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Anais FLIPA | 118 CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO Cristiana Soares de Oliveira Pós-graduada em Metodologia do ensino de Língua Portuguesa e Literatura pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci UNIASSELVI, Paulo Afonso, Bahia. [email protected] Luana Rafaela dos Santos de Souza Mestranda em Dinâmicas Territoriais e Cultura pela Universidade Estadual de Alagoas UNEAL, Arapiraca Alagoas. [email protected] Taís da Silva Lima Mestranda em Literatura pela Universidade Federal de Alagoas UFAL, Maceió, Alagoas. [email protected] RESUMO Neste artigo, ao discutir o romance “Fogo Morto”, José Lins do Rego, adentramos em aspectos regionalistas com enfoque para a decadência dos engenhos frente a um mundo em transição. No romance, Rego inaugura um novo Regionalismo que coloca o homem em primeiro plano, expondo as tensões que marcam a existência humana. O romance “Fogo Morto” utiliza-se da metáfora para mostrar não só o declínio de uma estrutura sociocultural, mas o declínio também do homem que resiste. Buscamos embasamento teórico em Azevedo (1987), Bosi (2006), Coutinho (1991), Candido (1993; 2011), Castello (1961), dentre outros a fim de analisar os aspectos sociais, históricos e culturais que atravessam o romance. Palavras-chave: Regionalismo. Decadência. Romance CRISIS, DECADENCE AND TRANSITION IN FOGO MORTO ABSTRACT In this article, by discussing José Lins do Rego’s novel Fogo Morto, we enter regionalist aspects focusing on the decadence of the sugar cane plantations in face of a world in transformation. In the novel, Rego inaugurates a new regionalism which places man in the foreground, exposing the tensions that remark human existence. The novel Fogo Morto makes use of the metaphor to show not only the decline of a sociocultural structure, but also the decline of the resisting man. We based on the theories of Azevedo (1987), Bosi (2006), Coutinho (1991), Candido (1993; 2011), Castello (1961), among others, in order to analyze the social, historical and cultural aspects that cross the novel. Keywords: Regionalism. Decadence. Novel.

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Page 1: CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO · Literatura Brasileira, Bosi (2006) expõe que no Romance de 30 há obras regionalistas como, por exemplo: A Bagaceira de José Américo

Anais – FLIPA | 118

CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO

Cristiana Soares de Oliveira

Pós-graduada em Metodologia do ensino de Língua Portuguesa e Literatura pelo Centro Universitário Leonardo

da Vinci – UNIASSELVI, Paulo Afonso, Bahia.

[email protected]

Luana Rafaela dos Santos de Souza Mestranda em Dinâmicas Territoriais e Cultura pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL, Arapiraca

Alagoas.

[email protected]

Taís da Silva Lima Mestranda em Literatura pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL, Maceió, Alagoas.

[email protected]

RESUMO

Neste artigo, ao discutir o romance “Fogo Morto”, José Lins do Rego,

adentramos em aspectos regionalistas com enfoque para a decadência dos

engenhos frente a um mundo em transição. No romance, Rego inaugura um novo

Regionalismo que coloca o homem em primeiro plano, expondo as tensões que

marcam a existência humana. O romance “Fogo Morto” utiliza-se da metáfora

para mostrar não só o declínio de uma estrutura sociocultural, mas o declínio

também do homem que resiste. Buscamos embasamento teórico em Azevedo

(1987), Bosi (2006), Coutinho (1991), Candido (1993; 2011), Castello (1961),

dentre outros a fim de analisar os aspectos sociais, históricos e culturais que

atravessam o romance.

Palavras-chave: Regionalismo. Decadência. Romance

CRISIS, DECADENCE AND TRANSITION IN FOGO MORTO

ABSTRACT

In this article, by discussing José Lins do Rego’s novel Fogo Morto, we enter

regionalist aspects focusing on the decadence of the sugar cane plantations in

face of a world in transformation. In the novel, Rego inaugurates a new

regionalism which places man in the foreground, exposing the tensions that

remark human existence. The novel Fogo Morto makes use of the metaphor to

show not only the decline of a sociocultural structure, but also the decline of the

resisting man. We based on the theories of Azevedo (1987), Bosi (2006),

Coutinho (1991), Candido (1993; 2011), Castello (1961), among others, in order

to analyze the social, historical and cultural aspects that cross the novel.

Keywords: Regionalism. Decadence. Novel.

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CRISE, DECADÊNCIA E TRANSIÇÃO EM FOGO MORTO

Cristiana Soares de Oliveira | Luana Rafaela dos Santos de Souza | Taís da Silva Lima

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1 INTRODUÇÃO

Compreendendo a Literatura como arte humanizadora dotada de elementos estéticos e

ideológicos sempre está em nexo com o mundo, de forma que o fictício surge com base no

“real”, porém, superando esse “real”, construindo assim um mundo “irreal”, artístico em que

tudo é possível, porque parte de uma criação sensível do artista que faz o “irreal” ganhar vida

por meio das palavras, pois é a linguagem que vai nortear toda e qualquer obra literária.

Tomando para análise o romance “Fogo Morto” de José Lins do Rego, publicado em 1943,

podemos perceber o embricamento do real e o fictício através da memória do escritor, da

ambientação, do espaço dos engenhos de açúcar, do tempo histórico, do lugar da Paraíba, o

trabalho açucareiro, a situação socioeconômica e política das oligarquias rurais e o homem

como foco principal, um homem social, introspectivo, político, cultural e ideológico, tudo isso

exposto através de metáforas, por exemplo, “Fogo Morto” e ambiguidades através de uma

linguagem opaca, com traços dramáticos e líricos.

Esse romance é classificado como regionalista por conter elementos regionais, especialmente

do Nordeste brasileiro, pressuposto defendido pelos modernistas de 1930 que possuíam o desejo

de transitar para o interior e também expor os problemas e exuberâncias existentes nesse meio

que nunca foram reveladas pela arte literária.

Sabemos que o Modernismo foi um movimento que surgiu no Brasil no século XX com a

pretensão de liberdade do fazer literário vigente, rompendo com a linguagem acadêmica e a

forma padronizada e perfeita, além de trazer à tona assuntos da realidade brasileira, uma espécie

de neorrealismo. Esses ideais inicialmente não foram bem compreendidos e aceitos, só em

1930, com o amadurecimento dos ideais, o movimento adquiriu estabilidade e consolidação. A

prosa, nesse período, estava dividida em Regionalista e Intimista.

Cabe ressaltar que temáticas regionalistas já surgiram anteriormente ao Modernismo, o próprio

Romantismo, Realismo e Naturalismo já utilizavam o termo para fazer referência às riquezas

nacionais, porém, no Modernismo há uma ressignificação do termo, que deixa de focar na

natureza e reflete o homem, pondo toda ênfase neste sujeito transformador. Quanto a prosa de

caráter intimista é aquela baseada no psicologismo, no interior do homem, algo mais

introspectivo.

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A prosa regionalista do Modernismo tratava de assuntos relacionados ao Nordeste,

principalmente através de José Lins do Rego, um paraibano, romancista que teve a sua vida

ligada aos engenhos o qual decidiu escrever sua realidade e de tantas pessoas, tornando-as

ficções, como por exemplo, em “Menino de Engenho” (1932) em que relatou suas memórias

da infância, iniciando o “Ciclo da Cana de Açúcar” e terminou esse ciclo com “Fogo Morto”

que não deixa de ser um romance memorístico, mas não da mesma forma que “Menino de

Engenho”, que é autobiográfico. “Fogo Morto” é uma memória coletiva (do senhor de engenho,

do artesão, do escravo, da dona de casa, etc.), por isso narrada em terceira pessoa.

No romance “Fogo Morto” percebemos a centralidade em três personagens que coexistem em

um espaço de tensões: Mestre Amaro que mora no engenho Santa Fé de Lula de Holanda que

se tornou Senhor de Engenho e Vitorino Carneiro da Cunha que é uma figura quixotesca

nordestina que procura resolver o caos existente entre os dois primeiros personagens. Esses

personagens vivem em tempos e espaços distintos, mas suas histórias se entrelaçam gerando

tensões.

De fato, José Lins do Rego consegue com suas obras, inclusive “Fogo Morto” concretizar a

perspectiva nacionalista do Modernismo, provando que a ruptura não só existiu em 1922 nos

campos artísticos, mas também no conteúdo da obra, na ficção, estava realmente ligado à ideia

de renovação literária do Modernismo.

2 O “NOVO” REGIONALISMO DE JOSÉ LINS DO REGO APLICADO EM “FOGO

MORTO”

Como bem conhecemos, a segunda fase do Modernismo está dedicada à prosa e especialmente

ao Regionalismo, com o Romance de 30, que é uma classificação problemática, pois segundo

Bueno (2012) é errôneo classificarmos que todos os romances surgidos em 1930 venham a ser

regionalistas e os que tenham surgido posterior a essa época não sejam enquadradas, pois se

compreende que o Regionalismo supera o tempo histórico, originando-se de fatores da cultura

regional, não havendo, necessariamente, delimitação de tempo. Contudo, na História da

Literatura Brasileira, Bosi (2006) expõe que no Romance de 30 há obras regionalistas como,

por exemplo: A Bagaceira de José Américo de Almeida, O Quinze de Rachel de Queiroz, Vidas

Secas, São Bernardo, Caetés de Graciliano Ramos, Menino de Engenho, Fogo Morto de José

Lins do Rego etc.

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Segundo Coutinho (1991) o regionalismo proposto no Romance de 30 possuía ideais miméticos

em que a paisagem apareceria em primeiro plano e o homem com toda a sua complexidade

ficaria relegado ao segundo plano. Portanto, pertencente a esse grupo de romancistas, José Lins

do Rego faz uma ruptura, pois deixa claro que o eixo da obra, ou melhor, a espinha dorsal é o

homem e é ele que deve ser a prioridade na ficção regionalista e assim elenca suas obras nessa

perspectiva em que não ignora a natureza, mas foca no homem interage com o meio.

José Lins do Rego ultrapassou o tempo, ou seja, avançou décadas com o novo Regionalismo

porque segundo Castello, (1961, p. 185) “[...] o Regionalismo para ele não é a simples fotografia

de traços típicos ou característicos de uma região. É muito mais. É o depoimento sentido,

profundamente humano e lírico [...]”. Ou seja, como um nativo brasileiro, levando em

consideração a sua amplitude, podendo ainda o espaço regional da Paraíba ser o espaço regional

de Alagoas e de tantos outros países, ser de fato universal e atemporal como bem enfatizava

Candido (1993).

Assim, em sua obra “Fogo Morto”, Rego traz o Regionalismo de modo diferenciado, falando

com propriedade, centrado numa realidade que em vivera transfigurando-a, metaforizando-o,

transformando-a, dando vida ficcional, Conforme Castello (1961, p. 185) “O nordeste não

aparece nos seus romances como tema ou imposição doutrinária, mas manifesta-se como a

expressão lírica de um nordestino a evocar sua terra; não é uma atitude de fora para dentro, mas

de dentro para fora [...]”, afinal ele é um nativo brasileiro e quando fala do nordeste paraibano,

fala com segurança do seu espaço não meramente observado, mas vivenciado, refletindo os

problemas de natureza social, cultural, política e econômica na perspectiva de mostrar o Brasil

para os próprios brasileiros que desconhecem muitas realidades.

Por este motivo, José Lins do Rego inicia seus romances a partir de sua realidade, o que

desagradou à crítica, por serem memorísticos e centrarem em um espaço e ambientação de

engenhos, como é o caso de “Menino de Engenho” em que o narrador em primeira pessoa conta

suas histórias de criança em um ambiente de engenho, que podemos dizer está relacionado com

a vivência do próprio autor, visto que Rego, sendo órfão de mãe, mora com os avós no Engenho

Corredor, espaço do qual ele vivencia e expõe em seus escritos, afinal, podemos dizer que José

Lins do Rego é um homem de memória.

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E por ser inserido nesse contexto do engenho e participar desse processo político e econômico,

resolveu relatar experiências vivenciadas, observadas de forma espontânea em uma linguagem

popular, regional, o que torna o leitor participativo e coautor no processo de produção dos

sentidos e compreensão dos romances.

É atribuído a ele, o novo Regionalismo moderno, o que implica dizer que não são apenas

protestos ou denúncia socio-política, mas, mostra uma sensibilidade da vida, desse olhar para o

real e a transfiguração para o meio fictício de modo que a arte supere todas as lacunas deixadas

pelo que é real.

Na verdade, é com “Fogo Morto” que isso fica muito nítido, pois ao pensar e planejar cada

personagem em um mesmo ambiente, mas com visões distintas do mundo, presos, fixos a um

tempo que estava em transição, em mudança, é estar atribuindo ao homem a função especial no

romance, mostrando não só os problemas da decadência dos engenhos, dos poderios das

oligarquias rurais, tenentes e cangaceiros e sim de homens que entram em conflito com os

outros, quando interagem, e consigo mesmo, desconhecendo a sua identidade que por

resistência entra em crise.

Portanto, o romance “Fogo Morto” cela esse novo regionalismo preocupado com o Brasil, com

o povo brasileiro, na formação de uma consciência crítica em relação ao leitor, que supera a

Segunda Fase do Modernismo, ou seja, daquilo que seria previsto.

3 COEXISTÊNCIA DE VÁRIAS VOZES NA TRIPARTIÇÃO DA NARRATIVA

“FOGO MORTO”

O romance modernista “Fogo Morto”, publicado em 1943 está dividido em três partes, cada

uma com um personagem central, essas partes são fragmentadas e também se entrelaçam, dando

a totalidade da narrativa ficcional. Sendo assim, totalizando assim três, um número bastante

significado que possibilita várias interpretações.

Na primeira parte, temos o personagem central o seleiro mestre José Amaro, na segunda parte

o enredo gira em volta do senhor de engenho Luís César de Holanda Chacon e a terceira parte

tem-se o personagem Capitão Vitorino Carneiro da Cunha. Essa última parte une as duas

primeiras que aparentam fragmentadas, dando a impressão de que a narrativa não tem

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fundamento. Assim, a tripartição dessa ficção se encontra na junção dos fragmentos que

formam o enredo com toda a sua completude proporcionada pelos personagens que vão dando

vida a toda obra, isso porque “a personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos”

(CANDIDO, 2011 p.54).

A narrativa aqui analisada apresenta uma situação fictícia baseada no real, pois José Lins do

Rego, autor dessa obra, termina o Ciclo da Cana de Açúcar expondo os poderes oligárquicos

rurais, a vida nos engenhos e a sua decadência, pois segundo Abdala Jr. (2013) no Brasil se

vivenciava a decadência dos engenhos e as tensões frente ao novo mundo que surgia.

Entendendo que, o que acontece no mundo é também incorporado na arte literária e

transformado artisticamente, porque a literatura, conforme Candido (1993), está sempre em

nexo com o mundo, não se tornando isolada e indiferente as transformações sociais e culturais,

pois são essas transformações que, de alguma forma, modificam a forma de pensar e agir de

uma sociedade. Além disso, Abdala Jr. (2013) complementa que José Lins do Rego possui uma

força artística sincera dessa transposição de fatos históricos para ficcionais de modo que a ficção

supera a realidade.

Assim, em “Fogo Morto” há uma transfiguração do real para o ficcional de modo tramado,

ocorrendo o processo de verossimilhança. Essa transfiguração e transgressão do real para o

ficcional é perceptível na vida dos personagens protagonistas, que são segundo Candido (2011)

seres fictícios que só possuem vida no enredo, esses personagens vivem em constantes

conflitos, magoados, ansiosos, raivosos, nas quais suas próprias angústias acabam tornando-os

solitários, isolados, a tal ponto que entram em constante declínio desligando-se cada vez mais

do mundo e das pessoas.

Dessa forma, podemos perceber que no romance não apenas há somente uma queda do

patrimônio dos personagens, mas, sobretudo deles próprios, sendo notório que o enfoque nesse

romance está centrado na vida dos mesmos, sobretudo em Mestre Amaro, Lula de Holanda e

Capitão Vitorino. Isso se dá devido o romance estar focalizado na figura do homem com toda

a sua complexidade o que nesse momento, do Romance de 30, passa a ser o elemento central

da ficção.

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Nessa perspectiva, toda a narrativa é conduzida por um narrador em terceira pessoa que conhece

o externo e o interno dos personagens e que, na maioria das vezes, fala por eles, através de uma

linguagem artística simples, popular e lírica, muito representada pelo povo nordestino, o que

contribui para aproximação do leitor, para que ele se reconheça na ficção e tenha uma melhor

compreensão. De fato, José Lins do Rego, segundo Abdala Jr. (2013, p. 17) separava a “forma”

da criação dizendo que “a minha forma é muito simples, adotando soluções da língua do povo”,

isso porque o escritor tem que ter consciência de seu tempo, como assim ele demonstra que “o

escritor, para que possa dar testemunho, tem que trazer no sangue os anseios da coletividade

em que vive” (ABDALA JR., 2013, p. 19), ou seja, tem de se envolver formando um elo,

permitindo-nos entender que ao escrever, José Lins do Rego pensa no seu público leitor.

Pensando assim, podemos compreender, com base em Candido (2011), que a ficção é tramada

pelo autor que a planeja segundo o seu pensar. Por este motivo a falta de linearidade e

circularidade faz parte da constituição da ficção para a formação dos significados e das

interpretações, visto que a compreensão total se dá no momento em que a leitura é realizada por

completo, porque segundo Candido (2011) o conhecimento dos seres é fragmentado, o que

implica dizer que só lendo a obra por completo é que teremos o conhecimento dos personagens

e de todo o enredo, entendendo a sua construção.

Em “Fogo Morto” ocorre esse processo de que o conhecimento de Mestre Amaro não se dá na

primeira parte dedicado a ele, mas no decorrer das outras partes, da mesma forma que não

conhecemos o Lula por completo, muito menos saberíamos de imediato a função de Vitorino,

somente no decorrer da narrativa, principalmente na última parte é que vamos formando uma

consciência reflexiva e concreta dos personagens, através da coexistência das vozes, do

entrelaçamento dos mundos distintos e através de suas vivências e visões de mundo que ora se

assemelham, ora se distinguem.

Na primeira parte temos o protagonista José Amaro, popularmente chamado de Mestre Zé,

provavelmente por ser um artesão. O narrador inicia, descrevendo-o como um velho seleiro, de

aparência doentia, de olhos amarelos, de barba comprida que trabalha na porta de sua casa, e só

adiante tomamos conhecimento desta casa estar situada nas terras de um senhor de engenho.

Mestre Zé é muito popular e por sua casa transitam várias pessoas e a maioria para e fala com

o mestre que sempre está cortando ou martelando a sola, vive desse trabalho de fazer sela e

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alpargatas e sente orgulho da profissão quando diz ao pintor Laurentino: “não troco uma peça

minha por muita preciosidade que vejo” (REGO, 2013, p. 34), dando a compreender de

imediato que é um homem orgulhoso e também que é satisfeito com o que faz, embora com os

produtos novos que o mercado fornecia, provavelmente, os industrializados, a procura das

pessoas aos produtos do artesão ficou limitada, mesmo assim, o seleiro era feliz com a profissão

que se sustentava. Sua família era composta por sua mulher Sinhá e a filha solteirona Marta.

O velho seleiro é dotado de tanto orgulho que não baixa a cabeça para ninguém, não trabalhava

para os senhores de engenho, pois não queria ser servo destes, nem repreendido, pois para ele

isso seria humilhante, afinal ele é branco e a condição de escravo ficou para os negros, por isso,

não se submetia a servir aos senhores do seu trabalho manual, porque não queria submeter às

ordens e dizia a todo mundo “Não aguento grito. Mestre José Amaro é pobre, é atrasado, é um

lambe-sola, mas grito não leva” (REGO, 2013, p. 40).

Apesar do orgulho, o pobre artesão era angustiado porque não teve um filho, pois se tivesse, o

seu filho daria continuidade ao seu ofício, com isso, culpava a sua esposa que o deu uma filha

que ficou louca, apresentando várias crises que chegava a incomodá-lo e inconformado com a

situação existencial, acaba desenvolvendo um lado agressor, chegando até a espancá-la,

refletindo em sua filha e em sua mulher “[...] a culpada de tudo” (REGO, 2013, p. 40) a imagem

de um bicho insensível e bruto.

Várias pessoas passavam frente à casa de Mestre Zé, conhecia a sua vida e toda a sua família.

A transição era frequente; passava o pintor Laurentino, um carreiro, Pedro boleeiro, negros, seu

compadre Vitorino, entre outras pessoas que, deixam a entender a transição do tempo corrente

passando por Amaro que, por seu orgulho, fixava-se na mesmice de sua vida. Nessas conversas,

compreendemos o prestígio que dá ao cangaceiro Antônio Silvino quando conversa com

Pascoal: “[...] pode dizer por aí, por toda parte, que o mestre José Amaro só vota num homem.

É no capitão Antônio Silvino” (REGO, 2013, p. 87), acaba por mostrar a sua dependência, pois

considera o cangaceiro como superior ao senhor de engenho, o seu Lula, dono das terras que

Amaro mora. A partir disso, já se percebe a revolta para com o senhor de engenho.

Reconhecia a sua classe social frente aos senhores de engenho em dizer: “sou pobre [...], mas

sou um homem que não me abaixo a ninguém” (REGO, 2013, p. 45), ou seja, mantém de pé o

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orgulho e reconhece que há pessoas inferiores a ele que são os camumbembes, justamente, os

que compravam seu serviço e “era o que mais lhe doía” (REGO, 2013, p. 40).

Na verdade, o Mestre Zé, numa visão externa aparentava um ser firme, de palavra, autoritário,

afetivo em falar com as pessoas, mas internamente era um ser angustiado, solitário com suas

mazelas que o consumia pouco a pouco, a vida teria sido injusta para com ele. Não se sentia

livre, mas sempre servo de alguém, dependente de alguém (senhor do engenho, por morar em

suas terras e dos camumbembes para vender seus produtos), embora falasse que não

dependesse. Onde está a liberdade de Mestre Zé? Seria na natureza, à noite, no deserto das

estradas, sozinho? Por que andar sozinho altas horas da noite e principalmente numa noite de

lua cheia?

De fato, associaram essa prática de Mestre Zé ao lobisomem por andar vagando à noite. “No

outro dia corria por toda a parte que o mestre José Amaro estava virando lobisomem. Fora

encontrado no mato, na espreita da hora do diabo; tinha visto sangue de gente na porta dele”

(REGO, 2013, p. 61). Ninguém, nesse momento, conseguiria compreender o porquê de Mestre

Zé andar durante a noite, nem sua mulher poderia entender, porque o seleiro era muito

introspectivo, esquisito, adquirindo umas performances diferentes do que eram antes, tornando-

se agora áspero para com as pessoas, e um “gritador”.

O mestre sempre estava a andar nas estradas com o propósito de liberdade, de sentir a natureza,

na solidão, mas foi interpretado como um animal sanguinário, figura ameaçadora, mesmo

sabendo quem ele era. Parece que durante a noite ele se transfigurava em um bicho que causava

temor. Sempre havia um dizendo:

- É ele, é o lobisomem.

Correu gente, mulheres gritaram.

Um homem falava:

- É o mestre Zé Amaro, povo besta.

(REGO, 2013, p. 100)

Mestre Zé não entendia aquela reação, então o homem foi lhe falar:

- Estão com medo do senhor.

- De mim?

- É verdade. Este povo é besta mesmo

(REGO, 2013, p. 100)

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Lobisomem foi uma associação muito forte que fizeram ao mestre artesão que ficou muito

preocupado com essa situação, com essa ideia que corria de considerá-lo um bicho. Estava

Mestre Amaro frente a uma crise de identidade e se questionava: “Por que tinham medo dele?

[...] Estaria assim tão monstruoso que espantasse o povo?” (REGO, 2013, p. 102).

Mestre Zé a cada dia que se passava ficava mais estranho e sua mulher já estava descobrindo

essa crise de identidade através da “[...] cara do marido mais triste, mais amarelo os seus olhos,

mais inchadas as pernas” (REGO, 2013, p. 103), ou seja, elementos externos que o caracterizam

como amargo, silencioso, doentio, “O mestre Amaro com as pálpebras inchadas parecia um

monstro” (REGO, 2013, p. 115) e a parte interna, a pulsão violenta, a angústia, amargura, os

instintos mais profundos e selvagens aproximam, de certa forma, à figura do lobisomem.

Na condição social e psicológica que Mestre Zé estava, marca o seu modo de ver o mundo e

não se conforma com a situação de ser inferior a um senhor de engenho que passa por sua casa,

mas com ele não fala. Além disso, o seu ofício que estava por acabar porque não teve um filho

para dar continuidade e perpetuar o nome do pai, trabalhar para classe inferior a ele, a loucura

da filha que a cada crise o incomodava mais e mais, a indiferença da mulher, a vida com certeza

estava amarga. Podemos associar isso a sua identidade, ao seu comportamento rude com a filha

capaz de surrá-la com a sola, o que ocasionou o desmoronamento da família que era centrada

no patriarcal.

Assim, não apenas a família manteve a distância do seleiro, mas, a sociedade como um todo. O

tempo passava e o mestre seleiro continuava na mesmice, vivia no mesmo plano como se

estivesse estacionado, com as mesmas palavras amargas, com a mesma aparência, sempre a

espera do seu a admirável amigo cangaceiro Antônio Silvino, que servia-se dos seus favores e

que devido ajudar seus cangaceiros a pedido dele, o celeiro foi preso e humilhado como um

bandido.

A mulher o abandonou, a filha foi para o manicômio, o senhor de engenho o expulsou de suas

terras porque Mestre Amaro era uma ameaça para o povo da Várzea e tudo começa a decair,

mas sua cosmovisão permanece a mesma, movida pelo seu orgulho, ele não se rende, não se

descola daquele espaço, como se fosse a ele fixado, tanto que morre lá mesmo, mostrando que

não se rende às mudanças, nem se dobra a ninguém.

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Em um momento de crise existencial, em um estado de loucura, suicida-se com sua própria faca

que usava para executar o seu ofício que era o seu único orgulho na vida. Assim, enterrou-a no

seu peito, ele próprio sem precisar da ajuda de ninguém nem mesmo na hora da partida, do

desapego da residência em que vivia desde os tempos do seu pai.

Na segunda parte da narrativa temos o personagem central Seu Lula que não era um senhor de

engenho, tornou-se um por conta do seu sogro Tomas Cabral de Melo, homem de muita fibra

que deu origem ao Engenho Santa Fé, garantiu que sua filha, Amélia, estudasse em Recife e

casasse com um homem rico, de boa família, de fibra para comandar seu engenho quando ele

partisse, pois, ele não havia tido filho. E quando chegou de Pernambuco, Lula de Holanda,

parente de sua família, rapaz estudado, filho de Antônio Chacon, homem admirado pelo Tomás

Cabral de Melo, Tomas Cabral pensou que ele seria um bom partido para sua filha Amélia que

estava a ficar solteirona.

Após casar-se Lula de Holanda com Amélia, o velho Tomás percebe que o genro não tem jeito

para comandar o engenho e tocá-lo para frente com fogo, isso era um problema que o

incomodava, “o diabo era ele não tomar gosto pelo engenho” (REGO, 2013, p. 210). Então, o

velho ficava se perguntando “o que seria do Santa Fé sem ele, sem o tino do velho Tomás que

lhe conhecia as entranhas da terra, que lhe dera nome, que o criara do nada?” (REGO, 2013, p.

210). Seu Lula não assumiu o ofício que a sua posição social lhe admitia, a de senhor,

administrador de engenho, seu modo de ver o mundo estava centrado no passado, nos valores

familiares de elegância, trazia consigo o retrato do pai que fora assassinado. Seu Lula era um

homem ligado intrinsecamente ao passado, no entanto, isso o prejudicava porque ele teria que

olhar para o tempo presente em que estava casado e precisava de trabalhar “O diabo era a vida

descansada do genro, aquele paradeiro, aquela distância da terra” (REGO, 2013, p. 212).

O Santa Fé era muito produtivo, era o único que tinha piano em casa e cabriolé (trazido por

Lula) que representava nobreza, poder, e nesse espaço e tempo, manda quem tem mais, quem

tem poder.

Com a morte do capitão Tomás Cabral de Melo, Seu Lula torna-se o responsável pelo engenho,

e como Mestre Amaro, adquire outra performance, começa a espancar sem necessidade os

escravos, a gritar e ser rude com a sua sogra e esposa. Ele parece ter o prazer de maltratar, de

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ver o sofrimento dos miseráveis escravos, pois “O chicote cantava no lombo dos negros, sem

piedade” (REGO, 2013, p. 231) e estes, os via como um monstro, um sem coração. A partir

disso, “a fama da maldade do feitor espalhara-se pela várzea” (REGO, 2013, p. 231). O senhor

“mal feitoso” não se esforçava para acompanhar de perto o que estava acontecendo com suas

lavouras, não conseguindo exercer a posição que lhe foi atribuída.

Vivia assim estacionado no sentido de que nada fazia para o progresso do seu engenho, apenas

fazia com que os bens da sua família fossem decaindo cada vez mais, e nem desse declínio ele

se dava conta, queria era maltratar seus escravos e se exibir na cidade, indo à igreja de

carruagem, com sua esposa, está cheia de invejáveis joias, e se ajoelhava perante o altar como

um homem bom, visto que esse gesto causava estranhamento no povo do Santa Fé. Com todos

esses maus tratos e devido à má administração, a consequência é a pobreza que ocorre de modo

gradual sendo agravado com a abolição da escravatura, momento em que os escravos vão

embora das terras pertencentes ao senhor de engenho Seu Lula. “Todos se foram, todas as

negras ganharam o mundo. Não havia quem quisesse ficar no Santa Fé.” (REGO, 2013, p. 232)

exceto o boleeiro do cabriolé, o negro Macário (REGO, 2013, p. 237). Com isso, não há mais

produção de açúcar.

Seu Lula tem uma filha de nome Neném, moça educada que arruma um pretendente, moço de

família simples e o pai a proíbe de se aproximar do rapaz. Após a proibição, a moça se isola em

um processo de depressão. O senhor de engenho em meio à ruína do seu patrimônio, fica doente,

tendo crises epilépticas nas quais angustia sua esposa Amélia. Como se não bastassem tamanhas

ruínas, seu Lula, sempre faz referência a sua família “Lula falava de sua família de Pernambuco

com soberba, era o seu orgulho de raça” (REGO, 2013, p. 233). Além desse orgulho há o

orgulho patriarcal de mandar e desmandar em tudo, de gritar com os outros e a mulher na atitude

de ouvir e não responder ao marido quando este tomar uma decisão.

Lula, embora possuindo uma boa educação, nas suas atitudes é rude, muito bruto com os outros

moradores dos engenhos, “Por que Lula falava assim contra o povo dos engenhos? Não era ele

parente do povo de seu pai?” (REGO, 2013, p. 233-234) perguntava Amélia.

O senhor de engenho, embora possuindo muitos bens, estava ao ponto da pobreza, todo o

engenho poderia ser desmoronado se não houvesse mão de obra para fazer a moenda moer a

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cana. Mas, cadê os escravos que faziam esse trabalho? Foram libertados. Em outros engenhos,

muitos permaneceram, porém, com Lula a maioria foi embora porque ele não soube respeitar o

outro, sempre tratou os escravos com ignorância, brutalidade como se eles fossem ficar restritos

e dependentes dele por toda a vida.

Lula só tinha a sua filha agora, porque a sua mulher pouco dava importância, já estava velho,

as tensões se intensificaram frente ao mundo que se transformava, resultando em mazelas e

loucura, mesmo assim, o senhor de engenho não se dobra, utiliza-se das joias, vestimentas finas

e na arrogância de não falar com ninguém, tentando manter o que se desfazia e que todos do

Pilar poderiam ver nos olhos, a hipocrisia em usar a igreja como refúgio. “Lula é como se não

soubesse das dificuldades por que passavam [...] naquela devoção, no seu rezar, era como um

homem de outro mundo [...] indiferente ao seu tempo” (REGO, 2013, p. 224).

Com efeito, seu Lula acaba se alto destruindo, suas crises cada vez mais recorrentes, com fortes

delírios, ilusões, “[...] Lula de Holanda encerra-se em si mesmo, até literalmente [...] e passa a

viver de um sonho- a lembrança de glórias passadas- verdadeiro delírio de grandeza [...]”

(COUTINHO, 1991, p.437).

Apesar da tamanha diferença de classe social que separa o seleiro mestre José Amaro e o senhor

de engenho seu Lula, na qual o primeiro vive de favor nas terras do segundo, é perceptível os

dois personagens tem muita coisa em comum: uma filha e não um filho que pela família

patriarcal, o ideal é que se tenha um varão, ambas as filhas terminam solteironas e insanas, a

Neném de Lula fica depressiva e se isola e Marta vai para o sanatório. Além disso, as esposas

sofrem a brutalidade dos maridos, tanto Sinhá quanto Amélia sofre com o desprezo dos maridos

que se assemelham a bichos/animais brutos, com uma diferença nesse aspecto, Amélia fica até

o fim com Lula e Sinhá abandona Mestre Amaro.

Ainda nessa analogia, percebemos os dois personagens centrais aqui já descritos deslocados do

tempo existencial, com uma visão de mundo restrita, bloqueada, embora tendo consciência das

mudanças tecnológicas, industriais, abolicionistas, eles resistem a tudo isso, buscando refúgio

em algo mais poderoso. Em Mestre Amaro, o cangaceiro Antônio Silvino, com a fama de

homem justiceiro que só de olhar para ele treme e o Lula se refugia na igreja, no apego as missas

e penitências em sua casa. Além disso, há a doença de Amaro que o mostra como um bicho,

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algo feio e da mesma forma ocorre com Lula que tem epilepsia, qualquer coisa que o aborrece,

ele cai e fica numa condição lamentável que mostra o homem como um nada.

Tanto Mestre Amaro quanto o Lula são orgulhosos, cada um de acordo com seus princípios,

não se rebaixam, não cedem, resistem e com isso enlouquecem como consequência e ambos

passam por um processo de morte, parecendo ser o estágio “final” do homem frente ao mundo

em que está situado na ficção. Amaro suicida-se quando “olhou para os utensílios, para os seus

instrumentos de trabalho, e, vendo-os para um canto [...] se sentiu um inútil, perdido para

sempre” (REGO, 2013, p. 353). Mas Lula passa por uma morte diferente, houve um isolamento

social resultante, talvez como castigo, reações das próprias ações. “Nunca mais que o cabriolé

de seu Lula enchesse as estradas com a música de suas campainhas. A família do Santa Fé não

ia mais à missa aos domingos [...] na casa-grande só havia tristeza e desânimo” (REGO, 2013,

p. 332).

Na terceira parte, centrada no personagem Vitorino Carneiro da Cunha, que teima em ser

chamado pela patente de “Capitão” é caracterizado como um herói que busca resolver os

problemas das pessoas, depositando confiança na justiça que, naquele espaço e tempo, era algo

utópico, pois mandava e desmandava quem tinha poder. Mesmo assim, o chamado “Quixote

nordestino” (COUTINHO, 1991), movido pela verdade e princípios éticos decide ser herói por

si mesmo, por suas próprias forças, para que a justiça acontecesse, não precisava de ninguém

com ele, apenas o seu punhal para se defender.

Vitorino também é exposto por último na ficção, com o propósito de unir os fragmentos

apresentando assim o tempo futuro, ou seja, que ainda não veio, mas que é projetado na cabeça

do Capitão, através de um sonho político que traria a justiça e humanizaria a cidade de Pilar,

como ele mesmo pensava: “Com Vitorino Carneiro da Cunha não haveria ladrões, fiscais de

feira roubando o povo. Tudo andaria na correta, na decência” (REGO, 2013, p. 376).

Ele foi o único personagem determinado a enfrentar a tudo e a todos, enfrentou Antônio Silvino

por causa de Lula e tenente Maurício, por causa do seu compadre Amaro, homens muito

temidos, mas Vitorino “tudo podia fazer e nada temia” (REGO, 2013, p. 376).

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Na verdade, “os [seus] pensamentos [eram] voltados para a vida dos outros” (REGO, 2013, p.

375). O capitão era o único que deixava de pensar em si para pensar no bem dos outros. O que

implica dizer que sua visão é mais ampla, tanto de solidariedade quanto de desapego do passado

e do presente, pois o que lhe importava era o futuro, por isso, não pensava em riqueza, mas

exigia respeito e reconhecimento, “ele era homem que não se entregava aos grandes. Que lhe

importava a riqueza de José Paulino? [...]”.

De fato, o narrador e as atitudes do personagem mostram a personalidade e a visão de mundo,

o que é totalmente diferente se comparado ao de Lula e Amaro. Mas é Vitorino que vai unir

toda a narrativa, dando o conhecimento total dos seres, fazendo as vozes coexistirem. Na voz

de Vitorino, o tempo vivenciado não importa, a decadência dos engenhos não é considerado

problema, pelo menos não é demonstrado na ficção, “a sua aparente loucura é sinal de grandeza

humana” (AZEVEDO, 1987, p. 217). Assim, Coutinho (1991) considera que “a fala desses três

protagonistas, bem como as dos demais personagens do romance oferecem visões diferentes da

problemática básica da narrativa, e a ideologia que se depreende dessas visões forma um quadro

complexo” (COUTINHO, 1991, p. 438).

Assim, a ficção é vivida pelos personagens que dão vida à trama. Dessa forma, o mundo “irreal”

vai sendo interpretado pelos leitores de acordo com a sua concepção de mundo, seu estado

emocional, a época em que vive, entre outros fatores, pois a obra literária permite essa

participação na construção de sentidos da mesma, por ser o leitor literário de grande importância

no que diz respeito aos sentidos ficcionais. Com efeito, ainda na visão de Candido (1993) a

literatura é atemporal, bem como universal, no sentido de que em qualquer época e em qualquer

lugar do mundo um leitor uma vez que tenha acesso a acervos literários, irá fazer sua

interpretação, contribuindo para a construção desta. Portanto a literatura está sempre aberta para

múltiplas interpretações.´

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista os elementos regionalistas de uma realidade dos engenhos da cana de açúcar,

percebemos o foco que José Lins do Rego atribui à figura do homem, seja ela a figura patriarcal,

resistente, trabalhador, idealizador, autoritário, orgulhoso, tirano com várias facetas e

performances, mas homem social, individualista e cultural tal qual notamos nos dias de hoje.

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Todos esses adjetivos estão presentes em José Amaro, Lula de Holanda e capitão Vitorino que

mediante o destino só restou a loucura, esta que resultou em “Fogo Morto”.

“Fogo Morto” não se quer referir somente aos engenhos de açúcar que entraram em decadência,

mas também se refere às personagens que entram em processo de declínio, resultado da

resistência frente ao tempo vivenciado e o orgulho para se render às mudanças que ocorriam no

espaço das mesmas, que vivenciavam o enredo.

Em Mestre Amaro, a sua única confiança estava centrada no cangaceiro Antônio Silvino que

por ele nada fez, aliás, o nada ou niilismo está muito presente na vida do personagem Mestre

Amaro que na sua vivência não conseguiu fazer nada e até o que tinha acabou sendo retirado.

Amaro era um seleiro e tinha uma “tenda” para morar, uma esposa, uma filha, possuía até alguns

animais (bode, galinhas, porcos), além do seu trabalho com a sola, um ofício de artesão, e, no

final tudo estava vazio. Com isso, o narrador nos dá conhecimento de um Amaro mais amargo,

sozinho em todos os sentidos, pois sua filha Marta vai para o manicômio, sua mulher deixa de

falar com ele e sai de casa, abandonando-o, vai perdendo sua clientela e seu trabalho vai

declinando, só possuía a doença que era só sua, levando as pessoas a chamá-lo de lobisomem e

a ter medo do mestre, além disso, todos os seus questionamentos internos e/ou psicológicos

diante da vida parecia massacrá-lo e desfigurá-lo ainda mais, e como se ainda não bastasse o

senhor de engenho o despeja de suas terras por vê-lo como uma figura ameaçadora.

Portanto, nada restou ao Mestre Amaro que vivia a maior amargura da sua vida na velhice,

restando-lhe a morte e não hesitou em cometê-la, justamente com um instrumento simbólico do

seu trabalho, a faca que cortava a sola serviu para aniquilação de sua pessoa, marcando assim,

sua visão existencial em resistência ao mundo em que estava inserido, afinal, com a morte de

Amaro em estado de loucura existencial, põe fim ao processo de artesão, simbolizando também

o fim de uma era.

Da mesma forma acontece com Lula de Holanda que tinha em si o poder autoritário sobre a

mulher e a filha, além dos escravos que serviam como mão de obra para o trabalho no Engenho

Santa Fé, um homem que ficou responsável pelo engenho do sogro e não soube administrar por

conta da sua soberba. Com suas tensões psicológicas, principalmente quando ele percebe os

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negros deixando o engenho após a libertação proposta pela Lei Áurea (1888), entra em processo

de decadência, enlouquece, a doença da epilepsia se torna maior, o medo de que alguém venha

e o mate o obriga a isolar-se e buscar refúgio na igreja, nos santos expostos em sua casa.

O engenho parou de moer, a filha não casara, uma cunhada louca não parava de falar e tudo

começou a desmoronar na Casa-grande, tudo que o sogro conquistara foi se desfazendo pouco

a pouco como uma areia por entre os dedos e toda a situação ocorrente na vida de Lula e sua

família foi provocando o seu declínio, mesmo o Santa Fé minguando, o Senhor de Engenho

com seu orgulho patriarcal e soberba não cede, procura resistir e termina como um morto em

um processo de morte social.

Na verdade, Mestre José Amaro e seu Lula têm muitas características em comum e situações

que pareciam castigo, será do destino? Como se os personagens tivessem de passar por tais

situações como ataques nervosos e pela loucura como resistência a um tempo em que eles

estavam fixados. Contudo, a morte tem o poder de cessar, seria então a melhor saída frente as

tensões vivenciadas pelos personagens ou seria uma representação de seus fracassos levando

em conta que Amaro se suicidou, mas Lula de Holanda ficou na condição de um morto que

ainda vive, porém, ambos de “Fogo Morto”.

Contudo, nem tudo está perdido, há o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha que ainda vive, o

famoso “Papa Rabo” que não é respeitado pelos menores, mas que luta para que isso aconteça,

nem que seja pelo seu punhal, vive uma loucura existencial marcado por essa zombação feita

menino de rua .

Provavelmente, é ele o personagem mais humano, uma figura, como menciona Coutinho

(1991), de herói quixotesco nordestino que quer resolver os problemas de todos,

independentemente de quem seja, almeja a justiça e sonha com o seu triunfo na política, pois

acredita que só haverá justiça e desenvolvimento no Pilar se a sua pessoa estiver no comando.

É, enfim, um homem que não estava ligado ao passado como Lula, nem ao presente como

Amaro, mas ao futuro, naquilo que há de vir, porém, não obtém sucesso, como confirma

Coutinho (1991) ainda há valores que o prendem como o seu orgulho, diante do título de

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capitão, ou seja, a patente, e de ser parente de senhor de engenho e o preconceito diante dos

camumbembes (negros, pobres) que o impedem de avançar e concretizar os seus sonhos.

Sendo assim, comparando as loucuras dos três personagens e tomando uma interpretação de

que cada um está ligado a um tempo (Lula, passado, Amaro, presente e Vitorino, futuro) temos

as faíscas de fogo em Vitorino que estava ainda com vitalidade, mesmo através dos sonhos,

entendo aqui os sonhos, segundo Freud (1999) como uma projeção de desejos, de que iria pôr

as coisas (no Pilar) em ordem, todos teriam de obedecer a lei, seja ele rico ou pobre, não haveria

regalias para os grandes e daí “imaginou-se entrando na casa da câmara com o povo dando

vivas a ele” (REGO, 2013, p. 378).

Por fim, poderia então os sonhos de Vitorino serem uma loucura da sua mente ou uma projeção

da realidade futura? Visto que foi caracterizada e descrita pelo narrador como personagem de

maior honestidade além de maior sensatez comparado aos outros. Seria ele, então, a “faísca”

que faria o fogo viver ou seria ele também um “Fogo Morto”? Entendendo que os seus sonhos

não se concretizaram.

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