zero
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Compilação para o 13º Premio Nacional de Poesia Sebastião da GamaTRANSCRIPT
1
ZERO
Joaquim Bartolomeu
2
O homem da raiva
Esquarteja a máquina
Na sua fronte com potentes golpes.
Não lhe vale de nada!
Apenas fere a si próprio.
Mas a sua fraqueza de sentido,
Impede-o de parar.
3
Pigmento!
Agarra-te ao pigmento!
Esquece o sentimento
Que pensas que existe à flor da pele.
É nada!
Apenas nulidade.
Dás-me vontade de rir!
Tu e todos
Que querem apoderar-se do cosmos
Como se fosse assim tão fácil.
É inútil pensar o pensar,
Visto que nunca encontraremos um rumo para nós.
Por isso desfragmento-me
Em copos vazios sucessivos
Na procura de algo mais
Para acabar com algo menos.
4
Eu quero fugir à polícia
E roubar maçãs
Ao som de Carlos Paredes.
Eu quero mandar coisas ao ar,
Sem ter de explorar
O caos e o quociente
De números efémeros.
E mesmo que me doam
Os estalos è queima-roupa,
Hei-de fugir
Por caminhos de terra
Mal frequentados.
Qual conspiração, qual quê?
Nem os fantasmas santos,
Nem os velhos lá da rua
Me encontrarão.
Para além de mais fantasias
Sócrates tinha noção do que sabia
Energúmenos são aqueles que se deixam enganar
E já chega que este dia está no fim,
Enquanto o senso comum
Insiste em não desaparecer
Está na altura de escolher um rumo em busca de algo melhor.
5
Neste país sem cor
Ainda há gente
Que procura saber qual o saber do universo.
Neste país sem gente
Ainda há loucos
Cheios de sanidade a monte.
Nesta praça,
Não há sentido ou direcção
Que sirva de locomotiva a qualquer género.
Acontece o que há para acontecer
E não se espera por mais que isso.
Já só resta
A esta pobre gente
Este velho ar que respiramos
Vezes sem conta
Ignorando a impureza que somos.
6
Não me deixes conduzir.
Não me deixes sair.
Não me deixes resistir.
Não me deixes ir de encontro à luz.
7
Num dia de chuva,
É difícil achar uma saída
Para um meio seguro.
Nos dias de chuva,
A hipocrisia fica em casa,
Com medo de se molhar.
Num dia de chuva,
Não posso ficar em casa.
Há que aproveitar
O cinza do céu,
E as ruas despidas de preconceito.
São dias de sentir a areia nos pés,
De olhar para o infinito
Na procura de um horizonte inexistente.
8
Dói-me algo.
Algo que nem eu sei do que se trata.
As crianças correm loucas pela rua,
Sem saber o que fazem.
Dói-me algo,
E a fome, aperta-me o estômago,
Mas não chega a magoar.
Esta dor é desenfreada,
Sem esquemas estranhos
Que a expliquem.
Isto não é normal.
Não, não pode ser.
É capaz de ser
Aquela maldita consciência,
De que tanto
Ouvi falar
Em pequeno.
9
Falta de cor
Parece que hoje o dia é cinza,
Cinza espesso,
Que não me deixa sair de casa,
Que não me deixa voltar a mim.
Por mais que esbraceje,
Não consigo afastar as nuvens,
Não tenho forças para afastar esta dor apática.
Este ruído de fundo
Que são mais gritos doentios
Que qualquer outra coisa,
Estão a dar cabo de mim
E de tudo o que ponho à mão.
Toda esta falsidade à minha volta,
É só mais carne para canhão
Para acumular a toda esta falta de cor.
Mal de mim que te sonhei, cidade.
Mal de mim, que ainda te quero.
10
Hoje sinto-me divorciado do mundo.
Um agoiro dos dias que correm
Que me prende ao quarto, carente de luz.
Já só sonho a preto e branco.
Já só penso em pós-roque.
Entrei em mutação racional
E a cabeça não para de andar à roda.
11
Por momentos
Existem singularidades
Inoportunas que nos paralisam.
Por momentos
Por mais vagos que sejam
Há sempre algo que corre simplesmente mal.
Não é que seja pura ciência,
Mas também não chega a ser arte,
São coisas,
Apenas coisa.
São galhos caídos involuntariamente
No meio da estrada,
Que me interrompem o rumo.
12
Zero
Zero é um homem sem amigos,
Odiado por todos e mais alguns,
Ou talvez seja ao contrário.
Não se sabe bem.
É um homem que vive para si,
Que foge a qualquer movimento social.
Mesmo assim, talvez seja o mais politicamente correcto possível.
É sisudo, de expressões fechadas,
Fechadas para ele mesmo,
Um verdadeiro homem aparte.
É um quarentão de laço apertado
A quem todos olham com desdém
E desaprovação.
É o homem zero total,
Longe de tudo e todos.
É o homem Zero.
Apático.
O eremita.
13
Já é noite avançada
E a procissão ainda não chegou ao adro.
Se na terra dos homens de bem
Ainda não chegou a penumbra dos vultos,
Certamente que não tardará a chegar.
Os fantasmas do passado
Vão a caminho
E não há chuva de Novembro que os pare.
Se não parece normal,
Basta olhar para a pedra
Pois, lá o está escrito,
Que daqui ninguém sairá ileso.
14
Na minha terra
Ainda há males que vêm por bem,
Ainda há gente doente da cabeça
Que não sabe em quem
Há-de bater,
Não sabe por onde está o seu rasto,
Nem o daqueles que o deixaram de o ser.
É mais uma terra de ninguém,
Que não faz a mínima ideia
De onde está ou por onde estará.
É terra de perdidos nunca achados
Que não têm onde cair mortos.
15
Á sexta-feira
É quase certo
Cair no deserto.
É dia de descer às profundezas
E rezar para não voltar sozinho.
É para vestir a toga do não certo.
Ela afasta-me os álibis
E os corações felpudos de outrora.
Á sexta-feira é um bom dia
Para estar por cá.
16
Rotina
O que anda a matar este povo
É a rotina.
Essa mulher vadia,
Mata e mata fortemente
E vai dando cabo desta gente,
Arrancando cada pedacinho de carne
Até só restar triste osso
Agarrado ao que resta do dia.
17
Andam por aí uns mal dizeres
A cerca da Maria
Que não deixam de ser
Meros prazeres
Para quem está do lado de lá do balcão.
É esquizofrénismo
Que lhe alimenta o reumático.
Assim, por um dia destes
Ela ainda se muda para outras bandas,
Pois o povo gosta destas coisas agressivas,
De percevejos na ponta da língua
E de pedras para enfiar
À força em sacos alheios.
18
Todos os meus sonhos
São mentiras baratas
Cheias de nada,
Como pó transformado em vácuo.
Em pleno gesto de insignificância
Estou por cá para fazer peso ao chão,
Sem sair do meu quadrado,
De dentro da minha parede metafórica
Faço por escavar algum caos
Que me faça andar para a frente.
Por mais que esperneie
Não consigo soltar deste foco de escuridão
Que contrasta com a névoa
Da fumaça que me circunda.
Agora, qualquer insignificância
Seria ouro.
Agora, qualquer pedra atirada
A mim,
Não passaria de mais uma banalidade
Que me esfregam na cara.
Mais uma vez, e com um extenso eco,
Já nada me resta,
Só me vale a pena ver tudo a correr a frente do nariz.
19
Preto no preto,
Branco no branco.
É pura evidência que a todos atinge.
Mais do que bravura,
Simples curiosidade
Que corrói a integridade dos mal amados.
É assim,
Feito monocromo,
Que se vê as páginas do calendário
A serem arrancadas
De um único puxão.
Mas é com esta inibidade
Que me ausento desta terra
Para ver se há algo bom
Fora deste perímetro.
20
Estes tempos modernos,
Ai, estes tempos modernos.
As mulheres com virgo
Passam pelas ruas num ar desajeitado,
A galar os homens de bons cheiros que passam.
As outras, já sem esse castigo
Esfregam as sua caras em livros,
Ainda na procura do seu homem
Intelectual de sotaque parisiense,
Posto isto quando as duas mulheres
Não são a mesma.
É a máquina perfeita, esta mulher.
Sabe como quer, para quê, com o quê.
Mas lá no fundo nem sabe se o quer.
Complexa, e não linear.
Travessa e angelical.
Tudo o que recebo, ela multiplica,
Para o bem e para o mal.
21
Nestes dias de húmido calor,
Paira no ar,
Um estranho sentido oportunista
De querer fugir dos seus sítios do costume.
É uma necessidade vã que calha a todos.
É a sensação de dissabor
Que colecta de uns e doutros
A energia para sobreviver mais um dia.
Mais do que o fugir daqui,
A procura de refúgio noutro lado qualquer.
22
Por fim, calmaria.
É com enorme gosto que pego
Novamente nesta tralha,
Que há longas semanas que planeava
Vir a este velho sótão de caixas cheias de pó,
Sem ter mais nada em mente.
O que eu gosto de abrir estas caixas cheias de ar estanque.
É um consolo significativo
Depois de todo este tempo de lavoura asfixiante,
Que neste sótão tão escuro
É bom encontrar aquela janela mínima
Ali ao canto,
Abri-la,
Fazer correr o ar empoeirado.
É um momento curto demais,
Tão curto que já acabou,
E já sinto outra vez
O cheiro do peso nos ombros
Da velha lavoura.