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Cibele Forjaz Simões À LUZ DA LINGUAGEM A iluminação cênica: de instrumento da visibilidade à ‘Scriptura do visível’ (Primeiro recorte: do Fogo à Revolução Teatral) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes, Área de Concentração Artes Cênicas, Linha de Pesquisa Teoria e História do Teatro - Literatura Dramática, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Artes, sob a orientação do Prof. Dr. Jacó Guinsburg. São Paulo 2008

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Page 1: À LUZ DA LINGUAGEMeanica/... · Dedico esta tentativa de aguçar meu olhar em relação à função da iluminação na encenação teatral ao meu orientador, que numa iluminação

Cibele Forjaz Simões

À LUZ DA LINGUAGEM

A iluminação cênica:

de instrumento da visibilidade à ‘Scriptura do visível’

(Primeiro recorte: do Fogo à Revolução Teatral)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Artes, Área de Concentração

Artes Cênicas, Linha de Pesquisa Teoria e

História do Teatro - Literatura Dramática, da

Escola de Comunicações e Artes da

Universidade de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do Título de Mestre em

Artes, sob a orientação do Prof. Dr. Jacó

Guinsburg.

São Paulo 2008

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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

À LUZ DA LINGUAGEM

A iluminação cênica:

de instrumento da visibilidade à ‘Scriptura do visível’

(Primeiro recorte: do Fogo à Revolução Teatral)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Artes, Área de Concentração

Artes Cênicas, Linha de Pesquisa Teoria e

História do Teatro - Literatura Dramática, da

Escola de Comunicações e Artes da

Universidade de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do Título de Mestre em

Artes, sob a orientação do Prof. Dr. Jacó

Guinsburg.Autoria: Cibele Forjaz Simões

São Paulo, 2008

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Assinaturas da Banca:

__________________________

__________________________

__________________________

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DEDICATÓRIA:

Dedico esta tentativa de aguçar meu olhar em relação à função da iluminação na

encenação teatral ao meu orientador, que numa iluminação de gênio me propôs a

idéia-título dessa dissertação: “À luz da linguagem”.

Foi esta provocação da língua que me impulsionou a começar a escrever.

Dedico este trabalho á Jacó Guinsburg, pela presença e debate de idéias como

orientador durante o mestrado, que me têm feito procurar as razões essenciais do

meu trabalho. Mas também por sua importância na minha formação, a que sou

imensamente grata. Jacó Guinsburg “fez a cabeça” da minha geração. Instigou-

nos à reflexão, ao prazer por pensar, à curiosidade pelo estudo, à busca de uma

praxis continuada no fazer teatral. E isso é visível no teatro que fazemos.

Dedico também aos meus “mestres” na luz – Que além de me ensinar me deram

coragem para este salto no escuro: Hamilton Saraiva, meu primeiro professor;

David de Brito, mestre entre os mestres; Marcio Aurélio, diretor e parceiro dos

inícios; Zé Celso, meu diretor querido.

E, finalmente, aos meus “filhos” iluminadores, aprendizes e alunos – com quem

aprendo a ensinar e a recomeçar continuamente.

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RESUMO

Este projeto de pesquisa tem por objetivo estudar o desenvolvimento da

linguagem da iluminação cênica, em sua relação com os caminhos da encenação.

O eixo central é a transformação da função da iluminação cênica, de instrumento

da visibilidade a elemento estrutural e estruturante da escrita cênica, constituindo-

se como linguagem. Através de um olhar abrangente sobre a história e a estética

do teatro, pretende-se pontuar os trabalhos exemplares, de forma a descrever

esse processo de transformação e suas variáveis, instituindo conceitos para uma

análise específica da iluminação cênica. A dissertação de mestrado compreende

um recorte de tempo que vai do fogo à revolução teatral, com ênfase no período

de 1880 a 1914.

ABSTRACT

The present research project’s aim is to investigate the development of the stage lightning

language in its relation with the ways of stage performance. The central aspect is the

transformation of the function of stage lightning, from a visibility instrument to structural

and structuring stage language. Through a broad approach over theatres’s History and

aesthetics, I intent to point out the exemplary works, in order to describe this

transformation process and its variables, stablishing concepts for a specific analysis of

stage lightining. The dissertation covers a time period which goes from the usage of fire

until the theatrical revolution, emphasizing the years in between 1880 to 1914.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1ª PARTE – A LUZ EM BUSCA DO VISÍVEL

CAPÍTULO 1

A LUZ E A VISIBILIDADE

CAPÍTULO 2

ANTECEDENTES DA AÇÃO: FLASHES DA HISTÓRIA DA ILUMINAÇÃO CÊNICA DO SOL ÀS VÁRIAS FORMAS DO FOGO.

2.1. INTRODUÇÃO: FIAT LUX... E A LUZ GEROU A SOMBRA

2.2. O TEATRO GREGO e o SOL

2.3. O TEATRO MEDIEVAL e o FOGO

2.4. O RENASCIMENTO E O RAIAR DAS LUZES NO TEATRO

2.5. A CLAREZA DO RENASCIMENTO DISSOLVE-SE NOS CONTRASTES DO BARROCO

2.6. O ROMANTISMO E O APERFEIÇOAMENTO DA CAIXA MÁGICA DE ILUSÕES

2.7. O RAIAR DO SÉCULO XIX E A LUZ VIVA DO GÁS

CAPÍTULO 3

A LUZ ELÉTRICA ENTRA EM CENA

CAPÍTULO 4 A REVIRAVOLTA: O SURGIMENTO DA ENCENAÇÃO E A LUZ

CAPÍTULO 5

O NATURALISMO E A DESCOBERTA DAS “ATMOSFERAS” NA LUZ 5.1 O NATURALISMO E A SUA SUPERAÇÃO ou DO REAL À SUBJETIVIDADE

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2ª PARTE - A LUZ ATRAVESSA O VISÍVEL OU O SIMBOLISMO E A LUZ COMO LINGUAGEM CAPÍTULO 6

O SIMBOLISMO E AS ILUMINAÇÕES

6.1 LUGNÉ POË e PAUL FORT e a encenação simbolista

CAPÍTULO 7

LOÏ FÜLLER – O TEATRO DANÇA A LUZ

CAPÍTULO 8

ADOLPHE APPIA da luz ativa à luz viva.

CAPÍTULO 9

GORDON CRAIG a luz contracena com a matéria

CAPÍTULO 10

UMA REINVENÇÃO DA LUZ PARA NOVAS RELAÇÕES ESPACIAIS OU A REVOLUÇÃO ALEMÃ NA LUZ

10.1 O KÜNSTLER-THEATER DE MUNIQUE Peter Behrens, Max Littmane Fritz Erler, Georg Füchs

10.2 MAX REINHARDT e a luz das “catedrais cênicas”

CAPÍTULO 11

MEIERHOLD as encenações simbolistas e a luz

CAPÍTULO 12 - CONCLUSÃO

À LUZ DA LINGUAGEM

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INTRODUÇÃO

DA ORIGEM

O tema dessa dissertação de mestrado tem duas origens complementares.

Primeira: O meu desejo de, como iluminadora e encenadora com vinte

anos de experiência prática, refletir sobre a relação intrínseca entre a concepção

do espetáculo como um todo e a criação da iluminação teatral, entendida não

apenas como um desenho técnico dos equipamentos de iluminação no espaço,

mas, sobretudo, como o movimento da luz no tempo, parte integrante da

progressão dramática do espetáculo. Ou seja, a origem desse trabalho vem da

necessidade de, como artista, pesquisar e entender as funções e os

procedimentos que re-atualizam na prática do fazer teatral a iluminação cênica

como linguagem.

Imaginei de início proceder à essa reflexão a partir da pesquisa e análise

do meu próprio trabalho como iluminadora e assistente de direção de José Celso

Martinez Correa no Teatro Oficina Uzyna Uzona, de 1991 a 2002. Mas assim que

comecei a estudar o assunto com mais cuidado percebi a importância de uma

pesquisa retrospectiva, do ponto de vista da estética teatral, da função da luz no

espetáculo. Incluí então no meu projeto de pesquisa inicial uma primeira parte, de

natureza histórica, mas uma parte era estranha à outra.

Segunda: A necessidade, como professora de Iluminação Teatral 1, de

estudar e desenvolver uma pesquisa mais aprofundada sobre a história da

iluminação no teatro, um tema ainda pouco estudado no Brasil e com uma

bibliografia específica restrita 2.

1 Uma reviravolta na minha vida fez com que no início de 2006, portanto ainda na primeira fase da pós-graduação, eu fosse escolhida, por concurso público, à cadeira de iluminação teatral do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo. 2 É importante notar aqui a existência, como oásis no deserto, de duas obras fundamentais: a dissertação de mestrado do Prof. Dr. Hamilton Saraiva: Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. São Paulo: ECA/USP, 1990, 2 vol. E o excelente livro de Roberto Gill Camargo, A Função Estética da Luz. Sorocaba: Ed. Fundo de Cultura, 2000.

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Com base nestes dois focos de interesse, o primeiro voltado para um

aprofundamento estético e o segundo para uma pesquisa histórica (que estavam

à princípio separados, cindidos e estanques na minha cabeça) meu orientador

propôs uma articulação fundamental entre eles, dando origem ao atual projeto:

partir de uma pesquisa histórica para proceder à uma análise estética e, a partir

da análise de casos exemplares, estabelecer o percurso de constituição da

linguagem.

DO MÉTODO

A metodologia de pesquisa, análise e sistematização desse trabalho tem

duas fontes principais, que atuaram em conjunto, complementando-se uma em

relação à outra. A primeira é uma pesquisa bibliográfica, sobre a qual discorrerei

um pouco na seqüência, a segunda vem da minha prática como iluminadora-

encenadora e professora de iluminação.

O meu conhecimento prático da linguagem e da técnica da iluminação

cênica, desenvolvidos em vinte anos de profissão, potencializou a minha

capacidade de entendimento, análise e articulação da bibliografia lida de maneira

decisiva. Tanto no que se refere á compreensão dos procedimentos e termos

técnicos, características da linguagem, dificuldades e resultados, quanto na

possibilidade de apreender das descrições, fotos, críticas e análises dos

espetáculos, informações específicas sobre a iluminação.

Por outro lado, no sentido inverso, a partir da leitura da bibliografia comecei

a fazer experiências práticas em sala de aula, com meus alunos, reproduzindo

modos e formas de iluminar e testando alguns efeitos descritos, principalmente na

iluminação à luz do dia e com fontes ígneas: reflexões, rebatimento e formas de

colorir as luzes, conectando teoria e prática. Essas experiências permitiram,

principalmente, criar uma relação direta e inspiradora entre a intelecção e a minha

prática criativa.

Quanto à bibliografia:

Comecei por recorrer às histórias do teatro e às análises da encenação no

século XX, que traçam panoramas gerais e relacionam movimentos,

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encenadores, práticas teatrais e espetáculos, inclusive com imagens e

descrições. Também li vários manuais de iluminação e algumas obras específicas

sobre a história e estética da iluminação cênica. Entre elas foram fundamentais

para a organização desta dissertação o mestrado de Hamilton Saraiva 3 o livro de

Roberto Gill Camargo 4 e um artigo de Denis Bablet sobre a luz 5.

Na seqüência, eu li as obras específicas sobre o trabalho dos principais

encenadores do século XX, aqui analisados: primeiro os livros escritos por eles

próprios sobre suas concepções estéticas e encenações. Depois livros de análise

sobre os seus trabalhos práticos e teóricos, com as descrições dos processos de

criação e espetáculos, escritos por pesquisadores de teatro 6.

As citações em língua estrangeira foram todas traduzidas livremente para o

português: as traduções do inglês foram realizadas por Laura Knoll, as traduções

do espanhol por mim e as do francês por mim, Laila Miranda Garin e Pedro

Cesarino. O texto de referência “Arte e técnica no fim do século XIX” foi traduzido

por Gabriela Itocazo.

DO TEMPO E DA PESSOA DO VERBO

A partir desse momento deixo de escrever na primeira pessoa, para

escrever na terceira. Não se trata apenas da idéia de um tempo verbal abstrato,

na qual me escondo de minhas análises, idéias e conclusões, mas da inclusão de

uma consciência ampliada, materializada na figura do meu orientador, Jacó

Guinsburg, que viveu esse processo ao meu lado. Como um “outro”, primeiro

leitor, interlocutor e articulador, diretor e guia nos meus caminhos e descaminhos,

mas também como um “duplo”, introjetado dentro do meu processo de reflexão,

para quem eu escrevia e que me dava coragem para articular idéias e tirar 3 Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990, 2 vol. 4 Camargo, Roberto Gill; A Função Estética da Luz, TCM Comunicação, Sorocaba, SP, 2000. 5 Bablet, Denis – “A Luz no Teatro” in O teatro e sua Estética, Lisboa: Ed Arcádia, 1968. 6 Nesse aspecto gostaria de agradecer imensamente aos professores do Departamento de Artes Cênicas da ECA/USP que abriram suas bibliotecas pessoais e me emprestaram obras de difícil acesso, que foram fundamentais para a realização desse trabalho.

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conclusões, não somente a posteriori, mas também no exato momento em que as

palavras brotavam ou eram tiradas a fórceps da minha consciência de marinheira

de primeira viagem. Tive, portanto, o privilégio de dar os meus primeiros passos

na pesquisa e reflexão artística ao lado de um mestre, que, como todo grande

mestre me ensinou no passo a passo desse trabalho a me tornar mestre de mim

mesma, uma e outro em uma mesma terceira pessoa concreta. Como um ator

que traz em si, na concretude da cena, o autor e o diretor, para ser a um só

tempo: pessoa, personagem e terceiro olho, em ação.

DA ESTRUTURA E SEUS SENTIDOS

Dado o tamanho do projeto, resolvemos separar o trabalho em dois

recortes: o primeiro aqui apresentado como dissertação de mestrado vai dos

primórdios da história do teatro até o que chamamos de revolução teatral, com o

surgimento da encenação moderna, o advento do movimento simbolista e o

trabalho dos primeiros grandes encenadores do fim do século XIX e começo do

século XX. Quando então consideramos completo um ciclo, no qual a iluminação

cênica já é, tanto na prática quanto na teoria, compreendida como linguagem

estrutural constituinte do todo da encenação 7. Tomei por referência a data de

1914, quando começa a primeira guerra mundial, ou seja, não tratei dos

movimentos de vanguarda que se engendram no começo do século, mas

explodem no pós-guerra.

O segundo recorte começa justamente nas vanguardas modernas do pós-

guerra (1914 – 1918) e vem até a atualidade. Será apresentado a seguir como

projeto de pesquisa para um doutorado em Artes Cênicas.

Porém esse recorte histórico ainda compreende um período muito extenso

da história do teatro. Foi necessário dividir o trabalho em partes e privilegiar

algumas em relação às outras sempre de acordo com o eixo central do trabalho,

que é estudar o desenvolvimento da linguagem da iluminação cênica e sua

relação com os caminhos da arte do espetáculo.

7 Embora essa acepção ainda não estivesse absolutamente generalizada na prática teatral, suas bases já estavam lançadas e muito bem entendidas na experiência e na concepção de alguns encenadores e teóricos da arte do espetáculo.

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Esse processo de constituição da luz como linguagem tem antecedentes

importantes, principalmente no Renascimento italiano, mas concentra grande

parte do seu desenvolvimento prático e principalmente teórico a partir de 1880,

momento em a luz elétrica entra definitivamente em cena e começa uma forte

imbricação entre a encenação moderna e o desenvolvimento da linguagem da

iluminação cênica. Privilegiamos, portanto, o detalhamento da pesquisa nesse

período.

Dividimos então o trabalho em duas partes: A luz em busca do visível e A

luz atravessa o visível ou o Simbolismo e a luz como linguagem. Tomamos por

referencia a reviravolta na função da iluminação na arte do espetáculo que ocorre

a partir do movimento teatral simbolista e seus ecos, quando a luz passa a

participar ativamente na escritura da encenação. É lógico que a luz elétrica é

fundamental para essa mudança, mas consideramos que ela é um fator essencial

que possibilitou a mudança e não a mudança em si. O momento histórico é o

mesmo, mas o ponto de vista tem uma imbricação fundamental entre a técnica e

a estética.

Esse é um ponto importante desse trabalho, a relação intrínseca entre

técnica e estética e entre luz e encenação. As formas e sentidos da iluminação

cênica serão analisados sempre como uma resultante da imbricação entre a

estética da encenação e dos meios técnicos disponíveis, ou passíveis de serem

inventados naquele momento histórico. Cabe notar então que o foco do meu

interesse não está na história do desenvolvimento técnico no decorrer da história

do teatro, trabalho já realizado com maestria pelo professor Dr. Hamilton Saraiva

em seu mestrado e ao qual eu me referi sempre que necessário, mas em que

medida essa técnica e prática da iluminação cênica se articulam com a

encenação no desenvolvimento de uma linguagem.

Por essa razão condensamos em um único capítulo geral um período de

tempo muito abrangente, que vai do teatro grego até a primeira metade do século

XIX, onde a iluminação cênica tem por principal fonte de luz artificial, o fogo, em

suas diversas técnicas e formas de utilização. Chamamos este capítulo (o

segundo) de Antecedentes da ação: flashes da história da

iluminação cênica do Sol às várias formas do fogo porque o

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objetivo deste trabalho não é, nem poderia ser, abarcar toda a história da

iluminação, mas retirar dela os pontos de apoio para entender a constituição da

linguagem que usamos hoje. Escolhemos então nesse período trabalhar a partir

de flashes, clarões que ressaltam momentos significativos de mudança na

iluminação, tanto do ponto de vista técnico quanto estético e que nos permitiram

construir uma linha de pensamento.

O Capítulo três trata do processo de fricção entre a ciência e o teatro, na

qual a energia elétrica vira luz, as lâmpadas entram em cena e os primeiros

aparelhos de iluminação elétrica são inventados e postos em cena. Processo que

se inicia em 1846, com a invenção da lâmpada de arco-voltaico. O capítulo quatro

trata das relações entre o surgimento da encenação e a luz. Um e outro servem

de base para todo o detalhamento posterior e se estendem no tempo até o fim do

período em que focamos este trabalho.

A partir de então o tempo se justapõe em todos os capítulos, onde

acompanhamos de perto o processo de criação de alguns encenadores,

performers e/ou teóricos, que foram fundamentais na constituição da encenação

moderna enquanto tal, tentando apreender em cada um o desenvolvimento da

linguagem da iluminação cênica tanto na prática quanto na teoria.

Escolhemos aqui alguns encenadores, considerados como casos

exemplares de todo um processo que, por ser mundial, deve ter essa história

multiplicada, em espaços e tempos diferenciados cada qual com suas

características próprias. Se alguns estão aqui contemplados com uma análise

mais profunda, muitos outros com certeza foram deixados de lado. Toda a

escolha tem seus ônus, porém é inevitável. Então gostaríamos de deixar claro

nesta introdução que os encenadores analisados servem de ícone para

compreender um processo mais amplo e que foram escolhidos dado o seu papel

exemplar na história do teatro, pela relação que o seu trabalho tem com a

iluminação cênica, por sua influência significativa no processo geral e também de

acordo com a possibilidade que tivemos de acesso às informações em detalhes –

já que partimos principalmente de descrições e análises sobre as encenações, de

onde poderíamos apreender as práticas específicas em relação à luz dos

espetáculos – ou seja, são todos amplamente estudados e divulgados e, na

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maioria dos casos, têm uma reflexão própria sobre a encenação, incluindo aí a

iluminação cênica.

É em busca dessas relações entre luz e linguagem, que pretendo olhar a

história e a estética da iluminação no teatro para articular a partir de caminhos

variados uma trama única. É a crescente transformação da cena através da luz e

a manipulação cada vez mais consciente desse ponto de vista que constitui o

cerne desse caminho.

O CAMINHO DAS MIL FACES

Se do ponto de vista da articulação entre as partes almejamos apreender

um caminho, como parte constituinte de uma análise coerente e coesa, gostaria

de esclarecer que não acreditamos que exista de fato um caminho, mas apenas a

concepção de um caminho, que é resultado da organização e exposição de uma

reflexão específica que pretendemos aqui realizar.

É lógico que existem as práticas e as influências e que o desenvolvimento

técnico pode ser visto, com milhares de ressalvas, como “progressivo” 8, mas as

resultantes estéticas com certeza não o são.

A relação da iluminação com a construção do espetáculo e a sua

consciência não segue uma linha contínua ou qualquer noção de progresso, muito

pelo contrário, ela acontece aos saltos e em direções as mais variadas. Este

processo de transformação da iluminação cênica em linguagem se dá a partir de

práticas as mais variadas, através dos tempos: experiências precursoras,

práticas extemporâneas, saltos qualitativos e esquecimentos históricos, caminhos

particulares, pontos de vista diferentes e concepções às vezes opostas.

Nenhuma realização, concepção ou interpretação sobre a função e prática da

iluminação no espetáculo teatral é uma conquista absoluta, ela pressupõe uma re-

atualização criativa no tempo e no espaço. A prática de uma luz ativa na

construção do espetáculo tem de ser reinterpretada e reinventada pelos artistas

da iluminação a cada instante, na realização de cada novo trabalho, em cada obra

de arte, única e particular. 8 Embora um grilo falante sussurre em nossos ouvidos o aviso de Einstein sobre a quarta guerra mundial, entre porretes e tacapes.

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DO OBJETO

O foco deste trabalho é, portanto, a iluminação no teatro em sua relação

com a encenação e o seu objetivo é apreender a transformação da iluminação

cênica de instrumento da visibilidade à ‘Scriptura’ do visível, conceito que

pressupõe a existência de uma espécie de “dramaturgia” do visível, uma

linguagem para os olhos, estrutural e estruturante na arte da encenação, que se

sobrepõe ou até mesmo se contrapõe àquela apreendida pelos ouvidos.

Pretendo, portanto, analisar a história da iluminação cênica tendo por ênfase as

várias funções da iluminação teatral no espetáculo, em busca da concepção

desse caminho que vai de ferramenta à linguagem, de efeito especial à escritura

da cena.

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1ª PARTE – A LUZ EM BUSCA DO VISÍVEL

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CAPÍTULO 1

A LUZ E A VISIBILIDADE

“Fiat Lux” e fez-se o mundo.

“Black-out” e o mundo desaparece na escuridão.

A luz, com suas variações de intensidades e cores, ângulos e distâncias,

sempre foi motivo de reflexão e estudo. O estudo da luz está presente na origem

de várias ciências como a física, a geometria, a astronomia, a óptica, a teoria das

cores, a teoria da percepção, entre muitas outras.

O homem percebe o mundo principalmente através da visão que tem das

coisas à sua volta, que chamamos por realidade. Porém a visão é resultado de

um processo complexo que começa na fonte de luz que emite raios luminosos

(freqüência de ondas eletromagnéticas), que são absorvidos ou refletidos pela

matéria de que são compostas as superfícies do que está sendo iluminado. A luz

refletida é captada pelos olhos que enviam impulsos nervosos ao cérebro onde a

informação é decodificada e percebida. Os olhos são extremamente adaptáveis e

filtram em segundos a quantidade de luz, as temperaturas de cor e os contrastes.

A percepção da luz cria as noções de forma, cor, volume, profundidade, distância

e movimento em relação à subjetividade. O que significa dizer que a visão é uma

relação ativa entre sujeito e objeto. A visualidade constitui-se assim de um

processo de relações entre a luz, o mundo observado, os olhos do observador e a

capacidade humana de representar e interpretar aquilo que é visto, através da

subjetividade. Ver é criar uma representação do objeto em si, é projetar-se sobre

o objeto. A visão é, portanto, um processo análogo à da linguagem. Aprendemos

a ver através da cultura e a ter prazer estético com isso. A fruição através da

visão das artes pressupõe um processo criativo, de reinvenção do mundo

representado.

Por ser tão mediada, a luz para nós não existe em si, mas torna-se luz para

os nossos olhos na medida em que ilumina a matéria e reflete, formando um

contexto complexo de informações, todas elas relativas entre si. Assim como os

sons o que percebemos depende de um conjunto de relações, entre a fonte de

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luz, suas características determinadas, o ângulo em relação aos objetos e aos

olhos dos espectadores, o contraste entre a luz e suas sombras, o contraste entre

as cores, emitidas, filtradas, refletidas e a sua resultante final para os olhos, as

relações entre o que está mais ou menos iluminado, a quantidade de luz que vem

antes e a que vem depois. Enfim, uma orquestração de estímulos relacionados

entre si. Assim, quando falamos em iluminação cênica, estamos pensando não só

em tornar visível, mas em construir uma visibilidade determinada. Não se trata

apenas de ver, mas como ver.

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CAPÍTULO 2 ANTECEDENTES DA AÇÃO: FLASHES DA HISTÓRIA DA ILUMINAÇÃO CÊNICA DO SOL À LÂMPADA

Refletir sobre a história da luz antes do advento da luz elétrica é um

exercício de sair do próprio tempo. Como temos um modus vivendi absolutamente

dependente da eletricidade, é difícil conceber a vida e o teatro á luz de velas.

Justamente por estarmos atavicamente ligados ás nossas próprias experiências,

é que o senso comum reproduz a idéia de que a iluminação cênica só começa a

existir e a se pensar a partir da entrada da luz elétrica em cena.

É fato que a função da iluminação cênica muda significativamente a partir

da chegada da luz elétrica ao teatro, mas também é que muito já havia sido

pensado e realizado antes, por séculos e séculos de práticas teatrais.

Este capítulo busca, portanto, fazer um vôo sobre esses séculos sem

nenhuma pretensão de aprofundar-se em qualquer tema ou período, com o

objetivo único de pinçar na história do teatro diferentes utilizações da luz do fogo,

da tocha ao gás, para que possamos perceber e pensar o desenvolvimento da

idéia de iluminação cênica e de suas funções no decorrer da história do teatro,

sem achar que o nosso tempo histórico é soberano e inventou tudo do nada.

2.1 FIAT LUX... E A LUZ GEROU A SOMBRA

No início era o Dia e a Noite e o percurso do Sol pela abóbada celeste visto

da Terra. O estudo da luz do Sol, percebida através do olho humano, com suas

variações de distâncias e ângulos, intensidades e cores, sempre foi para o

homem motivo de inspiração e reflexão.

A luz do Sol que nos ilumina é energia, vibração, ou mais precisamente

radiação eletromagnética compreendida num espectro visível 9. Mas a idéia de

9 O espectro das radiações eletromagnéticas perceptível pelo olho humano é chamado de “luz” e compreende uma pequena faixa de comprimento de onda

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“Luz” carrega em si muitos outros significados, como por exemplo, a luz divina, a

comunicação entre deuses e homens e o próprio nascimento da vida.

Como toda vida tem sua morte, todo Deus seu lado terrível, toda luz gera

sombra. A noção de luz e sombra como elementos opostos, complementares, e

originários faz parte da história da cultura, das artes e das religiões em muitas

culturas. Segundo, Hermilo Borba Filho, uma das primeiras danças dramáticas de

que temos notícia é o Drama da Paixão Egípcia, cujo tema principal é a luta da luz

contra as trevas:

O Drama da Paixão Egípcia descreve a luta de Osíris – a luz – contra Set – as trevas. Osíris é derrotado, mas Hórus, seu filho vinga a sua morte. Esta dança é uma representação simbólica do Dia e da Noite e, por extensão, do Bem e do Mal. 10

A batalha entre a luz e as trevas representa a idéia da existência como luta

de contrários. Esta dança nos remete a uma origem mítica do tempo e do devir11.

A luz pressupõe a sombra e a sombra, a luz. A existência de ambos está contida

no seu contraste originário, tanto no plano mítico, quanto no físico.

Não existe definição de volume, forma, distância, delimitação de espaço,

noção de composição ou apreensão do movimento, sem contraste. O olho

depende não somente da existência da luz para ver, mas do contraste que ela

gera. O contraste é condição sinequanon da nossa capacidade de percepção da

luz e a partir dela, do mundo que nos rodeia.

A “Luz” tem, portanto, na idéia de contraste seu princípio fundamental

expresso desde os primórdios, desde o nascimento do teatro no espírito da dança

e da música, muito antes do teatro ser entendido como linguagem, da existência

da iluminação artificial e desta poder ser controlada pelo homem.

que vai de 380 a 780 milimícrons, ou do violeta ao vermelho. O arco-íris e suas gradações é o exemplo mais claro desse espectro solar que encontramos na natureza. 10 Borba Filho, Hermilo. A História do Espetáculo. Rio de Janeiro: ed. O Cruzeiro, 1968; p.13. 11 O nascimento de todas as coisas, a corrupção de todas as coisas, a mudança qualitativa, a mudança quantitativa e o movimento no espaço/tempo.

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21

Até o século XV o teatro é iluminado pela luz do Sol. Neste longo período

da história do teatro existem várias descrições da utilização da luz do fogo e de

reflexões da luz do Sol como instrumento do espetáculo. Nestes casos a função

da luz é predominantemente a de realizar efeitos especiais, principalmente as

aparições sobrenaturais, divinas ou demoníacas. Esta relação entre a luz e o

sobrenatural é uma constante e relaciona-se com a idéia da luz como

representação ou presentificação da divindade.

2.2 O TEATRO GREGO E O SOL

O teatro grego, de origem religiosa e campestre, originou-se, segundo uma

das versões, do culto a Dionísos, os ritos de fertilidade dos sátiros dançantes.

Essa festividade rural é trazida dos campos para as cidades por volta de 539 a.C.

(por Téspis) e é a partir desta época que o Estado Grego tomou a si a

organização do teatro, instituindo concursos entre os poetas dramáticos – As

Dionisíacas. Com origem na época de Péricles, As Grandes Dinisíacas

aconteciam na Cidade-Estado de Atenas por 6 dias seguidos no mês de março, e

duravam a cada dia o tempo do percurso do sol. O público chegava ao nascer do

sol, vestido de branco 12 e as apresentações iam até o anoitecer. No fim do dia "o

cortejo voltava a Atenas sob a claridade das tochas" 13.

O teatro Grego era realizado, portanto, à luz do Sol, do nascente ao

poente. A idéia de tempo na tragédia está, portanto, intimamente ligada ao

percurso do sol pela abóbada celeste, suas mudanças de ângulo e luminosidade

e seus limites.

12 “Vestido com o branco ritual, o público chegava em grande número às primeiras horas da manhã ‘Um enxame branco’ é como o chama Ésquilo” Berthold, Margot, História Mundial do Teatro. São Paulo: Ed Perspectiva, São Paulo, 2003. p. 114.

13 Borba Filho, Hermilo. A História do Espetáculo. Rio de Janeiro: ed. O Cruzeiro, 1968; p.34.

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22

Desta forma a questão da visibilidade do

espetáculo tinha de ser cuidadosamente estudada, a

escolha do local da representação em relação á platéia

precisava levar em conta, entre tantas outras variáveis, a

direção e o ângulo do Sol. Assim o Sol, que nasce a

leste e se põe a Oeste, deveria iluminar a cena de forma

oblíqua, nascendo e se pondo por trás dos espectadores

á direita ou á esquerda da Skené, para que iluminasse

os atores, sem cegar a platéia que olha em direção à cena. Como demonstra o

desenho ao lado que representa o eixo do espaço da performance no teatro de

Dionísos, em Atenas 14:

O local da Dionisíaca de Atenas era a encosta da colina do Santuário de

Dionísio, ao sul da Acrópole. 15 Primeiro em instalações provisórias construídas

em madeira. Cabanas eram construídas atrás da área de representação, como

base para os cenários. Estas cabanas, onde os atores e o coro se trocavam, dão

origem ao termo Skené (tenda ou cabana). A pintura sobre a Skené deu origem à

palavra skenografia. Na frente da Skené, o Proskênion, espaço onde representam

os atores e na sua frente Orquestra (de orkestai, local onde se dança) local para a

evolução dos coros, em volta o local destinado à platéia, o Théatron (lugar onde

se vê).

A origem da palavra teatro está, portanto, diretamente ligada à visão, é

uma ação que se representa para ser vista por um público.

No centro da Orquestra, sobre um pedestal baixo o altar sacrificial, o

Thimelê – altar ou fogo Sagrado. Enquanto estivesse aceso o Thimelê, Dionísos -

o deus do entusiasmo e do teatro – estaria presente às representações. A luz do

fogo sagrado representa no teatro grego a própria presença do Deus.

14 Wiles, Davis. Tragedy in Athens: performance space and theatrical meaning. Cambridge University Press, 1997, p.57 apud Pollini, Denise. Eurípides, A Cenografia e os Mecanismos Cênicos do séc. V a.C. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 2004.p. 113. 15 Sobre a descrição dos locais e dos elementos da arquitetura do Teatro Grego: Borba Filho, Hermilo. A História do Espetáculo. Rio de Janeiro: ed. O Cruzeiro, 1968; pp.32 a 34; Berthold, Margot, História Mundial do Teatro, Ed Perspectiva, São Paulo, 2003; pp. 113 a 118 e Pollini, Denise. Eurípides, A Cenografia e os Mecanismos Cênicos do séc. V a.C. Op. Cit. pp. 15 a 21.

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23

Os efeitos especiais luminosos realizados com fogo ou reflexão da luz do

sol em superfícies polidas, principalmente nos momentos de clímax, aparição de

deuses ou seres maravilhosos, são tradição no teatro e existem registros de sua

utilização desde a tragédia grega.

Entre as máquinas e os efeitos especiais do teatro grego que se conhece,

como guindastes, alçapões, escadas e praticáveis móveis, há efeitos de luz, como

os raios feitos com reflexo e até mesmo, segundo Hermilo Borba Filho16, a

projeção de imagens ou sombras, é possível que a partir da reflexão do próprio

Sol: (...)uma espécie de lanterna mágica que fazia os

espectadores verem o outro extremo da cidade, náufragos no meio das ondas, apoteose de heróis acompanhados por fogos de artifício 17

Mas não por acaso, o grande exemplo da luz como convenção e que tem

início no teatro grego, é a utilização da luz do fogo como signo da noite, como nos

indica Roberto Gill Camargo:

As velas, tochas e archotes costumavam entrar só no final das apresentações, quando estas se estendiam até mais tarde, invadindo o período da noite. Em alguns casos, porém, era recurso usado para designar ‘noite’ e ‘escuridão’. 18

È bem significativo que à noite o fogo sirva para iluminar a cena, que

necessita ser vista, independente de qualquer indicação de ‘tempo’ e ‘espaço’ no

âmbito da ficção; mas ao contrário, um ator que porta uma tocha em plena luz do

dia, representa uma personagem que necessita do fogo para ver, portanto

encontra-se, na ficção, em meio à escuridão – à noite ou em local escuro, como

uma caverna ou uma floresta fechada. Esta convenção teatral talvez seja o

primeiro lampejo da luz utilizada como linguagem. Nesse caso a luz do fogo traz

16 Não encontramos mais indicações ou detalhes sobre esse efeito de projeção no teatro grego, à luz do dia, nem ao menos outra menção. Como não sabemos as fontes de Hermilo, apenas indicamos a citação. 17 Borba Filho, Hermilo. A História do Espetáculo. Rio de Janeiro: ed. O Cruzeiro, 1968; p.33. 18 Camargo, Roberto Gill. A Função Estética da Luz. Sorocaba: Ed. Fundo de Cultura, 2000. p. 14.

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consigo o signo de seu oposto, a escuridão. Reiterando a noção de contraste

como princípio fundamental da iluminação, mesmo do ponto de vista simbólico.

2 . 3 O T E A T R O M E D I E V A L E O F O G O

O TEATRO SAGRADO medieval surge dentro das Igrejas, a princípio

dentro da própria liturgia da missa, nas celebrações da Páscoa e do Natal. No

decorrer dos séculos a representação litúrgica vai ganhando espaço e

independência dentro da missa: Nos Autos Pascais as representações tornam-se

cada vez mais elaboradas com a dramatização de vários trechos bíblicos em

interlúdios profanos que encenam o Sacramento no meio da missa - através de

diálogos escritos.

Os cenários são montados simultaneamente para as diversas cenas, em

vários locais da Igreja. A simultaneidade da ação e as áreas utilizadas

determinaram o futuro palco de todo o teatro medieval. (...) Os espetáculos eclesiais desfilam os eventos bíblicos aos olhos do espectador com a mesma justaposição simultânea de um telão pintado 19

A luz ganha concretude no espaço, desenhada no ar pela fumaça dos

incensos. O clima da iluminação é dado pelo contraste entre o mistério da luz

tremulante do fogo (presente em miríades de círios, velas e candelabros acesos)

e a transcendência da luz do sol filtrada pelos vitrais coloridos, colocados em

ângulos precisos em relação ao Sol e que se movimenta pelo espaço de acordo

com a hora do dia e as estações do ano, compondo com a arquitetura e

percorrendo no chão das catedrais e igrejas desenhos místicos.

Indo de encontro às grandes batalhas entre Deus e o Demônio, ou às

contradições entre o sagrado e o profano, o grotesco vai se infiltrando nas

representações do Teatro Medieval, e com ele as línguas e dialetos locais,

durante séculos; até a expulsão do teatro de dentro das igrejas, do altar para a

frente do portal, e na seqüência, dos pátios das Igrejas para as praças do

mercado. De volta à rua e à luz crua e direta do Sol. 19 Berthold, Margot, História Mundial do Teatro, São Paulo: Ed Perspectiva, 2003. pag. 196.

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OS MISTÉRIOS E O FOGO DA BOCA DO INFERNO

OS Mistérios são grandes ciclos bíblicos que contam a Paixão de Cristo,

histórias do velho testamento e dos apóstolos. Começam a ser realizados a partir

do séc. XII, quando as cidades assumem através das suas corporações de ofício,

guildas e confrarias, as representações bíblicas que foram paulatinamente

expulsas das missas e dos adros das igrejas20. No século XIII os Mistérios

espalham-se e a maioria das cidades importantes da Europa tem a sua grande

representação, realizadas em geral nas datas de festa cristã. No decorrer da

ultima parte da Idade Média tornam-se um acontecimento fundamental para as

cidades crescentes dos séculos XIV e XV, fundindo a religião às feiras e ao

comércio. As produções tornam-se cada vez maiores e mais elaboradas e podem

durar dias ou até semanas.

Cada classe de artesãos assume a responsabilidade por uma das cenas

bíblicas apresentadas, incluindo a produção e execução dos cenários e figurinos

da representação. Muitos habitantes da cidade tomavam parte das cenas,

principalmente como figurantes, os dillettanti. Os cenários de cada cena ou evento

bíblico são construídos ao ar livre, todos dispostos pelo espaço de forma

simultânea, e a história é representada em ‘estações’, com o público

acompanhando o suceder dos passos da história sagrada. Nos palcos

simultâneos, todos os cenários e acontecimentos já estão dispostos no espaço e

no tempo, do início ao fim da história. Como na noção cristã do mundo, tudo já

está posto, do paraíso ao juízo final, formando um todo único e eterno à imagem e

semelhança de Deus. O palco simultâneo corresponde exatamente a esse cunho

épico da representação; toda a ação já aconteceu e o próprio futuro é antecipado, sendo tudo simultâneo na eternidade do logos divino. A eternidade divina é atemporalidade em que o “então” das origens corresponde com o “então” escatológico. O palco simultâneo é a manifestação da essência, sobrepondo-se á aparência sucessiva. 21

20 “O caminho da celebração litúrgica ao espetáculo teatral, que a Igreja havia encetado e incentivado, fundia-se agora com o da ascendente população urbana européia, que, nos séculos seguintes, determinaria o curso da história e dessa forma, também o aspecto do teatro ocidental.” Berthold, Margot, História Mundial do Teatro, Ed Perspectiva, São Paulo, 2003. Pág. 203. 21 Rosenfeld, Anatol. O Teatro Épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985.p.49.

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26

Imagem do Mistério da Paixão de Valenciennes, 1547 22

A sucessão das cenas e a movimentação do público pelas diversas

‘estações’ mudam de acordo com a cidade e a região, gerando diferentes formas

de representação e relação espacial com a platéia. Nos países baixos e cidades

germânicas os cenários/cenas são montados nas praças, criando uma espécie de

cidade-palco por onde a platéia circula em procissão. Nas cidades da região

francesa as representações acontecem em compridos palcos-plataformas (como

mostra o desenho acima). Na Inglaterra, Itália e Espanha os cenários são

montados sobre carroças ou carros palcos, formando um ciclo processual onde

por vezes os espectadores seguem as cenas, por outras as cenas movem-se

enquanto os espectadores ficam parados.

O próprio espectador está no palco; o auditório é simultaneamente o cenário e o palco. Palco e auditório, realidade estética e empírica, põem-se em contato direto e formam um único contínuo: o princípio da frontalidade foi completamente abolido, o fim da representação artística é a ilusão absoluta23

Como o grande apelo dramático dessas epopéias eram os êxtases e

milagres e os infernos e as danações, a grandiosidade dos cenários e os efeitos

especiais com maquinaria e fogo tornam-se muito importantes para a

grandiloqüência das cenas. Efeitos de explosão, fogo e raios flamejantes eram

fundamentais para o efeito de êxtase e terror da platéia. Os cenários do inferno

tinham grande função no clímax dos espetáculos e eram os carros chefes dos

22 Berthold, Margot, História Mundial do Teatro, São Paulo: Ed Perspectiva, 2003. Pág. 230. 23 Hauser, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo: Mestre Jou, 1980-1982. Volume 1.p. 350.

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27

efeitos especiais: as bocas do inferno tinham mecanismos de abrir e fechar as

mandíbulas e de soltar fumaça e línguas de fogo acesas artificialmente com

líquidos inflamáveis.

Boca do Inferno, Dresden, 1695 24

Seguindo a tradição vinda da Grécia, cabe ao fogo e aos truques

luminotécnicos o papel de efeito especial. Mas desta vez, há uma distinção clara

entre a luz do sol refletida em metais, seus raios e brilhos, que acompanham a

falange de Deus, Santos e anjos; e a luz do fogo presente nos locus dos infernos

e dos ímpios.

O fogo, que na Grécia significara a presença imanente do deus do

entusiasmo em cena; transforma-se na própria encarnação viva do inferno e seus

terrores. Aprofunda-se a significação do fogo em cena representar o seu

contrário, a escuridão e as trevas. Talvez pelo seu poder ao mesmo tempo

maravilhoso e assustador de nos encantar e ofuscar, deixando-nos

momentaneamente cegos.

No entanto a visão do fogo da boca dos infernos e as cenas grotescas e

cômicas que acompanham os pecados e as quedas dos simples mortais - tornam-

se as estrelas do espetáculo, ganhando cada vez mais espaço e interesse nas

representações. O Teatro Profano está desde sempre contido, escondido como

semente pronta pra brotar, dentro do Teatro Sagrado.

24 Berthold, Margot; História Mundial do Teatro, Ed Perspectiva, São Paulo, 2003; p.202.

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O TEATRO PROFANO

O Teatro Profano multiplica-se em silêncio durante toda a Idade Média em

carroças de ambulantes. Há inúmeras formas de Teatro Profano que resistem ou

se desenvolvem neste período: Mimos e Mascaradas, Autos de carnaval, Farsas

e Bufonarias, várias espécies de “jogadores” e improvisadores como os

Joculatores, jongleaur ou Spileman.25 Menestréis, saltimbancos, jograis, músicos,

dançarinos, acrobatas, bobos, bufões e Arlequinos.

Profissionais, esses artistas vivem de arte e truques, circulam pelas

estradas, feiras e festas das cidades crescentes, formando um sistema radicular

de trocas e influências, que leva e trás cenas e técnicas teatrais, máscaras e

personagens, idéias novas e subversão, magia e segredos, ciência e técnica.

Estes artistas ambulantes, à margem das regras rígidas da vida medieval, têm

uma liberdade ímpar de ir e vir, de forma a criar uma espécie de "vida cultural

subcutânea" na Idade Média.

É fácil imaginar que suas representações utilizassem efeitos com fogo 26.

Hamilton Saraiva cita em sua tese de mestrado um desenho de palco de rua

francês de 1540, reproduzido abaixo, que se encontra na Biblioteca Municipal de

Cambrai.27

25 Berthold, Margot. História Mundial do Teatro, São Paulo: Ed Perspectiva, 2003. Pags. 242 a 267. 26 Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990.p. 8. 27 Berthold, Margot. História Mundial do Teatro, São Paulo: Ed Perspectiva, 2003. p. 256.

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Esse desenho mostra a utilização de fogo para iluminar um palco de

ambulantes. Podemos perceber pelo desenho que os dois recipientes com fogo já

formam uma pré-ribalta, inteligentemente colocadas na diagonal, o que completa

melhor a iluminação dos dois lados do corpo, do que se viesse da frente,

ofuscando menos a visão da platéia.

Embora a própria característica intrínseca de sua arte dever muito às

narrativas orais e ao improviso, não deixando uma dramaturgia ou história precisa

e oficial escrita, é sabido que eles mantém vivas muitas tradições antigas dos

mimos e comédias populares latinas. As técnicas que aprendem, aperfeiçoam ou

inventam por eles próprios são transmitidas de boca em boca. É muito provável

que muitas destas técnicas e truques de teatro, incluindo truques com fogo,

tenham resistido e se desenvolvido durante este período por meio da tradição

oral, passando de geração a geração na prática de mestres e discípulos,

chegando assim até o século XVI – quando serão compiladas, escritas e

aperfeiçoadas pelos grandes arquitetos e cenógrafos do Renascimento.

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30

2.4 O RENASCIMENTO E O RAIAR DAS LUZES NO TEATRO

ANTECEDENTES DA AÇÃO

As transformações na estrutura feudal da Idade Média vêm sendo gestadas

desde o século XII, com o ressurgimento das cidades e o fortalecimento do

comércio. Cresce a população das cidades - os “burgueses” - com suas práticas e

necessidades específicas, acompanhados por uma nova trama de relações que

as cidades estabelecem.

Em 1492 a tomada de Constantinopla pelos turcos expulsa para o ocidente

levas e levas de homens em fuga, carregando consigo documentos e textos

fundamentais da cultura Greco-Romana. A difusão das obras e do pensamento da

cultura Clássica Greco-Romana 28, aliada ao Mecenato 29 às artes e às ciências,

possibilitam a retomada da pesquisa e do desenvolvimento das ciências naturais,

da astronomia, da óptica, da matemática, da geometria, da arquitetura, da música,

da escultura, da pintura e do teatro.

O comércio necessita da ciência, da tecnologia e das artes como aliados; e

vice e versa. As Repúblicas italianas reuniram, no fim do séc. XV, a necessidade

e as condições técnicas30, econômicas31 e políticas32 que possibilitaram uma

reviravolta na forma do homem entender a si mesmo e ao mundo, uma revolução

cultural de grandes proporções: O Renascimento.

28 A partir de 1456, com a publicação da Bíblia de Guttemberg, a técnica da tipografia possibilita a multiplicação dos textos escritos. Em 1467 o Papa Paulo II instala o primeiro prelo em Roma, publicando importantes obras em grego e latim. 29 O Mecenato é empreendido por grandes famílias italianas e pela própria igreja católica. Os papas humanistas da Contra Reforma abrem o seio da Santa Madre Igreja Católica para a paixão pela Antiguidade, assim como o interesse pelas artes e as ciências naturais. 30 O desenvolvimento da navegação; a tipografia e o desenvolvimento de técnicas de produção mecânicas que aumentam a produção dos artesãos. 31 O comércio entre o Ocidente e o Oriente, via península Itálica, gera uma grande acumulação de capital nas mãos das cidades-estados italianas, conseqüência de um forte do mercantilismo comercial. 32 A relativa independência política de cada uma destas cidades.

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31

Na Itália a retomada da literatura dramática começa com o Teatro dos

Humanistas, que promovem leituras, declamações e, na seqüência,

representações das comédias e tragédias latinas; que logo incitam á produção de

novos textos inspirados na forma clássica. O teatro renascentista estabelece a

Poética de Aristóteles como ponto de referência para a teoria dramática.

A ARQUITETURA RENASCENTISTA E A CONSTRUÇÃO DE TEATROS

Do ponto de vista do espetáculo a transformação é total, a começar pelo

espaço que ele ocupa. A partir do séc. XV e principalmente durante o século XVI,

o teatro recolhe-se a espaços restritos, onde é possível cobrar ingressos ou

escolher os convidados. Alguns destes espaços continuam abertos à luz solar,

porém há uma tendência cada vez maior de ocupar espaços fechados e edifícios

construídos especificamente para as representações – os Teatros - colocando a

questão da ocupação espacial e visibilidade como problemas a serem resolvidos

e o desenvolvimento da iluminação cênica como uma necessidade.

As primeiras fontes de luz utilizadas foram velas33, de diversos tamanhos e

tipos, a princípio em candelabros colocados aleatoriamente pelo espaço, sem

distinção de local ou ângulo em relação à ação. Também foram utilizados outros

procedimentos como a combustão de óleos vegetais ou animais em lamparinas

de azeite ou óleo de baleia e latas ou vasos com água misturada em combustíveis

vegetais.

Do século XVI até o fim do século XIX, o fogo – em suas múltiplas formas e

através de inúmeras técnicas diferentes de combustão, controle e transformação

da luz – será a principal fonte de luz do teatro.

Os espetáculos começam a ocupar espaços fechados primeiro de forma

improvisada, segundo as características do teatro medievo de cada região;

depois, com o desenvolvimento da arquitetura renascentista, a construção de

teatros passa a ter um lugar importante nas cortes e cidades em expansão.

33 “A vela de cera, invenção dos fenícios (cerca de 300 d.C) foi por muito tempo o único iluminante dos teatros.” Camargo, Roberto Gill; A Função Estética da Luz, TCM Comunicação, Sorocaba, SP, 2000, p.15.

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32

Na França, os palcos-plataformas franceses com seus Mistérios são os

primeiros a serem transferidos para grandes salões em hotéis ou palácios, ao

abrigo da corte.34 A iluminação a princípio ficava a cargo dos candelabros

originais, acrescidos de uma quantidade suplementar de velas. No primeiro

momento as representações em salões e festas, ligados às cortes absolutistas

francesas, trazem consigo a idéia de grandiosidade e luxo como fim estético, a

iluminação segue então a falsa idéia de que quanto mais velas, mais brilho e luz,

portanto a cada nova representação, multiplicam-se as velas por todos os lados,

ofuscando a platéia com seu brilho.

Na Espanha, as carroças de ambulantes estacionam nos pátios dos

hospitais (corrales) de irmandades religiosas. Os Corrales, como ficaram

conhecidos, serão os primeiros palcos do Siglo de Oro espanhol (1580-1680) e

funcionam de dia, à luz do sol. Na Inglaterra, a forma do teatro renascentista

também vem dos carros-palcos medievais, que aportam nos pátios de casas ou

pousadas. No fim do século XVI são construídos teatros elizabetanos como

espaços específicos para as representações, extremamente populares, que

aconteciam diariamente a partir das 14h, também à luz do Sol. Desenhos

mostram ribaltas e candelabros, o que indica a provável contracenação entre a luz

do dia e a luz do fogo na sombria Inglaterra. Apesar da intensidade da luz do fogo

representar pouca potência durante o dia, as temperaturas de cor muito diferentes

criam um contraste entre elas que desenha as formas. É conhecida também a

utilização de tochas ou velas nessas representações, assim como no teatro

grego, para representar em plena luz do dia as cenas noturnas ou soturnas.

Mas é na Itália, berço do Renascimento, que o incrível florescimento da

arquitetura renascentista traz grandes conseqüências para o espaço teatral e

suas técnicas.

34 “Sobretudo em Paris, desde muito cedo há a tendência de transferir o espetáculo para um teatro fechado (...) A ‘Confrérie de la Passion’, de Paris, representava desde o ano de 1411 em interiores, - a princípio no hotel Fe La Trinité, depois no Hôtel de Flandre e, finalmente, no Hôtel de La Bourgogne, onde o teatro francês mais tarde lançou as bases de sua brilhante carreira com Molière e a Commedie Itallienne”. Berthold, Margot, História Mundial do Teatro. São Paulo: Ed Perspectiva, 2003. P.227.

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33

O desenvolvimento da arquitetura renascentista na Itália – inspirado pela

publicação de Vitrúvio em 1486 35 e regido por regras áureas da geometria e da

matemática – leva à construção de teatros a partir das formas e proporções dos

teatros romanos (como mostra abaixo uma fotografia do Teatro Olímpico de

Vicenza). Estes teatros eram construídos de forma a aproveitar a iluminação

natural: nas apresentações diurnas a cena era iluminada através de grandes

clarabóias no centro da construção e janelas atrás da platéia. Entretanto à noite a

iluminação artificial era necessária.

Imagem - Interior do teatro olímpico de Vicenza 36

No século XVI a construção de teatros segundo o modelo de Vitrúvio,

espalha-se pelas cidades italianas e, na seqüência, nos palácios e cortes de toda

a Europa 37.

35 “Se fôssemos escolher um marco para a ‘Renascença” do teatro, a data seria 1486.(...) E foi nesse ano também que saiu do prelo a De Architectura (10 livros sobre a Arquitetura) de Vitrúvio, uma contribuição essencial para plasmar o palco e o teatro segundo o modelo da Antiguidade.” Berthold, Margot; História Mundial do Teatro, Ed Perspectiva, São Paulo, 2003, p.270. 36 “O melhor exemplo ainda hoje existente de um teatro renascentista italiano é o Teatro Olímpico de Vicenza. Foi construído por Andréa Palladio, que, após colaborar com Bárbaro na edição que este fez de Vitrúvio, propôs-se a tarefa de reconstruir um teatro Romano antigo. A nova casa foi inaugurada em 1584, com Édipo Rei de Sófocles.” Id. Ibid., p.287. 37 “Do século XVI em diante, os teatros em palácios assumiram importância, tanto do ponto de vista da história cultural, quanto do da Arquitetura”. Id. Ibid., p. 291.

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34

O RENASCIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA CENOGRAFIA,

CENOTÉCNICA E ILUMINAÇÃO.

A partir da construção dos teatros, os arquitetos renascentistas vinculados

a partir de então às principais cortes da Europa, dedicam-se também à

cenografia. Revolucionam formas e composições em busca da perspectiva – a

grande paixão da Renascença.38

Para dar maior impressão de profundidade mesclam os telões pintados em

perspectiva com cenários construídos em proporção, com volumes, dando origem

ao palco e cenários renascentistas.

Através da prática de uma arte ligada à ciência, unem técnicas navais do

período das grandes navegações, às ciências da arquitetura, geometria,

matemática, óptica, entre outras, para o progresso da tecnologia da cena - a

cenotécnica.

Estes arquitetos italianos e seus discípulos: construtores de teatros,

cenógrafos, inventores de máquinas cênicas e mestres da arte da cenotécnia,

foram também os primeiros iluminadores. Sabedores da influência da iluminação

no efeito visual do espaço tomaram para si a tarefa de manipular artificialmente a

luz dos espetáculos. Para isso estudaram, aperfeiçoaram e compilaram as antigas

técnicas de utilização do fogo e, através de estudos e pesquisas práticas,

ampliaram em muito a tecnologia para iluminar e criar efeitos a partir da luz, que

foram a pouco e pouco tomando conta da cena. Suas experiências constituem a

base de toda a técnica da iluminação a partir de então, daí sua importância para a

compreensão da história da iluminação como um todo. Muito de seus trabalhos e

técnicas, tanto na arquitetura cênica, quanto na cenotécnica e iluminação serão

não somente incorporados às tradições do teatro como também especificamente

38 “A invenção da perspectiva central é, antes de tudo, expressão do desejo renascentista de conquistar e dominar a realidade empírica no plano artístico. Ela é sintoma de uma deslocação do foco de valores: a transcendência cede terreno à imanência, o outro mundo a este, o céu à terra. A perspectiva coloca a consciência humana - e não a divindade – no centro; ela projeta tudo a partir deste foco central.” Rosenfeld, Anatol. Traços Épicos no Teatro Pós-Medieval (Renascimento e Barroco) in O Teatro Épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985, p.54.

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35

estudados e relidos pelos principais encenadores do século XX, como, por

exemplo, Edward Gordon Craig e Max Reinhardt.

Com o objetivo de primeiro abarcar uma visão mais geral e aglutinadora,

para depois detalhar, faremos um rol das principais linhas de pesquisa e práticas

em iluminação cênica realizadas por esses mestres da arte e da técnica, de

acordo com as diferentes funções que a luz assume nos espetáculos:

1. Visibilidade. Os arquitetos dedicam-se à questão da visibilidade, estudando

como iluminar melhor a cena sem ofuscar os olhos da platéia.

2. Perspectiva. Preocupam-se com a interação entre a luz e o espaço com o

objetivo de aumentar a noção da perspectiva. A partir de seus

conhecimentos de geometria dão os primeiros passos no posicionamento

racional das fontes de luz, experimentando diferentes ângulos para iluminar

a cena em busca de maior visibilidade, volume, contraste e harmonia na

composição das cenas. São eles que criam os princípios matemáticos

básicos do desenho de luz, utilizados até hoje.

3. Efeitos especiais. Compilam, aperfeiçoam e inventam novos efeitos

especiais com “traquitanas” cênicas e fogo para imitar ícones da natureza

como o sol, a lua, raios e trovões, reflexos com rebatimento em metal e até

incêndios cenográficos.

4. Relação entre o palco e a platéia. Aumentam, aos poucos, a separação

entre a platéia e o palco através da iluminação39: diminuem a quantidade

de velas acesas na sala e deslocam os candelabros que iluminam a platéia

para o fundo, longe do ângulo de visão dos espectadores 40; aumentam a

39 “Para aumentar o efeito perspectívico acentua-se a tendência a separar palco e platéia. Esta separação se destacará ainda mais (...) na medida em que os palcos se fecham em prédios, pela instalação da ribalta que dota a cena de sua própria luz. O público, por sua vez, que antes comungava da mesma luz da cena (quer do sol, quer das velas e lâmpadas), pouco a pouco é envolto em penumbra, como se não existisse para o palco, enquanto este, luminosa lanterna mágica, desenvolve para a platéia em trevas toda a sua força hipnótica.” Rosenfeld, Anatol. Traços Épicos no Teatro Pós-Medieval (Renascimento e Barroco) in O Teatro Épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985, p.55. 40 Encontramos algumas tentativas de apagar totalmente a luz da platéia, mas elas não funcionam porque a função social do espetáculo necessita que a platéia se veja no teatro.

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quantidade de fontes de luz do palco e, finalmente, adotam as luzes da

ribalta como iluminação principal da cena. A ribalta, localizada na fronteira

entre o palco e a platéia, além de promover uma luz mais intensa, cria um

abismo físico e luminoso entre esses dois mundos.

5. Atmosfera. Desenvolvem as primeiras técnicas para variar a intensidade da

luz no meio das representações ou mudar as cores da cena através da

iluminação, sugerindo as primeiras “atmosferas” luminosas.

6. Pesquisa e documentação. São também os primeiros a escrever sobre

iluminação cênica em seus tratados sobre arquitetura, cenários e

cenotécnica, que incluem a luminotécnica.

É importante notar que as mudanças empreendidas pelos arquitetos

renascentistas na concepção e prática da iluminação cênica; descritas de forma

geral através dos seis itens acima, não aconteceram de uma hora para outra, nem

foram aceitas imediatamente como pratica por todos os teatros. Pelo contrário,

foram conquistas advindas da pesquisa prática de homens de teatro que se

caracterizaram pela audácia, descritas em trabalhos teóricos que justamente se

opunham ao senso comum trazendo inovações, algumas delas só se tornaram

prática corrente no teatro moderno. A seguir citamos alguns destes arquitetos

renascentistas e levantamos suas práticas na iluminação cênica.

OS GRANDES MESTRES DA ARQUITETURA RENASCENTISTA NO SÉCULO

XVI E SUAS PRÁTICAS NA CENOGRAFIA E ILUMINAÇÃO CÊNICA

SEBASTIANO SÉRLIO (1475 – 1554)

Arquiteto, discípulo de Perruzi, construtor de teatros e cenografias. Foi o

grande teórico da construção teatral do século XVI; escreveu cinco tratados sobre

arquitetura: o primeiro deles chamado "Regole generali d'architettura” foi

publicado em Veneza em 1537. O Libro Secondo di Perspettiva da Architettura,

tratado específico sobre arquitetura cênica, cenografia e perspectiva, foi publicado

em 1545. Reunidos depois de sua morte em um único volume, chamado

Architettura, foi publicado em vários países como um importante compêndio da

arquitetura renascentista. Em seu tratado sobre cenografia - Libro Secondo di

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Perspettiva da Architettura - reúne e descreve suas importantes contribuições

para a cenografia renascentista, com desenhos e explicações técnicas

detalhadas41. Abaixo pontuamos as mais significativas para nosso trabalho:

Sebastiano Sérlio transforma as bases da utilização da perspectiva no

teatro: muda o ponto de fuga para trás da parede do fundo do teatro, conseguindo

assim aumentar a sensação de profundidade e ganhar mais espaço para a

atuação na frente. Substitui as sólidas construções cênicas, por bastidores em

ângulo, facilitando a construção, a colocação dos cenários e a circulação da cena.

Seguindo as prescrições de Vitrúvio, retoma as três formas do teatro grego e

latino e estabelece três tipos básicos de cenário, incluindo os efeitos da

perspectiva. São eles a Scena Trágica (representando uma arquitetura de palácio

em perspectiva, a Scena Cômica (uma vista de rua em perspectiva) e a Scena

Satírica (uma paisagem arborizada para as pastorais).

Sebastiano Sérlio é o primeiro a escrever sobre a relação entre a luz e o

espaço cênico. Para organizar a disposição das fontes de luz pelo espaço, separa

a luz “para ver”, ou seja, a luz geral; da luz que desenha o espaço para dar a

noção de profundidade. Também separa as duas primeiras dos “efeitos

especiais”. Cada uma dessas funções tem as suas fontes de luz, que não se

misturam.

Esse construtor do século XVI informa que essas luzes [coloridas] não são as que servirão para iluminar a cena, mas representam os “efeitos especiais”, já que as luzes de cena serão feitas pelos candelabros e com os vasos cheios de água, nos quais se colocam cânfora que, ardendo, dá uma bela luz e odorífica o ambiente.42

41 Gostaríamos de declarar aqui que infelizmente não foi possível ler diretamente a obra de Sebastiano Sérlio. Lemos as seguintes fontes: Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990; Camargo, Roberto Gill. A Função Estética da Luz. Sorocaba: Ed. Fundo de Cultura, 2000. Streader, Tim e Williams, John A. Create Your Own Stage Lighting. New Jersey: Prentice Hall Inc., 1985. Moussinac,Léon. História do Teatro das origens aos nossos dias. Trad. Mario Jacques. Portugal: Livraria Bertrand, s/d. Keller,Max. Light Fantastic. The Art and Design of Stage Lighting. Munique: Prestel Verlag 2006. 42 Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Op. Cit. p.15.

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Para iluminar a cena, ou seja, como luz geral: descreve o uso comum de

velas em lustres, dispostos no alto, lâmpadas de azeite de baleia penduradas em

grande quantidade e bacias de água com óleo vegetal no chão. Para estas luzes

de chão, propõe criar um “espelho”, composto do mesmo latão da bacia, bem

polido, para esconder as chamas da platéia e refletir mais luz para a cena.

Preocupa-se em esconder todas as fontes de luz (menos os lustres do alto) dos

olhos da platéia, para não ofuscá-la, tornando então a cena mais clara.

Para servir de luz complementar e desenhar o espaço: com o objetivo de

aumentar a noção de profundidade, emprega luzes laterais, entre os cenários

construídos e a tela de fundo; para iluminar bem a tela pintada e minimizar as

sombras das luzes da ribalta, usa um grande lustre central, que ilumina a tela de

cima; para a iluminação através de janelas, coloca a fonte de luz por trás e vidros

ou papéis coloridos na janela cênica, de forma a criar um efeito de projeção de

cores e também avivar a existência destas janelas na cenografia.

Descreve também vários efeitos para transformar a luz do espetáculo;

explicitando em seu texto que essas luzes não servem para iluminar a cena, mas

representam “efeitos especiais”:

Relata formas para colorir a luz da cena - utiliza velas e lamparinas

como fonte de luz, por trás de orifícios feitos na parede, nos quais havia

recipientes (construídos com vidros especiais, alguns côncavos) com

líquido de várias cores: “No seu segundo livro de Architettura ensina como

fazer as cores transparentes para luz artificial partindo do azul até chegar

ao safira.” 43 Quanto aos efeitos para colorir a cena, com certeza

dependem de uma grande quantidade de velas por trás dos recipientes

com líquidos coloridos, porque muito da luminosidade das velas é

absorvida pelas cores. Mas o resultado é surpreendente porque a luz viva

das chamas cria miríades de reflexos coloridos em movimento.44

43 Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990, p.14.

44 Já realizei esta experiência em sala de aula para iluminar uma cena de “A Vida é Sonho” e o efeito é muito bonito. Como as fontes de luz têm movimento os reflexos coloridos são bem diferentes da cor regular resultante dos filtros coloridas em lâmpadas elétricas.

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Indica a utilização de metais polidos (latão) para refletir as luzes das

velas e criar brilhos e raios.

Utiliza tochas, foguetes e estopa embebida em álcool ou cânfora

para efeitos especiais com fogo, incluindo os perigosos “incêndios cênicos”;

Conta como utiliza técnicas do teatro de sombras, para projetar, por

trás, imagens no pano de fundo: “como forma de representar, ao fundo, as

figuras de músicos e até uma multidão a pé ou a cavalo nos entreatos.” 45

Relâmpagos “eram feitos com um pó inflamável, que era colocado

numa caixinha cheia de buracos na tampa. Sobre a tampa, bem no meio,

uma vela acesa; levantando-se a caixa rapidamente o pó se inflama

fulgurantemente, dando a sensação do relâmpago” 46

É importante notar aqui que a separação que Sebastiano Sérlio faz entre

as fontes de luz “para iluminar” e as demais luzes já caracterizam do ponto de

vista conceitual uma separação de planos de luz, por função: a iluminação como

instrumento da visibilidade, representada pela iluminação geral, as luzes laterais,

que desenham o espaço, os “efeitos” que têm função dramática, como raios e

incêndios. Sobre essa distinção proposta por Sebastiano Sérlio, conclui Max

Keller:

Em termos de iluminação cênica ele distingue entre luz geral - luz decorativa, que ilumina os cenários – e luzes móveis e efeitos que representam o Sol, estrelas e luz.47

Eu acrescentaria mais uma distinção realizada por ele, não na teoria, mas

na prática, as luzes coloridas, que servem para criar diferentes “atmosferas” na

cena.

45 Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Op. Cit. p.15.

46 Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Op. Cit. p.15.

47 Keller, Max. Light Fantastic. The Art and Design of Stage Lighting. Op. Cit. p. 16.

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JACOPO BAROZZI DA VIGNOLA (1507 – 1573)

Arquiteto e artista plástico. Autor do tratado Le Due Regole Della

Prospecttiva Pratica. Vignolla prova, através da geometria, que o ângulo ideal de

incidência da luz sobre um objeto é a diagonal.

Todo iluminador com alguma prática sabe a importância do ângulo de 45º

(diagonal) para a incidência da luz. A diagonal é conhecida como o “ângulo

perfeito” porque revela por igual duas 48 ou três dimensões49 das formas

iluminadas. Desta forma aumenta a percepção do volume, dando profundidade e

harmonia ao conjunto.

Muito utilizado, este cálculo matemático é fundamental para o

posicionamento dos refletores da “luz geral”, que normalmente é desenhada para

criar uma incidência de 45º de um lado e do outro do palco e por isso mesmo é

conhecida também como “geral cruzada”. A mesma relação matemática é

utilizada para a escolha do local para a instalação das varas de luz de um teatro

em construção.

LEONE DE’SOMMI (1525/27– 1586/92)

Leone de’Sommi, segundo descrição de Jacó Guinsburg:

Dramaturgo, encenador, teórico do teatro, poeta tanto em hebraico quanto em italiano, participou intensamente da vida teatral renascentista com numerosas criações dramáticas e cênicas e com concepções teatrais cuja originalidade vem sendo destacada crescentemente pelos estudos críticos modernos.50

Alem dos poemas, canções e peças de teatro, incluindo pastorais,

intermédios e comédias, Leone de’ Sommi escreveu uma importante obra de

teoria teatral em forma de diálogo – Dialoghi in Matéria di Representationi

48 Incidência a 45º da aresta de um cubo. 49 Incidência a 45º do canto do cubo. 50 Guinsburg, Jacó; Leone de’Sommi: Um Judeu no Teatro da Renascença Italiana. São Paulo: Ed Perspectiva, 2001, P.16.

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Sceniche – onde discute suas concepções e práticas sobre o fazer teatral. Nestes

diálogos, entre vários aspectos da cena, expõe suas idéias sobre a iluminação do

palco e também da platéia, propondo uma função para a iluminação no

espetáculo absolutamente inovadora para sua época. Para além da questão da

visibilidade, afirma que a quantidade e qualidade da luz têm influência na

atmosfera da cena e na relação emocional entre o espectador e o espetáculo.

Transcrevemos a seguir alguns trechos da sua obra por considerá-los de suma

importância para esse trabalho:

SANTINO: ...uma vez que em vosso palco já estão acesas tantas luminárias que se começa a discerni-lo muito bem e ele constitui por si mostra muito bonita, desejaria como primeira coisa, Messer Verídico, que nos dissésseis para que servem e onde têm origem todas essas lâmpadas que se acedem pelos tetos das casas em cena (...) para iluminar o palco vejo aqui tochas em quantidade suficiente.

VERIDICO – É preciso que também o arquiteto, pela parte que lhe cabe na comédia, represente regozijo e júbilo; e visto que o uso moderno e antigo é, e sempre foi que se acendam, como signos de alegria, fogos e luminárias pelas ruas, nos telhados das casas e no alto das torres, de onde se originou depois este uso no teatro.

SANTINO – Às tragédias, portanto, não conviriam tais luminárias?

VERIDICO – Nem desconviriam talvez em tudo (...). Foi o que se deu numa tragédia que dirigi entre outras. A cena permaneceu iluminada da forma mais jovial durante todo o tempo em que os sucessos da história corriam de maneira feliz. Quando começou o primeiro caso doloroso (...) fiz com que (como eu havia preparado) naquele instante a maioria das luzes do palco, que não serviam à perspectiva, fossem veladas ou apagadas, coisa que causou profundíssimo horror no peito dos espectadores.51

O trecho citado acima explicita não só o efeito da luz sobre a emoção da

platéia, como a autoria e consciência deste efeito - ou seja, a luz é linguagem

consciente na mão do diretor e do arquiteto (leia-se aqui em relação ao 51 Sommi, Leone de’. Quatro Diálogos em Matéria de Representação Cênica in Guinsburg, Jacó; Leone de’Sommi: Um Judeu no Teatro da Renascença Italiana. São Paulo: Ed Perspectiva, 2001, p. 111, 112. (IV Diálogo)

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espetáculo a função moderna do cenógrafo, acrescida do cuidado com as luzes).

Podemos apreender também deste trecho a distinção entre diferentes funções da

iluminação, cada qual com suas fontes de luz específicas e separadas: existem as

tochas que iluminam o palco, as luzes que servem à perspectiva (provavelmente

luzes laterais) e as lâmpadas espalhadas “pelos tetos das casas em cena”, que

fazem parte da própria ficção – “signos de alegria” – uma luz com função

atmosférica. Cabe notar ainda que mais do que a quantidade ou a qualidade da

luz, em si, o que interessa a Leone de´Sommi é a transformação em cena desta

quantidade ou qualidade da luz, ou seja, é no movimento da iluminação, que ele

obtém o forte efeito emocional desejado sobre a platéia.

Além da iluminação do palco, Leone de´Sommi também estuda a

localização e intensidades das fontes luminosas da platéia. Preocupa-se em

reduzir e ocultar as fontes de luz da sala dos espectadores porque sabe que a

penumbra na platéia tem como efeito direto, por contraste, tornar o palco mais

iluminado aos olhos dos espectadores:

SANTINO – Chama a minha atenção, Messer Veridico, que sobre essa vossa cena existam muitíssimas luminárias, ocultas e à vista; no entanto, aqui, na sala, não há arranjos para colocar mais do que doze tochas ali, de pé; não consigo imaginar a causa, pois nesta sala, tão grande, já cheguei a contar em muitas ocasiões duzentos e cinqüenta tochas.

VERIDICO – Como sabeis é coisa natural que o homem, encontrando-se no escuro, veja melhor algo que reluza ao longe, do que o faria estando em lugar iluminado, porque a vista vai mais unida ao objeto, sem vaguear, ou, segundo o parecer dos peripatéticos, o objeto vem apresentar-se mais unidamente ao olho. Por isso instalo pouquíssimas luminárias na sala, ao mesmo tempo em que tento tornar o palco resplendente; e inclusive estas poucas, disponho-as atrás dos ouvintes, a fim de que a interposição de tais luzes não ofusque a visão dos espectadores, e por cima delas abro também, como vedes, os espiráculos, de modo que não possam com a fumaça causar dano em parte alguma.52

52 Idem Ibidem, p. 114. (IV Diálogo)

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Esta preocupação inaudita com o olhar da platéia prenuncia uma

importante questão para o teatro moderno – a relação entre a cena e o público,

expressa também pela separação luminosa, ou não, entre o palco e a platéia. 53

ÂNGELO IGGEGGNERI (1550 – 1613)

Dramaturgo, teórico e diretor de Teatro 54, escreveu o Discorso della poesia

rappresentativa e del modo di rappresentare le favole sceniche. Iggeggneri tentou

pela primeira vez, em 1598, apagar totalmente a luz da platéia deixando-a no

escuro, com o objetivo de concentrar a atenção do público na representação.

Porém não teve êxito. Hamilton Saraiva explica essa impossibilidade por razões

técnicas: Isso [apagar a luz da platéia] não foi possível

realizar, em virtude das dificuldades de se apagar e acender, em cada ato, os grandes lustres suspensos 55

Denis Bablet, no entanto, acrescenta um aspecto social:

Numa sala iluminada o espectador não é senão um dos elementos de uma sociedade vinda para ver e fazer-se ver, duma ponta a outra da ferradura da sala clássica. 56

Os arquitetos e dramaturgos-encenadores do Renascimento relacionam a

luz à percepção do espaço, preocupam-se com a afinidade entre a luz e a

atmosfera da obra dramatúrgica e a conexão entre a luz do palco e a luz da

53 “Assim Leone de’Sommi evidencia um senso de iluminação cenográfica que, embora limitado quanto aos recursos técnicos, pouco fica a dever às premissas básicas da moderna encenação. (...) Pois a sua recomendação de manter o auditório no escuro, numa época em que costumava em geral iluminá-lo (...) desenham, na verdade, mais do que simples disposições pragmáticas, uma visão incomum do caráter do espetáculo como fenômeno teatral e da relação que este deve estabelecer com seus receptores.” Guinsburg, Jacó; Leone de’Sommi: Um Judeu no Teatro da Renascença Italiana. São Paulo: Ed Perspectiva, 2001, p. 41. 54 "Angelo Ingegneri si considerava ed era, oltre che autore un regista: a lui si deve la messa in scena dell' Edipo Rei, con cui si inaugurò il Teatro Olimpico di Vicenza” C.Molinari, L'attore e la recitazione,Roma-Bari, Laterza,1992, p.30. 55 Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990.Pag. 16. 56 Bablet, Denis. “A Luz no Teatro” in O Teatro e sua Estética. Lisboa: Ed. Arcádia, 1964. p. 295.

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platéia. Concebem técnica e arte em conjunto. Integram a prática com a teoria.

Ou seja, concebem a iluminação cênica, assim como os demais elementos do

espetáculo sob uma ótica global, onde tudo se relaciona formando um conjunto de

significações. Nunca na história do teatro estivemos tão próximos da concepção

da encenação moderna e estes artistas múltiplos são o arquétipo do homem de

teatro que Craig desejou como encenador, capazes de conceber, construir, pintar,

escrever, dirigir e ainda teorizar sobre a própria arte. É por isso que no raiar da

encenação moderna, os encenadores retomarão as concepções dos homens de

teatro do Renascimento e do Barroco (séculos XVI e XVII), buscando renovar

uma visão total do espetáculo, relacionando as suas técnicas aos seus sentidos

profundos. Como em Shakespeare, as razões do Homem, do Estado e do

Cosmos estão em profunda aliança, se alguma coisa sai do lugar, tudo desaba.

2.5 A CLAREZA DO RENASCIMENTO DISSOLVE-SE NOS CONSTRASTES DO BARROCO

Costuma-se designar com o nome de barroco o estilo no qual se dissolveu a Renascença ou – como se diz muitas vezes – o estilo que resultou na degeneração da Renascença 57 Wölfflin, Heinrich

MUNDO –... Descerrarei essa névoa, e ao fugir o véu escuro, para iluminar o teatro, (porque sem brilho profuso não há festa), brilharão dois luminares, diurno farol do dia seja um, e, assim, da noite noturno farol o outro seja, em quem ardam mil luminosos carbúnculos que sobre a face da noite dêem vivificadores influxos 58 Calderon de La Barca

A contradição entre o racionalismo terreno da Antiguidade e a fé no

sobrenatural da Idade Média – que estivera latente no Renascimento - explode no

Barroco em um contraste feroz entre a luz e a sombra.

57 Wölfflin, Heinrich. Renascença e Barroco; São Paulo: Ed. Perspectiva, 1989, p.25. 58 Calderon de la Barca, Pedro. O Grande Teatro do Mundo; trad. Maria de Lourdes Martini, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988, p.4.

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“Ao contrário da Renascença, o Barroco não foi acompanhado de teoria. O

estilo se desenvolve sem modelos.” 59 Tendo a transgressão das regras formais

da Renascença por impulso e o contraste como princípio, no Barroco tudo leva ao

exagero emocional e ao movimento advindo da tensão entre contrários. A

transformação é a palavra mágica do barroco:

Na era Barroca a linearidade clara e clássica da Renascença adquiriu apelo emocional, a linha reta – tanto nas estruturas quanto no pensamento – dissolveu-se no ornamento, a clareza deu lugar á abundância, a auto-confiança á hipérbole. Os conceitos vestiram os trajes da alegoria, e a realidade perdeu-se no reino da ilusão. O mundo se tornou um palco, a vida transformou-se numa representação 60

A noção da vida como representação, recorrente e subjacente ao Barroco,

leva, por conseguinte, a Representação, em suas várias formas, a tornar-se a

expressão maior da própria vida, e, portanto, a assumir importante papel na

cultura e no modo de vida do século XVII.

Das danças da corte surge o Ballet61. Da revivicação do drama antigo no

espírito da música surge a ópera que se espalha com pompa e circunstância por

todas as cortes da Europa, levando com ela arquitetos, cenógrafos e

cenotécnicos italianos.

Na pintura e na arquitetura barrocas o estilo pictórico 62 baseia-se nos

contrastes de claro e escuro e no movimento livre das formas.

59 Wölfflin, Heinrich. Renascença e Barroco; São Paulo: Ed.Perspectiva, 1989, p.34. 60 Berthold, Margot. História Mundial do Teatro; São Paulo: Ed.Perspectiva, 2003, p.322. 61 Na França, essa idéia renascentista de “fusão das artes” gerou uma forma de teatro especificamente adequada à corte e à alta sociedade. Nesta nova forma teatral a parte principal dizia respeito à dança: o ballet de cour” Berthold, Margot. História Mundial do Teatro; São Paulo: Ed.Perspectiva, 2003, p.330. 62 “O estilo pictórico visa à impressão do movimento. A composição segundo massas de luz e sombra é o primeiro momento desse efeito; menciono como segundo a dissolução da regra (estilo livre, desordem pictórica).” Wölfflin, Heinrich. Renascença e Barroco; São Paulo: Ed. Perspectiva, 1989, p.42.

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No teatro barroco os contrastes também passam a ser utilizados de forma

consciente. As mudanças de luz63 e os efeitos visuais tomam grandes proporções,

atraindo um público que vai ao teatro não apenas para acompanhar as histórias e

escutar o texto, mas para impressionar-se com o “espetáculo”.

Essa característica “espetacular” do teatro barroco e da ópera fermenta

grandes transformações no espaço cênico e suas condições técnicas.

O BARROCO E A TRANSFORMAÇÃO DO PALCO RENASCENTISTA EM

TEATRO ITALIANO

Batista Aleotti, arquiteto da corte de Ferrara desenvolveu mudanças

importantes no palco renascentista, rumo ao palco italiano: inventou os bastidores

nivelados deslizantes e aumentou a área de atuação em profundidade até a

parede do fundo “característica do melhor período do teatro barroco e decisiva

ruptura formal com a área de ação transversal do proscênio da Renascença” 64

As mudanças seqüentes na profundidade do palco Renascentista; a invenção

dos bastidores em nível e deslizantes 65; o aperfeiçoamento da maquinaria de

palco e o desenvolvimento da cenotécnica, a invenção de máquinas cênicas e

sua difusão, a mobilidade das varas cenográficas 66; a criação dos primeiros

refletores à luz de velas e a iluminação cada vez mais elaborada; são

responsáveis pela invenção do Palco Italiano. Assim como pelo estabelecimento

desta forma de edifício teatral como modelo de Teatro e por sua multiplicação por

todo o mundo.

63 “No espírito do alto barroco a característica dominante de todas essas produções era o efeito sensível das mudanças de luz” Berthold, Margot. História Mundial do Teatro; São Paulo: Ed.Perspectiva, 2003, p.338. 64 Berthold, Margot; História Mundial do Teatro, Ed Perspectiva, São Paulo, 2003; p.335. 65 “Os bastidores em nível e deslizantes constituíram a grande novidade do teatro barroco(...)Esse cenário consistia em uma série lateral de molduras de ripas revestidas de tela pintada que deslizavam sobre trilhos.” Berthold, Margot. História Mundial do Teatro; São Paulo: Ed.Perspectiva, 2003, p.335. 66 Aliando os conhecimentos de arquitetura e cálculo às técnicas navais da época das grandes navegações.

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OS GRANDES MESTRES DA CENOGRAFIA E AS TÉCNICAS DE ILUMINAÇÃO

NO SÉC XVII

NICOLA SABBATTINI (1574 – 1654)

Arquiteto, cenógrafo e ‘fabricante de máquinas e cenários de teatro’. Grande

teórico da construção teatral, cenotécnica e luminotécnica do século XVII,

escreveu o mais importante tratado de técnica teatral do seu tempo, o livro

“Pratica di Fabricar Scene e Maquine ne Teatri” (1638).

Neste livro Sabbattini descreve

em detalhes várias máquinas para

realizar efeitos e truques teatrais,

incluindo protótipos de equipamentos

de iluminação cênica que antecipam

os equipamentos utilizados e

produzidos no século XX como, por

exemplo, um protótipo do primeiro

refletor de teatro e outras invenções

e “traquitanas” utilizadas por ele, que

estão descritas a seguir:

Para diminuir e aumentar

a intensidade da luz Sabbattini

inventa um dispositivo com

cilindros de metal que descem e

sobem sobre as velas

(considerado o primeiro

‘dimmer’ da iluminação cênica).

Chamado de método Sabbattini

de controle das intensidades.

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Em seus escritos sugeriu um telão branco no fundo da cena para a criação

do céu e fundo infinito, idéia que será utilizada e modificada por vários artistas da

cena, até transformar-se no ciclorama do palco italiano.

Sabbattini foi o primeiro a escrever contra as luzes da ribalta, como farão

mais tarde os encenadores do fim do século XIX, em nome da realidade do

ângulo de incidência da luz. De qualquer modo este texto, além da crítica

propriamente dita, também atesta a prática comum da utilização da ribalta, como

a luz principal para iluminar os atores nesta época.

Uma primitiva invenção que ofusca e deforma os atores, com aquele tormento imediato sobre a vista e aquelas feias latas cheias de luzes que se colocam ao pé da cena á vista de todos os espectadores e se carregam de lá para cá, de acordo com a necessidade. 67

Sabbattini inventou também o conceito e a prática da luz lateral. Ele

colocava as fontes de luz apenas de um lado do palco, como na iluminação

natural no fim da tarde, com o sol se pondo na coxia. Esse efeito denota a

escolha de uma linha principal de onde vem a luz, um ponto de vista, que

determina desenho, volume e movimento, a partir do contraste entre a luz e a

sombra.

JOSEPH FURTTENBACH (1591 – 1667)

Arquiteto e cenógrafo foi discípulo de Giulio Parigi em Florença. Construiu

a primeira casa de espetáculos civil da futura Alemanha, em 1641. Levou grande

parte das famosas maquinarias da Renascença e do Barroco italianos para o seu

teatro, incluindo luzes que podiam ser diminuídas, máquinas voadoras e um

dispositivo de sua invenção para “iluminar os espaços dos camarins atrás do

prospecto do fundo do palco e através de transparência” e assim incluí-los no

quadro cênico para efeitos espetaculares. Também criou um refletor, composto

por uma caixa de metal com uma vela dentro, respiradouro para o calor e a

fumaça e uma alça que permitia pendurar o dispositivo e afiná-lo. A superfície

67 Sabbattini, N. apud Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990. p. 19.

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interna deste projetor tem uma forma composta por ângulos contíguos e desiguais

com o objetivo de difundir a luz refletida.

IÑIGO JONES (1573 – 1652)

Inglês de origem espanhola, arquiteto e discípulo de Palladio. Levou muitas

técnicas do barroco italiano para o teatro inglês. Há evidências escritas de que

por volta de 1600 ele teria começado a usar luzes de chão colocadas na borda do

Proscênio, a ribalta. A partir de 1605 Iñigo Jones começa a construção de teatros

á Italiana na Inglaterra. Data de 1610 o primeiro espetáculo inglês realizado á

noite em um desses teatros.

2.7 O ROMANTISMO E O APERFEIÇOAMENTO DA CAIXA MÁGICA DE ILUSÕES

Na passagem do século XVII para o século XVIII a quantidade de fontes de

luz e os ângulos de incidência utilizados já são múltiplos: ribalta, laterais, luzes

frontais em grandes candelabros, inclinadas, de cima, penduradas no fundo do

palco como contra luz ou por trás de tecidos em sombra ou transparência.

Sempre á luz das chamas. Os efeitos cenotécnicos e as transformações na

iluminação durante o espetáculo maravilhavam as platéias. A grandiloqüência do

Absolutismo em pleno esplendor do fim, para gozo da burguesia ascendente, fez

do palco italiano a grande “caixa-mágica de ilusões”.

Do ponto de vista técnico a grande mudança trazida pelo séc. XVIII é a

utilização generalizada das lâmpadas ou lampiões a óleo em substituição às

velas, com maior controle da chama:

As lâmpadas a óleo surgiram no século XVIII, e também os refletores de brocal, mica (malacacheta) e cobre polido, com a função de espelhar e refletir a luz 68

No fim do século XVIII Ami Argand empreende melhorias nos lampiões à

óleo: Regulagem da chama e a cúpula de vidro com uma abertura superior

aumentam o controle sobre as intensidades e a segurança dos teatros. Essas 68 Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990.Pag. 34.

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cúpulas de vidro também possibilitam a mudança da cor da luz, pois podiam ser

pintadas com anilina transparente. Os lampiões Argand são produzidos em série,

assim como o lampião Astral francês, e os produzidos por Bernard Carcel.

Com a revolução industrial o teatro Inglês tem um grande impulso

econômico, levado pela burguesia e as classes médias em ascensão, o teatro vira

um negócio, como tudo o mais, muito lucrativo e caro, com um grande

investimento técnico.

Vale à pena citar, como exemplo, a trajetória do ator e produtor David

Garrick para acompanharmos as transformações do teatro Inglês. Depois de uma

longa viagem pela Europa, Garrick introduziu um novo sistema de iluminação no

Drury Lane Theatre, que passou a ser dos teatros melhor equipado da Europa,

por muito tempo:

David Garrick, em 1765, sugeriu que se retirassem as fontes visíveis do palco do Drury Lane em Londres, preferindo usar luzes laterais, ribalta e, inclusive, iluminação vinda de cima 69

Escondendo todas as fontes de luz dos espectadores tornou, por contraste,

o palco mais iluminado e de maneira mais suave (já que as fontes de luz visíveis

ofuscam a vista da platéia). O resultado aumenta significativamente a sensação

de realidade da cena. Em 1771 ele convida Phillip de Loutherbourg para desenhar

cenários para o Drury Lane. Este brilhante cenógrafo francês explora a relação

entre a cenografia e a luz, criando atmosferas coloridas e efeitos óticos a partir de

reflexões, rebatimentos e transparências:

Loutherbourg se utilizava de sedas coloridas transparentes como filtro de cor. Esse cenógrafo sugeriu que se usasse no palco a lua e o sol refletidos em uma lâmina de água, que fizesse parte da cenografia. (...) Em 1785, Loutherbourg e as companhias de balé iniciam a utilização de gaze para efeitos de cena, desenhando e pintando telas sobre as mesmas.70

69 Camargo, Roberto Gill. A Função Estética da Luz. Sorocaba: Ed. Fundo de Cultura, 2000; pag. 17. 70 Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990, pags. 35 e 36.

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O princípio do jogo de luzes em gaze transparente criado por Loutherbourg

é importantíssimo para a história da luz e da cenografia porque será retomado

inúmeras vezes, com funções totalmente diferentes, em experiências importantes

de momentos distintos da história. O princípio é extremamente simples, mas parece

uma mágica... Uma tela ou cortina de tule ou gaze transparente, se iluminamos o

que está atrás dela (sem jogar nenhuma luz no tecido) a tela desaparece, fica

absolutamente transparente; se jogamos luz pela frente, batendo na tela, ela fica

opaca e o que está por trás desaparece, se jogarmos luz de trás teremos uma

sombra... Esse princípio cria vários efeitos como profundidade, fusão ou

sobreposição de imagens, cores ou formas.

Loutherbourg desenvolve um estilo tipicamente romântico, mergulhando o

palco em atmosferas banhadas de leveza através do jogo de luzes e cores sobre

telas transparentes. Essas experiências têm a vantagem de serem realizadas no

âmbito da dança, mais abstrato e mais livre para digressões formais do que o teatro

falado, preso à verossimilhança.

A iluminação cênica no teatro do séc. XVIII é um desenvolvimento do que

havia acontecido na Itália, no século anterior. Embora em constante “progresso”

técnico, não sofre nenhuma mudança conceitual.

Durante a ascensão da burguesia os teatros deixam de ser uma

exclusividade das cortes. Teatros são construídos pelos Estados Nacionais ou

pelas municipalidades, pertencendo não mais a castelos ou a grandes famílias,

mas à cidade e aos cidadãos. No entanto a forma do espetáculo não sofrerá –

como a política – uma reviravolta, muito pelo contrário. 71

Do ponto de vista do espetáculo em sua visualidade, a caixa de ilusões do

palco italiano – que foi urdida no renascimento e ganhou fama e forma no barroco

– progride tecnicamente no século XVIII, com filosofias e estilos literários

variados, mas numa linha contínua rumo á “ilusão da verdade” – que por sua vez

71 “A classe média, de espírito racionalista, moderada e disciplinada, por seu lado, prefere, freqüentemente, as formas não complicadas (...). O seu naturalismo mantém-se, na maioria dos casos, dentro de limites relativamente estreitos, e restringe-se ordinariamente ao retratar racionalista da realidade, isto é, de uma realidade sem contradições internas.” Hauser, Arnold. História Social da Literatura e da Arte; São Paulo: Mestre Jou, 1980-1982.p. 782.

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prosseguirá de forma coerente por todo o século XIX, pendendo ora para o

clássico ora para o romântico, mas sem rupturas formais significativas, até o início

do século XX. Nestes quatro séculos, numa curva ascendente de tecnologia, a

iluminação cênica terá por parâmetro único a imitação da natureza.

2.7 O RAIAR DO SÉCULO XIX E A LUZ VIVA DO GÁS

No raiar do século XIX – entre óperas, operetas, dramas burgueses,

musicais ingleses, comédias lacrimosas e vaudevilles – o palco italiano se firma

como modelo de teatro e progresso técnico a serviço do espetáculo. Na primeira

metade do século a grande novidade da iluminação cênica será a introdução da

luz com chama a gás.

Os grandes teatros apressam-se em instalar seus sistemas de tubulação e

bicos de gás, o que significava um grande investimento em infraestrutura e

manutenção, pois cada teatro tinha que prover de combustível seu próprio

sistema de iluminação porque ainda não havia suprimento público de gás.

A luz a gás é usada pela primeira vez no palco em 1816 no Lyceum

Theatre, em Londres e na seqüência no Chestnut Street Theatre na Filadelfia 72,

em 1917 será a vez do Drury Lane Theater e do Convent Garden, em 1922 chega

à Operá de Paris e em 1843 a Commedie-Française se rende à novidade. No fim

da primeira metade do século quase todos os grandes teatros já utilizavam a

iluminação a gás, sozinha ou em parceria com as antigas instalações de velas e

lâmpadas a óleo.

A chama do gás oferece uma luz mais intensa, constante e menos

amarelada que as demais fontes de luz artificial experimentadas até então,

permitindo uma visão mais clara e uniforme da cena.

72 Sobre o primeiro teatro a usar a luz a gás, encontrei informações desencontradas: os autores americanos como Tim Streader e John Williams afirmam ser o Chesnut Street Theatre da Filadelfia, já os ingleses como Victor Glasstone, afirmam ser o Lyceum Theatre de Londres. Preferi confiar na pesquisa de Hamilton Saraiva, cuidadosa e desinteressada na contenda. Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990, p. 43.

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As pesquisas em relação à composição química do gás e às formas do

bico onde se dá a combustão foram estimuladas pela necessidade, tornando as

técnicas de obtenção de luz a gás, cada vez mais diversificadas e eficazes para a

iluminação cênica:

Em 1816 Thomas Drummond inventa a luz de carbureto ou limelight, como

é comumente conhecida. Segundo o dicionário, trata-se de:

Uma luz branca e brilhante produzida esquentando carbureto (lime) em uma chama forte, que era normalmente usada nos teatros para iluminar o palco73

Segundo a descrição técnica de iluminadores: Dois cilindros de gás comprimido (um de hidrogênio

e um de oxigênio) dirigidos contra uma coluna de carbureto, que é então aquecida para produzir uma grande incandescência 74

Essa luz será usada pela primeira vez em 1830 no Convent Garden. Após

a segunda metade do século XIX, com a popularização da luz de carbureto nas

ribaltas de todo o mundo (mesmo anos depois da introdução da eletricidade no

teatro), “limelight” tornar-se-á sinônimo de “luzes da ribalta”, nome imortalizado

pelo filme homônimo de Charles Chaplin.

A mistura de outros componentes químicos ao gás pode modificar as cores

da chama viva do gás na própria fonte de luz75, sem necessitar de filtros que, para

“colorir” a luz, diminuem brutalmente a sua intensidade e brilho.

Mas a grande novidade da luz a gás para a iluminação cênica do início do

século XIX é o controle central sobre as intensidades. Toda a tubulação do gás

passa por registros que podem ser controlados, aumentando ou diminuindo a

intensidade da luz em cena, dentro de um mesmo ato e sem ser necessário

acessar fisicamente cada fonte de luz.

73 Longman Dictionary of Contemporary English; London: Longman Group, 1978, p.636. 74 Streader, Tim E Williams, John A. Create Your Own Stage Lighting. Op.Cit. p. 16.

75 As experiências neste sentido não puderam ser colocadas em prática ou se desenvolver mais na época porque a iluminação a gás nos teatros durou pouco mais de 50 anos. Pesquisas recentes (a partir dos anos 1960) com lâmpadas de descarga mostram que reações químicas com gases diversos propiciam luzes com espectros de cor variados.

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Porém, com a chama a gás ainda não é possível apagar completamente as

luzes e acendê-las novamente no correr do espetáculo e o perigo de incêndios,

que já era grande com as velas e lâmpadas a óleo, aumenta consideravelmente

com o gás, altamente inflamável.

Apesar de fugaz, a luz viva do gás teve seus amantes, que tiraram lindas

atmosferas de seu brilho vibrante. O mais conhecido deles e que tomaremos de

exemplo, foi também o pai artístico de Edward Gordon Craig. Seu nome é Henry

Irving, ator, diretor, produtor e mestre da luz a gás.

Henry Irving adorava as cenas impetuosas, os efeitos emocionais e as

atmosferas: O Lyceum [teatro de Irving]foi o primeiro teatro

de Londres a manter as luzes de serviço diminuídas durante as apresentações. Isto aconteceu puramente por razões de atmosfera – para criar um senso de magia e para mergulhar emocionalmente a platéia dentro da peça76

Usou com liberdade o efeito de movimento das intensidades possibilitado

pelo sistema a gás, deixando a atmosfera “respirar” com a peça, criando semi-

obscuridades ou deixando a luz brilhar forte, como acontece com as limelights,

quando necessário. Para usar do movimento das cores durante o espetáculo de

forma mais sutil, dividiu as ribaltas em diferentes sessões, com cores e controles

diferentes, podendo assim usá-las separadamente ou em conjunto. Foi tão

apaixonado pela luz viva do gás que se recusou por anos a mudar sua prática

para a luz elétrica, considerada por ele como uma luz dura e sem vida.

Mas, como é intrínseco à própria idéia de tecnologia um constante superar-

se a si mesma, tornando a novidade de hoje obsoleta amanhã; a luz a gás, antes

mesmo de seu clímax, foi substituída pela luz gerada a partir da energia elétrica,

mais econômica e segura, portanto mais eficiente. Não foi a qualidade da luz que

levou à troca tão rápida de uma técnica por outra, mas a sua eficiência do ponto

de vista econômico – razão fundamental para o capitalismo do século XIX, em

plena ascensão.

76 Innes, Christopher. Edward Gordon Craig A vision of the Theatre. Overseas Publishers Association, 1996, p.20.

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CAPÍTULO 3

A ELETRICIDADE ENTRA EM CENA

A luz elétrica não foi descoberta de repente, como uma idéia brilhante ou

uma iluminação divina, conforme nos conta a mística das invenções: um dia,

durante o sono embaixo de uma árvore, cai uma maçã na cabeça de Newton e

como resultado ele entende a lei da gravidade; ou, Thomas Edson vê um raio no

céu e acende uma lâmpada na cabeça do gênio, estava descoberto o princípio da

luz elétrica. Ou então, como é comum ver descrito nos manuais de iluminação,

principalmente os americanos, Thomas Edison inventa a lâmpada incandescente

em 1879, e em 1880 os teatros começam a usar a luz elétrica.77 Ao contrário,

trata-se de um processo longo de estudo da energia elétrica que culmina com

várias experiências e aplicações práticas durante o século XIX e inclui duas

tecnologias diferentes e bastante usadas no teatro: a lâmpada de arco-voltaico

(desde 1849) e a lâmpada incandescente (desde 1879) 78.

A primeira experiência pública com o arco-voltaico – transmissão de

elétrons pelo ar entre dois pólos com diferentes voltagens, criando um “arco de

luz” (mesmo princípio do raio) – é de 1808, na Inglaterra 79.

Em 1841 o físico Leon Foucault usou o mesmo princípio para substituir a

fonte de luz em um microscópio solar. A primeira demonstração pública do

projetor a arco-voltaico inventado por ele aconteceu à noite na place de la

77 É comum ler que a luz elétrica chega ao teatro a partir da descoberta da lâmpada incandescente, ou, até mesmo, erro crasso, que a luz elétrica foi inventada em 1879. Às vezes não existe erro, mas favorecimento de informações como é o caso do famoso manual de Tim Streader e John Williams [Create your own Stage Ligting, Op. Cit. pp.16-17] que cita a experiência inglesa e francesa com o arco-voltaico, no meio de outras inovações e usos da iluminação com gás, na seqüência abre um novo título chamado “A chegada da eletricidade” sobre a descoberta de Thomas Edison e suas conseqüências. Com o tempo o senso comum mistura lâmpada incandescente com lâmpada elétrica e daí para luz elétrica. 78 As lâmpadas de arco-voltaico são usadas nos canhões de luz e grandes aparelhos de projeção em teatro, por sua intensidade e temperatura de cor, mais branca que a lâmpada incandescente, até os anos 1960. São substituídas pelas lâmpadas de descarga nos anos 1970. 79 “... a carbon arc (first demonstrated by Sir Humphry Davy em 1808).” Streader, Tim E Williams, John A. Create Your Own Stage Lighting. New Jersey: Prentice Hall Inc., 1985, p. 16.

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Concorde, em Paris no fim de 1842. Este aparelho foi aperfeiçoado pelo óptico

Jules Duboscq, que acrescentou um refletor parabólico ao conjunto e criou “uma

das primeiras aplicações da ciência no teatro, isto é o emprego da luz elétrica” 80.

A luz elétrica estréia no palco em 1849, na ópera Profeta, de Meyerbeer –

Seu primeiro papel no teatro foi, significativamente, representar o sol nascente.

Sobre essa estréia da eletricidade no teatro, comenta Denis Bablet em seu artigo

A Luz no Teatro:

Esse primeiro emprego da eletricidade adquire o valor de um símbolo: tratava-se da imitação de um fenômeno natural e de um efeito destinado a maravilhar o espectador. Durante perto de cinqüenta anos não se atribuirá outro papel á luz elétrica 81

Nos anos seguintes o efeito foi replicado em várias óperas da Europa.

Desde então as lâmpadas e a eletricidade começam a visitar constantemente o

teatro, sempre no papel de efeito especial, mágica para impressionar a platéia.

Marie Hahm-Bablet escreveu um anexo sobre Arte e Técnica no Fim do

século XIX no primeiro volume das obras completas de Adolphe Appia, onde inclui

alguns textos e imagens do “Catálogo dos aparelhos utilizados na produção de

fenômenos físicos no teatro por J. Duboscq, óptico, chefe do serviço de

iluminação elétrica na Ópera, Paris.” 82

Reproduzimos a seguir, os desenhos de alguns destes aparelhos,

acompanhados de uma pequena descrição que os acompanha na edição de

Marie Hahm-Bablet, tiradas do próprio catálogo de Jules Duboscq, para termos a

dimensão da tecnologia dos projetores com lâmpada a arco-voltaico e de seus

empregos, quarenta anos antes da invenção da lâmpada incandescente.

80 Duboscq, J. “Catalogue des appareils employés pour la production des phénomènes physiques au Théâtre” apud Bablet-Hahm, M.L. “Annexe: Art et Technique à la Fin du XIXe Siècle” in Appia, Adolphe. Oeuvres Complètes, Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.1983. p.358.

81 Bablet, Denis; A Luz no Teatro in O Teatro e sua Estética (org.e trad. Redondo Júnior). Editora Arcádia, Lisboa, 1964, p. 291. 82 Duboscq, J. apud Bablet-Hahm, M.L. Art et Technique à la Fin du XIXe Siècle. in Annexe Appia, Adolphe. Oeuvres Complètes, Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.1983. p.357.

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Lâmpada de Arco-voltaico

Aparelho destinado a produzir

o efeito do Sol levantando (de O Profeta)

(1849)

Aparelho foto-elétrico com sua lâmpada, destinado a

perseguir um personagem, que permite dirigir os

raios luminosos para todos os sentidos (1860)

Aparelho para produzir o “fenômeno do arco-íris” (1860)

Primeiro aparelho para projeção de imagens

reais para “ampliação de provas fotográficas

sobre vidro” (1864)

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Embora a iluminação principal tenha permanecido a gás na grande maioria

dos teatros, na segunda metade do século XVIII a eletricidade já faz parte da

tecnologia dos efeitos especiais das casas de Ópera de toda a Europa, como diz

o próprio Jules Duboscq, em seu Catálogo de 1864:

Tornou-se raro que um balé ou uma ópera, que exijam uma encenação importante, tenham sido apresentados sem a intervenção de um efeito qualquer da luz elétrica (...)Os teatros imperiais e aqueles de primeira ordem seguem sob o impulso da ópera; e o arco-voltaico passa definitivamente aos costumes cênicos. 83

Como pudemos perceber pelos desenhos técnicos, além dos aparelhos

para realizar “fenômenos físicos”, que imitam os fenômenos da natureza como o

Sol nascente e o arco-íris, existe um “projetor de perseguir”, o que chamamos em

português de canhão seguidor. A descrição do primeiro uso desses projetores de

Moisés, apresentado na Ópera de Paris, em 1860, relata suas atribuições:

Na entrada da personagem principal, púnhamos sobre ela uma lâmpada de raio concentrado, articulado, que a seguia nos seus deslocamentos; dois outros projetores atrás dos cantos jogavam seus raios sobre a tenda no meio da cena; uma terceira lâmpada, no primeiro plano, iluminava igualmente na direção da sua tenda...84

Ou seja, já temos em cena na ópera, em 1860, projetores elétricos com

lâmpada arco-voltaico, fonte individualizada, sistema ótico e articulações para

movimento, que por vez criam em conjunto um desenho de luz móvel com

destaque de personagens e partes do cenário.

O último aparelho de que falaremos é um projetor de imagens para criar

“aparições fantásticas” 85. Ele funciona projetando e ampliando imagens de vidros

pintados ou impressos por meio fotográfico. É o mesmo princípio do projetor de

slides. Segundo uma descrição de Duboscq, ele tentou criar movimento a partir

de uma seqüência de imagens projetadas, mas não conseguiu o efeito desejado.

Mas seus aparelhos pioneiros foram aperfeiçoados na Alemanha por um mestre

da luz, Hugo Bähr, de Dresden, que conseguiu.

83 Idem Ibidem, p. 358. 84 Idem Ibidem, p. 362. 85 Idem Ibidem, p. 359.

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Hugo Bähr é considerado pelos alemães como o “pai da luz”. Filho de um

pintor de vidro começou por isso a trabalhar no teatro com as projeções à la

Duboscq. Apaixonado pelas lanternas mágicas inventou a partir delas uma forma

de criar movimento na projeção, através da eletricidade, a partir do movimento da

própria imagem que está sendo projetada, como as imagens de nuvem que

rodam na frente do sistema óptico ou os reflexos de água com imagens

trepidantes. Autor de “aparelhos eletro-ópticos para a realização de efeitos

luminosos e de aparição no teatro” 86 ficou famoso em toda a Europa. Criava

máquinas específicas, verdadeiras “traquitanas cênicas” luminosas, sob

encomenda, para os difíceis efeitos especiais que as óperas demandavam.

Também fazia consultorias em teatros de todo o mundo. Inventou centenas de

efeitos diferentes, como os movimentos de luz e projeção dos Meininger e os

efeitos especiais das grandes óperas de Wagner87 montadas em Bayreuth.

Por ocasião da sua temporada em Dresden em 1889 e 1890, Appia fez um

estágio de aprendizagem com Hugo Bähr no Königliches Hoftheater, que

influenciou muito suas concepções sobre a participação da luz e das projeções no

nos seus projetos de encenação do drama wagneriano, e em suas concepções e

conhecimentos técnicos de iluminação.

Se nos demoramos demais em descrições das experiências e aparelhos

luminosos criados por Jules Dusboucq e Hugo Bähr é porque os consideramos

como elos importantes de nossa cadeia, por várias razões, primeiro porque suas

experiências marcam a passagem da luz criada principalmente pelos cenógrafos,

seguindo uma tradição vinda da Renascença, para uma luz criada por cientistas,

visando, como mestre de ofício, desenvolvimentos fundamentalmente técnicos

que articulam a eletricidade, a física e a óptica para criar os primeiros aparelhos

de projeção de luz e imagens. Esse fato também marca o início de uma transição

que vai até aproximadamente a segunda década do século XX, entre as ribaltas,

gambiarras e tangões, que são aparelhos de luz aberta com várias fontes, sem

sistema óptico, que iluminam grandes áreas sem distinção e os refletores

86 Bähr, H. Catálogo de 1906 apud Bablet-Hahm, M.L. Art et Technique à la Fin du XIXe Siècle. Op. Cit. p.364. 87 “nuvens negras, rios de água, inundações, incêndios, chuva, neve, a cavalgada das Walkírias, aparições de feiticeiras, deuses...” Bablet-Hahm, Op. Cit. p. 364.

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individualizados, herdeiros desses aparelhos de Jules Dusboucq e Hugo Bähr,

como os refletores especializados que utilizamos hoje. Também porque estas

experiências de iluminação elétrica antes de 1879 mostram múltiplos caminhos de

desenvolvimento técnico e destroem uma versão corrente que quer crer que a

lâmpada de Edison é uma espécie de “Fiat Lux” da história da iluminação e não

uma parte de um processo técnico e artístico que tem muitas transformações e

reviravoltas.

Existe um longo caminho entre a pesquisa e sua transformação em ciência

aplicada, principalmente no que concerne aos meios de produção e da

generalização de uma nova tecnologia. Muitos homens no século XIX usaram a

eletricidade para gerar energia luminosa, vários deles coloram-na em prática.

Várias pesquisas procuravam a energia luminosa através da incandescência

gerada pela energia elétrica, alguns chegaram mesmo a inventar outras formas

de lâmpadas incandescentes na mesma época que Edison, em lugares diferentes 88.

Mas em 1879, o americano Thomas

Edison não somente inventa uma lâmpada

incandescente, de filamento de carbono, como

começa a produzi-la em escala de mercado,

tornando-a economicamente viável. A partir de

então o emprego da eletricidade se generaliza

como forma de iluminação em casas, lojas,

fábricas e, com impressionante rapidez, nos

teatros. Até porque eles já estavam preparados

para isso.

88 “Durante o século XIX, um grande número de inventores trabalhou nas lâmpadas incandescentes. Em 1891, o governo britânico registrou a patente para Frederick De Moeyns. Nesta mesma época, o engenheiro inglês J.W.Starr patenteou a lâmpada da Starr-King, com filamento de carvão. Sir Joseph W. Swan desenvolveu uma série de lâmpadas, entre 1848 e 1860.” Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990, p.61.

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No mesmo ano de 1879 o Teatro da Califórnia utiliza as lâmpadas

incandescentes produzidas pela Edison Electric &co e em 1881 o Teatro Savoy

de Londres já era totalmente iluminado pela eletricidade.89

Enquanto a instalação dos sistemas a gás demorou em torno de cinqüenta

anos, a troca destes pela energia elétrica acontece em larga escala em apenas

uma década90, entre 1880 e 1890, atestando a aceitação da novidade e a sua

eficiência técnica e econômica.

Apesar da rapidez com que a eletricidade foi incorporada aos teatros esse

processo começa como uma mera substituição, visando um melhor

aproveitamento da energia e o aumento das condições de segurança dos teatros.

A grande diferença da luz elétrica para a luz do fogo não está apenas na

quantidade ou qualidade da luz, mas no controle total das intensidades que ela

possibilita: pela primeira vez era possível criar em cena a luz e a não-luz. A luz

elétrica re-inventou o escuro no teatro, a pausa, o corte, o Black-out.

Possibilitando a partir daí o movimento entre a luz e seu oposto complementar, as

trevas. É do contraste em movimento que se constitui a escritura da luz no espaço

e no tempo, urdida de diferentes formas no decorrer do século XX, em crescente

desenvolvimento tecnológico. Enquanto as lâmpadas de arco-voltaico apagam e

acendem de uma vez, as lâmpadas incandescentes possibilitam o

desenvolvimento das várias formas de dimmers, que não somente acendem e

apagam as lâmpadas, mas controlam o fluxo de elétrons na corrente e por isso

permitem uma graduação sutil das intensidades de nada até a luz plena.

No entanto, a mudança de paradigma na iluminação cênica não se dará

pela simples utilização da luz elétrica, mas a partir da necessidade dos

movimentos de ruptura com a realidade do início do século XX de movimentar a

luz e escurecer o palco, escolhendo o foco da ação, editando o visível e

89 “Este teatro é iluminado totalmente pela eletricidade; é a frase que consta no programa do Teatro Savoy de Londres em 1881 e é notável dizer-se que se usaram também resistências (seis ao todo) montadas pela firma Irmãos Siemens” Frederick Benthan, The Art os Stage Lighting, Londres: Pitman Pub., p.37.

90 “De 1880 a 1890, os principais teatros europeus adoptam-na.” Bablet, Denis; A Luz no Teatro in O Teatro e sua Estética (org.e trad. Redondo Júnior). Editora Arcádia, Lisboa, 1964, p. 291.

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transformando assim a função da luz no espetáculo, tornando-a linguagem. A

tarefa não era fácil dada a proliferação de novas variáveis.

A multiplicação das fontes de luz, a invenção de aparelhos de iluminação

cada vez mais especializados para fazer diferentes usos ópticos das fontes de

luz, a relação entre as várias fontes e aparelhos, o controle conjunto e a

orquestração deste novo arsenal, até pouco desconhecido, não foi tarefa fácil

para eletricistas, ópticos, cenógrafos e diretores que enfrentaram de frente esse

desafio – desenvolver a iluminação teatral móvel. Na fronteira entre a técnica e a

estética, a iluminação teatral passou a envolver uma aplicação prática diária no

teatro das ciências da física, da óptica, da geometria, da eletricidade e da

eletrônica.

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CAPÍTULO 4

A REVIRAVOLTA OU O SURGIMENTO DA ENCENAÇÃO MODERNA E A LUZ

A estréia da luz elétrica no teatro, por si só, não revelou a real dimensão do

significado desta nova tecnologia para a história do espetáculo. As lâmpadas

incandescentes e a eletricidade, utilizadas a partir dos anos 1880, foram

consideradas primeiramente apenas como uma nova técnica, mais eficiente, para

realizar as mesmas funções: clarear a cena e copiar, com maior verossimilhança,

os efeitos da natureza, como o arco-íris ou o pôr do sol.

Trata-se, portanto, de começo, de simples técnica de substituição: os aparelhos de iluminação elétrica substituem, pura e simplesmente, os aparelhos de gás, cujos lugares ocupam. Não se descortinam ainda os seus poderes, não se adivinha que a luz elétrica possa tornar-se um meio de expressão dramática: reconhecida como um inegável progresso técnico continua a ser um fator puramente descritivo. Nem podia ser doutra maneira numa época em que tudo na encenação, representação do comediante, cenário, figurinos, iluminação, tem de reproduzir fielmente a natureza. 91

As resistências regulam as intensidades das lâmpadas incandescentes e,

portanto permitem o controle total do movimento da luz. Porém não pareceria

coerente para o teatro realista dos anos 1880 que a luz se movesse no meio da

ação, chamando atenção para sua existência fictícia ou criando uma

transformação artificial de tempo ou espaço. Na natureza o movimento da luz do

Sol é contínuo. Não muda de acordo com o que acontece na terra, não escurece

quando uma tragédia se anuncia, não brilha mais nos momentos de prosperidade

e alegria, não dá saltos, nem surpreende; apenas determina, com seu aparente

movimento lento e gradual, os dias e as noites; o que para nós, mortais, indica o

passar do tempo - inexorável e incontrolável.

91 Bablet, Denis. “A Luz no Teatro” in O Teatro e sua Estética (org. e trad. Redondo Júnior). Lisboa: Editora Arcádia, 1964, p. 292.

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Segundo Denis Bablet, essa característica meramente descritiva da luz no

século XIX, própria de um teatro onde a realidade e a coerência são a medida de

todas as coisas, tem como único resultado possível uma iluminação que não

intervém na ação e não desempenha qualquer papel ativo na construção do

espetáculo, ou seja, uma luz passiva. 92

Porém a potência da nova tecnologia, principalmente no que concerne ao

movimento da luz, estava ali, latente.

Será o encontro entre as possibilidades da iluminação elétrica com as

necessidades da cena advindas de novas teorias e práticas do teatro, que

transformará potência em ato, impulsionando o salto qualitativo da iluminação

cênica, rumo às formas do teatro moderno.

Seria mais exato, sem dúvida, dizer que essas transformações se concretizaram graças à coexistência de um desejo de ruptura e de uma possibilidade de mudança. Em outras palavras, as condições para uma transformação da arte cênica achavam-se reunidas, porque estavam reunidos, por um lado, o instrumento intelectual (a recusa das teorias e fórmulas superadas, bem como propostas concretas que levavam à realização de outra coisa) e a ferramenta técnica que tornava viável uma revolução desse alcance: a descoberta da iluminação elétrica.93

Jean-Jaques Roubine é incisivo ao nomear a descoberta dos novos

recursos da iluminação elétrica como fator tecnológico fundamental para o

surgimento da encenação.94

92 Bablet em seu artigo “A luz no teatro” (opus cit. p.294) utiliza-se do conceito de luz passiva, contrário à luz ativa, onde a iluminação cênica constitui-se como um elemento consciente na construção do espetáculo. A noção de “luz ativa”, por sua vez, foi criada por Appia (“La mise en scène du drame wagnérien” in Oeuvres Complètes, Tome I. Paris: L’Âge d’Homme, p. 268.) e se refere primordialmente ao poder da luz de exprimir com seu movimento a essência do drama. 93 Roubine, Jean-Jaques. A Linguagem da Encenação Teatral, 1880/1980. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1996, p.22. 94 “Nos últimos anos do século XIX ocorreram dois fenômenos, ambos resultantes da revolução tecnológica, de uma importância decisiva para a evolução do espetáculo teatral, na medida em que contribuíram para aquilo que designamos como o surgimento do encenador. Em primeiro lugar, começou a se apagar a noção das fronteiras e, a seguir, a das distâncias. Em segundo foram descobertos os recursos da iluminação elétrica.” Id.Ibid, p. 21.

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A recíproca é verdadeira. Esta síntese entre técnica e estética na

iluminação cênica será empreendida na passagem do naturalismo para o

simbolismo, rumo às vanguardas modernas, através da pesquisa e prática destes

encenadores, agentes das grandes transformações do teatro na virada do século.

No decorrer deste trabalho seguiremos o percurso de alguns deles, escolhidos

por sua prática e/ou reflexão sobre a iluminação cênica.

Com o surgimento do encenador, na acepção moderna do termo, a idéia de

autoria do evento teatral ganha concretude. Este artista da cena, aliando a

reflexão à prática, concebe o espetáculo, orquestrando um coletivo de artistas a

partir da noção de conjunto. Não se trata mais da união "natural e harmônica"

entre as artes, mas de uma concepção, que dirige as diferentes artes que

compõem a cena, relacionando-as e transformando-as em outra obra de arte,

com uma unidade própria. Essa articulação central das linguagens constitutivas

do fenômeno teatral gera maior complexidade na escritura cênica. O texto teatral

deixa de ser a medida de todas as coisas, o guia fundamental da cena, e o

espetáculo vai a pouco a pouco mostrando diversas facetas e leituras da obra

dramatúrgica.95 Cada vez mais a interpretação da realidade vai ganhando

primazia diante da própria realidade, rumo à subjetividade. E esse sujeito criador

se personifica durante o teatro do século XX, principalmente, na figura do

encenador. O diretor moveu-se para o centro da plasmação do

espetáculo e da crítica teatral. Definia o estilo, moldava os atores, dominava o cada vez mais complexo mecanismo de técnicas cênicas. O palco giratório, o ciclorama, a iluminação policromática estavam a sua disposição. Formas de estilo e de jogo teatral seguiram em rápida sucessão dentro de poucas décadas, sobrepondo-se: naturalismo, simbolismo, teatro convencional e teatro liberado, tradição e experimentação, drama épico e do absurdo, teatro mágico e teatro de massa. 96

95 “Toda reflexão sobre o teatro contemporâneo nos conduz ao acontecimento que literalmente fundou este teatro: a diferenciação da encenação enquanto arte autônoma (...) nela introduzindo, em certo sentido, uma nova dimensão: a de uma arte cênica diferente da arte dramática.” Dort, Bernard. Condição Sociológica da Encenação Teatral in O Teatro e Sua Realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1977, p.83. 96 Berthold, Margot. História Mundial do Teatro; São Paulo: Ed.Perspectiva, 2003, p.452.

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A ruptura com a lógica da realidade levará à reviravolta da função da luz na

história do espetáculo, de uma luz passiva, que segue a lógica fotográfica do

espaço e do tempo realistas, para uma luz ativa97, que constrói novos espaços e

tempos, multiplicando os planos de significação da encenação.

O desenvolvimento dessa nova prática da luz se dará aos saltos, e sem

uma continuidade temporal lógica; proclamada e/ou realizada primeiramente por

grandes inovadores da cena, levará décadas para se generalizar como prática e

concepção corrente.

97 Como já foi explicitado na nota 75, os conceitos de “luz passiva” e “luz ativa” são utilizados por Denis Bablet no artigo “A Luz no Teatro” (Opus cit. p.264). Para Bablet “luz ativa” é aquela que se constitui como um elemento móvel e consciente na construção do espetáculo. Roberto Gill Camargo desenvolve um conceito análogo ao considerar a luz como actante. De qualquer forma ambos colocam o foco da transformação da função da luz no espetáculo na idéia de ação da luz. A noção de “luz ativa”, por sua vez, foi criada por Appia (“La mise en scène du drame wagnérien” in Oeuvres Complètes, Tome I. Paris: L’Âge d’Homme, p. 268.) e se refere primordialmente ao poder da luz de exprimir com seu movimento a essência da vida do drama, mais especificamente do drama wagneriano.

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CAPÍTULO 5

O NATURALISMO E A DESCOBERTA DAS ‘ATMOSFERAS’ NA LUZ

Espero que se coloquem de pé no teatro homens de carne e osso, tomados da realidade e analisados cientificamente, sem nenhuma mentira. Espero que os meios determinem as personagens e que as personagens ajam segundo a lógica dos fatos. Espero, enfim, que a evolução feita no romance termine no teatro, que se retorne à própria origem da ciência e da arte modernas, ao estudo da natureza, à anatomia do homem, à pintura da vida, num relatório exato, tanto mais original e vigoroso que ninguém ainda ousou arriscá-lo no palco. 98

Emile Zola

O Naturalismo, influenciado pelas ciências biológicas e sociais, tenta

aplicar à arte o método científico e os princípios do positivismo99. Conforme

propõe Emile Zola: “tendo a natureza como base e o método como instrumento”

100, o naturalismo tem por objetivo a conquista da verdade, a partir da experiência

e análise dos fatos e das personagens. A peripécia e as reviravoltas do

romantismo dão lugar à observação e descrição da realidade, tal como ela é; o

ímpeto do indivíduo deixa de ser o motor da ação, que se volta para as razões

sociais, as personagens e suas ações são determinadas por fatores hereditários,

econômicos e sociais, expressos em cena pelo ambiente101.

No naturalismo, portanto, o meio deixa de ser pano de fundo, para virar

personagem principal da situação dramática: 98 Zola, Emile; O Naturalismo no Teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979, pags. 122 e 123. 99 “Augusto Comte, propõe sua doutrina do positivismo: renunciar à descoberta da origem das coisas e estabelecer, através das observações e do raciocínio, as leis dos fenômenos.” Caroni, Ítalo. Introdução in O Romance Experimental e o Naturalismo no Teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979, p. 13. 100 “Em meus estudos literários, tenho falado do método experimental, aplicado ao romance e ao drama. A volta à natureza, a evolução naturalista que empolga nosso século, impulsiona aos poucos todas as manifestações da inteligência humana num mesmo caminho científico.” Zola, Emile; O Romance Experimental.São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979, p. 25. 101 “É sobejamente conhecida a teoria dos três fatores – raça, meio e momento – em que ele (Hippolyte Taine) se baseia para tentar explicar cientificamente o fenômeno artístico e literário. Id. Ibid., p. 14.

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Como ressonância Transformam-se as relações entre os meios materiais

do espetáculo e sua significação humana, como muito bem aponta Jacó

Guinsburg,:

Pois pela lógica sociologizante do naturalismo, a construção do quadro cenográfico implica o estabelecimento do “ambiente”, do “meio”, da “atmosfera”, ou seja, do condicionante essencial das ações humanas, também no teatro. 102

A ambiência do espetáculo – formada pelo cenário, figurinos, objetos de

cena, sonoplastia e a iluminação cênica – deveria substituir no teatro às longas

descrições do locus do romance experimental naturalista, tornando concreta e

real a existência do meio ambiente. É o que sugere Zola em seu texto manifesto

“O Naturalismo no Teatro”:

A decoração não é uma descrição contínua, que pode ser muito mais exata e surpreendente que a descrição feita num romance? 103

A cenografia da época, baseada no telão de fundo pintado, mal iluminado

pelas ribaltas a fogo, não dá conta desta função e, portanto, não tem cabimento

em um teatro para o qual a ilusão da realidade, quando apresentada de forma

geral e imprecisa, não é mais suficiente. Para completar a inadequação do

cenário bidimensional, apoiado na descrição do telão de fundo, a primeira ação da

eletricidade ao aumentar a intensidade da luz, foi revelar a farsa dos cenários

pintados, tornando-os toscos e ainda mais inconsistentes, como descreve Denis

Bablet : Na verdade, os efeitos ilusionistas enganavam os

espectadores porque estavam fracamente iluminados e o público, mal conseguia distinguir a realidade do artifício. (...) Quando a eletricidade substituiu o gás e aumentou a pouco e pouco a potência de sua aparelhagem, o artifício tornou-se patente. Descobriu-se que iluminar o objeto pintado era revelar a sua

102 Guinsburg, Jacó. Stanislávski e o Teatro de Arte de Moscou. São Paulo: Ed. Perspectiva,2001, p.51.

103Zola, Emile. O Naturalismo no Teatro.São Paulo:Ed. Perspectiva, 1979, p. 132.

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figuração e não a sua realidade. A luz elétrica exigia o cenário construído.104

Começa então, a partir dos anos 1880 105, um movimento em busca da

verdade, tanto na interpretação quanto nos meios técnicos constituintes do

espetáculo teatral. Os cenários tridimensionais ocupam o palco com seus

volumes e os detalhes, antes relegados, começam a ter importância fundamental.

Os Meininger, conjunto criado, mantido e dirigido pelo duque Georg II de

Saxe-Meiningen106, foram os grandes inovadores neste sentido: a autenticidade

dos seus cenários, figurinos e objetos de cena não só é pioneira como influenciou,

com as suas famosas tournées pela Europa, vários encenadores como

Stanislávski e Antoine, dando início à era das reconstituições arqueológicas e ao

realismo histórico, que terá grande influência nas técnicas do espetáculo; a

pesquisa histórica e sociológica, tanto teórica quanto de campo, passam a fazer

parte do trabalho dos diretores e cenógrafos. Em relação à iluminação havia o

mesmo esmero técnico e cuidado com a precisão na escolha do posicionamento

dos equipamentos, visando maior realidade nos ângulos de incidência da luz.

“Tudo quanto formasse a parte visual do espetáculo devia receber tratamento

minucioso. [Os Meininger] desenvolveram a iluminação cênica, projetada de lado

– e não da ribalta – por bicos de gás, mesclando-os mais tarde com arcos

voltaicos.”, nos conta Jacó Guinsburg. 107 Mas a grande inovação dos Meininger,

que pontua uma mudança fundamental de procedimento em relação à iluminação

cênica, se deve ao fato do Duque Georg II ensaiar com a luz pronta (assim como

cenário e figurinos), permitindo uma relação pensada e experimentada entre o

104 Bablet, Denis. “A Luz no Teatro” in O Teatro e sua Estética (org. e trad. Redondo Júnior). Lisboa: Editora Arcádia, 1964, p.. 296, 297 e 298.

105 “Só depois da década de 80 é que o naturalismo conquista o palco, numa altura em que o naturalismo no romance já se encontra em declínio. Les Corbeaux, de Henri Becque, o primeiro drama naturalista, foi escrito em 1882, e o Théâtre Libre, de Antoine, o primeiro teatro naturalista, funda-se em 1887” Hauser, Arnold. História Social da Literatura e da Arte; São Paulo: Mestre Jou, 1980-1982.p.1098. 106 “A partir de 1874, a companhia dos Meininger fornece à Alemanha e depois a toda a Europa o exemplo de um conjunto no qual o diretor (o Duque George II Von Meiningen em pessoa) e seu encenador (Chronegk) comandam os atores. E seus espetáculos são concebidos, cada um, como um todo orgânico”. Dort, Bernard. Condição Sociológica da Encenação Teatral in O Teatro e Sua Realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1977, p.83. 107 Guinsburg, Jacó. Stanislávski e o Teatro de Arte de Moscou. São Paulo: Ed. Perspectiva,2001, p.17.

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espaço e a sua ocupação, entre a luz e a marcação do espetáculo. Essa

necessidade de ensaiar com a luz de cena, que na prática significa o ineditismo

de ensaiar a própria ação da luz, diferia dos costumes da época, onde a

iluminação só encontrava com os intérpretes, na hora da apresentação.

Assim como prenunciam a própria era da encenação, os Meininger,

também são os introdutores da luz como actante. Como demonstra Bablet, ao

citar a crítica que Antoine faz aos Meininger (em carta escrita a Sarcey, em 1888),

quanto aos movimentos de luz em cena:

Os seus efeitos de luz, bastante conseguidos, são na maioria dos casos regulados por uma ingenuidade épica. Assim, um forte raio de sol poente, vindo iluminar uma bela cabeça de velho morto no seu cadeirão, passava de repente através de um vitral, sem graduação, no momento preciso em que o homem acabava de expirar, unicamente para fazer quadro. Conclui Bablet: Antoine não podia compreender que esse efeito constituía um dos primeiros exemplos de uma iluminação cênica dramática e ativa. 108

Ora é interessante notar que na história do teatro sempre há uma relação

intrínseca entre o desenvolvimento da encenação e da iluminação, seus saltos de

experimentação e compreensão reincidentemente andam juntos; já fora assim

extemporaneamente com Leone de´Sommi, no Renascimento, o mesmo acontece

no final do século XIX com os Meininger e com o próprio Antoine:

Devemos também a Antoine uma indagação que os progressos técnicos nunca mais deixarão de colocar na ordem do dia: a questão da iluminação. Já foi dito que a pesquisa de Antoine é inseparável da introdução da eletricidade na prática teatral 109.

Os encenadores naturalistas, e seus parceiros na luz, que procuraram com

fé a verdade acima de todas as coisas, como os Meininger, na Alemanha,

108 Bablet, Denis. “A Luz no Teatro” in O Teatro e sua Estética (org. e trad. Redondo Júnior). Lisboa: Editora Arcádia, 1964, p. 293. 109 Roubine, Jean-Jaques, Op. Cit., p.30.

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Antoine, na França ou Stanislavski e Savva Marózov110, na Russia, quebraram a

bi-dimensionalidade do telão pintado, esculpiram com a luz os volumes e a

perspectiva da cena, como os renascentistas italianos já haviam preconizado.

Exigindo da cenografia e da luz a tridimensionalidade, chegaram ao fundo das

coisas e, para além da concretude dos volumes, descortinaram as “atmosferas”.

As “atmosferas” tornaram a iluminação cênica, a partir do naturalismo, mais

do que instrumento da visibilidade ou ferramenta para imitar com eficiência a

natureza; muito além inclusive de tornar o cenário crível dando-lhe

tridimensionalidade, as atmosferas luminosas têm a função de dar vida à

ambiência111.

O que é, exatamente, dar vida a uma ambiência? É difícil explicar em

palavras uma função que se destina principalmente às sensações da platéia, e

não ao entendimento. Tal qual a música, a luz toca a sensibilidade do público, às

vezes imperceptivelmente. A luz veste o espaço com as “atmosferas”, revelando-

o segundo pontos de vista diferentes, assim, dependendo das variações da luz,

muda a temperatura, a textura e o clima da cena e isso interfere diretamente no

ânimo das personagens e em suas ações, assim como no ânimo do próprio

público que assiste à cena. Por exemplo, um mesmo espaço ganha outra

dimensão se iluminado pela luz do amanhecer, que entra diretamente pela grande

janela da sala e rebate por todo o ambiente deixando-o claro ou com a luz morna

do fim da tarde, que declina criando contrastes abruptos ou mesmo pela

inconstância da luz da lua, que torna o ambiente misterioso. No entanto no

naturalismo essas transformações da ambiência através da iluminação têm de ser

críveis e coerentes com as circunstâncias dadas pelo texto e pelo autor: o lugar, a

época do ano, à hora do dia ou da noite.

110 "Marózov financiava o teatro e assumia toda a parte administrativa. Homem com alma de artista, ele sentia naturalmente a necessidade de tomar parte ativa no aspecto artístico. Com essa finalidade pediu-nos para ser encarregado da iluminação elétrica do palco". Stanislavski, Konstantin; Minha Vida na Arte, Ed. Civilização Brasileira, São Paulo 1989. p.330. 111 E não é por acaso que o ato de parir é também chamado de dar a luz.

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Portanto, para esse estilo naturalista de iluminação cênica112, é importante

buscar sempre a fonte de luz específica e sua posição real, para desenhar a

cena: o sol de inverno em um lugar determinado, com sua temperatura específica,

em seu ângulo preciso em relação ao cenário, o candeeiro em cima da mesa, a

janela na lateral. A idéia de luz principal, aquela que imprime um desenho, uma

linha primordial de incidência da luz, passa a reger o desenho. Dessa forma,

apesar de outras luzes complementarem e preencherem a visibilidade em relação

à platéia, a luz mais forte, aquela que a platéia distingue, por uma questão de

coerência deve vir, ou pelo menos parecer vir, não da frente, mas do lugar por

onde entra a luz no ambiente. Como, por exemplo, nas janelas que iluminam as

cenas cotidianas pintadas por Veermer.

Nesse momento a luz era, como todos os outros elementos do espetáculo, mais um meio para aumentar a reprodução fiel da natureza. A iluminação naturalista propiciava condições para simular que o espectador estava diante de uma janela aberta para o universo fictício da cena. 113

As cores da iluminação naturalista são variações do espectro visível da luz

solar: do azul ao quente amarelo, como as luzes que vão da aurora boreal ao fim

de tarde tropical. O azul dá a sensação da profundidade, as luzes quentes saltam

em direção à platéia. O contraste entre os tons das complementares, como

podemos assistir no pôr do Sol rebatido nas nuvens, revelam todo o espectro da

luz solar, tal qual observado e descrito por Goethe no seu estudo sobre a Doutrina

das cores 114 e pintado por Turner em seus estudos realizados a partir do círculo

das cores de Goethe. Luzes naturais, quentes ou frias, encontradas com os olhos

voltados para a natureza.

112 Chamo de “estilo naturalista” à iluminação que persegue a precisão fotográfica, pois, nascido neste momento, permanece, para além do naturalismo como movimento histórico. O progresso tecnológico e a influência do cinema fez deste “estilo” de iluminação cênica um paradigma da “luz bem feita”, com cada vez mais precisão. 113 Saraiva, Hamilton, Op.Cit., p.137.

114 GOETHE, J.W. Doutrina das Cores. São Paulo: Ed. Nova Alexandria, 1993.

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O ícone desta época - simbolizando a tentativa de pegar o que se

desmancha no ar - é a invenção do efeito das nuvens que passam. Mariano

Fortuny, cenógrafo dedicado a construção de teatros e também à iluminação,

desenvolveu vários efeitos de luz para criar de forma deliberada esta impressão

de acaso, que existe na verdade.

Além do já citado “aparelho para as nuvens”,

inventou uma cúpula branca arredondada que

envolve todo o cenário sem ser vista pela platéia,

patenteada por ele como "Cúpula Fortuny". Esta

cúpula é na verdade entendida como um sistema de

iluminação indireta baseado na reflexão e difusão da

luz. A luz é rebatida na cúpula e volta para a cena

difusa. Como o brilho do Sol nos dias nublados, esta

luz rebatida é totalmente diferente da luz incidente

direta: é mais envolvente, suave, mais atmosférica.

A “Cupula Fortuny” é o antepassado direto do

ciclorama 115.

Outra conseqüência do desenvolvimento técnico e da aplicação dos

métodos científicos no teatro é a retomada de várias experiências e princípios

preconizados e experimentados pelo Renascimento, agora facilitados pelo

controle da luz elétrica e, principalmente, pela força dos encenadores, que

conseguiram, graças à centralização de sua função, desafiar hábitos arraigados

nas platéias e profissionais do teatro.

Sabbattini, no século XVII havia escrito contra as luzes da ribalta e

considerado absurdo iluminar os atores de baixo para cima.116 Pela mesma razão

115 "Em 1902 o cenógrafo Mariano Fortuny desenvolve, na Alemanha, o ‘kuppelhorizont’, um meia-cúpula feita de seda ou gesso, que refletia luz sobre o palco, simulando o infinito (céu). Este recurso daria origem ao ciclorama.” Camargo, Roberto Gill. A Função Estética da Luz. Sorocaba: Ed. Fundo de Cultura, 2000, p. 20.

116“Mas que coisa de bárbaros, é uma monstruosa falta de naturalidade iluminar de baixo para cima” Sabbattini, Nicola; Pratique Pour Fabriquer

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o clamor geral dos encenadores do naturalismo, seguindo o exemplo já citado dos

Meininger, será responsável pelo fim da utilização generalizada da ribalta nas

casas de espetáculo. 117

Porém, esta fronteira luminosa entre o proscênio e a platéia, ainda

permanecerá como a luz principal dos palcos populares, dos circos, dos

melodramas e palcos de musicais, por muito tempo. Até hoje quando se pretende

representar um “teatrinho”, quer no cinema, quer no teatro dentro do teatro, a luz

utilizada muito provavelmente será a da ribalta, que por sua existência visível aos

espectadores, em primeiro plano, passou a ser justamente o símbolo de uma luz

“de teatro”.

Outra mudança preconizada pelos cenógrafos renascentistas, que só

vingou na segunda metade do século XIX foi o escurecimento da platéia durante

as representações.

Mas no fim do século XIX, em 1876, no momento em que triunfa uma estética teatral fundada sobre a falsa-semelhança e o virtuosismo técnico, produz-se um fato capital. Durante a representação das suas óperas em Bayreuth, Richard Wagner mergulha a sala no escuro. Esta reforma, que esperara quatro séculos, é a pouco e pouco adotada em Inglaterra, em França e no conjunto dos teatros europeus. 118

Bablet chama esse fato de “capital” porque transforma essencialmente a

relação entre o público e o teatro. O público perde a referência da realidade e, do

escuro, joga toda a sua atenção para a cena iluminada. Do ponto de vista técnico

a mudança é imensa. Sabemos que para o olho as características da luz não são

absolutas, mas relativas - graças à grande capacidade de adaptação do órgão da

visão, a percepção da quantidade e qualidade da luz varia de acordo com a

referência no tempo e no espaço. Portanto, quando a platéia escurece, não

Scenes et Machines de Theatre; citado por Saraiva, Hamilton F. Iluminação Teatral: História, Estética e Técnica. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1990, Pag. 19. 117 “Em 1903, Antoine proclamou que a iluminação era a vida do teatro, era a grande fée (fada) do cenário, a alma de uma encenação. Na sua febre naturalista ele eliminou a ribalta, que era uma luz ‘anti-natural’” Id. Ibid,p. 138. 118 Bablet, Denis; “A Luz no Teatro” in O Teatro e sua Estética (org. e trad. Redondo Júnior). Lisboa: Editora Arcádia, 1964, p. 294.

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ofusca mais os olhos do espectador que fica sensível à luz da cena. A partir daí

todas as variações de intensidade, ângulo, direção e cor da iluminação cênica

serão perceptíveis para os olhos da platéia.

Ora, para nós, espectadores do pós-naturalismo, o símbolo do início de

uma representação é o apagar das luzes do público, que nos possibilita esquecer

nossa própria existência como espectadores. Por outro lado, qualquer quebra da

realidade da cena em privilégio do aqui e agora da representação, será

acompanhada invariavelmente do acender das luzes da platéia, que nos traz de

volta para a existência ordinária e à nossa presença na platéia de um teatro. É

difícil imaginar, portanto, que durante toda a história do teatro até então, a sala

ficava às claras independentemente da relação desejada entre o palco e a platéia,

dividindo a atenção dos espectadores entre o espetáculo e o acontecimento social

de estar em um teatro, vendo e sendo visto ao mesmo tempo.

O escuro da platéia concentra a atenção do público na cena, que sem

qualquer ponto de referência visual, se deixa levar pela representação,

adentrando em outra existência, fictícia, como se fora real. A ficção ganha

primeiro plano e afirma sua autonomia.

O NATURALISMO E SUA SUPERAÇÃO

ou O CAMINHO DO REAL À SUBJETIVIDADE

Só que, com os naturalistas, a mitologia do

verdadeiro substitui a do verossímil, com a qual se

satisfazia até então o teatro acadêmico. 119

Podemos dizer de forma metafórica que o realismo está para a fotografia,

assim como o naturalismo está para o raio X, ou seja, não se contenta com a

aparência exterior, mas busca a análise profunda da interioridade. Com o tempo,

também não se contentará com a idéia de ilusão ou verossimilhança, tendendo a

buscar a verdade para além das convenções teatrais.

119 Roubine, Jean-Jaques, A Linguagem da Encenação Teatral, Zahar ed., São Paulo, 1982.p.27.

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Quando o Naturalismo assume como legado a conquista da verdade no

teatro tem diante de si um paradoxo indissolúvel. Este conflito entre verdade e

ilusão chega a seu clímax nesse momento da história do teatro e, como todo

clímax, engendra sua própria reviravolta.

Emile Zola em sua reflexão sobre O Naturalismo no Teatro, com o objetivo

de defender a nova estética dos ataques dos críticos de sua época, expõe a

contradição existente no teatro entre a convenção e a verdade:

Em resumo, o teatro é o domínio da convenção; tudo permanece convencional, desde os cenários, desde a rampa que ilumina os atores por baixo, até as personagens que aí são conduzidas pela extremidade de um fio 120

Assume então o papel de paladino da verdade no teatro:

O teatro, por suas condições de existência, devia ser a última conquista, a mais laboriosa e a mais disputada do espírito da verdade. 121

Mas não resolve a questão, não vai ao fundo da contradição por ele

mesmo exposta, não explica como é possível prescindir da convenção em uma

arte que vive do paradoxo entre a concretude da presença viva do ator e as

situações inventadas que ele tem de representar.

No teatro, quanto mais de verdade mais ilusão, porém quanto mais ilusão

menos verdade. Na matemática essa equação é chamada de absurdo. Esse

absurdo é a matéria mesma do teatro porque a ilusão da realidade não deixa de

ser de fato uma ilusão e a única verdade sobre o palco é o próprio teatro. Como

conclui Bernard Dort:

Pretender instalar o real no palco, não é instituir uma falaciosa e impossível identidade entre teatro e realidade: é colocar totalmente em questão a atividade teatral.(...)É passar da imitação ideal da natureza à criação de uma nova natureza, através dos

120 Zola, Emile; O Naturalismo no Teatro; São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979, p. 124. 121 Id. Ibid. p. 125.

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meios específicos da expressão teatral. Por um singular paradoxo, o ilusionismo naturalista cedo se transforma em seu contrário: a recusa de toda a ilusão, de toda a reprodução do real. 122

Eis para onde leva o paroxismo do naturalismo: à sua superação e à

assunção da teatralidade como a mais radical das verdades sobre o palco.

Sabemos que se formos precisos diante daquilo que vemos, não encontraremos

nem linha, nem mesmo figura, mas simplesmente luz refletida. A figura, o fundo e

sua organização se formam dentro da nossa cabeça. Da mesma forma se formos

rigorosos em relação à realidade será impossível abarcá-la enquanto tal; teremos

no máximo um ponto de vista, uma versão pessoal da realidade e, como tal,

fragmentada e subjetiva. A busca da teatralidade, no fundo, não deixa de ser uma

ruptura em direção á verdade do artista, rumo, portanto, à subjetividade. 123

É em busca da verdade que muitos artistas acabam por transcender o

naturalismo por “dentro”, atravessando a realidade rumo à subjetividade e ao

impressionismo das atmosferas e dos "estados d'alma", como Manet, na pintura;

como Stanislávski124, na cena; como Ibsen, Hauptmann, Strindberg e

Tchéckhov125, em suas peças.

As oposições (e também a forte atração) latentes entre o naturalismo e o

simbolismo no teatro da passagem do século XIX para o XX estão expressas de

maneira quase oracular no texto A Gaivota, de Anton Tchékhov. A peça, 122Dort,Bernard. O Teatro e Sua Realidade. São Paulo: Ed.Perspectiva, 1977, p. 49.

123 “É característica do impressionismo em geral que seus adeptos já não viessem a apresentar a realidade tal como é e sim tal qual ela se lhes afigura – a aparência da realidade, a impressão fugaz de um mundo em constante transformação. De certo modo eram naturalistas ao extremo. Mas precisamente por isso não alegam reproduzir a realidade e sim a mera impressão dela. Tornaram-se por assim dizer, subjetivos por quererem ser objetivos”. Rosenfeld,Anatol. O Teatro Épico; São Paulo:Ed.Perspectiva, 1985, p. 103.

124 “Stanislávski desenvolveu um refinado estilo impressionista. Ele mobilizou todos os meios concebíveis de ilusão ótica e acústica, de forma a criar a "atmosfera" correta para seus atores e para o público". Berthold, Margot, História Mundial do Teatro, Ed Perspectiva,2003. p.463.

125 O próprio Tchékhov oscila entre o naturalismo, o impressionismo e o simbolismo, como sugere Stanislávski em “Minha Vida na Arte”, em trecho citado por Jacó Guinsburg: “ás vezes ele (Tchékhov) é um impressionista, outras vezes um simbolista, quando é necessário é um realista e às vezes quase um realista” Stanislávki e o Teatro de Arte de Moscou. São Paulo: Ed. Perspectiva, p.102, nota 105.

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verdadeiro libelo sobre o teatro e suas paixões, retrata o embate entre os sonhos

do jovem Tréplev, poeta incompreendido em busca de novas formas e o "velho"

teatro de sucesso representado por sua mãe: Arkádina.

“Treplév: (Olhando de relance para o tablado) Isso sim é um teatro. A cortina, depois o primeiro bastidor, o segundo bastidor e, em seguida o espaço vazio. Nenhum cenário. A vista se abre direto para o lago e para o horizonte. Levantaremos a cortina exatamente às oito e meia, quando a lua surgir. (...) Minha mãe não me ama. Ela também sabe que eu não tenho grande consideração pelo teatro. Ela ama o teatro e lhe parece que, com isso, presta um grande serviço à humanidade, à arte sagrada, mas para mim o teatro contemporâneo não passa de rotina e superstição. Quando a cortina sobe e, à luz da noite, entre as 3 parede, esses talentos formidáveis, os sacerdotes da arte sagrada representam como as pessoas comem, bebem, amam, andam, vestem seus casacos(...) quando em mil variantes, me apresentam sempre a mesma coisa, a mesma coisa e a mesma coisa...

Sórin – É impossível viver sem o teatro. Tréplev – Precisamos de formas novas. Formas novas são

indispensáveis e, se não existirem então é melhor que não aja nada.126

Tréplev ama a jovem atriz Nina que representa o seu "novo drama" no

Teatro do Lago:

[A cortina se levanta, surge a vista do lago, a lua, logo acima do horizonte reflete-se na água sobre uma Pedro grande, está sentada Nina, toda de branco]

Nina - (...) A alma do mundo sou eu...eu...em mim habita a alma de Alexandre o Grande, de César, de Shakespeare, de Napoleão e da mais ínfima sanguessuga. Em mim, as consciências de todos fundiram-se com os instintos dos animais e eu me lembro de tudo, de tudo, e sinto em mim todas as vidas viverem de novo. (rebrilham fogos fátuos no pântano) Arkádina – Isso está um tanto decadentista. Tréplev – (em tom de súplica e censura) Mãe! Nina – Estou só. Uma vez a cada cem anos, abro a boca para falar e minha voz ressoa neste deserto tristonho, mas ninguém escuta... E vocês ó pálidas luzes dos fogos fátuos...De madrugada, o pântano pútrido as traz ao mundo e vocês, pálidas luzes, vagueiam até a aurora, mas sem pensamentos, sem vontade, sem os tremores da vida.(...)Até lá o horror, o horror... (pausa; no outro lado do lago, surgem dois pontinhos vermelhos). Eis que se aproxima meu poderoso adversário,o diabo. Vejo seus olhos rubros e medonhos Arkádina - Sinto cheiro de enxofre. Será mesmo necessário? Tréplev – É sim. Arkádina – (ri) Ah, é um efeito especial.

126 Tchékhov, Anton. A Gaivota. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac & Naify,2004, p. 13-14.

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Tréplev – Mãe! (...) (com raiva erguendo a voz) A peça acabou! Chega! Baixem a cortina!. 127

No entanto a jovem atriz é seduzida pelo escritor de sucesso e o jovem

poeta, embora finalmente reconhecido, perde o sentido da existência e se suicida

no fim da peça.

O próprio Tchékhov, na fronteira entre o naturalismo e o simbolismo, reconhecia o perigo, para a arte e para a vida, representado pelo escapismo para o reino dissoluto dos sonhos.”128

Por crível paradoxo, assim como a fotografia liberta a pintura de retratar a

realidade, o naturalismo no teatro será a porta de passagem para o simbolismo e,

a partir dele, para as vanguardas modernas e suas múltiplas formas de recriar o

real.

Na iluminação esse dado libertador será fundamental para que as

potencialidades da luz elétrica se transformem em ato nas mãos dos

encenadores-iluminadores. Os artistas do espetáculo, de retratistas tornar-se-ão

criadores de outras realidades. A luz é fundamental nesse sentido porque é

determinante para a transformação do ponto de vista, da forma do olhar. É da

tensão entre a realidade e a ficção, espelhada em vários níveis e de diferentes

formas, que se constituirá o teatro no século XX.

Para que a iluminação se torne ativa, será necessário atravessar a

aparecia rumo á novas realidades que permitam o movimento criativo da luz.

127 Idem Ibidem, p. 20-23.

128 Berthold, Margot.História Mundial do Teatro,Ed.Perspectiva,2003,p.466.

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2ª PARTE

A LUZ ATRAVESSA O VISÍVEL

OU

O SIMBOLISMO

E A LUZ COMO LINGUAGEM

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CAPÍTULO 6

O SIMBOLISMO e as ILUMINAÇÕES A mim. A história de uma de minhas loucuras.

Há muito tempo eu me vangloriava de possuir todas as paisagens possíveis, e achava ridículas as celebridades da pintura e da poesia moderna.

(...)

Eu inventei a cor das vogais! – A negro, E branco, I vermelho, A azul, U verde. – Regulei a forma e o movimento de cada consoante e, com ritmos instintivos, nutri a esperança de inventar um verbo poético que seria

acessível a todos os sentidos. Eu me reservava a sua tradução.

Foi antes, simples estudo. Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.129

Arthur Rimbaud

O Simbolismo, strictu sensu, nasce como um movimento especificamente

literário que, inspirado em Baudelaire, reúne poetas como Mallarmé, Verlaine e

Rimbaud e tem seu apogeu em Paris nos anos 1885 – 1895.130

Mas o simbolismo pode também ser entendido como um movimento bem

mais abrangente que propõe em pleno auge do naturalismo (1870/80) o

abandono deliberado da realidade exterior, ou mesmo sua aparência, em busca

de outra realidade, superior; a arte se propõe a ser um canal de comunicação e

articulação não racional com o mundo da imaginação, uma porta aberta para o

espírito, expressão da subjetividade do artista sobre a “realidade”, onde sujeito e

objeto se justapõem em uma existência que tende ao absoluto e ao ideal. Como

tal o simbolismo se relaciona diretamente com o naturalismo, muitas vezes como

uma transmutação interna, que atravessa a realidade transformando-a “de dentro

para fora” (como nos casos já citados de Tchékhov, Ibsen, Hauptmann, entre

muitos outros), outras vezes como oposição explícita, libelo estético e político

contra a redução materialista do mundo e do homem, uma reação idealista contra

os cânones da objetividade como paradigma na arte.

129 Rimbaud, Arthur; Alquimia do verbo in Uma Temporada no Inferno e Iluminações; trad. Lêdo Ivo. São Paulo: Francisco Alves,1993, p.63. 130 Segundo Anna Balakian, que faz um apanhado dos vários significados do termo simbolismo (O Simbolismo; São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985): Há críticos que entendem o Simbolismo como uma escola literária específica, dentro de limites precisos no tempo e no espaço (Paris, 1885/95). Enquanto que há outras acepções do mesmo termo que incluem influências anteriores e herdeiros posteriores e que admitem a heterogeneidade do movimento em torno de princípios comuns. Para resolver esta questão ela propõe a utilização do S maiúsculo para o sentido restrito da palavra, e o minúsculo para os sentidos abrangentes.

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É comum encontrar entre os historiadores da arte em geral e do teatro em

particular, aqueles que defendem a idéia de que essa reação ao naturalismo se

congrega em sua imensa diversidade sobre o signo do simbolismo. E que,

segundo esse entendimento, simbolismo e naturalismo são as duas grandes

tendências antitéticas do século XX.

Nessa linha de pensamento, cito Juan Guerrero Zamora na introdução ao

capítulo intitulado ‘Reação Simbolista’ em sua Historia del Teatro contempóraneo:

Duas atitudes matrizes determinam o complexo processo criador de nosso tempo: realismo e simbolismo. E ainda entre elas se produzem termos de contato ou implicação. Da segunda, que foi definida como ‘corrente estética tendente a buscar nas imagens e expressão correspondências suprasensíveis e iluminações universais sobre a realidade do mundo externo e sobre aquela do espírito’131, derivam os diversos movimentos, por aparentemente díspares que se ofereçam – ismos e neoconvencionalismos – de irrealismo e transfiguração. A órbita inteira da nossa literatura dramática queda, pois, basicamente compreendida nesse binômio antitético.132

Jean-Jaques Roubine explicita a mesma noção abrangente e englobadora do

termo ao analisar o nascimento do teatro moderno:

“O debate que acompanha toda a prática teatral do século XX coloca em oposição, em diversos planos e sob denominações que variam ao sabor das épocas, a tentação da representação figurativa do real (naturalismo) e a do irrealismo (simbolismo), não seria tão intenso nem tão fecundo, sem dúvida, se não fosse sustentado por uma revolução tecnológica baseada na eletricidade”.133

Nesse sentido, portanto, mais do que uma escola específica ou mesmo um

estilo literário com características próprias, o simbolismo é considerado como uma

tendência de oposição ao naturalismo que engendra múltiplas atitudes criadoras e

131 Blanchart, Paul (citado por Juan Guerrero Zamorra) in Enciclopedia dello Spettacolo fondata da Silvio d’Amico, vol III, “Le maschere”, Roma, 1961. 132 Zamora, Juan Guerrero, História Del Teatro Contempóraneo V.I, Barcelona: Juan Flors, Editor, 1961, p.261. 133 Roubine, Jean-Jaques, A Linguagem da Encenação Teatral, Zahar ed., São Paulo, 1982.p.24.

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congrega uma multiplicidade de movimentos artísticos, idealistas e subjetivos, que

se sucedem, se integram ou até mesmo se opõem, criando novas e diferentes

formas de recriar a realidade. Nessa acepção ampla e heterogênea o simbolismo

expande suas influências por vários países e formas de arte até a primeira

Grande Guerra, inaugurando o teatro de vanguarda.

De fato o simbolismo no teatro não se apresenta como um movimento coeso,

mas como uma revolta do espírito, uma ação contrária, um “caminho novo”, e,

como tal, inverte o sentido do processo criativo. Como se fora um naturalismo do

avesso134, propõe o privilégio da intuição sobre a razão, da subjetividade sobre a

objetividade, da imaginação sobre a realidade, levando a cena teatral a imergir

em uma via da interioridade: um mundo de sonhos, símbolos, abstrações, fantasia

mística e celebração religiosa. No entanto, regado pelo mesmo espírito

decadentista do "fin de siécle" que leva o naturalismo à fatalidade; a celebração

religiosa não encontra fé na redenção; o amor ideal não pode ser realizado, o

homem incapaz de alcançar o absoluto se abandona à inação, a existência se

esvazia de sentido. A catarse final resta à morte, principal tema da sua

dramaturgia. A evasão da realidade é a ação simbolista por excelência.

Por suas características mais líricas do que dramáticas, a falta de conflito

dos seus textos e o anulamento da personalidade e do ator em privilégio dos

estados d’alma, o teatro simbolista não chega a impor-se no seu momento

histórico enquanto modelo de dramaturgia e existe mesmo uma tendência dos

poetas-dramaturgos, liderados por Mallarmé e Maeterlinck, em entender o texto

como entidade em si, feita para ser lida e vivida no palco da imaginação,

independendo da sua incorporação no ao vivo do teatro. Maeterlinck declara: “A

representação de uma obra-prima com auxílio de elementos acidentais e

humanos é uma contradição. Qualquer obra-prima é um símbolo, e um símbolo

134 “O simbolismo é uma outra face do naturalismo, mais do que seu oposto” Balankian, Anna. O Simbolismo.São Paulo: Ed.Perspectiva, 1985, p.106. Sobre as relações de oposição e complementariedade entre naturalismo e simbolismo no teatro ver Jacó Guinsburg: Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo: Ed. Perspectiva,2001.

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jamais suporta a presença do homem”.135 Já Mallarmé propõe “um teatro

maravilhosamente realista da nossa imaginação”.136

Estas características da dramaturgia simbolista levaram a uma dificuldade

intrínseca em colocar o “novo drama” sobre o palco.

Porém as conseqüências do simbolismo para o teatro são tão

transformadoras quanto duradouras, porque no âmbito da arte do espetáculo,

mais do que a criação de uma poética específica, significou uma reviravolta – o

abandono da verossimilhança e a retomada da teatralidade, suas convenções e o

desenvolvimento dos meios técnicos específicos para sua realização.

A sugestão torna-se parte fundamental da revelação e o que não pode ser

dito, vira silêncio... E imagem. Da mesma forma que na poesia o simbolismo

encontra, através da palavra, o indizível – a visualidade abre caminho para aquilo

que está para além do visível.

Há, de fato, uma contradição entre a concepção dos poetas-dramaturgos

que privilegiam radicalmente a palavra sobre o espetáculo e seus meios

específicos de expressão e a conseqüência desta concepção, reelaborada pelos

homens de teatro, levando a arte do espetáculo à síntese e à convenção formal.

O mundo do espírito e dos sonhos precisa em cena de uma forma para se

expressar ou, como dizemos no teatro, para encarnar:

O novo questionamento da arte teatral no início do século XX situa-se mais no âmbito do espetáculo do que no da obra escrita. Se a arte teatral tende a afirmar sua autonomia é porque seus principais renovadores acreditam que só existe teatro quando há representação, quer dizer, um universo dramático colocado em evidência pelos meios auditivos e visuais, pelo emprego de

135 Maeterlinck; La Jeune Belgique, p. 331, citado por Jean Jaques Roubine, em A Linguagem da Encenação Teatral, opus cit. p. 41. 136 Mallarmé, Stéphane, citado por Berthold, Margo; História Mundial do Teatro, Ed. Perspectiva, 2003, p.466.

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técnicas precisas. O teatro começa quando uma ação imaginária é apresentada a um público reunido. 137

Para reiterar essa característica visual do espetáculo simbolista, tão

estranha aos seus próprios ideais de devolver o teatro à palavra, cito Gaston Baty

e René Chavance:

Em todo caso, parece que o movimento simbolista, originalmente literário, alcançou no teatro, sobretudo, resultados visuais.138

O espetáculo simbolista, Inspirado pelo Gesamtkunstwerk139 wagneriano

desenvolve o ideal da integração das artes, associando a palavra à música, à

dança e às artes plásticas, sob a regência do encenador. O pintor entra em cena,

não mais para criar uma ilusão de realidade, mas para "imprimir" a sua marca

pessoal, substituindo assim a tradicional técnica140 dos telões pintados que imitam

paisagens para descrever o lugar da ação, pela arte dos “cenários pictóricos” com

cores e formas que tendem à abstração, trazida para o teatro pelos pintores

simbolistas e Nabys. A cenografia sob influência decisiva do simbolismo se

desvencilha do excesso de detalhes e objetos demonstrativos e passa a procurar

o símbolo e a síntese.

A iluminação cênica torna-se um instrumento fundamental na escritura do

espetáculo simbolista (e graças à sua prática e influência, para além dele) porque,

graças a sua infinita potencialidade de movimento - intensidade, direção, ângulo e

cor - possibilita o trânsito entre a concretude da cena e o campo do inefável, do

inexplicável, do indizível e, principalmente, do invisível – apreendido através do

jogo de múltiplas reflexões do visível 141. A encenação volta-se para a iluminação

137 Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.100. 138 “En todo caso, parece que el movimiento simbolista, originalmente literário, alcanzó em el teatro resultados sobre todo visuales” BATY, Gaston e CHAVANCE, René. El Arte Teatral. Trad. Juan Jose Arreola. México: Fondo de Cultura Económica, 1951, p. 242. 139 Traduzido normalmente como “obra de arte Total”, ou “obra de arte comum”. 140 Técnicas tradicionais da cenografia de teatro: pintura em perspectiva e “trompe-l’oeil” (literalmente algo como “engana olhos”). 141 “Existe nos simbolistas uma recusa categórica da realidade exterior: o mundo visível não tem valor a não ser como condição de revelar o mundo

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entendida agora como “jogo de luzes” e esse por sua vez, livre da coerência

naturalista, toma um sentido poético, musical e sinestésico.

A sinestesia, no palco, ganha fisicalidade e começa a ser explorada em

todas as artes visuais, incluindo o teatro, a dança e a ópera. A interação entre as

luzes, os sons, as cores, as palavras e os movimentos dos corpos, enfatizam as

correspondências entre o sensível e o espiritual.

Como prenunciara Baudelaire em 1857, em seu famoso poema-manifesto

Correspondências:

“A natureza é um templo em que vivas pilastras Deixam sair às vezes obscuras palavras; O homem a percorre através de florestas de símbolos Que o observam com olhares familiares.

Como longos ecos que de longe se confundem Numa tenebrosa e profunda unidade, Vasta como a noite e a claridade, Os perfumes, as cores e os sons se correspondem.

Há perfumes saudáveis como carnes de crianças, Doces como os oboés, verdes como as campinas, - e outros, corrompidos, ricos e triunfantes,

Tendo a efusão das coisas infinitas, Como o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso,

que cantam os êxtases do espírito e dos sentidos”.142

A luz ganha um novo estatuto criativo – o da sugestão. No palco o “mundo

do espírito e da imaginação" necessita da fluidez e do movimento das luzes para

sugerir, ao invés de mostrar, abrindo canais de comunicação sensorial com a

platéia, provocando sua imaginação, que dessa forma “participa” do sentido do

íntimo do espetáculo.

A cor – até então usada com parcimônia, com o objetivo de recriar a

natureza em cena – ganha um estatuto próprio e começa a significar emoções,

estados d'alma ou universos oníricos. Esse desligamento da realidade levará à

invisível. Teatro do mistério do homem e do cosmos, onde a palavra reina e se faz música” Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a 1914. Paris: Editions du C.N.R.S., 1989, p.98.

142 Baudelaire, Correspondências in Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, Org.Gilberto Mendonça Teles. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p. 45.

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libertação do uso das cores na iluminação, para além da cópia e da descrição. As

cores do cenário e suas relações com o jogo de luzes ganham um estatuto

especial porque se comunica com o universo inconsciente através das sensações

e, portanto, cria subliminarmente analogias sensíveis com a palavra proferida,

inventando um verbo do olhar, ou, como propõe o ideal das correspondências

sinestésicas, as cores tornam-se música para os olhos. A relação entre as cores e

as notas musicais é explorada tanto na poesia, como metáfora, quanto em

experiências cênicas, ao vivo. A cor é elevada à categoria de símbolo e colocada

em um verdadeiro pedestal de significação. Como propõe neste trecho Alphonse

Germains, em 1892:

As cores estão para a vista, assim como demonstra Euler,como os diferentes sons da música estão para o ouvido. Por que então o autor dramático não pode se servir das cores como se serve da música em cena? Para metabolizar certas intenções, para reforçar certos efeitos (...). A cor! Engenhosamente distribuída, ela age sobre as multidões quase tanto quanto a eloqüência... Estética teatral e estética pictórica se reencontram aqui 143

A abstração proposta pela mudança das cores reais por seus significados

simbólicos, a possibilidade de reinterpretar e transformar a realidade através das

cores da luz jogadas sobre a cena, o jogo proposto pela mistura entre a cor luz e

a cor pigmento, regendo a relação entre os vários elementos da cena: são

legados fundamentais do simbolismo para o desenvolvimento da iluminação

cênica.

As novas propostas de utilização da cor começam a ser experimentadas na

iluminação cênica aos poucos, principalmente através da dança, que permite uma

abstração maior, mais fácil de ser aceita pelo espectador. As experiências mais

radicais nesse sentido – transmutação da realidade da cena pela mudança da cor

projetada pela luz – ainda vão esperar para se generalizar na prática cotidiana do

fazer teatral, porém as bases estão lançadas e as exceções começam a fazer a

143 Germain, Alphonse. “De la décoration au théâtre”, in la Plume, 1er févrir 1892, p. 62.

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história.144 Além do binômio: luz e não-luz, que já possibilita em seu contraste

miríades de sutilezas, a iluminação ganha a partir do simbolismo uma nova paleta

de cores para pintar o espaço cênico e separar diferentes níveis de existência,

diversos planos de realidade na encenação.145 A utilização radical das cores na

luz cria uma nova modalidade de contraste em cena, o ‘contraste em cor’, que

acompanha no teatro as práticas da pintura do início do século XX.

As relações complexas da encenação com o cenário pictórico e da pintura

com a iluminação, com todas as suas contradições146, transformam-se

estruturalmente no simbolismo, sugerindo, para além do telão de fundo, novas

correspondências. De coadjuvante a Iluminação cênica passa a ter um papel

central na concepção deste novo ponto de vista, sempre na fronteira entre o

visível e o invisível.

A linguagem simbolista vai inaugurar as novas experiências formais no

teatro, influenciando, de uma maneira ou de outra, os grandes encenadores,

cenógrafos, coreógrafos e teóricos do início do século XX como Stanislávski, Paul

Fort, Lugné-Pöe, Loï Füller, Adolphe Appia, Gordon Craig, Vsélovod Meierhold,

Max Reinhardt, entre muitos outros.

Entre eles, no entanto, há uma experiência que tem por objetivo específico

criar a correspondência teatral do movimento simbolista, vinculada, portanto,

diretamente com o movimento literário francês, o Théâtre d’Art.

144 Exemplos específicos serão expostos nos capítulos seguintes, caso a caso, quando tratarmos dos renovadores da cena que chegaram ou partiram do simbolismo como: Loïe Füller, Paul Fort, Lugné Pöe, Meierhold, Appia, Craig e Max Reinhardt. 145 Quando um autor como Nelson Rodrigues, por exemplo, quer significar que uma ação se passa em outro plano, no passado ou em sonho, inclui a seguinte rubrica: “entra uma luz espectral azul” e todos os leitores compreendem que se trata de outro plano de existência. Este é um legado direto do simbolismo. 146 Estudadas em detalhes por Appia.

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PAUL FORT E LUGNÉ POË e A ENCENAÇÃO SIMBOLISTA

Paul Fort, poeta simbolista, cria o Théâtre d’Art em 1890, como um libelo

explicitamente antinaturalista 147. Seu objetivo era congregar os adeptos da nova

arte em torno de uma empresa comum – colocar em cena os ideais do

Simbolismo, devolvendo a poesia ao teatro e o teatro à poesia.

Para essa empreitada chama como parceiro e diretor artístico dos

espetáculos o então ator Lugné Poë (vindo do Théâtre Libre, de Antoine). Juntos

empreendem várias experiências inovadoras no que se refere à encenação dos

textos simbolistas ou a uma “encenação simbolista” de textos clássicos. Partindo

da idéia, fundamental para a poesia simbolista, das correspondências entre as

idéias, as cores, os sons e os estados d’ alma, eles rompem de vez com os

cenários reais, dando ênfase na construção do espaço cênico às analogias entre

as palavras e as cores e formas, à alusão imprecisa de um lugar, à evocação de

um tempo múltiplo e desdobrado e às experiências sinestésicas. Enfim,

cenografia e iluminação cênicas que se comunicam com os sentidos do

espectador visando mais uma sugestão para a imaginação do que uma descrição

para o entendimento.

Para essas realizações então experimentais, Paul Fort convida vários

pintores ligados à corrente simbolista para conceber o espaço cênico; os telões

de fundo transformam-se em telas, muitas vezes abstratas: Serusier, Bonnard,

Ibels, Vuillard, Odile Redon, Serusier e Maurice Denis, entre outros, compõem

cenários e figurinos, construindo uma parcela pictórica do espetáculo.

Diretamente inspirado pela Gesamtkunstwerk wagneriana, ele concebe o

espetáculo teatral como uma síntese poética das artes, como uma obra que reúne

em seu seio as várias artes e artistas numa obra de arte que almeja a

totalidade.O Théâtre d’Art reinventa o cenário pictórico e inaugura a contribuição

da pintura moderna com o teatro, que terá lugar de destaque na primeira metade

do século XX.

147 Em suas memórias, Paul Fort declara que o Théâtre D’Art foi fundado “em vista de combater o Naturalismo”. Paul Fort, Mes Memoires. Toute la vie d’um poète. 1872-1944. Paris, 1944, p. 29.

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A presença dos pintores certamente teve grande influência na concepção

da função da luz em cena, principalmente no que se refere á novas formas de

utilização das cores. A noção, básica para um pintor, de que a cor é luz e a luz é

cor, invade os palcos. A significação simbólica passa a ser determinante na

escolha das cores das luzes e sua relação com as cores da cenografia e dos

figurinos.

No texto “De l’inutillité absolue de la mise em scène exacte” escrito para a

Revue d’Art Dramatique, Pierre Quillard148 expõe os princípios norteadores da

cenografia no Théâtre d’Art. Segundo Bablet, que analisa este texto, o verdadeiro

“evangelho”149 do Théâtre d’Art resume-se à frase de Quillard: “A Palavra cria a

cenografia como todo o resto” 150. Segundo esse princípio norteador, a cenografia

“exata”, realista e demonstrativa, prejudica a capacidade do espectador de

imaginar o lugar e a ambiência a partir da palavra proferida em cena, já que a

concretização de uma cenografia específica significa sempre uma redução das

múltiplas possibilidades que a palavra sugere para a imaginação. Trata-se, ao

contrário, de “Troubler l’illusion” 151 - perturbar, confundir, atrapalhar, turvar a

ilusão - multiplicando através da sugestão as suas infinitas possibilidades. Desta

forma a cenografia, criada através da palavra, pede a cumplicidade da platéia,

para completar com sua própria imaginação uma lacuna cheia de potencialidades,

como a poesia faz com suas metáforas. Ora, esse princípio está tanto em

Shakespeare como na tragédia grega e é um dos preceitos do teatro épico. Mas

sendo assim, o que resta ao resto, ou seja, à cenografia e a iluminação na cena

simbolista? A resposta de Quillard é clara, “A cenografia deve ser uma pura ficção

ornamental que completa a ilusão por analogias de cores e de linhas juntamente

com o drama” 152. Ou seja, resta ao espetáculo encontrar as correspondências

148 Autor do poema dramático “La Fille aux mains coupées”, montado pelo Théâtre d’Art em 1891. 149 Segundo Paul Fort em Mes Memoires. Toute la vie d’um poète. 1872-1944. Paris, 1944, p. 31. 150 Pierre Quillard, “De l’inutilité absolue de la mise en scène exacte”, dans la Revue d’art dramatique, 1ºmaio 1891, p.181 citado por Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.148. 151 Idem Ibidem, p.149. 152 Idem Ibidem, p.150.

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visuais das palavras através de um jogo de analogias entre os sentidos e as

sensações.

Em 1891 na encenação de Cantico dos Canticos de Salomão, Paul Fort

experimenta um espetáculo explicitamente sinestésico: levando ao paroxismo a

teoria das correspondências, relaciona as palavras á musica e, a cada quadro da

obra poética, com a projeção de luzes coloridas monocromáticas “pinta” a cena

enquanto perfumes são espargidos pela sala. Assim a cada quadro correspondia

uma “quádrupla orquestração: do verbo, da música, da cor e do perfume” 153.

A encenação de 1893 de Pelléas e Melisande dirigida por Lugné Poë

tornar-se-á o clímax da realização simbolista no Théâtre d’ Art. A obra

dramatúrgica de Maeterlinck ganha em cena um universo de mistério que valoriza

a poesia do drama, utilizando-se na cenografia do mínimo necessário, segundo os

princípios defendidos pelo encenador de “Síntese e sugestão”.154 Os móveis e

acessórios são suprimidos. Ao invés dos dezenove lugares por onde transita a

ação, Lugné Poë utiliza apenas duas telas de fundo, que substituem a

representação realista do lugar por uma evocação imprecisa, uma abstração em

cores, que sintetiza a atmosfera da peça:

Todo o valor da cenografia reside na harmonia de seus tons enevoados, reflexo do mistério e da melancolia que exala do drama: azul sombrio, lavanda, laranja e uma gama de diferentes verdes.155

Segundo o próprio Maeterlinck, em entrevista sobre a montagem “o

princípio da cenografia é de criar uma espécie de acompanhamento sinfônico de

cores em harmonia com o sentimento geral da obra” 156. Percebe-se aqui, como

um lema sempre relembrado, a justaposição entre o verbo, a música e as cores.

153 “A título de exemplo, menciono o primeiro movimento (Apresentação)- ele comporta uma orquestração do verbo: em i ilumina de branco/ da música: em dó/ da cor: em púrpura claro / do perfume: incenso.” Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.154. 154 Idem Ibidem, p. 158. 155 Idem Ibidem, p.160. 156 Maeterlinck,Maurice em artigo que precede a representação(autor e data não precisos) citado por Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989,nota 72, p.159.

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Quanto à iluminação temos uma descrição de Dennis Bablet, provavelmente

retirada de alguma crítica ou artigo da época, tal a quantidade de detalhes por ele

descritos:

A iluminação se adapta à atmosfera da peça que ela envolve em um véu de mistério. A sala é mergulhada na obscuridade, a ribalta é suprimida, personagens e cenários não recebem nenhuma iluminação de baixo e de frente. Eles são como apartados do publico; a iluminação que vem do alto lhes banha com uma ambiência de sonho. 157

Pela descrição de Bablet, pressupõe-se que a luz principal, vinda de cima

sem iluminar a face, seja uma geral a pino que, por “banhar” a cena em um

ângulo de 90 graus, como uma cachoeira de luz, revela as formas gerais dos

corpos e volumes, sem detalhes - resultando essa aura de mistério ou sonho.

Em 1893 – embalado pelas conquistas de Pelléas e Melisande - Lugné

Poë, junto com seus parceiros Camille Mauclair, escritor e crítico, e o pintor

Vuillard fundam o Théâtre de l’Ouevre. Existe uma parceria íntima entre Lugné

Poë e os pintores Nabys. Assim como no Théâtre d’ Art os pintores assumem a

criação dos cenários e figurinos: Vuillard, Bonnard, Denis, Dethomas, Munch,

Sérusier, Toulouse Lautrec, entre outros, pintam no espaço do Théâtre l’Ouevre..

Em 1921, passados vários anos das suas primeiras experiências no

Théâtre d’Art e no Théâtre l’Ouevre, Lugné Poë escreve sobre suas concepções

cenográficas em um artigo de jornal158, onde distingue duas escolas de

cenografia: a realista e a sintética, com a qual se identifica. Bablet comenta o

artigo do encenador, e a autocrítica que o tempo lhe impôs:

Neste estágio de sua carreira, Lugné Poë considera a cenografia não sem relativismo. Ele condena os exageros e pressupostos; constata que a arte da cenografia evolui numa dependência estrita com as artes plásticas.159

157 Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.161. 158 Lugné-Poë, “las deux écoles dans l’art Du décor”, 26-7-21, citado por Bablet, Denis, opus cit. p. 158. 159 Idem Ibidem, p. 158.

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Essa colaboração com os pintores atingiu tal identificação com a cena

simbolista que, para além do cenário pictórico, o palco todo será considerado

como uma espécie de “quadro cênico” e mesmo a movimentação dos atores,

seus gestos, sua posição e a noção do conjunto estará submetida à concepção

de uma pintura no espaço. Nesse sentido a poesia e a pintura, sobrepostas à

cena, sufocarão o teatro e suas especificidades. A síntese harmoniosa das artes,

ideal da Gesamtkunstwerk (Obra de Arte Total), mostrar-se-á mais difícil na

prática do que na teoria, correndo o risco de “enquadrar” mais do que libertar a

cena teatral.

A libertação da libertação chega, ou atravessa, pelo Théâtre l’Oeuvre com

a montagem de Lugné Poë do texto Ubu Rei, de Alfred Jarry, onde a crítica ao

teatro vira puro teatro, a síntese se liberta do aspecto formal, a sugestão

evocativa concretiza-se em uma tabuleta onde a indicação do lugar da ação é

escrita com erros ortográficos, explicitando cinicamente a cumplicidade com o

público. O teatro atravessa o limite do quadro e do próprio simbolismo, para

tornar-se puro jogo de cena e teatralidade. O tabu vira totem e o totem, tabu; o

símbolo cai do seu pedestal sagrado e entra no jogo da ação dramática e, como

tudo no teatro: é, mas também não é. Jarry e Pai Ubu nos lembram que

dessacralizar o sagrado é tão relevante para o teatro quanto sagrar o ordinário – o

que interessa é o movimento, a ação, o contraste, a transformação, o jogo. Essa

montagem, escândalo em seu momento histórico, se comunica ao mesmo tempo

com o passado e com o futuro: retomando a teatralidade das tradições dos

poetas-atores-improvisadores (nas quais se inclui Shakespeare, parodia

fundamental da peça), Jarry transgride o seu presente e transforma

definitivamente o futuro da história do teatro.

CONCLUSÃO

Na frança, o teatro simbolista, influenciado pelo encontro com as artes

plásticas, apresentou um viés primordialmente pictórico, e, portanto, tentou fixar

as correspondências sensoriais em uma “tela” disposta no fundo da cena,

organizando a composição cênica a partir dessa referência bidimensional,

acirrando assim, a contradição entre a vida do jogo dramático do ator e o “quadro

cênico”.

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Enquanto que, fora da França, outras práticas teatrais, experiências

formais e concepções teóricas, inspiradas diretamente pelo simbolismo, buscaram

na parceria com as novas tecnologias seu modus operandi. Os artistas que

seguiram este caminho encontraram na iluminação cênica uma ferramenta

fundamental de construção da cena, dando origem a uma reviravolta focada na

arte do espetáculo, graças a novo paradigma na relação entre o jogo do ator e o

espaço cênico, articulada pela luz.

Adolphe Appia, Gordon Craig, Vsévolod Meierhold, Max Reinhardt e, na

dança, Loï Füller (como exceção que confirma a regra), serão todos, em alguma

medida, iluminadores, além de encenadores, pensadores do teatro ou performers.

A influência desses poetas da cena para a nova arte do espetáculo fala per si.

Nos capítulos seguintes aprofundaremos a práxis de seus trabalhos e suas

contribuições específicas para o desenvolvimento da iluminação cênica como

linguagem.

Os movimentos artísticos e escolas literárias, que servem para nortear o

estudo das tendências da arte moderna, não cabem como rótulo para as

experiências destes artistas. Eles não são de fato, artistas simbolistas, mas

artistas do teatro que, a partir da inspiração do simbolismo, criaram caminhos

próprios no desenvolvimento da arte teatral.

Mas, mesmo conscientes da limitação e dos perigos dos conceitos

generalizantes em relação à experiência artística, única e particular, resolvemos

congregar a partir do movimento simbolista o trabalho destes artistas. O fizemos

devido à grande importância do conceito de Iluminação na teoria e prática do

simbolismo e, principalmente, à necessidade de organização do trabalho num

todo que possibilite relacionar as partes entre si. Tentaremos, portanto, relacionar

as especificidades da obra de cada um com as bases conceituais do simbolismo,

tomadas como ponto de partida das suas experiências práticas. Estaremos

atentos, no entanto, para além das influências, em como cada um desses artistas

desenvolverá seu caminho, atravessando o simbolismo rumo ao futuro das artes

cênicas, revolucionando técnicas e práticas, criando novos movimentos,

alargando em muito as fronteiras da arte do espetáculo.

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A iluminação cênica ganhará múltiplas facetas e formas advindas da

relação sempre viva entre o desenvolvimento tecnológico e as necessidades

específicas que encenadores e movimentos artísticos (que se superpõe com

incrível rapidez no decorrer do século XX) lhe demandarão, no entanto, o

simbolismo trouxe à linguagem da luz uma contribuição essencial, seu subtexto.

Em sintonia direta com a essência da música, em sua orquestração do visível, a

luz se comunica, através dos sentidos, diretamente com a alma.

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CAPÍTULO 7

LOÏE FÜLLER – O TEATRO DANÇA A LUZ

A experiência prática mais contundente e libertária criada a partir das

novas potencialidades da luz elétrica surge na dança, com o trabalho da

americana Loïe Füller, que estréia em 1891 no Follies-Bergères de Paris.

Loïe Füller dança com a luz. O seu corpo em movimento, ampliado por um

figurino composto por tecidos e véus de gaze brancos presos a bastões de

madeira, contracena com a projeção de um jogo de luzes, vindas principalmente

de baixo. Corpo e luz em movimento constroem juntos espaços flexíveis,

abstrações em cor que brincam com o espaço e o tempo.

As fotos, desenhos, reconstituições e descrições do trabalho de Loïe Füller

fazem parte do imaginário do fim do século XIX e início do século XX, com sua

atmosfera febril e feérica. As interjeições que a acompanham são tantas e tão

maravilhadas que, para além da dança em si, percebemos a estupefação e o

poder de inspiração que sua aparição em cena exerce sobre a imaginação dos

seus contemporâneos: “aparição fulgurante e fluida”; “poesia miraculosa”; “fonte

de êxtase” 160. Loïe Füller torna-se, ao dançar com a luz refletida em seu próprio

corpo, a própria encarnação do espírito de evanescência e fluidez, almejado pelos

simbolistas. O ideal da arte como correspondência entre o espírito e as

sensações, impalpável por excelência, ganha uma concretização viva no espaço.

A característica essencial dos espetáculos de Loïe Füller é justamente a

pesquisa fundada na relação entre a luz elétrica, em sua imensa potencialidade

de criar movimento, e o seu próprio corpo. Para isso, a dançarina lança-se a uma

série de experimentos práticos com a nova tecnologia.

No princípio - conta a própria dançarina em seu livro biográfico “Quinze ans

de ma vie” - a relação entre a dança e a luz surge dentro do teatro:

160 Citado por Bablet, Denis em Les Révolutions Scéniques du Vingtième Siécle. Paris: Soc.Int. d’Art Xxe siècle, 1975, p. 40.

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Em 1890, ainda atriz, ela interpretava em New York o papel de uma mulher que, sob o efeito de hipnotismo, se põe a evoluir em uma dança iluminada por uma luz verde. O princípio de sua dança estava descoberto161

Loï Füller em suas primeiras coreografias concebe apenas uma cor para

cada dança. Depois passa a jogar com a relação entre as cores, em consonância

com a música e os próprios movimentos, criando contrastes ferozes entre

sombra, luz e cores; a partir daí experimenta aparelhos de efeitos com lâmpadas

de arco voltaico, projeção de imagens, luzes incandescentes com controle total de

intensidade (dimmerizadas), fosforescências e jogos de espelhos, levando a

relação experimental entre arte e técnica ao auge em seu tempo.

A primazia da técnica da luz sobre a da dança fica clara quando lemos as

descrições de suas performances, que colocam a iluminação como personagem

principal do espetáculo:

Pela primeira vez a luz elétrica torna-se um fator essencial do espetáculo; colorida, móvel, a luz brinca sobre o corpo movente da dançarina que ela faz saltar da sombra, a iluminação joga com os véus de gaze que a dançarina, presa pelo fogo da projeção, agita ritmicamente. A forma movente não é mais que uma tela para a luz que a anima e a transforma ao infinito em uma nova magia. Se não existe cenografia no sentido tradicional do termo, a luz cria uma cenografia modular como uma música. 162

É a luz que age, impulsionando o movimento, tornando-se o fogo que agita

o corpo, a energia vital do espetáculo. Basta luz e corpo para criar uma

coreografia e uma nova noção móvel de espaço-corpo. Terá a luz, portanto,

múltiplas funções no espetáculo: uma luz-cenografia, uma luz-música, uma luz-

coreografia e, por fim, uma luz-dançarina que anima uma dançarina-luz. O ponto

de contato entre naturezas tão diversas como o corpo humano e a luz - O

MOVIMENTO.

161 Füller, Loï, Quinze ans de ma vie, préface d’ Anatóle France, Paris, 1908. Citado por Bablet, Denis; Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.146.

162 Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre de 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p.146.

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A dança é primeiro movimento, o movimento expressão de uma sensação, a sensação resultante do efeito produzido sobre o nosso corpo por uma impressão ou uma idéia. O movimento é o ponto de partida de toda expressão, ele é fiel à natureza. Somente ele traduz a verdade da sensação. 163

Loï Füller inaugura com seu “Teatro de Luz” as profícuas experiências

entre a iluminação cênica e a dança, influenciando não apenas a coreografia e os

novos caminhos por ela trilhados durante o século XX como também as múltiplas

relações entre arte e tecnologia – desenvolvidas na fronteira cada vez mais móvel

entre a dança, as artes plásticas e as artes cênicas – que darão origem, a partir

principalmente das experiências da Bauhaus, às instalações e performances.

163 Füller, Loï, Quinze ans de ma vie, préface d’ Anatóle France, Paris, 1908, capítulo VI “Lumière et Danse”, citado por Bablet, Denis. Opus cit., p.146.

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CAPÍTULO 8

APPIA da LUZ ATIVA à LUZ VIVA

De todos os encenadores, cenógrafos e pesquisadores desta encruzilhada

fundamental da história do teatro, Adolphe Appia foi o artista que propôs, com

mais consciência, uma mudança estrutural no conceito e na prática da iluminação

cênica. Ele o fez através de desenhos e concepções cenográficas, que ganham

movimento através da luz, mas, sobretudo, por meio de seus escritos sobre a

“arte do espetáculo”, nos quais dá grande importância à iluminação cênica, sua

relação com os demais elementos da encenação e seu papel artístico164 na

construção cena.

Chegamos aqui, portanto, a um ponto nevrálgico deste trabalho, porque

Adolphe Appia nos apresenta, no decorrer de sua obra um entendimento

absolutamente inovador em relação à iluminação cênica de seu tempo, propondo

uma mudança radical na função da luz na encenação e vislumbrando, de maneira

profética, o seu desenvolvimento futuro na arte do espetáculo. Dada a importância

desta concepção para o objeto desse estudo resolvemos acompanhar as

reflexões de Appia em relação à iluminação cênica pari passu com sua formação.

Desta forma tentaremos extrair de seus textos, com paciência, os múltiplos

aspectos abordados por ele sobre a luz.

Appia escreveu três livros: La mise en scène du drame wagnerién em 1892

(publicado em 1895), La Musique et la Mise-en-scène em 1897 (publicado em

1899) e “A Obra de Arte Viva” em 1919 (publicado em 1921), síntese de suas

concepções sobre o teatro. Também compôs projetos detalhados de encenação,

sobretudo para as obras poético-musicais de Richard Wagner, com desenhos,

notas e comentários para todas as suas propostas, além de inúmeros artigos,

ensaios, exposições, conferências, cartas e manuscritos.165

164 “Um objeto é plástico para nossos olhos apenas pela luz que o toca e sua plasticidade só pode ser avaliada artisticamente por um emprego artístico da luz, isso é claro” Appia, Adolphe. “Comment Réformer notre mise en scène” (1904) in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome II, 1986, p. 348. 165 Sua obra foi reunida em edição elaborada e comentada por Marie L. Bablet-Hahn: Appia, Adolphe. Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome I (1983), Tome II (1986), Tome III (1988) e Tome IV (1992).

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O PONTO DE PARTIDA – A ENCENAÇÃO DO DRAMA WAGNERIANO 166

As concepções de Appia sobre encenação desenvolvem-se à luz da obra

poético-musical de Richard Wagner e suas contradições.

Desde que entrou em contato pela primeira vez com as montagens do

poeta-músico, em 1889-90 em sua primeira temporada em Dresden, parece-lhe

existir uma incoerência fundamental entre o significado íntimo dessa obra e sua

realização. Para Appia, inspirado pela idéia de síntese e sugestão dos

simbolistas, esta nova forma de drama tem na vida interior o seu verdadeiro

sentido; portanto, já traz em si todos os elementos necessários à sua encenação:

a poesia sugere os lugares onde a ação se passa e a intensidade musical as

emoções e atmosferas do drama; porém, as montagens realizadas por Wagner

continuavam carregadas de elementos realistas e demonstrativos, que, além de

supérfluos, aprisionavam nas aparências a potência da própria obra. Da

necessidade de responder a tais contradições, às quais considera uma

“desproporção”, é que partiu sua reflexão sobre o teatro, principalmente no que

concerne à relação entre a música e a arte do espetáculo e seus projetos e

desenhos para a encenação, sob nova perspectiva, dos dramas poético-musicais

de Wagner.

Embora grande parte dos projetos de encenação de Appia tenha

permanecido irrealizada na prática do teatro de seu tempo, seus desenhos e

projetos são resultado de uma síntese de sua visão de conjunto da encenação.167

Sua obra foi composta de forma a expor, sobre todos os pontos de vista que lhe

foram possíveis, as concepções (teórico-práticas) de um artista que se propôs,

conscientemente, a tarefa de transformar as bases da arte do espetáculo e,

sobretudo, as relações entre os vários elementos que se conjugam na encenação,

dando ênfase ao ator, ao espaço e à iluminação, sob as ordens da música.

166 Appia, Adolphe. La Mise en scène du Drame Wagnérien, in Oeuvres Complètes. Paris: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme, Tome I, 1983. 167 É importante notar que o que chamamos aqui de visão “de conjunto” não se identifica com a Gesamtkunstwerk wagneriana (Obra de arte total), muito pelo contrário. As relações de Appia com esse conceito são complexas e serão analisadas em detalhes mais à frente. De fato ele principia seu estudo pela reflexão sobre este conceito, já que sua obra parte fundamentalmente de Wagner, porém a análise cuidadosa de cada elemento da encenação fará com que suas idéias sobre a relação entre eles na construção do espetáculo divirjam estruturalmente da idéia de “junção harmoniosa de todas as artes”, contida neste conceito.

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A HIERARQUIA DOS ELEMENTOS QUE COMPÕEM A ENCENAÇÃO

Tomando por método de trabalho o estudo minucioso dos elementos que

compõem a encenação e suas relações recíprocas, Appia cria uma hierarquia

entre eles, de forma a estabelecer uma conexão orgânica entre cada elemento e

os demais168. Ele o faz com o objetivo de potencializar na apresentação do

espetáculo a expressão da obra dramática em consonância com a música. Esta

hierarquia e as reflexões que suscita transformam-se ao longo de sua obra.169

Appia principia por recolocar o ator no centro da cena. Esse é o ponto

basilar de seu ideário, o eixo sobre o qual constrói toda a sua reflexão sobre a

encenação. A presença viva e móvel do ator é, para ele, o sentido mesmo do

teatro. Segundo suas próprias palavras:

Ao teatro nós viemos assistir a uma ação dramática, é a presença das personagens em cena que motiva esta ação, sem as personagens não existe ação. O ator é então o fator essencial da mise en scène, é ele que nós viemos ver, é dele que nós esperamos a emoção, e é esta emoção que nós viemos procurar. Trata-se então, a todo custo, de fundar a mise en scène sobre a presença do ator e, para o fazer, de desembaraçar o teatro de tudo o que está em contradição com esta presença 170

Portanto, para dar vida ao drama, não é somente ao texto que os

elementos da encenação devem se remeter, mas, sobretudo, ao ator. Todos os

demais elementos devem lhe ser subordinados.171

168 “Como se trata aqui de uma questão de proporções, só nos resta examinar os elementos da tecnologia teatral e subordiná-los uns aos outros de uma maneira que corresponda aos meios de expressão do poeta-músico”. Appia, Adolphe. La mise en scène du drame wagnérien in Oeuvres Complètes, Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme., 1983, 268. 169 Appia propõe o primeiro esboço desta hierarquia, ainda de forma confusa e paradoxal, em “La mise en scène du drame wagnérien”, de 1892. Porém ela é retomada em muitos textos e se transforma ao longo do tempo tornando-se cada vez mais clara, até atingir uma síntese em “L’Avenir du drame et de la mise en scène” de 1919, vinte e sete anos depois. 170 Appia, Adolphe. “Comment Réformer notre mise en scène” (1904) in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme.Tome II,1986,p. 350. 171 “o primeiro fator da encenação é o intérprete, o ator. O ator é o portador da ação. Sem ele nada de ação. Não se parte do drama. Tudo, parece, deveria estar subordinado a este elemento que está hierarquicamente em primeiro lugar” Appia, Adolphe. “L’ avenir du drame et de la mise en scène” (1919) in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome III, 1988, p. 335.

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102

Mas o corpo do ator “é vivo, móvel e plástico: ele tem três dimensões.” 172

Então o espaço no qual este corpo evolui também deve ser construído a três

dimensões, possibilitando um contato efetivo entre o movimento dos corpos e o

espaço.

Este pensamento é absolutamente contrário à cenografia pictórica, em

todas as suas formas. Appia empreende então, através de grande parte de seus

textos, uma batalha ferrenha contra a tela pintada, paradigma da cenografia de

seus contemporâneos:

Estas telas são cobertas de luz pintada, de sombras pintadas, de formas, de arquiteturas, de objetos pintados; e tudo isto, naturalmente, sobre uma superfície plana, pois é o modo de ser da pintura. A terceira dimensão é substituída insidiosamente por uma sucessão mentirosa no espaço. 173

Segundo o desenvolvimento desta reflexão, a primazia da pintura na

cenografia inverte a ordem hierárquica e coloca todos os elementos da

encenação em submissão às duas dimensões da pintura. A tela pintada deixa,

portanto, sem sentido a disposição de elementos tridimensionais no espaço e

torna falso o efeito da luz, porque ao iluminar uma tela cheia de sombras e luzes

falsas, a iluminação precisa renunciar ao seu próprio desenho no espaço e às

suas próprias sombras, para dar sentido à pintura: A iluminação, ao contrário, poderia ser considerada

como toda poderosa, não fosse sua antagonista, a pintura, que torna falso seu efeito. A “plantação” (disposição dos elementos em cena) participa do destino das outras duas: ela se restringe ou se desenvolve em razão direta da importância da pintura ou da iluminação. O elemento menos necessário, a pintura, portanto, atrapalha sensivelmente o desenvolvimento dos outros dois elementos, que lhe são superiores.174

172 Idem Ibidem, p.335. 173 Idem Ibidem, p.336. 174 Appia, Adolphe. La mise en scène Du drame wagnérien in Oeuvres Complètes, Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme., 1983, p. 268.

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É, sobretudo, a contradição entre as duas dimensões da pintura e as três

dimensões do corpo do ator que mata a vida do teatro. É preciso escolher entre a

vida da arte dramática e a pintura:

Ou a pintura renuncia a sua existência fictícia a favor do corpo vivo, o que equivale a suprimir-se a si própria; ou o corpo tem de renunciar à sua vida plástica e móvel, dando à pintura uma posição superior à sua, o que é a negação da arte dramática. 175

Parsifal, Ato III “A campina em flor” – Bayreuth, 1882

Cenografia de Brükner

Appia escolhe o sacrifício da pintura. Proclama este sacrifício abertamente,

luta por ele com todos os seus meios.

Propõe então, não apenas no plano da teoria, mas também no

desenvolvimento de seus projetos como cenógrafo e encenador-iluminador,

substituir a cenografia pictórica, figurativa e estática, pela cenografia arquitetural,

composta estruturalmente de formas geométricas: colunas, planos inclinados e

escadas, que favorecem de todas as maneiras, por sua configuração

transformável, o movimento. Este espaço está à mercê do ator, ele não é uma

175 Appia, Adolphe. A Obra de Arte Viva. Trad. Redondo Jr. Ed. Arcádia, Lisboa.s/d, p. 40.

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reiteração do drama, nem um signo que localiza um lugar no tempo, muito menos

uma cópia da natureza, ele é pura potencialidade.

Parsifal, Ato III “A campina em flor” – Desenho de Appia 1896/1904

Temos aqui, portanto, o segundo elemento em sua hierarquia: O espaço.

O ATOR, O ESPAÇO E... A LUZ!

À iluminação cênica cabe o terceiro lugar na hierarquia de Appia.

Poderíamos pensar então que esta é uma importância relativa, já que não se trata

nem de um primeiro, nem mesmo de um segundo lugar... Contudo aqui não se

trata apenas de uma fila de ordem decrescente, mas, de fato, de um conjunto de

relações dinâmicas e interdependências entre os elementos essenciais da

encenação.

Nesta teia de relações cabe à iluminação um papel fundamental: a ligação

entre o ator vivo e o espaço inanimado. Appia é explícito em considerar esta

função como um “novo papel da iluminação”:

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Este sacrifício (da pintura) será compensado pelas vantagens que fornecerá o novo papel da iluminação? Não esqueçamos que na sua qualidade de intermediária entre ator, de uma parte e, de outra parte, a “plantação” e a pintura (cenografia), a iluminação constitui o elemento de fusão mais importante da encenação: o que nós perdemos na quantidade de signos nos é dado então pela via da expressão direta. 176

A função dada à iluminação cênica de “intermediária” entre o ator e a

cenografia, que têm diferentes realidades de existência, só é possível, graças á

imensa flexibilidade da iluminação.

A luz é de uma flexibilidade quase miraculosa. Ela possui todos os graus de claridade, todas as possibilidades de cores, como uma paleta; todas as mobilidades; ela pode criar sombras, torná-las vivas e expandir no espaço a harmonia de suas vibrações exatamente como o faz a música. Nós possuímos nela todo o poder expressivo do espaço, se este espaço é colocado a serviço do ator.177

Appia intenta, assim, para transformar efetivamente a função da

iluminação, alterar a sua qualidade: de uma luz passiva, que tem por objetivo

apenas “tornar visível”, para uma luz ativa e móvel. A iluminação confere assim

movimento à cenografia, ou seja, vivifica o espaço, permitindo uma relação

concreta entre o ator vivo e o espaço, tornado vivo através da luz. A LUZ ATIVA é

o instrumento de orquestração das relações entre os diversos elementos que

compõe o espetáculo.

Esta completa, portanto, a teia de relações recíprocas exposta por sua

hierarquia, assim consolidada:

176 Appia, Adolphe. La mise en scène Du drame wagnérien in Oeuvres Complètes, Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme., 1983, p.269-270. 177 Appia, Adolphe. “L’ avenir du drame et de la mise en scène” in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome III, 1988, p. 336.

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E aqui está nossa hierarquia constituída normalmente: O Ator, que representa o drama, O Espaço, com suas três dimensões, a serviço da forma plástica do ator, A Luz, que vivifica um e outro.178

Appia busca no desenvolvimento desta hierarquia, assim como na reflexão

que ela traz à tona, criar para a encenação do drama wagneriano um “conjunto

orgânico” 179 que possibilite uma tradução da expressão da música e da poesia do

drama interior, para a concretude do espetáculo.

Podemos perceber essa força ‘tradutiva’ em dois desenhos de Appia para a

cenografia do terceiro ato de As Walkirias, parte de seus projetos de encenação

para a tetralogia do Anel dos Nibelungos que reproduzimos na página seguinte.

Estes projetos foram realizados entre 1890 e 1892, e são concomitantes

com os seus primeiros escritos sobre a encenação do drama wagneriano,

demonstrando a forte relação entre a prática e a teoria da encenação, implícita

em toda a sua obra.

178 Appia, Adolphe. “L’ avenir du drame et de la mise en scène” (1919) in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome III, 1988, p. 336. 179 “nós obteremos assim, para a forma representativa, um conjunto orgânico correspondente ao organismo do drama abstrato; e os meios de expressão, se subordinando uns aos outros, adquirirão a flexibilidade desejada”. Appia, Adolphe. La mise en scène du drame wagnérien in Oeuvres Complètes, Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme., 1983, p.269.

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É no contraste entre as

escarpas em silhueta no

primeiro plano e o céu do

fundo, que sentimos o

impacto das formas.

O movimento do coro das Walkirias, também em silhueta, cria uma expectativa

em consonância com a música. Segundo o projeto, o fundo cinza e claro se move

através da projeção de nuvens, da esquerda para a direita, que se tornam, pouco

a pouco, cada vez mais carregadas, escuras e tempestuosas, anunciando a

tragédia e a chegada do personagem Wötan. O céu se abate sobre as escarpas.

Esta utilização das nuvens em movimento, pelo contraste do fundo, traz a força

sugestiva e impetuosa da tragédia anunciada, para além da demonstração de

uma tempestade que se aproxima. Segundo as anotações do próprio autor para

este desenho:

Wotan se anuncia no céu

pela aproximação de uma

grandiosa tempestade. As

Walkyrias se submetem ao

papel ativo do céu, que

elas apenas comentam.180

Como podemos

perceber nesses desenhos,

os seus primeiros projetos são fortemente influenciados pelas teorias simbolistas

de “síntese e sugestão”, ponto de partida de suas concepções sobre a obra de

Wagner.

180 Appia, A. “Notes de mise en scène den Ring des Nibelungen – Walküre” in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome I, 1983, p. 157 e 161.

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A MÚSICA E A ENCENAÇÃO 181

Quando a música atinge a mais nobre potência, ela deve vir a ser forma no espaço Schiller

Estabelecidas as relações primeiras entre os elementos constituintes da

arte do espetáculo; em seu segundo livro, Appia parte para um aprofundamento

da análise de cada um destes elementos e suas características técnicas

específicas, em relação intrínseca com a música e a encenação.

Em A música e a Encenação Appia procede a uma anatomia rigorosa de

seu objeto. A estrutura geral da obra é divida em três partes e um apêndice. A

primeira parte, que nos interessa, trata da “Mise en scène como meio de

expressão” e é dividida em dois capítulos: no primeiro ele analisa separadamente

os conceitos de mise en scène, ou seja encenação e música, no segundo analisa

a “música como criadora da encenação”. Esse segundo capítulo, por sua vez,

também é dividido em duas partes: os princípios teóricos e as resultantes

técnicas. Aqui, ele faz uma decupagem de cada elemento da encenação,

incluindo a iluminação, do ponto de vista conceitual e técnico, é onde

concentraremos toda nossa atenção.182

Descrevemos o plano geral da obra, para que possamos apreender um

duplo objetivo. O de Appia: descrever e analisar seu objeto, do geral para o

particular, camada por camada, relacionando cada “resultante técnica” com o seu

superobjetivo, ou seja, a tradução do poder expressivo da música na concretude

da cena. O nosso: extrair dessa analise a relação intrínseca que Appia propõe

entre técnica e estética, base necessária para compreender a relação entre a luz

e a encenação e, portanto, a própria especificidade “técnico-estética” da criação

de uma linguagem da iluminação cênica.

181 Appia, Adolphe. La Musique et la mise en scène in Oeuvres Complètes, Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome II , 1986. 182 A segunda parte é dedicada a “Richard Wagner e a mise en scène”, a terceira ao “Drama Poético-musical sem Richard Wagner”. O apêndice traz projetos de encenação detalhados, incluindo desenhos e descrições técnicas de Tristão e Isolda e da tetralogia do Anel dos Nibelungos.

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A iluminação, assim como a música, pressupõe, quando posta em cena, a

inter-relação entre uma existência abstrata, metafísica, e uma dimensão física e

técnica que lhe dá suporte. A complexa relação tradutiva entre uma e outra, é o

problema que se Appia se coloca e que tentaremos destrinchar aqui.

A METAFÍSICA DA LUZ EM CONSONÂNCIA COM A MÚSICA

No trecho dedicado especificamente à iluminação Appia principia por nos

lembrar que Apolo é o deus consagrado ao mesmo tempo à música e à luz, de

onde a relação íntima, a “afinidade misteriosa” existente entre as duas. A partir

das bênçãos do deus, ele continua a analisar a relação intrínseca entre elas:

A iluminação é na economia representativa o que é a música na partitura: o elemento expressivo oposto ao signo; e, da mesma maneira que a música, ela não pode exprimir nada que não participe da “essência íntima de toda visão”. 183

A primazia da linguagem expressiva, com forte tendência à abstração, em

relação ao determinismo do signo é uma tônica de todo o pensamento de Appia.

Deve-se principalmente à forte influência do simbolismo em suas concepções

sobre a essência da obra de arte e está implícita nas relações estabelecidas em

sua hierarquia dos elementos que compõem a encenação.

A partir desse ponto de vista podemos subentender que a “afinidade

misteriosa” que une a música e a luz deve-se às características abstratas de suas

naturezas, que por sua vez participam da essência mesma da obra de arte,

expressão de um mundo interior, espiritual e abstrato. O conceito de participação,

o mesmo que faz com que o poder expressivo da luz “participe” da “essência

íntima de toda a visão” tem origem no idealismo platônico, assim como a

concepção simbolista da arte.

183 Appia, Adolphe. La Musique et la mise en scène in Oeuvres Complètes, Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome II , 1986, p. 93.

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Porém a aplicação do idealismo platônico na arte e, principalmente na

representação teatral, é paradoxal e contraditória. Chegamos aqui em um ponto

nevrálgico do problema posto pela concepção do teatro no simbolismo. Para que

a Idéia possa ser compartilhada com o público através da arte da cena, é

necessária uma “encarnação” dessa mesma idéia, uma manifestação para os

sentidos, ou seja, uma via contrária à da transcendência platônica. Appia precisa

ultrapassar essa contradição, legada pela tradição simbolista, para conquistar seu

superobjetivo.

Se a obra poético-musical de Wagner o levou à transcendência, a

necessidade de traduzi-la para a cena o traz de volta para a imanência da arte do

espetáculo.

Para Appia, a expressão da interioridade não deve permanecer

transcendente e inalcançável, como propõem os poetas dramaturgos do

simbolismo francês, nem ceder à simplificação do signo realista, como faz

Wagner e seus parceiros em suas montagens em Bayreuth, é preciso, portanto,

encontrar uma tradução entre esses dois planos de existência, através dos

elementos que constituem o espetáculo e dos meios técnicos ao seu serviço, a

tecnologia teatral.

É neste processo de “tradução” que Appia se distancia do idealismo e dos

simbolistas e cria um caminho original, uma tradução cênica própria entre a alma

e o corpo, entre a estética e a técnica. Ele realiza uma superação criativa dessa

contradição entre transcendência e imanência na obra de arte. O movimento

interno criado por esses dois vetores opostos pode ser apreendido em seus

desenhos para a encenação dos dramas poético-musicais de Wagner, onde

contracenam elevação e concretude. A arte atravessa a mimese, deixa de ser

simulacro, para ser Idéia encarnada. Abstrata e concreta ao mesmo tempo, como

a geometria ou como a luz ativa, que dá vida a um espaço concreto através de

sua flexibilidade, traduzindo no plano do visível a potência evocativa da música.

Sem que suas proporções sejam constantemente paralelas, os dois fatores (a música e a luz) são dentro do Wort-TonDrama uma grande analogia da existência. (...) Em seguida eles são dotados de uma flexibilidade incomparável que lhes permite percorrer consecutivamente

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todos os graus da expressão, desde um simples ato de presença até o mais intenso transbordamento. 184

A EXPRESSÃO DA LUZ ATRAVÉS DA TECNICA

Como já foi citado aqui, Appia escreveu muito sobre a iluminação, mas em

geral com enfoque teórico e conceitual. Em A Música e a Encenação, porém,

como uma exceção que confirma a regra, em cinco páginas dedicadas

especificamente ao tema, ele tenta organizar um sistema geral da prática da

iluminação cênica do ponto de vista estético e técnico, estabelecendo diferentes

funções e formas da luz no espetáculo, incluindo a descrição dos equipamentos e

posicionamento preferenciais para cada função proposta. Esse “compêndio das

técnicas de iluminação cênica” escrito em 1892 é, portanto, documento

fundamental para compreender em seus primórdios a articulação de uma função

ativa da luz no teatro e suas características técnicas. Ou seja, o que poderíamos

chamar de “be-a-bá” da constituição de uma “Scriptura” da iluminação cênica.

Embora se refiram diretamente à tecnologia existente no final do século

XIX, estas reflexões estabelecem princípios básicos, ainda válidos, para a

compreensão das partes constituintes de um “desenho de luz” e demonstram

familiaridade com os problemas técnicos da iluminação e as relações intrínsecas

entre técnica e estética.185 Porém não é sem dificuldades que ele o faz.186

A busca de um conceito operativo para a iluminação cênica parte da

observação da luz do dia:

184 Appia, Adolphe. La Musique et la mise en scène in Oeuvres Complètes, Tome II , Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme, 1986. p. 94. 185 Sabemos que em sua primeira temporada em Dresden ele fez um estágio de aprendizagem com Hugo Bähr e entrou em contato direto com suas realizações técnicas. Também conheceu Rogelio Egusquiza, pintor que escreveu o primeiro artigo sobre a iluminação na obra de Wagner: “Sobre a iluminação da cena” in Bayreuther Bläter, abril de 1885. 186 “Não somente a ação soberana da luz resta indemonstrável para quem não a sente, mas, mais ainda é incômodo discorrer sobre seu emprego técnico” Appia, Adolphe. La Musique et la mise en scène in Oeuvres Complètes, Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome II , 1986, pp. 93-94.

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A luz do dia penetra na atmosfera de todos os lugares sem diminuir assim a sensação que nós temos de sua direção. Ora a direção da luz nos é perceptível somente pela sombra, é a qualidade das sombras que exprime para nós a qualidade da luz. 187

Aqui está um preceito básico que rege a iluminação cênica: é a sombra que

imprime não só a direção da luz, mas também o volume das formas, criando o

claro-escuro, o contraste, que revela a tridimensionalidade da cena e determina

para nossos olhos o desenho da luz no espaço. Para Appia, do ponto de vista da

arte, a luz se distingue por ser um elemento expressivo do espetáculo:

Se não existe sombra, não existe luz, porque luz não é “ver claro” (...) a luz se distingue por sua expressão. 188

Porém também é preciso ver a cena, isto é fato. Aqui tocamos no

“calcanhar de Aquiles” dos iluminadores e um dos grandes problemas na

constituição de uma linguagem da iluminação cênica, a relação das diferentes

funções da iluminação e a forma possível de contracenação entre elas na prática

do fazer teatral. Perguntamo-nos então: O que chamamos aqui de instrumento da

visibilidade contradiz o estabelecimento de uma função artística ativa para a luz

em cena? A luz “para ver” mata o desenho da iluminação? Ou, a luz “expressiva”

deixa necessariamente a cena escura? Estas duas funções da iluminação seriam

então excludentes uma em relação à outra? 189

Appia, ao tentar fundar uma teoria da iluminação cênica como elemento

artístico baseado na análise da prática do teatro de seu tempo, se vê diante deste

problema fundamental, que é repetido milhares de vezes na experiência de cada

um de nós, iluminadores.

187 Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes, Tome II. Op. Cit. p. 95. 188 Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes, Tome II. Op. Cit. p. 95. 189 Essa é uma questão fundamental e, embora pareça fácil dizer que não, é uma dificuldade muito concreta na criação da luz em um espetáculo. Na concepção mesma de iluminação cênica ainda existem linhas de força contrárias sobre essa questão. Basta ler a opinião de Peter Brook sobre os excessos da luz no espetáculo do século XX.

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Estabelece então um princípio metodológico para a concepção de um

desenho de luz, com o objetivo de possibilitar que essas duas funções possam

conviver: Trata-se então de dividir a tarefa e ter de uma

parte os aparelhos encarregados de propagar a luz, e de outro aqueles que pela direção precisa de seus raios provocarão as sombras que devem nos assegurar da qualidade da iluminação. Nós chamaremos umas de LUZ DIFUSA e as outras de LUZ ATIVA. 190

Este princípio metodológico é fundamental para a prática atual da

iluminação cênica e dele depende o bom resultado de um plano de luz,

principalmente na perspectiva frontal do palco italiano. Não é a mesma luz que

cria o desenho do espaço aos olhos do espectador, que ilumina a ação do ator.

Se fosse, ou o ator ficaria totalmente a mercê da geografia dessas sombras,

entrando e saindo da luz à medida que se movimenta e, deste modo, aparecendo

e desaparecendo da visão do espectador sem um princípio lógico balizado pela

ação dramática, ou, os raios e as sombras da luz que ilumina o ator atingiriam

aleatoriamente o cenário, causando um caos completo no desenho da luz e,

conseqüentemente, do espaço.191

Porém uma coisa é estabelecer um princípio metodológico, outra é ter

aparelhos específicos para cada função e saber como posicioná-los, para que o

princípio funcione. Em certo momento dessa análise Appia chama atenção para a

dificuldade da resolução deste problema prático na disposição dos aparelhos de

iluminação e do caos que as sombras indesejadas e sobras de luz podem causar

no desenho geral do espaço:

O jogo harmonioso de todas as fontes de luz é evidentemente muito complicado, é mesmo tão complicado

190 Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes, Tome II. Op. Cit. p. 95. 191 Tomei conhecimento explícito desse princípio da divisão da luz “para ver” da luz que estabelece “a forma de ver” em 1988 quando fiz um curso com Max Keller. O iluminador alemão nomeava à época a luz “para ver” de “luz de preenchimento” o que Appia chama aqui de “luz difusa”, e “linha principal de luz”, àquela que cria o desenho da luz no espaço e que Appia chama aqui de “luz ativa”. A luz difusa, ou de preenchimento normalmente corresponde à “LUZ GERAL”, mas pode existir também uma luz específica de preenchimento.

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que é perfeitamente impossível, e nossos espetáculos o provam. (...) De que maneira conciliar, com efeito, uma luz destinada a iluminar as telas verticais e que não batem menos nos objetos colocados entre elas, ou com uma luz destinada a certos objetos e que não batem menos nas telas verticais? Num tal estado de coisas seria ridículo falar da qualidade das sombras! 192

Ao ler este trecho percebemos com nitidez o quebra-cabeças desse

trabalho pioneiro de criar um desenho coerente a partir da iluminação elétrica,

com miríades de fontes de luz intensas e concentradas espalhadas pelo espaço.

De certa forma essa dificuldade encontra uma analogia com a experiência de um

aprendiz na arte e técnica da iluminação cênica que tem de determinar os locais

onde instalar a aparelhagem técnica, sem saber ao certo por onde começar nem

o resultado prático dessa escolha. É como lutar de olhos vendados com inimigos

desconhecidos.

Aqui abriremos parênteses para relembrar, de maneira geral e rápida, as

condições técnicas da iluminação cênica no fim do século XIX193, a fim de que

possamos compreender melhor a descrição técnica e as inovações que Appia

expõe, na seqüência:

No início do emprego da luz elétrica no teatro, as lâmpadas

(incandescentes ou de arco-voltaico) apenas substituem os pontos de gás ou de

lampiões e velas. Porém uma lâmpada produz uma luz muito diferente da luz viva,

difusa e móvel, do fogo. Os equipamentos utilizados nesta época são, em geral,

de luz aberta, têm várias fontes de luz e muitas vezes são fixos em locais pré-

determinados pela própria estrutura do teatro. No entanto, como consta da própria

descrição de Appia a seguir, já existem aparelhos individuais, móveis e

manejáveis, com um sistema ótico que permite direcionar o facho de luz ou

mesmo projetar imagens, paradas ou em movimento, como aqueles

desenvolvidos por Jules Duboscq e Hugo Bähr. Porém estes aparelhos eram

então utilizados apenas para realizar efeitos específicos.

192 Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes, Tome II. Op. Cit. p. 95. 193 Mais informações encontram-se no capítulo 3 sobre o desenvolvimento tecnológico que acompanhou a chegada da luz elétrica ao teatro.

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Para tentar organizar o caos, Appia se propõe então a descrever os

aparelhos de iluminação existentes em sua época e organizá-los em grupos de

acordo com suas funções específicas. Segue, de forma resumida194, a descrição

realizada por Appia:

Sobre nossas cenas, a iluminação se fará

simultaneamente, sobre quatro formas diferentes. 195

1. O equipamento para iluminar as telas pintadas: fontes fixas de luz sobre

as telas, secundadas por ribaltas móveis localizadas nas coxias.

2. A ribalta “esta singular monstruosidade de nossos teatros, encarregada

de iluminar a cenografia e os atores pela frente e de baixo” 196

3. Os “refletores” ou “projetores”: “Os aparelhos completamente móveis e

manejáveis para fornecer um raio preciso e direcionável e projeções

variadas”.197

4. Iluminação por transparência, vinda por trás de uma tela.

A partir dessa descrição técnica do teatro de seu tempo (onde mistura

forma, equipamento e função, indistintamente), faz uma série de reivindicações

para o futuro da iluminação cênica, visando uma especialização dos

194 Como as descrições técnicas aqui estabelecidas referem-se a equipamentos que, em geral, não são mais utilizados, tentarei sintetizar essa descrição segundo o interesse que vemos nela, quer seja, entender o problema da forma e pensamento da luminotécnica no fim do século XIX. Os nomes dos aparelhos em francês, segundo descrição do dicionário de termos técnicos..., correspondem às antigas gambiarras, tangões e ribaltas, fixas à beira do proscênio ou móveis, que podem ser penduradas em vários locais, ganhando aí nomes variados, segundo termos brasileiros. Convém lembrar que até hoje não há padrão oficial para a nomenclatura desses aparelhos, dependendo, para além do problema da língua, de uma imensa variedade de marcas, tipos e costumes locais. 195 Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes, Tome II. Op. Cit. p. 95. 196 Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes, Tome II. Op. Cit. p. 95. 197 Idem Ibidem, p.95. Segundo a nota de Marie Bablet-Hamm, a descrição destes aparelhos refere-se àqueles desenvolvidos por Hugo Bähr, que Appia viu funcionar em Dresden em 1888.

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equipamentos de acordo com o novo princípio por ele defendido. Todas as

propostas por ele sugeridas foram empreendidas com o tempo e fazem parte da

nossa realidade presente:

Para a LUZ DIFUSA indica os aparelhos abertos, porém acrescidos de

“telas de uma transparência variável destinadas a atenuar os efeitos pronunciados

de sua claridade sobre os objetos e atores”, ou seja, o que chamamos hoje,

justamente, de difusores, perfeitos para suavizar o contraste na luz geral e

ressaltar cores e volumes de forma homogênea. Também propõe que esta luz

não venha da ribalta, mas de todos os lados para preencher por igual o conjunto

da cena. Ou seja, ele recomenda a composição do que chamamos de LUZ

GERAL.

Para a LUZ ATIVA, sugere que sejam empregados os aparelhos móveis e

manipuláveis, individualizados, os quais “serão objeto de grande atenção e

aperfeiçoamento de seu mecanismo”, propõe também o uso de formas e recortes

para interceptar parte da luz dos aparelhos móveis e manipuláveis, criando

sombras sugestivas, fachos de luz com formas ou imagens projetadas,

exatamente da maneira como laboram os elipsoidais (também chamados de

refletores de recorte) que têm facas de corte, íris e locais internos para colocar

imagens em negativo (gobos), que são projetadas pelo refletor. 198

A relação entre essas duas categorias de luz – a LUZ DIFUSA, que permite

“ver” e a LUZ ATIVA, que contracena com o espaço, o cenário e o ator – depende

de um delicado jogo de relações, onde as luzes podem e devem se

complementar, vindas de ângulos diferentes e com intensidades diferentes, mas

não eclipsar uma a outra.

A luz difusa e a luz ativa só existem simultaneamente através dos seus diferentes graus de claridade.199

198 Quanto ao sentido da projeção de imagens nas reflexões de Appia analisaremos com mais detalhes a seguir dada a importância deste aspecto no todo de seu ideário e para o futuro da tecnologia teatral. 199 Appia, Adolphe. “La Musique et la mise en scène” in Oeuvres Complètes, Tome II. Op. Cit. p. 96.

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117

Como nada é exato na iluminação, mas relativo à acomodação do olho e à

proporção entre as intensidades das diferentes luzes que vemos

simultaneamente; a integração entre esses dois tipos de luz que compõem a cena

depende, portanto, de um jogo de proporções e movimento: Muita luz difusa mata

o desenho, as sombras e, portanto, a própria ação da luz ativa; pouca, dificulta a

visão da cena. Entre os dois extremos, “pode-se combiná-las ao infinito” 200.

Apesar de dar prioridade à LUZ ATIVA, Appia trabalha sempre sobre a

perspectiva de que os dois tipos de iluminação operam em conjunto. Apesar de

ter sempre um olho no presente e o outro no futuro da encenação, para o qual

escreve grande parte de seus textos, ele não imagina que seja possível suprimir

a luz difusa e aumentar os contrastes da luz ativa, para além do limite da visão,

como farão os expressionistas.

Conclui o seu arrazoado técnico de maneira sintética e precisa:

Essa distinção fundamental de duas naturezas diferentes de luz é a única noção técnica que pertence propriamente à iluminação no novo princípio cênico.201

Se as descrições e análises técnicas não têm o brilho do raciocínio das

relações conceituais e metafísicas que levaram até elas, nem uma conclusão

grandiosa ou um clímax, como é de seu feitio, é porque Appia dedicou grande

parte da sua vida à encenação através do papel e do lápis, de desenhos e

conceitos. Ele nunca foi, mesmo quando anos depois da redação deste livro

realizou alguns de seus projetos de encenação, uma pessoa “da prática”, muito

menos um técnico. Porém fica claro por esse texto que ele tinha conhecimentos

concretos sobre a técnica de luz de seu tempo, ao ponto de analisá-las à luz de

suas novas perspectivas de encenação e até mesmo “inventar conceitualmente”

aparelhos de iluminação dos quais necessitava para suas concepções e que

foram desenvolvidos e produzidos décadas depois. De qualquer forma, propõe

claramente um novo paradigma para a arte e a técnica da iluminação com o

200 Appia, Adolphe. La Musique et la mise en scène in Oeuvres Complètes, Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome II , 1986, p. 97. 201 Idem Ibidem, p. 96. Ao se referir aqui a “uma única noção técnica que pertence propriamente à iluminação”, deixa implícito que há outras, porém que não pertencem apenas à iluminação, como as relações diretas entre a LUZ ATIVA e a cenografia.

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desenvolvimento do conceito de LUZ ATIVA, assim como definiu concretamente

uma forma de pensar e realizar planos de luz com a separação e hierarquia entre

a LUZ ATIVA e a LUZ DIFUSA.

Apesar dos avanços tecnológicos destes aproximadamente cem anos que

nos separam de Appia, suas reflexões técnicas são absolutamente válidas para a

prática cotidiana dos iluminadores e encenadores de hoje e, provavelmente, de

amanhã.

Quanto às relações diretas entre a LUZ ATIVA e a cenografia, a grande

profecia revelada em suas concepções sobre a iluminação cênica está na idéia da

projeção de imagens.

Pela importância que tem em sua obra e, principalmente, no futuro do

teatro, faremos a seguir um recorte específico sobre esse tema, onde técnica e

estética são uma coisa só.

A PROJEÇÃO DE IMAGENS ou A CENOGRAFIA DE LUZ

Em busca de substituir o signo fornecido pela pintura por uma ação ativa

da luz, Appia encontra na projeção de imagens uma forma de criar uma

cenografia de luz, ou uma luz-cenografia que contracena com os planos e

volumes em três dimensões do cenário arquitetural.

É um sentido amplo do termo cujo objetivo principal é a transformação ou

movimento da luz, que, em relação com o ator e o espaço, vivifica a ambos. Inclui,

portanto, no conceito de projeção de imagens toda e qualquer forma de manipular

a luz projetada sobre o palco, de modo a transformar a existência real da cena,

por exemplo, sombras, cores, transparências, fachos de luz com formas

determinadas, imagens paradas e em movimento. Como destrincha em detalhes

o próprio autor, significativamente no trecho dedicado à análise da função da

pintura em A Música e a Encenação:

A iluminação pode projetar imagens, desde a mais insensível gradação de tinturas até as mais precisas evocações. Um corpo opaco disposto na frente do foco luminoso pode servir a dirigir o raio sobre tal ou tal

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parte do quadro, excluindo as outras, e fornecendo uma grande variedade de efeitos a partir da simples e parcial obstrução até a obstrução dividida e combinada com corpos mais ou menos opacos. A iluminação, já mobilizada pela vida dos atores, torna-se positivamente móvel se deslocamos o foco luminoso, ou se as projeções estão elas próprias em movimento diante de um foco fixo, ou mais ainda se agitamos de alguma maneira que seja os corpos que obstruem o raio. As combinações de cores, de formas, de movimentos combinando-se de novo entre elas depois com o resto do quadro, fornecem uma qualidade infinita de possibilidades. Elas constituem a palheta do poeta músico.202

Quanto à cor da luz, parece ser um domínio que Appia tem menos

afinidade e dificilmente a cita em suas reflexões. Mas é interessante notar o fato

de que quando raciocina sobre ela, como neste trecho, é no mesmo sentido de

uma projeção de imagem ou forma, ou seja, através da projeção da cor é possível

transformar a qualidade da cena iluminada:

Projetando disposições de cores ou de imagens ela cria na cena um meio ou mesmo objetos que não existiam antes da projeção.203

Porém há uma hierarquia nessas duas formas de transformação da

realidade da cena:

Se, então, o jogo da luz colorida em vista do material cenográfico é somente uma questão de proporções cromáticas, o da projeção torna-se, além disso, uma questão de forma.204

A luz transformável e transformadora: este é para Appia o maior fator de

expressão da luz, o sentido do que chama de LUZ ATIVA e que na cenografia

ocupa o lugar da tela pintada, em seu ideário sobre a nova encenação.

É importante ressaltar aqui que ele não intenta substituir simplesmente

uma imagem bidimensional pintada, por outra imagem bidimensional projetada,

ambas com a mesma função demonstrativa e realista, como é comum ver hoje

202 Idem Ibidem, p. 100. 203 Idem Ibidem, p. 100. 204 Idem Ibidem, p. 100.

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em dia na utilização figurativa do vídeo, a nossa “tela pintada” tecnológica, tão

pueril quanto a sua antecessora.

Mas consagrar o movimento interior causado pela expectativa de uma

presença.

Não se trata, portanto, de chegar a um lugar onde a tecnologia substitua a

ação do homem, mas ao contrário, de um espaço privilegiado onde o homem e

sua imaginação estão em primeiro plano. Um espaço vazio, pleno da atmosfera

de uma presença ausente. Como nos explica o próprio Appia no exemplo da

floresta do segundo ato de Siegfried:

Como representar uma floresta sobre a cena? (...) nós não procuramos mais dar a ilusão de uma floresta, mas a ilusão de um homem na atmosfera de uma floresta; a realidade aqui é o homem ao lado do qual nenhuma ilusão tem curso. Tudo o que este homem toca deve lhe ser destinado e se nós tiramos um instante Siegfried de vista, e levantamos os olhos, o quadro cênico não tem mais necessariamente ilusão a nos dar: sua disposição não tem mais que Siegfried por objetivo; e quando a floresta docemente agitada pela brisa atrair a atenção de Siegfried, nós, espectadores, contemplaremos Siegfried banhado de luzes e sombras moventes, e não mais de trapos recortados postos em movimento por traquitanas. 205

É o homem que cria a atmosfera da floresta, tanto em cena como na

platéia, chamada a compartilhar do espetáculo através da sua imaginação,

instigada pela ausência material e pela sugestão de uma luz ativa e móvel a

completar a cena com a sua própria participação. A floresta está nos olhos e nas

mentes atentas do público.

Já que a sombra nos remete à presença através da ausência, traz em si

um movimento implícito, uma transcendência imanente ou uma imanência

transcendente. A imagem é, mas não está. Plena de ausência grita por

205 APPIA, Adolphe. Comment Réformer Notre Mise en Scène in Oeuvres Complètes, Tome II. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme., 1986, p.351.

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complemento, cria uma expectativa pulsante na platéia, como um acorde sem

resolução.

Outro exemplo do sentido sugestivo e sintético da cenografia-luz criada

através da projeção de sombras está no desenho “A Sombra do Cipreste” 206,

pertencente ao conjunto dos “Espaços Rítmicos”, do qual falaremos em seguida.

Appia comenta o desenvolvimento desse desenho em A Obra de Arte Viva:

A Sombra dos Ciprestes, 1909

Para este espaço, o autor tinha se proposto a princípio uma avenida de ciprestes. Ele suprimiu, pouco a pouco, as árvores, conservando somente as sombras. Depois, enfim, restou apenas esta única sombra, porque ela é suficiente para evocar toda uma paisagem. Ele observa que ela pode ser balançada por meio da iluminação, e que ela se harmoniza, assim, a tal ou tal ritmo musical.207

Através da projeção ele concretiza a idéia de síntese e sugestão simbolista.

206 Appia, Adolphe. Espaços Rítmicos: L’ombre Du cyprés, 1909 (Theater Museum, Munich ) in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome Tome III , 1988, p. 91. 207 Appia, Adolphe. Commentaires d’Appia aux illustrations de L’Oeuvre d’Art Vivant in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome III , 1988, p. 411.

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Criando uma ponte de inspiração entre passado, presente e futuro, Appia

profetiza em seus escritos e desenhos, desde 1892, que a projeção de imagens é

a direção para onde caminham os avanços tecnológicos e o futuro da iluminação:

Quando a fotografia elétrica, em série, for introduzida sobre a cena, a projeção poderá dizer-se toda poderosa e poucas coisas lhe serão recusadas. 208

Hoje este futuro se atualiza. As relações entre as novas tecnologias, a

iluminação cênica e a cenografia se desenvolvem principalmente na utilização

cada vez mais freqüente no teatro das projeções de vídeo. Todo grande teatro da

Europa (assim como o Teatro Oficina de São Paulo) já tem, além da equipe de

cenotécnicos e iluminadores, uma equipe de projeção de vídeo209. Acreditamos

que no futuro próximo, cada “refletor” será um projetor de imagens, móvel e

computadorizado 210.

É precisamente por causa do grande “avanço” das novas tecnologias no

teatro que consideramos extremamente inspirador para os iluminadores do

presente e do futuro, retomar o sentido profundo que Appia anteviu há mais de

um século atrás nessas “projeções”, ou seja, uma forma de colocar o homem e

sua imaginação no centro da cena. Exatamente o contrário de substituir o papel

fundamental da imaginação humana pela tecnologia de efeitos especiais,

justamente o que ele critica na “velha” encenação das óperas de seu tempo. O

tempo se justapõe e o futuro pode ser muito mais “velho” do que o passado, se

não olharmos para trás para compreender o sentido das revoluções que nos

precederam. Ninguém até agora foi mais “moderno” do que os Modernos. As

revoluções estéticas não são uma questão de moda ou modo, são muito mais do

que isto, são uma nova forma de pensar e refletir o homem em sua relação com o

mundo, uma filosofia aplicada nas artes sobre e sob novas formas. O que importa

na tecnologia é a forma profunda de sua utilização e não a quantidade de efeitos

208 APPIA, Adolphe. “Notes de mise en scène pour L’Anneau de Nibelungen” (1892) in Oeuvres Complètes, Tome I. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme., 1983, p.114. 209 Que infelizmente nem sempre se dá bem com a equipe de iluminação devido ao “velho problema” da quantidade de luz em cena, agora invertidos os papéis. 210 A última geração em equipamentos de iluminação - bem mais avançada e cara que os moving-lights e apelidada pela indústria de Catalysts - é exatamente isso.

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que um projetor de última geração pode realizar por minuto. Haja visto o poder de

uma simples sombra de cipreste em um espaço quase vazio.

O ENCONTRO COM DALCROZE e OS ESPAÇOS RÍTMICOS

Em 1906 Adolphe Appia conhece Jacques Dalcroze e a “Rítmica” 211, que

muito o afetou, como descreve quinze anos mais tarde em Expériences de théâtre

et recharches personelles:

Eu assisti, em 1906, a uma demonstração da ‘Rítmica’ de Jacques Dalcroze, então em seus inícios! (...) Para mim, a descoberta dos princípios fundamentais da ‘mise en scène’ só podia ser um ponto de partida; a Rítmica decidiu minha orientação subseqüente. 212.

A sua amizade e parceria com Dalcroze213 foi fundamental no

desenvolvimento posterior de seu trabalho e aprofundamento de suas próprias

pesquisas sobre as relações entre a música e a expressão cênica do corpo dos

intérpretes214. Para Appia o ator já era o centro da cena, a partir de agora o corpo,

sua estrutura e movimentos serão estudados como “medida de todas as coisas” 215, na construção do espaço que o acolherá. Appia procede então à reformulação

211 Experiência ao mesmo tempo artística e didática desenvolvida por Jacques Dalcroze a partir das relações intrínsecas entre a música e os movimentos do corpo humano. Em suas primeiras apresentações, chamada de “Gymnástique Rythmique”, ficou depois conhecida como “Eurhythmics”, em inglês, ou simplesmente “Rythmique”. Não confundir com a Euritmia, de Rudolf Steiner. 212 Appia, Adolphe. Expériences de théâtre et recherches personnelles (1921) in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome IV, 1992, p.49. 213 De 1906 a 1923 houve uma forte parceria artística e troca de influências entre os dois artistas. Appia chegou a escrever grande parte dos textos de abertura dos Festivais realizados por Dalcroze, conferências e artigos sobre a “Rítmica” e suas relações com a música, a “mise en scène” o espaço e a luz, além de desenhos e concepções arquitetônicas e cenográficas para o Instituto Jacques Dalcroze, algumas realizadas. No decorrer de todo este período a correspondência entre eles é intensa. Em 1923 há um rompimento público entre os dois, devido á não concordância de Appia com o rumo “espetacular” do trabalho de Dalcroze e a utilização demonstrativa do espaço e das cores na iluminação. 214 “O corpo é o intérprete da música, junto das formas inanimadas e surdas. Podemos, pois, abandonar momentaneamente a música; o corpo absorveu-a e saberá guiar-nos e representá-la no espaço”. Appia, A. A Obra de Arte Viva. Op. Cit. p. 84.

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cada vez mais radical da sua concepção do espaço cênico, onde cenografia e luz

se distanciam das aparências figurativas para tornarem-se estruturas para a

evolução dos corpos. O conceito da “Obra de Arte Viva” começa a ser gestado.

Em 1909 Appia desenvolve uma série de desenhos com forte influência

“dalcroziana” e inspiração simbolista, denominada “Espaços Rítmicos”, nos quais

se manifesta uma inclinação nítida para a abstração geométrica e formalista. Em

vários desses desenhos, inclusive, não há mais resquício de representação

realista. Ele transpõe para o papel espaços cênicos que não se dirigem a

nenhuma obra dramática em especial e que também não têm por objetivo direto

serem postos em cena216, mas estão impregnados de uma idéia de vida e

movimento intrínseca. Como se pedissem a presença humana, mesmo em sua

existência fictícia.

São exercícios livres onde as composições de planos e volumes destinam-

se a valorizar a relação entre o espaço e os corpos humanos, “sob as ordens da

música”. As estruturas desnudam-se de sua aparente casualidade e revelam-se

totalmente geométricas: praticáveis, cubos, colunas, rampas e escadas.217

Estruturas arquiteturais, que servem de apoio e obstáculos aos movimentos dos

intérpretes. Linhas horizontais e verticais, paralelas e perpendiculares, que

formam ângulos retos, criam um jogo de contrastes com as curvas dos corpos

humanos e suas evoluções, colocando o ator em evidência. A presença cada vez

mais determinante da iluminação, das sombras e das projeções móveis empresta-

lhes sua flexibilidade e vida em meio a imensos vazios, ajuda a criar um

movimento intrínseco ao espaço, uma expectativa em relação ao humano.

A atividade da luz foi resultado natural de uma construção que evocava o corpo humano, tomando assim uma aparência de expectativa: a qualidade do espaço requeria a presença indispensável do corpo 218

215 Referência à sentença de Protágoras “O Homem é a medida de todas as coisas”, que serve de epígrafe à “Obra de Arte Viva” 216“Nenhum desses desenhos é destinado a ser realizado; eles são sugestões, visões de sonho a serem transportadas para a cena”. Bablet-Hahn, M. L.”Les Visions” de 1909 in Appia, A. Op.cit. Tomo III, p.78. 217 "No solo, os planos inclinados e, sobretudo, as escadas, podem ser considerados como participando nas duas ordens de planos (horizontal e vertical)" Appia, A. A Obra de Arte viva, Op. Cit. p.84. 218 Appia, Adolphe. Expériences de théâtre et recherches personnelles in Oeuvres Complètes. Lausanne:Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome IV, 1992, p.49.

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É através do contraste entre a luz e as sombras projetadas (geométricas ou

orgânicas) sobre os volumes retos construídos, que se configura a percepção do

conjunto nesses desenhos. Como podemos ver nas duas reproduções abaixo:

Appia, A Ronda do Anoitecer, 1909.

A luz, concebida como

parte orgânica do espaço,

manifesta presenças que

são pura potencialidade:

como “A Sombra do

Cipreste” sobre um muro,

(Página119); o resplandecer

da luz do sol se pondo que

se expande em ondas

sombreadas e móveis na

Ronda do anoitecer ou as

camadas justapostas de

sombra das colunas

verticais, que criam um

espaço vazio, repleto de

formas geométricas de luz,

também móveis, em A

Clareira Matinal.

Appia, A Clareira Matinal, 1909.

Em seus comentários a esses desenhos, em apêndice de “A Obra de Arte

Viva”, Appia explica que as sombras e os fachos de luz tornam-se móveis através

de “truques” 219 da iluminação.

Mais do que representações de espaços reais, Os “Espaços Rítmicos”

expressam através das luzes e sombras projetadas, as atmosferas do anoitecer,

do amanhecer, da clareira ou uma avenida de ciprestes.

219 A luz é peneirada segundo nosso desejo por cartões recortados e invisíveis, e as sombras que caem sobre as personagens podem, assim, tornar-se movediças. A pulsão é completa.

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AS REALIZAÇÕES “VIVAS”

O fenômeno teatral depende de condições materiais e de infraestrutura

determinantes, que muitas vezes dificultam as grandes revoluções e experiências

formais (principalmente quando envolvem tecnologia avançada ou mesmo ainda

inexistente e construções caras, como no caso dos projetos de Appia). Da onde

os projetos de Appia terem permanecido em sua grande maioria no papel, de

onde foram resgatados mais tarde por gerações e gerações de cenógrafos,

encenadores e iluminadores do século XX, em levas sucessivas, com cada vez

mais tecnologia disponível.

Todos os projetos de encenação para as obras poético-musicais de

Wagner foram seguidamente recusadas por Bayreuth, durante toda a vida de

Appia (pela recusa de Cosima Wagner, que após a morte de Wagner em 1883

cuidou pessoalmente da continuidade dos Festivais em Bayreuth).

Em 1903, a convite da condessa de Béarn, ele realizou alguns trechos de

Manfred de Byron, música de Schumann e Carmen de Bizet, em um palácio

particular em Paris; mas as condições técnicas eram improvisadas e, segundo

descrições do próprio Appia, o resultado deixava muito a desejar.

No entanto, a parceria com Dalcroze (de 1906 a 1923) e a divulgação de

seus trabalhos escritos e desenhos em exposições importantes220, tornaram,

pouco a pouco, a realização de suas idéias possível no ao vivo do teatro.

A primeira grande realização de suas “concepções” de espaços

arquitetônicos não se deu sobre um palco, mas na própria arquitetura. A grande

“sala de apresentações” do Instituto Jacques-Dalcroze em Hellerau foi construída

em 1911, a partir das concepções de Appia e Dalcroze, pelo arquiteto Heinrich

Tessenow.

220 Seus desenhos são apresentados em 1913, em Mannheim, em uma exposição dedicada à Arte Teatral Moderna (Moderne Theaterkunst), Segue-se uma grande exposição de obras de Appia e Gordon Craig em Zurique (no Gewerbemuseum) e na se seqüência, neste mesmo ano, mostras de seus desenhos em Colonia, Frankfurt e Düsserldorf. Em 1921 as obras de Appia voltam a ser expostas junto às de Craig em um local de destaque na Exposição Internacional de Teatro, em Amsterdã.

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A iluminação desta sala, realizada por Alexandre von Salzmann coloca em

prática a idéia da geral de LUZ DIFUSA, a partir das concepções de Appia e da

experiência prática de Mariano Fortuny com sua cúpula de reflexão (Sobre a

Cúpula Fortuny, vide capítulo...), que foi estudada por Appia e Salzmann

exaustivamente. Porém o projeto final se parece mais com as propostas de Appia

em “A Música e a Encenação”, porque as luzes são difundidas não através de

rebatimento, mas de grandes telas “difusoras” que escondem as fontes de luz

dispostas no teto e paredes do espaço. Um projeto de luz engenhoso e com efeito

surpreendente. Como podemos perceber claramente pela descrição do próprio

Salzmman e as fotos a seguir :

Se a luz deve se desenvolver segundo sua qualidade musical, não é necessário que a fonte luminosa seja aparente. A luz deve ser tão impalpável e móvel quanto o som. É por isso que nós transformamos a sala (as 4 paredes laterais e o “plafond”superior)em uma imensa instalação elétrica. Nós dispusemos as lâmpadas em linha e as penduramos em nichos por cima e por trás de bandanas e pernas de tela com tratamento especial. Assim, no lugar de ter uma sala iluminada, nós temos uma sala iluminante.221

Sala do instituto Jacques Dalcroze222 Foto das passarelas técnicas

221 Salzmann, A. “Lumière, luminosité et éclairage” in Appia, A. Oeuvres Complètes,. Trad. para o francês e notas Bablet-Hahn M. L. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme., Tome III, 1988. 222 Doc. Inst. Jacques Dalcroze, Genébra. Foto digitalizada a partir de reprodução in BABLET, Denis. Les Révolutions Scéniques du Vingtième Siécle. Paris: Soc.Int. d’Art XXe siècle, 1975.

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É nesta mesma sala do Instituto

Jacques-Dalcroze em Hellereau, nos

festivais anuais de Junho, que Appia

estréia a realização de seus projetos de

encenação, cenografia e iluminação

cênica, com trechos de Orphhée et Eurydice em 1912 e 1913.

Projetado para Helleareau, o ballet pantomima Eco e Narciso, de Jacques

Dalcroze; estréia após a Primeira Guerra Mundial, em 1920, no Instituto Jacques

Dalcroze, agora transferido para Genebra, na Suiça.

Após a publicação de A Obra de Arte Viva, seguem-se convites de grandes

teatros. Apesar dos projetos de encenação, cenografia e luz serem de Appia, ele

chama o diretor Oskar Wälterlin, para realizar a direção e ensaiar os espetáculos.

Em 1923, encena Tristão e Isolda, de Wagner, no Teatro Scala de Milão, sob a

regência de Arturo Toscanini. Para o Stadttheater de Ballet na Basiléia cria várias

encenações (todas em versão adaptada para a dança): A Tetralogia do Anel dos

Nibelungos, de Wagner: O Ouro do Reno, 1924; Walküre, 1924; Siegfried,

1924/25 e O Crepúsculo dos Deuses (1925) e, por fim, Prometeu, de Ésquilo

(1925).

Nos últimos anos de sua vida cria desenhos e projetos para várias peças

de teatro, os “dramas falados”, o que nunca fizera antes. Alguns deles em

colaboração com a aluna e depois parceira Jessica Davis Van Wyck. São eles:

Sonho de uma Noite de Verão (1921), As Coéforas (1922); Hamlet (1922); O

Pequeno Eyolf (1924); Macbeth (1926/27), Ifigênia em Táuride (1926) e Fausto

(1927). Appia morre em 1927.

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A OBRA DE ARTE VIVA

A Obra de Arte Viva é uma síntese das concepções de Appia sobre a arte

dramática, seus elementos e relações, visando obter:

Noções claras e próprias para se tornarem objeto de reflexão e de especulação estética convenientes ao progresso e à evolução da arte. 223

Ele parte do princípio que a arte dramática empresta das outras artes os

elementos que a compõem. A organização destes elementos, por sua vez, cabe à

encenação. Portanto para um pleno desenvolvimento da encenação é necessário

entender a natureza destes elementos e suas relações.

De fato, em toda a sua obra este foi o cerne de sua pesquisa. Porém aqui

ele não tem mais o que tatear, sabe qual seu objetivo e para chegar lá segue uma

linha de pensamento de uma argúcia quase socrática. Primeiro parte de uma

análise crítica da Gesamtkunstwerk wagneriana, conceito geralmente traduzido

por Obra de Arte Conjunta. Em seguida, serve-se da própria estrutura do conceito

para reconstruí-lo sob uma perspectiva própria, uma nova concepção específica

deste conjunto orgânico, A Obra de Arte Viva.

Dessa forma, Appia recoloca o problema da arte dramática como síntese

harmoniosa das artes, princípio do Gesamtkunstwerk, acrescentando-lhe o

ingrediente da dúvida e da contradição na busca dos elementos específicos do teatro

como obra de arte autônoma e, aí sim, passível de se tornar "obra de arte integral",

orgânica e viva.

Como não é nosso objetivo central, não seguiremos o caminho

empreendido pelo autor, elemento por elemento, mas, simplesmente tentaremos

entender o princípio estabelecido por ele para construir uma lógica na relação

entre os elementos que constituem a encenação, com o objetivo explícito de

localizar o papel e o entendimento que Appia propõe para a iluminação dentro do

seu conjunto.

223 Appia, A. A Obra de Arte Viva. Trad. Redondo Jr. Ed. Arcádia, Lisboa.s/d, p. 22.

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Ao analisar os elementos que cada arte empresta ao teatro, divide as artes

do espaço: pintura, escultura e arquitetura, (presentes nos elementos visíveis do

teatro, como a cenografia e o figurino); e as artes do tempo: poesia e música.

Expõe uma tensão fundamental entre elas. As artes do espaço são imóveis no

tempo e as artes que se desenvolvem no tempo são igualmente imóveis em

relação ao espaço. Como seria possível a “reunião harmoniosa” entre artes de

natureza tão diversa na arte dramática?

É através dessa contradição exposta que propõe uma superação possível:

a articulação entre as artes do espaço e as artes do tempo só pode ser realizada

em cena pelo movimento:

O movimento, a mobilidade, eis o princípio diretor e conciliatório que regulará a união das nossas diversas formas de arte, para fazê-las convergir, simultaneamente, sobre um ponto dado, sobre a arte dramática. 224

O movimento não é um elemento, “a mobilidade é um estado, uma

maneira de ser”.225 Trata-se de descobrir em quais elementos encontramos a

mobilidade capaz de articular tempo e espaço.

Ele encontra a resposta no homem. O ator, fator vivo do teatro é o meio e

o fim da arte dramática:

O corpo, vivo e móvel, do ator é o representante do movimento no espaço (...) é o criador dessa arte e detém o segredo das relações hierárquicas que unem os diversos fatores.226

Mas existe outro elemento, também móvel, que relaciona o tempo ao

espaço, onde age diretamente através da sua mobilidade: a iluminação cênica.

Desta forma o homem ocupa, evolui num espaço, tornado vivo pela ação da luz.

Os movimentos do ator e da luz possibilitam essa articulação, jogando as

artes do espaço na roda do tempo, transformando o espaço com sua ação,

revelando-o de diversas formas, por ângulos diversos, criando uma dialética entre

224 Appia, A. A Obra de Arte Viva. Op. Cit. p. 31. 225 Idem Ibidem, p. 31. 226 Idem Ibidem, p.32-33.

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ver e esconder, de forma que, através do movimento, as artes do espaço ganhem

“temporalidade”. Assim, aquilo que era, em sua origem, estático, entra em ação,

ganha vida e vira actante da cena.

A LUZ VIVA

A luz é, no espaço, o que os sons são no tempo: a expressão perfeita da vida. 227

A luz viva é aquela age em cena em consonância com a ação do ator. E

através desta ação, possibilita uma articulação entre os fatores visuais da arte do

espetáculo (presentes no espaço) e os fatores temporais, a música e o texto.

Quanto à cor, Appia propõe a ela uma independência da pintura,

para que seja entendida como cor-luz, que contracena com a cor dos objetos.

Deixando de ser signo, está livre finalmente para se tornar símbolo.

Dessa forma a luz pode evocar o lugar (sem que seja necessário

determiná-lo através do signo da pintura), sugerir um tempo, criar uma atmosfera

emocional ou mesmo espiritual, através da claridade ou da sua ausência. Pode

também criar espaços, animá-los, fazê-los desaparecer ou transformá-los através

do seu movimento. A luz, a serviço do ator, porta a metamorfose do espaço.

Cabe, portanto, à luz ser o elemento de fusão dos elementos visuais, no

tempo, ou seja, no desenvolvimento dramático e musical do espetáculo e de

confluência entre eles e o ator, o fator essencial do espetáculo.

“O HOMEM COMO MEDIDA DE TODAS AS COISAS” e a CATEDRAL DO

FUTURO.

Será, portanto, a partir do ator e sua vida que Appia construirá a sua noção

de “encenação do futuro”. O Homem, “fator essencial” da encenação será para

ele, cada vez mais no desenvolvimento de suas reflexões, motor e motivo do seu

trabalho. A ponto de chegar o momento, em sua maturidade artística, em que ele

227 Idem Ibidem, p.99.

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proporá não somente a junção do palco e da platéia em uma única sala, a

“catedral do porvir”, mas também o fenômeno teatral como comunhão máxima

entre atores e espectadores. É para o futuro que ele escreve - para quem vier

depois dele e quiser se unir a ele nesta obra sempre inacabada - é para cada

momento presente deste futuro, para nós e, muito além de nós, que ele clama por

um novo teatro no texto “L’ avenir du drame et de la mise en scène”, um teatro

como comunhão, através da arte de homens livres para homens livres:

A Ribalta, este triste símbolo, não separará mais a arte de um público esmagado na sua passividade. E – quem sabe – chegaremos depois de um período de transição a festas majestosas onde todo mundo será participante; onde cada um de nós expressará sua emoção, sua dor e sua alegria; e onde ninguém consentirá mais em restar espectador. O autor dramático então triunfará! 228

Considerado por muitos como o profeta da arte do espetáculo, dado o

caráter visionário de suas propostas e concepções, Appia foi com certeza um

precursor das concepções de encenação, arquitetura cenográfica e iluminação

cênica desenvolvidas no decorrer do século XX. Suas influências diretas podem

ser verificadas de perto no trabalho de Wieland e Wolfgang Wagner netos de

Richard Wagner), que finalmente realizaram a partir dos anos 1950 as propostas

de Appia para a encenação do drama wagneriano na nova Bayreuth; nas

concepções do amigo e discípulo direto Jacques Copeau e, através dele, o

famoso Cartel francês: Jouvet, Baty, Dullin e Pitoëf, (quanto a Pitoëf,

principalmente no que se refere justamente à ação da luz na construção do

espaço); nos expressionistas, por um lado, nos formalistas russos, por outro, nas

concepções construtivistas de Meierhold, nas novas concepções arquitetônicas

do espaço teatral que foram dar no projeto do “Teatro Total” de Piscator e Walter

Gropius, nas fortes imbricações entre a projeção de imagens e o teatro, no

cenário-luz de Robert Edmund Jones e Svoboda, entre inúmeros outros. O teatro

é e sempre será na concepção de Appia a grande “Arte do futuro”.

228 Appia, Adolphe. “L’ avenir du drame et de la mise en scène” (1919) in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome III, 1988, p. 338.

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CONCLUSÕES

A concepção de uma linguagem da encenação pressupõe uma tradução

entre um corpo técnico e sua resultante estética, incluída aí a relação de conjunto

entre os vários elementos que constituem o espetáculo formando um “organismo

complexo”.

Neste organismo proposto por Appia em A Obra de Arte Viva, a iluminação

não perde suas funções de instrumento da visibilidade, ou mesmo de elemento

artístico e expressivo da encenação, mas ganha um novo papel de articulação

entre os vários elementos da encenação, na medida em que através do

movimento a luz confere temporalidade ao espaço. Aí está explícita já, a função

estrutural da iluminação cênica na arte do espetáculo.

Appia instituiu, portanto, no plano das idéias, as bases para o conceito da

iluminação cênica como linguagem ou, em outras palavras, fundou a gramática

para uma “Scriptura” do visível através da iluminação cênica.

Não é demais lembrar que ao fazê-lo ele cria os alicerces da teoria da

iluminação cênica.

O alargamento dessa concepção da iluminação cênico como articuladora

do espaço no tempo e, da sua prática no decorrer do século XX com o

desenvolvimento tecnológico, levará diretamente à noção da luz como editora da

cena, onde reside nosso foco de atenção e de análise do papel da luz na

contemporaneidade.

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CAPÍTULO 9

GORDON CRAIG A LUZ CONTRACENA COM A MATÉRIA

Todas as formas são perfeitas no espírito do poeta; não as extrai da Natureza, não as concebe segundo ela; nascem da sua imaginação 229 William Blake

Gordon Craig foi antes de tudo o que ele mesmo definiu como um “artista

de teatro” 230; trabalhou como ator, arquiteto, gravurista, cenógrafo, figurinista,

iluminador e encenador. Mas sua inquietude fez com que, motivado

principalmente por seu trabalho prático como encenador, colocasse em questão

as premissas da arte do espetáculo vigentes então. A partir da necessidade de

expandir esse questionamento, cada vez mais radical, constrói uma significativa

obra teórica. Escreve e publica em 1905 uma brochura chamada Da Arte do

Teatro, quando, através do diálogo entre um Encenador e um Amador de teatro

questiona o senso comum sobre a arte do teatro e destrincha camada a camada

do que ele chama de caos do teatro inglês de sua época. Dirige durante anos

(entre 1908 e 1929, de forma intermitente) a revista The Mask, editada em

Florença, onde através de ensaios e artigos estabelece uma práxis continuada

entre análise e prática teatral, aperfeiçoando com o tempo um ideário próprio,

coeso e coerente, do sentido e prática da arte do teatro. Em 1911 publica o seu

livro Da Arte do Teatro, onde reúne o primeiro diálogo a um segundo, escrito em

1910 depois de suas viagens por vários países da Europa e, principalmente,

depois de seu contato com o Teatro de Arte de Moscou, além de vários outros

textos pinçados da revista The Mask. Este livro trás exposto, sob vários ângulos,

suas concepções sobre a encenação, interpretação, dramaturgia, cenografia e,

como parte fundamental desta última, a iluminação.

229 Citação feita por Craig, que dedica à Blake o seu livro Da Arte do Teatro in Da Arte do Teatro. Ed. Arcádia, Lisboa, 1963, p. 115. 230 Craig, E. Gordon. “Os Artistas do Teatro do Futuro” in Da Arte do Teatro. Ed. Arcádia, Lisboa, 1963, p. 43.

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OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA CONCEPÇÃO DE CRAIG DA ARTE DO

TEATRO O objetivo do Teatro considerado como um todo é

restabelecer a sua Arte. E para isso é preciso, antes de tudo, renunciar a essa idéia da personificação, essa idéia da imitação da Natureza; enquanto ela subsistir, o teatro nunca se libertará. 231

O restabelecimento no âmbito do “Teatro” de uma Arte ideal, pensada

como um todo, com suas leis próprias, independentes da vida cotidiana e da

realidade, é o objetivo primeiro de Craig. Para isso ele estuda sob vários aspectos

a história do teatro: os gestos simbólicos presentes na dança dramática egípcia; a

origem grega do teatro no rito e na dança; o teatro medieval cristão, tanto o

realizado dentro das igrejas, como os “peagents” dos milagres citadinos e as

“mascaradas” do teatro profano; as máscaras, marionetes e outras técnicas

baseadas na convenção. A recusa absoluta do realismo tanto como um fim em si

mesmo, quanto como método de criação da interpretação ou da cenografia e da

iluminação é repetido por ele à exaustão:

O Amador de Teatro: Quer dizer que observou tão cuidadosamente a natureza que pode indicar aos maquinistas como tornar um raio de sol mais ou menos oblíquo ou o grau de intensidade do luar banhando as paredes de uma sala?

Encenador: Não, porque o meu encenador nunca procurou reproduzir os jogos de luz da natureza. Não procura reproduzir a Natureza, mas sugerir alguns dos seus fenômenos.232

Não é da natureza, mas da imaginação que vem a inspiração do

encenador, do trabalho constante sobre ela, fazendo e refazendo um desenho até

que se consiga chegar ao âmago da idéia, onde a beleza se manifesta:

231 Craig, E. Gordon. “O ator e a ‘sur-marionete’” in Da Arte do Teatro. Ed. Arcádia, Lisboa, 1963, p. 103. 232 Craig, E. Gordon. “Primeiro diálogo entre um profissional e um amador de teatro” in Da Arte do Teatro. Op. Cit. pp. 177-178.

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porque o objetivo da Arte não é refletir a vida e o artista não imita, cria. Mas é a vida que deve trazer o reflexo da Imaginação, a qual escolheu o artista para fixar a sua beleza.233

Craig tem uma visão idealista da arte, voltada para a busca da “Beleza”,

conceito que para o encenador ecoa o sentido platônico da palavra. Ascender à

“Beleza” é o objetivo expresso de sua práxis, como podemos apreender pelo que

escreve: Que se penetre no Teatro com o sentido profundo

dessa palavra “Beleza” e poderemos dizer que o despertar

do Teatro estará próximo.234

Por isso é mais do que coerente que sua investigação parta da idéia de

que existe uma “essência da arte do teatro”, aquilo que a faz única e completa,

portanto, passível de participar da idéia do “Belo”. É esta essência que procura

definir, para transformar a sua concepção e prática do teatro.

Como não poderia deixar de ser, Craig também parte da Gesamtkunstwerk

wagneriana, porém considera impossível criar uma nova arte da junção de outras

artes. Ao contrário, é naquilo que há de específico no teatro, nas leis e princípios

fundamentais desta arte, que ele busca reencontrar a idéia de uma arte

autônoma, independente da pintura e mesmo da literatura. Mas a influência de

Wagner e seu idealismo estão profundamente impregnados no pensamento de

Craig e a busca de um teatro total, onde a idéia de conjunto e unidade rege a

organização dos elementos, substitui o conceito de Obra de Arte Conjunta.

Recobrar a tão pretendida unidade da arte do teatro será um dos grandes

objetivos do encenador inglês.

Como Appia, Craig expande sua pesquisa para a análise dos elementos

que compõem a encenação e suas relações. Escreve, então, em 1905 a primeira

parte de Da Arte do Teatro, o “Primeiro diálogo entre um profissional e um amador

de teatro” que inicia com a seguinte pergunta: “Sabeis o que é a Arte do Teatro?”.

A resposta é a própria definição de Craig:

233 Idem Ibidem, p. 115. 234 Craig, E. Gordon. “Os Artistas do Teatro do Futuro” in Da Arte do Teatro. Op. Cit. p. 68.

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A arte do Teatro não é nem a representação dos atores, nem a peça, nem a encenação, nem a dança; é constituída pelos elementos que a compõem: pelo gesto, que é a alma da representação; pelas palavras, que são o corpo da peça; pelas linhas e pelas cores que são a própria existência do cenário; pelo ritmo, que é a essência da dança. 235

Ou seja, não é nas funções ou nas partes constituintes da encenação

(como o ator, o espaço, a cenografia, a luz, a pintura) que ele encontra os

elementos que constituem o espetáculo, mas nos signos que o compõem. E, ao

contrário de Appia, que cria uma hierarquia entre os diversos elementos, Craig

não imagina separar, nem para efeito de análise, a parte do todo, já que é

justamente na idéia de unidade e conjunto que ele compõe sua concepção

pessoal da Arte do Teatro. No lugar de uma obra de arte total, um teatro total.

Os elementos que o constituem – gestos, palavras, linhas, cores, luzes e

ritmo – devem ser reunidos formando um conjunto coeso, orgânico e coerente: o

espetáculo. A concepção do conceito deste conjunto, a orquestração dos

elementos, a harmonia das partes entre si e com o todo, são a nova função da

encenação, ou em outras palavras, significam o “renascimento do encenador”.

Este “novo” encenador precisa ter então total controle sobre as linguagens

e meios técnicos que compõe a encenação e deve ser ele, o maestro da cena,

que determina os vetores e linhas de força, os contrastes e as cores, o movimento

e o jogo dos atores, da cenografia e das luzes. A apropriação dos meios técnicos

por parte do encenador, que o permita ser o fator de unidade do espetáculo é

uma das indicações importantes de Craig aos artistas do futuro:

O Encenador: ... Mas espero um Renascimento.

O Amador de Teatro: E quem o provocará?

O Encenador: O aparecimento de um homem que reúna, na sua pessoa, todas as qualidades que fazem um mestre do teatro e a renovação do teatro como instrumento. Quando esta se completar, quando o teatro for uma obra-prima de mecanismo, quando se tiver inventado a sua técnica particular,

235 Craig, E. Gordon. Da Arte do Teatro Op. Cit. p. 158.

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engendrará sem esforço a sua própria arte, uma arte criadora. (...) O Amador de Teatro: Quer dizer, pelo vosso encenador ideal.

O Encenador: Precisamente. No começo desta conversa disse-vos que o Renascimento do Teatro tinha por ponto de partida o Renascimento do encenador. No dia em que este compreender a adaptação verdadeira dos atores, dos cenários, dos figurinos, das iluminações e da dança, saberá, com o auxílio desses diferentes meios, compor a interpretação e adquirirá, a pouco e pouco o domínio – do movimento, da linha, da cor, dos sons, das palavras que escorrem naturalmente, e, nesse dia, a Arte do Teatro retomará o seu lugar, será uma arte independente e criadora, e não mais um ofício de interpretação. 236

A OBRA DE ARTE VISUAL

Craig entende que a principal ação do espetáculo se dá sobre os nossos

sentidos e não sobre o entendimento, daí a diferença entre o poema dramático,

feito pelo poeta para ser lido e o “drama”, feito pelo dramaturgo para ser posto em

cena: O dramaturgo forjou a sua primeira peça com o

auxílio do gesto, das palavras, da linha, da cor e do ritmo, dirigindo-se ao mesmo tempo aos nossos olhos e aos nossos ouvidos por um jogo resultante destes cinco fatores. 237

E, embora os sons façam parte fundamental deste conjunto, o privilégio,

em sua opinião, recai sobre a visão. Neste mesmo texto, mais adiante, Craig

afirma que o público da tragédia grega desejava mais ver do que ouvir 238. E

completa: “o público dos nossos dias continua a ir ao teatro, como no passado,

para ver e não para ouvir qualquer coisa”.239

O teatro é uma arte para os olhos. Esta afirmação será expressa em vários

textos, de várias maneiras. Mas é, sobretudo, em suas encenações, onde o

visível revela a essência do espetáculo, que este ponto de vista se manifesta. As 236 Craig, E. Gordon. Da Arte do Teatro Op. Cit. p. 191. 237 Idem Ibidem, p. 160-161. 238 O próprio nome do lugar destinado ao público na tragédia grega se remete à visão: “Theatron, lugar onde se vê”. 239 Craig, E. Gordon. Da Arte do Teatro Op. Cit. p. 162.

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cenografias de Edward Gordon Craig são sempre a síntese de sua expressão

como encenador e não é à toa que ele engloba em seu conceito de cenário todo o

aspecto visual do espetáculo:

Entendo por cenário tudo o que se vê, isto é, os figurinos, a iluminação e os cenários propriamente ditos.240

Essa afirmação expressa a relação intrínseca entre os vários aspectos do

visível, que se complementam entre si, instituindo a unidade do espetáculo, ou

como resume Bablet:

As linhas e cores que deverão se acordar ao movimento e a voz, então, serão aquelas dos figurinos, das iluminações e da cenografia propriamente dita, e uma das condições da unidade do espetáculo será a harmonia de todos os seus elementos visuais. 241

Isto significa que não há como pensar a cenografia sem a luz ou a luz sem

a cenografia e que ambas não se juntam, mas são criadas como uma só

expressão cênica. Desde o desenho, as cenografias de Craig traduzem em preto

e branco242 o sentido profundo, no devir da cena, do contraste entre o claro-

escuro da iluminação, que revela ou esconde. Esconder pode ser tão importante

para a manifestação do sentido profundo do espetáculo quanto a revelação. O

movimento interno causado pela relação entre o visível e o não-visível em suas

infinitas modulações, cria um pulso, uma progressão do aspecto visual. Como

propõe o simbolismo, música e orquestração para os olhos.

O embate entre as linhas de força impressas no espaço pela relação entre

a luz e a matéria, expressa os conflitos fundamentais do drama no espetáculo

visível.

240 Idem Ibidem, p. 194. 241 Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p. 289. 242 Não podemos esquecer que Craig era também gravurista e imprimia concretamente no veio da madeira o contraste entre preto e branco, que cria a forma.

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A composição do sentido do espetáculo depende do poder de “síntese e

sugestão” destes meios expressivos que tocam o espectador através dos seus

sentidos, principalmente seus olhos, e, a partir daí, criam uma significação “total”,

que engloba a imaginação, a inteligência e a emoção da platéia, de forma a que o

espírito humano possa finalmente encontrar-se imerso no sentido profundo da

palavra “beleza”.

Ou como muito bem resume Bablet:

Música, texto interpretação dos atores cenografia

e iluminação são igualmente vozes de um coro polifônico

que se respondem e se exaltam mutuamente. 243

O SIMBOLISTA DAS FORMAS, DAS CORES E DAS LUZES

De seus textos e desenhos, das descrições e fotos de seus espetáculos se

vislumbra um encenador, cenógrafo e iluminador simbolista. Um poeta do visível

que faz das formas, linhas, volumes, materiais, cores e luzes um meio de

expressão do espírito, de sugestão para aguçar a imaginação da platéia, de

síntese da essência do drama.

Mais do que inspirado pelo ideal simbolista de “síntese e sugestão”, como o

foi também Appia, Craig tem no Símbolo um meio e um fim explícitos do seu

trabalho. Em um pequeno artigo “A Propósito do Simbolismo”, de 1910, Craig

afirma sua compreensão da arte como expressão simbólica da existência e

declara seu amor pelo simbolismo. O Símbolo torna possível a manifestação da

Idéia no mundo dos sentidos e é através da definição dos conceitos simbolismo e

símbolo, que cita na nota de rodapé desde artigo, que de alguma forma ele se

serve para definir um dos principais objetivos do seu trabalho:

Webster: Definição do simbolismo = emprego sistemático de símbolos. Definição do símbolo = O sinal visível da idéia. – (Nota do Autor). 244

243 Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Op. Cit. p. 312. 244 Craig, E.G. A Propósito do Simbolismo. Op. Cit. p, 299.

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Na descrição do seu método de criação, dedicado para “Os Artistas do

Teatro do Futuro”, surpreendemos a busca de um modo de expressar através de

símbolos visíveis o conflito fundamental de uma peça e desta forma, comunicar-

se com sua essência. Assim ele descreve como é possível compor os cenários de

Macbeth:

Por mim, vejo duas coisas: uma alta rocha escarpada e uma nuvem úmida que esfuma o cume. Aqui, o lugar dos homens ferozes e guerreiros, ali a região que os espíritos habitam. Finalmente a nuvem destruirá a rocha, os espíritos triunfarão sobre os homens. 245

É dessa primeira visão interior que ele extrai, como uma essência que

compõem um perfume raro, todas as indicações do cenário, do figurino e da luz.

As linhas verticais da rocha, que criam a sugestão de sua presença rumo aos

céus, do seu volume que dá a dimensão de sua concretude. O contraste entre a

rocha e a evanescência das nuvens, expressas pelo movimento da iluminação, as

“massas” móveis de sombra e de luz.

O mesmo processo será usado para determinar as cores presentes no espetáculo:

Mas as cores, direis, quais são as cores que Shakespeare nos indicou? Não consulteis a Natureza, mas antes de tudo a própria peça. E, aí, encontram-se duas cores: a da rocha e dos homens, a da nuvem e dos espíritos. 246

A partir dessas duas cores ele comporá a cenografia, os figurinos e a luz,

formando um conjunto de significação.

As cores serão, portanto, uma paleta de símbolos para o encenador criar o

espetáculo, uma possibilidade de manifestação visível do “fundo das coisas” e

seus contrastes um conflito subliminar que intensifica a ação dramática, tensão

intrínseca exposta aos olhos. Expressas no figurino as cores manifestam o interior

das personagens, em seus contrastes, os conflitos fundamentais entre elas; a

interação entre as cores dos figurinos e as do cenário, a expressão das relações

entre personagens e o mundo. Como é o caso do Hamlet de Moscou onde o pano

245 Craig, E. Gordon. Os Artistas do Teatro do Futuro. Op.Cit. p, 55. 246 Idem Ibidem, p. 57.

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de fundo e os figurinos da corte são dourados, representando uma corte voltada

às aparências e à riqueza, enquanto Hamlet é o único de preto, contraste

absoluto de cor, brilho e significado que isolam Hamlet do resto do mundo. As

cores da luz, por sua vez, revelam, escondem ou transformam as cores do

cenário e dos figurinos, incluindo a possibilidade de movimento às relações

simbólicas expressas pela paleta de cores do espetáculo. A escolha meticulosa

dessas cores, sua síntese e coerência interna são assim fundamentais para

assegurar a força potencial de seu significado simbólico.

A luz ou sua ausência são em si uma representação simbólica de forte

impacto na tensão do espetáculo:

Para Craig a luz é revelação e símbolo da vida, a sombra é mistério, ameaça e símbolo da morte. A representação do drama implica sua coexistência e seu conflito.247

Trata-se de um processo de “metonímia cenográfica”, Craig seleciona de

todas as indicações da peça um substrato, um conflito fundamental, um elemento

central, uma idéia e, a partir dela, constrói uma unidade visual que expressa pela

força da síntese, a intensidade da sua sugestão. Desta forma o conflito de

Macbeth reflete-se no contraste entre rocha e nuvem; a luz da lua perdida na

imensa escuridão representa a solidão de Hamlet; um trono é um palácio; a luz de

um vitral, uma igreja; uma escada, metáfora da vida.

AS ILUMINAÇÕES

I. INFLUÊNCIAS

Encontramos algumas influências fundamentais em sua formação que o

iniciaram nos aspectos técnicos e artísticos da iluminação. Seu pai artístico, o

diretor inglês Henry Irving foi o grande “iluminador a gás” da breve história dessa

técnica, primeiro inglês a usar o controle das intensidades da luz que o sistema a

gás permite, criava atmosferas “impressionistas”, climas de lusco-fusco e

247 Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p. 312.

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movimentos de luz no decorrer do espetáculo. A importância dessa luz em seus

espetáculos era tanta que ele viajava com seu próprio sistema de iluminação e foi

o diretor que mais resistiu trocar a luz viva do gás pela “dureza” da luz elétrica em

seus inícios.

Segundo Christopher Innes 248, Craig recebeu também uma influência

decisiva, principalmente no que concerne à elaboração de novos meios técnicos

na cenografia e na iluminação, advinda do trabalho do encenador e professor

Herkomer. Esse artista da Baviera que se instalou na Inglaterra, fundou uma

escola de artes em Bushey (perto de Londres) e construiu um pequeno teatro

para experiências práticas com seus alunos, onde desenvolveu uma série de

dispositivos cenográficos e luminotécnicos inéditos. Lá, nas apresentações de fim

de ano de 1889 e 1890, Edward Gordon Craig, então com dezessete e dezoito

anos, foi testemunha de novos dispositivos de iluminação desenvolvidos por

Herkomer, que muito o impressionaram, como um fundo “infinito” que, através da

interação entre uma gaze transparente na diagonal com diferentes ângulos de

incidência de luz, resultavam a impressão de profundidade e movimento,

recriando para as lâmpadas incandescentes os efeitos de ilusão de ótica que

Phillip de Loutherbourg utilizara nos anos 1780 para os espetáculos de dança 249.

Muitos dos efeitos de luz das primeiras encenações de Craig serão

aperfeiçoamentos dos mecanismos de Herkomer, porém com objetivos estéticos

totalmente diferentes.

Sabemos pelas descrições das viagens de Craig que ele entrou em contato

com teatros e profissionais de vários países, onde pesquisou com afinco novas

maneiras de iluminar e desenvolvimentos tecnológicos, em especial aqueles

produzidos na Alemanha: em Munique, conheceu os dispositivos de luz criados

pelo prof. Littmann para o München Künstler Theater, cuja maquinaria dos

cenários e da iluminação é totalmente escondida da platéia e “são diferentes de

tudo quanto vi até hoje” 250; também conheceu de perto o trabalho de Max

248 Innes, Christopher. Edward Gordon Craig A vision of the Theatre. Overseas Publishers Association, 1996, pp.31 a 36. 249 Para não sermos repetitivos, explicaremos em detalhes o “truque” desta mágica de luzes, a partir do desenvolvimento feito por Craig para Dido e Enéas.

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Reinhardt, a quem chama com admiração de o “grande chefe de escola, o

professor Reinhardt” 251 Craig também cita o cuidado e preciosismo da pesquisa

em luz no Teatro de Arte de Moscou que, apesar de caminhar para o sentido

oposto da sua, utilizar-se de ribaltas, gambiarras e efeitos que têm por objetivo

uma eterna busca pela precisão naturalista, o inspiraram muitíssimo por sua

“perfeição técnica”, dedicação e bom gosto. O Teatro de Arte de Moscou mudou a

perspectiva de Craig quanto à possibilidade de uma harmonia e dedicação

coletivas para um objetivo comum, naturalmente a partir do impulso e força

catalisadora e, como prega o encenador inglês, unificadora do encenador.

Craig era desde muito jovem, além de ator, gravurista. Imprimia

concretamente no veio da madeira o contraste entre preto e branco, que cria a

forma. A influência da técnica da gravura em seus desenhos cênicos é visível.

II. EM BUSCA DE UM NOVO DISPOSITIVO DE LUZ

Como um gravurista que traça linhas na madeira, isto é, no quadro cênico;

Craig muda os ângulos das fontes de luz de acordo com as necessidades de cada

cenografia (o que era incomum naquele momento em que normalmente as

estruturas de luz eram fixas e as lâmpadas abertas). Realiza, portanto, um projeto

de luz específico para cada espetáculo, que ele nomeia de “dispositivo de

iluminação”:

No que diz respeito aos mecanismos de iluminação; mas é ao encenador que compete regular o seu emprego. E como este último é um homem inteligente e competente, imaginou um dispositivo de iluminação especial para a peça em questão, da mesma maneira que concebeu cenários e vestuários especiais. Se não atribuísse importância à “harmonia” da peça, então poderia deixar a iluminação ao cuidado de qualquer.252

Essa idéia de um novo dispositivo para cada espetáculo, ou seja, um

desenho específico de luz para cada encenação, em harmonia com a concepção

250 Craig, E. Gordon. “O Teatro na Alemanha, na Rússia e na Inglaterra” in Da Arte do Teatro. Op. Cit. p. 148.

251 Idem Ibidem, p. 152.

252 Idem Ibidem, p. 177.

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geral do espetáculo e particularmente, da iluminação como um fator decisivo de

um conjunto de significação visual, é, na prática, justamente a assunção do

significado da iluminação cênica como linguagem.

Resta saber agora, como Edward Gordon Craig, que é conhecido como

grande iluminador e, inclusive nomeado por Margot Berthold com o interessante

epíteto de “Simbolista da luz, ou seja, iluminador” 253; concebia esta linguagem.

Em “Os Artistas do Teatro do Futuro” ameaça destrinchar o aspecto técnico

da iluminação, segundo sua perspectiva, mas não o faz, criando uma expectativa

em relação ao assunto:

Pensava dizer-vos duas palavras sobre a maneira de empregar a luz artificial, mas aplicai aquilo que vos disse dos cenários e dos figurinos a esta outra parte da vossa profissão. Não seria nada prático indicar-vos os dispositivos que se utiliza, o modo de obter as boas iluminações.254

Como sabemos e o próprio autor corrobora com esta idéia, pelas

especificidades de cada ofício e das técnicas empregadas em cada um deles, não

é possível apreender sobre a iluminação simplesmente aplicando indicações do

cenário e do figurino. Em outras ocasiões Craig explica que não vai contar como

faz para criar tecnicamente o aspecto visual de seus espetáculos, porque seria

copiado por fora, sem que o interlocutor entendesse o sentido interior da

composição de uma encenação por cada artista. Ficamos então, por enquanto,

sem saber nada mais específico sobre o assunto. Porém fomos encontrando

pistas que nos levaram a esses dispositivos de luz utilizados por Craig.

Vamos seguir e analisar as pistas, passo a passo.

Jacques Copeau, que se descreve como “representante das suas idéias

em França”, descreve que Craig lhe mostrou “um sistema de iluminação que dá

253 Berthold, Margot, História Mundial do Teatro. São Paulo: Ed Perspectiva, São Paulo, 2003. p. 471. 254 Craig, E. Gordon. “Os Artistas do Teatro do Futuro” in Da Arte do Teatro. Op. Cit. p. 72.

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resultados admiráveis e parece maravilhosamente simples e prático (...). É a

supressão total da ribalta e das gambiarras”. 255

Como tantos outros reformadores de seu tempo, Craig é absolutamente

contrario à utilização da ribalta como principal fonte de iluminação, escrevendo

tanto contra ela, quanto Appia. Portanto, quando o “Amador de Teatro” pergunta

ao “Encenador”, para que serve a ribalta e a luz rasante, ele é direto na resposta:

... O melhor é fazer desaparecer a ribalta o mais depressa possível de todos os teatros e não se falar mais nisso. É uma das bizarrias que ninguém sabe explicar... 256

Na seqüência, quando o seu interlocutor insiste, em nome de um ator, que

sem a ribalta as caras dos atores ficariam no escuro, Craig esclarece que é

necessário inventar novos dispositivos e, portanto, novas formas de iluminar.

Nesse mesmo texto faz um histórico do possível surgimento da ribalta, por razões

de facilidade técnica e econômica, mas não esclarece nem dá pistas de quais

seriam essas novas formas de iluminar.

Também encontramos uma frase de Craig que, embora metafórica, é muito

significativa de seus desejos estéticos em relação à luz:

Tudo será iluminado por uma luz semelhante àquela das esferas, as quais nós sonhamos, e não àquela da ribalta.257

Dela podemos, numa liberdade de imaginação que a própria imagem nos

sugere, deduzir que ao contrário de uma fonte visível e de baixo como a ribalta, a

luz deve vir do alto, com as fontes invisíveis, como se viesse das esferas. A luz do

alto, a mesma usada pelos simbolistas franceses e depois pelos expressionistas

alemães, privilegia as formas e os volumes.

255 Kurtz, Maurice. Jacques Copeau, Boigraphie d´um Thèâtre citado por Redondo Júnior em Craig, E.G. Da Arte do Teatro. Op. Cit. p. 9. 256 Idem Ibidem, p. 179. 257 Craig, E. Gordon, “Um Mot sur Le Thèâtre tel qu’il était, tel qu’il est, tel qu’il sera” in Thèâtre Populaire, 3º trimestre 1962, n.47, p. 120 citado por Bablet, Denis in Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Op.Cit. p.311.

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Chegamos, então, à descrição de Jean Jacques Roubine, que indica um

“dispositivo de iluminação” composto de luzes vindas do alto e da frente:

Inteiramente nova na sua concepção, a técnica empregada permite iluminar os personagens de frente, ou verticalmente, pois a luz não é mais enviada da ribalta ou dos bastidores, mas do fundo da sala e do urdimento. 258

Esta é uma descrição dos ângulos de iluminação preferenciais de Craig,

que indica uma nova forma de iluminar o ator em substituição à ribalta. Porém

Roubine não nos revela a fonte dessa informação, como chegou a essa

conclusão, nem os detalhes técnicos do “novo dispositivo de iluminação” o que só

fez aumentar a nossa curiosidade.

Encontramos, por fim, um livro que descreve cada uma das encenações de

Craig, inclusive do ponto de vista das coreografias, cenografia, figurinos e

iluminação, incluindo desenhos e projetos técnicos do próprio encenador, suas

anotações de ensaio assim como notas dos programas e críticas, exatamente o

que precisávamos para poder conhecer e analisar sobre bases mais firmes esses

“novos dispositivos” de luz, suas inovações e significado para o desenvolvimento

da iluminação cênica como linguagem técnico-estética. A descrição dos

dispositivos de iluminação que fazemos a seguir tem por fonte principal este livro:

Edward Gordon Craig – A Vision of Theatre, de Cristopher Innes.259

Não pretendemos aqui dar conta (e nem é nosso objetivo) de uma

descrição detalhada dos espetáculos ou mesmo de cada uma das luzes, mas

retirar delas as inovações de linguagem ou as comprovações práticas de nossas

teses teóricas e, enfim, destacar no projeto da iluminação desses espetáculos o

que nos impele a analisar o desenvolvimento de uma mudança total da prática e

sentido da iluminação cênica, incluindo sobretudo seu aspecto técnico-estético,

que ocorre exatamente nesse momento da história do teatro (entre 1890 e 1914)

tendo em Edward Gordon Craig um de seus ícones, tanto no aspecto teórico

(juntamente com Appia), como no técnico e prático (juntamente com Max

Reinhardt, Meierhold e Tairov). 258 Roubine, Jean Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. Op. Cit. pp. 121-122. 259 Innes, Christopher. Edward Gordon Craig A vision of the Theatre. Overseas Publishers Association, 1996, pp.31 a 36.

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III - PRIMEIRAS ENCENAÇÕES E OS NOVOS DISPOSITIVOS DE ILUMINAÇÃO

a. Dido e Enéas

Em 1900 Craig realiza sua primeira encenação: Dido e Enéas de Purcell.

Podemos observar já neste primeiro espetáculo a importância da cenografia,

figurinos e luz, pensados em conjunto com o todo da encenação. O drama se

passa em seis diferentes lugares, incluindo cavernas, jardins e até mesmo

“debaixo da terra”. Diante da precária estrutura técnica do teatro e da

infraestrutura da montagem, o encenador resolve essas dificuldades compondo o

espetáculo em um único cenário estrutural. Mudam apenas alguns elementos

essenciais, a combinação e contrastes de cores nos figurinos, no telão do fundo e

no tecido do chão e, principalmente, a partir da coordenação entre a música, o

movimento dos coros e das luzes, que geram a força da progressão dramática e

do poder sugestivo desta montagem considerada como uma revolução de forma e

técnica.

Craig inova totalmente as estruturas de iluminação de seu tempo, abolindo

de vez a ribalta, substituindo-a por “lâmpadas escondidas em caixas” 260 no

fundo do auditório e em cima do palco, nas duas laterais como podemos conferir

no desenho (corte lateral) de Craig, abaixo:

260 Idem Ibidem, p. 45.

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Craig inventa, assim, um novo dispositivo para iluminar o ator, no lugar da

ribalta.261 A luz de frente, que normalmente chamamos de “luz geral”, com a

mesma função da “luz difusa” proposta por Appia. Embora considere este, como

qualquer outro dispositivo, específico para cada espetáculo e, portanto, coerente

com um conjunto único e novo a cada nova encenação.

Sobre o mesmo dispositivo de iluminação de Dido e Enéas, Bablet

acrescenta:

É do alto que tombará a luz: Craig dispõe sobre um <ponto> que domina a cena os aparelhos que iluminarão o platô e as telas de fundo (é necessário recordar que o emprego do <ponto de luz> somente se generalizará, e a princípio na Alemanha, alguns anos mais tarde?). Em outro procedimento igualmente inédito, ele coloca ao fundo da sala dois projetores cujos feixes de luz, passando por cima do público, irão bater os atores de face.262

As lâmpadas fechadas em caixas e acesas individualmente (como nos

nossos refletores), tanto da frente como das laterais, permitem o controle e uso

artístico das sombras.

O fundo do palco tem um mecanismo desenvolvido a partir daquele que

Craig viu anos antes no teatro de Herkomer e que se transformará em uma

característica desse período da criação de Craig:

Usando uma tela de fundo com um tecido de uma única cor e na frente dela (a mais ou menos 60 cm de distância), uma gaze esticada em ângulo, na qual é projetada luz de outra cor. Um assombroso efeito tridimensional era alcançado 263.

261 Cabe lembrar que embora as críticas à ribalta sejam feitas regularmente desde o Renascimento com Sabattini, ela é até então irremediavelmente utilizada como luz principal, a não ser em espetáculos onde por alguma razão estética excepcional não há nenhuma luz de frente, como em “Pelleás e Melisande” de Lugné Poë, por exemplo. 262 Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Paris: L’Arche, 1962, p. 54. 263 Innes, Christopher. Op. Cit., p. 46.

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O fundo “infinito” permite um jogo de luzes – entre aquela que ilumina o

fundo por trás da gaze (que fica então transparente) e outra projetada na gaze

pela frente (que torna a gaze opaca) – criando um efeito surpreendente de ilusão

de ótica, sobretudo quando através do movimento de intensidades se dá a fusão

entre o que está atrás e o que está na frente, quer sejam cores, imagens,

cenografias ou personagens.264 Esse efeito de fusão em Dido e Enéas

acompanhava o ritmo dos tambores da música.

Para as “aparições” 265 do espetáculo, cria um

efeito composto: primeiro por trás da gaze, que

deixa a figura esmaecida, acrescida com tecido

cortado na frente criando uma moldura informe (vide

imagem), surge um feiticeiro iluminado

pontualmente que profere: “Appear !”. Então o coro

das bruxas, em vestes camufladas contra o chão,

surge na semiobscuridade, como do nada, ao

mesmo tempo em que buracos no solo deixam

passar luz de carbureto (limelights) e vapor, criando

sombras móveis que ganham formas no espaço projetadas nas partículas de

água espalhadas pelo ar. Se nesta cena luz e fumaça sobem do chão para o alto,

na cena da morte pétalas caem do urdimento sobre o corpo de Dido, iluminado

por um “feixe de luz branca vertical (a pino) com foco concentrado, contra um céu

violeta que vai escurecendo gradualmente” 266, efeito certamente realizado por um

aparelho individualizado com lente.

264 Esse movimento de luzes em gazes transparentes que cria uma fusão entre a imagem que está por trás e a da frente, usada desde o século XVIII, é um “truque” de ilusão de ótica muito comum, no entanto sempre surpreendente. É o mesmo efeito usado tanto nas complicadas passagens de lugar e tempo do filme O Fundo do Coração de Copolla, uma das iluminações mais caras do cinema, até a mágica da “Mulher/Monga” em parques e circos. 265 Craig considera que as “aparições”, “espectros” ou “espíritos” são o centro destas peças porque “O simples fato da sua presença proíbe qualquer figuração realista das peças em que aparecem. Esses espíritos dão à peça a tonalidade na qual, assim como as notas na música, todas as partes deverão harmonizar-se” Craig E.G. “Dos espectros nas tragédias de Shakespeare”, in Da Arte do Teatro, Op. Cit. p. 271. 266 Innes, Christopher. Op. Cit., p. 46.

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A descrição das luzes também esclarece o uso de cores267, como

demonstra, por exemplo, essa descrição do movimento final do espetáculo:

Dido de preto, cercada de um coro de virgens, “agora inteiramente

cobertas em seus véus de gaze roxa, são lavadas em luz verde,

enquanto luz azul é jogada do topo no tecido de fundo.

Amarelo é projetado de frente na gaze. O amarelo diminui

gradualmente 268, funde-se com o azul, que deixa o céu roxo

profundo, que escurece até que o coro se perca contra o céu e

só se veja os seus braços (brancos) em ondas”. 269

Craig pinta suas cenas com cores fortes e complementares, criando um

“contraste em cor”. Da mesma forma que o ângulo de incidência da luz cria o

contraste entre luz e sombra, determinando forma e volume, a contraposição de

cores complementares também gera contraste e revela as formas, isola ou

relaciona umas em relação às outras, justapõe imagens ou mesmo transfigura

objetos e pessoas.

O “contraste em cor”, principalmente entre as cores primárias, nos remete

imediatamente à pintura simbolista, como em Redon, por exemplo, ou para além,

aos pintores dos primeiros movimentos expressionistas alemães como o Blaue

Reiter (principalmente Jawlensky, Franz Marc, Gabrieli Münter e Kandinsky) e o

Die Bruck (como Emil Nolde e Otto Müller), ou mesmo ainda, Chagall, cuja pintura

tem forte conteúdo simbólico. No trabalho destes pintores a forma não é dada

pela perspectiva, sombras e esfumatos, mas pelo contraste seco de cores

complementares (como o verde/magenta; o amarelo/azul e o azul

violeta/vermelho). Expressam através do jogo gritante das cores o mundo interior

267 Como normalmente as descrições e citações de luzes encontradas são, em geral, abrangentes e conceituais e as fotos e desenhos são em preto e branco, o quanto e como as cores são usadas permanecem muitas vezes imprecisas ou mesmo misteriosas. Neste livro de Christopher Innes há descrições precisas de efeitos, técnica, cores e ângulos. Citarei algumas que considerei mais representativas, para poder comentá-las e tentar analisar assim o seu sentido no todo deste capítulo e da dissertação como um todo. 268 Para a palavra dimmed, aqui utilizada, usamos comumente em “português de iluminadores” o anglicismo “dimmerizado”. Que significa diminuído ou aumentado de intensidade por meio de dimmmers. 269 Innes, Christopher. Op. Cit., p. 46

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ou o choque entre a interioridade e o mundo exterior. As cores transfiguram o

mundo por dentro.

Estes “contrastes em cor” utilizados por Craig, em uma mesma cena e

entre uma cena e a próxima, dão uma dimensão móvel ao aspecto simbólico da

cor, isto é, a cor não é apenas um elemento simbólico em si, mas ela é

contextualizada em uma relação dinâmica de contrastes no espaço e no tempo,

que forma um conjunto de significação. Este conjunto de cores em movimento

deve manifestar a essência do conflito do espetáculo e sua progressão dramática.

b. A Máscara do Amor

Em março de 1901, Craig apresenta às expensas da Purcel Operatic

Society a reprise de Dido e Enéas e o novo espetáculo A Máscara do amor. 270

Novamente a iluminação faz a diferença, garante a homogeneidade visual

da encenação, transforma os materiais da cenografia e dos figurinos, movimenta

a combinação de cores, que por si mesma é incomum e simbólica:

O encenador confere à obra uma estranha sobriedade de movimentos, de linhas e de cores. O símbolo, uma vez mais, prevalece sobre a descrição, a alusão sobre a imitação. 271

As cores e movimentos também se coordenam, se transformam e se

contrastam na mistura estudada entre a cor-luz e a cor-pigmento da cenografia e

dos figurinos:

Enquanto figuras brancas, cinzas e verdes tomavam outras nuances enquanto se moviam através de áreas de luzes coloridas que cobriam cada espaço do palco – azul, verde, vermelho e amarelo.272

270 “A Máscara do Amor, é tirado da ópera de Purcell, Diocleciano. O libreto é a adaptação por Betterton da peça de Beaumont e Fletcher: A Profetisa, ou A História de Diocleciano”. Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p. 62. 271 Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p. 62.

272 Innes, Christopher. Op. Cit., p. 60.

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O efeito do “céu infinito” é repetido e ampliado. Neste espetáculo o tecido

do fundo é preto, permitindo um jogo de cores mais misterioso e mágico entre a

luz do fundo e a luz de frente da gaze e, além da gaze do fundo, Craig acrescenta

duas cortinas de gaze na boca de cena, a primeira pintada com “uma grade com

barras cinza escuro” 273 para a cena da “Prisão do amor” e a segunda com

“quadrados brancos”.274 Este efeito, que segundo Christopher Innes deriva de

Iñigo Jones, faz parecer a todos que vêem de frente que as imagens acontecem

dentro das grades ou por trás dos quadrados brancos, pois realiza através dos

efeitos de luz uma justaposição das imagens, como àquela realizada por

sobreposição de transparências. No entanto a gaze da frente separa ainda mais

do que a ribalta as imagens do palco, da platéia, criando uma impressão de

quadro móvel, quase uma pintura em três dimensões.

c. Áxis e Galatéia

Em 1902 é a vez da pastoral Áxis e Galatéia 275. Nesse espetáculo cabe à

luz traduzir um grande contraste entre o clima poético da pastoral e os momentos

de terror e medo representados pela presença do gigante Polifemo.

Aqui Craig faz uso mais uma vez de uma máxima do simbolismo, de que o

poder da imaginação vale mais do que qualquer materialização física. Assim

sendo, em vez de revelar Polifemo, a iluminação o esconde.

A primeira sugestão de sua presença se dá na cena chamada por Craig no

programa de “A Sombra”:

Para uma cena “A Sombra” ele usou o efeito tridimensional de céu sem limites – um céu azul que vai escurecendo, passando por um roxo profundo até a base preta – como um fundo para os amantes que estavam sentados num círculo de luz vertical rosa (...). Quando o coro dizia “Veja o monstro Polifemo”, uma moldura de arame (ou tela) atrás da gaze era iluminada e a

273 Innes, Christopher. Op. Cit., p. 59.

274 Idem Ibidem, p.59.

275 “Depois de Dido e Enéas e A Máscara do Amor, Craig e Martin Shaw (maestro responsável pela direção musical das três montagens) empreendem montar, nas mesmas condições, Axis e Galatéia, pastoral em duas partes de John Gay, música de Haendel” Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p. 65.

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impressão de ‘um imponente castelo emerge em um contorno dourado’276.277

Na primeira aparição “efetiva” de Polifemo ele está coberto por um manto

roxo, na semiobscuridade; quando a luz cresce vemos apenas uma sombra se

agigantar sobre os amantes. Em vez da platéia ver um monstro externo, projeta

seus próprios monstros interiores sobre a sugestão aterradora.

Nestas duas seqüências descritas, Craig aplica o contraste de cores entre

o fundo e a frente, isola os amantes num foco e cria um cenário de luz, num

conjunto que tem no jogo de iluminação entre luz, cor e sombra a sua escritura

expressiva. Cada detalhe é construído cuidadosamente de acordo com a regência

do encenador, que inventa a técnica necessária para manifestar a imagem que

necessita.

Para a difícil cena da morte, onde Axis transforma-se em “Deus da Água”,

Craig não representa nenhum deus visível, apenas tira a personagem de cena e

sugere uma imagem aquática a partir de um jogo de luzes, um “Antigo

truque da pantomima usado por Charles Kean: luz de lâmpadas

com grandes discos perfurados que se moviam na sua frente

brilham por trás através de buracos no tecido do fundo”. 278

Como comenta Arthur Symons a respeito de Axis e Galatéia,

O objetivo de Mr. Craig é de nos transportar para além da realidade; ele substitui a imagem do objeto pela imagem que o objeto evoca no nosso espírito (...). O olho se perde entre as linhas e suas superfícies

276 Por curiosidade de saber se a imagem do castelo emergia como sombra na gaze ou luz na tela do fundo, fomos à citação original, encontrada (em francês) no livro de Bablet. Por acharmos interessante como cada tempo projeta seu mundo na maneira de descrever o que vê ou lê, apresentamos aqui a mesma cena segundo a descrição da fonte de Christopher Innes: “O fundo é constituído por uma grande tela azul sombreada e os amantes, Acis e Galatée, parecem no meio da cena que é iluminada somente por uma luz vermelha (rouge) dirigida sobre eles. Em seguida, quando o coro os convida à <contemplar o monstro>, a imagem de um imponente castelo emerge em um contorno dourado sobre a tela do fundo” Spence, Percy (legenda que acompanha um desenho) Sphere, vol. 8, n.113, March 22, 1902 in Bablet, Denis. Edward Gordon Craig, Op. Cit. pp. 67 – 68. 277 Innes, Christopher. Op. Cit., p. 52. 278 Idem Ibidem, p. 52.

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severas, precisas, e, contudo, misteriosas; o espírito os sente com facilidade, os aceita com a mesma facilidade com que aceita a convenção da peça poética...279 O emprego de símbolos, como prática de um conjunto visual baseado na

convenção, composto por cores, linhas e luzes é parte fundamental da prática

teatral de Craig.

d. Bethlehen

Bethlehen é uma natividade de Lawrence Housman. Do ponto de vista da

iluminação e sua relação com a cenografia há duas menções a serem feitas.

Primeiro, para a cena da chegada dos Reis Magos, Craig cria uma

procissão que vem da platéia rumo ao palco. Porém para não deixar que a

humanidade dos atores junto ao público quebrasse com a divindade da cena, ele

cria um corredor de gaze e de luz, de forma a manter a “distância” entre um e

outro, entre a idealidade da arte e a realidade humana.

Segundo, para o grande efeito da natividade, Craig resolve através da

iluminação a difícil existência ambígua de cristo como homem e divindade ao

mesmo tempo. O encenador não queria colocar um bebê representando Cristo

porque isso daria um sentido humano à natividade, então ele colocou “uma luz

poderosa no berço e reduziu toda a outra iluminação ao

mínimo, quando Maria levantava o tecido que cobria o berço,

era a luz radiante vinda de dentro que iluminava os rostos ao

redor...”. 280

A divindade foi assim substituída por uma luz divina, parte de uma

iluminação simbolista e divinizante. Bablet escreve que “Na época, nenhum

espetáculo antes revelou tal utilização da iluminação” 281.

Difícil afirmar que tenha sido mesmo a primeira, com certeza não é a última.

279 Simons, Arthur, Studies in seven Arts, London, Archibald Constable and Company, 1906, p 354 in Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p.68. 280 Innes, Christopher. Op. Cit., p. 77. 281 Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p.72.

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e. Vikings

A luz neste espetáculo é principalmente

atmosfera em forma de espaço. Não tem a

variedade de cores e efeitos dos espetáculos

anteriores; este é o mais sintético, mais severo

e também mais misterioso dos espetáculos desta primeira fase de seu trabalho. A

cenografia se organiza em formas geométricas, principalmente o círculo central

(como podemos perceber pelas plantas baixas a seguir). As linhas verticais,

compostas por cortinas e gazes e a luz vinda primordialmente de cima, a pino,

apresentam as figuras humanas pequenas diante da existência, antecipando as

formas de seus trabalhos futuros como as Scenes (Cenas) e os Screens

(Biombos).

Segundo as descrições, críticas e cronistas o espetáculo acontecia quase

sempre na obscuridade, transformando os volumes em massas imprecisas e

sombrias, exceção feita ao terceiro ato que se chamava “Luz” na descrição de

Craig. O contraste sempre presente em suas iluminações, desta vez fica por

conta do ângulo de 90º da geral, que cria sombras e relevo nas formas, assim

como na diferença de temperatura entre a luz fria dos aparelhos elétricos em

relação ao calor das chamas, presentes principalmente no segundo ato: no

braseiro central, no grande candelabro circular suspenso e nas tochas que, nas

mãos dos servos, acompanhavam o diálogo iluminando os atores de perto

quando falavam.

Na primeira cena deste espetáculo Craig radicaliza a gaze da boca de cena

que torna a atmosfera pesada, as personagens parecem esfumaçadas e o

conjunto ganha uma sensação de irrealidade e estranheza, separando de vez a

cena do público. 282 Um crítico da época descreveu assim o efeito:

282 Com a gaze de frente torna-se impossível projetar qualquer luz de frente (que transformaria a boca de cena em uma parede opaca). A luz vinda primordialmente de cima fica mais desenhada no espaço. Exatamente

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Atrás da cortina de gaze fina eles passavam e desapareciam, como incríveis e estranhos peixes de um aquário.283

f. Muito Barulho por Nada

Temos menos indicações técnicas sobre este espetáculo 284, citaremos

apenas a iluminação de uma das “cenografias” que reafirma o estilo de Craig. Na

cena da Igreja, nada de paredes, abóbadas, imagens ou vitrais, apenas uma cruz

e um raio de luz colorido, como se vindo do sol atravessando um vitral, projetasse

seu reflexo sobre a cena. Mais uma vez, pela última na Inglaterra285, a iluminação

simbolista de Craig oferece significado, ambiência e movimento ao espaço cênico.

g. O fim de um ciclo e a prática da luz

Nestas primeiras seis encenações podemos perceber que, ao contrário de

Appia, a iluminação é para Craig, antes de tudo, uma prática. É como encenador

preocupado com a unidade do espetáculo e a harmonia dos elementos que ele se

utiliza das luzes, sombras e cores. Nesse sentido, como ele mesmo explicita, não

há como separar a prática da luz da cenografia, uma e outra fazem parte de um

mesmo conjunto de significação visual e, por certo, de encenação.

O que a música é para Appia – manifestação máxima da arte e instrumento

de comunicação direta com a alma – é o conjunto de significação visual para

Craig. A matéria existe para os olhos através da luz e, portanto, transformando a

luz (variando ângulo, direção, intensidade e cor), transfiguram-se também as

como vimos na biblioteca da trilogia Kafka. Quem viu, nunca mais esquecerá. 283 Innes, Christopher. Op. Cit., p. 86. 284 Realizada às pressas, essa montagem foi ensaiada em vinte e cinco dias, com uma produção “recauchutada”, para substituir Os Vikings (que era um sucesso de crítica, porém um fracasso de público), no Teatro Imperial, alugado por Ellen Terry por uma temporada. Como sempre as condições de infraestrutura são fundamentais no caso do teatro. 285 Muito Barulho por Nada foi em 1903 a sexta e última encenação de Craig na Inglaterra, embora ele tenha morrido em 1966, aos 94 anos.

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características de forma e cor do que se vê em cena, assim como suas relações.

É então a partir da idéia de movimento que Craig orquestra a relação entre as

luzes, as sombras e as cores286 e a matéria, como um dado simbólico de

progressão dramática. Como encenador, Craig sabe muito bem utilizar-se do

visível e suas múltiplas transformações, para atingir através da experiência

sensível, o invisível.

III. UMA NOVA CENA ARQUITETURAL E A LUZ

a. Um novo começo

Nas primeiras encenações, cenários e dispositivos de iluminação tinham

por objetivo imediato revelar os conflitos essenciais das obras montadas. Essa

prática leva Craig a radicalizar suas concepções de estilização simbólica das

formas e de composição de um “Teatro Total,” um conjunto harmônico

orquestrado pelo encenador. Chega então o momento em que Craig exige de si

mesmo essa radicalidade, nem que para isso fosse necessário parar.

Ao mesmo tempo o encenador começa a escrever a respeito de suas

experiências pessoais e sua busca por uma essência da arte do teatro, de forma

a adquirir uma nova consciência sobre o próprio trabalho, ampliada pela reflexão

crítica. Planeja uma escola de teatro, onde todas as técnicas seriam apreendidas,

pesquisadas e pensadas em conjunto. Concentra-se em encontrar uma síntese

dramática a partir de seus desenhos e projetos. Viaja por vários países, onde

entra em contato com profissionais, técnicos e técnicas. Desenha projetos de

encenação para peças de Shakespeare e Ibsen. Estuda e pesquisa.

Suas próximas ações serão pensadas, desenhadas e maturadas por anos.

Craig procura internamente uma síntese poderosa.

b. Steps 286 E também não há como esquecer a importância da sinestesia e da relação entre as notas musicais e as cores para os simbolistas.

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É através do desenho que os seus próximos passos se manifestam. Bablet

em seu livro sobre a cenografia (de 1874 a 1914) chama essa fase da pesquisa

pessoal de Craig de “Drama do Silêncio” 287. O encenador e gravurista pesquisa o

movimento inerente à forma, às luzes, aos contrastes. Como nos “Espaços

Rítmicos” de Appia, o próprio desenho propõe um movimento intrínseco, uma

ação dramática interna, uma expectativa.

É nos quatro desenhos a seguir, chamados Steps (Passos), que Craig

manifesta o germe de suas pesquisas futuras. A luz, expressa no papel, anima o

desenho:

287 “Nos queremos envolver o povo com símbolos silenciosos; em silêncio queremos revelar o movimento das coisas... esta é a natureza da Arte.” Craig, E.G. “Geometry” The Mask, vol I n.1, mars 1908, pp.1-2 in Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p.147.

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Podemos perceber que num mesmo espaço “dramático”, fixo, o movimento

e o tempo se contam através das imagens, na sugestão das ações humanas que

povoam esta escadaria, na mudança da luz e dos contrastes. Na primeira

imagem, em que crianças brincam, a imagem é mais clara, há menos contrastes,

as formas se esboçam. Na segunda, um grupo de jovens é puro movimento no

contraste entre seus corpos em contra-luz e o fundo branco, a imagem geral é de

pura expectativa. Na terceira, a oposição entre preto e branco revela seu sentido

implícito, um homem e uma mulher em movimentos opostos, cores e contrastes

opostos, sugerem uma resolução. É, sobretudo, no último desenho que a imagem

e os contrastes tornam-se mais complexos, que os signos potencializam-se em

símbolos, a vida relaciona-se com seu passado e seu futuro, para além da

matéria, as portas em branco no alto espelham-se nas sombras, partidas, da

base, o mistério da existência não se explica, apenas se manifesta nas formas e

luzes do desenho.

Se não considerássemos a iluminação como potência intrínseca da relação

entre luz e matéria, não haveria porque incluir esses desenhos nesse estudo; se

este projeto não significasse na obra de Craig uma síntese do sentido do

dramático e do movimento intrínseco às formas e seus contrastes (que inclui a luz

em si), também não haveria por quê. A ação dramática está contida aqui nas

próprias formas e contrastes.

Segundo a análise de Bablet sobre o desenvolvimento do teatro de Craig:

Desde 1905 The Steps constitui a primeira etapa de uma pesquisa fundamental de Craig em matéria de cenografia: conjugar arquitetura e movimento, unicidade e multiplicidade, permanência e variabilidade 288.

Como artista idealista a relação entre essência e tempo, entre idéia e

manifestação sensível é central em seu processo de depuração artística. Como

Appia é no movimento que Craig encontra a sua síntese, a essência do teatro;

mas ao contrário de colocar o ator no centro da cena, é na convenção e no

288 Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p. 322.

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movimento mecânico das formas que ele descobre o caminho para suas

pesquisas futuras

c. Scenes

Eu desejo descartar a cena pictural, mas conservar em seu lugar a cena arquitetônica.

Edwar Gordon Craig 289

No artigo Geometry, escrito por Craig no primeiro número da revista The

Mask, Craig conclama a união das artes da musica, arquitetura e movimento. É

para onde caminham suas pesquisas, desenhos e projetos.

Sebastiano Sérlio, Architettura 290 Edward Gordon Craig, Scenes

289 Craig, E. G. Daybook I, p. 77 (3/02/1907) in Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p.155. 290 Innes, Christopher. Edward Gordon Craig A vision of the Theatre. Op. Cit.p.178.

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Inspirado pelo estudo do Livro Architettura, de Sebastiano Serlio, onde o

arquiteto renascentista estuda a projeção de volumes a partir da planta baixa,

dividindo o palco em um diagrama de linhas, rumo ao ponto de fuga (ver imagem

com os diagramas de Sebastiano Serlio), Craig imagina um dispositivo

cenográfico único e móvel, uma cena arquitetural. Nela o palco seria dividido em

cubos móveis, por baixo do nível do palco, que poderiam movimentar-se

mecanicamente, elevando-se do solo e formando um conjunto arquitetural de

volumes transformáveis.

Não se trata, portanto, de uma cenografia, mas um lugar, um palco 291 de

um novo tempo da história do teatro, aquela do teatro do futuro. Um espaço

móvel, potencialmente pronto para transformar-se em muitas cenografias, uma

para cada espetáculo, cada ato, ou mesmo mover-se constantemente à vista do

público, como um dança das formas, análogo ao movimento da música. Como

revela Craig ao apresentar seus desenhos para este projeto na exposição de

Florença: A coisa mais importante é que este movimento, que

é a base desta arte da revelação, deve ser traduzido através de formas inanimadas. Nós construímos um instrumento. Graças a este instrumento o artista é capaz de tornar o espectador sensível à lei que controla nosso sistema – a lei da mudança. (...) O espírito e o pensamento do artista passando através desse instrumento devem suscitar formas sucessivas, transformáveis e efêmeras, que mudam sem cessar, mesmo imperceptivelmente. 292

As formas móveis, mecânicas, descem e sobem apenas em movimentos

verticais.

A luz oferece outras possibilidades de movimentos, quebra os ângulos

retos das figuras, projeta sombras, cores, curvas. A relação entre os volumes 291 “Para ele (Craig) cada era da história do teatro se define por um tipo de cena (ou palco) bem precisa: o teatro Greco-romano é dominado pela unidade arquitetural da cena, a igreja é o lugar teatral privilegiado na Idade Média...” in Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p.156. 292 Catálogo Etchings being Designs for Motions by Gordon Craig, Florence, 1908, p. 8 in Bablet, Denis. Edward Gordon Craig. Op. Cit. p.152.

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arquiteturais e a iluminação é fundamental para a idéia do conjunto, porque a luz

anima as formas inanimadas e povoa o espaço, transformando-os para além de

seus movimentos mecânicos, proporcionando-lhes ambiência e atmosfera,

oferecendo ao todo sua própria alma, juntamente com a música.

A confluência entre a arquitetura móvel, a música e a luz (assim como, em

breve, as imagens projetadas), como um conjunto polifônico, formam o que

depois virá a ser a “Arte Cinética” ou “Cinética Cênica”.293 É para onde caminha a

pesquisa e o trabalho cênico de Piscator e, principalmente, Svoboda, que cria

espetáculos de formas e projeções. Sem nenhuma possibilidade técnica e de

infraestrutura para transformar esse projeto em realidade em 1907, Craig compõe

uma série de gravuras cênicas, chamadas por ele de Scene.

d. Screens e a luz

“O palco deve agir” 294

Edward Gordon Craig

É a partir do mesmo impulso e concepção teatral que fez Craig construir o

projeto de ‘Scenes’, que ele desenvolve o seu próximo passo na composição da

“Cena Arquitetural”: também um espaço único, com estruturas que podem se

mover não apenas verticalmente, mas nos dois sentidos e, o que faz grande

diferença, com uma técnica passível de ser posta em prática imediatamente: Os

Screens.

Os Screens são como painéis ou biombos totalmente móveis. São feitos de

estruturas leves com tecidos claros, como velas de um navio, mas retangulares.

293 Sobre a “Cinética Cênica” vide KOURIL, Miroslav. La Cinétique Scénique in Le Lieu Théatral dans la Société Moderne. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1961, pp. 211-223. 294 Craig. E. G. Scene in Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p. 322.

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Mais do que as Scenes, a luz é pensada como parte integrante do movimento

potencial dos Screens.

Sob a ação da luz, os Screens podem mudar de cor, servir de tela para a

projeção de sombras e de imagens ou mesmo ganhar transparência. Sua forma e

movimento, como persianas, também permite que massas de luz passem entre

eles, pelas laterais ou diagonais do palco. Assim a relação entre essas formas e a

luz possibilita uma infinidade de movimentos e atmosferas que podem

acompanhar a progressão dramática de qualquer peça. Não é possível para Craig

pensar os Screens sem a mobilidade da luz:

“A relação entre a luz e essa cena é semelhante à relação entre o arco e o violino ou entre a pena e o papel.” 295

Nesta relação entre o espaço e a luz, Craig inclui a movimentação dos

atores, já que para ele “toda teoria que procura definir o emprego da luz em

relação à cena sem definir o emprego da luz em relação ao jogo do ator é sem

valor”.296 Não há unidade sem que todo o movimento sobre o palco seja pensado

como um todo.

A engenhosidade dos Screens permitirá a Craig transformar totalmente os

espaços com poucos movimentos. Para estudar essas relações espaciais Craig

constrói maquetes (desde miniaturas até projetos em tamanho natural) onde

experimenta movimentos e formas para Otelo e Mercador de Veneza, entre outros

espetáculos. Nestas experiências ele sempre utiliza lâmpadas elétricas para

completar o efeito, como em um pequeno laboratório de pesquisas cênicas.

Como podemos apreender pela descrição que segue, trecho da carta de um

arquiteto italiano que visitou Craig em Florença e viu uma demonstração prática

dos Screens em maquete:

E os elementos que Craig usa para suas criações não são nada ou quase nada: alguns biombos e algumas lâmpadas elétricas. Ele dispõe sobre a cena de seu pequeno teatro (não maior que um teatro de marionetes para crianças) seus minúsculos biombos, e, enquanto você

295 Idem Ibidem, p. 325 296 Craig, E. G. Scene in Bablet, Denis; Edward Gordon Craig. Op. Cit. p. 158.

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presta atenção a um rápido movimento de mãos, os arranja de certa maneira: um raio de luz elétrica passa entre esses simples retângulos de cartão e o milagre está completo: você vê uma cena grandiosa. (...) Craig é um grande pintor, um grande arquiteto, um grande poeta. Ele pinta com a luz, ele constrói alguns retângulos de cartão, e com a harmonia de suas cores e de suas linhas ele cria sensações profundas como somente os ancestrais da poesia souberam fazê-Lo.297

Os Screens estréiam em cena no teatro de Yeats, o Abbey Theatre. Em

suas entrevistas sobre a “invenção de Craig” ele enumera várias vantagens, entre

elas o fim do realismo, as possibilidades infinitas de manejo do espaço, a

importância dada ao ator nesses espaços esquemáticos e as possibilidades dos

Screens em relação à luz. Além da relação direta entre os Screens e a

iluminação, Yeats cita o fato de que, sem os cenários suspensos e amontoados

nas coxias o espaço se abre para a livre utilização da aparelhagem de iluminação

em diversos locais e ângulos privilegiados.

Craig usa sua própria “invenção” pela primeira vez na montagem de

Hamlet, para o Teatro de Arte de Moscou.

e. Hamlet de Moscou

A encenação de Craig do Hamlet em Moscou foi combinada e preparada

ao longo de três anos298. Este trabalho marca o encontro entre Craig e

Stanislavski e envolve uma discussão capital sobre suas concepções de teatro, os

pontos fundamentais em comum e as grandes diferenças entre suas práticas,

tornam essa experiência muito mais do que um espetáculo, mas a parceria 297 Carta do arquiteto Filiberto Scarpelli a Giovanni Grasso (4/12/1913) citada por Bablet, Denis in Edward Gordon Craig. Op. Cit. p. 159. 298 De 1º de novembro, quando Craig chega a Moscou para conhecer Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscou, até a estréia em 8 de Janeiro de 1912. O processo de construção do espetáculo foi realizado em etapas, marcadas por quatro temporadas de Craig em Moscou: a primeira para combinar o trabalho e suas bases, a segunda para um longo trabalho de mesa, a partir do qual Craig desenhou a encenação e os projetos de cenografia, figurinos e iluminação, no terceiro tiveram início os ensaios e a produção, no último tudo se uniu para os ensaios finais e a estréia.

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efetiva, a fricção artística concreta entre as duas grandes linhas de pesquisa no

teatro do século XX: o naturalismo impressionista de Stanislavski em busca da

expressão individualizada dos estados da alma e o simbolismo de Craig, em

busca da síntese e da convenção 299.

No que tange à estética visual do espetáculo, de que a iluminação é parte

integrante, constituiu um grande desafio técnico. Tanto a montagem dos Screens

quanto a iluminação de Hamlet exigiram muita dedicação e pesquisa das equipes

de cenotécnicos e eletricistas do TAM, liderados por Mardjanov. A forma de

iluminar do TAM (com ribalta e gambiarras, como cita Craig no “Segundo diálogo

entre o amador de teatro e o encenador” 300), não condizia com as necessidades

do encenador e aparelhos especiais de iluminação (possivelmente refletores

individualizados com lâmpadas elétricas e conjunto ótico, como os refletores

plano-convexos, que são fabricados e vendidos desde 1910) foram

encomendados, Mardjanov foi a Berlim para pesquisar os dispositivos de

iluminação elétrica e aperfeiçoamentos técnicos realizados pelos alemães (que

Craig já havia visto em curso em 1908). Esses novos “refletores” são instalados

para fora da boca de cena, visíveis para a platéia, pendurados em uma vara extra

sobre a orquestra. Provavelmente tratava-se da luz geral vinda de frente em

substituição às ribaltas.

A teatralidade da montagem previa que todos os movimentos do cenário

acontecessem à vista da platéia, sem cortina, apenas com um movimento da

iluminação separando um tempo e um lugar do outro, para sublinhar ainda mais a

idéia de representação alguns contra-regras seriam vistos arrumando as luzes e

os cenários. Mas a movimentação dos Screens não se fez tão simples como o

esperado e foi necessário o uso da cortina.

Outro exemplo da teatralidade explícita da montagem era expresso pela

iluminação da cena do Teatro dentro do teatro, quando os Atores representam

para a corte a peça “A Morte de Gonzaga”, “seus rostos eram intensamente 299 “Face à Stanislavski que permanece ligado aos princípios da “ilusão realista”, Craig propõe um teatro fundado sobre a convenção orquestrada e reconhecida como tal. Aqui sem dúvida reside a causa profunda de seus desacordos. E é atrvés dela que Craig anuncia as futuras realizações do teatro russo, aquelas de Meyerhold, de Taïrov e de Vaghtangov”. Bablet, Denis in Edward Gordon Craig. Op. Cit. p. 180. 300 Craig, E.G. Da Arte do Teatro, Op. Cit. p.195.

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iluminados por luzes manuais posicionadas a sua frente na ponta de longos

suportes. Acima do sofá onde o Rei dormia havia uma lua recortada, pendurada a

uma corda entre dois postes.” 301.

Em consonância com sua idéia de uma síntese simbólica que pauta todo o

conjunto da encenação, Craig “simplifica o drama, sublinhando as oposições

fundamentais” 302, dessa forma para o encenador “Hamlet não é uma crônica

histórica, nem uma tragédia romântica, mas um drama simbólico onde se opõem

princípios. (...) Mas estes princípios não são abstrações, sua oposição se encarna

em um drama que coloca face a face um homem e um universo” 303. Hamlet está

só em meio a uma corte voltada para a riqueza material e degenerescência

espiritual. Nessa luta “Hamlet é a vítima de um sacrifício purificador” 304, a morte é

seu signo, sua ação. Desta forma esta oposição fundamental entre Hamlet e a

corte é o ponto central da concepção do cenário, dos figurinos e da iluminação.

301 Innes, Christopher. Op. Cit., p. 155. Este exemplo é caro para mim, porque na montagem de Ham-Let do Teatro Oficina (onde fui assistente de direção e iluminadora) uma das características principais da luz eram as luzes móveis que perseguiam Hamlet, contracenando com as gerais de forma a dar a medida do que era público e o que era privado no espetáculo. 302 Bablet, Denis in Edward Gordon Craig. Op. Cit. p. 172. 303 Idem Ibidem, p. 172. 304 Idem Ibidem, p. 172.

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As cenas da corte são todas douradas, formando uma massa uniforme, um

mundo indistinto de ouro e aparência. Na primeira cena da corte, a festa de

casamento e coroação do novo Rei, por exemplo, um grande manto dourado

cobre o palco, os Screens e os figurinos também são dourados formando um

mesmo universo que brilha com os “feixes de luz móveis que parecem resvalar na

superfície deste mundo degenerado, dando ao ouro reflexos sinistros e

ameaçadores” 305, em oposição à figura de Hamlet, só, de negro, no primeiro

plano em meio a uma região sombria. Dividindo fisicamente esses dois mundos

incompatíveis “uma leve cortina de tule negro, ou gaze, era esticada atrás dele e

o distinguia nitidamente dessas figuras douradas drapeadas, dando a elas um

efeito sombrio” 306. Na cena do famoso solilóquio do “ser ou não ser”, Hamlet está

em pé atrás do tule com uma grande sombra atrás dele. “Nos Screens laterais,

sombras estão continuamente se movendo ao seu redor e com ele, tremeluzindo

como vapores negros” 307. Nas cenas seguintes essa “sombra enorme” continua

ao seu lado, acompanhando Hamlet, como se fosse a sua própria sombra. Os

Screens têm duas cores apenas: dourado e cinza. Assim a luz terá por tema

principal esta mesma oposição entre o brilho e o movimento dos raios sobre o 305 Idem Ibidem, p. 176. 306 Innes, Christopher. Op. Cit., p. 152. 307 Idem Ibidem, p. 152

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dourado e as zonas sombrias e misteriosas do palco, onde está Hamlet, de onde

aparece o espírito de seu pai, o Fantasma do Rei Hamlet. Um mundo dourado e

brilhante que coloca em destaque o ponto negro, o mistério do espírito em cinza

ecoa nas sombras que acompanham Hamlet como sua própria morte, inevitável.

Como no exemplo de Macbeth, a oposição fundamental é entre a matéria e o

espírito; o espírito vence, ou vinga, mesmo que seja em uma catarse purificadora,

a morte.

IV. A RELAÇÃO ENTRE A LUZ E A MATÉRIA

A luz se revela na matéria e a matéria se manifesta aos olhos através da

luz. É nesse embate visível entre “rocha” e “nuvem” que Craig constrói seus

desenhos, projetos, maquetes e espetáculos.

A nudez do palco, o despojamento dos detalhes e objetos e a estruturação

arquitetônica do espaço através da síntese das formas fazem com que os

elementos escolhidos sejam fundamentais e consigam expressar a essência do

espetáculo, como num Hai-Kai visível.

Cabe à iluminação uma contracenação efetiva com a matéria de modo a:

criar um jogo de luzes e sombras que conferem relevo e profundidade à estrutura

de volumes; manifestar e criar progressão dramática no jogo simbólico das cores

da cenografia e dos figurinos e da própria luz; revelar e esconder regiões do

palco, dando um movimento intrínseco ao conjunto; explicitar o conflito do drama

através dos contrastes entre os elementos que o compõem como o claro e

escuro, as linhas horizontais e verticais, peso e leveza, reflexão e absorção, brilho

e opacidade.

A luz confere movimento à forma, tanto no aspecto do visível como do

simbólico. O movimento é a essência mesma do teatro. A luz em movimento

contracena com a forma em movimento e o jogo dos atores. Luz e forma são, no

desenvolvimento do sentido do dramático na encenação de Edward Gordon

Craig, um mesmo meio de expressão e, como tal, actantes do espetáculo da nova

“Arte do Teatro”.

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Neste momento da história do teatro, os simbolistas da cena entendem os

olhos como janela da alma e, portanto, as iluminações como escritura para uma

manifestação visível da idéia. Assim quando Margot Berthold chama Craig de

“Simbolista da luz, isto é, iluminador” 308 é porque nomeia Craig como um artista

da visão e a iluminação como um dos seus principais instrumentos de linguagem.

308 “Craig concebia seu palco não apenas na qualidade de simbolista da luz, isto é, iluminador, mas também, na mesma medida, como arquiteto” Berthold, M. História Mundial do Teatro. São Paulo: Ed Perspectiva, 2003, p. 471.

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CAPÍTULO 10

A REVOLUÇÃO ALEMÃ NA LUZ UMA REINVENÇÃO DA LUZ PARA NOVAS RELAÇÕES ESPACIAIS

10.1 O KÜNSTLER-THEATER DE MUNIQUE

Peter Behrens, Max Littmann, Fritz Erler e Georg Fuchs

A idealização e construção do Künstler-theater de Munique, “brevemente,

resume os objetivos correspondentes às idéias emitidas por Peter Behrens, Georg

Fuchs, Max Littmann, o arquiteto do teatro, e Fritz Erler, seu primeiro cenógrafo” 309.

Esse grupo de reformadores do teatro alemão (sobretudo Georg Fuchs) e

sua experiência prática no Künstler-theater, têm grande significado para a história

do espetáculo no século XX, por suas idéias revolucionárias sobre o sentido e a

forma do teatro e seu espaço, que, assim como a obra de Edward Gordon Craig e

Adolphe Appia, influenciaram vivamente encenadores como Max Reinhardt e

Vsévolod Meierhold.

No livro Feste dês Lebens und der Knust (Festa da Vida e da Arte), de

1900, Peter Behrens, além de condenar o ilusionismo, nomeia o espectador como

participante do ato teatral. Para isso propõe um espaço cênico onde o Proscênio

avança para a platéia:

O teatro à italiana separa a cena da sala: ele [Peter Behrens] deseja uni-los por um plano inclinado. (...) por isso o proscênio, estreitamente ligado à sala, deve, a seus olhos, ser o elemento essencial de uma cena que ele deseja mais larga que profunda afim de colocar em relevo o ator, seus movimentos, as linhas e as cores móveis do espetáculo.310

309 Bablet, Denis . Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p. 360. 310 Idem Ibidem, p. 360.

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Influenciado diretamente por Peter Behrens, Georg Fuchs escreve

Shaubühne der Zukunft, (O Teatro do Futuro, 1905) e Die Revolution dês

Theaters (A Revolução no Teatro, 1909). É a partir da pesquisa histórica que

Fuchs desenvolve sua concepção de espaço cênico, baseada no teatro da

antiguidade e oriental. Para ele o objetivo do teatro é, como na antiguidade, criar

uma emoção comum, uma festa pública:

A arquitetura do teatro deve, portanto, favorecer o nascimento da emoção coletiva, colocar o ator em relevo, unir o público ao ator como foram na origem, como eram no teatro elisabetano, nos antigos teatros franceses, italianos e alemães, onde os espectadores ocupavam os dois lados do proscênio, como ainda fazem no teatro japonês.311

Fuchs propõe uma nova estrutura espacial, a cena em relevo, onde, ao

contrário da cena à italiana com seu efeito de perspectiva ilusionista, dispõe em

um mesmo plano os elementos essenciais da encenação, incluindo os efeitos

ópticos e sonoros, trazendo-os ao máximo para perto do público. 312 Da mesma

forma que Peter Behrens, Georg Fuchs faz do proscênio o principal lugar de

representação, o plano onde os elementos se encontram, “o lugar material de

onde o movimento dramático se transforma em movimento espiritual dentro da

alma da multidão” 313, de onde os atores se destacam, como um baixo-relevo da

antiguidade.

Ele propõe, então, uma arquitetura em camadas, que podem ser usadas

em conjunto, ou separadamente, em palcos cada vez menos profundos. Assim o

arquiteto Max Littmann constrói o Künstler-theater de Munique com um palco

divido em três espaços cênicos distintos, com funções diferentes:

1. O proscênio, onde acontece o encontro entre a cena e a platéia.

Principal lugar de representação. Cercado de público também pelas

311 Fuchs, Georg, Die Schaubühne der Zukunft apud Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1989, p. 362. 312 BATY, Gaston e CHAVANCE, René. El Arte Teatral. Trad. Juan Jose Arreola. México: Fondo de Cultura Económica, 1951, p. 250. 313 Fuchs, Georg; Die Revolucion des Theaters apud BATY, Gaston e CHAVANCE, René. El Arte Teatral. Op. Cit. p. 250.

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laterais. Para aproximar ainda mais a platéia da representação Littmann

substitui a ribalta por luzes vindas da frente e de trás deste primeiro

espaço, dispostas em uma “ponte móvel que suporta um equipamento

de luz completo e que pode ser levantado ou abaixado conforme a

necessidade. Quando o euipamento está completamente abaixado e as

cortinas estão levemente fechadas, as dimenções do palco são

consideravelmente reduzidas” 314. Nas laterais, ao fundo do primeiro

espaço, duas torres quadradas com uma porta e uma janela cada,

semelhante ao primeiro plano do palco do teatro renascentista.

2. Uma cena média equipada com estruturas cênicas móveis (muros ou

cortinas) que abrem ou fecham o espaço, pelas laterais, dividindo ou

agrupando os palcos.

3. Uma cena de trás, com uma tela de fundo iluminada por “uma

iluminação de cinco cores descendo das varas, e ao pé da cena de trás,

surge de uma angulosa e grande escotilha” 315.

Apesar dos três planos, Georg Fuchs propõe que não se utilize o fundo

para criar uma ilusão de profundidade, nem telas pintadas com efeito realista. Em

conseqüência, a idéia de Littmann para essas estruturas cênicas, ao mesmo

tempo fixas e móveis, é indicar o lugar da ação por meio de uma “cenografia

simplificada e estilizada” 316. Como no teatro do Renascimento, com algumas

modificações a partir de uma estrutura fixa, é possível criar todos os espaços

necessários à fábula. A grande diferença proposta para este novo espaço não

está em sua estrutura específica, mas na recusa do ilusionismo e, principalmente,

o conceito de que os elementos da cena, incluindo cenários e luzes sejam, em

sua simplicidade, assumidamente teatrais. Esse ponto faz toda a diferença, Fuchs

propõe explicitamente a “reteatralização do teatro”.

314 Robert Brussel. “La saison à Munich – le Künstler-Theater”. Le Fígaro, 233, 20/08/1908 in Theatre in Europe: a Documentary History – Naturalism and Simbolism in European Theatre 1850 – 1918. Op. Cit. p. 179. 315 “una iluminacion de cinco colores desciende de las diablas, y al pie de la escena trasera, surge de um angosto y largo escotillon” (rever tradução)BATY, Gaston e CHAVANCE, René. El Arte Teatral. Trad. Juan Jose Arreola. México: Fondo de Cultura Económica, 1951, p. 250 316 Max Littmann, Das Münchener Künstlertheater apud Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Op. Cit. p. 364.

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O Künstler-Theater de Munique estréia com o Fausto, de Goethe, com

cenografia e dispositivos cênicos de Fritz Erler. Em consonância com Georg

Fuchs, ele pretende que o espaço cênico se revele enquanto tal e por sua

estilização exponha o “seu caráter de representação” 317.

Segundo o próprio cenógrafo caberá à iluminação ser o segundo fator na

produção de efeitos cênicos:

Toca a ele suscitar no público, pela força da iluninação, como em céu aberto, cada uma das impressões queridas pelo poeta, agitado e pesado, alegre e sedutor, da manhã, do meio-dia, da

tarde, da noite.318 A estrutura dos três espaços separados permite a Erler trabalhar com

iluminações diferentes em cada um dos planos, assim, enquanto os atores são

plenamente iluminados no proscênio, ele tem liberdade de criar climas e

atmosferas luminosas misteriosas na parte de trás e uma luz que desenha os

poucos elementos da cenografia no plano do meio, sem que uma luz interfira na

outra. Para deixar essas atmosferas livres e sugestivas de forma a provocar a

imaginação da platéia ele não usa paisagens pintadas, apenas dois panos de

fundo, um branco e outro preto, animados e coloridos pela iluminação. Então, se

no primeiro plano ele usa os elementos propostos por Fuchs para a “cena relevo”,

por outro lado ele sobrepõe planos, não de forma realista com o objetivo de criar

uma ilusão perspectiva, mas com três planos de imagens diferenciadas. Assim

temos ao mesmo tempo, a luz “para ver”, a luz ativa que desenha o espaço e a

luz das atmosferas, justapostas por camadas, num recurso técnico absolutamente

novo e de efeito épico e teatral.

Georg Fuchs leu a obra de Craig e Appia, Craig visitou o Künstler-Theater

de Munique, que muito o influenciou; Max Reinhardt por sua vez inspirou-se na

obra teórica de todos eles, assim como Meierhold. Trata-se de uma teia de

influências e pesquisas cênicas que, em suas mil faces, se baseia em alguns

objetivos comuns: destruir o ilusionismo naturalista, assumir a convenção da

linguagem teatral e “reteatralizar o teatro”, retomar a força simbólica do teatro e,

inspirados pela origem ritual e festiva da arte cênica, unir, de várias formas, a 317 Fritz Erler, “La Réforme Scénique au Théâtre dês Artistes de Munich” in Mercure de France, 1/02/1910 apud Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Op. Cit. p. 365. 318 Idem Ibidem, p 366.

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cena à platéia, que participa de uma ação comum e pública. Como todo

movimento artístico tem um desenvolvimento plural e é difícil e provavelmente

desnecessário de ser desenredado. Escolhemos aqui analisar o trabalho de

alguns desses encenadores como ícones de um movimento amplo de

“reteatralização do teatro”, que tem como conseqüência direta a assunção da

iluminação como linguagem explícita da encenação moderna. Esse

desenvolvimento encontra eco imediato no trabalho de Max Reinhardt, um

experimentador-símbolo desse período, porque transitou por vários movimentos e

bebeu de todas as influências de seu tempo.

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176

10.2 MAX REINHARDT e a luz das “catedrais cênicas”

Max Reinhardt nunca se dedicou à reflexão teórica, nem procurou

conceber um estilo único de teatro, ao contrário, foi um experimentador voraz. Ele

colocou em cena vários gêneros de dramaturgia, diferentes estilos de

interpretação, inúmeras possibilidades de relação entre os elementos que

compõem o espetáculo, formas, estilos e ocupações espaciais inéditas. Sempre

usando da iluminação como um importante instrumento da encenação.

Como ator, foi formado pelo naturalismo de Otto Brahm, fundador do Frëi

Buhne de Berlim319. Jovem encenador desenvolveu um estilo impressionista,

onde coube à iluminação dar vida à ambiência e criar atmosferas intensas, cheias

de mistério ou deslumbramento. Deixou-se inspirar pelas idéias simbolistas de um

teatro de sugestão: empregou a cenografia pictórica, não realista, e, na

seqüência, fortemente influenciado por Appia e Craig, partiu para a cenografia

arquitetural320, animada pelo movimento da luz. É considerado também como um

dos precursores do teatro expressionista alemão, tanto por suas montagens

pioneiras de textos expressionistas como pela forma como utilizou a iluminação

em seus espetáculos, expressando a interioridade de forma visível, separando

diferentes planos de existência e transfigurando realidades 321. Max Reinhardt

passou, portanto, de uma maneira ou de outra, pelos principais movimentos

teatrais de seu tempo (naturalismo, impressionismo, simbolismo e

expressionismo) sem, no entanto, fixar-se em nenhum deles, colhendo de cada

319 Com quem começou a trabalhar como ator em 1894 no Deuthsches Theater de Berlim. 320 “...veio a ser um dos expoentes do impressionismo e do simbolismo, traduzindo em termos cênicos muito daquilo que fôra ideado por Appia e Gordon Craig” Rosenfeld, Anatol. Teatro Alemão. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1968. p. 116. 321 “... a encenação de O Filho (Der Sohn), de Walter Hasenclever, no Deuthsches Theater de Berlim, em 1918, pode ser considerado o correlato cênico do Grito Expressionista de Edvard Munch, composto em 1893. A estréia define o diretor alemão como um dos primeiros representantes da encenação expressionista, especialmente pelo emprego de procedimentos inéditos de iluminação e organização do espaço cênico” Fernandes, Silvia. Encenação Teatral no Expressionismo in O Expressionismo (Org. Jacó Guinsburg) São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002, p. 231.

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um os elementos de que se serviu para aumentar o poder expressivo de seus

espetáculos. Por tudo isso é definido como “o homem do ecletismo” 322.

Mas tamanho ecletismo tem alguns objetivos comuns, aos quais foi

extremamente fiel e que nortearam todas as suas experimentações. O primeiro

deles é a unidade da obra teatral: Reinhardt apresenta em cada encenação um

conjunto orgânico, para o qual orquestra com rigor conceitual todos os elementos

do espetáculo. Também se manteve constante à importância do ator como cerne

do teatro. Outro importante eixo desenvolvido em seu trabalho e que, para além

das diferenças imprime uma identidade forte ao coletivo da obra, está no impacto

da significação visual em seus espetáculos, da qual fazem parte admirável

pesquisa e desenvolvimento técnico, incluindo de forma decisiva cenografia e

iluminação cênica.

Max Reinhardt utilizou todos os recursos tecnológicos necessários para

envolver a platéia física e emocionalmente em suas encenações: palco giratório,

ciclorama, uso simbólico das cores na iluminação e projetores de efeito,

"Maravilhando o público com os efeitos rembrantianos da sua iluminação" 323.

A radicalidade de suas experimentações encontrava-se, principalmente, na

busca incansável de encontrar meios técnicos e estéticos de reelaborar a

encenação para a necessidade de expressão que cada peça exigia. Assim, para

melhor expressar o sentido de uma obra específica, ele transformava

estruturalmente o espaço cênico, os dispositivos de iluminação e a maneira de

iluminar, e, inclusive, o estilo de interpretação, reconstruindo toda a idéia de

espetáculo.

Tornou-se, por isso, um dos grandes transformadores do espaço cênico do

século XX. Não apenas através da idéia de cenário, mas também na constituição

de novos espaços cênicos, para além do palco italiano. Max Reinhardt foi um

precursor das pesquisas cenográficas que abandonaram de vez o palco italiano,

ao explorar espaços que traziam em si uma significação intrínseca ao conceito do

espetáculo. Para cada nova montagem, ele procurava encontrar ou criar um novo

espaço cênico que sintetizasse o sentido do espetáculo, não apenas do ponto de 322 Bablet, Denis in Edward Gordon Craig, Op. Cit. p. 108. 323 Rosenfeld, Anatol. Teatro Alemão. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1968. p. 116.

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vista visual, mas, sobretudo, propondo uma nova relação entre o espetáculo e a

platéia, onde esta era incluída no jogo da cena, fundindo ficção e realidade, atores

e público.

Por fim, na medida em que os espaços cênicos tornaram-se mais

complexos, misturando cena e espectadores, envolvendo a platéia por todos os

lados, coube à iluminação uma nova função, a edição dos diferentes planos da

encenação no tempo e no espaço. O jogo de luzes, então, passou a ter uma

função estrutural de orquestração do movimento do espetáculo, revelando ou

escondendo partes de um quebra-cabeças, conduzindo os olhos dos

espectadores pelos vários espaços, seguindo a ação, editando a seqüência de

cenas, incluindo ou restringindo a presença do público no grande espaço da

encenação.

Como conclui Anantol Rosenfeld, Reinhardt foi ao mesmo tempo um dos

grandes expoentes da "reteatralização do teatro", sem deixar de ser, no fundo, um

“mestre do ilusionismo” 324.

NOVAS LUZES PARA NOVOS ESPAÇOS

“Tenho dito que a arte de iluminar uma cena consiste em pôr luz onde queremos e tirá-la de onde não a queremos" 325

Max Reinhardt

Max Reinhardt estréia como diretor no cabaré literário, onde se reúne a jovens

atores formando em 1901 um grupo chamado “Som e Fumaça”. Essa estréia em

cabaré permite o uso de linguagens misturadas, luzes coloridas com um

movimento mais livre e fragmentado, sem o compromisso com qualquer regra

pré-estabelecida de procedimento técnico, em espetáculos compostos de

pedaços que misturam danças, cantos e paródias com teatro:

As apresentações regulares em cabarés no centro de

Berlim incluem números musicais, esquetes e paródias que

324 Rosenfeld, Anatol. Teatro Alemão. Op. Cit. p. 118. 325 Citado por Robert Edmund Jones, assistente de Max Reinhardt por dez anos, no artigo “A um Jovem Decorador Teatral - Luz e Sombra” in O Teatro e sua Estética. Lisboa: Editora Arcádia, 1964, p. 320.

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se alternam a apresentações de autores modernos como

Strindberg e Wedekind. 326

Em um texto profético de 1901, Max Reinhardt já cita o desejo de ter vários

espaços, para diferentes tipos de espetáculo, um pequeno teatro de câmara para

autores novos, um grande para a apresentação de clássicos e um terceiro, maior,

em forma de anfiteatro:

Um enorme teatro para a grande arte de efeitos monumentais, uma sala para festivais, livre do cotidiano, uma casa de luz e consagração, no espírito dos Gregos. 327

Neste mesmo texto faz uma profissão de fé à manifestação da alma

humana no teatro, mas de forma especificamente teatral “cheia de cor e luz” 328 e,

ainda, à sua autonomia e especificidade:

Para mim o teatro é certamente mais do que uma arte auxiliando outras artes. Há apenas um objetivo no teatro: o teatro. E eu acredito num teatro que pertence ao ator.329

Começa por adaptar um auditório para a montagem de novos autores. Este

pequeno espaço estréia em outubro de 1901, inicialmente chamado de Schall u.

Rauch (Som e Fumaça) recebe em agosto de 1902 o nome de Kleiness Theater

(Teatro Pequeno) 330. Em carta a Bertohld Held sobre a reforma e instalação de

aparelhagem técnica neste espaço, Max Reinhardt cita a importância da

iluminação para suas intenções estéticas:

326 Fernandes, Silvia. Encenação Teatral no Expressionismo in O Expressionismo (Org.Jacó Guinsburg) São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002, p. 232. 327 Reinhardt, Max. Trecho de texto do encenador de 1901, in Theatre in Europe: a Documentary History – Naturalism and Simbolism in European Theatre 1850 – 1918. Edited by Claude Schumacher. New York: Cambridge University Press, 1996, p. 172. 328 Idem Ibidem, p. 170. 329 Idem Ibidem, p. 170. 330 Fernandes, Silvia. Encenação Teatral no Expressionismo. Op. Cit. p. 232.

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As sombras da ribalta podem talvez sugerir a capa do bobo. (...) no desenho do palco certifique-se cuidadosamente que mudanças rápidas de luz sejam possíveis, que haja o máximo de espaço cênico possível para cenas de multidões (como na Orestéia) e que mudanças de cena no escuro sejam possíveis com as cortinas abertas. Acima de tudo, a iluminação deve ser flexível, muitas cores e também focos. A iluminação deverá substituir cenários, que inicialmente deveremos dispensar inteiramente. 331

Neste espaço a luz deve, portanto, ser flexível o bastante para substituir

cenários, em uma prática de síntese tipicamente simbolista. A mágica teatral

advinda das cores e movimentos da luz que farão a fama de Reinhardt já estava

presente desde o início. Neste espaço o encenador dirige, entre muitos outros,

Górki (No fundo), Strindberg (Crimes e Crimes), Shakespeare (Sonho de Uma

Noite de Verão), Oscar Wilde (Salomé), Wedekind (O Espírito da Terra).

Como Reinhardt tem uma produção incrível tanto no que tange à diferença,

quanto à quantidade das encenações, citaremos apenas algumas, as mais

significativas de um período ou estilo de sua produção e, sobretudo, aquelas

sobre as quais encontramos alguma indicação específica sobre a iluminação.

De 1903 a 1907 Reinhardt trabalha com a colaboração de pintores, em um

espírito simbolista, de “síntese e sugestão”. Em 1903 realiza a encenação de

Peléas e Melisande, de Maeterlinck no Neues Theater de Berlim. Nesta

montagem a cenografia é do pintor Impekoven, impressionista alemão, que

representa sobre fundos de gaze semitransparente, visões de sonhos que os

jogos de luzes (por trás e pela frente da gaze, como os fundos de Herkomer e

Craig) tornam mais ou menos irreais, permitindo inclusive a fusão entre cenografia

e personagens. A atmosfera da peça é sugerida pela superposição entre a poesia

do texto e os contrastes entre as cores das pinturas na gaze, da iluminação do

fundo e das luzes ou sombras da frente: (“o verde do jardim e as luzes douradas”

ou “o vermelho do sol que se deita dominando a floresta banhada de sombras”

331 Reinhardt on designing the Kleines Theater. Carta de Max Reinhardt a Berthold Held (ator e produtor que trabalhou com Reinhardt desde o início de suas carreiras) de 4 de agosto de 1901 in Theatre in Europe: a Documentary History – Naturalism and Simbolism in European Theatre 1850 – 1918. Op. Cit., p.174.

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332), ou seja, um mundo de sonhos que não é nem totalmente real, nem abstrato,

mas uma realidade imprecisa, difusa, levemente transfigurada, de contrastes um

pouco mais fortes do que o normal. Também de 1903 é Elektra, de

Hoffmannssthal, cenário de Max Kruse (que não é pintor, mas escultor), encenada

por Reinhardt no Kleines Theater: A peça dura o tempo de um lento entardecer,

que, ao contrário de localizar a ação no tempo e no espaço, serve para banhar o

palco de um vermelho “sangue”, que espalha sobre o palco o anúncio da tragédia.

A escuridão misteriosa que baixa pesadamente sobre a cena durante a ação

contrasta com as tochas que, levadas por um séquito, acompanham Clitmenestra.

A luz de Electra também é trêmula, bruxuleante. A única luz forte e brilhante do

espetáculo pode ser vista pela porta onde o público percebe em silhueta a sombra

de Orestes, anunciando a resolução do conflito principal da tragédia e futuro de

Argos.333 Para além da sugestão, a luz expressa a tragédia passada, presente e

futura da peça, revelando uma encenação que tende já, sob o aspecto da luz,

para o expressionismo.

Em 1905, Max Reinhardt é chamado para ser diretor do Deutsches Theater

de Berlim334. Lá, o encenador realiza seu desejo de ter dois espaços: o palco

grande para os clássicos – acrescido de uma aparelhagem técnica de iluminação

e cenotécnica que inclui “projetores” (refletores individualizados com lâmpadas e

lentes, tecnologia que ainda não era comum na maioria dos teatros da época),

projetores de efeito, ciclorama e palco giratório – e um pequeno teatro de câmara,

para os “autores modernos”, o Kammerspiele (adaptado por ele de uma sala de

dança), onde apenas três degraus separam o palco da platéia.335

332 Idem Ibidem, p. 181. 333 Análise minha sobre a descrição da iluminação e cenografia do espetáculo realizada pelo próprio Hofmannsthal. “Directions for staging Elektra”(trechos)in Theatre in Europe: a Documentary History – Naturalism and Simbolism in European Theatre 1850 – 1918. Op. Cit., p. 168. 334 Este Teatro, mesmo local onde começou sua carreira com Otto Brahm, foi comprado por Max Reinhardt, meses depois, ainda em 1905. Pertenceu ao encenador até 1933, quando foi obrigado a entregá-lo para o Estado sob o regime do Nacional Socialismo de Hitler. (Berthold, Margot. Max Reinhardt: Magia e Técnica in História Mundial do Teatro. Op. Cit. pp. 483 – 494.) 335 Referências sobre o espaço e condições técnicas do Deutsches Theater e do Kammerspiele: Fernandes, Silvia. A Encenação Teatral no Expressionismo, Op.Cit., p. 232-233; Bablet, Denis. La Remise em Question du Lieu théatral, in Le Lieu Théatral dans la Société Moderne. Paris:

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O Kammerspiele foi inaugurado em 1906 com a montagem de Os

Espectros de Ibsen, cenografia de Edvar Munch. Esta cenografia, baseada no

telão pintado, segue o conceito de estilização, com a simplificação do desenho

em suas linhas e contrastes principais, com o mínimo de informação e detalhes e

o máximo de expressão da tensão fundamental do drama expressa pela pintura;

mas ainda permanece uma relação de verossimilhança entre o lugar real da ação

e o desenho336. Existe uma diferença grande em incluir a expressão do conflito

fundamental do drama na ação da peça, contracenando com o ator e o texto, ou

deixá-la estampada como signo no fundo da cena; um quadro nos joga dentro do

universo da pintura, participamos dele, porém a pintura de fundo por mais

expressiva que seja, quando não participa da ação, será sempre um pano de

fundo e como tal, demonstrativa.

A fase das cenografias com telas de fundo pintadas foi apenas um

desenvolvimento inicial na obra de Max Reinhardt, suas experiências em relação

ao espaço cênico e à luz enveredam, a partir de 1907, por outros caminhos.

As concepções de Adolphe Appia e Edward Gordon Craig com certeza

influenciaram bastante suas pesquisas cênicas, Reinhardt leu os trabalhos

teóricos sobre o drama wagneriano de Appia e a primeira brochura de Da Arte do

Teatro, de 1905. No caso de Edward Gordon Craig a relação entre eles é direta,

pois não apenas se conheceram e discutiram suas concepções de teatro, como

Max Reinhardt, muito tocado por suas idéias, convidou Craig para montar vários

espetáculos em seu teatro: Macbeth e A Tempestade, de Shakespeare e César e

Cleópatra, de Shaw. Craig chegou a fazer vários desenhos para essas

montagens. Mas acabou recusando o convite337. Porém, Reinhardt pôs em

prática, ele mesmo, muitas das concepções do encenador inglês “para os artistas

Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1961, p. 20 e Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Op. Cit., p. 181. 336 Esta cenografia, apesar de contar com uma pintura expressiva não deve se relacionar fundamentalmente com a luz da cena, já que de quatro descrições lidas nenhuma delas cita nada sobre a iluminação (É lógico que esta conclusão sobre a relação do cenário com a luz nesse caso trata-se apenas uma conjectura). Há muitas reproduções, não da tela de fundo (em cena ou fora dela), mas da pintura da cena realizada por Munch, com as personagens também pintadas. 337 “No início de 1906, Craig retorna à Reinhardt seu contrato e desenvolve, em um manuscrito inédito, a idéia da necessária unidade da obra de arte”. Bablet, Denis in Edward Gordon Craig, Op. Cit. p. 109.

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do teatro do futuro” 338, como a “simplificação de elementos cênicos, cenografias

tridimensionais com predominância arquitetural e utilização sugestiva da

iluminação cênica” 339, além do movimento mecânico da cenografia,

principalmente com a utilização magnífica que fez do palco giratório.

Max Reinhardt montou diversas versões diferentes de

Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare. A mais conhecida delas tinha no

movimento do palco giratório seu principal tema. Com cenografia de Ernest Stern,

tratava-se de uma grande floresta “de verdade” construída sobre um grande palco

giratório em movimento contínuo. A luz da lua, parada, iluminava a floresta em

movimento. O resultado é fácil de imaginar, um labirinto de árvores que se

multiplica em sombras móveis que revelavam ou escondiam o jogo de esconde-

esconde dos amantes, brinquedo do mundo das fadas, uma fábula teatral em

versão grandiosa e feérica.

O terceiro palco, àquele destinado ao teatro de multidões e à inserção

pública do teatro na vida da cidade, a “casa de luz e consagração” que Max

Reinhardt desejava desde 1901, tornar-se-á realidade em 1910, com a montagem

de Édipo Rei, de Sófocles (em uma adaptação de Hoffmannsthal) no Circo

Schumman, para 5000 pessoas. Dentro do circo ele constrói um espaço com as

mesmas relações espaciais do anfiteatro grego. A grande Arena destinada ao

coro (“Uma multidão em movimentos monumentais” 340), atrás um muro com o

frontispício do palácio de Édipo ligado à Arena por uma escadaria e, finalmente, o

público ao redor de todo o espaço (excetuando apenas o espaço da entrada do

palácio), em arquibancadas. As escadas entre os “gomos” das arquibancadas

permitem que os atores subam pelo meio da multidão. Segundo palavras do

próprio encenador sobre a escolha do circo para a encenação de Édipo Rei: 338 Título de um importante ensaio de E.G.Craig de 1907. 339 Bablet, Denis in Edward Gordon Craig, Op. Cit. p. 109. 340 Berthold, Margot. História Mundial do Teatro. Op. Cit. p. 488.

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Eu a representei em um circo, porque a forma deste edifício é a melhor adaptada aos meus desejos. Os atores se movem realmente entre os espectadores, representando seu pequeno drama no meio de seus semelhantes, exatamente como nosso grande drama se representa sobre a terra a cada dia de nossa vida. 341

O público, como é definido pela

própria estrutura da tragédia antiga, é representado pelo coro e é para a cidade

abatida pela peste, resultado da desmedida de seu governante, que Édipo e

Reinhardt se dirigem. Ao mesclar a representação à platéia, atores e público

reunidos em uma arena comum, Circo Schumman e anfiteatro grego em um só

tempo e lugar, ele superpõem a pólis grega a seus próprios contemporâneos

presentes e inseridos em um mesmo espaço “total”, não apenas simbolicamente,

como qualquer representação faz, mas fisicamente.

Como podemos concluir pelas descrições e fotos342, a luz revela a pólis

pública, superobjetivo da própria representação, ao mesmo tempo em que

destaca os atores de seu seio. A grandiosidade do espaço exige uma grande

quantidade de luzes, dividas agora em funções sobrepostas: iluminar o cenário

dando relevo ao grande muro do palácio de Édipo; criar uma luz geral para esse

espaço destacado de representação, ou seja, a luz de frente do palácio, lugar de

origem e evolução dos atores principais, correspondente do Proskênion grego;

iluminar a arena, correspondente à Orquestra grega, local onde o coro faz suas

341 Reinhardt, Max apud Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Op. Cit., p. 377. 342 Assim como pela própria experiência como iluminadora de “espetáculos de multidão”, com o mesmo sentido de sobrepor simbolicamente a fábula ao momento presente e, fisicamente, atores em meio à platéia, justapondo ou separando o público do privado através da luz.

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evoluções; juntar ou separar o palácio à cidade e os protagonistas do coro;

colocar ou tirar luz do público que lota as arquibancadas, dando um aspecto

público ou privado às cenas; seguir os atores e destacá-los em meio à multidão

(função provavelmente exercida por refletores com feixe de luz concentrada por

conjunto ótico, que seguem os atores, isto é, canhões seguidores) e, por fim,

relacionar por meio de um jogo de intensidades, todos esses espaços e

personagens, assim como suas distâncias formando um conjunto de significação.

O quadro de cena é rasgado e a encenação a atravessa, invadindo a

platéia. Para que todos esses planos da fábula e da trama da encenação,

complexificados pela presença em cena do público, ou melhor, da cena na

platéia, possam se coordenar (e não se confundir irremediavelmente) a luz torna-

se a orquestradora do visível e suas relações espaciais. Sem esquecermos do

aspecto simbólico dessas relações, que se sobrepõem ao aspecto físico e

concreto, por meio da sugestão.

Em Miracle, de Karl Vollmöller, em 1911, Max Reinhardt e Ernest Stern

(cenografia e disposição cênica) transformam o Olympia Hall de Londres em uma

imensa catedral, com colunas, ogivas e grandes vitrais na parte superior do

grande hall de exposições. A platéia fica em arquibancadas na mesma disposição

de anfiteatro de Édipo Rei. Porém, a ação da peça não se passa em um único

lugar, mas, acompanha a personagem central em um percurso longo no tempo e

no espaço343. Então, inspirado pelos “dramas de estações” da Idade Média, onde

os cenários já estão dispostos simultaneamente pelo espaço, Stern constrói dois

“palcos”: um, na posição do altar, em um dos lados, tendo por fundo uma parede

vertical com uma imensa porta, onde as paisagens eram trocadas, e, no centro do

espaço um palco transformável, de acordo com os acessórios ali colocados.

Quanto à luz, ao mesmo tempo potente e flexível, compete criar as duas

atmosferas centrais do espetáculo, quer seja, a do sagrado e do profano, incluir

as platéias no espaço simbólico da representação (a catedral) e ao mesmo tempo

orquestrar os movimentos da ação pelo espaço:

343 A peça é a história de uma freira que abandona o convento para conhecer o mundo, cai em uma seqüência de tentações rumo à decadência, até retornar ao seio da igreja, perdoada por um milagre da Virgem Maria.

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Os feixes de luz permitiam concentrar a atenção do

espectador, de dirigi-la rumo a tal ou tal parte da área de representação; de estender ou reduzir à vontade o espaço cênico. Quando a ação se desenrola realmente no interior da igreja, os vitrais são iluminados, quando se situa em outros lugares, eles são apagados. 344

No desenho geral do espaço (vide imagem), além de feixes poderosos de

luz projetados, vemos escrita uma indicação técnica importante: “limelights

worked from a galeries suspended from the roof”, ou seja, a descrição do

dispositivo principal da iluminação: luzes de carbureto (que são bem mais

potentes e brilhantes que as lâmpadas incandescentes) vindas primordialmente

do alto, em aparelhos suspensos na lateral do teto. Todos os desenhos desta

encenação representam raios de luz vindos do alto ou de fora, por trás dos vitrais,

para dar a sensação de grandeza e sacralidade de uma catedral e inserir o

público no espaço simbólico do “Milagre”.

Enquanto cria os grandes espetáculos para multidões, continua a dirigir as

montagens do Deutsches Theater e do Kammerspiele, com grande presença dos

“autores modernos”. De 1917 a 1920, Reinhardt participa ativamente do

movimento expressionista345 e dirige alguns dos seus primeiros espetáculos: O

344 Bablet, Denis. Esthétique Générale du Décor de Théâtre De 1870 a 1914. Op. Cit., p. 379. 345 “A fase propriamente expressionista de Reinhardt começa com a montagem de textos expressionistas de Sorge e Goering. É o período em que o diretor participa do movimento A Jovem Alemanha (Das Junge Deutschland, DJD), reunido em nome do periódico do mesmo nome e responsável pela

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187

Mendigo, de Reinhard Sorge; Batalha Naval, de Reinhard Goering; Jó, de

Kokoschka; Uma Geração, de Fritz Von Unruh; Forças, de August Stramm, entre

outros 346.

Nestas montagens, Max Reinhardt imprime o ponto de vista da

interioridade das personagens exigida pelos textos expressionistas,

principalmente através de uma iluminação ativa, subjetiva e subjetivadora. Esta

nova forma de iluminar concebe ângulos estranhos e irreais, de modo a

transfigurar pessoas e coisas; joga sombras imensas no cenário, como se fossem

duplos ou projeções internas das personagens; inventa os focos fechados, quase

sempre de cima, isolando o homem em um universo de solidão irremediável,

apartando-o do resto do mundo; radicaliza os conflitos através do contraste duro

entre luz e sombra. O movimento da luz estilhaça o espaço, separando os

elementos e personagens em cena, fragmenta o tempo, separando as ações

através de cortes bruscos, reconstrói espaço e tempo a partir da subjetividade. A

iluminação deixa de tornar visível, ou mesmo revelar a realidade, para ser

portadora de um ponto de vista.

Como é o caso exemplar da luz de O Mendigo, texto de Reinhard Sorge,

cenário de Ernest Stern, encenação (que inclui a iluminação) de Max Reinhardt;

tal como nos explica Silvia Fernandes:

“Com a indicação, nas rubricas, de um projetor que vaga pelo palco para iluminar uma ou outra seção, Sorge simboliza o processo mental da personagem. Quando emerge algum substrato latente nos diálogos, o dramaturgo prescreve o centro do palco obscurecido, enquanto um canto específico se ilumina. Quando a mente e a fala retornam a um assunto superficial, o canto volta a mergulhar na escuridão e o centro fica iluminado”.347

produção dos primeiros dramas expressionistas em Berlim”. Fernandes, Silvia. A Encenação Teatral no Expressionismo, Op.Cit., p. 233. 346 A relação de Max Reinhardt com o expressionismo é contraditória, se por um lado ele é um dos precursores do movimento por suas montagens de Strindberg, Wedekind e das primeiras montagens de textos expressionistas, por outro, ele nunca se engajou totalmente na ideologia ou na dureza das formas, na abstração excessiva ou na interpretação convencional que caracterizaram o movimento expressionista. Sobre esse tema vide: Rosenfeld, Anatol. Teatro Alemão. Op. Cit. pp. 116 – 118 e Fernandes, Silvia. Reinhardt na Jovem Alemanha in A Encenação Teatral no Expressionismo, Op.Cit., p. 231-239. 347 Fernandes, Silvia. A Encenação Teatral no Expressionismo, Op.Cit.p. 23.

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A iluminação no expressionismo projeta a interioridade do “Eu” sobre o

mundo; transfigurando a objetividade através do ponto de vista da subjetividade.

Se Max Reinhardt não se rende à convenção na interpretação, nem à

abstração radical do movimento expressionista, manipula a luz com maestria, em

comunhão com a dramaturgia e a estrutura por ela proposta. Mas, esta também é

apenas mais uma faceta do encenador, em busca da expressão do “teatro total”.

As pesquisas de Reinhardt em espaços alternativos levam á construção de

um teatro para multidões, onde a cena adentra a platéia como na arena de um

anfiteatro, mas que mantém na parte de trás uma caixa de palco com toda a

técnica do teatro à italiana (como o ciclorama, o palco giratório e as varas

suspensas). Esse teatro, o Grosses Schauspieleshaus foi concebido segundo as

necessidades de Max Reinhardt, pelo arquiteto Hans Poelzig, em consonância

com o ideal de Appia de uma “Catedral do Futuro”. Inaugurado em 1919 é “o

primeiro exemplo de uma arquitetura teatral moderna fundada sobre o princípio da

arena” 348. Lá, em 1920, Max Reinhardt estréia o Danton, de Roman Rolland,

onde todo o espaço vira a Assembléia Nacional e os atores que representam os

deputados, misturam-se à platéia. Assim os espectadores estão inseridos não só

no espaço de representação, mas também na ação cênica, dando um grande

passo em direção ao teatro do futuro propalado por Appia, “onde ninguém

consentirá mais em restar espectador” 349.

348 Bablet, Denis. La Remise em Question du Lieu théatral, in Le Lieu Théatral dans la Société Moderne. Paris: Editions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1961, p. 20. 349 Appia, Adolphe. “L’ avenir du drame et de la mise en scène” (1919) in Oeuvres Complètes. Lausanne: Société Suisse du Théâtre/L’Âge d’Homme. Tome III, 1988, p. 338.

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No teatro das “grandes catedrais cênicas”, a iluminação continua a tornar

visível, ou invisível; a criar atmosferas de mistério ou maravilhamento, mas agora

também inclui ou restringe a presença do público no espaço cênico e rege os

movimentos da encenação em relação ao espaço e ao tempo, editando a ação.

As luzes voltam a acender na platéia, mas agora não revelam mais um

universo à parte, são luzes de cena que incluem o espectador dentro do espaço

simbólico de representação, como parte integrante da própria ação dramática.

Max Reinhardt continua a procurar espaços que proponham uma

ambiência adequada para os seus espetáculos e novas relações entre a

encenação e a platéia. Encontra esses espaços tanto no “teatro do futuro” quanto,

sobretudo, no “teatro do passado”. Nos anos 1920 e 1930, no Festival de

Salzburg, Max Reinhardt monta na praça em frente da catedral, à luz do dia, o

mistério Everyman e, na seqüência, O Grande Teatro do Mundo 350 dentro de uma

igreja, contracenando a luz dos vitrais e dos círios com equipamentos de luz

elétrica. Em Fausto, ele constrói uma cidade de cenas simultâneas por onde

movimentam-se os espectadores, que montam o quebra-cabeças proposto de

acordo o seu próprio ponto de vista, diferente e único.

As encenações de Max Reinhardt nas “grandes catedrais cênicas”, quer

seja o Kleines Theater e o Kammerspiele, em sua intimidade ou o Circo

Schumman (Édipo, Oréstia), Olimpya Hall de Londres (Miracle), o Grosses

Schauspielhaus (Danton, Júlio César) ou mesmo praças (Everyman e Fausto) e

igrejas (O grande Teatro do Mundo), são seminais para a encenação do século

XX, que tem na ocupação de novos espaços e na constituição de diferentes

relações entre cena e público um dos seus grandes veios de pesquisa e

experimentação.

350 Ambas em adaptação de Hofmannsthal.

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APÊNDICE

Talvez um ponto importante a se notar nesse aspecto é o quanto, na

prática do teatro, o desejo de futuro e o conhecimento do passado se mesclam no

único tempo real da representação, o presente imediato. Embora não seja o

centro de nosso trabalho, dá sentido ao todo entender o quanto de nossa prática

atual é herdeira de experimentações passadas. Cabe também observar que cada

ação nova realizada por um encenador na iluminação é retomada depois e

depois, aos saltos, até tornar-se pratica corrente. Muitas vezes um mesmo efeito

ou prática é inventado e reinventado novamente com nova tecnologia, dez, vinte

ou trinta anos depois, ainda como novidade. Toca a nós, portanto, como

profissionais do teatro e da iluminação e também como pesquisadores de uma

prática, compreender esse movimento no tempo e, a partir da reflexão

contextualizada, receber as novas tecnologias que brotam aos borbotões das

revistas e sites especializados, não como crianças deslumbradas diante de

brinquedos de luxo, mas como herdeiros de uma revolução continuada que não

serve a si mesma, mas ao sentido que a cultura encontra em sua ação pública a

cada momento histórico, ecoando no presente seu passado, transformando-se dia

a dia em uma prática sempre transformável e transformadora.

Em relação à iluminação, em suas relações intrínsecas com a encenação,

pertence ao objetivo central dessa dissertação entender o passo a passo da

constituição desta linguagem que se transformou em estrutural para o teatro num

período tão curto de tempo - entre 1880 e 1914, com a explosão das vanguardas

modernas a partir da relação antitética entre naturalismo e simbolismo.

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CAPÍTULO 11 MEIERHOLD: Das iluminações simbolistas à luz épica

ENTRE A LUZ “PARA VER” E A LUZ “PARA IMAGINAR”

A cena que melhor simboliza iconicamente o conflito entre as duas

vertentes basais da pesquisa teatral do século XX – aquela que busca a verdade

através da ilusão no teatro e a que quebra a ilusão em busca da verdade do

teatro, a convenção - é protagonizada por dois de seus mestres: Stanislávski e

Meierhold. 351 E tem na Luz uma de suas principais metáforas.

Estamos em 1905, no ensaio geral de A Morte de Titangiles, de

Maeterlinck, no Estúdio-Teatro, criado por Stanislavski e Meierhold (sob os

auspícios financeiros do primeiro e direção do segundo) com o objetivo de

desenvolver a “pesquisa vibrante e infatigável de novos procedimentos plásticos

próprios à nova dramaturgia” 352. A cena é narrada pelo cenógrafo Uliánov

(segundo citação e analise de Jacó Guinsburg em Stanislávski, Meierhold & Cia.):

Semi-obscuridade sobre o palco. Apenas as silhuetas das pessoas são visíveis. O cenário é plano sem bastidores, pende quase diante do proscênio. Isto é novo e nova é também a fala rítmica dos atores, tal como ela vem do palco. A ação se desenvolve lentamente; é como se o tempo tivesse parado. De repente, um grito de Stanislávski: “Luz!” Um tremor percorre o teatro, barulho, confusão. Sudéikin e Sapúnov saltam de seus lugares bradando objeções. A voz de Stanislávski: “a platéia não pode suportar a escuridão no palco por muito tempo, os espectadores precisam ver os rostos dos atores”. Sudékin e Sapúnov: “Mas o cenário foi feito

351 “A história do teatro moderno tem um dos seus eixos na relação antitética Stanislávski-Meierhold”. (...) “... as buscas de um novo teatro no âmbito russo – e não apenas nele – adquirem os nomes polarizantes de Stanislávski e Meierhold, que passarão cada vez mais a encarná-las efetivamente e simbólicamente” Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia.. São Paulo: Editora Perspectiva. 2001, p. 85. 352 Meierhold, V. Projet d’une noveulle troupe dramatique près Le Théâtre d’Art de Moscou in Écrits sur le Théâtre - Tome 1 (1891-1917). Traduction, préface et notes de Béatrice Picon-Vallin. Lausane, Suisse: Editions L’ Age d’ Homme, 1973, p. 65.

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para a semi-obscuridade, ele perde todo o sentido artístico na luz!” Faz-se de novo silêncio, resta apenas a batida da fala medida dos atores. Mas tão logo a luz foi acesa o cenário todo ficou estragado. Os vários elementos foram desintegrados, os cenários e as figuras foram separados 353

Essa cena representa duas concepções absolutamente distintas do

significado da iluminação e da própria cena que, por sua vez, determinam dois

pontos de vista distintos da arte, especificamente daquela expressa pelo “novo

drama”, isto é, a dramaturgia simbolista. Segundo o ponto de vista de

Stanislávski, a luz serve “para ver” o ator e é através das personagens em ação

que a platéia adentra no mundo que lhe é apresentado; já para Meierhold (nesse

momento inicial de suas pesquisas) a luz serve para esconder a realidade

imediata e recriá-la plasticamente, de modo que a visão seja embaçada ou

evanescida e as imagens, ao invés de mostradas, sugeridas; deixando que a

imaginação da platéia complete com suas próprias imagens e com a projeção do

seu mundo interior sobre a cena, as formas e sentido do espetáculo.

Como conclui Jacó Guinsburg:

Entre a exposição ao natural do homem e a iluminação simbólica de seu mundo não podia haver conciliação estética e composição teatral satisfatórias.354

ILUMINAÇÕES SIMBOLISTAS

Introdução

Não pretendemos seguir aqui o desenvolvimento da iluminação em toda a

obra Meierholdiana, que abre fronteiras inauditas na arte do espetáculo – partindo

do simbolismo para o esteticismo, passando pelo agit-prop do período pós-

revolucionário, pelo formalismo russo, rumo à invenção do construtivismo no

353 Uliánov apud Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo: Editora Perspectiva.2001, p. 29. 354 Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo: Editora Perspectiva.2001, p. 29.

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teatro e, enfim, à sua derradeira fase, sintética 355– já que as implicações,

concepções e formas deste desenvolvimento ultrapassam em muito as fronteiras

temporais desta dissertação356. Pretendemos, portanto, analisar especificamente

a sua fase simbolista, o desenvolvimento do ideário do teatro da convenção e sua

conseqüência para a teoria e prática da iluminação cênica.

Primeiras experiências

Meierhold foi um dos atores que participou da fundação do Teatro de Arte

de Moscou, em 1898. Em 1902 abandona o Teatro de Arte e Moscou para fundar

a sua própria trupe, que se instala na província, onde pretende fazer suas

primeiras experiências como encenador. Nos espetáculos357, que monta com a

“Confraria do Drama Novo” 358, neste período inicial, a iluminação muitas vezes

serve para esconder a inadequação dos cenários, em busca de uma participação

mais ativa da imaginação dos espectadores.

A primeira encenação em que os reflexos simbolistas ganham forma e

menção específica é A Neve, de Przybyszewski, de dezembro de 1903. Neste

espetáculo a luz tem um papel importante na conquista da atmosfera simbolista.

Béatrice Picon-Vallin, cita – a partir da descrição de Alexeï Remisov (simbolista

que ficou responsável pela supervisão literária à trupe) em carta à revista Vesy de

Moscou – a nova plástica do espetáculo, com a participação da luz, ou melhor, da

obscuridade:

Com A Neve do polonês Przybyszewski, em dezembro de 1903, onde com a ajuda de efeitos de obscuridade, ele (Meierhold) esfumaça o realismo da cenografia, rompe com a imitação de toda a realidade cotidiana ou histórica e

355 Segundo Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo: Editora Perspectiva. 2001, p. 57. 356 Voltaremos, portanto, a analisar a iluminação na obra teatral de Meierhold na continuação deste trabalho, que vai de 1914 até a atualidade. 357 O Teatro na província exigia um número imenso de montagens por temporada, segundo Beatrice Picon-Vallin entre 1902 e 1905 Meierhold monta aproximadamente 160 espetáculos. 358 Na primeira temporada chamava-se “Trupe de Artistas Dramáticos Russos”, mudando de nome em 1903, na medida em que as experiências rumo ao simbolismo, ao “drama novo”, se tornam um objetivo explícito.

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deseja tocar o público por “um tom, cores, uma plástica” 359. 360

Jacó Guinsburg também cita especificamente este espetáculo e sua

sinestesia, característica formal intimamente ligada ao simbolismo:

... a qualificação “sinfonia ultravioleta” talvez encerre, na sua sinestesia, um testemunho mais preciso do estilo da montagem.361

Estas experiências seminais do simbolismo na encenação de Meierhold,

levam ao convite de Stanislávski para uma parceria, visando encontrar as formas

do espetáculo e da interpretação específicas para o “drama novo”, junto ao Teatro

de Arte de Moscou.

O teatro-estúdio

Apesar do Teatro-Estúdio ter fechado as suas portas antes mesmo de sua

estréia, depois do ensaio geral de A Morte de Titangiles, as experiências ali

realizadas são consideradas fundamentais para o desenvolvimento do simbolismo

no teatro russo e na concepção do teatro da convenção desenvolvida Meierhold

e por Valeri Briussov, nos anos seguintes. Segundo as palavras do próprio

encenador: Entretanto, embora o Teatro-Estúdio não tenha

aberto suas portas ao público, ele desempenhou um papel muito importante na história do teatro russo. Podemos afirmar com toda a certeza que tudo o que mais tarde os nossos teatros de vanguarda introduziram em suas ence-nações, com uma pressa extraordinária e febril, foi bebido dessa única fonte. E todos os motivos em que se fundamentam as novas interpretações cênicas são

359 Alexeï Remisov, “La Confrérie du Drama Nouveau. Lettre de Kherson” in Vesy, n. 4, Moscou, 1904 apud Pincon-Vallin, B. Les Voies de la création Théâtrale 17 – Meyerhold. Paris: Editions du Centre de la Recherche Scientifique, 1990. p. 26. 360 Pincon-Vallin, B. Les Voies de la création Théâtrale 17 – Meyerhold. Op. Cit. p. 26. 361 Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op. Cit. p.17.

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familiares àqueles que participaram do trabalho criador do Teatro-Estúdio.362

O Teatro-Estúdio, 1905 – A Morte de Titangiles

É no Teatro-Estúdio que Meierhold mergulha completamente nas formas

do teatro simbolista e na busca de novos procedimentos técnicos, que incluem

uma estreita colaboração com os jovens pintores do “novo grupo fundado em

1904, A Rosa Escarlate” 363, para a concretização de uma cena não realista e

estilizada. Na pesquisa cenográfica que precedeu aos ensaios com os atores, N.

Sapúnov e S. Sudéikin, os pintores-cenógrafos de A Morte de Titalgiles,

procedem a uma revolução metodológica e se recusam a fazer maquetes para

representar a cenografia, assim os esboços planos e as pinturas tomam o lugar

das representações tridimensionais, concretizando no plano da criação a opção

pictórica, resumindo com essa ação a quebra com os procedimentos técnicos do

naturalismo e também com os próprios cenários realistas e seus detalhes

arquitetônicos:

Virando e revirando uma maquete em nossas mãos, virávamos e revirávamos o próprio teatro contemporâneo. Queríamos queimar e pisotear as maquetes; e não está-vamos longe de queimar e pisotear as velhas técnicas caducas do teatro naturalista. Os cenógrafos Sapúnov e Sudéikin estão na origem do abandono definitivo das

362 Meyerhold, Vsévolod. Sobre o Teatro. Tradução Roberto Mallet. (No prelo) Material didático do curso de Maria Tháis Silva Santos: Meierhold – O Encenador Pedagogo. p. 1. 363 Pincon-Vallin, B. Les Voies de la création Théâtrale 17 – Meyerhold. Op. Cit. p. 28.

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maquetes. Este foi o primeiro impulso na busca de meios de expressão cênica novos e simples.364

Nesse momento é para a concepção simbolista de “síntese e sugestão”

que pendem as experiências cênicas de Meierhold. A pesquisa de novas técnicas

de encenação e métodos de criação cenográfica gerou em A Morte de Titangiles

a realização de “planos impressionistas”, explicitamente pictóricos e

convencionais, de onde os atores se destacam e a partir do qual as luzes agem

em consonância com a pintura:

É nesse período de recusa das maquetes que nasce a técnica de planos impressionistas. (...) E como todos esses intérieurs e extérieurs construídos em maquetes à semelhança da natureza tornaram-se inúteis, cada cenógrafo esforçava-se em atenuar esse grosseiro procedimento naturalista (construir sobre a cena apartamentos, jardins, ruas) pela sutileza do tom idealizado das cores e pelos artifícios na disposição dos efeitos de luz (sobre a pintura).365

É interessante notar que a passagem pela cenografia pictórica faz parte de

um caminho comum na prática do teatro simbolista. A liberdade formal

conquistada pela pintura e o significado simbólico dado às cores e às formas na

tela (tornadas luz pelos impressionistas) tornou-se um acontecimento fundamental

para a quebra com o realismo no teatro. Num primeiro momento é a pintura que

realiza a síntese formal 366, permitindo tirar de cena o excesso de detalhes,

limpando a área para que, a partir de um espaço vazio, fosse possível construir

volumes e formas não figurativas.

Da mesma forma, a iluminação também passa por uma fase de forte

influência “pictórica”, saindo da tela e ocupando os espaços vazios deixados pela

cenografia naturalista, mas carregando consigo a função de formar “quadros

364 Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro i. Teatro-Estúdio in Op. Cit. p. 3. 365 Idem Ibidem, p. 3. 366 Ainda que, segundo Appia, privilegiando o signo pictórico em prejuízo da expressão viva da cena, ou seja, o movimento. Esse processo acaba tornando, momentaneamente, fundo em forma. É contra essa inversão de valores que Appia se levanta, como pioneiro da cena arquitetônica, ou pelo menos de sua concepção teórica.

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cênicos”, enquanto os atores evoluem por zonas de claro-escuro (que por sua vez

tem nas pinturas suas maiores referências) ou em uma semi-obscuridade que

permite unir por justaposição as duas naturezas, tão distintas.

A radicalização das formas

Essa travessia pela cena pictórica, através da tela plana rumo às

construções arquitetônicas terá por guia as concepções de Fuchs, Craig e Appia.

Numa teia de influências múltiplas e comuns, que são no começo do século XX

“idéias no ar dos tempos”.367

No caso específico de Meierhold, a leitura em 1906 do livro O Teatro do

Futuro de Georg Fuchs virá de encontro com as pesquisas conceituais e formais

realizadas no Teatro-estúdio 368 e influenciará decisivamente as montagens

seguintes, onde ele fará experiências práticas extremamente pessoais a partir das

idéias de Fuchs, sobretudo da cena-relevo369 e da união da sala e da cena,

concentrada no proscênio avançado, unindo atores e espectadores em um

mesmo espaço e em um mesmo acontecimento.

Meierhold retoma o trabalho na província com a Confraria do Drama Novo

no início de 1906. Em Tíflis estréia uma nova versão de A Morte de Titangiles

que, segundo descrição do próprio Meierhold, tinha forte inspiração pictórica

“paisagens à la Böclklin e poses à la Botticelli” 370 e acontecia dentro de um

367 Copeau apud Pincon-Vallin, B. Les Voies de la création Théâtrale 17 – Meyerhold. Op. Cit. p. 29. 368 “Em Maio de 1906 que Meyerhold conhece o livro de G. Fuchs, O Teatro do Futuro, que terá sobre ele uma enorme influência na medida em que o ajudará a “dar forma” a suas intuições: arquitetura, nova organização do espaço cênico, importância do Proscênio, do ritmo, da dança, tudo aquilo que rondava já sua cabeça”. Picon-Vallin, Béatrice. Preface in Meyerhold, Vsévolod. Écrits sur le Théâtre - Tome 1 Op. Cit. p. 17. 369 “Construir uma ‘cena-relevo’ não é um fim em si mesmo, mas um meio. O fim é a ação dramática. Ela nasce na imaginação do espectador estimulada pelas ondas rítmicas dos movimentos corporais. Essas ondas devem rolar em um espaço que possa ajudar o espectador a perceber as linhas dos movimentos, dos gestos, das atitudes...” Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. A Encenação de "Tristão e Isolda" no Teatro Mariinski in Op. Cit. P.40. 370 Meierhold, V. Apud Picon-Vallin, B. A Arte do Teatro: entre tradição e Vanguarda - Meyerhold e a cena contemporânea. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto: Letra e Imagem,2006, p. 17.

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“quadro de tule esticado, atrás do qual se passava a ação. O quadro era feito de

um tecido verde escuro” 371. A luz, portanto, acompanhando a cenografia, deveria

vir de cima, revelando as formas e não os detalhes. Em Poltava, pela disposição

arquitetônica do espaço, tablados no lugar da orquestra permitiam criar um

proscênio que avançava em direção à platéia, possibilitando experimentar a cena

avançada proposta por Fuchs e unir atores e espectadores em um mesmo

espaço. Meierhold monta Os Espectros, de Ibsen e Cain, de Dymov

concentrando a ação no proscênio e suprimindo as cortinas, o que reforça a

concenção do espetáculo ou, segundo palavras do próprio encenador, “Graças à

supressão da cortina, o espectador está permanentemente colocado diante do

exclusivo cenário da ação”372, em Cain de Dymov, a ação se passa sobre “um

proscênio branco, sem cortina, sem portas, sem mobília”373. Para a encenação de

O Milagre de Santo Antonio, de Maeterlinck, Meierhold “se inspira em poses de

marionetes para criar as personagens sob uma luz de pesadelo” 374 . Como

Fuchs, procura suas inspirações no estudo do teatro de épocas passadas cujas

técnicas são autenticamente teatrais, como o teatro japonês, o teatro de

marionetes, a Commedia dell’Arte e o teatro de feira (Balangan). A cena torna

mais complexas suas influências e suas formas, Meierhold mistura elementos,

amplia seus estudos e desenvolve seus conhecimentos técnicos em busca das

novas velhas formas de um teatro do futuro.

O encontro com Vera Komissarjévskaia

ou sobre como “As palavras não dizem tudo” 375.

De 1906 a 1907, pelo período de uma temporada e meia 376, Meierhold

torna-se o diretor da companhia de Vera Komissarjévskaia 377 onde realiza

371 Idem Ibidem, p. 17. 372 Meierhold, V. apud Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op. Cit. p.35. 373 Picon-Vallin, Béatrice. Préface in Meyerhold, Vsévolod. Écrits sur le Théâtre - Tome 1 Op. Cit. p. 17. 374 Picon-Vallin, Béatrice. Préface in Meyerhold, Vsévolod. Écrits sur le Théâtre - Tome 1 Op. Cit. p. 17. 375 Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro iv. Primeiras tentativas de criação de um teatro da convenção, Op. Cit. p. 24.

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algumas de suas grandes encenações da fase simbolista. Também é nesse

mesmo período que o encenador desenvolve sua faceta de iluminador, com a

utilização consciente da iluminação como mais um instrumento de construção

formal da cena, em busca de um teatro da convenção:

A Iluminação cessa de ser simples iluminação para tornar-se um elemento constitutivo da imagem cênica: Meierhold desenvolve largamente a idéia das fontes de luz independentes e joga com as silhuetas e com os grupos em claro-escuro 378.

As fontes independentes, aqui citadas, referem-se mais uma vez, a

introdução dos “refletores” no teatro, ou seja, um equipamento elétrico com uma

fonte de luz única (lâmpada incandescente) e aparelho ótico, que pode ser

pendurado e afinado de forma independente, ao contrário das ribaltas e

gambiarras. Essas novas “fontes” permitem maior controle sobre o desenho e seu

movimento em cena, possibilitando o destaque e a seleção de partes do palco ou

de elementos isolados em relação ao todo. O jogo de claros-escuros, silhuetas,

luzes de cima, em contra-luz ou de um só lado tem sempre uma conexão direta

com as inspirações pictóricas que Meierhold utiliza para montar seus espetáculos,

como é o caso exemplar do espetáculo Soror Beatriz.

Soror Beatriz é um milagre escrito por Maeterlinck, que mescla o mistério

medieval com temas simbolistas: a mística e a morte. Sobre a relação entre

sentido “interior” da obra e a sua expressão, dizem melhor as palavras de

Meierhold:

Além disso, toda obra dramática compreende dois diálogos, um "exteriormente necessário" - as palavras que acompanham e explicam a ação - e outro "interior" - e é este que o espectador deve descobrir, não nas palavras, mas nas pausas; não nos gritos, mas nos

376 As temporadas nas grandes cidades russas iam de agosto de um ano, a fevereiro do ano seguinte. 377 “Intérprete consagrada de algumas das principais figuras femininas levadas à cena russa (...), a atriz deixara em 1902 o elenco imperial do Alexandrínski, do qual era um dos grandes nomes, para formar o seu próprio conjunto onde pudesse interpretar papéis mais sintonizados com a sua sensibilidade dramática e promover um repertório menos penhorado à tradição oficial” Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op. Cit. p.36. 378 Picon-Vallin, Béatrice. Preface in Meyerhold, Vsévolod. Écrits sur le Théâtre - Tome 1 Op. Cit. p. 19.

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silêncios; não nos monólogos, mas na música dos movimentos plásticos. Maeterlinck constrói o diálogo "exteriormente necessário" de tal maneira que as personagens têm, para uma tensão máxima da ação, um mínimo de palavras a dizer.379

A “Música dos movimentos plásticos” em Soror Beatriz é desenhada por

Meierhold como verdadeiros quadros-vivos baseados “em elementos colhidos na

pintura dos inícios da Renascença (Giotto, Fra Angélico, entre outros) e na

composição gótica de referenciais arquitetônicos” 380. A cenografia simples de

Sudéikin – um painel representando um muro gótico em tons frios, azuis e verdes,

como uma tapeçaria estilizada – torna o espaço de ação comprido e raso,

trazendo os atores para perto da platéia, como na cena-relevo proposta por Georg

Fuchs 381. Os figurinos também são simples e retos, em tons de cinza-azulado.

Todo o conjunto leva a fundir os atores com o fundo, como se eles fossem

estátuas em baixo-relevo. A luz não tem muitos movimentos, permanece estática

durante os atos, mesmo quando o texto sugere mudanças de tempo. Por efeito

apenas uma luz cintilante no vestido da virgem, “uma luz, quase como um manto

transparente por cima de suas roupas” 382 e a projeção das suas iniciais, no

fundo, durante a cena do milagre 383. Quanto aos ângulos preferenciais, a cena-

relevo exige muito cuidado com as sombras sobre o fundo: luz de cima, a pino ou

levemente por trás, como contra-luz, desenha os contornos dos grupos (como

indica o próprio Meierhold, anos mais tarde384, ao explicar a melhor forma de

379 Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro iii. Presságios literários do novo teatro in Material didático do curso de Maria Thais: Meierhold – O encenador Pedagogo (em fase de publicação). pp. 16-17.(grifo meu) 380 Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op. Cit. p.47. 381 “Em seu palco (de Fuchs), disposto em vários níveis de configuração plástica e dramática, o procênio deve ser o lugar de eleição do jogo cênico, na medida em que o desempenho interpretativo é concebido como movimento rítmico do corpo humano no espaço, segundo as lições do balé e do teatro oriental, para compor as figuras contracenantes, contra um fundo raso, em verdadeiros baixos-relevos coreográficos da ação dramática” Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op. Cit. p.36. 382 Deak, Frantisek. Sister Beatrice in Drama Review, Volume 26, number 1, Spring, 1982, p. 43. 383 “BVM – Beata Virgo Maria” Deak, Frantisek. Sister Beatrice in Drama Review, Volume 26, number 1, Spring, 1982, p. 49. 384 No texto sobre a encenação de Tristão e Isolda Meierhold faz uma longa explanação sobre as idéias de ocupação espacial e arquitetura cênica de

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iluminar um conjunto sobre um praticável, em primeiro plano: “neste caso coloca-

se os projetores atrás dos praticáveis”385). A luz de cima contracena com a luz da

ribalta (provavelmente mais baixa, apenas preenchendo a frente). Como a ribalta

está colocada muito perto dos atores, acaba por elevar as personagens, ajudando

na sensação de irrealidade e mistério386.

Meierhold esculpe os movimentos de grupo plasticamente, revelando a

tridimensionalidade do corpo do ator em gestos desenhados e muitas vezes

imóveis. Neste espetáculo Meierhold experimenta na prática uma série de

princípios do teatro da convenção consciente: os gestos decompostos; o ritmo da

fala alterado musicalmente; a imobilidade que, por oposição e expectativa, revela

a essência do movimento; o contraste entre a fala e a ação. Ao separar o gesto

da fala, entremeando-os de pausas e paradas não realistas, Meierhold não

apenas constrói uma encenação explicitamente convencional com as imagens e o

som, mas estabelece contrastes entre esses dois planos paralelos de leitura.

Esse procedimento é explicado pelo próprio encenador no texto História e Técnica

do Teatro:

As palavras são para os ouvidos, a plástica é para a visão. Dessa maneira, a imaginação do espectador trabalha sob o impacto de duas impressões, uma visual e outra auditiva. O que distingue o velho teatro do novo é que, neste último, a plástica e as palavras estão submetidas a seus ritmos próprios, divorciando-se mesmo, se possível. 387

Este princípio de contraste causa na construção do espetáculo um

estranhamento ao mesmo tempo místico e épico, que será desenvolvido por

Meierhold em cena, através da inclusão cada vê maior em suas encenações da

Georg Fuchs, incluindo uma indicação de como iluminar um plano de conjunto sobre um praticável na cena-relevo. 385 Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. A Encenação de "Tristão e Isolda" no Teatro Mariinski Op. Cit. P.39. 386 “As decorações (elementos cenográficos) estão contíguas à ribalta, e toda a ação se passa tão próxima do espectador que ele tem a impressão de estar dentro de um ambiente de uma basílica” Meierhold, V. Écrits sur Le Théâtre, Op. Cit. p. 209. 387 Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro iv. Primeiras tentativas de criação de um teatro da convenção in Op. Cit. p. 24.

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teatralidade explícita e do grotesco, o que determinará o caminho por onde o

encenador superará o simbolismo em uma escritura teatral inédita. A iluminação

caminha junto, no sentido de, não apenas ser um instrumento de linguagem

consciente, mas também revelar-se enquanto tal.

A Barraca de Feira - O trágico ou o sorriso do diabo nos lábios.388

389 Balagántchik (A Barraca de Feira) de

Aleksandr Block que, segundo Jacó Guinsburg, “trata-se de uma farsa trágica ou

de uma paródia existencial” 390, é um texto em primeira pessoa sobre a própria

existência do teatro.

No texto de Block um “Eu” lírico, autor, vê as carroças do velho teatro de

feira, descreve e discute o teatro, seus artifícios, seus sentidos, suas leis e

linguagens. É com nostalgia que se pergunta: “O que se tornou hoje, esse ator

que fala das alegrias de seu reino?391”. Com fé na renovação, o texto clama por

um novo personagem que virá “Com seu caminhar ligeiro, ele virá, aquele que

esperamos. Dois espelhos colocados face a face, e de um lado e outro velas,

como na noite da Epifania, criarão um corredor sem fim e suas molduras

douradas enquadrarão a sucessão de muitas épocas teatrais”392. Não há

personagens que falam por si, mas apenas a visão do próprio teatro e seus

agentes (atores, maquinistas, decoradores) e, principalmente, um ator, duplo do

388 Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro iv. Primeiras tentativas de criação de um teatro da convenção, Op. Cit. p. 30. 389 A Barraca de Feira, desenho da montagem de 1914. 390 Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op. Cit. p.50. 391 Block, A. A Barraca de Feira. Material didático do curso de Maria Thais: Meierhold – O encenador Pedagogo. p. 2. 392 Idem Ibidem, p. 2.

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autor e com quem ele fala. Esse ator atravessa o teatro, vê a azáfama da criação,

os preparativos de um espetáculo, sobe pelas escadas, passa pelas janelas rumo

ao dia e sobe aos céus. Metáfora da vida? Metáfora da arte? Poesia ou Manifesto

sobre o teatro?

O próprio texto, como um labirinto, explica e confunde. Mas explicita o seu

sentido, seu superobjetivo:

No teatro, não há necessidade de imitar a vida esforçando-se em copiar seu invólucro formal, porque o teatro possui meios próprios de expressão, que são teatrais, porque o teatro dispõe de uma língua própria, compreensível a todos e que lhe permite dirigir-se ao público393.

Meierhold aceita o desafio, como encenador e personagem principal,

Pierrot, constrói imagens cênicas de puro metateatro: utiliza o palco em toda a

sua profundidade, o cerca com telas azuis e no centro constrói “um pequeno

teatro de barraca de feira” 394, com toda a estrutura técnica à vista, assim como as

cordas e fios que o sustentam dentro do grande teatro. Quando a peça começa

“o público vê o ponto arrastar-se para dentro da sua caixa e acender uma vela” 395. A ribalta representa a própria ribalta e o teatro é teatro. “Quando o Pierrot

(Meierhold) termina o seu longo solilóquio, o banco, a estátua e o cenário todo

são arrebatados para o alto”. Por fim “figuras mascaradas aparecem aos brados

de ‘Tochas’, surgem, de ambas as coxias, as mãos dos assistentes de cena

segurando fogos da Bengala acesos sobre bastões de ferro” 396.

Trata-se de um jogo explícito de reflexão entre vida e arte. A luz é como

tudo mais, teatro. Artifício, que por sua vez representa a própria vida. Teatro e

vida espelham-se, como propõe o texto de Blok, criando um labirinto infinito de

teatros que espelham vidas e assim por diante (experimente colocar dois

espelhos com uma vela acesa, um diante do outro, abre-se um portal dos tempos

que tende para o infinito em todas as direções). A ribalta, as varas, pernas, 393 Idem Ibidem, p. 6. 394 Meierhold, V. apud Guinsburg, Jacó. Stanislávski, Meierhold & Cia. Op. Cit. p.50. 395 Idem Ibidem, p. 50. 396 Idem Ibidem, p. 50.

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cortina, tenda, ponto – o teatrinho inteiro se desfaz diante da platéia, que vê toda

a maquinaria dos dois teatros em ação. A passagem da vela do ponto, que abre a

peça, para as tochas do fim anunciam uma revolução cênica, que por sua vez

anuncia uma revolução na vida, que clama por um novo teatro, teatral. A

iluminação neste ponto da história do espetáculo já é linguagem consciente e

assumida e como tal pode iluminar a si mesma.

Como escreveu Leonid Andreiêv em carta a Meierhold (que ele cita em

Sobre o Teatro):

No teatro da convenção, o espectador "não esquece em nenhum momento que tem diante de si um ator que representa, e o ator não esquece que tem à sua frente, ao pé da cena, um público, e a seus lados um cenário”.397

O Expressionismo e suas técnicas de iluminação

Em meio às muitas peças que montou com o Teatro Vera Komissarjévskaia

há que mencionar ainda, entre seus últimos trabalhos, a incursão de Meierhold

pelo teatro expressionista, com O Despertar da Primavera, de Wedekind e A Vida

de Homem, de Leonid Andriéiev 398; nos quais o encenador usa da iluminação

como artifício explícito da escritura cênica, revelando e escondendo partes da

cena segundo a necessidade e usando de contrastes extremos. Na peça de

Andreiêv a cenografia é extremamente simples e a luz, ao contrário, a partir de

sua multiplicidade transforma o espaço cênico. Béatrice Picon-Vallin descreve

essa iluminação em detalhes:

Meierhold compõe aqui sua primeira verdadeira “partitura” de luz: ele [ninbe] a cena de uma bruma cinzenta por uma luz fraca e uniforme, sem sombras, para o prólogo, depois ele rompe com a semi-obscuridade permanente por focos (manchas) de luz provenientes de uma só fonte por vez, iluminando sucessivamente diversos pontos da cena. Ele utiliza a luz em fontes múltiplas e independentes – uma

397 Meierhold, citando Leonid Andriéiev in Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro iv. Primeiras tentativas de criação de um teatro da convenção Op. Cit. p. 29. 398 Essas montagens são posteriores à de A Barraca de Feira, de que trataremos a seguir. Invertemos a ordem cronológica por entender que o desenvolvimento conceitual neste trabalho deve prevalecer sobre o aspecto histórico.

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lâmpada atrás de um divã, lanterna, velas – e freqüentemente verticais – lustre (brilho) circular, suspensão de onde a iluminação cai em cones alongados. Nessa ilhotas reservadas ao jogo cênico, Meierhold pode dar a impressão de um lugar fechado por limites invisíveis, mas sugeridos. Ele coloca os atores em relação às fontes de luz de tal sorte que eles se destacam em silhuetas, em sombra chinesa ou em grupos compactos (...) Seleção e deformação acrescentam à atividade do espectador 399

Em O Despertar da Primavera o encenador, assim como em A Vida de

Homem, seleciona e divide o palco com a luz, revelando o espaço cênico em

partes, com uma “luz episódica”, fragmentando tempo e espaço, um recurso que

entra para a história da iluminação principalmente a partir do expressionismo.

Em novembro de 1907, no meio da segunda temporada, a parceria com

Vera Komissarjévskaia chega ao fim. Com ela também se completa a travessia de

Meierhold pelo simbolismo rumo à “re-teatralização do teatro”, exposta no

conceito do Teatro da Convenção Consciente. Em 1908 Meierhold é convidado

para dirigir e atuar nos teatros imperiais de São Petersburgo, incluindo grandes

clássicos e óperas. Em 1909, na preparação da montagem de Tristão e Isolda,

estuda com afinco Wagner, Appia, Craig e Fuchs.

O TEATRO DA CONVENÇÃO CONSCIENTE 400 E A LUZ

O Teatro é uma arte independente, ele exige a submissão de tudo o que faz parte do seu domínio a leis teatrais únicas. Toda arte e toda técnica envolvidas no teatro devem ser percebidas de um ponto de vista teatral. 401

399 Pincon-Vallin, B. Les Voies de la création Théâtrale 17 – Meyerhold. Paris: Editions du Centre de la Recherche Scientifique, 1990. p. 33. 400 “Não creio estar enganado ao afirmar que entre nós, na Rússia, Valeri Briussov (Briussov, "A verdade inútil", Mir iskusstva (O Mundo da arte), São Petersburgo, 1902, tomo VII) foi o primeiro a falar da inutilidade dessa "verdade" que se quis colocar a toda força em nossas cenas nos últimos anos; foi também o primeiro a indicar caminhos diferentes para o teatro dramático. Ele exigiu o abandono da verdade inútil das cenas contemporâneas em prol da convenção consciente”. Meierhold,V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro iii. Presságios Literários do Novo Teatro, Op. Cit. p. 17.Conceito de 401 Meierhold, V. “programa dos cursos de encenação” Apud Picon-Vallin, B. A Arte do Teatro: entre tradição e Vanguarda - Meyerhold e a cena

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Em 1902 Valeri Briussov escreve o artigo “A verdade Inútil” 402. O conceito

do Teatro da Convenção Consciente, descrito então por ele, será uma espécie de

‘Norte’ das pesquisas Cênicas de Meierhold, o que está exposto nos vários

artigos que o encenador escreve de 1905 a 1912, reunidos no livro Sobre o

Teatro, sobretudo aqueles que fazem parte do texto História e Técnica do Teatro

(I. O Teatro-Estúdio, II. Teatro Naturalista e Teatro de Estados d’Alma, III.

Presságios Literários do Novo Teatro, IV. Primeiras Tentativas de Criação de um

Teatro da Convenção e V. O Teatro da Convenção, escritos entre 1905 e 1907).

No entanto o que no princípio era meio, com o desenvolvimento de uma

linguagem própria passa a ser fim. As primeiras pesquisas cênicas de Meierhold

tinham por objetivo colocar em cena o “novo drama”, ou seja, as peças

simbolistas, quebrando com a hegemonia do real, sustentado no naturalismo

pelas técnicas ilusionistas:

No teatro da convenção, a técnica luta contra o procedimento da ilusão.403

Para tal o encenador investigou formas cênicas que fossem capazes de

alcançar não só aquilo que é visível, mas o intangível da espiritualidade, o

mistério e a poesia, procurando assim realizar um teatro de sugestão que, através

das sensações e das convenções teatrais conscientes, pudesse deixar à

imaginação do espectador a liberdade de completar o não-dito:

No teatro, o espectador é capaz de acrescentar com sua imaginação o que permanece alusivo. É precisamente esse Mistério e o desejo de vivenciá-lo que atrai tantas pessoas ao teatro.(...) O teatro naturalista mostrou-se bastante perseverante em sua vontade de eliminar da cena a força do Mistério. 404

contemporânea. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto: Letra e Imagem, 2006, p. 88. 402 Briussov, "A verdade inútil", Mir iskusstva (O Mundo da arte), São Petersburgo, 1902, tomo VII. 403 Meyerhold, V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro iv. O Teatro da Convenção Op. Cit. p. 29. 404 Meyerhold, V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro ii. Teatro naturalista e teatro de estados de alma Op. Cit. p. 9.

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Porém no decorrer de suas pesquisas o Teatro da Convenção deixará de

ser apenas um procedimento para realizar as formas do teatro simbolista para

tornar-se ele o próprio cerne do trabalho de Meierhold. A partir da ruptura com a

mimese, o encenador cria um novo paradigma onde a representação se assume

enquanto tal, a teatralidade vira linguagem explícita e o público passa a ser

considerado como co-autor da criação:

Enfim, a técnica convencional supõe no teatro, além do autor, do encenador e do ator, um quarto criador: o espectador. O teatro da convenção elabora encenações onde a imaginação do espectador deve completar criativamente o desenho das alusões colocadas em cena. No teatro da convenção, o espectador não esquece em nenhum momento que tem diante de si um ator que representa, e o ator não esquece que tem à sua frente, ao pé da cena, um público, e a seus lados um cenário... 405

Portanto a relação que se estabelece deixa de ser a da obra de arte

acabada, destinada a um receptor passivo, mas a de uma comunicação entre

sujeitos. Dessa forma a encenação Meyerholdiana propõe uma relação dialógica

entre a cena e o público, instaurando no teatro a idéia, tão cara ao século XX, de

um espectador ativo:

Existe entre os atores e o espectador uma fronteira mágica (ou seja, a linha da boca de cena) que até hoje vem dividindo o teatro em dois mundos estranhos um ao outro: um que só faz agir, outro que só faz perceber, e não existem veias capazes de reunir esses dois corpos separados pela virtude de uma circulação sangüínea comum, a das energias criativas.406

Um dos grandes objetivos do teatro de Meierhold passa a ser justamente o

de quebrar a quarta parede e colocar o “público” e a “cena” em contato, de modo

que um possa espelhar o outro, e dessa forma buscar um processo ativo de

transformação da dita realidade pela arte, e vice e versa:

405 Meyerhold, V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro iv. O Teatro da Convenção Op. Cit. p. 29. 406 Meyerhold, V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro iv. O Teatro da Convenção Op. Cit. p. 26.

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Se o novo teatro torna-se dinâmico, então que ele o seja completamente. Queremos nos reunir para criar, para "agir" em conjunto, e não somente para contemplar 407.

O reflexo desse desejo de comunhão criativa esta expresso na obra cênica

de Meyerhold, de várias formas: pela supressão da cortina; na construção de

tablados sobre o proscênio ou avançando em direção à platéia e na utilização do

proscênio como principal espaço de representação (Tristão e Isolda, Orfeu); com

a colocação de espelhos em cena, de forma que os espectadores se vejam no

ambiente da cena e com o espelhamento da cena em relação à platéia expressa

nas cores e formas do cenário (Como na Mascarada, de Lermontov).

Na iluminação a teatralidade se afirma em vários níveis: através da

supressão da “ribalta”, que separa os dois mundos, àquele do palco em relação à

sala; em uma escritura não realista da luz, que explicita seus próprios recursos de

linguagem, tais como focos que isolam as personagens e a utilização da luz para,

através de uma convenção formal, mudar o lugar e o tempo da ação (como o

caso exemplar de A Vida de Homem, de Leonid Andriéiev e O despertar da

Primavera de Wedekind); deixando visível a técnica e os refletores em cena.

Porém a grande revolução da assunção do teatro da convenção na

iluminação vem em sentido inverso àquele que inaugurou o ilusionismo na

iluminação, quando Wagner, em 1876, apagou a luz da platéia separando o palco

da platéia, ou melhor, apagando a realidade da platéia em privilégio da existência

da ilusão dramática. Em 1910 (no mesmo ano em que Max Reinhardt coloca a

platéia em cena no Édipo Rei do Circo Schumman) Meierhold volta a acender a

luz na platéia de Don Juan, de Molière e promove a comunhão entre

espectadores e atores proposta por Peter Behrens e Georg Fuchs ou a grande

festa da participação da Catedral do Futuro de Appia. Meierhold, nesta simples

ação luminosa, coloca novamente sala e cena na mesma ambiência: ao mesmo

tempo “cena”, da qual participa a platéia, e “sala”, revelando a realidade teatral da

representação; esta ambigüidade, que faz parte da natureza convencional de toda

a representação teatral, tem agora uma função épica explícita.

407 Meyerhold, V. Sobre o Teatro – Primeira Parte. História e Técnica do Teatro iv. O Teatro da Convenção Op. Cit. p. 27.

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A iluminação de Don Juan é exemplar da iluminação que assume o ponto

de vista da teatralidade:

Além de colocar a sala no mesmo ambiente da cena, Meierhold e Golovine 408 também jogam com claros e escuros para articular explicitamente espaço e

tempo: o palco é dividido em dois planos de ação (o primeiro no proscênio e o

segundo no palco, guardando um terceiro para a pintura de fundo) e a iluminação

transporta a ação para um ou outro espaço, transportando e editando a ação e

incluindo ou não a platéia. Também articula e faz contracenar técnicas do teatro

antigo com a tecnologia recente: desta forma a luz elétrica convive com três

grandes lustres no proscênio, com centenas de velas, que colocam todo o

ambiente do teatro no brilho das luzes vivas e tremeluzentes do séc. XVII,

enquanto em outros momentos a escuridão do primeiro plano permite a realização

de um teatro de sombras chinês ou jogos pirotécnicos, no fundo, que nos

lembram os efeitos com fogo do Renascimento e do Barroco. Por fim, Meierhold

utiliza-se de um coro de “pequenos negrinhos”, que têm a mesma função dos

Kurombo 409do teatro Kabuki, personagens com função puramente teatral, jogam

perfumes no ar, levam e trazem elementos de cena e de figurino, acendem e

apagam velas, levam lanternas para os atores quando a ação se passa à noite

(como no teatro grego e Elisabetano) e chegam a iluminar os atores em cena,

explicitando de vez a função de escritura cênica da luz.

A iluminação nos espetáculos de Meierhold caminha junto com o teatro da

teatralidade, no sentido de, não apenas ser um instrumento de linguagem

consciente, mas também revelar-se em cena enquanto tal. Adquire então uma

função épica, retomada por Erwin Piscator e Bertolt Brecht.

Todas essas ferramentas da encenação no teatro da convenção servem

para colocar o espectador “dentro” da cena, ou a cena “dentro” da platéia,

408 Cenógrafo e grande parceiro de Meierhold nas montagens realizadas nos teatros imperiais de São Petersburgo (Teatro Mariinski e Alexandrinski), de 1908 a 1917. 409 “Graças às descrições das representações teatrais japonesas nós sabemos sobre esses personagens particulares, os servidores da cena – chamados de Kurombo – vestidos com um figurino negro, têm entre outras funções: (...)ajoelhados aos pés dos heróis, iluminam a fisionomia do ator com a ajuda de uma vela pregada na extremidade de um longo bastão” Meierhold, V. La Mise en scène de Don Juan de Molière in Écrits sur Le Théâtre. Op. Cit. p.162.

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aproximando teatro e realidade, espelhando dois mundos, ou, através da

contraposição do grotesco, transformando potencialmente realidade e

representação para sugerir a existência de uma terceira possibilidade; o “drama

novo” dá lugar à revolução da teatralidade que, por sua vez, suscita a criação de

um “mundo novo”.

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CAPÍTULO 12

À LUZ DA LINGUAGEM Este capítulo final busca relacionar todos os temas, momentos históricos,

movimentos artísticos e concepções específicas de encenação, tratados durante

este trabalho, numa leitura transversal, em busca de uma articulação que nos

permita conceber um percurso de construção da linguagem da iluminação cênica

como Scriptura do visível.

Do início ao século XV o teatro é iluminado basicamente pela luz do Sol e a

palavra determina o tempo e o lugar da ação por um princípio épico, ou seja, a

narrativa. Enquanto o teatro acontece à luz do dia não é necessário, nem possível

à luz imitar a natureza. Nesse longo período, que poderíamos chamar livremente

de uma pré-história da iluminação cênica, a questão da visibilidade estava

resolvida à priori com a luz do Sol, portanto a utilização da luz artificial tinha por

função primordial realizar efeitos especiais.

Mas podemos nos perguntar: Para que e por que recorrer ao fogo se o Sol

iluminava a todos e as palavras narravam toda a espécie de descrição

complementar à ação?

Também podemos arriscar uma hipótese: A luz do fogo, os efeitos

pirotécnicos e a reflexão da luz do Sol por meio de metais polidos e todos os

efeitos especiais inventados neste longo período da história tem essencialmente

um único objetivo, são desde o início uma forma de atravessar o visível e o

dizível, rumo às manifestações do divino ou do terrível, com o objetivo de causar

maravilhamento ou pavor.

Quando a palavra não chega, é preciso ultrapassá-la e quando a imagem

real não basta, é preciso cercá-la de mistério, ofuscar a vista e dar poderes

inumanos aos homens através da transformação do visível.

O fogo é e sempre foi um elemento mágico, ligado à transformação

alquímica e religiosa. O espaço cênico não é um lugar qualquer, é um limiar entre

o real e o irreal, entre o sagrado e o profano, onde vemos representadas

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manifestações do divino e do terrível sobre os homens, histórias fantásticas e

casos exemplares onde deuses e heróis convivem com os simples mortais, como

nós, onde os pecadores podem ser punidos pelas chamas terríveis das bocas do

inferno, por nós, os milagres representados diante dos nossos olhos e os santos

elevados aos céus em meio ao fulgor da luz divina.

A aparição do deus ex machina não tem apenas a função de uma

resolução da trama, é literalmente uma hierofania (cujo sentido etimológico

significa algo de sagrado que se nos revela) 410. Essa manifestação dos deuses

sobre a cena, mesmo que baixados à vista de todos pela mechané (uma espécie

de guindaste) e acompanhado de brilhos e reflexos dos metais polidos que

concentram e manipulam a luz do Sol, tem um forte poder sobre a platéia porque

representa de forma visível, o invisível, e, como qualquer símbolo exige a

participação da imaginação da platéia.

Os mecanismos de linguagem cênica não estão ali para enganar ou iludir a

platéia, que não acredita que um efeito especial seja verdadeiro, por melhor que

ele seja, mas para impressionar o seu cérebro, através dos olhos, e colocar a

imaginação e o espírito da platéia como participante de uma celebração comum a

todos, que confere existência ao sagrado, ali representado por truques. Quando a

paixão de cristo é representada dentro de uma igreja e eivada de misticismo, pela

música, pela transcendência da luz dos vitrais projetada na fumaça dos incensos

e pelo mistério da luz bruxuleante das velas, aquelas imagens representam a

Paixão de Cristo porque é a paixão e a fé da platéia que se justapõe aos cenários

toscos e aos padres que recitam os papéis de Jesus ou mesmo da Virgem.

Quando vemos desenhos dos cenários terríveis das bocas do inferno dos

Mistérios medievais, com fogo saindo pela boca, podemos imaginar o efeito que

causa na platéia, não porque ela se ilude com o que vê, mas porque projeta sobre

aquela imagem o que não vê, são os seus próprios medos que tornam terríveis os

cenários e os efeitos pirotécnicos.

410 “Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toda a hierofania, até a mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer, torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, (...) sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural.” Eliade, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 17-18.

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213

É por isso que Gordon Craig, que considerava o teatro uma arte

especialmente visual, dava grande importância às cenas de aparição,

principalmente em Shakespeare, tanto em suas encenações como no campo das

concepções teóricas, considerando-as como o centro dos sonhos do poeta, que

devem regular e determinar toda a encenação já que “O simples fato da sua

presença proíbe qualquer figuração realista” 411. No artigo dedicado aos Espectros

nas Tragédias de Shakespeare, ele descreve o sentido da importância da

aparição dos seres invisíveis para o mundo construído por Shakespeare em suas

tragédias:

Se o encenador concentrar a sua atenção e a do público nas coisas visíveis e materiais, a peça perderá uma parte da sua grandeza e significação. Mas se, pelo contrário, fizer intervir, sem o tornar grotesco, o elemento sobrenatural, em lugar de uma ação puramente material, obterá um encadeamento psicológico; terá de fazer ouvir à nossa alma, senão aos nossos ouvidos “esse grave e contínuo sussurrar entre o homem e seu destino”; que nos mostre “os passos incertos da criatura, segundo se aproxima ou se afasta da verdade, da beleza ou de Deus” 412.

Esta teoria é a mesma que excita a catarse do público grego, a fé religiosa

na Paixão da Baixa Idade Média, o terror dos Infernos nos Milagres da Alta Idade

Média ou o mistério do sobrenatural em Shakespeare.

A manifestação do invisível, através do visível, é também o mesmo

princípio da sugestão que a norteia a criação dos simbolistas do começo do

século XX ou que, incrivelmente, pode ser apreendida na ciência que estuda a

visão, expressa na teoria da percepção.

Quando dizemos que os olhos são a janela da alma, isto é uma metáfora,

mas também é uma representação do complexo processo da percepção visual,

no qual a luz emitida é refletida pela matéria, atinge o sistema ótico dos nossos

olhos que projeta uma imagem (invertida e diminuída) no fundo dos olhos, a

411 Craig, Edward Gordon. “Dos Espectros nas tragédias de Shakespeare” in Da Arte do Teatro. Lisboa: Ed. Arcádia, Lisboa, 1963, p. 271. 412 Idem Ibidem, p. 275. (As citações do texto são de Maeterlinck)

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retina, que impressiona os sensíveis músculos das sete camadas da retina que

enviam impulsos elétricos para o cérebro, que por sua vez decodifica essas

mensagens e representa uma imagem para o nosso cérebro. A luz, ou seja, a

vibração eletromagnética é uma espécie de mensageira de impulsos, que

impressiona nossos olhos e é traduzida no cérebro por uma série de elementos

de composição visual como cor, forma, volume, profundidade, distância. O

conjunto ou a Gestalt, é resultado da nossa capacidade de interpretar esse

conjunto de signos, segundo a nossa subjetividade:

Seria possível distinguir a imagem e a visão. A primeira seria um fenômeno óptico, ela começa e termina nos olhos, no sistema ocular. A segunda seria um fenômeno mental: se ela começa nos olhos, é no espírito que ela se realiza 413

A visão é, portanto, também um ato de representação e criação, uma

interação entre a nossa subjetividade e o que chamamos de realidade.

Nesse sentido não existe diferenças de essência entre um signo visual e

um signo lingüístico, ambos pressupõem significantes e significados, uma

linguagem de decodificação comum e uma representação, que é ao mesmo

tempo cultural e subjetiva.

A iluminação, como a poesia, manipula os signos dessa representação,

criando metáforas, deixando lacunas, transfigurando imagens que suscitam a

participação do cérebro ou da “alma” humana. Ou seja, na mesma medida em

que o artista da língua manipula a palavra, o encenador ou o iluminador

manipulam as imagens através da luz criando uma linguagem, visual, que se

justapõe ou se contrapõe ao texto ou a música, como parte do todo do espetáculo

teatral.

Quando no teatro grego ou elisabetano, em pleno dia, um ator aparece

com uma tocha na mão “para designar ‘noite’ ou ‘escuridão’” 414 – costume

413 Picon-Valin, B. A encenação: visão e imagens in A Arte do Teatro: entre tradição e Vanguarda - Meyerhold e a cena contemporânea. Op. Cit. p. 91. 414 Camargo, Roberto Gill. A Função Estética da Luz. Sorocaba: Ed. Fundo de Cultura, 2000, p. 14.

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analisado por Roberto Gill Camargo como primeiro fator de representação ou

convenção teatral na história da iluminação cênica, portanto primo lampejo de

linguagem – o sentido não é apenas a da descrição da hora e lugar, mas

concretizar, por contraste, a atmosfera e a simbologia da noite. Ao acender uma

pequena chama em cena, todos os olhos focam naquela luz e o que está em

volta, através dos olhos da nossa imaginação, como que mergulha na escuridão

misteriosa, de onde pode surgir o espectro do Rei Hamlet ou as três bruxas de

Macbeth.

* * *

Durante o século XVI o espetáculo teatral se abriga em espaços

fechados, primeiro improvisados e depois em teatros, sem acesso à luz do Sol.

Estava colocado o problema da iluminação cênica como uma necessidade

fundamental dos teatros. Embora as técnicas de iluminação tenham se

transformado bastante do século XVI até o fim do século XIX, foram sempre

formas diferentes de utilização do fogo: velas, lamparinas, lampiões, gás e

limeligths. Durante esses quatro séculos a luz terá por função principal a visibilidade.

É, portanto, a partir na necessidade de iluminar as apresentações em

espaços fechados que começa o primeiro grande desenvolvimento tecnológico da

iluminação cênica, pois, se de início as fontes de luz foram dispostas de forma

aleatória, logo a luz demanda a concepção de uma técnica específica.

No século XVI – sob os auspícios do Renascimento italiano, que une em

um mesmo pensamento integrado arte, ciência e técnica – instaurou-se de modo

consistente o estudo, a pesquisa e o incremento técnico da cenografia teatral, que

incluiu em seu bojo a iluminação cênica. Os arquitetos e cenógrafos do

Renascimento tomaram para si a tarefa de manipular artificialmente a luz do fogo

e iluminar os espetáculos, em relação íntima com o desenvolvimento da

cenografia e suas técnicas, instaurando uma longa tradição dos cenógrafos-

iluminadores.

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É o caso de Sebastiano Sérlio e Sabbattini (assim como muitos outros

citados no capítulo dois), que aliam a ciência à arte na concepção da cenografia e

criam máquinas e efeitos cênicos, muitos eles integrando a cenografia pictórica,

construção de volumes, maquinaria e iluminação cênica. Suas obras práticas e

teóricas constituem a base de uma nova ciência aplicada da cena, a cenotécnica

(que neste momento encampa a luminotécnica). Muitos encenadores e

cenógrafos do século XX estudaram, retomaram ou reinterpretaram as obras

desses arquitetos 415.

De uma maneira geral a luz era pensada como parte integrante da

cenografia e seus movimentos. Sebastiano Sérlio, por exemplo, é bastante

preciso em Architettura, ao separar a luz geral que ilumina o cenário e a ação e os

“efeitos especiais”, “truques” que transformam a luz da cena e podem interferir na

ação dramática. Mas como o próprio nome já diz, por enquanto são efeitos

“especiais”.

Mas há um episódio todo especial na história do teatro, que merece ser

analisado separadamente. É o caso da prática e concepções extemporâneas do

dramaturgo, teórico e diretor teatral Leone de’Sommi – que no século XVI já

concebia a iluminação cênica como linguagem integrante da progressão

dramática do espetáculo. Leone de’Sommi divide as fontes de luz em camadas,

usadas para diferentes funções, simultâneas, no espetáculo: visibilidade, desenho

(perspectiva), efeitos e atmosferas. Ele não só tem consciência da importância da

luz no desenvolvimento da tensão dramática, como expõe em seu Dialoghi in

Matéria di Representationi Sceniche a ênfase do efeito emocional no movimento

da luz; esclarecendo que é a diferença e a relação entre o que vem antes e o que

vem depois que constitui o efeito sobre a platéia. Ora essa concepção é básica

para a idéia de escritura da luz no tempo e pressupõe noções que hoje em dia se

embasam nas modernas teorias da percepção como a adaptação do olho e a

teoria do contraste simultâneo. Não é à toa que os pintores do Renascimento são

os primeiros a elaborar uma teoria das cores, da qual faz parte, por exemplo, a

415 Não é à toa que Gordon Craig passou grande parte de sua vida dedicado aos estudos profundos da obra dos artistas Renascentistas, principalmente os arquitetos.

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teoria das cores primárias de Alberti e as teorias da perspectiva aérea de

Leonardo Da Vinci.

A grande paixão do Renascimento italiano pela perspectiva trouxe o estudo

da óptica, da matemática e da geometria para os palcos. Os cenógrafos uniram

seus conhecimentos de arquitetura e pintura às ciências para aumentar a

perspectiva da cena e a mobilidade da maquinaria, criando o percurso que vai do

palco renascentista para o palco italiano.

Estes cenógrafos-iluminadores desenvolveram as bases geométricas do

desenho técnico de luz que usamos até hoje, diversificaram a posição das fontes

de luz e estudaram os ângulos de incidência, de forma a criar volume e aumentar

a noção de profundidade: o ângulo de 45º para iluminar de forma harmoniosa, as

luzes laterais para aumentar a noção de perspectiva, a luz de um lado só, para

desenhar o volume, o contra-luz para destacar a figura do fundo. A composição

do desenho de luz, suas regras e procedimentos, manhas e manias, todas

baseadas na pujança da pintura renascentista, devem-se à racionalidade genial

destes artistas da técnica. De alguma forma toda a longa história da relação entre

a iluminação e a pintura, incluindo a criação de atmosferas luminosas e o uso de

cores se instaura no teatro sob as graças do Renascimento e sua filosofia

totalizante, humanista e naturalista.

A nossa concepção naturalista e científica do mundo é certamente, na sua essência, uma criação da Renascença.416

Além de desenvolver a iluminação cênica e seus princípios básicos e de

compilá-las em importantes obras dedicadas à arquitetura, cenografia,

cenotécnica e luminotécnica, o Renascimento também inspirou a idéia da

representação da natureza no palco e da verossimilhança como princípio básico

da cenografia e da iluminação cênica, teoria que vigorou de maneira quase

hegemônica até o fim do século XIX e ainda tem grande importância nas artes

cênicas, assim como nas demais artes da representação, como o cinema ou a

TV. 416 Hauser, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo: Mestre Jou, 1980-1982. Volume 1. p. 357.

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É lógico que nesse tempo todo, as marés levaram a arte da cena ora mais

para o fantástico e o maravilhoso, como no Barroco, ora mais para o

comedimento, clássico; ora para o gênio romântico e suas atmosferas

emocionais, ora para a racionalidade do Realismo e do Naturalismo, com o

detalhamento e a precisão dos ângulos de incidência da luz. Mas

independentemente do vem e vai do pêndulo que leva e trás a arte em uma

oposição antitética entre o Clássico e o Romântico 417 ou mesmo de todas as

diferenças estilísticas e de concepção do mundo, das tendências mais ou menos

emocionais e dos movimentos da dramaturgia – no que se refere à arte do

espetáculo, tanto na cenografia e nos figurinos, quanto na iluminação,

encontramos uma linha ascendente rumo à verossimilhança e à busca do real, de

forma cada vez menos esquemática e mais minuciosa e detalhista, por quatro

séculos. 418

Especificamente na iluminação cênica, as pesquisas técnicas e estéticas

desse longo período se referem principalmente às diversas formas de copiar a luz

da natureza: Para dar ao palco a idéia de profundidade e reproduzir as paisagens

em cena, sucedem-se técnicas como o telão pintado em perspectiva, as telas

transparentes com uma paisagem pintada em camadas, iluminadas pela lateral

(os dioramas), a cúpula Fortuny, que imita a atmosfera e rebate a luz, tornando-a

difusa e o ciclorama, onde um fundo azul imita a distância do horizonte. Os efeitos

especiais na luz são quase sempre cópias dos grandes espetáculos da natureza

como as nuvens que se movimentam, raios, arco-íris, o Sol nascente, o poente, a

417 “Ele (o Romantismo) não é apenas uma configuração estilística ou, como querem alguns, uma das duas modalidades polares e antitéticas – Classicismo e Romantismo – de todo o fazer artístico do espírito humano”. Guinsburg, J. “Romantismo, Historicismo e História” in O Romantismo. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985. 418 Ressalva feita ao Barroco e suas formas alegóricas onde os elementos da natureza são representados mais como potências ou personagens do que forças naturais, as emoções ainda volteiam as formas, as luzes são mais intensas e livres, o contraste entre luz e sombra é saturado, os efeitos especiais não buscam a ilusão, mas o truque como truque. Por isso o Barroco utiliza-se sem pudores de miríades de efeitos de cenotécnica e luminotécnica como explosões, incêndios, ilusões de óptica, projeções de sombras, com o objetivo explícito de maravilhar e aterrorizar a platéia. A vida vira espetáculo e o espetáculo, a vida. Porém as formas do espetáculo barroco têm mais liberdade de se expandir na ópera, que é grandiloqüente e convencional por natureza, do que no teatro falado.

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lua, as estrelas... Desde as máquinas de Sabbattinni no Renascimento419 até as

os refletores de efeito de Hugo Bahr que projetam imagens com movimento, os

objetivos são os mesmos, reproduzir a natureza no palco, como um microcosmo

da realidade

No Romantismo, que acompanha a chegada do gás, as atmosferas

emocionais invadem os palcos, a possibilidade de controle das intensidades

permite seguir os conselhos de Leone de’Sommi, movimentando a luz, respirando

com o drama da peça, para levar a platéia junto com a emoção do espetáculo, do

sombrio ao brilhante, do soturno ao júbilo, da infelicidade para a felicidade nos

dramas e da felicidade para a infelicidade nas tragédias, os climas são a tônica

dominante da luz romântica. Mas sem arroubos bruscos ou incoerentes, como

uma noite de luar, um belo amanhecer, uma floresta escura ou uma festa

brilhante, a luz é então como um adjetivo ou uma linda música de

acompanhamento para fazer rir ou chorar. Das mais sofisticadas atmosferas

luminosas de Stanislávski ao mais óbvio melodrama televisivo, para não falar na

maestria técnica das óperas e musicais neo-românticas, os climas luminosos têm

um pé no Romantismo.

De resto, a luz permanece bem comportada, tornando visível a cena,

ganhando volumes e cada vez mais coerência e detalhes. As luas, nuvens,

nascentes e poentes se aprimoram causando suspiros.

Talvez no fundo o princípio mágico de representar para possuir, o mesmo

que muitas teorias declaram ser a razão das pinturas rupestres, esteja por trás de

tamanha obsessão por reproduzir a realidade no palco. Como se o homem, com o

poder de capturar a natureza em uma caixinha, pudesse ter poder sobre ela,

deixando de ser criatura para tornar-se criador.

Com o positivismo e o progresso das ciências embalando o movimento

rumo ao realismo e ao naturalismo, as experiências científicas também tomam o

palco de assalto. As primeiras experiências com a eletricidade virada energia 419 Por exemplo, em Pratique pour fabriquer Scenes et machines de Theatre (trad. francesa), Sabbattini descreve inúmeras formas de construir máquinas de nuvens (paradas no fundo, que passam da direita para esquerda, que vem de trás para frente, etc).

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luminosa chegam aos palcos cinqüenta anos antes de chegar às ruas e às casas.

E quando o “Sol do Profeta” 420 nasce na Ópera de Paris em 1849, anuncia novos

tempos onde arte e ciência, são um; como já prometera o Renascimento. A

iluminação é então pura potência de um novo amanhecer da civilização, um

símbolo dos novos tempos. Todas as grandes óperas têm os seus “mestres dos

fenômenos físicos no teatro”, “chefes de eletricistas” (antes da eletricidade) e

“especialistas em óptica”. Os novos criadores de máquinas cênicas e efeitos

especiais não são mais arquitetos ou pintores, são os cientistas-iluminadores,

como Jules Duboscq e Hugo Bähr. Os mestres de ofício das projeções são

antepassados diretos não apenas dos iluminadores, mas também dos irmãos

Lumière e das muitas profissões de fé da luz e das “novas tecnologias” que nunca

param de ficar velhas à tarde e de renascer a cada novo dia.

Em 1879 a invenção da lâmpada incandescente possibilitou a

generalização do uso da eletricidade na iluminação. Ela permitia uma grande

intensidade de luz, com um custo possível e uma segurança muito maior do que o

fogo. A partir de 1880 os teatros começam a trocar seus sistemas de iluminação a

gás por sistemas elétricos com uma rapidez inacreditável. Essa descoberta foi

considerada a grande revolução da iluminação cênica, a ponto de muitos

historiadores pensarem nesta data como o início da história da iluminação ou

mesmo da encenação moderna. Com a descoberta da lâmpada incandescente,

juntamente com a criação das resistências (dimmers), a eletricidade permitiu à

iluminação cênica o controle central de todas as fontes de luz do teatro. E mais do

que isso (que já havia sido conquistado em parte com o gás), o Black-out.

A grande novidade da iluminação elétrica, portanto, não é apenas a

qualidade da luz, é a possibilidade da não-luz, que ofuscada pela lâmpada acesa

demorará décadas para ser percebida. Além de dar visibilidade, a iluminação

cênica ganhou o poder de esconder. Num piscar de olhos faz aparecer e

desaparecer a cena, ou parte dela. Através do movimento entre a luz e as trevas,

e suas miríades de combinações, o teatro acessa além do visível, o invisível; e

através dele a sugestão, a comunicação possível daquilo que é indizível.

420 “Aparelho destinado a produzir o efeito do Sol levantando (de O Profeta)”. Composto de uma lâmpada de arco-voltaico e um espelho parabólico.

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O Black-out era a metade que faltava, a pausa, o silêncio que dá sentido à

articulação dessa língua. O contraste originário entre luz e sombra dá forma a

nossa percepção do espaço e desde o princípio dos tempos o dia e a noite se

sucedem marcando a passagem do tempo. Com a possibilidade de controlar o

caminho da luz para a não-luz, de forma independente em cada um de seus

aparelhos de iluminação elétrica, a luz ganha a potência de articular o desenho do

espaço da cena para a percepção visual em uma sucessão temporal. Ou seja, o

movimento da luz é a articulação do visível no espaço e no tempo.

Appia é o grande profeta do teatro do futuro porque no final do século XIX

teve essa iluminação de gênio, enquanto grande parte de seus contemporâneos

ainda usavam da eletricidade para fazer o sol, a lua e as estrelas e prendê-las

numa caixinha, ele apreendeu o sentido estrutural, a potência da luz como

linguagem, análoga à da música, de comunicação direta entre os sentidos e a

alma. Em seus textos sobre a encenação do drama poético musical de Wagner

ele escreveu a base da gramática estética da nova língua como um legado para

os homens do teatro do século XX.

Ainda foi preciso mudar o paradigma do teatro para que a luz deixasse de

ser pensada e utilizada unicamente como instrumento da visibilidade ou efeito

especial da ciência para arrebatar suspiros. Será necessária uma razão para que

deixe de se ofuscar e ser ofuscada pela própria beleza.421 Mas os meios para tal

estão disponíveis a partir de 1880.

Aqui chegamos a um ponto fundamental, à razão de ser desta dissertação.

A iluminação cênica passa a ter com a utilização da eletricidade o poder, através

do movimento, de desenvolver uma partitura do que é visível em cena, e como é

visível. E, portanto, o poder de se transformar em linguagem. Mas o instrumento

da mudança não é a mudança. Nem o pincel e as tintas são a pintura. A

iluminação cênica não virou linguagem por causa da utilização da luz elétrica no

teatro, embora ela tenha dado a ferramenta necessária para isso, assim como a

iluminação não é linguagem à priori, só porque usamos de alta tecnologia na

projeção de luzes e imagens. A linguagem é uma possibilidade de articulação,

421 Até hoje, infelizmente, é comum encontrar diretores e iluminadores que só entendem a luz nessa sua acepção adjetiva: deixar bonito.

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uma potência que depende da necessidade e da prática para se atualizar, assim

como o discurso depende do conhecimento da língua e também da necessidade

da comunicação que o articula. É por isso que além de falar, o homem necessita

compreender a estrutura da fala e as necessidades do discurso. É através deste

processo de compreensão e articulação que o som vira língua, a língua vira

linguagem, o discurso, obra de arte. Este é um processo da humanidade, mas

também é um processo que se re-atualiza de forma diferente no florescimento de

cada cultura e dos indivíduos que a compõem.

Esse processo de transformação da iluminação cênica em linguagem,

como já foi esboçado aqui, não aconteceu de um momento para o outro; da

descoberta tecnológica à incorporação desta tecnologia no discurso, foi

necessário tempo e, sobretudo, o surgimento da arte da encenação, que criou a

necessidade e o conceito da luz como verbo do olhar. A linguagem da encenação

moderna cria uma nova função para a iluminação cênica na medida em que se

liberta da idéia da arte como imitação da realidade.

Esse processo de travessia da realidade em direção à subjetividade,

análogo ao da visão, foi empreendido pela própria superação do naturalismo rumo

ao impressionismo e, sobretudo, na arte do espetáculo, pela ruptura com a

realidade realizada pelo simbolismo, em sua busca da verdade do espírito.

Através de procedimentos similares aos da poesia, o teatro simbolista usa das

elipses e metáforas da imagem, para atingir seu ideal de “síntese e sugestão”,

excitando a imaginação da platéia a participar criativamente da cena. O teatro

atravessa o visível rumo ao invisível e recria a realidade em cena segundo a

subjetividade, inspirado pela abstração transcendente da música, com a parceria

concreta dos poetas simbolistas e dos pintores modernos. A sinestesia tece uma

rede de relações sensoriais entre a música, o texto, a pintura e a iluminação nos

espetáculos teatrais.

A arte do espetáculo tem na idéia wagneriana de Obra de Arte Conjunta,

uma das suas grandes influências. Aceita ou criticada veementemente, mas relida

de mil formas pelos encenadores do século XX, a junção de todas as artes no

palco leva a encenação teatral a ser pensada como uma linguagem que articula

um conjunto de linguagens.

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Craig é o artista de teatro que melhor encarna e concebe a idéia do teatro

total, como uma articulação de elementos visuais e sonoros em nome de uma

criação coesa da arte e técnica da cena, orquestrada pelo encenador. Assim

como Appia, Craig considerou o movimento “como a base desta arte de

revelação”. A criação do espetáculo deve ser então resultado de uma síntese

conceitual que coordena os vários elementos da cena em movimento. A

iluminação é, nesse sistema, ao mesmo tempo um elemento articulador e

simbólico, através da sua capacidade de mostrar e esconder e de pintar a cena

com uma paleta de cores móveis.

A iluminação finalmente liberta das amarras da reprodução da realidade

transpõe o visível para criar novas formas, por meio de uma reorganização dos

elementos visuais: as linhas, formas, volumes e cores ganham flexibilidade

através do movimento da luz em sua relação com a matéria e os olhos.

As vanguardas modernas do começo do séc. XX, por sua vez,

empreendem nova revolução conceitual e adotam a teatralidade como forma de

construção explícita da cena. O teatro deixa de querer ser realidade para se

assumir enquanto teatro e, como tal, pode jogar livre e abertamente com suas

linguagens.

A luz deixa de copiar o sol, a lareira e o abajur das casas de família e

passa a escrever no espaço e no tempo, como uma linguagem explícita da cena.

Além de dar visibilidade, volume, beleza, localização espacial e atmosfera apropriada

à peça, a luz passa a ter por função a edição do visível no espaço e no tempo, vira,

portanto, elemento estrutural e estruturante na construção do espetáculo.

Essa revolução não é só estética, não é só técnica, a iluminação cênica é

ao mesmo tempo e indissoluvelmente arte e técnica.

A luz elétrica possibilitou os meios técnicos concretos para esta mudança

conceitual no teatro, assim como possibilitou a criação de novas formas de arte:

as artes da tecnologia.

Quando o homem descobre, a partir do estudo do órgão da visão, como

capturar a luz em uma câmara escura e reproduzi-la como imagem, inventa a

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fotografia, que é pensada inicialmente como uma forma de reprodução fiel da

realidade. A fotografia, que a princípio foi uma ameaça à sobrevivência dos

pintores, passou a ser o grande dado libertador das artes plásticas. A pintura

deixa de retratar a realidade para recriá-la conscientemente, liberta-se da

realidade como fim.

Multiplicando várias fotografias em seqüência, o resultado é a ilusão do

movimento. Ao projetar luz através de imagens, a uma velocidade de vinte e

quatro quadros por segundo, o homem cria o cinema. Da mesma forma que a

fotografia mudou as artes plásticas o cinema transformará as artes cênicas. O

cinema exige do teatro que se recrie, que se utilize conscientemente da presença

viva do ator, da relação com o espectador, do seu instrumento específico de

teatralidade. Mas o cinema também muda a nossa forma de construir a narrativa,

de montar cenas, de pensar e de ver o mundo.

Nos anos 1970 tem início uma revolução tecnológica na iluminação teatral.

Surgem as lâmpadas de descarga. Essas lâmpadas não acendem mais por

aquecimento de um filamento, ou seja, por incandescência, mas por reações

químicas entre vapores gasosos, a partir de uma descarga de eletricidade de alta

potência. O resultado é maior intensidade e temperaturas de cor nunca dantes

imaginadas no teatro. As luzes frias, com temperatura de luz do dia422 passam a

contracenar com as luzes incandescentes. Essas lâmpadas são muito utilizadas

no cinema e nos novos projetores computadorizados, os moving-lights. Essa nova

geração de refletores da era digital constitui-se de uma lâmpada de descarga

refletida em um espelho móvel. Através deste espelho a luz se movimenta em

cena, possibilitando além de um mesmo refletor para muitos efeitos, o movimento

dos fachos de luz. Os movimentos da luz em cena, por sua vez, ganharam nas

mesas digitais uma potência de controle simultâneo de miríades de refletores e

outros recursos cênicos baseados na eletricidade.

Outra reviravolta tecnológica está em curso e sua proposição vem desde o

início do século passado com a projeção de imagens sobre a cena. No desejo de

movimento de Appia e nos delírios técnicos de Craig, num rende-vouz entre

Meierhold e Eisenstein, nos slides de Piscator e Brecht, nas projeções de luz de

422 Em torno de 5.500oK.

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Svoboda e Richard Pilbrow, nas parcerias entre a luz, a cenografia e o vídeo. Nos

anos 90 estas projeções e seus projetores com lâmpadas de alta potência

chegam ao Brasil. A próxima geração de refletores, os catalysts, além de luz em

movimento, trazem embutido um projetor de alta potência. As suas luzes serão

imagens em movimento, com intensidade de luz de descarga. Este caminho leva

a uma parceria cada vez maior da arte do teatro com a do cinema, vídeo, artes

plásticas e gráficas e as demais artes da visão, ou seria melhor dizer do olhar.

Unindo o ao vivo do teatro com a tecnologia das imagens em movimento,

projetadas em cena, como luz. Abstrata ou narrativa, parada ou em movimento,

denotativa ou conotativa, pasteurizada ou obra de arte, é mais um plano,

luminoso, de significação que entra na dança do teatro.

Do cinema para a TV, da TV para o VT, do analógico ao digital, do real ao

virtual, as imagens correm hoje à velocidade da luz através de fibras óticas que

formam uma rede mundial. Nestes últimos cento e cinqüenta anos a relação entre

tecnologia e arte mudou com tamanha rapidez, que talvez não tenhamos tempo

sequer de refletir sobre a extensão dessa mudança para a existência humana. A

visão mudou. O tempo mudou. A noção de realidade mudou. Vivemos em um

mundo de imagens em movimento, geradas por uma dança de luzes. Todas ligadas

na tomada. A eletricidade gera a energia que move grande parte do mundo. A

lâmpada é metáfora de idéia. Iluminação é metáfora de sabedoria. “Power” é

energia e é poder.

Se a descoberta e utilização da eletricidade como energia geradora de

aquecimento, iluminação, imagens e movimento transformou nossa existência de

tal forma, não é de se esperar que essas mudanças tenham reflexos profundos

em nossa maneira de ver e fazer teatro? E tenham também transformado a nossa

relação com a idéia de representação e linguagem?

A cada vez que um espetáculo se articula ele precisa relembrar seu lugar

no espaço e no tempo, se entender enquanto linguagem complexa, que articula

várias linguagens. Essas linguagens falam juntas ou não, criam harmonias ou

confusão, contraponto ou bagunça. Não tem mais sentido - depois de todo o

teatro do séc. XX - entender a iluminação hoje apenas como desenho de luz no

espaço, ela é primordialmente escritura no espaço/tempo. O que significa dizer

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que a luz coloca seus desenhos no tempo, como a música suas harmonias, e

através do seu movimento escolhe o que é visível ou não no espetáculo. Nesse

sentido é cúmplice fundamental da direção na significação da encenação. Para

isso precisa se construir junto com o espetáculo.

As lâmpadas não falam per si. Se não houver por parte do iluminador um

conhecimento profundo do texto, do processo de construção da cena e

articulação com as diversas linguagens de que é composto o espetáculo, segundo

os conceitos da encenação, as lâmpadas de um teatro valem tanto quanto a

lâmpada de uma sala de estar, ou de uma vitrine de roupas. O roteiro da

iluminação cênica é o texto da luz. E como tal precisa ter consciência do seu

poder de articulação. É preciso fazer a língua falar com sentido, para ser de fato

linguagem.

Se os profissionais da cena, entre eles os encenadores e os iluminadores

não souberem pensar a luz como linguagem estrutural e estruturante da cena

contemporânea, ela não o será, assim como não o foi quando a luz elétrica

surgiu, simplesmente porque “deu a luz”. Daí a importância de pensar o processo

de transformação da luz em linguagem na história do teatro, para poder atualizá-

lo aqui e agora.

Nessa história arte e tecnologia se sobrepõem, técnica e estética se

irmanam no trabalho dos arquitetos, cenógrafos, encenadores e, por fim,

iluminadores, que criam e re-criam a linguagem da iluminação cênica, articulando

o visível e o invisível, formas e conteúdos, significantes e significados, construção

e desconstrução dos signos, aprendizado e transgressão, tradição e ruptura.

A importância da consciência desse processo não está no que ele tem de

acabado, mas justamente no seu aspecto móvel e incompleto.

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