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Para citar esse documento: PAES, André Duarte. A imanência histérica na fala do corpo: um estudo sobre o processo criativo em Dança Contemporânea. V Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança. Manaus: ANDA, 2018. p. 306-322. www.portalanda.org.br

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Para citar esse documento:

PAES, André Duarte. A imanência histérica na fala do corpo: um estudo sobre o processo criativo em Dança Contemporânea. V Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança. Manaus: ANDA, 2018. p. 306-322.

www.portalanda.org.br

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A IMANÊNCIA HISTÉRICA NA FALA DO CORPO: UM ESTUDO SOBRE O

PROCESSO CRIATIVO EM DANÇA CONTEMPORÂNEA

André Duarte Paesi

RESUMO

A partir das pesquisas descobertas por Sigmund Freud em relação ao contexto patológico histérico, este artigo relata, de acordo com este argumento, um estudo sobre o processo criativo em dança contemporânea que resultou na obra Hysteria coreografada por André Duarte para os intérpretes-criadores da Entrecorpus Companhia de Dança. O presente artigo tem como objetivo apresentar um estudo sobre as ações patológicas da histeria e as possíveis transformações em atuações performáticas em dança contemporânea. Palavras-chave: dança; composição; histeria.

ABSTRACT

Based on the research discovered by Sigmund Freud in relation to the hysterical pathological context, this article reports, according to this argument, a study on the creative process in contemporary dance that resulted in the work Hysteria choreographed by André Duarte for the interpreters-creators of Entrecorpus Dance Company. The present article aims to present a study on the pathological actions of hysteria and the possible transformations in performance performances in contemporary dance.

Keywords: dance; composition; hysteria.

APRESENTAÇÃO

O ponto de partida para esse processo constituiu no diálogo entre teorias e

experiências sobre o distúrbio histérico no que rege o comportamento humano e sua

intensificação energética no estado nervoso do corpo, buscando compreender essas

questões vulneráveis a qualquer ser humano em especial entre as pessoas do gênero

feminino.

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Foi abordada a relação entre as ações nervosas abstraídas da histeria com o processo

de criação artística, almejando transformá-las em atuações performáticas na dança, levando

em conta a semelhança da expressividade do corpo sobre este contexto na

contemporaneidade.

Discorrer o limite delicado entre o corpo em estado histérico e o corpo na dança,

estabeleceu-se a particularidade existente entre esses dois campos e com isso, cogitou-se,

no mínimo, um caminho desafiador para esta produção artística.

O autor e as intérpretes compartilharam ideias na construção das cenas propostas

através de experimentações para a elaboração do roteiro cênico, cujo interesse por

desenvolver esta obra tem sido ocasionado por múltiplos elementos e as investigações

corpóreas como objeto e sujeito da ação.

Estes foram alguns dos motivos que nos conduziram a refletir e a dialogar essas

questões comportamentais pertinentes a este tema e a partir deles gerou-se o processo de

criação do espetáculo Hysteria.

ELUCIDANDO A HISTERIA

O universo comportamental do ser humano possui diversas interpretações e definições,

sendo possíveis estas serem patológicas ou próprias do indivíduo em sua plena existência.

Esse estudo se norteia pelas ações patológicas em relação ao comportamento histérico do

ser humano em busca de uma transfiguração em arte.

Ao contrário do que popularmente se entende sobre este tema, Mota e Marinho (2012,

p. 57) esclarecem que a histeria não está relacionada a nenhum comportamento emocional

abusivo e sim, de um distúrbio mental característico, que se expressa fisicamente, consistindo

em manifestações bastante dramáticas, sob formas de lamentações, gritos, risos e até

“convulsões”. Podem também referir-se a circunstâncias místicas, ou a estados de excitação

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ou agitação. Contudo, a histeria provoca fascinação por seus gestos expressivos e por sua

angústia altiva.

De modo geral este termo denominado histeria se relaciona com bastante frequência

entre as mulheres, apresentando sinais como anestesia e paralisia, variações da

personalidade, perturbação mental e indiferença em relação ao mundo exterior, ou o inverso,

aqueles ataques inquietos que os leigos agregam à expressão histeria.

De todas as formas, a histeria se apresenta: anestésica ou hiperestésica, espasmódica ou flácida, indiferente ou dependente, hipersexuada ou virginal; são virtualmente incontáveis os pares opostos que se podem encontrar no quadro histérico. Mais ainda, a cada momento e em cada cultura, variações aparecem para tornar aumentar o enigma dessa entidade sobre a qual tanto, e tão apaixonadamente, se escreveu. (SCHMIDT1, 2008, p. 2)

Curiosamente, contos conhecidos sobre histeria acompanham a humanidade desde

tempos remotos, onde registros populares apresentam protótipos de crises histéricas,

especificamente em mulheres, com os corpos doloridos impossibilitados de se locomoverem e

de até se comunicarem. Assim, “a histeria passou a incorporar a própria feminilidade como

problema e enigma”. (BOROSSA, 2005, p. 5)

De acordo com a história, Leite (2012, p. 85) comenta que a denominação histeria

advém do grego-latino com caráter exclusivamente feminino por fazer relação com a mãe do

corpo, ou seja, do grego hystera que significa útero. Tempos depois o médico Hipócrates a

define como uma das “doenças das mulheres”.

Segundo Ávila2 & Terra (2010, p. 334-335), existiam casos e mais casos sobre essa

doença, todas atribuídas ao gênero feminino. A correção clínica prescrita na época era

desenvolvida por vários métodos que derivavam de invenções excêntricas e atividades

1Eder Schmidt - Psicanalista. Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora. 2Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp), Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica.

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termodinâmicas que teriam como função reposicionar o útero no corpo feminino. Assim como,

também, era indicada preventivamente a prática de atos sexuais.

Leite (2012, p. 85) complementa que além da histeria ser uma doença predominante

em mulheres, era também conduzido pelas parteiras que tratavam e diagnosticavam

afastando-as dos homens. Acreditava-se, na antiguidade, que sua origem era conferida ao

útero, no entanto, a energia constitucional desse órgão era capaz de se mobilizar dentro da

mulher, por se tratar de um ser vivo independente, podendo ocorrer então a sufocação da

matriz causando os ataques.

De acordo com Freud (1888), em séculos passados as manifestações histéricas eram

consideradas como bruxaria levando muitas pessoas a serem exorcizadas, ou lançadas em

fogueira ou seu estado visto como indigno de observação clínica, devido a esta conturbação

física de ordem exagerada no ser humano.

A psiquiatria do século XIX, por sua vez, acreditava que a raiz devia estar em uma

lesão orgânica, enquanto outros falavam em fingimento. Portanto, enquanto muitos estudos a

respeito da histeria procuravam aproximá-la da filosofia, em busca da legalidade acadêmica,

outras compreensões sobre a histeria alcançavam tamanha popularidade que se tornavam

um dos fundamentais temas das ‘conversas de salão’ (ARNAUD, 2007).

Durante muito tempo estas concepções sobre a histeria permaneceram entre os

estudiosos do assunto entre as mais diversas áreas do saber como: a filosofia, a medicina e a

religião, “embora haja apenas um século alguém o tenha efetivamente esclarecido”

(SCHMIDT, 2008, p. 2-3).

O contexto sobre a histeria sofreu mudanças apenas na época romana, em que houve

movimentos de libertação das mulheres e dos escravos, o que permitiu modificações no

tratamento para a histeria nessa época assinalada pela atrocidade. Entre as práticas

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utilizadas estavam à extirpação do útero, as internações coagidas e a camisa de força (LEITE,

2012, p. 90).

Para compreender melhor este enigma sobre a histeria podemos dividi-la em antes e

depois de Freud. Em parceira com Breuer, Freud (1996, p. 232) nos mostra como se procede

ao tratamento dos fenômenos histéricos, até onde a psicoterapia da histeria pode alcançar e

os desafios com quem esta se defronta, pois há uma relação muito próxima entre o método

para o tratamento da histeria e a teoria explicativa para os acontecimentos histéricos.

Em Estudos sobre a histeria (1893-1895), Freud (1996, p. 224-267) deposita a atenção

e o cuidado com os outros indivíduos, como uma obediência à ação do outro, como algo

banal na vida dos pacientes antes dos indícios histéricos, ou seja, no contexto teórico as

pessoas portadoras de manifestações histéricas acamam por lembranças ou por reproduções

que não sofreram a decomposição natural que tende a submeter à vida representativa; e o

individuo não realizou por não ter existido uma oportunidade de desgastar para a experiência

originalmente vivida.

Com isso, Freud (1996, p. 224-267) complementa que uma vez não incidindo a

corrosão, o afeto ligado à representação não fragiliza a sua força, levando-a para um grupo

secundário psíquico, alheio ao ego, colocando o sujeito sem acesso a essa experiência,

tornando a representação patogênica. O que conclui entre reflexões e validade na clássica

histeria de retenção ou apenas histerias de defesa.

Os praticantes da medicina jamais poderiam imaginar que a histeria representava um

grito de socorro das mulheres em relação a sua repressão sexual. Este mistério passou a ser

revelado a partir do francês Jean Martin Charcot (1825-1893), um dos fundadores da

neurologia, que desvendou, através da hipnose, onde tais manifestações apresentavam

procedência psíquica.

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Segundo Freud, os sinais histéricos eram manifestados pelo movimento afetivo

suprimido, ou seja, traumatismo sexual, este projetado para fora do corpo por meio dos

ataques, conferidos na Antiguidade à sufocação da matriz. Portanto, “para elucidar a etiologia

sexual da neurose, Sigmund Freud propôs que se ouvisse a histérica, e que se considerasse

seu sintoma como uma linguagem, a ser alcançada à maneira da interpretação dos sonhos”.

(SCHMIDT, 2008, p. 3)

Logo, Farinha (2009, p. 27) afirma que podemos ajuizar que os indícios conferidos a

sufocação da matriz estivessem pautados a esse modo de vida em sociedade e seus valores

morais sobre a mulher podem estar relacionados como determinantes aos sintomas

histéricos, uma vez que se compreende que o útero não se move livremente.

Desta forma, através dos estudiosos, a visão que se tem sobre as mulheres em relação

aos sintomas como: a carência de sexo e/ou de filhos pode revelar a imagem de que a mulher

não desempenha as suas obrigações fundamentais do corpo feminino, podendo lidar com os

mais variados tipos de enfermidades e, ainda, com a falta de reprodução e não exercer as

suas funções correspondentes pode adoecer, trazendo riscos à própria saúde.

No entanto, a histeria foi muito estudada pelo neurologista francês Jean Martin Charcot

(1825-1892), provando que conceitos doentios podiam se expressar através do corpo físico,

porém, mais tarde Sigmundo Freud (1856-1939), junto com Josef Breuer (1856-1939),

pesquisaram as ações psíquicas deste distúrbio e descobriram que tal manifestação tem

como origem nas lembranças obstruídas no inconsciente, de elevado conteúdo emocional.

Até esse período a histeria era considerada como predominância feminina, porém,

também era possível despontar-se no corpo masculino, sendo mais comum na puberdade,

assim, afirma o médico Arétée de Cappadoce que reconheceu no sexo masculino as

manifestações sintomáticas semelhantes aos ocorridos na matriz das mulheres: uma

sufocação e a perda da voz, evocando de forma muito precisa esta sintomatologia nos

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homens, oferecendo uma denominação para esse conjunto de “Catoche”. (BLEICHER, 2013,

p. 7)

De acordo com Mota e Marinho (2012, p. 63), artigos científicos publicados em

períodos recentes “apontam não somente um declínio da prevalência da histeria entre as

mulheres, mas também um crescimento entre os homens”. Portanto, há uma revelação da

presença dos enigmas histéricos, logo, não mais relacionados somente ao gênero feminino.

Contudo, Freud (1888) afirma que a histeria pode ser encontrada em ambos os

gêneros humano, em qualquer idade, em variados períodos da fase humana, nas quais os

sintomas são semelhantes aos da fase adulta, com isso, anulou o preconceito de que a

histeria seria somente uma doença originária do aparelho sexual feminino, passando esta a

ter uma compreensão adequada de sua sintomatologia.

A partir deste estudo, Bleicher (2013, p. 6) comenta que “Freud partiu de uma teoria

biológica sobre a histeria; posteriormente relacionou-a a conflitos psíquicos ligados à

sexualidade e finalmente, situando esses conflitos em um âmbito maior – o da cultura”. Com

isso, Freud relacionou todo esse contexto que o circulava com os da sociedade contribuindo

para a criação de uma nova disciplina médica – a “psicanálise”.

De maneira geral podemos perceber que a histeria se revela através de perturbações

que chegam aos pacientes de ordem motora e sensorial. Suas manifestações estão

relacionadas com os distúrbios dos órgãos dos sentidos, demasia na sensibilidade ou

anestesia total, intensas dores sem nenhuma procedência orgânica.

As manifestações motoras envolvem desde os tiques nervosos, a paralisia completa,

os tremores, até contrações e convulsões. Os demais sintomas histéricos estão relacionados

com a lesão completa ou parcial da voz, tosse, enjoos, vômitos e soluços. Porém, observa-se

a incidência de amnésia e de sonambulismo.

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A personalidade é afetada através de um traço conhecido como histriônico, que

constitui algo teatral. Por esse transtorno no seu caráter, o individuo atua como se estivesse

no palco, de uma maneira um tanto excessiva e dramática. Suas emoções são sempre mais

intensas, pois a pessoa tem a necessidade de ser constantemente o centro das atenções.

Sendo este o motivo que despertou o interesse para a criação de um espetáculo em dança

contemporânea.

Devido às transformações sociais e culturais ao longo dos tempos, a histeria passou a

ter menos importância e seu lugar foi tomado pela depressão e/ou o estresse, pois uma

porcentagem considerada de paciente histérico possui igualmente um diagnóstico de

depressão/estresse, ou seja, o principal distúrbio psicológico da atualidade. Portanto, é

possível encontrar também uma relação aguda entre histeria e a depressão/estresse. Mas isto

é assunto para outro momento.

O PROCESSO DE COMPOSIÇÃO DO ESPETÁCULO

De acordo com Weil e Tompakow (2003), o nosso corpo é um núcleo de

conhecimentos para nós mesmos, pois através da linguagem corporal articulamos diversas

situações pessoais e sociais. Com isso, é possível observar no cotidiano vários sinais que

dizem muito mais que palavras, ou seja, o corpo para se expressar não necessita de

vocábulos, sendo esta mesma uma linguagem que não mente.

As atividades do dia a dia podem corresponder aos apegos psicológicos da mensagem

falada. Igualmente, o comportamento humano se torna bastante impressionante, alguns

podem parecer sem fundamento, mas muitos deles se enquadram com a realidade. Portanto,

a forma como o indivíduo cultiva a sua atitude corporal pode articular vários acontecimentos

como: as expressões faciais, os movimentos minuciosos dos membros superiores e inferiores,

dentre outros.

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Perceber e decifrar a linguagem corporal do ser humano pode tornar-se uma arte, pois

a expressão do corpo possui uma grande porcentagem não verbal, é aproximadamente como

estudar uma nova linguagem, que permite conhecer comportamentos específicos para

direcionar estudos particulares como este de criar, através de manifestações patológicas, uma

obra de arte representada pela dança.

A partir dessas reflexões observadas por via teórica sobre os aspectos específicos a

propósito da histeria e seu comportamento corporal nos possibilitou captar matéria-prima para

a composição coreográfica. Nesta busca da construção de mecanismos para suprir a

proposta sugerida permitiu ao coreógrafo e aos intérpretes uma nascente, direção e objeto de

expressão.

Através de um processo autoral e colaborativo foram investigados elementos que

contribuíssem na elaboração de partituras de movimentos para a construção desta obra, ou

seja, expressões, gestos e atos corporais que de modo característicos expressassem esses

sentimentos e posicionamentos internos relacionados ao gênero feminino.

Nesse lugar cultivado, trocas interpretativas aconteceram como: movimentos

agressivos ou de acolhimento, potencialidade de exploração ofertada pelas propriedades

investigadas e determinaram o fluxo de afetação recíproca, favorecendo ou não às potencias

de ação que se almejou dramatizar em obra de arte.

A montagem cênica tinha como concepção a interdisciplinaridade entre ações

patológicas sobre a histeria com linguagens artísticas, principalmente o que rege a dança

contemporânea. O espetáculo propôs a transfiguração deste distúrbio temático para a

dramaticidade em movimento artístico na dança através das intérpretes-criadoras da

Entrecorpus Companhia de Dança.

Para a divisão das cenas encontramos referências significativas para a elaboração do

roteiro que se procedeu da seguinte forma: o estado corporal durante o período pré e pós-

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menstrual, a intensidade e instabilidade emocional diante dos conflitos advindos da recusa do

desejo sexual, sendo este tipicamente reprimido, e manifestações em forma de ansiedades e

traumas pessoais do universo feminino como as intempéries dos relacionamentos e perdas.

(Figura 01)

Figura 01 – Espetáculo Hysteria Foto: Ruth Juca

Figura 02 – Espetáculo Hysteria Foto; Rafael Lins

Figura 03 – Espetáculo Hysteria Foto: Rafael Lins

As qualidades das sequências de movimentos foram abstraídas de situações

identificadas com o comportamento segundo esta patologia e enquadrada em diversas

variações (Figura 02 e 03).

As vivências pessoais das intérpretes dialogadas com o discurso investigado, os

ensaios e as experimentações a partir desta discussão proposta pelo coreógrafo se fez

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necessário para outras possibilidades de dinâmica corporais como jogos lúdicos e teatrais

(Figura 04 e 05).

Figura 04 – Espetáculo Hysteria Foto: Rafael Lins

Figura 05 – Espetáculo Hysteria Foto: Rafael Lins.

Um dos aspectos necessários e mais importantes desta permuta foram os diálogos que

instituíamos enquanto grupo de trabalho e pesquisa em arte. Os ensaios tornaram-se um

laboratório de experimentação, onde foram observadas as propostas individuais e coletivas de

forma lúdica e/ou dramática. Tudo o que era explorado se transformou em movimento

produzido pelas intérpretes desencadeando diversas sequências no imaginário do coreógrafo.

(Figura 06)

Figura 06 – Espetáculo Hysteria Foto: Rafael Lins

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A troca foi recíproca entre as intérpretes e o coreógrafo que através do distanciamento

perceptivo auxiliou na formação de ideias e a estruturar ações cênicas intitulando no contexto

proposto. A música eleita era composta pelas intérpretes: Meredith Monk, Laurie Anderson e

Nina Hagen, selecionadas entre diversos álbuns. Algumas partituras de movimentos

obedeciam à métrica musical e em outros momentos eram aproveitados como de fundo

contemplador.

O figurino se ajustou apenas a um modelo simples de uma roupa intima, sobretudo, um

vestido de cetim com alças na cor preta, interagindo com dois elementos cênicos

selecionados como: uma corda vermelha para simbolizar o sangue do útero, sendo esta

usada em um determinado momento na boca durante a movimentação das intérpretes

representando as tensões (Figura 08) e rosas vermelhas na última cena da obra onde eram

lançadas contra as demais durante as ações em dança simbolizando revolta e defesa. (Figura

09)

Figura 08 – Hysteria Foto: Rafael Lins

Figura 09 – Espetáculo Hysteria Foto: Ruth Juca

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A caixa cênica do ambiente apresentado foi revestida pela cor preta transformando no

espaço fotográfico no qual as ações das intérpretes-criadoras eram as ilustrações para as

imagens que se queria causar junto com a iluminação. As cores fortes que acompanhavam o

mapa de luz como: vermelho, branco e âmbar.

O espetáculo inicia de forma progressiva com as intérpretes posicionadas de costas na

frente do palco, pequenos gestos são atribuídos aos membros superiores em locomoção em

direção ao fundo da caixa cênica, em seguida cada uma cumpre o seu desempenho de

acordo com as coordenadas que o coreógrafo determinou. (Figura 10)

Figura 10 – Espetáculo Hysteria Foto: Rafael Lins

Através de uma abordagem física, o espetáculo traz momentos de grande intensidade

emocional transformadas em movimentos dançantes. As técnicas de dança moderna como as

de Mary Wigman e Martha Graham e as atreladas com a dança contemporânea como as de

Release, rolamentos e improvisações foram contribuições norteadoras no movimento

exploratório, investigativo e aperfeiçoamento técnico corporal para a obtenção de partituras de

movimento que pudessem se relacionar com o tema proposto.

Na passagem de uma cena para à outra, cada intérprete procurou promover sua

analogia em relação a este contexto estudado junto com a proposta sugerida pelo coreógrafo.

Todo momento musical também se ajustou com as características próprias das intérpretes,

dando-lhes a oportunidade de desempenhar seu personagem específico e o que é de comum

para todas. (Figura 11).

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Figura 11 – Espetáculo Hysteria Foto: Rafael Lins

A trilha sonora do espetáculo se inicia com ritmo lento e grave, promovendo nas

intérpretes estímulos sonoros que acompanhavam a sua dramaticidade individual e coletiva.

Esta simbiose entre tempo musical e corpo transfigurado provocou abertura para diferentes

problematizações em relação a este universo, gerando uma violência no gesto e um

desconforto no observador. (Figura 12)

Figura 12 – Espetáculo Hysteria Foto: Rafael Lins

O espetáculo dura em torno de trinta minutos mostrando um panorama sobre a

problemática deste tema transfigurado pelo ponto de vista artístico do coreógrafo e de suas

intérpretes. (Figura 13)

Figura 13 – Espetáculo Hysteria Foto: Ruth Juca e Rafael Lins

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do cruzamento desses elementos citados neste relato, nasceu à inquietação

nos movimentos corporais como assunto inesgotável, permitindo abertura para outras

margens, onde existiram profundidades a serem investigadas. Para tanto, inclinou-se sobre

este tema complexo circunstanciando a construção e os mecanismos de sentido e,

consequentemente emitindo juízos de valor como sugestão cênica em arte expressiva na

dança.

Esta concepção sobre esse aspecto histérico direcionou o estudo do corpo em

diferentes etapas da experiência humana dos integrantes desta obra e passou por intensas

transformações, imergindo num princípio incompleto sempre na procura de algo maior para si.

Essas curiosidades sobre o comportamento humano sempre foram fatores inspiradores para

a criação artística do grupo.

Hysteria é um espetáculo de dança contemporânea que representa apenas uma

pequena amostra do que acontece com as pessoas neste sentido e que, muitas vezes, não

temos conhecimento, porque atrás de cada ser humano existem muito mais enigmas do que a

gente possa imaginar.

A realização desta obra promoveu uma relação intensa entre nossas proposições

artísticas com imaginário da linguagem em dança contemporânea, o espaço cênico, a

iluminação, os ensaios/laboratórios, a trilha sonora, os objetivos coreográficos, a cenografia,

as intérpretes e a construção coletiva de um trabalho num todo.

Esta obra ampliou a nossa percepção quanto à importância do contexto selecionado

produzindo elementos compositivos para a cena e a especificidades poéticas geradas por

esse processo de criação. Seguindo por esse raciocínio, pensamos que foi bastante louvável

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e enriquecedor esta experiência proposta para o elenco, gerando novas possibilidades de

desenvolvimento de criação artística.

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iDiretor, pesquisador e coreógrafo da Entrecorpus Companhia de Dança; Professor da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, curso de Dança, disciplina: Estudos Contemporâneos do Corpo; Professor, assistente e ensaiador do Corpo de Dança do Amazonas – CDA; Natural de Manaus-AM. E-mail: [email protected] / [email protected]