmeno da aprendizagem e da aversatildeo a
um sabor a partir do risco que sinaliza para o organismordquo (DOacuteRIA 2009 p205)
Em segundo plano gostamos do que aprendemos que podemos gostar de acordo com a
cultura em que estamos inseridos Nesse contexto cabe ressaltar o fenocircmeno da
neuroplasticidade atraveacutes do qual o ceacuterebro se molda a partir das experiecircncias a que eacute exposto
de acordo com tal ocorrecircncia os mecanismos cerebrais aprendem a responder a determinado
estiacutemulo e criam um espaccedilo de resposta ao mesmo quanto mais vezes exposto a ele Isso pode
acontecer no aprendizado de uma competecircncia como tocar um instrumento musical falar um
idioma ou ateacute mesmo naquele de um novo paladar Aprendemos a gostar de um alimento o que
faz com que a sensaccedilatildeo agradaacutevel obtida ao comermos nos faccedila querer repetir seu consumo
Surge entatildeo a perspectiva do prazer em seu percurso do ponto de partida sauacutede para o
ponto de chegada doenccedila De acordo com Benazzi e Pelizza os mecanismos neurobioloacutegicos
responsaacuteveis pela gratificaccedilatildeo cerebral alimentam-se do prazer e quanto mais recebem mais
demandam que o organismo lhes forneccedila mais e mais sensaccedilotildees prazerosas Essa condiccedilatildeo
manifesta-se apenas em alguns indiviacuteduos cuja carga geneacutetica e aprendizagem cultural
favoreccedilam os comportamentos ditos compulsivos por exemplo Nas pessoas propensas a tal
64
expressatildeo isso ocorre sucessivamente motivo pelo qual o prazer alimentar pode ser natildeo mais um
aliado da sauacutede e da sobrevivecircncia mas sim um algoz a partir de determinado momento Esse
ponto eacute quando o comer se torna excessivo fornecendo de modo incessante e crescente a
gratificaccedilatildeo prazerosa aos mecanismos cerebrais de recompensa
Desfaz-se assim a noccedilatildeo de prazer apresentada por Jaspers anteriormente referida
Quando haacute aumento das sensaccedilotildees prazerosas para saciar a demanda dos centros cerebrais de
gratificaccedilatildeo e natildeo mais para que o prazer esteja calcado lsquono equiliacutebrio psiacutequico e no bem-estarrsquo
pode-se compreender que esse deixou de cumprir sua funccedilatildeo na sauacutede
Quando uma cultura em amplo espectro como a norte-americana aprende a sentir prazer
com a ingesta do fast-food e isso se transmite a outras culturas e ainda mais grave agraves geraccedilotildees
seguintes os problemas de sauacutede atingem dimensotildees catastroacuteficas Esse resultado jaacute eacute possiacutevel
constatar em nosso seacuteculo XXI Compreende-se assim que natildeo apenas o indiviacuteduo pode
adoecer mas a cultura tambeacutem pode adoecer Fortunadamente pensadores do campo da
alimentaccedilatildeo como Michael Pollan tecircm combatido de modo ferrenho essa tendecircncia como o faz
em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo salienta-se tambeacutem o italiano
Carlo Petrini que jaacute na deacutecada de 80 fundou a filosofia do slow food em oposiccedilatildeo ao haacutebito
determinado pelas cadeias de fast-food ao redor do mundo
Cada vez mais o slow food tem ganho espaccedilo na compreensatildeo contemporacircnea sobre o
comer com prazer com sauacutede e com lentidatildeo respeitando o tempo das refeiccedilotildees como um tempo
de interaccedilatildeo familiar e de consciecircncia do alimento que se ingere Referimos nesse sentido o
proacuteprio Pollan responsaacutevel pela defesa de que as famiacutelias voltem a comer em casa como
oportunidade de alimentaccedilatildeo saudaacutevel e de interaccedilatildeo entre os membros do grupo familiar
Entretanto as mudanccedilas causadas pela conscientizaccedilatildeo estatildeo apenas nos primeiros passos os
comportamentos alimentares insalubres ainda representam a maioria ao menos no ocidente As
patologias do prazer ocupam importante espaccedilo no campo das doenccedilas contemporacircneas em
termos psiacutequicos e em suas decorrecircncias fiacutesicas
Tanto a reduccedilatildeo quanto o aumento significativo de experiecircncias prazerosas podem levar agrave
ocorrecircncia de patologias nos acircmbitos fiacutesico e psiacutequico No artigo em estudo Psicopatologia do
prazer lecirc-se ldquoO ser humano frente agrave possibilidade de permitir-se prazeres em alguns casos
pode sentir-se impedido pela preocupaccedilatildeo pela desvalia e pela culpa relativa a eventuais
consequecircncias potencialmente danosas de suas accedilotildeesrdquo (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
65
Esses mesmos autores referem a existecircncia de uma porcentagem significativa de
indiviacuteduos capazes de experimentar sentimentos de baixa autoestima ou de culpa (leve e
transitoacuteria ou ao contraacuterio intensa e mantida) em relaccedilatildeo aos interesses e atividades que lhes
provocam prazer Tais emoccedilotildees desagradaacuteveis viriam em forma e em intensidade e representam
um relevante contraponto agrave sensaccedilatildeo prazerosa podendo inclusive inibir as experiecircncias futuras
de prazer A ausecircncia desse gera mais desvalia e culpa estresse crocircnico e sentimentos de
incapacidade impedindo com que novas vivecircncias potencialmente prazerosas aconteccedilam e assim
ocorre um ciclo com repercussotildees na sauacutede tanto em termos fiacutesicos quanto mentais Os autores
do artigo referem
[] de uma espeacutecie de estressor interno que tais indiviacuteduos transfeririam de uma
situaccedilatildeo a outra dessas circunstacircncias decorreriam entatildeo efeitos negativos sobre sua
sauacutede fiacutesica suas capacidades cognitivas (ex concentraccedilatildeo atenccedilatildeo memoacuteria) e em seu
funcionamento nos campos social e laboral cotidiano Seria possiacutevel referir que o
excesso de culpa ou desvalia determinaria uma condiccedilatildeo de estresse crocircnico capaz de
aumentar significativamente a secreccedilatildeo dos hormocircnios ligados ao estresse com
consequumlecircncias danosas agrave sauacutede fiacutesica e agrave mental (PELIZZA BENAZZI 2008 p295)
Ressaltamos que o contraacuterio tambeacutem ocorre Cabe refletir sobre o desejo exasperado e
absoluto de prazer levada a extremos como nas condiccedilotildees de transtornos alimentares (entre
esses a compulsatildeo alimentar) De acordo com tais autores quando ocorrer uma busca excessiva
de sensaccedilotildees prazerosas mesmo se houver a gratificaccedilatildeo desses prazeres haveraacute riscos para a
sauacutede do indiviacuteduo Nesse caso o prazer em excesso passaraacute a ser o responsaacutevel pelos
sentimentos de culpa desvalia depressatildeo ansiedade e descontrole de impulsos (PELIZZA
BENAZZI 2008)
O prazer em excesso no campo alimentar conduz muitas vezes ao aumento de peso
com prejuiacutezos agrave sauacutede Essas circunstacircncias podem acarretar uma forma de dor emocional
diretamente ligada ao prazer de comer como nos casos de indiviacuteduos que fazem dieta alimentar
por orientaccedilatildeo meacutedica Nesses a restriccedilatildeo imposta representa um importante sofrimento quando
se encontram em sobrepeso ou em condiccedilatildeo de obesidade moacuterbida A exigecircncia de restringir o
que lhes daacute prazer pode ser um motivo de transgressotildees da dieta O resultado eacute o natildeo
emagrecimento ou o engorde ainda maior A seguir vecircm a culpa a desvalia a tristeza e o
desacircnimo todos os antagonistas da sensaccedilatildeo prazerosa Para compensar as emoccedilotildees os
indiviacuteduos socorrem-se com a comida mantendo o ciacuterculo vicioso O equiliacutebrio preconizado por
Jaspers em sua perspectiva sobre o prazer natildeo eacute encontrado
66
Em Por que sou gorda mamatildee o conflito da personagem com o impedimento ao prazer
alimentar estaacute presente em diversos trechos A narradora faz uma dolorosa e agraves vezes bem-
humorada recapitulaccedilatildeo de suas vivecircncias de prazer com a comida e de suas experiecircncias de
dieta de emagrecimento Satildeo narradas tambeacutem suas emoccedilotildees de desvalia e baixa autoestima por
vestir o adjetivo de gorda entretanto muito de sua insatisfaccedilatildeo estaacute no impedimento para comer
o que gosta o que lhe daacute prazer
Haacute uma visatildeo especiacutefica sobre o que eacute o prazer nos indiviacuteduos que apresentam
comportamentos anormais na procura por esta experiecircncia eles referem em diversas ocasiotildees a
percepccedilatildeo que tecircm sobre a comida na qualidade de fonte de prazer para algumas pessoas comer
eacute a uacutenica fonte de prazer possiacutevel Eacute comum referirem nas consultas meacutedicas lsquoou usufruo do
maacuteximo prazer ou natildeo sentirei nenhumrsquo ou lsquose natildeo puder comer todo o pote de sorvete natildeo
como mais nada Ou isto ou nada Me nego a fazer dietarsquo haacute ainda quem refira lsquonatildeo acredito
em dia livre dieta natildeo tem dia livre Isso eacute enganaccedilatildeo porque ningueacutem consegue voltar a comer
direito no outro diarsquo Essas frases demonstram padrotildees culturais de interpretaccedilatildeo do papel da
comida muitas vezes substitutivo de outras necessidades emocionais
Existindo maior resposta positiva aos prazeres aos quais o indiviacuteduo se dirige em
especial nas situaccedilotildees de excesso ocorreraacute ainda maior demanda por parte desses mecanismos
Como resultado surgem sintomas psiquiaacutetricos isolados ou em comorbidade decorrentes do
desequiliacutebrio gerado pela demanda excessiva Haacute ainda as decorrecircncias fiacutesicas de tal
desequiliacutebrio como a obesidade e as doenccedilas a ela associadas o diabetes a hipertensatildeo arterial e
a hipercolesterolemia entre outras Mais cedo ou mais tarde o corpo cobra sua conta dos
excessos quando se perpetuam
23 O PRAZER QUE ALIMENTA UM PASSEIO PELA HISTOacuteRIA
A fisiologia do gosto obra essencial na literatura gastronocircmica citada anteriormente foi
escrita por Jean Anthelme Brillhat-Savarin advogado e juiz francecircs (1755-1826) apaixonado
pelos prazeres da mesa O livro eacute composto por trinta capiacutetulos que o autor intitula lsquoMeditaccedilotildeesrsquo
e um uacuteltimo composto de variedades A fatia destinada agrave reflexatildeo sobre o prazer eacute a meditaccedilatildeo
14 lsquoDo prazer da mesarsquo Sobre a procura pelo prazer em termos gerais Brillat-Savarin refere
67
O homem eacute incontestavelmente dos seres sensitivos que povoam nosso globo o que
experimenta mais sofrimentos A natureza o condenou primitivamente agrave dor pela nudez
de sua pele pela forma de seus peacutes pelo instinto de guerra e destruiccedilatildeo que acompanha
a espeacutecie humana onde quer que ela se encontre
Os animais natildeo foram atingidos por essa maldiccedilatildeo e sem alguns combates causados
pelo instinto de reproduccedilatildeo a dor no estado de natureza seria completamente
desconhecida da maior parte das espeacutecies ao passo que o homem que soacute encontra o
prazer passageiramente e por meio de um pequeno nuacutemero de oacutergatildeos estaacute sempre
exposto em todas as partes do corpo a terriacuteveis sofrimentos
Essa sentenccedila do destino foi agravada em sua execuccedilatildeo por uma seacuterie de doenccedilas
nascidas dos haacutebitos do estado social de modo que o prazer mais satisfatoacuterio que se
possa imaginar seja em intensidade seja em duraccedilatildeo eacute incapaz de compensar as dores
atrozes que acompanham certos distuacuterbios [hellip] Eacute o temor praacutetico da dor que faz o
homem sem se aperceber disso lanccedilar-se com iacutempeto na direccedilatildeo oposta entregando-se
ao pequeno nuacutemero de prazeres que herdou da natureza (BRILLAT-SAVARIN 1995
p167)
Brillat-Savarin aponta que o homem se atira ao prazer para fugir das dores inerentes agrave
espeacutecie Entretanto esse eacute apenas um dos elementos de compreensatildeo do prazer alimentar pois a
sensaccedilatildeo prazerosa decorre tambeacutem de outros fatores presentes em nossa fisiologia e psiquismo
a sociabilidade por exemplo eacute um desses componentes e estaacute envolvida no que o autor
estabelece como o prazer da mesa Ele refere no capiacutetulo lsquoO prazer da mesarsquo uma reflexatildeo
importante sobre a comensalidade a refeiccedilatildeo em conjunto ldquoFoi durante as refeiccedilotildees que devem
ter nascido ou se aperfeiccediloado nossas liacutenguas seja porque era uma ocasiatildeo de reuniatildeo que se
repetia seja porque o lazer que acompanha e segue a refeiccedilatildeo dispotildee naturalmente agrave confianccedila e agrave
loquacidaderdquo (BRILLAT-SAVARIN 1995 p168)
Brillat-Savarin faz uma diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer- relacionando-o agrave satisfaccedilatildeo
da fome atraveacutes do alimento como ocorre com os animais - e o prazer da mesa exclusivo agrave
espeacutecie humana De acordo com esse autor ldquo[] o prazer de comer exige se natildeo a fome ao
menos o apetite o prazer agrave mesa na maioria das vezes independe de ambosrdquo (BRILLAT-
SAVARIN 1995 p170) Esse uacuteltimo representa assim a sociabilidade o conviacutevio agradaacutevel
com aqueles com quem se divide uma refeiccedilatildeo Ainda sobre o prazer da mesa Brillat-Savarin
explicita
[hellip] natildeo comporta arrebatamentos nem ecircxtases nem transportes mas ganha em duraccedilatildeo
o que perde em intensidade e se distingue sobretudo pelo privileacutegio particular de nos
incliner a todos os outros prazeres ou pelo menos de nos consolar por sua perda Com
efeito apoacutes uma boa refeiccedilatildeo o corpo e a alma gozam de um bem-estar especial
Fisicamente ao mesmo tempo em que o ceacuterebro se revigora a face se anima e se colore
os olhos brilham um suave calor se espalha em todos os membros Moralmente o
espiacuterito se aguccedila a imaginaccedilatildeo se aquece os ditos espirituosos nascem e circulam [hellip]
Aliaacutes com frequumlecircncia temos em volta da mesa todas as modificaccedilotildees que a extrema
sociabilidade introduziu entre noacutes o amor a amizade os negoacutecios as especulaccedilotildees o
68
poder as solicitaccedilotildees o protetorado a ambiccedilatildeo a intriga eis por que a convivialidade
tem a ver com tudo eis por que produz frutos de todos os sabores (BRILLAT-
SAVARIN 1995 p170-171)
O trecho acima transcrito expressa que os propoacutesitos para que o prazer da mesa fosse
atingido natildeo eram apenas a amizade e a intenccedilatildeo de conviacutevio entre as pessoas Eacute possiacutevel
verificar que havia tambeacutem entre os objetivos para a partilha das refeiccedilotildees o poder a ambiccedilatildeo e
outros aspectos distantes das alianccedilas de afeto A circunstacircncia do prazer da mesa criava uma
aproximaccedilatildeo maior entre os participantes de disputas poliacuteticas e administrativas favorecendo os
acordos pela ilusoacuteria sensaccedilatildeo de zelo e de alianccedila Nesse periacuteodo o prazer ainda natildeo era
percebido como finalidade e sim como instrumento para a aquisiccedilatildeo de benefiacutecios Segundo
Brillat-Savarin haacute quatro condiccedilotildees para que exista o prazer em uma refeiccedilatildeo
Chegamos portanto a tal progressatildeo alimentar que se os afazeres natildeo nos forccedilassem a
deixar a mesa ou se a necessidade do sono natildeo se interpusesse a duraccedilatildeo das refeiccedilotildees
seria praticamente indefinida e natildeo teriacuteamos nenhum dado certo para determinar o
tempo transcorrido desde o primeiro gole de madeira ateacute o ultimo copo de ponche [hellip]
Desfruta-se o prazer em quase toda sua extensatildeo toda vez que se reuacutenem as quatro
seguintes condiccedilotildees comida ao menos passaacutevel bom vinho comensais agradaacuteveis
tempo suficiente (BRILLAT-SAVARIN 1995 p172-173)
No livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo haacute explicaccedilotildees que muito se assemelham ao exposto
por Brillat-Savarin No capiacutetulo lsquoComer compromete refeiccedilotildees banquetes e festasrsquo o autor Gerd
Althoff expotildee elementos relevantes sobre o papel da refeiccedilatildeo na vida coletiva e social na Idade
Meacutedia
Durante a maior parte da Idade Meacutedia a refeiccedilatildeo e o banquete (convivium) constituiam
o mais eloquumlente siacutembolo de que se dispunha para para expresser o compromisso de
manter relaccedilotildees baseadas na paz e na concoacuterdia A palavra-chave nesse caso eacute
ldquocompromissordquo porque comer e beber junto era uma forma de obrigar-se a satisfazer as
condiccedilotildees que esse tipo de laccedilo implica [] (ALTHOFF 2015 p300)
Acordos e alianccedilas eram entatildeo estabelecidos em banquetes de longa duraccedilatildeo chamados
convivium A relaccedilatildeo de cumplicidade e de compromisso entre os indiviacuteduos estabelecida pela
existecircncia destes eventos natildeo foi por certo o iniacutecio do papel da refeiccedilatildeo partilhada como
elemento agregador entre as pessoas Haacute muitos periacuteodos da histoacuteria como exposto pelos vaacuterios
pesquisadores no livro Histoacuteria da alimentaccedilatildeo em que o comer junto assumiu papel essencial
na comunhatildeo dos membros de uma coletividade sendo a alegria e o prazer algumas das emoccedilotildees
presentes em vaacuterios desses periacuteodos
69
Quando Brillat-Savarin refere quatro condiccedilotildees para desfrutar-se o prazer em uma
refeiccedilatildeo uma dessas eacute que haja lsquocomensais agradaacuteveisrsquo Tal fato nos remete aos elementos da
alianccedila e da paz no conviacutevio entre aqueles que comiam juntos nos banquetes da Idade Meacutedia
mas remete principalmente ao elemento do prazer que aparece atraveacutes do termo lsquoagradaacuteveisrsquo O
prazer eacute um ingrediente necessaacuterio no estabelecimento dessa alianccedila pois propicia que os
indiviacuteduos se comprometam uns com os outros pelo bem-estar que o viacutenculo permite Tal
resultado propicia a constacircncia dessa ligaccedilatildeo importante tambeacutem do ponto de vista poliacutetico na
eacutepoca O bem-estar da refeiccedilatildeo partilhada era entatildeo um meio natildeo um fim era o recurso para a
manutenccedilatildeo da perenidade nas relaccedilotildees garantindo ldquo[] a disposiccedilatildeo de todos os participantes de
cumprirem os deveres dela decorrentesrdquo (ALTHOFF 2015 p309)
Ainda no que tange agrave ocasiatildeo do convivium ressalta-se a forma como as atividades
prazerosas eram proporcionadas com o propoacutesito de reforccedilar a ligaccedilatildeo entre os participantes
Era quase impensaacutevel passar vaacuterios dias natildeo fazendo outra coisa senatildeo comer beber e
trocar presentes mesmo que se atribua aos participantes um apetite e uma inclinaccedilatildeo
para a bebida for a do comum Isso explica que nossas fontes mencionem agraves vezes vaacuterias
atividades paralelas que se poderiam agrupar sob a denominaccedilatildeo de lsquodivertimentos
mundanosrsquo entre os quais os espetaacuteculos dados durante os convivial em que danccedilarinos
(ou danccedilarinas) muacutesicos ambulantes menestreacuteis e poetas distraiam os convivas A
sucessatildeo de pratos e bebidas interrompia-se tambeacutem para permitir aos participantes fazer
um pouco de exerciacutecio Tratava-se de jogos ou agraves vezes de animadas caccediladas
Certamente esses elementos do convivium tinham tambeacutem um valor simboacutelico Viver
algum tempo juntos em paz e partilhar certas atividades criava entre as pessoas o clima
de confianccedila necessaacuterio assegurava-se ao novo parceiro que se desejava a paz e que se
estava disposto a respeitaacute-la e firmava-se o compromisso de continuar a agir assim no
futuro (ALTHOFF 2015 p303)
Assim o prazer afirmava-se como elemento agregador de grande importacircncia na
permanecircncia de viacutenculos Entretanto a finalidade de tais viacutenculos natildeo se concentrava
propriamente no bem-estar em si entre os participantes mas nos benefiacutecios propiciados em
termos de propriedades poder administraccedilatildeo e outros fins de interesse material No convivium
o prazer era oferecido nas atividades de lsquodivertimento mundanorsquo Eacute possiacutevel compreender a
partir desse dado que o prazer da partilha no comer junto da Idade Meacutedia natildeo se aproximava do
prazer com o alimento ou a bebida per se mas com atividades paralelas de divertimento para
entreter os convivas durante os dias de banquete
O prazer entatildeo era ainda um elemento natildeo ligado ao comer pelo sabor da comida assim
como as alianccedilas eram vaacutelidas pelos benefiacutecios que alicerccedilavam natildeo por sua importacircncia para o
bem viver entre os membros de uma coletividade De acordo com Gerd Althoff as relaccedilotildees entre
70
os indiviacuteduos e os costumes como o comer e o beber junto eram de grande importacircncia para a
realidade medieval
Todas as culturas arcaicas recorriam a este meacutetodo para unir uma comunidade
Entretanto os efeitos da refeiccedilatildeo natildeo derivam dela proacutepria De fato na Idade Meacutedia a
refeiccedilatildeo o banquete e a festa serviam para exteriorizar atos administrativos rituais e
portanto convenccedilotildees que serviam para veicular um sentido bem determinado de modo
constrangedor e coercitivo (ALTHOFF 2015 p309)
No capiacutetulo de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo lsquoTempero cozinha e dieteacutetica nos seacuteculos XIV
XV e XVIrsquo haacute relevantes esclarecimentos sobre o papel do prazer no comer e sua importacircncia
para a sauacutede Um dos pontos referidos por seu autor quanto ao papel do uso dos temperos e do
cozinhar os alimentos estaacute relacionado tambeacutem ao prazer alimentar ldquoDe uma maneira geral
todo tempero e todo cozimento ou seja toda cozinha tinha uma dupla funccedilatildeo tornar os
alimentos ao mesmo tempo mais apetitosos saborosos e mais faacuteceis de digerirrdquo (FLANDRIN
2015 p482)
Deste modo falar no prazer de comer torna-se parte da perspectiva histoacuterica desse
periacuteodo quando as especiarias estatildeo no auge de seu reconhecimento Flandrin refere que os
seacuteculos XIV XV e XVI foram o aacutepice de seu papel na cozinha europeacuteia quando esses
ingredientes tinham tambeacutem valor terapecircutico Natildeo se pode referir que o prazer atraveacutes da
comida tenha iniciado nesse periacuteodo histoacuterico mas eacute possiacutevel compreender que esse periacuteodo foi o
iniacutecio do falar em prazer como aspecto favoraacutevel agrave digestatildeo Havia uma aproximaccedilatildeo entre a
gastronomia e a dieteacutetica conforme Jean-Louis Flandrin sugerida no trecho ldquoAos dietistas
interessava o gosto dos alimentos por diversas razotildees Em primeiro lugar porque se digere
melhor aquilo que se come com prazer-como acreditamos ateacute hojerdquo (FLANDRIN 2015 p486)
Compreender o prazer como elemento presente na alimentaccedilatildeo torna-o tambeacutem parte da
sauacutede e do bem-estar do ser humano Esta perspectiva remete ao estabelecido por Karl Jaspers
sobre o prazer Este fenocircmeno seria equivalente agrave satisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas
funccedilotildees orgacircnicas com resultados no equiliacutebrio psiacutequico na percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e no bem-
estar do indiviacuteduo Desse modo ao ler o historiador Jean-Louis Flandrin confirma-se o papel do
prazer na lsquosatisfaccedilatildeo harmocircnica e ordenada de nossas funccedilotildees orgacircnicasrsquo na concepccedilatildeo do
psicopatologista Jaspers Flandrin conclui o capiacutetulo com a seguinte reflexatildeo
Em resumo cozinhar agravequela eacutepoca assim como hoje era dar aos alimentos os sabores
mais agradaacuteveis- mas agradaacuteveis no acircmbito de uma determinada cultura para um gosto
71
diferente do nosso porque modelado por outras crenccedilas dieteacuteticas outros haacutebitos
alimentares (FLANDRIN 2015 p495)
Falar no prazer de comer entatildeo remete a Karl Jaspers pela concepccedilatildeo meacutedica do prazer
mas tambeacutem a Brillat-Savarin em sua diferenciaccedilatildeo entre o prazer de comer e o prazer da mesa
Para o escritor de A fisiologia do gosto o primeiro eacute de ordem bioloacutegica a meu ver menos ligado
agrave sensaccedilatildeo prazerosa ligada ao sabor e mais associada ao mero saciar da fome o segundo
exclusivo da espeacutecie humana eacute vinculado agrave experiecircncia de conviacutevio agradaacutevel com os comensais
na partilha de uma refeiccedilatildeo
A abordagem da dualidade entre gastronomia e dieteacutetica apontada por Jean-Louis
Flandrin eacute semelhante agravequela da dualidade apontada por Brillat-Savarin o prazer de comer e o
prazer da mesa Talvez essas divisotildees tivessem o propoacutesito de partir o indiviacuteduo em duas
metades a do corpo e a da mente A metade que se satisfaz com o saciar da fome seria entatildeo
diferente da que se apraz da companhia dos amigos agrave mesa A metade que preparava as receitas
pela gastronomia em fins da Idade Meacutedia seria diversa da que seguia as ordens da dieteacutetica
Nesse sentido a visatildeo de Jaspers sobre o prazer eacute a mais completa pois integra a satisfaccedilatildeo
harmocircnica e ordenada das funccedilotildees orgacircnicas ao equiliacutebrio psiacutequico agrave percepccedilatildeo de satisfaccedilatildeo e
ao bem-estar do indiviacuteduo
Considerando o prazer alimentar entatildeo como elemento que envolve o corpo e a mente
do saciar agrave fome ao satisfazer o prazer gustativo e social surgem dois novos termos a gula e o
bom gosto
Os seacuteculos XVII e XVIII trouxeram mudanccedilas na relaccedilatildeo dos indiviacuteduos com o prazer do
gosto Enquanto na Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio do seacuteculo XVII a alimentaccedilatildeo das elites aproximava-
se muito de perto das prescriccedilotildees dos meacutedicos o que se seguiu a partir de entatildeo foi o apagamento
das referecircncias agrave antiga dieteacutetica dando lugar entre cozinheiros e gastrocircnomos agrave harmonia dos
sabores como prioridade Ficou relegado a segundo plano o aspecto de que ldquo[] os sabores eram
ateacute entatildeo ligados tanto a eles como aos meacutedicos sabiamente classificados do mais frio ao mais
quente eles constiuiacuteam uma indicaccedilatildeo segura da natureza dos alimentos e sua digestibilidaderdquo
(FLANDRIN MONTANARI 2015 p548) Um resultado interessante da separaccedilatildeo progressiva
entre cozinha e dieteacutetica foi uma permissatildeo para a gulodice conforme o registro de Histoacuteria da
alimentaccedilatildeo
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Os refinamentos da cozinha natildeo visam mais manter a boa sauacutede das pessoas mas
satisfazer o gosto dos glutotildees Com uma pequena diferenccedila estes ainda natildeo se
reconhecem como tais e se apresentam como pessoas de paladar apurado apreciadores
de iguarias e peritos na arte de reconhececirc-las (FLANDRIN MONTANARI 2015
p549)
Com o avanccedilo das descobertas e das criaccedilotildees dos cozinheiros e gastrocircnomos o prazer
com os alimentos reveste-se de nova importacircncia a gula Comer torna-se sinocircnimo nesse
contexto de desfrutar do sabor da comida o que muitas vezes eacute partilhado com amigos Para
Brillat-Savarin seria a uniatildeo do prazer de comer e do prazer da mesa O gosto como sentido
fisioloacutegico assume nova representaccedilatildeo eleva-se agrave categoria de bom-gosto com aplicaccedilotildees para
aleacutem dos campos da cozinha De acordo ainda com os organizadores de Histoacuteria da alimentaccedilatildeo
Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari
O gosto esse sentido de que a natureza dotou o homem e os animais para discernirem o
comestiacutevel do natildeo-comestiacutevel sofreu alias em meados do seacuteculo XVII uma estranha
valorizaccedilatildeo fala-se dele a partir daiacute em sentido figurado a propoacutesito de literature
escultura pintura muacutesica mobiliaacuterio vestuaacuterio etc Em todos esses domiacutenios eacute ele que
permite distinguumlir o bom do ruim o belo do feio eacute o oacutergatildeo caracteriacutestico do lsquohomem de
gostorsquo um dos avatares do homem perfeito Ora essa valorizaccedilatildeo implica uma certa
toleracircncia para com os glutotildees (FLANDRIN MONTANARI 2015 p549)
Bom-gosto gula e prazer satildeo termos que se referem a uma semacircntica do deleite da
experiecircncia gustativa produzida nas cozinhas da eacutepoca com iniacutecio no seacuteculo XVII O indiviacuteduo
comeccedila a perceber a possibilidade de extrair da comida uma espeacutecie de luxuacuteria traduzida pela
gulodice Ele desfruta do sabor do alimento como se estivesse em um climax eis o glutatildeo
Enquanto na alta Idade Meacutedia o prazer nos banquetes vinha das atividades paralelas e seu
propoacutesito natildeo era a experiecircncia prazerosa per se mas a alianccedila e a realizaccedilatildeo de objetivos que
dela resultavam a partir desse seacuteculo o prazer reveste-se de importacircncia nos campos de forno-e-
fogatildeo
Dane-se a dieteacutetica talvez pensassem os sujeitos Gula e prazer eram expressotildees que a
boa comida despertava usufruiacutea deles quem tinha bom-gosto Nascia entatildeo um grupo de
pessoas com os pomposos tiacutetulos de lsquogourmetsrsquo e lsquogastrocircnomosrsquo seguida do surgimento e da
expansatildeo de sua literatura apropriada os tratados de cozinha Um novo modo de vivenciar o
alimento tornava-se cada vez mais abundante Houve um significativo movimento gerado pelo
gosto alimentar ldquoA multiplicaccedilatildeo das artes ligadas agrave alimentaccedilatildeo e das obras teacutecnicas que tratam
delas foi acompanhada sob formas diversas de escritos que fazem a apologia do prazer de comer
e ateacute da glutonaria e da embriaguezrdquo (FLANDRIN MONTANARI 2015 p551)
73
Entretanto tal vivecircncia jaacute existia em menor expressatildeo na Itaacutelia do Quatrocentos Conta-
se que ldquoPlatinardquo o humanista Bartolomeo Sacchi teve relevante papel no prazer de comer no
referido periacuteodo com seu De honesta voluptate
Natildeo soacute este natildeo eacute cozinheiro nem meacutedico [hellip] mas mistura agrave sua documentaccedilatildeo
culinaacuteria e dieteacutetica a lembranccedila nostaacutelgicada alegria que seus amigos e ele
experimentavam ao saborear este ou aquele prato de mestre Martino o grande
cozinheiro romano de meados do seacuteculo acima de tudo ele utiliza isso para defender o
honesto prazer de saborear uma cozinha ao mesmo tempo simples e refinada prazer que
poderiacuteamos hoje classificar como o de um glutatildeo (FLANDRIN MONTANARI 2015
p552)
Por que na eacutepoca de Platina e entatildeo nos seacuteculos XVII e XVIII de efervescecircncia dos
gourmets ou mesmo em nosso seacuteculo XXI a sensaccedilatildeo prazerosa provocada pelo alimento eacute tatildeo
semelhante em sujeitos tatildeo diversos Pelo fato de que o prazer eacute inerente agrave experiecircncia humana
A definiccedilatildeo dada por Jaspers agrave sensaccedilatildeo prazerosa une aspectos da percepccedilatildeo fiacutesica e da
experiecircncia mental integradas Com base em sua definiccedilatildeo e considerando o acima exposto
sobre os termos gula prazer e bom-gosto ocorre a pergunta por que tantos sujeitos de diferentes
eacutepocas vivenciaram o prazer associado agrave comida em especial quando essa assumiu uma
conotaccedilatildeo de importacircncia com o iniacutecio da Gastronomia um termo cognitivo Recorremos a uma
possiacutevel explicaccedilatildeo neurocientiacutefica para esse questionamento a hipoacutetese do ceacuterebro triuno que
abrange a experiecircncia prazerosa como elemento exclusivo do ser humano
A referida hipoacutetese foi proposta pelo meacutedico e neurocientista americano Paul MacLean
em 1970 Segundo tal autor somos compostos grosso modo por trecircs ceacuterebros que trabalham em
colaboraccedilatildeo embora oriundos de diferentes etapas da evoluccedilatildeo das espeacutecies Assim nos
mamiacuteferos superiores existe uma hierarquia de trecircs ceacuterebros em um soacute daiacute o termo triuno De
acordo com a teoria os trecircs operam com diferentes graus de complexidade mas orquestram o
funcionamento humano de forma conjunta O ceacuterebro reptiliano presente desde os reacutepteis ou
arquicoacutertex seria o mais primitivo responsaacutevel pelas questotildees de sobrevivecircncia bioloacutegica como
alimentaccedilatildeo reproduccedilatildeo proteccedilatildeo etc A seguir em termos evolucionistas viria o ceacuterebro
liacutembico ou paleocoacutertex responsaacutevel pela elaboraccedilatildeo das emoccedilotildees como apetite medo raiva
etc presente desde as aves O terceiro e entatildeo o mais evoluiacutedo seria o neocortex responsaacutevel
pela elaboraccedilatildeo dos pensamentos e dos sentimentos e exclusivamente humano
Transpondo essa teoria para o campo alimentar podemos referir o ceacuterebro reptiliano
como responsaacutevel pela fome enquanto o liacutembico seria responsaacutevel pelo desejo por essa ou aquela
74
comida especiacutefica O neocortex viria ao final para dar significado ao que comemos atraveacutes da
compreensatildeo das emoccedilotildees da relaccedilatildeo entre a memoacuteria e o alimento e da atribuiccedilatildeo de conceitos
cognitivos como a noccedilatildeo de bom-gosto No campo gastronocircmico seria possiacutevel entender a
cooperaccedilatildeo dos trecircs ceacuterebros como uma integraccedilatildeo que tem como resultado o prazer de saborear
este ou aquele quitute Saboreamos porque temos fome porque algo nos apetece e nos desperta
desejo por fim porque aprendemos do ponto de vista cognitivo que gostar daquele alimento eacute
permitido e em alguns casos eacute valoroso pois nos torna pertencentes a um grupo como o dos
glutotildees e gourmets Se comer tal alimento for prazeroso isto significa que nossos trecircs ceacuterebros
foram atendidos e estatildeo trabalhando em conjunto Mais uma vez o bem-estar do corpo de da
mente referido por Jaspers
Compreender o prazer que existe como expressatildeo fiacutesica emocional e mental nos
possibilita entender por que esse tambeacutem pode estar associado a patologias nos mesmos
domiacutenios A explicaccedilatildeo estaacute no fato de que para vivenciar esse complexo fenocircmeno eacute preciso
que sejamos humanos e que nossos trecircs ceacuterebros operem em orquestra vulneraacuteveis agraves
experiecircncias positivas ou negativas inexoraacuteveis
24 O PRAZER DA COMIDA
A partir da constataccedilatildeo do engorde e da dieta orientada pelo meacutedico a protagonista de
Por que sou gorda mamatildee lsquopassa a vida a limporsquo em sua memoacuteria Com o propoacutesito de
compreender o porquecirc de seu engorde escreve uma carta para a matildee em trechos ora
confessionais ora acusatoacuterios esperando na correspondecircncia construir para si a resposta ao
longo das lembranccedilas que evoca
O balanccedilo entre o passado e o presente alinha a compreensatildeo sobre o papel dos trajetos de
vida desde a infacircncia no quadro atual de sauacutede Os vinte e dois quilos ou cento e dez tabletes de
manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha satildeo o resultado dos sofrimentos que vivenciou
do afeto que natildeo recebeu e da comida que devorou A dor emocional eacute de fato sua mas talvez
seja tambeacutem heranccedila da Voacute Gorda da Voacute Magra do pai e da matildee Nas histoacuterias entrelaccediladas lecirc-
se uma pesada bagagem de dores ancestrais
Atraveacutes da intersecccedilatildeo entre as vivecircncias eacute possiacutevel ler na obra trecircs tempos
predominantes com fronteiras tecircnues entre si aquele dos antepassados que a protagonista
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conhece por ouvir contar o tempo da infacircncia que ela narra pelas recordaccedilotildees e o tempo
presente da dieta que provoca as idas e vindas da narrativa a fim de descobrir as causas de seu
aumento de peso As fronteiras satildeo tecircnues pois os trecircs tempos embora diversos no calendaacuterio
misturam-se na personagem ora como lembranccedila ora como reflexatildeo No percurso da obra o
elemento que liga as histoacuterias eacute na maioria das vezes a sensaccedilatildeo prazerosa com a comida
mesmo quando a referecircncia aponta para o contraacuterio sentimentos de culpa pela obesidade e de
revolta pela restriccedilatildeo alimentar
Haacute uma ligaccedilatildeo natural entre o comer e o prazer para aleacutem da rima Desde a
amamentaccedilatildeo a chegada do leite materno eacute acompanhada pelo contato de afeto da matildee com o
bebecirc e pela experiecircncia de prazer fiacutesico associada agrave succcedilatildeo Assim alimento viacutenculo afetivo e
prazer satildeo parte de nossas primeiras memoacuterias e podem permanecer como o tripeacute que daraacute
suporte a muitos de nossos padrotildees de comportamento ao longo da vida Esse tripeacute contudo
pode desestabilizar-se caso haja preponderacircncia de um dos componentes gerando experiecircncias
de sofrimento associadas a tal desequiliacutebrio
A referida situaccedilatildeo aliaacutes estaacute muito bem expressa nessa obra na qual a vivecircncia da
personagem frente ao engordar mostra o quanto o comer em sua vida ocupou muitas vezes os
espaccedilos de amor e de seguranccedila deixados vazios pela ausecircncia desse afeto Sobretudo por parte
dessa matildee o proacuteprio tiacutetulo do livro dirigido a ela sugere que seja vista como culpada pelo
processo de engorde da personagem Em diversas passagens da obra a comida eacute citada como
abundante enquanto a expressatildeo das emoccedilotildees eacute percebida como escassa
Encontramos a posteridade dentro da fartura pela qual devemos agradecer todos os dias
e da qual ainda hoje devemos nos afastar por forccedila da geneacutetica O excesso de comida o
excesso de zelo o excesso dos excessos tudo ficou em noacutes como lembranccedila e como
estoque de uma espeacutecie de amor do qual ainda hoje nos valemos quando o amor falta
minguado (MOSCOVICH 2006 p220)
A vivecircncia do prazer da comida eacute apresentada em diversos fragmentos tanto associados agrave
narradora quanto agrave sua matildee a quem dirige as reflexotildees sua Voacute Magra seu pai e seus irmatildeos
Uma das passagens mais ilustrativas do papel desempenhado pela sensaccedilatildeo prazerosa nesta
narrativa estaacute no trecho de uma viagem O que as personagens experimentam nesta cena parece
muito proacuteximo ao lsquohonesto prazerrsquo referido por Platina mencionado anteriormente Lembrando
de uma viagem em famiacutelia durante um percurso ao Uruguai a protagonista remonta um
momento em que sua matildee ela e os irmatildeos lambuzavam-se com doces no carro
76
[hellip] A senhora de repente deu ordem expressa para que o pai estacionasse ali naquele
ponto bem na frente daquela confeitaria a Carrero O carro nem bem tinha parado nem
bem nossos protestos se haviam esvaiacutedo com a agilidade de seu movimento e a senhora
jaacute entrava na Carrero atraveacutes da porta de vidro porta muito pesada em sua fidalguia de
anos servindo o fino paladar uruguaio Porta que a senhora cruzou duas vezes em toda
sua vida - aquela era a segunda
Ficamos ali os quatro com os narizes achatados de curiosidade contra as janelas do
Ford Natildeo demorou nem bem cinco minutos e a senhora logo apareceu com trecircs garrafas
de Crush de laranja em uma das matildeos e na outra uma bandeja de doces - e me lembro
que o pai soltou uma gargalhada e sacudiu a cabeccedila num gesto de anuecircncia
Os doces foram devorados com seu incentivo feliz as garrafas passavam de matildeo em
matildeo limpava-se a boca com guardanapinhos de papel ou com a manga do casaco A
senhora se empanturrou e nos empanturrou Ningueacutem deu muita bola para os farelos de
massa folhada e para as manchas de doce de leite que ficaram melecando o estofamento
ateacute que voltaacutessemos para casa trecircs dias depois (MOSCOVICH 2006 p72)
Esta eacute a uacutenica cena de prazer compartilhado entre a narradora os irmatildeos e a matildee Eacute a
uacutenica cena tambeacutem em que a matildee aparece permitindo-se o deleite com algazarra com alegria
desfrutando do saborear em famiacutelia os doces da confeitaria A personagem refere que a matildee
cruzara a porta do estabelecimento duas vezes na vida e aquela era a segunda Haacute uma referecircncia
indireta aqui agrave escassa permissatildeo em sua matildee para esse tipo de prazer com farelos e doce de
leite espalhado Uma permissatildeo a si mesma de lambuzar-se com o prazer de partilhar o doce o
afeto a brincadeira O lsquohonesto prazerrsquo de Platina que misturava agrave sensaccedilatildeo prazerosa quem
sabe a alegria entre as pessoas Essa eacute a emoccedilatildeo que habita a cena e natildeo somente a gula pelos
doces
A matildee aparece protagonizando outras duas cenas de prazer alimentar ambas associadas a
uma condiccedilatildeo de sauacutede para a qual precisou fazer um cateterismo Entretanto a sensaccedilatildeo
prazerosa eacute expressa como experiecircncia de permissatildeo individual e natildeo partilhada com a famiacutelia
como no deleite dos doces e do refrigerante no carro A narradora conta sua lembranccedila sobre os
dois episoacutedios vividos pela matildee o primeiro antes do procedimento o segundo apoacutes
Naquela noite depois da cintilografia a senhora devorou meio quilo de patildeo com
manteiga um bule de cafeacute e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Disse que jaacute que
ia morrer comeria o que lhe desse na veneta (MOSCOVICH 2006 p119)
Jaacute em casa a senhora voltou ao tempo do seu rosto e apesar da ferida aberta na virilha
tornou-se de novo uma avoacute E o mais gracioso foi que naquela noite devorou meio
quilo de patildeo com manteiga uns cem gramas de mortadela um pote com azeitonas
pretas e uma torta de nozes ovos moles e ameixas Me disse que jaacute que natildeo ia morrer
comeria o que lhe desse na telha (MOSCOVICH 2066 p124)
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Compreende-se como o prazer de comer estaacute vinculado a uma justificativa aceitaacutevel em
uma e em outra ocasiatildeo lsquojaacute que ia morrerrsquo e lsquojaacute que natildeo ia morrerrsquo Natildeo haacute uma vivecircncia da
sensaccedilatildeo prazerosa experimentada pela matildee nesses casos sem uma razatildeo que fundamente a
permissatildeo Outro ponto a salientar estaacute nas frases lsquocomeria o que lhe desse na venetarsquo e lsquocomeria
o que lhe desse na telharsquo em que lsquodar na venetarsquo e lsquodar na telharsquo fazem alusatildeo agrave satisfazer a
vontade o impulso da hora expressotildees ligadas ao prazer Os fragmentos apresentados fornecem
dados para que se possa compreender que na personagem da matildee esse prazer do ldquodar na venetardquo
soacute poderia ser permitido se associado a uma razatildeo muito forte como a possibilidade de ela
morrer no procedimento
Aleacutem das questotildees psiacutequicas da ligaccedilatildeo entre cozinha e prazer existe a influecircncia da
cultura presente nas famiacutelias de acordo com a relaccedilatildeo que seus antepassados estabeleciam com a
comida com o prazer e com os viacutenculos Eacute possiacutevel aprender que um alimento eacute saboroso ou
condenado porque essa informaccedilatildeo passa de uma geraccedilatildeo agrave outra natildeo como uma carga geneacutetica
mas como uma transmissatildeo de aprendizado cultural O que eacute transmitido ao grupo familiar eacute
dependente do significado da comida para os diferentes povos Dentro das famiacutelias haacute tambeacutem
coacutedigos representados pelo alimento muitas vezes compartilhados pelos membros como
acontece entre a protagonista e sua Voacute Magra
Eu imitei a voacute fiz ach e dei um tapinha no ar Natildeo tinha mesmo importacircncia nenhuma
Noacutes duas comeccedilamos a rir De matildeos dadas fomos ateacute a cozinha buscar algo com
bastante accediluacutecar para comer Doces nos deixavam fortes e felizes
Como diz mais um velho ditado avoacutes e netos se datildeo bem porque tecircm um inimigo em
comum (MOSCOVICH 2006 p99)
O episoacutedio refere-se ao conflito entre sua matildee e a Voacute Magra avoacute materna e a
protagonista posiciona-se a favor da avoacute partilhando com ela o prazer de lsquobuscar algo com
bastante accediluacutecar pra comerrsquo Existe clara cumplicidade com a avoacute expressa na frase lsquoDoces nos
deixavam fortes e felizesrsquo Essa mesma comunhatildeo eacute demonstrada nos trechos sobre os passeios
que elas faziam juntas quando a Voacute Magra a levava consigo nas andanccedilas ao centro para vender
roupas na infacircncia da narradora
Ela bem gostava daquela funccedilatildeo ou ao menos aparentava gostar e se aparentava fingia
muito bem Depois de uma boa venda saiacutea exibindo um ar glorioso e altaneiro uma
conquistadora que avanccedila sobre terra remota e me puxando pela matildeo me punha diante
de um copo de guaranaacute- o copo que ela inspecionava muito bem e submetia ao processo
de assepsia com o lencinho- uma garrafa de refrigerante e um mil folhas partido ao meio
davam bem para noacutes duas Tatildeo bem que nem fazia falta a outra metade
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O que eu aprendi com vovoacute foi bastante aleacutem do que pretendia papai Ela natildeo queria me
mostrar como se ganhava o patildeo natildeo tinha interesse em expor a neta a sofrimento algum
O que a voacute queria mesmo com aquelas excursotildees era a farra de dividir comigo um doce e
um refrigerante a gente se refestelando com creme de confeiteiro Ela pagou com
antecipaccedilatildeo aquelas pequenas felicidades coisa que ela mais amava no mundo
(MOSCOVICH 2006 p91-92)
Para a protagonista e sua Voacute Magra esses passeios representavam mais do que a
oportunidade de saborearem o mil folhas eram a chance de partilharem juntas o prazer de um
coacutedigo que comungavam o sabor doce Ao ler-se as passagens desta avoacute com ela e com seus
irmatildeos ao longo da obra compreende-se que este sabor doce eacute com nitidez o afeto partilhado
entre a Voacute Magra e os netos Para a avoacute o deleite com a comida tem raiacutezes culturais e vivenciais
O livro aponta a fome ancestral como possiacutevel razatildeo de seu prazer com a comida Jaacute no
capiacutetulo um ela apresenta sua Voacute Magra importante referencial em sua histoacuteria com o papel da
comida e com o engorde A obra comeccedila pelo cerne do significado da comida para a famiacutelia a
fome Essa vivecircncia eacute elemento relevante na histoacuteria familiar da protagonista A fim de
corroborar o papel da fome na dimensatildeo que cozinha ocupa na literatura judaica vale apresentar
a contribuiccedilatildeo de Ana Maria Shua em sua obra Risos e emoccedilotildees da cozinha judaica
A comida ocupa um lugar importante na literatura judaica Seguramente porque ocupa
um lugar importante na vida judaica na vida material e tambeacutem por razotildees religiosas
na vida espiritual Acima de tudo os judeus da Europa Oriental tendiam a contar com o
uacutenico adereccedilo capaz de converter em excelente qualquer comida para qualquer paladar a
fome Natildeo chama a atenccedilatildeo desse modo que o tema da comida apareccedila uma e outra vez
entre os sempre famintos personagens de sua literatura (SHUA 2016 p113)
O entendimento da comida como milagre aponta o poder que lhe era atribuiacutedo pela Voacute
Magra conforme narra a protagonista
Para quem vem de uma famiacutelia que nos miseraacuteveis e congelados vilarejos judeus da
Europa passou fome de comer soacute repolho ou soacute batata para a qual naqueles shtetels
carne era uma abstraccedilatildeo que os dentes nem conheceram e que se acostumou a aplacar o
oco do estocircmago com sopa de beterraba ou com aquele mameligue que nada mais era
do que um mingau meio insosso de farinha de milho e aacutegua a obsessatildeo por comida nada
tem ou nada deveria ter de extraordinaacuterio Vovoacute Magra assim como todas as avoacutes
acreditava que a comida era um milagre capaz de moldar crianccedilas em adultos um
homem eacute o peso daquilo que come uma boa refeiccedilatildeo vale a prece por um dia a mais de
vida
O caso era que diante de um prato de comida Vovoacute Magra parecia encontrar o sentido
da existecircncia (MOSCOVICH 2006 p21)
A comida era milagre e sentido da existecircncia para sua avoacute de acordo com a protagonista
entretanto vai aleacutem mostrando a voracidade o apetite o prazer afoito com que aquela comia O
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aspecto interessante foi a narradora referir-se ao termo lsquodesesperorsquo que denota uma espeacutecie de
sofrimento A avoacute sentiu tanta fome que quando pocircde comer tornou o alimento a resposta para
todas as faltas mesmo as futuras A comida era um modo de prevenccedilatildeo contra a fome que ela
pudesse vir a passar novamente
E comia comia comia
Comia ovos duros comia coalhada comia milho comia carne comia saladas comia
frutas- especialmente laranjas-do-ceacuteu que docinhas natildeo espicaccedilavam o paladar ao
contraacuterio do azedo das laranjas-de-umbigo que ela tambeacutem comia Comia tanto que se
via nela um desespero E de tanto passer fome decerto vovoacute por mais que comesse e se
fartasse natildeo engordava Cinturinha fina seios achatados quadric estreitos heranccedila que
a senhora mamatildee abocanhou e que natildeo me deu
Da vovoacute soacute herdei o apetite ancestral o mesmo que a senhora herdou (MOSCOVICH
2006 p21-23)
O apetite eacute capaz de promover a antecipaccedilatildeo do prazer pela lembranccedila e pelo desejo de
comer determinado alimento aleacutem de estimular a repeticcedilatildeo do que satisfaz pela gratificaccedilatildeo que
o ceacuterebro registra Se tal prato eacute saboroso e lhe apetece o indiviacuteduo vai buscaacute-lo de novo e assim
sucessivamente Por isso a Voacutevoacute Magra lsquocomia comia comiarsquo e lsquocomia tanto que se via nela um
desesperorsquo Entatildeo quando a narradora comeccedila a passagem falando em fome e a conclui
referindo-se ao lsquoapetite ancestralrsquo estaacute dizendo que em sua avoacute a fome transformou-se no prazer
pela comida
Ainda assim havia respeito agraves proibiccedilotildees religiosas ligadas agrave tradiccedilatildeo culinaacuteria judaica A
narradora descreve sobre os haacutebitos alimentares da Voacute Magra ldquoExceto por carne de porco ou
mariscos e outras coisas gosmentas vindas da aacutegua ndash alimentos que a Lei considera impuros e
que portanto eram iguais agrave pedra que se interdita levar agrave boca ndash natildeo havia comida que ela
desprezasserdquo (MOSCOVICH 2006 p21-23)
Entatildeo embora houvesse o respeito agraves restriccedilotildees impostas havia tambeacutem o prazer com os
alimentos permitidos fossem ou natildeo pertencentes agrave culinaacuteria tradicional judaica Eacute neste ponto
que se aproximam os textos da ficccedilatildeo e da teoria fontes de estudo no presente capiacutetulo Natildeo se
nega que haja a proibiccedilatildeo a certos alimentos aspecto em que a obra de Ciacutentia Moscovich foi fiel
agrave cultura culinaacuteria judaica mas a mesma tambeacutem problematizou o espaccedilo de prazer existente na
cozinha de sua tradiccedilatildeo
Outro elemento relevante na anaacutelise da passagem acima eacute o que a narradora refere quando
menciona ter herdado de sua avoacute apenas o lsquoapetite ancestralrsquo Nesse ponto da narrativa atribui
agraves raiacutezes familiares seu gosto pela comida Eacute significativo que a narradora comece o texto falando
80
sobre a fome e o encerre usando o termo apetite pois se pode pensar na fome como uma
necessidade bioloacutegica do corpo que natildeo difere um alimento de outro O propoacutesito da fome eacute ser
saciada No que tange ao apetite pode-se pensar no apetite por algo o que o torna mais
especiacutefico agraves preferecircncias alimentares e desse modo mais proacuteximo ao prazer Foi o que Voacute
Magra descobriu
Eacute visiacutevel seu gosto por essa ou aquela comida sua profunda sensaccedilatildeo prazerosa com
ingredientes e pratos tiacutepicos Natildeo os escolhe apenas para saciar a fome deseja isso sim
satisfazer o apetite deleitar-se Com todas as restriccedilotildees que a tradiccedilatildeo impunha descobriu no
alimento fonte de prazer e com os netos de expressatildeo afetiva Havia tambeacutem um sentido de
aproveitar do alimento tudo o que ele poderia oferecer natildeo desperdiccedilando nada de sua
substacircncia Mesmo com o propoacutesito desse aproveitamento dedicava-se a fazer comidas e doces
saborosos como a narradora lembra no trecho abaixo
E havia aquele creme de laranja que era uma nuvem accedilucarada de sabor contrastante
um nada azedinho rompendo o doce dava ateacute um arrepio Era o jeito de a voacute aproveitar
as frutas que sobravam no mercado Natildeo se pode desperdiccedilar sumo algum mesmo que
as frutas despenquem podres no meio das sobras (MOSCOVICH 2006 p94)
O trecho expressa o fazer culinaacuterio de um doce que deixou lembranccedilas sensoriais na
protagonista expressas por termos como lsquonuvem accedilucarada de sabor contrastantersquo lsquoum nada
azedinho rompendo o docersquo e sobretudo a revelaccedilatildeo de que lsquodava ateacute um arrepiorsquo Entretanto as
escolhas alimentares na cultura judaica natildeo teriam por princiacutepio dar relevacircncia ao prazer mas aos
elementos religiosos Existe um conjunto de regras de idoneidade alimentar na cozinha judaica
chamada kasherut e cada alimento pertencente a tal conjunto e entatildeo permitido eacute chamado
kasher A respeito das tradiccedilotildees religiosas implicadas na alimentaccedilatildeo Ariel Toaff no capiacutetulo
lsquoCozinha judaica cozinhas judaicasrsquo do livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas
esclarece
Afirma-se em geral que as praacuteticas da alimentaccedilatildeo judaica estatildeo essencialmente
enquadradas na oacutetica do sistema religioso fundamentadas em proibiccedilotildees biacuteblicas
ampliadas e interpretadas pelas normativas rabiacutenicas Em outros termos o judeu comeria
alimentos que lhe satildeo permitidos descartando todos aqueles que de uma ou outra forma
entrassem nas categorias explicitamente proibidas pela biacuteblia ou pela hermenecircutica
geralmente extensa da ritualiacutestica posterior Nesse sentido suas escolhas alimentares
deveriam ser consideradas como fundamentos de sua identidade cultural e religiosa A
gama de proibiccedilotildees parece vasta e sem duacutevida condicionante (TOAFF 2009 p179)
81
Eacute interessante observar que mesmo focados na obediecircncia agraves normas havia uma culinaacuteria
rica de prazer dentro da cultura Apesar das influecircncias externas e as proibiccedilotildees religiosas
configurou-se uma cozinha judaica nuclear baseada no gosto Na Europa do seacuteculo XV ou XVI
os alimentos definidos como lsquoagrave hebraicarsquo ou lsquoagrave judiarsquo expressavam ingredientes gosto e aspecto
tipicamente judaicos e eram imediatamente reconhecidos como tal
O marzipatilde e as panquecas com mel e canela o patecirc de fiacutegado gordo os Griben (pedaccedilos
fritos de pele [de ave]) e os salsichotildees de ganso o hamin a carne guisada do Shabatt
com feijotildees e gratildeos-de-bico lsquocom pimenta e alhorsquo as alcachofras fritas lsquoagrave rosarsquo e a
endiacutevia assada no forno com lsquopeixe azulrsquo todos eles alimentos cuja preparaccedilatildeo era
comumente qualificada como lsquoagrave hebreacuteiarsquo natildeo eram decerto chamados desse modo pelo
fato de seu consumo ser permitido ou prescrito aos judeus pelas normas da biacuteblia e dos
rabinos mas porque se reconhecia neles a expressatildeo particular do gosto judaico [hellip] O
fato incontroverso eacute que o gosto gastronocircmico judaico parecia evidentemente diverso
daquele do ambiente cristatildeo circundante (TOAFF 2009 p183)
A evocaccedilatildeo sensorial eacute provocada pelos alimentos judaicos quando ateacute os nomes
despertam curiosidade e imaginaccedilatildeo pela forma e pelo gosto Ali estaacute bem expresso um conjunto
de sabores pertencentes agrave cultura e agrave vivecircncia de prazer associados agrave comida O capiacutetulo de Ariel
Toaff no livro O mundo na cozinha histoacuteria identidade trocas defende que o gosto e o prazer
na culinaacuteria judaica foram elementos de forccedila suficiente para ultrapassarem as proibiccedilotildees
religiosas aspecto corroborado pelo grande nuacutemero de receitas daquela cultura
O prazer alimentar estaacute associado a esse aspecto cultural de um povo Carlos Alberto
Doacuteria em seu livro Formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira aponta que
Em termos simples todo dia eu acordo me sentindo brasileiro ou espanhol ou tcheco
etc Isso ocorre porque falo uma liacutengua alimento-me de determinada comida sei como
meus compatriotas se comportaratildeo diante de certas situaccedilotildees e assim por diante Haacute um
sentimento multifacetado de pertencimento que me faz nacional (DOacuteRIA 2014 p24)
Esse pertencimento tem como parte culinaacuteria pois identifica gostos e ingredientes de um
povo No caso especiacutefico da culinaacuteria judaica essa caracterizaccedilatildeo ocorre mesmo quando
adaptada a outras culturas e produtos como Toaff aponta Em por que sou gorda Mamatildee a
narradora faz um relato que contempla a cozinha judaica vivenciada em sua infacircncia adaptada agrave
cultura local sem no entanto perder sua principal expressatildeo nos pratos tiacutepicos
Como sempre acreditamos no aprendizado pela dor a fome passou a ser o grande
mestre liccedilatildeo que pai nenhum queria que os filhos aprendessem Atestando que os
tempos haviam mudado e que este naco do Brasil era uma Canaatilde as cozinhas do Bairro
eram usinas de todo tipo de comida
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Agraves sete da manhatilde mal se pulava da cama e uma nuacutevem aromaacutetica e uacutemida jaacute tinha
invadido a casa As panelas ferviam galinhas as cebolas se atiravam agrave fritura as lacircminas
das facas trituravam ramos de tempero verde colheres de pau puxavam refogados nas
caccedilarolas batalhotildees rechonchudos de almocircndegas se alinhavam nas taacutebuas de carne ao
lado de um fornido regimento de varenikes que logo iam encontrar seu destino na aacutegua
pelando No bairro inteiro cedinho frio ou calor chuva ou sol matildeos zelosas estripavam
peixes recheavam pimentotildees cortavam ovos duros mexiam guisados lavavam arroz
arrancavam folhas dos ramos de louro Tempero lambido na concha da matildeo douravam
batatas raspavam cenouras sovavam massas fatiavam tomates queimavam berinjelas
batiam espinafre amassavam miuacutedos de frango esmagavam dentes de alho Enquanto
pepinos eram enfiados em enormes potes de vidro para a conserva de salmoura
amendoins em trouxas de panos de prato eram batidos a martelo pecircssegos ameixas e
peras se compotavam marmelos de accedilucaravam cremes se encorpavam nacos de
goiaba e punhados de uva em passa enchiam o oco de maccedilatildes vermelhas e lustrosas
(MOSCOVICH 2006 p48-49)
A escolha pelo uso do preteacuterito imperfeito nos atos culinaacuterios ilustra o aspecto rotineiro
com que essas praacuteticas eram realizadas dentro da vida do bairro de predominacircncia judaica Todo
cotidiano era tecido pela manhatilde pelos aromas texturas e costumes que compunham a cultura
local O trecho remete o leitor a um passado que se perpetua atraveacutes dos movimentos vividos nas
cozinhas pelo que a narradora refere como lsquomatildeos zelosasrsquo Haacute no pano de fundo desse
fragmento a ideia da repeticcedilatildeo das accedilotildees como marca de continuidade de haacutebitos gostos e
preferecircncias A narradora prossegue seu relato transmitindo lembranccedilas da cozinha judaica
vivenciadas em seu bairro
Eu feliz na atmosfera lavada das manhatildes mastigando o haacutelito de cafeacute e pasta de dente
gostava de ver as mulheres que vinham da feira livre com sacolas nas quais adejavam
verduras outras traziam suspensas de ponta-cabeccedila galinhas vivas que arregalavam os
olhos redondos num susto de morte Algumas donas de casa elas mesmas fariam o
talho na garganta por onde se esvairia o sangue do bicho enquanto outras mais
piedosas ou covardes ou que seguissem a lei alimentar a kashrut recorriam ao shochet
responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual Todas para um uacutenico lugar a cozinha matriz do
afeto de nossa gente Pratos com nomes esquisitos e tatildeo familiares varenikes beigales
mondales knishes strudels iuchs kasha rossale borscht guefiltefish chrein kishke
kreplach tzimes
Comida para um exeacutercito (MOSCOVICH 2006 p49 grifo do autor)
No trecho acima lecirc-se o aspecto religioso ligado agrave culinaacuteria quando a narradora aborda a
lei alimentar a kashrut e o shochet responsaacutevel teacutecnico pelo abate ritual das galinhas Outro
elemento apontado eacute a referecircncia aos pratos judaicos remetendo agrave ligaccedilatildeo entre cozinha e
pertencimento a um povo elemento cultural referido por Carlos Alberto Doacuteria apresentado
anteriormente Um ponto relevante apontado por esse autor eacute a citaccedilatildeo de Levi Strauss ldquoGestos
aparentemente insignificantes transmitidos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua
insignificacircncia mesma satildeo testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou
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movimentos figuradosrdquo (DOacuteRIA 2014 p215) Assim eacute possiacutevel compreender os gestos
corporais dos atos culinaacuterios apresentados pela narradora sobre a rotina alimentar em seu bairro
como um importante testemunho da cultura judaica daquele territoacuterio
Aleacutem disso uma frase de grande relevacircncia no fragmento eacute lsquoTodas para um uacutenico lugar a
cozinha matriz do afeto de nossa gentersquo Nessa o viacutenculo entre o comer e o afeto expressa um
importante fator da cultura judaica a essa ligaccedilatildeo estaacute associada tambeacutem a sensaccedilatildeo prazerosa
da comida partilhada Carlos Alberto Doacuteria expotildee a reflexatildeo de Annie Hubbert quando ela
registra
Especialmente nas sociedades onde as representaccedilotildees coletivas passam por livros
religiosos (os judeus os cristatildeos e os muccedilulmanos) o ato de comer aparece ligado ao
amor materno e recusar a comida eacute o mesmo que recusar essa modalidade fundante de
afeto um ato que exprime grande emoccedilatildeo (DOacuteRIA 2014 p204)
Dividir a comida eacute tambeacutem nutrir o sentimento de pertencer ao grupo de fomentar a
permanecircncia dos atos que satildeo parte dos costumes desse grupo como aqueles atos apresentados
no trecho anterior em preteacuterito imperfeito atos culinaacuterios que satildeo parte do cotidiano das
cozinhas do bairro Somam-se alimento afeto rotina cultura prazer pertencimento partilha
continuidade
Ainda sobre o gosto da cozinha judaica Toaff escreve
As mercearias dos guetos pululavam de clientes cristatildeos mais gulosos do que
esfomeados [hellip] A aproximaccedilatildeo dos cristatildeos agraves comidas judaicas era sempre ambiacutegua e
ambivalente atraiacutedos (e ao mesmo tempo desconfiados) por aqueles pratos que podiam
ter significados hereacuteticos imprevistos e por aqueles sabores exoacuteticos que exerciam
veladas seduccedilotildees de transgressatildeo lsquoComer agrave judiarsquo era um pouco como tornar-se judeu
no prazer de um momento sentir de dentro o fasciacutenio daquilo que era difiacutecil (e talvez
impossiacutevel) aprender de fora [hellip] Comer uma alcachofra lsquoagrave judiarsquo ou uma fatia de patildeo
aacutezimo era como fazer uma perigosa e temeraacuteria viagem ao estrangeiro uma espeacutecie de
percurso sedutor da igreja agrave sinagoga da qual poreacutem pretendia-se voltar o mais raacutepido
possiacutevel (TOAFF 2009 p183-184)
Compreende-se assim que a cozinha judaica tinha o apelo sedutor que provocava prazer
ateacute em outras culturas como a cristatilde Isso ocorria por sua forccedila especiacutefica pelo nuacutecleo vasto de
receitas e de modos-de-fazer este ou aquele prato no entanto tal apelo ocorria em grande parte
por simbolizar o proibido e o desconhecido aos cristatildeos Agradava-lhes a transgressatildeo dessa
cozinha tiacutepica seus sabores e significados Natildeo se tratava apenas de apreciar o gosto mas
84
tambeacutem o que tal culinaacuteria representava a um ambiente cultural diverso enfrentar a culpa e
encontrar o prazer do gosto clandestino
Para os proacuteprios judeus a amplitude de receitas e de gostos dos pratos lsquoagrave judiarsquo era tatildeo
arraigada que o gosto era parte de suas escolhas para aleacutem da imposiccedilatildeo religiosa Sobre isso
Toaff reflete ldquoHaacutebitos e tradiccedilotildees alimentares inquietudes irracionais gosto e nostalgias faziam
com que mesmo nos casos extremos o paladar abandonasse o judaiacutesmo muito mais lentamente e
de maacute vontade do que o coraccedilatildeo ou a menterdquo (TOAFF 2009 p185)
Ariel Toaff demonstra o ponto a ser discutido sobre o aspecto cultural dessa culinaacuteria em
relaccedilatildeo ao prazer alimentar as restriccedilotildees e as proibiccedilotildees religiosas de um lado o prazer de
manter vivo o respeito pela tradiccedilatildeo de receitas tiacutepicas lsquoagrave judiarsquo que representam o gosto
alimentar dos judeus de outro Apesar das proibiccedilotildees a essecircncia da cozinha judaica se manteve
atraveacutes de uma vasta quantidade de receitas Eacute possiacutevel compreender isso pelo fato de o prazer
ser um fenocircmeno exclusivamente humano cujas caracteriacutesticas satildeo o equiliacutebrio fisioloacutegico e
psiacutequico que leva ao bem-estar de acordo com o Jaspers Em sendo fenocircmeno humano
pronuncia-se no indiviacuteduo de todos os tempos e de todas as culturas e eacute elemento ateacute mesmo
capaz de sobrepujar um constructo como as proibiccedilotildees religiosas como no caso da cozinha
judaica
O que mais chama a atenccedilatildeo lendo a pesquisa de Ariel Toaff eacute de como o gosto judaico
foi sendo construiacutedo a ponto de configurar-se como uma tradiccedilatildeo culinaacuteria Outro elemento
interessante referido pelo autor satildeo os processos de osmose com outras culturas alimentares a
partir das emigraccedilotildees dos judeus para diferentes territoacuterios O paladar judaico foi adicionando
alimentos agrave sua lista ingredientes e pratos de outras culturas foram sendo incorporados ao seu
gosto
Um trecho que ilustra essa lsquoosmosersquo estaacute no comeccedilo de Por que sou gorda mamatildee
quando a narradora-personagem conta a histoacuteria da chegada de sua famiacutelia ao Brasil e a
aproximaccedilatildeo de seu bisavocirc a um iacutendio proacuteximo agrave moradia da famiacutelia
[hellip] Um desses bugres vovoacute natildeo tinha certeza de que era o mesmo que fora aprisionado
deixou uma tigela de farinha - dependendo da versatildeo um pedaccedilo de carne- na porta da
casa O bisavocirc na mesma tijela e no mesmo lugar ofereceu para o iacutendio uma porccedilatildeo de
aipim cozido (ou uma porccedilatildeo de chulent ou um pedaccedilo de leikech) Tijela vai tijela
volta o bugre fez amizade com o bisavocirc falavam-se de iniacutecio com os dedos Depois
passaram a dividir o mesmo tronco de aacutervore no qual o bisavocirc sentava para o descanso
do final da tarde Depois para o pasmo geral viram o iacutendio vestindo uma camisa e uma
85
calccedila do bisavocirc mesma eacutepoca em que vovoacute viu entrar em casa uma gamela talhada em
madeira e uma cesta em trama de taquaras
Mesmo que mulheres e crianccedilas estivessem proibidas de se aproximar do bugre ele de
posse de uma enxada passou a ajudante nas lides da roccedila e a trazer aacutegua de uma sanga
ali perto Tambeacutem alcanccedilava ervas com as quais o bisavocirc fazia emplastros para as dores
nas juntas e picadas de insetos aleacutem de infusotildees e chaacutes para tosse e vermes
A vovoacute jurava que era verdade quando viram o iacutendio falava iiacutediche
Deram ateacute nome para o homem Chamavam-no Salvador (MOSCOVICH 2006 p65-
66 grifo nosso)
A osmose era natildeo apenas de ingredientes mas de costumes de atitudes de
camaradagens Havia prazer nas trocas e no conviacutevio do bisavocirc com o iacutendio Esse trecho eacute um
dos mais representativos da obra pois expressa de forma muito clara como a cultura judaica foi
permeaacutevel no exemplo narrado agraves influecircncias e agraves gentilezas e escambos do bugre A famiacutelia
comeccedilava sua histoacuteria em terras brasileiras Um trecho que expressa o papel da comida nos
primeiros tempos da famiacutelia no Brasil eacute o que segue
Uns oito nove ou dez anos depois da chegada ao Brasil o bisavocirc tinha abandonado a
colocircnia e enveredado pelos interiores do hemisfeacuterio mascateava Soacute laacute naquela Canaatilde
da fronteira entre o Brasil e o Uruguai terminou a busca de um futuro que seria melhor
mas que natildeo seria dele Havia chocolates Aguila chaja embalado em papel manteiga
morrones queimados na brasa e carne muita que se assava em grelhas sobre braseiro
vivo Tudo isso natildeo chegava agrave casa e agrave mesa da famiacutelia que se alimentava de mameligue
ou farinha de mandioca agrave qual se acrescentava cafeacute com muito accediluacutecar que accediluacutecar natildeo
podia faltar Aos domingos cada um dos filhos recebia um tablete de mariola piteacuteu
envolto em papel celofane a ser poupado ateacute a semana seguinte um pedacinho de cada
vez Ou chupado como se fosse bala que assim durava mais (MOSCOVICH 2006
p71 grifo ou do autor)
Assim haacute trechos em que a protagonista narra as experiecircncias dos antepassados em
zigue-zague com outros em que reflete sobre seu engorde retomando o foco no presente Fala
entatildeo de sua dieta em contraste com a vivecircncia de sua famiacutelia com a fome Bisavoacutes avoacutes e pais
ao sentirem fome comeccedilaram a comer mais quando o alimento tornou-se disponiacutevel a eles no
caso da narradora foi preciso fazer o caminho contraacuterio ao sentir fome comeccedilar a comer menos
A referecircncia lsquoVovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e macarratildeo de letrinhasrsquo
demonstra que a loacutegica de sua avoacute era dar consistecircncia e energia agrave comida fornecendo-lhe fontes
de carbohidrato Assim a perspectiva era contraacuteria agrave restriccedilatildeo alimentar a que estava submetida
pelas orientaccedilotildees do meacutedico
Com o frio comer salada doacutei na alma
Sopa de legumes fazia tempo que natildeo preparava o panelatildeo fervente carne aipo
aboacutebora chuchu cenoura couve cebola espiga de milho cortada em rodelas pequenas
Enquanto escrevo a sopa se agita no fogo e um haacutelito bondoso que eacute cheiro de casa
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visita todas as peccedilas Espero a hora de submeter noz-moscada ao ralador e de cortar bem
miuacutedo tempero verde e ovos duros Vovoacute Magra teria engrossado o caldo com cevada e
macarratildeo de letrinhas (MOSCOVICH 2006 p68)
A heranccedila para o prazer de comer deu-lhe desde a infacircncia a predileccedilatildeo pelos excessos
Porque a lei era o comer Ela comenta
Noacutes as crianccedilas estaacutevamos em fase de crescimento Como durou a tal fase Anos
Crianccedilas em fase de crescimento precisam comer muito bem para ter ossos fortes e
ceacuterebros ativos para o estudo Portanto a mesa do almoccedilo em nossa casa era farta Aliaacutes
a mesa do almoccedilo em nossa casa era um excesso Mas natildeo um excesso fuacutetil natildeo um
supeacuterfluo sem sentido Nossa mesa queria dizer comam vocecircs natildeo precisam passar
fome Fome eu vim passar adiante quando comecei as dietas (MOSCOVICH 2006
p23)
O aprendizado de exceder era associado natildeo apenas agrave saciedade mas ao prazer agrave ideia de
uma lsquomesa felizrsquo como se pode compreender a partir do seguinte fragmento
Se havia cinco pessoas na mesa de bifes deveria haver por baixo dez Para que natildeo
passaacutessemos pela dureza de medir o que estaacutevamos comendo quantos bifes satildeo meus
quantos satildeo seus Se isso acontecesse papai simplesmente natildeo comia bifes para que
mais houvesse para dividir
Numa mesa feliz natildeo se contam os bifes (MOSCOVICH 2006 p24)
O pai preocupado com o engorde dos filhos passou a adotar a imposiccedilatildeo da disciplina
alimentar riacutegida Para a protagonista a cada aumento dos quilos na balanccedila havia uma nova
ordem para o regime A protagonista lembra-se dessa fase e relata na carta para a matildee o periacuteodo
em que o pai determinou que os filhos fizessem dieta
Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre
com o Fairlane rabo-de-peixe A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos enterrado
o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como eram-
mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos ancorava
no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de construir o corpo
de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo fosse do jeito e na
hora em que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH 2006 p93)
Depois de diversas passagens entre passado e presente haacute uma retomada na histoacuteria em
direccedilatildeo agrave ordem paterna para a dieta pela quebra do carro da famiacutelia o tal lsquoFairlane rabo-de-
peixersquo Isso ocorre pelo excesso de peso na protagonista de seus irmatildeos e de suas tias de lado
paterno Frente agrave ameaccedila de dieta ela reinvindica ldquo[hellip] Entrei em pacircnico Dieta era alguma coisa
horrorosa natildeo comer um monte de coisas principalmente massas e doces eu protestei na busca
de meus direitosrdquo (MOSCOVICH 2006 p203) Ao que o pai linhas depois refere ldquo-Vocecircs vatildeo
fazer dieta E vai ser para toda a vidardquo (MOSCOVICH 2006 p204)
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Dieta era assim ordem paterna veredicto imposiccedilatildeo e ameaccedila de perda dos direitos Natildeo
poderia ser algo para o bem para a sauacutede jaacute que restringia o prazer de comer o que se gosta De
um lado a Vovoacute Magra tinha deliacutecias em sua sacola de crocheacute para satisfazer o gosto dos netos
de outro o pai definia categoricamente que a lei da casa era a dieta Da avoacute materna com as
guloseimas estava o afeto do pai com a voz de mando o cuidado com a sauacutede Ambas as
manifestaccedilotildees eram a expressatildeo de amor que cada um deles era capaz de oferecer de acordo com
sua histoacuteria e com sua personalidade
Um elemento importante para a compreensatildeo do engorde da protagonista estaacute em sua
infacircncia quando ao contraacuterio do que ocorreu na vida adulta precisou fazer dieta para engordar
Mais uma vez a Voacute Magra tem papel crucial nesse processo conforme mostra o trecho abaixo
Os que me conhecem soacute agora natildeo acreditam Nem eu acredito Ateacute uns sete ou oito
anos eu era uma crianccedila inapetente Vovoacute Magra chegava em casa com pedaccedilos de
alcatra chuletas ou bifes de fiacutegado cortes que ela havia escolhido com ciecircncia no balcatildeo
do accedilougue do seu Jorge Depois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho
direto para a cozinha e ali direto aos armaacuterios Sentava-me junto agrave mesa de foacutermica
Vovoacute dava de matildeo numa pequena frigideira de alumiacutenio com duas alccedilas de baquelite jaacute
retorcidas pelo calor Aacutegua esponja sabatildeo pano de prato Daiacute um fio de oacuteleo Mazola-
ou Sol Levante aquele que estivesse mais em conta na ocasiatildeo- escorria da lata natildeo
muito o suficiente para que uma poccedila dourada se armazenasse no cocircncavo da frigideira
No balcatildeo da pia vovoacute ordenava o pote de sal uma taacutebua de madeira chaira batedor de
bife a faca de corte e o embrulho de papel pardo no qual seu Jorge tinha riscado o total
a pagar Na abertura do pacote lembro aquele cheiro cru e meio arisco o papel
manchado de sangue da pobre vida extinta A faca era passada na chaira em movimentos
agudos um sibilar que me causava arrepio nos dentes Depois com a lacircmina vovoacute
eliminava nervos sebo e outras impurezas que soacute ela podia identificar Finalmente
espalmava os dedos sobre a peccedila de carne e em talhos saacutebios cortava em fatias Agraves
vezes usava o batedor para domar algum pedaccedilo mais resistente tunda de laccedilo na carne
que batia na madeira que batia na pedra que por seu turno estremecia o balcatildeo e todos
os cocircmodos da casa Uma pitada de sal o oacuteleo tinindo recebia a carne com uma
chiadeira labaredas azuladas salpicavam as fatias- daacute-lhe fumaccedila um nevoeiro que
anunciava a forccedila resistindo agrave morte (MOSCOVICH 2006 p35-36)
A Voacute Magra participava da alimentaccedilatildeo da neta natildeo apenas no preparo dos bifes mas
tambeacutem na extraccedilatildeo do sumo que resultava deles e na oferta do caldo agrave protagonista ainda
crianccedila Percebe-se o zelo da avoacute todo esse processo no qual o alimento representa nutriccedilatildeo
fiacutesica e cuidado afetivo
Dado o susto vovoacute colocava os bifes num prato fundo e com um garfo espremia e
espremia ateacute reunir uma boa quantidade de sumo sanguinolento Um pano ajeitado como
babador e entornando um pouco o prato com uma colher de sobremesa dava-me aos
bocados aquela riqueza nutritiva (MOSCOVICH 2006 p36)
88
Ressalta-se o detalhamento com que a narradora apresenta os utensiacutelios de cozinha no
preparo dos bifes e os atos culinaacuterios da Voacute Magra Se natildeo haacute referecircncia direta ao prazer de
comer haacute o conhecimento visceral da avoacute no cozinhar Cada movimento eacute conhecido pelo corpo
e traduzido pelo uso dos utensiacutelios O que marca o trecho eacute o afeto com que a avoacute faz os bifes
para a neta o cuidado que tem com cada nuance do preparo expresso na proacutepria dedicaccedilatildeo e
tambeacutem em especial na frase lsquodepois de me beijar sempre muito eu a seguia no caminho direto
para a cozinharsquo Este eacute um dos trechos emblemaacuteticos da obra em termos de expressatildeo da cozinha
como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico nesta narrativa pois mostra dados como o oacuteleo na frigideira a
destreza com cada instrumento e o zelo no preparo do alimento como reforccedilo nutricional
A narradora segue o relato sobre os bifes que colocam sua matildee em segundo plano
Se vovoacute natildeo vinha o jeito era a senhora mamatildee me sentar na frente do preacutedio reunir
crianccedilas e cachorros da vizinhanccedila ao meu redor e fazendo aviatildeozinho enquanto eu me
distraiacutea me enfiar goela abaixo colheradas de legumes carne e todo o resto que eu
detestava
Natildeo me lembro quando comecei a comer feito gente grande Nunca mais parei
(MOSCOVICH 2006 p36-37)
Haacute uma diferenccedila na percepccedilatildeo da narradora sobre a forma como a Voacute Magra lhe oferecia
a lsquoriqueza nutritivarsquo aos bocados e aquela como a matildee o fazia ao lsquoenfiar goela abaixo
colheradas de legumes carne e todo o resto que eu detestavarsquo O contraste estaacute sobretudo na
expressatildeo do afeto que leva a protagonista o falar em lsquoriqueza nutritivarsquo quando menciona o
cuidado da avoacute e ao referir-se ao termo lsquogoela abaixorsquo sobre o alimento oferecido pela matildee
Possivelmente o prazer de comer tivesse sido originado no afeto ligado ao alimento e ao cuidado
pela avoacute pois eacute das cenas com esta que restaram os principais registros de memoacuteria sugerindo
que a lembranccedila daquele preparo eacute muito mais viva do que aquela da interaccedilatildeo com sua matildee A
frase lsquonunca mais pareirsquo mostra o comportamento de comer como algo que passou a se repetir
sugerindo a presenccedila de prazer que impele agrave repeticcedilatildeo
A partir do ponto em que comeccedilou a comer e entatildeo a engordar junto a seus irmatildeos
instalou-se na famiacutelia a determinaccedilatildeo de regime para os trecircs ordenada pelo pai A protagonista
refere
Em casa o pai havia imposto uma rotina severa ainda mais severa depois do desastre
com o lsquoFairlane rabo-de-peixersquo A senhora obedecia sem nos mimar e haviacuteamos
enterrado o haacutebito do prazer em prol da dieta de emagrecimento As coisas eram como
eram- mesmo porque natildeo podiam ser diferentes Essa ordem sei agora era o que nos
ancorava no mundo um prazer diluiacutedo apesar de amplo mas sempre prazer de
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constituir o corpo de uma famiacutelia com suas horas de almoccedilo e jantar Tudo o que natildeo
fosse do jeito e na hora que deveria era corrupccedilatildeo viacutecio ou engordava (MOSCOVICH
2006 p93)
Quando refere lsquoEssa ordem sei agora era o que nos ancorava no mundorsquo estaacute
expressando que sob a perspectiva adulta consegue ver a razatildeo da imposiccedilatildeo do pai ancorar os
filhos no mundo Estabelecia-se uma dicotomia entre a postura da Voacute Magra que partilhava seu
prazer alimentar com os netos e a do pai que assumia a funccedilatildeo de impor normas aos filhos Para
a narradora essa divisatildeo era contundente a bagagem de carinho da avoacute materna era o paraiacuteso a
forccedila da voz paterna era o inferno restringia definia acusava ordenava proibia O livro traz
todo o conflito da narradora personagem em seu tracircnsito por essa dicotomia ao longo da vida ateacute
apresentar os resultados do excesso de comer em seu corpo os terriacuteveis vinte e dois quilos ou
cento e dez tabletes de manteiga ou quarenta e quatro espetos de picanha
A ordem paterna para a dieta transforma-se na idade adulta na ordem do meacutedico
tambeacutem uma voz impositiva ameaccediladora e acusatoacuteria Essa eacute expressa jaacute no proacutelogo quando a
protagonista conta o motivo de sua reflexatildeo sobre a histoacuteria familiar e a pessoal para
compreender o porquecirc de chegar ao excesso de peso
- Vocecirc natildeo estaacute gorda
Certo meu estado natildeo era transitoacuterio a gordura nunca foi um episoacutedio solteiro em
minha vida eu sabia ele nem precisava ir adiante Mas ele foi
- Vamos fazer suas ceacutelulas adiposas murcharem -Pediu minha atenccedilatildeo com a caneta no
ar- sei que parece injusto mas a natureza a fez assim Vocecirc eacute gorda
Uma vez mais de novo (MOSCOVICH 2006 p15)
A uacuteltima frase lsquouma vez mais de novorsquo refere-se possivelmente agrave lembranccedila sobre o
veredito do pai na infacircncia quando mandou que ela e os irmatildeos fizessem dieta O prazer de
comer tornava-se sempre transgressor da ordem sempre um mundo proibido e recheado de
culpas impostas por terceiros Por mais que ela natildeo quisesse sentir as culpas aprendera que
deveria senti-las para afastar-se do prazer
Com a evoluccedilatildeo da dieta conduzida pelo meacutedico a personagem comeccedila a conseguir
emagrecer e a perda de peso vai ganhando por sua vez gosto de vitoacuteria Emagrecer tambeacutem se
torna um prazer o que reflete a sua conscientizaccedilatildeo para a mudanccedila de haacutebitos e mais ainda
para o seu amadurecimento Haacute na protagonista a consciecircncia de sua responsabilidade pelas
escolhas alimentares e pelo resultado da dieta em sua sauacutede A mudanccedila de postura destaca-se
atraveacutes do termo lsquoum deliacuteriorsquo ponto em que se percebe sua capacidade de avaliar o que pode e o
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que natildeo pode comer sem precisar ouvi-lo de terceiros A personagem conta o que sente
demonstrando sua disposiccedilatildeo para mudar a atitude frente agrave comida
Uma enorme vontade de comer uma daquelas refeiccedilotildees de estivador arroz feijatildeo ovo
frito massa bife na chapa purecirc de batatas salada de tomate e cebola Tudo num uacutenico
prato fundo e transbordante Para beber uma daquelas cervejas pretas docinhas das
quais se dizia que eram boas para mulheres que amamentavam Sobremesa pudim de
leite
Soacute vontade Um deliacuterio
Descobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um punhado de
parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagado Tambeacutem descobri que atum em lata e
dois ovos duros saciam por mais de quatro horas Uma xiacutecara de cafeacute e um pedaccedilo de
queijo enganam a fome por um bom tempo Disso eu sabia mas tinha me esquecido
Fui verificar meu peso um quilo e novecentos gramas a menos (MOSCOVICH 2006
p125-126)
A passagem acima ilustra um periacuteodo da personagem jaacute adulta em seu progresso durante
a dieta Quando ela diz lsquoDescobri que uma salada de alface e tomates fica mais saborosa com um
punhado de parmesatildeo azeite e um dente de alho esmagadorsquo (MOSCOVICH 2006 p125-126)
estaacute demonstrando que jaacute eacute capaz de encontrar prazer e sabor dentro da dieta ao inveacutes de lutar
com as restriccedilotildees como fez desde a infacircncia Eacute nesse momento que a comida assume um caraacuteter
de transformaccedilatildeo na narrativa a mudanccedila de postura em relaccedilatildeo ao foco de prazer na comida de
uma lauta refeiccedilatildeo ao novo modo de temperar a salada Como resultado a perda de peso
O significado de tal mudanccedila estaacute justamente na conscientizaccedilatildeo que representa Ao dizer
lsquoSoacute vontade Um deliacuteriorsquo a protagonista expressa conhecer os perigos de lsquouma daquelas refeiccedilotildees
de estivadorrsquo como a que descreve Mostrando a mudanccedila de possibilidades estaacute dizendo a si
mesma que compreendeu que eacute preciso mudar a fonte de prazer para atingir o emagrecimento
proposto pelo meacutedico
Nesse momento aliaacutes a ordem natildeo vem mais do pai natildeo vem mais do meacutedico E nem eacute
mais uma ordem Eacute entatildeo uma escolha E o melhor de tudo parte da proacutepria narradora
personagem em seu percurso no anseio do que pede agrave sua matildee no proacutelogo ldquoMamatildee me
endereccedilo agrave senhora preciso de ajuda Que a senhora me ajude a palmilhar esse territoacuterio
metafiacutesico de recordaccedilotildees Que me ajude a mandar essa dor embora Quero voltar a ter um
corpordquo (MOSCOVICH 2006 proacutelogo)
A voz para a matildee eacute na verdade a voz em que ela se permite emitir essa narrativa Em
essecircncia a voz eacute dirigida a si mesma e o pedido para lsquovoltar a ter um corporsquo segue o verbo
querer na primeira pessoa do singular no presente do indicativo Eacute a afirmaccedilatildeo de um desejo de
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uma escolha Natildeo eacute o pai natildeo eacute o meacutedico natildeo eacute a interlocuccedilatildeo com a matildee A lei agora eacute sua
segue seu proacuteprio querer Da refeiccedilatildeo de estivador agraves alternativas possiacuteveis a narradora mostra o
que compreendeu eacute agente da proacutepria transformaccedilatildeo eacute emissora da proacutepria voz Tem um corpo
sim Mais do que isso tem um novo querer tambeacutem prazeroso e mais saudaacutevel o
emagrecimento
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3 COZINHA E AUTONOMIA EM QUARENTA DIAS
Levantei-me as pernas agora quase firmes desci os degraus da porta ateacute a calccedilada
buscando algo para comer e o que havia no meu raio de visatildeo era uma carrocinha de
pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me desde que horas ele estava ali se
tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda
agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido Cheguei junto dele remexendo a bolsa
agrave procura de uns trocados que tivessem restado da farra de salgadinhos e biscoitos da
Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada desde entatildeo (REZENDE 2014
p147)
Comida eacute alimento nutriccedilatildeo sobrevivecircncia Eacute palavra feita de carne de aboacutebora de
arroz Tangiacutevel Comemos para nutrir as ceacutelulas mas tambeacutem para garantir nossa autonomia
porque comida eacute escolha eacute expressatildeo de si mesmo gosto disso prefiro aquilo Comida eacute
exerciacutecio de liberdade no quando no quanto no onde no que comer E comer eacute matar a fome e
satisfazer o apetite na comida de rua servida no papel pardo ou na mesa posta com talheres
prato copo guardanapo Comemos intransitivos ou transitivos sozinhos ou acompanhados
Comemos para atravessar mais um dia para seguir existindo como oacutergatildeos viacutesceras cinco
sentidos Mastigar salivar engolir digerir metabolizar excretar eis o trajeto da comida atraveacutes
do organismo tornando-se parte de quem somos E comemos para continuar sendo
31 QUARENTA DIAS
Quarenta dias eacute o livro escrito por Maria Valeacuteria Rezende editado pela Editora Record
em 2014 A narrativa traz a histoacuteria de Alice mulher de meia-idade que a pedido de sua filha
muda-se de Joatildeo Pessoa para Porto Alegre A contragosto deixa sua casa e sua vida as amizades
e os afazeres e segue a demanda da filha para que se torne lsquovoacute profissionalrsquo jaacute que a moccedila e seu
esposo decidem ter um filho
A personagem faz a mudanccedila de tudo o que tem caixas e caixas para a nova cidade em
apartamento escolhido e alugado pela filha e o genro No entanto em um jantar na casa do casal
recebe a notiacutecia de que decidiram passar um periacuteodo fora do paiacutes para suas especializaccedilotildees
acadecircmicas Assim adiaram os planos de gravidez motivo pelo qual ela havia abandonado seu
habitat e aceito uma imposiccedilatildeo pelo desejo da moccedila em ser matildee Partiriam em poucos dias logo
apoacutes Alice ter chegado em sua nova moradia
93
No desterro de seu lar e sozinha na capital gauacutecha a personagem transfere seu territoacuterio
de nutriccedilatildeo para a rua para o espaccedilo representado pelo coletivo pela cidade e natildeo para a cozinha
nova e moderna do apartamento Haacute sobretudo um deslocamento primordial na narrativa a
lsquoexpulsatildeorsquo de suas reflexotildees para as paacuteginas do diaacuterioepiacutestola em que Alice escreve de si
dirigindo-se a uma interlocutora Barbie a figura na capa do caderno que encontrara entre as
caixas da mudanccedila
No iniacutecio de sua vida em Porto Alegre esconde-se em casa fingindo ter viajado para o
interior na casa de primos Entatildeo mune-se de um motivo benevolente que usa para justificar
suas caminhadas a qualquer pessoa com quem encontre a busca freneacutetica pelo rapaz conterracircneo
Ciacutecero Arauacutejo perdido no Sul Nessa missatildeo esquece o proacuteprio endereccedilo e decide por viver um
paradoxo casa que natildeo eacute casa rua que natildeo eacute rua Externo que se torna interno porque eacute parte
dela Rua que eacute casa parece em sendo casa na rua encontra abrigo para a solidatildeo na rua
encontra alimento para as fomes que sente Fome de comida sim mas para aleacutem desta a fome de
ser lsquosi mesmarsquo de novo
Sozinha perde-se de si de seus referenciais familiares dos telefones que tem na
memoacuteria dos sentidos de sua proacutepria vida Tem no desaparecido a razatildeo temporaacuteria para sua
andanccedila sem paradeiro Procurar um jovem de sua terra que veio para Porto Alegre eacute uma boa
desculpa para algueacutem que percorre uma cidade em seus pontos mais perigosos ou naqueles mais
dramaacuteticos como o Hospital de Pronto-Socorro Nem vestiacutegio de Ciacutecero mas laacute encontra um
banco de madeira onde pode dormir
Em seus trajetos transfere o espaccedilo ocupado pela cozinha que eacute o de preparar a nutriccedilatildeo
para um espaccedilo coletivo e itinerante Padarias pequenos botecos nas vilas que percorre carrinhos
de pipoca e de cachorro-quente restaurante da rodoviaacuteria em que escuta um sotaque familiar
comida ofertada aos sem-moradia nas madrugadas Sem desejar voltar para casa Alice passa a
habitar a rua Faz amigos ao longo do caminho pessoas que se preocupam mais com ela do que
sua filha Mas isso ela quer esquecer quer apagar e estabelece um objetivo firme de resgatar um
desaparecido pelos recantos mais insoacutelitos e arriscados da cidade
A representaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo itinerante eacute um fator muito consistente na obra
Porque a cozinha eacute territoacuterio fiacutesico definido por moacuteveis objetos e eletrodomeacutesticos que a
compotildeem mas eacute tambeacutem simboacutelico nela vivem nutriccedilatildeo afeto famiacutelia intimidade Transferir
tal importacircncia para o externo para o alheio a si eacute como um transplante ao contraacuterio
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O deslocamento na representaccedilatildeo dessa forccedila que transcende o objetivo meramente
nutricional expressa a ausecircncia de ninho vivenciada pela personagem Ela escolhe transplantar
sua vida para o lado de fora da porta escolhe a solidatildeo no meio do coletivo para apagar a solidatildeo
em silecircncio dentro das paredes de uma casa (e natildeo um lar) que a filha e o genro definiram para
ela Ao menos assim eacute ela quem escolhe Autonomia O que comer onde viver onde dormir
onde se banhar Por pior que seja o banho na rodoviaacuteria eacute sua voz eacute sua decisatildeo Por pior que
seja a noite no banco duro de madeira do Pronto-Socorro a pipoca do carrinho que fica ali na
frente o natildeo-ter-para-onde-ir fingindo estar na busca desenfreada pelo desaparecido eacute sua
proacutepria voz que precisa escutar Eacute pelo aparecimento de sua identidade perdida que faz
peregrinaccedilotildees pelos becos mais sombrios por onde se propotildee a percorrer
Ao longo do percurso do livro enquanto parece perder-se cada vez mais de seus
referenciais de sua memoacuteria mais firma o passo mais decide onde ir E suas frases no diaacuterio
vatildeo ganhando pontos-finais ao relatar o ocorrido agrave medida em que se lembra e se torna mais
capaz de contar da redescoberta de sua identidade Na crise da personagem atraveacutes desse
desalojamento de um habitat seguro dessa saiacuteda para fora da porta ocorre a habitaccedilatildeo de um
novo espaccedilo o proacuteprio eu Em seus percursos defronta-se com a perda dos referenciais antigos
da casa de sempre da memoacuteria que lhe permitiria voltar para o eixo seguro da nutriccedilatildeo estaacutevel
na intimidade soacutelida da cozinha
Alice desloca-se durante a maior parte da narrativa Desloca-se de sua terra natal para
Porto Alegre e nessa capital transita entre avenidas principais e becos escondidos entre
viadutos e casas de estranhos entre floriculturas e terrenos baldios Desloca-se de si mesma
quando decide natildeo voltar agrave casa escolhida para ela Escolhida eacute voz passiva voz que ela quer
transcender
Distrai-se com a histoacuteria do desaparecimento de Ciacutecero Arauacutejo com a confusatildeo mental
que se instala entre fome-frio-sono-exaustatildeo Tudo isto para natildeo lembrar volta-se para fora e
desse modo esquece o dentro Desloca o foco das confissotildees que faz a si sendo um diaacuterio para
Barbie como um sucessivo contar de eventos e emoccedilotildees em escritos que mais parecem cartas
Mais uma vez dentro e fora se conjugam pois acontecem num simultacircneo mas estatildeo
dissociados Alice dirige para fora suas reflexotildees para um terceiro entatildeo dissocia-se de si para
olhar para si
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Em um determinado ponto refere ldquoNatildeo Barbie esta noite natildeo dormi em saguatildeo nem em
parque nenhum Natildeo vecirc como estou bem-disposta a sentar-me pegar a caneta e continuar
escrevendo aqui nesta cozinha depois desta noite bem-dormida na suiacutete deste apartamento que
me esforccedilo para aceitar finalmente como meurdquo (REZENDE 2014 p163)
Estaacute dentro de casa mas ainda natildeo faz parte dela em verdade situa-se fora dali no sentir
Demonstra isso quando usa lsquobem-disposta nesta cozinha deste apartamento como meu me
esforccedilo para aceitarrsquo Tal dissociaccedilatildeo identitaacuteria eacute expressa por um permanente desconexatildeo
consigo Perde-se de sua casa e de seus referenciais para descobrir o paradeiro de Ciacutecero Arauacutejo
com o firme propoacutesito de encontrar um motivo que alinhave seus dias em Porto Alegre dentro de
si o sentido estaacute fora de si Nessa desconexatildeo descobre uma Alice nascente
Chega Barbie agora eu paro mesmo que jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia
guria a solidariedade silenciosa mas agora vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a
mal taacute natildeo digo que seja pra sempre quem sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo
a limpo (REZENDE 2014 p245)
Eacute possiacutevel ler que aquilo que estava fora sua narrativa epistolar para a Barbie seraacute
entregue ao mundo da gaveta o interno e passe a habitar esse lsquodomiciacuteliorsquo escondido Entretanto
Alice jaacute internalizou marcas de linguagem regionais como as tachadas em negrito lsquoguriarsquo e lsquotu
natildeo leva a mal taacutersquo significando esse ponto uma transformaccedilatildeo de aspectos de sua identidade a
incorporaccedilatildeo da linguagem oral como proacutepria Internalizou o que estava fora tornou-o seu
tambeacutem passou a sentir-se parte Como resultado guardou no interno na gaveta seu diaacuterio que
sendo comunicaccedilatildeo consigo era dirigido a um interlocutor
Esse eacute o permanente tracircnsito do livro essa dissociaccedilatildeo permeia cada vivecircncia e eacute atraveacutes
dessa mobilidade que Alice pode ver a si mesma e se transformar Sacudida pelo real perigo de
sua itineracircncia permanente aproxima-se do fim de sua busca por um Ciacutecero que nem espera mais
encontrar
Ao longo da narrativa haacute frases sem ponto final no teacutermino dos capiacutetulos e muitas vezes
com ideias inacabadas Um elemento ligado a esse aspecto eacute o das muacuteltiplas linguagens surgem
epiacutegrafes vindas de outros autores contemporacircneos e em vaacuterias partes do livro elementos
graacuteficos aludindo a folhetos colados no diaacuterio Assim a ruptura da linguagem linear adotando
uma expressatildeo proacutepria eacute composta por frases descontiacutenuas e de outras em que a viacutergula daacute
apenas a pausa necessaacuteria ao ritmo da voz sem preocupaccedilotildees formais com a gramaacutetica
Prevalece aliaacutes o registro do informal com letras maiuacutesculas seguindo viacutergulas interrogaccedilotildees
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no meio da frase sem uma letra maiuacutescula a seguir e assim por diante trazendo muito mais um
lsquocomo se falarsquo do que um lsquocomo se lecircrsquo
Tal elemento alia-se a um projeto graacutefico que apresenta aleacutem de texto imagens para
contemplar a lsquoformarsquo do livro como um diaacuterio Esta complementaridade toca em um tema de
grande relevacircncia no contemporacircneo a ligaccedilatildeo das artes para expressar um todo que ultrapasse
os territoacuterios particulares uma intersecccedilatildeo de saberes e de poeacuteticas que independentes em sua
importacircncia complementem-se As figuras lsquocoladasrsquo no diaacuterio natildeo parecem ter conexatildeo entre si
mas transmitem a ideia de uma escolha Foram postas ali por Alice Natildeo parece haver unidade
entre as imagens Colagem de figuras mas tambeacutem de vinhetas que se tornam epiacutegrafes sem
conexatildeo aparente entre si Essa ausecircncia de conexatildeo eacute possivelmente o que a obra pretende
comunicar com suas dissociaccedilotildees e com as frases descontiacutenuas agrave medida que a personagem
percorre o trajeto da autonomia as frases vatildeo ganhando finalizaccedilatildeo Ela comeccedila a decidir
Nesse livro a ausecircncia de unidade parece representar exatamente o contraacuterio sua
unidade Outro ponto a ser ressaltado eacute o fato de o diaacuterio ser escrito em uma mistura de tempos
natildeo seguindo a cronologia tiacutepica dos diaacuterios Muito do texto referente agrave eacute registrado em olhar
retrospectivo a todo o periacuteodo e natildeo segue uma ordem temporal tiacutepica em que a escrita iacutentima
sucede cada evento Mistura de tempos e de autores escolhidos para as epiacutegrafes e de figuras
selecionadas para compor o percurso lsquograacuteficorsquo da personagem como a nota da padaria a
propaganda da imobiliaacuteria a divulgaccedilatildeo da cliacutenica de traumatologia e por aiacute vai
Quarenta dias acontece no cerne mais cru da capital as vilas as avenidas movimentadas
a rodoviaacuteria os viadutos de moradores de rua os becos as paradas de ocircnibus o pronto-socorro
os cenaacuterios tiacutepicos de apartamento de lsquocidade grandersquo
Alice eacute uma personagem urbana implantada em Porto Alegre sem colar-se agrave cidade mas
que quanto mais se torna moradora de rua mais se torna pertencente ao mapa porto-alegrense
Mesmo sem perceber Faz-se aderida agraves ruas aos becos agraves vilas aos botecos agraves paradas de
ocircnibus onde dorme Eacute fio da trama quer estar fora porque reluta em aceitar a vida que a ela foi
imposta pela filha Neste processo cria uma vida para si cria um olhar para a cidade que vai
habitando No geruacutendio Alice torna-se parte Faz-se parte quando adentra a rua os viadutos
habitados agrave noite os crimes em matagais o cafeacute e o mate e o cachorro-quente oferecidos pelos
voluntaacuterios na madrugada O banho na rodoviaacuteria o banco duro de madeira onde dorme no HPS
Alice vai tomando voz vai tomando-se de sua voz que haacute tempos natildeo ouvia
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32 AUTONOMIA EXPRESSAtildeO DE FENOcircMENOS PSIacuteQUICOS
Fenocircmenos psiacutequicos como a consciecircncia a memoacuteria a emoccedilatildeo o pensamento e o juiacutezo
criacutetico entre outros satildeo estudados principalmente pelo campo da Fenomenologia Psiquiaacutetrica
esses constituem os pilares para a avaliaccedilatildeo do estado mental de um indiviacuteduo O psiquiatra
examina a qualidade da expressatildeo dos mesmos na entrevista com o paciente verificando se estatildeo
dentro da normalidade ou se apresentam desvios compatiacuteveis com um quadro psicopatoloacutegico
Algumas capacidades satildeo compostas por um conjunto desses fenocircmenos e natildeo apenas por um
esse eacute o caso da autonomia
O indiviacuteduo natildeo nasce com autonomia Esta deve ser estimulada pelos pais desde o
momento em que a crianccedila deixa de mamar no peito e comeccedila a receber a alimentaccedilatildeo soacutelida
Brinca de fechar a boca enquanto a colher vem com a papinha O comer eacute a primeira autonomia
depois da dependecircncia representada pela amamentaccedilatildeo Entatildeo a crianccedila aprende a segurar a
colher entatildeo pouco a pouco os outros talheres Aprende a gostar de comer isso ou aquilo a
apontar o que deseja em seu prato A autonomia vai sendo aprendida na infacircncia pelo engatinhar
e pelo caminhar Segue-se o controle dos esfiacutencteres que vai sendo aprendido o limpar-se o
tomar banho o ficar sem os pais no maternal E tantas outras conquistas ensinadas e estimuladas
para a aquisiccedilatildeo dessa capacidade Entretanto limitaccedilotildees fiacutesicas e psiacutequicas podem desde o
iniacutecio da vida restringir seu desenvolvimento
Jaspers compreende as manifestaccedilotildees psiacutequicas tendo como base elementos da
Fenomenologia Desse modo a autonomia resultaria de um conjunto de fatores que em bom
funcionamento determinariam a adequada manutenccedilatildeo dessa capacidade Em contrapartida o
neurocientista Antocircnio Damaacutesio eacute apresentado nesta fundamentaccedilatildeo por suas pesquisas
neurobioloacutegicas sobre o fenocircmeno da consciecircncia na qual aponta existir o nuacutecleo da consciecircncia
de si Nesta estaria o cerne para a autonomia
A escolha e a independecircncia paracircmetros que estatildeo associados agrave essa capacidade
necessitam que haja no ser humano em primeiro lugar a consciecircncia e nesta a consciecircncia de
si a escolha e a decisatildeo acontecem no domiacutenio do pensamento mas envolvem tambeacutem as
emoccedilotildees (representadas pelo afeto e o humor) e o juiacutezo criacutetico Por fim a escolha se realiza
atraveacutes de uma accedilatildeo expressa pela conduta Todos esses elementos satildeo fenocircmenos psiacutequicos que
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compotildeem a capacidade de autonomia de um indiviacuteduo Quando essa se apresenta reduzida por
algum dos paracircmetros indicados avalia-se a presenccedila ou a ausecircncia de normalidade por
conseguinte avalia-se a existecircncia de psicopatologia Os outros fenocircmenos - atenccedilatildeo orientaccedilatildeo
memoacuteria sensopercepccedilatildeo inteligecircncia e linguagem- estatildeo presentes na avaliaccedilatildeo do estado
mental do indiviacuteduo compondo tambeacutem sua autonomia no entanto apresentam-se em grau de
menor relevacircncia para seu desenvolvimento
Aleacutem de escolha independecircncia consciecircncia de si e decisatildeo outras expressotildees podem
ser associadas a seu exerciacutecio liberdade individualidade vontade self eu Em termos
etmoloacutegicos a palavra autonomiacutea procede do latim autonomĭa e esta por sua vez do grego
αὐτονομία (autonomia) formada por αὐτός (autoacutes) que significa lsquomesmorsquo e νόμος (noacutemos) lsquoleirsquo
ou lsquonormarsquo Assim seria possiacutevel compreender que o significado aponta para a noccedilatildeo de
autonomia como lsquoleis para si mesmorsquo ou seja as leis que o proacuteprio indiviacuteduo define para sua
vida
Considerando a autonomia como capacidade eacute necessaacuterio apontar que em casos de
sofrimento psiacutequico essa apresenta-se muitas vezes reduzida pois o sofrer acaba por reduzir a
possibilidade de o indiviacuteduo sentir-se livre para as proacuteprias escolhas Em ateacute que ponto este
quadro representa uma circunstacircncia normal e a partir de qual se torna patoloacutegico O sofrimento
pode resultar de uma crise vital com duraccedilatildeo por um periacuteodo esperado e apresentaccedilatildeo de
sintomas dentro da normalidade ou pode resultar do adoecimento do indiviacuteduo com sintomas
presentes em intensidade maior e por periacuteodo mais longo A restriccedilatildeo da liberdade e portanto da
autonomia ocorreraacute de acordo com o tipo e com a duraccedilatildeo deste sofrimento Tal diminuiccedilatildeo na
narrativa pode ser vista de dois modos como parte do sofrimento psiacutequico vivenciado pela
personagem e como perda real de sua experiecircncia de autonomia jaacute que teve sua vinda ao Sul
definida pela escolha da filha Natildeo por sua decisatildeo Eacute por perceber-se nesta condiccedilatildeo que Alice
parte na direccedilatildeo de sua autonomia para sentir-se livre novamente
Karl Jaspers apresenta elementos relacionados agrave autonomia em sua obra Psicopatologia
geral sem que esse termo propriamente dito seja conceituado ou explicitado A expressatildeo mais
proacutexima eacute a da consciecircncia do eu considerada dentre o que ele estabelece como lsquofenocircmenos
subjetivos da vida psiacutequicarsquo Esta consciecircncia estaacute na base fundamental para o desenvolvimento
da autonomia ao lado de outro fenocircmeno apontado o da lsquoconsciecircncia do corporsquo
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Na apresentaccedilatildeo da lsquoconsciecircncia do eursquo Jaspers define quatro componentes o primeiro eacute
o sentimento de atividade uma consciecircncia de atividade do eu Este se refere a tudo o que ocorre
na vida psiacutequica e que o indiviacuteduo identifica como seu a exemplo de percepccedilotildees sensaccedilotildees do
corpo lembranccedilas representaccedilotildees pensamentos e sentimentos Todas essas atividades do eu que
o caracterizam satildeo operaccedilotildees pessoais realizadas em si mesmo e identificadas como proacuteprias e
compotildeem o que o autor denomina personalizaccedilatildeo Quando haacute alteraccedilatildeo desses aspectos usa-se o
termo despersonalizaccedilatildeo fenocircmeno que pode ser descrito como o estranhamento do eu a
percepccedilatildeo de que tudo o que ocorre com o indiviacuteduo eacute na verdade alheio ao mesmo
Tal estranhamento ocorre no mundo das percepccedilotildees junto agrave ausecircncia de sensaccedilotildees
normais do proacuteprio corpo agrave incapacidade subjetiva de recordar-se de dados referentes a si agrave
inibiccedilatildeo dos sentimentos e ao automatismo de processos voluntaacuterios Tudo passa a constituir um
conjunto de atividades alheias ao eu e que em condiccedilotildees de normalidade deveriam ser
compreendidas como proacuteprias
O segundo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia da unidade ou seja a
unidade do eu Esta se refere agrave possibilidade de o indiviacuteduo perceber a si mesmo como unidade
ser um soacute no mesmo instante e natildeo como dois seres distintos ainda que atraveacutes de accedilotildees
diferentes (como ouvir a proacutepria voz enquanto fala e reconhecer que eacute sua proacutepria voz) A
alteraccedilatildeo da unidade do eu ocorre quando haacute um desdobramento da percepccedilatildeo de si observando
o eu como se estivesse fora dele
O terceiro componente da consciecircncia do eu eacute a consciecircncia da identidade ou seja a
identidade do eu Com a frase lsquosou o mesmo de antesrsquo refere-se agrave identidade como a consciecircncia
de ser o mesmo indiviacuteduo no seguir do tempo a constacircncia de si proacuteprio A alteraccedilatildeo deste
fenocircmeno leva o paciente a perceber o lsquoeursquo de um periacuteodo de vida como diferente do lsquoeursquo de
outro periacuteodo como antes e depois da instalaccedilatildeo de uma doenccedila psiacutequica por exemplo
O uacuteltimo componente definido por Jaspers eacute a consciecircncia do eu em oposiccedilatildeo ao mundo
externo e ao outro em que o indiviacuteduo eacute capaz de reconhecer a proacutepria identidade e de percebecirc-la
distinta do mundo externo e da identidade de outra pessoa Existe nesse componente a clara
contraposiccedilatildeo entre este indiviacuteduo e o mundo externo
Tais elementos constituem assim a lsquoconsciecircncia do eursquo base para a percepccedilatildeo das
proacuteprias necessidades e desejos neste sentido constituem tambeacutem a base para as escolhas
individuais no plano do pensamento dos sentimentos e das accedilotildees compreendidas pelo indiviacuteduo
100
como proacuteprias a si Ao lado dos componentes apresentados estaacute a consciecircncia do corpo Sobre
essa consciecircncia Jaspers refere
[] sou consciente do meu corpo como de minha existecircncia e contemporaneamente eu o
vejo com os olhos e o toco com as matildeos O corpo eacute a uacutenica parte do mundo que deve ser
sentida ao mesmo tempo pelo interno e percebida na superfiacutecie Esse eacute um objeto para
mim e sou esse mesmo corpo Satildeo duas coisas diferentes como me sinto
corpoereamente e como me percebo como objeto mas as coisas satildeo ligadas de modo
indissoluacutevel (JASPERS 2000 p95)
De acordo com o autor essa deve ser conhecida do ponto de vista fenomenoloacutegico
mediante a percepccedilatildeo de nossa experiecircncia global com nosso corpo Essa consciecircncia estaacute mais
proacutexima agrave lsquoconsciecircncia do eursquo nas atividades musculares e de movimento mais distantes das
sensaccedilotildees associadas ao coraccedilatildeo e agrave circulaccedilatildeo e ainda mais afastadas das sensaccedilotildees oriundas da
atividade vegetativa Enquanto o movimento eacute resultado das funccedilotildees voluntaacuterias os mecanismos
fisioloacutegicos vinculados ao coraccedilatildeo agrave circulaccedilatildeo e agrave atividade vegetativa satildeo inerentes agrave vida do
ponto de vista bioloacutegico e portanto involuntaacuterios A consciecircncia do corpo associada agravequela do
eu eacute referida por Jaspers por determinados fatores
Temos um sentimento especiacutefico da nossa existecircncia corpoacuterea no movimento e no
comportamento na forma na leveza e graccedila ou no peso na falta de agilidade motora na
impressatildeo que desejamos que nosso corpo desperte no outro no estado de fraqueza ou
de forccedila nas alteraccedilotildees da sauacutede [] A experiecircncia do proacuteprio corpo eacute ligada
estritamente do ponto de vista fenomenoloacutegico com a experiecircncia do sentimento das
pulsotildees instintivas da consciecircncia do eu (JASPERS 2000 p96)
Essas duas expressotildees da consciecircncia a do eu e a do corpo compotildeem o indiviacuteduo capaz
de perceber a si mesmo como unidade com uma identidade constante no tempo uacutenica em si
mesma e contraposta ao mundo externo a si e a outras pessoas De acordo tambeacutem com Jaspers
ldquo[] o corpo eacute a realidade da qual se pode dizer eu sou esse mesmordquo (JASPERS 2000 p383) O
autor refere que ldquo[] a situaccedilatildeo fundamental do ser humano eacute a estar no mundo como ser
singular finito ser dependente mas ter a possibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevel limitado
por confins obrigatoacuteriosrdquo (JASPERS 2000 p352) Em tal reflexatildeo a autonomia do indiviacuteduo
estaacute nesta lsquopossibilidade de agir em um espaccedilo mutaacutevelrsquo determinada pelo autor Entretanto ele
define tal possibilidade associada a confins obrigatoacuterios que delimitam o espaccedilo individual
Jaspers estabelece os limites entre autossuficiecircncia e dependecircncia apontando que somos
seres dependentes em nossa realidade e que a autossuficiecircncia completa eacute um ideal inatingiacutevel
101
[] no homem haacute a tendecircncia a imaginar-se um ser ideal que fechado em si seja
autossuficiente e que satisfeito em si mesmo viva sem sentir necessidade de qualquer
coisa do externo porque ele existe em si mesmo em abundacircncia infinita Se o homem
quiser tornar-se tal ser deveraacute compreender de modo draacutestico que eacute simplesmente
dependente em tudo Ele como ser vital tem necessidades que soacute podem ser satisfeitas
pelo externo Ele deve viver e valer na sociedade para participar aos bens necessaacuterios agrave
vida Ele deve viver com outros seres humanos em reciprocidade (JASPERS 2000
p354)
Assim para Jaspers a consciecircncia de si e a consciecircncia do corpo formam a unidade do ser
individual que pode agir em um espaccedilo mutaacutevel no qual o indiviacuteduo eacute consciente se si mesmo e
das proacuteprias accedilotildees mas cuja autossuficiecircncia eacute condicionada a confins obrigatoacuterios a realidade
externa os bens necessaacuterios agrave vida (alimentos moradia recursos econocircmicos para vestir-se e
deslocar-se por exemplo) e os outros indiviacuteduos com quem este interage em suas relaccedilotildees
interpessoais A autonomia assim acontece dentro de um espaccedilo definido por limites reais do
mundo externo
O neurologista e neurocientista Antonio Damaacutesio assim como Jaspers tambeacutem
estabelece uma associaccedilatildeo direta entre a consciecircncia do eu e o corpo O elemento da consciecircncia
do indiviacuteduo sobre si mesmo eacute denominado por ele de Self e eacute parte da estrutura que define
como consciecircncia Damaacutesio parte da comparaccedilatildeo do ser humano com organismos unicelulares e
estabelece
Uma chave para compreendermos os organismos vivos desde aqueles compostos de
uma uacutenica ceacutelula ateacute os formados por bilhotildees de ceacutelulas eacute a definiccedilatildeo de sua fronteira a
separaccedilatildeo entre o que estaacute dentro deles e o que estaacute fora A estrutura do organismo estaacute
dentro da fronteira e a vida do organismo eacute definida pela manutenccedilatildeo dos estados
internos agrave fronteira E a individualidade singular depende dessa fronteira (DAMAacuteSIO
2000 p178)
A referecircncia de Antonio Damaacutesio estaacute de acordo com a perspectiva de Karl Jaspers no
que tange agrave lsquoindividualidade singularrsquo dentro da fronteira separada do mundo externo a parte de
fora dessa fronteira O neurocientista explicita que o indiviacuteduo singular deve apresentar
sobretudo ldquo[] um grau notaacutevel de invariacircncia estrutural para que consiga oferecer uma unidade
de referecircncia no decorrer de longos periacuteodosrdquo acrescentando que ldquo[] de fato continuidade de
referecircncia eacute o que o self precisa proporcionarrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Essa continuidade de
referecircncia coincide com um dos componentes da lsquoconsciecircncia do eursquo definida por Jaspers aquele
em que o indiviacuteduo permanece com a percepccedilatildeo de si mesmo ao longo do tempo
102
O aspecto que se relaciona agrave reflexatildeo sobre a autonomia a partir da leitura de Damaacutesio
encontra-se em tal continuidade ligada por sua vez ao que ele aponta como estabilidade Este
autor refere que ldquo[] quando refletimos acerca do que estaacute por traacutes da noccedilatildeo de self encontramos
a noccedilatildeo do indiviacuteduo singular E quando pensamos no que estaacute por traacutes da singularidade do
indiviacuteduo encontramos a estabilidaderdquo (DAMAacuteSIO 2000 p177) Quando se refere agrave noccedilatildeo de
estabilidade Damaacutesio estaacute na verdade apresentando a ideia de que um organismo vivo deve ter
constacircncia em seu meio interno para manter a vida e essa constacircncia pode ser explicada nas
palavras do autor como ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados internos de modo
que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Ao trazer a noccedilatildeo de constacircncia o autor estaacute falando em organismo e sobretudo em
sobrevivecircncia A chave de sua reflexatildeo reside no fato de remeter-se agrave noccedilatildeo de estabilidade dos
paracircmetros do organismo compatiacuteveis com a vida para chegar ao fenocircmeno da consciecircncia do
eu Damaacutesio aponta que
Um organismo simples formado de uma uacutenica ceacutelula digamos uma ameba natildeo apenas
estaacute vivo mas se empenha em continuar vivo Sendo uma criatura sem ceacuterebro e sem
mente a ameba natildeo sabe sobre as intenccedilotildees do seu proacuteprio organismo assim como noacutes
sabemos sobre nossas intenccedilotildees equivalentes [] O que estou tentando mostrar eacute que o
iacutempeto de manter-se vivo natildeo eacute um avanccedilo recente Natildeo eacute uma propriedade exclusiva
dos seres humanos De um modo ou de outro dos organismos simples aos complexos a
maioria dos seres vivos apresenta essa propriedade O que efetivamente varia eacute o grau
em que os organismos tecircm conhecimento desse iacutempeto Poucos deles tecircm Mas o iacutempeto
estaacute presente quer o organismo saiba disso ou natildeo Graccedilas agrave consciecircncia os humanos
satildeo em grande parte cientes dele (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Eacute possiacutevel compreender entatildeo a referida estabilidade como o iacutempeto do organismo em
manter-se vivo nos seres humanos existe a consciecircncia desse iacutempeto O indiviacuteduo singular
como denomina o autor eacute consciente de sua sobrevivecircncia que ocorre no ambiente interno de
sua fronteira ou seja em seu corpo Para conservaacute-la com a estabilidade necessaacuteria agrave
permanecircncia de vida deve manter constantes paracircmetros internos em sua fisiologia Comer
dormir beber liacutequidos proteger-se de extremos de temperatura urinar e defecar algumas das
funccedilotildees que realizamos conscientemente para responder a essa finalidade cumprimos
necessidades vitais respondemos ao iacutempeto do organismo em manter-se vivo mas o realizamos
com o claro propoacutesito de fazecirc-lo Damaacutesio refere que ldquo[] a cada momento o ceacuterebro tem agrave sua
disposiccedilatildeo uma representaccedilatildeo dinacircmica de uma entidade com variaccedilotildees limitadas de estados
possiacuteveis- o corpordquo (DAMAacuteSIO 2000 p186)
103
A consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo portanto estatildeo na base do indiviacuteduo
singular A manutenccedilatildeo do ambiente dentro da fronteira nosso corpo eacute realizada por nossa
consciecircncia no cumprimento de nossas funccedilotildees vitais de certo modo escolhemos cumprir tais
funccedilotildees ao respeitarmos necessidades fisioloacutegicas entre elas comer e dormir Assim
sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas por um elemento em comum a consciecircncia que o
indiviacuteduo tem de si mesmo Entretanto deve-se salientar que a autonomia eacute uma capacidade que
poderaacute existir em maior ou menor grau durante o ciclo vital pois depende das possibilidades
fiacutesicas e psiacutequicas do ser humano em responder agraves exigecircncias da vida dentro de paracircmetros de
normalidade
Alguns elementos podem restringir a capacidade de autonomia sendo o sofrimento
psiacutequico um deles por reduzir a liberdade de o indiviacuteduo em fazer suas escolhas Tal reduccedilatildeo eacute
determinada pelo proacuteprio sofrimento inerente a patologias psiquiaacutetricas ou a crises vitais como
por exemplo a reaccedilatildeo a um evento traumaacutetico
Massimo Biondi em seu livro A mente selvagem um ensaio sobre a normalidade nos
comportamentos humanos apresenta o viacutenculo do sofrimento subjetivo com a reduccedilatildeo da
liberdade Sobre esse tema discute o limite entre normalidade e psicopatologia quando se aborda
o indiviacuteduo que sofre Segundo esse psiquiatra italiano no capiacutetulo intitulado lsquoO sofrimento
subjetivo e a liberdadersquo que o sofrimento subjetivo e a anguacutestia a reduccedilatildeo ou falta de liberdade e
a reduccedilatildeo da vontade satildeo aspectos que invariavelmente acompanham o distuacuterbio psiacutequico quanto
a este pode-se falar da importacircncia da vivecircncia subjetiva de determinado evento ou situaccedilatildeo
existencial para procurar definir os limites entre a normalidade psiacutequica e a patologia
O sofrimento subjetivo termo empregado por esse autor constitui um criteacuterio para
diversos diagnoacutesticos psiquiaacutetricos e tem como eixos principais a experiecircncia subjetiva e aquela
psiacutequica a primeira referente agrave percepccedilatildeo subjetiva de um evento existencial ou de um
sentimento pode ser avaliada apenas indiretamente por suas manifestaccedilotildees e pelo relato do
indiviacuteduo que sofre A segunda em linhas gerais refere-se agrave resposta do indiviacuteduo em termos
psiacutequicos ou seja atraveacutes de alteraccedilotildees dos fenocircmenos do estado mental conduzindo ao
diagnoacutestico Massimo Biondi aponta quatro componentes do que denomina sofrimento psiacutequico
a) Um estado de sofrimento subjetivo mesmo que natildeo espontaneamente referido pela
pessoa em niacutevel verbal b) uma reduccedilatildeo ou perda da liberdade sobre os proacuteprios
pensamentos e sobre as proacuteprias accedilotildees c) uma alteraccedilatildeo do proacuteprio projeto de existecircncia
104
e da capacidade de projetar o futuro d) uma alteraccedilatildeo reduccedilatildeo ou anulaccedilatildeo da vontade
(BIONDI 1996 p40)
O segundo componente relativo agrave reduccedilatildeo ou perda da liberdade eacute elemento comum e
distintivo que atravessa a existecircncia de pessoas com distuacuterbios psiacutequicos Tal elemento eacute um dos
criteacuterios de patologia psiquiaacutetrica de uma relevante instituiccedilatildeo da especialidade mas natildeo estaacute
restrito apenas aos diagnoacutesticos tal perda estaacute associada ao proacuteprio sofrimento Assim podemos
encontrar em indiviacuteduos que atravessam crises vitais essa perda de liberdade significando
reduccedilatildeo da autonomia de algueacutem que atravessa uma situaccedilatildeo de sofrimento subjetivo sem
necessariamente tal quadro constituir alguma patologia psiquiaacutetrica definida
Ainda de acordo com Biondi um indiviacuteduo pode apresentar um distuacuterbio psiquiaacutetrico
como causa de um evento especiacutefico existem quadros em que o evento estressante tem um claro
papel patogecircnico Nesses casos o sofrimento subjetivo gerado pelo evento aparece como
principal mediador que causa favorece e acompanha o estado psicopatoloacutegico Existem
entretanto condiccedilotildees em que o sofrer subjetivo natildeo eacute indicativo de um estado de doenccedila
propriamente dito mas pode estar associado a condiccedilotildees compreendidas dentro da normalidade
Um estado de sofrimento subjetivo decorre por exemplo de situaccedilotildees comuns e
lsquonormaisrsquo como luto perda de trabalho dificuldades afetivas ou conjugais fracasso escolar ou
profissional natildeo necessariamente evoluindo para um quatro de psicopatologia Algumas
situaccedilotildees inclusive satildeo vivenciadas como positivas pelo indiviacuteduo porque reestruturam algum
foco de seu mundo interno conduzindo a uma mudanccedila na percepccedilatildeo de determinadas
experiecircncias Em tais casos o sofrimento pode ser atenuado ou ateacute mesmo ter um valor
construtivo Eacute possiacutevel refletir que nessas condiccedilotildees a perda da liberdade seja temporaacuteria mas
ainda assim leve agrave melhora do indiviacuteduo em sua perspectiva de vida pois o sofrimento eacute
condiccedilatildeo muitas vezes para a tomada de consciecircncia da condiccedilatildeo humana
Por fim cabe referir a ressalva do proacuteprio autor
[] a normalidade natildeo eacute uma condiccedilatildeo caracterizada apenas pela ausecircncia de sofrimento
psiacutequico Muitos acontecimentos comuns da vida fazem sofrer agraves vezes de modo mais
intenso e persistente em situaccedilotildees totalmente normais [] O problema estaacute em
reconhecer o sofrimento normal daquele que define em sentido estrito alguma patologia
psiacutequica (BIONDI 1996 p53-56)
A reflexatildeo sobre a perda da liberdade inerente ao sofrimento psiacutequico em vigecircncia de
uma circunstacircncia normal ou de patologia psiquiaacutetrica inclui o entendimento de que a autonomia
105
estaacute reduzida quando este sofrimento acontece O indiviacuteduo durante o periacuteodo em que sofre eacute
limitado na capacidade de fazer escolhas saudaacuteveis para si e tal limitaccedilatildeo decorre da dor psiacutequica
propriamente dita Aleacutem de ser menos livre pois o que pensa e sente eacute condicionado por essa dor
o indiviacuteduo acometido sente menos vontade como refere Biondi ao mencionar o uacuteltimo dos
quatro componentes do sofrimento psiacutequico Pode-se novamente referir a reduccedilatildeo da autonomia
pois dela faz parte tambeacutem o fato de ter vontades e de dar voz agraves mesmas
33 COMIDA SOBREVIVEcircNCIA E AUTONOMIA
O que nos move ao comer Brillat-Savarin em A fisiologia do gosto apontou o lsquosentido
geneacutesicorsquo ldquo[] o mesmo que orienta o amor fiacutesico e impele os sexos um para o outro sendo a
sua finalidade a reproduccedilatildeo da espeacutecierdquo (DOacuteRIA 2009 p190) A referecircncia agrave obra claacutessica na
literatura gastronocircmica feita pelo pesquisador Carlos Alberto Doacuteria em seu livro A culinaacuteria
materialista eacute seguida pela seguinte reflexatildeo apresentada por ele
[] ora a reproduccedilatildeo da espeacutecie e a do indiviacuteduo satildeo para ele uma coisa soacute a do
indiviacuteduo daacute-se com a nutriccedilatildeo a da espeacutecie com a coacutepula O que nos move em direccedilatildeo
ao sexo e ao comer eacute o prazer a busca do agradaacutevel [] Precisamos nos encontrar com
o alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduos e isso se daacute por dois caminhos
pelo prazer e pela dor
A fome eacute a fonte de dor e nos leva em direccedilatildeo ao alimento o prazer em comer tambeacutem
nos leva em direccedilatildeo ao alimento antes que a dor nos imponha o seu caminho (DOacuteRIA
2009 p190)
lsquoA busca pelo alimento para nos reproduzirmos como indiviacuteduosrsquo nas palavras do autor
estaacute associada agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo precisamos
manter a vida para preservaacute-la motivo pelo qual nos nutrimos e copulamos A procura por
alimentos viaacuteveis eacute da histoacuteria do Homo sapiens assim como no ato de cozinhar
experimentavam-se teacutecnicas que favorecessem a ingestatildeo de animais e vegetais
Neste ponto cabe a reflexatildeo de que a procura por novos alimentos e o desenvolvimento
de modos para preparaacute-los resultou da iniciativa em descobrir novas possibilidades comestiacuteveis
da capacidade fiacutesica de fazecirc-lo e de vaacuterias capacidades deste homo sapiens Seria possiacutevel
compreender entre estas a autonomia conduzindo agrave compreensatildeo de que teria sido esta
capacidade em suas primeiras manifestaccedilotildees uma das responsaacuteveis pela partida em direccedilatildeo a
animais e vegetais para comer
106
Caberia citar tambeacutem a autonomia como responsaacutevel pelo desenvolvimento da descoberta
de cozinhar os alimentos aleacutem de aspectos inerentes agrave proacutepria evoluccedilatildeo da espeacutecie Desse modo
ela pode ter permitido a sobrevivecircncia em condiccedilotildees muitas vezes desfavoraacuteveis pelas escolhas
alimentares que favoreceu Sobrevivecircncia e autonomia estatildeo ligadas assim desde tempos
ancestrais conforme refere Carlos Alberto Doacuteria no mesmo livro
Assim como ensina o arqueozooacutelogo Jean-Denis Vigne haacute 30 mil anos o homem jaacute natildeo
comia soacute o que o seu ambiente imediato lhe oferecia por facilidade de captura mas ia
atraacutes de alimentos capazes de satisfazer suas imagens mentais mais fortes e expressivas
em termos sociais Especialmente nas regiotildees frias no Paleoliacutetico Superior sua dieta era
composta de animais com pouca disponibilidade de vegetais Jaacute no Mesoliacutetico o clima
se estabiliza e nas regiotildees temperadas comeccedila a apresentar maior utilizaccedilatildeo de vegetais
Entre 8000-9000 aC e 5000 aC desenvolve-se a dieta moderna em que as energias
humanas satildeo providas por lipiacutedeos e gluciacutedeos originados de animais e plantas
domesticadas Pode-se dizer entatildeo que dessa eacutepoca em diante o homem produz tudo
aquilo que come isto eacute produz a si proacuteprio do ponto de vista alimentar (DOacuteRIA 2009
p3)
Doacuteria aponta ainda o viacutenculo entre a dieta humana e o processo de hominizaccedilatildeo como a
aquisiccedilatildeo da postura biacutepede e por fim a expansatildeo do Homo erectus ao moderno Homo sapiens
que exigiu uma dieta suficientemente rica em calorias e nutrientes Aleacutem desse aspecto o autor
refere o domiacutenio do fogo que permitiu cozinhar os alimentos e seus benefiacutecios
O incremento de calorias se deu graccedilas tanto a ambientes mais favoraacuteveis quanto agrave
adoccedilatildeo da culinaacuteria da agricultura e de criteacuterios de seleccedilatildeo de espeacutecies alimentares
Cozinhar tornou os alimentos mais macios e faacuteceis de ingerir e viabilizou o consumo de
vegetais como a batata e a mandioca que na forma crua natildeo podiam ter seus nutrientes
metabolizados pelo corpo humano Desse modo esses carboidratos complexos se
tornaram digestiacuteveis e multiplicaram ao extremo as possibilidades alimentares Em
siacutentese esses procedimentos aliados agrave seleccedilatildeo de espeacutecies vegetais permitiram
incrementar sua produtividade sua digestibilidade e seu conteuacutedo nutricional (DOacuteRIA
2009 p32)
O Homo sapiens munido de maiores capacidades alimentava-se de forma cada vez
melhor no sentido de incrementar sua sobrevivecircncia nutrindo-se com maior variedade e melhor
qualidade da dieta adquiria novas capacidades e aprimorava aquelas jaacute dominadas resultando em
aumento na capacidade de descoberta de novos ingredientes e de preparo dos mesmos Instalava-
se assim um ciacuterculo entre o desenvolvimento de potencialidades tornando-o cada vez mais
capaz de sobreviver mesmo em condiccedilotildees adversas bem como de agir sobre tais condiccedilotildees
Tudo isso favorecia a vida e a reproduccedilatildeo da espeacutecie Sobrevivecircncia e autonomia novamente
aliadas pelo alimento O pesquisador norte-americano Michael Pollan alude a uma observaccedilatildeo de
Winston Churchill sobre a arquitetura ldquoPrimeiro cozinhamos nossa comida depois ela nos
107
cozinhourdquo (POLLAN 2014 p15) Pollan explica esse fenocircmeno ocupado pelo cozinhar em
nossa biologia
Portanto cozinhar nos transformou e natildeo apenas por nos tornar mais sociaacuteveis e
corteses Uma vez que o ato de cozinhar permitiu que expandiacutessemos nossas capacidades
cognitivas agrave custa da capacidade digestiva natildeo havia mais como voltar atraacutes nossos
ceacuterebros grandes e intestinos pequenos dependiam agora de uma dieta agrave base de
alimentos cozidos [] Isso quer dizer que cozinhar tornou-se compulsoacuterio- estaacute por
assim dizer cozido em nossa biologia (POLLAN 2014 p15)
A partir daiacute toda a histoacuteria da alimentaccedilatildeo incluindo o surgimento da gastronomia
conduz progressivamente a um grau de evoluccedilatildeo deste campo que ultrapassa a lsquomerarsquo demanda
pela sobrevivecircncia e preservaccedilatildeo da espeacutecie A sobrevivecircncia ao que parece natildeo ocupa mais o
centro no universo da cozinha O campo das accedilotildees e estudos ligados ao preparo do alimento
chega em nosso seacuteculo XXI em niacuteveis de superespecializaccedilatildeo e de glamourizaccedilatildeo nunca antes
imaginados Este eacute o caso para citar exemplos da Cozinha Molecular e dos programas
televisivos que invadem as casas com a famiacutelia muito mais atenta ao programa sobre comer do
que ao proacuteprio comer Hoje em dia aliaacutes sobreviver natildeo atinge a categoria de prioridade de
muitos indiviacuteduos fervorosos em sua autonomia contemporacircnea no desejo insalubre pelo prazer
da comida ou mesmo na pressa da vida urbana morrem por comer da pior forma possiacutevel
Para compreender esse processo vale refletir sobre como chegamos ateacute aqui A histoacuteria a
ser contada parte do ato de cozinhar que ldquo[] eacute como dizem os antropoacutelogos uma atividade que
nos define como seres humanos - o ato com o qual segundo o filoacutesofo e antropoacutelogo Claude
Levi-Strauss a cultura surgerdquo (POLLAN 2014 p13) Para Leacutevi-Strauss conforme referido por
Michael Pollan ldquo[] cozinhar servia como uma metaacutefora da transformaccedilatildeo humana da natureza
crua para a cultura cozidardquo (POLLAN 2014 p13) A respeito do papel do cozinhar para a
cultura Carlos Alberto Doacuteria refere
O que une as abelhas no coletivo eacute uma interaccedilatildeo quiacutemica chamada trofolaxe Ora aleacutem
da integraccedilatildeo neurosensorial devemos considerar que a trofolaxe humana eacute a linguagem
Eacute por intermeacutedio da linguagem que estamos acoplados com outros seres humanos e eacute
tambeacutem com ela que partilhamos nossas experiecircncias ateacute mesmo atraveacutes de enormes
distacircncias no tempo e no espaccedilo Nessa trofolaxe a relaccedilatildeo com os sabores do mundo se
daacute ao mesmo tempo pelo aparelho gustativo e pela cultura (DOacuteRIA 2009 p197)
Deve-se considerar a vasta gama de fatos da histoacuteria da alimentaccedilatildeo desde a preacute-histoacuteria
ateacute nosso terceiro milecircnio tendo como eixo a transformaccedilatildeo na cultura produzida pelo cozinhar
a fim de compreender as mudanccedilas exponenciais que a cozinha atravessou ateacute chegar agrave sua
108
representaccedilatildeo contemporacircnea Nesse contexto faz-se necessaacuterio definir os pontos de referecircncia
que marcaram a transiccedilatildeo a partir da qual sobreviver parece ter deixado de ocupar o motivo por
que o indiviacuteduo se alimenta
Um dos aspectos que podem ser apontados como referenciais na transiccedilatildeo acima abordada
eacute o iniacutecio da chamada restauraccedilatildeo ou seja o surgimento dos restaurantes dentro do nascimento
da hotelaria Em especial a existecircncia da comida de rua passa a ter um papel significativo neste
sentido A valorizaccedilatildeo da gastronomia cada vez maior desde o seacuteculo XVIII teve tambeacutem
influecircncia no processo ao deslocar para o prazer dos sentidos principalmente o do gosto o
centro de sua atenccedilatildeo
Entretanto haacute um ponto chave para a mudanccedila do foco da comida de aspecto nutricional
e gregaacuterio a fator de risco para as mais variadas doenccedilas fiacutesicas como a obesidade e a
hipertensatildeo arterial e para aquelas psiacutequicas como a anorexia e a bulimia tatildeo vigentes no seacuteculo
XXI Este ponto em sua origem estaacute no processo de industrializaccedilatildeo que culminou com o
deslocamento do comer da mesa do lar para o local de trabalho De que forma este pode
relacionar-se agrave sobrevivecircncia e agrave autonomia focos deste subcapiacutetulo Por dois caminhos o
primeiro refere-se ao fato de que o deslocamento restringiu as possiblidades de alimentaccedilatildeo e os
empregados ficaram submetidos ao que fosse oferecido em seu trabalho portanto com restriccedilatildeo
da autonomia o segundo caminho refere-se agraves ofertas alimentares propiciadas nos locais de
trabalho pouco dirigidas agrave sauacutede do indiviacuteduo e por extensatildeo ao papel nutricional da
alimentaccedilatildeo equivalente agrave sua sobrevivecircncia
Pode-se falar na evoluccedilatildeo dos centros urbanos e de suas demandas e transformaccedilotildees entre
estas a pressa que tambeacutem restringe as escolhas alimentares possiacuteveis Outra vez a restriccedilatildeo da
autonomia e o prejuiacutezo das escolhas agrave sauacutede Da pressa passamos ao fenocircmeno seguinte aquele
que Maacutessimo Montanari e Jean-Louis Flandrin denominam lsquoA McDonaldizaccedilatildeo dos costumesrsquo
no livro Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo do qual satildeo organizadores A pressa leva ao surgimento dos
fast-food pela sociedade norte-mericana estes por sua vez causam uma lista de patologias
cardiovasculares e oncoloacutegicas por exemplo A pressa e os fast-food tornam-se parte do
fenocircmeno de stress que aumenta a pressa e torna rotineira a alimentaccedilatildeo raacutepida reduzindo a
sauacutede e aumentando ainda mais o stress Instala-se o ciacuterculo vicioso da vida moderna O eixo de
nutriccedilatildeo que uma vez focircra o lar tornou-se a rua
109
Retomando um dos elementos discutidos na fundamentaccedilatildeo teoacuterica eacute possiacutevel perceber o
modo como as referidas mudanccedilas atingem a sobrevivecircncia Damaacutesio refere que para que um
organismo permaneccedila vivo eacute necessaacuterio ldquo[] um limite estreito de variabilidade dos estados
internos de modo que eles sejam relativamente estaacuteveisrdquo (DAMAacuteSIO 2000 p179)
Em seu ensaio sobre a normalidade dos comportamentos humanos Massimo Biondi
apresenta um capiacutetulo em que aborda a normalidade dos padrotildees fisioloacutegicos de sobrevivecircncia
Explica que
O organismo eacute uma entidade viva Sua vida se baseia em processos bioloacutegicos de base
que devem respeitar algumas caracteriacutesticas A vida humana por exemplo eacute possiacutevel
para temperaturas corporais compreendidas entre 30 e 42deg Acima ou abaixo de tais
temperaturas para aleacutem de um certo tempo a vida eacute impossiacutevel []
Tal conceito vale para muitas outras variaacuteveis estudadas em medicina e fisiologia do
peso agrave altura da frequecircncia cardiacuteaca agrave pressatildeo arterial [] da quantidade diaacuteria de
accediluacutecar no sangue agraves caracteriacutesticas da urina
O criteacuterio da norma bioloacutegica assim como concebido aqui refere-se agrave normalidade de
funcionamento de estruturas bioloacutegicas que caracterizam a vida de um organismo e satildeo
compatiacuteveis com a mesma (BIONDI 1996 p169)
O indiviacuteduo do seacuteculo XXI em posse de sua autonomia acaba por fazer escolhas
alimentares contra a proacutepria sobrevivecircncia pois alteram os padrotildees de normalidade compatiacuteveis
com a sauacutede e em uacuteltima instacircncia com a proacutepria vida eacute o caso do impacto de alimentos do
regime fast-food na sauacutede resultando em diabetes hipertensatildeo arterial e sobrepesoobesidade
Tal resultado entre outros deve-se agrave ingestatildeo excessiva de carboidratos gorduras e
trigliceriacutedeos presentes nesta forma lsquodesnutricionalrsquo
A autonomia desse modo que muitas vezes eacute fonte de extrema valorizaccedilatildeo em tempos
nos quais a individualidade ocupa papel central leva o homem contemporacircneo a atacar a
sobrevivecircncia e natildeo mais a preservaacute-la Nesse ponto da histoacuteria da alimentaccedilatildeo sobrevivecircncia e
autonomia afrouxaram o dar as matildeos De acordo com Michael Pollan ldquoPesquisas de opiniatildeo
confirmam que a cada ano cozinhamos menos e compramos mais refeiccedilotildees prontasrdquo
(POLLAN 2014 p11)
Este autor traz reflexotildees relevantes quanto ao paradoxo do papel da cozinha em nossa
contemporaneidade apontando que ao mesmo tempo que o tempo de cozinhar diminui aumenta
o tempo de dedicaccedilatildeo a assistir programas de cozinha na televisatildeo aleacutem de outras modificaccedilotildees
mencionadas por ele sobre as escolhas alimentares O que chama a atenccedilatildeo na obra de Michael
Pollan eacute o fato de ele mencionar o ponto em que chegamos sob a perspectiva de nossa cultura
110
alimentar global Sendo este um pesquisador reconhecido e respeitado internacionalmente eacute
positivo que exponha em tom pungente os resultados de pesquisas e perspectivas no
embasamento de suas reflexotildees Posiciona-se frente a vaacuterios problemas graves ligados ao modo
de comer de nosso tempo ao mencionar a reduccedilatildeo do haacutebito de cozinhar e suas consequecircncias
ldquo[] natildeo eacute surpresa alguma o decliacutenio do haacutebito de cozinhar em casa coincidir com o aumento da
incidecircncia da obesidade e de todas as doenccedilas crocircnicas associadas agrave alimentaccedilatildeordquo (POLLAN
2014 p16)
O elemento apontado por este autor e que se relaciona agrave relaccedilatildeo entre a comida e as
relaccedilotildees interpessoais declara que a refeiccedilatildeo em famiacutelia deu lugar em larga escala ao comer
sozinho Autonomia praticidade e individualismo parecem estar no centro deste fenocircmeno
A ascensatildeo do fast-food e o decliacutenio da comida caseira tambeacutem abalaram a instituiccedilatildeo da
refeiccedilatildeo compartilhada por nos estimularem a comer coisas diferentes com pressa e
muitas vezes sozinhos Pesquisas dizem que estamos dedicando mais tempo agrave
lsquoalimentaccedilatildeo secundaacuteriarsquo que eacute como denominamos esse costume meio constante de
beliscar alimentos embalados e menos tempo agrave lsquoalimentaccedilatildeo primaacuteriarsquo - termo um tanto
deprimente para a instituiccedilatildeo outrora respeitada e conhecida como refeiccedilatildeo
A refeiccedilatildeo compartilhada natildeo eacute algo insignificante Trata-se de um dos fundamentos da
vida em famiacutelia o lugar onde as crianccedilas aprendem a arte da conversaccedilatildeo e adquirem
haacutebitos que caracterizam a civilizaccedilatildeo repartir ouvir ceder a vez administrar
diferenccedilas discutir sem ofender (POLLAN 2014 p16 grifo do autor)
A autonomia agrave eneacutesima potecircncia deixa de ser uma capacidade para tornar-se uma redoma
Acabamos tornando-nos seres livres em excesso talvez Por termos pressa querermos prazeres e
independecircncia extremos sobreviver passou agrave categoria de um lsquotanto fazrsquo em prol do proveito
maacuteximo do instantacircneo Vale retomar a reflexatildeo de Karl Jaspers sobre a consciecircncia do eu
definida por limites externos e reais nossa autossuficiecircncia eacute delimitada pela dependecircncia que
temos de recursos externos como por exemplo os bens alimentares e das pessoas significativas
em nossa vida Dependemos desses bens assim como dos relacionamentos familiares afetivos e
profissionais todos necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia do ponto de vista fiacutesico e psiacutequico
A autonomia conquistada para sobrevivermos na evoluccedilatildeo da espeacutecie chegou a um grau
de importacircncia em nosso universo contemporacircneo que parece ter ultrapassado o instinto de
preservaccedilatildeo da espeacutecie do ponto de vista individual e coletivo Viver a liberdade as vontades e
prazeres sobrepuja o proacuteprio sobreviver Autonomia e sobrevivecircncia parecem ter soltado as matildeos
111
34 A COMIDA E A CONSCIEcircNCIA DE SI
A leitura do romance Quarenta dias permite identificar a cozinha presente em trecircs
periacuteodos principais da narrativa representados respectivamente por trecircs elementos especiacuteficos
O primeiro aparece nas paacuteginas iniciais quando Alice comeccedila a relatar em seu caderno o
periacuteodo que antecedeu a mudanccedila para Porto Alegre lembrando-se do egoiacutesmo de Norinha sua
filha desde quando ainda morava em Joatildeo Pessoa Tais recordaccedilotildees fornecem pistas do
comportamento da moccedila ao determinar as transformaccedilotildees na vida da matildee para satisfazer seus
interesses
O segundo elemento abrange os primeiros dias da chegada de Alice a inconformidade
com a nova moradia onde a cozinha que define como lsquode show-roomrsquo expressa uma atmosfera
impessoal e asseacuteptica agrave qual ela natildeo consegue se adaptar Aparece nesta etapa o choque de sua
nova realidade e a tentativa de aceite de todas as mudanccedilas de vida impostas pela filha
A importacircncia de refletir sobre os dois elementos apresentados acima estaacute no fato de esses
demonstrarem Alice em sua vida em Joatildeo Pessoa e logo na chegada em Porto Alegre Os dois
periacuteodos expressam o comportamento de Norinha como explicaccedilatildeo para sua conduta egoiacutesta em
relaccedilatildeo agrave matildee e expressam tambeacutem a relaccedilatildeo de Alice com a consciecircncia de si mesma e com a
autonomia Assim os dois periacuteodos anteriores agrave procura por Ciacutecero descritos por ela agrave Barbie
em seu caderno anunciam o porquecirc de desejar a retomada de si mesma durante os dias em que
transplanta sua vida para o espaccedilo urbano
O terceiro elemento por fim refere-se ao tema deste capiacutetulo a comida como
representaccedilatildeo da necessidade de autonomia vinculada ao processo de tomada de consciecircncia de
si incluindo suas escolhas necessidades de sobrevivecircncia gostos e memoacuterias gustativas que satildeo
parte de sua identidade Nesse terceiro elemento que ocupa a maior parte da anaacutelise encontra-se
uma cozinha transplantada para o universo urbano espaccedilo que Alice habita nos quarenta dias
Junto agrave comida expressa por carrinhos de pipoca botecos moradias em vilas- onde lhe
oferecem cafeacute chimarratildeo e algo para comer- padarias e um restaurante de rodoviaacuteria estaacute a
representaccedilatildeo de uma vida cujo cenaacuterio eacute o proacuteprio espaccedilo da cidade no dormir no banhar-se no
comer Eacute neste territoacuterio que Alice procura a si mesma enquanto em suas andanccedilas ela pergunta
por um desconhecido Ciacutecero Arauacutejo dentro de si vai encontrando aquela que eacute capaz de tomar as
proacuteprias decisotildees de sobrevivecircncia Progressivamente recupera a consciecircncia de si e as suas
112
vontades Um fator que deve ser ressaltado estaacute incluiacutedo neste terceiro elemento a ligaccedilatildeo
mesmo que efecircmera que Alice estabelece com as demais personagens da narrativa na maior
parte das vezes esta ligaccedilatildeo ocorre por intermeacutedio da comida que oferecem a ela ou que ela
partilha como no caso de Lola e Arturo
Eacute possiacutevel observar que haacute situaccedilotildees em que o cuidado de desconhecidos para com ela
ocorre ao oferecerem um chaacute um cafeacute um biscoito nas casas de vilas por onde passa o mesmo
cuidado eacute feito por Penha que coloca com esmero a mesa para Alice no restaurante da
rodoviaacuteria tratando-a com gentileza e camaradagem ou pela proacutepria Milena que cuida de Alice
com chaacute e canja de galinha no iniacutecio da histoacuteria quando esta teria voltado doente de sua visita a
Jaguaratildeo Ateacute mesmo Zelima que aparece na cena em que a protagonista se engasga com a
pipoca no Hospital de Pronto Socorro tem uma atitude de cuidado e de preocupaccedilatildeo para com
ela oferecendo-lhe aacutegua e acompanhando sua melhora
Estas breves expressotildees de carinho e zelo atraveacutes do alimento representam na obra a
nutriccedilatildeo que o cuidado interpessoal oferece muitas vezes na linguagem do alimento na vivecircncia
de Alice em sua nova vida porto-alegrense A capacidade de despertar sentimentos de cuidado de
afeto e de preocupaccedilatildeo da parte de outras pessoas demonstra caracteriacutesticas de uma Alice que
retoma o contato consigo que se reencontra
Mesmo com todo o trauma que atravessa a personagem eacute capaz de estabelecer viacutenculos
durante seus caminhos ainda que sejam breviacutessimos ilustram um aspecto de sua personalidade
Eacute algo seu que natildeo se perdeu com o roubo de sua autonomia e eacute justamente por seu modo de ser
que vai estabelecendo pontes para chegar a algum desfecho de sua procura durante a histoacuteria
pontes atraveacutes da comunicaccedilatildeo com as pessoas e comunicaccedilatildeo atraveacutes da comida que lhe eacute
servida das informaccedilotildees que lhe satildeo dadas do cuidado amistoso como no caso de Lola e de
Milena
Embora o foco do presente capiacutetulo seja a abordagem da conquista da autonomia da
personagem atraveacutes de suas decisotildees pela sobrevivecircncia eacute importante enfatizar que Alice em sua
vida em Joatildeo Pesssoa tinha tal autonomia Aleacutem de ter criado sua filha praticamente sozinha
tinha apartamento proacuteprio amigos e projetos reconhecimento de sua atividade profissional como
a lsquosensata Professora Poacutelirsquo conforme diversas vezes se denomina durante a narrativa Essa
capacidade sofreu abrupta reduccedilatildeo pela interferecircncia da filha quando definiu que a matildee iria se
transferir para Porto Alegre para cuidar do futuro neto
113
Este eacute entatildeo o primeiro elemento a ser abordado o egoiacutesmo da filha A conduta de
Norinha deveu-se a esse egoiacutesmo ao natildeo pensar no desejo de Alice e sim nos proacuteprios interesses
Apenas quando escreve a longa lsquocartarsquo para Barbie depois de sua jornada pela cidade a
protagonista eacute capaz de se recordar de episoacutedios antigos com a filha Esses eventos jaacute
denunciavam a postura da moccedila desde o comeccedilo da juventude O trecho a seguir mostra uma
dessas recordaccedilotildees
Ainda meio adormecida fechei a janela e voltei pra cama naquela madorna jaacute perto de
acordar de vez e entatildeo comecei a reviver cenas bobas de muito tempo atraacutes sem
importacircncia completamente esquecidas agora niacutetidas em sonho ou na minha memoacuteria
por que seraacutecoisas assim como o dia em que estava um friozinho excepcional pra
Joatildeo Pessoa e resolvi fazer uma sopa quente pro jantar aproveitando umas batatas-
baroas que tinha achado no mercado Batata-baroa saudade do siacutetio do meu avocirc uma
raridade na cidade mais batata inglesa cenoura cebola e caldo de galinha tudo de bom
O cheiro da sopa no fogo jaacute tinha impregnado a casa quando Nora chegou Vai fazer
sopa hoje Matildeiacutenha Que horas Jaacute estaacute pronta se quiser eacute soacute bater no
liquidificadorComo nunca me esperava pra cear pois iacutea correndo pra faculdade
apenas ouvi vagamente que estava mexendo na cozinha enquanto eu assistia agrave novelinha
das seis Tatildeo distraiacuteda com a novela nem percebi que ela jaacute tinha saiacutedo Tudo bem ateacute
que fui tratar de pocircr a mesa pra mim Soacute tinha sobrado menos de uma concha rasa de
sopa Pasme Barbie ela tinha se servido na tigela do feijatildeo Fiquei danada na hora mas
nada a fazer do que usar a imaginaccedilatildeo Jaacute eram quase sete e meia da noite Entatildeo botei
mais um copo dacuteaacutegua com uma colher de maisena meio tablete a mais de caldo de
galinha e cozinhei ali dentro uma porccedilatildeo de massinha pra sopaque bom que tinha em
casa Tomei entatildeo o resultado como se estivesse tudo normal com apenas um leve
gostinho de batata-baroamas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada
de matildeo-de-vaca (REZENDE 2014 p22)
Vale ressaltar a atitude complacente de Alice frente ao egoiacutesmo da filha no episoacutedio
narrado acima expressa pela frase lsquomas quando ela voltou natildeo dei um pio pra natildeo ser chamada
de matildeo-de-vacarsquo A seguir outro fragmento em que Norinha se apossava dos chocolates e das
guloseimas da matildee Alice reflete em sua carta para Barbie sua obediecircncia agraves demandas da moccedila
devidas agraves dietas no comprar lsquocoisas estranhasrsquo na feira
Diversos pontos satildeo referidos como o fato de a filha natildeo se sentar mais agrave mesa com ela e
a atitude de desperdiccedilar as gemas de ovo em suas dietas Um aspecto interessante do trecho
abaixo eacute a memoacuteria de sua avoacute fazendo lsquofios dacuteovosrsquo e quindins como marca de afeto e de
partilha pela comida Assim haacute o contraste do alimento ora como representaccedilatildeo do egoiacutesmo da
filha ao lsquoroubarrsquo seus chocolates e as guloseimas ora como expressatildeo do afeto compartilhado
pela avoacute atraveacutes dos doces que fazia
Cabe ainda a reflexatildeo mais uma vez Alice menciona sua complacecircncia para com a filha
nas frases lsquofielmente obedeciarsquo e lsquoeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar
114
discussatildeorsquo Volta-se desse modo para a frase apresentada no primeiro trecho referida acima
lsquonatildeo dei um pio pra natildeo ser chamada de matildeo-de-vacarsquo A postura de Alice em relaccedilatildeo agrave Norinha
tinha sempre um elemento de passividade de obediecircncia agraves normas e aos quereres da filha
anunciando que a postura da uacuteltima em definir a mudanccedila de Alice mesmo contra a vontade desta
era a continuidade de um comportamento mais antigo na relaccedilatildeo entre elas A protagonista conta
agrave Barbie
Vivia acrescentando coisas estranhas nas minhas listas de feira que eu fielmente
obedeciaeu que nem minha avoacute fazendo qualquer coisa pra evitar discussatildeo Claro de
vez em quando ela dava umas escapadas na dieta principalmente comendo meus
chocolates e umas guloseimas de que gosto e comprava pro meu lanche Afinal eu natildeo
estava de dieta Quase natildeo se sentava agrave mesa comigo comia em peacute na cozinha ia pro
quarto dela comer as gororobas dieteacuteticas que fazia ou se enchia soacute de claras de ovo
jogando as gemas fora Parei de tentar aproveitar pois natildeo dava pra tomar gemada todo
dia natildeo eacute e Voacute natildeo estaacute mais neste mundo pra me ensinar a fazer fios dacuteovos ou
quindinse as gemas que Norinha descartava eram branquelas nada daquele amarelo
vivo dos ovos de capoeira do siacutetio Seraacute que ainda existem fios dacuteovos (REZENDE
2014 p23)
O trecho seguinte refere-se ao segundo elemento assinalado ou seja a inconformidade de
Alice com sua nova vida em Porto Alegre no apartamento que natildeo aceita como seu Nas
referecircncias agrave cozinha lsquode show-roomrsquo a protagonista expressa suas impressotildees sobre o local
montado por Norinha para sua habitaccedilatildeo Haacute diversos momentos em que a comida representa seu
desacerto com a vida montada em um territoacuterio sem referecircncias afetivas sem lembranccedilas dos
quais o fragmento abaixo eacute um exemplo
Alice mostra uma resignaccedilatildeo compulsoacuteria com as ordens da filha uma aparente
concordacircncia com as tentativas de Norinha de abater-lhe a autonomia eacute na contrariedade com o
cenaacuterio esteacuteril da cozinha que define como lsquoalheiarsquo e com os alimentos que tem em casa com as
compras que a filha faz e guarda nos armaacuterios e gavetas que se mostra seu modo de perceber e
de sentir as imposiccedilotildees da mesma
A inconformidade com a vida porto-alegrense aparece em diversas situaccedilotildees na chegada
de Alice ao apartamento aleacutem do trecho acima Percebo em vaacuterios pontos a revolta da
protagonista com os detalhes da cozinha como espaccedilo fiacutesico em outros aparece seu lsquodesacertorsquo
atraveacutes de uma voz criacutetica e ateacute mesmo irocircnica com os alimentos gauacutechos
Assumi consciente e disciplinadamente a atitude que eu jaacute vinha ensaiando havia algum
tempo do ET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes muito maiores
que ele Eu continuava a encolher Engoli obediente tudo o que estava posto sobre a
previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de vidro num canto da sala o chaacute as
115
torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar de chimia a
fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial trazido
natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite morno (REZENDE 2014
p41)
Eacute possiacutevel ler a atitude de engolir lsquoobedientersquo o alimento como representativa de sua
percepccedilatildeo sobre si mesma de ldquoET ingecircnuo sendo bem recebido por terraacutequeos benevolentes
muito maiores do que elerdquo A obediecircncia em comer aqui ilustra a frase ldquoEu continuava a
encolherrdquo Ela natildeo via o que estava sendo posto na mesa como cuidado com sua chegada por
preocupaccedilatildeo genuiacutena com seu bem-estar entendia isto sim como ldquobenevolecircncia de terraacutequeos
muito maioresrdquo A forccedila da comparaccedilatildeo estaacute no fato de que o comer tambeacutem se tornou objeto de
controle da filha a quem ela passava a ldquoobedecerrdquo Passava a ocupar assim o papel que descreve
como ldquofilha da minha filhardquo (REZENDE 2014 p74)
Neste trecho lecirc-se a contrariedade de Alice na referecircncia que faz agrave cozinha como espaccedilo
fiacutesico ldquo[] tudo o que estava posto sobre a previsiacutevel mesa de peacutes de accedilo escovado e tampo de
vidro no canto da salardquo (REZENDE 2014 p74) Ainda que se refira agrave mesa como estando na
sala atribui a ela papel conotaccedilatildeo ligada agrave funccedilatildeo da cozinha como extensatildeo desta pois eacute onde
estatildeo na cena os produtos alimentares oferecidos
Na menccedilatildeo que ela faz a esses produtos estaacute expressa tambeacutem a revolta atraveacutes da voz
irocircnica ldquo[] o chaacute as torradas com um doce vermelho que aprendi naquele momento a chamar
de chimia a fatia de um queijo de coalho que eles disseram ser queijo serrano muito especial
trazido natildeo sei de onde por natildeo sei quem a maccedilatilde e o copo de leite mornordquo (REZENDE 2014
p41) Assim eacute na cozinha como espaccedilo fiacutesico e simboacutelico que se expressa na chegada de Alice a
Porto Alegre a representaccedilatildeo de sua recusa em aceitar a vida que lhe foi imposta Haacute referecircncias
expliacutecitas agrave sua revolta mas a forma material da contrariedade eacute demonstrada nessa etapa da
narrativa em diversos episoacutedios ligados agrave cozinha
A manhatilde seguinte agrave chegada no apartamento continua tendo essa peccedila da casa como
cenaacuterio da inconformidade de Alice quando Norinha chega com as compras
Naquela primeira manhatilde sem coragem de decifrar os armaacuterios e eletrodomeacutesticos desta
cozinha metida a besta eu ainda de camisola e roupatildeo agrave mesa do canto da sala
preguiccedilosamente acabando de recuperar como cafeacute da manhatilde os restos do lanche da
madrugada que ficaram largados ali bolo torradas amanhecidas chimia queijo serrano
chaacute frio ouvi barulho de chave na fechadura e me assustei Norinha pelo visto agora
detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas tambeacutem da chave da minha
moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha com almoccedilo
Bem paraibano viu Matildeiacutenha pra vocecirc ir se acostumando aos poucos a quentinha
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equilibrada entre montes de sacolas de compras Pra abastecer a despensa de minha
Maacuteinha adorada que vai ser tratada como uma duquesa pela sua filhinha preferida []
meteu-se diretamente na cozinha Que tive que fazer malabarismos para conseguir passar
no supermercado pra conseguir passar no supermercado e trazer suas compras depois a
gente acerta natildeo se preocupe com isso por hoje vou ter de sair correndo que este dia da
semana eacute sempre pesadiacutessimo na universidade agraves vezes natildeo daacute tempo nem de fazer xixi
(REZENDE 2014 p47-48 grifo nosso)
A frase em grifo representa a percepccedilatildeo de Alice sobre o controle que a filha assumia
sobre sua vida ldquoNorinha pelo visto agora detentora natildeo soacute das lsquoreacutedeas do meu destinorsquo mas
tambeacutem da chave da minha moradia e do meu cardaacutepio que vinha na forma de uma quentinha
com almoccedilordquo (REZENDE 2014 p48) O controle sobre o cardaacutepio expressa a inconformidade
da protagonista com as imposiccedilotildees de Norinha na sua vida por exemplo escolhendo um almoccedilo
lsquobem paraibano viu Matildeiacutenha para vocecirc ir se acostumando aos poucosrsquo como ela refere Aleacutem
deste aspecto as sacolas de compras lsquoPra abastecer a despensa de minha Matildeiacutenha adoradarsquo
tambeacutem satildeo para Alice representativas dos mandos de sua filha
A direccedilatildeo da filha sobre a rotina da personagem ocorre em detalhes cotidianos como de
fazer e de guardar as compras de supermercado na cozinha do apartamento levar a lsquoquentinharsquo
para o almoccedilo e definir na percepccedilatildeo de Alice que ela deve sair agrave rua entre outras condutas
Tais comportamentos ligados agrave alimentaccedilatildeo demonstram a atitude de Norinha interferindo na
autonomia da matildee procurando ceifar sua capacidade de cuidar de uma nova vida naquilo que eacute
mais individual na sobrevivecircncia a nutriccedilatildeo A contrariedade de Alice agrave cozinha do apartamento
reflete em muito a percepccedilatildeo que ela tem deste ao longo da narrativa em suas referecircncias eacute
possiacutevel compreender que se vecirc presa naquilo que por diversas vezes chama de lsquotabuleiro de
xadrezrsquo Em grande parte essa impressatildeo se deve ao aspecto do local mas o sentimento
transcende essa caracteriacutestica no lsquotabuleirorsquo Alice tem sua liberdade tolhida
O trecho a seguir representa a relaccedilatildeo que se estabelece entre elas nesta etapa inicial da
chegada de Alice a Porto Alegre
Fiquei calada soacute olhando com a boca cheia o naco de queijo grande demais difiacutecil de
mastigar e engolir como todo o resto que havia tempos jaacute vinha entalado na minha
garganta Nem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia em meu nome
gritando aqui da cozinha enquanto desensacava os pacotes e escondia as coisas atraacutes de
sei laacute qual dessas dezenas de portinhas brancas por cima desses azulejos pretos [] e
por aiacute foi Norinha perguntando e respondendo por mim ateacute esvaziar a uacuteltima sacola
bater pela uacuteltima vez todas as portas e gavetas dos armaacuterios da geladeira O almoccedilo eacute soacute
esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenha (REZENDE 2014 p48-49)
117
Um dos pontos que deflagram a atitude de Norinha em ceifar a autonomia de Alice estaacute na
frase lsquoO almoccedilo eacute soacute esquentar no micro-ondas viu Matildeiacutenharsquo como se a matildee natildeo soubesse disso
ou natildeo tivesse capacidade de percebecirc-lo sozinha A filha infantiliza a personagem tomando por
ela decisotildees e condutas (como ir ao supermercado e guardar as compras nos armaacuterios da
cozinha) Ateacute mesmo a verbalizaccedilatildeo das respostas eacute feita por ela sem dar agrave Alice a possibilidade
de expressar-se como na frase lsquoNem era preciso dizer nada porque ela perguntava e respondia
em meu nome gritando aqui da cozinharsquo
A resposta emocional de Alice a este iniacutecio de sua vida na nova cidade ainda antes da
revelaccedilatildeo de que Norinha e o esposo adiaram os planos de gravidez estaacute representada no
fragmento a seguir
Fiquei laacute Alice diminuindo mais ainda imprensada entre a mesa e a parede nem sei
quanto tempo tentando me convencer de que ela natildeo se meteria mais de surpresa pela
porta adentro e sabendo que pra rua eu natildeo ia como queria minha filha e natildeo ia mesmo
soacute porque era isso que ela tinha ordenado Natildeo ia natildeo de birra sem nenhuma ideia
nem vontade de fazer nada a natildeo ser andar para um lado e outro naquele tabuleiro de
xadrez minhas pernas dissipando a energia acumulada pela raiva olhar as malas ainda
fechadas as portas desses armaacuterios da cozinha fechadas a pilha de caixas fechadas e de
relance a minha cara fechada refletida na enorme televisatildeo da sala em outra menor no
quarto nos vaacuterios espelhos e vidraccedilas espalhados por aiacute O almoccedilo ficou aqui esfriando
no balcatildeo da cozinha ateacute o anoitecer Daiacute engoli aquilo frio mesmo enquanto deixava o
telefone tocar tocar tocar ateacute desistirem (REZENDE 2014 p51)
Entretanto a protagonista encontra em si mesma a capacidade de autonomia que vinha
adormecida desde quando comeccedilou o processo de mudanccedila determinado pela filha Comeccedila a
aceitar as modificaccedilotildees tomar conta da proacutepria rotina decidir adaptar-se ao apartamento e agrave nova
vida A decisatildeo de aceitar a vida imposta pela filha eacute tomada com autonomia com a sensatez que
remonta a lsquosensata professora Poacutelirsquo Alice torna a instalaccedilatildeo em sua nova moradia algo que
parece originar de uma decisatildeo sua e natildeo apenas de uma imposiccedilatildeo de Norinha Entretanto
expressa que a decisatildeo para tal eacute racional assim como a organizaccedilatildeo metoacutedica da casa que
realiza Sugere que estaacute fazendo de conta que esqueceu lsquode todo o restorsquo
E a sensata professora Poacuteli acabou vencendo pelo menos provisoriamente porque
acordei logo cedo disposta a deixar pra laacute o ressentimento ser realista encarar as coisas
como eram agora como gente grande voltar ao meu tamanho normal pulei da cama me
vesti decentemente explorei as provisotildees que Norinha tinha deixado fiz e tomei meu
cafeacute e danei a desmanchar malas e pacotes a encher gavetas prateleiras e cabides tudo
muito bem-arrumado metodicamente pensando soacute naquilo que tinha concretamente
diante de mim esquecida ou fazendo de conta que esquecia de todo o resto Pronto
[] botando ordem fora e dentro de mim pensava Pesquisei nos armaacuterios da cozinha
achei o que precisava fiz um almocinho pus toalha louccedila talher aqui mesmo nessa
118
espeacutecie de mesa sem pernas de pedra preta embutida na parede e comi com certo gosto
depois de natildeo sei quanto tempo de fastio (REZENDE 2014 p52-53)
Quando Alice menciona lsquopesquisei nos armaacuterios da cozinha achei o que precisava fiz
um almocinho pus toalha louccedila talherrsquo estaacute manifestando sua decisatildeo de procurar acostumar-se
aos detalhes da nova rotina como colocar a mesa O trecho a seguir complementa essa tentativa
Subi de volta confiante tinha tomado minha primeira iniciativa depois de tanto tempo
e isso fazia sentir-me melhor Abri mais umas caixas e arrumei o conteuacutedo Fiz almoccedilo
direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada sesta de uma vida
normal li umas paacuteginas de uma revista apanhada no aviatildeo e como sempre cochilei
logo (REZENDE 2014 p61)
A frase lsquofiz o almoccedilo direitinho limpei a cozinha tomei uma chuveirada e fui pra sagrada
sesta de uma vida normalrsquo demonstra sua procura por se adaptar ao cotidiano Alice procura
retomar as reacutedeas da nova vida mesmo sendo esta imposta a ela reassumindo seus afazeres
(lsquolimpar a cozinharsquo) e costumes (a lsquosagrada sesta de uma vida normalrsquo) Tudo isso relata agrave Barbie
no caderno posteriormente sabendo que tais posturas representavam apenas a tentativa em
ultrapassar a dor emocional pela saiacuteda de seu habitat em Joatildeo Pessoa A existecircncia compulsoacuteria
volta a aparecer quando eacute convidada para jantar na casa da filha ao mencionar lsquoeu jaacute estava
pegando jeito de me comportar como filha da minha filharsquo conforme se lecirc abaixo
Pois Umberto vai passar aiacute pelas sete horas que eu vou correr pra preparar um
comerzinho bem bom e trazer a senhora pra jantar com a gente botar a conversa em dia
vai ser uma deliacutecia vaacute se aprumar bem bonita que daqui a pouco ele estaacute batendo aiacute
Que remeacutedio senatildeo obedecer Eu jaacute estava pegando jeito de me comportar como filha da
minha filha (REZENDE 2014 p74)
No jantar referido Alice eacute informada por Norinha sobre a viagem do casal para o exterior
postergando o projeto da maternidade motivo de sua mudanccedila para Porto Alegre No primeiro a
lsquolasanha da verdadeirarsquo o lsquomelhor vinho da serra gauacutecharsquo e a lsquocuca de arrasarrsquo satildeo elementos
regionais que a filha oferece como forma ao que parece de apresentar agrave sua matildee as benesses do
territoacuterio em que esta deveraacute habitar no segundo a expressatildeo lsquoe eu soacute com a tarefa de garfar o
que me serviam e emitir de vez em quanto um huuuummm apreciativorsquo exprime a posiccedilatildeo
passiva que a protagonista reconhece assumir frente agraves imposiccedilotildees da filha Neste jantar tem fim
o periacuteodo de interaccedilatildeo de Alice com Norinha na narrativa demarcando a conclusatildeo de uma etapa
da histoacuteria a chegada da personagem agrave cidade
119
A seguir dois fragmentos que retratam a comida como fator de suposta agregaccedilatildeo
familiar mas escondem atraacutes do lsquoFiz jantar especialrsquo o desrespeito e o egoiacutesmo da moccedila quanto
agrave sua matildee Esta ficaraacute sozinha em uma cidade desconhecida sem referecircncias apoacutes ter tido que
abandonar sua terra natal em nome da exigecircncia da filha A atitude de falar da cuca como um
doce de seu completo desconhecimento ilustra agrave escassa familiaridade de Alice com as tradiccedilotildees
da regiatildeo como na frase lsquoum bolo recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima
gostoso de fatorsquo Os trechos definem a atmosfera aparentemente agradaacutevel da refeiccedilatildeo em
famiacutelia imposta por Norinha antes de esta fazer a revelaccedilatildeo que interferiraacute na vida de Alice
culminando na busca de sua autonomia O papel da comida neste ponto do livro eacute o de lsquoadoccedilarrsquo
a personagem para receber a notiacutecia da viagem da filha e do genro
Fiz jantar especial uma lasanha da verdadeira o melhor vinho da serra gauacutecha uma
cuca de arrasar vocecirc vai provar hoje uma cuca tudo receita da minha sogra vai adorar
jaacute estaacute com apetite natildeo eacute soacute de ouvir dizer entatildeo como estaacute sendo sua primeira
semana em Porto Alegre (REZENDE 2014 p74)
Umberto parecendo distraiacutedo dando soacute palpites lacocircnicos sempre concordando com a
mulher dele e eu soacute com a tarefa de garfar o que me serviam e emitir de vez em quando
um huuuummm apreciativo ateacute terminar de comer e aprovar a tal cuca um bolo
recheado frutinhas cristalizadas e uma farofa doce por cima gostoso de fato
(REZENDE 2014 p75)
A partir desse jantar Alice volta para sua casa e suspende os contatos com o casal Tem
iniacutecio assim o papel da comida ligada agrave recuperaccedilatildeo da autonomia perdida
Quando sai para a rua imbuiacuteda da missatildeo de procurar por Ciacutecero Alice sabe que sua
decisatildeo ultrapassa a descoberta do rapaz Eacute por si mesma pela capacidade de cuidar de si de
decidir mesmo as questotildees mais baacutesicas de sobrevivecircncia apoacutes Norinha ter tomado conta de sua
vida e de suas resoluccedilotildees Alice decide decidir Nesse sentido passa a guiar-se por suas
necessidades vitais como fome sono e banho por exemplo todos eles transplantados para o
espaccedilo urbano onde decide habitar apenas para natildeo voltar para o lsquotabuleiro de xadrez seu
apartamento
Mesmo quando esquece onde mora a permanecircncia nas ruas continua sendo uma escolha
pois poderia ligar para a prima Elizete que tem seu endereccedilo no entanto opta por natildeo fazecirc-lo
Durante o periacuteodo duas buacutessolas guiam seus rumos a procura por Ciacutecero que daacute sentido agrave
peregrinaccedilatildeo como um aacutelibi para justificar as andanccedilas e o natildeo-retorno para casa e a
120
manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia atraveacutes do que escolhe comer de onde decide dormir e banhar-se
por exemplo
Uma das primeiras decisotildees de Alice eacute a de esconder-se em casa nos primeiros dias apoacutes
a revelaccedilatildeo sobre a viagem de Norinha e Umberto para o exterior e o adiamento dos planos que
ocasionaram sua mudanccedila para Porto Alegre
Cinco dias de fartura de letras quase jejum de qualquer outra comida o silecircncio cortado
soacute ateacute o comeccedilo da tarde do segundo dia pela ainda prazerosa estridecircncia do telefone
com perverso gosto de vinganccedila que me enchia a boca e quase me bastava como
simulacro de refeiccedilatildeo (REZENDE 2014 p87)
Protege-se em casa lendo livros e deixando o telefone tocar a nutriccedilatildeo estaacute fora do eixo
da comida nesse sentido pois Alice alimenta-se do isolamento que consegue estabelecer Assim
esse eacute o iniacutecio da retomada de sua autonomia atraveacutes das escolhas que comeccedila a fazer por si de
modo independente ao controle da filha Decide natildeo mais se submeter mesmo que a atender o
telefone A nutriccedilatildeo estaacute baseada na autonomia na independecircncia que retoma mais do que nos
proacuteprios alimentos nesse ponto da narrativa Quando refere lsquocom perverso gosto de vinganccedila que
me enchia a boca e quase me bastava como simulacro de refeiccedilatildeorsquo o que se pode ler eacute que a
salvaguarda da sobrevivecircncia estava apoiada na sua capacidade de reagir agrave filha de impor sua
vontade contrariando a imposiccedilatildeo de Norinha
A histoacuteria sofre a guinada maior quando Alice recebe a incumbecircncia de procurar por
Ciacutecero a missatildeo daacute sentido ao seu caminho aos seus dias A missatildeo de encontrar o rapaz eacute o
fator que move a personagem a sair de seu apartamento e a desafiar-se em espaccedilos urbanos
desconhecidos de uma cidade que ainda eacute para ela uma cidade estranha Este seraacute tambeacutem um
modo de se esconder da filha de Elizete e de todos que a possam encontrar Alice decide
descobrir o paradeiro de Ciacutecero para encontrar consigo mesma Aquela lsquosensata professora Polirsquo
capaz de tomar decisotildees e de gerenciar a proacutepria vida estaacute desaparecida de si
Na partida para a Vila Maria Degolada ela tem o primeiro contato com a comida das ruas
e botecos Ao sair de casa sem ter se alimentado obriga-se a comer para saciar a fome esta eacute a
primeira expressatildeo do comer como decisatildeo de sobrevivecircncia
Passei diante de uma portinha aberta quase invisiacutevel entre duas casas um balcatildeozinho
prateleiras com umas poucas mercadorias e uma caixa de vidro com lamentaacuteveis
empadas e coxinhas ou coisa parecida sobrevoadas por uma mosca preguiccedilosa Era
pouco mais que aqueles fiteiros de rua laacute de Joatildeo Pessoa e pode ter sido por isso entrei e
por pouco natildeo pedi uma tapioca de queijo Pedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer
121
de comer Leite natildeo havia fui soacute de cafeacute e uma coxinha engordurada de anteontem
caloria bastante para eu continuar minha peregrinaccedilatildeo Quem servia era um homem jaacute
idoso nada a ver com as imagens de gauacutecho de churrascaria que eu tinha pregadas na
imaginaccedilatildeo nem alto nem louro nem moreno bigodudo de chapeacuteu preto lenccedilo
vermelho laccedilo no ombro e bombacha bufante Baixinho e coxinho com um resto de
bigode fino um bonezinho achatado na careca camisa branca encardida e um lenccedilo
branco amarrado no pescoccedilo Comi paguei e me animei a perguntar pra onde ficava a tal
Vila Maria Degolada (REZENDE 2014 p96-97)
lsquoPedi um cafeacute com leite e uma coisa qualquer de comerrsquo eacute uma das frases que aponta para
o papel da comida nesse momento da histoacuteria o de saciar a fome O alimento em sua funccedilatildeo
primordial eacute o mote desse trecho jaacute que aqui Alice natildeo quer comer algo saboroso e sim que lhe
forneccedila forccedilas para seguir o percurso
Segui em frente olhando pro chatildeo emburrada passo firme e decidido lsquoCiacutecero Arauacutejo
Vila Maria Degolada Ciacutecero Arauacutejo Vila Maria Degoladarsquo revigorada pelo sal a
gordura e a cafeiacutena ateacute chegar manhatilde alta numa avenida larga sem ter mais nenhuma
ideia de pra que lado ficava o apartamento onde eu devia morar (REZENDE 2014
p97)
A atitude determinada de Alice frente ao objetivo eacute o lsquopasso firme e decididorsquo
complementado pela referecircncia que ela faz ao efeito da comida em seu acircnimo para chegar agrave Vila
Maria Degolada lsquorevigorada pelo sal a gordura e a cafeiacutenarsquo A personagem expressa nessa
uacuteltima frase o reforccedilo ao papel do alimento em saciar a fome e em fornecer energia
Nos caminhos que vai percorrendo junta folhetos de propaganda papeacuteis soltos e
guardanapos todos como base para escrever pedaccedilos de livros que encontra Um desses folhetos
representa a visatildeo de Alice sobre sua avoacute que aproveitava as gemas para preparar doces de sua
origem portuguesa e sobre sua filha que desperdiccedilava as gemas para preparar omeletes de
claras para a dieta Essa evocaccedilatildeo de lembranccedilas em relaccedilatildeo agrave avoacute e agrave filha a partir de uma
divulgaccedilatildeo impressa traz mais uma das funccedilotildees do alimento nessa etapa da histoacuteria aleacutem da
expressatildeo de autonomia o resgate de si atraveacutes das recordaccedilotildees de suas origens Lembrar-se de
sua avoacute eacute remontar uma parte de sua proacutepria construccedilatildeo pessoal e portanto estaacute incluiacutedo na
procura de Alice por sua identidade separada das ordens e determinaccedilotildees de Norinha
Uma ialorixaacute me deu um papelzinho com receita de uma simpatia natildeo exatamente pra
achar filho perdido era pra juntar famiacutelia desunida Mas pode crer que ajuda se tu fizer
com feacute soacute precisa quatro quindinsonde eacute que eu iacutea achar quindins veio-me por um
instante a lembranccedila das gemas de ovo desperdiccediladas por Norinha saudade da minha
avoacute portuguesa exilada laacute no sertatildeo e de seus doces de ovos os quindins que ela
aprendeu a fazer com coco lamentando sempre natildeo poder fazer sua brisa do Lis como a
de Leiria por falta das amecircndoasescrever o pedido pocircr os quindins em cima polvilhar
accediluacutecar cristal e espetar nos doces quatro flores amarelas quatro moedas acender quatro
122
velas e deixar tudo numa praccedila olha aiacute Barbie o papelzinho ficou junto com o resto dos
que se foram acumulando na minha mochila com as costas cheias de frases copiadas de
livros (REZENDE 2014 p116-117)
A necessidade de encontrar consigo mesma estaacute pungente na personagem uma soacute palavra
que remeta a seu passado serve para as recordaccedilotildees surgirem como os lsquoquindinsrsquo que na
verdade natildeo servem como alimento e sim como parte da simpatia Eacute como se a palavra fosse
uma porta para suas lembranccedilas e uma vez aberta faz que muito seja recordado e refletido
Alice segue pela Vila Maria Degolada agrave procura de Ciacutecero e vai tendo contato com
moradores que a ajudam andando pela vila atraacutes de pistas do rapaz Durante as horas que
permanece ali a comunicaccedilatildeo entre ela e as pessoas que a recebem eacute feita em grande parte pelos
alimentos que oferecem para ela comer ou beber Alice descobre novos sabores regionais na
receita ou apenas no nome e sobretudo conhece novas pessoas ao longo do trajeto O que decide
comprar nos botecos ou aceitar nas casas como os salgados os biscoitos ou o cafeacute ralo deve-se
principalmente a satisfazer as necessidades fiacutesicas de fome e sede Mais uma vez a comida
representa a manutenccedilatildeo da sobrevivecircncia Entretanto surge para essa novo papel o de saciar a
necessidade de contato humano de trocas e de interaccedilatildeo social
Nem sei quantos cafeacutes ralos engoli Pra te animar vai bebe nem sei quantas cuias de
chimarratildeo recusei Natildeo sou daqui natildeo sou da Paraiacuteba na minha terra natildeo eacute costume
cheguei haacute pouco ainda natildeo aprendi a tomar Mas logo acostuma que um amargo eacute coisa
boa demais bom pra sauacutede pro estocircmago pra tudo Todos sem falhar queriam ajudar
indicavam uma rua uma viela uma direccedilatildeo onde sim havia gente de lsquolaacutersquo Sei laacute quantas
coxinhas empadas comi e paguei pelas biroscas da Vila Maria Degolada nome que eu
logo parei de usar porque percebi que natildeo era do agrado de ningueacutem ali Ia aprendendo
coisas e nomes a comer dedo-de-negro que logo domestiquei como parente de nossa
sorda cortada em tiras e groacutestolis que identifiquei como a calccedila-virada da minha avoacute
portuguesa Tudo o que me fizesse esquecer Norinha e o apartamento preto e branco me
servia bem (REZENDE 2014 p117)
A passagem pela vila na procura por Ciacutecero tinha outra funccedilatildeo primordial dentro de
Alice a de natildeo retornar para o apartamento e para a vida que lhe foi imposta Com tal propoacutesito
decide prosseguir Percebe-se capaz de fazer escolhas a seu favor quando se pergunta lsquoe agorarsquo
pois responde que voltar para o apartamento natildeo lhe atrai lsquode jeito nenhumrsquo
Jaacute passava um pouco das quatro da tarde eu tinha andado desde as sete da manhatilde
sentando-me raras vezes quando alguma mulher mais atenciosa puxava uma cadeira de
dentro de casa e me oferecia pra descansar na sombra ou em algum boteco o tempo de
comer uma empadinha ou uma cueca-virada E agora Voltar pro apartamento natildeo me
atraiacutea de jeito nenhum Por que natildeo continuar pro novo destino provisoacuterio que me
indicaram Apesar de entatildeo jaacute achar tudo aquilo bastante suspeito (REZENDE 2014
p123)
123
Prosseguindo para o Hospital de Pronto Socorro surgem trecircs cenas relevantes em que o
comer eacute expresso como satisfaccedilatildeo da fome e reestabelecimento do acircnimo na primeira Alice
percebe a fome e decide procurar o que comer na segunda come de forma tatildeo afoita as pipocas
que se engasga na terceira eacute socorrida por Zelima senhora que a ajuda reforccedilando que o
cuidado de terceiros tambeacutem tem uma funccedilatildeo quando o comer eacute representado na obra
1) Cansaccedilo absoluto e fome fincaram-me no meio do saguatildeo zonza olhando aquela
larga porta aberta pra nada Um lugar vago num dos bancos era tudo o que me restava
Ali desabei e fiquei de olhos fechados e a cabeccedila pendendo sobre o peito como tantos
outros sentados naquele natildeo lugar esperando minhas pernas pararem de tremelicar
pensando apenas nelas e na sensaccedilatildeo do meu estocircmago oco Natildeo sei quanto tempo parei
ali Lembro-me de que afinal a fome venceu abri os olhos puxei o celular da bolsa pra
ver as horas a bateria estava descarregada procurei em torno e vi um reloacutegio na parede
do saguatildeo jaacute passava das nove da noite levantei-me as pernas agora quase firmes desci
os degraus da porta ateacute a calccedilada buscando algo pra comer e o que havia no meu raio de
visatildeo era uma carrocinha de pipoca Arrastei-me ateacute o pipoqueiro perguntando-me
desde que horas ele estava ali se tinha casa agrave qual voltar se soacute comia pipoca o dia
inteiro minha cabeccedila a andar agrave roda agarrando-se a fiapos de pensamento sem sentido
Cheguei junto dele remexendo a bolsa agrave procura de uns trocados que tivessem restado da
farra de salgadinhos e biscoitos da Maria Degolada Eu natildeo tinha comido mais nada
desde entatildeo (REZENDE 2014 p147)
2) Puxei um bolinho de notas de dois reais e umas moedas estendi-as ao homem ele
escolheu o que correspondia ao preccedilo do saco de pipocas e me entregou tudo sem
trocarmos uma palavra Escorei-me no poste junto da carrocinha e enfiei na boca de
uma soacute vez o maior punhado de pipocas que pude sem me importar com as poucas que
escaparam e foram ao chatildeo Engasguei-me a boca seca e cheia tentando segurar a tosse
pra natildeo fazer chover mais pipoca pra todo lado mas natildeo consegui as ex-professora Poacuteli
cuspiu um jorro de piruaacutes tossiu de se acabar encostada num poste de lugar nenhum o
mundo escurecendo (REZENDE 2014 p147-148)
3) Zelima sentou-se ao meu lado segurando fielmente o meio copo de aacutegua e o meio
pacotinho de pipocas e assim que me recompus devolveu-me aquele simulacro de
refeiccedilatildeo dizendo Come que tu estaacute fraca bebe o resto da aacutegua para empurrar Soacute
balancei a cabeccedila obedeci ela recolheu os invoacutelucros vazios e foi jogaacute-los numa lixeira
na calccedilada voltou e sentou-se de novo junto a mim em silecircncio (REZENDE 2014
p148-149)
O percurso tem continuidade na manhatilde seguinte quando decide encontrar uma padaria
onde encontra aleacutem da satisfaccedilatildeo da fome um ambiente onde conversa e ri sobre o
desconhecimento de termos regionais como o nome de lsquocacetinhorsquo para o patildeo francecircs Nutre-se
desse modo do alimento e do contato humano ldquoAprumei o espinhaccedilo apanhei a bolsa e saiacute
novamente com passo firme destino certo uma padariardquo (REZENDE 2014 p159) A
protagonista chega no destino esperado saciando a fome de comida e de afeto
Cafeacute com leite cacetinho na chapa e riso me puseram em quase perfeita forma por
dentro e pelos proacuteximos instantes mas restava um tanto consideraacutevel de dor no corpo e
uma vontade enorme de me deitar e dormir decentemente
124
[] Quando saiacute olhei bem o nome da padaria e da rua pra voltar quando precisasse
encontrar um conhecido amigaacutevel como se eu jaacute soubesse quantas vezes precisaria
voltar (REZENDE 2014 p161)
Alice come quando tem fome dorme quando tem sono Respeita a sobrevivecircncia em sua
procura pelo desconhecido Ciacutecero A vida eacute no espaccedilo da rua do parque das avenidas das
padarias das carrocinhas de pipoca e de cachorro-quente
Quem mais usa orelhatildeo neste mundo ocirc Alice te liga no segundo deles o fio do
telefone pendia cortado mas na mesma esquina havia uma lojinha de venda e conserto
de celulares Sim o homem podia carregar pra mim Pelo menos uma carga raacutepida de
emergecircncia ateacute tu chegar em casa soacute dois pilas senta aiacute Abanquei-me no tamborete
oferecido mas meu estocircmago natildeo queria esperar mais nem um minuto e vi pela porta
uma carrocinha de cachorro-quente do outro lado da esquina Fui laacute e voltei trazendo o
patildeo com salsicha montes de mostarda escorrendo no guardanapo de papel e o luxo de
um saquinho de batata frita uma latinha de refrigerante o tamborete agrave sombra a parede
fresca para encostar as costas Seraacute que cochilei
Paguei agradeci saiacute comprei mais um cachorro-quente da carrocinha e natildeo pensei mais
em telefonar a Elizete nem queria saber endereccedilo nenhum nem voltar pra lugar
nenhum soacute continuar agrave toa Agrave toa Que nada (REZENDE 2014 p170-171)
Alice sabe natildeo estar agrave toa volta a ser dona de suas escolhas sejam elas quais forem Vai
retomando a consciecircncia de si mesma dos referenciais de sua histoacuteria de vida das lembranccedilas
ajudam a reconstruir sua identidade como quando refere a recordaccedilatildeo de lsquoum cafeacute com leite que
ao longo da vida sempre me parecia como soluccedilatildeo para pequenas dores pequenos desconfortosrsquo
Um vento mais frio me fez fugir da sombra procurar um resto de sol com vontade de
tomar alguma coisa quente um cafeacute com leite que ao longo da vida sempre me aparecia
como soluccedilatildeo pra pequenas dores pequenos desconfortos e fui em busca de um bar
lanchonete Achei um botequinho que me serviu leite ralo com cafeacute de garrafa teacutermica
ainda havia de aprender a tomar chimarratildeo mas me bastou
Depois de confortada pela bebida morna e accedilucarada saiacute agrave toa de novo esquecida de
Ciacutecero Arauacutejo [] (REZENDE 2014 p176)
Esquecer-se de Ciacutecero Arauacutejo significa neste ponto da histoacuteria que a aproximaccedilatildeo
consigo mesma torna-se mais importante Essa retomada de si atraveacutes do conforto de uma
lsquobebida morna e accedilucaradarsquo corresponde ao respeito aos seus referenciais de memoacuteria durante a
vida Alice vai remontando dados de si peccedilas de um mosaico desordenado pela mudanccedila de vida
mas que agrave medida que segue um percurso aleatoacuterio ou lsquoagrave toarsquo passa a ser o caminho para o
contato com suas caracteriacutesticas Quanto mais retoma a si mesma menos se ocupa de Ciacutecero
Este ocupar-se de si eacute traduzido pela procura por satisfazer as funccedilotildees vitais mas tambeacutem pelos
pequenos confortos que passa a permitir-se obter como a cena que transcorre na rodoviaacuteria
125
Nesse local o lsquoprato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos colherrsquo eacute a
expressatildeo da mudanccedila da personagem ao longo da histoacuteria pois essa passa a querer saciar a fome
com uma refeiccedilatildeo digna e natildeo mais com lanches de rua O garfo e a faca nesse sentido
representam a imagem de um comer para aleacutem do aspecto de saciar a fome evocam a ideia da
comida no prato posta agrave mesa e natildeo mais agrave rua sentada em um tamborete ou em peacute Eacute
interessante observar a referecircncia que faz ao cachorro-quente paraibano como forma de remontar
suas origens na reconstruccedilatildeo que faz de si
Decerto era preciso pagar e eu tambeacutem precisava comer uma refeiccedilatildeo decente como
havia dois dias natildeo comia impossiacutevel continuar vivendo de salgadinho refrigerante e
cachorro-quente de salsicha Se pelo menos fosse o bom cachorro quente paraibano com
tudo quanto haacute um verdadeiro prato feito dentro de um patildeo muita carne moiacuteda mais a
salsicha se quisesse verdura ovo ou qualquer outra coisa ou tudo junto o que a gente
pedisse aqueles abundantes molhos vermelhos de colorau escorrendo pelos lados
alimentando ou entupindo o freguecircs davam a sensaccedilatildeo de saciedade por um bom tempo
Mas aqui natildeo Eacute um patildeo com uma salsicha e a mostarda fraco demais pra mim eu natildeo
podia mais queria um prato cristatildeo a comida quente de garfo e faca pelo menos de
colher Ali devia haver de tudo mas custava dinheiro (REZENDE 2014 p184)
Ainda na rodoviaacuteria onde consegue tambeacutem tomar banho vai decidindo adotar accedilotildees de
cuidado consigo como a lembranccedila da pasta de dente Progressivamente Alice ocupa-se de
retomar as rotinas de higiene de alimentaccedilatildeo e de sono Mais uma vez menciona a refeiccedilatildeo
completa o lsquogrande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdurarsquo Haacute a
noccedilatildeo de conforto na ideia de comida servida no prato e sobretudo no termo que ela usa
lsquocomida quentinharsquo
Dei-me conta de que pouco importava eu natildeo tinha sabonete nem sabatildeo nenhum mas
me lembrei confortada da pasta de dente que restava do aviatildeo guardada na bolsa pra
depois do grande prato de comida quentinha arroz feijatildeo mistura alguma verdura o
que fosse que eu havia de comer antes de procurar um canto pra dormir (REZENDE
2014 p187-188)
Na evoluccedilatildeo da procura por uma refeiccedilatildeo decente a protagonista encontra o restaurante
de Penha tambeacutem paraibana Descobre a coincidecircncia durante o jantar enquanto ouve a
proprietaacuteria falando ao telefone A forma como recebe a refeiccedilatildeo com o cuidado de Penha em
oferecer-lhe a comida agrave mesa junto agrave constataccedilatildeo de um sotaque familiar fazem com que Alice
se sinta confortada
1) Andei um pouco procurando onde comer e achei um restaurantezinho com um
aspecto muito simples limpo uma mulher com um jeito vagamente familiar do outro
lado do balcatildeo uma oferta Prato Feito R$ 350 Ai Barbie com que apetite me sentei
126
numa das duas mesinhas em frente ao balcatildeo e pedi meu PF uma latinha de refrigerante
Esperei meu olhar desgarrado acompanhando e abandonando cada um que passava
pensei Daiacute a poucos minutos a mulher sem nada dizer com uma das matildeos desdobrou agrave
minha frente uma toalhinha azul engomada a ferro com a outra depositou meu prato
quentinho acreditei ver o vapor subindo da comida talheres limpos enrolados num
guardanapo de papel imaculado um copo impecavelmente limpo a latinha gelada e ateacute
palito que eu nunca usei nem ia usar mas me acrescentavam conforto todos aqueles
adereccedilos em torno da minha fome soacute pra mim bem sentada numa cadeira de encosto as
matildeos limpas me sentindo toda limpa apesar da roupa usada e ataquei o prato com
voracidade tentando conter-me para natildeo comer depressa demais pra aquele prazer durar
bastante (REZENDE 2014 p192)
2) Quando a outra paraibana acabou o telefonema eu me levantei com o prato jaacute vazio o
copo ainda meio cheio me encostei ao balcatildeo e entreguei a louccedila mas continuei ali
tomei mais um gole do meu refrigerante e perguntei Vocecirc eacute da Paraiacuteba natildeo eacute Ela disse
Sou sim como eacute que sabe Ouvi umas palavras matildeiacutenha painho Campinatambeacutem sou
de laacute (REZENDE 2014 p193)
3) Acordei maldormida por conta do frio mas sem dor no corpo a rodoviaacuteria jaacute se
enchendo de gente juntei meus tereacutens e fui tomar cafeacute na bodeguinha de minha
conterracircnea que agravequela hora bem cedo jaacute havia reassumido seu posto (REZENDE
2014 p194)
Alice decide retornar ao restaurante de Penha na manhatilde seguinte permitindo-se tomar o
cafeacute da manhatilde Quando refere lsquobodeguinha da minha conterracircnearsquo jaacute expressa o conforto de
sentir-se familiar agrave Penha como forma de novamente encontrar referecircncia agrave sua Paraiacuteba Assim
como em outros fragmentos jaacute referidos a comida representa natildeo apenas o aspecto vital de
nutriccedilatildeo mas tambeacutem o do contato humano que propicia a exemplo do zelo com que a
proprietaacuteria coloca a mesa para Alice
Satisfeita em suas necessidades a personagem retoma sua busca por Ciacutecero Arauacutejo
seguindo a sugestatildeo dada por Penha para que fosse ao Campo da Tuca Laacute novo aproximaccedilatildeo
com seus referenciais atraveacutes do queijo de manteiga da rapadura e da plaquinha lsquotemos carne de
solrsquo
Procurando por Ciacutecero Alice encontra partes de sua terra Reencontra a si mesma atraveacutes
do contato com conterracircneos como Penha e outros do Campo da Tuca e de alimentos de sua
regiatildeo
Fui dando a volta ao campo de futebol e dei com uma bodeguinha que me cheirou a
nordestina encostei na porta olhei percebi logo o acerto de minha intuiccedilatildeo em cima do
balcatildeo havia uma caixa de vidro com queijo de manteiga e uma pilhazinha de rapaduras
na parede do fundo um cartaz Temos carne de sol Eu natildeo via ningueacutem depois percebi
movimento num canto mais ao fundo algueacutem arrumando prateleiras chamei Por favor
ele veio na hora pra entabular conversa perguntei O senhor tem mesmo carne de sol e
ele pesaroso Acabou esta manhatilde vendi o uacuteltimo pedaccedilo quase guardei pra mim mas a
freguesa antiga amiga laacute da minha terra insistiu e vendi pra ela semana que vem chega
mais se a senhora voltar na quarta ou quinta-feira eacute de certeza que vai ter carne de sol
aqui porque o primo que me manda jaacute despachou estaacute chegando era ateacute pra ter chegado
127
ontem [] olhe tem um queijinho de manteiga de primeira esse acabou de chegar
tenho mais laacute dentro a senhora pode levar quanto quiser esse eacute do bom bota na brasa
na frigideira e fica uma beleza assado natildeo vai se arrepender leve um pedacinho do
queijo pra esperar a carne de sol assim mata a saudade (REZENDE 2014 p200-201)
Alice ouve o sotaque familiar recebe acolhimento nas famiacutelias por onde procura por
Ciacutecero Natildeo encontra pistas dele mas descobre a cada novo trecho pistas de si mesma e de suas
raiacutezes
Suelen me conduziu de casa em casa gente do sertatildeo do litoral da Vaacuterzea do Brejo da
Paraiacuteba uns tantos Ciacuteceros por certo mas nenhuma notiacutecia de Ciacutecero Arauacutejo nem nas
casas de outros Arauacutejos Comi tapioca com coco tomei cafeacute refresco de cajaacute A gente
arranja algueacutem traz e guarda no freezer sempre tem mas natildeo achei Ciacutecero
(REZENDE 2014 p204)
Ela sabe que Ciacutecero eacute um pretexto em sua procura Reconhece que seu propoacutesito principal
natildeo eacute o de encontraacute-lo mas sim o de continuar sobrevivendo pelas proacuteprias pernas tomando as
proacuteprias decisotildees Quando menciona que se forccedilava a crer sabe que sua busca era por si mesma
Salgadinhos e cachorros-quentes mastigados agraves pressas ou com exagerada lentidatildeo a
depender do interesse dos assentos disponiacuteveis ou do cansaccedilo das pernas e as andanccedilas
sem fim com objetivos mentirosos nas quais eu mesma me forccedilava a crer Ciacutecero Arauacutejo
sumindo e reaparecendo segundo seus caprichos e minhas necessidades []
(REZENDE 2014 p213-214)
Em uma nova padaria ela alimenta-se de lsquopatildeo na chapa e cafeacute com leitersquo repete o pedido
para permanecer ali por mais tempo lsquomatutandorsquo Quando refere a si mesma naquela condiccedilatildeo
como lsquoalimentada e decididarsquo mostra que sobrevivecircncia e autonomia estatildeo lado a lado eacute capaz
de cuidar de si e de tomar as proacuteprias decisotildees mesmo que sejam como a de dormir em um sofaacute
ao relento coberta com o plaacutestico-bolha
Andei mais um pouco passei por uma padaria senti fome voltei entrei patildeo na chapa e
cafeacute com leite sentei-me em uma das duas mesinhas com tamboretes pedi mais patildeo
com cafeacute e encompridei minha permanecircncia ali matutando ateacute comeccedilarem a puxar a
primeira porta de ferro Entatildeo alimentada e decidida debaixo de um ceacuteu despejado
voltei ao sofaacute que laacute me esperava deserto deitei-me em cima da bolsa os joelhos
apoiados na mochila presa pelas alccedilas agraves minhas canelas agasalhei-me com meu
plaacutestico-bolha e dormi minha primeira noite ao relento sem nada sobre a cabeccedila senatildeo
estrelas (REZENDE 2014 p217)
A frase jaacute apontada lsquoalimentada e decididarsquo mostra a ideia de que a alimentaccedilatildeo eacute
combustiacutevel de sua sobrevivecircncia e de sua capacidade de decidir por si o que fazer Cada vez
mais a protagonista da narrativa se percebe protagonista da proacutepria vida
128
No seguimento de seus dias na rua Alice encontra Arturo e Lola moradores de rua Com
eles compartilha o lugar de dormir e as refeiccedilotildees interage afeiccediloa-se com amizade Arturo a
quem ela apelida de lsquoChapeleirorsquo acorda-a para que receba dos voluntaacuterios o lanche da
madrugada
Eu dormi Barbie pela primeira vez eu dormi na rua literalmente de verdade a noite
quase toda ateacute comeccedilar a clarear laacute fora Foi o Chapeleiro que me acordou sacudindo
meu ombro com sua fala arrevesada lsquoCha bem a chente do pan y do cafeacute no perde esse
pan com cafeacute dessos pibes eacute bueno eacute quente conforta son pibes Buenosrsquo
A cada parada saltavam jovens dois rapazes e uma moccedila com copos de plaacutestico
garrafas teacutermicas e embrulhinhos de papel pardo distribuindo-os Quando chegou a
minha vez vi primeiro aacutegua quente pras cuias como a do Chapeleiro jaacute a bomba em
riste um pacotinho de erva-mate pra quem pedia e a oferta de cafeacute com leite bem
accedilucarado que eu preferi mais um cacetinho com manteiga e uma espeacutecie de mortadela
ou outro afiambrado qualquer Vou lhe dizer Barbie embora o copinho fino quase
queimasse a matildeo aquilo me pareceu um presente do ceacuteu eu quase sem dinheiro nenhum
e tatildeo longe da padaria do meu amigo pra ir pedir-lhe fiado outro cacetinho na chapa e
um cafeacute com leite (REZENDE 2014 p224)
Lola eacute personagem de grande relevacircncia na narrativa pois estabelece com Alice uma
relaccedilatildeo de amizade e de cuidado Recebe-a em sua casa mesmo com toda precariedade que esta
estrutura tem a oferecer Daacute agrave protagonista a confianccedila de poder dormir laacute quando quiser Alice
retribui compartilhando com ela as refeiccedilotildees que faz Mesmo com pouquiacutessimo dinheiro que
ainda lhe sobra ela divide com Lola a comida que consegue comprar O alimento aleacutem de nutrir
o corpo nutre a amizade funciona como instrumento de partilha e de gratidatildeo pelo acolhimento
que recebe da nova amiga A seguir trecircs fragmentos que ilustram o cuidado muacutetuo entre elas
1) Natildeo tive coragem de fazer perguntas sobre aquilo tudo preferi oferecer-lhe com um
resto de dinheiro que catei nos bolsos e na carteira um cafeacute com patildeo na padaria mais
proacutexima que ela aceitou e comeu com gosto nenhuma de noacutes duas ligando a miacutenima
pros olhares enviesados que nos cercavam Tu vem todo dia dormir aqui tu eacute direita tu
pode aprende o caminho Eu vinha sim sem duacutevida nenhuma e fomos cada uma pro
seu lado eu memorizando pontos de referecircncia pelo caminho (REZENDE 2014 p232)
2) Dormia em seu terraccedilo dividia com ela minhas parcas refeiccedilotildees lia seus livros
embolorados Ela nunca me perguntou mais nada desde o primeiro encontro em que lhe
contei e ela duvidou da minha histoacuteria de filha neto Ciacutecero e tudo mais que ouviu com
um risinho descrente (REZENDE 2014 p236)
3) Guiavam-me o amanhecer e o entardecer a chuva o frio o sol a fome que eu
resolvia com qualquer coisa natildeo mais de dez reais por dia a menor quantia que o caixa
eletrocircnico cuspia agraves vezes suficientes pra mim e pra Lola Dias e dias Nada mais na
minha aparecircncia nem de leve acho me distinguia dos outros (REZENDE 2014
p239)
Ao final da narrativa Alice narra como terminou seus quarenta dias de rua jaacute sem
dinheiro ainda encontra um modo de se alimentar vendendo os livros que comprou mendigando
129
aacutegua em bares Sua condiccedilatildeo deteriorada chega ao limite e entatildeo natildeo mais se parece apenas mas
se torna moradora de rua pela proacutepria escolha de natildeo voltar ao apartamento Natildeo eacute mais guiada
pela procura por Ciacutecero mas sim por aquela de sobreviver
Esmoreci de vez sem banho sem comida rasgada desmantelada deixei-me cair em
mais um banco indiferente aos olhares se eacute que algueacutem me via cochilei e acordei mil
vezes saiacute pra rua tocada pela fome a esmo coragem nenhuma de pedir nas portas de
remexer no lixo vendi no sebo meus livros novos de 199 pela quantia suficiente pra trecircs
cachorros-quentes bebi aacutegua de torneira mendigada em balcotildees de bares Jaacute natildeo tinha
mais nada a perder (REZENDE 2014 p244)
Quem ajuda Alice na decisatildeo de retomar sua vida de voltar a seu apartamento eacute Lola Ao
estimulaacute-la a telefonar para Elizete para pegar o endereccedilo de sua casa Lola cuida de Alice
acordando-a de madrugada e oferecendo-lhe lsquoa metade de um patildeo dormido e uns goles do seu
chimarratildeorsquo Aqui o alimento eacute para dar forccedilas agrave personagem mas eacute acima de tudo representativo
do cuidado e do carinho que se estabelece entre elas Alice reconhece
Ela afinal acreditava mais do que eu me sacudiu no lusco-fusco da madrugada Vai
sai desse buraco isso natildeo eacute pra ti tu soacute natildeo esquece da gente Obedeci sem resistecircncia
Lola me deu a metade de um patildeo dormido uns goles do seu chimarratildeo Toma pra tu
aguentar ateacute laacute levou-me a um orelhatildeo talvez o uacuteltimo que ainda funcionava telefonei
pra Elizete a cobrar tirei-a da cama na madrugada (REZENDE 2014 p245)
Quando refere lsquoobedeci sem resistecircnciarsquo natildeo se trata de uma obediecircncia passiva como
aquela que se instala com a filha no iniacutecio da narrativa eacute sim o resultado de sua quarentena a
compreensatildeo de si mesma e de suas necessidades de sobrevivecircncia que natildeo mais podem ser
satisfeitas na rua pela falta de dinheiro Alice constata que seu percurso em direccedilatildeo agrave si mesma
chega ao fim que jaacute eacute capaz de comeccedilar uma nova vida em Porto Alegre agora com o passo
firme de quem eacute capaz de decidir natildeo mais apenas sobreviver mas viver a rotina como se
apresenta A protagonista natildeo estaacute mais resignada agrave vida que lhe foi imposta mas compreende
que chegou aos proacuteprios limites e que retomou sua autonomia ldquoChega Barbie agora eu paro
mesmo jaacute estaacute clareando o dia Agradeccedilo a paciecircncia guria a solidariedade silenciosa mas
agora eu vou te trancar numa gaveta tu natildeo leva a mal taacute Natildeo digo que seja pra sempre quem
sabe ainda reabro estas paacuteginas passo tudo a limpordquo (REZENDE 2014 p245)
Sem ponto final o paraacutegrafo mostra a caracteriacutestica da narrativa muitas vezes com frases
inacabadas Entretanto aqui a falta do ponto denota a abertura agraves possibilidades do que refere
como lsquopasso tudo a limporsquo Alice assume elementos da linguagem gauacutecha como o uso do lsquoguriarsquo
130
do lsquotursquo e do lsquotaacutersquo expressando a iniciativa pela assimilaccedilatildeo de elementos regionais em sua nova
fase depois de fazer todo o relato de sua mudanccedila de vida nas paacuteginas do diaacuterio
Em todo o percurso de sua procura por si mesma pelo resgate de sua autonomia o
alimento assume diversas conotaccedilotildees Pode-se compreender a cozinha em Quarenta dias como
um fator que marca etapas da histoacuteria de Alice desde a sopa que prepara em Joatildeo Pessoa ateacute o
patildeo dormido que recebe de Lola tanto representada pelo aspecto da comida como por aquele da
mobiacutelia dos instrumentos que satildeo parte do preparar o alimento e do comer Aleacutem disso eacute
possiacutevel transplantar a cozinha para o externo na histoacuteria como representaccedilatildeo da vida que Alice
decide tomar fora da vida que lhe foi imposta A cozinha representa a autonomia e natildeo mais a
obediecircncia agrave filha A consciecircncia do corpo por sua vez as necessidades de fome sede sono e
higiene pessoal que satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa
Cabe compreender a consciecircncia do eu e a consciecircncia do corpo ambas definidas por
Jaspers na procura que a protagonista faz por si mesma a partir da capacidade de tomar decisotildees
a favor do que deseja e precisa e natildeo a favor da filha Aleacutem disso relembra diversos elementos
de sua identidade a partir de referenciais de sua terra encontrados em Porto Alegre como um
sotaque familiar de Penha ou os sabores paraibanos ou mesmo na evocaccedilatildeo dos doces de sua
avoacute que os quindins da simpatia fazem-na evocar A recordaccedilatildeo do cachorro-quente paraibano
que compara com aquele soacute de patildeo e salsicha gauacutecho faz com que as memoacuterias ajudem em sua
reconstruccedilatildeo no que tange agrave consciecircncia de si A consciecircncia do corpo por sua vez pode ser lida
na iniciativa de Alice por satisfazer as necessidades de fome sede sono e higiene pessoal que
satildeo apresentadas ao longo de seus quarenta dias fora de casa
Um ponto de grande importacircncia eacute a interaccedilatildeo com outras pessoas que tambeacutem consiste
em necessidade de sobrevivecircncia Alice sai do isolamento em que passa os primeiros dias do
choque imbuiacuteda de encontrar Ciacutecero Nesta missatildeo conhece pessoas com quem conversa e
partilha mesmo que seja uma breve aproximaccedilatildeo Nutre-se dessas trocas aleacutem da nutriccedilatildeo pelo
alimento Coloca-se em situaccedilotildees em que eacute escutada em que tem sua necessidade atendida como
nas vilas que percorre na procura pelo rapaz nos botecos e restaurantes onde vai recebe o que
pede no restaurante de Penha recebe o zelo de uma mesa posta de Zelima no Pronto-Socorro
recebe cuidado e preocupaccedilatildeo
131
Atraveacutes da necessidade de sobreviver e da missatildeo de descobrir o paradeiro de Ciacutecero
Alice redescobre sua capacidade de tomar as reacutedeas da proacutepria vida que atribuiacutera agrave filha Norinha
logo que chegou em Porto Alegre
132
CONCLUSAtildeO
Italo Calvino ao se referir agrave atividade do escritor afirmou ldquoEscrevemos para tornar
possiacutevel ao mundo natildeo escrito de exprimir-se atraveacutes de noacutesrdquo (DANZI 2007 p140) O que ele
denomina lsquomundo natildeo escritorsquo eacute a proacutepria vida real percebida pelo indiviacuteduo por seus cinco
sentidos e vivenciada atraveacutes das emoccedilotildees e dos pensamentos Desse lsquomundo natildeo escritorsquo
portanto fazem parte o cozinhar e o comer o partilhar as refeiccedilotildees e seus sabores o vincular-se
aos demais entre outras vicissitudes da experiecircncia humana Atraveacutes do ofiacutecio do escritor essas
condiccedilotildees satildeo representadas no texto literaacuterio
A escolha por estudar o universo da cozinha neste contexto permite expressar diversas
perspectivas atraveacutes da literatura Silvana Ghiazza estudiosa das relaccedilotildees entre cozinha e
literatura expotildee que
O alimento enquanto signo significa portanto algo aleacutem de si mesmo media conteuacutedos
ligados ao universo cultural revela conexotildees com a realidade histoacuterico-social com o
conjunto profundo da identidade individual e coletiva constitui em suma um polo de
agregaccedilatildeo de diversas dimensotildees de humanidade torna-se uma forma de linguagem natildeo-
verbal organizando-se em paralelo a outras linguagens em um orgacircnico sistema de
sinais desta forma pode tornar-se entatildeo uma chave de leitura transversal da realidade
Ateacute daquela literaacuteria (GHIAZZA 2015 p19)
De acordo com a mesma autora ldquo[] pode-se falar de comida ou atraveacutes da comidardquo
(GHIAZZA 2015 p20 grifo nosso) No termo lsquoatraveacutesrsquo empregado por Silvana Ghiazza estatildeo
as possiacuteveis aplicaccedilotildees da cozinha na literatura em que a primeira a cozinha eacute um veiacuteculo para
que a segunda a literatura exprima na linguagem do escritor uma seacuterie de circunstacircncias dos
personagens e da trama
Mais uma vez Silvana Ghiazza colabora para a compreensatildeo do sentido da comida e sua
relaccedilatildeo com a literatura quando esclarece
A comida pode ser presente como objeto em sua concreta materialidade no interno da
representaccedilatildeo marcando a natureza realiacutestica da proacutepria estrutura narrativa pode
contribuir a delimitar as coordenadas espaccedilo-temporais fornecendo referecircncias a
produtos pratos haacutebitos de um tempo e de um territoacuterio determinado pode tambeacutem
assumir um significado metafoacuterico mediando conteuacutedos diversos e simboacutelicos A
relaccedilatildeo com o alimento em termos de sua conotaccedilatildeo identitaacuteria pode servir ao autor para
tratar o caraacuteter das personagens e pode tornar-se uma forma de comunicaccedilatildeo
interpessoal uma linguagem natildeo-verbal A comida pode ainda constituir o campo
semacircntico do qual o autor se serve para as escolhas lexicais de sua escritura
(GHIAZZA 2015 p20)
133
A expressatildeo da cozinha no texto literaacuterio serve valendo-nos da referecircncia de Italo
Calvino a que este lsquomundo natildeo escritorsquo se exprima atraveacutes do escritor A partir da leitura da
autora entende-se que esse lsquoexprimir-sersquo poderaacute ocorrer por meio de trecircs funccedilotildees principais a
denotativa a conotativa e a comunicativa Sobre a primeira denotativa Silvana Ghiazza explica
As referecircncias a produtos alimentares a pratos e a receitas assim como a rituais haacutebitos
ou eventos ligados agrave realidade gastronocircmica de um tempo preciso e de um territoacuterio
definido contribuem sem duacutevidas para dar veridicidade verossimilhanccedila agrave narrativa
marcando sua estrutura realiacutestica (GHIAZZA 2015 p24)
As trecircs obras da literatura brasileira contemporacircnea escolhidas para compor o corpus
desta dissertaccedilatildeo apresentam o universo da cozinha atraveacutes da funccedilatildeo denotativa nos elementos
compreendidos como espaccedilo fiacutesico material Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo as
referecircncias agraves tradiccedilotildees culinaacuterias judaicas em seus pratos receitas e praacuteticas satildeo representadas
por essa funccedilatildeo Em O arroz de Palma podemos ler em produtos como o arroz a lata de azeite
de oliva e o bacalhau a presenccedila da cultura portuguesa configurando tal funccedilatildeo em Quarenta
dias a mesma estaria representada pelas carrocinhas de pipoca e de cachorro quente pelas
padarias e comidas de botecos de rua pois satildeo elementos que datildeo verossimilhanccedila agrave estrutura
narrativa em que a personagem passa a habitar as ruas da cidade durante a sua procura
A respeito da funccedilatildeo conotativa em situaccedilatildeo oposta agrave anterior Ghiazza explicita
As referecircncias agrave esfera alimentar natildeo tecircm o escopo de marcar a verossimilhanccedila e o
realismo da obra fornecendo informaccedilotildees do tipo denotativo realistico-referencial mas
servem principalmente para tratar do caraacuteter das personagens para definir a
personalidade atraveacutes de gestos de comportamentos ou de haacutebitos ligados de algum
modo agrave produccedilatildeo agrave preparaccedilatildeo e ao consumo do alimento (GHIAZZA 2015 p25)
Podemos na funccedilatildeo conotativa mencionar em O arroz de Palma a preparaccedilatildeo do arroz
por Antonio enquanto narra a histoacuteria bem como o papel do arroz na trama considerando seu
caraacuteter simboacutelico como fertilizador da famiacutelia e como elemento presenteado por Palma e Joseacute
Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento Em Por que sou gorda mamatildee a funccedilatildeo
conotativa seria representada pela relaccedilatildeo das personagens com o comer jaacute que tanto no caso da
protagonista como no de sua matildee e no da Voacute Magra tal relaccedilatildeo eacute caracteriacutestica da personalidade
das mesmas entre outros exemplos Em Quarenta dias as escolhas alimentares de Alice satildeo
comportamentos associados agrave sua decisatildeo de permanecer na rua natildeo voltando para casa bem
como de seu desejo por autonomia Na mesma obra tanto o restaurante da conterracircnea Penha
134
quanto ingredientes e comidas da Paraiacuteba com os quais a protagonista tem contato em seus
percursos marcam a ligaccedilatildeo afetiva que ela manteacutem com sua terra natal
Outra das funccedilotildees que Silvana Ghiazza refere eacute a comunicativa relacionada ao papel da
cozinha na comunicaccedilatildeo entre as personagens de uma trama como por exemplo a funccedilatildeo da
comida no compartilhar a mesa
Ainda um outro significado que a comida pode assumir eacute ligado agrave convivialidade agrave sua
funccedilatildeo de meio de comunicaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Desde sempre dividir o alimento
foi de forma diversa mas em todas as sociedades ocasiatildeo para comunicar E esse eacute um
dado verificaacutevel na vida de cada dia em que se espera que o momento da divisatildeo do
alimento seja tambeacutem momento de divisatildeo de pensamentos e de afetos de
aprofundamento do conhecer reciacuteproco Na mesa se fala o eu torna-se noacutes
Tambeacutem na literatura esta realidade ocupa um lugar notaacutevel e as referecircncias agrave comida
desempenham uma funccedilatildeo comunicativa na medida em que oferecem o suporte para
uma troca relacional entre as personagens o alimento e mais em termos gerais as
praacuteticas alimentares podem transformar-se de fato em uma verdadeira linguagem natildeo-
verbal capaz de comunicar mensagens sem a necessidade de palavras [] A comida
torna-se a forma privilegiada de linguagem natildeo-verbal para comunicar o sentimento de
amor em todas as suas formas (GHIAZZA 2015 p26-27)
Nas trecircs obras do corpus encontramos a funccedilatildeo comunicativa quando a comida bem
como as representaccedilotildees da cozinha como espaccedilo fiacutesico satildeo elos de convivecircncia entre as
personagens Palma colhe o arroz da pedra para presenteaacute-lo ao irmatildeo e agrave cunhada e o mesmo
seraacute elemento de ligaccedilatildeo entre a famiacutelia assumindo o arroz o nuacutecleo da trama Antonio durante a
narrativa prepara o que restou do ingrediente para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo de cem anos do
casamento dos pais e do proacuteprio arroz em O arroz de Palma Ateacute mesmo na expressatildeo do amor
fiacutesico o arroz eacute o elemento comunicativo na cena em que Antonio e Isabel inauguram sua
intimidade fiacutesica derramando sobre seus corpos o arroz Em Por que sou gorda mamatildee a Voacute
Magra oferece doces tiacutepicos aos netos em sua sacola de crocheacute enquanto a matildee da protagonista
compartilha com os filhos os doces e o refrigerante dentro do carro na viagem da famiacutelia ao
Uruguai
Assim a representaccedilatildeo da cozinha pode se exprimir no texto literaacuterio como espaccedilo fiacutesico
e simboacutelico termos escolhidos para o presente trabalho ou atraveacutes de suas funccedilotildees denotativa
conotativa e comunicativa conforme Silvana Ghiazza As trecircs obras do corpus tecircm o objetivo de
propor a reflexatildeo sobre as linguagens que a cozinha pode assumir no texto literaacuterio
especificamente no contexto da literatura brasileira contemporacircnea Nossa escolha por estudar o
referido tema decorreu tambeacutem da funccedilatildeo cultural que a cozinha assume na sociedade atraveacutes
dos tempos Rita Rutigliano explica que
135
Desde sempre os escritores utilizam a comida e o comer tambeacutem para falar de outra
coisa As paacuteginas dos livros se sabe portam um patrimocircnio de signos reveladores de
vivecircncias e de sentimentos humanos Nos eacute possiacutevel colher indiacutecios preciosos atraveacutes de
descriccedilotildees dos rituais alimentares (e ateacute mesmo do jejum) que- cobrindo o arco inteiro
entre dois polos- a comida como necessidade de base e como um aspecto da paixatildeo pela
vida-podem se tornar invenccedilatildeo jogo poesia religiatildeo histoacuteria barocircmetro das
experiecircncias pessoais e coletivas metaacutefora social e poliacutetica Em uma palavra cultura
(RUTIGLIANO 2000 p11)
A respeito do papel desempenhado pela cozinha na cultura salientado por Rita
Rutigliano podemos acrescentar o fragmento de apresentaccedilatildeo da coleccedilatildeo lsquoLa cultura em la
cocinarsquo cujo conselho editorial eacute composto por Marcelo Aacutelvarez Jesuacutes Contreras e Rosaacuterio
Olivas O referido fragmento aparece publicado em um dos livros da coleccedilatildeo pela editora
Catalonia del Nuevo Extremo
A cozinha natildeo eacute soacute um procedimento teacutecnico que permite que os produtos alimentiacutecios
se transformem em pratos e em receitas eacute acima de tudo uma linguagem em que se
expressa a cultura humana Os gostos a esteacutetica as combinaccedilotildees de sabores os
condimentos preferidos e as maneiras agrave mesa satildeo gestos sociais que se relacionam com a
histoacuteria e com a transmissatildeo dos siacutembolos que distinguem uma comunidade da outra
(SARDE MONTECINO 2014)
O fato eacute que das mais diversas formas dentro do referido contexto cultural o universo
culinaacuterio pode ser traduzido na literatura como um fenocircmeno da natureza humana O cozinhar
nos fez humanos A propoacutesito disso Eloisa Palafox refere que as capacidades de cozinhar os
alimentos e de contar histoacuterias distinguem o homo sapiens ambas compotildeem parte primordial de
nossa evoluccedilatildeo A semelhanccedila entre tais praacuteticas estaacute tambeacutem no fato de que permitem a
socializaccedilatildeo entre os indiviacuteduos e a partilha da comida e das histoacuterias Para Michael Pollan
Somos a uacutenica espeacutecie que depende do fogo para manter o corpo aquecido e a uacutenica
espeacutecie que natildeo pode passar sem cozinhar sua comida A esta altura o controle do fogo
jaacute estaacute inscrito nos nossos genes uma questatildeo natildeo mais associada apenas agrave cultura
humana mas sim agrave nossa biologia (POLLAN 2014 p109)
A relaccedilatildeo com o cozinhar vai aleacutem do preparo do alimento no fogo para ingestatildeo Esse eacute
sem duacutevidas o que manteacutem nossa sobrevivecircncia bioloacutegica mas haacute outra habilidade que
aprendemos como espeacutecie graccedilas tambeacutem ao fogo a interaccedilatildeo com os demais que Silvana
Ghiazza relaciona com a funccedilatildeo comunicativa que a cozinha pode ter no texto literaacuterio Pollan
acrescenta agrave exposiccedilatildeo acima a relevacircncia dessa aquisiccedilatildeo em nosso desenvolvimento
136
Sobretudo o fogo que usamos para cozinhar como o que vigio na churrasqueira do meu
quintal tambeacutem ajudou a nos formar como seres sociais lsquoA forccedila do magnetismo social
exercido pelo fogorsquo como diz o historiador Felipe Fernaacutendez-Armesto eacute o que nos
manteacutem juntos e ao fazer isso ele provavelmente mudou o curso da evoluccedilatildeo humana O
fogo usado para cozinhar promoveu a seleccedilatildeo de indiviacuteduos capazes de tolerar outros
indiviacuteduos- fazer contato visual cooperar e compartilhar lsquoQuando o fogo se combinou agrave
comidarsquo escreveu Fernaacutendez-Armesto lsquoum foco quase irresistiacutevel foi criado para a vida
comunalrsquo (na verdade lsquofocorsquo vem da palavra latina focus para lareira braseiro chama)
A forccedila da gravidade social exercida pelo fogo natildeo parece ter diminuiacutedo [] (POLLAN
2014 p109)
Assim somos seres bioloacutegicos e sociais atributos que devemos ao ato de cozinhar A
nossa biologia nos confere o comer pela fome e pelo prazer Esse elemento por sua vez eacute
necessaacuterio para promover a continuidade da sobrevivecircncia individual da mesma forma que o
prazer sexual eacute o estiacutemulo para a preservaccedilatildeo do humano como espeacutecie Cozinhar comer
alimentos cozidos que nos deem nutriccedilatildeo e sensaccedilotildees prazerosas e nos reunirmos com nossos
semelhantes satildeo atributos evolutivos que promoveram a chegada ao seacuteculo XXI
A reuniatildeo com as pessoas proacuteximas resultado do fogo como elemento agregador para
cozinhar os alimentos tornou-nos em termos evolucionaacuterios seres sociais Sendo assim
partilhamos vivecircncias com outros e essas nos propiciam a noccedilatildeo de pertencimento a um grupo
Temos a partir disso a noccedilatildeo de uma identidade singular e plural Somos parte de algo e
acumulamos percepccedilotildees experiecircncias e sentimentos em comum forma-se a memoacuteria coletiva A
memoacuteria individual de modo diverso eacute parte do aparato anatocircmico e fisioloacutegico dos seres
humanos Essa se desenvolve agrave medida que se forma o neocoacutertex ceacuterebro exclusivamente nosso
cooperando com a consciecircncia de noacutes mesmos e entatildeo com a construccedilatildeo da identidade
individual E porque somos capazes de reter informaccedilotildees de arquivaacute-las e de evocaacute-las em
acircmbito individual somos tambeacutem capazes de fazecirc-lo coletivamente ao compormos um grupo
seja uma famiacutelia ou um povo
Uma das principais caracteriacutesticas da memoacuteria na esfera familiar satildeo as histoacuterias que
atravessam geraccedilotildees por serem contadas desde os antepassados Entre essas eacute vaacutelido incluirmos
tambeacutem as receitas de cozinha pois narram o como-se-faz de um prato atraveacutes dos tempos por
parentes de sangue ou de criaccedilatildeo Entre tais histoacuterias podemos tambeacutem referir o papel de um
determinado ingrediente na formaccedilatildeo de uma memoacuteria de famiacutelia como eacute o exemplo em O arroz
de Palma
A memoacuteria individual por sua vez eacute porccedilatildeo imprescindiacutevel de nossa identidade e da
consciecircncia que temos sobre quem somos ela compotildee junto aos demais elementos nossa
137
capacidade de autonomia Jaspers aponta para a impossibilidade de uma independecircncia total em
relaccedilatildeo a outras pessoas pois precisamos das interaccedilotildees de afeto e de trocas com nossos
semelhantes Temos tambeacutem necessidade uns dos outros por aspectos praacuteticos de sobrevivecircncia
indiviacuteduos que plantem que colham que pesquem que vendam que comprem que cozinhem
que consumam e que faccedilam esse ciacuterculo perpetuar-se Seguiremos cozinhando uns para os outros
pelo simples fato de que precisamos comer E partilhar Esse eacute o ponto em Quarenta dias
A protagonista depende de quem prepare o alimento para ela seja o anocircnimo na
carrocinha de cachorro quente na rua seja na mesa posta com esmero que recebe no restaurante
da rodoviaacuteria pela conterracircnea Penha Paradoxalmente o fato de receber do outro a comida eacute o
substrato da retomada de sua autonomia jaacute que a decisatildeo do que comer eacute da proacutepria Alice Nesse
caso o cozinhar tece as interaccedilotildees entre os sujeitos
Os elementos escolhidos para estudo satildeo resultado de nossa capacidade de pensar de
sentir emoccedilotildees de perceber os estiacutemulos externos atraveacutes dos cinco sentidos e de interpretaacute-los
de acordo com a consciecircncia do corpo e de noacutes mesmos A bagagem individual e cultural
fornecida pela memoacuteria faz com que possamos sentir prazer ao saborear uma receita de famiacutelia
porque ela nos faz lembrar de uma avoacute ou de uma tia como ocorre com Antonio ao ler aquela
escrita por Palma em seu caderno Escolhemos o que comer exercendo nossa autonomia
conforme as preferecircncias alimentares que nos identificam considerando a cultura do territoacuterio
onde vivemos Compreende-se entatildeo que os atributos definidos para este trabalho natildeo ocupam
compartimentos estanques mas estatildeo inexoravelmente interligados em noacutes
Pollan reflete sobre a contribuiccedilatildeo de Levi-Strauss nesse aspecto
Segundo Levi-Strauss a distinccedilatildeo entre lsquoo crursquo e lsquoo cozidorsquo serviu a muitas culturas
como a grande alegoria para estabelecer a diferenccedila entre animais e pessoas Em lsquoO cru
e o cozidorsquo ele escreveu lsquocozinhar natildeo apenas marca a transiccedilatildeo da natureza para a
cultura mas por meio dessa accedilatildeo e com a sua ajuda a condiccedilatildeo humana pode ser
definida com todos os seus atributosrsquo Cozinhar transforma a natureza e ao fazer isso
nos eleva acima desse estado tornando-nos humanos (POLLAN 2014 p57)
Na presente dissertaccedilatildeo partiu-se da proposta de estudar a memoacuteria ligada agrave cozinha em
O arroz de Palma o prazer vinculado ao comer em Por que sou gorda mamatildee e a autonomia
associada ao escolher o alimento a partir da percepccedilatildeo da fome em Quarenta dias Essa
separaccedilatildeo se deveu agrave predominacircncia desses atributos em cada uma das obras natildeo os excluindo
138
das demais Como jaacute exposto haacute uma interligaccedilatildeo entre esses em cada um de noacutes Eacute possiacutevel
encontrar nas trecircs narrativas expressotildees dessa conexatildeo
Em Por que sou gorda mamatildee por exemplo muito se pode refletir sobre as lembranccedilas
da proacutepria narradora-personagem e de sua famiacutelia ou sobre sua autonomia ao decidir pelo que
come Em Quarenta dias a protagonista recorre agrave memoacuteria de sabores e de vivecircncias ao
escrever em seu caderno a retrospectiva de suas andanccedilas aleacutem disso apesar de sua fome ser o
determinante na escolha do que comer Alice sente prazer com a refeiccedilatildeo quentinha e posta na
mesa com esmero no restaurante da rodoviaacuteria ou com o lanche servido na padaria Em O arroz
de Palma os atributos tambeacutem estatildeo entremeados mesmo com o predomiacutenio da memoacuteria para o
estudo dessa obra haacute presenccedila do prazer e da autonomia ao longo das lembranccedilas de Antonio
Um ponto de semelhanccedila entre as trecircs obras eacute o fato de apresentarem todas um narrador-
personagem que protagoniza as vivecircncias A cozinha eacute portanto contada em primeira pessoa
espaccedilo vivencial do narrador A opccedilatildeo por um eu ficcional para narrar as histoacuterias natildeo eacute ao acaso
sendo a cozinha um espaccedilo de tamanha relevacircncia para nossa vida de tanto apelo ao imaginaacuterio e
agraves lembranccedilas nos campos individual e coletivo eacute bem apropriado que quem conte seja a
personagem que a vivenciou atraveacutes das proacuteprias experiecircncias ou da memoacuteria familiar A tal
propoacutesito outro elemento que aproxima as trecircs obras eacute a presenccedila da famiacutelia das personagens
que ocupa posiccedilatildeo relevante na relaccedilatildeo que os protagonistas assumem com a cozinha
Nas trecircs narrativas o narrador-personagem fala de suas emoccedilotildees e vivecircncias e por vezes
fala da famiacutelia e das histoacuterias e lembranccedilas que representam a raiz de muitas experiecircncias com a
cozinha e com o comer A famiacutelia nesse contexto representa o coletivo que eacute apresentado junto
ao individual o sentir e pensar do proacuteprio narrador No livro Pequeno Alfarraacutebio de Acepipes e
Doccediluras essa coexistecircncia entre o singular e o plural eacute um dos elementos abordados em relaccedilatildeo
ao papel da cozinha conforme expresso no trecho abaixo
O ato culinaacuterio eacute ao mesmo tempo uma experiecircncia individual e coletiva uma
oportunidade de autoconhecimento de entrega a mim mesma e simultaneamente de
partilha de doaccedilatildeo de expressatildeo de afetos positivos [hellip] Sobretudo o ato culinaacuterio
representa uma das circunstacircncias mais propiacutecias para experimentar singular e plural
para nos aproximar de noacutes mesmos e daqueles a quem admiramos amamos e que satildeo
parte da nossa histoacuteria (CARDOSO 2012 p13)
139
O termo lsquoato culinaacuteriorsquo refere-se natildeo apenas ao cozinhar mas a toda gama de
comportamentos ligados agrave cozinha como dividir uma refeiccedilatildeo receber doces ou oferecer uma
comida aos demais colocar a mesa e tantas outras possibilidades
A diferenccedila entre as trecircs obras eacute o espaccedilo que a cozinha representa em cada uma Em O
arroz de Palma Antonio faz a narrativa a partir de sua cozinha enquanto prepara o almoccedilo de
celebraccedilatildeo dos cem anos de casamento de seus pais e do saco de estopa com o arroz como
presente aos noivos A cozinha nesse caso eacute apresentada atraveacutes do espaccedilo fiacutesico mas tambeacutem
do ingrediente-protagonista o arroz por outros elementos materiais como os guardanapos da
matildee de Isabel e o caderno de receitas de Antonio e por aqueles imateriais a exemplo da memoacuteria
associada ao cozinhar e das comparaccedilotildees dos pratos culinaacuterios com os estilos de famiacutelias Em
Por que sou gorda mamatildee a cozinha aparece ora como ingredientes ora como espaccedilo fiacutesico
ora como comidas ora como emoccedilotildees revelando histoacuterias da protagonista e de seus antepassados
de origem judaica Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como espaccedilo fiacutesico no novo
apartamento e na vida da protagonista em Joatildeo Pessoa antes da mudanccedila e passa a ser expressa
ao longo da obra pelos bares estabelecimentos e lsquocarrinhosrsquo pelos quais ela passa tambeacutem
representativos do espaccedilo fiacutesico Aleacutem disso a cozinha aparece como espaccedilo simboacutelico de
sobrevivecircncia nessa narrativa essa representaccedilatildeo eacute feita atraveacutes das comidas que Alice escolhe
enquanto anda pelas ruas Deste modo as trecircs obras contemplam ambos os espaccedilos referidos no
propoacutesito desse trabalho
Nas obras a cozinha eacute descrita como espaccedilo fiacutesico - tanto como peccedila da casa quanto
atraveacutes dos eletrodomeacutesticos e utensiacutelios culinaacuterios ou seja em sua existecircncia material- e como
espaccedilo simboacutelico traduzindo lembranccedilas emoccedilotildees e comportamentos representando o ritual
implicado no cozinhar e comunicando os integrantes de uma famiacutelia
Em relaccedilatildeo ao elemento material da cozinha destaco em O arroz de Palma a cozinha de
onde Antonio narra suas lembranccedilas a panela em que ele prepara o arroz a taacutebua na qual corta os
temperos seu caderno de receitas onde estaacute aquela escrita por Palma os guardanapos da matildee de
Isabel a lata de azeite de Oliva e o mais significativo de todos o proacuteprio arroz presenteado a
Joseacute Custoacutedio e Maria Romana em seu casamento A expressatildeo material estaacute presente sobretudo
no espaccedilo fiacutesico e nos elementos citados embora haja menccedilatildeo a comidas como o arroz de
bacalhau preparado para aproximar as famiacutelias a fim de comeccedilar o namoro com Isabel
140
Em Por que sou gorda mamatildee haacute referecircncias agraves comidas e doces judaicos como
aqueles na sacola de crocheacute da Voacute Magra Aleacutem disso em vaacuterias passagens se lecirc descriccedilotildees como
aquela em que os moradores do bairro preparam pratos a partir dos ingredientes nas cozinhas de
suas casas com detalhamento dos atos culinaacuterios e dos instrumentos utilizados Uma das cenas
mais consistentes em demonstrar a cozinha como espaccedilo fiacutesico eacute quando a Voacute Magra prepara os
bifes para a protagonista ali essa representaccedilatildeo natildeo apenas estaacute na cozinha mas tambeacutem nos
utensiacutelios e ingredientes como o oacuteleo que ela usa para o preparo da carne Nessa obra a
predominacircncia da perspectiva material estaacute principalmente nas comidas Outro exemplo eacute a cena
em que a matildee se deleita com os filhos na viagem ao Uruguai comendo doces e refrigerante ou
quando essa faz uma farta refeiccedilatildeo antes do cateterismo e outra depois de sair do hospital Esses
satildeo alguns exemplos da expressatildeo fiacutesica que a cozinha assume na obra de Cintia Moscovich
Em Quarenta dias a cozinha eacute referida como peccedila da casa de Joatildeo Pessoa e de Porto
Alegre sendo essa uacuteltima expressa com detalhes quanto a eletrodomeacutesticos armaacuterios mesa e
utensiacutelios No periacuteodo em que Alice estaacute na rua o aspecto material da cozinha eacute manifestado
pelas carrocinhas de pipoca e cachorro quente pelos botecos e padarias e pelos alimentos Esses
predominam na narrativa como expressatildeo do espaccedilo fiacutesico ocupado pela cozinha
Quanto ao aspecto simboacutelico representado ressalta-se que ao cozinhar e ao comer
estamos praticando rituais Mircea Eliade na obra jaacute referida nessa dissertaccedilatildeo expotildee que ldquo[]
a principal funccedilatildeo do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a
educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 2011 p13)
A alimentaccedilatildeo como ritual estaacute presente nas trecircs obras de formas diversas Em O arroz de
Palma estaacute na colheita do arroz na pedra pela Tia Palma bem como na oferta desse aos noivos
como presente de casamento estaacute tambeacutem na canja que ela faz ao irmatildeo com esse mesmo
arroz para que os gratildeos o fertilizem e no almoccedilo em que ela e Maria Romana preparam o arroz
de bacalhau para a integraccedilatildeo das famiacutelias Estaacute tambeacutem em outros pontos da narrativa como no
ponto em que Antonio e Isabel recebem o arroz em seu casamento e quando levam um punhado
desse para sua comunhatildeo fiacutesica no lago
Nessa obra os trecircs exemplos que melhor ilustram a presenccedila do ritual satildeo o ato de
cozinhar que permeia toda a histoacuteria pois enquanto o protagonista prepara o arroz evoca
lembranccedilas e as mistura com imaginaccedilotildees e pensamentos a leitura da receita dedicada a ele em
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seu caderno de receitas por Palma com recitaccedilotildees a serem praticadas durante o preparo da
comida Por fim a reuniatildeo da famiacutelia nas mesas para o almoccedilo de comemoraccedilatildeo dos cem anos
do casamento dos pais e do presente do arroz em que haacute dois pontos que aludem ao ritual Tanto
a reuniatildeo da famiacutelia para comer eacute ritualiacutestica quanto tambeacutem o fato de se tratar de uma
comemoraccedilatildeo como foi visto na referecircncia que Ricoeur faz ao elemento mundanidade do par
reflexividademundanidade em sua fenomenologia da memoacuteria
Em Por que sou gorda mamatildee o componente do ritual estaacute principalmente associado ao
comer e ao partilhar o alimento e menos ao cozinhar A oferta de doces na sacola de crocheacute que
a Voacute Magra faz aos netos eacute um dos exemplos dessa partilha assim como a menccedilatildeo que a
protagonista faz agraves refeiccedilotildees agrave mesa em famiacutelia Haacute o aspecto ritual nos doces oferecidos pois
satildeo de origem judaica e ilustram sabores ancestrais dessa cultura
Em Quarenta dias o ritual estaacute presente tambeacutem no comer e em muitos casos nas ofertas
de alimento que Alice recebe em seu percurso pelas vilas Como jaacute mencionado a mesa posta no
restaurante da rodoviaacuteria eacute parte do ritual da alimentaccedilatildeo e a partilha dos lanches entre Alice e
Lola representa a integraccedilatildeo dos indiviacuteduos que compartilham as refeiccedilotildees
Em um periacuteodo da histoacuteria da humanidade em que estamos prestando mais atenccedilatildeo na
gastronomia como espetaacuteculo midiaacutetico essas trecircs narrativas apontam para um retorno da
cozinha como contexto de afeto de memoacuteria de tradiccedilatildeo de construccedilatildeo de significados Michael
Pollan em seu livro Cozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeo reitera
Estamos falando mais sobre culinaacuteria- e assistindo a programas de culinaacuteria lendo sobre
o assunto e indo a restaurantes onde podemos observar o preparo da comida em tempo
real Vivemos numa era em que cozinheiros profissionais se tornaram celebridades
alguns deles tatildeo famosos quanto atletas ou estrelas de cinema A mesma atividade que
muitas pessoas encaram como um trabalho enfadonho acabou sendo de alguma forma
elevada agrave categoria de esporte popular com puacuteblico proacuteprio [hellip] Por algum motivo
cozinhar eacute diferente O trabalho ou o processo carrega uma forccedila emocional ou
psicoloacutegica da qual natildeo podemos-ou natildeo queremos- nos livrar (POLLAN 2014 p11)
Nas trecircs narrativas lecirc-se o cozinhar cumprindo os propoacutesitos ancestrais que o homem
aprendeu com o domiacutenio do fogo nutrir e agregar No mundo real que Italo Calvino chamou de
lsquomundo natildeo escritorsquo a cozinha promove essas vivecircncias pela transformaccedilatildeo do alimento e pelo
viacutenculo com os outros indiviacuteduos atraveacutes da comida preparada Nas obras escolhidas para o
corpus os espaccedilos fiacutesico e simboacutelico da cozinha tornam-se parte do mundo escrito exprimindo-
se atraveacutes do ofiacutecio de seus autores Reafirma-se assim a perspectiva de Italo Calvino
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