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Luis Mah Faculdade de Direito Universidade Nova de Lisboa 21 de Novembro de 2012 CRISE, DESENVOLVIMENTO e POLÍTICA Bom dia, Hoje gostaria de vos falar sobre o impacto que a crise económico-financeira que estamos agora a viver pode estar a começar a influenciar de forma significativa a maneira de olhar para os modelos de crescimento económico e principalmente para o modelo de crescimento económico que tem dominado as políticas públicas dos países desenvolvidos e ricos desde os anos 1980s, isto é, o modelo do chamado “mercado livre”. SLIDE 2 Nesta aula irei falar: 1) Primeiro, do que pode significar esta crise para as políticas económicas centradas na criação de mercados livres e abertos e com uma reduzida intervenção do Estado e que começaram a ganhar força com a ascensão ao poder de Ronald Reagan e Margaret Thatcher nos anos 80, respectivamente nos Estados Unidos e Reino Unido; 2) E depois, falarei sobre as suas implicações político- institucionais, nomeadamente em termos do que se tem apelidado de “boa governança”, ou seja, um sistema político acima de tudo baseado na democracia e no respeito pelos direitos humanos; 1

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Luis MahFaculdade de DireitoUniversidade Nova de Lisboa21 de Novembro de 2012

CRISE, DESENVOLVIMENTO e POLÍTICA

Bom dia,

Hoje gostaria de vos falar sobre o impacto que a crise económico-financeira que estamos

agora a viver pode estar a começar a influenciar de forma significativa a maneira de olhar para

os modelos de crescimento económico e principalmente para o modelo de crescimento

económico que tem dominado as políticas públicas dos países desenvolvidos e ricos desde os

anos 1980s, isto é, o modelo do chamado “mercado livre”.

SLIDE 2

Nesta aula irei falar:

1) Primeiro, do que pode significar esta crise para as políticas económicas centradas na

criação de mercados livres e abertos e com uma reduzida intervenção do Estado e que

começaram a ganhar força com a ascensão ao poder de Ronald Reagan e Margaret

Thatcher nos anos 80, respectivamente nos Estados Unidos e Reino Unido;

2) E depois, falarei sobre as suas implicações político-institucionais, nomeadamente em

termos do que se tem apelidado de “boa governança”, ou seja, um sistema político

acima de tudo baseado na democracia e no respeito pelos direitos humanos;

O modelo de mercado “livre” é baseado na noção de que embora existam falhas de mercado,

as intervenções governamentais para as resolver podem ter um efeito perverso de ainda

piorarem a situação. Ou seja a introdução, por exemplo, de novas regulações no mercado

financeiro ou laboral podem causar distorções nestes mercados que acabarão por sair ainda

mais caro do que se não fizermos nada e com a possibilidade ainda de poderem vir a reduzir as

liberdades dos indivíduos no espaço público.

O que esta crise agora nos vem dizer é que este modelo que tem dominado o pensamento nas

universidades e think tanks de referência e influenciado as políticas públicas nos Estados

Unidos e na Europa nas últimas décadas pode já não estar a dar resposta a uma realidade

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económica mais complexa e que isso talvez exija uma mudança de paradigma. Se isso irá ou

não acontecer, principalmente a nível norte-americano e europeu, ainda é cedo para se dizer

embora haja alguns sinais ou tentativas de explorar caminhos fora do paradigma dominante, e

de que falarei mais à frente, sem necessariamente significar a emergência de um novo

paradigma.

SLIDE 3

Um estudo de 2011 de um think tank britânico IPPR-Institute for Public Policy Research

intitulado em inglês “All Change: Will there be a Revolution in Economic Thinking in the Next

Few years?” e que vocês podem consultar facilmente online procurou precisamente perceber

porque razão após o colapso do Lehman Brothers (em 2008 o quarto maior banco de

investimento em Wall Street) e o seu impacto no sistema financeiro e económico global nos

anos seguintes – diga-se recessão- , e apesar de um conjunto de esforços políticos, não se

assistiu à emergência do tal novo paradigma económico como se esperava. A ideia central do

paper é que não houve uma mudança de paradigma em termos macroeconómicos desde o

começo da crise financeira e recessão porque: UM, o número de anomalias em termos

económicos não foi suficientemente grande para questionar o paradigma dominante e DOIS,

não existe ainda uma alternativa clara (mesmo os críticos mais fortes, os chamados neo-

Keynesianos e que valorizam o papel do Estado no estímulo da economia, tendem a recorrer a

prescrições do passado e menos a receitas de futuro). Isto não significa que a mudança de

paradigma não venha a acontecer, mas será preciso mais tempo para que a alternativa possa

emergir.

Agora em inglês..e o último parágrafo do paper: “..one might be inclined to presume that

change will only come if it is driven from outsider the profession by demands for economics to

provide solutions to problems in the real world, rather than models of hypothetical worlds that

bear little relation to reality. Such demands have, however, not been evident in the last few

years and for the time being at least, continue to elude us” (esta ideia está claramente

relacionada com a crítica que é feita ao facto dos actuais modelos económicos dominantes

cada vez mais matemáticos e que são acusados de não reflectiram, de facto, a realidade por

assumirem uma visão excessivamente racional do homem…uma auto-crítica, por exemplo, do

Prémio Nobel da Economia, Paul Krugman, aquando da sua última visita a Portugal).

Dito isto, o debate é cada vez maior e à medida que a crise se intensifica provavelmente maior

ainda será.

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Nancy Birdsall, uma reputada economista norte-americana e que preside a um dos mais

influentes think tanks internacionais, o Center for Global Development, tem sido uma das

pensadoras que tem participado activamente neste debate, olhando para a economia em

termos globais em vez de focalizar-se nos casos específicos da Europa ou dos Estados Unidos.

SLIDE 4

Neste paper publicado em Abril por este centro e intitulado “The Global Financial Crisis: The

Beginning of the End of the “Development” Agenda?”, e que é a introdução de um livro

intitulado New Ideas for Development after the Financial Crisis (2011), reflecte sobre o impacto

da crise na forma como se olha para a agenda do desenvolvimento global e fala-nos da

transformação do modelo de mercado “livre” para o que apelida de modelo de mercado

“gerido” (managed market).

SLIDE 5

Neste modelo sugerido por Birdsall, as falhas de mercado justificam intervenções específicas

do Estado mas quando não há falhas de mercado, o mercado é deixado livre com pouca ou

nenhuma intervenção estatal.

E que tipo de intervenções específicas podemos falar aqui?

Intervenções destinadas, face aos acontecimentos actuais, a assegurar uma maior resiliência

da economia doméstica face às pressões competitivas da globalização e aos potenciais

traumas sociais que possam causar como temos vindo a assistir, quer nos EUA e Europa, com a

perda de competitividade de algumas das suas indústrias face às rivais asiáticas e,

principalmente, chinesas.

Isto implicaria, diz Bridsall, necessariamente maior envolvimento do Estado nos mercados

financeiros e laborais, mais despesa pública como forma de assegurar sistemas universais de

educação, saúde e mais segurança social e talvez até uma participação mais forte do Estado na

produção industrial.

Não é ainda claro que o mercado como factor positivo para o desenvolvimento seja per se

questionado, mas sim mais a natureza desse mercado, de livre para gerido (regulado?).

Isto é algo que podemos observar junto dos países emergentes ou em desenvolvimento que

nos últimos anos adoptaram políticas favoráveis à progressiva abertura dos mercados

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domésticos e à integração na economia global e que perceberam bem que estas políticas têm

benefícios em termos de crescimento e desenvolvimento.

E aqui podemos facilmente utilizar os casos, como vos falei na aula anterior em que aqui

estive, da Coreia do Sul, mas também Taiwan, Malásia, Indonésia, Tailândia, China ou

Vietname.

A questão reside mais em conseguir encontrar e implementar um quadro institucional que

consiga precisamente reduzir os potenciais impactos negativos dessa progressiva liberalização

e globalização económica.

SLIDE 6

Para Birdsall, há claramente 3 questões que devem ter em conta nesse quadro institucional:

1) O fim da chamada ortodoxia financeira

2) A aposta em políticas sociais progressistas e distributivas como fundamentais para

redução das desigualdades e restauração da coesão social

3) A aposta numa “nova” política industrial:

Por detrás destes 3 pontos, está uma visão racional muito clara:

A crise económica e financeira global foi o toque de alarme para a seguinte mensagem:

De que choques periódicos e consequentes e futuras incertezas para cada país em termos

individuais é algo que passa a ser intrínseco à sua participação num mercado global cada vez

mais integrado.

Se isto já é evidente no caso europeu, norte-americano e até chinês (afectado pela queda nos

seus principais mercados de consumo), a vulnerabilidade às más políticas e decisões tomadas

noutros países é uma realidade que os países emergentes e outros em mais lento crescimento

e desenvolvimento já não podem deixar de ter em conta, de agora em diante, nas suas

políticas económicas. Isto tem como consequência, a necessidade de se conceder um papel

cada vez maior ao Estado para gerir o Mercado de modo a mitigar as suas falhas e

consequente impacto negativo junto das populações/sociedades.

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SOBRE O FIM DA ORTODOXIA FINANCEIRA

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Embora a crise tenha acentuado esta necessidade, o período prévio à crise era já um período

de crescente crítica, por exemplo, à livre circulação de capitais e ao apelo para um

fortalecimento da regulação do sistema financeiro.

A ortodoxia do mercado livre inclui a livre circulação de capitais e a liberalização do mercado

financeiro doméstico. Antes da crise, com a excepção da Europa Oriental (por força da sua

adesão à União Europeia), a maioria dos países emergentes e com economias crescentemente

de mercado continuavam a resistir em implementar totalmente estas políticas.

O continente asiático, e em particular a região da Ásia-Pacífico passou pela crise financeira de

1997 e aprendeu lições importantes sobre o impacto da livre circulação de capitais e a

liberalização do mercado financeiro doméstico sem a criação das instituições adequadas para

regular esse novo cenário.

Foi neste ano, 1997, que a Ásia passou por uma grave crise financeira e na altura houve várias

vozes na região que pediram a alto e bom som que fosse desafiada a ortodoxia do mercado

livre e insistiram que o mundo precisava de uma nova arquitectura financeira.

Eu disse-vos na aula em que cá estive que os líderes asiáticos não esquecem de como na altura

o papel das agências de notação internacionais foi altamente criticado porque que tinham

ajudado a acelerar o colapso financeiro da região ao terem baixado rapidamente o rating dos

países e empresas da Indonésia, Coreia do Sul e Tailândia. E que isso acabou por ajudar a criar

na região, apesar de todos os conflitos territoriais latentes que ainda existem (como agora

vimos no Mar do Sul da China onde a China, Vietname, Filipinas e Malásia), a necessidade de

se organizarem e pensarem numa via regional de lidar com os seus potenciais e futuros

problemas financeiros sem passar pelo FMI ou países ocidentais.

Vou-vos agora mostrar um pequeno excerto de uma reportagem do programa FRONTLINE da

PBS, TV pública norte-americana, e que produziu em 1999 esta reportagem intitulada CRASH

e que aqui fala da crise asiática em 1997. Este excerto tem cerca de 15 minutos e com o

jornalista William Greider).

E que efeitos teve esta crise de 1997?

Os efeitos da crise na região foram as mais severas desde a grande depressão em 1930. A

economia indonésia, o quarto país mais populoso do mundo (cerca de 250 milhões de pessoas

hoje em dia), contraiu quase 14% em 1998. A economia sul-coreana teve uma queda de quase

7% algo que não acontecia desde a Guerra da Coreia nos anos 1950s.

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As economias da Tailândia, onde tudo começou, e da Malásia também experimentaram uma

queda abrupta pondo em causa a tendência de crescimento que vinham tendo nas últimas

décadas. Até Hong Kong e Singapura, as mais ricas e sofisticadas economias asiáticas logo após

o Japão, sofreram fortemente com a crise dos seus parceiros comerciais na região. A crise teve

também o efeito de afectar negativamente a já de si fraqueza financeira do Japão com uma

economia ainda em estagnação.

Apenas a China e Taiwan conseguiram escapar à crise embora com taxas de crescimento

menores e foram forçadas a implementar programas arriscados para estimular as suas

economias domésticas e fortalecer os seus sistemas financeiros.

E porque razão conseguiram escapar-se? Precisamente porque a China tinha o mercado

financeiro protegido e fechado ao exterior e Taiwan manteve sempre o seu sistema financeiro

fortemente regulado pelo Banco Central. A crise acabou por contagiar outros mercados fora da

Ásia como a Rússia e o Brasil que sofreram fortes fugas de capital.

SLIDE 8

E como é que se chegou até aqui?

1) Liberalização de movimento de capitais que gerou vastos fluxos de capital estrangeiro;

2) Supervisão pobre do sistema bancário e não-bancário;

3) Investimentos não produtivos

4) Taxas de câmbio fixas (indexação ao dólar)

Tudo combinado acabou por dramaticamente tornar vulneráveis as várias economias asiáticas

na primeira metade dos anos 1990s.

SLIDE 9

FLUXOS DE CAPITAIS

A mudança mais forte na maioria das economias da Ásia Pacífico nos últimos anos do século XX

(1990s) foi o aumento dramático de capitais estrangeiros na região. Em 1996, a Ásia atraiu

cerca de 110 mil milhões de dólares, comparado com uma média anual de cerca de 17 mil

milhões de dólares entre 1983-89 (1977-82: 15.8, 1983-89:16.7, 1990-94:40.1, 1995: 95.8,

1996:110.4, 1997:13.9).

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O que explica este crescimento? Reflecte a combinação de vários factores. Do lado da oferta

inclui-se o crescimento dos fundos de pensão das economias industrializadas do Ocidente com

muito capital para investir e a existência de tecnologia que tornava mais fácil para os

investidores movimentar fundos em termos globais.

A maioria dos novos fluxos financeiros tinha a forma de portfolios (acções, obrigações ou

dinheiro) que podiam facilmente sair do país em vez de investimentos directos. A queda

dramática nos spreads das taxas de juro para os empréstimos a nível internacional nos anos

que antecederam a crise apontava para uma abundância de capital à procura de

oportunidades de investimento.

O crescimento dos fluxos financeiros para a Ásia também reflectia uma combinação de

factores do lado da procura. A rigidez nos mercados financeiros domésticos, muitas vezes por

força das regulações governamentais, limitavam o tipo de instrumentos financeiros disponíveis

para os investidores locais. Ao mesmo tempo, a “repressão” financeira doméstica e uma

grande abundância de capital no estrangeiro tinha como efeito tornar os créditos estrangeiros

mais baratos do que os domésticos (com uma diferença em termos de taxa de juro anual que

podia chegar aos 10%).

O acesso aos fundos estrangeiros foi facilitado por duas razões: 1) a crescente

internacionalização das actividades das empresas asiáticas que lhes permitia não só controlar

fundos estrangeiros no exterior mas também aceder aos mercados de capitais estrangeiros; 2)

a maioria dos governos na região decidiram liberalizar parcialmente os movimentos de capitais

estrangeiros.

SLIDE 10

FRACA SUPERVISÃO

A crise foi claramente gerada por uma liberalização financeira, mesmo que parcial, demasiado

rápida num contexto institucional de fraca capacidade para perceber e regular o

funcionamento de um sistema financeiro mais aberto à entrada de capitais estrangeiros;

A verdade é que raras foram as vezes em que os governos da região colocaram em campo um

quadro regulador para lidar com a entrada de novos e abundantes fluxos de capital

estrangeiro. Em parte o problema foi a falta de experiência. Os governos não tinham o

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conhecimento nem a capacidade burocrática para lidar com os desafios em termos de

regulação colocados pelo enorme fluxo de capitais. Até economias mais desenvolvidas como o

Japão tinham formado poucos supervisores da banca e pela região os ministérios responsáveis

pelo sector resistiram às tentativas de criar agências reguladoras independentes.

Embora alguns governos tenham abraçado a ideologia da liberalização, acabaram com “uma

casa construída a meio” que muitas vezes criou uma estrutura perversa em termos de

incentivos (por exemplo, encorajava-se empréstimos a curto prazo em detrimento do longo

prazo). O predomínio dos empréstimos a curto prazo colocava um problema de coordenação

para os governos. Para as instituições financeiras domésticas envolvidas, o incentivo era óbvio:

empréstimos de curto prazo tinham taxas de juro mais baixas do que as longo prazo,

aumentando as oportunidade de lucro em termos de arbitragem. Mas o que era racional para

as instituições financeiras não o era para a economia no seu todo.

Em meados de 1997, empréstimos de curto-prazo (dívida de curto prazo) constituía uma

percentagem substancial da dívida total de várias economias da região: 19% nas Filipinas, 24 %

na Indonésia, 39% na Malásia, 46% na Tailândia e 67% na Coreia do Sul. Em pouco tempo, a

dívida a curto prazo excedeu o total de reservas internacionais de três das economias

afectadas pela crise. Na Coreia, o ratio da dívida de curto prazo para as reservas estava acima

dos 300%, Indonésia 160% e Tailândia 110%. Naturalmente que esses ratios colocavam as

economias numa situação vulnerável em caso de ataque especulativo.

O licenciamento de novos bancos, principalmente de investimento, que se seguiu à

liberalização parcial na região também criou os seus problemas. O funcionamento de muitas

destas instituições financeiras era desconhecido dos reguladores habituados a operar num

quadro de “banca relacional”. Ao mesmo tempo, instituições financeiras novas têm o incentivo

poderoso de aumentar quotas de mercado e muitas vezes através da concessão de crédito a

companhias com qualificações financeiras duvidosas. Empréstimos arriscados contribuíram

para outro problema: o investimento de recursos financeiros crescentes em actividades

largamente não-produtivas.

SLIDE 11

INVESTIMENTOS NÃO-PRODUTIVOS

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As economias da Ásia Pacífico tinham já poupado e investido de forma sem precedentes e em

muitos casos próximo dos 40% do PIB. Mesmo antes do aumento de fluxos de capitais nos

anos 1990s, as taxas de retorno ao investimento de muitas economias parecia baixo (e a

decair). As empresas estavam a criar sobre-capacidade em vários sectores (isto era

particularmente visível no caso sul-coreano). Os novos fluxos aumentaram o desequilíbrio

entre o capital disponível e as oportunidades de investimento produtivo. Eles levaram a que o

crédito bancário e não-bancário nestas economias expandissem mais depressa que o PIB. Uma

parte substancial dos fluxos de capital foram directamente para o sector imobiliário e bolsas,

alimentando bolhas especulativas. Em último caso, muito destes novos empréstimos

contribuiriam para o crédito mal-parado dos bancos locais.

SLIDE 12

INDEXAÇÂO AO DÒLAR

A manutenção da indexação das moedas locais em relação ao dólar norte-americano teve

também o efeito adicional de tornar estas economias ainda mais vulneráveis. Com um sistema

de indexação das suas moedas, a maioria dos governos descobriu que era impossível proteger

as economias locais do impacto do rápido fluxo de capital estrangeiro.

Os fluxos tinham importantes consequências: a entrada de capitais alimentou a circulação de

moeda e que teve como efeito pressionar em alta a inflação. A inflação doméstica, num

contexto de moeda indexada ao dólar, tornou as exportações mais caras e pouco competitivas

no mercado global. Algo que foi acentuado com a valorização do dólar face ao iene e a

depreciação do yuan chinês. Os países da região que indexaram a sua moeda ao dólar

experimentaram quebras nas taxas de exportação em 1996, mais do que em anos anteriores. E

o declínio foi particularmente forte na Tailândia, Malásia e Coreia.

O facto de governos continuarem a se comprometerem com a manutenção de uma moeda

forte, indexada ao dólar, criou um problema de “risco moral”. As instituições financeiras e

outros devedores tinham baixos incentivos para se protegerem contra os riscos cambiais

quando pediam emprestado em moeda estrangeira. Cobrir os seus empréstimos cortaria

substancialmente nas suas margens de lucro. Mas empréstimos não cobertos colocariam todo

o sistema financeiro em risco quando a moeda se desvalorizasse. As instituições financeiras

domésticas foram simplesmente incapazes de pagar os seus empréstimos.

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As lições deixadas pela crise asiática continuam a estar bem presentes na região. A China,

apesar de já ser a segunda maior economia mundial continua muito relutante em liberalizar o

mercado financeiro doméstico.

SLIDE 13

Ao mesmo tempo que se assiste a esta relutância por parte dos países, principalmente,

emergentes em caminhar rapidamente para a liberalização do seu sistema financeiro

doméstico, estes países começam a levar a sua “batalha” junto de instituições como o Fundo

Monetário Internacional. Num artigo em Abril, o Financial Times reportava que o FMI tem

vindo a ser sujeito a um forte debate interno sobre a sua visão em relação ao controlo de

capitais, incluindo medidas para limitar a saída de capitais.

O jornal indicava o Brasil como sendo o líder neste debate no seio do FMI, mostrando oposição

a qualquer tentativa que imponha uma medida prescritiva em termos de controlo de

capitais,ou seja que a liberalização da circulação de capitais se torne lei. O Financial Times,

ainda que a título privado, cita o representante brasileiro no FMI, Paulo Nogueira Batista.

Batista foi citado a dizer que: “O FMI tem ainda que reconhecer totalmente os danos que

podem ser causados pela livre circulação de capitais e continua também a sobrevalorizar os

benefícios da circulação de capitais nível internacional”. Em 2010 e 2011, a entrada de capitais

no Brasil teve como efeito inflacionar o valor do real em cerca de 40% comparado com os dois

anos anteriores. E embora a moeda já se tenha vindo a desvalorizar, o real continua forte e

está a ameaçar a competitividade de um conjunto de indústrias nacionais como os têxteis,

automóveis ou aço. Desde 2011 que a economia brasileira tem vindo a perder ritmo tendo

crescido apenas 2.7% nesse ano e nos últimos trimestres tem estagnado. A economia parece

depender cada vez mais do consumo doméstico, alimentado pelo crédito, e menos das

exportações.

Os tempos são, pois, outros para o potencial fim da chamada ortodoxia financeira.

Outro “golpe” na ortodoxia financeira parece estar na maior tolerância revelada pelo Banco

Mundial e de outras instituições financeiras multilaterais na criação de Bancos de

Desenvolvimento nacionais depois do sucesso do Banco de Desenvolvimento Nacional do

Brasil ou mesmo do Banco de Desenvolvimento chinês como forma de estimular a criação de

empregos e investimento em indústrias nacionais. Na verdade, poderíamos perguntar o que

distingue as funções destes bancos das intervenções de países desenvolvidos durante a crise e

como a ajuda que concedeu aos seus sectores bancários ou industriais (como a indústria

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automóvel) privados. O suposto sucesso destes bancos em fomentar principalmente a

indústria e o emprego é já tal que até países como o Reino Unido, França e agora até Portugal

com o debate em torno do banco de fomento destinado às PMEs parece ter abraçado a ideia

de um banco de desenvolvimento nacional

SLIDE 14

Sobre a aposta em políticas sociais progressistas e redistributivas como fundamentais para

reduzir as desigualdades e restaurar a coesão social:

Enquanto a Europa avança para uma reforma das suas políticas sociais e laborais de forma a

reduzir os encargos para o Estado e para as empresas, o oposto parece começar a emergir em

muitos países em desenvolvimento como forma de minorar as crescentes desigualdades.

A verdade é que tem-se vindo a apostar em sistemas universais de saúde em países

emergentes como a China, India, Indonésia e África do Sul, que representam quase 40% da

população mundial. São estes países que lideram o processo e isto foi tornado bastante claro

para o caso da Ásia num artigo da revista The Economist de 8 de Setembro de 2012.

SLIDE 15 (Imagem The Economist)

Na Ásia, com o colapso dos seus principais mercados, europeu e norte-americano, a

necessidade de estimular o consumo doméstico passa precisamente por uma maior aposta dos

governos locais nas políticas sociais e de emprego.

Isto exigirá fortes investimentos públicos na construção de infra-estruturas que poderão

aumentar o emprego a curto prazo e aumentar a produtividade a longo prazo, e através de

fortes investimentos públicos na área da saúde, educação e segurança social. E porquê? Na

Ásia não existe o tal Estado social similar ao europeu. Em consequência, na Ásia, as pessoas

têm que comparticipar significativamente sempre que recorrem a esses serviços. Por isso

poupam como precaução. Se o Estado passar a providenciar esses serviços com custos mais

baixos e de forma controlada em termos orçamentais, então a expectativa é de que as pessoas

poderão ter mais dinheiro no bolso para consumir. A estimativa é de que mais de 800 milhões

de pessoas farão parte da classe média asiática na próxima década. Mas esta tendência para o

aparecimento de um Estado Social (ou Providência)na Ásia não é só por questões económicas

mas também políticas. São as próprias populações que começam a exigir ao Estado que passe

a garantir mais serviços públicos nas áreas da Educação, Saúde e segurança social.

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Esta aposta num Estado Providência fora do contexto usual da Europa, acontece (porque

relacionada) em simultâneo com uma outra questão que tem vindo a ganhar atenção e

preocupação junto dos governos a nível global: as crescentes desigualdades sócio-económicas

dentro dos países, mais do que entre países, e as suas implicações para o progresso. Hoje em

dia são cada vez mais as publicações académicas e não académicas que discutem e reflectem

sobre a temática e como lidar com ela. Mais uma vez o THe Economist publicou este especial

sobre Desigualdade.

SLIDE 16, 17, 18 e 19

Durante os períodos das vacas gordas, a questão das desigualdades não era importante desde

que todos aumentassem os seus rendimentos, mesmo que os mais ricos enriquecessem mais e

mais depressa. Mas nos últimos tempos, isso já não acontece, com os rendimentos da

chamada classe média a estagnar (principalmente nos países mais desenvolvidos) enquanto os

dos mais ricos continuam a aumentar.

O último relatório do Banco Asiático de Desenvolvimento afirma já que apesar do rápido

crescimento do continente na última década, as desigualdades crescentes ameaçam o “milagre

asiático”. Num artigo de opinião no Financial Times em Maio deste ano, o Economista Chefe

do Banco Asiático para o Desenvolvimento, Changyong Rhee fala da necessidade de se

combater as desigualdades sem pôr em causa o crescimento. Fala da necessidade de políticas

de crescimento que apoiem a criação de emprego, políticas fiscais mais eficazes, melhor

distribuição da riqueza a nível regional, mais investimentos na educação, saúde e segurança

social. Argumenta mesmo que os governos precisam de tornar a protecção social mais

eficiente e focalizada, precisam de reduzir as distorções que favorecem o capital em

detrimento do trabalho e apoiar as pequenas e médias empresas para equilibrar o crescimento

entre indústria, serviços e agricultura.

Em África, o Africa Progress Report 2012 do Africa Progress Panel veio chamar a atenção para

não se cair na ilusão de que os últimos dez anos de forte crescimento em África têm sido bons

para todos no continente e afirmar que as desigualdades continuam fortes. O Africa Progress

Panel é um painel muito respeitado em África, e que reúne um conjunto de 10

individualidades do sector privado e público liderados por Kofi Annan (antigo Secretário Geral

da ONU) e inclui pessoas como Michel Camdessus (ex FMI) , Peter Eigen (TI), Graça Machel,

Olusegun Obasanjo (ex Presidente Nigeria), Tidjane Thiam (Prudential UK).

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E não esqueçamos a recente campanha presidencial norte-americana onde esta questão

também foi fundamental.

No entanto, temos um caso de sucesso: a América Latina onde a opção tem sido por políticas

públicas destinadas a reduzir as desigualdades (que sempre foi o grande drama sócio-

económico e também político do continente). E isto tem sido feito quer por governos mais

populistas ou de centro-esquerda ou direita. Na Bolívia, Venezuela e Equador (e agora a

Argentina), os governos têm vindo a apostar em fortes políticas sociais destinadas às

populações mais pobres. E é através da reafirmação do papel do Estado na economia e na

defesa do controlo nacional dos seus recursos energéticos, gás e petróleo, que se procura

encontrar os meios financeiros para sustentar essas políticas. No Brasil ou Uruguai, o enfase

está em programas de apoio financeiro de carácter redistributivo e focalizado nas populações

mais pobres (como os programas brasileiros da Fome Zero ou Bolsa Família) para redução da

pobreza e desigualdade de rendimento. No México o programa Progresa e Oportunidades e na

Colombia Familias en Accion.

SLIDE 20

Sobre a aposta numa “nova” política industrial:

A crise abriu também a oportunidade para se reflectir sobre a necessidade de políticas

industriais como forma de melhorar a competitividade do pais e a criação de emprego.

Políticas que pedem precisamente o envolvimento do Estado de forma mais forte, como

facilitador e coordenador.

Uma maior receptividade à criação de bancos de desenvolvimento nacionais, seguindo o

modelo chinês, sul-coreano ou mesmo brasileiro, é uma resposta institucional ao interesse de

muitos países em desenvolvimento em fazerem o upgrade da sua economia e apoiar/garantir

investimentos em sectores ou regiões com maior risco para o sector privado mas com maior

potencialidade de valor-acrescentado para o desenvolvimento sustentável do país a longo

prazo.

A possibilidade do Estado apoiar a industrialização de um país parece estar de volta depois de

quase três décadas em que se hesitou nesta política. Até há pouco tempo, a ortodoxia

dominante era a de que o risco de falhas do governo (incompetência, corrupção) na definição

de políticas industriais acarretaria sempre mais riscos do que as falhas geradas do mercado.

SLIDE 21 (Imagens de Rodrik, Chang e Lin)

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Mas hoje em dia, economistas como Dani Rodrik (Harvard), Ha-joon Chang (Cambridge) ou

Justin Lin (Banco Mundial) têm vindo a trazer para o debate o papel da política industrial,

falando sobre os benefícios que o Estado pode ter – garantindo, investindo, coordenando,

inovando –de tal forma que até os governos actuais dos Estados Unidos e o Reino Unido já

começam a falar deste tema. Até o PSD em Portugal fala disto.

O que tudo isto nos diz é que talvez agora tenhamos novamente o retorno do Estado à

economia…..

Finalmente o que é que isto tudo tem a ver com a segunda parte da minha apresentação,

sobre a “boa governança”, democracia ou respeito pelos direitos humanos?

SLIDE 22

O FIM Da “Boa Governança”?

Ao mesmo tempo que parecem ser desafiadas as ideias da ortodoxia financeira, do fim do

Estado Social e de que a intervenção do Estado na produção é sempre má, também se começa

a desafiar o que se entende por “boa governança”.

E o que se entende, de forma geral, por “boa governança” e uma questão que tem dominado a

agenda do desenvolvimento nos últimos 20 anos? É uma questão que tem dominado a agenda

que tem dominado principalmente a chamada Ajuda Pública ao Desenvolvimento, ou seja, a

ajuda que vai das instituições multilaterais como o Banco Mundial e de doadores ricos como os

que fazem parte do Comité CAD da OCDE na capacitação organizacional e institucional dos

governos beneficiários. Na base da “boa governança” está claramente uma visão normativa

que passa pela existência de requisitos institucionais que garantam a democracia, a

participação da sociedade no processo de decisão ou parlamentos fortes e pela opção por

determinadas políticas como a abertura dos mercados, a redução da pobreza, respeito pelos

direitos humanos, um quadro macroeconómico estável, combate à corrupção,

descentralização, etc.

No entanto, a própria forma como a China conseguiu rapidamente recuperar da crise de 2008

(ou antes dela a Coreia do Sul, Taiwan, Malásia ou Indonésia ou mesmo Chile), ao contrário da

Europa e dos Estados Unidos, ameaça a visão de que o democracia e desenvolvimento têm

uma causalidade directa. A verdade é que não existe essa causalidade. O que uma série de

estudos nos dizem é que com base em estatísticas e análises econométricas não existe um

argumento histórico que permita dizer que a democracia é a melhor via para o

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desenvolvimento ou pelo contrário que as ditaduras autoritárias são as melhores para

promover o desenvolvimento.

E em África isso é bem visível. Por exemplo nos últimos dez anos, o Gana, Cabo Verde, dois

países considerados totalmente livres pela Freedom House Index têm crescido acima da média

do continente (isto é mais de 5%) e melhorado os seus índices de desenvolvimento humano.

Mas ao seu lado têm países como a Tanzania (parcialmente livre), Uganda (parcialmente livre),

Etiópia (parcialmente livre) ou o Ruanda (não livre).

O que parece ter vindo a faltar no debate é um entendimento maior e melhor sobre os

contextos políticos onde são tomadas as decisões sobre crescimento e desenvolvimento. Ou

seja, como é que as elites políticas, os burocratas, o sector privado, os movimentos sociais de

um determinado país respondem aos incentivos políticos específicos que enfrentam quando

fazem escolhas sobre políticas públicas para o crescimento e desenvolvimento e participam na

sua implementação. No fundo o que faz falta é perceber melhor as especificidades da “black

box” da vontade política de cada país para se perceber como é que podemos encontrar uma

“governança suficientemente boa”.

Obrigado.

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