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1 Prof. Dr. Armindo Trevisan. Humanismo e Ciências da Saúde . (Aula inaugural do Primeiro Semestre de 2017 na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre). I. O significado da palavra Humanismo. II. Definição aproximativa da experiência estética. Seria ela acessível a todas as pessoas? III. A experiência estética como fator positivo na vida e na trajetória de grandes personalidades médicas. IV. Comentários sobre “os limites das ciências”, e sobre a necessidade de se admitirem formas paralelas de conhecimento da realidade. I. O Significado da Palavra Humanismo. O termo humanismo foi proposto, pela primeira vez em 1808, por um estudioso alemão F.J. Niethammer, que o fez derivar da palavra humanista, que se popularizara a partir do Renascimento.

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Prof. Dr. Armindo Trevisan.

Humanismo e Cincias da Sade.

(Aula inaugural do Primeiro Semestre de 2017

na Universidade Federal de Cincias da Sade

de Porto Alegre).

I. O significado da palavra Humanismo.

II. Definio aproximativa da experincia esttica. Seria ela acessvel a todas as pessoas?

III. A experincia esttica como fator positivo na vida e na trajetria de grandes personalidades mdicas.

IV. Comentrios sobre os limites das cincias, e sobre a necessidade de se admitirem formas paralelas de conhecimento da realidade.

I. O Significado da Palavra Humanismo.

O termo humanismo foi proposto, pela primeira vez em 1808, por um estudioso alemo F.J. Niethammer, que o fez derivar da palavra humanista, que se popularizara a partir do Renascimento.

O humanista de ento era professor universitrio, ou professor ou estudante dos Studia Humanitatis.

Os assim ditos Estudos de humanidade valorizavam cinco reas, todas relacionadas com a linguagem e moral: a gramtica, a retrica, a poesia, a histria e a tica. Os padres da poca exigiam que os autores clssicos - tanto gregos como latinos fossem lidos e interpretados luz de tais disciplinas.

Esclareamos um dado histrico: a maior parte dos humanistas do Renascimento pertenciam a um dos dois grupos profissionais seguintes: ou eram mestres em universidades e escolas superiores; ou atuavam como secretrios a servio de prncipes, de governantes municipais, ou de eclesisticos.

A designao humanista abrangia, tambm, cidados que possuam riquezas e tempo livre para conciliarem o cio com o negcio, o trabalho intelectual com outras atividades, especialmente mercantis.

Muitos dos humanistas dos sculos XIV-XV foram pensadores e eruditos de alto nvel. Um deles, Francesco Petrarca (1304-1374) considerado o primeiro poeta moderno. Seu famoso Cancioneiro, uma coletnea de 366 poemas, foi (recentemente traduzidos para o portugus). Esta coletnea potica introduziu o lirismo na literatura ocidental.[footnoteRef:2]Por poesia lrica entende-se a poesia que exprime o sentimento, a paixo, o entusiasmo, estando portanto ligada subjetividade do indivduo, sua prpria e ardente existncia. Eis porque um dos maiores historiadores da literatura italiana, Francesco De Sanctis, definiu Petrarca como o poeta de si mesmo.[footnoteRef:3] [2: Francesco Petrarca. Cancioneiro. Traduo de Jos Clemente Pozenato. So Paulo, Ateli Editorial-Editora da Unicamp, 2014.] [3: Cit. Ibid. p. 18.]

No sculo seguinte, sobressaram na Itlia os nomes de Giovanni Pico della Mirandola, Marslio Ficino e Lorenzo Valla e - alm dos Alpes - Erasmo de Rotterdam, Toms Morus, e Guillaume Bud.

O termo Humanismo assumiu, com o decurso do tempo, matizes seculares, no raro atestas, passando a designar tudo o que se relaciona principalmentecom os valores humanos.

De modo especial, o conceito ficou associado s elaboraes modernas de carcter filosfico, como as de Feuerbach, Karl Marx ou Jean Paul Sartre. Este publicou, inclusive, um opsculo intitulado: O Existencialismo um Humanismo (1946).[footnoteRef:4] [4: Cf. Anne Murphy, in: Dicionrio de Teologia Fundamental (Dirigido por Ren Latourelle e Rino Fisichella. Traduo de Luiz Joo Barana). Petrpolis, RJ, Editora Vozes - Aparecida, SP, Editora Santurio, 1994. p. 397; p. 395.]

Convm lembrar que o termo Humanismo considerado uma das palavras mais abusadas de nosso tempo. Em razo disso, seu conceito, por vezes, empregado com impreciso e ambigidade. No se pode, por exemplo, confundir Humanismo com Filantropia (amor humanidade), visto que a filantropia esgota-se na beneficncia. A filantropia no considera o homem propriamente um valor absoluto em si, nem tem por objetivo a humanizao, no sentido scio-cultural do homem.

Em sentido histrico mais estrito, o Humanismo relaciona-se com o ideal cultural da Renascena (italiana) dos sculos XIV e XV, que privilegiava o estudo das obras da Antiguidade Clssica. Foi o estudo da Antiguidade e de seus valores que fez nascer a nova imagem do homem.

Nos sculos posteriores, o indivduo adquiriu cada vez mais relevncia na sua atuao pessoal, e sobretudo maior conscincia de si.

No centro desse esboo de cosmoviso impunha-se o ideal do homem universal, o qual orientava o desenvolvimento da personalidade em sentido tanto espiritual como material. [footnoteRef:5] [5: Bernd Groth, cit. em: Dicionrio de Teologia Fundamental. p. 405. Ler, TAM,bem, a obra clssica de Jacob Burckhardt: O Renascimento Italiano. traduo de Antnio Borges Coelho. Lisboa, Editorial Presena, sd., principalmente Terceira Parte, pargrafo IV: O Humanismo no Sculo XIV. P. 156-160, e o livro coordenado por Eugenio Garin: 0 Homem Renascentista.Lisboa, Editorial Presena, 1991. ]

Um especialista, Bernd Groth, props uma definio mais especfica do ideal do homem universal:

- (...) o conceito de Humanismo exprime movimentos e comportamentos interiores, caracterizados por um forte componente antropocntrico. Devido a isso o termo foi ligado (posteriormente) s idias racionalistas e humanitrias que derivaram do Iluminismo. Em tal viso o homem foi guindado medida de todas as coisas (princpio proposto na Grcia pelo sofista Protgoras)[footnoteRef:6] e a valor supremo para si mesmo. O homem foi visto como um ser determinado pela liberdade, essencial e existencialmente. No nos deve surpreender que a corrente radicalmente antropocntrica do Humanismo tenha assumido, com freqncia, atitudes anti-religiosas, desembocando no atesmo. A negao de Deus nasceu como conseqncia da posio central que se atribuiu ao homem e sua liberdade. A liberdade de Deus e a liberdade do homem (segundo tal cosmoviso) foram consideradas excludentes uma da outra. Deus aparecia, aos olhos dos humanistas, como obstculo aspirao do homem sua auto-realizao.[footnoteRef:7] [6: Cf. C. M. Bowra. A Experincia Grega .Lisboa, Editora Arcdia Limitada, 1967.p. 276. ] [7: Bernd Groth, citado em: Dicionrio de Teologia Fundammental. p.405.]

A partir do sculo XIX os Humanismos pluralizaram-se, assumindo posies antagnicas. Surgiram os Humanismos Ateus e os Humanismos No-Ateus.

So considerados representantes do Humanismo Ateu: Ludwig Feuerbach (1804-1872), Karl Marx (1818-1883), Ernst Bloch (1885-1977), Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Erich Fromm (1900-1980). [footnoteRef:8] [8: Idem. Ibid. p. 406-409. O telogo catlico Henri de Lubac consagrou uma obra famosa crtica de alguns sistemas humanistas ateus: Le Drame de lHumanisme Athe, 6 d. Paris, ditions Spes, 1959. Nesse livro Henri de Lubac contrape - aos humanismos de Feuerbach, Nietzsche e Auguste Comte - os humanismos cristos de Kierkegaard e Dostoievski. ]

Ao lado dos Humanismos Ateus coexistiram e continuam a coexistir - outras formas de Humanismos, alguns de inspirao essencialmente religiosa como o Humanismo Bblico de Martin Buber, (1878-1965), ou o Humanismo Cristo (de Gabriel Marcel, Teilhard de Chardin, e Jacques Maritain) e algumas formas de Humanismo Islmico. Pode-se falar, tambm num Humanismo Confuciano, e num Humanismo Hindusta (como o do grande lder indiano Mahatma Gandhi 1867-1948).

Atualmente, inclui-se nesse rol tambm o Humanismo Africano, estruturado a partir das culturas tribais do continente. A frica contempornea possui originalidade de pensamento, e tem produzido intelectuais de alto gabarito.

No decorrer de nossa palestra, veremos que se pode, ainda, admitir um Humanismo Cientfico, entendendo-se por ele as condutas scio-polticas e culturais de representantes das Cincias, particularmente das Cincias da Sade.

No que diz respeito sua influncia concreta, cultural e poltica, o Humanismo j obteve apreciveis resultados coletivos. Um deles foi ter incorporado sua agenda - mediante seu organismo internacional mais prestigioso, a ONU os ideais revolucionrios da Declarao Universal dos Direitos do Homem. Como o assinalou um grande especialista nessa rea, Karel Vasak, a inspirao histrica para a deciso da Assemblia Geral das Naes Unidas de 1948, deve ser considerada fruto da Revoluo Francesa de 1789, a qual, na sua poca, formulou a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado.[footnoteRef:9] [9: Cf. O Correio da Unesco. Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas, Instituto de Documentao. Janeiro de 1978, ano 6, nmero l. p. 29. ]

Em relao ainda ONU, registremos um dado: dezoito anos aps sua histrica Declarao, ela conseguiu que seu plenrio aprovasse, em 16 de dezembro de 1966, dois novos pactos suplementares de Direitos Humanos, o primeiro relativo aos direitos econmicos sociais e culturais dos cidados, e o segundo relativo aos seus direitos civis e polticos.

Sempre que volto a ler a Declarao Universal dos Direitos do Homem promulgada pela ONU em 1948, impressiono-me, e at me comovo! Tal declarao condensa o que de melhor cogitaram os grandes pensadores ticos de todos os tempos, e de todos os povos. Nas entrelinhas de tal Declarao aspira-se um aroma superior em relao vida humana, aroma que se pode atribuir influncia de personalidades eminentes da Histria da Humanidade. Referimo-nos, de modo particular, aos Videntes da ndia, aos fundadores da filosofia chinesa, sobretudo Confcio, Lao-Ts e Chuang-Tzu, a Moiss, a Buda, e principalmente a Jesus, a Maom, e a outros lderes espirituais.

Uma Declarao, como a promulgada pela ONU em 1948, permanece, no s viva, mas cada vez mais viva em nosso sculo XXI, e faz jus s palavras no muito conhecidas de Albert Einstein:

- A humanidade tem toda a razo em colocar os arautos dos elevados padres morais e valores acima dos descobridores da verdade objetiva. Aquilo que a humanidade deve a pessoas como Moiss, Buda e Jesus est para mim, num plano mais elevado do que as realizaes das mentes indagadoras e construtivas.[footnoteRef:10] [10: Citado por Rene Weber. Dilogos com Cientistas e Sbios.Traduo de Gilson Csar Cardoso de Sousa. So Paulo, Crculo do Livro, 1986. p..261.]

Entre seus artigos, a Declarao da ONU ostenta no seu prtico uma jia, que nos permite imaginar o surgimento de um mundo diferente do nosso, mais justo, mais social, e mais feliz.

Vejamos:

- Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. So dotados de razo e conscincia e devem agir em relao uns aos outros com esprito de fraternidade.

Outro artigo, que nos deixa impressionados pela sua imensido tica o artigo 25, que infelizmente neste momento no est sendo devidamente respeitado:

- Todo homem tem direito a um padro de vida capaz de assegurar a si e sua famlia sade e bem estar, inclusive alimentao, vesturio, habitao, cuidados mdicos e os servios sociais indispensveis, bem como direito segurana em caso de desemprego, doena, invalidez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistncia em circunstncias fora de seu controle.

A maternidade e a infncia tm direito a cuidados especiais. Todas as crianas, nascidas dentro ou fora do matrimnio, gozaro da mesma proteo social.[footnoteRef:11] [11: As citaes da Declarao Universal dos Direitos do Homem,que aqui transcrevemos, foram extradas do Correio da Unesco, Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas, janeiro de 1978, ano 6, nmero 1, p. 30- 31.]

Suponhamos, caros ouvintes, que a Providncia Divina se digne conceder, um dia, como mimo Humanidade, a realizao integral desses dois artigos.

Que aconteceria?

Nesse dia possivelmente a felicidade humana que ningum at hoje conseguiu explicar o que h de sair de seu ninho, que tambm no se sabe onde fica - e cantar, pela primeira vez no mundo, semelhana do rouxinol do poeta ingls John Keats (1795-1821), ou do nosso sabi da Cano do Exlio, de Gonalves Dias. Talvez vocs conheam o poema de Keats Ode a um Rouxinol, que Jorge Luis Borges considerava uma fonte de inesgotvel poesia, poema que tem versos como os que agora cito:

Desaparecer, dissolver-me e esquecer para sempre

tudo aquilo que jamais conheceste entre essas folhas,

o cansao, a febre e o temor de um mundo

onde vos reunimos para escutar nossos lamentos

(...) onde a juventude se extingue e morre, como delgada sombra,

onde o pensamento nos enche de desgosto

(...) onde a beleza j perdeu o seu esplendor

e um novo amor no pode durar mais que uma tarde...[footnoteRef:12] [12: John Keats, Odes. Traduo e prefcio de Fernando Guimares. Porto, Livraria Sousa e Almeida Ltda., 1960. p.44. ]

Que diremos de nosso Gonalves Dias? No seu encantador poema, alm das saudades de um poeta exilado em Portugal, o poeta parece celebrar o sonho de uma felicidade que nunca termina.

Nesse dia, repito, vocs que me ouvem, tero entendido o que me esforcei por evocar-lhes, ao comentar a palavra j declarada abusada: Humanismo.

Passemos ao segundo ponto de nossa palestra.

II. Definio aproximativa da experincia esttica.Seria essa experincia acessvel a todas as pessoas?

Reflitamos, primeiramente, sobre um trecho da autobiografia de Richard Feynman, Prmio Nobel de Fsica de 1965:

- Um dia, em que me encontrava na cantina da Universidade de Cornell, um dos presentes, por brincadeira, atirou um prato ao ar. Enquanto o prato subia, eu o vi oscilar e reparei que o medalho vermelho da Universidade de Cornell, gravado no prato, rodava mais rpido que sua oscilao. Como no tinha o que fazer, comecei a determinar o movimento do prato em rotao. Descobri que, quando o ngulo muito pequeno, o medalho roda duas vezes mais rpido do que a oscilao dois para um. Isso vinha de uma equao complicada. Depois pensei: Existir alguma maneira de eu poder ver de modo mais fundamental, considerando as foras ou a dinmica, por que a rotao de dois para um? No me recordo como o fiz, mas finalmente descobri qual o movimento da massa de partculas e como as aceleraes se equilibram para fazer com que seja de dois para um. Ainda me lembro de ter ido conversar com Hans Bethe [footnoteRef:13], e de lhe dizer: Eh, Hans! Reparei numa coisa interessante. Aqui o prato roda desta maneira, e a razo porque de dois para um ... e mostrei-lha as aceleraes. Hans Bethe disse: Feynman, isso muito interessante, mas que importncia tem isso? Por que voc se interessa por isso? [13: Hans Bethe (1906-2005) obteve o Prmio Nobel de Fsica em 1967.]

Feynman remata:

- Aquilo que eu fazia parecia no ter importncia, mas por fim teve. Os Diagramas, e todo o assunto que me fizeram ganhar o Prmio Nobel, originaram-se nesse meu entretenimento com o prato oscilante.[footnoteRef:14] [14: Richard Feynman. Est a brincar, Sr. Feynman? Retrato de um Fsico enquanto Homem. Lisboa, Gradiva, 1988. p. 171-172.]

Aproveitemos o relato de Feynman para juntar-lhe um depoimento de Paul Dirac, fsico britnico (Prmio Nobel de 1933), que nos revelou o seguinte detalhe a respeito de Albert Einstein, com quem ele teve a oportunidade de conviver:

- Mesmo ao oferecer uma xcara de ch, enquanto o convidado mexia o acar, Einstein procurava uma explicao cientfica para o deslocamento das folhas de ch dentro da xcara.[footnoteRef:15] [15: Artigo:Uma Teoria Harmoniosa. Cf, O Correio da Unesco, RJ, Fundao Getlio Vargas, julho de 1979, ano 7, nmero 7, p. 23.]

Vocs devem ter percebido que os depoimentos sobre esttica por mim citados so todos de cientistas. A razo disso que desejo encarar o tema a partir de pontos-de-vista mais prximos aos de vocs.

Ao episdio de Feynman juntemos outro, referido pelo botnico ingls Nicholas Guppy, o qual em 1953 estava em excurso pelas florestas tropicais do Suriname, acompanhado por ndios do Caribe. De repente, durante a excurso, Guppy pediu que todos ficassem em silncio: Uma grande borboleta azul-celeste Morpho Adonis desceu ziguezagueando at pousar numa folha ao p de uma rvore.(...) Guppy encaminhou-se lentamente para a borboleta que descansava, ajoelhou-se ao p dela e estendeu-lhe a mo. A borboleta tremeu, arrastou-se por uma mancha de sol e subiu para os ns de seus dedos imveis e abertos. O botnico levantou-se delicadamente, erguendo na mo o dcil inseto.- Que beleza!murmurou ele.Devo ter uma espcie de atrao qumica no cheiro de minhas mos. Nunca vi ningum que pudesse peg-las assim.(...) Que azul-plido etreo! Esto vendo porque a gente se torna naturalista? Saber nomes, classificaes, poder explicar a enfadonha vida sexual das plantas, tudo isso secundrio diante do entusiasmo central, que o amor pelas coisas vivas.[footnoteRef:16] [16: Henry Margenau e David Bergamini .O Cientista. Rio de Janeiro, Jos Olympio Editora, 1972.p.16.]

Finalizemos nossosos depoimentos com trechos de uma entrevista de Steven Weinberg (Prmio Nobel de Fsica de 1979), publicada no peridico Worlds of Ideas (O Mundo das Idias):

- difcil explicar por que interessante aprender coisas a respeito do Universo. Simplesmente . No compreendo como se possa explicar que a msica bela. questo de gosto, de querer compreender por que as coisas so como so, e de onde vieram. Se voc no tem esse gosto, falar a respeito disso no d explicao alguma. Acho que a maioria das pessoas tm esse gosto.

pergunta: A quem o Sr. proporia questes sobre a complexidade da vida, a Shakespeare ou a Einstein?, o cientista respondeu:

- Sobre a complexidade da vida, a Shakespeare.

- E o Sr. perguntaria a Einstein quanto ...simplicidade?

- Sim concordou Weinberg - perguntaria a Einstein sobre o sentido de ver as coisas como elas so, sobre como saber que o universo fsico o que ele . No lhe perguntaria por que as pessoas so como so, porque isto est no fim de uma complexa cadeia de inferncias. Voc sabe: juntos, Einstein e Shakespeare so importantes para explicar o significado da vida.[footnoteRef:17] [17: Entrevista com o fsico Steven Weinberg. Revista Dilogo, RJ, volume 4, nmero 4, 1990. p. 28-33. (O negrito nosso).]

Se lhes exponho tais fatos e reflexes, porque nos episdios descritos se manifesta o verdadeiro significado da experincia esttica.

Permitam-me uma explicao terminolgica: o termo esttico pode referir-se- tanto ao real da Natureza como ao real da criao artstica ratificados pela sensibilidade segundo a expresso de Ren Le Senne. O termo artstico refere-se, mais particularmente, atividade do artista, ou seja, produo concreta de objetos artsticos.[footnoteRef:18] [18: Ren Le Senne. Introduo Filosofia. Poto Alegre, Editora Globo, 1965. p. 215.]

O gozo (ou deleite esttico) tem mais a ver com a experincia dos espetculos da Natureza, enquanto que o gozo (ou deleite artstico) est normalmente relacionado com as obras de arte criadas pelo homem.

No decorrer desta palestra, aos nos referirmos experincia esttica, englobamos numa nica expresso os dois elementos, tanto o do gozo psicolgico internalizado no indivduo frente a um espetculo natural, como o do gozo que resulta da contemplao de um objeto exterior, produzido pelo homem.

Nesta altura, desejamos destacar duas questes relevantes:

a) a da acessibilidade da experincia esttica e artstica, ou seja, a de se saber se qualquer pessoa tem condies de fruir do gozo esttico;

b) a de se saber se qualquer indivduo pode produzir objetos artsticos, ou seja, se pode ser artista.

Opinamos que a experincia esttica algo acessvel a todos os homens e mulheres. Qualquer pessoa pode experimentar certo grau de prazer esttico, tanto diante dos espetculos da Natureza como diante das criaes do gnio ou do talento dos artistas.

No tocante, porm, questo: pode qualquer indivduo ser artista? diramos: em princpio, sim. Na prtica, no. Para um indivduo merecer a denominao de artista exige-se-lhe que produza obras de arte, o que pressupe um mnimo de prtica pessoal, e um mnimo de aprendizado terico e tcnico sob a orientao de mestre experimentado. Nem sempre tal conjuno de fatores ocorre.

Tentemos destacar alguns aspectos estticos nos depoimentos recm-citados.

No prato lanado ao ar registramos, por exemplo, a presena do senso ldico, tanto no estudante folgazo que o lanou ao ar, como no fsico que se distraiu com a brincadeira do estudante.

Na atitude do botnico ingls, apontemos, especialmente, um dado: sua sensibilidade s cores.

Nas declaraes do fsico Weinberg, assinalemos sua caracterstica principal: o gosto! Weinberg era fsico, mas no esquecia que ter gosto no qualidade de fsico, mas qualidade humana

A partir disso, fixemo-nos em trs aspectos que parecem convergir em toda experincia esttica: o aspecto biopsquico, o aspecto cultural, e o aspecto scio-poltico.

a) O aspecto biopsquico.

Talvez, em lugar da expresso biopsquico, fosse melhor usar uma expresso mais contempornea, por exemplo: o aspecto bio-neuronal da experincia esttica.

Stefan Morawski, no seu livro Fundamentos de Esttica, afirma: No existe no homem nenhuma glndula esttica.[footnoteRef:19] [19: Barcelona, Ediciones Pennsula, 1977. p. 183.]

Por sua vez, o neurobilogo Jean-Pierre Changeux nega que exista um departamento artes no crebro do homem:

- No estdio atual dos nossos conhecimentos diz Changeux - respondo no pergunta sobre a eventual existncia de um compartimento artes.

Acrescenta o cientista:

- Deve existir um certo nmero de reas distribudas no crtex cerebral, que contribuem para a atividade criadora do artista. O problema da relao entre uma organizao neuronal particular e uma determinada funo, ainda hoje, a questo central das neurocincias. [footnoteRef:20] [20: Jean-Pierre Changeux. Razo e Prazer. Do Crebro ao Artista. Lisboa, Instituto Piaget, 1997. p. 101.]

A maioria dos tericos da Arte est persuadida de que a estesia constitui uma extenso e refinamento do conjunto psquico-somtico humano.

Em seu livro A Aventura dos Neurnios, o Professor Jacques-Michel Robert, geneticista da Universidade de Lyon, escreve:

- Se pusermos de parte algumas variaes individuais mnimas, a topografia a mesma em todas as populaes estudadas no mundo: aborgenes australianos, malaios, chineses, africanos, europeus.

Robert ainda escreve:

- As reas novas, que chegaram por ltimo no processo de hominizao, foram as (assim ditas) reas pr-frontais, que compreendem: o crtex Sensorial, o Sistema Lmbico, o Tlamo e o Estriado. As anlises das informaes recebidas de outras reas, do sistema lmbico ao tlamo e ao estriado, so passadas a pente fino pelo julgamento da razo.[footnoteRef:21] [21: Jacques-Michel Robert. Traduo de Fernando Machado. Lisboa, Instituto Piaget, 1997. p. 120..]

Por fim, o Professor Robert remata:

- A atitude de criar e definir conceitos tornou-se possvel graas evoluo.[footnoteRef:22] [22: Ibid. p.120]

Jean-Pierre Changeux confirma o colega:

- A libertao do crtex frontal no decorrer da hominizao, segundo a expresso de Leroi-Gourhan, deu acesso capacidade de representao nica no mundo animal, e a mltiplas evolues encadeadas tanto mentais como culturais. Torna-se mesmo concebvel que doravante se possa aceder ao conhecimento do nosso aparelho do conhecimento. O debate sobre a conscincia deixou de ser somente filosfico. Tornou-se debate cientfico e, modelos das suas bases neuronais, ainda que muito limitadas, como os fundamentos de Crick ou Edelman, podem doravante ser experimentados.[footnoteRef:23] [23: Jean-Pierre Changeux. Razo e Prazer. Lisboa, Instituto Piaget, 1997. P. 21.]

Abstraiamos das convices reducionistas de Changeux sobre a conscincia humana. O que importa que ele, tambm, sustenta que o crtex frontal e o sistema lmbico se relacionam com o prazer esttico.[footnoteRef:24] [24: Ibid. p. 38.]

Detenhamo-nos, com maior ateno, na observao de Jean Bernard, fundador da hematologia francesa:

- certo que, para todos os animais, os neurnios e as sinapses so os mesmos; certo que a densidade do tecido nervoso em neurnios e em sinapes se mantm a mesma. Mas a quantidade de crebro muda. Particularmente a do crebro novo, desenvolvido durante a evoluo do neocrtex. O novo crebro do homem 150 vezes maior do que o dos insetvoros, e 10 vezes maior do que o dos smios superiores. Isto tem como corolrios o aumento do nmero de conexes entre neurnios, e a maior complexidade dessas relaes.[footnoteRef:25] [25: Jean Bernard. Ento e a Alma?. Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, 1987. p. 20.A respeito do volume cerebral humano em relao aos chimpanzs, ler: Jean-Pierre-Changeux: O Verdadeiro, o Belo e o Bem.Trad. de Edmir Missio. So Paulo, Editora Civilizao Brasileira, 2013. p..235-237.]

Tal diferena parece tornar o ser humano um ser nico, insubstituvel.[footnoteRef:26] [26: Jean Bernard. Ento e a Alma? Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, 1988.p.58.]

Bernard cita um estudo de Charles Salmon, segundo o qual a probabilidade de se encontrar uma pessoa de frmula idntica outra implicaria 100 milhes de bilies de indivduos.[footnoteRef:27] Seu amigo Jean Dausset, o descobridor do HLA (Histocompatibilidade dos glbulos brancos do sangue para os antgenes ou anticorpos)[footnoteRef:28] que obteve o Prmio Nobel de Medicina de 1980, assegura: [27: Idem. Ibid. p.70-71.] [28: Jean Dausset. O Selo da Indidualidade, A Grande Aventura do HLA.Lisboa, Instituto Piaget, 2000. P.77.]

- Cada homem singular. No houve, nem haver jamais, excetuado o caso de verdadeiros gmeos, dois homens geneticamente idnticos.[footnoteRef:29] [29: Idem. O Selo da Individualidade. A Grande Aventura do HLA. p. 25. ]

Com alguma nfase, Jean Dausset completa:

- Cada homem singular, tanto ao nvel de seu gentipo, ou seja, de seu programa gentico, como de seu fentipo, o que ele no plano fsico e mental de seu fentipo, ou seja, do seu programa gentico.[footnoteRef:30] [30: Jean Dausset. Ibid. p. 170-174.]

Senhores Professores e Alunos desta Universidade Federal de Cincias da Sade: bvio que no me passa pela cabea querer impressionar vocs, que so especialistas na rea, com conhecimentos que mal consigo assimilar. Sou leigo no assunto. Tenho apenas paixo pela histria das cincias.

Longe de mim cair na tolice de imitar o Ditador Benito Mussolini que, segundo refere o historiador ingls Denis Mack Smith, possua uma cultura de segunda mo, e a despeito disso presumia de homem culto. Mussolini gostava de surpreender seus Ministros e diplomatas com citaes de autores que recolhia ao acaso. Desculpava-se, s vezes, com um sorriso superior:

-Scusate lerudizione! [footnoteRef:31] [31: Cit. por Denis Mack Smith. Storia dItalia dal 1861 al 1997. Roma-Bari, Editori Laterza, 2000. p.509.]

(Em traduo: Desculpem minha erudio!).

Na minha condio de estudioso de Esttica e da Histria da Arte, sinto-me mais vontade na companhia de tericos da Esttica e da Histria da Arte, aos quais, alis, retorno.

Que nos revelam eles?

Revelam que a maioria das pessoas possuem sensibilidades variadas.

Certas pessoas so sensveis s cores, outras aos volumes. Algumas pessoas so sensveis, sobretudo, aos sons.

Clive Bell (1881-1964), crtico de arte ingls, auto-ironizou-se: Quanto a mim, no me saio melhor num concerto do que um coronel numa galeria de pintura.[footnoteRef:32] [32: Citado por Harold Osborne. A Apreciao da Arte. So Paulo, Editora Cultrix, 1978. p. 10.]

Harold Osborne destaca um fato: enquanto determinadas pessoas, que gostam de pintura, tambm gostam de poesia, o oposto tambm ocorre. Com certa frequncia, pessoas que gostam de poesia no gostam de obras de arte visual. [footnoteRef:33] [33: Idem, ibid. p. 10.]

Um historiador da arte italiano registrou o fato de que nenhum poeta italiano moderno, salvo Gabriel dAnnunzio, se interessava pelas Artes Visuais.[footnoteRef:34] [34: Matteo Marangoni. Aprenda a Ver. So Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949. p. 27.]

Vou concluir este tpico apresentando-lhes outros exemplos de sensibilidades dirigidas.

Charles Baudelaire tinha predileo pela cor violeta. Via nessa cor constituda pela juno de duas cores, o vermelho e o azul, uma cor autnoma.[footnoteRef:35] [35: tienne Gilson. Matires et Formes. Paris, Vrin, 1964. p. 128, note 6.]

O pintor Henri Matisse, um dos criadores do Fauvismo, tinha a mesma preferncia que Baudelaire pela cor violeta. Segundo amigos, ele teria dito:

- No admito que se sirva uma omelete a no ser num prato violeta.[footnoteRef:36] [36: Citao de Michel-Georges-Michel. Pintores e Escultores de Paris (1900-1945). Rio de Janeiro, Edies Cruzeiro, 1946. p. 31.]

Provavelmente, muitos de vocs ouviram referncias aos verdes-turquesa do pintor italiano Veronese (1528-1588), ou aos amarelos de Vincent Van Gogh.

No que diz respeito ao escultor Alexander Calder, criador dos Mbiles, tinha verdadeira paixo pela cor vermelha. Declarou, certa vez: (...) chego a ter vontade de pintar tudo de vermelho. Muitas vezes penso que gostaria de ter sido um fauve em 1905.[footnoteRef:37] [37: Katharine Kuh. Dilogo com a Arte Moderna. Rio de Janeiro, Editora Lidador, 1965. p. 58.]

No que concerne ao fsico, que citamos no incio desta palestra, Richard Feynman, ele revelou: Quando vejo equaes, as letras surgem-me a cores no sei por qu. E quando falo, vejo as vagas imagens das funes de Bessel do livro de Jahnke et Emde com js amarelados, com ns levemente violeta-azulados e com xs castanhos escuros (...) E interrogo-me quanto ao que enxergaro meus estudantes.[footnoteRef:38] [38: Richard Feynman. Nem Sempre a Brincar, Sr. Feynman. Novos Elementos para o Retrato de um Fsico Enquanto Homem. Lisboa, Gradiva, 1989.p. 60. ]

Resumindo: cada ser humano possui um tipo de sensibilidade que o predispe, bio-neuronalmente, a determinadas preferncias sensoriais e estticas.

Com uma pitada de humor, Kenneth Clark tranqiliza-nos:

- O gosto possui graus variveis (...) mas sua essncia permanece a mesma. Pode ser ativo e passivo, mas, em ltima anlise, a qualidade que denominamos gosto em Vermeer ou Velzquez a mesma que nos faz escolher uma gravata ou as cortinas de nossa sala.[footnoteRef:39] [39: In: Connaissance des Arts. Paris, n. 339, mai 1980, p. 90.]

Apresentar-lhes-ei, agora, um exemplo magnfico de sensibilidade ao som das palavras. Cito-lhes dois fragmentos do grande poeta da lngua portuguesa Fernando Pessoa:

- Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras so para mim corpos tocveis, sereias visveis, sensualidades incorporadas.(...) Tal pgina, at de Vieira, na sua fria perfeio de engenharia sinttica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delrio passivo de coisa movida.[footnoteRef:40] [40: Frnando Pessoa. Livro do Desassossego. Lisboa, Editora tica, 1982. p. 15-16.]

Pessoa diz que rompeu em lgrimas felizes, como nenhuma felicidade real o faria chorar, ao deparar com um trecho de Vieira sobre o Rei Salomo, cujo incio era: Fabricou Salomo um palcio....[footnoteRef:41] [41: Livro do Desassossego.. p. 16.]

Eis o comentrio do poeta:

- Aquele movimento hiertico da nossa clara lngua majestosa, (...) aquele assombro voclico em que os sons so cores ideais tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoo poltica.(...) No , no, a saudade da infncia, de que no tenho saudades: a saudade da emoo daquele momento, a mgoa de no poder j ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfnica.[footnoteRef:42] [42: Livro do Desassossego.p. 16-17.(O negrito nosso).]

No mesmo texto, o poeta acrescenta uma frase que ficou clebre:

- Minha ptria a lngua portuguesa.[footnoteRef:43] [43: Livro do Desassossego. p. 17.]

No pensem que so apenas os poetas que possuem tal sensibilidade verbal! Um pintor americano, Franz Kline (1910-1962), considerado um dos mais talentosos expressionistas abstratos ao lado de De Kooning e Jakson Pollock, confessou:

- Acontece que algumas vezes gosto de nomes, das palavras em si. Por exemplo, minha pintura que se intitula Dahlia, nada tem a ver com a flor que ela parece designar. [footnoteRef:44] [44: Declarao do pintor em entrevista a Katharine Kuh, Dilogo com a Arte Moderna. Rio de Janeiro, Editora Lidador, 1965. p. 176.]

b) O aspecto cultural.

No , porm, suficiente ter sensibilidade. preciso que a sensibilidade seja educada, e moldada pela cultura do pas ou regio onde o artista nasce, cresce, ou vive,

A maioria das pessoas supe que ser sensvel algo do tipo: Gosto, no gosto.

Sim, isso funciona at certo ponto! Pode-se aceitar o aforismo de Alfonso Reyes: La gracia es la gracia.[footnoteRef:45] O indivduo pode trazer de bero certas qualidades subjetivas. Afora isso, a sensibilidade antes um pendor da natureza passado pelo filtro de uma Cultura. [45: Alfonso Reyes. La Experiencia Literaria. Segunda edicin. Buenos Aires, Editorial Losada, 1961. p. 90.]

O filsofo italiano Benedetto Croce, ciente de que a arte s produz signos artificiais, insistia:

- No existem signos naturais.[footnoteRef:46] [46: Benedetto Croce. Estetica. Segunda edicin. Buenos Aires, Nueva Visin, 1973. p.212.]

Queria com isso dizer que a linguagem artstica constitui uma forma de linguagem como as outras, que ela uma criao, como as lnguas o so.

Um ano antes de morrer, Henri Matisse deu uma entrevista na qual deixou uma lio maravilhosa de como aprender a ver esteticamente:

- Ver, disse Matisse, j em si uma operao criativa que exige esforo. Tudo o que vemos na vida cotidiana sofre, em maior ou menor grau, certa deformao engendrada pelos hbitos adquiridos; semelhante fato mais perceptvel, talvez, numa poca em que o cinema, a publicidade e as revistas ilustradas nos impem verdadeira avalanche de imagens feitas; estas imagens na escala da viso so o que o que os preconceitos so na escala da inteligncia. preciso fazer um esforo para poder desprender-se ou libertar-se de tudo isso; exige-se certo tipo de coragem. Essa coragem indispensvel ao artista, que deve ver todas as coisas como se as visse pela primeira vez.[footnoteRef:47] [47: Henri Matisse. Reflexiones sobre El Arte. Buenos Aires, Emec Editores, 1977. p. 422-425. (Os negritos so nossos)]

At a Natureza, quando somos capazes de apreci-la, porque a vemos estetizada. Henri Bergson props que no considerssemos as belezas da Natureza como anteriores Arte. Ao contrrio, disse ele, hora de nos perguntarmos se a Arte no precede a Natureza:

- A Natureza bela porque reencontramos nela determinados processos artsticos.[footnoteRef:48] [48: Henri Bergson.Essai sur ls Donnes Immdiates de La Conscience. In: Oeuvres. dition du Centenaire. Paris, Presses Universitaires de France.1959. p. 13. ]

Ajuntava:

- A criana no percebe na natureza exterior seno formas grosseiras e convencionais... [footnoteRef:49] [49: Citao de Rose-Marie Moss-Bastide. Bergson et Plotin. Paris, Presses Universitaires de France, 1959. p. 280-281.]

Ao ler um Dossier Czanne, deparei com uma confidncia do grande Pintor:

- Conheci declarou Czanne - camponeses que s vezes me fizeram duvidar de que soubessem o que era uma paisagem, ou at mesmo uma rvore.[footnoteRef:50] [50: Citado por Michael Doran. Sobre Czanne (Conversaciones y Testimonios). Barcelona,Gustavo Gili, 1980.p.164.]

Consideramos, tambm, tpico o episdio ocorrido com o pintor Thodore Rousseau, mestre de alguns impressionistas como Claude Monet. Vendo-o instalado com seu cavalete no campo, um campons perguntou-lhe: Por que o Sr. pinta esse carvalho se o carvalho j est a?[footnoteRef:51] [51: Cit. por tienne Gilson. Peinture et Ralit. Paris, Vrin, 1958. p. 225.]

tienne Gilson comenta o caso: habituado s lides do trabalho agrcola, o campons no compreendia por que o pintor pudesse interessar-se por uma rvore. Para que representar uma rvore se ela j estava a, se era uma realidade concreta que devia ser derrubada, e aproveitada para a fabricao de mesas, cadeiras, camas? luz disso, o pintor, que no tinha interesse por coisas prticas, que se concentrava na rvore em si, como algo que alm de utilidade, possua outro significado, s podia ser um sujeito bizarro!

Gilson remata:

- Se o pintor tivesse querido, poderia ter dito ao campons: Meu amigo, pinto esse carvalho porque o carvalho que ns vemos no exatamente o carvalho que eu gostaria de ver. um belo carvalho sem dvida, mas no feito exclusivamente para ser belo, ao passo que este, que estou pintando, e que no passa de uma aparncia, contm tudo o que necessrio para o prazer dos olhos somente isso.[footnoteRef:52] [52: tienne Gilson. Ibid. p.232-233.]

Como percebemos, o filsofo abordou um aspecto importante da pintura: seu carcter de fico. A fico no est ao alcance do animal irracional. A pintura, como toda arte, uma criao imaginativa, como um poema ou um romance.

No episdio citado Gilson destaca um fato: mesmo a pintura figurativa a despeito da inveno da fotografia e do cinema at certo ponto abstrata!

Voltemos tese de Bergson: as pessoas, com freqncia, vem os espetculos da Natureza com maior espanto e emoo quando um artista os viu primeiramente, quando os desenhou ou pintou. Retornando s percepes por vezes desgastada pela nossa inflao ptica, o artista poderia dizer:

- Venham ver o que vocs nunca viram, e eu j vi!

essa a impresso que a gente tem perante um pintor excepcional da qualidade de Van Gogh, que nos revelou os ciprestes e os girassis pela primeira vez.

Para sublinhar tal realidade, Oscar Wilde declarou:

- No havia neve em Londres antes que o pintor Whistler (1834-1903) a pintasse...[footnoteRef:53]. [53: Cit. por E. H. Gombrich. Arte e Ilusin. Barcelona, Martnez Roca, 1979. p.14-15.]

c) O Aspecto Scio-Econmico.

Alm da sensibilidade e da influncia cultural, existe outro fator que condiciona a experincia esttica: as condies scio-polticas do ambiente.

Zologos e etologistas mostraram que os chimpanzs somente desenham e pintam quando foram resolvidas suas necessidades de sobrevivncia. Referindo-se s atividades ldicas dos animais, observa o especialista francs Remy Chauvin:

- O jogo surge de repente sem qualquer outra motivao, o que no constitui uma explicao suficiente; h sempre necessidade de que o animal seja liberado de suas preocupaes com o calor, o frio, a nutrio, o sexo e o sono.(...) Um chimpanz demonstra maior atividade manipulatria diante dos objetos quando j comeu, do que quando est com fome. No ser a atividade manipulatria uma espcie de jogo? [footnoteRef:54] [54: Rmy Chauvin. A Etologia. Estudo Biolgico do Comportamento Animal. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977. p. 137.]

Creio que todos conhecem a crtica de Karl Marx s condies subhumanas do trabalho proletrio:

- O homem cheio de preocupaes, necessitado, no tem sentidos para o mais belo espetculo. O comerciante de minrios apenas atende ao valor comercial dos minrios, no se apercebe da beleza, nem da natureza particular do mineral; no tem sentido mineralgico. Por conseguinte, necessria a objetivao do ser humano, tanto do ponto de vista terico como prtico, para tornar humano o sentido do homem e tambm para criar um sentido humano correspondente toda a riqueza do ser humano e natural. [footnoteRef:55] [55: Karl Marx. Sobre a Literatura e a Arte. Lisboa, Editorial Estampa, 1971. p. 50.(O negrito nosso).]

Caso desejarmos promover uma democratizao da experincia esttica, necessitamos proporcionar s pessoas condies mnimas de bem-estar. A experincia esttica implica fundamentalmente o prazer. Ora, a ideologia da sociedade industrial tende ao desprazer, deserotizao do homem. A sociedade industria confina-o na ilha da eficincia, onde o gozo esttico e a produo de objetos de arte so considerados uma heresia no contexto neocapitalista.

Resulta de tal ideologia o obscurantismo do prazer expresso proposta por Roland Barthes.[footnoteRef:56] O princpio de prazer simplesmente considerado um apndice do princpio de realidade. [56: Roland Barthes. O Prazer do Texto. Lisboa, Edies 70, 1974. p. 90.]

Em tal situao, que acontece com a arte?

Ela considerada alienao, ou dito de outra forma: uma diverso frvola.

A vocao da arte o contrrio de uma alienao. A esttica, encarada corretamente, constitui uma objeo fortemente humanstica supresso de Eros.

O homem foi feito, no s para prover s suas necessidades de sobrevivncia, mas tambm para gozar e apreciar as coisas agradveis da vida. claro que o prazer do paladar, do sexo e de outros tipos, no pode confundir-se com o prazer da arte, visto que o prazer da arte um prazer mediatizado. Pressupe uma participao consciente e intensa da memria e da imaginao. Estas faculdades podem contestar, retificar, transfigurar, e intensificar o mundo da realidade.

Ao pintar um quadro, ao esculpir uma esttua, ao compor um poema, o artista produz uma criao imaginativa, que no produzida para enganar as pessoas, mas para estimul-las a prosseguir numa dupla direo, realada por Martin Buber (1878-1966). De acordo com este grande pensador humanista, a criao artstica pressupe a ao conjunta de dois instintos, existentes na pessoa humana.

a)O instinto de relao

b)O instinto de autor.

O instinto de relao relaciona-se com a imaginao.

A imaginao faz com que o homem vena a solido original, e se una, no s aos outros homens mediante vnculos de amizade, de trabalho e de entretenimento, mas tambm mediante outros laos de ordem social, especialmente religiosa.

Quanto ao instinto de autor, este relaciona-se com o impulso para o fazer, que impele a pessoa a completar e a realar a Natureza, utilizando-a para seu prprio bem, e para o bem de todos. uma possibilidade de o homem ultrapassar-se a si mesmo mediante o universo da Cultura.[footnoteRef:57] [57: Sobre a Esttica de Martin Buber, cf; Armindo Trevisan. A Sombra luminosa. Petrpolis, Editora Vozes, 1995. p.49-62. ]

O biologista holands F.J.J. Buytendjik explica:

- A criana descobre no jogo sua humanidade, porque sabe que ela prpria executa algo. Este fazer algo por conta prpria sempre uma escolha, portanto supe um julgamento. Assim a criana e qualquer jogador cria uma relao livre com o mundo[footnoteRef:58]. [58: Artigo O Jogo Humano, de autoria de F.J.J. Buytendjik na obra coletiva: Nova Antropologia Cultural. (Organizao de H.G. Gadamer e P. Vogler. Vol. IV. So Paulo, EPU-EDUSP, 1977. p. 77. ]

Ao produzir uma obra de arte, o homem confere s coisas nova existncia que, de algum modo, se adiciona s criaes tericas das cincias, e s realizaes prticas da Tecnologia - esta considerada o brao executivo das cincias. A Arte, por outro lado, imuniza as pessoas contra o perigo da insignificncia, da falta de sentido, enfim, contra o risco do Absurdo. Ao propor ao indivduo e as multides significados, smbolos e metforas, a arte robustece o instinto de sobrevivncia.

Sintetizando: se a cincia descobre o que h de compreensvel na Natureza e o que h de compreensvel no mundo da matria, do imediatamente tangvel, ou acessvel verificao, a arte, mesmo ficando no terreno do tangvel e do sensvel, descobre o que h de compreensvel no universo das paixes, do amor, dos desejos conscientes e inconscientes, at mesmo nas angstias da criatura humana.

Tais elementos, pelo fato de se moldarem em formas simblicas e metafricas, revelam ao homem o que ele no consegue encontrar pela via puramente racional. O homem s consegue sobrepor-se angstia apelando para as contribuies do para-racional, do super-acional, e daquilo que se convencionou denominar intuio.

Em determinadas circunstncias, a arte parece at ser mais essencial humanidade do que a cincia. Pode-se viver sem um conhecimento terico e tecnolgico - da realidade, mas no sem a esperana ntima de que a realidade possua um significado favorvel ao homem, e o imunize contra a solido, agrupando-o a outros homens em busca de algo superior vida mortal.

A ltima palavra do enigma humano parece estar, em todas as civilizaes, reservada ao amor.

O amor d-se melhor com a arte e a poesia do que com a luz glida das cincias, que no tm propriamente fices que a despojem de suas limitaes. A cincia vive de hipteses e teorias.

Caros amigos, justamente aqui que desejamos introduzir um novo aspecto em nossas reflexes.

Para o podermos fazer com maior lucidez, faamos primeiramente breve digresso sobre:

III. A Influncia da Esttica na Vida e na Trajetria de Personalidades das Cincias, especialmente das Cincias da Sade.

A questo que tenciono abordar, neste momento, pode ser formulada assim:

- At que ponto interessam-se os cientistas pela experincia esttica, e pela Arte em si?

No fiz uma pesquisa exaustiva sobre tal tema. Limito-me a transmitir-lhes o que fui encontrando ao longo de minhas leituras.

Comecemos pelo interessante livro de Sharon B. McGraine: Mulheres que Ganharam o Prmio Nobel em Cincias, no qual a autora descreve a vida e as realizaes de nove cientistas que at o ano de 1993 ganharam o dito galardo. A autora associou s cientistas premiadas outras sete mulheres, que se notabilizaram por trabalhos cientficos. Dessa obra tiramos uma informao genrica: boa parte de tais mulheres eram pessoas de grande sensibilidade esttica. [footnoteRef:59] [59: Sharon Bertsch McGraine. Mulheres que Ganharam o Prmio Nobel em Cincias.So Paulo, Editora Marco Zero, 1994. ]

Lise Meitner, por exemplo, que teve participao decisiva na descoberta da fisso nuclear, diz a autora que as poltronas da pera de Viena eram seu paraso musical. Lise Meitner chegava a ensinar aos amigos canes de Brahms quando, na residncia de Max Planck, comparecia s noites musicais programadas pelo casal para os colegas, e alunos. Einstein participava de tais reunies, e nelas exercitava seus dotes de violinista.[footnoteRef:60] [60: Ibid. p. 51, p. 58.]

Gerty Radnitz Cori, uma tcheca que recebeu o Prmio Nobel em Bioqumica em 1947, gostava de visitar os museus de arte de Viena. Ela escreveu: A arte e a cincia so as glrias da mente humana.[footnoteRef:61] Gerty e seu marido entretinham-se nas horas de folga a ler em voz alta literatura americana.[footnoteRef:62] [61: Ibid. p. 108.] [62: Ibid. p. 111.]

Irne Joliot-Curie, filha de Marie Curie, que obteve tambm um Nobel em 1935, em parceria com seu marido, pela descoberta da radioatividade artificial, tambm adorava literatura.[footnoteRef:63] [63: Ibid. p. 148.]

Barbara McClintok, geneticista, Nobel em Medicina e Fisiologia de 1983, dizia:

-(...) quando eu olho para uma clula, entro dentro dela, e olho ao derredor.(...) a intensidade da concentrao. Tenho certeza de que isso acontece tambm com os pintores.[footnoteRef:64] [64: Sharon Bertsch McGraine. Mulheres que Ganharam o Prmio Nobel em Cincias.p. 165.]

Maria Goeppert Mayer, Nobel em Fsica em 1963, era to apaixonada por poesia que, aps seu falecimento, o marido, doou Universidade de San Diego os cadernos dessa cientista repletos de poemas de autores alemes copiados mo. [footnoteRef:65] [65: Ibid. p. 210.]

Rita Levi-Montalcini, Nobel em Medicina e Fisiologia de 1986, confessou sua paixo por Johan Sebastian Bach.[footnoteRef:66] [66: Ibid. p. 222.]

Dorothy Crowfoot Hodgkin, Nobel em Qumica em 1964, aproveitava a pausa do almoo, para freqentar os mini-shows que o cientista John Desmond Bernal improvisava no seu laboratrio em Londres. Bernal, pioneiro na utilizao dos raios-X no estudo de cristais biolgicos, principalmente as protenas, era um sujeito to culto, que era capaz de discorrer, ao mesmo tempo, sobre arquitetura romnica em cidades da Frana, sobre a arte de Leonardo da Vinci, e sobre poesia e pintura.[footnoteRef:67] [67: Ibid. p. 243-244.]

Para encerrar a lista das mulheres, mencionemos tambm Gertrude B. Elion, Nobel em Bioqumica de 1988, que no perdia uma pera do Metropolitan de New York.[footnoteRef:68] [68: Ibid. p. 296, p. 312 .]

Outras personalidades mostraram igual interesse pela Esttica e pela Arte. Demos a palavra ao cientista francs, Louis Leprince-Ringuiet:

- evidente que muitas descobertas cientficas foram ao de homens dotados de sensibilidade artstica. Pasteur era pintor antes de ser cientista. O fsico Robert Oppenheimer tambm era um artista. Muitos exprimiam e exprimem esta sensibilidade atravs da msica. Einstein era um bom violinista e tinha alma de msico; o fsico Niels Bohr falava da sublime musicalidade no domnio do pensamento.[footnoteRef:69] [69: Louis Leprince-Ringuiet. F de Fsico. O Testamento de um Cientista.Coimbra, Grfica de Coimbra, 1998. p. 78-79; Abraham Pais diz que tanto Einstein como Max Born sentiam-se fortemente atrados pelas artes visuais. Einstein Viveu Aqui. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1997. p.. 40. O mesmo cientista reproduz uma reportagem da revista Time (abril de 1938) na qual se l: noite vai a concertos sempre que possvel, e esporadicamente ao cinema. Ibidem. p. 250. ]

E. S. Luria, Prmio Nobel de Medicina de 1969, em sua Autobiografia de um Homem de Cincia, apresenta-se como um apreciador de poesia, msica, pintura e escultura. Quanto ao ltimo gnero de arte, chegou at a pratic-la.[footnoteRef:70] Conseguiu, em plena carreira de cientista, arranjar tempo para dirigir um Seminrio sobre Literatura para seus alunos. O Seminrio ocorria aos domingos. [footnoteRef:71] [70: S. E. Luria. Autobiografia de un Hombre de Ciencia. Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1986.] [71: Ibid. p. 240-241.]

Luria afirmou que o domnio do intuitivo, ou seja, o das emoes tanto artsticas como sociais, entre as quais citava o amor, o prazer, a ira, o dio, possua igual importncia que a Cincia. Acrescentava que o prazer esttico o levou, certa vez, a experimentar uma espcie de xtase diante da pintura A Anunciao de Fra Angelico. Segundo o cientista, tal xtase condensava, no fundo, dezenas de elementos no analisveis do ponto de vista racional. Tais elementos estavam presentes na sua resposta emotiva pintura. Luria opunha-se aos que julgavam irracionais tais sentimentos estticos, e sustentava que o racional, o no-racional e o irracional fazem parte de nossos processos mentais, e que no devemos admirar-nos de que poderosas emoes entram em conflito com nossa conduta racional.[footnoteRef:72] Consagrou vrias pginas de sua autobiografia ao papel da imaginao nas descobertas cientficas. A certa altura, questionou-se: No ser a prpria cincia uma arte? Contribuir a imaginao para a obra de um cientista, como ingrediente necessrio a todo cientista, do mesmo modo que a imaginao contribui para a realizao de pinturas, composies musicais e poemas? [72: Ibid. p. 243-244.]

Luria sempre acreditou que o cientista trabalha semelhana de uma criana que brinca. A criana, ao brincar, aprende. Ora, prossegue Luria, o cientista faz o mesmo que a criana. Inventa explicaes e escolhe entre estas, no s as que apresentam maior verossimilhana, mas tambm as que se impem por sua qualidade esttica. Refere que, para sua descoberta cientfica especfica (que lhe permitiu ganhar o Nobel) foi decisivo ter observado uma mquina de caa-nqueis em ao. A observao da mquina levou-o a intuir a distribuio dos mutantes nas batrias, descoberta que acabou sendo decisiva para a biologia molecular. O mesmo Luria insistiu sobre a influncia da Esttica nos resultados cientficos.[footnoteRef:73] [73: Ibid. p. 252-256.]

Adiciono s informaes, at aqui citadas, outras que colhi principalmente em duas coletneas de John Galbraith Simmons: a) Os Cem Maiores Cientistas da Histria; e b) Mdicos e Descobridores. Vidas que Criaram a Medicina de Hoje.[footnoteRef:74] [74: John Simmons. Os Cem Maiores Cientistas da Histria. Traduo de Antnio Canavarro Pereira. Rio de Janeiro, DIFEL, 2002; Mdicos e Descobridores. Vidas que Criaram a Medicina de Hoje. Rio de Janeiro, Editora Record, 2004.]

Verificamos que Claude Bernard, antes de se tornar o Criador da Fisiologia Moderna, se dedicou ao teatro, tendo escrito uma pea que foi encenada na cidade de Lyon.[footnoteRef:75] [75: Ibid.p. 99.]

Max Planck (1858-1947; Nobel de Fisica de 1919) era excelente msico.[footnoteRef:76] [76: Ibid. p. 168.]

Max Born (1882-1870; Nobel de Fsica de 1954), tambm era msico. Alm disso, tinha tal sensibilidade literria que achava tempo para decorar poemas.[footnoteRef:77] [77: Ibid. p. 204.]

Charles Sherrington (1857-1952; Nobel de Medicina e Fisiologia de 1932) foi alm de Born: ele prprio comps poemas, que reuniu num livro intitulado A Avaliao de Brabantio. [footnoteRef:78] [78: John Simmons. Os Cem Maiores Cientistas da Histria. p. 378.]

Sobre Jacques Monod, o biologista francs autor de O Acaso e a Necessidade, temos o depoimento de Jean Bernard:

- O tempo foi o assunto das minhas ltimas entrevistas com Jacques Monod. Ia v-lo ao Campo de Marte aos domingos de manh. Chegava sempre um pouco adiantado. Ficava um bom momento no patamar da escadaria, encantado com o seu violoncelo, com o concerto que ela dava a si prprio, ignorando a minha presena. Eu esperava pelo fim do movimento antes de tocar a campainha para entrar.[footnoteRef:79] [79: Jean Bernard.Ento e a Alma? Traduo de Emilio Campos Lima. Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, 1988. p. 157-158.]

A este ramalhete informativo acrescentemos outros quatro cientistas:

a) Ilya Prigogine (Nobel em Qumica de 1977); de nacionalidade russa, teve em sua ptria notvel educao musical, acabando por tornar-se um perfeito pianista. Sobre a importncia da arte, anotou: A arte , essencialmente, a expresso de algo fundamental na natureza. Nela vemos irreversibilidade e imprevisibilidade (...) duas caractersticas que gostaramos de emprestar tanto ao universo quanto a uma obra de arte.[footnoteRef:80] [80: Citado por Rene Weber. Dilogos com Cientistas e Sbios. So Paulo, Crculo do Livro,1986. p .224; p. 237.]

b) Jean-Pierre Changeux: professor honorrio do Collge de France, autor de um best-seller: O Homem Neuronal, um dos maiores pesquisadores na rea da Neurobiologia; este confessa-se um apaixonado por Arte. Escreveu: Compreender a cincia requer um esforo! Compreender um quadro igualmente. A razo que a obra de arte muito mais do que um simples objeto de prazer. Ela possui uma multiplicidade potencial de sentidos, um poder evocador, ao qual s se tem acesso por uma ateno continuada[footnoteRef:81]. [81: Jean-Pierre Changeux. O Verdadeiro, o Belo e o Bem. Uma Abordagem Neuronal. Traduo de Edmir Missio. Rio de Janeiro, Editora Civilizao Brasileira, 2013. p.161. ]

Changeux inventou, at, um novo gnero de Esttica: a Neuroesttica, que ele expe no seu livro O Verdadeiro, o Belo e o Bem, editado recentemente no Brasil.[footnoteRef:82] [82: Ibid. p. 97-173.]

c) Stephen Jay Gould, bilogo evolucionista americano, auto-retratou-se nas seguintes linhas: Nas artes visuais sou um desastre. Mas sou um apreciador delas, aprecio-as com os olhos. Fao partes daquelas pessoas que nem sequer conseguem traar uma linha reta numa folha de papel. A nica arte para a qual contribuo com algo pessoal a msica em particular o canto.Toco alguns instrumentos,. Mas no toco bem. A minha segunda atividade nessa rea realmente o canto; se eu tivesse uma voz melhor, talvez o canto teria sido o meu sonho.[footnoteRef:83] [83: Lewis Wolpert e Alison Richards. Uma Paixo pela Cincia. Lisboa, Edies Salamandra, 1992. p. 140.]

d) Richard Gregory, neuropsiclogo, revelou: Gosto bastante de pintura, mas prefiro a msica.[footnoteRef:84] [84: Ibid. p. 178. ]

Podemos rematar nossa seleo, mencionando, mesmo que sumariamente, outros nove representantes das cincias da sade que no sculo XIX e, em especial, no sculo XX, distinguiram-se por sua sensibilidade esttica. So os seguintes:

1. Ren Laennec (1781-1826), inventor do estetocpio: excelente flautista;[footnoteRef:85] [85: John Galbraith Simmons. Mdicos e Descobridores. Rio de Janeiro, Editora Record, 2004. p.93-97. ]

2. Jacob Henle (1809-1885), anatomista e patologista de renome: notvel violinista [footnoteRef:86]; [86: Idem, ibid. p. 117-121.]

3. Joseph Lister (1827-1912), pioneiro da anti-sepsia e da moderna cirurgia (que chegou a graduar-se em artes); Lister foi o homem que obrigou os mdicos a usarem jalecos e luvas [footnoteRef:87]; [87: John Galbraith Simmons. Ibid. p.129-134. ]

4. Santiago Ramn y Cajal (1852-1934), o descobridor dos neurnios, pai da neuroanatomia: pensou inicialmente em ser pintor. Cajal escrevia textos cientficos com sabor de poemas. Uma amostra disso sua Ode ao Protoplasma [footnoteRef:88]; [88: Idem. Ibid. p. 145-152. A Ode ao Protoplasma de Cajal est reproduzida no livro de Nicolas Witkowski: Uma Histria Sentimental das Cincias. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004.p. 163-164]

5. Oswald Avery (1877-1955), um dos primeiros cientistas a pesquisar os cidos nuclicos, foi brilhante aquarelista, e tocava corneta;[footnoteRef:89] [89: John Galbraith Simmons. Ibid. p. 145-148.]

6. John Franklin Enders (1897-1985; Nobel de Medicina de 1954), um dos pais da Virologia, apreciava literatura em geral. Adorava a poesia de T.S. Eliot [footnoteRef:90]; [90: Ibid. p.321-325.]

7. Godfrey Newbold Hounsfield (engenheiro ingls, nascido em 1919; Prmio Nobel de 1975), que revolucionou o diagnstico por imagens com a inveno da Tomografia Computorizada era pianista, e se dedicava msica clssica;[footnoteRef:91] [91: Idem, ibid. p.381-385; cf. Jean Bernard. Esperanas e Sabedoria da Medicina. So Paulo, Editora da UNESP, 1998. p..29.]

8. Harold Varmus (nasc. em 1939; Prmio Nobel de Medicina de 1989), autor de descobertas fundamentais na Oncologia, tinha grande interesse por literatura; [footnoteRef:92]; [92: Idem, ibid.p. 423-427.]

9. Raymond Damadian (nasc. em 1936 em New York), qumico e biofsico de origem armnia que inventou a Ressonncia Magntica, ferramenta diagnstica indispensvel para a deteco de tumores, utilizada a partir de 1990 em todos os hospitais importantes do mundo, comeou a tocar violino aos 8 anos, e por algum tempo vacilou entre a carreira de msico, e o estudo da matemtica e da medicina.[footnoteRef:93] [93: Idem, ibid.p.429-434; cf. Jean Bernard. Esperanas e Sabedoria da Medicina.p. 30. ]

10. A tais cientistas, por que no associar dois representantes de nossa prata da casa, ambos dotados de excepcional sensibilidade esttica: o primeiro contista, e o segundo cronista. Referimo-nos a Ivan Izquierdo, neurocientista, que dirige o Centro de Memria do Instituto do Crebro da PUCRS, e a Jos J. Camargo, cirurgio torcico, Diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre e docente da UFCSPA, autor do primeiro transplante de pulmo na Amrica Latina (1989). Ambos so personalidades mdicas conhecidas por seu interesse, no apenas por literatura; eles so apreciadores das artes em geral, e verdadeiros humanistas.

IV. Comentrios Finais sobre os Limites das Cincias e a Necessidade de os cientistas se manterem abertos a outras Formas de Conhecimento Humano.

Ao apresentar-lhes esta breve histria das relaes entre cientistas e experincia esttica, pensamos que vocs poderiam sentir-se incentivados a buscar uma sntese pessoal no exerccio das cincias da sade. verdade que, na prtica, nem tudo ouro sobre azul! No obstante, em nossa opinio, existe a possibilidade concreta de uma sntese.

Em busca de maior equilbrio nos comentrios que desejamos fazer sobre esse tema - optamos por valorizar um autor internacionalmente conhecido, Jean Hamburger, criador da nefrologia e autor do conceito de reanimao mdica. Hamburger foi, tambm, o chefe da equipe mdica que realizou o primeiro enxerto de rins no mundo.

Esse autor fornece-nos uma base de reflexo slida sobre como estabelecer uma colaborao eficiente entre as cincias exatas e as cincias humanas.

- Os mtodos cientficos diz ele - nada tm a ver com os das outras verdades humanas. A verdade do belo e do feio, a verdade do bem e do mal, as verdades religiosas ou metafsicas seguem caminhos diferentes. No h nada mais disparatado do que querer escrever msica com as regras do sbio, ou fundar uma moral com os resultados da cincia.[footnoteRef:94] [94: Jean Hamburger. A Razo e a Paixo. Rio de Janeiro, Editora Francisco Alves, 1992. p. 10.(Os negritos so nossos), Na mesma linha de pensamento , ver: Fritjof Capra. Pertencendo ao Universo. Traduo de Maria de Lourdes Eichenberger e Newton Roberrval Eichenberg. So Paulo,Editora Cultrix, 1998. p.13; p. 133; p. 137-139; p.154. ]

Alis, Albert Einstein, numa entrevista sobre educao ao New York Times de 05 de outubro de 1952, chamava a ateno para tal ponto:

- No suficiente ensinar a um homem uma especialidade. Atravs dela ele pode tornar-se uma espcie de mquina til, mas no uma personalidade desenvolvida harmoniosamente. (O estudante) deve adquirir uma compreenso e um sentimento vvido dos valores. Deve adquirir um sentido ntido do belo e do moralmente bom. De outra forma, parecer-se- mais a um co bem treinado. Essas coisas preciosas so transmitidas gerao mais jovem atravs do contato pessoal com aqueles que ensinam, no atravs de livros. isso que, acima de tudo, constitui e preserva a cultura.[footnoteRef:95] [95: Trecho da entrevista citado por Abraham Pais: Einstein Viveu Aqui. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1997. p. 271.(Os negritos so nossos).]

Hamburger recorda que as tentaes de valorizao unilateral das cincias pertenciam ao sculo XIX, tendo nascido de um desejo legtimo do esprito humano, o desejo de unidade.

Acontece que a evoluo das cincias confirmou que a unidade existe apenas na nossa mente, e no nos vrios caminhos que constituem a diversidade dos campos humanos:

- Sabemos (...) que a descoberta freqentemente a recusa do passado, ou, mais exatamente, o resultado de um olhar diferente sobre os mesmos objetos. Nos sculos passados predominou a idia de que as foras da vida possuam um mistrio que lhes era prprio.[footnoteRef:96] [96: Ibid. p. 11.]

At data recente, todas as metodologias investigativas supunham que olhssemos o objeto como independente do observador. Ora precisamente isso que est em discusso hoje. No certo que exista um objeto invarivel, indiferente nossa observao. O objeto esta a constatao cientfica da atualidade - pode ser modificado pela observao:

- A suposta unidade, que reinava entre as diversas disciplinas da cincia no provada por constataes ditas objetivas. A nica unidade de que se tem certeza a de que um s rgo, o crebro humano, autor de todas essas disciplinas.[footnoteRef:97] [97: Ibid. p. 13-14.]

Hamburger recorre a Gaston Bachelard, o qual sustentava que existia uma primeira descontinuidade entre o senso comum e as teorias cientficas, e outra segunda descontinuidade entre as mltiplas teorias cientficas que se sucedem na histria.[footnoteRef:98] [98: Ibid. p. 15.]

No passado, o postulado necessrio da pesquisa cientfica consistia na afirmao de uma realidade objetiva, independente dos homens. Este postulado s pode ser aceito hoje se nos comprometer-nos a no esquecer que - entre o mundo e ns - se interpem nossa inteligncia e suas fraquezas.

Prossegue Hamburger:

- (...) o conhecimento cientfico est cercado de fronteiras intransponveis e o homem de hoje sabe que v a sua esperana de conhecer a essncia do mundo no qual vive. O homem pode ter a iluso de sair de si mesmo, mas isso iluso.[footnoteRef:99] [99: Ibid. p. 16.]

Segundo esse cientista, tomar conscincia dessa iluso abrir-se a outros modos (ou mtodos) de compreenso alm do cientfico.

Se quisermos definir tais modos diferentes de conhecimento, teremos de admitir que eles fortalecem os impulsos criadores e passionais que nascem de outras capacidades do esprito humano, e que compensam os limites frustrantes do saber. Afinal de contas, o saber cientfico impotente para responder s questes bsicas da humanidade. Por exemplo: qual o sentido da vida?

Resolvemos Inserir aqui a opinio de outros cientistas, na esperana que isso fortalea o esprito autocrtico de todos ns, evitando que nos apressemos a imaginar que a cincia onisciente. importante evitar o engano do passado, quando os pensadores acreditavam na oniscincia exclusiva do Humanismo!

Gostaramos de dar aos acadmicos das cincias da sade uma sugesto: no se apressem em professar convices definitivas no tocante s questes fundamentais da existncia.

Se vocs tiverem convices religiosas, tudo bem. Se no as tiverem, adiem a deciso de resolver tais questes, e nunca apelem para a tcnica radical de Alexandre Magno que consistia em cortar os ns grdios a golpes de espada...

Peter Medawar (Nobel de Medicina de 1960) acautelou-nos, no seu livro Os Limites da Cincia (1984), a respeito das perguntas que ele denomina transcendentais por estarem ligadas religio e metafsica. Segundo Medawar, tais perguntas no podem ser respondidas pelas cincias:

- Refiro-me escreveu ele - a perguntas do tipo: Como tudo comeou? Qual o propsito de estarmos aqui? Qual o sentido da vida?[footnoteRef:100] [100: Citado por Alister McGrath in: Verdadeiros Cientistas, F Verdadeira.Viosa, Editora Ultimato, 2106. p. 20; p. 12; ler nesse mesmo livr o que escrevem a astrnoma Jenifer Wiseman: p. 207-208; e o paleobiologista evolucionrio Simon Conway Morris, especialmente p. 265-253-261.]

Aderem opinio de Medawar numerosos cientistas, das mais variadas reas. Por razes de brevidade, citaremos apenas alguns. O primeiro deles o astrofsico canadense contemporneo Hubert Reeves, o qual declarou:

- A tendncia em considerar os cientistas como gurus detentores de verdades, e de os convidar a sentarem-se nas cadeiras atualmente inocupadas das nossas catedrais muitas vezes grande. O enfraquecimento da aura das religies tradicionais deixou um grande vazio ideolgico.

Reeves complementa:

- Uma outra mensagem que importa fazer passar a seguinte: a cincia incapaz de responder s questes fundamentais da existncia: Ser que Deus existe? Qual o sentido de nossa existncia? O que existir depois da morte? Cabe a cada um procurar as respostas que lhe convenham, sem se apoiar nas muletas de certezas impostas. Tornar-se adulto aprender a viver na dvida e a desenvolver, atravs de experincias, sua prpria filosofia, sua prpria moral. Evitar o prt-a-penser.[footnoteRef:101] [101: Hubert Reeves. ntimas Convices. Lisboa, Instituto Piaget, 1997. p. 57.]

Segundo ainda Reeves necessrio:

- aprender a viver praticando, ao mesmo tempo, a cincia e a poesia; precisamos aprender a manter os dois olhos abertos em simultneo.[footnoteRef:102] [102: Citado por Michel Cazenave. A Cincia e a Alma do Mundo. Traduo de Manuela Guiimares. Lisboa, Instituto Piaget,1996. p. 12; ver Tb: Do Caos Inteligncia Artificial .p. 132.. ]

Outro cientista, o j citado paleobiologista evolucionrio Stephen Jay Gould, apresenta idias semelhantes s de Reeves:

- A maioria das perguntas mais importantes, mais fascinantes em que voc consegue pensar so perguntas que no sabemos como responder (...). Se voc me perguntasse: Qual a origem primordial do universo?, no acho que tal pergunta possa ser abordada.(...) no acho que nossos crebros estejam equipados para pensar em tais coisas.[footnoteRef:103] [103: Entrevista de Staphen Jay Gould a Wim Kayzer. Maravilhosa Obra do Acaso. p.90.]

Disso infere-se a necessidade de reconhecermos os limites racionais da verdade e, principalmente a necessidade de estarmos dispostos a admitir outros tipos de verdades humanas que, aos olhos das cincias, poderiam parecer irracionais, mas que expurgam a condio humana de seu absurdo fundamental.[footnoteRef:104] [104: Ibid. p. 17.]

Hamburger explica:

- Em relao aos objetos estudados pela cincia preciso renunciar a uma realidade absoluta (...) pois o que chamamos realidade depende das condies de nossa abordagem. Nossos hbitos instintivos nos preparam mal para a renncia, e todavia exigem o progresso de todos os ramos da atividade cientfica, da fsica medicina.[footnoteRef:105] [105: Ibid. p. 53.]

Cremos que, nesta altura, seja vivel esclarecer um pouco mais a posio de Jean Hamburger: ela consiste em conciliar as descobertas das cincias com outras descobertas que no dependem de medidas e comprovaes fsicas. So descobertas que se situam noutras reas do crebro humano, onde o sentimento, a emoo, a poesia, e at mesmo (conforme outros autores), a experincia mstica, ocorrem:

- Se todos os homens desaparecessem diz Hamburger - a terra, as montanhas, os oceanos, as rvores, o sol poderiam subsistir. Tal postulado de objetividade encerra em si indcios slidos, e todos os solipsismos, que tentaram neg-lo, no chegaram a parte alguma. Contudo, se os homens desaparecessem, aquilo a que chamamos arte, poesia, teatro, e tambm cincias, desapareceriam num s instante. Sendo a natureza considerada potica, no ser razovel pensar que essa mesma poesia exige algum para receb-la, extra-la, express-la, e talvez partilh-la com outros seres? Na verdade, a natureza tem apenas de potico o sentimento que nos inspira, nada existindo de absoluto ou de objetivo nesse sentimento. A questo saber se essa mesma restrio no se aplica ao nosso questionamento sobre o significado do mundo.[footnoteRef:106] [106: A Razo e a Paixo.p. 71.Jean Bernard escreve: Os telogos, os filsofos modernos, cederam terreno e, simultaneramente fortaleceram sua posio. Aceitam os dados estabelecidos pelos neurobilogos, mas recusam as concluses consideradas simplistas, dos mesmos neurobilogos. Ento e a Alma. p. 52. Bernard cita F. Qur: A existncia e o pensamento implicam uma integrao pessoal das virtualidades orgnicas que condicionam uma e outro e no podem reduzir-se a tais condicionamentos, nem to-pouco desprez-los. Ibid. p.52-53.]

O Professor portugus Antnio Manuel de S Nunes dos Santos, docente da cadeira de Reatores Qumicos e Transferncia de Massa, da Universidade Nova de Lisboa, aps referir-se queles que ele denominou cientistas-poetas, como Goethe, Davy, Maxwell e o portugus Antnio Gedeo, lembrou a publicao recente em Londres de uma coletnea de poemas sobre a Cincia, que inclui mais de 100 textos. [footnoteRef:107] Segundo o professor, tal coletnea demonstra como os poetas estiveram grandemente ligados s cincias.[footnoteRef:108] Destaca, em especial, um poema de W. Whiteford, intitulado O tomo segundo Born, e um outro poema de William Bronk: Como o indeterminado nos determina cujos versos finais so os seguintes: [107: O ttulo da coletnea em ingls : Poems of Science. Editada por John Heath-Stubbs e Phillips Salman, Editora Penguin, 1984.] [108: Pensar a Cincia. Lisboa, Editora Gradiva, 1988. p.30. ]

Resta-nos maravilhar

e ponderar a nossa particularidade, e ponderar o seguinte:

somos duas incgnitas numa s equao,

ns e nosso mundo, funes um do outro. A viso

interior e v-se a si mesma, a audio, o tato,

so exteriores. [footnoteRef:109] [109: Traduo de Antnio Manuel de S Nunes dos Santos; poema citado em: Pensar a Cincia. Lisboa, Editora Gradiva, 1988. p. 34.]

O Professor portugus lembra:

- Cresce-se na noo de que a realidade definida prela cincia, e -se habituado a crer que somente o conhecimento quantitativo exato. Ao ler os poemas da coletnea, todavia, vem at ns a verdade potica, que no se transmite por forma quantitativa, mas na visualizao e sensibilizao de uma nova realidade, conveno que varia de poca para poca, e determinada pela forma total de vida.[footnoteRef:110] [110: Ibid. p. 30-31.]

De sua parte, o geneticista Francis Collins, ex-Diretor do Projeto Genoma, bancado pelo Governo Americano, cita uma obra de J. Polkinghorne, criticando os que pretendiam reduzir o mistrio da msica (...) a vibraes no ar chocando-se contra os tmpanos e estimulando correntes neurais no crebro:

- Toda a srie de experincias subjetivas de perceber uma mancha de rosa at ser cativado por uma execuo da Missa em Si Menor (de Bach) e no encontro mstico com a realidade indescritvel do nico, todas essas experincias verdadeiramente humanas acham-se no centro de nosso encontro com a realidade, e no podem ser descartadas como a frivolidade de um fenmeno secundrio na superfcie de um Universo cuja real natureza impessoal e sem vida.[footnoteRef:111] [111: Francis S. Collins. A Linguagem de Deus. Traduo de Giorgio Cappelli. So Paulo, Editora Gente, 2007. O ttulo do livro de J. Polkinghorne : Belief in God in na Age of Science. New Haven, Yale University Press, 1998. p.18-19. Simon Conway Morris, docente de Paleobiologia Evolucionria da Universidade de Cambridge, escreve: No que diz respeito conscincia, por maior que seja a convergncia que identifiquemos nos sistemas sensoriais e qualquer que seja a estrutura do crebro, no avanamos um milmetro na explicao a respeito de como meu mingau neural cativado pelos sons da msica Parsifal de Wagner, pela viso de uma lua nova, ou de como traz lembrana o gosto da bolacha madeleine. Citado em: Verdadeiros Cientistas, F Verdadeira. (Org. de R.J. Berry).Viosa, Editora Ultimato, 2016. p.265. Morris, ao falar na bolacha Madeleine alude a um conhecido souvenir de Marcel Proust. ]

Vrios cientistas propem comparaes entre a atividade dos cientistas e a dos artistas. Reproduzo trs depoimentos sobre o assunto.

O primeiro de Jean Dausset:

- H um debate recorrente, obrigatrio em todas as boas obras: a comparao entre o artista e o investigador. Como o artista, o verdadeiro investigador sonha. Franois Jacob fala do sonho interior. Mais prosaicamente, direi que ele rumina. O cientista no deixa, quando acordado ou sonolento ou por vezes mesmo a dormir, de virar e revirar na sua cabea, consciente ou inconscientemente, os dados de um problema; procurando, por exemplo, integrar num conjunto coerente um resultado recente, ou imaginar o protocolo de uma prxima experincia crucial para confirmar uma hiptese. O processo longo, no chegando sempre ao fim, mas por vezes a soluo surge como um claro, e o investigador espantado interroga-se sobre a razo de no ter pensado nela mais cedo!

O artista, por sua vez, deve tambm enfrentar estas descobertas. Talvez Magritte tenha ruminado durante muito tempo antes de surgir no seu esprito o smbolo do cachimbo, com o ttulo: Isto no um cachimbo

O ruminar no especfico do artista e do pesquisador. Todo o empreendedor analisa na sua mente as estratgias possveis.

Que tm ento de particular os artistas e os investigadores?

Em geral, ns os confrontamos, argumentando que os investigadores no so e no sero jamais seno descobridores de fatos preexistentes, como Cristvo Colombo ao descobrir a Amrica. Ao passo que os artistas so criadores. De fato, preciso ultrapassar esta oposio, pois pesquisadores e artistas so ambos reveladores. Ultrapassam os conhecimentos da poca. Vem aquilo que os contemporneos no vem. Franqueiam as fronteiras at ento inviolveis

So cada um deles no seu domnio descritores de fatos - virtuais para os artistas; fatos reais para os investigadores; o seu pensamento e a sua imaginao devem ser iguais em fora e riqueza.[footnoteRef:112] [112: Jean Dausset. O Selo da Individualidade. A Grande Aventura do HLA. Liaboa, Instituto Piaget, 2000. p. 66.]

O segundo depoimento de Jean Bernard, que amplia as observaes de Jean Dausset:

As abordagens sucessivas so as mesmas. Primeiro, a inspirao: A imaginao a mais cientfica das faculdades, diz Baudelaire. E Einstein: A imaginao o verdadeiro terreno de germinao cientfica.

O poeta comove-se com uma flor, um amor, um sofrimento; faz obra de poeta e cria o seu poema; depois faz trabalho de escritor e corrige, retifica, ajusta, d a sua forma aos vrios elementos do poema.

O sbio observa um fato fortuito, a queda de uma ma, a marcha de uma cultura de micrbios. Ele constri, a partir desse fato fortuito, uma hiptese nova. Verificar depois essa hiptese pacientemente, atravs de numerosas experincias. H assim traos comuns. Em ambos os casos sucedem-se o acontecimento exterior, o nascimento de um poema ou do conceito, a escrita e as verificaes.

(...)

O escritor, o artista inventam. O homem de cincia descobre. A Amrica e a funo glicognica do fgado existiam antes de Cristvo Colombo e Claude Bernard. A Ilada, O Vermelho e o Negro, no existiam antes de Homero e Stendhal.(...)

O mais frequente o sbio descobrir e o artista inventar.

(...)

A obra de cincia exige a cpia, a obra de arte recusa a cpia. A frmula de Ren Thom dificilmente pode ser contraditada. As obras em questo so obras de alto nvel.[footnoteRef:113] [113: Jean Bernard. E Ento a Alma? Trad. de Emilio Campos Lima. Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, 1988. p.112-113-114.]

O terceiro depoimento sobre o tema do Professor de Biologia Molecular da Universidade da Califrnia, em Berkeley, Gunther Stent:

- Acho que h uma certa semelhana (entre a arte e a cincia).Mas tambm h uma diferena. O artista debrua-se sobre o mundo interior (...) das emoes, enquanto os cientistas se debruam sobre o mundo exterior dos fenmenos fsicos. Mas julgo que a semelhana reside no ato da descoberta. . No creio que a arte esteja s interessada na diverso. Assemelha-se cincia no aspecto em que se empenha em descobrir a verdade. O artista diligencia a verdade acerca das emoes, acerca do mundo interior. No uma questo de testes ou provas, mas de validade. Isto de a experincia parecer vlida para si ou no. um juzo subjetivo. Se lermos Dostoievsky, que desperta certas intuies, ento isso uma coisa que se sente ou no se sente. No h qualquer maneira de o provar, e de fato no existe sequer necessidade nenhuma de o provar.[footnoteRef:114] [114: Entrevista a: Lewis Wolpert e Alison Richards, em: Uma Paixo pela Cincia. Lisboa, Edies Salamandra, 1992. p.. 110.]

luz de tais reflexes, pode-se- entender melhor a frase de Einstein: O que incompreensvel (no universo) que tudo seja compreensvel.[footnoteRef:115] [115: Cit. por Jean Hamburger. A Razo e a Paixo .p.18. O autor refere-se ao livro de Albert Einstein: Comment je vois le monde.Paris, Flammarion, 1934.]

Pode-se, tambm, compreender melhor a declarao pasmosamente lcida de Max Planck, que pessoalmente considero um dos pensamentos mais altos que j foram formulados na histria da humanidade:

- A cincia no pode resolver o ltimo mistrio da natureza. E isto porque, em ltima anlise, ns mesmos fazemos parte do mistrio que tentamos resolver.[footnoteRef:116] [116: Citao de Jean Bernard. Esperanas e Sabedoria da Medicina. Traduo de Roberto Leal Ferreira. So Paulo, Fundao Editora da UNESP, 1998. p 116; cf. tb. Rene Weber. Dilogos com Cientistas e Sbios. Traduo de Gilson Csar Cardoso de Sousa. So Paulo, Crculo do Livro, 1986. p. 25. Sobre as teorias da Fsica Quntica de Max Planck, e de suas derivaes cientficas, ler o que Jean Bernard escreve em seu livro nas pginas: 43-46.]

Senhores Professores e alunos desta Universidade, e demais ouvintes:

nossa inteno, ao apresentar-lhes tais fatos e depoimentos, foi incentiv-los a dar uma ateno redobrada aos aspectos humansticos que a profisso de cientistas da sade implica.

Abstivemo-nos de desenvolver outros aspectos - alm dos relacionados diretamente com a Esttica.

guisa de concluso, gostaramos de deixar-lhes trs lembretes deste encontro:

o primeiro refere-se a um fragmento potico que deparamos ao ler a obra A Experincia Grega do helenista M. C. Bowra. Trata-se de um fragmento do poeta lrico da Antiguidade Grega, Pndaro (518-438 a.C.).

Eis seus versos:

- A vida humana apenas um dia. O que o homem?

O que no o homem? A sombra dum sonho

o homem, mas quando Deus derrama um pouco de luz,

esta ilumina o Mundo,

e a vida doce como o mel.

( M. C. Bowra em A Experincia Grega .Verso de Maria Isabel Belchior. Lisboa, Editora Arcdia Ltda., 1967. p. 101-102).

O segundo lembrete diz respeito ao cientista, que foi vrias vezes citado nesta palestra, Richard Feynman. Ele ilustra uma realidade psicolgica: diante da morte iminente, os cientistas esquecem a cincia, e pem-se a pensar - e sobretudo a sentir - como pensam e sentem o comum das pessoas. Transcrevemos o depoimento de seu colega e amigo, Leonard Mlodinow sobre quando o cientista estava em estado terminal, depois de ter passado por quatro intervenes cirrgicas:

- Voc lamenta alguma coisa?

Feynman no me jogou na cara que aquilo no era da minha conta. Permaneceu parado por um momento. Fiquei imaginando se ele no ia se abrir a respeito de sua frustrao com a Cromodinmica Quntica. Mas ento seus olhos se encheram de dgua.

- claro disse ele. Lamento o fato de que no vou viver para ver minha filha Michle crescer.[footnoteRef:117] [117: Leonard Mlodinow.O Arco-ris de Feynman.Traduo de Cludio Figueiredo. Rio de Janeiro, Editora Sextante, 2005. p. 156-157. ]

Na realidade, o cientista viveu o bastante para ver sua filha chegar idade adulta. Feynman morreu em fevereiro de 1988.[footnoteRef:118] [118: Ibid. p. 166-167.]

O terceiro lembrete outro poema, citado por David E. Brody e Arnold R. Brody no livro As Sete Maiores Descobertas Cientficas da Histria. Selecionamos esse poema por ach-lo evocativo de um episdio da vida de Jesus. Certa vez os discpulos se aproximaram do Mestre, e perguntaram-lhe: Quem o maior no reino dos cus? O Mestre, chamando uma criana, colocou-a no meio deles, e disse Em verdade vos digo: se no vos converterdes e vos tornardes como crianas, de modo algum entrareis no reino dos cus. (Evangelho de Mateus, cap. 28, versculos 1-3).

Eis os versos do poeta John Kuzma:

- s vezes eu vejo

com a mxima clareza,

quando estou sozinho e recordo

o sol da tarde depois da escola,

o mundo atravs dos olhos de uma criana.

Ento posso ver

um mundo ainda por ser

aqui e agora ao meu alcance,

como nas manhs de sbado quando acordo e vejo

o mundo atravs dos olhos de uma criana.

Quando eu ficar velho

no inverno e no crepsculo

lembrarei a primavera

e a sabedoria que aprendi

daquela viso de outrora

do mundo atravs dos olhos de uma criana.

(O ttulo do poema em ingls : The world through the eyes of a child (1996).Foi transcrito no livro de David E. Brody e de Arnold R. Brody: As Sete Maiores Descobertas Cientficas da Histria. Traduo de Laura Teixeira Motta. So Paulo, Companhia das Letras, 2007. p. 156.

BIBLIOGRAFIA.

(Aos que desejarem refazer, ao menos parcialmente, o roteiro de nossas leituras sobre o tema, propomos a seguinte bibliografia condensada, alm da que foi citada nas notas de rodap).

1. Jean Bernard. Esperanas e Sabedoria da Medicina. Traduo de Roberto Leal Ferreira. So Paulo, Fundao Editora da UNESP, 1998.

Ler, em especial: o Captulo 6: tica da Biologia e da Medicina no sculo XXI; O Conhecimento; tica e Dinheiro; a Pessoa. (p.169-187); e o Captulo 7: Um dia na Vida de Georges, mdico em 2080. (p.189-194).

2. Idem: Ento e a Alma? Traduo de Emilio Campos Lima. Lisboa, Europa-Amrica, 1988.

3. Jean Hamburger. A Razo e a Paixo. Reflexo sobre os Limites do Conhecimento. Traduo de Paula Morgado Dias Lopes Filipeli. Rio de Janeiro, Editora Francisco Alves, 1992.

4. Jean-Pierre Changeux. Razo e Prazer. Do Crebro ao Artista. Traduo de Sylvie Cnappe. Lisboa, Instituto Piaget, 1997.

5. Idem. A Verdade e o Crebro. Trad. de Jorge Pinheiro. Lisboa, Instituto Piaget, 2003.

6. Idem. O Verdadeiro, o Belo e o Bem. Traduo de Edmir Missio. Rio de Janeiro, Editora Civilizao Brasileira, 2013.

7. Hubert Reeves. ntimas Convices. Traduo de Maria de Leiria. Lisboa, Ins tituto Piaget, 1999.

8. Leonard Mlodinov. O Arco-ris de Feynman. Traduo de Claudio Figueiredo. Rio de Janeiro, Editora Sextante, 2005.

9. Guitta Pessis-Pastenak. Do Caos Inteligncia Artificial. Quando os Cientistas se Interrogam. Traduo de Luiz Paulo Rouanet. So Paulo, Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.

10. Nuno Lobo Antunes. Sinto Muito. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.

(Nuno Lobo Antunes um neurologista infantil, o de maior reconhecimento em Portugal. No livro narra seus anos de atendimento mdico numa aldeia portuguesa, e uma dcada de trabalho em hospitais de New York, onde se especializou no tratamento de crianas com cncer. Documento de alto nvel humanstico).

11. Rene Weber: Dilogos com Cientistas e Sbios. Traduo de Gilson Csar Cardoso de Sousa. So Paulo, Crculo do Livro, 1986.

12. Wim Kayzer. Maravilhosa Obra do Acaso. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1998.

13. Lewis Wolpert e Alison Richards. Uma Paixo pela Cincia. Traduo de Paula Reis. Lisboa, Edies Salamandra, 1992.

14. Abraham Pais. Einstein Viveu Aqui. Traduo de Carolina Alfaro. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1997.

15. Idem. Os Gnios da Cincia. Traduo de Manuel Fernandes Thomaz. Lisboa, Gradiva Publicaes Ltda, 2002.

16. Constantin Von Barloewen. Livro dos Saberes. Dilogos com os Grandes Intelectuais de Nosso Tempo. So Paulo, Editora Novo Sculo, 2010.