ŽiŽek, slavoj. a contradição principal da nova ordem mundial

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5/22/2018 IEK,Slavoj.aContradioPrincipalDaNovaOrdemMundial.-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/zizek-slavoj-a-contradicao-principal-da-nova-ordem-mundi ŽIŽEK, Slavoj. A contradição principal da nova ordem mundial . Acessado em: 11 de julho de 2014 Disponível em: hp:!!"lo#da"oiempo.com."$!2014!0%!1&!'i'e()a)con$adicao)p$incipal) da)nova)o$dem)mundial! A *+-ADI/+ I*IA DA +3A +DE 5DIA *onhece$ uma sociedade n6o 7 apenas sa"e$ suas $e#$as e8plícias. 9 am"7m comp$eende$ como unciona sua aplica;6o: sa"e$ <uando usa$ e <uando viola$ as no$mas, sa"e$ <uando $ecusa$ uma escolha oe$ecida e sa"e$ <uando in#i$ <ue es= se a'endo al#o po$ liv$e escolha <uando $aa)se eeivamene de uma o"$i#a;6o. *onside$e o  pa$ado8o, po$ e8emplo, das >oe$as)eias)pa$a)se$em)$ecusadas?. @uando sou convidado a um $esau$ane po$ um io $ico, am"os sa"emos <ue ele cuida$= da cona, mas devo mesmo assim insisi$ em $acha$ ela ima#ine minha su$p$esa se meu io simplesmene dissesse: >+(, en6o, pode pa#a$B? Couve um p$o"lema semelhane du$ane os caicos anos ps)sovi7icos do #ove$no elsin na Fssia. Em"o$a as $e#$as le#ais ossem sa"idas e e$am em la$#a medida as mesmas <ue vi#o$avam so" a 5ni6o Sovi7ica , desine#$ou)se a comple8a $ede de $e#$as implícias, aciamene aceias, <ue susenava o ediício social. a 5ni6o Sovi7ica, se vocG <uisesse, di#amos, um $aameno hospiala$ melho$, ou um apa$ameno novo, se vocG ivesse uma $eclama;6o so"$e as auo$idades, havia sido convocado ao $i"unal ou <ue$ia <ue seu ilho osse aceio em uma escola conco$$ida, vocG sa"ia as $e#$as implícias. Sa"ia com <uem ala$ ou a m6o de <uem molha$, o <ue se  podia e n6o se podia a'e$. Depois do colapso do pode$ sovi7ico, um dos mais $us$anes aspecos do coidiano pa$a as pessoas comuns e$a <ue esse espa;o de $e#$as n6o)dias o$nou)se se$iamene esuma;ado. As pessoas simplesmene n6o sa"iam como $ea#i$ diane de $e#ula;Hes le#ais e8plícias, o <ue podia se$ i#no$ado, onde o su"o$no uncionava. 5ma das un;Hes do c$ime o$#ani'ado e$a jusamene a de o$nece$ uma esp7cie de le#alidade e$sa', su"siua. Se vocG possuísse um pe<ueno ne#cio e um cliene o devia dinhei$o, vocG ia ao seu p$oeo$ da m=ia pa$a lida$ com o p$o"lema, j= <ue o sisema le#al do Esado e$a ineiciene.J A esa"ili'a;6o da sociedade so" o $e#ime uin se deve em la$#a medida $anspa$Gncia <ue se esa"eleceu dessas $e#$as n6o)dias. A#o$a as pessoas comp$eendem novamene, de modo #e$al, o comple8o ema$anhado de ine$a;Hes sociais.  6o che#amos ainda a esse es=#io no plano da políica ine$nacional. a d7cada de

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IEK, Slavoj. A contradio principal da nova ordem mundial.Acessado em: 11 de julho de 2014Disponvel em: http://blogdaboitempo.com.br/2014/05/19/zizek-a-contradicao-principal-da-nova-ordem-mundial/

A CONTRADIO PRINCIPAL DA NOVA ORDEM MUNDIALConhecer uma sociedade no apenas saber suas regras explcitas. tambm compreender como funciona sua aplicao: saber quando usar e quando violar as normas, saber quando recusar uma escolha oferecida e saber quando fingir que est se fazendo algo por livre escolha quando trata-se efetivamente de uma obrigao. Considere o paradoxo, por exemplo, das ofertas-feitas-para-serem-recusadas. Quando sou convidado a um restaurante por um tio rico, ambos sabemos que ele cuidar da conta, mas devo mesmo assim insistir em rachar ela imagine minha surpresa se meu tio simplesmente dissesse: Ok, ento, pode pagar!Houve um problema semelhante durante os caticos anos ps-soviticos do governo Yeltsin na Rssia. Embora as regras legais fossem sabidas e eram em larga medida as mesmas que vigoravam sob a Unio Sovitica , desintegrou-se a complexa rede de regras implcitas, tacitamente aceitas, que sustentava o edifcio social. Na Unio Sovitica, se voc quisesse, digamos, um tratamento hospitalar melhor, ou um apartamento novo, se voc tivesse uma reclamao sobre as autoridades, havia sido convocado ao tribunal ou queria que seu filho fosse aceito em uma escola concorrida, voc sabia as regras implcitas. Sabia com quem falar ou a mo de quem molhar, o que se podia e no se podia fazer.Depois do colapso do poder sovitico, um dos mais frustrantes aspectos do cotidiano para as pessoas comuns era que esse espao de regras no-ditas tornou-se seriamente esfumaado. As pessoas simplesmente no sabiam como reagir diante de regulaes legais explcitas, o que podia ser ignorado, onde o suborno funcionava. (Uma das funes do crime organizado era justamente a de fornecer uma espcie de legalidade ersatz, substituta. Se voc possusse um pequeno negcio e um cliente o devia dinheiro, voc ia ao seu protetor da mfia para lidar com o problema, j que o sistema legal do Estado era ineficiente.)A estabilizao da sociedade sob o regime Putin se deve em larga medida transparncia que se estabeleceu dessas regras no-ditas. Agora as pessoas compreendem novamente, de modo geral, o complexo emaranhado de interaes sociais.No chegamos ainda a esse estgio no plano da poltica internacional. Na dcada de 1990, um pacto silencioso regulava a relao entre a Rssia e as grandes potncias ocidentais. Os Estados ocidentais tratavam a Rssia como uma grande potncia na condio de que a Rssia no agisse como uma. Mas e se o sujeito para quem a oferta-feita-para-ser-recusada realmente aceitar ela? E se a Rssia realmente comear a agir como uma grande potncia? Uma situao como essa propriamente catastrfica, ameaando todo o tecido de relaes existente como ocorreu cinco anos atrs na Gergia. Cansada de apenas ser tratada como uma superpotncia, a Rssia de fato agiu como uma.Como chegamos a isso? O sculo americano acabou, e entramos num perodo em que mltiplos polos do capitalismo global vm se formando. Nos EUA, na Europa, na China e talvez na Amrica Latina tambm, sistemas capitalistas desenvolveram com coloraes especficos: os EUA representam o capitalismo neoliberal, a Europa o que resta do estado de bem estar social (Welfare State), a China o capitalismo autoritrio e a Amrica Latina o capitalismo populista. Com o fracasso da tentativa estadunidense de se impor como a nica superpotncia mundial a policiadora universal , h agora a necessidade de estabelecer as regras de interao entre esses polos locais no que diz respeito aos seus interesses conflitantes. por isso que nossos tempos so potencialmente mais perigosos do que podem parecer. Durante a Guerra Fria, as regras de comportamento internacional eram claras, garantidas pela loucura da Destruio Mtua Assegurada (MAD) das superpotncias. Quando a Unio Sovitica violou essas regras no-ditas ao invadir o Afeganisto, ela pagou caro por essa infrao. A guerra do Afeganisto foi o comeo de seu fim. Hoje, as novas e velhas superpotncias esto se testando, tentando impor sua prpria verso de regras globais, experimentando com elas atravs de proxies (guerras por procurao) que so, claro, outras pequenas naes e estados.Karl Popper certa vez elogiou o teste cientfico das hipteses, dizendo que, dessa forma, permitimos que nossas hipteses morram ao invs de ns. Nos testes de hoje, as pequenas naes se ferem no lugar das maiores primeiro a Gergia, agora a Ucrnia. Embora os argumentos oficiais sejam altamente morais, girando em torno de direitos humanos e liberdades, a natureza do jogo clara. Os eventos na Ucrnia parecem algo como a crise na Gergia, parte II a prxima etapa de uma luta geopoltica por controle em um mundo multipolar, no regulado.Chegou definitivamente a hora de ensinar alguns modos s superpotncias, velhas e novas. Mas quem vai fazer isso? Obviamente, apenas uma entidade transnacional poder dar conta de uma tarefa como essa. Mais de duzentos anos atrs, Immanuel Kant viu a necessidade de uma ordem legal transnacional fundada na emergncia da sociedade global. Em seu projeto para paz perptua [Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf, 1795], ele escreveu:Avanou-se tanto no estabelecimento de uma comunidade (mais ou menos estreita) entre os povos terrestres que, como resultado, a violao do direito em um ponto da terra repercute em todos os demais, a ideia de um Direito Cosmopolita no uma representao fantstica nem extravagante.Isso, no entanto, nos traz ao que talvez seja a contradio principal da nova ordem mundial (se pudermos usar esse velho termo maoista): a impossibilidade de criar uma ordem poltica global que corresponda economia capitalista global. E se, por razes estruturais, e no apenas devido a limitaes empricas, no puder haver uma democracia ou um governo representativo mundial? E se a economia global de mercado no puder ser diretamente organizada como uma democracia liberal global com eleies mundiais?Hoje, em nossa era de globalizao, estamos pagando o preo por essa contradio principal. Na poltica, fixaes da era passada, e identidades particulares, tnicas, religiosas e culturais retornaram com fora total. Nosso predicamento hoje definido por essa tenso: a livre circulao global de mercadorias acompanhada por crescentes separaes na esfera social. Desde a Queda do Muro de Berlim e a ascenso do mercado global, novos muros comearam a emergir por toda a parte, separando povos e suas culturas. Talvez a prpria sobrevivncia da humanidade dependa da resoluo dessa tenso.

Publicado em ingls no The Guardian. A traduo de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.