À mesa com grão vasco: para o estudo da alimentação no

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À mesa com Grão Vasco: para o estudo da alimentação no século XVI

Autor(es): Braga, Isabel M. R. Mendes Drumond

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

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U ·NIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

CENTRO REGIONAL DAS BElRA$

DEPARTAMENTO DE LETRAS

V I SEU 2 O O 7

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MÁ THESIS 16 2007 9-59

Á MESA COM GRÃo. VASCO. PARA O ESTUDO DA ALIMENTAÇÃO NO SÉCULO XVI*

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga"

RESUMO

Partindo de documentos escritos. nomeadamente livros de receitas. cadernos de ucharia. processos inquisitoriais e legislação diversa, passando por fontes iconográficas e, mais raramente, pelos testemunhos da arqueologia, procuramos dar conta do modo como se preparavam e se tomavam as refeições durante o século XVI.

ABSTRACT

Starting from a wide range written documents, such as recipe books, storeroom inventories, inquisitorial processes, diverse legislation, iconographic sources, and archeological testimonies, in this essay we try to examine how were prepared and taken throughout the 16th

century.

Naturalmente que o título em epigrafe é um eufemismo imediatamente matizado pelo subtítulo. Desconhecemos o que comeu, como comeu e onde comeu o pintor Vasco Fernandes. Porém, temos algumas informações acerca de tais realidade no século XVI, o que nos permite fazer uma abordagem devidamente alicerçada em fontes diversas, tais como livros de ucharia e de receitas culinárias, iconografia (alguma da autoria do próprio Grão Vasco), relatos de estrangeiros, inventários de bens e outras. Tentemos, pois, entrar nas áreas da alimentação e da sociabilidade à mesa quinhentistas, cenários certamente percorridos pelo pintor.

I. Qualquer abordagem à história da alimentação pressupõe a consciência da produção e distribuição dos produtos alimentícios, da sazonalidade de certos bens, das incipientes técnicas de conservação dos produtos alimentares, do estádio de desenvolvimento das técnicas

• Conferência apresentada no Curso Livre: O tempo de Grão Vasco, promovido pela Universidade Católica Portuguesa (Pólo de Viseu) e pelo Museu Grão Vasco.

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. [email protected]

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culinárias e, naturalmente, do poder de compra dos diferentes grupos consumidores. Estas e outras variantes, diferentes consoante os tempos e os espaços, devidamente ponderadas, evitam generalizações apressadas e erróneas, não obstante as dificuldades que se sentem devido ao facto de as fontes disponíveis nem sempre serem de molde a responder a todas as interrogações.

Estudar as práticas alimentares do período quinhentista em Portugal remete-nos, de forma directa, para a análise do primeiro livro de receitas conhecido, normalmente designado como Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, escrito algures nos finais do século XV, início do século XVII e divulgado fora de Itália, onde se guarda o original, no século XIX2. Recentemente, outras fontes diversas têm vindo a ser difundidas, permitindo um melhor conhecimento das técnicas alimentares e, sobretudo, dos consumos dos grupos privilegiados3• Não esqueçamos que a informação sobre os diferentes

1 Sobre a análise da escrita do manuscrito, com a indicação das diferentes sete mãos, tipos de letras, caracterização e datação das mesmas - receitas 4-12, 30-38 e 41-64, do século XV e as restantes do século XVI, por seis mãos diferentes - cf Célia Marques Telles, "Características Grafemático-Fonéticas de um Manuscrito em Letra Gótica Cursiva", IV Encontro Internacional de Estudos Medievais. Anais, organização de Ângela Vaz Leão e Vanda de Oliveira Bittencourt, Belo Horizonte, Pontiftcia Universidade Católica de Minas Gerais, 2003, pp. 731-738. Sobre a análise codicológica, cf também Maria José Azevedo Santos, "O Mais Antigo Livro de Cozinha Português. Receitas e Sabores", A Alimentação em Portugal na Idade Média, Fontes. Cultura. Sociedade, Coimbra, [s.n.], 1997, pp. 35-66. A autora indica seis mãos.

2 Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, prólogo, leitura, notas aos textos, glossário e índices de Giacinto Manuppella, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987. Sobre a análise do receituário, cf. A. H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa. Aspectos de Vida Quotidiana, 4.· edição, Lisboa, Sá da Costa, 1981, pp. 7-22; Salvador Dias Arnaut, A Arte de Comer em Portugal na Idade Média, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986 e Maria José Azevedo Santos, "O Mais Antigo Livro de Cozinha Português [ ... ], pp. 35-66.

3 Iria Gonçalves, "Acerca da Alimentação Medieval", Imagens do Mundo Medieval, Lisboa, Horizonte, 1988, pp. 201-217; Idem, "A Colheita Régia Medieval, Padrão Alimentar de Qualidade (Um Contributo Beirão)", Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, vol. 6, Lisboa, 1992-1993, pp. 175-189; Idem, "À Mesa, com o Rei de Portugal (séculos XII-XIII)", Revista da Faculdade de Letras, 2.· série, vol. 14, Porto, 1997, pp. 13-32; Maria José Azevedo Santos, "O Peixe e a Fruta na Alimentação da Corte de D. Afonso V. Breves Notas", A Alimentação em Portugal [ ... ], pp. 1-33; Idem, Jantar e Cear na Corte de D. João 111. leitura, transcrição e estudo de dois livros de cozinha do Rei (1524 e 1532), Vila do Conde, Coimbra, Câmara Municipal de Vila do Conde, Centro de História da Sociedade e da Cultura, 2002.

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tipos de alimentos e de refeições é muito diferenciado por toda a Europa4•

Bem menos dados temos para a alimentação popular, caracterizada, frequentemente, por carências quer no âmbito dos produtos quer na quantidade, mesmo numa época em que comer bem era sinónimo de comer muito. Alguns considerandos são, contudo, conhecidos. Nomeadamente, o consumo exagerado de cereais e vinho pelos grupos não privilegiados, em detrimento da carne, peixe, legumes e frutos, utilizados em pequenas quantidades e nunca de forma recorrente. Mesmo assim, há que pontualizar. No que se refere ao pão, estava-se perante espécies de meado, terçado e quartado, ou seja de pão de mistura de dois, três ou quatro cereais, em oposição ao pão alvo, ou branco, de trigo, utilizado especialmente pelos mais abastados5• No grupo das carnes, a mais frequente seria a de porco e de algumas aves, enquanto no dos peixes o destaque incidia nas sardinhas6• Fora dos meios rurais, a estes problemas juntavam-se dificuldades de abastecimento, necessidade de proceder à venda em locais próprios, tabelamento de preços, exacta averiguação dos pesos e medidas e ainda frescura e qualidade dos bens, questões a que as câmaras tentavam dar resposta7•

A alimentação quinhentista manteve a maior parte das características da medieval8. Apenas o uso exagerado de açúcar e de especiarias entre os privilegiados revelou algumas diferenças, uma vez

4 Daniel Roche, Histoire des Choses Banales. Naissance de la Consommation dans les Sociétés Traditionnelles XVlf-XIX siecles. Paris, Fayard, 1997, p. 242.

5' Iria Gonçalves referiu, a partir do caso de Alcobaça, as variações acerca do consumo de pão, inclusivamente de trigo, por parte dos camponeses daquela zona. Cf. Do Pão Quotidiano nas Terras de Alcobaça (séculos XIV e XV). Separata de Cister. Espaços. Territórios. Paisagens. Actas. [s. 1.], Ministério da Cultura, Instituto Português do Património Arquitectónico, [s.d.], p. 22.

6 Maria Helena da Cruz Coelho, "Apontamentos sobre a Comida e a Bebida do Campesinato Coimbrão em Tempos Medievos", Homens. Espaços e Poderes (séculos XI a XVI). 1. Notas do Viver Social. Lisboa, Horizonte, 1990, pp. 9-22; Iria Gonçalves, Do Pão Quotidiano [ ... ], pp. 21-26; Idem, "Alimentação Medieval: Conceitos, Recursos, Práticas", Actas dos VI Cursos Internacionais de Verão de Cascais. vol. 2, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2000, pp. 29-48.

7 Iria Gonçalves, "Defesa do Consumidor na Cidade Medieval: os Produtos Alimentares (Lisboa séculos XIV-XV)", Um Olhar sobre a Cidade Medieval. Cascais, Patrimonia, 1996, pp. 97-116.

8 João Carlos Oliveira, "A Alimentação", Portugal do Renascimento à Crise Dinástica. coordenação de João José Alves Dias (= Nova História de Portugal. direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. 5), Lisboa, Presença, 1998, pp. 618-626.

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que a integração dos produtos americanos na dieta mediterrânica, isto é, a principal diferença entre a alimentação medieval e a alimentação moderna, deu-se de fonna progressiva e lenta, só tendo cabal significado no século XVIII, com a divulgação generalizada da maior parte dos produtos9• Assim, a trilogia pão, vinho e carne continuou a ser uma realidade atestada por diversas fontes.

Fazer pão era uma tarefa caseira para muitas famílias, embora a moagem e a panificação também se levasse a efeito por profissionais da especialidade, em particular, nas grandes cidades. Sabemos, por exemplo, que em Lisboa, em meados do século XVI, havia 170 fome iras e 782 padeiras, segundo o cômputo de Cristóvão Rodrigues de Oliveira 'o. Por seu lado, João Brandão (de Buarcos), além de referir as medideiras de cereais e as joeireiras, deu conta da exi.stência de 10 fornos de biscoito e de 500 de cozer pão, bem como de 1000 mulheres que vendiam pão, parte delas tendo-o previamente padejado ". Desde cedo, prepararam-se massas diversas de pão, hierarquizando os cereais e dando conta da relação entre o consumo e tratamento de detenninadas farinhas e os grupos sociais consumidores. O cereal nobre era o trigo, o responsável pelo pão branco, não obstante se confeccionar, como antes referimos, pão meado, terçado e quartado, designações que se referem ao número de cereais que se misturavam. Faziam-se, de entre outros, pães finos a partir de farinhas seleccionadas, fogaças (cozidas sob cinzas), pão de calo (doce) e pão­de-leite12 . O pão era comido também em papas, sopas, açordas e migas, além de integrar diversas receitas nas quais não era o principal ingrediente.

A carne, base da alimentação dos grupos abastados, era um produto de luxo, sendo o seu consumo socialmente prestigiante e um critério essencial do nível de vida. Consumia-se carne de vaca, vitela, carneiro, cordeiro, cabrito, porco, javali, coelho, láparo, lebre, veado, gamo, além de aves de capoeira e de caça, de entre as quais se contam

9 Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, A Herança das Américas em Portugal. Trópico das cores e dos sabores, Lisboa, CTT, 2007.

10 Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551. Sumário em que brevemente se contêm algumas Coisas assim Eclesiásticas como Seculares que há na Cidade de Lisboa (1551), apresentação e notas de José da Felicidade Alves, Lisboa, Horizonte, 1987, pp. 97-100.

11 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, organização e notas de José da Felicidade Alves, Lisboa, Horizonte, 1990, pp. 86, 194, 200, 209-214.

12 Iria Gonçalves, Do Pão Quotidiano [ ... ], p. 24.

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galinha, frango, frangão, ganso, perdiz, perdigoto, galinhola, narceja, capão, pato, adém, pombo, rola, tordo, codorniz e tarambola. A carne era obtida directamente através da caça e, sobretudo, adquirida em feiras, mercados e tendas. Daí a existência de marchantes de carne, esfoladores, cortadores, carniceiros, galinheiros, cabriteiros e homens e mulheres que vendiam peças de caça13, as quais eram preparadas nas casas dos consumidores e nas tabernas.

A carne era servida albardada, em almôndegas, assada, cozida, desfeita, em ensopado, estufada, em cuscuz, frita, fumada, em pastéis, picada, recheada e em torresmos e enchidos diversos, integrando inclusivamente doces como o manjar branco. Os pratos de carne eram acompanhados com pão, outras carnes, nomeadamente toucinho, presunto e chouriço e por molhos, havendo ainda guarnições de legumes. A carne era temperada com diversas especiarias, como cravo e pimenta e, em alguns casos, com canela e até com açúcar. Apesar da diversidade de espécies consumidas, havia uma hierarquia traduzida na qualidade e no preço. As carnes mais caras e mais apreciadas eram a de carneiro, seguindo-se a de vitela e a de vaca, havendo ainda que referir as peças de caça, obtidas através da compra e, sobretudo, dos passatempos da aristocracia. Se tivermos em conta a despensa real de D. João III, em Novembro de 1524, podemos verificar o importante peso da caça. Se o carneiro era a carne preferida, só as perdizes, peças de caça, portanto, representaram 40,25% das espécies consumidas l4 .

A partir do livro de cozinha da infanta D. Maria vejamos duas receitas de carne, uma das quais de caça, as quais são elucidativas do que antes referimos: isto é, a presença de várias especiarias e até de açúcar entre os temperos e a utilização de pão na confecção da receita, desta feita não enquanto acompanhamento, mas como ingrediente secundáriol5 .

Pastéis de Carne

Tomarão carneiro ou lombo de vaca ou de porco fresco e toucinho velho, porque põe sabor, e picá-Io-ão com cheiros e um colher de manteiga e cravo e açafrão e pimenta e gengibre e coentro seco e sumo de limões ou de agraço: tudo junto muito bem afogado numa panela ou tigela de fogo; e dês

13 Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551 [ ... ], pp. 97-100; João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], pp. 209-214.

14 Maria José Azevedo Santos, Jantar e Cear na Corte de D. João III [ ... ], p. 33. 15 Livro de Cozinha da Infanta D. Maria [ ... ], pp. 11 e13.

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que for muito bem afogado, pô-Io-ão a enfriar. E depois de muito bem frio, deitá-Io-ão nos pastéis que já estão feitos; então levá-Ios-ão ao forno e, depois que forem tirados do forno, deitar-lhes-eis caldo amarelo dentro nos pastéis e a massa dos pasteis será dura e os pastéis altos. E desta própria têmpera se fazem os de galinha, e também se fazem pastéis de panela desta têmpera, salvo que a galinha há-de ser feita em peças e cada peça sobre si. E para estes pastéis serem muito mais saborosos, deitarão na massa a carne crua.

Tigelada de Perdiz

Tomarão a perdiz e cozê-Ia-ão com uma posta de toucinho em talhadas, e temperada com seus cheiros e sal; e não há-de levar vinagre. E depois dela cozida, cortá-Ia-ão como quando vai à mesa, e terão acolá uma dúzia de ovos batidos, e tomarão um pão duro em fatias muito delgadas, e tomarão um arrátel de açúcar e os ovos hão-de ser batidos com um pouco de açúcar que sejam doces, e clarificarão este arrátel de açúcar. Então farão as fatias neste açúcar, e para serem bem feitas hão-de ferver um pouco. Então, tirar o tacho fora do fogo. Então sobre abaixar a fervura, torná-lo a por sobre o fogo; e neste ponto deste açúcar há-de ir uma pouca de água de flor, e não hão-de fazer senão tirar e por no fogo e depois de feitas que tiverem o ponto mais alto, tirá-Ias e pô-Ias num prato, e a perdiz que está nos ovos doces. Hão-de tomar uma tigela real[ mente] nova.

A abundância e a diversidade das especles ictiológicas permitiam que o peixe fosse um dos alimentos presente na dieta alimentar de ricos e pobres l6, tanto mais que, os dias de jejum e abstinência prescritos pela Igreja eram em número elevado17, o que

16 Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, "O Peixe na Dieta Alimentar dos Portugueses", Do Primeiro Almoço à Ceia. Estudos de História da Alimentação, Sintra, Colares Editora, 2004, pp. 35-59. .

17 Sobre estes dois conceitos, cf. Pierre Pommarede, "Le Jeune et I' Abstinence", Du Bien Manger et du Bien Vivre à Travers les Ages et les Terroirs, Pessac, Maison des Sciences de I' Homme d' Aquitaine, 2002, pp. 83-93. Sobre a vivência dos dias de jejum e abstinência em Portugal, cf. A. H. de Oliveira Marques, "A Mesa", A Sociedade Medieval Portuguesa. Aspectos de Vida Quotidiana, Lisboa, Sá da Costa, 1981, p. lO e Maria Helena da Cruz Coelho, "Quaresma", Dicionário de História Religiosa de Portugal. [vol. 4], direcção de Carlos Moreira Azevedo, Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 86-87. A diversidade de espécies teve paralelo, por exemplo, em Castela e Aragão, onde a variedade de peixes consumidos também era uma realidade. Cf. María de los Ángeles Pérez Samper, La Alimentación en la Espana dei Siglo de Oro. Domingo Hernández de Maceras 'Libro dei Arte de Cocina', Huesca, La VaI de

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levou alguns autores a salientar a influência daquela instituição no consumo das populações l8 • Por outro lado, não esqueçamos que o peixe ocupou um lugar de relevo no regime alimentar das comunidades monásticas, um pouco por todo o lado l9 . Não admira, pois, que as verbas conventuais dispendidas na aquisição de peixe fossem elevadas. Sabe-se, por exemplo, que em 1530, as freiras do mosteiro cisterciense se Cós (Alcobaça) despenderam em pescado 99.200 reais, isto é, 50,6% do total dos gastos em alimentos e vestuário20.

Obtido o peixe, importava tratá-lo, isto é, lavá-lo e escamá-lo e transportá-lo para as diferentes zonas do reino, o que era feito por barca, besta e azémola, depositado em barris, canastras, seiras e golpelhas2l , não se sabendo se, tal como em Castela, se utilizava neve para assegurar a frescura22 • Além do peixe consumido fresco, era frequente o gasto de peixe salgado, seco, fumado, em empadas, em escabeche e em conserva em barris, nomeadamente atum e salmão23 .

Tal como outros géneros, os peixes conheciam uma hierarquia que se traduzia no preço e, consequentemente, na possibilidade de aquisição de algumas espécies só por parte dos mais abastados. Se a sardinha era habitualmente entendida como o alimento dos pobres, já por exemplo, a lampreia e o linguado eram só para algumas bolsas. Alguns indicadores acerca de quem comia o quê podem ser apontados. Conhecemos as viandas adquiridas e gastas pela Corte de D. João III, em alguns meses dos anos de 1524 e de 1532. Estas fontes, dois livros

Onsera, 1998, pp. 73-74; L. Jacinto Garcia, Carlos Vala Mesa. Cocina y Alimentación en la Espana Renacentista. [s.I.], Breman, 2000, p. 54.

18 Josefa Mutgé i Vives, "L' Abastament de Peix i Cam a Barcelona, en el Primer Terç deI segle XIV", Alimentació i Societat a la Catalunya Medieval. Barcelona, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1988, p. 110.

19 Jean-Claude Ignace, Van Laborie, "Approche du Régime Alimentaire des Moines dans les Couvents Franciscains, Dominicains et Carmes de Bergerac à la fin du XVlIIe siecle", Du Bien Manger et du Bien Vivre à Travers les Ages et les Terroirs. Pessac, Maison des Sciences de I' Homme d' Aquitaine, 2002, pp. 263-299.

20 Cristina Maria André de Pina e Sousa, Saul António Gomes, Intimidade e Encanto. O Mosteiro Cisterciense de Santa Maria de Cós (Alcobaça). Leiria, Magno, 1998, p. 85.

21 Maria José Azevedo Santos, Jantar e Cear [ ... ], p. 43. 22 L. Jacinto Garcia, Carlos Vala Mesa [ ... ], p. 53. 23 Maria Ângela da Rocha Beirante, Santarém Quinhentista. Lisboa, [s.n.], 1981,

p. 247; Maria José Azevedo Santos, "O Peixe e a Fruta na Alimentação da Corte de D. Afonso V. Breves Notas", A Alimentação em Portugal na Idade Média. Fontes. Cultura. Sociedade. Coimbra, [s.n.], 1997, pp. 1-33.

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de ucharia, mostraram, no que se referiu ao peixe, que a espécie mais consumida foi a sardinha. Contudo, a maior parte foi destinada às iguarias dos oficiais da Coroa, que as receberam como complemento do ordenado. O rei e os infantes seus irmãos só as consumiram ocasionalmente. A lista de peixes carregados em receita e despesa foi, contudo, muito variada. Só em Novembro de 1524, por ordem decrescente, apareceram sardinhas, choupinhas, choupas, azeVlas, muges, cavalinhas, pescadas secas, linguados, salmonetes, besugos, besuguinhos, bordai os, gorazes, pargos, linguadas, litões, sáveis e

N · I 74 congros. os manscos, santo as e ostras- . A alimentação dos internos do Colégio das Artes, em

Coimbra, contava igualmente com peixe de várias espécies consumido quer durante a Quaresma quer fora daquele período. No século XVI, os regimentos de 1547 e 1574, bem como os contratos de abastecimento, referiram diversas espécies frescas e secas, nomeadamente sáveis, linguados, lampreias, pescadas e litões. Nas refeições mais caras e nas médias, o consumo era de um arrátel e quarta e um arrátel, por dia, respectivamente, com excepção do linguado, cuja porção era mais pequena, isto é, um arrátel e 13 onças, para cada refeição mais cara ou média25 .

Em 1610, Duarte Nunes do Leão traçou um quadro da actividade piscícola do reino, salientando irezes, sáveis e solhos do Guadiana; azevias, cações, corvinas, linguados, sáveis, solhos e tainhas do Tejo; eiroses, lampreias, linguados, relhos, salmões, sáveis e trutas dos rios Ave, Cávado, Douro, Leça, Lima, Minho, Mondego, Neiva e Vouga e trutas - peixe de água doce - obtidas nas terras da Beira e de Entre Douro e Minho. A pesca marítima foi ainda considerada, tendo merecido destaque besugos, chernes, linguados, salmonetes, sargos, pescadas, peixes-agulha, rodovalhos, sardas e sardinhas de Setúbal e atum do Algarve, além de cações, corvinas, linguados, lixas, pescadas, polvos e raias de Aveiro, Buarcos, Cascais, Pederneira, e Peniche26 •

24 Maria José Azevedo Santos, Jantar e Cear [ ... ], p. 45. 25 António de Oliveira, A Vida Económica e Social de Coimbra de J537 a J(IO.

I." parte, vol. 2, Coimbra, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Instituto de Estudos Históricos Doutor António de Vasconcelos, 1972, pp. 343 e 34:3. Um arrátel equivale a 0,459 quilos. Uma quarta de arrátel equivale a 0,115 quilos e uma onça a 0,029 quilos.

26 Duarte Nunes do Leão, Descrição do Reino de Portugal [ ... ], pp. 195-197.

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As gorduras utilizadas na culinária eram manteiga, a gordura nobre de então; azeite, banha e toucinho. Além de integrar refogados, a manteiga era utilizada para untar recipientes que posteriormente acolhessem alimentos. De qualquer modo, entre a população menos abastada, o azeite e o toucinho decerto predominariam, tanto mais que o consumo de azeite dominou nas zonas mediterrânicas e o de manteiga no Norte da Europa27 • Por exemplo, em Lisboa, havia mulheres que vendiam manteiga, as chamadas manteigueiras, e outras que vendiam azeite. Em meados do século XVI, seriam por volta da

. d d 28 meIa centena para ca a pro uto . De entre os condimentos utilizados na cozinha quinhentista

contam-se especialmente agraço (sumo de uva verde), água de flor de laranjeira, água rosada, alcaparra, alho, cebola, limão, sal e vinagre, ervas aromáticas, tais como cerefólio, coentro, erva-doce, funcho, louro, mangericão, mangerona, salsa e tomilho e, naturalmente, especiarias29, amplamente divulgadas a partir de então, as quais serviam para temperar carne, peixe e doces, sendo denominadas genericamente como adubos: açafrão, canela, cravo, gengibre, macir, noz-moscada e pimenta. Usava-se ainda almíscar, âmbar, gergelim e pó de sândalo. Estas substâncias eram adquiridas em tendas e pela rua. Por exemplo, João Brandão (de Buarcos) referiu a existência de 13 mulheres que vendiam sal em tendas e de homens que andavam por Lisboa com odres de vinagre às costas30 . Um regimento do Colégio das Artes, posterior a 1574, foi particularmente preciso acerca dos temperos para as carnes. Por exemplo, a de vaca deveria ser condimentada com mostarda bem moída, o carneiro cozido com salsa e vinagre e o carneiro assado com limão, lima ou laranja31 •

27 Jean-Louis Flandrin, "Le Gout et la Nécessité: sur l'Usage des Graisses dans les Cuisines d'Europe Occidentale (XIye_XYme siecle)", Annales. Economies. Sociétés, Civilisations, 38.° ano, n.o 2, Paris, 1983, pp. 369-40 I.

28 Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551 [ ... ], pp. 97-100; João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], pp. 209-214.

29 O uso de especiarias e, consequentemente, os novos sabores e o que o luxo que tal consumo representava chegou a ser criticado na poesia. Cf. Saulo Neiva, "Les Mets et les Moeurs: La Représentation Satirique des Repas Courtisans au Portugal", Le Boire et le Manger au xvr sÍl'!cle. Actes du Colloque du Puy-en-Velay, estudos reunidos e apresentados por Marie Yiallon-Schoneveld, Saint Etienne, Universidade de Saint Etienne, 2004, pp. 225-235.

30 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], pp. 209-2 I 4. 31 Mário Brandão, O Colégio das Artes (1555-1580), Coimbra, Imprensa da

Universidade, 1933, p. CXXIY.

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Os vegetais integravam também a dieta alimentar. Aparecem referidos abóbora, agrião, alcachofra, alcaparra, alface, beringela, beterraba, cardo, cebola, cenoura, chicória, cogumelo, couve-flor, couve-galega, couve lombarda, couve murciana, couve tronchuda, ervilha, escorcioneira, espargo, espinafre, fava, feijão branco, feijão­frade, feijão verde, lentilha, nabo, rabanete e repolho. Os vegetais aparecem quase exclusivamente em guarnições, sopas e tortas, nas receitas dos séculos XVII e XVIII, presumimos que antes a situação não teria sido diferente. De notar que, a partir das referidas receitas, somos levados a pensar que os vegetais eram consumidos cozidos, como acompanhamento de alguns pratos de carne e de peixe, e não crus, em salada. Uma fonte de natureza diferente, nomeadamente um regimento do Colégio das Artes, posterior a 1574, denota também esta realidade. Por exemplo, no mesmo preconizou-se que a carne de vaca ou de carneiro fosse servida com uma escudela de caldo com couve, abóbora ou nabo, consoante as épocas do ano e que o peixe fosse acompanhado com uma escudela de abóbora, favas verdes com alface, grão, castanhas piladas ou lentilhas, mais uma vez, de acordo com a 'época32 • Desconhecemos o uso que dos mesmos faziam os não privilegiados. Importa contudo referir que a venda dos produtos hortícolas era comum nas cidades, abastecidas pela produção à sua volta e pelas quintas e quintais citadinos, já que, em meados de Quinhentos, João Brandão (de Buarcos) referiu a existência de 80 mulheres que vendiam hortaliças na capital e mais 50 que transaccionavam exclusivamente couves, daí serem denominadas

. 33 couveiras . A lista de frutos era, já então, bastante vasta: alperce, ameixa,

amora, cereja, cidra, damasco, figo, ginja, groselha, laranja, limão, maçã, marmelo, melancia, melão, morango, pêra, pêssego, tâmara e uva. Além da azeitona, que integrava recheios de alguns pratos e da castanha. Entre os frutos secos contam-se amêndoas, nozes, nozes verdes (nodegos) e, ·mais raramente, pinhões. Todos estes frutos eram utilizados em doces34 e até em pratos de carne. A favorecer o consumo exagerado de doces de frutos,diversos estava a produção de açúcar na ilha da Madeira. Logo na centúria de Quinhentos insistiu-se na

32 Mário Brandão, O Colégio das Artes [ ... l, pp. CXXIV -CXXVII. 33 Jgão Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], pp. 209-214. 34 Sobre a utilização do açúcar, cE Leila Mezan Algranti, "Alimentação, Saúde e

Sociabilidade: a Arte de Conservar e Confeitar os Frutos (séculos XV -XVIII)", História: Questões e Debates, n.o 42, Curitiba, 2005, pp. 33-52.

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preparação de doces de frutos frescos submetidos a operações nas quais o açúcar esteve sempre presente, nomeadamente compotas e geleias, as denominadas conservas; pastas, caso da marmelada, perada e codornada e frutas cobertas, ou seja cristalizadas. Alguns doces eram preparados em conventos femininos, caso por exemplo, do de Santos, onde em 1528, a rainha D. Catarina mandou entregar 30.000 reais pela marmelada que ali foi feita e enviada para Castela35 . Os doces serviam para oferecer a familiares e até para conseguir obter boas vontades. Isto mesmo foi confessado pelo embaixador de Portugal em Castela, António de Azevedo Coutinho, em 1526. Segundo o diplomata para aliciar alguns Castelhanos precisava de gatos de algália, papagaios, camisas mouriscas e marmeladas, ao mesmo tempo que declarou já ter parti Ihado "confeituras com judeus e bêbados,,36.

Os doces parecem ter sido uma verdadeira obsessão naciqnal, pelo menos desde o século XVI. Recordemos que no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria foram apresentadas quatro receitas de doces de ovos, sete de doces com leite - alguns dos quais também contêm ovos - e 24 de conservas, nas quais se contaram três receitas diferentes de marmelada e diversos doces de frutos tão variados como abóbora, casquinha, cidra, limão, marmelo, pêra ou codorno e perinha dormideira37. Em 1580, os cavaleiros Tron e Lippomani ao visitarem Lisboa. não deixaram de notar que, em diversas ruas próximas da ruJl Nova havia "lojas cheias de doces e frutas secas e cobertás, primorosamente preparadas, de que se faz grande tráfico, mandando­as para diversas partes do mundo,,38. Não esqueçamM, contudo, os

35 Isabel M. R. Mendes, "O 'Dev~' -e o 'Haver' da Casa da Rainha D. Catarina", Arquivos do Centro Cultural Português, vol. 28, Lisboa, Paris, 1990, p. 163.

36 Anselmo Braamcamp Freire, Ida da Imperatriz D. Isabel para Castela, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1920, p. 59.

37 Maria José Azevedo Santos, "O Mais Antigo Livro de Cozinha Português. Receitas e Sabores", I Alimentação em Portugal na Idade Média, Fontes. Cultura. Sociedade, Coimbra, [s.n.], 1997, pp. 35,-66.

38 "Viagem a Portugal dos Cavaleiros Tron e Lippomani (1580)", Alexandre Herculano, Opúsculos, vol. 4, organização, introdução e notas de Jorge Custódio e José Manuel Garcia, Lisboa, Presença, 1985, p. 366. Sobre o consumo de doces confeccionados com açúcar na Flandres, cf. Eddy Stols, " 'O doce nunca amargou ... e nem mesmo na Flandres'. A Dinâmica do novo Açúcar Brasileiro nas Relações Económicas de Portugal com Flandres na Época de D. João III", D. João III e o Império. Actas do Congresso Internacional Comemorativo do seu Nascimento, coordenação de Roberto Carneiro e Artur Teodoro de Matos, Lisboa, Centro de História de Além-Mar, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2004, pp. 453-483.

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doces de ovos. A ucharia real, só em 22 dias do mês de Novembro de 1524, conseguiu consumir 1364 ovos, ou seja 113 dúzias39 • A título de curiosidade vejam-se duas dessas receitas quinhentistas, uma de doces de ovos e outra de doces de frutos 40.

Ovos Mexidos

Para uma dúzia de gemas de ovos tomarão uma escudela de açúcar e deitá-Ia-ão num tacho, e então deitar-Ihe-ão uma pouca de água de flor e pô-Ia-ão sobre o fogo e far-Ihe-ão o ponto baixo. Então fareis fatias de pão e deitá-las-eis dentro no tacho e, como estiverem cozidas estas fatias, tirá-Ias­ão, pô-Ias-ão num prato. E tereis as gemas dos ovos batidas com a clara, e deitá-los-eis no tacho e, como levantar fervura, com uma colher mexê-Ios-ão para uma parte sempre. E como se for coalhando, assim ireis mexendo de maneira que não os façais miúdos. E tirá-los-eis inteiros e pô-los-eis em cima do prato, e por cima deitar-lhes-eis açúcar e canela pisada. Então mandá-Ios­eis à mesa.

Marmelada de Dona Joana

Tomarão quatro arráteis de marmelos e cinco de açúcar. E os marmelos hão-de ser cozidos em água, ou em açúcar, ou como quiserem. E se forem na água, hão-de ser cozidos inteiros, e abafados dês que forem cozidos. E quando se pisarem, hão-nos de partir em talhadas, depois de aparados. E esta há-de ser coada por uma joeira. E dês que o açúcar for clarificado, ponha-se no fogo para fazer ponto; e em o acabando de coar, hão-lhe deitar água de flor. E há-de fazer ponto que seja como resina; e então lhe lançarão os marmelos e desfá-Ios-ão no açúcar, fora do fogo; e como forem todos desfeitos, tomem-nos ao fogo e cozerá até que se despeça do tacho.

Entre os preparados com fruta e açúcar cabe destacar a marmelada que, após ser confeccionada, se guardava em caixas de madeira. Sabe-se que em meados do século XVI haveria 40 carpinteiros em Lisboa que produziam as referidas embalagens, cerca de 20.000 unidades por ano, no valor de 20 a 30 reais cada peça. Segundo João Brandão (de Buarcos) "as marmeladas que nelas se põem e se vendem, valem muita cópia de dinheiro; porque caixa se vende por trezentos reais e outra por quatrocentos, e por mais e

39 Maria José Azevedo Santos, Jantar e Cear [ ... ], p. 41. 40 Livro de Cozinha da Infanta D. Maria [ ... ], pp. 57 e 125-127.

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menos,,~I. Tais pastas de fruta, mormente a marmelada guardada em caixas, eram das mais apreciadas, tcndo sido representadas na pintura portuguesa do século XVlI e na castelhana do século XVIII, decerto com aspecto semelhante ao que apresentaria durante a centúria dc Quinhentos.

com LU".,'''. "'arro., Flores (1666-1670). Lisboa, Muscu Nacional de Arte !\ntiga.

41 João Brandão (de Buareos), Grandeza e Abaslança I .. 1, p. 71.

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Fig. 2 - Luis Meléndez (1716-1780) - Natureza Morta com Caixas, Laranjas e No=es. Londres_ National Gallery.

Também se presenteavam parentes com outros doces, frutos e conservas salgadas, nomeadamente "ostias e azevias" e "barriles de sollo y sardinas", tudo remetido por D. Catarina a seu irmão, o imperador Carlos V, que por sua vez também mimou O cunhado, D. João III, com camoe~as, peras e melões42

. Anos mais tarde, em 1573, quando D. Sebastião visitou o Alentejo e o Algarve, também foi obsequiado com alimentos pela marquesa de Ayamonte e pelo duque de Bragança. No primeiro caso recebeu pastéis de ovos e marmelos, tigelas de leite, filhós, arroz de leite, ovos mexidos e talhadas de ovo cobertas. O presente de D. João compreendeu muitos doces, empadas de salmonetes e lampreias, sável, solha, galinha, capão, água e vinho. Na mesma viagem, o duque de Aveiro, D. Jorge de Lencastre, foi

42 Isabel M. R. Mendes Orumond Braga, Um Espaço. duas Monarquias (InterreJaçâes na Peninsuin Ibérica no Tempo de Carlos ~? Lisboa, Centro de Estudos Ilistórico~ da Universidade Nova de Lisboa. Ilugin Editora, 2QO 1, pp. 92-94.

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contemplado pela marquesa de Ayamonte com doces, sáveis, lampreias, linguados e empadas43 ;

Outros produtos tais éomo mel, leite e derivados estavam igualmente presentes na dieta alimentar de muitos. Em meados de Quinhentos, no que se refere aos lacticínios, a capital era abastecida pelas zonas periféricas por 200 mulheres do termo. As mesmas vendiam queijos frescos, natas, queijadas e pães-de-Ieite em feiras. Havia ainda outras que, de forma ambulante, serviam os clientes com· manteiga, queijo, requeijão e leite44• As falsificações com a junção de água já eram uma realidade45 . O mel era vendido na capital por 20 mulheres, enquanto 30 outras tinham à disposição dos consumidores "fruta de mel, ou seja girgilada, pinhoada, alféloas e outras coisas de mel,,46.

O gosto pelas bebidas frescas também ficou assinalado desde cedo. Para refrescar ou por prescrição médica, consumia-se água de neve - tal aconteceu com D. João III pouco antes de falecer47 • Daí o apreço pelos refrescadores de bebidas, uma moda italiana introduzida em Castela e, posteriormente, em data desconhecida, em Portugal. Recordemos que, em 1543, quando a princesa D. Maria, filha de D. João III, se deslocou a Castela para se casar com o futuro Filipe II, alguém notou, com especial interesse, um exemplar de prata fabricado em Roma pertencente ao bispo D. Francisco de Bobadilha, "peça muito para ver,,48. Mais tarde, D. Mâria, neta de D. Manuel, filha de D. Duarte, mulher de Alessandro Farnese, também possuiu um, igualmente de prata, presumivelmente italiana, segundo um inventário de cerca de 157549• Dados que conheçamos, sobre a existência de refrescadores em Portugal, são todos posteriores ao século XVI.

43 Francisco de Sales Loureiro, Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve. A Alteração das Linhas de Força da Política Naciimal. Texto do Cronista João Cascão, Lisboa, Horizonte, 1984, pp. 124, 132-133.

44 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], pp. 94 e 209-214. 45 Paulo Drumond Braga, Leite. Biografia de um Género Alimentar, Sintra,

Colares Editora, 2004, pp. 39-40. 46 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], pp. 209-214. 47 Paulo Drumond Braga, D. João III. Lisboa, Hugin, 2002, p. 107. 48 D. António Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa [ ... ],

tomo 3, parte 1, p. 167. 49 Giuseppe Bertini, Annemarie Jordan Gschwend, II 'Guardaroba' di una

Principessa dei Rinascimento. L 'Inventario di Maria di Portogallo Sposa di AlessandroFarnese, Parma, Guaraldi, 1999, p. 15.

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Além da omnipresente água, obtida em fontes e chafarizes ou vendida pelas cidades por aguadeiros, que em meados de Quinhentos, em Lisboa, eram 20, havia também 1000 negras que andavam ao pote vendendo água pela cidade e 50 outras mulheres que, em tendas na Ribeira, asseguravam o abastecimento aos transeuntes50 . Os vinhos eram já de castas variadas. Na zona de Santarém detectaram-se labrusca, mourisca, temporã, castelã, ferraI, terrantês e galega. Os mais comuns e apreciados eram então os brancos, denominados palhetes ou alambreados, de curta duração, mais doces do que alcoólicos, características que pennitiam uma melhor tolerância e um consumo na ordem dos dois litros por dia. Havia também os vermelhos ou tintos e os vinhos de cunho mediterrânico, tais como malvasias e bastardos, os mais prestigiados51 •

Durante o século XVI, já era visível, ainda que tenuemente, a relação entre certos pratos e determinadas épocas festivas. O consumo estava condicionado ao poder económico (abastado, remediado ou pobre), à época do ano (Verão ou Inverno, época de certos frutos ou de caça de algumas espécies) e à localização geográfica do consumidor (litoral ou interior com ou sem cursos fluviais por perto), apesar de se tentar preservar os alimentos por mais tempo do que a época em que eram caçados, abatidos, pescados ou colhidos, através do fumo, do sal, da seca e do açúcar, consoante os géneros em causa. Paralelamente, começaram a ligar-se certas iguarias ao calendário litúrgico. Sabe-se, por exemplo, que pelo Carnaval era comum consumir laranjadas e caldeiradas de água de farelos52 e que, durante a Páscoa, eram preparadas rosquilhas folhadas com manteiga, queijadas, folares e cortiças de OVOS53 . No convento de Santa Clara de Santarém amêndoas confeitas, beilhós, biscoitos, folares, ovos mexidos com

50 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], pp. 209-214. 51 Mário Viana, Os Vinhedos Medievais de Santarém, Cascais, Patrimonia, 1998,

pp. 102, 151-155. Sobre o consumo de vinhos em França, no século XVI, cf. Françoise Argod-Dutard, "Cuvée Lexicale dans les Vignes du XVIe siecle", Le Boire et le Manger au XV!' siecle. Actes du Colloque du Puy-en-Velay, estudos reunidos e apresentados por Marie Viallon-Schoneveld, Saint Etienne, Universidade de Saint Etienne, 2004, pp. 151-172; Nadege Arrivé, "Le Vin en France au XVIe siecle. Aspects du Vin : Production, Usages et Pratiques Culinaires", Ibidem, pp. 173-194.

52 Francisco de Sales Loureiro, Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve [ ... ], p. 121.

53 Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, "A Alimentação das Minorias no Portugal Quinhentista", Do Primeiro Almoço à Ceia. Estudos de História da Alimentação, Sintra, Colares Editora, 2004, p. 30.

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açúcar, pão-de-ló, queijadas de leite, e queijadinhas das Endoenças marcavam presença na mesa das religiosas54 . Ao Natal estavam associados os consumos de doces diversos, que em Lisboa eram vendidos por 30 mulheres na Ribeira e no Pelourinho Velho. Em mesas cobertas de toalhas brancas eram apresentados gergelim, pinhoada, nogada, marmelada, laranjada, sidrada e fartéis, isto é, bolos de açúcar e de amêndoas, além de outras conservas55 . Por seu lado, na mesa das freiras de Santa Clara de Santarém estavam presentes doces diversos, tais como arroz doce, beilhós e chouriços doces, ambos melados com mel e açúcar, diacidrão, fartéis, malazadas, massapães, pão de calo, picado e queijadinhas56 . Outro aspecto interessante, que será mais visível a partir do século XVII, é a ligação entre determinados espaços e produtos considerados bons. Pensemos nos doces de Alcobaça e Leiria57, juntemos os da Madeira58 e as lampreias de Abrantes e de Coimbra, que eram consumidas assadas ou em empadas por quem morava longe de tais sítios59 .

Por vezes, as iguarias eram apresentadas de modo a impressionar. Por exemplo, quando a imperatriz D. Isabel se dirigiu a Sevilha, em 1526, por ocasião do seu casamento com Carlos V, ocorreram diversas refeições festivas. Uma, oferecida por um nobre castelhano ao marquês de Vila Real, D. Pedro de Meneses, não foi do agrado deste, pois foram servidas "muytas vyandas em que entravam muyto pouquas que homem folgase de comer porque o solha era dourado he as salsas [leia-se molhos] co as suas armas pyntadas no meo delas ha ornem sabe lhe mylhor soalho muyto bem asado e por salsa muyto bom vynagre sem nenhuas annas". Conclusão, esperada, do marquês de Vila Real: "ate nysto do comer lhe fazem os portuguezes tanta ventagem como en tudo o al,,60.

Outros banquetes, desta feita oferecidos por Portugueses, ficaram célebres. Pensemos, por exemplo, no que foi servido em Bruxelas, por D. Pedro de Mascarenhas, embaixador de Portugal junto

54 Maria Ângela V. da Rocha Beirante, Santarém Quinhentista. Lisboa, [s.n.], 1981, pp. 247-252.

30.

55 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], p. 87. 56 Maria Ângela V. da Rocha Beirante, Santarém Quinhentista [ ... ], pp. 247-252. 57 Isabel M. R. Mendes Orumond Braga, "A Alimentação das Minorias [ .. .j", p.

58 cr. infra. 59 Isabel M. R. Mendes Orumond Braga, "A Alimentação das Minorias [ ... ], p.

30. 60 Anselmo Braamcamp Freire, Ida da Imperatriz D. Isabel [ ... ], p. 68.

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de Carlos V, o qual contou com a presença do imperador e de sua irmã D. Leonor. Celebrava-se, então, o nascimento do príncipe D. Manuel (1531-1537), filho de D. João III. A refeição foi imortalizada por André de Resende no seu poema Genethliacon, no qual se descreveram os espectáculos, as iguarias e os vinhos servidos. O banquete não contou com peixe. As carnes utilizadas foram as mais diversas: aves de capoeira, bacorinhos, cabritos de mama, novilhos de leite, perdizes, tetas de porca, peças de caça, nomeadamente cabeça de javali selvagem, coelhos, corças, faisões, gansos, garças-reais, lebres, lombos de veado temperados em salmoura, patos, pombos, rolos e tordos. Pavões enfeitados com as penas da cauda aberta e até um cisne de asas douradas completaram o quadro que ainda contou com outras excentricidades, tais como empadas recheadas de línguas de rouxinóis e de flamingos e, sobretudo, empadões recheados com pássaros vivos tais como papagaios, pombos e pintassilgos. A sobremesa contou com diversos doces de frutas, além de marmelos em calda, maçãs em mel e nozes e fartéis, cuja receita foi inclusivamente fornecida. A lista dos vinhos servidos foi igualmente extensa. Entre os nacionais referiram­se um de uva moscatel da Lusi~ânia, outros de Lisboa e Alcácer do Sal. Quanto aos estrangeiros a variedade foi enorme: vinho da Bética, Tarraconense, das Baleares, Ceretano, das regiões de Orleães, Panónia e Reno, da Ligúria, Trifolino, de Pucino, de Sétia, Cécubo, Falermo, de Sinuessa, Mássico, de Alba, Sorrentino, de Cales, Rético, Mamertino, de Creta, de Quios, de Clazómenas, de Metimna, de Tasos e de Cós. Isto é, vinhos da Península Ibérica, do espaço italiano, de F d G " dI" 61 rança, a reCla e o mpeno .

Também impressionantes foram os banquetes oferecidos por D. Sebastião e por D. Catarina em 1565, por ocasião do casamento de D. Maria, neta de D. Manuel I e filha do infante D. Duarte, com

61 Virgínia Soares Pereira, "Celebrando Portugal: Bruxelas, 1531, e o Genethliacon de André de Resende", Congresso Internacional Damião de Góis na Europa do Renascimento. Actas, Braga, UniveI:sidade Católica Portuguesa, Faculdade de Filosofia, 2003, pp. 879-902. Mais tarde, Manuel da Costa, também celebrará em poema certa refeição oferecida pelo duque de Bragança, D. Teodósio, em 1537, por ocasião do casamento de sua irmã D. Isabel com o infante D. Duarte, irmão de D. João III. Cf. José A. Sánchez Marín, "Caracteristicas de la Obra Poética de Manuel da Costa", Humanismo Português na Época dos Descobrimentos. Actas, Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1993, p. 271.

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Alessandro Farnese62 • A descrição destas refeições festivas foi feita por Francesco de Machi, que também registou o banquete nupcial servido a 18 de Novembro de 1565, em Bruxelas, o qual contou com o trabalho de 110 cozinheiros que trabalharam durante 15 dias. Nesta ocasião foram servidos vinhos de diversas proventencias, nomeadamente de Portugal, sem indicação mais rigorosa, e da Madeira63 • Fixemo-nos nos banquetes da Corte de D. Sebastião descritos por Machi. O banquete oferecido pelo monarca foi acompanhado por música e "teve lugar na sala real, onde se tinha erguido um anfiteatro de madeira, com sete ou oito degraus, o qual rodeava toda a sala, estando tanto esta, como aquele, forrados por finíssimas tapeçarias de ouro, prata e seda, coisa riquíssima e de grande vulto, atendendo ao tamanho da sala e ao do anfiteatro. Neste havia um baldaquino recamado de pérolas de espaço a espaço, sob o qual estava uma cadeira com almofadas guarnecidas de ouro e o chão coberto com tapetes de seda. Ao pé havia duas grandes credencias, fechadas por uma balaustrada, cada uma com oito degraus e por cima das quais estavam dois dóceis de tela de ouro, estando numa uma baixela de vasos dourados, com alguns jarros, bacias, taças e copos de ouro maciço, e na outra um grande jarro e bacia de ouro puro, cravejado de pedras preciosas de enorme valor, digno, na verdade, de um imperador. De forma que não se cansavam os olhos de admirar esta grande e riquíssima credencia, ornamentada com tão copioso número de copos, bacias, jarras, frascos, taças, candelabros, tudo isto com profusão de subtis e vários lavoures de folhagens e diversos esmaltes, sendo os trinchadores dourados e alguns de ouro maciço. Era a outra credencia de igual tamanho, e com vasos da mesma riqueza, toda ela cheia de baixela de prata, polida como um espelho,

62 Sobre o casamento, a viagem e o recebimento de D. Maria, cc. Giuseppe Bertini, "L'Entrata Solenne di Maria di Portogallo a Parma nell 1566", D. Maria de Portugal Princesa de Parma (1565-1577) e o seu Tempo. As Relações Culturais entre Portugal e a Itália na segunda metade de Quinhentos, Porto, Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade, Instituto de Cultura Portuguesa, 1999, pp. 69-84; Idem "The Marriage of Alessandro Farnese and D. Maria ofPortugal in 1565: Court Life in Lisbon and Parma", Cultural Links between Portugal and Italy in the Renaissance, direcção de K. J. P. Lowe, Oxford, Oxford University Press, 2000, pp. 45-59.

63 Giuseppe Bertini, "O 'Livro de Cozinha' de Maria de Portugal e a Cozinha de Corte em Bruxelas e em Lisboa ao Tempo das suas Núpcias com Alexandre Farnésio", Oceanos, vol. 21, Lisboa, 1995, pp. 119-125. Cc. também D. Maria de Portugal (1538-1577) Princesa de Parma. Monumenta Sparsa, direcção de José Adriano de Freitas Carvalho, Porto, Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade, 1998, p. 100.

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mas estas duas credencias estavam desta forma somente por grandeza e pompa real, porque nas cozinhas havia uma outra baixela, composta de um sem número de pratos, taças e outros géneros de peças adequadas ao serviço da mesa,,64. Em simultâneo, outro aposento do palácio real foi palco de outro banquete cuja anfitriã foi a rainha D. Catarina. De Machi notou que a refeição foi igualmente sumptuosa e que também foi exibida uma enorme quantidade de peças douradas. O aposento fora igualmente decorado a preceito: "riquissimamente adornado com tapeçarias de ouro, prata e seda, com um baldaquino de brocado de ouro,,65.

2. Deixando o que se comia, passemos a outras perspectivas de abordagem, nomeadamente como, quando e onde se comia. Comecemos pelo horário das refeições. No século XVI, ainda se faziam quase sempre apenas duas refeições. O mais comum era o jantar e a ceia. O primeiro pelas 10 ou 1 I horas, o segundo pelas 18 ou 19 horas. A tendência para jantar cada vez mais tarde - por vezes às 20 horas - implicou a criação de um almoço, ao levantar, e de uma merenda, à tarde, mas estas duas refeições estavam longe de ser muito divulgadas. Por exemplo, entre os colegiais de Coimbra, o almoço era só para os mais fracos, os menores e os enfermos e consistia em meio

- d . h 66 pao e um pouco e VIl1 o . A mesa de uma refeição de luxo apresentada na sala de jantar

enquanto espaço específico e pennanentemente dedicado às refeições só foi uma realidade no século xvm67. Antes, como vimos, mesmo nos palácios renascentistas, as salas eram multifuncionais. Aí se armava a mesa, a qual também podia ser posta nos aposentos privados, nomeadamente câmaras e antecâmaras. A mesa dos

64 Fernandes Tomás, Cartas Bibliographicas, 2." série, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1877, pp. 53-54.

65 Fernandes Tomás, Cartas [oo.], p. 55. 66 António de Oliveira, A Vida Económica e Social de Coimbra de 1537 a 1640,

I." parte, voI. 2, Coimbra, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Instituto de Estudos Históricos Doutor António de Vasconcelos, 1972; Idem, "O Quotidiano da Academia", História da Universidade em Portugal, voI. I, tomo 2, (1537-1771), Coimbra, Universidade de Coimbra, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 638.

67 Philippe Thiebaut, "1850-1914. La Table Bourgeoise", Pierre Ennes, Gérard Mabille, Philippe Thiébaut, Histoire de la Table, Paris, Flammarion, 1994, pp. 253-264 ; Raffaella Sarti, Casa e Família. Habitar, Comer e Vestir na Europa Moderna, tradução de Isabel Teresa Santos, Lisboa, Estampa, 2001, p. 226.

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abastados era sempre montada em espaços ricamente decorados. No chão eram colocadas alcatifas ou esteiras e nas paredes tapeçarias ou guadamecis, de acordo com as estações frias ou quentes, respectivamente. Por vezes, construía-se um estrado com alguns degraus, o qual era posteriormente coberto. A iluminação através de castiçais e candelabros de prata, assegurando fins práticos e fomentando uma atmosfera festiva e até cerimonial68 , era uma realidade, daí os elevados gastos com cera69 . O recurso a pequenas construções efémeras como os dosséis e o uso de panos de armar também eram frequentes. Posto isto, colocava-se a mesa, frequentemente rectangular, coberta com toalha, em princípio branca, mesmo quando a mesa já apresentava algum pano rico bordado, por exemplo, com seda e ouro. Sobre a toalha aparecem sempre objectos emblemáticos das refeições: a faca e o saleiro70, este último por vezes decorado com elementos marinhos ou em fonna de concha. Mais raramente com formas zoomórficas da fauna de novas paragens, como certo saleiro de cristal indiano ornamentado com dois jacintos e com ouro, oferecido pela rainha D. Catarina a sua nora D. Joana, em 155371 • Perto da mesa, expunham-se os utensílios, especialmente os de prata, sobre móveis diversos para evidenciar a riqueza da casa. Cadeiras e almofadas completavam o quadro. Em momentos festivos, a refeição era acompanhada por música.

68 Marco Daniel Duarte, "O Rei preside à Ceia. Estudo Iconológico da Mesa Real na Idade Modema", Economia, Sociedade e Poderes. Estudos em Homenagem a Salvador Dias Arnaut, coordenação de Leontina Ventura, Coimbra, Comissão Científica do Grupo de História da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2002, p. 725.

69 Veja-se por exemplo, os gastos com cera, por parte da rainha D. Catarina. Cf. Isabel M. R. Mendes, "O 'Deve' e o 'Haver' [ .. .]", p. 171.

70 Sobre esta realidade, cf. Maria José Palia, "Cozinhar e Contar uma História. O Imaginário Alimentar em Gil Vicente", Associação Internacional de Lusitanistas. Actas do V Congresso, organização e coordenação de T. F. Earle, Oxford, Coimbra, 1998, pp. 1190 e 1191; Idem, "Comida em Portugal no Limiar do Novo Mundo", À Volta da Mesa. Os Alquimistas do Prazer, Lisboa, Instituto do Emprego e Formação Profissional, 2004, p. 33.

71 Annemarie Jordan Gschwend, "A Cristal Elephant from the Kunstkammer of Catherine of Austria", Jahrbuch der Kunsthistorischen Sammlungen in Wien, band 87, Viena, 1991, pp. 121-126.

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Fig. 3 - Saleiro de cristal indiano com ouro e jacintos, montado por Francisco Lopes (Lisboa, 1550). Viena, Kunsthistorisches Museum.

. Se a . iconolfiafia qu~nhentista nos mostra uma me~a relatIvamente sImples ,tal explica-se pelo facto da ostentação atraves da baixela concentrar-se na copa e não na própria mesa, situação que só irá ser cabalmente alterada no século XVIII. Efectivamente, as pinturas quinhentistas que apresentam mesas constituem claras transposições de episódios bíblicos para a época em que o pintor viveu. Logo, ao olharmos para as representações da Última Ceia, do Banquete de Herudes ou de Cristo em Casa de Marta, independentemente das questões de autoria destas obras73

, estamos a apreciar a ambiência própria do século XVI, o que converte as cenas ali representadas em episódios domésticos. A realidade política, social c cultural da época está ali presente. Assim, estamos perante discursos

12 Sobre a análise ieonográfica da mt:sa. cf. Marco Danit:l Duarte. "O Rei preside à Ceia l .. .]"'. pp. 705-751 c Monscrrat MireI i Nin, O Vinho na Arte. tradução e revisão de Daniel Gouveia, Lisboa, Chaves I't:rrt:ira, 2005.

1J Sobre a actividade de Vasco Fernandes, cf. Maria Dalila Aguiar Rodrigues. Modos de Expressão na Pintura PorfllKuesa. O Processo Criativo de Vasco Fernandes (/500-1542), 2 vols. Coimbra, Dissertação de Doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdadt: de Letras da Universidade de Coimbra, 20DO.

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piclorrcos realistas que pretendiam possibilitar o diólogo com quem observava a pintura. Notem-se as mesas rectangulares. mais raramente redondas, montadas sobre e:.trados e revestidas com toalhas brancas. em alguns casos colocadas sobre outras toalhas ricamente decoradas, bem C0l110 a presença da llluhifuncional faca e, em alguns casos, de guardanapos, saleiros e frutos.

Fig. 4 - Francisco Henriques em parceria com Vasco Fernandes -Última Ceia (1501-1506). Viseu, Museu de Grão Vasco.

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Fig. 5 - Gaspar Vaz - Cristo em Casa de Marta. Cerca de 1535. Viseu, Muscu de Grão Vasco.

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A \lrSA COM GRÃo VA~. PARA o ESrUDODA ALlM['llTAÇAONOSECUI OXVI

Fig. 6 - Gregório Lopes - Salome apresentando a Cabeça de São João Bapli.5/a a Herodes. Cerca de 1538-1539. Tomar. Igreja de São João Baptista.

Outras fontes revelam as refeições dos grupos privilegiados. Por exemplo, através de uma carta do embaixador de Castela cm Portugal, Ochoa Isasaga, sabe-se eomo se processaram as refeições da Corte portuguesa no último Natal do século XV74

• A 24 de Dezembro de 1500, a rainha D. Maria, segunda mulher de D. Manuel, COll1eu nos seus aposentos e reeebeu um presente de fruta da sua sogra, a infanta D. l3ealri7., enquanto o rei foi servido numa sala bem ataviada, onde fora montado um estrado com dossel de brocado e colocadas uma mesa e uma cadeira. A refeição foi servida pelo mordomo-mar, pelo vedor e por muitos pajens. Entre as iguarias, o embaixador salientou grandes pratos de conserva e fruta. O mesmo infonnou ainda que o

J~ $obre a etiqueta de Cone nesta época, cr. Ana Maria Alves, "A Etiqueta de Cone no Perlodo Manuelino". NO~'a Historia Século XI·I. n.o I. Lisboa, t984, pp. 5-26; Idem. Iconografia do /'oder Real no "eriodo Monuelino. A" Procura de uma /,inguagem Perdida. Lisboa. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985. pp. 61-65.

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repasto decorreu ao som de música e que as refeições da rainha eram servidas do seguinte modo: "Lope de Valdevieso hacia la salva, dofía Ângela cortava, dofía Leonor de Millan servia com las fuentes y com la copa, el maestre sala com los pajes traya el manjar a la mesa y estavan todas las damas alderredor,,75. Damião de Góis também se referiu aos banquetes natalícios durante o reinado de D. Manuel. A refeição oferecida a todos os que estavam na Corte decorria em momentos diferentes, consoante· o estatuto dos comensais; e era composta por "frutas verdes e de açúcar e de conservas que lhe traziam da ilha da Madeira,,76.

Em 1543, durante a viagem a Castela, para entregar D. Maria, filha de D. João III, ao futuro Filipe II, num jantar em Estremoz com a presença de vários elementos da nobreza que acompanhavam a princesa, o ambiente era, naturalmente, de luxo e sumptuosidade: "Estava o duque [de Bragança, D. Teodósio] em cabjceira da mesa em hua cadeira de brocado e detrás delI e hum drocel de brocado e toda a casa armada de muito rica tapeçaria e loguo D. James seu irmão da mão direita e sua R. S. [D. Fernando de Meneses e Vasconcelos, arcebispo de Lisboa] abajxo delle D. Comstantino irmão do dito duque e asy os outros fidalguos de hua bamda e doutra. Estavão huas alcatifas ao comprido pelo meo da casa sobre as quaes estavão as mesas e as mesas todas cubertas de panos de veludo verde e polas bordas barradas de brocadilho. A copa estava muito rica de prata. E depois do dito jamtar ouve musica',77. Na mesma viagem, um outro banquete oferecido pelo duque de Bragança, em Elvas, contou com pavões assados e perdizes em pastéis78 . Os bens' do duque eram de molde a impressionar pois, segundo o mesmo testemunho, em Elvas, nas casas em que pousava, D. Teodósio ''tinha a sua copa toda branca com peças muito fermosas em estremo principalmente hua bacia e dous ou tres potes que segundo diziam teria muita soma de marcos

75 Documentos Referentes a las Relaciones con Portugal durante el Reinado de los Reyes Católicos. edição preparada e anotada por Antonio de la Torre e Luis Suarez Fernandez, vol. 3, Valladolid, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1963, pp. 77-79.

76 Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel. nova edição conforme a de 1566, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1955, parte IV, cap. 84, p. 225.

77 D. António Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa. Coimbra, Atlântida, 1948, tomo 3, parte I, pp. 147-148.

78 D. António Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa [ ... ], tomo 3, parte I, p. 151.

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que pasariam de dous mil marcos". Entre as tapeçarias contavam-se uma com os trabalhos de Hércules e outras representando os doze meses do ano. A mesma sala estava ainda decorada com um dossel de brocado com sanefas de veludo carmesim e franjas de ouro79 .

Ainda na mesma viagem, uma outra refeição, desta feita oferecida pelo arcebispo de Lisboa, D. Fernando de Meneses e Vasconcelos, ao bispo de Caria, D. Francisco de Bobadilla, mereceu referência pelas iguarias apresentadas. Refere a fonte que "ao dito jantar estava S. R. S. na cabeceira e abajxo delle da mão direita o Bispo vestido com seu roxete e da mão esquerda o veador da Princeza e de hua bamda e doutra muitos fidalguos [ ... ]. A primeira iguaria foi manteiga muito singular sobre talhadas de pão com açúcar por sima e S. R. S. mandou aquentar as suas sopas para lhe por a manteiga por cima. Da qual manteiga vieram ha dita mesa dous moços em hum bacio de cozinha feitos no modo dos queijos de Vila Verde de Portugal. E Sua S. R. comia carne. Vieram ha dita mesa muitos peixes de Rio asados e cozidos e pescada seca e muitos pees de porcos com muitas potagens e cabeças de cabrito e muitos chouriços e especearia e por façanha hua cabeça de vitela cozida e ouve muitos vinhos brancos e vermelhos e no meo do jantar ouve muitos linguados cozidos e fritos que dizem que Sua S. R. mandou dar por favorecer o ospede. E por derradeiro veo hum grande momte de neve que se pos na mesa. O jantar foi bem servido e se começou depois das onze oras e se acabou amtes das duas,,80.

Outras refeições da realeza foram notícia. Num banquete oferecido pelo Convento de Cristo a D. João III, na então vila de Tomar, no ano de 1551, foram servidas diversas espécies piscícolas, a saber, atuns, azevias, besugos, chernes, corvinas, linguados, pescadas, sáveis e ostras. As aves ficaram representadas por capões, frangos, galinhas, patos, perdizes, pombos e rolas. Foram ainda servidos pratos de coelho, boi e cabrito. De referir ainda pão, queijo, manteiga, ovos, açúcar, arroz, alcaparras, diacidrão, rabanetes, alféloa, alfenim, amêndoas e marmelada. No grupo das bebidas apenas água e vinh081 .

79 D. António Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa [ ... ], tomo 3, parte 1, p. 152.

80 D. António Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa [ ... ], tomo 3, parte 1, pp. 168-169.

81 António Baião, "Despesas do Convento de Cristo, por 1551, com a visita de D. João 1lI e Comitiva", Anais da União dos Amigos dos Monumentos da Ordem de Cristo, vol. 3, Tomar, 1952, pp. 17-18; João José Alves Dias, "Un Banquet Royal au

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Em Guadalupe, durante o famoso encontro entre D. Sebastião e Filipe II, ocorrido no mosteiro jerónimo, na Páscoa de 1576, o monarca português obsequiou o tio com uma refeição em que os peixes e os crustáceos reinaram: ameIJoas, lagostas e ostras, empadas de salmonete, congro e cheme e ainda azevias, besugos e linguados fritos; tudo em grande quantidade, tendo as lagostas e ostras chegado vivas a Guadalupe. Os comensais puderam ainda degustar muitos doces, alguns de frutos, alcaparras, azeitonas, passas cozidas com amêndoas, chicória e saladas diversas82 •

Estar à mesa pressupunha a observância de certas normas, daí a produção de textos deste teor, o que não foi uma novidade renascentista. Esquecendo a Antiguidade, este fenómeno remontou à Idade Média, quando se elaboraram as primeiras normas ditas de etiqueta e civilidade, então designadas como normas de cortesia. Nesse tempo, não eram mais do que frases curtas, por vezes mnemónicas e em verso que visavam a rápida memorizaçã083, os quais se inseriram em várias tradições: prolongaram e precisaram uma literatura legada pela Antiguidade, basearam-se em alguns pontos dos ensinamentos dos Padres da Igreja, inspiraram-se nas regras monásticas e foram influenciadas pela Arte de Amar, de Ovídi084 . Um

Portugal au XVI siecle", La Sociabilité a la Table. Commensalité et Convivialité a travers les Ages. Actes du Colloque de Rouen, textes réunis par Martin Aurell, Olivier Dumoulin et Françoise Thelamon, Rouen, Université de Rouen, 1992, pp. 155-158.

82 F. L1anos y Torriguia, "Una Comida Historica en el Refectorio de Guadalupe", EI Monasterio de Guadalupe, tomo 4, Guadalupe, 1923-1924, pp. 220-226; Isabel M. R. Mendes, O Mosteiro de Guadalupe e Portugal séculos XIV-XVIII," Lisboa, Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1994, p. 78.

83 Norbert Elías, O Processo Civilizacional. Investigações Sociogenéticas e Psicogenéticas, tradução Lídia Campos Rodrigues, vol. 1, Lisboa, D. Quixote, 1989. A tese deste autor tem sido objecto de grande interesse e de algumas críticas. Um ponto da situação, pode ser visto in Ana Lúcia Silva Terra, Cortesia e Mundaneidade. Manuais de Civilidade em Portugal nos séculos XVII e XVIII, vol. I, Coimbra, Dissertação de Mestrado em História Moderna apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2000, pp. 16-26. Sobre os antigos textos de civilidade, ou mais correctamente de cortesia, cf. também Jacques Revel, "As Práticas da Civilidade", História da Vida Privada, direcção de Philippe Aries e George Duby, vol. 3 (Do Renascimento ao Século das Luzes), tradução portuguesa com revisão científica de Armando Luís de Carvalho Homem, Porto, Afrontamento, 1990, pp. 171-174 e Roger Chartier, Lecteures et Lectures dans la France d'Ancien Regime, [s.I.], Seuil, 1987, pp. 50-54, passim.

84 Claude Roussel, "Les Legs de la Rose: Modeles et Précepts de la Sociabilité Médiévale", Pour une Histoire des Traités de Savoir-Vivre en Europe,

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enorme passo foi dado em 1530, quando Erasmo publicou a Civilidade Pueril, uma pequena obra dedicada a um jovem nobre, Henrique de Borgonha, filho de Adolfo, príncipe de Veere, que pôs a descoberto a falta de polimento de uma sociedade que ainda estava longe da correcção generalizada e do trato mundano regrado. Pela primeira vez foi elaborada uma compilação das tradições orais na literatura escrita, dando origem a um novo género literário85 • A obra conheceu mais de 130 edições até ao século XVIII, tendo-se sucedido traduções e imitações. Não sabemos, contudo, a divulgação e alcance desta obra em Portugal.

O ritual da mesa real com o estender as toalhas, bendizer a Deus pelo alimento que se ia comer, levar água às mãos a fim de purificar o corpo e o espírito, comer, limpar-se de novo e arrumar a louça foi recentemente entendido, por Marco Daniel Duarte, como devedor do ritual da mesa eucarística. As refeições régias podem, pois, também ser interpretadas como formas de encenação do poder cuja matriz era copiada do cerimonial religioso86 .

Se bem que na casa real portuguesa o primeiro regimento tenha aparecido durante o reinado de D. João IV (1640-1656)87, já antes havia naturalmente hierarquias e regras de precedência que deveriam ser respeitadas em presença e durante a ausência do rei apesar de, por norma, o monarca tomar as refeições só ou com membros da família próxima. Um documento do reinado de D. Sebastião (1557-1578), acerca da mesa do seu primo segundo, o infante D. Duarte, revelado por Annemarie Jordan88, dá conta disso

direcção de A. Montandon, Clermont-Ferrand, Associations des Publications de la Faculté des Lettres et Sciences Humaines de Clermont-Ferrand, 1995, p. 3.

8S Erasmo, A Civilidade Pueril, tradução de Fernanda Guerreiro, Lisboa, Estampa, 1978. Sobre este aspecto da compilação das tradições orais, cf. o ponto da situação elaborado por Jean-Claude Margolin, "La Civilité a sa Pratique et aux Traités de Civilité", Pour une Histoire des Traités de Savoir-Vivre en Europe, direcção de A. Montandon, Clermont-Ferrand, Associations des Publications de la FacuIté des Lettres et Sciences Humaines de Clermont-Ferrand, 1995, pp. 161-168.

86 Marco Daniel Duarte, "O Rei preside à Ceia [ ... r, p. 735. 87 D. António Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa Real

Portuguesa, liv. IV, parte II, Coimbra, Atlântida, 1950, pp. 389-412. Cf., sobretudo os títulos UI a LXXII.

88 O documento que a seguir se transcreve (Lisboa, Biblioteca da Ajuda, 50-V -35, n.o 115) foi revelado e transcrito por Annemarie Jordan Gschwend, "Queen of the Seas and Overseas Dining at the Table of Catherine of Austria, Queen of Portugal", Mesas Reais Europeias. Encomendas e Ofertas / Royal and Princely Tables of Europe. Comissions and Gifts / Tables Royales en Europe. Commandes et Cadeaux,

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mesmo. Nele se pode ler: "Puzerão hua mesa grande e comprida em hua sala, e no topo desta estava outra atravessada em cruz, afastada pouco da outra, e nesta comia o Senhor D. Duarte no meo della, e a sua mão direita servião os officiaes, e a esquerda estavão os moços fidalgos deI Rey Don Sebastião seguintes, Ruy Lourenço de Távora, Bemardim de Távora, seu filho, Francisco de Távora, Christovão de Távora, D. Luís, o alferes mor, Luís da Silva, irmão do regedor e outros muitos. Sirvirão a esta meza moços de câmara e elles tiravão as iguarias. Na meza segunda comia os fidalgos seguintes Borges da Silva, filho de António da Gama que servia por seu pay com os mais fidalgos que servião a meza do Senhor D. Duarte, e assim mais os officiaes da Guarda Roupa, moço da chave, cavalleiros fidalgos, escudeiros fidalgos e neste serviço servião Reposteiros, como sempre o fizerão quando este Príncipe EI Rey D. Sebastião hião folgar fora da corte, e a meza estava no modo seguinte"

o Veador

Mantieiro

Trinchante Oficiaes que servião

Servidores de Toalha

Rui Lourenço

o Senhor D. Duarte

Moços Fidalgos

Bemardim de Távora

Fig. 7 - Esquema da mesa do infante D. Duarte (século XVI).

coordenação de Leonor d' Orey, Lisboa, Instituto Português de Museus, 1999, p. 28, nota 1.

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Do mais pobre ao rei, todos comiam em casa. Excepção feita quando se trabalhava longe do lar, quando se passeava ou quando se viajava. Possuímos algumas informações acerca de refeições fora de casa devidamente preparadas previamente, uma especle de piqueniques, e de refeições tomadas ad hoc. Por exemplo, segundo Damião de Góis, D. Manuel, aos domingos e dias santos, costumava passear de barco e merendar "muitas fruitas verdes, conservas e cousas d'açúcar, vinho e água, do que também comiam hos fidalgos que a seu chamado iam com ele no batel,,89. Quando a infanta D. Maria, filha de D. João III, empreendeu viagem para Castela, para se casar com o futuro Filipe II, em Outubro de 1543, num dos dias do percurso, entre Évora e Estremoz, acabou por comer dentro das andas em que se fazia transportar. Segundo uma fonte da época, "ao dito almorço se apeiaram o Embaxador de Castella e o Duque de Bragança e Sua R. S. e o Barão d Alvito e o camareiro moor D. Francisco de Castello Branco e estiveram as portinollas das ditas amdas emquanto durou o dito almorço. No qual ouve musica de viola d arco com dous moços do Duque de Bragança que cantavão,,9o.

A prática da caça, e o consequente afastamento de casa, também permitia certas refeições algo inusitadas. Assim aconteceu com o infante D. Duarte, falecido em 1540. Este filho de D. Manuel, andando um dia a praticar actividades venatórias perto de Arraiolos, junto de uma ribeira, observou certo homem que lançando a tarrafa (rede redonda de pesca individual) obtivera bordalos e picões. Fez-se convidado para comer, tendo-lhe sido servidos bordalos assados com coentrada pisada com folhas de alho e uma tigela de leite91 .

No século XVI, estávamos ainda longe do conceito de restaurante. Logo, o mais comum, para quem viajava e não beneficiava de aposentadoria nem se podia acolher a mosteiros ou paços, era comer em tabernas e pernoitar em estalagens. Naturalmente, estamos a referirmo-nos, sobretudo, aos populares. Desde a Idade Média que as tabernas eram espaços de sociabilidade rural e urbana, frequentados por gentes tão diversas como camponeses, artesãos e estudantes, onde se consumia vinho,

89 Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo [ ... ], parte IV, cap. 84, p. 225. 90 D. António Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa [ ... ],

tomo 3, parte 1, p. 146. 91 André de Resende, "Vida do Infante D. Duarte", Obras Portuguesas, prefácio e

notas de José Pereira Tavares, Lisboa, Sá da Costa, 1963, pp. 99-100.

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aguardente, pão, carne cozida e assada e peixe frito e cozid092• Só em Lisboa, em meados de Quinhentos havia 300 tabernas93 • Por outro lado, as estalagens asseguravam igualmente o fornecimento de comida e dormida, uma vez que ao estalajadeiro competia ter sempre à disposição do viandante pão, vinho, carne, pescado e camas, bem como cevada e palha para as montadas. Durante o século XVI, o número de estalagens cresceu em Portugal, comparativamente ao que se registara na centúria anterior. Assim, se entre 1441 e 1495 os monarcas portugueses concederam 270 cartas de estalajadeir094, só no reinado de D. João III (1521-1557) foram confirmadas 32 cartas de privilégios a estalajadeiros e outorgadas 192. A quantidade de estalagens, distribuída de forma desigual pelo território, nunca esteve isenta de críticas à comida servida e às camas disponíveis95 • Só em Lisboa havia 3096 •

Para os indivíduos de poucos recursos que trabalhavam em cargas e descargas, para negros, pedintes e outros que estavam afastados das suas casas, havia outras possibilidades para consumir alimentos. Efectivamente, vendedores ambulantes, homens e mulheres, escravos e forros asseguravam a venda regular de uma enorme diversidade de preparados, doces e salgados, em diversos pontos da cidade. Assim, em Lisboa, durante o século XVI, poderia comer-se pela rua: açúcar rosado, aletria, ameixas cozidas, arroz cozido, arroz doce, azevezinhos, chícharos, confeitos, cuscuz, frutas verde e seca, laranjada, marmelada, obrei as, pão, pastéis, peixe frito, tripas cozidas e sardinhas assadas. Junto da Ribeira, havia 10 cabanas com braseiros manipulados por homens e mulheres que aí assavam sardinhas e outros peixes, os quais alimentavam homens livres e escravos que trabalhavam nas imediações97• Às Fangas da Farinha, na Porta Nova e na Porta do Açougue havia 25 mulheres que vendiam tripas cozidas98• Esta realidade chegava a incomodar alguns

92 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], pp. 31-32. 93 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], p. 206. 94 Iria Gonçalves, "Privilégios de Estalajadeiros Portugueses (séculos XIV e

XV)", Imagens do Mundo Medieval, Lisboa, Horizonte, 1988, p. 149. 95 Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, "Circulação e Distribuição de Produtos",

Portugal do Renascimento à Crise Dinástica, coordenação de João José Alves Dias (= Nova História de Portugal, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. 5), Lisboa, Presença, 1998, pp. 200-201.

96 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], p. 206. 97 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], p. 107. 98 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], p. 102.

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estrangeiros que visitaram a cidade. Assim aconteceu com um que comentou: "cozem as viandas na rua, sobre uns fogareiros de barro, de modo que, as passar, se é perfumado pelo fumo das sardinhas e dos outros peixes que remexem ad nauseam, porque carne há tão pouca que muitos não a comem,,99.

3. Visto o que se comia, como e onde se comia, refira-se também um conjunto de infra-estruturas que permitiam confeccionar e servir os alimentos. Aventuremo-nos, pois, pelas cozinhas. Se a iconografia portuguesa não nos legou dados sobre a matéria, alguns documentos de outra natureza, nomeadamente os livros de receitas culinárias, regimentos de colégios e inventários de bens, permitem ter alguma ideia acerca dos profissionais da arte culinária e dos objectos de que se serviam lOo, tanto mais que o material de cozinha também pode ser entendido como critério para aferir o estatuto social dos seus possuidores.

Através do inventário dos bens da infanta D. Beatriz, mãe do rei D. Manuel, falecida em 1506, podemos conhecer uma boa parte do recheio da sua cozinha: açafates, alguidares de Estremoz, de pedra, de vidro e vidrados; almofariz, almofias, bacios de Valença, barris, búrneas, caldeiras, caldeirões, cestos, colheres de ferro, bandejas, escudelas, escumadeiras, funis de cobre, graais de pedra, obradeiras de obrei as, pratos de estanho, pedras mármore, potes, púcaros de barro, ralos de folha-de-flandres, sertãs, tachos de cobre e de ferro de vários tamanhos, tabuleiros, vasilhas de barro e de chumbo, sem esquecer assadores de castanhas, espetos, fogareiros de ferros de diversos tamanhos, fomos de pastéis, grelhas e trempes. Para o serviço da mesa, a infanta contava com prataria diversa branca e dourada: açucareiros, barris, caçoilas, caixas para confeitos, castiçais, colheres, garfosIOI , gomis, pratos e salseiras. Os vidros, brancos e de cores,

99 A. H. de Oliveira Marques, "Uma Descrição de Portugal em 1578-80", Portugal Quinhentista (Ensaios), Lisboa, Quetzal, 1987, p. 197.

100 Sobre esta realidade em França, cf. Martin de Framond, "A Table d'un Marchand Bourgeois du Puy", Le Boire et le Manger au XV! siecle. Actes du Colloque du Puy-en-Velay, estudos reunidos e apresentados por Marie Viallon­Schoneveld, Saint Etienne, Universidade de Saint Etienne, 2004, pp. 111-114, 142-144.

101 A presença de talheres no inventário mostra a precocidade da sua adopção em Portugal entre os privilegiados. Sobre esta realidade em termos europeus, cf. Raffaella Sarti, Casa e Família. Habitar, Comer e Vestir na Europa Moderna, tradução de Isabel Teresa Santos, Lisboa, Estampa, 2001, pp. 252-253.

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também faziam parte dos bens, nomeadamente: castiçais, copas, bacios com gomil, enfusas, escudelas, jarros, potes e púcaros com tampa. Havia ainda alcatifas, almofadas, panos de annar, toalhas de mesa de damasco e de pano de Holanda bordadas com seda e ouro e até um braseiro de pratalO2• A mesma fonte deu também a conhecer parte do recheio da despensa da infanta, onde se encontravam produtos alimentares e medicinais. Ali se guardava abóbora coberta, açúcar, açúcar aviolado, açúcar rosado, alcaparras, alfenim, amêndoas, ameixas em passa, avelãs, confeitos, conservas de ameixas, diaprunos, mirobálanos, peras e atum, especlanas e aromatizantes, nomeadamente, cálamo aromático, cardamomo, canela, cravo, espiquinardi, gengibre, gualanga, malagueta, noz-moscada e pimenta; figos, mannelada, mannelada em talhadas, mel rosado, pães de açúcar, passas de uva, queijos, tâmaras, tamarindos, xaropes diversos além de "especia de lingua de vaca de açúcar" e "piparotes de conserva da ilha". De entre outras excentricidades, conta-se ainda uma mãozinha de ouro com âmbar e uma língua de escorpião lO3, isto é, dentes fossilizados de tubarão que se utilizavam para funcionarem como antídotos de veneno ao ser introduzidos na comida.

102 Anselmo Braarncamp Freire, "Inventário da Infanta D. Beatriz. 1507", Archivo Historico Portuguez. vol. 9, Lisboa, 1914, pp. 64-110.

103 Anselmo Braarncamp Freire, "Inventário da Infanta D. Beatriz [ ... ]", pp. 64-110.

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Fig. 8 - Gomil de porcelana com esfera armilar (China, c. 1519). Lisboa, Fundação Medeiros e Almeida.

A infanta D. Beatriz, mãe do monarca, possuía um recheio de casa que em nada seria inferior ao do rei D. Manuel 1104• A riqueza proporcionada pelo comércio ultramarino e a facilidade em obter especiarias e outros produtos de luxo para a mesa, tais como

104 Sobre a casa da infanta, cf. Sebastiana Alves Pereira Lopes, O Infante D. Fernando e a Nobreza Fundiária de Serpa e Moura (1453-1470), Beja, Câmara Municipal de Beja, 2003; e João Paulo de Oliveira e Costa, D. Manuel I (1469-1521). Um Príncipe do Renascimento, [Lisboa], Círculo de Leitores, Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2005.

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porcelanas105, apenas após sete viagens ao Oriente (1497-1499, 1500-1501, 1501-1502, 1502-1503, 1503-1504 e 1504-1505 e 1505-1506)106 começaram a evidenciar um certo grau de exotismo e de sofisticação que será, naturalmente, mais visível durante o reinado de D. João III, quando os Portugueses alcançaram a China e o Japão, como se pode testemunhar pelos inventários de bens da rainha D. Catarina. Mas, antes ainda, quando D. Manuel casou a sua filha, D. Beatriz, com o

. duque de Sabóia, em 1521, também foram bem visíveis as peças luxuosas que integraram o dote da infanta. No grupo das pratas douradas contaram-se albarradas, atanares, bacias, bacios de água às mãos, barnagais, barris, braseiros, caçoulas, castiçais, colheres, confeiteiras, copos, escalfadores, escudelas, escumadeiras, especieiros, frascos, garfos, gomis, jarros, oveiros, pichéis, pivetes, pratos, saleiros, salseirinhas, salvinhas e taças. Todos estes objectos eram de prata dourada. De referir ainda toalhas e guardanapos de pano de Holanda e pano de Bretanha e ainda "hua caxa grande de pao com seus repartimentos pera a specearia guarnecida com sua fechadura e chaves"lo7. A infanta levou para Sabóia diversas peças de cobre para uso na cozinha, a saber: quatro tachos de cozer peixe, outros tantos para manjar branco, quatro bacias para lavar carne e ainda três tachos, duas escumadeiras, duas caçoilas, dois caldeirões, quatro panelas, um funil, dois fomos com trempes e quatro cântaros. Juntem-se ainda, de ferro ou com partes de ferro: almofarizes, assadores, barris, colheres grandes, cutelos, escapolas, espetos, ferros para bolos, gadanhos, gorivaldos, graais, grelhas, navalhões, pás, peneiras, pingadeiras, rapadouras, sertãs, tábuas para pastéis, tenazes e trempes. Seguiram ainda ceirões de esparto lO8•

O património da consorte régia de D. João III, no que se refere ao recheio da cozinha e às peças que iam à mesa, era sumptuoso. No primeiro caso contam-se, de entre outras peças: açafates, açucareiros,

105 Sobre este ambiente de luxo, sofisticação e exotismo na corte de D. Manuel, cf. João Paulo de Oliveira e Costa, D. Manuel I (1469-1521) [ ... ].

106 Cf. José Virgílio Amaro Pissarra, A Armada da Índia. Cômputo, Tipologia e Funcionalidade das Armadas de Guerra Portuguesas do Oriente (1501-1510), Lisboa, Dissertação de Mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2001, pp. 276-299.

107 D. António Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, tomo 2, parte 2, Coimbra, Atlântida, 1948, pp. 27-81.

108 D. António Caetano de Sousa, Provas da História Genealógica [ ... ], tomo 2, parte 2, pp. 27-81.

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alguidares, almaraias, almofarizes, almofias, bacios de cozinha, balanças, barris, caçoilas, cestos, colheres, recipientes de preparar cuscuz (denominados cuscuzeiros), escalfadores, escudeI as, escumadeiras, fusos de mexer conservas, facas para sal, galhetas, garfos, grelhas, medidas de varIOS tamanhos, panelas, taças, vinagreiras. Ao serviço da mesa estavam bacias de água às mãos, bacios, bandejas, caçoilas, castiçais, colheres, confiteiras, escudelas, fruteiros, garfos, garrafas, jarros, pratos, saleiros, salseirinhas e até uma fonte para decoração l09 . A rainha possuía ainda mobiliário indiano e chinês, guadamecis, tapeçarias europeias e asiáticas e uma profusão de panos e almofadas de seda.

Além da prataria, alguns dos objectos arrolados nos inventários eram de tartaruga, laca, madrepérola e porcelana, que começou a chegar a Portugal logo após a primeira viagem de Vasco da Gama. Sabe-se, por exemplo, que entre Fevereiro de 1511 e Abril de 1514, o tesoureiro das especiarias da Casa da Índia recebeu 692 peças de porcelana. A estes números há que acrescentar as que eram de particulares e cuja quantidade se desconhece II 0. Recorde-se o testemunho dos cavaleiros Tron e Lippomani que, em 1580, notaram a existência de diversas lojas da rua Nova (Lisboa) onde se podiam adquirir objectos orientais: "porcelanas finíssimas de vários feitios, conchas, cocos lavrados de diversos modos [e] caixinhas guarnecidas

109 A publicação dos vários inventários de bens da rainha e dos resumos de muitos documentos guardados na Torre do Tombo, bem como o seu estudo foi objecto de atenção por parte de Annemarie Jordan Gschwend, Annemarie Jordan, The Development of Catherine of Austria's Collection in the Queen's Household: His Character and Cost, 2 vols, Washington, Brown University, 1994. A mesma autora tem vindo a repetir, e em alguns casos a antecipar, estas informações em diversos trabalhos. Cf., por exemplo, Idem, "Catarina de Áustria: Colecção e Kunstkammer de uma Princesa Renascentista", Oceanos, vol. 16, Lisboa, 1993, pp. 62-70; Idem, "As Maravilhas do Oriente: Colecções de Curiosidades Renascentistas em Portugal", A Herança de Rauluchantim, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Misericórdia de Lisboa, 1996, pp. 82-127; Idem, "Os Produtos Exóticos da Carreira da Índia e o Papel da Corte Portuguesa na sua Difusão", Nossa Senhora dos Mártires. A Última Viagem, Lisboa, Expo 98, Verbo, 1998, pp. 123-141, Idem, "Queen of the Seas and Overseas Dining at the Table of Catherine of Austria, Queen of Portugal", Mesas Reais Europeias. Encomendas e Ofertas / Royal and Princely Tables of Europe. Comissions and Gifts / Tables Royales en Europe. Commandes et Cadeaux, coordenação de Leonor d' Orey, Lisboa, Instituto Português de Museus, 1999, pp. 14-43.

110 Pedro Dias, "Símbolos e Imagens do Cristianismo na Porcelana Chinesa", Reflexos. Catálogo, Lisboa, Misericórdia de Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1996, pp. 17-59.

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de madrepérola"llI. Pela mesma fonte ficamos ainda informados que "a prata de Lisboa é lavrada com delicadeza e variedade por ser costume, assim entre nobres como entre plebeus, usarem de pratos e bacias de prata" 112 •

Fig. 9 - Bacia e Gomil de madeira e madrepérola (Índia, século XVI). Lisboa, Colecção Particularll3 .

III "Viagem a Portugal [ ... ]", p. 366. 112 "Viagem a Portugal [ ... r, p. 366. 113 Reproduzida a partir de Exotica. Os Descobrimentos Portugueses e as

Câmaras de Maravilhas do Renascimento, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 123.

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Fig. 10 - Garfo e Colher de cristal de rocha, ouro, rubis e safiras (Ceilão, segunda metade do século XVI). Viena, Kunsthistorisches MuseumlI4.

Por ocasião do já referido casamento da infanta D. Maria com Alessandro Farnesse, em 1565, a rainha de Portugal, D. Catarina, mandou servir uma sumptuosa refeição na qual se exibiram peças de porcelana branca e azul da dinastia Ming, tigelas de laca pintadas, pratos de tartaruga, jarros de madrepérola, peças de vidro de Veneza e

114 Annemarie Jordan Gschwend defende que este garfo e esta colher pertenceram à rainha D. Catarina. Cf. "As Maravilhas do Oriente [ ... ]", p. 118.

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muita pratariaII5 . Também conhecemos o nome de alguns dos servidores da rainha ao longo da sua vida em Portugal. Foram seus cozinheiros mores Diogo Gil e João Álvares. Os cozinheiros foram Afonso Gomes e Francisco de Almeida, o assador Francisco Dias, o pasteleiro Afonso Gil e os confeiteiros Manuel Rodrigues e Cornélio Izarte, os quais além dos vencimentos receberam mercês monetárias em diversos momentosl1 6.

A partir do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, podemos também ter ideia do recheio de uma cozinha principesca. Ali se encontrariam aI barradas de bico, alguidares, bacias, bacios, borcelanas, canudos ou paus roliços (rolos da massa), canivetes, carretilhas, colheres de prata, escudei as, escumadeiras, fusos ou furadores, graais, joeiras, panelas, peneiras de seda, pratos, púcaros, rapadouras, sertãs, tachos, tigelas e vasilhas de diversos tamanhosIl7 .

À morte do governador do Brasil, Mem de Sá, em 1572, foi dado destino aos bens que ficaram no seu engenho de Sergipe. Pela lista dos mesmos podemos ter alguma noção de parte dos utensílios que integravam a cozinha. De cobre: uma batedeira, uma coadeira, duas escumadeiras e um pote. De latão: uma bacia grande, balanças, uma caldeira e dois tachos. De estanho: dois bacios de cozinha grandes, dois bacios de água às mãos, 31 bacios, duas galhetas, garrafas, três pichéis e sete pratos. De ferro: duas colheres, seis espetos de ferro, um garfo, grelhas de ferro e três rapadouras. Toalhas de mesa e oito guardanapos de Flandres completam o rol dos bens que, em 1574, ainda não tinham sido vendidosIl8 .

Mais modesta é a informação acerca das peças de cozinha utilizadas para confeccionar as refeições dos estudantes do Colégio das Artes. No regimento não datado mas posterior a 1574 faz-se saber que as vi andas deveriam obrigatoriamente ser cozinhadas em

115 Annemarie Jordan Gschwend, "Os Produtos Exóticos da Carreira da Índia e o Papel da Corte Portuguesa na sua Difusão", Nossa Senhora dos Mártires. A Última Viagem. Lisboa, Expo 98, Verbo, 1998, p. 135.

116 Isabel M. R. Mendes, "O 'Deve' e o 'Haver' da Casa da Rainha [ ... l", pp. 162-165.

117 Maria José Azevedo Santos, "O Mais Antigo Livro de Cozinha Português [ .. .]", pp. 35-66.

118 Paula Cristina Viana França, Ilídio Manuel Barbosa Pereira, "Um Livro do Brasil no Arquivo Histórico Municipal de Coimbra: Engenho de Açúcar em Sergipe (1574-1578)", Revista Portuguesa de História. vol. 33, Coimbra, 1999, pp. 229-231.

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recipientes de barro. A única excepção aceite era o peixe que poderia ser preparado em peças de cobre estanhado II 9.

A arqueologia também fornece dados de muito interesse. Por exemplo, conhece-se bastante olaria comum produzida em Montemor­o-Novo, durante o século XVI. Efectivamente, no convento de São Domingos daquela localidade foram encontradas peças de diferentes tipologias, a saber: alguidares, asados, atanores, barris, caçoulas, fogareiros, infusas, panelas, pias de cântaros, potes de adega, pucarinhos, quartas, talhas, tarros, tigelas e tachos 120.

Além das informações já mencionadas, outras fontes dão conta do património pessoal de certas figuras relativamente à baixela que possuíam. Por exemplo, entre os bens pertencentes a D. Manuel, à data da sua morte em 1521, contaram-se diversas peças de mesa, tais como bacios de água às mãos com e sem gomil, bacios de pé, castiçais, escudelas, garrafas, púcaros, salvas, garfos e colheres. Todos estes objectos eram de prata branca ou dourada, alguns com esmaltes e com as armas reais e, em alguns casos, com temas ligados às conquistas e, consequentemente, aos novos espaçosl21. Para limpar as mãos eram utilizadas toalhas de pano de Holanda l22.

119 Mário Brandão, O Colégio das Artes [ ... ], p. CXXIX. 120 Margarida Ribeiro, Olaria de Uso Doméstico na Arquitectura Conventual do

século XVI. [s.I.], Edição do Grupo de Amigos de Montemor-o-Novo, 1984. 121 Anselmo Braamcamp Freire, "Inventário da Guarda-Roupa de D. Manuel",

Archivo Historico Portuguez. vol. 2, Lisboa, 1904, pp. 391-392. Sobre a decoração de algumas peças, cf. Maria do Carmo Rebelo de Andrade, "Iconographic Narrative of Stately Silverweare Portugueses XV and XVI centuries", Mesas Reais Europeias. Encomendas e Ofertas / Royal and Princely Tables of Europe. Comissions and Gifis / Tables Royales en Europe. Commandes et Cadeaux. coordenação de Leonor d' Orey, Lisboa, Instituto Português de Museus, 1999, pp. 44-57.

122 Anselmo Braamcamp Freire, "Inventário da Guarda-Roupa [ ... l", p. 398.

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Fig. II - Salva de prata dourada (Portugal, primeira metade do século XVI). Lisboa, Palácio Nacional da Ajuda.

4. Algumas dietas alimentares, pela sua especificidade, merecem referências à parte. Pensemos no caso dos elementos das minorias étnico religiosas (mouriscas e cristãos novos de judeus, já que sobre as práticas alimentares dos negros residentes cm Portugal pouco sabemos) que insistiam em manter as suas práticas culinárias, os seus hábitos c a sua cultura mesmo após as conversões do final do século XV I2J

• A diferença entre cristãos velhos, mouriscas e cristãos novos de judeus passava não só pelo que faziam, como pelo que deixavam de fazer. Isto é, não importava apenas as desigualdades comportamentais pela positiva como também pela negativa. Traços paradigmáticos desta realidade, no caso dos mau riscos, eram quer o consumo de carne cm dias defesas pela Igreja quer a abstinência de comer c beber durante todo o dia, desde o nascer ao pôr do sol,

m Retomamos aqui o que já desenvolvemus in Isabel M. R. Mendes Orumond Braga, '"A Alimentação das Minorias I .. .]"', pp. 11-33.

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durante o Ramadão, quer ainda a não ingestão de carne de porco e de vinho, o que poderia suscitar a denúncia por parte dos cristãos velhos.

No caso do jejum do Ramadão, estamos perante uma prática difícil de levar a cabo por parte dos mouriscos residentes em terras sob o domínio cristão. Assim se explica que, em Portugal, esta cerimónia não tivesse muitos adeptos, justificando-se o seu não cumprimento por problemas de saúde, pelo desconforto que tal implicava e pela necessidade de não levantar suspeitas. De qualquer modo, os que ousavam jejuar pelo Ramadão, nem sempre o faziam durante todo o mês. As limitações alimentares dos muçulmanos não eram apenas por época, mas também por géneros. Neste sentido, a recusa do consumo de carne de porco (khinzir) - o animal impuro por excelência - e de vinho era uma realidade, embora com matizes distintos124• Se parece ter havido um ódio generalizado aos suínos e, particularmente ao toucinho, já no que respeitou à ingestão de vinho a situação foi diferente, registando-se diversos simpatizantes, consumidores e até vendedores de álcool. No caso do porco, há que referir, que tal interdição, na perspectiva dos seguidores do Islão, punha em causa as relações entre o Homem e os animais, tendo havido diversos momentos marcantes na elaboração do interdito, nomeadamente, os períodos corânico (século VII), da suna (séculos VIII-IX), das grandes compilações jurídicas dos séculos IX a XI (hadiths) e do nascimento do discurso zoológico (séculos IX a XIII). A carne, mais do que qualquer outro alimento, era vista como transmissora das características do animal ao indivíduo que a consumisse. Logo, para o muçulmano, comer carne de porco era entendido como uma maneira de se tornar abominável, abjecto, impuro, vil, imoral, desenfreado e egoístal25 • Para o cristão velho, o consumo de carne de suíno e de vinho por parte dos mouriscos era entendido como um símbolo de integração, já que a não ingestão de tais produtos constituía um elemento de identidade cultural e religiosa para os muçulmanos.

Outro sinal identificativo da diferença era o modo de proceder à matança dos animais para consumo alimentar. Os muçulmanos procediam ao abate ritual das reses (halâl), orientando os animais para

124 Sobre as determinações do Alcorão face ao vinho, cf. António Dias Farinha, "A Alimentação no Mundo Muçulmano", Actas dos VI Cursos de Verão de Cascais, vol. 2, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2000, pp. 87-88.

125 Mohammed Hocine Benkheira, "Tabou du Porc et Identité en Islam", Histoire et Identités Alimentaires en Europe, direcção de Martin Bruegel e Bruno Laurioux, [s.I.], Hachette, 2002, pp. 37-51. .

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Meca, extravasando-lhe o sangue e utilizando a fónnula bismillâh. Os mouriscos gostavam de fazer o mesmo, o que não deixava de lhes causar apuros, quando observados pelos cristãos-velhos. Por parte dos mouriscos, o tratamento da carne antes de se proceder à preparação culinária era diferente da que os cristãos velhos praticavam. Lavavam­na para lhe tirarem os restos de sangue e, no caso do carneiro, suprimiam-lhe o nervo da perna.

Desiguais eram também os pratos que confeccionavam e o modo como os comiam, no chão e à mão, na maior parte das vezes sem usarem talheres. A ritualização das refeições, decorrente da própria lei muçulmana, implicava que antes e após as mesmas fosse invocado o nome de Deus, isto é, a refeição deveria começar com uma . - b d d D 126 O . d . mvocaçao e aca ar an o graças a eus . s comensaIs evenam dizer bismillâh. A purificação das mãos através da lavagem era também um dos preceitos, tanto mais que os alimentos eram preparados de modo que não eram necessários utensílios, a não ser colheres, quando havia líquidos.

No século XVI, a avaliannos pelos processos inquisitoriais, o consumo de carne de carneiro era o mais comum, seguindo-se o das aves127• Se quisennos comparar com o que se passava à mesa dos cristãos velhos podemos verificar, pelo já referido Livro de Cozinha da Infanta D. Maria que, das 24 receitas de carne aí apresentadas, aparece-nos a presença maioritária de aves e animais de caça, por ordem decrescente: galinha, coelho, perdiz, pombo e frangão, sendo

. d . . 128 O c d escassas as receItas e caprmos e ovmos . utra 10nte, esta vez relativa ao consumo de carne na corte de D. João III, em Novembro de 1524, toma-nos evidente a aquisição de carne de vaca (1494 quilos), seguindo-se a de porco (515 quilos) e, por fim, a de carneiro (149 quilos). Não obstante, algumas. casas religiosas preferiam o carneiro por ser mais saudável e nutritivo, apesar de ser mais caro129, o mesmo acontecia aos internos do Colégio das Artes, de Coimbra, como se

126 Bernard Rosenberger, "La Cuisine Árabe et son Apport à la Cuisine Européenne, Histoire de la Alimentation. direcção de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, Paris, Fayard, 1997, p. 346.

127 Para o antigo reino de Granada a situação é idêntica, cf. Teresa de Castro, "L'Emergence d'une Identité Alimentaire. Musulmans et Chrétiens dans le Royaume de Grenade", Histoire et Identités Alimentaires en Europe. direcção de Martin Bruegel e Bruno Laurioux, [s.I.], Hachette, 2002, pp. 199-215.

128 Maria José Azevedo Santos, "O Mais Antigo [ ... ]". 129 Maria José Azevedo Santos, Jantar e Cear [ ... ], pp. 34-35.

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sabe pelos regimentos de 1547 e 157413°. Ou seja, nesta comparação do consumo de carne de carneiro por mouriscos e cristãos velhos toma-se patente o seguinte: a sua utilização seria rara entre os não privilegiados de qualquer dos grupos, mas apreciada quer pelos mouriscos quer por alguns sectores dos cristãos velhos. Não é por acaso que, sendo os mouriscos portugueses geralmente pobres, o carneiro apareça pouco referido se comparado com o cuscuz.

Os pratos mais populares pa:recem ter sido o cuscuz - sêmola de trigo cozida a vapor - e o alfitete «al-fitãt) - massa doce composta de farinha, açúcar, ovos, manteiga, cominhos e vinho - sobre a qual se põe galinha ou carneiro. Ambos os pratos eram consumidos quer quotidianamente quer em celebrações especiais, como casamentos ou enterros. Em alguns casos, podemos apreciar o cumprimento da prerrogativa segundo a qual os alimentos são considerados uma bênção de Deus, daí deverem ser usados com moderação e partilhados com os que passavam necessidades.

Os pratos de origem muçulmana tiveram influência nas culinárias europeias, especialmente, portuguesa, castelhana e

'd' A " 131 S aragonesa e, atraves estes remos, passaram para a menca . e, para alguns, os "comeres de mouros" eram mal vistos 132, isso nunca implicou que o mundo cristão deixasse de ser tributário de alguma ascendência muçulmana em diversos produtos e manjares, pensemos no azeite, no mel, no açúcar e nos frutos, especialmente amêndoas e outros frutos secosl 33 e em pratos e formas de preparação de alimentos como a açorda «a-thurda)134, as almôndegas «al-banadiq), o molho escabeche «sikbâdj), a galinha albardada «albarda'), a galinha mourisca - que, não obstante, era confeccionada com toucinho - e, sobretudo, os doces, tais como as alcomonias, confeccionadas com

13°António de Oliveira, A Vida Económica e Social de Coimbra de 1537 a 1640, La parte, vol. 2, Coimbra, Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Instituto de Estudos Históricos Doutor António de Vasconcelos, 1972, p. 340.

13\ Veja-se a análise de Maria Elvira Sagarzazu, "Gastronomia", La Conquista Furtiva, Rosário (Argentina), Ovejero Martín Editores, 2001, pp. 265-296 e de Teresa de Castro, "L'Emergence d'une Identité Alimentaire [ ... r, pp. 214-215.

\32 M. Merci: Gras Casanovas, M. Àngels Pérez Samper, "Alimentació i Societat a la Catalunya Modema", Pedralbes. Revista d'Historia Moderna, vol. II, Barcelona, 1991, pp. 43-44.

\33 Bernard Vincent, "Consummation Alimentaire en Andalousie Orientale. Les Achats de I'Hôpital Royal de Guadix (1581-1582)", Annales. Economie, Société, Civilisations, n.o 2-3, Paris, 1975, p. 452.

\34 António Dias Farinha, "A Alimentação no Mundo Muçulmano [ ... l", p. 90.

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mel, pinhão, água, canela e rolão '35 ; a aletria (<aI-ithrTâ), o alfitete «al-fitãt), as alfeloas «al-halãuâ), as almojavanas «mujabbanât), o massapão «maçapaês) e tantos outros 136.

Tal como já referimos, em relação aos mouriscos, a diferença entre cristãos velhos e cristãos novos de judeus passava não só pelo que faziam como pelo que deixavam de fazer. Isto é, não importava apenas as desigualdades comportamentais pela positiva como também pela negativa. Traços evidentes desta realidade eram quero consumo de carne em dias defesos pela Igreja quer a celebração de certos jejuns, como os jejuns pequenos das segundas e quintas-feiras, os thanis; quer o jejum maior ou do perdão, o yom kippur, que durava um só dia, no mês de Setembro; o tissa-be-ab, celebrado durante nove dias do mês de Julho, ou ainda o Purim, oujejum da Rainha Ester, três dias em Fevereiro ou Março, durante os quais se jejuava durante todo o dia, só se comendo à noite, depois da estrela aparecer, tal como nas restantes abstinências judaicas. Nos dias de jejum, a privação alimentar só podia ser quebrada com peixe, pão, queijo, pepino, lentilhas, frutas, etc., estando interditos o vinho e a carne137•

Além dos jejuns, alguns cristãos novos de judeu continuavam a abster-se do consumo de certos alimentos que consideravam impuros, nomeadamente, porco, coelho, lebre e peixes sem escamas, tais como cação, lampreia e raia. Havia, assim, os alimentos proibidos e os autorizados (kascher). As interdições alimentares obedeciam a diferentes tipos de considerações, tais como, por exemplo, as ligações aos cultos idólatras, a proveniência indevida dos bens por abusiva apropriação ou o carácter impuro. As proibições religiosas acabaram por levar os seguidores da lei mosaica a não consumirem não só os já

135 Maria da Conceição Vilhena, "Reminiscências Árabes na Doçaria Portuguesa. As Alcomonias", Arquipélago. História, 2." série, vol. 4, n.o 2, Ponta Delgada, 2000, pp. 625-634.

136 Vejam-se as receitas destes doces no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria [ ... ]. Sobre a influência da culinária árabe na culinária europeia, cf. Bernard Rosenberger, "La Cuisine Árabe [ .. .]", pp. 361-365.

137 Sobre as festividades judaicas e os seus significados, cf. Maria José Pimenta Ferro Tavares, "A Religiosidade Judaica", Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua Época. Actas, vol. 5, Porto, Universidade do Porto, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989, pp. 369-380. Sobre a alimentação e o calendário religioso judaicos, cf. Miguel Ángel Motis Dolader, María Gloria Díaz Barón, Francisco Javier Pascual, Luísa María Sánchez Aragonês, "Régimen Alimentario de las Comunidades Judias y Conversas en la Corona de Aragón en la Edad Media", Ir Col.loqui d' História de I' Alimentació a la Carona d' Aragó. Edat Mitjana. Actes, Lieida, Institut d' Estudis Lierdences, 1995, pp. 205-361.

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referidos animais, como também a esvaziar as carnes de sangue, o que faziam mergulhando-as em água temperada com sal meliha, e a retirar-lhes as gorduras e os nervos das pernas dos carneiros138. Era­lhes igualmente defeso misturar certos produtos nas preparações culinárias, tais como carne e leite ou seus derivadosl 39• O azeite era a única gordura permitida. Quando o cheiro forte de certos preparados se fazia sentir, o recurso à queima de uma sardinha ou de um pedaço de lã eram práticas recorrentes,. para evitar suspeitas, particularmente quando se confeccionava o hamín, ou adafina, o prato típico do sabbat140, tanto mais que os cristãos velhos não hesitavam em denunciar o consumo de carne em dias defesos, porque lhes tinha cheirado à preparação culinária da mesma.

O modo de abater as reses também era diferente, se tivermos como ponto de comparação os cristãos velhos. Para os seguidores do judaísmo, os animais deveriam ser mortos com uma faca bem afiada que cortasse o animal de alto a baixo ao mesmo tempo que se pronunciava uma oração. O sangue era totalmente desaproveitado. A carne assim obtida era a única que respeitava as determinações da lei mosaica. O cerimonial à mesa compreendia uma bênção antes de iniciar a refeição, durante a qual se tomava vinho e se comia um pedaço de pão e uma acção de graças quando se finalizava o repasto. Obviamente que a língua utilizada era o hebraico.

Na mais importante festividade do calendário judaico, a Páscoa de Pessah, vulgarmente designada por Páscoa do pão ázimo ou do cordeiro, os cristãos novos de judeus desenvolviam um conjunto diversificado de actividades durante os oito dias de celebração. Caiavam as casas, usavam roupa nova, adquiriam louça nova e louça vidrada, para confeccionar e comer as refeições pascais, tendo-as previamente mergulhado três vezes em água, e comiam cordeiro, pão

138 Miguel Angel Motis Dolader, "L'Alimentation Juive Médiévale", Histoire de la Alimentation. direcção de Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, Paris, Fayard, 1997, p. 372.

139 M. Mercê Gras Casanovas, M. Àngels Pérez Samper, "Alimentació i Societat a la Catalunya Modema [ ... ]", p. 45. .

140 Miguel Angel Motis Dolader, "L'Alimentation Juive [ ... ]", p. 368. Sobre as diferenças deste prato, consoante as regiões, cf. Ariel Toaff, " 'Manger à la Juive' et 'Manger Kascher'. L Alimentation chez les Juif en ltalie depuis la Renaissance", Histoire et Identités Alimentaires en Europe. direcção de Martin Bruegel e Bruno Laurioux, [s.l.], Hachette, 2002, pp. 194-195.

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ázimo (isto é, pão não levedado)141, alfaces, alho-porro, e aipo, uma vez que deveriam ingerir alimentos amargos. As frutas secas também estavam presentes, nomeadamente através de um prato denominado allaroset, composto por amêndoas, nozes, bolotas, castanhas, avelãs, fi - 'd . 142 1905, pao mOI o e vmagre .

Os seguidores da lei de Moisés amassavam o pão à sexta-feira, para guardar o sábado, altura em que comiam também outros alimentos preparados na véspera- especialmente o hamim ou adcifina - consumiam pão ázimo, usavam como gordura o azeite, faziam alheiras com carne de galinha que colocavam no fumeiro para parecerem ter em casa os enchidos de porco típicos das casas dos cristãos velhos, consumiam especialmente carneiro, vaca e galinha e praticavam um ritual próprio às refeições. Em termos de interdições, como vimos, eram, em vários casos, semelhantes às dos seguidores do Islão. Durante o século XVI, se a manutenção dos hábitos e costumes alimentares diferenciados foi uma realidade, em algumas pessoas, as marcas de aculturação também se começaram a fazer sentir, nomeadamente através da ingestão de carne de suíno, um dos sinais mais evidentes de integração.

Quanto à alimentação dos negros, escravos ou libertos parece poder afirmar-se que seria semelhante à dos brancos dos grupos populares, já que os produtos e os preparados próprios das suas regiões de origem dificilmente poderiam ser uma realidade em Portugal. Bem diferente era a dieta dos índios do Brasil que, na condição de escravos, serviam nos engenhos. A partir das despesas de um engenho em Sergipe, pertencente ao governador do Brasil Mem de Sá, podemos verificar que, entre os produtos consumidos por aqueles contaram-se: farinha, mandioca, inhame, milho e peixel43 .

5. No século XVI, começaram a verificar-se as primeiras alterações alimentares resultantes do contacto com uma fauna e uma flora antes desconhecidas. Porém, essas mudanças alimentares foram ocorrendo de forma lenta e gradual. Ainda no século XV, o açúcar

141 Sobre os diferentes tipos de pão ázimo, cf. Miguel Angel Motis Dolader, "L' Alimentation Juive [ ... ]", p. 374.

142 Maria José Pimenta Ferro Tavares, "A Religiosidade Judaica [ ... l", pp. 372-373.

143 Paula Cristina Viana França, Ilídio Manuel Barbosa Pereira, "Um Livro do Brasil no Arquivo Histórico Municipal de Coimbra: Engenho de Açúcar em Sergipe (1574-1578)", Revista Portuguesa de História, voI. 33, Coimbra, 1999, p. 239.

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produzido na Madeira começou a marcar de forma significativa a doçaria portuguesa quer na área dos doces de ovos quer, sobretudo, ao nível das diferentes maneiras de conservar fruta baseadas no uso de açúcar. No final da centúria, a partir do regresso da primeira viagem de Vasco da Gama ao Oriente (1497-1499) as especiarias, produtos I uxuosos e caros, começaram a ter uma presença exagerada nas mesas abastadas portuguesas. Ao nível alimentar, as novas introduções foram mais lentas: referimo-nos, sobretudo, aos produtos oriundos da América: o milho maíz, a batata, a batata-doce, o tomate, o cacau e o peru, sem esquecer o chá e o café, oriundos de outras paragens. Na realidade, foram especialmente os produtos americanos os grandes responsáveis pela diferenciação entre alimentação medieval e alimentação moderna, embora os resultados dessa mutação só tenham tido cabal concretização no século XVIII, se exceptuarmos o milho.

Se ao nível alimentar o século XVI pouco inovou -recordemos que, anteriormente, se usava mel em vez de açúcar e que as especiarias chegavam à Europa via Mediterrâneo - o mesmo não se pode afirmar em relação ao aspecto das mesas régias e das elites em geral. Os contactos com o Oriente e com o Extremo Oriente permitiram a descoberta e o consumo de peças requintadas praticamente desconhecidas na Europa, referimo-nos sobretudo às porcelanas mas importa não esquecer também o uso de outros materiais como a madrepérola, a tartaruga e a laca. A encomenda de peças ao gosto europeu, algumas das quais brasonadas, foi imparável. Montar porcelana oriental em prata portuguesa também se fez, desde o século XVI. Mais tarde, especialmente ao longo do século XVIII, com a adopção de novos hábitos importaram-se igualmente modelos e peças antes desconhecidos, tais como chávenas com e sem tampa, pires, bules, cafeteiras e chocolateiras. A par destas novidades, exibidas à mesa, as cozinhas naturalmente providas de bens mais modestos continuavam a contar muitas peças de ferro, estanho, cobre, barro, algum vidro e louças de Sevilha e de Talavera, a par de púcaros de Estremoz e Montemor-o-Novo I44•

144 João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança [ ... ], p. 50.

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Fig. 12 - Taça de porcelana azul e branca montada em prata portuguesa (China, meados do século XVI). Bolonha, Museu Cívico.

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Entre os grupos privilegiados começou no século XVI o uso das peças individuais à mesa: pratos, copos, talheres e guardanaposl45. Só os pratos e os talheres de serviço continuaram a ser comuns. Porém, este processo foi muito lento só se generalizando séculos mais tarde relativamente aos desfavorecidos. Paralelamente a estas alterações, as maneiras à mesa também se foram refinando, através da codificação das normas de civilidade e etiqueta .

. Um pouco de tudo isto e, decerto, muito mais do que isto terá visto, cheirado, provado e saboreado Vasco Fernandes. Um rápido olhar pelos locais de compra dos alimentos, visualizando feiras, mercados, tendas e vendedores de rua, alguma atenção mais profunda acerca da preparação e conservação de doces e salgados nas cozinhas abastadas e simples, as refeições comuns e os banquetes, o cerimonial à mesa e a exibição da baixela e das iguarias nas multifuncionais salas das casas e dos palácios quinhentistas constituiu a viagem que nos propusemos realizar, tentando despertar os sentidos da visão, do olfacto e do paladar, sempre guiados pelo espaço e pelo tempo de Grão Vasco, isto é, Portugal no século XVI.

145 Conhecemos o uso regular de guardanapos na casa da rainha D. Catarina e entre alguns estudantes do Colégio das Artes de Coimbra Cf., respectivamente, Isabel M. R. Mendes, "O 'Deve' e o 'Haver' da Casa [ ... ]" e António de Oliveira, "O Quotidiano da Academia [ ... ]", p. 640.

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