crise, decadÊncia e transiÇÃo em fogo morto · literatura brasileira, bosi (2006) expõe que no...
TRANSCRIPT
Anais – FLIPA | 118
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira
Pós-graduada em Metodologia do ensino de Língua Portuguesa e Literatura pelo Centro Universitário Leonardo
da Vinci – UNIASSELVI, Paulo Afonso, Bahia.
Luana Rafaela dos Santos de Souza Mestranda em Dinâmicas Territoriais e Cultura pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL, Arapiraca
Alagoas.
Taís da Silva Lima Mestranda em Literatura pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL, Maceió, Alagoas.
RESUMO
Neste artigo, ao discutir o romance “Fogo Morto”, José Lins do Rego,
adentramos em aspectos regionalistas com enfoque para a decadência dos
engenhos frente a um mundo em transição. No romance, Rego inaugura um novo
Regionalismo que coloca o homem em primeiro plano, expondo as tensões que
marcam a existência humana. O romance “Fogo Morto” utiliza-se da metáfora
para mostrar não só o declínio de uma estrutura sociocultural, mas o declínio
também do homem que resiste. Buscamos embasamento teórico em Azevedo
(1987), Bosi (2006), Coutinho (1991), Candido (1993; 2011), Castello (1961),
dentre outros a fim de analisar os aspectos sociais, históricos e culturais que
atravessam o romance.
Palavras-chave: Regionalismo. Decadência. Romance
CRISIS, DECADENCE AND TRANSITION IN FOGO MORTO
ABSTRACT
In this article, by discussing José Lins do Rego’s novel Fogo Morto, we enter
regionalist aspects focusing on the decadence of the sugar cane plantations in
face of a world in transformation. In the novel, Rego inaugurates a new
regionalism which places man in the foreground, exposing the tensions that
remark human existence. The novel Fogo Morto makes use of the metaphor to
show not only the decline of a sociocultural structure, but also the decline of the
resisting man. We based on the theories of Azevedo (1987), Bosi (2006),
Coutinho (1991), Candido (1993; 2011), Castello (1961), among others, in order
to analyze the social, historical and cultural aspects that cross the novel.
Keywords: Regionalism. Decadence. Novel.
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 119
1 INTRODUÇÃO
Compreendendo a Literatura como arte humanizadora dotada de elementos estéticos e
ideológicos sempre está em nexo com o mundo, de forma que o fictício surge com base no
“real”, porém, superando esse “real”, construindo assim um mundo “irreal”, artístico em que
tudo é possível, porque parte de uma criação sensível do artista que faz o “irreal” ganhar vida
por meio das palavras, pois é a linguagem que vai nortear toda e qualquer obra literária.
Tomando para análise o romance “Fogo Morto” de José Lins do Rego, publicado em 1943,
podemos perceber o embricamento do real e o fictício através da memória do escritor, da
ambientação, do espaço dos engenhos de açúcar, do tempo histórico, do lugar da Paraíba, o
trabalho açucareiro, a situação socioeconômica e política das oligarquias rurais e o homem
como foco principal, um homem social, introspectivo, político, cultural e ideológico, tudo isso
exposto através de metáforas, por exemplo, “Fogo Morto” e ambiguidades através de uma
linguagem opaca, com traços dramáticos e líricos.
Esse romance é classificado como regionalista por conter elementos regionais, especialmente
do Nordeste brasileiro, pressuposto defendido pelos modernistas de 1930 que possuíam o desejo
de transitar para o interior e também expor os problemas e exuberâncias existentes nesse meio
que nunca foram reveladas pela arte literária.
Sabemos que o Modernismo foi um movimento que surgiu no Brasil no século XX com a
pretensão de liberdade do fazer literário vigente, rompendo com a linguagem acadêmica e a
forma padronizada e perfeita, além de trazer à tona assuntos da realidade brasileira, uma espécie
de neorrealismo. Esses ideais inicialmente não foram bem compreendidos e aceitos, só em
1930, com o amadurecimento dos ideais, o movimento adquiriu estabilidade e consolidação. A
prosa, nesse período, estava dividida em Regionalista e Intimista.
Cabe ressaltar que temáticas regionalistas já surgiram anteriormente ao Modernismo, o próprio
Romantismo, Realismo e Naturalismo já utilizavam o termo para fazer referência às riquezas
nacionais, porém, no Modernismo há uma ressignificação do termo, que deixa de focar na
natureza e reflete o homem, pondo toda ênfase neste sujeito transformador. Quanto a prosa de
caráter intimista é aquela baseada no psicologismo, no interior do homem, algo mais
introspectivo.
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 120
A prosa regionalista do Modernismo tratava de assuntos relacionados ao Nordeste,
principalmente através de José Lins do Rego, um paraibano, romancista que teve a sua vida
ligada aos engenhos o qual decidiu escrever sua realidade e de tantas pessoas, tornando-as
ficções, como por exemplo, em “Menino de Engenho” (1932) em que relatou suas memórias
da infância, iniciando o “Ciclo da Cana de Açúcar” e terminou esse ciclo com “Fogo Morto”
que não deixa de ser um romance memorístico, mas não da mesma forma que “Menino de
Engenho”, que é autobiográfico. “Fogo Morto” é uma memória coletiva (do senhor de engenho,
do artesão, do escravo, da dona de casa, etc.), por isso narrada em terceira pessoa.
No romance “Fogo Morto” percebemos a centralidade em três personagens que coexistem em
um espaço de tensões: Mestre Amaro que mora no engenho Santa Fé de Lula de Holanda que
se tornou Senhor de Engenho e Vitorino Carneiro da Cunha que é uma figura quixotesca
nordestina que procura resolver o caos existente entre os dois primeiros personagens. Esses
personagens vivem em tempos e espaços distintos, mas suas histórias se entrelaçam gerando
tensões.
De fato, José Lins do Rego consegue com suas obras, inclusive “Fogo Morto” concretizar a
perspectiva nacionalista do Modernismo, provando que a ruptura não só existiu em 1922 nos
campos artísticos, mas também no conteúdo da obra, na ficção, estava realmente ligado à ideia
de renovação literária do Modernismo.
2 O “NOVO” REGIONALISMO DE JOSÉ LINS DO REGO APLICADO EM “FOGO
MORTO”
Como bem conhecemos, a segunda fase do Modernismo está dedicada à prosa e especialmente
ao Regionalismo, com o Romance de 30, que é uma classificação problemática, pois segundo
Bueno (2012) é errôneo classificarmos que todos os romances surgidos em 1930 venham a ser
regionalistas e os que tenham surgido posterior a essa época não sejam enquadradas, pois se
compreende que o Regionalismo supera o tempo histórico, originando-se de fatores da cultura
regional, não havendo, necessariamente, delimitação de tempo. Contudo, na História da
Literatura Brasileira, Bosi (2006) expõe que no Romance de 30 há obras regionalistas como,
por exemplo: A Bagaceira de José Américo de Almeida, O Quinze de Rachel de Queiroz, Vidas
Secas, São Bernardo, Caetés de Graciliano Ramos, Menino de Engenho, Fogo Morto de José
Lins do Rego etc.
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 121
Segundo Coutinho (1991) o regionalismo proposto no Romance de 30 possuía ideais miméticos
em que a paisagem apareceria em primeiro plano e o homem com toda a sua complexidade
ficaria relegado ao segundo plano. Portanto, pertencente a esse grupo de romancistas, José Lins
do Rego faz uma ruptura, pois deixa claro que o eixo da obra, ou melhor, a espinha dorsal é o
homem e é ele que deve ser a prioridade na ficção regionalista e assim elenca suas obras nessa
perspectiva em que não ignora a natureza, mas foca no homem interage com o meio.
José Lins do Rego ultrapassou o tempo, ou seja, avançou décadas com o novo Regionalismo
porque segundo Castello, (1961, p. 185) “[...] o Regionalismo para ele não é a simples fotografia
de traços típicos ou característicos de uma região. É muito mais. É o depoimento sentido,
profundamente humano e lírico [...]”. Ou seja, como um nativo brasileiro, levando em
consideração a sua amplitude, podendo ainda o espaço regional da Paraíba ser o espaço regional
de Alagoas e de tantos outros países, ser de fato universal e atemporal como bem enfatizava
Candido (1993).
Assim, em sua obra “Fogo Morto”, Rego traz o Regionalismo de modo diferenciado, falando
com propriedade, centrado numa realidade que em vivera transfigurando-a, metaforizando-o,
transformando-a, dando vida ficcional, Conforme Castello (1961, p. 185) “O nordeste não
aparece nos seus romances como tema ou imposição doutrinária, mas manifesta-se como a
expressão lírica de um nordestino a evocar sua terra; não é uma atitude de fora para dentro, mas
de dentro para fora [...]”, afinal ele é um nativo brasileiro e quando fala do nordeste paraibano,
fala com segurança do seu espaço não meramente observado, mas vivenciado, refletindo os
problemas de natureza social, cultural, política e econômica na perspectiva de mostrar o Brasil
para os próprios brasileiros que desconhecem muitas realidades.
Por este motivo, José Lins do Rego inicia seus romances a partir de sua realidade, o que
desagradou à crítica, por serem memorísticos e centrarem em um espaço e ambientação de
engenhos, como é o caso de “Menino de Engenho” em que o narrador em primeira pessoa conta
suas histórias de criança em um ambiente de engenho, que podemos dizer está relacionado com
a vivência do próprio autor, visto que Rego, sendo órfão de mãe, mora com os avós no Engenho
Corredor, espaço do qual ele vivencia e expõe em seus escritos, afinal, podemos dizer que José
Lins do Rego é um homem de memória.
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 122
E por ser inserido nesse contexto do engenho e participar desse processo político e econômico,
resolveu relatar experiências vivenciadas, observadas de forma espontânea em uma linguagem
popular, regional, o que torna o leitor participativo e coautor no processo de produção dos
sentidos e compreensão dos romances.
É atribuído a ele, o novo Regionalismo moderno, o que implica dizer que não são apenas
protestos ou denúncia socio-política, mas, mostra uma sensibilidade da vida, desse olhar para o
real e a transfiguração para o meio fictício de modo que a arte supere todas as lacunas deixadas
pelo que é real.
Na verdade, é com “Fogo Morto” que isso fica muito nítido, pois ao pensar e planejar cada
personagem em um mesmo ambiente, mas com visões distintas do mundo, presos, fixos a um
tempo que estava em transição, em mudança, é estar atribuindo ao homem a função especial no
romance, mostrando não só os problemas da decadência dos engenhos, dos poderios das
oligarquias rurais, tenentes e cangaceiros e sim de homens que entram em conflito com os
outros, quando interagem, e consigo mesmo, desconhecendo a sua identidade que por
resistência entra em crise.
Portanto, o romance “Fogo Morto” cela esse novo regionalismo preocupado com o Brasil, com
o povo brasileiro, na formação de uma consciência crítica em relação ao leitor, que supera a
Segunda Fase do Modernismo, ou seja, daquilo que seria previsto.
3 COEXISTÊNCIA DE VÁRIAS VOZES NA TRIPARTIÇÃO DA NARRATIVA
“FOGO MORTO”
O romance modernista “Fogo Morto”, publicado em 1943 está dividido em três partes, cada
uma com um personagem central, essas partes são fragmentadas e também se entrelaçam, dando
a totalidade da narrativa ficcional. Sendo assim, totalizando assim três, um número bastante
significado que possibilita várias interpretações.
Na primeira parte, temos o personagem central o seleiro mestre José Amaro, na segunda parte
o enredo gira em volta do senhor de engenho Luís César de Holanda Chacon e a terceira parte
tem-se o personagem Capitão Vitorino Carneiro da Cunha. Essa última parte une as duas
primeiras que aparentam fragmentadas, dando a impressão de que a narrativa não tem
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 123
fundamento. Assim, a tripartição dessa ficção se encontra na junção dos fragmentos que
formam o enredo com toda a sua completude proporcionada pelos personagens que vão dando
vida a toda obra, isso porque “a personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos”
(CANDIDO, 2011 p.54).
A narrativa aqui analisada apresenta uma situação fictícia baseada no real, pois José Lins do
Rego, autor dessa obra, termina o Ciclo da Cana de Açúcar expondo os poderes oligárquicos
rurais, a vida nos engenhos e a sua decadência, pois segundo Abdala Jr. (2013) no Brasil se
vivenciava a decadência dos engenhos e as tensões frente ao novo mundo que surgia.
Entendendo que, o que acontece no mundo é também incorporado na arte literária e
transformado artisticamente, porque a literatura, conforme Candido (1993), está sempre em
nexo com o mundo, não se tornando isolada e indiferente as transformações sociais e culturais,
pois são essas transformações que, de alguma forma, modificam a forma de pensar e agir de
uma sociedade. Além disso, Abdala Jr. (2013) complementa que José Lins do Rego possui uma
força artística sincera dessa transposição de fatos históricos para ficcionais de modo que a ficção
supera a realidade.
Assim, em “Fogo Morto” há uma transfiguração do real para o ficcional de modo tramado,
ocorrendo o processo de verossimilhança. Essa transfiguração e transgressão do real para o
ficcional é perceptível na vida dos personagens protagonistas, que são segundo Candido (2011)
seres fictícios que só possuem vida no enredo, esses personagens vivem em constantes
conflitos, magoados, ansiosos, raivosos, nas quais suas próprias angústias acabam tornando-os
solitários, isolados, a tal ponto que entram em constante declínio desligando-se cada vez mais
do mundo e das pessoas.
Dessa forma, podemos perceber que no romance não apenas há somente uma queda do
patrimônio dos personagens, mas, sobretudo deles próprios, sendo notório que o enfoque nesse
romance está centrado na vida dos mesmos, sobretudo em Mestre Amaro, Lula de Holanda e
Capitão Vitorino. Isso se dá devido o romance estar focalizado na figura do homem com toda
a sua complexidade o que nesse momento, do Romance de 30, passa a ser o elemento central
da ficção.
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 124
Nessa perspectiva, toda a narrativa é conduzida por um narrador em terceira pessoa que conhece
o externo e o interno dos personagens e que, na maioria das vezes, fala por eles, através de uma
linguagem artística simples, popular e lírica, muito representada pelo povo nordestino, o que
contribui para aproximação do leitor, para que ele se reconheça na ficção e tenha uma melhor
compreensão. De fato, José Lins do Rego, segundo Abdala Jr. (2013, p. 17) separava a “forma”
da criação dizendo que “a minha forma é muito simples, adotando soluções da língua do povo”,
isso porque o escritor tem que ter consciência de seu tempo, como assim ele demonstra que “o
escritor, para que possa dar testemunho, tem que trazer no sangue os anseios da coletividade
em que vive” (ABDALA JR., 2013, p. 19), ou seja, tem de se envolver formando um elo,
permitindo-nos entender que ao escrever, José Lins do Rego pensa no seu público leitor.
Pensando assim, podemos compreender, com base em Candido (2011), que a ficção é tramada
pelo autor que a planeja segundo o seu pensar. Por este motivo a falta de linearidade e
circularidade faz parte da constituição da ficção para a formação dos significados e das
interpretações, visto que a compreensão total se dá no momento em que a leitura é realizada por
completo, porque segundo Candido (2011) o conhecimento dos seres é fragmentado, o que
implica dizer que só lendo a obra por completo é que teremos o conhecimento dos personagens
e de todo o enredo, entendendo a sua construção.
Em “Fogo Morto” ocorre esse processo de que o conhecimento de Mestre Amaro não se dá na
primeira parte dedicado a ele, mas no decorrer das outras partes, da mesma forma que não
conhecemos o Lula por completo, muito menos saberíamos de imediato a função de Vitorino,
somente no decorrer da narrativa, principalmente na última parte é que vamos formando uma
consciência reflexiva e concreta dos personagens, através da coexistência das vozes, do
entrelaçamento dos mundos distintos e através de suas vivências e visões de mundo que ora se
assemelham, ora se distinguem.
Na primeira parte temos o protagonista José Amaro, popularmente chamado de Mestre Zé,
provavelmente por ser um artesão. O narrador inicia, descrevendo-o como um velho seleiro, de
aparência doentia, de olhos amarelos, de barba comprida que trabalha na porta de sua casa, e só
adiante tomamos conhecimento desta casa estar situada nas terras de um senhor de engenho.
Mestre Zé é muito popular e por sua casa transitam várias pessoas e a maioria para e fala com
o mestre que sempre está cortando ou martelando a sola, vive desse trabalho de fazer sela e
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 125
alpargatas e sente orgulho da profissão quando diz ao pintor Laurentino: “não troco uma peça
minha por muita preciosidade que vejo” (REGO, 2013, p. 34), dando a compreender de
imediato que é um homem orgulhoso e também que é satisfeito com o que faz, embora com os
produtos novos que o mercado fornecia, provavelmente, os industrializados, a procura das
pessoas aos produtos do artesão ficou limitada, mesmo assim, o seleiro era feliz com a profissão
que se sustentava. Sua família era composta por sua mulher Sinhá e a filha solteirona Marta.
O velho seleiro é dotado de tanto orgulho que não baixa a cabeça para ninguém, não trabalhava
para os senhores de engenho, pois não queria ser servo destes, nem repreendido, pois para ele
isso seria humilhante, afinal ele é branco e a condição de escravo ficou para os negros, por isso,
não se submetia a servir aos senhores do seu trabalho manual, porque não queria submeter às
ordens e dizia a todo mundo “Não aguento grito. Mestre José Amaro é pobre, é atrasado, é um
lambe-sola, mas grito não leva” (REGO, 2013, p. 40).
Apesar do orgulho, o pobre artesão era angustiado porque não teve um filho, pois se tivesse, o
seu filho daria continuidade ao seu ofício, com isso, culpava a sua esposa que o deu uma filha
que ficou louca, apresentando várias crises que chegava a incomodá-lo e inconformado com a
situação existencial, acaba desenvolvendo um lado agressor, chegando até a espancá-la,
refletindo em sua filha e em sua mulher “[...] a culpada de tudo” (REGO, 2013, p. 40) a imagem
de um bicho insensível e bruto.
Várias pessoas passavam frente à casa de Mestre Zé, conhecia a sua vida e toda a sua família.
A transição era frequente; passava o pintor Laurentino, um carreiro, Pedro boleeiro, negros, seu
compadre Vitorino, entre outras pessoas que, deixam a entender a transição do tempo corrente
passando por Amaro que, por seu orgulho, fixava-se na mesmice de sua vida. Nessas conversas,
compreendemos o prestígio que dá ao cangaceiro Antônio Silvino quando conversa com
Pascoal: “[...] pode dizer por aí, por toda parte, que o mestre José Amaro só vota num homem.
É no capitão Antônio Silvino” (REGO, 2013, p. 87), acaba por mostrar a sua dependência, pois
considera o cangaceiro como superior ao senhor de engenho, o seu Lula, dono das terras que
Amaro mora. A partir disso, já se percebe a revolta para com o senhor de engenho.
Reconhecia a sua classe social frente aos senhores de engenho em dizer: “sou pobre [...], mas
sou um homem que não me abaixo a ninguém” (REGO, 2013, p. 45), ou seja, mantém de pé o
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 126
orgulho e reconhece que há pessoas inferiores a ele que são os camumbembes, justamente, os
que compravam seu serviço e “era o que mais lhe doía” (REGO, 2013, p. 40).
Na verdade, o Mestre Zé, numa visão externa aparentava um ser firme, de palavra, autoritário,
afetivo em falar com as pessoas, mas internamente era um ser angustiado, solitário com suas
mazelas que o consumia pouco a pouco, a vida teria sido injusta para com ele. Não se sentia
livre, mas sempre servo de alguém, dependente de alguém (senhor do engenho, por morar em
suas terras e dos camumbembes para vender seus produtos), embora falasse que não
dependesse. Onde está a liberdade de Mestre Zé? Seria na natureza, à noite, no deserto das
estradas, sozinho? Por que andar sozinho altas horas da noite e principalmente numa noite de
lua cheia?
De fato, associaram essa prática de Mestre Zé ao lobisomem por andar vagando à noite. “No
outro dia corria por toda a parte que o mestre José Amaro estava virando lobisomem. Fora
encontrado no mato, na espreita da hora do diabo; tinha visto sangue de gente na porta dele”
(REGO, 2013, p. 61). Ninguém, nesse momento, conseguiria compreender o porquê de Mestre
Zé andar durante a noite, nem sua mulher poderia entender, porque o seleiro era muito
introspectivo, esquisito, adquirindo umas performances diferentes do que eram antes, tornando-
se agora áspero para com as pessoas, e um “gritador”.
O mestre sempre estava a andar nas estradas com o propósito de liberdade, de sentir a natureza,
na solidão, mas foi interpretado como um animal sanguinário, figura ameaçadora, mesmo
sabendo quem ele era. Parece que durante a noite ele se transfigurava em um bicho que causava
temor. Sempre havia um dizendo:
- É ele, é o lobisomem.
Correu gente, mulheres gritaram.
Um homem falava:
- É o mestre Zé Amaro, povo besta.
(REGO, 2013, p. 100)
Mestre Zé não entendia aquela reação, então o homem foi lhe falar:
- Estão com medo do senhor.
- De mim?
- É verdade. Este povo é besta mesmo
(REGO, 2013, p. 100)
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 127
Lobisomem foi uma associação muito forte que fizeram ao mestre artesão que ficou muito
preocupado com essa situação, com essa ideia que corria de considerá-lo um bicho. Estava
Mestre Amaro frente a uma crise de identidade e se questionava: “Por que tinham medo dele?
[...] Estaria assim tão monstruoso que espantasse o povo?” (REGO, 2013, p. 102).
Mestre Zé a cada dia que se passava ficava mais estranho e sua mulher já estava descobrindo
essa crise de identidade através da “[...] cara do marido mais triste, mais amarelo os seus olhos,
mais inchadas as pernas” (REGO, 2013, p. 103), ou seja, elementos externos que o caracterizam
como amargo, silencioso, doentio, “O mestre Amaro com as pálpebras inchadas parecia um
monstro” (REGO, 2013, p. 115) e a parte interna, a pulsão violenta, a angústia, amargura, os
instintos mais profundos e selvagens aproximam, de certa forma, à figura do lobisomem.
Na condição social e psicológica que Mestre Zé estava, marca o seu modo de ver o mundo e
não se conforma com a situação de ser inferior a um senhor de engenho que passa por sua casa,
mas com ele não fala. Além disso, o seu ofício que estava por acabar porque não teve um filho
para dar continuidade e perpetuar o nome do pai, trabalhar para classe inferior a ele, a loucura
da filha que a cada crise o incomodava mais e mais, a indiferença da mulher, a vida com certeza
estava amarga. Podemos associar isso a sua identidade, ao seu comportamento rude com a filha
capaz de surrá-la com a sola, o que ocasionou o desmoronamento da família que era centrada
no patriarcal.
Assim, não apenas a família manteve a distância do seleiro, mas, a sociedade como um todo. O
tempo passava e o mestre seleiro continuava na mesmice, vivia no mesmo plano como se
estivesse estacionado, com as mesmas palavras amargas, com a mesma aparência, sempre a
espera do seu a admirável amigo cangaceiro Antônio Silvino, que servia-se dos seus favores e
que devido ajudar seus cangaceiros a pedido dele, o celeiro foi preso e humilhado como um
bandido.
A mulher o abandonou, a filha foi para o manicômio, o senhor de engenho o expulsou de suas
terras porque Mestre Amaro era uma ameaça para o povo da Várzea e tudo começa a decair,
mas sua cosmovisão permanece a mesma, movida pelo seu orgulho, ele não se rende, não se
descola daquele espaço, como se fosse a ele fixado, tanto que morre lá mesmo, mostrando que
não se rende às mudanças, nem se dobra a ninguém.
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 128
Em um momento de crise existencial, em um estado de loucura, suicida-se com sua própria faca
que usava para executar o seu ofício que era o seu único orgulho na vida. Assim, enterrou-a no
seu peito, ele próprio sem precisar da ajuda de ninguém nem mesmo na hora da partida, do
desapego da residência em que vivia desde os tempos do seu pai.
Na segunda parte da narrativa temos o personagem central Seu Lula que não era um senhor de
engenho, tornou-se um por conta do seu sogro Tomas Cabral de Melo, homem de muita fibra
que deu origem ao Engenho Santa Fé, garantiu que sua filha, Amélia, estudasse em Recife e
casasse com um homem rico, de boa família, de fibra para comandar seu engenho quando ele
partisse, pois, ele não havia tido filho. E quando chegou de Pernambuco, Lula de Holanda,
parente de sua família, rapaz estudado, filho de Antônio Chacon, homem admirado pelo Tomás
Cabral de Melo, Tomas Cabral pensou que ele seria um bom partido para sua filha Amélia que
estava a ficar solteirona.
Após casar-se Lula de Holanda com Amélia, o velho Tomás percebe que o genro não tem jeito
para comandar o engenho e tocá-lo para frente com fogo, isso era um problema que o
incomodava, “o diabo era ele não tomar gosto pelo engenho” (REGO, 2013, p. 210). Então, o
velho ficava se perguntando “o que seria do Santa Fé sem ele, sem o tino do velho Tomás que
lhe conhecia as entranhas da terra, que lhe dera nome, que o criara do nada?” (REGO, 2013, p.
210). Seu Lula não assumiu o ofício que a sua posição social lhe admitia, a de senhor,
administrador de engenho, seu modo de ver o mundo estava centrado no passado, nos valores
familiares de elegância, trazia consigo o retrato do pai que fora assassinado. Seu Lula era um
homem ligado intrinsecamente ao passado, no entanto, isso o prejudicava porque ele teria que
olhar para o tempo presente em que estava casado e precisava de trabalhar “O diabo era a vida
descansada do genro, aquele paradeiro, aquela distância da terra” (REGO, 2013, p. 212).
O Santa Fé era muito produtivo, era o único que tinha piano em casa e cabriolé (trazido por
Lula) que representava nobreza, poder, e nesse espaço e tempo, manda quem tem mais, quem
tem poder.
Com a morte do capitão Tomás Cabral de Melo, Seu Lula torna-se o responsável pelo engenho,
e como Mestre Amaro, adquire outra performance, começa a espancar sem necessidade os
escravos, a gritar e ser rude com a sua sogra e esposa. Ele parece ter o prazer de maltratar, de
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 129
ver o sofrimento dos miseráveis escravos, pois “O chicote cantava no lombo dos negros, sem
piedade” (REGO, 2013, p. 231) e estes, os via como um monstro, um sem coração. A partir
disso, “a fama da maldade do feitor espalhara-se pela várzea” (REGO, 2013, p. 231). O senhor
“mal feitoso” não se esforçava para acompanhar de perto o que estava acontecendo com suas
lavouras, não conseguindo exercer a posição que lhe foi atribuída.
Vivia assim estacionado no sentido de que nada fazia para o progresso do seu engenho, apenas
fazia com que os bens da sua família fossem decaindo cada vez mais, e nem desse declínio ele
se dava conta, queria era maltratar seus escravos e se exibir na cidade, indo à igreja de
carruagem, com sua esposa, está cheia de invejáveis joias, e se ajoelhava perante o altar como
um homem bom, visto que esse gesto causava estranhamento no povo do Santa Fé. Com todos
esses maus tratos e devido à má administração, a consequência é a pobreza que ocorre de modo
gradual sendo agravado com a abolição da escravatura, momento em que os escravos vão
embora das terras pertencentes ao senhor de engenho Seu Lula. “Todos se foram, todas as
negras ganharam o mundo. Não havia quem quisesse ficar no Santa Fé.” (REGO, 2013, p. 232)
exceto o boleeiro do cabriolé, o negro Macário (REGO, 2013, p. 237). Com isso, não há mais
produção de açúcar.
Seu Lula tem uma filha de nome Neném, moça educada que arruma um pretendente, moço de
família simples e o pai a proíbe de se aproximar do rapaz. Após a proibição, a moça se isola em
um processo de depressão. O senhor de engenho em meio à ruína do seu patrimônio, fica doente,
tendo crises epilépticas nas quais angustia sua esposa Amélia. Como se não bastassem tamanhas
ruínas, seu Lula, sempre faz referência a sua família “Lula falava de sua família de Pernambuco
com soberba, era o seu orgulho de raça” (REGO, 2013, p. 233). Além desse orgulho há o
orgulho patriarcal de mandar e desmandar em tudo, de gritar com os outros e a mulher na atitude
de ouvir e não responder ao marido quando este tomar uma decisão.
Lula, embora possuindo uma boa educação, nas suas atitudes é rude, muito bruto com os outros
moradores dos engenhos, “Por que Lula falava assim contra o povo dos engenhos? Não era ele
parente do povo de seu pai?” (REGO, 2013, p. 233-234) perguntava Amélia.
O senhor de engenho, embora possuindo muitos bens, estava ao ponto da pobreza, todo o
engenho poderia ser desmoronado se não houvesse mão de obra para fazer a moenda moer a
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 130
cana. Mas, cadê os escravos que faziam esse trabalho? Foram libertados. Em outros engenhos,
muitos permaneceram, porém, com Lula a maioria foi embora porque ele não soube respeitar o
outro, sempre tratou os escravos com ignorância, brutalidade como se eles fossem ficar restritos
e dependentes dele por toda a vida.
Lula só tinha a sua filha agora, porque a sua mulher pouco dava importância, já estava velho,
as tensões se intensificaram frente ao mundo que se transformava, resultando em mazelas e
loucura, mesmo assim, o senhor de engenho não se dobra, utiliza-se das joias, vestimentas finas
e na arrogância de não falar com ninguém, tentando manter o que se desfazia e que todos do
Pilar poderiam ver nos olhos, a hipocrisia em usar a igreja como refúgio. “Lula é como se não
soubesse das dificuldades por que passavam [...] naquela devoção, no seu rezar, era como um
homem de outro mundo [...] indiferente ao seu tempo” (REGO, 2013, p. 224).
Com efeito, seu Lula acaba se alto destruindo, suas crises cada vez mais recorrentes, com fortes
delírios, ilusões, “[...] Lula de Holanda encerra-se em si mesmo, até literalmente [...] e passa a
viver de um sonho- a lembrança de glórias passadas- verdadeiro delírio de grandeza [...]”
(COUTINHO, 1991, p.437).
Apesar da tamanha diferença de classe social que separa o seleiro mestre José Amaro e o senhor
de engenho seu Lula, na qual o primeiro vive de favor nas terras do segundo, é perceptível os
dois personagens tem muita coisa em comum: uma filha e não um filho que pela família
patriarcal, o ideal é que se tenha um varão, ambas as filhas terminam solteironas e insanas, a
Neném de Lula fica depressiva e se isola e Marta vai para o sanatório. Além disso, as esposas
sofrem a brutalidade dos maridos, tanto Sinhá quanto Amélia sofre com o desprezo dos maridos
que se assemelham a bichos/animais brutos, com uma diferença nesse aspecto, Amélia fica até
o fim com Lula e Sinhá abandona Mestre Amaro.
Ainda nessa analogia, percebemos os dois personagens centrais aqui já descritos deslocados do
tempo existencial, com uma visão de mundo restrita, bloqueada, embora tendo consciência das
mudanças tecnológicas, industriais, abolicionistas, eles resistem a tudo isso, buscando refúgio
em algo mais poderoso. Em Mestre Amaro, o cangaceiro Antônio Silvino, com a fama de
homem justiceiro que só de olhar para ele treme e o Lula se refugia na igreja, no apego as missas
e penitências em sua casa. Além disso, há a doença de Amaro que o mostra como um bicho,
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 131
algo feio e da mesma forma ocorre com Lula que tem epilepsia, qualquer coisa que o aborrece,
ele cai e fica numa condição lamentável que mostra o homem como um nada.
Tanto Mestre Amaro quanto o Lula são orgulhosos, cada um de acordo com seus princípios,
não se rebaixam, não cedem, resistem e com isso enlouquecem como consequência e ambos
passam por um processo de morte, parecendo ser o estágio “final” do homem frente ao mundo
em que está situado na ficção. Amaro suicida-se quando “olhou para os utensílios, para os seus
instrumentos de trabalho, e, vendo-os para um canto [...] se sentiu um inútil, perdido para
sempre” (REGO, 2013, p. 353). Mas Lula passa por uma morte diferente, houve um isolamento
social resultante, talvez como castigo, reações das próprias ações. “Nunca mais que o cabriolé
de seu Lula enchesse as estradas com a música de suas campainhas. A família do Santa Fé não
ia mais à missa aos domingos [...] na casa-grande só havia tristeza e desânimo” (REGO, 2013,
p. 332).
Na terceira parte, centrada no personagem Vitorino Carneiro da Cunha, que teima em ser
chamado pela patente de “Capitão” é caracterizado como um herói que busca resolver os
problemas das pessoas, depositando confiança na justiça que, naquele espaço e tempo, era algo
utópico, pois mandava e desmandava quem tinha poder. Mesmo assim, o chamado “Quixote
nordestino” (COUTINHO, 1991), movido pela verdade e princípios éticos decide ser herói por
si mesmo, por suas próprias forças, para que a justiça acontecesse, não precisava de ninguém
com ele, apenas o seu punhal para se defender.
Vitorino também é exposto por último na ficção, com o propósito de unir os fragmentos
apresentando assim o tempo futuro, ou seja, que ainda não veio, mas que é projetado na cabeça
do Capitão, através de um sonho político que traria a justiça e humanizaria a cidade de Pilar,
como ele mesmo pensava: “Com Vitorino Carneiro da Cunha não haveria ladrões, fiscais de
feira roubando o povo. Tudo andaria na correta, na decência” (REGO, 2013, p. 376).
Ele foi o único personagem determinado a enfrentar a tudo e a todos, enfrentou Antônio Silvino
por causa de Lula e tenente Maurício, por causa do seu compadre Amaro, homens muito
temidos, mas Vitorino “tudo podia fazer e nada temia” (REGO, 2013, p. 376).
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 132
Na verdade, “os [seus] pensamentos [eram] voltados para a vida dos outros” (REGO, 2013, p.
375). O capitão era o único que deixava de pensar em si para pensar no bem dos outros. O que
implica dizer que sua visão é mais ampla, tanto de solidariedade quanto de desapego do passado
e do presente, pois o que lhe importava era o futuro, por isso, não pensava em riqueza, mas
exigia respeito e reconhecimento, “ele era homem que não se entregava aos grandes. Que lhe
importava a riqueza de José Paulino? [...]”.
De fato, o narrador e as atitudes do personagem mostram a personalidade e a visão de mundo,
o que é totalmente diferente se comparado ao de Lula e Amaro. Mas é Vitorino que vai unir
toda a narrativa, dando o conhecimento total dos seres, fazendo as vozes coexistirem. Na voz
de Vitorino, o tempo vivenciado não importa, a decadência dos engenhos não é considerado
problema, pelo menos não é demonstrado na ficção, “a sua aparente loucura é sinal de grandeza
humana” (AZEVEDO, 1987, p. 217). Assim, Coutinho (1991) considera que “a fala desses três
protagonistas, bem como as dos demais personagens do romance oferecem visões diferentes da
problemática básica da narrativa, e a ideologia que se depreende dessas visões forma um quadro
complexo” (COUTINHO, 1991, p. 438).
Assim, a ficção é vivida pelos personagens que dão vida à trama. Dessa forma, o mundo “irreal”
vai sendo interpretado pelos leitores de acordo com a sua concepção de mundo, seu estado
emocional, a época em que vive, entre outros fatores, pois a obra literária permite essa
participação na construção de sentidos da mesma, por ser o leitor literário de grande importância
no que diz respeito aos sentidos ficcionais. Com efeito, ainda na visão de Candido (1993) a
literatura é atemporal, bem como universal, no sentido de que em qualquer época e em qualquer
lugar do mundo um leitor uma vez que tenha acesso a acervos literários, irá fazer sua
interpretação, contribuindo para a construção desta. Portanto a literatura está sempre aberta para
múltiplas interpretações.´
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista os elementos regionalistas de uma realidade dos engenhos da cana de açúcar,
percebemos o foco que José Lins do Rego atribui à figura do homem, seja ela a figura patriarcal,
resistente, trabalhador, idealizador, autoritário, orgulhoso, tirano com várias facetas e
performances, mas homem social, individualista e cultural tal qual notamos nos dias de hoje.
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 133
Todos esses adjetivos estão presentes em José Amaro, Lula de Holanda e capitão Vitorino que
mediante o destino só restou a loucura, esta que resultou em “Fogo Morto”.
“Fogo Morto” não se quer referir somente aos engenhos de açúcar que entraram em decadência,
mas também se refere às personagens que entram em processo de declínio, resultado da
resistência frente ao tempo vivenciado e o orgulho para se render às mudanças que ocorriam no
espaço das mesmas, que vivenciavam o enredo.
Em Mestre Amaro, a sua única confiança estava centrada no cangaceiro Antônio Silvino que
por ele nada fez, aliás, o nada ou niilismo está muito presente na vida do personagem Mestre
Amaro que na sua vivência não conseguiu fazer nada e até o que tinha acabou sendo retirado.
Amaro era um seleiro e tinha uma “tenda” para morar, uma esposa, uma filha, possuía até alguns
animais (bode, galinhas, porcos), além do seu trabalho com a sola, um ofício de artesão, e, no
final tudo estava vazio. Com isso, o narrador nos dá conhecimento de um Amaro mais amargo,
sozinho em todos os sentidos, pois sua filha Marta vai para o manicômio, sua mulher deixa de
falar com ele e sai de casa, abandonando-o, vai perdendo sua clientela e seu trabalho vai
declinando, só possuía a doença que era só sua, levando as pessoas a chamá-lo de lobisomem e
a ter medo do mestre, além disso, todos os seus questionamentos internos e/ou psicológicos
diante da vida parecia massacrá-lo e desfigurá-lo ainda mais, e como se ainda não bastasse o
senhor de engenho o despeja de suas terras por vê-lo como uma figura ameaçadora.
Portanto, nada restou ao Mestre Amaro que vivia a maior amargura da sua vida na velhice,
restando-lhe a morte e não hesitou em cometê-la, justamente com um instrumento simbólico do
seu trabalho, a faca que cortava a sola serviu para aniquilação de sua pessoa, marcando assim,
sua visão existencial em resistência ao mundo em que estava inserido, afinal, com a morte de
Amaro em estado de loucura existencial, põe fim ao processo de artesão, simbolizando também
o fim de uma era.
Da mesma forma acontece com Lula de Holanda que tinha em si o poder autoritário sobre a
mulher e a filha, além dos escravos que serviam como mão de obra para o trabalho no Engenho
Santa Fé, um homem que ficou responsável pelo engenho do sogro e não soube administrar por
conta da sua soberba. Com suas tensões psicológicas, principalmente quando ele percebe os
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 134
negros deixando o engenho após a libertação proposta pela Lei Áurea (1888), entra em processo
de decadência, enlouquece, a doença da epilepsia se torna maior, o medo de que alguém venha
e o mate o obriga a isolar-se e buscar refúgio na igreja, nos santos expostos em sua casa.
O engenho parou de moer, a filha não casara, uma cunhada louca não parava de falar e tudo
começou a desmoronar na Casa-grande, tudo que o sogro conquistara foi se desfazendo pouco
a pouco como uma areia por entre os dedos e toda a situação ocorrente na vida de Lula e sua
família foi provocando o seu declínio, mesmo o Santa Fé minguando, o Senhor de Engenho
com seu orgulho patriarcal e soberba não cede, procura resistir e termina como um morto em
um processo de morte social.
Na verdade, Mestre José Amaro e seu Lula têm muitas características em comum e situações
que pareciam castigo, será do destino? Como se os personagens tivessem de passar por tais
situações como ataques nervosos e pela loucura como resistência a um tempo em que eles
estavam fixados. Contudo, a morte tem o poder de cessar, seria então a melhor saída frente as
tensões vivenciadas pelos personagens ou seria uma representação de seus fracassos levando
em conta que Amaro se suicidou, mas Lula de Holanda ficou na condição de um morto que
ainda vive, porém, ambos de “Fogo Morto”.
Contudo, nem tudo está perdido, há o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha que ainda vive, o
famoso “Papa Rabo” que não é respeitado pelos menores, mas que luta para que isso aconteça,
nem que seja pelo seu punhal, vive uma loucura existencial marcado por essa zombação feita
menino de rua .
Provavelmente, é ele o personagem mais humano, uma figura, como menciona Coutinho
(1991), de herói quixotesco nordestino que quer resolver os problemas de todos,
independentemente de quem seja, almeja a justiça e sonha com o seu triunfo na política, pois
acredita que só haverá justiça e desenvolvimento no Pilar se a sua pessoa estiver no comando.
É, enfim, um homem que não estava ligado ao passado como Lula, nem ao presente como
Amaro, mas ao futuro, naquilo que há de vir, porém, não obtém sucesso, como confirma
Coutinho (1991) ainda há valores que o prendem como o seu orgulho, diante do título de
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 135
capitão, ou seja, a patente, e de ser parente de senhor de engenho e o preconceito diante dos
camumbembes (negros, pobres) que o impedem de avançar e concretizar os seus sonhos.
Sendo assim, comparando as loucuras dos três personagens e tomando uma interpretação de
que cada um está ligado a um tempo (Lula, passado, Amaro, presente e Vitorino, futuro) temos
as faíscas de fogo em Vitorino que estava ainda com vitalidade, mesmo através dos sonhos,
entendo aqui os sonhos, segundo Freud (1999) como uma projeção de desejos, de que iria pôr
as coisas (no Pilar) em ordem, todos teriam de obedecer a lei, seja ele rico ou pobre, não haveria
regalias para os grandes e daí “imaginou-se entrando na casa da câmara com o povo dando
vivas a ele” (REGO, 2013, p. 378).
Por fim, poderia então os sonhos de Vitorino serem uma loucura da sua mente ou uma projeção
da realidade futura? Visto que foi caracterizada e descrita pelo narrador como personagem de
maior honestidade além de maior sensatez comparado aos outros. Seria ele, então, a “faísca”
que faria o fogo viver ou seria ele também um “Fogo Morto”? Entendendo que os seus sonhos
não se concretizaram.
REFERÊNCIAS
ABDALA JR, Benjamin. Os ritmos do tempo em torno do engenho. In Rego, José Lins.
(Org.). Fogo Morto. 75. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013, p. 9-20.
AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. José Lins do Rego: trajetória de uma obra. João Pessoa,
Fundação Espaço Cultural da Paraíba, 1987.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
BUENO, Luís. Divisão e unidade no romance de 30. In: WERKEMA, Andréa Sirihal. (org.).
Literatura brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
CANDIDO, Antonio. Mundo desfeito e refeito. In: _________. Recortes. São Paulo: Cia.
Das Letras, 1993.
CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio. et. al. A
personagem de ficção. 12. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, J. Aderaldo. Modernismo. 5. ed. Rio de Janeiro: DIFEL,
1975.
CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO
Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima
Anais – FLIPA | 136
COUTINHO, Eduardo F. A relação arte/realidade em Fogo Morto. In: COUTINHO, Eduardo
F; CASTRO, Ângela Bezerra de (Org.). José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização; João
Pessoa: FUNESC, 1991.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1999.
LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 30,
2000.
REGO, José Lins do. Fogo Morto. 75. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.