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“O MEU LUGAR”: QUANDO A LITERATURA TRADUZIDA DEIXA DE “PERTENCER”

Davi Silva Gonçalves1

RESUMO: A difusão da tradução literária na contemporaneidade dificulta convenções questionáveis que por muito tempo categorizaram certas obras como universais ou regionalistas ao possibilitar um maior contato entre as mais diversas realidades. A tradução de John Gledson (2002) do romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum (2000), ao dilatar o hibridismo do original em uma versão traduzida que passeia por línguas e culturas, não só ilustra esta problemática como evidencia a essencialidade de se disseminar a idiossincrática experiência narrativa na região amazônica para o grande público leitor falante da língua inglesa. Tal experiência é aqui investigada não quanto ao seu pertencimento à um local específico – Amazônia, mas como passível de ser, através da tradução, introduzida e reintroduzida em diversos outros locais, que não o norte do Brasil; isto se dá porque Hatoum trata de temas que não concernem à Amazônia, mas ao mundo através da Amazônia. Tendo isto em mente, este artigo objetivou identificar de que maneira The Brothers (2002) problematiza a noção de que o “regionalismo” que permeia a obra de Hatoum de alguma forma limitaria sua narrativa ao contexto no qual originalmente esta se insere, questionando, assim, o “universalismo” de obras que aparentemente – e equivocadamente – “não pertencem a lugar algum”. É medular para esse debate pensar na importância de obras que tratem do local em detrimento daquelas que o ignoram para uma compreensão e comprometimento mais aprofundados no que concerne ao outro e, consequentemente, ao eu.

ABSTRACT: The contemporary diffusion of literary translation encumbers questionable conventions that categorise certain pieces as universal or regionalist by enabling a more intense contact between the most varied realities. John Gledson’s (2002) translation of the novel The Brothers, originally written by Milton Hatoum (2000), which enhances the hybridity of the original in a translated version that promenades along languages and cultures, not only illustrates this dilemma but also evinces the essentiality of disseminating the idiosyncratic narrative experience in the Amazonian region to the vast English speaking addressees. Such experience is here scrutinised not regarding its belongingness to a specific place – the Amazon, but as liable to be introduced and reintroduced in a myriad of places through translation – other than the North of Brazil; this is due to the fact that Hatoum brings forth topics that do not concern the Amazon, but the world through the eyes of the Amazon. Bearing that in mind, this article’s goal was to identify if and how The Brothers (2002) problematises the notion that the “regionalism” permeating Hatoum’s piece would, anyhow, restrain its narrative to the context wherein it is originally inserted, questioning, thus, the “universalism” of literary pieces that outwardly – and mistakenly – “belong to nowhere”. It is of paramount importance for this debate to think about the importance of literary productions that acknowledge the local to the detriment of those that ignore it in order to achieve a deeper level of understanding and commitment in what concerns the other and, accordingly, the self.

1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Língua Inglesa, Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Interletras, volume 3, Edição número 17,abril 2013/ setembro.2013 - p 1

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PALAVRAS-CHAVE: Hatoum, tradução literária, globalização.

KEYWORDS: Hatoum, literary translation, globalisation.

O grande vazio em mim será o meu lugar de existir; minha pobreza extrema será uma grande vontade. Tenho que me violentar até não ter nada, e precisar de tudo; quando eu precisar, então

eu terei, porque sei que é de justiça dar mais a quem pede mais, minha exigência é o meu tamanho, meu vazio é a minha medida.

Clarice Lispector

Por muitos anos a catalogação de certas obras como “literatura regional” foi tida como inocente; porém, sob uma perspectiva pós-moderna, a ideia de “regionalismo” passa a ser problematizada, uma vez que o “universal”, já não é tão palpável. A relativização do universal, nesse sentido, questiona a distinção entre o que pertence a uma região e o que pertence ao mundo; ainda mais em um momento no qual a tradução passa a atingir distintos locais em tempo reduzido. Dois Irmãos (2002), de Milton Hatoum, é uma obra que poderia ser facilmente designada como “regional” se observada superficialmente, em função do seu espaço, personagens, e, principalmente, linguagem. Entretanto, de acordo com Sylvia Colombo (2009, p. 01), “ainda que a maior parte dos textos se refira à Manaus na qual o escritor cresceu e à Manaus modernizada que hoje visita com frequência, Hatoum rejeita o rótulo de regionalista.”

Ficam evidentes no texto de Hatoum as marcas de choque entre a cultura trazida por imigrantes que se instalaram em Manaus para trabalhar e as tradições indígenas com os neocolonizadores que defendem trazer o “progresso” para a região. Dando enfoque especial às desavenças entre os gêmeos Yaqub (em busca por se tornar “moderno”) e Omar (que encara a modernidade como repulsiva), o romance metaforiza a construção de um Brasil controverso, paradoxal, que se “desenvolve” não só construindo, mas também destruindo. Hatoum parece bastante cético quanto à capacidade de o mundo neoliberal entender posturas distintas, já que a hegemonia estaria preocupada apenas com o seu apagamento e/ou institucionalização (o que for mais viável para o mercado).

Dois Irmãos, logo, nos oferece uma reflexão a respeito da obliteração de culturas marginalizadas por aqueles que visam a geração de lucro a qualquer custo, sob um tema

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relativamente comum na literatura: a relação entre irmãos. A estória se passa, sim, na Amazônia, e ela está, sim, carregada de termos naturais da região; mas estes fatores estão longe de serem capazes de rotulá-la como nada mais que “regionalista”; o próprio Hatoum considera necessário “rever certos clichês construídos a partir desse conceito”, segundo ele “Graciliano Ramos não foi regionalista, mas um escritor brasileiro e universal, assim como Machado de Assis” (COLOMBO, 2009).

Hatoum está ciente de que cada região do Brasil tem sua linguagem própria, e do quanto tal linguagem é hegemonizada ou marginalizada por um processo de hierarquização que dificulta o nosso contato com certas culturas que, aparentemente, não merecem nossa atenção (como aquelas do norte e nordeste, regiões ignoradas pela elite brasileira apesar de serem utilizadas recorrentemente para propagandas turísticas ou romantizações ecológicas). Sendo assim, não só a presença de Hatoum no âmbito literário nacional, mas também sua tradução para outros idiomas entram como um processo medular para que este quadro seja alterado e para que se conheça a Amazônia um pouco além daquilo que a mídia exibe.

É recorrente a discussão acerca da neocolonização no romance; o comércio de escravas domésticas, (o caso de Domingas, a mãe do narrador) não se trata de algo fictício, assim como não é incomum a prostituição de índias e caboclas na região, outro ponto abordado por Hatoum. Seriam essas questões regionais? Soa muito ingênuo considerar “regional” algo que é gerado exatamente pela inserção dessas comunidades no universo nacional, e é isso que Dois Irmãos (2002) refuta, se aproveitando do âmbito local para ultrapassar as barreiras do universal. Segundo Hatoum, em entrevista a Sylvia Colombo (2009), a noção de regionalismo é incoerente porque pressupõe a existência de um romance central: “‘Kafka era da periferia, Flaubert, da província, García Márquez, também do interior. O que interessa é o que o escritor faz a partir de um centro simbólico, de um chão histórico’”.

Quanto ao antagonismo entre local e universal, Todorov (1993) argumenta que estes não constituem concepções contraditórias, já que, geralmente, noções e julgamentos ditos universais partem da realidade local daqueles que os articulam; ou seja, o vasto “universal” parte de um local bastante específico. Seguindo essa linha de raciocínio, Todorov nos alerta para a recorrência de posicionamentos etnocêntricos por parte daqueles que discutiram o antagonismo entre local e universal. Segundo o autor o relativismo, nesse sentido, pode ser o caminho mais fácil, mas seguramente não é o mais judicioso; é inevitável se pensar o universal, pois é somente através dele que distintas culturas podem se encontrar, questionar e dialogar. É dando a atenção devida

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ao local e aos locais que podemos articular uma versão universal capaz de englobar os fragmentos que nos compõem e se distanciar de um ideal universal etnocêntrico.

Com o auxílio da mídia, a identidade “nacional” tem privilegiado características específicas da região sudeste do país, criando uma ideia tendenciosa de universalidade brasileira. Todorov (1993, p. 24) considera Pascal etnocêntrico por definir valores absolutos “a partir de seus próprios valores pessoais” e por fingir “julgar seu próprio mundo com a ajuda desse falso absoluto [...]. [A] ‘verdade’ é definida pelo ‘nossa’, o que não impede que essa ‘verdade’ venha em seguida reforçar o prestígio do ‘nossa’”. Podemos ver claramente o prestígio do “nossa” se pensarmos em literatura nacional. Ao julgarmos o romance de Hatoum como sendo regionalista estamos sugerindo que aquilo que é feito às margens geográficas e sociais do país merece, necessariamente, ser limitado à sua região de origem.

A verdade é que a literatura de Hatoum incomoda aquelas noções que hoje já se consolidaram como “nacionais”. Todorov oferece uma ferramenta analítica que é fundamental para que possamos repensar o universal não através da manutenção daquilo que já é próprio à cultura hegemônica, mas sim questionando nossos principais pontos de apoio ao conflitá-los contra aquilo que lhes é teoricamente antagônico. A Amazônia de Hatoum, dessa forma, acaba por ser mais importante não pelo que pode ser feito por ela, mas pelo que ela pode fazer por nós. O que Hatoum nos proporciona através da escolha de termos que são universais para o Amazonas, mas regionais para o resto do país – escolha que a tradução potencializa ao produzir um glossário para elucidação acerca destes termos –, é a possibilidade de se partir de um local para experienciar um novo local, de forma não a privilegiar ou moldar um deles, e sim a expandir ambos.

Shiyab (2010) argumenta que, apesar de os avanços tecnológicos da sociedade contemporânea terem facilitado a disseminação de informações e o contato entre povos antes incomunicáveis, estes também enfatizaram as diferenças sociais dentre as classes pertencentes a tais povos no mundo globalizado; remover as barreiras econômicas, para o autor, não significa, necessariamente, a remoção de barreiras sociais. O professor defende com otimismo que traduzir inevitavelmente aproxima culturas distintas e promove o seu enriquecimento através da elaboração de novos termos ou retextualizações daqueles que a elas não pertenciam anteriormente; neste contexto ele ressalta o papel do tradutor como agente intercambiário, já que este pode possibilitar na cultura alvo uma maior compreensão acerca da cultura fonte.

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Entretanto, o papel do tradutor não precisa nem deve necessariamente ser o de endossar o que chamamos de globalização impreterivelmente, mas pode também ser caracterizado pelo questionamento deste com relação aos mitos que acompanham tal processo. A construção da narrativa de Hatoum é capaz de expor o excessivo romantismo que permeia muitos dos argumentos de Shiyab. Empregando expressões que são desconhecidas para boa parte do Brasil, a Hatoum não lhe interessa que seu romance seja categorizado como “regionalista”; mas sim mostrar que a globalização não tem aproximado culturas tão bem quanto mercados.

Ao optar não pela adaptação e normatização dos termos escolhidos por Hatoum na versão em língua inglesa, John Gledsoni leva aos seus leitores um Brasil que não faz parte da identidade nacional “universal” que se costuma vender para outros países. Seus leitores podem, assim, entrar em contato não só com uma estória que expõe as lacunas da ideia central de Shiyab, mas também que possibilita a superação de tais lacunas através de escolhas que promovem um maior entendimento por parte de brasileiros e estrangeiros acerca desse local específico, que é tão significativo quanto aqueles mais privilegiados pela cultura hegemônica. Se é impossível para um brasileiro ler a narrativa de Hatoum e não notar que ela se passa na região amazônica, é pouco provável que os leitores estrangeiros não notem que se trata de um livro traduzido, pois a identidade local se apresenta de maneira ululante já que, ao invés de modulá-la, Gledson promove sua manutenção.

Independente do quanto se tenha escrito acerca da Amazônia, que convive com a ameaça de seu “desenvolvimento”, ela ainda hoje é vista sob uma perspectiva romantizada e idealizada. A globalização, infelizmente, está longe de ser um processo igualitário onde todas as culturas se “abraçam” sem que uma se sobreponha à outra; na verdade, as hierarquias não são destituídas pela globalização e a hegemonia não é enfraquecida por ela, mas sim reafirmada. Sem fazer alarde, a normatividade aos poucos vai sendo instituída na Amazônia de Hatoum, substituindo religiões, tradições, visões de mundo que não se assemelhem ao que erroneamente aprendemos a julgar como “universal”.

1 CONSTRUINDO, DESCONSTRUINDO E RECONSTRUINDO

A tradução literária é uma ponte entre o eu e o outro, mas uma ponte instável, abstrata, em fase de construção e desconstrução. Derrida (2002) aponta o mito de Babel como capaz de problematizar essa ponte, levando o leitor a pensar a respeito da relação entre linguagens e sujeitos de uma forma mais “dilatada”. Quando argumenta que o objetivo

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da tradução deve ser o de “exprimir a relação mais íntima entre as línguas” (DERRIDA, 2002, p. 43), o filósofo mostra o quanto seria difícil manter estáveis os muros que separam o eu do outro, e o quanto a tradução deixa evidente não o isolamento das línguas, mas sua perene interdependência. O professor Walter Costa (1992) parece endossar o argumento de Derrida ao defender que “a tradução de uma obra de ficção, com toda a liberdade que ela possa ter, irá necessariamente reter algumas características básicas de tempo e lugar dos eventos narrados, assim como algumas ligações entre eles”. (COSTA, 1992, p. 07)

Derrida elabora uma metaficção partindo da escolha divina por difundir a confusão linguística através dos povos como punição à tentativa humana de estabelecer uma única linguagem. Na visão do filósofo, a fragmentação do idioma humano teria resultado numa fragmentação do próprio sujeito, estando este fadado a viver em busca do preenchimento de um tipo de “vácuo original”. Assim, questiona-se a existência da plenitude tão discutida por aqueles que enfatizam a dimensão da dívida do tradutor para com o autor. Segundo Derrida um texto passa a ser original ao se deixar traduzir, confirmando, dessa forma, a tradução como texto que promove a restituição da obra num novo contexto, e sua possibilidade de manutenção num novo período e numa nova cultura. Logo, inexiste na tradução a autonomia completa, assim como também a dependência total, o processo tradutório parece se colocar entre estes dois pontos: “o TA é [...] uma entidade autônoma que está, ao mesmo tempo, intimamente relacionada com a sua fonte” (COSTA, 1992, p. 02).

Ao discutir sobre a amplitude da tradução, Derrida (2002, p. 23), introduz os três tipos de tradução propostos por Jakobson: a intralingual, que seria a tradução de uma língua para esta mesma língua; a interlingual, entre duas línguas distintas; e a intersemiótica, que seria a transfiguração de signos linguísticos em signos não linguísticos. O seu intuito é o de promover uma expansão da visão de Jakobson ao argumentar que durante o processo tradutório o tradutor pode fazer uso dessas categorias concomitantemente. Se pensarmos na tradução de John Gledson do livro Dois Irmãos (2000) que conta com a adição de um glossário com mais de 50 termos e expressões, o caminho mais óbvio seria o de categorizarmos The Brothers como uma tradução interlingual da obra de Hatoum:

Halim spent the night groaning, and for some weeks was the most spoilt person in the family, Domingas told me. Zana looked after him, bandaging his back and shoulders, pouring an infusion of crajiru onto the wounds before she put the dressings on. She was afraid of him getting an infection (HATOUM, 2000, p.152).ii

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Ainda que o tradutor não tenha transposto palavras para as quais não há um correspondente em língua inglesa, estas palavras são por ele italizadas e trazidas no glossário que o próprio compilou. No caso acima temos “crajiru” que posteriormente será descrita por John Gledson como uma erva medicinal popular na região Amazônica. No glossário o tradutor ainda informa que a infusão preparada com as folhas do “crajiru” é utilizada mais comummente para aliviar dores cólicas e estomacais, e que, além disso, “o líquido gerado após o cozimento dessas folhas é utilizado para tratar de dores musculares, inchaço e para acelerar o processo de cicatrização de feridas” (GLEDSON, 2000, p. 268)iii. Tendo em vista a imensa variedade de plantas medicinais na região amazônica e o muito provável desconhecimento dos falantes de língua inglesa acerca delas, John Gledson oferece informações valiosas para o crescimento intelectual dos seus leitores, além de contribuir para uma ampliação no conhecimento destes acerca dessa região.

Observa-se, ao mesmo tempo, e este é o ponto no qual gostaria de chegar, que a tradução do romance acaba por funcionar tanto como interlingual quanto intralingual, se levarmos em consideração a classificação linguística de Jakobson. Além de ser traduzida para um idioma distinto, tal obra, quando recriada, recebe do tradutor um glossário que apresenta em sua maior parte termos regionais, comuns no Amazonas, mas no geral desconhecidos em outras regiões do país. Assim o glossário de Gledson acaba por possuir serventia tanto para os estrangeiros quanto para os próprios brasileiros, pois, colocando-nos no lugar do leitor, percebemos o quanto o tradutor acrescenta ao trazer informações importantes sobre cada expressão italizada por ele.

Seria ingênuo, porém, responsabilizar a extensão do país e o seu multiculturalismo pela nossa habitual ignorância acerca da realidade tanto nortista quanto nordestina. Ao hegemonizar a cultura de uma parte ínfima do país, nós, brasileiros, aceitamos essa ignorância; aceitamos nos tornarmos desinteressados naqueles que nos foram de muita serventia para construímos nosso presente através da destruição de seu passado e obliteração de sua possibilidade de futuro; aceitamos esquecer os lugares que um dia precisamos, os que ainda precisamos, e aqueles que, seguramente, um dia ainda vamos precisar. Assim como a narrativa de Hatoum, a tradução de Gledson, neste sentido, não aceita a universalização de uma “cultura brasileira” em língua inglesa e ao mesmo tempo recusa a promover sua relativização acrítica; o tradutor expande a obra de Hatoum e a recria dentro de uma língua inglesa impregnada de “imperfeições” que não deixam o leitor se esquecer de onde se passa aquela estória:

‘Look at the batuíras and jaçanãs,’ she said pointing at the birds skimming over the dark water, or splashing over the matted vegetation. She pointed to

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the hoatzins nestling in the twisted branches of the aturiás, and jacamins uttering strange cries as they cut across the magnificent sky, heavy with clouds. My mother had not forgotten these birds: she recognised their sounds and names, and looked eagerly at the vast horizon up the river, recalling the place where she had been born, near the village of São João, on the banks of the Jurubaxi, an arm of the Negro, far away from there. ‘My place’, Domingas remembered (HATOUM, 2000, p.66).iv

No glossário, Gledson informa seus leitores que batuíra é um “nome comum utilizado na região amazônica para distintas espécies de pássaros aquáticos, como caradrinos ou ostraceiros (GLEDSON, 2000, p.267)”; que jaçanã é um “pássaro aquático que se assemelha a uma saracura ou frango-d’água” (p. 269); atuirá é descrita como “árvore natural da região amazônica de galhos longos e curvos” (p. 267); e jacamim como “nome dado para diversos grandes pássaros de patas e pescoço longos, nativos da floresta amazônica, que possuem um canto bastante estridente; conhecidos em inglês como ‘agami’ ou ‘trumpeter’”.v

O conceito de tradução como esse que seria um fenômeno mais amplo, como coloca Derrida (2002), se faz representar nesta rica tradução de John Gledson, onde a diversidade cultural é entrecruzada por si mesma, potencializando o hibridismo de Hatoum, distanciando-se, diferenciando-se e, ao mesmo tempo, constituindo-se em uma língua plural. Sobre este aspecto Derrida (2002, p. 47), defende que: “desde a origem do original a traduzir, existe queda e exílio. O tradutor deve resgatar, absolver, resolver, tratando de absorver-se a si mesmo de sua própria dívida que é, no fundo, a mesma”.

A capacidade de o tradutor de ampliar a língua-alvo vem também com uma grande responsabilidade, não somente no que concerne ao seu domínio linguístico da língua fonte e alvo, mas também ao seu posicionamento político e ideológico em ambos esses contextos. Ao discutir suas escolhas, Hatoum enfatiza a importância delas ao alertar que “às vezes a particularidade de uma região é revelada por uma palavra. Não faz sentido usar a palavra ‘guri’ ou ‘piá’ no Amazonas, pois soaria falso e até incompreensível. Usa-se a palavra ‘curumim’”vi.

Apesar de o texto traduzido ser de fato capaz de transcender e expandir os limites linguísticos no qual ele foi concebido e aonde será reconcebido, portanto, essa característica não é suficiente para anular a dívida do autor e tradutor tão discutida por Derrida. Como argumentado por Costa (1992, p. 04) “essa própria expansão significa, ao mesmo tempo, um momento de crise, já que nesse estágio surge inevitavelmente a questão: o que lemos na tradução é o mesmo livro ou passagem e, se for, até que

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ponto?”. Gledson possui liberdade para criar ou recriar, sintetizar ou expandir, domesticar ou estrangeirizar, com base nos possíveis efeitos de sentidos que provavelmente conduzirão suas escolhas tradutórias. No resultado final de The Brothers (2000), é provável que John Gledson esteja ciente do quanto o seu idioma nativo se vê violentado ou transformado por sua tradução, mas suas escolhas podem ter sido motivadas pelo seu interesse em manter ao máximo a cultura referente ao norte do Brasil que é tão essencial no livro de Hatoum; ou, talvez, pelo fato deste não encontrar soluções para o “intraduzível”, e optar pela manutenção da narrativa de Hatoum em uma linguagem heterogênea; ou, muito provavelmente, influenciado por um pouco de todas essas razões:

Only once, at nightfall, she began to hum one of the songs she’d heard in her childhood, there on the River Jurubaxi, before she lived in the Manaus orphanage. I’d thought her mouth was sealed, but no: she loosened her tongue and sang, in nheengatu, the short refrains of a monotonous melody. When I was a child, I went to sleep to the sound of the voice, a lullaby echoing through my nights (HATOUM, 2000, p.237. Tradução: John Gledson. The Brothers. Grifo do autor).vii

Língua geral indígena implantada no Brasil com a função de auxiliar o processo de catequização das populações nativas, o nheengatuviii já foi a língua mais falada do Brasil e ainda é utilizada por comunidades instaladas na bacia do Rio Negro, que tiveram seus dialetos originais dizimados pelos processos coloniais e neocoloniais. Idiossincrática do contexto brasileiro é compreensível que os leitores da tradução de Gledson desconheçam o significado da palavra, mas notar que os leitores brasileiros também se beneficiam com sua descrição no glossário do tradutor é preocupante já que o nheengatu se trata de uma peça chave na história do país. Talvez Hatoum não estivesse pensando nessa reflexão quando trouxe tal termo no texto fonte; possivelmente a informação no glossário de Gledson seja dispensável para a compreensão da obra como imaginada “originalmente”. Entretanto o professor Costa (1992, p. 01) argumenta que não é a existência da tradução, mas a do leitor do próprio texto, tanto original quanto traduzido, que impossibilita a unilateralidade da visão de sentido centrado no texto fonte.

Derrida (2002) amplia o alcance daquilo que se chama “tradução” para dar a ela maiores possibilidades de atuação. O autor defende que fazemos traduções do inconsciente para o consciente, ao estabelecermos um diálogo, ao respondermos a certo acontecimento. Neste aspecto, a tarefa do tradutor se torna muito mais complexa, já que este precisa captar essas pontes inconscientes e tentar re-produzi-las da forma que julgar mais cabível; no caso de Gledson isso parece ocorrer através da domesticação dos termos que ele considera equivalentes e da estrangeirização do que entende como intraduzível:

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He spent months in this fashion: alone in a corner of the room, excited whenever he saw Galib’s daughter, and following this gazelle with his eyes wherever she went. He stared at her, his face tense, waiting for a miracle that didn’t happen. He went fishing in the lakes and brought tucunarés and surubim for Galib (HATOUM, 2000, p.40. Tradução: John Gledson. The Brothers. Grifo do autor).ix

Ao trazer ambos os termos “tucunaré” e “surubim”x em seu glossário ao continuar utilizando “gazela”, em inglês “gazelle” sem oferecer nenhuma explicação no glossário, tanto o leitor estrangeiro quanto o brasileiro podem ter alguma dificuldade para entender qual a aplicação da palavra no contexto onde ela aparece. A “gazela” de Hatoum é utilizada por Halim para adjetivar Zana como “moça bonita e elegante”xi, conotação que além de ser improvável em língua inglesa é também pouco empregada em outras partes do Brasil que não o norte. Ao mesmo tempo, não tendo substituído “gazelle” por algum outro termo que signifique bela, elegante, ou bonita, em língua inglesa, o tradutor manteve as marcas do outro, realçando, assim, a singularidade tanto do texto de origem quanto do texto de chegada.

A própria existência de um glossário que não estava lá nos textos de partida desmistifica a visão do sentido centrado no original, da palavra como verdade e tradutor como falsário, e do texto como ativo e leitor como passivo. Recriador do romance brasileiro e criador de um novo romance em língua inglesa, Gledson é, antes de tudo, um leitor, mas um leitor que transforma ativamente a obra, inserindo-a no contexto que é seu, mas que é também do outro; assim como cada romance de Hatoum carrega um pouco do autor, Gledson também parece dar à sua tradução, por fim, um pedaço grande de si mesmo.

2 O AUTOR E O TRADUTOR: RELATIVIZANDO O UNIVERSAL E UNIVERSALIZANDO O REGIONAL

É importante ressaltar que a discussão aqui proposta não visa, de forma alguma, refutar a ideia do “regional”, muito menos através do que seria uma busca utópica pela idealização de um universalismo literário. A discussão, entretanto, coloca em cheque algumas das premissas centrais que estão abarcadas por uma determinação equivocada, quiçá banalizada, do que sugeriria o pertencimento (e, consequentemente, isolamento) de algumas narrativas a certos locais e a nada além deles. De acordo com Leonel e Segatto (2008. p. 03) o “fenômeno do regionalismo” se caracteriza por possuir “um caráter ‘regressivo’ ao procurar, documentariamente, através da literatura, os resíduos

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de um passado que vinha sendo progressivamente destruído ou transformado pelo desenvolvimento capitalista”. Porém, se pensarmos na obra de Hatoum – que de fato traz à tona a problemática capitalista ao ressaltar, principalmente, o desenvolvimento desordenado de Manaus – como “regressista”, é inevitável o julgamento de que o desenvolvimento ocidental é um resultado final bastante óbvio para a região amazônica. A trama dos irmãos Yaqub e Omar não traduz um pedido de Hatoum para que o leitor – brasileiro ou estrangeiro – olhe apenas para um passado perdido, mas também para um futuro mutável. Desta maneira o leitor seria capaz de questionar a noção de progresso – ao invés de aceitá-la passivamente – como este se implanta não apenas na região amazônica como em qualquer outro lugar.

Ao ler Dois Irmãos (2002), ao mesmo tempo, o leitor pode pensar que os valores discutidos na narrativa estão (além de temporalizados retrogradamente e permeados unicamente por um sentimento de nostalgia inócua) cristalizados – pelo menos, nas fronteiras de compreensão “nacional” – e, portanto, são intraduzíveis. Mas em vez de se perguntar se estes valores são intransponíveis, se a tradução pode manipulá-los, este precisa se perguntar se essas limitações de fato existem. Segundo Hatoum “tudo o que um autor quer são bons leitores”xii. Sendo assim seu leitor precisa se perguntar se, realmente, dentro da “unidade nacional” existe um todo de características universais que se mantém fechado para o estrangeiro, ou se essas fronteiras não seriam bem menores do que se imagina.

Barzotto (2010, p. 25) observa que “a globalização [...] ao mesmo tempo em que prega a liberdade de mercado, tolhe a liberdade dos indivíduos e, na busca obcecada de novos mercados a conquistar, homogeneíza as diferenças, pasteurizando-as.” As fronteiras ideológicas, que separam a Amazônia do Brasil e o Brasil dos outros países, muitas vezes visam categorizar aqueles que pertencem à periferia e aqueles que pertencem ao centro – quem deve ser “globalizado” e quem é capaz de “globalizar”. Logo, construindo fronteiras humanas ao mesmo tempo em que rompe fronteiras de mercado, o sistema nos convence (“pasteurizando” nossas diferenças) de que é possível negociar com o Outro, apesar de ser impossível compreendê-lo. Por outro lado, a tradução literária, possibilitando a Dois Irmãos (2002) sua manutenção não só fora da região Amazônica, mas também do Brasil, reverte tal paradoxo ao permitir que os Outros se vejam não mais somente como quem compartilha uma economia mútua e interdependente, mas, principalmente, uma existência mútua e interdependente.

Portanto, obras que carregam marcas culturais tão enfaticamente como Dois Irmãos (2002) – e, ainda mais evidentemente, The Brothers (2000) – não devem, em função disso, ser encaradas como “regionalistas” (e categorizadas como um testemunho de um

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dos mundos alheios àquele mundo central, “comum”), mas como responsáveis por proporcionar conhecimento acerca de um mundo maior que compartilhamos, a respeito de um Outro que não deixa de funcionar como um reflexo do Eu. Leonel e Segatto (2008. p. 02) concluem que, dada “a existência de regiões com realidades socioeconômicas e culturais muito diferenciadas” dentro do país, o que temos como resultado, na verdade, são “vários brasis” dentro de um mesmo Brasil. A literatura original e traduzida de Hatoum, portanto, permite que estes “brasis” conversem; nela o local, regional, Amazonas dialoga com o mundo e o mundo responde; o local de Hatoum passa a ser o mundo, e o mundo passa a ser o local. Em sua análise de seis obras de Guimarães Rosa as autoras ressaltam:

Em Guimarães Rosa, o mundo do sertão não é visto de fora e de longe, tampouco, como objeto inanimado, como realidade fugaz e epidérmica. Ele é recriado e representado artisticamente como um complexo de relações sociais, de dramas humanos, de elementos do imaginário. A ação e a reação das personagens diante de situações criadas, cujos destinos e perspectivas inserem-se em realidades socialmente determinadas, abarcam componentes de universalidade, expressos em indivíduos singulares, vivenciando situações particulares. Nesse movimento de criação e representação, o sertão passa a ser o mundo. (LEONEL & SEGATTO, 2008, p.10).

É como o sertão de Guimarães Rosa que Hatoum parece construir o Amazonas que é, ao mesmo tempo, plano de fundo e personagem principal de Dois Irmãos (2002); sendo, principalmente, através da tradução de John Gledson que este Amazonas passa, então, “a ser o mundo”. Ao que concerne esta tradução híbrida e (a meu ver) enriquecedora, se evito mediar um duelo entre “universal” e “regional” na busca de um “vencedor”, como enfatizado anteriormente, tampouco se trata aqui de discutir conceitos como fidelidade, literalidade, liberdade, estrangeirismo, domesticação, mas de apontar para as linhas tênues que dividem termos tidos como tão estáticos e ambivalentes. Segundo Hatoum “Há uma sensibilidade na tradução que é você expressar essa essência do texto original, sem ser exatamente fiel a ele. Uma boa tradução deve ser ao mesmo tempo literal e livre. É como se fosse um espelho que reflete o que o texto original oculta”.xiii

Hatoum (2002), Gledson (2000) e as discussões propostas a partir das teorias aqui escrutinadas defendem a tradução como recriação de sentido, não com o intuito de endossar o relativismo entre culturas, mas sim o choque entre elas. Barzotto (2010, p. 29) afirma que “a literatura fronteiriça faz valorizar a heterogeneidade [...] e faz subverter o discurso autoritário e hegemônico, além de criar um novo discurso, híbrido e [...] libertário”. Ao ressaltar ainda mais o hibridismo de Hatoum na obra traduzida em língua inglesa, John Gledson transforma uma heterogeneidade “fronteiriça” numa

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heterogeneidade central, ampliando o alcance e promovendo a manutenção da narrativa híbrida do texto em português. Ainda segundo a autora é importante estar ciente de que o “híbrido não está convenientemente circunscrito às margens, aos guetos de imigrantes, aos barrios, aos espaços alternativos ou apenas aos dias atuais. Híbridos não são os outros: híbridos somos todos nós [...].” Nós vivemos, de fato, num momento em que um binarismo desnecessário e equivocado tem sido institucionalizado: de um lado a ideia de unidade, de igualdade, universalidade, que dificulta a interação cultural dentre visões e posturas distintas; do outro, uma relativização desinteressada de culturas alheias que ignora e esconde as diferenças, impossibilitando que questionemos aquilo que somos e aquilo que observamos. Para endossar esse binarismo a literatura contemporânea muitas vezes recheia as estantes das livrarias com best-sellers que não discutem temas locais, regionais, internacionais ou universais, apenas proporcionam ao leitor momentos acríticos de satisfação inócua. Mas essa é outra discussão.

Notas

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i O tradutor John Gledson, nascido em Beadnell na Inglaterra em 1945, professor aposentado de literatura latino-americana na universidade de Liverpool, possui vasta experiência em literatura brasileira, principalmente no que concerne ao legado de Machado de Assis, tendo transposto dezenas de suas obras, como Dom Casmurro, para a língua inglesa.

ii Halim passou a noite gemendo, e durante algumas semanas foi o mais mimado da casa, me disse Domingas. Zana cuidou dele , enfaixou-lhe as costas e os ombros, derramando infusão de crajiru nos ferimentos antes de fazer o curativo. Tinha medo de que ele contraísse uma infecção (Hatoum, 2000, p.116).

iii Minha tradução.

iv ‘Olha as batuíras e as jaçanãs’ dizia apontando esses pássaros que triscavam a água escura ou chapinhavam sobre folhas de matupá; apontava as ciganas aninhadas nos galhos tortuosos dos aturiás e os jacamins, com uma gritaria estranha, cortando em bando o céu grandioso, pesado de nuvens. Minha mãe não se esquecera desses pássaros: reconhecia os sons e os nomes, e mirava, ansiosa, o vasto horizonte rio acima, relembrando o lugar onde nascera, perto do povoado de São Joao, na margem do Jurubaxi, braço do Negro, muito longe dali. ‘O meu lugar’, lembrou Domingas (Hatoum, 2000, 54 - 55).

v Minha tradução.

vi REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL. “O Amazonas preservou a floresta e destruiu a cidade”, 2009. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/milton-hatoum

vii Só uma vez, ao anoitecer, começou a cantarolar uma das canções que escutara na infância, lá no rio Jurubaxi, antes de morar no orfanato de Manaus. Eu pensava que ela havia travado a boca, mas não: soltou a língua e cantou, em nheengatu, os breves refrões de uma melodia monótona. Quando criança, eu adormecia ao som dessa voz, um acalanto que ondulava nas minhas noites. (HATOUM, 2006. p. 179)

viii Nheengatu (GLEDSON, 2000, p.270): uma língua indígena de origem tupi, apesar de ser influenciada pelo Português europeu, conhecida como ‘língua geral’, e muito utilizada como um tipo de língua franca no passado histórico brasileiro e na região Amazônica” ( Minha tradução).

ix Passou meses assim: sozinho num canto das ala, agitado ao ver a filha de Galib, acompanhando com o olhar os passos da gazela. Contemplava-a, o rosto ansioso, à espera de um milagre que não acontecia. Ia pescar nos lagos e trazia tucunarés e postas de surubim para Galib (HATOUM, 2006. p. 37).

x Tucunaré (GLEDSON, 2000, p. 272): um peixe escamoso verde-amarronzado muito apreciado pelo sabor de sua carne; Surubim (GLEDSON, 2000, p.271): um peixe sem escamas nativo do rio amazonas que é estimado por sua ecleticidade em aplicações culinárias ( Minha tradução).

xi http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=gazela

xii http://revistalingua.uol.com.br/textos/58/artigo248890-1.asp.

xiii Idem.

Bibliografia

BARZOTTO, L. A. “O entre-lugar na literatura regionalista: articulando nuanças culturais”. Universidade Federal da Grande Dourados. Raído, Dourados, MS, v. 4, n. 7, p. 23-36, jan./jun. 2010

COLOMBO, Sylvia. “Milton Hatoum contesta conceito de Literatura Regionalista”. Caderno Ilustrada, Folha de São Paulo. 14/02/2009

COSTA, Walter. "O Texto Traduzido como Re-Textualização". [Por: Helen Conceição, Silvia Corti e Pedro M. Garcez]. Tradução inédita, elaborada a partir do texto publicado na revista Ilha do

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Desterro, n. 28, 133-155, 1992.

DERRIDA, J. Torres de Babel. Trad. De Junia Barreto. Belo Horizonte: UFMG, 1987 [2002].

HATOUM, M. The Brothers. Trans. GLEDSON, J. Bloomsbury Publishing: 2000.

_____. Dois Irmãos. SP. Companhia de Bolso: 2002

LEONEL, M. C.; SEGATTO, J. A. “O regional e o universal em Guimarães Rosa”. XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras, Interações, Convergências. USP, Brasil, 13 a 17 de julho de 2008. Disponível em: http://www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/052/MARIA_LEONEL.pdf. Acesso em: 10/09/09.

SHIYAB, Said M. “Globalization and its impact in translation”. In.: Shiyab, Said M,; Rose Marilyn G.; House, Juliane; Duval, Jose (org). Globalization and aspects of translation. United Kingdom: Cambridge Scholars Publishing, 2010, p. 01-10

TODOROV, Tzvetan. “Etnocentrismo”. In.: Nós e os outros – Reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.